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Copyright © 2021 Jenniffer Alves

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Revisão: Carina Barreira
Diagramação: Jenniffer Alves
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
desta obra através de qualquer meio — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei no
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Todos os direitos reservados.
Edição Digital | Criado no Brasil.
Uma obra de Jenniffer Alves
Será que o AMOR é capaz de curar uma mente atormentada pela injustiça?
Duas almas quebradas se conectam com apenas um olhar. Ela do lado de fora e ele do outro lado
das grades. O que poderia ser impossível, se torna possível, quando novos sentimentos pulsam de
corações traumatizados.
Laura esconde muito mais do que deixa transparecer. Reclusa sem suportar ser tocada, vive sua
vida entre lutas e recaídas, com a esperança de que um dia possa se tornar uma pessoa normal. Tudo
muda quando é designada a fazer uma entrevista com o criminoso mais perigoso da Ucrânia.
Nada daria errado, afinal, ele estaria do outro lado, sem poder tocá-la e com um vidro separando
dois mundos completamente diferentes. Mas ao encarar seus olhos, algo dentro de si muda.
Ruslan Rotam, preso aos 18 anos por uma série de assassinatos carrega consigo muitos segredos e
após 14 anos surge a primeira oportunidade de fuga. Só há uma única pessoa que ele acredita ser capaz
de ajudá-lo.
Duas vidas marcadas pela maldade. Duas almas solitárias. Um amor capaz de superar qualquer
trauma é forte o bastante para suportar uma série de assassinatos que tem como culpado a única pessoa
que ultrapassou as barreiras impostas por um coração dilacerado?
AVISO: Esse livro pode despertar gatilhos emocionais
Sinopse
Nota da Autora
Aviso
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Epílogo
Agradecimentos
Talvez você goste
Dedico esse livro a todas as mulheres que tiveram seu coração e alma
dilacerada, mas que assim como a Laura, floresceram como uma rosa,
superando o insuperável e buscando seu final feliz.
Intensa Paixão é uma história que despertará em você uma dor no
coração, onde encontraremos dois personagens traumatizados por seu
passado, ambos carregam as consequências de abusos e agressões. Então
esteja preparado para lágrimas, indignação e raiva, mas além de tudo, esteja
preparado para se apaixonar e se emocionar pela força de cada um, pela
determinação e paixão de ambos.
Intensa Paixão é um livro delicado, algumas cenas poderão despertar
gatilhos emocionais, principalmente em mulheres que passou pelo que Laura
passou, mas narrado de forma cautelosa e cuidadosa.
Essa história se passará em Kharkiv cidade da Ucrânia. Tentei trazer o
máximo de representatividade, citando aspectos culturais, e alguns detalhes
para que você mergulhe nessa trama.
Outro ponto a destacar, é que você encontrará muito “estás” “soa-te
bem” “como dizes?”. E muitas outras por se tratar de uma expressão
linguística e por Laura e nós sermos brasileiros, quis dar um pouco de
sotaque para os ucranianos.
Espero que goste da leitura, se emocione e que no fim leve com você
uma grande lição.
Lembre-se, esse livro é uma obra ficção e abordará abuso tanto sexual,
quanto psicológico, se por ventura sentir incômodo com alguns relatos – que
por sinal são inspirados em muitos fatos reais – pare a leitura ou pule as
lembranças.
Quero salientar que por mais que seja lindo – que para mim foi uma
loucura - a atitude da Laura, não faça isso na vida real. Existe maldade por
todos os lados, inclusive poderá bater na sua porta e não virá como Ruslan de
olhos verdes penetrantes. Sua vida é mais importante que qualquer fetiche
literário.
Aprecie a leitura com moderação, okay?
Um beijo e boa leitura!
Acordo assustada e suada depois de mais um pesadelo, a cada dia que
passa, mais recorrentes eles se tornam. Olho para o lado quando o
despertador toca, são cinco da manhã, e está um frio de -11ºC. Me aconchego
debaixo das cobertas querendo permanecer no meu pequeno apartamento, o
que é impossível quando tenho que trabalhar.
Solto um suspiro e me levanto, sentindo os pelos dos meus braços
eriçarem. Ando na escuridão até achar o receptor da luz e a ligo. Engulo em
seco antes de me virar e olhar pelo cômodo. Fecho as mãos em punho quando
meus batimentos aceleram enquanto caminho pelo apartamento, certifico-me
de que não há ninguém. Ao me sentir segura, ligo a tv e vou me arrumar para
o trabalho de logo mais.
Todos os dias sigo a mesma rotina – acordo, ligo todas as luzes, deixo a
tv falando sozinha e vou me arrumar – às vezes me sinto patética por fazer
isso, mas enquanto não tenho a certeza de que estou sozinha, não consigo
fazer nada. São anos com os mesmos tormentos, o medo parece aumentar de
tamanho conforme o tempo se passa e meus pesadelos me torturam de
maneira insuportável.
Apanho minha bolsa depois de estar pronta e olho para tv, o jornal AS
da manhã - o mesmo em que trabalho - está falando sobre a crise econômica
em que estamos passando. Por esse motivo, Kharkiv sofre pelo crescimento
da criminalidade por conta da pobreza e falta de oportunidades. Pessoas cada
vez mais jovens se tornam bandidos e traficantes, o único jeito que encontram
de ganhar dinheiro.
Sobressalto de susto ao escutar um estrondo de porta batendo, gritos
vem logo em seguida, meu vizinho bêbado acabou de chegar em casa depois
de uma longa noite de bebedeira e não foi muito bem recebido pela esposa.
Paro de prestar atenção na briga e volto para tv, que agora fala sobre o
presídio Colony 100, um lugar para criminosos de alta periculosidade e
reincidentes.
Sem querer mais ver, troco de canal deixando no de desenhos animados
e saio de casa, trancando todas as janelas e a porta. A tv permanece ligada,
olho pelo corredor vazio e escuro, aqui vivem pessoas de classe baixa, por
isso é normal esbarrar com bêbados, ladrões e até mesmo prostitutas.
Infelizmente foi o único lugar que encontrei onde meu salário de colunista
consegue cobrir.
Coloco as mãos nos bolsos do casaco e saio do prédio, a estrutura é
muito antiga, dando um ar estranho devido à falta de manutenção. O vento
gelado bate em meu rosto, estremeço de frio. O céu está nublado e garoa,
deixando o ar úmido e nada atrativo.
Um carro estaciona rente à calçada, analiso com atenção, achando
estranho um veículo de luxo em um lugar tão pobre. Balanço a cabeça
quando a motorista desce e me olha com um sorriso escancarado.
— Tu gostaste? — Pergunta, se aproximando.
— É seu? — Arqueio uma sobrancelha, Gana ergue as mãos e gira,
rindo.
— Eu ganhei! — Seus olhos astutos me encaram, brilhantes.
— Sério?
— Creio que sim... — Ela franze a testa, se divertindo com minha
incredulidade. Meus olhos descem por seu corpo curvilíneo, e me pergunto
como ela consegue usar essas “minis” roupas em um frio insuportável.
— Me conte a história — peço, ela tira seus cabelos avermelhados do
rosto e coloca as mãos no peito.
— Sabes o quanto sou esforçada, certo? Pois bem, há mais ou menos
uns dois meses venho investindo em um cliente rico, ele gostou dos meus
serviços e começou a me presentear, até que ontem apareceu com esse carro.
— Ele te deu? — Gana assente, cheia de entusiasmo.
— O que achas? — Analiso o Audi A3 de luxo prata.
— Bonito, mas... não é perigoso deixá-lo aqui? — Ela comprime os
lábios, olhando desanimada para seu carro. — Não temos garagem e... se
você vender, poderá encontrar um lugar melhor para morar.
— Tu queres que eu venda o xoxo? — Seus olhos esbugalham, dou de
ombros, porque é uma opção a se pensar, pelo menos eu faria isso.
— Creio que nomeou o carro de xoxo, então não pretende vender?
— Não pensei nisto — diz um pouco decepcionada. — É meu primeiro
carro...
— Ele te deu os documentos? — Gana inclina a cabeça para o lado,
seus olhos claros se fixam nos meus.
— Não, achas que é necessário? — Faço uma careta, não sei porque
ainda me surpreendo com a ingenuidade de Gana, coloco sempre a culpa na
falta de estudos e da pobreza que a levou a se prostituir.
— Como vai provar que o carro é seu?
— Acho que deixei esse detalhe passar.
— Se seu cliente te deu esse carro de verdade, ele deve te entregar os
documentos em seu nome, provando que é proprietária do veículo, ou então
quando menos esperar, ele irá tomar seu carro e você não poderá fazer nada.
— Ajeito minha boina, sentindo raiva de ver Gana ser enganada outra vez.
— Oh, é muita informação, mas não te preocupes, Yevhen não faria
isso comigo.
— Tem certeza?
— Sim! — Gana sorri e estende a chave. — Passarei o dia dormindo,
não poderei vigiar o carro enquanto ficar aqui fora, por isso quero que tu o
leve contigo, assim poderei ficar tranquila. — Ergo as sobrancelhas. —
Confio-te, somos amigas.
— Okay! — Pego a chave com a mão enluvada, Gana solta um pulinho
animado, fazendo barulho com seu salto alto.
— Sei que xoxo estará protegido no estacionamento do jornal, confio
em ti também. — Assinto de leve. — Adeus Laura, bom trabalho.
— Descansa — me despeço, assistindo-a andar em direção ao nosso
prédio, a polpa da sua bunda está exposta, já que seu short é um cinto e não
consegue cobrir.
Volto a olhar para o carro um pouco alegre por me livrar da
superlotação dos ônibus, é sempre exaustivo. Me acomodo no banco, ligo o
ar quentinho e suspiro.
Conheço Gana desde que me mudei, acho que sou a única que
conversou com ela sem a julgar. As moradoras daqui não gostam nem um
pouco dela, primeiro por ser muito linda, e segundo por ser prostituta.
Acreditam que Gana é um perigo para seus maridos, apesar de ela nunca ter
paquerado nenhum dos moradores, receio fica impregnado cada vez que o
nome dela é citado.
Nossa amizade cresceu de forma natural, Gana respeitando meu espaço,
sabendo que nunca poderá chegar tão perto, e eu sua escolha de vida. Cada
uma de nós tem um passado que nos assombra, deixando os outros verem
apenas o que queremos. Por esse motivo que acredito que houve essa ligação
entre nós.
Estaciono o xoxo numa das vagas, inspiro fundo criando coragem para
enfrentar o frio e saio do carro, ando apressada em direção ao prédio da AS
jornalismo.
Dou bom dia ao segurança e entro no elevador, alguns dos meus
colegas de trabalho entram comigo, aceno com a cabeça de leve por não ser
muito íntima deles. Quando chego na minha cabine, tiro meu casaco, luvas e
a boina, ligo o computador e olho em volta.
— Estás bem? — Encaro Aksinya, que acabou de chegar.
— Estou e você?
— Parece que não descansei nada, sinto-me esgotada. — Reclama. —
Você terminou seu artigo?
— Quase!
— Pareceste eu... — Murmura, se jogando na cadeira. — Andry
deveria nos dar um aumento, somos escravas deste lugar.
— Sabes que este é um pedido em vão. — Yaroslav se intromete
quando chega, seus olhos escuros se encontram com os meus. — Andry
prefere morrer do que nos dar aumento.
— Somos escravos... — Ela choraminga, ligando seu computador,
Yaroslav ri baixinho, indo para seu lugar de trabalho.
— Não posso reclamar, poderia estar pior. — Digo, borrifando álcool
na minha mesa.
— Ou estaríamos melhores. — Retruca Justik, meu colega de cabine.
— Bom dia Justik, espero que tenhas aproveitado tua festa. — Alfineta
Aksinya, lançando um olhar nada amigável em sua direção.
— Festa? — Justik se faz de desentendido, ignorando-a. Balanço a
cabeça, esses dois ficam o tempo todo se cutucando, só estão em paz quando
a boca de ambos está grudada uma na outra.
— E lá vamos nós! — Resmunga Yaroslav, olho para ele e reviro os
olhos, ele retribui o gesto com diversão.
Me desligo total quando foco em terminar o artigo sobre a mais nova
marca de cosméticos que chegou na Ucrânia. Escrever é uma das minhas
paixões, a sensação de estar colocando as palavras no papel é gratificante, me
ajuda a esquecer do mundo lá fora e dos meus tormentos.
— Laura? — Ergo meus olhos. — Pode ajudar-me? — Os cabelos
loiros de Aksinya estão presos em um coque bagunçado, seu rosto está um
pouco contorcido de frustração.
— Com o quê?
— Com meu artigo, você leria para dizer-me se está aceitável?
— Me envie, Aksinya! — Sorrindo, ela volta ao seu trabalho, recebo
seu e-mail e começo a analisar seu artigo, que por sinal está maravilhoso ao
relatar com perfeição a negligência que os asilos estão sofrendo. Foram dias
de árdua pesquisa, coletando informações para chegar ao máximo de
perfeição.
— Como estás? — Pergunta Justik, por cima da minha cabine.
— Ótimo como sempre. — Respondo, erguendo o polegar em sinal de
positivo para ela.
— Hum... — Murmura, voltando para seu lugar.
— Obrigada, Laura! — Ela agradece, olho para minha mesa e encaro a
foto da minha mãe, meu peito aperta de saudades, queria poder estar ao seu
lado agora, lhe abraçando.
Muitas vezes ao longo de todos os dias me pergunto o que eu fiz de
errado, ela deveria estar ao meu lado, afinal, sou sua filha, mas não foi bem
assim. Ela preferiu viver no inferno, se iludindo com a mentira e colocando
toda a culpa em mim. Eu queria apenas que ela me defendesse, me
protegesse, evitando que minha inocência fosse arrancada de forma
monstruosa.
Limpo a garganta, evitando que as emoções tomem conta de mim, não
sou mais aquela menininha de antes, agora sou uma mulher e capaz de fazer
minhas próprias escolhas, sejam as mais duras. Sou dona de mim e nada me
fará mal, a não ser ele...
— Laura? — Sobressalto ao ser arrancada do devaneio. — Andry
deseja vê-la. — Informa Ekaterina, secretária do meu chefe, assinto já me
levantando.
— Boa sorte! — Yaroslav deseja, nunca é bom ser chamado por ele,
pois quando não é bronca, é mais trabalho.
Ekaterina abre a porta para mim, entro no escritório um pouco nervosa
e me sento na cadeira à sua frente. Andrey, um homem alto, pouco acima do
peso e olhos escuros, me encara com cuidado, avaliando-me com atenção.
Ele coloca as mãos entrelaçadas em cima da mesa de forma tranquila,
deixando-me mais nervosa.
— Laura, precisarei de você. — Como disse, vir aqui é sair
sobrecarregado de mais trabalho. — Zhdana teve que se ausentar, acabou
deixando seu trabalho pela metade e como você é uma das melhores
colunistas website que tenho, escolhi você para substituí-la.
— Posso recusar? — Ele fica me encarando sem dizer nada por alguns
segundos.
— Se quiser ser demitida, acredito que sim. — Aperto meus lábios e
assinto.
— Como será?
— Zhdana conseguiu uma entrevista exclusiva no Colony 100. —
Enrijeço. — Ela iria entrevistar Ruslan Rotam, parte do artigo dela está
pronto e assim você saberá o que deverá ser feito.
— Quem é Ruslan Rotam? Um dos guardas do presídio? — Pergunto,
nervosa.
Andry fica me olhando, começo a balançar minha perna esquerda, seu
olhar me diz que não é um guarda, que é um homem muito além disso, meu
medo se torna realidade quando meu chefe revela a verdade.
— Ruslan Rotam é considerado um serial Killer, Laura. — Choque
espalha por meu corpo, não irei conseguir fazer essa entrevista, não quando
tenho medo de... — O que há de errado? — Andry pergunta, mas não consigo
me mexer. — Laura?
— É... — Limpo a garganta, tentando controlar meus nervos. — Eu não
posso...
— Não te preocupes, ao seu lado estará os guardas, ele não lhe fará
mal.
— Não é isso... — Umedeço os lábios, penteio meus cabelos castanhos
e desvio do olhar preocupado do meu chefe.
— A entrevista é amanhã, sei que é fora da sua zona de conforto, mas
será uma experiência nova. — Ele coloca um pen drive em cima da mesa. —
Aqui estão todas as informações que necessitas, confio em ti.
— Certo! — Murmuro sem dizer mais nada, pego o maldito pen drive
com as mãos trêmulas e saio. Preciso desse emprego e sei o quanto Andry
pode ser frio ao decidir que não quer mais alguém trabalhando com ele.
Vou direto para o banheiro, jogo água em meu rosto me acalmando...
me controlando. Só de imaginar aqueles guardas me olhando, aqueles
detentos esfomeados por carne nova... estremeço, limpando minha mente
dessas imagens sujas que me assombram.
Me encaro através do espelho, meus olhos azuis estão espantados, estou
pálida e apavorada, não sei se terei coragem de enfrentar algo assim, sei que
alguma coisa vai acontecer, não é de hoje que tenho esse pressentimento.
Algo ruim se aproxima, estou com medo e sozinha, não sei se serei capaz de
lidar com tudo mais uma vez.
Fecho meus olhos, inspiro fundo acalmando as batidas incontroladas do
meu coração, tentando colocar meus sentimentos em ordem. Preciso me
preparar para o que vier, sei que serei capaz de enfrentar mais esse
obstáculo... Sou forte, independente do que tenha passado, eu vou conseguir
vencer mais esse desafio que colocará à prova as muralhas que construí a
minha volta.
Volto para minha cabine depois de meia hora tentando me acalmar,
meus batimentos continuam acelerados e minhas mãos geladas. Pela forma
que meus colegas estão me olhando, é provável que eu esteja pálida também.
— Estás bem? — Pergunta Aksinya com a testa franzida.
— Sim. — Respondo me sentando e encarando o pen drive.
— Não é o que parece. — Olho para Justik. — Chefe lhe deu mais
trabalho?
— Andry me deu o artigo da Zhdana, disse que ela teve que se
ausentar.
— Creio que tenha sido demitida. — Yaroslav fala, enrugo meus
lábios.
— Mas qual será a reportagem que tu deves fazer? — Aksinya cruza os
braços, curiosa para saber.
— Entrevistar Ruslan Rotam. — Eles ficam mudos, assombro transluz
seus olhos, acho engraçado a reação deles.
— Sério? — Assinto para Justik, ele passa as mãos em seus cabelos
loiros.
— Pelo visto vocês sabem quem é.
— Sem dúvidas! — Murmura Akinya, rodando a caneta em seus dedos.
— Me expliquem.
— Como já deve ter descoberto, Ruslan é considerado um serial Killer,
ele matou mais de 20 mulheres há 14 anos atrás. — Justik conta, ele arrasta
uma cadeira e se senta mais próximo, evitando me tocar. — As motivações
foram fúteis, nada que justificasse assassinar uma pessoa, acredito que ele
gostava de perseguir e matar de forma violenta essas moças. Ele tinha um
padrão, mulheres lindas era um deles, sempre deixando os rostos delas
desfigurados. — Engulo em seco, digito seu nome no google e sua foto
estampa minha tela, fazendo meu coração saltar.
— Então o condenaram? — Pergunto sem desgrudar meus olhos do
garoto à minha frente.
— Pena perpétua e foi considerado o homem mais perigoso da Ucrânia.
— Yaroslav diz.
— Terei que entrevistá-lo amanhã... — Murmuro para ninguém em
específico. — Estarei à frente de um assassino de mulheres...
— Não penses demasiado nisso. — Aksinya tenta me acalmar. — Vai
dar tudo certo!
— Ele estará com guardas, algemado e dentro de uma cela, vão manter
a distância porque Ruslan é perigoso. — Diz Yaroslav.
— Você já fez alguma entrevista assim? — Pergunto a ele por ser o
colunista mais antigo daqui.
— Quando entrei, trabalhei ao lado de uma jornalista criminal, vi
muitas cenas de crimes, fazer entrevista com criminosos é normal na rotina
de quem trabalha nessa área. — Ele me lança um sorriso tranquilizador,
voltando para sua cabine.
Inspiro fundo, plugo o pen drive no computador e começo a ler o artigo
incompleto feito por Zhadana. Nele estão todas as informações referentes ao
passado de Ruslan, sua idade, as mulheres que assassinou, fotos das cenas do
crime, sua família e muito mais do que sou capaz de suportar.
Passo o dia pesquisando sobre ele, tentando entender o que o levou a
assassinar brutalmente essas mulheres que tinham famílias, namorados e até
filhos. Ruslan se declarou inocente de todas as acusações, assisto o vídeo do
seu julgamento, o desespero é visível em sua expressão, ele era apenas um
garoto cheio de vida.
Sinto meu peito apertar quando ele chora de angústia ao ser sentenciado
à pena máxima. De acordo com as leis Ucranianas, a prisão perpétua é de fato
“perpétua”, os prisioneiros nunca mais saem, ficam trancafiados até morrer.
A Ucrânia não revê esses casos depois da sentença final, as chances de
condicional é zero. Fico encarando seus olhos, pesquiso mais sobre ele, mas
nada encontro, apenas fotografias de 14 anos atrás.
Estaciono o xoxo em frente à entrada do meu prédio, reparando olhares
de moradores suspeitos em minha direção. Gana terá que tomar muito
cuidado em relação a esse carro para não ser roubada. Espero alguns minutos,
olho para o lado quando ela bate na janela.
— Estou contente por ter cuidado do xoxo. — Diz quando desço e lhe
entrego a chave.
— Peça os documentos, Gana.
— Pode deixar — fala entrando no carro.
Se ela estiver mesmo com o pensamento de deixar xoxo comigo durante
o dia, sendo que ela trabalha a noite toda, será uma boa alternativa para evitar
que fique estacionado aqui por muito tempo.
Me despeço e entro, quando chego no meu apartamento, colo os
ouvidos na porta, prendo a respiração e aguço minha audição. Ao fundo, com
um som abafado ouço conversas, músicas e barulhos, suspiro fundo e abro a
porta, olhando direto para a tv ligada, nela está passando o desenho de Tom e
Jerry.
Tranco a porta e caminho pelo meu apartamento, olhando por debaixo
da cama, dentro do banheiro, em todos os lugares onde uma pessoa possa se
esconder. Meu estômago ronca de fome, tiro o casaco, minhas botas e vou
para cozinha preparar um sanduíche sem conseguir tirar o dia de hoje da
cabeça.
De todas as formas que tento me acalmar, fico ainda mais nervosa.
Entrevistar um criminoso é me colocar perto do meu passado. Calafrio
percorre meu corpo, sento-me no sofá e observo Tom implicar com Jerry.
Apesar deles se odiarem na maior parte do episódio, no fundo existe uma
paixão platônica entre eles.
Às vezes sinto falta de ter alguém ao meu lado, que possa me entender,
mas o fato de sempre estar sozinha é que não confio em ninguém, sinto como
se a qualquer momento irão me fazer mal. Eu tento me aproximar ou deixar
que se aproximem, entretanto, o medo de ser ferida é maior que eu, por isso
opto em permanecer sozinha.
Meu coração aquece quando o desenho Coragem, o cão covarde
começa a passar. É um dos meus preferidos. Em meio ao medo e assombro
das coisas bizarras que acontecem na sua vida, Coragem luta com unhas e
dentes para proteger sua dona.
Meu maior sonho é que um dia eu possa ser protegida assim como
Muriel é. Ela não faz ideia da sorte que tem por ter alguém ao seu lado que
está disposto a morrer por você. Me imagino dentro do desenho, agora sou a
Muriel e não a Laura, porque só assim consigo me sentir amada e cuidada por
alguém que nunca irá existir.

Um dos motivos por eu ter acordado um pouco mais alegre hoje, foi
por saber que o inverno está chegando ao fim, mesmo que no verão a
temperatura máxima chegue aos 25ºC, não tão calor como em algumas partes
do Brasil, o sol é bem-vindo. As praças se enchem de vida, as pessoas saem
de suas casas e as flores enfeitam cada canto da cidade. É muito comum você
encontrar mulheres carregando buquês de rosas nas ruas, é uma das culturas
mais lindas dos ucranianos.
Estaciono o xoxo e encosto a testa no volante sem coragem de encarar o
presídio à minha frente. A entrevista está marcada para às dez horas da
manhã, ou seja, daqui a trinta minutos. Queria poder recusar, dar essa missão
para outra colunista, mas quando se tem contas a pagar e um salário baixo a
receber, é impossível recusar.
Apanho minhas coisas e desço do carro, engulo em seco quando
finalmente encaro o Colony 100, um legado da união Soviética que até hoje
se ouve falar das histórias terríveis de torturas e assassinatos. Meus olhos
navegam pela arquitetura pesada e sombria, há arames farpados em cima dos
muros altos, causando um impacto depressivo e apavorante.
Pelo que estudei, o Colony 100 é dividido em duas zonas. A principal é
para os reincidentes e a segunda é como uma prisão dentro de outra prisão,
onde fica a segurança máxima, e é lá que estão detidos os piores criminosos
da Ucrânia, incluindo o que irei entrevistar.
Ando em direção aos portões enormes, um policial me olha pela
portaria, estendo meu crachá e logo em seguida os portões são abertos para
que eu possa entrar. Seguro com mais força a alça da bolsa e entro.
— Laura do AS? — Olho para o lado, um homem alto e fardado se
aproxima, seus olhos me analisam.
— Sim.
— Prazer em conhecer-te. — Ele estende a mão, eu apenas a fito,
recuando um passo. — Andry avisou da substituição.
— Terei que ser revistada? — Pergunto receosa, o guarda abaixa a mão
e coloca os braços para trás, ficando ereto.
— São protocolos de segurança. — Assinto, inspirando fundo.
— Eu poderia fazer algumas perguntas em relação ao seu trabalho? —
Ele sorri.
— Claro... — Sigo-o em direção a ala de revista enquanto me responde
às perguntas.
Volodymyr conta que trabalha aqui há seis anos, já presenciou muitas
coisas, aplicou punições severas e até foi ameaçado por detentos enfurecidos.
Ele relata que no começo foi um pouco apavorante ter que lidar com
criminosos tão perigosos, mas acabou se acostumando.
Fico ao seu lado ao cruzar todo o pátio principal para conseguir chegar
no setor de visitas. No meio do pátio consigo ver todos os prédios do
presídio. A ala de segurança máxima é uma construção antiga, o silêncio é
incômodo como se não existissem pessoas trancafiadas aqui. À minha
esquerda, ficam as salas utilizadas pelos guardas e o prédio administrativo
fica à minha direita, a diretoria por sua vez é protegida atrás desses muros
bem altos.
Volodymyr abre a porta para mim, na sala há um detector de metais e
uma mesa onde coloco minha bolsa. Uma guarda me orienta a passar por ele,
que não apita para meu alívio. O melhor de tudo é que não foi preciso me
tocarem. Depois ele me leva a outra sala, passo por portões e portas de grades
até chegar ao meu destino.
— Volto já! — Volodymyr me deixa sozinha na pequena sala de
visitas, analiso-a com cuidado. Há apenas uma cadeira em frente à um vidro,
do outro lado é um cubículo onde o prisioneiro ficará.
Não haverá contato, até porque o que nos separa é uma massa de
concreto e um vidro com furos no meio. Sento-me na cadeira e pego o
gravador, as perguntas estão decoradas em minha mente, agora é só esperar
por ele.
Minutos se passam, mas a impressão que tenho é que são horas de
espera. Meu coração martela sob meu peito, dou um gole na minha água e
tento parar de balançar as pernas. Fecho os olhos, inspiro e expiro... escuto
barulhos, fico ereta e abro os olhos a tempo de vê-lo entrar com a cabeça
baixa, algemado e com dois guardas segurando seu braço. Eles o colocam
sentado à minha frente, Volodymyr acena de leve com a cabeça.
— Você tem uma hora. — Assinto, então ele nos deixa a sós.
Engulo o caroço que se formou na garganta, o homem que está diante
de mim é alto, muito mais alto do que imaginei, seus ombros são largos e
seus braços são um pouco fortes, seu peito sobe e desce em uma respiração
acelerada e seus cabelos lisos caem sobre seu rosto abaixado.
Quero poder dizer alguma coisa, mas as palavras estão engasgadas. Ele
remexe as mãos como se estivesse incomodado com as algemas, as roupas
escuras estão moldando seu corpo rígido. Prendo a respiração quando ele
lentamente ergue a cabeça e fixa seus olhos verdes nos meus. Olhos que
carregam um passado de crime.
Ruslan Rotam não é mais um garoto de 18 anos e muito menos tem os
olhos inocentes de um adolescente repleto de vida e sonhos. O homem que
está à minha frente é sombrio, triste e intenso, pensei que estaria preparada
para esse encontro, mas vejo que não, porque o detento algemado do outro
lado é o homem mais lindo que já vi em toda minha vida.
Seus cabelos castanhos moldam seu rosto marcante, suas olheiras
escuras o deixa sem vida, apesar do semblante esgotado, sua beleza é o que
me impressiona.
Ruslan remexe na cadeira me assustando, inclina a cabeça para o lado
me analisando, esse movimento foi para me testar, estou com medo dele, isso
é fato, e ele sabe muito bem disso.
— Estou contente por ter vindo esta manhã. — Sua voz rouca, forte e
baixa navega por meu corpo e atinge meu coração de uma maneira
inexplicável. Fico sem reação e a única coisa que desejo é fugir do que estou
sentindo nesse exato instante.
Ruslan não sorri, seus olhos estão... mortos, mas ainda assim, lá no
fundo consigo enxergar que ainda sente vontade de viver. A solidão é sua
única companheira e sei o quanto ela é opressora.
— Estava... esperando por mim? — Pergunto com a voz embargada,
seu olhar intenso é a resposta. — Será que posso gravar nossa conversa? —
Ergo o gravador com as mãos trêmulas, ele assente de leve.
— De onde és? — Congelo, ainda não estou acostumada a escutar sua
voz.
— Brasil — recosto na cadeira e passo as palmas das mãos na calça,
limpando o suor. — Ruslan, me chamo Laura e sou colunista do jornal AS de
Kharkiv, gostaria de te fazer algumas perguntas, posso?
— Creio que sim — ele abaixa os olhos por alguns segundos antes de
voltar a se fixarem em mim.
— Quem era o Ruslan de 14 anos atrás? — Meus olhos são atraídos
para seu pescoço, sua garganta se movimenta quando ele engole em seco.
— Um garoto simples que queria explorar o mundo — seu olhar se
perde. — Queria dar conforto à sua família, namorar, estudar e aproveitar o
que a vida tinha para lhe oferecer.
— E quem é o Ruslan de agora? — Ele me fita, sombrio.
— Um assassino — meus pelos se eriçam com sua declaração, sinto o
poder das suas palavras como um soco em meu estômago.
— Por... — Limpo a garganta e remexo, me sentindo incomodada com
seu olhar. — Por que você matou todas aquelas mulheres?
Ruslan não responde, apenas me encara. Noto que não se sente
confortável em me dizer, então tenho que mudar a pergunta antes que me
mande embora, só que... merda, esqueci as perguntas. Me inclino para tirar o
caderno onde estão as perg...
— Como está lá fora? — Congelo com as mãos trêmulas, olho para ele
ainda inclinada. — Em que estação estamos?
— Estamos entrando no verão — digo, abrindo meu caderno. — Como
você vive aqui? — Ruslan franze a testa e curva seus lábios em um quase
sorriso.
— Fico trancado dentro de uma cela de apenas 12 metros quadrados há
14 anos, tenho permissão de passar 30 minutos no pátio que é composto de
celas de isolamento do tamanho de meia garagem. — Responde dando de
ombros. — Tenho uma pequena tv onde vejo o mundo se transformar e
trabalho com costura, é bom para passar o tempo.
— Como você consegue suportar? — Ruslan fecha os olhos por alguns
segundos.
— Não consigo... — Confessa.
— Você se arrepende dos crimes que cometeu? — Minha perna
começa a balançar de novo. — Você matou mulheres que eram amadas e
tinham uma família, arrancou a vida delas sem permissão, não acha que esse
lugar é merecido pela maldade cometida? — Ele me encara paralisado, fico
assustada com a mudança do seu semblante, olho para o lado pronta para
fugir, se acaso ele surtar.
— Eu nunca quis isso — diz entre dentes.
— Mas fez!
— Nunca quis isso... — Repete, perdendo o pouco brilho nos olhos que
tinha. — Eu estava caminhando, voltando para casa, então vi, não consegui
evitar... eu precisava... precisava fazer... e foi quando tudo aconteceu, rápido
demais... — Engulo em seco não suportando as batidas do meu coração. —
Sangue... Grito... Dor... de repente estava aqui, dentro de uma cela, vivendo o
verdadeiro inferno!
— O que você sentiu matando-as? — Ruslan balança a cabeça e volta a
me olhar, franzido a testa. — O que você sentia matando todas aquelas
mulheres?
— Eu tenho raiva...
— Por isso que as matou? Por sentir raiva? — Ele nega com a cabeça,
se perdendo no seu pesadelo de novo.
— Só queria reencontrar...
— Quem? — Pergunto.
— A esperança...
Sinto a sala girar ao meu redor quando suas palavras navegam por
meus ouvidos. Ruslan está paralisado, o olhar fixo à frente como se estivesse
perdido dentro de si mesmo.
Um caroço se forma na minha garganta, de repente sinto vontade de
chorar, não por medo ou algo parecido, mas por ver esse homem tão perdido
assim como me sinto. Ele deseja reencontrar a esperança trancafiado em um
lugar onde nunca mais poderá sair e eu a busco todos os dias quando abro
meus olhos.
É ridículo estar sentindo isso, afinal, ele é um assassino em série, mas
por que eu me vejo nele? Por que a solidão impregnada em seus olhos é tão
parecida com a minha? Passei a vida toda fugindo, querendo poder deitar
minha cabeça no travesseiro sem ter a sensação de que ele entrará em meu
quarto a qualquer momento. Sei perfeitamente o quanto os demônios do
passado podem nos assombrar, mas diferente de Ruslan, eu não fiz mal a
ninguém.
— Você está aqui? — Seus olhos se movem até se prenderem nos
meus... Olhos vazios, desolados e solitários.
— Tens olhos lindos... — Murmura. — Azuis como o céu... — Desvio
meu olhar, aperto a borda do caderno tentando acalmar os efeitos que ele está
me causando.
— Como é a relação com a sua família depois que foi condenado? —
Mudo de assunto, Ruslan umedece os lábios e abaixa a cabeça. — Você tem
família, certo?
— Eles nunca vieram. — Revela, esfregando seu rosto. — Não os vejo
há 14 anos.
— Você já tentou... entrar em contato com eles? — Ruslan levanta a
cabeça e comprime os lábios.
— Eles não querem ter contato com um assassino, não tiro a razão
deles, sou a vergonha da família.
— Ninguém te visita?
— Apenas o psicólogo do presídio. — Ruslan dá de ombros,
conformado.
— Essa visita aconteceu quando?
— 31 dias atrás — responde, balançando as correntes presas em seus
tornozelos.
— Você gosta de receber visitas?
— Sim! — Diz distraído, encarando as correntes.
— Se tivesse a oportunidade de sair daqui o que você faria? — Ele fixa
o olhar na pequena janela atrás de mim.
— Buscaria a verdade...
— Que verdade? — Franzo a testa, querendo saber mais do que está
trancafiado dentro de si. — Você mataria... de novo? — Ruslan me olha,
adquirindo uma expressão fria, arrepiando todo meu corpo.
— Eu mataria uma única pessoa...
— Quem? — Ele não responde. — Por quê? Por que mataria de novo?
— Porque não tenho mais nada a perder... — Revela se levantando,
assusto com seu movimento, meu coração salta enquanto ele me encara. —
Gostei muito de estar contigo. — Diz se virando e indo até a porta que se
abre.
— Ruslan? — Chamo, os guardas seguram seu braço. — Quem você
mataria? — Ele me olha por cima do ombro, seus olhos me analisam com
atenção, quero saber porque ele cometeria mais um crime depois de tantos
anos trancafiado.
É estupidez da minha parte querer saber tanto sobre um assassino, mas
sinto algo diferente, como se ele quisesse o mesmo que eu.
— Quem você mataria? — Repito a pergunta.
— Quem me colocou aqui! — Imaginei qualquer resposta, mas não
essa. — Mataria quem me tirou tudo...
Os guardas o empurram, tirando-o da sala... Tirando-o de perto de mim.
Sento-me na cadeira quando minhas pernas fraquejam, sinto lágrimas
escorrerem por meu rosto enquanto encaro fixamente a porta por onde Ruslan
saiu, porque assim como ele, também desejo matar quem me tirou tudo.
Minha perna direita balança sem parar enquanto espero chegar a minha
vez. Se passaram dois dias desde a entrevista que tive com Ruslan, e desde
então, não o tiro da cabeça.
Os pesadelos voltaram com mais força, a sensação ruim que sinto está
me sufocando e estou prestes a explodir. Esfrego as mãos, sentindo-me
trêmula, não de frio, mas de medo.
— Laura? — Olho para a porta do consultório, Olesya sorri para mim.
— Sua vez!
Entro na sala tensa, meus músculos doem de tanto que se contraem, me
sento no sofá, minha perna volta a balançar e um desespero me invade
quando Olesya se senta à minha frente.
— Soa-te bem? — Nego com a cabeça, porque não estou bem. — O
que houve, Laura?
— Eu... eu estou prestes a surtar. — Revelo com a voz embargada e
com os olhos cheios de lágrimas. — Eu não consigo dormir há dois dias...
— Por quê?
— Os pesadelos... sua voz... suas mãos... — Olesya se aproxima,
assusto e me encolho.
— Não vou te tocar, só quero que se deite e relaxe. — Engulo em seco
e faço o que pede. — Agora fecha os olhos e inspira fundo, depois solte a
respiração lentamente. — Sua voz suave vai me acalmando aos poucos. —
Agora diga-me o que te aflige?
— Estou com medo de que me encontre. — Falo, mantendo a
respiração controlada.
— Ele não vai encontrar-te aqui! — Afirma. — O que você fez de
diferente?
— Eu... fui entrevistar um criminoso.
— Foi interessante? — Cruzo as mãos em cima da barriga e fico com o
olhar fixo no teto.
— Esquisito...
— Esquisito como? — Dou de ombros, lembrando da forma que me
olhava.
— Ruslan é perigoso, mas... senti algo diferente, como se... como se eu
conhecesse sua solidão e ele a minha. Isso faz algum sentido? — Viro a
cabeça, encarando os olhos esverdeados da minha psiquiatra que me encara
fixamente.
— É normal sentir empatia ao enxergar o sofrimento do outro.
— Ele é um assassino, acha que sofre por ter matado tantas mulheres?
— Todo ser humano sofre por alguma causa, até mesmo os psicopatas
que não sentem amor e muito menos compaixão, é algo complexo de
entender.
— Ele não sai da minha cabeça...
— Por quê? — Engulo em seco, desvio meu olhar e encaro as rosas
dentro de um vaso em cima da sua mesa.
— Ruslan disse-me, que deseja matar quem lhe tirou tudo, eu... eu
desejo fazer o mesmo. — Olesya fica em silêncio por alguns segundos,
permitindo que minha mente navegue solitária.
— Há quantos dias você não sofre com as crises?
— Três meses, acho! — Respondo, fechando meus olhos.
— Laura, muitas vezes o medo está impregnado em nossa mente, o
mesmo nos impede de seguir nossos sonhos e realizar nossos objetivos, é
algo que deve ser moldado. — Olho para ela.
— Eu não consigo...
— Não consegue o quê?
— Não sentir medo... — Sussurro, apertando as mãos. — Sabe, alguns
dias atrás eu estava assistindo um desenho animado e me fiz imaginar dentro
dele.
— Por quê?
— Para não me sentir sozinha... para me sentir amada e protegida...
nunca ninguém me amou ao ponto de me tornar o centro do seu mundo...
— Você já ligou para ela? — Nego com a cabeça, soltando um soluço.
— Minha mãe não quer me ver... — O choro sai sem que eu consiga
segurá-lo. — Eu nunca a procurei...
— Por que você acha isso?
— Ela sempre ficou ao lado dele... quando eu disse... quando falei o
que ele fez, ela... ela... — Cubro meu rosto liberando o choro preso dentro de
mim, meu corpo estremece e Olesya apenas me assiste, como todas às vezes
que começo a ter crises.
— Você sente falta da sua mãe? — Assinto, me deitando encolhida.
— Eu ainda consigo sentir seu perfume. Quando está frio, me imagino
em seus braços, mas faz tantos anos, que estou me esquecendo da sensação
que é estar ao seu lado. — Limpo meu rosto. — Eu queria que tudo fosse
diferente...
— Não podemos mudar o nosso passado, mas podemos moldar nosso
presente e fazer nosso futuro diferente.
— Como? — Pergunto para Olesya.
— Você é forte Laura, olha só tudo o que conquistou, isso é vontade de
viver, então continue caminhando. Tudo bem você chorar, fraquejar e querer
sumir, porque não podemos ser fortes o tempo inteiro, mas você jamais deve
desistir, mesmo marcada, fragilizada e quebrada, você tem que continuar.
— E se eu perder... a vontade de viver? — Olesya chega mais perto de
mim, se sentando ao meu lado e tomando cuidado para não me tocar.
— Nós a achamos de novo — ela sorri, seus olhos brilham e assinto,
confiando em suas palavras, porque mesmo querendo desistir, algo ainda me
segura, mostrando que tenho que continuar para que enfim, eu possa superar.

Releio a última linha do artigo sobre Ruslan Rotam e solto um suspiro


quando finalmente termino. Andry vai criticar meu trabalho por não ter feito
muitas perguntas, não irei tirar sua razão, até porque meio que a conversa se
encaminhou para o lado pessoal. Das perguntas que eu deveria ter feito, só
duas foram feitas.
Inspiro fundo, borrifo álcool em minhas mãos e me levanto, pronta para
levar bronca do meu chefe. Meus colegas me lançam olhares de apoio, li todo
o artigo para eles que elogiaram, mas nós sabemos como é Andry Rusol.
Ekaterina me olha quando paro em sua mesa, ela franze a testa vendo
meu nervosismo, só que ele é substituído por surpresa ao escutar gritos
abafados vindo de dentro da sala de Andry.
— O que está havendo?
— Posso ajudar-te? — Pergunta, se fazendo de desentendida.
— Estou com o artigo pronto do Ruslan, Andry disse que quer hoje.
— Compreendo, mas ele está ocupado... — Ela se cala quando a porta
se abre abruptamente e Zhdana sai furiosa do escritório.
— Laura, na minha sala agora. — Andry grita, me assustando.
— Boa sorte! — Ekaterina ergue o polegar para cima, inspiro fundo e
entro, deixando a porta aberta.
— Eu trouxe o artigo do Ruslan Rotam. — Falo lhe entregando o pen
drive. Andry o pluga em seu computador e com uma feição séria começa a
ler, me sento enquanto espero.
— Foram só essas perguntas? — Seus olhos enfurecidos se prendem
nos meus, seu rosto está um pouco avermelhado por conta da briga anterior.
— Foi o que consegui...
— Você se esforçou, Laura? — Andry recosta na cadeira. — Percebi
uma certa relutância em fazer essa entrevista, pelo visto foi um erro ter te
escolhido.
— Eu fiz o possível, chegou um ponto da entrevista em que Ruslan se
levantou e saiu sem responder mais nada, só me concederam uma hora! —
Digo ao meu chefe que arqueia uma sobrancelha me deixando irritada com
sua atitude.
— Demorou três meses para a justiça me conceder a preliminar de
visita e depois mais um mês para Ruslan aceitar ser entrevistado, entende
agora porque estou desgostoso com esse artigo? — Comprimo meus lábios,
tentando me colocar em seu lugar. — Vai demorar mais outros meses para
conseguir outra entrevista... — Ele inspira fundo, balançando a cabeça
negativamente.
— Essa não é minha área, não sou acostumada com esse tipo de
entrevista e você não pode exigir de uma colunista que fala sobre cosméticos,
uma entrevista perfeita com um assassino. — Andry solta a respiração,
ficando mais irritado.
— Você realmente se formou em jornalismo? — Abro a boca para
retrucar, mas me calo quando ele ergue a mão. — Não existe isso de que não
é sua área, aonde for mandada, você deve ir.
— Não tenho a experiência que você exige para que a entrevista saia
com perfeição, foi a minha primeira vez. Escolhi ser colunista website porque
me dou bem com as palavras e com o computador, não com pessoas. —
Ficamos encarando um ao outro, minha respiração está um pouco acelerada,
mas não irei ficar com raiva por causa disso.
— Então é melhor se preparar, porque as coisas vão mudar.
— Como assim? — Andry desvia o olhar, fixando no artigo.
— Vou analisar com cuidado, estamos sem tempo, qualquer coisa
fazemos uma segunda parte e investigamos a vida dele mais a fundo antes de
qualquer outro jornal.
— Tudo bem!
— Diga aos seus colegas para ficarem preparados também.
— Por quê? — Andry arqueia uma sobrancelha, suspiro e saio da sua
sala sem dizer mais nada.
Vou até o refeitório esquentar minha comida no micro-ondas, Yaroslav
fica me olhando quando me sento à mesa junto a eles. Estou com raiva e
chateada, suei fazendo aquele artigo mesmo que tenha ficado um pouco raso,
mas poxa... deveria valorizar meu esforço.
— O que há de errado? — Pergunta Justik, com as sobrancelhas
erguidas.
— Andry, óbvio! — Aksinya retruca, tirando as palavras da minha
boca. — Não se chateie...
— Vai passar, só que deu muito trabalho e...
— E ele te tirou da sua zona de conforto e bagunçou sua cabeça. —
Completa Yaroslav, assinto confirmando.
Foco na minha comida sem querer conversar, eles conhecem um pouco
sobre mim, até porque são três anos trabalhando juntos. No começo foi difícil
conviver com todos e me manter afastada, piorou quando Justik me abraçou
sem minha permissão, fiquei tão mal que pensei que nunca mais voltaria ao
normal depois de uma das piores crises que já tive.
— Andry falou que as coisas vão mudar e que é para nós ficarmos
preparados. — Aksinya para de mastigar e esbugalha os olhos.
— Isso não soa nada bem! — Justik resmunada, Aksinya assente,
engolindo a comida com dificuldade.
— Parece que Zhdana era amante dele. — Ela revela, mesmo não
sendo uma novidade, pelo menos não para mim. — Só que terminaram e ele
a demitiu.
— Certo, deixa-me entender — Yaroslav coloca seus braços em cima
da mesa com um olhar confuso. — Eles eram amantes e Andry a demitiu,
então aonde entramos nessa briga?
— Não entraremos na briga, mas um de nós irá ocupar o cargo dela.
— Como dizes? — Justik balança a cabeça sem entender.
— Kharkiv está em crise, nunca que Andry irá contratar outra
jornalista. Manter funcionários é caro, por isso pegará um de nós e colocará
lá em cima. Cargo mais alto, salário mais gordo, bebê!
— Faz sentido — falo pensativa.
Depois de aproveitarmos nossa hora de almoço, todos voltamos ao
trabalho. Andry não falou mais nada em relação ao artigo de Ruslan, nem
perguntei também, simplesmente, foquei no outro que estou trabalhando
sobre a vaidade das mulheres ucranianas.
Fico confortável com esses temas, como sou brasileira, meu olhar é
diferenciado em relação à cultura daqui. As Ucranianas por exemplo, já
nascem gostando de maquiagem, desde pequenas já vemos algumas meninas
usando, para as adolescentes e mulheres, maquiagem é como se fosse uma
peça do vestuário, indispensável, mas o que chama a atenção são as senhoras
de idade, as vovozinhas que desfilam pelas ruas maquiadas.
A maioria dos estrangeiros se escandalizam, achei diferente quando
cheguei na Ucrânia, foi um choque cultural, apesar de ter vivido anos na
Rússia, aqui é bem diferente. Andar bem arrumada e maquiada é uma
demonstração de amor próprio, elas não deixam a idade ou a opinião
das pessoas ditarem regras em suas vidas.
Além da beleza que possuem, as mulheres daqui tem uma
personalidade forte. São destemidas, talentosas e são elas que ditam as regras
nos relacionamentos. Digo isso porque Aksinya é uma delas, seu namoro com
Justik não dá muito certo, justamente por causa do seu temperamento. Porém,
ao mesmo tempo, são mulheres apaixonadas, cheias de amor e muito
ciumentas.
Levanto meus olhos quando vejo Justik se inclinar na sua cabine, em
seu rosto há um sorriso de deboche. Olho para Yaroslav, ele retribui o olhar
sabendo que isso não vai dar certo.
— Idiota! — Aksinya diz furiosa, ela pega sua garrafinha de água e
joga o líquido no rosto de Justik, que fica surpreso com a atitude dela, ao meu
lado Yaroslav gargalha. — Juro por Deus que te mato!
— Precisaste disso? — Ele pergunta a ela, voltando para sua cabine,
não faço ideia do que Justik falou para Aksinya, só sei que a deixou
enfurecida.
— Você não a deixa por um segundo, hein! — Digo, ele me lança um
sorriso sem graça.
— Não resisto! — Seus olhos se fixam nela, me fazendo lembrar de
Tom e Jerry.
Andry entra na sala e nos calamos de imediato. Ele nos encara com
seriedade e cruza os braços. Fico tensa com seu suspense, prevendo algo que
irá desafiar meus limites, minha intuição nunca falha.
— Haverá algumas mudanças nesse setor. Acredito no potencial de
cada um e sei que podem ser muito mais produtivos fora, do que presos aqui.
— Franzo a testa com seu discurso, o que ele pretende?
— O que queres dizer? — Yaroslav pergunta, confuso.
— Vocês agora são jornalistas investigativos, ou seja, irão desvendar
mistérios e fatos ocultos do conhecimento público, especialmente crimes e
casos de corrupção, que podem eventualmente virar notícia. — A sala recai
em silêncio, todos tentam engolir essa novidade que nos pegou de surpresa.
— Como dizes? — Justik quebra a tensão.
— É isso o que ouviram, vocês não vão criar artigos do cotidiano, faz
tempo que estou querendo mudar, levar nosso setor para outros ares, então
hoje obtive a carta branca. — Andry lança um olhar firme em nossa direção.
— Quem não optar por essa mudança, fique à vontade em recusar.
— Certo. Se eu recusar? — Pergunta Aksinya.
— Tenho certeza que tem muitos jornais precisando de colunistas. —
Ele responde, fazendo-a engolir em seco.
— Ótimo, não temos escolha a não ser aceitar, que coisa hein!? —
Yaroslav diz com sarcasmo.
— O salário de vocês terá um pequeno aumento, se obtivermos
sucesso, haverá remuneração. Chegou à chance de se destacarem. — Andry
fala me olhando. — Laura, você já tem uma missão. Quero que compareça a
uma cena de assassinato que aconteceu de forma brutal há uma hora atrás, e
obtenha o máximo de informações que conseguir. Leve Yaroslav com você e
os outros quero que compareçam na delegacia, assim como ela, quero
informações e o suposto nome do assassino.
— É... agora iremos aproveitar a vida e deixar de ficar com a cara o dia
todo no computador. — Murmura Justik.
— Algo mais? — Andry pergunta, negamos com a cabeça, sem
conseguirmos digerir toda essa história. — Confio em vocês! — Ele sai da
sala, deixando todos atônitos.
Meu coração martela no peito sem acreditar que a partir de hoje,
trabalharei investigando, uma função que julgava ser incapaz de fazer. Uma
mudança que me abalará, mas também poderá dar alguma emoção na vida
sem graça que levo. E por incrível que pareça, estou ansiosa por essa nova
fase da minha vida.
Sempre fugi de aglomerações e cenas de violência, não me sinto
confortável perto de algo assim, prefiro me esconder e me manter segura, mas
agora devo superar esse receio por conta do meu trabalho. Sair da minha zona
de conforto é atiçar minha ansiedade e minhas crises, porque o novo me
assusta.
Meus olhos observam atentamente a movimentação à nossa frente.
Policiais bloqueiam jornalistas que tentam a todo custo encontrar uma
maneira perfeita de capturar os mínimos detalhes. Os legistas estão atrás do
muro de policiais refazendo a cena do crime. Dou um passo para o lado,
querendo ver o que estão fazendo e como aconteceu.
— O que a gente faz agora? — Pergunta Yaroslav com a expressão
assustada.
— Não sei!
— Mas você é jornalista.
— Você também, Yaroslav! — Ele faz uma careta. — Tem sete anos
que me formei, e nunca trabalhei nessa área de investigação.
— Nem eu!
Inspiro fundo, segurando com mais força a câmera fotográfica. Se eu
me aproximar e tentar me enfiar dentro dessa aglomeração, serei tocada e
empurrada, isso me deixará apavorada e não saberei como lidar com uma
crise no meio de todos, então precisamos arrumar outro jeito.
Olho em volta, os jornalistas estão focando apenas nessa parte da
frente, se formos por trás, talvez conseguiremos uma boa visão da cena do
crime. Meus olhos são atraídos para um prédio de três andares e o patamar
dará uma boa visão, mas chegar até lá, resultará em ultrapassar dois policiais
que estão em frente à escada de entrada do pequeno prédio.
— Se formos por trás, talvez conseguiremos uma boa visão e tem
aquele prédio Yaroslav, podemos ficar lá.
— Mas se todos verem? Os policiais não irão deixar. — Aperto meus
lábios e olho para ele.
— Não precisam nos ver, além do mais, todos estão focados na frente e
esqueceram daquele beco à esquerda, precisamos chegar até lá, a sombra vai
nos camuflar. — Ele assente de forma insegura, inclino a cabeça para o lado,
chamando-o para me seguir.
Com cautela contornamos todo o lugar demarcado como a cena do
crime, e entramos no beco pelo outro lado. Na nossa frente estão os legistas e
um corpo estendido no chão. Olho para trás me certificando de que não há
ninguém, nos aproximamos com cuidado para não perceberem nossa
presença.
Yaroslav anda com passos silenciosos, seus olhos astutos navegam por
todos os lados em busca de informações que nos beneficie. Agacho atrás de
um container de lixo, enrugo meu nariz com o fedor forte e preparo a câmera.
Encaro meu colega que abaixa ao meu lado, distante o suficiente para não me
tocar.
— Soa-te bem? — Pergunta, franzo a testa fitando seus olhos atônitos.
— Você vai passar mal? Está ficando pálido! — Digo, ele nega com a
cabeça, umedece os lábios e engole em seco.
— Eu escolhi a website para não me envolver nisso, mas foi inevitável.
— Temos que pagar nossas contas. — Yaroslav assente, concordando.
— Nosso salário vai aumentar, precisamos fazer isso.
— Andry me irrita às vezes. — Resmunga, pegando uma caderneta
para fazer anotações.
— Certo, vamos tentar nos esconder atrás daquele outro container,
creio que lá possamos escutar o que estão dizendo. — Dou uma espiada e
quando tenho certeza de que estão ocupados demais para prestar atenção em
qualquer movimentação, faço um sinal para Yaroslav.
Corro até o outro container e me agacho o mais rápido que posso e olho
para trás, para meu colega que vem logo em seguida, só que acaba
escorregando e caindo de bunda. Reprimo um barulho de surpresa, olho sobre
o container para ver se os policiais não perceberam nossa movimentação.
Yaroslav se levanta rapidamente e se agacha ao meu lado amaldiçoando o
tombo que levou.
— Se machucou? — Pergunto, vendo-o esfregar seu pulso que serviu
de apoio.
— Estou bem — me tranquiliza, solto a respiração que segurava e volto
a prestar atenção nos legistas.
O corpo da vítima está coberto com um pano branco, eles refazem o
caminho que supostamente ela fez, analisam em volta e tentam supor o que
aconteceu. Pelo pouco que ouvi, se trata de uma mulher na faixa de 25 anos
que foi esfaqueada dez vezes no estômago.
Ergo minha câmera e começo a fotografar, Yaroslav se mantém em
silêncio, anotando tudo o que vê e ouve. Meu coração acelera e sinto minha
respiração falhar quando eles retiram o pano de cima do cadáver.
Fico congelada enquanto os olhos sem vida da mulher me encaram, seu
rosto está desfigurado, ao seu redor há uma poça de sangue, por sua barriga,
saem entranhas. Bile sobe por minha garganta ao ver a forma brutal que essa
moça foi assassinada.
— Céus... — Yaroslav murmura, olho para ele a tempo de o ver
vomitar, faço uma careta e começo a fotografar. — Por isso que escolhi ficar
em uma sala. — Sussurra, se controlando.
— Conseguiu pegar algumas informações? — Ele murmura um sim.
Inspiro fundo, dando um zoom na câmera, posiciono meu dedo e
quando vou apertar para capturar a imagem, sobressalto de susto quando um
gato negro pula em cima do container.
— Oh, merda! — Meu colega solta um grito, os olhos amarelos do gato
se fixam em mim. — Hoje eu infarto, é certeza!
— É só um gato, Yaroslav. — Ergo a mão para acariciá-lo, ele recua
um pouco, recusando meu toque. Abaixo a mão respeitando seu espaço.
— Você gosta de gatos? — Dou de ombros, observando o felino se
afastar.
— Eles são mais humanos do que você imagina, os felinos representam
a pura energia positiva, atraem boa sorte, e nos ajudam a superar os desafios
da vida.
— É um bom sinal ele ter aparecido?
— Creio que sim! — Olho além do animal quando algo me atrai, mas
não consigo ver nada, apenas sombra. Inspiro fundo e volto a prestar atenção
no real motivo por eu estar aqui.
A noite começa a cair, e com ela vem o frio insuportável. Depois de
uma hora, mais ou menos, o IML recolhe o corpo da moça para levá-lo ao
necrotério. Desligo a câmera e assinalo para Yaroslav irmos embora daqui.
Ele assente aliviado, me levanto sentindo os músculos das minhas pernas,
rígidos por ter ficado muito tempo agachada. Meus olhos são atraídos
novamente na direção em que o gato se foi. Solto um suspiro e sigo meu
colega em silêncio, com as fotos e informações da nossa primeira matéria
investigativa, obtidas com sucesso.

No dia seguinte, reunimos todos na sala de Andry que nos encara com
seriedade. Seu rosto estampa puro descontentamento, nada do que ele
imaginava aconteceu. Foi um desastre total.
— Expulsa? — Sibila entre dentes para Aksinya.
— A delegacia estava lotada de repórteres, então pensei que talvez se
entrasse pelos fundos e conversasse com alguém, eles poderiam me fornecer
o que procurava, mas quando encontrei o detetive, ele simplesmente me
expulsou dizendo que não aguentava mais ver jornalistas — ela explica com
nervosismo.
— E você, Justik?
— Eu? — Ele nos olha inquieto. — Tentei entrar no meio da
aglomeração de repórteres para acompanhar a entrevista, mas eles não
permitiram, então fui empurrado, acotovelado e pisoteado quando seguiram o
detetive para dentro da delegacia.
— Não descobriu nada?
— Nada! — Justik engole em seco, Andry inspira fundo.
— Nome do assassino?
— Não foi divulgado.
— Laura? — Olho para meu chefe batucando nas fotos que tirei. — Se
aproxime e me diga o que vê nessas fotografias. — Passo as mãos sobre a
calça para limpar o suor, e dou um passo à frente, encarando cada uma das
que tirei.
— Hum... ficou embaçadas, né? — Digo, enrugado meu rosto.
— E agora? — Andry ergue as sobrancelhas. — Você acha que ficarão
boas para a matéria, Yaroslav? — pergunta a ele que sobressalta e se
aproxima, olhando atentamente as fotos.
— Essas duas ficaram boas... — ele coloca o dedo na foto do gato
negro, a única que prestou. — Essa também — a seguinte tem como
perfeição o corpo da vítima coberto por um pano branco.
— Diga-me, o que descobriu?
— A vítima aparentemente tem 25 anos de idade, filha de um político
da Kharkiv, ela foi arrastada para o beco onde foi morta com doze facadas,
tendo seu rosto desfigurado. Ainda não se sabe quais foram as motivações,
mas suspeitam que o assassino não tem ligação com ela. — Yaroslav recua
um passo e sorri vitorioso para Andry. — Foram as únicas informações que
obtivemos.
— Céus... — Nosso chefe esfrega a testa. — Vocês foram um
desastre, mas tudo bem, vou relevar! — Seus olhos se prendem em cada um
de nós. — Quero que continuem investigando esse caso, preparem a matéria
com o pouco que tem, e descubram em primeira mão o nome do assassino.
— Eu continuo indo para a delegacia? — Pergunta Aksinya, Andry
coloca seus óculos e a encara com descrença.
— Qual a parte do “descubram em primeira mão o nome do assassino”
você não entendeu?
— Okay, okay, entendi!
— Podem ir, quero essa matéria pronta no fim da tarde. — Sem dizer
mais nada, saímos do escritório e voltamos para nossa sala, contrariados.
— O detetive avisou que se me visse lá outra vez ele me colocaria por
24 horas em uma cela. — Aksinya revela com espanto.
— O que você fez para ele ficar com tanta raiva de você? — Pergunto,
borrifando álcool na minha mesa e em minhas mãos.
— Eu o chateei... vamos dizer que eu meio que me tornei um carrapato
insistente. — Ela morde seu lábio inferior, perdida e sem saber o que fazer.
— Ela saiu gritando com dois policiais a arrastando para fora - “Me
soltem, me soltem, eu só quero o nome do assassino, vocês não podem fazer
isso comigo! É o meu trabalho. Me solteeeeem!” — Justik conta de forma
divertida tirando uma gargalhada de Yaroslav e deixando Aksinya vermelha
de raiva.
— Olha só quem fala, o bonitão que foi pisoteado pelos jornalistas. —
Ela retruca, apontando para os arranhados dele. — E ainda ficava pedindo
“Oi por favor, posso passar para escutar o detetive? Com licença, você
poderia me deixar passar?” Logo para os repórteres que estavam loucos
para ter respostas, levou um empurrão bem dado.
— Fui educado...
— E se fodeste! — Aksinya o fuzila com os olhos enquanto Yaroslav ri
sem parar, olho para ele.
— Por que fica rindo deles, Yaroslav? — Ele me encara, comprimindo
os lábios. — Você caiu de bunda tentando se esconder dos policiais, e ainda
vomitou ao ver o cadáver da moça!
— Ele caiu? — Pergunta Justik.
— Sim, caiu! — Todos de repente começam a rir, se inclinam ao
sentirem dor na barriga, balanço a cabeça vendo-os descontrolados.
— Somos os piores jornalistas da Ucrânia. — Aksinya diz entre as
risadas.
— Sim... — Murmuro, começando a escrever a matéria.
Durante algumas horas fico inerte montando a matéria com base no que
descobrimos com o nosso desastre de investigação. Não demora muito para
eu terminar, envio para meus colegas para analisarmos com atenção.
— Eu acho que ficou bom. — Diz Justik. — Apesar das poucas
informações você conseguiu colocar um mistério nos acontecimentos, com
toda certeza irá deixar os leitores encucados.
— Aprovo! — Aksinya ergue os polegares em sinal de positivo.
— Se colocar a foto do gato, vai ficar melhor ainda. — Brinca
Yaroslav, reviro os olhos.
— A questão agora, é se Andry vai aprovar! — Resmungo, todos
respiramos fundo, calados e pensativos.
— Não posso perder esse emprego, sou a única que está sustentando a
casa e meus pais estão desempregados. — Aksinya confessa, chateada.
— Não vamos, — Justik diz com a voz doce — essa foi a nossa
primeira vez, a segunda vai ser melhor, a terceira será mais fácil, quando
percebermos, estaremos sendo os melhores jornalistas investigativos de
Kharkiv. — Seus olhos brilham de esperança.
— Sonhaste alto agora... — Desdenha Yaroslav.
— É sonhando alto, que se conquista pelo menos, a metade dos seus
objetivos... É através dos sonhos, que criamos motivos para lutar todos os
dias. — Rebate Justik.
— Sonhos se tornam realidade quando se luta por eles. — Aksinya fala,
encarando Justik.
— Qual seu sonho, Laura? — Pergunta Yaroslav, abaixo meus olhos e
dou de ombros.
— Não tenho um sonho... — Sussurro, calando-os com minha
declaração.
Não me lembro de um dia sequer, que sonhei por algo. Desde que ele
apareceu em nossas vidas, comecei a lutar para sobreviver. Tracei metas para
me tirar do seu caminho, e desde então, eu fujo, sobrevivo e vivo um dia de
cada vez.
— Laura? — Olho para cima, Bogdana vem em minha direção, ela é a
recepcionista da AS. — Pediram para te entregar. — Ela estende um botão de
rosa vermelha, fico paralisada encarando-a.
— Para mim? — Ela assente. — Quem foi?
— Não sei boneca, só pediram para te entregar — estico a mão e a
pego, sentindo a textura de cada parte da rosa, das pétalas que se parecem
com seda, delicadas, frágeis e suaves.
— Uau... admirador secreto, Laura? — Aksinya se aproxima. Não
respondo porque estou fascinada demais com o fato de pela primeira vez eu
ter ganhado uma rosa.
— Tu sabes o significado das rosas vermelhas? — Bogdana me olha
divertida, assinto.
— Amor... — Balbucio. Mas afinal, quem é o responsável por ter me
enviado ela?
— A rosa vermelha é associada com a perfeição e a beleza, são uma
forma consagrada pelo tempo de dizer “eu te amo” — Bodgana diz, olho para
ela ao acordar do transe. É ridículo isso, quem me daria uma rosa sendo que
não tenho contato com ninguém?
— Eu acho que foi um engano — digo, devolvendo a rosa. — Justik,
você comprou essa rosa para Aksinya? — Ele me olha e nega com a cabeça.
— Não, e porque eu iria comprar uma rosa para ela?
— Eu nunca iria aceitar! — Ela rebate, aborrecida.
— Yaroslav?
— Sem chances... — Responde, sorrindo com minha confusão.
— Aceite que tem alguém te bajulando — Bogdana arqueia uma
sobrancelha, seus olhos claros brilham de entusiasmo.
— Não faço ideia de quem possa ser.
— E eu não tenho a resposta, boneca. — Ela retruca, divertida. —
Bom, agora preciso ir. Não posso deixar a recepção vazia.
— Obrigada — Bogdana pisca um olho e acena para todos nós.
— Beijos... — Se despende, saindo da sala.
Fico encarando a rosa sem conseguir dizer nada. Meu coração está feliz
por essa demonstração de carinho, mas ninguém vem à minha mente. As
únicas pessoas que tenho contato, são meus colegas de trabalho e a Gana...
talvez tenha sido ela, um gesto de agradecimento por estar cuidando do seu
carro.
No final do dia, entregamos a matéria para Andry que apenas assente e
nos dispensa em silêncio. Se gostou ou não, saberemos somente amanhã
quando liberar no jornal.
Estaciono o xoxo me sentindo exausta, querendo apenas minha cama ou
o meu sofá. Fico esperando Gana descer, olho para rosa estendida no banco
passageiro, tentando entender quem a fez chegar até mim.
Me assusto quando Gana bate na janela, pego minhas coisas e desço,
lhe entregando sua chave. Seu rosto está triste, despertando minha
preocupação.
— O que houve? — Pergunto, encarando-a com atenção.
— Nada, hoje acordei indisposta. — Diz, rodando a chave. — Não se
preocupe, estou bem!
— Tem certeza?
— Por que não? — Balanço a cabeça vendo que há algo de errado, só
que ela não vai revelar.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Pela rosa — ela franze a testa, abre e fecha a boca buscando alguma
palavra, aperto meus lábios já sabendo que não foi ela.
— Hum... não foi eu!
— Certo, pensei que talvez fosse você, por eu estar cuidando do seu
carro. — Gana eleva seu ombro direito, sem graça pelo mal entendido.
— Isto aí é coisa de namorado, ou de alguém que está de olho em você.
— Não conheço quem possa ter me dado.
— Por isso que são denominados admiradores secretos, dona Laura.
— É ridículo... — murmuro, não quero que se aproximem de mim, não
posso dar algo que nunca recebi...
— O que és ridículo? — Levanto o olhar, Gana cruza os braços, me
analisando. — Ridículo ser amada por alguém?
— Amada?
— Laura, eu até compreendo eu nunca ter conseguido formar uma
família, porque sou prostituta, mas você? — Ela me olha dos pés à cabeça.
— Olha só para você, Laura. És linda, inteligente, estudada e trabalhadora!
Você merece ser amada, mas para que isso aconteça, deves permitir que
ultrapassem a barreira que construiu. Fugir não é o caminho, se fechar não és
a solução, e se trancafiar nunca será sua libertação!
Abaixo a cabeça, Gana tem toda razão, só que não consigo... não posso
permitir que isso aconteça. Sozinha no meu mundo posso controlar a
situação, e permitir que alguém entre, é... estar exposta ao sofrimento, é viver
o inferno que eu vivi. Não quero passar por tudo o que passei de novo.
— Eu acho que... que prefiro deixar do jeito que está. — Gana suspira,
sorri e se aproxima com a intenção de colocar as mãos em meus ombros,
recuo três passos, impedindo que me toque, ela paralisa surpresa.
— Preciso ir trabalhar, qualquer coisa é só me ligar. — Diz sem graça,
ela entra no carro e arranca para longe de mim, magoada com a minha reação.
Olho para a rosa e depois para o lixo ao meu lado, faço menção em
jogá-la fora, mas desisto, prefiro mantê-la comigo. Subo até meu
apartamento, coloco a mão na porta e encosto meu ouvido nela, ouço
conversas vindo da tv, mas não é de desenho animado.
Meu corpo entra em alerta imediatamente, minha pulsação acelera, e
se... e se ele tiver me encontrado? Engulo em seco, seguro a maçaneta e giro,
a porta não está trancada como a deixei de manhã, será que a deixei
destrancada?
Dúvida me invade, entro com passos receosos, meus olhos navegam
pela escuridão da minha casa, a sala está sendo iluminada apenas pela
televisão. Minhas mãos tremem, aperto com mais força a rosa. Deixar a porta
destrancada pode ter sido um descuido meu, mas as luzes desligadas? Não...
não, eu nunca as deixo desligadas!
Olho para a tv, o presídio Colony 100 está sendo filmado, há uma
grande aglomeração de pessoas, policiais, bombeiros e detentos ajoelhados
no chão com as mãos na nuca, não consigo escutar o que a repórter diz. Meu
coração bate tão alto que ofusca qualquer outro barulho.
Me aproximo e quando leio a causa da reportagem, fico tonta. Houve
uma rebelião 24 horas atrás resultando na fuga de três detentos. Criminosos
invadiram o presídio depois que um mafioso foi preso, começando assim uma
rebelião que ainda não chegou ao fim.
Dou mais um passo à frente olhando fixamente para a televisão, meu
coração salta quando a foto de Ruslan é estampada, eles pedem que qualquer
pessoa que o tenha visto, entre em contato com urgência, pedem também, que
mantenhamos distância por ele ser um criminoso perigoso e imprevisível...
A repórter continua falando, mas paro de prestar atenção ao sentir algo
atrás de mim. Fico paralisada, minhas mãos tremem e minha respiração
acelera sem coragem de olhar para trás. Minha casa foi invadida, e quem quer
que seja, está atrás de mim, e sabe quem sou.
Me viro lentamente, estremeço quando seu corpo largo e alto bloqueia
a porta. Engulo em seco ao observá-lo fechar a porta, pavor me invade. Estou
trancada com um desconhecido... quero gritar por ajuda, para que o tirem
daqui, só que não consigo, há um caroço na garganta impedindo que qualquer
palavra seja dita.
Ele está usando um capuz sobre a cabeça impedindo que seu rosto seja
exposto. Ele se vira, ergue a cabeça e crava seus olhos em mim, a tv ilumina
sua feição fazendo meu coração falhar as batidas. Prendo a respiração quando
seus lábios se curvam em um sorriso sutil. A rosa cai das minhas mãos
enquanto encaro o rosto de Ruslan Rotam, o assassino de mulheres.
— Te encontrei...
Não consigo me mover, meu coração bate tão acelerado que temo um
ataque. Preciso retomar o controle para que eu possa me salvar, mas seus
olhos... seus olhos me prendem de uma maneira inexplicável, é como se ele
tivesse poder sobre mim, e isso me assusta... me apavora!
Ele dá um passo à frente, eu recuo um passo balançando a cabeça.
Ruslan matou mulheres por motivos fúteis, ele falou que quando saísse
mataria de novo, que não tinha mais nada a perder. Estou em seu caminho,
vulnerável e sozinha, não conseguirei nenhuma ajuda, meus vizinhos se
mantêm surdos e mudos, eles não se importam com o que está acontecendo.
Lutei tanto para morrer aqui. Consegui que tirasse as mãos sobre mim,
fugi sem deixar rastros... agora me vejo outra vez aprisionada por um
assassino de olhos vazios e frios.
Minhas costas colidem com a parede, não tinha percebido que andava
para trás, tentando ao máximo colocar distância entre nós. Fecho as mãos que
tremem sem parar, Ruslan tira o capuz e bagunça seus cabelos sem
desprender os olhos de mim.
— O qu-e-e... — Engulo em seco. — O que faz aqui? — Ele apenas
inclina a cabeça para o lado sem dizer nada. — Você invadiu minha casa, eu
vou... eu vou chamar a polícia... — Ruslan ergue as sobrancelhas, céus... o
que se passa em sua mente?
Reaja Laura, reaja! Digo mentalmente e lembro que estou com minha
bolsa, posso estar sendo idiota, mas enfio a mão lá dentro e apanho meu
celular, preciso fazer... Solto um grito quando ele para à minha frente, deixo a
bolsa cair e uma lágrima escorre por meu rosto, ele é muito alto e... grande!
— Dá-me isso que tens na mão — sua voz é firme, aperto o celular, não
posso lhe entregar a única coisa que pode salvar minha vida.
— Você-ê invadiu minha casa... — sussurro com a voz embargada. —
Eu vou gritar se não for embora. — Me encolho quando ele pega o celular da
minha mão sem me tocar e sem ser agressivo, ele se inclina para baixo,
apanha minha bolsa e se afasta.
— Tu és minha única alternativa. — Olho para ele que coloca tanto a
bolsa quanto o celular em cima da pequena mesa. Ruslan vai até a porta,
tranca e retira as chaves, colocando-a dentro do bolso do moletom.
— Alternativa? — Pergunto confusa, tentando ganhar tempo até pensar
em uma possibilidade de fugir.
— Sim, Laura! — Ele me olha. Ruslan esfrega seus dedos um no outro,
reparo também que suas mãos estão trêmulas, suas roupas estão desgastadas e
sujas.
— Eu não tenho dinheiro... nem bens e... e... — Solto um soluço,
olhando para todos os lados menos para o assassino diante de mim. — Vá
embora, prometo não dizer nada à polícia, só não... só não me machuca... —
As últimas palavras saem sussurradas como súplica, foi assim que eu disse
quando... quando ele estava com as mãos em mim, me tocando sem que eu
permitisse, me machucando e...
— Não irei machucar-te — Ruslan me olha com cuidado.
— Não? — Mordo meu lábio inferior. — Você mata mulheres... —
Solto um grito estridente quando sinto algo encostar em minhas pernas, meu
coração salta do peito, olho para baixo ao escutar um miado. Olhos amarelos
me encaram, ele ronrona esfregando em mim, franzo a testa, já vi esse gato...
ergo a cabeça e encaro Ruslan.
— Rony é um bom garoto — ele diz, apontando para o gato que ainda
se esfrega em mim, mas meu pavor não é esse.
— Você... ele... vocês estavam lá... — Minha voz sai vacilante, Ruslan
passa a língua no seu lábio inferior, range os dentes e desvia o olhar. — Foi
você... você disse que mataria...
— Uma única pessoa. — Completa com a expressão irritada.
— Você estava lá... aquela moça foi assassinada e... você está aqui... —
Ruslan fica calado me encarando, calafrios percorrem minha espinha e nuca,
ele está me assustando, nada do que diz me acalma, apenas me apavora.
— Eu estava... te seguindo — confessa, inspirando fundo.
— Me seguindo? — Encosto mais na parede desejando que fosse uma
porta.
— Sim...
— O que você quer de mim... Céus, como conseguiu fugir da Colony
100? — Ruslan se senta no braço do sofá com as mãos entrelaçadas, a luz da
tv esculpe seu rosto perfeito e beleza ofuscante.
— Não foi fácil...
— Como um detento na prisão de segurança máxima, monitorado em
tempo integral conseguiu fugir? — Pergunto pasma, me encolhendo de medo
até do pobre gato. — Volodymyr me falou que é impossível haver uma fuga,
o complexo todo é rodeado por um muro com várias camadas de arame
farpado, se algum preso conseguisse passar por cima iria cair no meio do
nada sem entrada e nem saída. — Ruslan fica me olhando, inspiro fundo
tentando me acalmar. — E tem os guardas armados nas torres que vigiam
esses corredores, eles têm ordem de atirar se ver algum preso tentando fugir,
não há falha, como conseguiu?
— Tudo tem falhas, nada é perfeito...
— Tem os cães, como passou por eles? — Sinto meus olhos
arregalados. — Você vivia trancafiado em uma cela pequena, só saia
algemado e... não consigo achar um jeito que justifique sua fuga. Sua ala é
isolada. Então como fugiu? O que faz aqui? Por que me seguiu? Por que...
eu?
— Levei 14 anos planejando — fala de forma tranquila, umedeço meus
lábios secos e esfrego meu rosto. — Eu vi...
— Viu o quê? — Ruslan se levanta e se aproxima de mim, prendo a
respiração.
— Teus olhos... sua alma pedindo socorro. — Congelo com sua
declaração. — Olhos da cor do céu que gritam desesperadamente por
libertação, você não é diferente de mim, Laura. Apesar de estar vivendo no
mundo, sua alma está trancafiada em uma prisão... Você está presa em uma
jaula, assim como eu vivi durante 14 anos.
Suas palavras me chocam de forma que não consigo reagir, quero que
ele vá embora, que me deixe sozinha, só que seus olhos me encaram
diferente, como se fossem capazes de ver através dos muros que construí em
volta de mim.
— Você é um assassino...
— Sim — concorda com uma respiração longa.
— Vai embora, você invadiu minha casa e... é perigoso. — Ruslan
entrelaça seus cabelos, assisto seu movimento me perguntando como os
guardas permitiram que ele ficasse com os cabelos maiores do que é
permitido nas regras.
— Preciso da sua ajuda — ele sussurra, olhando no fundo dos meus
olhos. — Tu és a única que me entende.
— Eu te entendo? — Ruslan assente, dando mais um passo à frente.
— Tu conheces a dor da solidão, sabes o quanto a injustiça nos corrói
aos poucos até não sobrar mais nada.
— Como pode ter certeza disso?
— Seus olhos são tristes, perturbados e solitários, não existe sorriso
nesse rosto tão perfeito como o seu... o que aconteceste com você, Laura? —
Ele estica a mão para me tocar, mas me encolho voltando a tremer. — Por
que desejo conhecer-te mais?
— Isso é ridículo — sussurro dando um passo para o lado, chutando o
gato sem querer. — Eu... eu... vai embora... — Abraço meu corpo, minha
visão fica turva por causa das lágrimas.
— Por que razão não queres isto? — Olho para ele sem entender, sua
expressão está confusa.
— Você é um assassino condenado, invadiu minha casa e é foragido da
justiça. — Ruslan me encara, ele não se move, embora esteja com o olhar
fixo no meu, ele parece estar em um outro lugar.
Me assusto quando ele arfa, sua respiração acelera e suas mãos fecham
em punhos, medo me invade assistindo-o trancafiado em algum pesadelo
dentro de sua cabeça, digo isso porque... é assim que fico quando minha crise
me abate. Volto para o inferno, revivendo tudo aquilo que ainda não superei.
— Ruslan? — Chamo ficando ainda mais assustada, suas mãos estão
tremendo mais que as minhas, seu peito sobe e desce em uma respiração
acelerada e seu rosto está pálido, meu Deus, aonde ele está? — Ei...
Ruslan fecha os olhos, inspira fundo e quando volta a abri-los, meu
coração aperta ao ver sua dor através do brilho fosco de seu olhar.
— Você está aqui? — Sussurro, ele assente ainda perdido. — Você vai
embora? — Minha pergunta sai como um pedido, uma súplica para que se vá.
— Não — responde, inclinando a cabeça para o lado. — Vou ficar!
— Aqui?
— Contigo — diz com convicção, balanço a cabeça negativamente.
— Eu não...
— Não sou um homem ruim — suas palavras saem apertadas.
— Você assassinou mulheres e... você matou aquela moça de ontem?
— Não!
— Então o que fazia lá?
— Te seguindo.
— Isso não faz sentido... — Balbucio, Ruslan comprime seus lábios. —
Não posso abrigar um assassino que poderá me matar a qualquer momento...
— Para! — Ele me corta, fechando os olhos. — Não me chame assim.
— Assim como?
— Assassino... — Ruslan me encara tão quebrado que minhas pernas
vacilam. — Não me chama assim... não você!
— Por que eu? Por que fala como se eu fosse algo importante para
você? — Ele engole em seco, desvia o olhar e olha para tv.
— Sua alma vazia é como a minha que grita desesperadamente para ser
preenchida. Você foi a única capaz de olhar para dentro de mim, enxergar o
que sou de verdade. Quando consegui sair do Colony 100, sua imagem era a
única na minha mente, só precisei encontrar o jornal onde trabalha, te segui
até saber onde morava e aqui estou te implorando por ajuda.
— Eu não sei se posso te ajudar.
— Não tenho mais ninguém — engulo em seco, abaixo a cabeça e
aponto em direção ao meu quarto.
— Eu preciso tom... — Paro de falar quando Ruslan estende a rosa que
tinha deixado cair.
— Permita-me que eu fique. — Um nó se forma na garganta, então foi
ele... ele que me deu?
— Foi você? — Sussurro. — Você que mandou me entregar essa rosa?
— Prendo meus olhos nele, Ruslan assente e tira das costas mais duas, só que
cor-de-rosa.
— Por favor, acredite no que digo...
— Acreditar em você? — Balanço a cabeça. — Eu... eu... preciso de
ar! — Falo, ele assente me olhando fixamente, dou um passo para o lado e
quando vejo que não vai fazer nada, corro até meu quarto, tranco a porta e
deslizo até o chão, incapaz de me manter em pé, estou apavorada.
Sinto lágrimas escorrerem por meu rosto. Faz quinze anos que não me
sinto tão encurralada, encarando o perigo dessa forma sem conseguir me
defender. Quinze anos fugindo do mal. Seco meu rosto, ligo a luz do quarto,
olho embaixo da cama e dentro do guarda roupa com cuidado, quando me
certifico de que estou sozinha, tiro minhas roupas e vou para o chuveiro.
A água quente ao colidir na minha pele espalha um prazer em meu
corpo, relaxando a tensão dos meus músculos e me acalmando mesmo tendo
um assassino dentro de casa. Não estou acreditando que estou ponderando em
aceitar seu pedido, todas as suas palavras podem ser mentira. Ruslan pode
estar encenando, me manipulando para que eu acredite no que diz..., mas em
nenhum momento negou ter assassinado todas aquelas mulheres, ele se
manteve calado e... por quê?
Desligo o chuveiro com dúvidas rondando minha mente, perguntas
querendo respostas e a curiosidade me tomando. Visto meu moletom, olho
para janela, se ela não tivesse grades tanto por dentro quanto por fora, era por
ela que eu fugiria.
Respiro fundo e saio do quarto, as luzes estão ligadas agora, não há
escuridão, suspiro aliviada. Meus olhos procuram por ele, encosto na parede
quando o vejo encarando alguns ingredientes em cima do balcão, parece não
saber o que fazer com eles.
— Por que não gosta do escuro? — Pergunta sem me olhar.
— A escuridão esconde muita maldade. — Ruslan levanta a cabeça.
— Suas chaves estão do lado da sua bolsa e do seu celular. — Assinto,
indo até lá. Olho para ele e depois para as chaves.
— Se eu fugir?
— Eu te encontro.
— Se eu não quiser que você fique? — Ele pega a faca ainda me
encarando, meu coração acelera quando ele começa a picar o tomate.
— Eu vou embora. — Declara, largando a faca de forma rude. — Eu...
vou embora agora! — Ele diz caminhando em direção à porta. Ele gira a
maçaneta e a abre, fico surpresa por estar aberta. — Perdoe-me por ter te
assustado. — Dizendo isso ele sai, batendo a porta em seguida.
Solto a respiração estranhando o fato de ter sido tão fácil tirá-lo daqui,
mas por que me sinto mal por isso? Fico encarando as rosas dentro de um
copo com água, ele se preocupou em mantê-las bem, me aproximo e acaricio
as pétalas.
Ruslan disse que não tem ninguém, na entrevista confessou que
ninguém o visitava, e que sua família não queria contato com um assassino.
Ele foi preso quando completou 18 anos, viveu em dois presídios antes de ser
sentenciado a prisão perpétua, sendo trancafiado no Colony 100 e declarado o
homem mais perigoso da Ucrânia.
Olho para porta, ele está sozinho, não tem dinheiro, não tem amigos e
muito menos comida. Está foragido e só tem a mim... céus, por que estou
pensando em ajudar um criminoso?
Seus olhos vazios me dizem coisas bem diferentes do que é falado, tem
alguma coisa de errado nessa história que está despertando minha
curiosidade.
Inspiro fundo e vou até a porta, nunca fiz nada de idiota. Sempre fugi,
tentei gritar para todos dizendo o que estava fazendo comigo e muitos não
acreditaram, me condenaram, me apedrejaram, foram quinze anos vivendo
sozinha sem permitir que ninguém se aproximasse. Eis que farei a primeira
burrice da minha vida.
Abro a porta e paraliso ao vê-lo encostado na parede do outro lado com
os braços cruzados, seus olhos encaram seus tênis surrados. Ele sabia que eu
não o deixaria no frio passando fome, seu olhar se encontra com o meu.
Respiro fundo tomando a decisão que poderá me levar a morte, porém,
preciso me arriscar, enfrentar o desconhecido, permitir que entrem em minha
vida, mesmo que seja um criminoso.
— Eu te ajudo.
A solidão é a sensação mais angustiante que o ser humano pode sentir,
ela nos deixa vulneráveis, desamparados e acima de tudo, sozinhos. Ela é
opressora, te envolve em um casulo e te deixa como um nada.
Hoje ela se tornou minha única companhia, junto a ela vi o tempo
passar por essas grades e pela pequena televisão. Através da minúscula janela
da minha cela, eu vi a neve, a chuva e os raios solares, tudo sem poder tocar...
sem poder sentir.
Luto a cada dia para não perder o único fio de esperança que me
mantém respirando, quero poder voltar ao mundo, sentir a brisa em meu
rosto, a chuva colidir na minha pele e o sol me acariciar como lábios
delicados.
Minha mente se perde facilmente, durante meus dias e minhas noites eu
só tenho meus pensamentos como amigo. Às vezes ele se torna meu inimigo,
sempre me leva para o inferno onde vivi, para os momentos de humilhação,
de dor e vergonha, de olhares vazios, olhares maldosos... Às vezes, desejo
que minha mente se cale, e eu já tentei, inúmeras vezes tentei, mas algo
sempre me impede de ir em frente, me trazendo do abismo, me fazendo
questionar se o que vivi foi realmente o inferno ou se o inferno é ainda pior.

Me acostumei com a raiva acumulada dentro de mim, minha voz foi


calada quando o martelo do juiz concluiu minha sentença. Eu tinha acabado
de fazer dezoito anos, um moleque que tinha fervor em conquistar uma vida
melhor, que tinha sonhos e planos, sua paixão ia muito além de reclamar por
causa da pobreza, ele queria apenas... viver!
O garoto foi calado, condenado a viver o resto da vida trancafiado no
inferno. Perdeu sua juventude, inocência e seus sonhos. Ele ainda grita
desesperado, sentado em um canto escuro com uma alma quebrada...
dilacerada.
Seu choro está se tornando silencioso, sua voz não existe, e seu
coração? Ainda pulsa, tão frágil como uma pétala de rosa. Esse garoto sorria
mesmo diante de tantos problemas. Seus olhos brilhavam quando presenteava
sua mãe com coisas tão simples, ou quando elogiava sua pequena irmã que
crescia acelerada. Seu irmão e melhor amigo sempre pegando em seu pé, mas
tudo foi silenciado, apagado, quebrado.
Seu sorriso foi substituído pelas lágrimas, as brincadeiras se tornaram
agressões. Esse garoto nunca imaginou como sua vida mudaria para sempre,
ele não estava preparado para viver nesse mundo. Ele quer sair, gritar e
mostrar que ainda tem voz, só precisa que alguém lhe dê essa oportunidade,
que acredite no que fala...
Se eu tenho esperança de sair daqui? Sim, acredito em milagres, porque
é isso que me mantém vivo e respirando, mesmo querendo desaparecer
definidamente.
Inspiro fundo e expiro conforme o ritmo dos meus exercícios aceleram.
Todos os dias, uso os únicos 30 minutos que tenho em um pátio coberto por
grades, maior que minha cela, para me exercitar. Essa rotina ajudou a manter
minha mente menos doente e no final do dia me ajuda a dormir melhor,
relaxa meus músculos e me mantém forte, porque aqui você tem que estar
preparado para tudo.
São guardas filhos da puta te espancando, detentos sedentos por
sangue, situações tensas que podem te levar ao extremo. Se não estiver
preparado, você não suporta um terço do que realmente acontece dentro dessa
prisão ou de qualquer outra.
Eu entrei com uma alma pura, me tornei um lunático, assassino e
doente, sujei minhas mãos com sangue, fiz coisas que nunca pensei que faria.
Tentei tirar minha própria vida e passei dias na “a casa”.
Todos nos referimos à solitária como “a casa”, são antigas celas de
isolamento nos porões do Colony 100, embora seja proibido deixar um
detento por mais de 14 dias trancafiado nela, já me deixaram por vinte e
cinco dias. Foram momentos perturbadores que jamais pensei ser capaz de
suportar tanta humilhação.
Guardas não estão preocupados com o nosso bem estar, somos a
escória da sociedade, o lixo que deve ser jogado fora. Somos assassinos,
estupradores e ladrões. Somos a falha de uma sociedade egoísta onde o poder
fala mais alto.
Ainda me lembro da chapa dura de metal que usava como cama, do frio
que sentia por não ter um pedaço de pano para me cobrir e da comida feita
com desprezo naqueles dias em que passei lá. Tinha apenas uma pequena pia
e uma privada. É isolamento completo do mundo exterior, isso acaba com
qualquer mente sadia.
Alongo meu corpo utilizando meus últimos meros minutos. Olho para
cima, a grade me impede de ver com perfeição o céu azul... azul como os
olhos de Laura.
Quando a vi pela primeira vez, meu coração acelerou. Havia anos que
não ficava em frente a uma mulher, e ver uma depois de anos é... diferente.
Só que o que senti não foi atração sexual, foi algo mais forte, foi como se
existisse uma conexão entre nós.
Olho para o guarda que bate na grade, ele pede que eu me aproxime.
Sou algemado e retirado da jaula para ser devolvido à minha cela... para a
minha casa que é a melhor definição a ser dada.
— Cabeça na parede, Ruslan. — Pede um deles, faço o que ordena,
enquanto outro segura meu braço, ele abre minha cela. Sou colocado para
dentro, quando uma das grades é trancada, coloco as mãos na abertura para
que tirem as algemas, segundos depois sou trancafiado como um animal.
Meu quarto – me refiro sempre assim porque aqui não é uma casa – ele
tem apenas 12 metros quadrados, uma cama, máquina de costurar, uma
pequena tv grudada na parede e uma privada ao lado de uma pequena pia. Há
uma mesa e um pequeno armário onde guardo meus utensílios de higiene que
se resume apenas a um desodorante e sabonete.
Retiro minhas roupas para eliminar o suor da pele, com uma caneca,
tomo meu banho pegando água da pequena pia. Nunca reclamei do fato de
ser tratado dessa forma, aqui estamos pagando pelos crimes que cometemos,
não morando em um resort.
O resto do meu dia eu costuro bolsas para o presídio, leio livros que me
disponibilizam, e assisto tv. Seria entediante se não estivesse acostumado
com isso.
Silêncio é o rei dessa ala, raramente escuto conversas e quando há, são
brigas entre colegas de cela. Sou deixado sozinho desde o dia em que
esfaqueei meu colega, três anos atrás, fui considerado um perigo para
qualquer um, desde então vivo só eu, a solidão e o gato negro que vem todos
os dias para minha cela pela janela.
Fico observando-o sentado enquanto olha para fora, Rony não se
intimida, é um companheiro que eu estava precisando, mas confesso que
nunca entendi esse gato, dos anos que está comigo, ainda é um mistério.
Encaro o teto lembrando dela, fiquei tão assustado ao ver tamanha
tristeza naqueles belos olhos, que era como se eu estivesse vendo os meus
próprios. O que fizeram com ela para que roubassem seu brilho? Ela queria
tão desesperadamente saber quem eu mataria, que só reforçou minha certeza
de que Laura foi quebrada, se eu fosse solto... se tivesse uma oportunidade...
Assusto com o barulho de cadeados, me levanto rapidamente e me viro
de costas com as mãos para trás, ando quando um dos guardas ordena que eu
me aproxime. Ele me algema e me tira da cela, me levando para a sala do
psicólogo Kirill.
Depois de 31 dias sem visitas, recebi duas, um alívio para quem fica
dias ou até mesmo semanas sem conversar com ninguém. Os dois guardas
trocam minha algema por correntes que vão até o meu tornozelo, desse modo
posso ficar mais livre enquanto converso com Kirill, ele é um cara bacana e
costuma me dizer tudo o que está acontecendo do lado de fora.
Sou colocado sentado em frente à sua mesa, estranho o fato de ainda
não ter chegado. Olho de relance para um dos meus guardas encostado na
parede me observando, eles sempre direcionam olhares desconfiados em
minha direção, não confiam nem um pouco em mim.
Balanço a perna direita, Kirill não é de se atrasar, nunca compareci a
uma sessão sem ele na sala, o que reforça minha teoria de que aconteceu
alguma coisa, principalmente pela movimentação que estou escutando.
Tento não olhar de novo para o guarda, ele pode desconfiar de que
estou planejando alguma coisa contra ele e... talvez eu esteja. Meus olhos se
prendem na janela, um helicóptero da polícia paira sobre o ar. Franzo a testa
sentindo uma tensão atrás de mim, os dois guardas sussurram.
Escuto disparos, meu coração salta, olho para trás a tempo de ver um
dos guardas sair pela porta com o comunicador explodindo com informações.
O outro guarda retira sua arma e se posiciona em direção à porta, de costas
para mim.
Tudo o que escuto é o suficiente para aproveitar e tentar sair daqui.
Foram anos pensando em algo e minha única alternativa era uma rebelião, o
que nunca aconteceu, mas parece que minha sorte chegou.
Seguro as correntes para não fazer barulho, me levanto lentamente e
vou até o guarda que esqueceu que dentro desse consultório há um assassino
imprevisível. Solto as correntes e contorno em seu pescoço, pegando-o de
surpresa.
O guarda se debate enquanto aperto a corrente em seu pescoço, não irei
matá-lo, só preciso que desmaie para ver a situação do lado de fora. Alguns
segundos depois ele começa a perder seus sentidos, seu corpo pesa e eu o
deito no chão já sem consciência.
Procuro pelas chaves das correntes, encontro um bolo delas e começo a
testá-las uma por uma, depois de alguns minutos consigo soltar meus
tornozelos e meus pulsos, solto um suspiro longo.
Apanho sua pistola e me encosto na parede, seu companheiro vai vir
aqui e será a minha chance de sair por essas portas trancadas. Os barulhos
abafados me instigam a continuar, não importa como, eu preciso sair daqui.
Engatilho a arma e inspiro quando a porta é destrancada, conto até dois,
me viro e aperto o gatilho, disparando duas balas contra a perna do outro
guarda. Ele urra de dor ao cair no chão, seus olhos se prendem nos meus,
surpresos.
— Perdoe-me, mas preciso sair daqui — digo a ele que geme de dor.
— Estás sendo burro — retruca, apertando os dentes com a dor.
Vou até ele, apanho seu cartão de identificação, seu comunicador e um
bolo de chaves. Pode ser burrice, mas é a minha única chance. Olho para o
guarda mais uma vez, desejando nunca mais o ver.
Deixo-o no corredor sangrando e sigo em frente, meus olhos se
prendem nas câmeras de segurança, preciso primeiro desligá-las. Foram anos
andando por esses corredores, gravando cada detalhe de quando era retirado
da cela.
A ala de segurança máxima está tranquila, o que quer dizer que a
rebelião está acontecendo na ala de reincidentes ou na aciaria[1] onde os
detentos trabalham. Escuto passos, congelo no meu lugar e olho através da
parede do corredor, alguns policiais vestidos de preto, segurando fuzis e com
capuz passam apressados, estão indo na direção que dá acesso aos fundos da
aciaria.
Encaro a pistola em minhas mãos, aprendi a manuseá-la com um dos
presos da unidade 69 antes de me enviarem para cá. Nikita estava planejando
uma fuga, conseguiu contrabandear armas para dentro do presídio sem que os
policiais soubessem.
Nikita me ensinou coisas que jamais aprenderia na vida normal em que
levava. Ele me protegeu de muitos, ainda era um garoto quando o conheci, só
que ele conseguiu fugir depois de uma rebelião que ele organizou, nunca
mais o vi.
Volto a olhar pelos corredores, sigo na mesma direção dos policiais,
ergo a arma e atiro em todas câmeras dos corredores da ala onde estou, isso
me dará tempo.
Espero um pouco, até que escuto passos, dois policiais da unidade
especial vão em direção à porta de saída alguns metros adiante, me preparo,
respiro fundo, engatilho a arma e me viro, disparando contra eles, acertando
suas pernas e pegando-os de surpresa.
Os dois policiais soltam gritos de dor, vou até eles e afasto os fuzis com
meus pés. Tenho poucos minutos para executar meu plano. Encaro um dos
policiais baleados, um brilho de medo e pavor transluz seus olhos.
— Não irei matá-los — digo, me inclino e soco seu rosto, fazendo-o
desmaiar de imediato, faço a mesma coisa com o outro que está tonto pela
perda de sangue.
Não perco nenhum segundo a mais, tiro minhas roupas e troco pelas do
policial, arrasto os corpos até um dos corredores onde sei que não passará
ninguém por agora. Com minhas roupas de detento limpo o máximo de
sangue que consigo, apanho um dos fuzis, coloco a touca para esconder meu
rosto e sigo em direção à porta que levará a tão sonhada liberdade.
É tão irônico como a nossa vida pode se tornar uma montanha russa,
sempre fugi do perigo, mas hoje estou aqui de frente para ele, pronta para
permitir que ultrapasse a linha que jamais ninguém ousou passar.
Seus olhos verdes são como as folhas do outono desenhando um
caminho pelo qual jamais trilhei, elas não caem por que querem, e sim,
porque chegou sua hora. Dou um passo para trás, abrindo mais a porta que é
praticamente meu coração, permitindo a sua entrada.
— Tens certeza? — Ele pergunta se desencostando da parede.
— Não — respondo com sinceridade. — Você sabia que eu aceitaria
você aqui? Por isso que estava esperando?
— Sou um enigma para você, — diz entrando em casa — mas tem o
Rony, não iria embora sem pegá-lo. — Olho para o gato em cima do sofá,
dormindo como se nada nesse mundo fosse digno de sua atenção.
— Eu não tenho outro quarto — fecho a porta e me encosto nela.
— Agradeço-te muito — Ruslan me encara, meus pelos eriçam. — Não
te farei mal! — Assegura, mas só o tempo dirá.
— Nunca fiz isso...
— Fez o quê? — Desvio do seu olhar e fito as rosas.
— Você deverá dormir no sofá, não sei se tenho cobertas o suficiente,
como pode ver, não vivo no luxo. — Volto a encará-lo.
— Não faço ideia do que é viver no luxo — rebate com uma respiração
funda.
— A polícia está atrás de você — Ruslan comprime os lábios e assente,
tirando sua blusa de moletom e ficando apenas com uma camisa cavada
mostrando seus braços definidos, engulo em seco analisando seu corpo.
Como conseguiu se manter tão em forma assim?
— Posso ser mais inteligente que ela — arqueio uma sobrancelha,
Ruslan curva seus lábios em um sorriso discreto. — Já lidei com coisa pior...
— Como o quê? — Ele se senta no sofá, sustentando seus braços nos
joelhos enquanto assiste o desenho do Pernalonga.
— Quando se estás preso, tens que estar preparado para qualquer
ocasião. Estamos sempre dividindo cela com homens ruins, sem escrúpulos e
sem compaixão, eles fazem coisas horríveis com você se não se cuidar.
— Te machucaram? — Ruslan assente sem dizer nada, seu olhar ainda
está fixo na tv. — Mas talvez seja merecido, não? — Ele me olha com a testa
franzida. — Você matou mulheres e... céus, estou acolhendo um assassino!
— Não penses demasiado nisso — diz, esticando o braço para acariciar
o gato. — Apenas confie em mim.
— Confiar em você? — Pergunto. — Eu nem te conheço e você é um...
— Estás arrependida? — Ele me olha com pesar, solto um suspiro e
nego com a cabeça.
— Não quero problemas.
— Não vai ter — assegura com confiança. — Tens namorado? — Sua
pergunta me pega de surpresa, ele me encara com seriedade.
— Por quê?
— Seria um problema ele aparecer aqui e me encontrar. — Mordo meu
lábio, se eu dizer que tenho... — Não minta!
— Não vou mentir.
— Seu olhar está diferente, você ia mentir.
— Não, não ia!
— Sim, você ia! — fecho meus olhos por um segundo.
— Não tenho namorado. — Ruslan assente, suspirando aliviado.
Ficamos em silêncio, eu absorvendo tudo o que está acontecendo e
ele assistindo desenho animado, só que com a mente longe daqui. Meu
estômago ronca de fome, lembrando-me que apenas almocei.
— Você comeu algo? — Pergunto, Ruslan não responde, me afasto da
porta. — Se quiser algo para comer eu posso fazer. — Ele não se move, meu
coração volta a acelerar enquanto vou me aproximando. — Ruslan?
Olho para ele que está encarando a tv imóvel, isso me assusta, porque o
que está presente aqui é apenas seu corpo. Assusto quando seus olhos se
movem, se prendendo nos meus, leva um tempo para me recompor.
— Você está aqui?
— Sim — responde me fitando, passo as mãos na calça para limpar o
suor.
— Você comeu?
— Não — diz, voltando a encarar a tv, se perdendo outra vez.
Vou para a cozinha preparar um macarrão, mas me sentindo estranha
por ter alguém aqui comigo, um desconhecido que pode me atacar a qualquer
momento.
Mesmo com o coração martelando incansavelmente, tento me manter
no controle da situação, tento não pensar que tem um assassino na minha
sala, e que eu o deixei ficar. Onde eu estava com a cabeça para aceitar algo
assim? Encaro o molho indignada comigo mesma, buscando uma explicação
lógica e aceitável para isso.
Me viro para pegar um prato e solto um grito dando um passo para trás
em direção à panela quente no fogo, mas Ruslan segura meu pulso,
impedindo que eu colida com ela, e me machuque.
Levanto a cabeça encarando seus olhos, ele estava o tempo todo me
observando sem que eu percebesse. Sinto sua mão firme no meu pulso e algo
estranho começa a me invadir. Tremor espalha por meu corpo e de repente
fico sem ar ao sentir sua mão em mim, me tocando...
— Perdoe-me, não queria te assustar, o cheiro está muito bom. — Ele
me solta.
— Não volte a me tocar... — Aviso, me afastando dele o mais rápido
possível. Vou até o banheiro e me tranco, ergo as mangas do moletom e
coloco as mãos dentro da água corrente.
Meu corpo inteiro estremece e tenho medo de entrar em crise. Pavor de
que minha mente me leve para o inferno me consome, ela não para de gritar
ele me tocou... ele me tocou... ele me tocou...
Apanho uma esponja, encharco-a de sabão e começo a esfregar minha
pele, limpando seu toque, a sujeira impregnada em mim, do nojo que sinto
quando me tocam. Lágrimas involuntárias escorrem por meu rosto, minha
mente reproduz sem parar o momento em que ele me tocou, em que Ruslan
me segurou, do seu aperto, da sua mão grande em volta do meu pulso...
Nojo... nojo... nojo... não dele, mas de mim. Sou uma pessoa que
desperta desprezo em outras pessoas quando me tocam. Sou aquela que faz
com que as pessoas sintam repulsa de mim, por isso não podem me tocar, não
quero que sintam nojo de mim... Inspiro fundo, fecho meus olhos e tento
colocar minha cabeça no lugar, só que é difícil, muito difícil...
Olho para minhas mãos e pulsos vermelhos de tanto esfregar, já houve
momentos em que esfolei minha pele, outras vezes machuquei
profundamente, Olesya disse que a sujeira que vejo está em minha mente,
tudo da minha cabeça, respiro fundo e desligo a torneira.
Enxugo-as com a toalha e passo álcool, rangendo os dentes quando
sinto minha pele arder, eu me machuquei de novo. Sento na tampa do vaso e
fico pelo menos mais dez minutos me recompondo.
Quando sinto que estou no controle, saio do banheiro e encontro Ruslan
escorado na mesa com os braços cruzados, sua expressão está ilegível. Ele
levanta a cabeça e me observa, seus olhos descem até minhas mãos, tento
esconder a vermelhidão puxando mais as mangas do moletom. Ruslan não
diz nada, apenas me olha.
Volto para cozinha para continuar a preparar minha comida, ele
desligou o fogo impedindo que queimasse. Olho para trás, seus olhos se
encontram com os meus por alguns segundos antes de eu desviar e focar no
macarrão que estou preparando. Em todo momento sinto seus olhos cravados
nas minhas costas, me assistindo.
Ruslan deve estar pensando o quanto sou estranha, só espero que não
sinta nojo por ter me tocado. Ver esse sentimento nos olhos das pessoas é
devastador, dói muito. Agradeço aos céus por ter evitado uma crise, porque
não seria nada bonito surtar com um assassino em casa.
Termino o molho e coloco em cima do macarrão que está dentro do
prato. Viro-me, Ruslan não se moveu por nenhum segundo. Estendo o prato
em sua direção, seus olhos claros fitam os meus, é como se tivesse tantas
perguntas e não pudesse fazê-las.
— É seu — digo, ele descruza os braços, pega o prato e senta à mesa.
— Encantado — murmura, batucando os dedos no vidro da mesa.
— De nada — preparo meu prato e me sento no sofá, distante dele. —
Você não gosta de macarrão? — Ruslan me olha.
— Não lembro mais do sabor.
— O que você comia na prisão? — Pergunto curiosa, observando-o
rodar o garfo no macarrão.
— Ensopado, um pedaço de pão e peixe em conserva — faço uma
careta, imaginando a gororoba que os davam.
— Era gostoso? — Ruslan esboça um sorriso frio.
— Mantiveste-me vivo, isso que importa — ele leva o macarrão à boca
e fecha os olhos, prazer estampa seu rosto.
— Você comeu antes de me encontrar? — Ele abre os olhos e assente.
— Um sanduíche que roubei de uma mesa de um bar qualquer —
revela, mastigando lentamente.
— Não sou boa em cozinhar.
— Está muito bom — elogia, me lançando um olhar agradecido. —
Tem 14 anos que não me alimento normalmente. — Sua voz sai engasgada,
meu coração se parte com sua confissão, olho para meu prato pensando nas
pessoas que nem um ensopado horrível tem para comer, e a gente reclama
tanto do pouco que tem, sendo que muitos não tem nada.
— No fogão tem mais se quiser — Ruslan assente, olho para a tv e
solto um suspiro feliz quando começa o desenho do Coragem, o cão covarde,
me perco no episódio e nosso jantar é tomado pela voz dos personagens.
Fico tão inerte que nem percebo quando Ruslan se senta do outro lado
do sofá, seu gato está em seu colo, recebendo carícias. Olho para seu rosto
esculpido por uma beleza ofuscante.
— Você gosta muito de desenhos — sussurra sem me olhar, aperto
meus lábios e me aconchego no sofá. — Por quê?
— Porque eu fujo da realidade — digo, fitando minhas mãos menos
avermelhadas. — Nos desenhos há acontecimentos impossíveis, como
pessoas voando, aviões que falam, cães que salvam o mundo...
— E você se imagina lá dentro?
— Sim.
— Por quê? — Olho para ele que me observa com atenção.
— Porque a realidade dói.
Um nó se instala na garganta, Ruslan me encara tão intensamente que
fico incomodada. Desço minhas pernas e pego meu prato ao meu lado.
— Estou indo dormir, apesar do sofá ser um pouco pequeno, ele é
confortável.
— Eu me adapto bem. — Assinto, me afastando.
— Hum... boa noite — falo, encarando-o mais um pouco.
— Até logo — Ruslan desvia o olhar, voltando para a tv, vou para meu
quarto, tranco a porta e me sento na beira da cama, me dando conta de que ele
descobriu mais coisas sobre mim do que qualquer um em todos esses anos.
Ruslan me instiga, quero entender o porquê me sinto confortável com
sua presença mesmo sentindo medo. Quero poder conversar mais, tentar
descobrir mais sobre ele. Solto um suspiro longo, desejando que eu não tenha
assinado minha sentença de morte.
Quando empurro a porta que dá acesso ao lado de fora, arfo ao sentir o
vento sutil me beijar. Sou consumido por uma emoção sem tamanho, mas me
controlo, porque ainda estou no Colony 100, eu apenas subi um degrau.
Há vários policiais da unidade especial em volta da aciaria, eles
distribuem ordens, não faço ideia do que está acontecendo, e nem me
importo, só preciso agir como tal.
Encaixo o fuzil em meu braço depois de observar como os policiais
seguram, agacho ao lado de um deles e espero minha deixa. Minutos se
passam, tiros são disparados, gritos soados, meu coração bate acelerado
querendo sair daqui.
A tensão paira sobre o ar do fim da tarde, não há nenhuma evolução,
enquanto os líderes negociam com os detentos responsáveis pela rebelião.
Nós aguardamos, só que não posso mais esperar.
Me levanto quando uma vã se aproxima, vou até ela, paro quando
vários policiais descem, meus olhos encaram um deles, temendo que me
reconheça.
— Há quanto tempo está aqui? — Ele me pergunta, camuflo meu medo
e o respondo da maneira devida, da mesma forma em que ouvi alguns deles
responderem seus superiores.
— Aproximadamente três horas, senhor — minto com confiança, ele
assente e aponta para vã.
— Vá, ficaremos no seu lugar — assinto e entro na vã, assim como os
outros com quem eu estava.
O veículo entra em movimento, aperto o fuzil ansioso, encaro a traseira
e vejo os portões do presídio ficar para trás. Falta pouco para estar livre. A vã
para e saímos da traseira, a noite está caindo o que é um ponto positivo para
mim.
— Bom trabalho, pessoal! — Diz um dos policiais, olho em volta,
estou do lado de fora do Colony, há ambulâncias, bombeiros, jornalistas e
mais policiais prontos para agirem conforme as ordens.
Aguardo mais um pouco, procurando um jeito de sair daqui sem que
desconfiem de mim. O bom é que, nenhum dos policiais tiraram a touca,
escuto os latidos dos cães, eles são os mais perigosos, se perceberem que um
detento fugiu, é a unidade canina que virá atrás de mim.
Meus olhos são atraídos para os carros dos repórteres um pouco
distantes, como o Colony 100 fica praticamente no deserto, fugir caminhando
seria uma burrice, então me aproximo dos carros com cautela, vou até o mais
distante, me encosto em um deles como se estivesse fazendo nada a não ser
descansar.
Todos estão focados demais no que está acontecendo dentro do
presídio, tenho a vantagem e não posso desperdiçar. Olho para dentro do
carro, as chaves estão na ignição, abro a porta com cuidado e entro. Minhas
mãos enluvadas se fecham em volta do volante, agradeço ao meu tio por ter
me ensinado a dirigir antes de eu ser preso, ele sempre dizia que dirigir é
como andar de bicicleta, a gente nunca esquece.
Rodo a chave, o motor liga, inspiro fundo para controlar meu
nervosismo e dou a ré, o carro morre, amaldiçoo e tento de novo sem espaço
para desistência. Olho para a aglomeração em frente ao Colony, não me
notaram ainda. Inspiro fundo e tento outra vez sair com o carro, sorrio
quando consigo.
Viro na direção contrária e piso no acelerador, me afastando do lugar
onde vivi anos trancafiado, agora estou livre, mesmo sabendo que terei que
lutar para me manter escondido e longe de qualquer um.
Esperei 14 anos para ter pelo menos uma única oportunidade, e quando
a vi chegar, me agarrei com firmeza sem me importar com as consequências
ou com o sangue que será derramado, meu objetivo é fazer de tudo para
encontrá-lo e provar minha inocência, custe o que custar. Vou fazê-lo pagar
por tudo o que me fez.
Passei a noite em claro, escutando a tv, os passos e o gato miar, é
estranho você ter um desconhecido tão perigoso em casa. Como poderia
pregar os olhos com esse fato tão existente em minha vida?
O despertador apita, me levanto e ligo a luz, meu coração salta quando
olho pelo meu quarto, não há ninguém, assim como não houve ontem e nem
antes de ontem.
Abro a porta e saio do quarto, Ruslan anda pela cozinha de um lado
para o outro, parecendo ansioso e alterado. Ele congela quando sente minha
presença, se vira e me observa com os olhos perturbados.
— Perdoe-me por ter te acordado — diz, inquieto.
— Está na hora de me arrumar para o trabalho — Ruslan assente. — O
que houve?
— Tentei preparar algo para comer e... perdi o controle — me
aproximo, o fogão está repleto de gordura e o ovo misturado com pedaços de
casca está completamente queimado.
— É normal errar a mão, — digo para acalmá-lo — afinal, você não
cozinhava na prisão, né? — Ruslan me encara, dá de ombros e respira fundo.
— Eu posso preparar algo se quiser.
— Sim, por favor — assinto, passando por ele.
Tento esquecer que está me observando e foco na preparação do ovo
que tanto quer, mas antes disso limpo a sujeira que fez. Depois de meia hora,
entrego-lhe uma omelete com bacon e tomate.
— Espero que goste — me escoro na pia e ele no balcão.
— Agradeço-te por isso — ele me lança um olhar agradecido e começa
a comer, não rápido como se estivesse varado de fome, mas com calma,
saboreando cada pedaço da comida, temendo que acabe.
— O que você vai fazer? — Pergunto, cruzando meus braços.
— Ainda não sei — murmura, engolindo o último pedaço.
— Vai ficar aqui trancafiado? — Ruslan me olha inexpressível.
— Tenho planos, — ele se aproxima, me afasto imediatamente —
preciso apenas organizá-los.
— Eu trabalho o dia todo e só estou de volta às seis da tarde, —
esclareço — tenho apenas uma chave.
— Ficarei com ela até você voltar — fala tranquilo enquanto lava seu
prato.
— Ruslan? — Ele me olha. — Como entrou?
— Tenho truques.
— Truques? — Ruslan assente. — Tu achas que aprendemos o que na
prisão? — Umedeço meus lábios.
— Hum... a não matar de novo? — Ele sorri pela primeira vez, meu
coração acelera ao ver o quanto ficou lindo.
— Estás enganada, pequena flor, — Ruslan seca as mãos — dentro da
prisão você aprende a se tornar o próprio demônio, tu perdes seu coração e
sua alma, poucos são aqueles que se mantém intactos.
— O que acontece com esses? — Ele me lança um olhar sombrio
— São comidos vivos — calafrio percorre meu corpo, há raiva
impregnada em sua voz, engulo em seco e vou para o banheiro para me
arrumar para o trabalho.
Saio de casa sem dizer nada a Ruslan que me acompanha com os olhos
até eu passar pela porta. Estremeço de frio esperando por Gana, só que ela
não aparece o que indica que terei que ir de ônibus.
Ajeito minha touca, escondendo meus ouvidos para que o vento frio
não os faça doer e caminho até o ponto. Não demora muito para meu ônibus
passar, alívio toma conta de mim ao vê-lo vazio. Entrego a passagem ao
motorista e sento-me no banco mais afastado, encarando o trânsito pela
janela.
Em todo caminho até a AS penso em Ruslan, que está sem dinheiro,
sem documentos e sem roupas para acolhê-lo nesse frio, a nossa sorte é que
falta pouco para o inverno acabar.
Quando chego na redação, estranho a movimentação, telefones tocando
o tempo todo, e pessoas andando de um lado para outro totalmente agitados.
Entro na minha sala, a mais calma e tranquila de todo o lugar.
— O que está acontecendo? — Pergunto a Yaroslav, tiro meu casaco,
luvas e touca.
— Tu não soubeste? — Nego com a cabeça, Justik entra com a
respiração ofegante.
— Céus, o que aconteceste? — Dou de ombro sem saber a resposta,
borrifo álcool nas minhas mãos e na minha mesa antes de ligar o computador.
— Ruslan Rotam conseguiu fugir do Colony 100 — levanto a cabeça
quando Aksinya nos diz, ela coloca as mãos na cabeça.
— Por isso que estão todos agitados Laura e Justik, não vistes no
jornal? — Pergunta Yaroslav.
— Vi ontem — me sento, tentando demonstrar surpresa.
— E agora? — Justik nos olha assustado. — O cara assassinou mais de
vinte mulheres em um ano.
— A polícia é eficaz, vão pegá-lo — Afirma Aksinya. — Porém o que
me preocupa nem é isso.
— É o quê? — Pergunto, ficando curiosa.
— Nosso chefe...
— Andry quer que todos compareçam na sala dele com urgência —
Ekaterina nos interrompe, Aksinya nos olha com descrença.
— Estamos lascados... — Resmunga, se levantando e indo até a sala do
nosso chefe, a seguimos em silêncio.
Andry está sentado com uma pilha de papéis em cima da sua mesa, ele
não nos olha, está focado demais no seu computador. Ficamos em pé e
calados por mais ou menos uns dez minutos esperando sua boa vontade de
nos atender.
— A matéria que fizeram já está no ar, só que com a fuga de Ruslan,
está rolando um boato de que pode ser ele o responsável pelo assassinato.
Aperto as mãos contra minha perna, tensa com as palavras de Andry.
Ruslan disse que estava me seguindo e que não a matou, mas... até que ponto
ele falou a verdade? Será que devo acreditar em sua palavra? Ele é um
assassino de sangue frio, mata mulheres indefesas por prazer e diversão, será
que devo confiar?
— Então diante disso, quero que vocês investiguem a vida passada
dele, as vítimas e tudo que possam obter em relação a Ruslan Rotam.
— Sério? — Yaroslav indaga surpreso, atraindo o olhar de Andry em
sua direção.
— Quero tudo sobre ele.
— Vai fazer um documentário? — Justik pergunta com a voz vacilante.
— Exato, começando hoje.
— Outros farão o mesmo — murmura Aksinya, insegura. — Por que
temos que fazer isso?
— Porque estou mandando — Andry retruca. — Podem ir! — Ele nos
dispensa.
— Como iremos começar? — Pergunta Yaroslav, nosso chefe nos olha
com cara de poucos amigos.
— Pelo começo — retruca, respiro fundo e saio da sua sala, ele não
falará mais nada, fomos largados à sorte
— Como começar pelo começo, se não fazemos ideia de onde é o
começo? — Resmunga Aksinya, sentamos nos nossos lugares em silêncio,
perdidos em um caminho que não somos acostumados a andar.
No entanto, o que está martelando minha mente é que irei investigar a
vida do homem que está na minha casa, isso me deixa perturbada. Posso estar
entrando em um lugar, onde minha vida poderá mudar para sempre, afinal,
sou uma simples colunista, não uma detetive, pelo amor de Deus!
— Vamos começar com a vida dele — Yaroslav interrompe meus
pensamentos. — Onde ele viveu? Com quem ele conviveu? Qual escola
estudou? Como ele era antes de ser sentenciado?
— Aonde vamos encontrar essas informações? — Justik pergunta,
inspiro fundo.
— Pegando as reportagens de 14 anos atrás, juntando as informações
que já temos e depois ir atrás de respostas. — Digo, fitando a foto da minha
mãe. — É o começo.
— Vamos coletar as informações das vítimas e fazer uma entrevista
com as famílias, vai ser interessante. — Aksinya fala com entusiasmo.
— Então procuramos hoje e amanhã vamos para as ruas. — Diz
Yaroslav.
— Sim, vamos fazer — sussurro, todos concordamos e começamos a
coletar informações. Ao mesmo tempo em que estou curiosa para saber da
vida passada de Ruslan, me sinto tensa por mexer com algo tão perigoso.
— Gente, como é que ele fugiu? — A pergunta de Justik paira no ar,
não faço ideia de como ele foi parar na minha casa, mas de uma certeza eu
tenho, Ruslan soube enganar perfeitamente as autoridades.

Me deito no sofá de Olesya depois de sair mais cedo do trabalho, decidi


vir até ela porque preciso conversar com alguém, tentar aliviar a pressão que
está dentro do meu coração.
— Diga-me Laura, o que aconteceu? — Ela pergunta vendo meu
nervosismo, engulo em seco e olho para minhas mãos um pouco irritadas da
noite passada.
— Ontem uma pessoa me tocou, — confesso em um sussurro, fitando o
teto — eu me senti enojada.
— Da pessoa? — Nego, mordendo com força meu lábio.
— De mim — balbucio. — É uma sensação horrível, a voz dele veio
em minha mente, pensei que seria levada de volta para o passado, mas não
fui, só senti medo, desespero e... angústia.
— Por isso que suas mãos estão irritadas? — Assinto — Quem te
tocou, Laura?
— Um homem — fecho meus olhos, lembrando do momento do seu
toque. — Eu tinha me esquecido de como era ser tocada.
— Às vezes, precisamos de calor humano — olho para minha
terapeuta, ela me analisa com atenção, sempre tomando cuidado com o que
fala, às vezes sinto vontade de vê-la gritar comigo, tem dias que preciso.
— Eu não quero calor humano, quero que fiquem distantes e não me
toquem, — falo com um pouco de raiva — não quero que sintam nojo de...
mim.
— Por que sentiriam nojo de você? — Dou de ombros. — Ele falava
isso para te machucar, te ver ferida, Laura. O afeto, o toque e a carícia nos
ajudam a ter uma afetividade com o próximo, reforça os laços mais íntimos.
— O mesmo toque que ele fazia em mim? — Estremeço ao lembrar de
suas mãos. — Eu não quero que me toquem, se me tocar, vou sentir medo e
vai ser da mesma forma que... ele fazia...
— Ei? — Olesya me interrompe, encaro seus olhos gentis. —
Afetividade não é dessa forma, molestar uma criança não é carinho, mexer
com a cabeça de uma adolescente não é amor, não confunda o que ele fez
com você com sentimentos puros.
— Como eu vou saber que não estão me tocando com maldade? — Ela
inspira fundo, me olhando por alguns segundos.
— O toque de pessoas que te querem bem, é diferente, você sente em
seu coração.
— E se estiverem me enganando como da última vez?
— Você irá saber, nesse momento terá o poder de se afastar. Lembre-
se, você não está mais nas garras dele, estás livre para fazer suas próprias
escolhas, Laura. Sem ameaça e sem agressões.
Olho para minhas mãos, relutante em aceitar suas palavras.
— Laura? — Volto a encarar Olesya. — Você não acha que está na
hora de permitir que entrem em sua vida? — Engulo em seco, porque já
deixei que entrasse, só que ele é... um homem perigoso.
— As flores sempre desabrocham... — Digo, com meus olhos cheios de
lágrimas.
— Estás na hora de você desabrochar, pequena flor — Olho para ela
surpresa pelo que me chamou.
— Você acha que uma alma quebrada pode ser consertada? —
Pergunto, me sentindo vulnerável.
Olho com atenção para Olesya, ela não é muito mais velha que eu, seus
olhos claros são gentis e refletem bondade de todas as formas que me fitam,
seus cabelos loiros a deixa ainda mais bonita. Não a tinha reparado desde
então, porque sempre que venho, estou sobrecarregada dos meus problemas.
— O amor conserta tudo.
— Amor entre homem? — Ela nega com a cabeça.
— Amor de mãe, de irmão, de namorado, de filhos e de amigos... não
existe preliminares. Saiba apenas que o amor puro e sincero é capaz de curar
e salvar almas como a sua, que só conhecem a maldade. Por isso que digo,
permita se entregar para que enfim, possa conhecer a verdadeira felicidade.
— Obrigada — sussurro, ela assente, sorrindo para mim. Sinto inveja
do seu sorriso e da luz que transluz dela, não faço ideia da última vez que eu
sorri, se sequer sorri algum dia.
Depois de sair da terapia com o coração abafado e mente carregada de
dúvidas e incertezas, vou direto a uma loja de roupas, compro o necessário
mesmo sem saber o seu tamanho e volto para casa.
No caminho acabo ligando para Gana, eu não a vi hoje, o que me
preocupou, mas um alívio vem logo quando atendeu a ligação com seu
entusiasmo de sempre.
Chegando no meu apartamento, coloco o ouvido na porta para escutar
algum barulho, rodo a maçaneta e entro, prendendo a respiração quando o
vejo, meu coração salta e meu estômago se contorce pela cena que estou
presenciando.
Ruslan se encontra sem camisa no meio da sala fazendo flexão, os
músculos de seus braços estão definidos, suor escorre por seu corpo e seus
ombros largos o deixam ainda mais... lindo. Engulo em seco, ele me olha sem
parar o movimento, abro a boca para dizer algo, mas nada sai, meu coração
bate tão acelerado que sinto dificuldade de respirar.
Desvio o olhar incapaz de continuar encarando-o dessa forma, coloco
as sacolas em cima da mesa e fecho os olhos, acalmando esse sentimento que
está me deixando confusa.
— Tu demoraste — solto um grito de susto quando sua voz soa perto
de mim, me viro dando de cara com ele. Ruslan está perto demais, consigo
sentir seu calor, sua respiração e o cheiro do seu suor.
Ele é grande, ou eu que sou pequena? Olho para seus olhos que
queimam enquanto me encaram, limpo a garganta e me afasto, apontando
para as sacolas.
— Comprei algumas coisas para você — declaro, nervosa.
— Comprastes para mim? — Pergunta surpreso, assinto.
— Sim, comprei sabonetes, desodorante, creme de barbear... — Abro a
sacola quando ele não se move. — Comprei também algumas roupas para
você usar, não sabia o seu tamanho, então arrisquei assim mesmo. Não é de
qualidade porque não... tenho muito dinheiro, usei minhas reservas e tem
comida para Rony também.
— Preocupastes comigo? — Olho para Ruslan que me encara
intensamente, dou de ombros como se isso não fosse nada.
— Você precisa de ajuda...
— Muito obrigado — aperto meus lábios e assinto, vendo seus olhos
brilharem, talvez de emoção?
Se é, eu não faço ideia, mas me sinto renovada por estar deixando-o
alegre, está na hora de tentar superar meus traumas e meu passado, tenho que
desabrochar como uma rosa, porque quero ser feliz, pelo menos uma única
vez quero poder sorrir.
É inexplicável a sensação de liberdade, de poder sentir o vento no
rosto, do cheiro da cidade, das pessoas indo e vindo... teve tantas mudanças
desde a última vez que vi essa cidade. Eu era um garoto que vivia na parte
mais pobre de Kharkiv, vendendo rosas para ajudar com o sustento de casa,
antes de ir preso.
Escondo mais meu rosto com o capuz, mesmo que esteja fora do
Colony, ainda sou um criminoso e posso ser facilmente reconhecido. Não foi
fácil chegar até Laura, a única pessoa que eu tinha certeza que poderia me
ajudar, foi uma jogada, poderia dar certo ou errado, mas no final não teria
nada a perder mesmo, só voltaria para minha cela.
Só que seus olhos pediam socorro, não consegui por nenhum segundo
me esquecer dela, sabia que seria um risco... é um risco estar com ela, mas...
preciso de Laura, quero entender porque mexe tanto comigo dessa maneira.
Ando em um beco escuro sendo engolido pela escuridão, passei 24
horas fugindo da polícia, comendo sobras do lixo e até mesmo roubando. O
objetivo era encontrar a AS e quando achei, meu peito pulou de alívio. Vê-la
sem ser algemado foi um prazer incomparável.
Olho para cima, para o muro que dá acesso ao telhado, não perco tempo
e escalo, me aconchego no telhado como um gato que deseja passar a noite ao
luar. Encosto a cabeça na chaminé, a última vez que sentei no teto desse bar
foi há 14 anos atrás quando terminei meu primeiro e único namoro. Ela se
chamava Veronika, olhos âmbar, sorriso sonhador e coração puro, não
terminamos porque queríamos, ela estava indo embora e não havia condições
de mantermos um relacionamento à distância.
Encaro a casa simples diante de mim, as luzes estão ligadas, há dois
carros na garagem que não existiam antes. A casinha onde eu morava,
continha apenas dois cômodos, era desgastada, mas havia amor ali,
cuidávamos um do outro.
Perdi a conta de quantas vezes vi minha mãe chorar por não ter
condições de nos alimentar. Dormir com fome se tornou um hábito na nossa
rotina, por isso comecei a vender rosas com a ajuda do meu tio, que também
lutava para levar comida ao seu filho.
Era pouco, mas no final do dia sempre tínhamos algo para comer. Ver o
sorriso da minha mãe se tornou meu objetivo, até que o vi se quebrar quando
o martelo do juiz bateu, declarando minha sentença. Okasana não chorou, ela
apenas me encarou com decepção, foi o pior olhar que já senti. Não tínhamos
dinheiro para advogados, nenhum quis pegar minha causa, então tive minha
voz silenciada, naquele dia pensei que seria para sempre.
Ela nunca me visitou, nem sequer me ligou, ninguém da minha família.
Fui largado sozinho em meio a estupradores, assassinos e traficantes... não
consigo esquecer de tudo o que passei.
Noto um movimento através da janela, meu coração salta querendo
apertar aquela campainha e dizer que voltei para casa, mas eles não me
querem, nessa altura, já devem saber que fugi. Aqui deveria ser o primeiro
lugar que pediria ajuda, mas será o último, porque entre eles existe o mal.
A porta da frente se abre e um homem alto sai de dentro, minha
garganta se fecha ao ver o quanto meu irmão cresceu, mesmo distante, sei o
quanto lutou para dar uma vida melhor para nossa mãe. A casa reformada, os
carros na garagem... obra dele com certeza.
Foi muito difícil para nossa família quando nosso pai faleceu após um
infarto, embora tenha sido uma fase complicada, não deixamos de acreditar
que tudo era possível. Meus irmãos se afundaram nos estudos, minha mãe e
eu sempre correndo atrás de dinheiro para ao menos sustentar a internet que
usávamos para estudar.
Agora vendo-os, sei que conseguiram, mesmo sem mim, eles
conseguiram vencer e sinto uma tristeza tão grande em meu coração que a
vontade de desistir de tudo se torna maior do que posso suportar. Levanto-me
e desço do telhado, preciso me afastar antes que me quebre ainda mais.
Ando pela madrugada vazia e escura assim como meu coração, a única
coisa que me conforta em todo o caminho é esse casaco que Laura comprou
para mim. Sinto-me tão confortável perto dela e ao mesmo tempo tão agitado.
Depois de duas horas de caminhada, volto para o apartamento, entrando
em silêncio. Rony me recepciona, não ligo a luz para não a acordar, mesmo
que eu queira olhar mais uma vez para seus olhos que me fazem sentir a
liberdade dentro de mim.
Entretanto, Laura tem segredos, esconde uma dor dilacerante em seu
coração, que desperta em mim a vontade de desvendá-los. Quando a segurei
para evitar que colidisse com a panela quente, vi seus olhos adquirirem um
brilho de pavor. Me assustei com sua mudança, e depois que voltou do
banheiro com suas mãos vermelhas, meu coração se partiu.
Ela é tão quebrada quanto eu, e isso... me deixa puto, querendo acabar
com quem fez isso com ela.
Me aconchego no sofá com Rony aninhado em minhas pernas, esse
gato se adaptou tão bem, que parece que já morava aqui há muito tempo. A
exaustão vai tomando conta de mim e quando fecho meus olhos me vejo
outra vez dentro do inferno em que vivi.
Se passaram meses desde que me colocaram aqui dentro junto com
homens sem escrúpulos. Não foi fácil lidar com eles, a superlotação da
unidade 69 é assustadora. Meu nome logo caiu na boca de todos do presídio,
eu era conhecido como o assassino de sangue frio, para minha sorte, eles se
mantiveram afastados.
Não faço ideia do que esperar, absolutamente nenhum dos detentos
chegam perto. É assustador sentir olhos me observando, calculando e
planejando algo contra mim. Assassino, todos são, mais como fui titulado
como assassino de mulheres, acreditam também que eu estuprava minhas
vítimas... coisas horríveis sobre meu nome rolam pelas celas. Tenho que ficar
em alerta, pois o perigo se aproxima.
Um garoto de 18 anos, inocente e estuprador é tudo o que eles mais
anseiam. São sentimentos acumulados dentro de cada homem sombrio
presente aqui. O estresse, a comida feita de merda, e as rixas com outros
detentos pertencentes as gangues é extremamente assustador, aqui você se
encaixa ou se fode.
Abro meus olhos quando escuto passos, não sei quantas horas são, mas
é madrugada, hora em que os demônios se levantam e olhos se fecham. Meu
coração acelera, ergo a cabeça e lá estão eles em frente à minha cela.
Meus colegas não se mexem, fingem que nada está acontecendo, como
eles conseguiram as chaves da cela eu não sei, mas o olhar de pura maldade
me apavora.
— A bichinha estava dormindo? — O líder deles fala com um sorriso
maléfico, me levanto quando três deles entram e vem em minha direção,
tento gritar, mas um deles acerta o punho em minha boca tão forte que fico
zonzo.
— É bom matar, não é? — Olho para o líder que coloca o dedo na
boca pedindo silêncio. — Quanto mais você relutar, pior vai ficar.
Eles me arrastam para fora da minha cela, tento lutar assim mesmo,
um deles me amordaça para que eu não grite. Vários detentos se levantam e
me olham através das grades das suas celas. Joraslav é o líder, ninguém
ousa ir contra sua palavra. Traficante e assassino, sentenciado à pena
perpétua, mas isso não o impede de fazer suas merdas, pagando suborno e
botando o terror. Joraslav construiu seu reinado aqui dentro.
Sei que ninguém vai me ajudar, fui deixado à própria sorte. Nem todos
os detentos novatos são bem vindos, não quando chegam com título de
estuprador. Não faço ideia de quem espalhou esse boato, mas sei que ele
quer o meu mal.
— Carne nova... hum... agrada-me muito — sou colocado de joelhos no
chão sujo do banheiro coletivo. — Vamos lá, o que sentia quando matava? —
Joroslav se agacha e segura meu queixo com força.
— Vamos fazê-lo sentir prazer, chefe — um dos que está me segurando
fala, espalhando tremor por meu corpo.
Balanço a cabeça, quero dizer que não foi eu que fiz essas coisas
horríveis com essas mulheres, que não matei ninguém. Desespero me
consome, e quando seus olhos insanos se encontram com os meus, tenho
certeza de que não importa o que eu falar, ele nunca irá acreditar.
Joroslav agarra meus cabelos com força e me arrasta até a privada
cheia de mijo e merda, meu estômago revira quando ele afunda minha
cabeça, me debato quando o ar do meu pulmão desaparece. Ele vai me
torturar até eu não aguentar mais, Joroslav vai fazer pior a cada dia, serei
seu novo brinquedinho.
Escuto risadas excitantes, ele retira minha cabeça de dentro da
privada, tiro com desespero a amordaça e arfo em busca de ar. O fedor me
dá ânsia e quando penso que acabou, ele repete várias e várias vezes até eu
achar que não consigo mais aguentar e começo a engolir a água suja,
vomitando junto ao sentir o sabor da podridão.
Joraslav me afasta da privada e me joga no chão, começando a
agressão com chutes e socos. Choro em desespero, choro por medo, choro
por estar sozinho sem entender o porquê me colocaram aqui. Eu não fiz nada
de errado, queria apenas uma vida melhor para minha família... para mim,
mas o destino tinha outros planos.
Quando estou prestes a perder a consciência, tento chamar por minha
mãe, dizer que não foi eu quem as matei... não sou um assassino, sou apenas
um vendedor de flores cheio de sonhos. Chamo por meu irmão, ele é mais
forte do que eu, mais velho e poderá me salvar, mas ninguém vem ao meu
socorro... então me pergunto o que fiz de errado para merecer tudo o que
está acontecendo? Eu só quero acordar desse pesadelo.
Joraslav segura meu rosto, seu sorriso me dá calafrios, sinto dor por
todo meu corpo e sei que isso é apenas o começo, seu olhar me diz tudo o
que preciso saber.
— Se prepara sua putinha, você acaba de entrar no verdadeiro
inferno...
Arfo ao ser arrancado do pesadelo, meu coração está acelerado, meu
corpo está coberto por suor, minhas mãos estão em punhos e seus olhos estão
arregalados enquanto me encara, apavorada, distante de mim.
Laura sente medo, só que ao mesmo tempo me entende, sei que me
entende, ela vive no mesmo inferno que eu, só que de mundos diferente. Leva
um tempo para me recompor, pisco algumas vezes e olho em volta para me
certificar de que não estou naquele banheiro.
— Ruslan? — Sua voz suave me chama, é um som tão lindo que
passaria a vida toda escutando-a sem enjoar, olho para ela ainda atordoado.
— Você está aqui?
— Sim — murmuro com a voz áspera.
— Você... você estava gritando e chamando por sua mãe — Laura se
aproxima com um copo de água, aceito grato e evito tocá-la.
— Obrigado — agradeço tomando a água em um só gole, é tão
estranho e ao mesmo tempo prazeroso, ter alguém do seu lado mesmo a
conhecendo tão pouco.
— Onde você estava?
— No inferno... — Murmuro, ainda com as lembranças vivas na mente.
— Eu te chamei.
— Me chamou? — Olho para ela surpreso, Laura assente.
— E você acordou — fico encarando-a, admirado não só com sua
beleza, mas com o fato de ser tão... delicada e gentil, mesmo morrendo de
medo. — Quer assistir desenho? — Ela aponta para a tv desligada.
— Por quê?
— Quando acordo de um pesadelo, são a eles que recorro... me ajudam
a me acalmar. — Laura cruza os braços, assinto vendo-a andar até o sofá e se
sentar relutante. Ela pega o controle e liga a tv, me ajeito e fico encarando-a
enquanto assiste Tom e Jerry.
Tristeza é visível tanto em seus olhos quanto em sua alma. Quero poder
pular os muros que a cercam e a libertar da dor que a reprime. Nesse
momento, meu único desejo é vê-la desabrochar como uma rosa, para
iluminar quem quer que esteja em seu caminho, e talvez eu lute... lute para
trazer de volta a ela o sorriso que lhe foi arrancado.
Gana estaciona rente à calçada, seu sorriso iluminado é como o sol após
uma tempestade, fico feliz por poder vê-la bem e alegre. Ela se aproxima e
me entrega um copo quente de café, dou um gole e inspiro fundo sentindo o
calor navegar por meu corpo.
— Sentiste minha falta? — Assinto, ela estremece quando um vento
gelado passa por nós.
— Como consegue ficar com essas minis roupas nesse frio? —
Pergunto, Gana dá de ombros, se encostando no carro.
— Sou acostumada — responde encarando seu café. — Laura?
— Hum? — Ela respira fundo, relutante em me falar o que tem a dizer.
— Estavas aqui pensando... o que achas de eu voltar a estudar? —
Ergo as sobrancelhas surpresa com sua pergunta. — Tá, é ridículo esse
pensament...
— Acho incrível — digo, cortando-a. — Se é o que quer, vai em frente
sem pensar demais, Gana. Você é uma mulher linda e pode ser muito mais do
que uma prostituta. — Ela fica me encarando, seus olhos ficam cheios de
lágrimas.
— Este é o único caminho que conheço.
— Você pode trilhar outro — falo com confiança. — É difícil, mas
você é dona do seu destino, então tem o poder de fazer diferente do que lhe
foi ensinado.
— Agradeço-te por ser minha amiga — balanço a cabeça de leve,
compartilhando os mesmos sentimentos. — Estou achando-te muito
diferente...
— Só... estou tentando mudar também — Gana esboça um sorriso de
canto.
— Esta mudança tem nome? — Nego com a cabeça.
— Me cansei de... sofrer, sabe! — Ela assente, entendendo do que
estou falando. — Vá em busca do que te faz bem, Gana!
— Sim senhora, dona Lauriana Silva! — Reviro os olhos quando ela
bate continência. Entro no carro depois de ter jogado o copo no lixo e acelero
em direção ao meu trabalho, hoje tenho certeza que será agitado.
No estacionamento da AS, avisto uma viatura da polícia parada quase
ao lado da minha vaga. Meu corpo inteiro gela com o pensamento de que
descobriram que estou escondendo Ruslan, mas talvez ela esteja apenas
estacionada aqui sem um propósito específico.
Entro no prédio receosa, diferente de ontem, toda a redação está mais
calma. Adentro na minha sala e congelo ao ver um homem alto, forte e
fardado de costas para mim conversando com meus colegas.
— Ah, tu chegaste! — Aksinya diz se levantando, seu rosto está sério.
Olho para o policial que se vira para mim, prendo a respiração quando
seus olhos verdes se encontram com os meus, seus cabelos são de um loiro
escuro, sua barba por fazer deixa seu rosto marcante, a beleza... a beleza é
intimidante.
Ele sorri para mim, mas sei que não é um sorriso verdadeiro, é só um
gesto de gentileza. Ele se aproxima de mim, dou um passo para trás abalada
com sua presença, minhas mãos começam a tremer, não gosto de tantos
homens em volta de mim sem nem ao menos conhecê-los, ele congela vendo
o pavor estampado em meu rosto.
Não faço ideia do que se passa em sua mente ao me encarar
desconfiado, ele pode estar cogitando que eu sei de algo devido ao meu
comportamento, só que não é por causa do Ruslan. Ele estica a mão para um
cumprimento, eu não retribuo é claro, o que o deixa ainda mais cismado.
— Prazer em conhecer-te, Laura, sou o policial Artem — ele se
apresenta, aperto minhas mãos em punho. — Podemos conversar por um
instante?
Olho para meus colegas que assistem toda a cena com os semblantes
preocupados, quero negar, pedir que vá embora, mas não posso, seria um
risco para Ruslan, então assinto.
— Sim.
— Pode ser no refeitório? — Assinto, ele comprime os lábios e vai em
direção ao local que sugeriu, meu coração está batendo desesperado, inspiro
fundo e o sigo.
Sento-me à sua frente, Artem fica me analisando atentamente, seus
olhos são tão familiares, eles se parecem tanto...
— Como você já deves ter descoberto, Ruslan Rotam fugiu da cadeia,
estou no caso e buscando pistas para trancafiá-lo novamente por ser perigoso
demais para a sociedade. — Não sei explicar, mas não gostei de como se
referiu a Ruslan, nem da forma fria que falou.
— E o que eu tenho haver com isso? — Artem cruza as mãos e as
coloca sobre a mesa, uma tatuagem de rosa vermelha nas costas da sua mão
esquerda atrai meu olhar.
— Você foi a última a ter contato com ele.
— Fui entrevistá-lo, ordens do meu chefe, não fui porque quis — falo
um pouco agressiva, esfrego as mãos enluvadas na calça. — Não estou
entendendo porque um policial quer falar comigo.
— Você alguma vez teve contato com Ruslan além da entrevista? —
Franzo a testa, do que ele está falando?
— Eu nunca o vi em toda minha vida antes do meu encontro com ele,
muito menos sabia da sua história. — Artem assente e abaixa a cabeça.
— Você sabe o quanto ele é perigoso? — Encaro seus olhos. — Ele é
um Serial Killer, manipula as pessoas e faz com que elas acreditem em suas
histórias, principalmente que é inocente. — Ele umedece os lábios e olha ao
redor do refeitório. — Ruslan te falou que é inocente?
— Não — respondo, porque realmente ele não falou com todas as
letras, meio que deixou a entender que não foi ele por declarar que iria matar
quem lhe tirou tudo.
— Nós o consideramos um sociopata.
— Sociopata? — Indago, chocada com sua declaração.
— Os sociopatas possuem uma condição mental caracterizada pelo
desprezo, ou desrespeito às pessoas e normas sociais. Eles são socialmente
irresponsáveis, são falsos e manipulam todos para obter vantagens para si
próprio, como dinheiro, sexo, reputação... assim por diante, mas os sociopatas
podem também querer dominar o outro apenas pela sensação de poder e
controle. — Artem se cala, meu coração está tão acelerado que tenho
dificuldade de digerir toda essa informação.
— Por que está me dizendo isso? — Pergunto com a voz embargada.
— Estou a dizer isso porque muitas das vezes um sociopata pode
apresentar comportamento agressivo e se irritam facilmente, não sentem
empatia e nem remorso das suas ações e conduta. — Balanço a cabeça, estou
confusa sem saber em que ponto ele quer chegar. — Entretanto, além de tudo
o que falei, eles tendem a ser muito autoconfiantes, são charmosos, atraentes
e espontâneos, exercendo fascínio e encanto nas vítimas.
— Não estou entendendo — Artem esboça um sorriso frio, encarando o
fundo dos meus olhos.
— Ruslan é considerado um sociopata, ele sente desprezo por
mulheres, por isso que ele as mata de forma violenta. Ele sente prazer no ato,
é excitante o domínio que tem sobre as vítimas. Ele não se preocupa com as
consequências, o que nos leva a temer que volte a cometer os assassinatos.
Ruslan é um perigo para sociedade, por isso precisamos encontrá-lo.
Contorço minhas mãos, é informação negativa demais sobre Ruslan, ele
não me parece ser tudo isso... certo, quem sou eu para dizer qualquer coisa,
sendo que nem o conheço? Talvez as palavras de Artem estejam certas, estou
abrigando um sociopata, mas..., mas por que sinto que tudo o que está
falando sobre ele é mentira? E se Ruslan estiver realmente me enganando e
me manipulando?
— Certo, quero entender por que devo escutar tudo isso? — Artem
arqueia uma sobrancelha, então é quando entendo, ele está jogando comigo,
me... manipulando para que eu conte que estou com Ruslan.
— Tudo indica que ele pode ter ido atrás de você.
— Por que ele viria atrás de mim? — Pergunto, ficando irritada.
— Você é uma vítima fácil para ele cometer atrocidades...
— Olha Artem, eu entendo que quer encontrar um criminoso de alta
periculosidade, mas comigo não vai conseguir informações além das que já
lhe dei, não faço ideia de onde ele possa estar, Ruslan não veio atrás de mim
e eu só me encontrei com ele por menos de uma hora. — Sustento seu olhar,
fazendo com que acredite em cada palavra minha.
— Laura, se ele fosse atrás de você... você o deixaria entrar? —
Escondo a surpresa da sua pergunta e tento me manter ilegível, Artem é
muito inteligente, sabe que escondo alguma coisa, além de tudo, sabe onde
tocar para obter suas respostas, e esse seu jeito não me agrada, nem um pouco
se quer saber. Artem é um homem estranho e dele eu quero distância.
— Ruslan é um assassino, — digo me levantando — se me der licença,
preciso voltar ao trabalho.
— Por que estás alterada, Laura? — Ele se levanta também, me
assustando. — Se não esconde nada, por que temer? — Ranjo os dentes de
raiva, vejo prazer em seu olhar como se tivesse descoberto algo interessante.
— Eu vivi anos com um psicopata, e esse mesmo me fez ter aversão às
pessoas, principalmente homens que nem você. Então, se quiser me ver outra
vez, policial Artem, que seja com ordens de um juiz. — Seu sorriso
desaparece quando me calo, ele estreita os olhos e quando vai dizer algo, dou
as costas, deixando-o sozinho.
Não gostei dele, do jeito que fala e do olhar que me direciona. Artem é
articuloso, inspiro fundo controlando meu nervosismo, bato na porta da sala
chamando atenção dos meus colegas.
— Yaroslav, pronto? — Ele se levanta, assente e vem em minha
direção.
Olho para trás uma última vez, Artem está encostado na parede no fim
do corredor com as mãos no bolso, calafrio percorre minha espinha
despertando uma dúvida em mim de quem é o mais perigoso, ele ou Ruslan?
De qualquer modo, tenho que ficar de olhos abertos, se eu baixar a guarda,
algo muito ruim pode vir a acontecer e talvez eu não esteja preparada para
isso.

Dirijo pelas ruas com meus pensamentos presos na conversa que tive
com Artem, algo nele me incomoda, pode ser o olhar astuto ou o sorriso frio,
mas tem alguma coisa por trás daqueles olhos verdes. Entro em um bairro de
classe baixa, onde há crianças descalças brincando na rua, as casas estão
desgastadas e velhas, há mendigos deitados no chão e jovens em grupo
conversando.
Mais adentro, viro em uma esquina que é menos pobre da que estava
passando, aqui as casas são melhoradas, há lojas de flores, sacolão e até um
mercadinho de esquina.
— É esse o bairro onde Ruslan morava? — Pergunto, estacionando o
carro um pouco distante de uma frutaria.
— Creio que sim... — Yaroslav diz olhando para o gps. — É aqui!
Desço do carro e olho em volta, as pessoas nos encaram desconfiadas,
garotos param de conversar para nos observar, meus olhos são atraídos para
uma senhora que está borrifando água nas frutas. Apanho minhas coisas e
com Yaroslav ao meu lado, me aproximo dela.
— Senhora Bohuslava? — Pergunto, ela nos olha com as sobrancelhas
franzidas e cara de poucos amigos.
— Sim, o que querem?
— Meu nome é Laura e esse é meu colega Yaroslav, somos colunistas
do jornal AS, gostaríamos de fazer algumas perguntas relacionadas a Ruslan
Rotam — a senhora diante de mim congela, seu rosto adquire uma expressão
assustada, despertando em mim um alerta nada agradável.
— Senhora? —Yaroslav a tira do transe, Bohuslava fita seu rosto e
limpa a garganta, tentando esconder sua surpresa.
— Perdoem-me, mas não tenho nada a declarar — diz, voltando a
borrifar as frutas e desviando o olhar, reparo que suas mãos ficam trêmulas,
olho para meu colega que dá de ombros.
— Peço desculpas por nossa insistência senhora, mas estamos
documentando a vida de Ruslan...
— Como já disse, não tenho nada a falar.
— Soube que a senhora é muito amiga da mãe dele e que o viu crescer
— ela me olha com raiva. — Por favor, só queremos a verdade! — Lanço lhe
um olhar de súplica, porque preciso desse emprego e claro, descobrir mais
sobre o criminoso que está abrigado em minha casa
— Ruslan... — Bohuslava suspira, encara as frutas e sorri de leve
perdida nas lembranças. — Eu o vi nascer, assim como seus outros irmãos,
mas ele era diferente...
— Diferente como? — Pergunta Yaroslav, pego meu gravador.
— A senhora se importa se eu... gravar? — Ela fica me encarando
receosa, sustento o olhar dando-lhe a confiança que precisa, Bohuslava
assente.
— Ruslan tinha uma alma livre antes do seu pai falecer. — Bohuslava
entra na frutaria, seguimos ela enquanto borrifa água nas outras frutas.
— Ele era um bom garoto? — Pergunta Yaroslav.
— Ruslan era o melhor garoto que já conheci, era sonhador,
trabalhador e muito, mas muito carinhoso. — Ela sorri para nós com os olhos
brilhando. — Uma vez, ele percebeu o quanto eu estava triste, então veio até
mim e sem dizer nada, me entregou um botão de rosas vermelhas e disse-me
que tudo iria passar. Pode ser algo bobo, mas aquele garoto iluminou meu
dia.
Bohuslava nos entrega uma maçã gentilmente, aceito evitando que me
toque, ela me encara e sorri.
— Ele gosta de... rosas? — Pergunto, a senhora assente.
— Ruslan era apaixonado por elas, desde que nasceu sempre gostou de
flores.
— Pelas informações que temos, — Yaroslav fala — Ruslan vendia
rosas para ajudar a família, correto?
— A família Rotam nunca teve muito dinheiro, sempre passaram por
dificuldades, mas Lemmar, seu pai, sempre conseguiu sustentar a família,
nunca deixou de colocar comida no prato, até... falecer. —Sinto um aperto no
coração da forma triste que Bohuslava fala. — Okasana nunca tinha
trabalhado na vida, a crise econômica dificultou em arrumar um emprego
decente, então ela fazia faxinas, não ganhava muito, mas o pouco dava para
alimentar seus filhos, só que tinha dias em que ela não conseguia dinheiro.
Infelizmente muitas noites eles dormiam sem se alimentar, e mesmo assim,
Ruslan não tirava o sorriso do rosto. Foi nessa época, incapaz de ver a família
sofrer que começou a vender rosas.
— Ele conseguia ganhar muito? — Pergunta Yaroslav, Bohuslava dá
de ombros.
— Era o suficiente para levar comida para casa. — Ela respira fundo.
— Ruslan trabalhava dia e noite, fazia sol ou chuva, ele estava lá na esquina,
nos bares, restaurantes, parques, vendendo suas flores. Fazia de tudo para
ajudar seus irmãos.
— A senhora nunca percebeu algo diferente nele? — Pergunto. —
Ruslan escondia segredos? Era agressivo ou algo parecido? — Bohuslava
nega com a cabeça.
— Ele era um garoto abençoado — ela cruza os braços.
— Como foi sua reação ao descobrir que ele era um... assassino? —
Bohuslava abaixa a cabeça, ela aperta os lábios.
— Não acreditei que isso fosse possível, porque Ruslan era incapaz de
matar uma mosca, ainda mais tantas mulheres. — Ela balança a cabeça,
incrédula. — Era impossível naquela época, mas as provas estavam lá,
esfregando na minha cara que aquele garoto que vendia flores com um
sorriso lindo, era um perigo para qualquer mulher.
— Como ficou a família? — Yaroslav pergunta, curioso.
— Destruídos...
— A senhora acredita que ele pode ser inocente? — Ela me encara. —
Hum... que alguém armou para ele? — Yaroslav me olha surpreso com minha
pergunta.
— Eu não sei, é confuso... — Bohuslava diz, descruzando os braços e
se afastando. — Desculpe-me, mas não quero mais responder suas perguntas,
já falei demais.
— A senhora sabe que Ruslan fugiu da cadeia? — Ela assente,
ajeitando as frutas uma em cima da outra.
— Sim, eu vi na tv.
— O que achaste sobre o ocorrido? — Yaroslav insiste, ela congela e
nos olha.
— Eu acho que é uma ferida que não deve ser tocada e que vocês
devem ir embora. — Umedeço meus lábios, quero que fale mais, porém, não
quero irritá-la ao ponto de futuramente não querer mais nos ver.
— Muito obrigada pelo tempo que dispôs a nos dar, senhora Bohaslava,
sinto por termos a incomodado. Tenha um ótimo dia! — Ela assente, olho
para Yaroslav e saio da frutaria.
Dentro do carro, encaro a maçã que me deu, pensando em Ruslan no
passado, como um garoto tão amado pôde se tornar um assassino de sangue
frio?
— “Eu acho que é uma ferida que não deve ser tocada” — Yaroslav
imita Bohuslava, me despertando do devaneio, olho para ele que parece
irritado. — Por que isso soou estranho? — Ele me fita com a mesma
desconfiança que eu.
— Porque algo está muito mal contado.
— Você acha? — Inspiro fundo, fitando a fruta em minha mão.
— Tenho certeza!
Estar do lado de fora das grades depois de anos é como aprender tudo
de novo, é andar por um caminho desconhecido que você não está preparado
para enfrentar.
Mesmo que eu tenha assistido tudo mudar através de uma tv, nada é a
mesma coisa que ao vivo. O cheiro de comida, o timbre da voz das pessoas,
as risadas de crianças... tudo muito diferente de 14 anos atrás.
Embora eu esteja vagando pelas ruas, ainda não estou livre, posso ser
preso a qualquer momento e sou uma presa fácil para qualquer delator que
esteja interessado na recompensa que colocaram em minha cabeça.
Arranco o papel grudado na parede com minha foto e o jogo no lixo
com um pouco de raiva. Se eles tivessem ao menos me ouvido... se tivessem
investigado mais a fundo... não teriam destruído minha vida e nem da minha
família.
A raiva que sinto não é por causa da verdade não dita, mas também da
injustiça que fizeram com um garoto repleto de sonhos. Engulo o nó que se
formou na garganta ao vê-la sair da frutaria da Bohuslava, a mulher que me
olhava com fervor, com orgulho e amor, tão mais velha que percebo o tanto
que perdi.
Olho para o céu alaranjado, indício de que o verão vem vindo, pisco
para dissipar a dor que esmaga meu coração por não poder ao menos, sentir o
cheiro das pessoas que amo.
Sua voz navega por meu corpo... a voz que me fazia dormir, que me
incentivava a continuar... a voz que tanto amo. Espio através do muro do
beco onde estou escondido.
Seus cabelos estão grisalhos, seu rosto com marcas de uma vida repleta
de provações e tristezas, mas com muitas histórias a contar e aprendizados a
nos dar.
Ela está tão linda!
Quero tanto poder sair de onde estou escondido para correr ao seu
encontro e me aconchegar em seus braços, dizer o quanto me doeu vê-la
sofrer por minha causa, contar a ela tudo de ruim que passei, e que em todos
esses momentos chamei por seu nome, o nome da minha mãe.
Mas nada disso posso fazer, apenas observá-la de longe, dizer mesmo
distante o quanto a amo e que entendo os motivos que a impediu de visitar
seu filho na prisão.
Exalo profundamente ao sentir meus batimentos acelerados, minhas
mãos tremem querendo tocá-la. Será que ela está bem? Será que ela ainda se
lembra de mim ou será que ela me esqueceu? Ela está feliz?
Espero que esteja feliz.
Ajeito meu capuz e a máscara no rosto quando começa a caminhar na
direção de casa. Viro e adentro mais ao fundo do beco, coloco as mãos no
muro, sentindo a superfície gelada devido ao frio. Dou um passo para trás e
com impulso escalo o muro, aterrissando do outro lado, em um outro beco.
É impressionante como muitas coisas se mantém iguais, principalmente
minhas lembranças de quando fugia das normas do meu tio. Eu sabia
perfeitamente por onde correr e como me esconder.
Espero mais alguns segundos encostado na parede a espera dela. De
onde estou, consigo ter o vislumbre da minha casa reformada, ela me olha
com saudade, é como se estivesse feliz por me ver. É apenas a casa onde
passei os melhores dias da minha vida, mesmo passando fome e necessidade,
ali era o meu lar.
Fecho os olhos ao escutar seus passos lentos, pesados e cautelosos, ela
não mudou nada, sempre cuidadosa por onde vai. Mamãe cantarola baixinho,
uma mania que tem de se desligar de tudo enquanto caminha pelas ruas.
Que saudade!
Inspiro fundo e quando ela vai passar por mim, saio do beco com a
cabeça baixa, esbarrando em seus ombros e fazendo-a derrubar uma sacola.
— Oh, senhor! — diz se agachando para recolher as maçãs.
Sua voz penetra em meu coração, fico congelado vendo-a pegar as
frutas de forma calma, ela fala alguma coisa, mas não consigo reagir. De
todos esses anos, essa é a primeira vez que fico perto da primeira mulher que
já amei em toda minha vida.
— Eu compreendo que deves estar com pressa, mas tenha cuidado —
resmunga, me despertando.
— Perdoe-me meu descuido — digo, me agachando e ajudando-a a
apanhar as frutas, minhas mãos estão trêmulas e sinto a emoção me consumir
aos poucos, meu coração bate tão acelerado que começa a doer.
— Assim está bem — fala pegando a sacola de minhas mãos, então ela
congela quando a toco sutilmente.
— Perdoe-me — sussurro, não por ter esbarrado nela, mas pelo
sofrimento que a causei.
Quando ela vai erguer a cabeça para me olhar, me levanto apressado e
volto para o beco, me misturando com as sombras. Ouço um arfar, olho para
trás, assistindo-a pegar uma rosa que deixei no chão ao seu lado.
Ela sabe que era eu... toda mãe sabe quando está de frente para o seu
filho.
Escalo mais uma vez o muro e quando aterrisso do outro lado, deixo
me cair em um choro engasgado. Foi tão difícil me segurar para não a
abraçar, e dizer que estava de volta.
Me levanto segundos depois, recompondo-me da desolação que estou
sentindo, é como se nada fosse capaz de preencher o buraco em meu coração.
Não sei se um dia serei capaz de me recuperar. Quem sabe quando eu o
colocar no lugar em que sempre pertenceu, provando minha inocência, assim
poderei finalmente...
Escuto uma sirene sutil de polícia fazendo meu coração saltar em
desespero. Apresso meus passos, pulo alguns muros entre um beco e outro
tomando cuidado para não ser visto.
Fico escondido até a noite cair, sendo melhor para vagar entre as ruas
de Kharkiv sem que chame atenção. Estremeço com o vento gelado, sempre
olhando para todos os lados à procura de qualquer perigo.
É fácil eu me perder, minha mente sempre me leva para os lugares e
momentos em que quero esquecer. Coloco as mãos dentro do bolso da blusa
de moletom, as poucas pessoas que passam por mim não dão a mínima para
um homem vestido de preto, com capuz e uma máscara, para eles estou
apenas me escondendo do frio.
Paro em frente a um prédio em construção, há luzes espalhadas por
cada canto, máquinas estão ativas e escuto comandos, conversas e ordens dos
trabalhadores que provavelmente irão passar a noite levantando esse prédio.
Olho para cima, avistando dois homens vestidos de amarelo com
capacete e de repente sou levado para lá, para o inferno em que vivi por tanto
tempo.
Seis meses se passaram... seis longos meses de tortura, sofrimento e...
fecho meus olhos sem conseguir dizer a palavra, envergonhado e enojado
com toda essa situação.
Às vezes desejo morrer para que tudo isso acabe, pois a cada dia que
peço para que isso acabe, pior fica. Jaroslav não tem compaixão, então
quando percebe que possivelmente eu possa ter me acostumado com certa
tortura, na próxima ele pega mais pesado, é mais violento e impiedoso.
Sou o brinquedo de um lunático, tornei sua vida menos entediante,
trazendo diversão para seus dias de prisão. Meu choro, minha súplica, meu
sofrimento é tudo o que ele deseja e a morte é tudo o que eu peço.
Sem nenhuma visita ou respostas de um possível erro, assisto minha
vida sendo destruída, meus sonhos desaparecendo e minha esperança se
esvaindo. Não entendo como uma pessoa poderia fazer isso com um garoto
inocente, eu vi seus olhos queimarem de ódio naquele beco, eu senti como me
olhava com ódio, mas nada foi dito.
Caminho pelo corredor depois das celas serem abertas para a hora do
banho de sol. A superlotação é assustadora, qualquer movimento errado
pode te colocar em perigo, aqui todos estão prestes a explodir e você não
pode fazer nada contra isso.
Estou há dois dias sem comer, Jaroslav faz de tudo para que eu
implore até mesmo por um prato de comida. Nenhum detento ousou desafiar
o senhor do presídio, mesmo me lançando olhares de pena, muitos de
indignação, eles não seriam tão burros ao ponto de ir contra Jaroslav.
Estou inerte em meus pensamentos até que sinto um empurrão nas
costas, dou dois passos para frente batendo em um muro de músculos. Olho
para cima já apavorado, Ararat sorri com malícia, meu coração dispara ao
lembrar dele atrás de mim, obtendo seu prazer doentio enquanto os outros
assistiam com diversão.
— Fugindo, hein? — Engulo em seco, apavorado, sou puxado para
longe de Ararat, seguro no corrimão ao sentir um aperto forte na minha
nuca.
— Tu precisas fazer uma coisinha para o Senhor Joroslav —
reconheço a voz de Zelai, seu capanga fiel, engulo em seco olhando para
baixo.
As celas da unidade 69 ficam em vários andares, a minha é no terceiro,
podendo assim ter uma queda nada agradável daqui de cima.
— Porém, antes precisamos fazer uma coisinha — solto um grito de
pavor ao sentir erguerem minhas pernas e as jogarem do outro lado, em
instantes me vejo pendurado e agarrado ao corrimão, o peso do meu corpo
não ajuda, fazendo com que eu escorregue.
Tanto Ararat, quanto Zelai, caem na gargalhada vendo meu desespero,
sinto vontade de soltar e deixar-me cair, só que algo me impede de tomar
essa decisão que pode levar minha vida.
— O negócio é o seguinte, putinha — Zelai se inclina no corrimão. —
Você receberá uma visita íntima, pegará o que ela te entregar e nos trará. —
Seguro mais firme ao escorregar, minhas mãos começam a soar, olho para
baixo, vários detentos pararam para observar, os guardas nem ligam para o
que acontece aqui.
— Acho que não entendeu — solto um gemido de dor sentindo uma
lâmina afiada rasgar minha pele. Ararat sempre carrega uma com ele, e é a
mesma que causou ferimentos por toda parte do meu corpo.
— Tenho a sua resposta? — Zelai pergunta, quero poder recusar por
já saber do que se trata e o que querem, mas... é pedir para morrer.
— Sim... sim... — Murmuro, eles sorriem.
— Às 18:00 horas um guarda irá te buscar, bico calado e quando nos
entregar, pensamos em facilitar as coisas. — Zelai diz se afastando, Ararat
se inclina, rodando o canivete em seus dedos, me encarando de um jeito
doentio e asqueroso.
— Depois se prepara, te encontro na sua cela depois da hora de
recolher — pavor dispara meu coração, de novo não... não... não... Ele sorri
de prazer vendo-me apavorado, me lança mais um olhar e se afasta, me
deixando pendurado.
Um choro se instala em minha garganta, quero tanto poder soltar esse
corrimão e acabar com todo esse sofrimento. Penso, olho para baixo e penso
se isso vale a pena, serei apenas mais um criminoso morrendo, não farei
falta, então realmente penso, chegando à conclusão de que é a melhor coisa
a se fazer.
Fecho meus olhos, relembrando dos momentos que vivi fora daqui,
onde era feliz com o pouco que tinha. Deixo minhas mãos escorregarem,
porque é isso o que eu quero, desaparecer.
— Nada disso, moleque! — Mãos seguram meu pulso e me impulsiona
para cima, colocando-me no chão firme de volta. — Não será hoje que fará
isso.
Me levanto com ajuda de alguns detentos, não olho para nenhum em
especifico, apenas assinto e caminho em direção à minha cela, quebrado e
dilacerado demais para contestar qualquer decisão que fizeram por mim.
Sentado na cama eu espero, aguardo a hora que me falaram com o
olhar fixo no meu novo machucado, faço com que minha mente se desligue, a
cada dia fica mais fácil deixar com que ela vague, esquecendo-me do que
está acontecendo ou do que me fazem todas as noites.
Quero lutar contra todos que me fazem mal, quero que parem de me
machucar, de me humilhar e me usar como um brinquedo. Quero me
reerguer e mostrar que sou forte, mas... nada disso acontece, porque sou
fraco e sou a minoria e estou sozinho.
Esfrego meu rosto, as horas se passam e eu me mantenho imóvel,
encarando minhas mãos entrelaçadas. Sou despertado quando um dos
guardas bate na grade, me viro para ele.
— Visita íntima, 179 — diz, ando até ele, viro de costas colocando as
mãos na abertura da grade para que me algeme.
O guarda me tira da cela e me leva por entre os corredores. Jaroslav
me lança um olhar mortal quando passo por sua cela, deixando claro que se
der algo de errado, pagarei caro por isso. Ódio e nojo me consomem ao
encarar seus olhos, desvio segundos depois sem coragem de desafiá-lo.
Ando com a cabeça baixa, sem prestar atenção por onde estão me
levando, me sinto amortecido, sozinho e dolorido, meus machucados sempre
inflamam e os homens de Jaroslav não são gentis.
Um outro guarda me revista, me entrega uma toalha, forro de cama
limpos e um pacote de preservativo, sou empurrado para dentro de uma sala
e trancado ali dentro. Respiro fundo olhando pelo cômodo até prender meu
olhar em uma mulher com pouca roupa, maquiagem forte e um salto agulha.
— Olha o que me trouxeram — ela diz, passando a língua nos seus
lábios vermelhos vibrantes. — Own... tão novinho!
Ela se aproxima, seu perfume forte impregna minhas narinas, ela
passa a mão por meu rosto, me analisando. Ela apanha o preservativo o
prende entre os dedos, sorrindo para mim.
— O que achas de aproveitarmos enquanto isso? — Ela aguarda
minha resposta, desço os olhos por seu corpo, peitos fartos, cintura fina e
pernas torneadas.
— Acho que não — recuso, porque não faço ideia de quem ela possa
ser para Jaroslav, porque se algo a mais acontecer, pode sair muito caro
para mim.
— Ele te avisou que não poderia me comer? — Pergunta, começando a
tirar suas roupas, sinto meu pau endurecer ao vê-la completamente nua...
porra, ela é atraente!
Engulo em seco, apertando a toalha e o forro que ainda seguro. Sinto-
me esquentar quando ela se vira de costas, sua bunda empinada revira meu
ser, aflorando meu desejo.
— Não se preocupes com o que ele diz — ela fala, se engatinhando até
o meio da cama, prendo a respiração ao assisti-la se apoiar nos cotovelos e
abrir as pernas lentamente com os olhos presos em mim.
— Não posso arriscar — sussurro, sentindo meu pau pulsar
desesperado querendo afundar no seu interior, e quem sabe, me dar um
alívio e prazer que talvez eu precise.
— Ninguém irá contar, será nosso segredo — prendo a respiração,
observando-a se masturbar... céus...
Dou um passo à frente, ela joga a cabeça para trás gemendo, me
enlouquecendo, só que de repente, congelo. Meus olhos arregalam ao notar
ela tirando vários pacotinhos de dentro da sua buceta.
— Isso... isso...
— Cocaína, bebê — revela, gemendo mais um pouco enquanto tira um
por um, me surpreendendo. — Jaroslav não te falou?
— Eu imaginava.
— Hum... — Murmura, se masturbando e tirando mais drágeas de
dentro dela. — Agora tira as roupas e venha fazer o resto do trabalho.
Fico estagnado olhando para ela sem saber se devo fazer isso. Meu
pau pede desesperadamente por ela, encaro sua intimidade, ela está tão
excitada...
— Vamos, antes que eu fique irritada — diz com raiva, ao mesmo
tempo em que geme ao colocar os dedos dentro da sua buceta.
Engulo em seco, mesmo receoso tiro minhas roupas. Seus olhos
percorrem meu corpo magro até se prender na minha ereção.
— Ótimo, nada mal para um garoto — ela se abre mais, mordendo
seus lábios com sedução. — Chegue mais bebê, temos mais para tirar de
dentro daqui.
Me aproximo dela sem jeito, paro no meio de suas pernas e a vejo
fechar os olhos e sorrir. Inspiro fundo, sentindo o tesão ficar insuportável de
aguentar, então com cuidado e delicadeza, começo a masturbá-la, assim
como estava fazendo.
— Isso, bebê... — murmura com a voz embargada.
Ela se remexe ao meu toque querendo mais, então com dois dedos
afundo na sua boceta, sentindo-a pulsar. Sua pele macia e quente me deixa
ainda mais louco, até que sinto. Seguro firme e retiro de dentro dela um dos
pacotinhos, repito umas cinco ou sete vezes, perdendo a conta devido ao
desejo.
Quando não encontro mais, ela me lança um olhar fervente. Quero
transar com ela, só que... não sei se posso. Ela ergue a camisinha, rasga a
embalagem e com um sorriso safado estende para mim.
— Agora venha, temos mais uma hora — pego de sua mão e ajeito a
camisinha no meu membro.
Se é para transar com ela eu não faço ideia, mas depois de tantos
meses aqui, fazer sexo será a primeira coisa prazerosa que terei, talvez a
única, então paro de pensar nas consequências e avanço em sua direção, me
afundando nela com tanto desejo que quase gozo de imediato.
Não é a minha primeira vez, mas também não é das muitas, nunca fui
um cara pegador, até porque nunca tive tempo para isso, mal conseguia me
alimentar, ainda mais transar com várias mulheres todos os dias.
Fecho meus olhos escutando seus gemidos, ela me leva ao ápice do
prazer, me fazendo esquecer por alguns minutos o que é viver aqui. Quando
meu pau pulsa, reprimo um ganido ao sentir-me gozar, ela me acompanha
com um grito suave.
Me afasto um pouco tonto, minha respiração está acelerada e suor
escorre por meu corpo. Ela esfrega mais uma vez sua buceta e sorri com
malícia, me olhando fixamente.
— Você é delicioso, bebê — ela apanha os pacotinhos de drogas e
volta a me olhar. — Agora abra a boca.
— O quê-ê? — Ela me olha com impaciência, se aproximando.
— Tu achas que essas drogas entraram como dentro da cadeia? —
Engulo em seco, assustado.
— Tu queres que eu... que eu engula?
— Ou engole, bebê, ou teremos que colocar no buraco atrás de você —
olho para trás, mas então entendo.
— No meu ânus?
— Abra a boca, não tenho mais tempo — diz com uma certa fúria.
Claro que não fui enviado aqui para transar com uma prostituta
gostosa, talvez isso seja apenas um bônus do que terei que enfrentar.
Ela segura meu queixo e curva minha cabeça para trás, abro a boca.
— Esses pacotinhos estão muito bem embalados, normalmente depois
de engoli-los, você teria que tomar um medicamento para diminuir a
velocidade de movimento de substâncias pelo trato digestivo, até que os
pacotes sejam recuperados, só que não tenho esse remédio — esclarece,
afundando a droga por minha garganta, engulo com dificuldade. — Se uma
delas se romper, você poderá morrer de overdose, então ao sair daqui não
coma e não beba, evite movimento bruscos até tirá-las de dentro de você.
Assinto, calado e aterrorizado, sem saber onde eu errei para minha
vida chegar a esse ponto. Depois de me fazer engolir todos os pacotinhos de
cocaína, ela se afasta e sorri.
— Prontinho — ela se levanta e me ajuda. — Boa sorte, bebê!
Visto minhas roupas, minhas mãos tremem sem parar, meu coração
palpita tão desesperado que temo o pior. Estou assustado com isso, Jaroslav
me quer como sua mula, aquele que leva drogas para dentro da cadeia sem
que os guardas percebam.
— Visita encerrada — um guarda grita do lado de fora, inspiro fundo,
olho mais uma vez para a mulher que retribui com um sorriso antes de me
virar e sair do quarto, pelo menos agradecido pelos momentos de prazer.
Dois deles me seguram pelo braço me levando para outra sala, uma
vazia e gelada. Olho para eles sem entender o que estão fazendo. Um dos
guardas, esboça um pequeno sorriso... um sorriso frio que revira meu
estômago.
— Tira as roupas — não espero que repita a ordem e as tiro
rapidamente. — Agora vai até aquela parede, coloque as mãos nela e abra
as pernas um pouco curvado.
Engulo em seco e faço conforme ordenou. Fecho meus olhos ao sentir
dedos enluvados entrar no meu ânus à procura de algo que eu esteja
escondendo, mas as malditas drogas estão no meu estômago.
Fecho meus olhos diante de tamanha humilhação. O guarda diz que
estou limpo, se afasta, inspiro fundo e de repente solto um grito quando jatos
de água gelada atinge meu corpo, me lavando e tirando todo o vestígio de
suor e sexo da pele.
Engulo o caroço que se formou na garganta, sinto vontade de chorar,
de pedir para que me levem de volta para minha família porque não sei se
serei capaz de suportar tudo isso dia após dia.
Os guardas me lançam olhares divertidos ao me verem tremer de frio,
eles me entregam uma toalha para que possa me enxugar, visto minhas
roupas e sou levado de volta para minha cela.
Eles me deixam no meu lugar, retiram as algemas e vão embora, eu
apenas espero a hora certa de entregar tudo o que está dentro de mim para o
verdadeiro dono.
Duas horas depois sou mais uma vez levado da minha cela, só que
pelos capangas de Jaroslav. Entro no banheiro fedorento, ele está com os
braços cruzados à espera.
— Coloque para fora, garoto — ele chuta um balde, assinto e com um
pouco de dificuldade para vomitar, consigo colocar tudo para fora, pelo
menos acho que tirei tudo.
Jaroslav sorri, encarando os pacotes que tirei através do vômito. Meu
coração dói devido as batidas descompassadas. Se estiver sobrado um
pacotinho dentro de mim, poderá ser meu fim.
Sobressalto quando ele segura meu pescoço com força, seu olhar
penetra no meu, ao invés de me sentir aliviado, sinto muito mais medo,
porque ele não vai parar.
— Bom garoto — fala, batendo com força em minha bochecha. —
Transaste com ela? — Engulo em seco, nego com a cabeça, mentindo
descaradamente. — Se não, foi burro em não aproveitar, mas me trouxe o
que eu precisava, isso que importa. — Jaroslav se afasta, olha para seus
capangas e acena de leve com a cabeça. — Cuidem dele, acho que ele
precisa aliviar a tensão.
Congelo, arrepio de pavor espalha por meu corpo, Jaroslav sai do
banheiro, me viro devagar e assisto o sorriso de vitória dos dois homens
parado à minha frente. Quero poder gritar, ordenar que não me toquem, mas
é impossível.
Eles avançam, sedentos e me prensam contra a parede, lágrimas
escorrem por meu rosto e fecho meus olhos, fazendo com que minha mente se
desligue de todo esse inferno...
— Ei cara! — Uma voz grossa e firme me tira do passado, encaro o
homem diante de mim, me encarando com a testa franzida, leva um tempo
para me recuperar. — Estás bem? — Pergunta.
Elevo meus olhos, observando mais homens me olhando com
curiosidade. Assinto, voltando para o homem à minha frente.
— Preciso de emprego — digo, ele aperta os lábios. — Não tenho
medo do pesado.
— Você parece perdido — fito seus olhos através dos seus óculos.
— Sim, estou à procura de emprego, mas não encontro.
— Não pagamos muito.
— Não há problemas, só preciso de um emprego — ele assente,
franzindo a testa, olha para trás cogitando meu pedido.
— 150 grívnia[2] a diária — diz, voltando a me encarar.
— Okay! — Concordo, é pouco, mas é um dinheiro bem-vindo.
— Sou Egor, o responsável por essa construção — ele informa, me
guiando para dentro. — Ei Alexei! — grita, me entregando um capacete
alaranjado. — Temos um para substituir Maxim.
Egor bate em meus ombros e aponta para o cara que se referiu ao
Maxim. Ele me diz o que devo fazer, assinto obedientemente prestando
atenção nas suas instruções.
Minutos depois começo a soldar, focando no serviço duro e me
esquecendo do que atormenta minha alma, e assim me desligo tanto do
passado quanto do presente.
Me encolho quando escuto gritos do lado de fora, a voz da minha
mãe está alterada, furiosa. Fecho meus olhos querendo dormir para que tudo
isso acabe, mas sei que não vai acabar, ela vai se afundar na bebida, vai me
deixar sozinha e tudo se repetirá.
Quero tanto fugir!
Depois de longos minutos, tudo fica silencioso, não ouço passos, nem
vozes, apenas as batidas aceleradas do meu coração. Tateio a mesinha ao
lado da minha cama em busca do meu celular. Desbloqueio a tela e entro no
site de novo, pela milésima vez só hoje, esperando, ansiando por alguma
resposta.
Eu vou conseguir!
Sobressalto quando uma porta bate, estremecendo as paredes. Prendo
a respiração, eu sei que é ele. Engulo com dificuldade, seguro o celular com
mais força, olhando pela escuridão do meu quarto.
Ele não costuma ligar as luzes, e quando minha mãe está fazendo
programas, ele sempre vem... foi assim desde que eu tinha sete anos, desde
que minha mãe o trouxe para casa.
Escuto passos pesados, sinto cheiro de bebida, meus pelos eriçam,
minha mente grita para eu fugir, gritar e pedir ajuda, mas meu corpo não me
obedece. As ameaças, a influência que tem na nossa pequena cidade me
impede de pedir ajuda...
Ele disse que se eu contar vai matar minha mãe, e toda vez que o
desobedeço, ele a machuca, a agredindo furiosamente. Só que estou cansada,
tenho medo e meu corpo... meu corpo é repugnante e... e...
Escuto minha porta ranger, meus olhos imediatamente se enchem de
lágrimas, aperto minhas pernas contra a outra, porque dói, ele sempre me
machuca.
Escuto-o se aproximando e parando ao meu lado na cama, aperto o
celular contra o peito, reprimindo o choro. Minhas cobertas são tiradas de
cima de mim, solto um gemido de angústia quando sinto suas mãos subindo
por minhas pernas, quero gritar e pedir para que não me toque, mas isso
resultaria em mais dor, seria mais agressivo e... bateria na minha mãe até
ela não conseguir mais andar.
Quero tanto morrer.... Esse é o pensamento que tenho quando ele sobe
na cama depois de tirar meu pijama, sinto sua pele e já sei que está sem suas
calças, é sempre assim... fecho meus olhos, meu estômago embrulha de novo.
— Viu o que você me fez? — Sua voz faz meu corpo inteiro estremecer
de medo. — Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas pessoas, por isso que
faço isso, ninguém gosta de você, Lauriana.
Solto um gemido ao sentir suas mãos em volta do meu pescoço, abro os
olhos, encontrando seu olhar insano, perverso. Ele está furioso comigo, mas
por quê? O que eu fiz?
— É tudo culpa sua — fala, o brilho de seus olhos é a única coisa que
consigo ver na penumbra. — Ninguém vai te amar, sua mãe não te ama...
Lágrimas escorrem por meu rosto, suas mãos começam a apertar meu
pescoço com mais força, um choro silencioso sai da minha garganta.
— Eu vou te punir por isso — solto um grito quando sinto dor entre
minhas pernas, solto meu celular e seguro seu pulso, tentando fazer com que
diminua o aperto que está me tirando o ar.
Só que não consigo, a dor é demais e hoje... hoje ele quer apenas me
machucar. Fecho meus olhos em um pedido silencioso por ajuda, se eu
tivesse apenas uma pessoa... se uma pessoa pudesse me ajudar, eu... eu...
fugiria desse inferno.
— Nunca te machuquei, mas veja como você me deixa — fecho meus
olhos com mais força, apertando seus pulsos. — Isso é por você não me
obedecer...
Solto outro grito quando me violenta com mais força, eu sempre chamo
por minha mãe, mas ela nunca vem, então se ela não pode me salvar, quem
poderá?
Abro os olhos e arfo ao despertar, meu corpo inteiro está encharcado de
suor, meu rosto molhado de lágrimas. Me levanto apressada e ligo as luzes
com as mãos tremendo, olho pelo quarto, temendo vê-lo.
Solto um gemido, no meio das minhas pernas sinto dor. Destranco a
porta do quarto e vou direto para o banheiro, me dispo e entro no chuveiro,
começando a esfregar com força meu corpo na tentativa de tirar a sensação
do seu cheiro em mim.
Ninguém vai te amar, sua mãe não te ama...
Começo a chorar ao mesmo tempo que sinto a dor da esponja contra
minha pele. Sua voz dentro da minha cabeça não sai, então começo a bater
minha mão contra ela, pedindo desesperadamente que vá embora.
Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas pessoas, por isso que faço isso,
ninguém gosta de você, Lauriana.
Caio de joelhos, chorando com desespero para que ele pare de me dizer
isso. Digo a mim mesma que ele não está aqui, que não pode mais me tocar,
mas... o que adianta se ele está impregnado em minha mente?
O que eu faço para me livrar dessa dor?
Abraço meus joelhos e descanso minha testa neles, cantarolando,
focando apenas no barulho da água saindo do chuveiro e colidindo em minha
pele.
Várias vezes pensei que a morte era a única solução, ou que eu era
culpada por tudo o que estava acontecendo comigo. Sempre tentei
compreender minha mãe, mesmo se prostituindo, ela nunca me deixou faltar
nada, mesmo sem viver no luxo, ela pagava uma boa escola, cursinhos e
sempre me dizia que os estudos é o que nos leva a ser bem sucedidos.
Ela sempre teve cuidado comigo, mesmo bêbada muitas das vezes
tentou me dar o melhor, mamãe sempre se preocupou com meu futuro, nem
que para isso ela precisasse se prostituir dia e noite.
Tudo mudou quando ela trouxe meu padrasto para dentro de casa, eu
tinha cinco anos, fiquei feliz por finalmente ter ganhado um pai, embora ela
nunca tenha parado seus programas, mamãe me amava. Só que ela acabou
colocando-o entre nós, seu amor por ele chegou ao ponto de fazê-la fechar os
olhos perante o que ele vinha fazendo, perdoando-o pelas surras sem motivos,
por chegar quase todos os dias bêbado em casa, e por não trabalhar, ela o
sustentava.
Aos seus olhos ele era um bom pai, me dava amor e carinho. Na sua
presença ele era realmente um homem perfeito, tinha seus defeitos, mas
cuidava de mim e isso bastava para ela.
Mamãe não fazia ideia do que vinha acontecendo na madrugada ou
quando ela não estava em casa. As brincadeiras dele se tornou incômodas,
começou a me deixar desconfortável até que ele ultrapassou os limites.
Eu era apenas uma criança quando tudo começou, tentei falar para
minha mãe que ele me machucava e que eu não gostava das brincadeiras dele,
mas como punição por tentar revelar a verdade, meu padrasto a espancou e
ameaçou matá-la.
Sofri calada, me senti a pior pessoa do mundo, me culpava por tudo o
que estava acontecendo, mas eu tinha que proteger minha mãe. Quando meu
corpo evoluiu, mostrando que eu não era mais uma criança, mais obsessivo
ele se tornou.
Inspiro fundo, não quero lembrar do meu passado, já se passaram 15
anos, e mesmo assim ainda não consigo seguir em frente. Levanto a cabeça e
observo o estrago que fiz no meu corpo.
Esfreguei minha pele com a parte mais áspera da esponja em mim,
agora ela está vermelha e em algumas partes acabei me machucando, fazia
alguns meses que não me feria assim.
Depois de alguns minutos, me levanto, desligo o chuveiro ao me sentir
mais calma e olho para minhas roupas caídas no chão. Me aproximo e com
receio, ergo minha calcinha em busca de sangue, não encontro. Solto um
suspiro aliviado.
Ele não me tocou!
Visto um moletom quentinho e congelo, encarando a cama. Meu
coração volta a acelerar e olho para trás.
Ruslan!
Merda, eu me esqueci dele. E se ele tiver escutado tudo? Eu chorei
alto? Será que Ruslan... presenciou meu surto?
Saio do quarto e olho para a sala, a luz está ligada, assim como a da
cozinha. Escuto vozes na tv, mas não o encontro, Ruslan não está aqui.
Rony dorme no sofá tão preguiçoso como é, me aproximo e me
aconchego junto a ele. Encaro a tv que está passando O Clube das Winx. O
gato ronrona perto do meu ouvido ao deitar no meu pescoço, ele está
cheiroso, parece que tomou banho.
— Ruslan te banhou? — Pergunto, acariciando seus pelos macios e
negros. — Acho que sim!
Me perco assistindo o desenho, não faço ideia de que horas são, só sei
que é de madrugada e quando tenho pesadelos, dificilmente consigo voltar a
dormir.
Começo a piscar pesado, a coberta em cima de mim, a que está me
esquentando do frio, tem o cheiro do Ruslan e meio que... acho reconfortante,
está me acalmando de algum jeito estranho.
Fecho meus olhos, a respiração de Rony toca com delicadeza meus
ouvidos, é tão gostoso... Sobressalto quando a porta é aberta, olho em sua
direção com o coração acelerado, minha respiração está irregular e por um
segundo penso que ele me achou, mas é apenas Ruslan.
Ele fecha a porta com cuidado, suas roupas estão sujas, seus coturnos
têm barro. Ruslan se inclina e os tira, colocando em um cantinho, então ele se
vira e vai até o pequeno corredor que dá acesso ao meu quarto e o banheiro,
ele se senta no chão, encarando a parede à sua frente sem nem ao menos
notar minha presença.
O que está acontecendo com ele?
— Ruslan? — Sussurro, afastando a coberta e me levantando. — Ei,
onde você estava? — Pergunto, contorcendo minhas mãos, ele não responde.
— Você está aqui?
Ruslan exala forte, dou um passo para trás ao ver suas mãos trêmulas,
sua expressão é de dor, como se ele estivesse preso em um outro mundo,
talvez seja o dos seus pesadelos, porque apenas seu corpo se faz presente
diante de mim.
Meu coração aperta por vê-lo tão... destruído, mas acabo me afastando
e deixando-o no seu canto, até porque, não o conheço e muito menos sei do
que é capaz.
Volto para o sofá, Rony vai até ele e se aninha entre suas pernas, um
sinal de que Ruslan não está sozinho e que seu gato está lá por ele. Me cubro
com sua coberta e fico o encarando sem dizer nada até amanhecer.

Antes de entrar no serviço, passo na confeitaria Musse Confectionery


que fica uma esquina abaixo da AS. Eles desenvolveram um éclair
intergaláctico, um doce com estampas intergalácticas em tons de azul, roxo e
rosa, com direito à “poeira de estrelas”.
Peço os sabores de baunilha e chocolate, meus preferidos. Enquanto
aguardo, olho ao redor da confeitaria que está vazia por conta do horário.
Geralmente enche de clientes depois das oito da manhã.
Escuto o sininho da porta e olho para trás, seus olhos se fixam no meu,
um sorriso esboça em seu rosto. Fecho as mãos em punho quando Artem se
aproxima de mim, ele está sem a farda policial.
Engulo meu nervosismo, sentindo sua presença. Ele parece ter 1,95 de
altura, seus braços são musculosos e as roupas escuras o deixa ainda mais
lindo do que já é.
Ruslan tem quase sua altura, acredito que uns cinco centímetros mais
baixo, ele também é menos musculoso, mas lindo tanto quanto Artem.
— Bom dia, Laura — saúda, colocando as mãos no bolso.
— Oi — respondo por educação, voltando a olhar para frente,
ignorando sua presença.
— Soa-te bem?
— Estou bem! — Digo sem olhar para ele, começo a balançar minha
perna.
Droga, onde está meu pedido?
— Frequentaste muito aqui? — Olho para ele por cima do meu ombro,
Artem está puxando conversa e eu não gosto disso.
— Não muito, de vez em quando. — Ele assente devagar, me
encarando.
— Aqui tem os melhores doces da cidade, acredito que da Ucrânia
inteira — fala, olhando para os outros doces em exposição. — Minha mãe
ama, sempre que possível levo para ela.
— Senhorita, seu pedido! — A moça me chama, entregando-me a caixa
dos meus doces intergalácticos.
— Gostaria de convidar-te para tomar alguma coisa, aceita? — Estreito
meus olhos, ele sustenta meu olhar desconfiado, sabendo perfeitamente que
estou desconfortável com sua aproximação.
— Não — digo, indo até o caixa.
— Por que não? — Assusto ao senti-lo atrás de mim, o rapaz do caixa
me devolve o troco e franze a testa.
— Obrigada — digo, ele assente encarando Artem, me afasto e saio
apressada da confeitaria.
— Laura? — Artem me chama, viro em sua direção sabendo que iria
segurar meu braço para me parar, porque ele está curioso em relação a mim, e
isso está me deixando assustada.
— Olha, eu não te conheço e nem quero conhecer — falo com raiva,
ele esfrega sua barba rala me lançando um olhar estranho. — Aquele dia você
estava trabalhando e entendo, mas não ultrapasse essa linha.
— Ele pode estar atrás de você.
— Não, ele não está! — Minha respiração acelera, seguro mais firme a
caixa dos doces.
— Ontem... — Artem coloca as mãos na cintura e olha para os lados.
— Ontem uma mulher foi assassinada! — Congelo com sua declaração, ele
fica me encarando.
— O... quê?
— É isto o que estou a dizer, ontem foi encontrado um corpo de uma
jovem morta.
— Pessoas morrem todos os dias, assassinadas ou não, qual a ligação?
— Artem arqueia uma sobrancelha.
— A ligação está na semelhança de como ela foi assassinada —
esclarece com a expressão ilegível. — Como eu disse, Ruslan começou de
novo.
— Como pode ter certeza que foi ele?
— Por que o defendes? — Aperto meus lábios, tenho que tomar
cuidado. — A ocorrência aconteceu às três da manhã...
— Para de me contar essas coisas — falo, angustiada. — Não tenho
nada com seu criminoso, não sou a detetive e muito menos o quero perto de
mim.
— Você sabe onde ele está, estou apenas...
— Para Artem! — O repreendo, transtornada com essas informações.
— Não estou com ninguém e não afirme algo que você não sabe! — Minto,
merda, as mentiras estão saindo tão fáceis por minha boca.
— Eu só quero encontrá-lo! — Umedeço meus lábios, suas palavras
saíram tão pesadas que senti um soco no estômago.
— Por quê? — Artem não desvia do meu olhar curioso. — Por que essa
fascinação por ele?
— Ele é um criminoso...
— Não, não é só por isso. — Corto-o. — E por que eu? O que eu tenho
haver com isso? Sou apenas uma colunista, somente isso!
Artem respira fundo, olhando para a avenida que começa a ficar
movimentada. Ele abaixa a cabeça, mas não diz nada, tem alguma coisa
errada.
— Seus olhos... — murmura, voltando a me encarar. — Tem o mesmo
vazio que os dele...
Suas palavras me pegam desprevenida, não esperava nada parecido,
porém, mesmo assim não entendo, não compreendo.
— Eu não sei do que está falando — dou um passo para trás. —
Apenas não me procure mais!
Artem me encara, dou as costas e caminho apressada até o meu
trabalho, repassando tudo o que me falou, mas não encontro respostas para
isso.
Chegando na minha sala, distribuo os doces que comprei para meus
colegas que ficam felizes por eu ter lembrado deles. Sento-me no meu lugar
depois de ter limpado minha mesa com álcool.
As palavras de Artem ainda batucam em minha mente, encaro os dois
que sobraram, lembrando de Ruslan. Ele chegou sujo, não disse nada e... será
que... que... não, não pode ser, ele não teria matado de novo!
Mas porque ele não mataria? Ele é um assassino, certo? Foi condenado
por isso...
Céus Laura, o que está pensando?
Entrelaço os dedos entre meus cabelos com a mente muito bagunçada.
Quando saí de casa, deixei Ruslan do mesmo jeito que chegou, ele não falou,
não se moveu e nem comeu o lanche que preparei, ele apenas ficou como se
não existisse.
Pego um doce, e o levo à boca, sentindo seu sabor delicioso. Inspiro
fundo e guardo o que sobrou, para levar para... Ruslan, acho que ele irá
gostar.
— Gente! — Aksinya grita com a boca suja de doces e olhos
arregalados. — Vocês viram?
— Vimos o quê? — Justik pergunta se levantando e colocando todo o
resto do doce na boca.
— Mais um assassinato — ela revela, Yaroslav fica atrás dela, olhando
para a tela do computador enquanto come com tranquilidade.
— E? — Yaroslav pergunta, lambendo os dedos.
— É que o jornal concorrente alegou que Ruslan pode ter sido o
culpado, eles estão ligando também o assassinato que você e Laura foram
investigar.
Paro de mastigar, encarando todos eles, um arrepio sobe por minha
espinha e vai até minha nuca, Ruslan também estava lá, no mesmo local onde
encontraram o corpo da mulher.
Seu gato estava lá, ele me assustou... será que... foi ele mesmo?
— Laura, parece-te bem? — Olho para Aksinya. — Estás pálida.
— Eu estou bem! — Digo, engolindo com dificuldade.
— Sabem o melhor de tudo? — Justik pergunta, negamos com a
cabeça. — Dou dez minutos para a resposta entrar por essas portas.
— Cinco minutos — desafio, eles riem tensos com o que nos aguarda.
Não demora nem cinco minutos para Andry entrar em nossa sala. Sua
respiração está acelerada e seu pescoço avermelhado, escorrego na minha
cadeira, querendo me esconder ou algo parecido.
— Que merda! — Vocifera, nos encarando. — Quero que investiguem
esse novo assassinato, faça o que puderem para descobrirem tudo. — Ele
aponta para mim, ranjo meus dentes. — Consegui uma entrevista com um
dos jures que participou do julgamento de Ruslan, Yaroslav vai com você
enquanto os outros vão atrás das outras pistas.
Andry sai da sala, nos impossibilitando de dizermos ou contestarmos
alguma coisa. Solto a respiração, irritada com seu jeito de distribuir ordens.
— Acho que somos detetives agora — Justik resmunga. — Andry acha
que somos da polícia? Porque não tem condição!
— Saco... — resmunga Aksinya, juntando suas coisas para ir atrás do
que Andry ordenou.
Encaro a construção monumental do tribunal de Kharkiv. As escadas de
aproximadamente 10 metros dão um ar misterioso para o lugar mais
importante da região. De todos os anos morando na cidade, essa é a primeira
vez que venho aqui.
Seguimos rumo ao nosso encontro, Yaroslav comanda o caminho, eu
apenas o sigo admirada pelas altas paredes decoradas com quadros. O teto se
parece com uma igreja medieval e os pisos são todos desenhados. Se eu
gritar, tenho certeza que fará eco.
Encontramos poucas pessoas ao longo do caminho, subimos escadas e
pedimos informações até achar a sala do júri 417. Meus olhos se prendem no
homem mais velho vestido com um terno azul marinho, seus cabelos e sua
barba estão grisalhos, chutaria uns 50 e poucos anos de idade.
Ele se levanta quando nos vê, dispensando a mulher que está ao seu
lado.
— Boa tarde senhor Leonid, sou Yaroslav e esta é Laura, somos do
jornal AS Kharkiv.
— Estava à espera de vocês — diz, apertando a mão de Jaroslav, eu
apenas aceno com a cabeça.
— Perdoe-nos pelo atraso — meu colega se desculpa.
— Muito obrigada por nos conceder essa entrevista, senhor Leonid,
prometemos não tomar muito do seu tempo. — Falo, para tranquilizá-lo
— Não se preocupem — ele aponta para nós sentarmos.
— Irei gravar, o senhor se importa? — Ele sorri para mim, negando
com a cabeça.
— Certo, então vamos começar. Sei que o senhor deves estar muito
ocupado. — Yaroslav diz, se acomodando na cadeira.
Leonid nos olha com atenção por alguns segundos, abaixa os olhos e
cruza as mãos, reparo que há um pouco de oscilação nos seus gestos, talvez
tristeza? Ele volta a me olhar, respira fundo e começa a falar.
— Esse tribunal e essa sala foram minha casa por dez dias. Eu me
sentei na primeira fila, terceira cadeira à direita. Estar aqui me traz muitas
recordações.
— O senhor lembra do Ruslan Rotam?
— Vejo o seu rosto o tempo todo, nunca pude me esquecer de Ruslan.
— Ele bate de leve no braço da cadeira, apertando os lábios. — Meu nome é
Leonid Kuchama e fui o porta-voz do júri no caso de Ruslan Rotam, em
2005. Não tinha como não se intimidar pela gravidade das acusações contra
ele. O assassinato mais chocante foi de uma jovem de 18 anos, acredito que
tenha usado pelo menos cinco facas para realizar as mais de 20 perfurações.
O ataque foi tão violento que separou a lâmina do punhal de uma das facas.
Ele enfiou as facas tão profundamente que ficaram presas nos ossos da
vítima.
Leonid faz uma pausa, se perdendo no passado. Olho para Yaroslav
sentindo meus batimentos acelerarem, imaginando a dor e o medo dessa
garota.
— Cada vítima sofreu uma morte violenta, lenta, dolorosa e brutal. —
Volto a olhar para ele, sua voz sai trêmula. — Isso pesou muito em meu
coração, no que diz respeito a fazer a coisa certa.
— Como chegaram a essa decisão? — Pergunto.
— Se a pena de morte não tivesse sido abolida em 2000, essa seria a
melhor escolha diante dos fatos. — Leonid umedece os lábios, esfregando os
dedos sem nos encarar. — Foi preciso um acordo unânime entre todos os
jurados. E eu me lembro de levantar da mesa e andar até a janela, tentando
conter as lágrimas e dizendo “Os doze precisam tomar a mesma decisão, onze
já decidiram, e eu?”
— Por que o senhor... teve dificuldade de condená-lo? — Ele me olha
com um olhar devastado e olhos marejados, engulo em seco.
— Ruslan só tinha 18 anos na época, sem antecedentes criminais e
notas ótimas na escola. Algumas testemunhas relataram que ele era um garoto
gentil, não dava trabalho, ajudava no sustento de casa. Quieto, mas sempre
sorrindo. — Leonid abaixa o olhar. — Ruslan foi a julgamento com um
advogado cedido pelo estado, tão incapaz, que foi como não tivesse um.
— A família dele não tinha condições — Yaroslav conta, fazendo
Leonid fechar os olhos um pouco abalado.
— Ruslan ficou meses na cadeia até o seu julgamento. Era nítido a sua
mudança desde que foi preso. — Ele inspira fundo e balança a cabeça. — Seu
olhar vazio se encontrou com o meu, ali, diante de todos o acusando pelos
assassinatos. Ele não pôde nem ao menos se defender, eu vi uma alma
inocente morrer naquele dia.
Abaixo a cabeça emocionada com suas palavras, porque dos dias em
que Ruslan está em casa, é como se estivesse apenas a carcaça dele.
— O senhor acredita que ele possa ser inocente? — Pergunto, Leonid
me olha por alguns segundos.
— As provas que tínhamos não deixava espaço para dúvidas —
declara. — Mas...
— Mas?
— Não sei, senhorita Laura, algo me dizia que havia alguma coisa
errada, mas eu não era seu advogado e nem um promotor ou o juiz, estava ali
para julgá-lo. Tínhamos provas suficientes, até mesmo para condená-lo a
pena de morte. Não pude fazer nada! — Afirma, fazendo uma pausa para
recuperar o fôlego. — Em 29 de outubro de 2005, o júri recomendou pena
perpétua. — Diz, por fim.
Fico absorvendo cada palavra que ele disse, sinto um aperto no meu
peito como se sentisse a dor da injustiça, mas será que realmente tem algo de
errado, ou é porque se tratava de um simples garoto?
— E depois? — Leonid me olha. — O que aconteceu depois da
sentença?
— Eles o levaram — me responde, dando de ombros. — Ruslan passou
por três presídios antes de parar no Colony 100.
— A família estava presente? — Pergunta Yaroslav.
— Sim, nos dez dias de julgamento. — Responde, esfregando as mãos.
— Como eles estavam? — Yaroslav se remexe na cadeira. — Diga-me,
como eles reagiram?
— Foram frios o julgamento inteiro — conta, se inclinando e
sustentando os braços nos joelhos. — Cheguei a acreditar que não se
importavam com o garoto, não se abalaram quando as provas foram
mostradas. Mas quando o juiz deu a condenação e o retirou do tribunal, a
família se desestruturou, então percebi que eles estavam se fazendo de fortes
por ele, para que aquele garoto suportasse o que viria à frente.
— E as testemunhas? Quem testemunhou contra ele?
— Tiveram suas identidades protegidas — declara.
— Por que não ouviram ele, Leonid?
— Ruslan apenas se declarou inocente, e mais nada foi dito. —
Assinto, achando estranho demais.
— Tu achas que podem ter cometido um erro com Ruslan? — Ele olha
para Yaroslav, encolhendo os ombros.
— Quem sabe... — Leonid tira seu celular do bolso.
— O senhor sabe que Ruslan está foragido? — Ele ergue os olhos e os
prendem nos meus.
— Sim — Leonid umedece os lábios e suspira. — Sabes o que temo?
— Nego com a cabeça. — Tenho medo de que o estado tenha sido injusto
com um garoto inocente, e que ele busque vingança.
— Então estás a nos dizer que Ruslan pode ir atrás de cada um que o
colocou na cadeia? — Yaroslav pergunta, assustado.
— Exatamente isso! — Confirma.
— Mas e se ele for inocente de todas as acusações? — Leonid estica
seus lábios em um sorriso frio, negando com a cabeça.
— O mundo em que Ruslan viveu todos esses anos pode ter o
transformado em um verdadeiro monstro, porque atrás das grades, vivendo
com pessoas da pior espécie, você só tem uma alternativa, se tornar um deles.
— Seus olhos se fixam nos meus com intensidade. — Ruslan não é mais um
garoto de 18 anos e muito menos uma alma inocente. Ele foi capaz de fugir
da prisão mais segura da Ucrânia, enganou cada policial sutilmente, se
manteve centrado esperando o momento certo, agora está solto pelas ruas.
— Às vezes ele só quer ser livre... — Me calo quando Leonid balança a
cabeça.
— Ruslan quer vingança por tudo o que fizeram — ele se levanta,
ainda me encarando.
— Isso seria justo, não? — Digo.
— Talvez, mas até que ponto é justo para você?
— E se ele não for o assassino? — Leonid passa a língua nos lábios,
olhando além de mim.
— Ruslan pode ter entrado não como um assassino, mas ele pode ter se
tornado um. — Choque espalha por meu corpo. — Preciso ir agora.
— Obrigado por esta entrevista, senhor — Yaroslav se levanta,
apertando a mão de Leonid.
— Estarei à disposição — ele me olha, só que minha cabeça está
rodando com todas essas informações.
Ruslan não é mais inocente, então até que ponto posso confiar nele?
— Laura? — Levanto o olhar, ele sorri para mim. — Não penses
demasiado nisso. Para algumas perguntas não existem respostas, pois dentro
de cada um de nós há um monstro adormecido esperando ser acordado. Se
Ruslan se tornou um perigo para sociedade, a culpa não foi dele, e sim nossa.
— Leonid me olha por mais alguns segundos antes de ir embora, nos
deixando abalados com tantas informações incompletas.
— A cada dia que investigamos a vida de Ruslan, com mais dúvida eu
fico em relação aos crimes supostamente cometidos por ele. — Yaroslav
declara, arrumando as coisas para gente ir. — E agora, o que a gente faz? —
Olho para meu colega, precisamos de mais do que temos, precisamos ir mais
a fundo...
— Vamos entrevistar a família dele.

Rodo a caneta em cima da mesa de Olesya enquanto aguardo. Sua


secretária pediu que eu esperasse aqui em seu consultório até ela chegar,
dizendo que Olesya teve um imprevisto que ocasionou seu atraso.
Olho para os ponteiros do relógio, passaram dez minutos desde que
cheguei, minutos que parecem horas quando se tem tantas coisas perturbando
sua mente.
Inspiro fundo e analiso o consultório com atenção que nunca dei. Suas
paredes e móveis brancos me dão a sensação de estar presa dentro de um
cubo. O que deixa o ar um pouco mais alegre são as cores amarelas,
distribuídas em quadros e almofadas em cima do sofá, rosas vermelhas e
azuis nos vasos distribuídos pelo lugar.
Levanto-me e vou até a estante de livros da Olesya, há vários tipos de
leituras, desde ficção a psicologia e estudo de comportamentos, têm até um
especialista em serial Killer. Quando vou tirá-lo da estante a porta se abre, me
assustando.
— Perdoe-me pelo atraso, Laura — Olesya se desculpa, fechando a
porta e tirando seu casaco.
— Tudo bem — respondo, encostando-me na estante e assistindo-a
guardando suas coisas.
— Houve um imprevisto que tive que voltar para casa, mas agora sou
toda sua. — Ela fala, se virando para mim e se sentando à sua mesa.
Fico encarando seu rosto delicado, hoje ela não parece tão bem como
nos outros dias, há olheiras em seus olhos deixando-a com um semblante de
cansada.
— Você está bem? — Pergunto, Olesya franze a testa.
— Creio que sim — ela aponta para cadeira à sua frente. — Venha,
conte-me o que a aflige.
— Posso ser sua terapeuta se quiser — vou até ela e me sento. — Acho
que posso ser boa com isso.
— Por quê? — Dou de ombros, voltando a rodar a caneta.
— Vai ser interessante escutar os problemas de outras pessoas além dos
meus. — Olho para ela que me fita com atenção.
— Estou a passar por conflitos familiares. — Revela, se recostando. —
É algo difícil de lidar.
— Entendi...
— Diga-me, Laura — umedeço meus lábios e olho para a caneta.
— Como é... ter um namorado? — Engulo em seco, envergonhada com
essa pergunta. — Digo, como é... fazer sexo sem... sabe... sem... — Me calo,
não conseguindo organizar minhas palavras.
— Como é fazer sexo sem ser estuprada? — Levanto os olhos, suas
palavras me atingem, mesmo que tenha sido gentil, no modo que falou, essa
frase continua sendo pesada demais, é vergonhoso.
— É...
— Laura, não tenha vergonha do que fizeram com você, lembre-se,
você foi a vítima, pequena flor.
— Por que me chama de pequena flor? — Olesya sorri para mim e dá
de ombros.
— Meu irmão me chamava assim, é uma forma de nunca o esquecer.
Irmão? Fico paralisada, será que... pode ser apenas uma coincidência,
mas... e se não for?
— Você nunca mencionou que tinha um irmão.
— Tu nunca perguntaste — aperto meus lábios, concordando com ela.
— Hum... — Inspiro fundo. — Hoje em meus sonhos eu revivi tudo de
novo...
— E se machucou? — Assinto, esticando as mangas do meu casaco.
— Eu senti tanto medo... estava sozinha... foi tão real. — Minha voz sai
trêmula, inspiro fundo. — Tenho medo de que isso se repita, que os
pesadelos passam a ser reais.
— Não vai acontecer, mas você precisa lutar contra sua dor, tem que
deixar com que os muros que levantou se abaixem para que possa sentir a
verdadeira felicidade.
— E... se me machucarem de novo? — Olesya se inclina sobre a mesa,
olhando no fundo dos meus olhos.
— Não vou te dizer que não irão te machucar, porque tem inúmeras
maneiras de um ser humano nos ferir, porém, se não permitir que isso
aconteça, como irá encontrar a pessoa certa? — Ela se levanta, arrasta a
cadeira que está ao meu lado e se senta. — A vida é cheia de erros e acertos,
você erra para poder acertar.
— Eu tenho medo...
— Me dê sua mão, Laura! — Diz, esticando sua mão direita em minha
direção, colo minhas costas no encosto temendo que me toque. — Qual foi a
última vez em que você tocou em alguém? Não digo por acidente ou um
esbarrão, falo de verdade, porque tu quiseste, quando?
Aperto minhas mãos em punho, balanço a cabeça sem saber ao certo,
só sei que faz muitos anos, acho que desde que fugi de casa.
— Sei que é difícil, mas tente, toque-me — engulo em seco, me
sentindo nervosa.
— Eu não quero... eu... você... — Falo com a voz embargada, sem a
certeza de que devo fazer isso.
— Tu tens quantos anos? — Olho para ela, surpresa com sua pergunta.
— Trinta e três — falo, Olesya sorri.
— Tenho 28 anos — revela se aproximando de mim. — Tenho dois
irmãos e uma mãe, meu pai morreu quando ainda era muito nova, não me
lembro do seu rosto.
— Por que está me dizendo isso?
— Nunca fomos ricos, sempre passamos dificuldades, às vezes
passávamos fome por não ter dinheiro para comida, meu irmão do meio se
sacrificou para ajudar mamãe nas despesas e disse para nos dedicarmos aos
estudos tanto eu quanto meu irmão mais velho, e foi o que fizemos. — Seu
olhar se perde, sua mão está tão perto de mim que um pequeno movimento,
posso fazê-la me tocar.
— Olesya? — Ela levanta a cabeça e me olha com os olhos marejados,
isso me desarma.
— Eu errei muito, Laura, fiquei cega de raiva, me exclui do mundo.
Mas decidi que iria de algum jeito consertar o que tinha feito de errado,
decidi ajudar pessoas que assim como você, precisam de alguém que as
compreendam. Estás confusa? — Assinto, com o coração martelando contra
meu peito.
— Muito...
— Estou lhe contando tudo isso para que possamos criar um laço, um
vínculo, assim você poderá confiar em mim. Consegue compreender? —
Umedeço meus lábios, ainda nervosa. — Toque em mim Laura!
— Mas... e se...
— Não irei sentir nojo de você, essas palavras que foram ditas contra
você, não são reais. — Olesya inclina de leve a cabeça para o lado. — Você é
linda, o que fizeram com você foi uma injustiça. Nenhuma mulher merece ser
tratada dessa forma, pequena flor, todas devem ser amadas e respeitadas.
— Eu fiz coisas ruins... — sussurro, sentindo lágrimas escorrerem por
meu rosto.
— Não querida, você nunca fez nada de ruim. — Ela se aproxima mais
um pouco, dessa vez eu não afasto. — Você era uma criança inocente,
cresceu sendo ameaçada e quando teve a única oportunidade de fugir, você
fez sem nem pensar. — Olesya sorri para mim, sinto como se sentisse
orgulho do que fiz. — Tu foste corajosa, conseguiu entrar em um país onde
não conheceste ninguém, estudou e se formou. Se não fosse guerreira, não
estaria aqui na minha frente... Tu fizeste o que muitas não têm coragem, ou o
que muitas morreram tentando. Tu foste contra o mundo apenas pensando em
você!
Solto um soluço, seus olhos brilham por causa das lágrimas não
derramadas. Olesya sabe de toda minha trajetória e hoje é a primeira vez que
ela chega tão perto de derrubar minhas barreiras.
— Não supere seus traumas por causa de uma pessoa, Laura, supere
por você — ela estende as duas mãos, quero tanto tocá-la, sentir sua pele e
calor, faz tanto tempo que acredito que esqueci o que é sentir outra pessoa.
— Tenho medo...
— De quê? — Engulo em seco.
— De sofrer... — Aperto meus lábios trêmulos. — Mas quero tanto ser
feliz... pelo menos uma única vez.
— Você vai, mas tudo tem que ter um começo... — Olho para suas
mãos, sinto as minhas transpirarem, inspiro fundo e as levo até as de Olesya,
pousando-as em cima das suas.
Ela aguarda com paciência, sinto seu calor e mesmo sutilmente,
consigo sentir sua pele contra a minha.
— Toda dor tem que chegar ao fim, todo trauma pode ser superado e
todo rosto poderá sorrir de novo — Sobressalto quando ela fecha as mãos em
volta das minhas, acariciando-as com seus dedos. — O novo pode ser
apavorante, mas quando se tem força de vontade, nada nesse mundo é capaz
de te impedir. Então Laura, lute como sempre lutou, mas agora não fuja, não
se esconda, permita-se ser abraçada e amada da maneira que merece. Com
um passo de cada vez.
Meu choro intensifica enquanto sinto-a me segurar, não da forma
brusca que ele me segurava. Diferente das dele, suas mãos são delicadas,
macias e carinhosas, embora eu queira quebrar esse contanto, eu me
mantenho firme, porque Olesya não vai me machucar.
E pela primeira vez em muitos anos, sinto a esperança voltar, me
dizendo com todas as letras que eu posso ser feliz, que posso ser normal e
que eu posso, sobretudo, amar e ser amada outra vez.
Encaro a prateleira da papelaria inerte em meus pensamentos, hoje o
dia passou arrastado, não houve nada de interessante. Passei o dia
trabalhando na matéria sobre Ruslan. Aksinya e Justik continuam em busca
de informações sobre os dois assassinatos que ocorreram essa semana, mas
não encontraram nenhuma informação. Andry está furioso por causa do nosso
desastre em levar algo concreto a ele.
Apanho duas canetas cor-de-rosa, elas fazem lembrar-me de quando
ainda estudava. Minha mãe costumava comprar meus materiais tudo
combinando, era um toque que tinha ou pelo simples fato de tentar me dar o
melhor.
Me afasto da prateleira e olho para Gana que tenta escolher um
caderno em meio a tantos outros. Apanho um caderno da Hello Kitty, folheio
as páginas achando tão lindo que se fosse eu, teria o escolhido.
— Gostaste desse? — Pergunta, tirando-o das minhas mãos.
— É lindo — Gana franze a testa e me lança um olhar estranho. — O
que foi?
— Tu conheces a história dela? — Nego com a cabeça, pegando outro
caderno um pouco diferente do anterior.
— Qual história?
— Dizem que a personagem Hello Kitty não é uma gata ou uma garota,
mas sim um pacto do demônio com uma mãe. — Gana me olha com os olhos
um pouco arregalados.
— Sério?
— De certo que sim — ela ajeita sua touca e olha para os lados antes de
me encarar. — Há uma lenda que circula pelo mundo inteiro que relata como
tudo possivelmente aconteceu.
— Não conheço essa lenda — Gana revira os olhos, escoro na
prateleira e cruzo os braços.
— Em 1970 a boneca foi criada por uma senhora chinesa. Nessa época,
sua filha de 14 anos foi diagnosticada com câncer na boca e, conforme o
avanço da doença, os médicos da jovem informaram à mãe da menina que
não podiam fazer muita coisa, pois o caso era grave e isso ocasionaria a
morte precoce da sua filha.
— E aí a mãe fez o pacto? — Gana devolve o caderno e pega outro da
cor vermelha.
— Ainda não cheguei lá! — Diz, rindo de mim. — A mãe da garota
ficou desesperada com a possibilidade de perder sua filha de maneira tão
trágica e, recorreu às orações em igrejas, fazendo promessas para alcançar a
cura da sua jovem filha. Mas nada deu certo, tudo o que vinha fazendo não
estava surtindo efeito e, por isso, acabou seguindo alguns rituais satânicos
que prometiam salvar sua filha se ela fizesse um pacto com o demônio.
Ela faz uma pausa dramática, olho para a senhora maquiada e com
roupas coloridas escolhendo algumas canetas e pastas para a menininha que a
acompanha, reparando no olhar de reprovação direcionado a Gana e suas
roupas muito curtas.
— E o que aconteceu depois? — Pergunto curiosa, ignorando a senhora
e fazendo com que Gana foque em mim.
— O que a mãe não esperava é que teria que dar algo em troca. — Ela
dá de ombros. — Tudo nessa vida tem um preço, e o diabo pediu o dele. Se
ela quisesse que sua filha fosse curada, ela teria que inventar uma
personagem que se tornaria famosa no mundo todo, atraindo milhões de
seguidores e fãs, e a compra deste brinquedo funcionaria como uma oferta
involuntária ao demônio. — Gana devolve o caderno à prateleira.
— E então a Hello Kitty nasceu? — Ela assente, pegando agora um
cor-de-rosa.
— Exato, depois que o pacto foi feito, sua filha apresentou melhora e a
mãe passou a cumprir sua terrível promessa. A sua escolha em relação à
aparência da personagem não foi um acaso, pois os gatos são animais que há
séculos estão associados às práticas de magia negra e feitiços maléficos.
Como sua filha teve câncer na boca, a mulher decidiu então fazer um
brinquedo sem boca.
— E ficou linda — elogio, Gana arqueia uma sobrancelha.
— Ai credo, Laura! — Repudia com diversão. — As orelhas
pontiagudas dela simulam os chifres de Lúcifer, a palavra “Hello” significa
“Olá” e o “Kitty”, de origem chinesa, quer dizer demônio.
— “Hello Kitty” quer dizer “Olá demônio”?
— És assustador, não é? — Gana estremece, rindo e folheando o
caderno.
— Se for verdade...
— Dizem também que a boneca pode estar agregada ao assassinato
brutal de uma mulher em Hong Kong, que ocorreu no ano de 1999. Parece
que três pessoas violaram um ritual, porque a boneca é um símbolo secreto de
satanistas e, com isso, precisaram matar e decapitar a cabeça dessa mulher,
armazenando o membro do corpo de uma Hello Kitty. — Sinto um arrepio
sútil por meu corpo, mesmo sendo apenas uma lenda, não deixa de ser
assustador.
— Tem provas de que é verdade tudo o que me contou?
— Logicamente que não, são apenas boatos, pode ser facilmente
aumentado, mas sabe-se lá até que ponto é verdade ou não. Enquanto isso,
prefiro não arriscar e não ter nada da Hello Kitty.
— Com toda certeza essa lenda foi criada para assustar fãs e denegrir
imagem da empresa que a criou. — Gana comprime seus lábios e assente de
leve.
— Ainda assim...
— Vamos levar esse — digo, pegando o caderno cor-de-rosa cheio de
glitter da Hello Kitty que está sentada com uma câmera fotográfica nas mãos
e um laço em uma das orelhinhas.
— Tu endoidaste?
— É lindo — Gana puxa o caderno da minha mão.
— Não, nem penses nisso, eu que não irei levar essa coisa demoníaca
para dentro de casa. — Puxo o caderno de volta.
— É apenas lenda, Gana, não é possível que você acredite.
— É óbvio que sim, quando há boatos, sempre há uma verdade.
— Que tenho certeza que não é essa — Gana fica me encarando com o
cenho franzido, é divertido ver o medo estampado em seus olhos.
— Estás a falar sério? — Assinto, ela deixa seus ombros caírem. — Tu
és minha amiga?
— Esse caderno é lindo e eu assisto esse desenho. — Sua boca se abre,
segundos depois se fecha, ela ergue as mãos e dá um passo para trás.
— Tu me assustaste agora, por isso que escuto sussurros quando estou
com você! — Ela esbugalha os olhos. — Tu és aliada do demônio?
— Ah, para de besteira, Gana! — Sua gargalhada vem logo em
seguida, balanço a cabeça negativamente. — Besta!
— Vai levar mesmo?
— Claro, vai te dar sorte nas aulas — ela faz uma careta, pegando o
caderno das minhas mãos e estreitando os olhos.
— Se eu começar a ser perseguida, tu será a culpada.
— Eu te ajudo a expulsar o demônio.
— Ah, agradeço-te muito por isso. — Fala se virando e andando para o
caixa, eu apenas balanço a cabeça.
Depois dela pagar suas compras, Gana me leva para uma loja de roupas
onde pudesse escolher uma que não mostrasse tanto o corpo. Dei minha
opinião, ela acatou todas as dicas que eu dei e comprou algumas que a
deixaram ainda mais linda do que já é.
Passar um tempo com ela me deixa um pouco aliviada. Gana é
divertida e descontraída, me conta tudo o que se passa em sua vida, e todo
mês tiramos um tempinho para fazermos alguma coisa. Ela só tem a mim, sei
disso pela forma que me trata, em seu mundo de prostituição, boates e
programas, existe mais concorrência do que se possa imaginar.
Gana de uma forma lembra a minha mãe, que assim como ela, também
era uma prostituta, não por escolha, mas por necessidade. Sinto saudades de
poder abraçá-la, de escutar sua voz e sentir seu cheiro, daria tudo para vê-la
mais uma única vez.
Será que ela está bem? Será que ela está feliz ou está sofrendo? Ela
sente saudades de mim?
Engulo o caroço que formou na garganta, abaixo a cabeça e encaro meu
sanduíche, sentindo minhas mãos tremerem. Preciso ir embora, não estou
bem...
— Sabe qual é meu sonho hoje? — Levanto o olhar, encontrando com
o de Gana.
— Não, qual é? — Ela comprime os lábios, mastigando a batata frita
que acabou de colocar na boca.
— Poderia pedir muitas coisas, até porque minha vida não é das
melhores. — Gana suspira e me encara. — Tu foste a única pessoa que me
olhou além do que eu era, não me julgou em momento algum.
— Quem sou eu para julgar alguém?
— Você tem um coração tão puro, mas tão quebrado pela maldade
humana... — Fico olhando-a estagnada no lugar. — Nunca imaginei que um
sorriso, valeria muito mais que qualquer coisa desse mundo.
— Às vezes a única coisa que temos pode ser arrancada por quem
menos esperamos. — Sussurro, abaixando os olhos.
— E pode ser devolvido por quem menos esperamos. — Retruca. — E
o meu sonho é te ver sorrir pela primeira vez, Laura, e quando isso acontecer,
espero poder sorrir com você.
Gana aperta seus lábios trêmulos, isso faz com que minhas defesas
enfraqueçam. Ela limpa seu rosto molhado pelas lágrimas e sorri para mim,
amenizando o clima melancólico.
— Estou de TPM hoje — declara, divertida. — Eu fico um pouco
emotiva.
— Quer um chocolate? — Pergunto, tirando um do meu bolso do
casaco. — Ajuda na TPM. — Ela solta uma risada, balançando a cabeça de
um lado para o outro.
— Jamais recusaria um doce.
— Nem eu!

Gana me deixa na porta de casa antes de ir para seu trabalho, olho para
meu prédio desgastado pelo tempo e inspiro fundo lembrando-me de Ruslan.
Quando sai cedo de casa ele não estava, o que quer dizer que passou a noite
fora.
Mil e uma coisas me vêm em minha mente em relação ao seu sumiço,
só que nem o conheço direito para exigir alguma resposta.
Céus, como posso ter abrigado um desconhecido em casa debaixo do
mesmo teto que eu? E se ele tiver voltado a matar? E se ele me mata...
— Estás pensando besteiras! — sobressalto de susto, reprimindo um
grito surpreso. A voz de Ruslan veio do pequeno beco entre meu prédio e
outro, ele está coberto pelas sombras da noite.
— Ruslan, você me assustou — murmuro, dando um passo para o lado,
tentando vê-lo melhor. — O que faz aqui fora? — Pergunto quando não me
responde.
— Esperando por você! — Diz, acendendo um cigarro, a chama que sai
do isqueiro ilumina sutilmente seu rosto coberto pelo capuz, dando-lhe um ar
de mistério e perigo.
— Você está fumando?
— Sim!
— Por quê?
— Isso importa? — Sinto seus olhos em mim, meu estômago revira.
— Isso pode te matar...
— Mais do que já estou? — Ruslan traga, a ponta alaranjada do cigarro
é a única coisa que ilumina a escuridão.
— Você quer... caminhar?
— Tu queres caminhar comigo? — Dou um passo para trás com o
coração acelerado quando ele sai do beco, sua altura é intimidante e seus
olhos penetram minha alma.
— Bom... — Limpo a garganta, contorcendo as mãos e desviando do
seu olhar. — Que mal tem?
— Existe muita maldade dentro de mim, Laura, uma delas está ficando
difícil de conter. — Engulo em seco, voltando a encará-lo.
Ruslan leva o cigarro à boca, me fitando com intensidade. Sua beleza é
tão hipnotizante que poderia passar o dia olhando-o sem piscar. Ele ganhou
peso desde que chegou e também ficou mais forte.
— Pretende me machucar? — Ele sorri, jogando o cigarro no chão e
pisando até apagá-lo.
— Não estou a falar desse tipo de maldade — murmura, colocando as
mãos no bolso e começando a andar pela calçada.
— O que fica fazendo durante o dia? — Pergunto, mantendo uma
distância segura enquanto o acompanho.
— Algumas coisas.
— Que coisas? — Ruslan me olha por alguns segundos.
— Matando não é uma delas! — Solto um suspiro longo, encarando a
rua sem dizer mais nada.
— Você já sabe o que vai fazer enquanto está fugindo da polícia? —
Ele não me responde, apenas caminha calado, concentrado nos seus passos.
Não vou mentir, estou curiosa para saber o que ele faz quando não
estou em casa ou o que faz quando sai de madrugada e só volta no outro dia
de manhã.
— Como conseguiu o cigarro e o isqueiro?
— Vai por mim, é a coisa mais fácil de conseguir.
— Hum... você roubou? — Ruslan estala a língua.
— Se tu tens diálogo, boa conversa e uma boa história para contar, —
ele me lança um olhar pretensioso — tu consegues sentar em uma mesa sem
pagar absolutamente nada.
— Você é esperto...
— Temos que estar sempre à frente. — Comprimo meus lábios e
observo a barraquinha de cachorro quente na pequena praça do meu bairro.
— Vou comprar um negócio — Ruslan me encara com o cenho
franzido.
— Negócio?
— Sim, vou te trazer um negócio, espera aqui e descobrirá o que é! —
Ele assente.
Fico olhando para ele por mais alguns segundos antes de virar e ir em
direção à barraquinha. Não costumo andar por meu bairro à noite, pois é
nessas horas que caras perigosos zanzam por todos os lados, vendendo e
usando drogas.
Essas é uma das poucas vezes em que vim até essa praça, posso contar
nos dedos dos anos que vivo aqui. Mas de vez em quando eu e Gana
gostamos de comprar o cachorro quente do Vyacheslav, embora nunca tenha
trocado uma palavra com ele, sei perfeitamente que seu tempero é um dos
melhores que já saboreei.
— Boa... noite — me aproximo um pouco cautelosa, ele sorri para
mim.
— Boa noite, aposto que vieste por causa do meu cachorro quente.
— Dois por favor! — Vyacheslav assente, olho para trás enquanto ele
prepara meu pedido, Ruslan está parado na esquina me observando.
Sinto um tremor vendo-o assim tão distante e ao mesmo tempo tão
perto, mas até que ponto posso permitir que ele adentre em minha vida? Será
que estou fazendo a coisa certa? Quem em sã consciência iria abrigar um
assassino dentro de casa?
— Aqui está! — Sou arrancada do devaneio, Vyacheslav coloca os dois
cachorros quentes em cima de uma das mesas, lhe entrego o dinheiro e volto
com eles em mãos.
Noto na esquina de baixo um grupo de rapazes me encarando de forma
estranha, eles estão fumando e reconheço um deles por morar no mesmo
prédio que eu.
Uma alerta dispara meu coração, ter convidado Ruslan para caminhar
não foi uma ideia sábia em vista do quanto aqui é perigoso.
— Eu trouxe... — Me calo quando o encontro encarando o outro lado
da rua, seu corpo está tenso, seu olhar sem nenhum brilho.
— Laura!
— Sim? — Aperto os cachorros quentes, minhas mãos tremem de
medo do que está por vir.
— Vire-se e ande de volta para casa...
— Hum?
— Vá, pequena flor — diz com a voz rouca e baixa, seus olhos se
prendem nos meus. — Ande!
Pisco algumas vezes antes de girar e caminhar na direção de casa.
Escuto seus passos atrás de mim, me seguindo. Não sei o que está
acontecendo, na verdade, nem quero saber, porque Ruslan chegou na minha
vida pacata, tirando-me do sossego que tanto lutei para conseguir.
Certo que eu vivo com medo dele voltar, de cumprir com sua promessa,
por isso que deveria ter tomado mais cuidado ao deixar que um criminoso
entrasse assim na minha vida.
Subo os degraus que levam ao meu andar, mas paro por um instante e
olho por cima do meu ombro querendo encontrá-lo, mas Ruslan não está
parado na entrada, ele seguiu adiante sem me dizer nada, e mais um dia, ele
passará a noite fora.
Isso não deveria me incomodar tanto assim, eu deveria ficar alegre por
ele se manter afastado de mim a maior parte do tempo, mas é que... quanto
mais fico perto de Ruslan, seja por apenas alguns minutos, mais me sinto
instigada a desvendar os segredos trancafiados dentro de sua alma quebrada.
Olho para os cachorros quentes em minhas mãos, desejando que
estivesse aqui e não pela noite que esconde tantos perigos e tantos traumas.
Uma das coisas que aprendi estando na cadeia, é que você deve fazer
aliados, mostrar do que você é capaz e ter olhos espalhados para todos os
lados, sem jamais demonstrar sua fraqueza.
Quando os olhos se fecham à noite, demônios se levantam dominando a
escuridão de vidas fragilizadas sem nenhuma piedade, eles invadem sua
mente, destroem seu coração e dilaceram sua alma.
Olho para o outro lado da rua, os garotos me acompanham, enquanto
caminho, um deles me olha e me lança um aceno sutil, me dando a
confirmação de que ele está aqui.
Eu tinha certeza de que ele viria atrás de mim, era questão de tempo até
me encontrar. Viro em um outro beco e me encosto na parede e espero. Os
garotos se mantêm na guarda, se acontecer alguma coisa, eles agirão em
minha defesa. Foi fácil persuadi-los, uma boa história e um pedido de
cumplicidade trouxe-os para o meu lado. São jovens curiosos que apesar de
se acharem perigosos, não passam de meras crianças em busca de um
propósito em um caminho errado.
Escuto passos, meu coração acelera e arrepios percorrem meu corpo
com as lembranças que pipocam em minha mente. Inspiro fundo e olho para
frente, vendo-o parar a alguns metros de distância de mim, olhos dos quais eu
confiei cegamente, apenas para ser enganado e traído.
— Estou contente em saber que está livre — meu coração dispara ao
escutar sua voz, desencosto da parede e fico à sua frente, há cinco homens
atrás dele.
— Pensei que não lembraste mais de mim — digo, notando o quanto
envelheceu desde a última vez em que o vi.
— Como poderei esquecer meu garoto — Ele sorri friamente. —
Ruslan Rotam... você me deve!
— O que te devo, Nikita?
— Uma vida...
...
“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temerei mal
algum, porque tu estás comigo” recito essas palavras várias vezes durante
meu dia, tentando encontrar algum significado para continuar vivendo.
Passaram-se um ano desde que fui condenado, desde que virei um saco
de pancadas de Jaroslav, a “putinha” que todos comem, o garoto que engole
drogas para contrabandeá-las para dentro da cadeia, o menino que perdeu o
significado de viver.
Passarei minha vida aqui dentro, sem poder nunca mais ver o mundo,
namorar, realizar meus sonhos... tudo foi tirado de mim sem nenhuma
explicação, me tornei um assassino em série.
Engulo as lágrimas, hoje foi mais uma tentativa fracassada de entrar
em contato com a minha família, mamãe não atende as ligações e meus
irmãos não me escrevem de volta. Todas às vezes que me dizem que tenho
uma visita, meu coração grita de esperança, mas sempre é uma prostituta ou
alguém ligado a Jaroslav.
Minha família não quer saber de mim e eu entendo, juro que entendo,
mas dói... como dói estar sozinho sem ninguém para me dizer que todo esse
inferno passará.
Solto um gemido de dor quando Ararat puxa meus cabelos, Zelai me
olha sorrindo enquanto sirvo de brinquedo sexual para Fedir, dor... é a
única coisa que sinto, dor e humilhação.
— Era assim que estuprava suas vítimas? — Jaroslav diz, encostado na
parede. — Estás sentindo prazer?
Fecho os olhos, quero morrer, mas nada do que faço tenho sucesso.
Sinto gosto de sangue na minha boca, antes de estar aqui, eles me bateram,
me machucaram e ganharam grana como se eu fosse seu garoto de
programa para satisfazer os desejos doentios dos detentos que não se
importam em estuprar qualquer um em busca de sexo violento e sangrento.
— Amanhã Odarka te encontrará novamente, te dará as drogas e dessa
vez tu terás que ser mais audacioso, pois os guardas estão desconfiando da
movimentação. — Ranjo meus dentes quando o detento sai de dentro de mim,
soltando um uivo asqueroso por ter aliviado seu desejo.
Fecho meus olhos mais uma vez, Ararat prensa minha cabeça contra a
pedra da pia do banheiro, permitindo que outro comece. Estou cansado,
dolorido e fraco, querendo apenas desaparecer.
Choramingo, o que estão fazendo comigo é doentio, Jaroslav faz de
tudo para tirar todos os poucos benefícios que tenho. Estou sem comer há
dois dias, mas ao meu lado um pouco distante está uma marmita de comida.
— Se tu comportaste como sempre, posso maneirar nas punições —
diz, erguendo o dinheiro que outro detento deu para ser o próximo a obter
seu desejo.
Fecho meus olhos, levando minha mente para outro lugar, me
esquecendo da dor de ser preenchido com brutalidade, sem a minha
permissão e em minha imaginação onde não sinto nenhuma dor ou
humilhação, eu encontro minha família.
Ali, em um campo verde e cheio de rosas, sinto o quanto me amam, eles
fariam qualquer coisa por mim, morreriam por mim se fosse preciso, mas
logo desaparecem, seus rostos felizes se transformam em expressões furiosas.
Assassino... Assassino... Assassino... gritam, dou um passo para trás,
balançando a cabeça e dizendo que não, que não fui eu, mas eles continuam
me afastando... fazendo-me voltar para esse inferno onde estou.
A família é o alicerce de nossas vidas, a força que nos guia e a mão
que nos segura, estão ali, para passarem por momentos difíceis juntos, mas
comigo foi o contrário. As pessoas que mais deveriam estar ao meu lado,
foram as primeiras a me virar as costas.
Ararat ergue minha cabeça e me joga no chão quando tudo acaba,
estou sem forças para reagir, meus braços estão magros demais e minhas
costelas aparentes, estou desidratado e desnutrido, esperando apenas pela
morte.
— Estás a sofrer, putinha? — Jaroslav diz, segurando meu queixo e
fazendo-me encará-lo. — Isto é culpa sua, você que causou tudo isso, é o
mínimo que deves sofrer por tantas famílias que você destruiu.
Ele apanha a marmita e joga toda comida em cima de mim, solto um
soluço doloroso, escutando risadas antes de o silêncio reinar quando eles me
deixam no chão sujo.
Encaro um pedaço de carne, meu estômago ronca de tanta fome que
me inclino e a pego com as mãos trêmulas, colocando-a na boca e
mastigando enquanto choro ao sentir seu sabor.
Dar valor as pequenas coisas, agradecer por tudo o que tem, sorrir
mesmo diante de tamanha tempestade, foram ensinamentos do meu pai antes
de falecer. Fiz de tudo para me tornar o exemplo para minha família, me
sacrifiquei para que meus irmãos estudassem, dormia tarde e acordava de
madrugada com o objetivo de trazer comida para casa, mas... o que
adiantou?
Por que estão fazendo isso comigo? Por que me humilham dessa
maneira? Por que devo sofrer tanto por algo que não cometi? Por que
ninguém me ajuda? Por que... por que... por que...
Tento me levantar, só que minhas pernas estão fracas demais, então me
deito no chão, pegando mais um pedaço de carne e mastigando-a em busca
de aliviar minha fome.
Minutos se passam, a dor permanece, a fome se torna algo
insignificante e meus pensamentos... esses buscam incansavelmente uma
maneira de tudo isso acabar.
De repente algo chama minha atenção, ao lado da privada há algo que
me instiga a me arrastar para descobrir o que é. O fedor da sujeira não me
afeta mais, fecho a mão em volta do pequeno pedaço de espelho e me sento
encostado na parede.
Abro a mão e o ergo, me assustando ao ver meu rosto, estou
completamente destruído, mais magro do que imaginei e meus olhos verdes...
eles... eles... estão mortos. Tento sorrir, mas o que sai é um choro dolorido.
Tudo isso tem que acabar!
Abaixo o espelho, inspiro fundo e aperto-o contra minha pele. Se eu
morrer agora, não terei nada a perder, já fui abandonado pelas pessoas que
amo, então por que continuar respirando?
Prenso o lado afiado do espelho no meu pulso, ranjo os dentes quando
a dor me consome, sangue escorre... só que sinto prazer em fazer isso, então
começo a me arranhar e perfurar meu braço esquerdo.
Sorrio ao sentir o calor do sangue, a dor que estou sentido não é
causado pelos caras que me abusam, ou que me espantam, mas sim por mim,
isso me deixa aliviado e me sinto extasiado.
Solto uma gargalhada fraca quando minhas vistas ficam turvas, perco
o movimento do meu corpo, meus braços estão todos perfurados, meu
coração começa a bater lentamente, zumbidos preenchem meus ouvidos e me
sinto feliz... feliz por esse sofrimento finalmente ter chegado ao fim.
Ouço passos, mas não me importo, quem quer que seja vai terminar
com o resto do meu sofrimento. Levanto meus olhos e encaro o homem
agachado à minha frente, ele não diz nada de imediato, apenas me observa
com uma expressão fechada.
— Garoto fraco... — murmura, estalando a língua. — O que fizeste?
Esboço um sorriso, fiz a melhor coisa, estou acabando com a minha
vida por não aguentar mais, se é o certo eu não sei, mas nesse momento é
tudo o que mais quero.
— Achas que se matando vai resolver seus problemas? — Ele diz,
tirando o espelho da minha mão. — Essa escolha só me diz que tu és fraco...
— Não foi eu... — Murmuro, fechando meus olhos. — Eu não matei
ninguém...
— Não permitirei que morra — diz se aproximando. — Vamos lá, se
torne o que todos temem... se torne o assassino que todos acham que tu és, e
faça todos pagarem pelo que fizeste contigo.
— Sou fraco...
— Se torne forte, porque só assim conseguirá viver nesse inferno.
Encarando seus olhos escuros, sinto ódio invadir meu coração... ódio
por tudo o que estão fazendo, então a partir de hoje, farei de tudo para fazê-
los pagar, afinal, não tenho nada a perder.
...
Fico encarando-o, uma hora ele iria cobrar e eu sabia disso, me preparei
para isso, embora tenha que agradecê-lo por ter salvo minha vida, aqui fora
somos apenas inimigos com uma conta a ser quitada.
— Pensei que tínhamos resolvido — falo, tentando ler suas intenções.
— Pensaste errado — retruca, tirando um cigarro do bolso. — Muitas
coisas não podem ser apagadas, sabes perfeitamente disso.
— Tu me ensinaste muitas coisas, uma delas é nunca confiar em
ninguém, muito menos na pessoa que te tirou do buraco. — Ele me olha com
pesar, balança a cabeça e estica a mão, oferecendo-me o cigarro.
— Como fugiu?
— Me agarrei à minha única oportunidade — pego o cigarro que
oferece, Nikita assente, acendendo o seu próprio.
— A vida sempre nos surpreende — fala, tragando e soltando a fumaça
na escuridão da noite, encarando o céu estrelado de um sábado frio e úmido.
— Não quero te fazer mal — revelo, escorando meu ombro direito na
parede e fitando o cigarro. — Poderia ter feito isso anos atrás.
— E por quê?
— Te considero, porque seus ensinamentos me fizeram estar aqui hoje
— Nikita inspira fundo.
— Você não deveria ter feito aquilo...
— Ele que não deveria ter feito aquilo — corto-o com certa raiva.
— Um garoto... porra, tu eras um garoto!
— Não, eu não era mais — Nikita me olha, vejo um brilho de dor
transluzir seus olhos escuros, tão sutil que logo desaparece. Ele não é um cara
ruim, é apenas uma vítima da pobreza e do descaso da sociedade.
— Você sempre será meu garoto — abaixo a cabeça, é difícil olhar
para uma pessoa que você tanto confiava e acreditava.
— Você me traiu — confesso, soltando uma risada fria. — Porra...
— Foi necessário — olho para ele. — Têm coisas na vida que não
temos o controle da situação, eu tive que fazer.
— Até porque, eu viveria o resto da minha vida na cadeia, certo?
— Você nunca iria ser solto de qualquer forma — retruca, balanço a
cabeça com incredulidade.
— Eu tenho apenas uma coisa para fazer, então poderíamos deixar
nossa dívida para depois? — Levo o cigarro à boca, mas não acendo.
— E se tu morreres? — Dou de ombros.
— Nossa dívida será paga — Nikita ri, jogando o cigarro no chão.
— Não irei me intrometer nos seus negócios, tu lutaste por isso a vida
toda — Ele se aproxima e segura meu ombro. — Estarei no seu encalço.
Nikita me encara antes de se virar e voltar pelo mesmo caminho por
onde veio. Ele pode parecer um cara legal, mas isso é apenas manipulação, se
você lhe entregar toda confiança, não te restará mais nada, ele sugará até a
última gota da bondade que lhe sobrou.
Esse mundo onde fui jogado destrói qualquer alma bondosa. Olho para
trás, os garotos ainda permanecem à espera, dou um sinal e eles se vão, me
deixando sozinho, até o momento tudo está sob controle.
Paro em frente à porta de Laura, seus olhos azuis são tão fascinantes
que poderia mergulhar no mar cristalino que tanto desejo. Tentei me manter
afastado, até para não trazer mais complicações para sua vida, só que o seu
cheiro... sua voz... é tudo o que desejo.
Algo me puxa para ela, a tristeza impregnada em seus olhos faz cada
parte do meu corpo vibrar desesperado para tirar isso dela. É estranho, visto
que a conheço tão pouco tempo, mas foi o suficiente para ficar encantado.
Abro a porta e entro, encontrando-a sentada na mesa encarando os dois
cachorros quentes que comprou. Laura levanta a cabeça e me olha surpresa.
— Pensei que não iria mais voltar. — Diz, se remexendo na cadeira,
Rony mia se deitando em meus pés, me abaixo e o pego em meu colo.
— O que queres tomar? — Pergunto, indo até a geladeira.
— Ruslan? — Olho para trás, meu nome saindo por sua boca desperta
algo desconhecido dentro de mim, ainda não me acostumei com esse efeito.
— Sim?
— Comprei dois cachorros quentes e... quer comer? — Umedeço meus
lábios, acariciando o gato em meus braços.
— Por que não? — Laura balança a cabeça e arrasta a comida até o
outro lado da mesa, ela não gosta que eu fique muito perto dela, muito menos
que a toque, vejo o medo impregnado em seus olhos.
— Certo, suco seria bom. — Sorrio de leve, porque é só o que temos,
suco e água.
Coloco o Rony no chão, apanho a garrafa de suco, dois copos e levo até
ela. Ao sentir minha aproximação, Laura se encolhe, me deixando paralisado.
Ela esconde suas mãos debaixo da mesa, coloco o copo com o suco à sua
frente sem me preocupar com a demora, tentando desvendar o porquê de ela
ser assim.
— Estás bem? — Pergunto ao me sentar do outro lado, ela assente e dá
um gole no seu suco sem me direcionar um olhar.
— Estou bem — Laura roda o copo, fitando minhas mãos que segura o
cachorro quente. — O que aconteceu que você ficou tenso e me mandou
voltar?
Ela dá uma mordida no seu lanche, gosto do fato dela me perguntar as
coisas, por se interessar pelas coisas que acontecem em minha vida, é uma
certeza de que Laura me quer por perto.
— Um assunto pendente — ela me olha, arqueando uma sobrancelha,
inclino a cabeça para o lado, observando seu rosto delicado, lábios carnudos e
bem delineados, sua pele mais morena a deixa atraente ao ponto de me
despertar.
— Seus olhos são lindos — elogio, Laura congela. — Teus olhos azuis
cor de anil, da cor do mar, faz-me amar... São duas joias preciosas, dois
diamantes irradiando. Luz, meiguice, doçura e sensibilidade de uma Mulher-
menina que me fascina... Quando olho para os olhos teus, reluz a paz que
tanto necessito... — Finalizo a citação de Elias Akhenaton notando sua
surpresa, Laura não é acostumada com elogios e nem imagina o quanto é
linda.
— O que foi isso? — Pergunta, limpando a garganta e tentando se
recuperar.
— Sou um romântico de nascença — respondo divertido.
— Você deveria comer seu cachorro quente — assinto, concordando.
— Deveria! — Murmuro, levando a comida à boca e mordendo, o
sabor me invade com uma intensidade que me deixa emocionado.
— Está bom?
— Sim, ainda não me acostumei a comer essas comidas.
— O que você sente? — Olho para ela, devorando meu lanche.
— Emoção...
— Por quê? — Comprimo meus lábios, engolindo o último pedaço.
— Laura? — Ela se inclina sobre a mesa. — Queres mesmo saber?
— É ruim? — Assinto, ela abaixa a cabeça.
— A cada dor e humilhação um garoto morria e um monstro nascia. —
Fecho meus olhos com um ranger de dentes. — Cada dia que eu passava
naquele inferno, mais minha alma se perdia...
— Mas você pode reencontrá-la... — Sussurra.
— Eu não desejo encontrá-la.
— Por quê? — Laura me olha com surpresa, solto o ar pela boca e
balanço a cabeça, sentindo o ódio me consumir.
— Porque quando se tem uma alma, você perde a coragem de matar —
Digo, encarando-a com intensidade.
Laura engole em seco, desviando do meu olhar furioso, é visível seu
desconforto diante do que eu disse, ela sente medo de mim e eu apenas fiz
com que esse medo aumentasse de tamanho.
— Um dia, me disseram que nunca iria me machucar, e eu acreditei,
mas essa mesma pessoa que usou essas palavras foi a que me feriu. —
Confessa, fazendo meu coração disparar. — Você diz que não tem alma, que
deseja matar, não mente, não esconde seu verdadeiro eu, apesar de saber que
do outro lado de seus olhos, ainda existe um garoto esperando ser liberto, eu
não acredito em você.
— Não é questão de acreditar...
— A questão aqui é: se permitiremos que a dor nos consuma dia após
dia, ou superamos ela com o pouco de força que temos, essa é uma escolha
que somente nós podemos fazer.
— Tu superaste, Laura? — Pergunto, sua respiração está acelerada e
vejo sombras em seus olhos.
— Eu... nunca consegui — confessa em um sussurro, meu coração
aperta querendo iluminar a escuridão que a reprime.
— Eu também não!
Ficamos encarando um ao outro por longos segundos, quero poder
deixá-la entrar, lhe entregar as chaves, mas isso resultaria em sofrimento, dor
e desilusão, posso ter sido um bom garoto, mas isso se perdeu. Tenho sangue
derramado em minhas mãos, não quero fazê-la sofrer mais do que já sofre,
mas ao mesmo tempo, quero que me ajude a arrancar a aflição da minha
mente atormentada.
Laura luta contra seus demônios e eu contra os meus, mas e se
decidirmos lutar juntos, será que conseguiríamos recomeçar? Será que ela me
aceitaria do jeito que sou?
— Você irá sorrir outra vez — declaro com confiança. — Nem que
para isso eu tenha que lhe trazer a lua.
— Ela é muito grande — diz, com a voz embargada.
— Não quando temos um sonho a alcançar — Laura assente, se
levantando e caminhando em direção ao seu quarto.
— Ruslan? — Sua voz suave me chama, mas eu não a olho. — Qual
seria seu sonho?
— Existem dois — me levanto e a encaro, Laura recua um passo
quando me aproximo dela. — O primeiro é poder te tocar e o segundo... te
fazer sorrir. — Ela me olha em choque.
— Mas... você não sonha em encontrar quem fez isso com você? —
Nego com a cabeça.
— Isso é meu objetivo, meu sonho nesse momento é você. — Digo, me
virando e indo até a porta.
— Esse seria seu terceiro sonho... — Ela sussurra, sorrio fechando a
porta atrás de mim.
— Não é o terceiro, mas sim, um conjunto de sonhos — sussurro
enquanto mergulho pela noite, me perdendo nas lembranças do seu olhar.
Levanto da cama depois de ter passado mais uma noite em claro, as
palavras de Ruslan não saem da minha mente. Será que ele estava flertando
comigo? Congelo com a pantufa nas mãos.
Será que ele estava dando em cima de mim?
Franzo a testa, relembrando da nossa conversa que tanto mexeu
comigo, e ao mesmo tempo me deixou confusa, sem saber como reagir ou o
que pensar.
Vou para o banheiro, enquanto escovo os dentes, fico me encarando
pelo espelho “Teus olhos azuis cor de anil, da cor do mar, faz-me amar... São
duas joias preciosas, dois diamantes irradiando...” Quando ele recitou meu
coração deu um estalo, achei tão lindo e ao mesmo tempo tão perturbador.
Escuto uma porta se abrir, saio do banheiro apressada e o vejo se
inclinando e tirando seus coturnos sujos. O que Ruslan está aprontando? Seus
olhos se prendem nos meus, um sorriso de canto estampa seu rosto cansado.
— Estás acordada... — Seus olhos descem por meu corpo e seu sorriso
aumenta.
Olho para mim, estou realmente engraçada com um pijama rosa,
pantufas do Coragem, um coque bagunçado caído para o lado e com a escova
de dente na boca...
— Estás muito bonita esta manhã — volto a olhar para ele que tira sua
blusa me fazendo paralisar.
Ruslan está tão à vontade que acho que perdeu a noção de que estou em
sua presença. Ele se inclina e... céus... tira a calça, arregalo os olhos vendo-o
apenas de cueca. Engasgo com a pasta de dente, Ruslan nem me olha quando
passa por mim, entrando no banheiro.
— Preciso tirar a sujeira do corpo, vai levar apenas alguns segundos —
não me mexo, chocada demais com o que acabou de acontecer. — Deixarei a
porta aberta se quiser entrar... — Viro-me para ele, que tem um sorriso
prepotente nos lábios.
Tiro a escova de dentro da boca e aponto em sua direção, meus olhos
descem por seu corpo involuntariamente, meu coração acelera e minhas mãos
tremem, dou um passo à frente, estico a mão e fecho a porta, soltando a
respiração.
Estou tão espantada que me mantenho no lugar sem conseguir me
mover. Por que ele fez isso? Vou até a pia da cozinha e enxáguo minha boca
com sua imagem pipocando minha mente.
Vou para meu quarto com meu coração acelerado e me jogo na cama,
encarando o teto. Escuto uma batida sutil na porta minutos depois, me ergo
um pouco e encaro Ruslan, vestido com roupas escuras.
— Você foi pretensioso — digo, ele me olha divertido.
— Gostarias de tomar café comigo? — Pergunta, aperto meus lábios e
assinto.
— Você vai fazer?
— Não, mas você vai.
Me levanto e vou preparar o café da manhã que resume apenas em ovos
mexidos, café e pão. Enquanto isso, Ruslan se senta no sofá com Rony,
acariciando-o e murmurando algo que não entendo. Fico tão inerte nos dois
que quase queimo a comida.
Ruslan senta à mesa, pego meu celular e me encosto na geladeira lendo
as mensagens do grupo do trabalho.
Aksinya: Eu estarei incomunicável hoje.
Yaroslav: Pq?
Justik: Bom dia pra quem ainda não acordou!
Aksinya: Por quê???? Para Andry não me atormentar
Justik: Hoje é nossa folga...
Aksinya: Ele se importa?
Eu: Ñ, ele não se importa
Yaroslav: Anein... irei desligar tbm!
Justik: Voltando a dormir, meu celular está sem rede, não sei pq!
Yaroslav: kkkkkkk
Eu: O meu descarregou e ñ tenho carregador!
Aksinya: Eu desliguei mesmo! Até logo, Fui...
Justik: Foda-se, é minha folga!
Congelo quando Ruslan para na minha frente, minha respiração acelera,
fiquei com a guarda tão baixa que não percebi sua aproximação. Aperto o
celular e levanto o olhar, me encontrando com seus olhos fascinantes. É a
primeira vez que fico tão perto dele a ponto de dar um passo à frente e me
colidir no seu peito.
— Tu escutaste? — Pergunta, nego com a cabeça. — Eu necessito de
água. — Engulo em seco, fico confusa por alguns segundos antes de perceber
que estou encostada na porta da geladeira.
— Ah... — Dou um passo para o lado, seus olhos continuam fixos nos
meus, desvio do seu olhar e vou até o sofá, sentindo um pouco de falta de ar
devido às batidas incontroláveis do meu coração.
— Você não trabalha hoje? — Ruslan abre a garrafinha de água, nego
com a cabeça.
— Hoje é domingo — digo, desligando o celular.
— O que faz no seu dia livre? — Pergunta, lavando os pratos sujos.
— Leio, assisto desenho, mais desenho, leio de novo e durmo um
pouquinho, também como pipoca, e às vezes faço muitas comidas nada
saudáveis. — Ruslan enxuga suas mãos, me observando.
— Então passarei o dia com você.
— Comigo? — Minha voz sai mais alta do que o normal, ele assente.
— Você não tem nada para fazer? Você sempre está saindo...
— Tu não queres que eu fique aqui? — Mordo o interior das minhas
bochechas.
Ruslan passará o dia comigo, na mesma casa, dividindo o mesmo sofá,
embora ele esteja morando aqui já há alguns dias, nós nunca ficamos tanto
tempo juntos. Isso me deixa mais assustada do que já estou.
— Laura? — Olho para ele.
— É que vou na feira daqui a pouco... — Umedeço meus lábios, aperto
os dentes e abaixo a cabeça. — Você quer ir?
— Adoraria — responde sem nem pensar, assinto me aconchegando no
sofá quando o desenho do Coragem começa, mas não presto atenção, a
presença de Ruslan não permite que isso aconteça, só espero que esse dia
transcorra sem nenhuma surpresa.

Ajeito minha touca e luvas quando saio de casa, olho para cima, o céu
está limpo, o sol... ah como é bom sentir o sol novamente. O frio continua,
mas hoje é sinal de que está quase acabando.
— O verão chegou, Ruslan — me viro para ele que está me encarando.
— Sim — diz, desviando o olhar e esticando a mão para sentir o calor
dos raios do sol em sua pele. — Ele chegou!
— Vamos? — Pergunto, Ruslan assente e ajeita o capuz, escondendo
seu rosto para que ninguém possa reconhecê-lo.
Caminhamos em silêncio por uns quinze minutos até chegarmos ao
nosso destino. Aqui compramos muito mais nas feiras do que nos
supermercados, geralmente elas são muito maiores e englobam muitas lojas e
tendas.
Meus olhos varrem o espaço lotado com tendas coloridas, aqui é
possível encontrar muito além de frutas, verduras ou legumes, mas também
roupas, calçados, livros, flores, louças e por aí vai.
São tão atraentes que é a alegria não somente dos moradores, mas
também dos turistas que podem comprar roupas típicas, artesanatos e
bordados ucranianos. Quando vim pela primeira vez, fiquei fascinada pela
riqueza que é, pelas cores e peças extremamente ricas em detalhes e
significados.
Olho para alguns homens e mulheres vestidos com roupas bordadas,
uma tradição repleta de cor e elegância. Ruslan parece fascinado enquanto
caminhamos por entre as tendas e barracas, parecendo ser sua primeira vez.
Sinto dentro do meu coração uma queimação que diria ser felicidade
por vê-lo redescobrindo o mundo onde foi privado de viver. Emoção também
se mistura com a indignação da injustiça que destruiu sonhos de um garoto
simples e inocente.
Mas espera... será que realmente ele é inocente para eu estar falando
assim? Respiro fundo, desvio meu olhar fixo nele e volto a prestar atenção na
feira que ainda está vazia, uma das vantagens de vir nas primeiras horas de
abertura, e outra vantagem é o preço, que é mais em conta do que nos
supermercados, é possível comprar muitos produtos frescos e produzidos
artesanalmente.
Paro em frente a uma tenda de livros, todas às vezes que venho, sempre
volto com uns dois ou três livros novos, mas que infelizmente não fico muito
tempo com eles. Meu apartamento é pequeno demais para ter uma coleção.
Então sempre estou doando aqueles que sei que não irei reler.
— Esse livro é muito bom — mostro para Ruslan quando para ao meu
lado. — Você gosta de romance? Ontem disse que é um romântico, então
deve ser do seu gosto.
— Seduzida por um Guerreiro Escocês? — Assinto, quando ele lê o
título do livro.
— A escrita da Maya Banks é muito gostosa e essa história se passa
naqueles tempos medievais, a protagonista é surda e muda, e se casa com um
homem depois de um tratado de paz. Vale a pena, quer que eu leve para
você? — Ruslan fica me olhando estranho, pigarreio e desvio do seu olhar,
pegando o segundo e o terceiro volume.
— Ficarei contente — responde por fim.
— “Graeme a fascinava. Não era como se pudesse ouvir suas
palavras, mas a voz dele soava como um zumbido grave e prazeroso em seus
ouvidos. Um raio de luz em seu sombrio mundo de silêncio” — termino de
recitar um trecho do livro, uns dos meus preferidos na verdade.
— Troque Graeme por Ruslan — ele diz, com um sorriso nos lábios
pegando a sacola dos livros que a senhora nos dá.
— Você não é Graeme.
— Mas sou Ruslan — Olho para ele e reviro os olhos, voltando a
andar.
Paro na banca de frutas e escolho as minhas preferidas, peço para que
Ruslan escolha também, é fascinante observá-lo pegar as frutas, sentindo seu
cheiro... é como ver uma criança descobrindo algo novo.
Despois das frutas escolhidas, voltamos a caminhar por entre as
pessoas, tento a todo custo não ser tocada por elas, sempre escolhendo
corredores mais vazios para andar.
Uma das coisas que nunca irei me acostumar nas feiras é a forma em
que vendem as carnes, elas ficam expostas em mesas ou em freezers. Então
sempre compro carne em supermercados.
— Tu queres? — Me viro para Ruslan, ele aponta para a senhora com
roupas coloridas que sorri para gente.
— Sim — confirmo, Ruslan faz o pedido e a senhora começa a
preparar um pão recheado, nos entregando minutos depois. — Onde arrumou
dinheiro? — Pergunto depois de ele efetuar o pagamento e voltarmos a andar.
— Acredite, foi de forma justa — ele pisca um dos olhos, sorri e morde
seu pão.
— Okay! — Murmuro sem pedir por mais detalhes.
Meus olhos se prendem nas senhoras de idade vendendo verduras e
flores, uma está sentada vendendo carne de frango exposta em cima de um
plástico, pode ser até normal aqui no país essa forma de comercialização, mas
não para mim. Faço uma careta para essa peculiaridade, isso se aplica
também aos peixes, eles amam comer peixes desidratados, eu particularmente
não gosto.
As senhoras que trabalham nas feiras têm uma idade bem avançada, são
chamadas de “babushkas”, ou seja, “vovozinhas”. Isso me deixa um pouco
triste, porque reflete a dura realidade de muitos que enfrentam neste país,
onde o salário e as aposentadorias são baixos.
Paro de uma vez, olho para os lados e não vejo Ruslan, a feira começou
a encher. Meu coração começa a bater acelerado, será que ele me deixou
aqui?
— Laura? — Viro-me assustada ao reconhecer sua voz, ele está parado
segurando uma rosa.
— Fiquei assustada — Digo, colocando a mão no coração.
— Por quê?
— Você sumiu — Ruslan sorri, o sol reflete seus olhos deixando-os
com uma cor verde cristalino, tão vibrantes que meu estômago se contorce.
— As babushkas insistiram que eu deveria lhe dar uma rosa. — Olho
para as vovozinhas da banca de flores, elas acenam para mim, sorrindo,
retribuo o aceno e volto a encarar Ruslan.
— Elas são fofas, não são? — Digo, pegando a rosa vermelha de sua
mão.
— Senti falta delas.
— Você vendia rosas, certo?
— Sim — confirma, andando ao meu lado. — Vendi muitas rosas
nessas feiras aos domingos, sempre ficava ao lado delas, são muito
simpáticas.
— Você ganhava muito?
— Suficiente para ajudar em casa — responde, balançando as sacolas.
— Por que rosas, Ruslan?
— Pegue as sacolas, Laura — olho para ele assustada com o tom da sua
voz.
— O que foi? — Pergunto, pegando-as.
— Volte para casa, okay? — Ele me olha sério, balanço a cabeça
confirmando sem entender o que ocasionou essa mudança de comportamento
tão repentina. — Cuide-se, estarei por perto!
— Ruslan? — Chamo quando ele sai andando apressado sem
explicação, fico desapontada, mas logo entendo o que aconteceu para ele
ficar assim.
Prendo a respiração ao perceber quatro policiais rodando a feira, só que
eles estavam de olho em nós, dois deles começam a seguir Ruslan que se
mistura entre as pessoas.
— Droga... — resmungo, chateada e com medo de que o peguem de
novo.
Olho para os lados perdida sem saber o que fazer, queria poder ajudá-
lo, mas neste momento sou inútil. Encaro um policial que me observa à
distância, choque percorre meu corpo ao perceber que ele pode estar
desconfiando de mim.
Vou até uma tenda de roupas, escolho duas blusas bordadas para mim
na tentativa de dissipar sua atenção e vou embora sutilmente minutos depois.
Durante todo o caminho, fico olhando para trás para ver se estou sendo
seguida.
Será que eles descobriram que era Ruslan ao meu lado?
Aperto com mais força as sacolas em minhas mãos, era questão de
tempo até a polícia chegar nessa região, um lugar onde é possível um
assassino em série se esconder.
Solto um suspiro longo e preocupado, espero que ele fique bem...
congelo quando viro a esquina e ergo a cabeça, meu coração bate tão
acelerado que se ele não estivesse me encarando, eu teria saído correndo.
— Bom dia, Laura — Artem saúda com um sorriso no rosto, ele está
com os braços cruzados, e escorado em um carro esportivo.
Pela forma divertida e ao mesmo tempo furiosa que me olha, tenho a
leve impressão de que ele sabe que Ruslan está aqui, não sei até onde posso
omitir essa informação, mas sei que da minha boca ele nunca saberá a
verdade.
Custe o que custar, protegerei Ruslan mesmo que isso me torne uma
mulher louca por essa escolha. Ele só tem a mim, nesse mundo onde todos
acreditam que ele é um assassino, se ele é eu não tenho certeza, mas farei de
tudo para descobrir o que está acontecendo e porque essas pessoas agem tão
estranho quando seu nome é citado.
Estou permitindo que Ruslan entre em minha vida, porque o reflexo
dos seus olhos é como estar me olhando do outro lado do espelho, a solidão e
a tristeza que o reprime é como as minhas, só que ele sorri mesmo diante de
tanta dor, e eu... eu quero apenas desvendar todos os seus segredos.
É um risco, estou entregando minha confiança a um homem com um
passado sombrio, que poderá me machucar, mas eu quero que ele fique, ao
meu lado, porque em todos os anos, Ruslan é o único capaz de enxergar meu
coração.
Fico o encarando sem dizer nada, um vento frio beija minha pele, o
silêncio que nos envolve é perturbador, sinto como se houvesse uma disputa
entre mim e Artem, e talvez tenha, porque enquanto ele quer a resposta, eu
escondo a verdade.
— O que faz aqui? — Pergunto, segurando com mais força as sacolas.
— Onde está seu acompanhante? — Artem passa a língua no seu lábio
inferior, mudando o peso do seu corpo para a outra perna.
— Que acompanhante? — Ele solta uma risadinha, abaixando a cabeça
como se eu tivesse lhe contado uma piada sem graça.
— Tu não me enganas! — engulo em seco.
— Está me seguindo? Como sabe onde moro? — Artem me olha
fixamente, meu estômago revira com a intensidade do seu olhar.
— Sou um policial, sei de muitas coisas — declara, desencostando do
carro.
— Eu não quero você aqui! — Ajeito as sacolas sentindo dor nos nós
dos meus dedos por conta do peso.
— Tu escondes segredos, pequena, segredos que me deixam encucado
e curioso ao mesmo tempo. — Meu coração acelera com as suas palavras, ele
coloca as mãos no bolso da calça, ainda me encarando como se eu fosse a
única coisa existente para olhar.
— Você está me assustando — digo, engolindo meu nervosismo.
— Tu nunca paraste para imaginar que pode ser presa se eu descobrir
que escondes um assassino na sua casa? — Fala com a expressão dura. —Tu
serás uma cúmplice, a responsável por permitir que ele volte a cometer
atrocidades.
— Eu não... — Me calo quando ele solta uma risada, olhando para os
lados.
— Tu és linda, uma mulher que atrai qualquer olhar, mas... além da
beleza ofuscante, és uma bela mentirosa — diz com raiva. — Tão mentirosa
que mente para si mesma, uma pena!
Ranjo os dentes com fúria diante das suas ofensas, quem ele pensa que
é? O último biscoito do pacote? Sim, estou escondendo uma droga de um
criminoso, estou mentindo, mas isso não lhe dá o direito de me insultar dessa
maneira.
— Vou te pedir só mais uma vez. — Me aproximo, olhando no fundo
dos seus olhos. — Não o quero mais perto de mim, suas desconfianças não
lhe dão o direito de me ofender dessa maneira quando você nem ao menos
me conhece. Então não me deixa ficar com ódio da sua cara, tenho certeza
que não vai me querer como inimiga, certo?
Artem sustenta meu olhar, seus lábios se curvam em um sorriso cético,
sou um enigma que desperta sua curiosidade. Minha aversão ao toque, meus
traumas e minhas lembranças dolorosas me fizeram uma pessoa firme,
mesmo diante a tantas provações, e eu jurei que nunca mais iria ser tocada ou
maltratada por um homem novamente.
Eu tenho voz, devo ser ouvida, respeitada e acima de tudo valorizada,
não por ser uma mulher, mas por ser uma pessoa que não é mais e nem
menos que ninguém, sou igual a qualquer um, com meus erros e defeitos.
— Espero que nunca se arrependa. — Diz, quebrando a tensão que nos
rodeia.
— Talvez eu me arrependa, porque cometo muitos erros — retruco,
Artem balança a cabeça.
— Estou de olho em você, pequena flor. — Diz, se virando e entrando
em seu carro.
Espero ele virar a esquina para soltar a respiração que estou perdendo
tempo demais. Sinto-me um pouco zonza com o que acabou de acontecer.
Medo consome meu coração e espero que Ruslan tenha conseguido despistar
os policiais.
Olho para os lados, estagnada no lugar e tentando me recuperar. Ruslan
não irá voltar hoje para casa, não quando tem pessoas me rondando. Meus
olhos se prendem em dois garotos do outro lado da rua que me observam com
atenção, franzo a testa estranhando quando um deles me oferece um pequeno
aceno.
— Laura? — Olho para frente ao escutar a voz de Gana. — O que faz
parada aí?
— Acabei de chegar da feira. — Falo, olhando-a ativar o alarme do seu
carro e se aproximar de mim. — Está tudo bem?
— O que achas de passar o dia comigo? Podemos assistir filmes... ah,
quero muito assistir Timão e Pumba, sei que tu amas. Então topa?
— Claro — aceito de imediato, Gana fica me encarando, paralisada. —
O quê?
— Mesmo?
— Sim!
— Tu não vais recusar como todas as outras vezes? — Nego com a
cabeça, ela desvia o olhar incrédulo. — Céus, eu vivi para ver isso...
— Como?
— Nada! — Gana volta a me olhar, sorrindo. — Vamos? Acredito que
queiras guardar suas compras primeiro.
— É questão de minutos — ela assente, subindo comigo até meu
apartamento, Gana espera do lado de fora enquanto isso. — Vamos? —
Pergunto, trancando a porta.
— Vamos!
Entro em seu apartamento, observando o quanto é colorido e divertido,
há plantas em cada cantinho da sala e vasos de flores na janela, deixando sua
casa mais aconchegante.
Gana deixa as chaves em cima da mesa, tira seus sapatos e vai para a
cozinha, separada apenas por um balcão da sala. Ela ama cores, faz de tudo
para deixar seu lar o mais alegre possível, uma das qualidades que me faz
gostar dela.
— Preparei algumas coisas para gente.
— Você sabia que eu aceitaria? — Pergunto, me inclinando no balcão.
— Não, se tu não aceitaste, eu passaria o dia sozinha — ela levanta a
cabeça, me olha e sorri. — Por isso foi uma grande surpresa quando tu
aceitaste.
— Estou... deixando as pessoas entrarem — sussurro, Gana aperta os
lábios, limpa a garganta e começa a preparar algumas comidas, como
sanduíches, pizzas e pipoca.
— Estou muito interessada em engordar hoje — diz, meus olhos
descem por seu corpo curvilíneo, ela se mata na academia e segue uma
alimentação rigorosa, até porque seu corpo é sua fonte de renda.
— Depois a gente perde — Gana estreita seus olhos, divertida.
Minutos se passam enquanto ela prepara tudo para nossa sessão de
cinema em casa. Gana me conta várias coisas de sua vida, detalhes do seu
trabalho, de como queria fazer outra coisa além de se prostituir e do quanto
está feliz por estar estudando, ela diz que nunca pensou ser capaz de mudar
de vida e quem sabe ter uma profissão decente.
Depois de aproximadamente duas horas conversando sem parar, ela
coloca as comidas que já tinha preparado na mesa de centro, pega o controle
de sua tv e me olha.
— Seguinte — Gana me encara, fico agoniada com seu suspense.
— O quê?
— Tu já foste em um karaokê?
— Não! — Respondo, me sentando no sofá cheio de almofadas.
— Certo, espere aqui! — Ela sai correndo em direção ao seu quarto e
volta, segundos depois com dois pares de pantufas e pijamas.
— O que pretende fazer?
— Estamos fazendo um dia de pijama com muita comida, karaokê e
filmes — diz, me entregando uma pantufa do timão e um pijama com a
mesma estampa.
— Não sabia que você gostava tanto assim desse desenho. — Falo,
tirando a roupa e colocando o pijama assim como Gana está fazendo.
— Eu não gostava, até assistir uma vez com você. — Ela estala a
língua de forma divertida chamando minha atenção. Gana ergue as mãos e
gira para mostrar seu pijama com estampa do Pumba e pantufas, ela está
muito engraçada. — O que achaste?
— Bonita — me levanto, olhando para o meu. — E eu?
— Como sempre, fascinante — diz rindo, pega o controle novamente e
liga a tv. — Estás pronta?
— Sim! — Apanho uma garrafinha de água que estava em cima da
mesa de centro, Gana me olha.
— Eu sou o timão e você o pumba, Simba continua o mesmo —
assinto.
Gana estremece de entusiasmo, afasta a mesa de centro para nos dar
mais espaço e sorri como uma criança que acabou de ganhar um pirulito.
Seus cabelos em coque bagunçados a deixa tão linda que sinto um calor em
meu coração por tê-la como amiga.
A música do desenho começa a tocar, ela se movimenta conforme a
canção, acenando para que eu, assim como ela, entre no papel do
personagem, o que não é muito difícil de acontecer.
— Hakuna Matata — Gana começa a dublar se movimentando que nem
o timão — é lindo dizer... — Ela aponta para mim.
— Hakuna Matata — digo ao mesmo tempo em que o Pumba, fazendo
Gana rir. — Sim, você vai entender...
— Os seus problemas você deve esquecer — Gana canta enquanto
dança. — Isso é viveeeeeer, é aprender, Hakuna Matataaaaaaa.... — Ela solta
uma gargalhada.
— Hakuna Matata? — A voz do Simba sai pela tv, Gana faz uma
careta como se o que ele perguntou fosse um absurdo.
— É... é o nosso lema — dublo a fala de Pumba.
— Lema? O que é isso? — Simba pergunta.
— Nada, não confunda com lesma! hahaha! — Gana imita a risada de
Timão.
— Sabe garoto... — Digo, olhando para o filhote de leão na tv — Essas
duas palavras resolvem todos os seus problemas
— Tem razão, veja o Pumba, por exemplo... — Gana aponta para mim,
imitando o personagem Timão — Ouça, quando ele era um filhoooooote...
— Quando eu era um filhóóóóóte — falo de forma divertida.
— É... foi bom isso, hein? — Diz, enrugando os lábios.
— Obrigado — inclino, agradecida como Pumba faz.
— Sentiu seu cheiro era de um porcalhão, esvaziava a savana depois da
refeiçãoooooo... — Gana diz.
— Era só eu chegar, e era um tormentooooo. — Falo, pegando um
pouco de pipoca — Quando via todo mundo sentar contra o veeeento. Ai que
vexame!! — Coloco a pipoca na boca.
— Era um vexaaaame! — Gana dubla rindo.
— Quis mudar meu nomeeeee!!! — Engulo em seco quando dublo essa
parte, fazendo-me lembrar do meu passado.
— Ah, quê que tem o nome?
— Me sentia tãooo triste!! — Abaixo o olhar, ela estala a língua.
— Se sentia triste... — Ela faz uma cara tristonha.
— Cada vez que eu... — Fecho meus olhos com força.
— Ei Pumba, na frente das crianças não... — Gana grita, abro os olhos
e a encaro, vejo em seu olhar o entendimento que isso me trouxe recordações
que me machucaram.
— Ah, desculpa — ela assente, sorrindo.
— Hakuna Matata, é lindo dizeeeer... — Fala com os olhos fixos em
mim.
— Hakuna Matata, sim você vai entedeeer...
— Os seus problemas, você deve esqueceeer... — Simba canta.
— É isso aí garoto! — Gana imita, encarando a tv.
— Isso é viver!!!
— É aprendeeeer...
— Hakuna Matata — Ela para e abre os braços como se estivesse
mostrando um lugar novo.
— Bem-vindo ao nosso humilde lar... — Diz para Simba.
— Vocês moram aqui? — Ele pergunta.
— Moramos onde queremos — Gana fala, fazendo uma careta.
— É... lá é onde o bumbum descansa — digo, remexendo a minha e
fazendo-o gargalhar.
— É bonitooooo... — Ele diz.
Abro a boca e finjo arrotar.
— Que fome! — Digo Gana faz outra careta.
— Eu seria capaz de comer uma zebra inteira. — Simba declara.
Gana paralisa e me olha com olhos arregalados e mãos no coração. Ela
faz a mesma risada do Timão — Aqui não tem zebra...
— Um antílope? — Ele pergunta, Gana balança a cabeça
negativamente, se fazendo de chocada.
— Não!
— Coelho? — Ela solta uma respiração pesada.
— Não... ouça, aqui vivendo com a gente, vai comer como a gente... —
Gana se aproxima das comidas. — Olhe! Aqui é um bom lugar para descolar
algum “grude” ...
— Hã... o que é isso!? — Simba pergunta, curioso.
— Comida! O que parece? — Gana diz, aproximando um pedaço de
pizza em direção à tv.
— Argh! Que nojo!
— Hum... hm.. hm... gosto de galinha... — Ela imita, mastigando a
pizza.
— Viscoso, mas gostoso — digo a fala de Pumba, pegando também
uma pizza e comendo.
— Isso são guloseimas raraas... — Gana morde um pedaço do
sanduíche. — Uma noz, muito gostosa e crocanteee...
— Vai aprender a gostar — falo, olhando para Simba na tv.
— É o que eu digo, garoto, esta que é a boa vida, sem regras, sem
responsabilidades — Gana se joga no sofá com três sanduíches na mão e uma
pizza na outra. — Hm... é do tipo cremosooo — ela lambe o queijo. — E
acima de tudo sem problemas! E então?
—Tudo bem... Hakuna Matata... — Simba concorda, olho para ele que
engole um inseto com dificuldade. — Viscoso... mas gostoso!
— É isso ai! — Gana se levanta animada e começa a dançar no ritmo
da melodia, gesticulando para que eu a acompanhe.
— Hakuna Matata, Hakuna Matata, Hakuna Matata, Hakuna... —
cantamos em uníssono, andando em círculo como se estivéssemos na selva
como eles estão no desenho.
— Os seus problemas, você deve esqueceeer... — Simba canta.
— Isso é viver, é aprender... — Acompanho, me movimentando
conforme a música.
— Hakuna Matataaaaaaaaa
— Hakuna Matataaaaaa
— Hakuuuuuuuuuna matata... Hakuna Matataaaa iiiiiiiiiié.... — Gana
sai andando cantarolando até que a música acaba.
Nossa respiração está acelerada, Gana começa a rir feliz por esse
momento, ela me olha e aponta um sanduíche em minha direção.
— Laura, seus problemas você deve esqueceeer... — Comprimo
meus lábios.
— Isso é viver, é aprender...
— Nunca se esqueça, — ela se aproxima, me olhando nos fundos dos
meus olhos — quando a tristeza te abater e a dor permanecer, Hakuna
Matata...
Fico olhando para ela sentindo meus olhos queimarem, mesmo que
esteja fazendo de tudo para me ver sorrir ou me fazer feliz, ainda sinto a
tristeza de tudo o que me aconteceu, me abater dia após dia.
Estou tão quebrada que tenho medo de nunca ser capaz de me
consertar. Ninguém imagina, como é sentir que tudo foi tirado de você, sua
inocência, sua pureza, sua juventude e sua alma... a cada dia uma parte de
mim morria. A cada segundo que eu o sentia me maltratando, perdia um
pedaço de mim. Hoje tento encontrar meus cacos nas pequenas coisas da
vida, a cada sorriso direcionado a mim e a cada tentativa de me fazer feliz,
porque é isso que me faz continuar, mesmo que seja a passos pequenos, isso
me motiva a superar qualquer que seja a dor impregnada em meu coração.
— Obrigada — sussurro com um caroço na garganta.
— Eu que agradeço por... me aceitar do jeito que sou — ela diz,
limpando as lágrimas.
— Quer repetir? — Aponto para a tv, Gana balança a cabeça.
— O que achas de dublarmos a Barbie?
— Sim!
Ela sorri animada mudando de canção, e passamos o dia comendo,
cantando e assistindo filmes sem pensar em nossas vidas, fugindo da
realidade e adentrando em um mundo onde tudo é possível.
Encaro a boca de Andry que se movimenta enquanto jorra bronca por
termos desligado os telefones, mesmo que seja nossa folga, isso nunca deve
acontecer.
Eu deveria estar prestando atenção no que ele está falando, me sentir
realmente culpada por ter negligenciado meu trabalho que tem uma carga
horária pesada, deixando-me apenas com o domingo livre... aliás, às vezes
livre, porque até isso Andry costuma nos tirar.
Troco o peso do meu corpo para outra perna, sua voz é como um
zumbido de uma mosca voando em meu ouvido. Seria errado eu chamá-lo de
mosca? Sim, eu acho que sim! Então Andry não é uma mosca, apenas um
patrão exigente!
Respiro fundo, querendo que essa reunião de broncas acabe, mas o
motivo de eu estar tão dispersa tem um nome... nome do qual faz meu interior
vibrar e meu coração saltar.
Ruslan não voltou para casa, já tem mais de 24 horas que não escuto
nem ao menos uma notícia sua, isso está me perturbando de forma que me
sinto desesperada e... com medo de que algo ruim lhe tenha acontecido.
— Laura?
Ontem eu e Rony o esperamos até tarde, acabei pegando no sono no
sofá com suas cobertas irradiando seu cheiro. Estou parecendo uma louca e
obcecada, certo? Como posso me sentir assim com um homem que mal
conheço?
— Laura?
Inspiro fundo, apertando meus lábios descontente com tudo o que vem
acontecendo. Nunca me senti assim com homem algum, até porque sempre
fiz de tudo para me manter longe, sempre me excluindo, me afastando e
escondendo, mas desde que permiti que Ruslan entrasse conforme Olesya me
orientou, algo estranho vem acontecendo dentro de mim...
— Laura? — Sobressalto quando uma bola de papel acerta meu rosto,
pisco várias vezes voltando a real para encontrar com a feição furiosa do meu
chefe. — Tu estás me ouvindo?
— Hum... sim! — Andry arqueia uma sobrancelha e me lança um olhar
de desafio.
— O que eu acabei de dizer? — Olho para os lados, meus colegas
abaixam a cabeça, Yaroslav pigarreia.
— Não sei! — Afirmo, voltando a encará-lo, Andry suspira e deixa
seus ombros caírem em derrota.
— Céus... — Murmura, esfregando o rosto. — Vão... vão fazer o que
deve ser feito! — Ele nos dispensa, gesticulando com a mão.
Aperto meus lábios me sentindo mais uma vez culpada. Borrifo álcool
na minha mesa e em minhas mãos encarando a tela do meu celular, querendo
pelo menos receber uma mensagem sua. Porém, Ruslan não tem telefone e
muito menos sabe meu número, portanto, ele não entrará em contato.
— Soa-te bem, Laura? — Ergo a cabeça, Justik se inclina na minha
cabine e se estica para pegar o chocolate que Aksinya me deu de manhã.
Borrifo álcool em sua mão e apanho meu doce, fazendo cara feia para
ele que me olha divertido.
— Eu nem queria! — Resmunga, enrugando o nariz de forma
descontraída. — Ela não me deu...
— Chocolate? — Justik assente.
— Aksinya não está conversando comigo. — Um brilho de tristeza
percorre seus olhos, sei que mesmo que discutam, há um amor entre eles que
não é explicado, apenas sentido.
— Você deveria parar de encher o saco dela. — Ele suspira, olhando
para a foto da minha mãe.
— Ontem... vi ela com outro, mas até que entendo, somos complicados
como deves perceber, mas doeu, não vou mentir. — Seguro o encosto da
cadeira, observando-o perdido na dor que o atormenta, me fazendo lembrar
do episódio Blue Cat Blues de Tom e Jerry.
O episódio começa com Tom sentado nos trilhos do trem deprimido.
Jerry o observa da ponte sobre os trilhos, começando a narrar como Tom
acabou assim.
O engraçado é que o episódio mostra Tom e Jerry como amigos muito
próximos até que Tom é hipnotizado por uma gata branca. A gata retorna o
amor de Tom e acabam em um relacionamento amoroso. Mas como sempre,
entra um vilão. O vilão é o Sr. Butch, o gato rico que mora ao lado da gata
branca. Ele a atrai com sua riqueza, como uma oportunista que é, a gata não
perde nenhum milésimo de segundo e deixa Tom.
Embora Tom tenha percebido o quão pilantra era a gata, ele não parou
de correr atrás do seu suposto amor, usando todas as suas finanças, indo
contra o conselho de Jerry, na tentativa de reconquistá-la.
Não importava o quanto Tom tentasse, Butch sempre estava a um passo
à sua frente, ostentando sua riqueza. Para o triste destino de Tom, Butch e a
gata branca se casam, deixando-o sem dinheiro, sem herança e em uma
imensa depressão.
Foi um dos episódios que eu mais senti a dor da traição, ainda mais
quando Jerry, pensado em sua namorada Toots, que foi fiel a ele todo esse
tempo o deixa, indo embora com outro rato, se casando assim como a gata
branca.
Jerry, de coração partido, junta-se a Tom nos trilhos, mostrando o
quanto uma traição pode destruir um coração que só queria ser amado. O
desenho acaba com apito do trem, dando a entender que ambos cometeram
suicídio.
Para uma criança esse episódio é só mais um de muitos que não faz
sentido, apenas diversão, mas para nós que entendemos o que se passa, o
impacto é maior, porque captamos a mensagem transmitida por apenas um
desenho.
Todas às vezes que reflito sobre esse episódio, algo dentro de mim diz
que é impossível terem cometido suicídio, pois eles sobreviveram a coisas
piores como martelos, tiros, explosões... Mas se parar para pensar e analisar,
o amor pode ferir muito mais que qualquer outra coisa, e sei como a
depressão é opressora, o quanto nos esmaga dia após dia. Só que cada um
luta com as armas que têm, porém... um dia cansa, toda essa dor, esse
sofrimento e esse vazio cansa...
Olho para Justik que borrifa meu álcool em suas mãos, imerso em seu
próprio pensamento. Sempre os comparei com Tom e Jerry, devido às
disputas, as brigas e as discussões, mas que sempre permaneceu o respeito e o
amor.
— Justik? — Ele levanta o olhar, prestando atenção em mim. — Você
a ama?
— Será que amar é o suficiente? — Justik fecha os olhos por alguns
segundos. — Sabe Laura, todos que nos vê aqui no trabalho, ou que
acompanhou nosso relacionamento acontecer e terminar, acham que fui o
responsável por tudo, talvez eu tenha mesmo culpa, mas...
— Ela não é fácil de lidar — completo, fazendo-o rir de leve.
— Sinto-me cansado...
— Eu não entendo nada sobre relacionamento, mas sei que quando a
gente ama, corremos atrás para termos a pessoa que queremos ao nosso lado,
porém, amar também significa deixar ir. Se acredita que não dará certo ou
que nunca será feliz, deixe-a ir. — Justik movimenta seus lábios, evitando me
olhar. — Sei que pode ser difícil, afinal, quem quer permitir que a pessoa que
a gente ama vá embora? Só que uma decisão assim é necessária, porque nós
também precisamos ser livres e quem sabe, permitir que a pessoa certa entre
em nossa vida. Não se prenda a um amor que talvez só vá te machucar, seja
forte, Justik, e a deixe ir para que você possa ser feliz.
Uma lágrima solitária cai de seu olho, ele funga e a limpa, erguendo o
rosto segundos depois. Justik está sofrendo, mais que qualquer outro dia.
Sinto um aperto no peito por vê-lo assim, ele é um bom amigo,
engraçado e atrapalhado, chato na maior parte do tempo, mas quem não é,
não é verdade?
— Tu és especial, Laura, sorte daquele que um dia conquistar seu
coração. — Justik inspira fundo, tentando se recuperar.
— Fica bem, okay? — Ele assente e se afasta quando Yaroslav e
Aksinya entram.
Aksinya finge que nem o vê ao passar por sua cabine, me fazendo
questionar qual dos dois está errando com o outro. Yaroslav estende um copo
de café e aponta para a porta, franzo o cenho sem entender seu gesto.
— Vamos?
— Aonde? — Pergunto, confusa.
— Tu não escutaste nada, não é? — Enrugo meus lábios e beberico
meu café, sentindo uma leve queimação na língua por conta da temperatura.
— Nada!
— Onde estás com a cabeça? — Suspiro, dando de ombros, não irei
revelar que ela está em certo alguém. — Estamos indo entrevistar a mãe de
Ruslan. — Engasgo com o café assim que suas palavras atingem meus
ouvidos.
— Sério? — Pergunto, controlando a tosse e tomando fôlego.
— Sim, Andry conseguiu.
— Por que agora ela quer falar? — Pergunto, juntando minhas coisas e
o seguindo. — Foram 14 anos de silêncio.
— Talvez seja pela sua fuga, e está com medo, ou algo assim. —
Destravo o xoxo e nos acomodamos antes de partirmos em direção à antiga
casa de Ruslan.
Fico em silêncio por todo caminho, Yaroslav questiona o porquê de eu
estar tão aérea hoje, respondo apenas que estou pensando no que irei
questioná-la.
Viro a esquina e paro em frente à antiga casa de Ruslan. Abro a pasta
que contém todas as informações do caso e pego uma foto antiga, onde a
mesma casa bonita, com jardim na frente e uma cerca branca circundando era
apenas um barracão de três cômodos desgastado e sem vida.
— Eles acabaram vencendo na vida, não? — Yaroslav diz, saindo do
carro.
— Eu acredito que seja por merecimento, eles sofreram muito pelo que
pesquisei.
— Estou muito nervoso! — Inspiro fundo e lanço um olhar de
compreensão, porque sinto o mesmo.
Abro o pequeno portão da cerca e caminhamos em direção à porta da
frente. O sol transluz o verde da grama, nas plantas e nos pés de rosa que
esperam ansiosamente pela primavera para florir e trazer ainda mais beleza
para esse lugar.
Um movimento chama a minha atenção, a cortina de uma das janelas se
movimenta, um latido de um cachorro me assusta por parecer ser grande e
bravo.
— A gente entrou sem certificar se tem cachorro e se está solto. —
Resmungo, subindo o pequeno lance de escada, Yaroslav me olha um tanto
assustado, notando o erro que cometemos.
— Já foi — declara batendo na porta, ele dá um passo para trás na
espera de ser atendido. — Será que el... — Yaroslav se cala quando a porta é
aberta.
Um homem alto e magro nos recepciona, seu olhar se fixa em nós, nos
avaliando de forma nada discreta. Ele está vestindo roupas escuras, sua pele é
um pouco pálida e há olheiras escuras debaixo dos olhos, e ainda assim, é um
homem bonito, não tanto quanto Ruslan e Artem, mas bonito de uma forma
comum.
— Boa tarde, somos os jornalistas da AS. — Yaroslav diz com a voz
travando pela forma que o homem nos encara.
Recuo um passo quando seus olhos se prendem nos meus, não faço
ideia de quem ele é ou porque desperta em mim um medo que a muito tempo
não sentia.
— Sei quem são. — Fala, ainda me olhando.
— É... bom... — Yaroslav pigarreia, sem graça. — Temos um encontro
com a... — Ele pega seu bloco de nota, um pouco atrapalhado tentando
lembrar e busca pelo nome da mãe de Ruslan.
— Okasana — digo. — Ela está nos esperando. — O homem inclina a
cabeça um pouco para o lado, seu olhar me deixa tentada a me encolher.
— Uma entrevista? — Pergunta com a expressão ilegível.
— Sim, sim... é... ela está nos esperando? — Yaroslav olha para mim,
inquieto.
— Creio que sim. — O homem empurra a porta, escancarando-a, dando
apenas um passo para o lado para que possamos entrar.
Aperto com mais força a pasta, não quero entrar nessa casa, não com
ele me olhando dessa maneira perturbadora, isso não é normal.
Quem é ele?
Yaroslav entra, mas sei que assim como eu, ele quer dar meia volta e
entrar no carro para nunca mais voltar. Meu colega se vira para mim,
acenando para que eu entre, o homem não desgruda os olhos de mim... céus,
estou com medo!
— Não vai entrar? — Pergunta de forma fria, assinto forçando-me a
entrar.
Estremeço ao passar ao seu lado, sinto seu perfume e um tremor nas
minhas mãos. Sobressalto quando a porta se fecha, o ar dos meus pulmões
some ao me ver presa dentro de uma casa desconhecida com um homem
totalmente estranho.
— Ela está na cozinha, só ir reto por aquele corredor. — Nos orienta,
encostado na porta com os braços cruzados.
— Vamos Laura — Yaroslav sussurra, chamando minha atenção,
assinto e sigo-o pelo corredor, segundos depois olho para trás, para onde o
homem estava, só que ele não está mais lá.
— Céus, que cara sinistro. — Assinto em concordância.
— Essa casa é bem grande, não?
— Não é, Laura, nós que estamos andando à passos lentos — Yaroslav
diz rindo.
— Certo! — Fico ereta e aperto o passo. — Okasana? — Chamo da
porta da cozinha decorada com armários inox e vários enfeites e decorações
de crochê e mais uma vez, repleta de rosas.
— Estou aqui! — Sua voz delicada me faz entrar na cozinha, uma
mulher de idade está em frente ao fogão, misturando algo na panela com um
avental estampado com pequenas galinhas.
— Somos da AS.
— Sim, estava esperando por vocês. — Ela se vira para nós, nos
observando com seus olhos verdes fascinantes, mesmo que tenha passado por
tantas coisas e que as linhas de expressões em seu rosto entregue sua idade,
Okasana continua linda.
— Sou a Laura e este é Yaroslav — Ela sorri sem parar de mexer a
colher dentro da panela. — Muito obrigada por nos receber.
— Imagina — diz, apontando para a mesa. — Fiz algumas coisas para
comermos, faz tempo que não recebo visitas.
— Olha senhora, não vou recusar não, porque esse cheiro fez meu
estômago contorcer. — Yaroslav fala, pegando um pedaço de bolo e levando-
o a boca. — Meu Deus, está divino!
— Gratidão, querido. — Ela sorri sem graça, desligando o fogão.
— Tudo bem para senhora... conversar sobre seu filho? — Okasana
suspira e assente, mas não diz nada, apenas arrasta uma das cadeiras e se
senta.
— Sente-se querida, vamos começar antes que eu perca a coragem. —
Me aproximo e sento à sua frente, suas mãos se contorcem no colo.
— Primeiramente sinto muito por tudo o que a senhora passou e
continua a passar. — Ela umedece os lábios, olhando Yaroslav comer seus
biscoitos.
— Uma pena não termos o controle do destino — ela volta a me olhar
com uma expressão devastada.
— Posso gravar nossa conversa? — Okasana assente, coloco o
gravador em cima da mesa e me ajeito. — Darei a palavra à senhora.
— Obrigada... — Ela sussurra, fechando os olhos por alguns segundos
antes de começar. — Quando nós nos tornamos mãe, a única coisa que
desejamos é proteger nossos filhos do mundo, da maldade e da pobreza. Perdi
meu esposo quando meus meninos ainda eram crianças, eles tiveram que
crescer mais rápido do que o normal, às vezes me sinto culpada por não ter
lhes dado uma infância feliz.
— A senhora não teve culpa — Yaroslav tenta acalmá-la.
— Sim, eu tive uma parcela de culpa. Não deveria ter tido filhos
quando eu mal conseguia me sustentar, não que me arrependa, jamais. Porém,
quando se vive na pobreza, o que nos resta é um ao outro. Eu tinha meu
esposo e queria filhos, fui egoísta, porque em vários momentos, fiz com que
eles dormissem sem comer. Se eu não tivesse tão cega e parado para analisar
nossa situação, teria evitado ter filhos.
— Mas a senhora teve 3 filhos e acredito que eles foram e são seu
pilar. — Digo, vendo-a enxugar suas lágrimas. — Acredito que apesar de
tudo, eles foram sua fortaleza.
— Eu falhei, menina. — Okasana balança a cabeça. — Eu falhei com
meu menino.
— A senhora estás a falar de Ruslan? — Yaroslav pergunta, ela não
responde, apenas encara suas mãos em cima do colo.
— Como era Ruslan antes de tudo acontecer?
— Ah... — Okasana levanta a cabeça e sorri, com um olhar perdido,
preso nas lembranças. — Ruslan era o mais compreensível, educado e
sonhador entre seus irmãos, às vezes até bobo demais por sempre encobrir as
artes feitas por Artem e Olesya. — Meu coração salta ao escutar seus nomes,
eu estava desconfiada, mas saber da comprovação de que eles realmente são
irmãos, faz o impacto ser maior.
Tenho Olesya como terapeuta há três anos, sempre atenciosa e muito
carinhosa, vem me ajudando a superar meus traumas e meus medos de me
socializar. Ela sabia que eu tinha visitado Ruslan na cadeia, me abri em
relação ao sentimento estranho que senti por ele. Olesya não demonstrou
surpresa ao estar falando do seu irmão.
Artem soube no momento em que coloquei meus olhos sobre ele por se
parecerem muito um com o outro. Só que, através do seu olhar furioso ao
citar o nome de Ruslan, notei que há um assunto mal resolvido entre eles.
Ruslan foi abandonado por sua família, por quê? Por que eles não
quiseram saber mais dele? Por que não lutaram para provar sua inocência?
Quem é o culpado no final das contas?
— Não tenho nada de ruim a dizer do meu menino, até porque ele era a
luz dos nossos dias, aquele que não nos deixava abater pela tristeza. Ruslan
se sacrificou para que seus irmãos estudassem, vendendo rosas sem nunca
cansar, acordando de madrugada e indo dormir tarde. Uma vez o vi tão
cansado que achei que ele não iria aguentar de exaustão, mas Ruslan
continuou... — Okasana inspira fundo, ela se vira e coloca chocolate quente
em duas canecas, entregando uma para mim e outra para Yaroslav.
— Como foi descobrir que ele é um assassino? — Ela congela por um
momento antes de voltar a cortar uma fatia de bolo.
— Ele não é um assassino, mesmo que insistam, que o condenem...
Ruslan não é culpado!
— Mas as provas dizem o contrário.
— Meu coração é prova suficiente de que ele é inocente! — Fala com
os olhos cravados nos meus.
— Por que não fizeram nada? — Pergunto, deixando transparecer uma
raiva desconhecida. — Por que alega que Ruslan é inocente sem nunca o ter
visitado? A senhora se manteve em silêncio por quatorze anos, olha para
vocês agora, poderiam ter conseguido um advogado, mas não, se mantiveram
em silêncio.... — Balanço a cabeça, incrédula. — Sentir que ele é inocente
não é o suficiente, deveriam tê-lo tirado de lá, daquele inferno...
— Você não faz ideia...
— Não, eu não faço, mas são vocês que não fazem ideia do que ele
viveu lá dentro. — De repente minha respiração e meus batimentos ficam
acelerados. — Todos que entrevistei falaram a mesma coisa, que ele era um
garoto bom e que não faria mal a ninguém, mas que foi trancafiado durante
quatorze anos por uma série de assassinatos. Se acreditassem realmente que
ele era inocente, por que não foram visitá-lo? Por que não escreveram? Por
que o abandonaram?
Okasana me encara com olhos marejados e com raiva, ultrapassei um
limite do qual não deveria, mas essa de que ele é inocente não é o suficiente,
tem que ter alguma coisa a mais, tem que ter uma explicação lógica que
explique esse descaso.
— Ruslan era um garoto quando foi preso. — Completo com a voz
embargada.
— Um garoto que matou mais de vinte mulheres. — Sobressalto ao
escutar sua voz, olho para trás, encontrando com o homem de antes, escorado
na parede com os braços cruzados. — Okasana é mãe, nunca irá acreditar que
seu filho não passa de um doente.
— Quem é você? — Pergunto a ele, fechando a mão em torno da
caneca.
— Mirom, primo dos Rotam — revela tão frio que calafrios percorrem
meu corpo. — Fui criado com esta família, fui melhor amigo de Ruslan e
posso afirmar o quanto ele é cruel.
Meu coração salta quando ele se aproxima, seu olhar penetrante me
apavora tanto que quero me encolher, e desaparecer igual antes. É estranho,
mas... não sinto uma vibração boa vindo dele.
— Ruslan é manipulador e frio, engana cada pessoa que está ao seu
lado, fazendo acreditar que ele é bom, mas não passa de um maníaco doente.
— Mirom para atrás de Okasana, repousando suas mãos em seus ombros.
— O que me diz a respeito de sua fuga? — Pergunto com desconforto,
ele sorri de lado, acariciando o pescoço de Okasana enquanto ela encara suas
mãos.
— Que ele vai continuar cometendo assassinatos, destruindo famílias e
fingindo ser inocente. Não acredite em suas palavras!
— Ele nunca falou que era inocente — fico encarando os olhos escuros
de Mirom, que retribuiu com mais intensidade.
— Tu fizeste entrevista com Ruslan...
— E em nenhum momento ele alegou ser inocente. — Mirom umedece
os lábios e se inclina um pouco para frente.
— Acho que está na hora de encerrar a entrevista, o que acha, mamãe?
— Fico encarando-os, preciso de mais informações.
Olho para Yaroslav que observa Mirom com a testa franzida. Tomo um
gole do chocolate quente, pensando em como estender mais a conversa.
Minha perna começa a balançar e meu coração a palpitar.
— Vocês disseram que Ruslan começou a vender rosas por incentivo
do tio, onde ele está agora? — Mirom levanta a cabeça lentamente, fixando
os olhos em mim, só que mais furiosos e mais frios.
— Infelizmente ele faleceu anos depois de Ruslan ser condenado. —
Responde Okasana, fungando e dando batidinhas nas mãos de Mirom.
— Ele era meu pai. — Ele declara, passando a língua nos lábios.
— Meus pêsames. — Digo, Mirom agradece com um aceno de leve
com a cabeça. — Como era a relação entre ele e Ruslan?
— Unha e carne. — Okasana sorri ao se lembrar. — Tu não fazes ideia
de como eles se amavam. Eram como pai e filho, Kostyantyn era louco por
meu filho.
— De certo que foi difícil lidar com o fato de o sobrinho ser um
assassino. — Yaroslav fala, receoso.
— Kostyantyn ficou arrasado. — Okasana murmura, olho para Mirom.
— Como você reagiu? — Ele comprime os lábios, estreito meus olhos
ao reparar que há um esforço para fazer uma expressão triste.
— Não muito surpreso — declara, abaixando a cabeça. — Como já
disse, sabia com quem estava lidando.
— Por que Kostyantyn não depôs a favor de Ruslan? — Mirom solta
uma risada rouca.
— Tu não estás compreendendo. — O canto do seu lábio superior se
eleva levemente. — Ruslan é um assassino, foi comprovado, investigado, não
havia o que fazer. Aceite, querida, Ruslan Rotam é doente.
Mordo o interior da bochecha com vontade de questioná-lo, buscar
mais a fundo o que estão escondendo, mentindo. Okasana se levanta e eu a
acompanho, colocando a caneca em cima da mesa.
— Acredito que já disse o suficiente. — Ela se afasta e em seguida
volta com duas vasilhas. — Levem com vocês esses Pyrizhky, eram os
preferidos de Ruslan. — Okasana me estende um.
— Obrigada. — Ela sorri de leve, me olhando enquanto mordo o
bolinho cozido e recheado com carne. Sinto a massa mole amanteigada se
dissolver enquanto mastigo. Entendo o porquê de Ruslan amar tanto esses
bolinhos. — Uma delícia. — Elogio, fazendo seus olhos brilharem.
— Sei que é! — Diz, entregando uma vasilha para mim e outra para
Yaroslav, que sorri feito um bobo.
— Muito obrigado pela gentileza, senhora. — Ele diz, enquanto arrumo
minhas coisas.
Okasana nos acompanha até a porta ao lado de Mirom. Sinto sua
presença por todo caminho, como se seus olhos fossem incapazes de
desgrudar de mim.
— Mais uma vez, obrigada por nos receber.
— Sinto por ter sido breve. — Okasana me lança um sorriso sem
brilho.
— Adeus, senhora. — Yaroslav se despede, olho mais uma vez para
Mirom antes de passar pela porta com meus pelos eriçados.
— Cuide-se, Laura. — Viro-me para ele, que sorri com uma expressão
e olhar esquisito, dou dois passos para trás como se estivesse sido atingida
por algo desconhecido.
Mirom não desprende o olhar de mim, meu coração bate alarmado.
Assinto por educação e desço as escadas rumo ao carro, louca para ir embora.
Sobressalto de susto com uma batida brusca da porta, olho para trás mais uma
vez, não há ninguém.
— Ué! — A voz alarmada de Yaroslav me chama atenção.
— O quê?
— Veja, o portão está trancado. — Desço meus olhos e franzo o cenho,
há realmente um cadeado na tranca.
— Estranho, por que iriam nos trancar?
— Não faço ideia. — Ele resmunga, soltando a respiração. — Vou
voltar e pedir para que abram. — Assinto, sem a intenção de acompanhá-lo.
— Okay, te espero aqui! — Yaroslav se afasta, seguro o cadeado me
perguntando se isso foi de propósito.
— Laura?
— Sim? — Olho para ele parado no meio do caminho, imóvel. — O
que foi... — Me calo quando vejo além dele um Rottweiler com a boca
espumando de ódio, seu rosnado estremece meu corpo inteiro.
— Laura...
— Estou vendo! — Digo, apavorada e sem saber o que fazer, porque se
eu correr o cachorro vai atrás e se eu ficar... ele nos atacará.
Yaroslav recua um passo, encarando o cachorro que dá um passo à
frente com seus enormes dentes aparentes, deixando claro que não somos
bem-vindos.
Desespero me consome, se ele nos pegar, não irá sobrar nada. Olho
para casa, quero gritar, mas se eu fizer isso, farei com que o Rottweiler nos
ataque muito mais rápido.
Merda, quem trancou o portão?
— Laura, ele está vindo! — Yaroslav diz, meu coração salta quando o
cachorro começa a andar em nossa direção, meu colega me olha apavorado e
a única coisa que fala antes de tudo acontecer é: — CORRE!!!!!!!!
Solto o cadeado e corro atrás de Yaroslav com o cachorro em nosso
encalço. Viramos a lateral da casa sem saber ao certo para onde ir. Escuto o
latido e o rosnado cada vez mais perto, já imaginando seus dentes perfurando
minha pele e rasgando-a.
— Laura? — Olho para Yaroslav que corre em direção à casinha do
cachorro que é alta o suficiente para que o animal não suba.
Olho para trás, uma burrice, porque isso me faz perder preciosos
segundos. Apresso meus passos, tento subir no teto da casinha, desesperada,
querendo fugir do animal enfurecido.
— Deixe-me te ajudar! — Yaroslav se inclina, mas recuso.
— Não! — Olho para trás, céus... o cachorro vem em disparada.
— Foda-se! — Sinto mãos se fecharem em volta dos meus braços,
meus olhos se prendem no rosto suado e vermelho de Yaroslav com o único
pensamento de que ele me tocou!
— Você... me...
— Ande Laura, ajude-me. — Pede em desespero me puxando para
cima. Me impulsiono, mas então solto um grito estridente de dor quando
sinto os dentes do cachorro perfurarem meu tornozelo.
Solto um gemido, lágrimas escorrem por meu rosto, escuto Yaroslav
amaldiçoar. Outro grito sai por minha garganta ao sentir a minha pele ser
rasgada, uma dor insuportável percorre toda minha perna.
Me debato na tentativa de fazê-lo me soltar, Yaroslav me puxa para
cima, até que me solta e começa a chutar a cabeça do cachorro que não tem a
intenção de largar seu brinquedo de diversão.
— AXEL!!!!! — A voz de Okasana corta os rosnados do cachorro.
— AXEL, PARA!!! — Mirom grita, trinco meus dentes de dor,
Yaroslav volta a me puxar até que o cachorro me solta quando seu dono se
aproxima.
— Laura? — Yaroslav me chama quando me sento, meu tornozelo está
latejando de dor. — Oh, merda! — Xinga, coloco as mãos trêmulas no rosto,
controlando meus pensamentos.
— Quero ir embora! — Digo, me erguendo.
— Céus, ele te machucou! — Olho para meu tornozelo ensanguentado,
me inclino e subo a barra da calça, soltando um barulho de angústia.
— Você me tocou, Yaroslav — Murmuro, olhando para seu rosto
pálido e respiração acelerada. — Você me tocou!
— Eu tinha que fazer isso ou tu virarias comida de cachorro! —
Balanço a cabeça.
— Você não deveria ter me tocado! — Trinco os dentes.
— Perdoe-me... — Sussurra com os olhos marejados. — Eu só estava...
te protegendo! — Um soluço escapa de mim.
— Querida, está tudo bem? — Olho para baixo, Okasana tem as mãos
no coração e Mirom está segurando o cachorro sem expressar nenhuma
emoção. Encarando seus olhos é que percebo que isso foi de propósito... esse
ataque foi de propósito!
Me arrasto para frente, Yaroslav faz um movimento de me ajudar, mas
para quando lhe lanço um olhar de alerta. Ele me tocou... ele me tocou...
minha mente grita desesperada.
Você dá nojo nas pessoas quando elas te tocam...
Prendo a respiração antes de saltar da casinha, caio de joelhos no chão
com um gemido de dor. Fecho meus olhos com força, acalmando a dor, meus
pensamentos e minha respiração, preciso chegar em casa.
— Laura?
— Não me toca! — Digo quando se aproximam de mim. — Não me
toca! — Peço, aflita e me levanto.
— Meu Senhor, me perdoa por isso! — Okasana diz, tão assustada
quanto eu.
— O portão estava trancado! — Revelo, me equilibrando.
— O quê? — Balbucia confusa.
É tudo sua culpa, Lauriana!
Fecho meus olhos ao escutar sua voz, pavor me consome mais do que a
dor em meu tornozelo. Ele está invadindo minha vida novamente, como
sempre fez... como sempre faz...
Preciso ir embora!
Abro meus olhos e começo a andar, tentando a todo custo não colocar
muito peso sobre minha perna esquerda. Olho para o cachorro sentado aos
pés de Mirom, tão diferente do ataque... tão mais calmo! Ergo o olhar e
prendo no rosto do homem que sustenta meu olhar como se sentisse
satisfação pelo que acabou de acontecer.
Eu entrei em seu caminho... um caminho que não deveria ter cruzado.
Mirom tem o mesmo olhar que meu padrasto... um olhar insano, perturbador
e apavorante.
Me inclino para pegar minhas coisas que joguei no meio do quintal
quando saí correndo sem nem perceber. Fecho meus olhos reprimindo a dor,
inspiro fundo e volto a caminhar mancando.
— Tu estás enganada — a voz de Mirom me estremece. — O portão
não estava trancado. — Não viro para olhá-lo, continuo a passos lentos.
— Como assim? — Yaroslav sussurra ao meu lado.
— Ignore! — Falo, me aproximando do portão que não há mais
cadeado, tiro a chave do carro do bolso.
— Laura, tu estás bem? — Abro a porta e me sento, ofegante.
— Eu vou ficar... sempre fico! — Encaro meu machucado, vasculho
minha bolsa até encontrar um lenço. — Eu vou ficar bem! — Repito,
estancando o sangramento.
Trinco os dentes quando dou um nó no lenço em volta do meu
tornozelo. Minha perna pulsa de dor. Ajeito-me no banco, recosto a cabeça
no banco controlando a respiração antes de ligar o carro.
— Você vai conseguir? — Yaroslav pergunta, sua voz está tão distante
que é como se ele estivesse desaparecendo como uma névoa.
— Eu consigo! — Sussurro, aperto o volante com as mãos trêmulas.
Suor escorre por meu corpo enquanto dirijo pelas ruas, minha visão
começa a ficar turva, minha pele febril e meu tornozelo lateja. Só que o que
estou sentindo não é por causa da mordida em si, mas sim porque ele está
perto de atormentar minha mente de novo... sua voz fica cada vez mais
grave... mais perto... Me vejo em meio a uma mata fria e úmida, sozinha e
perdida enquanto sou perseguida sem pressa, uma diversão antes do
tormento, da tortura e da dor.
Freio bruscamente, encosto a testa no volante, controlando a
respiração.... controlando meu coração... “Você é asquerosa, só dá nojo nas
pessoas, por isso que faço isso com você, Lauriana...” Solto um soluço,
buzinas soam atrás de mim por estar parada no meio da avenida.
— Estás acontecendo de novo? — Yaroslav pergunta com a voz baixa.
— Preciso que vá! — Peço, minhas mãos estão tão trêmulas que mal
consigo controlá-las.
— Okay... — Diz sem contestar e sai do carro. Não é a primeira vez
que me vê entrando em crise, porém, dessa vez, parece ser pior... muito pior...
Caminho por entre as ruas do meu bairro, escondendo meu rosto do
vento. Uma frente fria chegou de uma vez no estado de Goiás, bagunçando
minha imunidade. Ontem estava um calor de rachar e hoje um frio de
lascar... Sorrio de leve mesmo em pensamentos por ter rimado essas duas
palavras.
Olho para frente, a neblina toma todo o bairro. É até engraçado que
meio-dia está parecendo cinco da manhã. Fecho mais meu agasalho e solto
um suspiro ao escutar risadas e conversas.
Queria poder fazer parte de um grupo de amigos, sorrir e brincar com
eles, conversar sobre garotos, novelas e até falar mal das meninas populares
da minha escola, mas sou impedida de criar esse vínculo.
Uns dos garotos do outro lado da rua me olha. Sou a estranha da
escola, aquela que fica reclusa em um canto com fones de ouvido, que não
conversa, que se isola das pessoas e do mundo, que não liga por sofrer
bullying, porque nada disso se compara ao que passo em casa.
Quero tanto poder contar para alguém o que meu padrasto faz comigo,
mas tenho vergonha. O que irão pensar de mim? Será que vão acreditar?
Filha de prostituta não tem nenhum privilégio, minha mãe sofre com os
preconceitos e com os olhares tortos das mulheres do bairro, serei apenas
mais uma que provocou o próprio padrasto.
Serei a culpada!
Sinto um nó na garganta. Por que é tão difícil pedir socorro? Por que
as pessoas não veem que tem alguma coisa de errado comigo? Por que elas
sempre apontam o dedo para mim e falam mal, em vez de me ajudar?
O ser humano é egoísta, prefere fechar os olhos do que tentar ao
menos entender aquilo que julga.
Desvio o olhar dos garotos que começam a fazer piadinhas, ignorando
tudo o que falam. Se eu contar para a polícia, eles irão me ajudar?
Viro à direita, direção contrária à minha casa. Eu preciso tentar... ao
menos tentar... Apresso os passos, olho no relógio e meu coração dispara.
Ele sempre está lá quando chego, o que o deixará irritado comigo por não
estar lá na hora estabelecida por ele.
Preciso tentar!
Depois de vários minutos caminhando, paro em frente à delegacia da
minha região. Será que vão acreditar em mim? Sento-me no meio-fio,
encarando a delegacia. Abraço meus joelhos e coloco o queixo em cima,
balançando meu corpo levemente para frente e para trás.
Hoje é meu aniversário de dezesseis anos, estou quase chegando aos
dezoito e quando isso acontecer, poderei fugir. E se ele me trancafiar como
fez todas as outras vezes?
O pior de tudo é que minha mãe nunca desconfiou, pelo menos é nisso
que acredito, porque seria o fim para mim se ela souber de tudo e não estar
fazendo nada para me ajudar.
Ela me ama... ela me ama... ela me ama...
Repito essas palavras em minha mente todos os dias e todas as horas,
só que depois que ela se afundou na bebida e nas drogas, mamãe não é a
mesma. Continua me dando o que preciso, roupas, sapatos, produtos de
beleza e materiais de qualidade... tudo o que ela consegue me dar.
Mesmo se drogando e bebendo, ela ainda faz qualquer coisa para que
eu tenha um pouco de luxo. Mal sabe ela que sua princesinha é estuprada
quase todos os dias, obrigada a se manter calada para proteger a única
pessoa que ama, sua mãe.
As brigas entre eles aumentaram e ele desconta em mim suas
frustrações. Fecho meus olhos, estou sozinha, sem amigos, sem ninguém que
possa me dar forças além de mim.
Quero tanto gritar!
Pego meu celular e olho novamente para o site onde me inscrevi para o
intercâmbio. Apesar de ter apenas dezesseis anos, esse é o meu último ano na
escola. Mamãe sempre falou que os estudos é a porta da nossa liberdade, por
isso, me matriculou cedo para que eu começasse logo.
Acatei seu ensinamento e meti a cara nos estudos. Pedi que me
matriculasse nas aulas de Russo. Ela estranhou, mas rendeu-se ao meu
pedido, e escondido do meu padrasto comecei a estudar, porque para ele isso
é uma perca de tempo.
Por que o Russo? Bom, a Rússia é um país fechado, longe daqui...
quase impossível de o meu padrasto ir atrás de mim quando eu for embora...
só preciso conseguir a bolsa de estudos que me inscrevi mês passado.
Essa será a oportunidade de fugir, porque não importa aonde me
esconder aqui no brasil, ele sempre me encontrará.
Guardo o celular, me levanto, tiro o capuz e inspiro fundo, tomando a
coragem de contar o que está acontecendo, do que ele está fazendo. Cada
passo que dou em direção à delegacia, mais sinto a liberdade me consumir.
Eles precisam acreditar em mim!
Quando coloco o pé na calçada da delegacia, alguém agarra meus
cabelos e me puxa para trás. Solto um grito assustado e seguro seus pulsos.
— Onde pensa que vai? — Sua voz enfurecida e baixa, estremece meu
corpo. — Sabia que iria aprontar!
Ele me arrasta pelas ruas, agarrado em meus cabelos e me joga dentro
do carro. Lágrimas escorrem por meu rosto quando seus olhos se prendem
aos meus no retrovisor. James tem o canto de seu lábio elevado, enojado.
— Estou decepcionado com você, Lauriana. — Diz, estalando a língua
e arrancando com o carro. — Estava pensando em fazer o quê? Acha que
eles iriam acreditar em você? — Ele solta uma risada forçada. — Ninguém
acredita em você. Já se olhou no espelho? Você é asquerosa, desperta nojo
nas pessoas, por isso ninguém gosta de você, Lauriana.
Solto um soluço, preciso sair, fugir dele. Vou até a porta do carro,
congelo quando escuto o clique. Ele as trancou. Minhas mãos tremem, perco
o ar só de imaginá-lo me machucando.
— Você sabe que faço isso para te punir, não é? — Olho para ele
através das lágrimas. — Sou o único que pode fazer isso!
James estaciona o carro na garagem, me tirando à força somente
quando os portões de casa se fecham. As pessoas jamais saberão o que
realmente acontece dentro dessa casa... dentro desse inferno.
— Me perdoa... — Imploro entre o choro, ele me arrasta agarrado em
meus cabelos. — Eu não ia fazer nada!
— Mentirosa! — Ele abre a porta e me joga no chão, caio um pouco
desajeitada, sentindo dor no meu pulso e na boca que foi contra o piso. —
Suas mentiras não me convencem.
Tento me levantar, mas paro ao sentir suas mãos em mim. Ranjo os
dentes quando ele levanta minha cabeça pelos cabelos e sussurra em meus
ouvidos:
— Estou furioso com você, sua mãe... — James estala a língua, fecho
os olhos ao sentir seu nariz em meu pescoço. — O que você fará se ela
morrer? Quer que eu a mate, Lauriana? Quer ver sua mãe apanhar até
morrer? — Fecho meus olhos, negando com a cabeça.
— Me solta! — Grito, me virando e batendo em seu rosto.
James solta um grunhido de dor, não irei mais deixá-lo fazer isso... não
vou... não vou... ele me solta bruscamente, fazendo com que eu bata a testa
no chão. Choramingo de dor.
— Ótimo, então vamos fazer do jeito que gosto. — Olho para ele com a
visão turva.
James desafivela seu cinto, me encarando com um olhar insano,
profanado, que sempre me causa medo. Começo a me arrastar para longe
dele, preciso reagir... preciso lutar contra isso. Me levanto a tempo de fugir
da sua investida.
Se eu gritar ninguém vai me ouvir, eu fiz isso uma vez e ele... ele fez
com que eu não conseguisse andar no outro dia. Os vizinhos nem ligam,
fecham os olhos e tapam os ouvidos, deixando-me a mercê da minha própria
sorte.
Estou sozinha!
Me encosto na parede com a respiração acelerada, lágrimas escorrem
por meu rosto ao encarar o seu rosto cheio de diversão. Essa minha recusa o
deixa mais excitado, faz com que ele seja mais agressivo nas suas investidas.
Sou sua diversão e estou tão cansada...
James avança em minha direção, saio correndo, mas ele consegue
pegar meu braço e me puxar, rodeando seus braços em volta de mim,
murmurando palavras obscenas. Solto um grito, mas ele tampa minha boca
com sua mão, me levando para o quarto.
Me debato desesperada através dos choros e dos pedidos de socorro
abafados por sua mão. James me joga no chão, escuto o trinco da porta e
olho para ele, parado aos meus pés, sorrindo como se tivesse ganhado na
loteria.
— Eu tenho nojo de você. — Diz, segurando meus tornozelos e me
arrastando para perto dele. — Você dá nojo nas pessoas. — Ele me prende
ao colocar o joelho em minhas costas. — Ninguém te suporta... ninguém
suporta tocar em você.
— Socorro... — Tento gritar, mas ele é abafado pelo choro de
desespero.
— Grite... grite mais... — Ele rasga minhas roupas, rindo de mim. —
Grite que ninguém te ouvirá, porque ninguém se importa com você, apenas
eu! — Sinto o corpo de James sobre mim, sua mão entrelaça entre meus
cabelos, puxando minha cabeça para trás, com tanta força que sinto dor no
pescoço. — Isso é sua culpa... faço isso por sua culpa...
Solto um grito quando me morde e gemo de dor ao jogar minha testa
contra o chão. Ele me levanta de uma vez e me deita na cama de costas para
ele. Me debato, grito mesmo que seja baixo, o arranho, mas é tudo em vão...
Ele sempre consegue o que quer, reprimo a dor, a humilhação e o nojo
que sinto. Quero fugir, matá-lo... morrer, mas não consigo fazer nada, todas
as minhas tentativas foram em vão.
Olho para a foto da minha mãe através das lágrimas. Ela deveria estar
me protegendo... deveria ter prestado atenção na minha mudança quando o
inferno começou... deveria ter se mantido solteira, do que trazido um
desconhecido, tendo dentro de casa uma filha.
Eu a culpo por isso, por tudo o que vem acontecendo, eu a culpo.
Minha inocência foi arrancada de mim da forma mais brutal e violenta. Eu
era uma criança... Eu tinha falado para ela que ele estava me machucando,
não com palavras, mas através de desenhos, me isolando de todo mundo,
demonstrando o medo que sentia de todos que se aproximavam,
principalmente dos homens, de quando falava alto ou quando chorava por
coisa atoa. Eu despia as bonecas, rasgava suas partes íntimas dizendo que
aquilo estava acontecendo comigo, mas ela não me ouviu... mamãe não me
ouviu e nem viu meus sinais.
Sei que para ela deve estar sendo difícil, mamãe se afundou nos vícios,
fechou os olhos para mim e me deixou do lado. Não adianta tentar me dar
coisas boas, me proporcionando um pouco de luxo se tudo o que mais
preciso é ser ouvida.
Fecho meus olhos, não quero odiá-la, porque sei que está sofrendo,
mas e eu? Como vou viver daqui para frente? Será que viverei nesse inferno
para sempre?
Quero tanto morrer para que isso tudo acabe... James me joga no
chão, me arrasto até um canto e me encolho, envergonhada, destruída,
devastada...
Ele não diz nada, apenas me deixa sozinha no quarto. Libero o choro,
preciso de ajuda, preciso fugir. Escuto o barulho de notificação do meu
celular, meu coração salta, olho pelo quarto, mas ele caiu na sala.
Me levanto apressada, James não pode ver, se ele desco... Sobressalto
quando ele abre a porta bruscamente, meus olhos encaram sua mão que
segura meu celular, James está furioso.
— Japão? — Pergunta com a voz tão fria que me encolho. — Então é
para lá que quer fugir?
Nego com a cabeça, tirando um sorriso cínico de seus lábios. Eu
também me inscrevi para uma bolsa no Japão, só precisava saber inglês.
Mas não é para lá que irei, pois sei que serei aceita na Rússia, e ele nunca
me encontrará, só preciso aguentar mais um pouco... só mais um pouco...
Sua mão colide no meu rosto tão forte que cambaleio para o lado.
Sinto gosto de sangue e quando olho para ele, James me acerta outra vez.
Ele não para de me bater, dizendo que nunca me livrarei dele e que não
importa para onde eu for, ele irá me encontrar, nem que seja no inferno...

Destranco a porta com dificuldade e ao abri-la, desequilibro e caio no


chão. Um grito rouco e abafado sai da minha garganta, lembrando de suas
mãos em mim, da sua voz e dos absurdos que fazia contra mim.
Desejei tanto morrer que perdi as contas, mas a esperança que eu tinha
me fazia acreditar no impossível e que tudo um dia iria acabar. Balanço a
cabeça, afastando as lembranças dolorosas, sua voz em meus ouvidos e da
sensação dele em cima de mim.
Quero tanto poder esquecer para viver uma vida normal onde posso
abraçar as pessoas, um ato que não faço ideia de como é. Qual é a sensação
de ser abraçada e de ser amada? Como é poder ser acariciada por uma
pessoa?
Solto um gemido, me levanto e ando cambaleando até meu quarto. Ele
está atrás de mim, sempre estará em meus pesadelos... pesadelos do qual
nunca passa, nunca vai embora... ele me quebrou... me destruiu e me tirou a
capacidade de ser uma pessoa normal.
Isso me deixa tão furiosa que começo a me arranhar. Eu deveria ter
sido corajosa, tentado dizer a todos o que ele fazia comigo, mas fui covarde,
fugindo sem ter feito com que James pagasse por toda tortura que me fez
passar.
Arranho meu pescoço entre o choro doloroso, querendo que tudo acabe,
que tudo tenha um fim. Quando é que vou conseguir superar tudo o que ele
me fez passar? Será que é só morrendo que deixarei de sofrer?
Quero tanto poder sorrir...
James me tirou tudo e agora, nesse momento, está me tirando o pouco
que me resta. Me encosto na parede, puxando meus cabelos querendo sentir
dor, me punir por não ter aberto a boca, por não ter contado à minha mãe...
foi tudo minha culpa, eu sou a culpada...
Se eu tivesse o desobedecido, se tivesse contado à minha mãe na
primeira vez que aconteceu, se tivesse sido corajosa, e se... e se tivesse
colocado um fim nisso... nesse momento o único sentimento presente é a
vontade de morrer, porque só assim, tudo se calará, a sua voz, meu tormento
e... a minha dor.
Estou sozinha...
Quero minha mãe...
Fecho meus olhos e pela primeira vez em todos esses anos, desejo que
alguém me segure, que me puxe da escuridão e que me cure com todo
coração.
Na vida devemos enfrentar nossos demônios ou eles nos consomem de
forma lenta, dia após dia, tirando tudo de bom dentro de nós, destruindo o
pouco que nos resta. Passei anos lutando contra eles, e mesmo aqui fora
sentindo esses demônios se aproximando, não permitirei que me dominem
outra vez, estou vivo e lutarei até cumprir meu objetivo.
Ainda tenho um pouco de esperança, é por ela que continuo permitindo
que a escuridão me tome para que eu possa de forma fria, enfrentá-los.
Olho por entre o muro do beco onde estou escondido. Ele não saiu da
delegacia, estou vigiando-o a horas, acompanhando seus movimentos. Ele
precisará passar por aqui para chegar ao seu carro, um risco que insisto em
correr, mas que é necessário, principalmente quando coloca contra a parede a
mulher que nesse momento é mais importante que qualquer outra coisa.
Dou um passo para trás, sendo encoberto pelas sombras e abraçado
pelo vento. Seus olhos assustados quando fugi dos policiais foi como se
estivessem perfurando minha pele com uma lâmina afiada. Aquele momento
ao seu lado, pude enfim me sentir normal outra vez, esquecer de tudo o que
passei.
Laura me iluminou, aqueceu meu coração adormecido, antes reprimido
pelo isolamento. Me fez sentir homem novamente, e não uma carcaça vazia e
sem sentimentos.
Só de imaginá-la em meus braços, um arrepio percorre meu corpo,
despertando um desejo incontrolável por ela. Seus olhos... seus lábios... tudo
o que mais quero sentir.
Inspiro fundo, afastando a luxúria que sinto todas às vezes em que
minha mente se prende a ela. Mais de 24 horas sem vê-la... estou ficando
louco, querendo escutar sua voz e sentir seu cheiro. Quero poder ficar ao seu
lado sem que nada nesse mundo atrapalhe, quero poder levar luz ao seu
coração, iluminar sua alma e assistir pela primeira vez um sorriso brotar em
seu rosto esculpido por uma beleza ofuscante.
Engulo o nó que se formou na garganta. Posso ter permanecido preso
durante 14 anos, mas ainda sei da intensidade da paixão, do fogo do amor, e
da vontade de querer apenas uma única pessoa, nem que seja apenas por uma
noite.
Volto a espiar a entrada da delegacia, ele precisa sair... eu preciso me
reencontrar com ele, mesmo sentindo ódio, raiva e rancor por tudo o que fez.
Fico em alerta com o coração acelerado ao ver sua figura alta e forte
passar pelas portas, descer as escadas e caminhar em minha direção. Eu
ensaiei durante anos da minha vida o momento em que finalmente ficaria na
sua frente. Desejei poder dizer a verdade para todos ouvirem, entretanto, as
suas palavras me feriram mais do que qualquer outra coisa foi capaz de ferir.
Palavras ferem mais que uma facada.... Palavras matam muito mais que
uma bala... As palavras nos destroem de dentro para fora, e foram por elas,
saídas de sua boca, que me tornei um verdadeiro assassino.
Ele passa por mim, distraído com seu celular, sem perceber que está
sendo seguido. Contorno seu carro e me encosto em um outro estacionado ao
lado do seu, observando-o, sorrio de lado ao perceber o quanto é inútil. Se
fosse qualquer outro, já o teria matado, mas não é isso que quero, não ainda...
não agora... porque ainda tenho mais um para me reencontrar.
— Tu deverias ser mais zeloso, irmão. — Minha voz sai áspera,
fazendo-o congelar, ele vira o rosto em minha direção, pálido, assustado e
apavorado por eu finalmente estar aqui, assim como ansiou desde o momento
em que fugi da cadeia.
— Ruslan? — Artem sussurra, estagnado, me fazendo lembrar de
quando me levou ao abismo... de quando fez tudo explodir dentro de mim,
me fazendo libertar o monstro trancafiado dentro de mim... por causa dele, do
meu irmão, perdi minha alma para a escuridão...
Encaro meus braços arranhados e machucados causados por mim.
Aliso meu corpo, sentindo os outros ferimentos feitos por uma escova de
dente em busca de alívio e autocontrole.
Quatro anos se passaram e ainda continuo nas garras de Jaroslav e de
seus capangas. Nikita sempre está lá quando estou largado no chão depois
de ter sido espancado e humilhado, dizendo que nunca permitirá que eu
morra. Mas fico confuso, por que não me ajuda? Por que sempre está na
espreita e não faz nada?
Encaro seus olhos do outro lado do pátio da prisão, tentando entender
suas intenções. Ele é como um gato, se esgueira lentamente na escuridão, de
mansinho sem ser notado. Para todos ele é apenas mais um detento, para
mim ele é o assassino mais perigoso de dentro da unidade 69.
Abaixo a cabeça, encarando meus braços finos devido à magreza
excessiva. Aqui sou a puta, a mula e o escravo, sem contestar absolutamente
nada. Embora eu queira lutar contra todos, sei que não vou conseguir, são
muito mais fortes do que eu, e não tenho nenhum aliado.
Sinto a raiva borbulhar em minhas veias, encaro cada um dos detentos
que me tocaram. Tenho vinte e dois anos hoje, não sou mais um garoto,
preciso provar isso. Preciso me reerguer já que estarei trancafiado aqui
para sempre.
Ranjo meus dentes, fecho meus olhos e inspiro fundo... expirando
segundos depois, acalmando a bagunça dentro do meu coração. Estou
ficando de saco cheio desse lugar, de todos da prisão, das risadinhas, das
humilhações e por não me respeitarem, estou a um passo de explodir.
Abro os olhos, cravando-os em Jaroslav que negocia as drogas que eu
mais uma vez trouxe para dentro da prisão. Um ano atrás quase morri de
overdose, um dos saquinhos que engoli de cocaína se rompeu no meu
estômago. Foram dois meses no hospital, sem nenhuma visita, isolamento
absoluto, tendo contato apenas com os médicos e enfermeiros.
Nesse meio tempo tive tanto a pensar, estava ficando louco e pedindo
desesperadamente para que me dopassem, pois assim minha mente
desligava. É possível uma pessoa ficar louca com uma mente sadia?
Acho que estou me perdendo, aos poucos...
Me levanto do banco quando os policiais nos informam que nossa
diversão acabou. Todos nós começamos a voltar e alguns esbarram com
força em meus ombros.
Ararat para ao meu lado e diz: — Mais tarde temos assuntos a
resolver. — Trinco os dentes, sabendo perfeitamente qual assunto se refere.
— Detento 2157? — Olho para o guarda, ele gesticula para que eu vá
até ele.
— Sim, senhor? — Pergunto, abaixando a cabeça com as mãos para
trás.
— Tu tens uma visita. — Diz me contornando e algemando meus
pulsos, franzo a testa.
— Íntima? — Ele me lança um olhar inexpressivo, segura meu braço e
me guia por entre os corredores sem me responder, até uma pequena sala.
— Aguarde aqui! — Sento-me na cadeira em frente a um vidro com
três furos no meio, do outro lado há outra cadeira para quem quer que seja a
visita.
Balanço a perna com impaciência depois de se passar cinco minutos.
Eu contei cada segundo, uma mania que adquiri para manter minha mente
focada em alguma coisa.
Me remexo com desconforto, sentido câimbras em meus braços por
estarem atrás das costas com os pulsos algemados. Congelo ao escutar
passos, o arrastar da cadeira e o arfar, não quero levantar a cabeça... não
quero ver quem está à minha frente.
— Estás irreconhecível. — Artem diz, espalhando choque de surpresa
por meu corpo, levanto a cabeça e encaro seus olhos.
— Artem? — Sussurro, observando meu irmão do outro lado, tão
diferente da última vez que o vi.
— Espero que esteja se divertindo. — Sua voz cortante destrói tudo de
bom que sinto por ele, a saudade vai embora no mesmo instante em que
encaro seu rosto enojado.
— Tu não imaginas o quanto. — Retruco entredentes, as lembranças
são tão vagas, é como um borrão de incertezas. — Como mamãe está? —
Pergunto ao me lembrar dela, mas tão magoado que mal sinto vontade de
chorar.
— Está bem. — Artem olha para suas mãos e sorri de lado. — Estamos
na faculdade agora, pelo menos isso eu tenho que lhe agradecer.
— Bom... — Murmuro, controlando a raiva que sinto. — Sabes que não
fui eu, certo? — Artem ri, como se eu lhe tivesse contado uma piada.
— Tu deverias parar de mentir, chega! — Seus olhos se prendem em
mim. — 2157... — Balbucia o número preso no meu uniforme de detento. —
Esse número indica o quê? Que já se passaram 2.157 detentos aqui?
— De certo que sim.
— Estão te comendo que nem uma putinha? — Suas palavras me
acertam como socos. — Tu merecias tratamento pior.
— Eu vi... — Artem estreita os olhos.
— Viu o quê?
— Ele... naquela noite, eu vi o assassino. — Meu irmão me olha sério.
— Você é o assassino! — Diz, se inclinando para frente. — Um doente
de merda que mata à sangue frio sem se importar. Um mentiroso de merda...
tão mentiroso que acredita na própria mentira. Tenho pena de você, Ruslan.
— Tu deverias estar ao meu lado, sou teu irmão. — Artem ri,
recostando na cadeira.
— Irmão? — Debocha, entortando seus lábios. — O irmão que eu
tinha era um simples vendedor de rosas, uma mera ilusão, porque ele
aproveitava para matar mulheres indefesas. — Ele balança a cabeça de um
lado para o outro. — Você não é meu irmão, tu és um monstro que mereces a
morte.
Fico encarando-o, vendo o ódio estampado em seu rosto. Não
adiantará eu contestar o que diz, porque tudo aponta para mim. Será que eu
realmente assassinei aquelas mulheres? Mas... será que perco a memória
todas às vezes em que mato?
— Por que vieste? — Pergunto, segundos depois.
— Para assistir sua derrota. — Responde de forma fria, sem nenhuma
emoção. — Tu não és mais um Rotam, temos vergonha de dizer que és da
família. Ruslan morreu na noite em que tu foste preso... aliás, Ruslan nunca
existiu, é fruto da sua imaginação.
— Temos o mesmo sangue, esse laço nunca poderá ser desfeito. —
Artem solta uma gargalhada, se levanta e coloca as mãos sobre o vidro.
— Tu és a escória da família, aquele que nunca deverias ter nascido. O
amor que sentíamos por nosso irmão, desapareceu, como pó. — Aperto os
dentes, reprimindo a dor da rejeição. — Nossa mãe nunca deverias ter te
colocado no mundo. Tu és um erro! — Artem estala a língua, me lançando
um sorriso frio e sem emoção. — Nunca mais escreva, muito menos ligue,
nossa mãe está destruída por sua culpa.
— Não foi eu... — Sussurro, Artem fecha os olhos e soca o vidro, me
assustando.
— Queria poder entrar aí e te quebrar a cara, mas ainda bem que essa
droga de vidro nos separa, porque não sobraria nada de você.
— Artem...
— Eu te odeio. — Fecho os olhos, incapaz de suportar todas essas
palavras. — Odeio que seja meu irmão, aquele que destruiu e manchou
nossa família, quero que você morra nesse inferno. — Abro os olhos, sinto
uma lágrima escorrer por meu rosto.
— Tu irás se arrepender... — Ele soca mais uma vez o vidro.
— Arrependo-me de ser seu irmão. Por isso, Ruslan, que estou aqui
para te dizer que ninguém quer saber de você, todos desejam sua morte e que
tenha anos de sofrimento. Tu me dás nojo!
Artem dá um passo para trás, me encara por mais alguns segundos
antes de se virar e sair, me deixando sozinho com suas palavras batucando
incansavelmente minha mente.
Fico olhando a porta por onde saiu, sentindo algo dentro de mim se
estilhaçar como vidro. Quero gritar e dizer que não foi eu que assassinei
aquelas mulheres, que se me derem uma oportunidade, poderei lembrar do
seu rosto.
O guarda entra e me tira da sala, eu o sigo atônito, relembrando as
palavras de Artem. Encosto a testa na parede no canto da minha cela,
encarando minhas mãos, querendo que minha mente se cale.
“Você é o assassino... Tu és a escória da família, aquele que nunca
deverias ter nascido... Eu te odeio...”
— Eu te odeio... — Repito suas palavras, perco a noção do tempo em
que fico nessa posição, desperto somente quando Ararat me chama.
Trinco os dentes e calado o sigo até o banheiro. Ódio borbulha nas
minhas veias ao encarar todos presentes para mais uma noite de tortura.
Jaroslav me encara com um sorriso de lado e dinheiro na mão, pronto
para fazer o seu melhor, me vender como uma prostituta. Fecho minhas
mãos em punho.
— Por que me olhas assim? — Jaroslav se aproxima. — Eu já disse
para sempre abaixar a cabeça diante de mim! — Ele bate em meu rosto,
sinto meus lábios se rasgarem, mas continuo encarando-o.
— E se eu continuar te olhando? — Levanto meu queixo em desafio,
estou de saco cheio dessa merda.
— Ah, garoto... — Ele olha seus capangas que gargalham. — É isso
que tu queres? — Sua mão voa no meu pescoço, apertando e me sufocando.
— Quero pior... — Sussurro, deixando as trevas de dentro de mim
saírem, não tenho nada mais a perder e se eu morrer... bom, pelo menos não
viverei mais nesse inferno.
Levo as mãos até as costas e tiro de lá uma faca que roubei quando
estava trabalhando na cozinha, sem perder tempo afundo-a no pescoço de
Jaroslav.
Seus olhos se arregalam, rodo a faca sentindo sangue escorrer por
minha mão e espirrar em meu rosto. Ele solta meu pescoço e se afasta, se
sufocando com seu próprio sangue e arquejando de agonia.
Sorrio sentindo prazer, tirando a faca da sua pele e o empurrando, seu
corpo cai em um baque ensurdecedor.
— Era isso que tu querias? — Pergunto desviando meu olhar e me
virando para encarar os olhos dos capangas que terão o mesmo fim. Aperto
o cabo da faca que pinga sangue ao lado do meu corpo.
Acabou... aquele menino inocente foi embora, minha alma foi
arrancada de mim e me tiraram a bondade que ainda existia.
Em toda minha vida me perguntei como era morrer, parar de respirar
e me questionava se existia céu e inferno, mas nunca imaginei que havia
como morrer mesmo permanecendo vivo.
Nesse exato momento acabo de morrer, tudo de bom dentro de mim se
esvaiu, sujei minhas mãos de sangue e nada nesse mundo me fará recuar.
Me sentenciaram e me chamaram de monstro sem que eu fosse. A
partir de agora, eles terão motivos, porque acabo de me tornar um
verdadeiro assassino...
Ficamos em silêncio, Artem parece não acreditar que estou à sua frente,
livre. Ele balança a cabeça de um lado para o outro, tentando recobrar o
controle.
— É muita audácia sua aparecer na minha frente. — Diz, guardando o
celular no bolso. — Posso te prender agora mesmo.
— Você não vai! — Desencosto e sustento meus braços no teto do seu
carro, ficando mais perto de Artem mesmo do outro lado.
— Como tens tanta certeza? — Batuco meus dedos na lataria com meu
olhar preso nos seus.
— Tu já terias feito isso. — Artem engole em seco e esfrega seu rosto,
se recuperando.
— Tu estás cheio de si, não?
— Talvez... — Sorrio, desviando o olhar. — Estou livre agora.
— Estou vendo. — Retruca, me analisando minuciosamente.
— Dez anos se passaram desde a última vez em que te vi. Lembro-me
até hoje das suas palavras, aquelas que me arrancaram a alma. — Encaro-o
com raiva. — Tu dormiste bem depois do que fizeste?
Artem fica calado, sem reação, aqui fora sou um perigo para ele.
Umedeço meus lábios, achando divertido o efeito que causo nele, quero que
sinta muito mais que isso, quero que se arrependa.
— Então é isso? — Ele ergue as mãos de forma dramática. — Estás
aqui para se vingar? — Contorço meus lábios e aliso com os dedos o carro,
aguardando alguns segundos para responder.
— Estou aqui não para me vingar, mas sim, fazer justiça nem que seja
com minhas próprias mãos. — Artem ri sem desviar o olhar de mim.
— Justiça? Pelo quê? Pelas mulheres que assassinou? Pelas famílias
que destruíste? — Ele balança a cabeça, indignado. — Uma merda de
desculpa para sua vingança.
— Quem sabe... — Artem arqueia uma sobrancelha.
— Vai se vingar de sua família?
— Família? — Me afasto do carro, rindo dele. — Que família? Aquela
que me abandonou na prisão? A que não quis lutar por mim? Que família é
essa que abandona no momento mais difícil da vida? É hipocrisia tua abrires
a boca para dizer isso. — Ajeito meu capuz, dando um passo para trás. — Eu
não tenho família.
— Tu não conseguirás fugir por muito tempo!
— Só preciso de alguns dias.
— Dias? — Olho para ele e sorrio abertamente.
— Sim, preciso apenas de alguns para te colocar na cadeia. — Artem
congela. — E quando tu estiveres lá, vai se arrepender por todas as palavras
que me disseste. Tu estará lá dentro, comigo, vivendo no inferno.
— O que dizes?
— Aguarde, irmão... — Dou as costas e começo a andar, me afastando
dele.
— Parado, Ruslan! — Inspiro fundo e giro lentamente, dando de cara
com sua arma apontada em mim. Percebo que está um pouco trêmulo. — Tu
estás preso seu merda!
— Preso? — Caçoo, me aproximando. — Quem vai me prender? Tu?
— Artem range os dentes quando encosto meu peito na sua arma, se ele
apertar o gatilho, morrerei na hora.
— O que você quer?
— Que todos saibam a verdade. — Respondo, fechando minha mão em
torno da pistola sem desgrudar meus olhos dos seus. — Fazer com que
paguem por tudo o que me fizeram.
— Estás blefando, assassino de merda! — Solto uma risada, prensando
mais a arma contra mim.
— Atira! — Sussurro, controlando meu ódio. — Atira, Artem!
— Vou te levar... — Ele se cala ao me ver balançar a cabeça.
— Só voltarei quando todos estiverem no seu devido lugar. — Digo
com a voz firme.
— Tu me enojas... — E eu acredito, mesmo que meu coração doa por
ver esse sentimento estampado em seu rosto, sei que todas as suas palavras
são verdadeiras.
— Se prepare, Artem, porque o assassino que tu criaste está solto,
sedento por justiça e fará de tudo para que isso aconteça. Custe o que custar,
ele fará todos pagar. — Solto a arma, me afastando a passos lentos.
— Eu sei onde te encontrar. — Paro de andar, meu coração acelera. —
Achas que aquela jornalista te esconderá para sempre?
— Jornalista? — Olho para trás.
— Só não te mato aqui, porque sua prisão poderá me render um cargo
maior.
— Tens certeza?
— Laura é inocente demais para permanecer calada por muito tempo.
— Diz com a arma ainda apontada para mim. — Linda demais para proteger
um assassino.
— Certo, muitas afirmações, mas quem é Laura? — Artem me olha um
pouco confuso.
— Não minta! — Fico encarando-o fixamente, querendo falar tudo o
que está engasgado na garganta, mas agora tenho que me manter calmo e
com a cabeça no lugar e agir com muito cuidado.
— Nos vemos em breve. — Me viro e saio andando sem dizer mais
nada, meu coração acelera com a possibilidade de que ele aperte o gatilho. Só
volto a respirar mais aliviado ao entrar em um beco, longe o suficiente para
enfim, me acalmar.
Coloco as mãos no bolso, caminhando de volta para casa com a mente
cheia, tentando assimilar qual será meu primeiro passo para fazer todos
pagarem pelo que fizeram.
Tenho que ser cauteloso, mais esperto que qualquer pessoa, sempre
mantendo um passo à frente. Rever Artem doeu, meu próprio irmão me
odeia, aquele que lutei para que tivesse um futuro melhor e que no final me
virou as costas.
O mais irônico de tudo é que a pior das traições é cometida por pessoas
que você jamais imaginaria. Eu era capaz de entrar na frente de uma bala por
meu irmão, não me importava em morrer por ele, daria minha vida por sua
felicidade. Mas o que ele fez? O que minha família fez?
Inspiro fundo e levanto a cabeça para olhar para o céu estrelado. Será
que a dor que sinto um dia irá passar? Acredito que não, porque tudo o que
vivi jamais será apagado, entretanto, a vontade de viver acaba sendo mais
forte que qualquer outro sentimento, por isso continuo mesmo sendo difícil...
eu apenas continuo.
Não sei para onde vou, onde me encaixo ou qual é meu futuro, só
preciso caminhar, buscar meu destino. Depois de quarenta minutos andando
pela noite, sentindo o vento gelado beijar meu rosto, avisto o prédio onde está
a mulher com os olhos mais lindos que já vi.
Me aproximo do grupo de rapazes sentados na calçada, todos estão
fumando, perdidos em uma vida sem oportunidade.
— Tudo certo? — Pergunto a Kliment, líder da gangue do bairro. Ele
traga um cigarro de maconha tranquilamente.
— Até o momento, nada alarmante. — Kliment estende o cigarro,
aceito, mas não trago, apenas encaro. — O que passas, parceiro?
— Problemas — respondo, lhe devolvendo o cigarro. — Fique atento a
qualquer movimentação estranha, preciso de seus olhos. — Ele levanta a
cabeça e me encara.
— Fique tranquilo. — Assinto, me afastando e atravessando a rua em
direção ao apartamento de Laura.
Subo as escadas distraído com a cabeça baixa, coberta pelo capuz para
que os vizinhos não consigam ver meu rosto. Ao chegar no corredor, reparo
em uma movimentação estranha. Há alguns vizinhos na porta de seus
apartamentos, ouço gritos e meu coração dispara.
Laura...
Apresso meus passos, sua porta está entreaberta, a empurro com
cuidado, escutando murmúrios e ignoro tudo à minha volta. O choro
agonizante vem logo em seguida dos gritos, entro com cuidado vendo suas
coisas jogadas no chão.
— Laura, olha para mim... — Uma voz suave me faz congelar. —
Lembre-se, não é real... não é real... — Ando com passos cautelosos em
direção ao seu quarto. — Laura, agarre-se em minha voz...
Fecho meus olhos por alguns segundos antes de olhar para dentro do
quarto, e a visão que tenho me faz recuar um passo, chocado demais para
raciocinar direito.
Laura está se arranhando sem parar, seus braços e pescoço estão
vermelhos e há sangue em algumas partes do seu corpo. Desço meus olhos
vendo seu tornozelo rasgado e ensanguentado. Desespero acumula dentro do
meu peito, me sufocando com uma intensidade insuportável.
Laura, o que aconteceste?
Ela começa a bater as costas na parede, chorando e murmurando
palavras que não consigo entender, sua expressão é de pura dor e angústia,
preciso tirá-la desse abismo que a cada dia a leva para mais longe.
— Não é real, Laura, ouça minha voz... — A mulher agachada à sua
frente e de costas para mim tenta a todo custo chamá-la de volta sem tocá-la,
porque quando tenta se aproximar, Laura grita mais.
— Ele nunca vai me deixar, ele sempre irá me machucar... eu não
consigo... eu não consigo... — Levo as mãos à cabeça, quem foi o canalha
que fez isso com ela?
— Laura...
— Deixe-me ajudar. — Digo apressado, entrando no quarto já não mais
aguentando vê-la nesse estado, preciso tirá-la desse inferno.
A mulher se vira para mim, cravando seus olhos verdes nos meus, eles
se arregalam e seu rosto fica pálido quando me reconhece. Choque espalha
por meu corpo se misturando com saudade reprimida e a emoção de vê-la
tão... mulher.
— Ruslan? — Olesya sussurra com os olhos cheios de lágrimas,
seguro-me para não ir até ela, nesse momento preciso salvar Laura.
— Ela vai me ouvir. — Falo com a voz embargada e me aproximando,
mas Olesya para à minha frente, impedindo-me de chegar perto da Laura.
— O que fazes aqui? — Pergunta, incrédula.
Ela está tão linda!
— Moro aqui! — Respondo, fazendo-a ficar ainda mais perplexa.
— O que dizes?
— Não há tempo, Laura precisa de mim. — Dou um passo para o lado,
mas ela me impede novamente, ranjo os dentes de raiva.
— Não a toque, você não faz ideia do quanto isso pode destruir o
estado dela. — Me repreende, umedeço meus lábios, sentindo minhas mãos
trêmulas.
— Ela vai me ouvir...
— Não, Ruslan! — Olho com raiva para Olesya.
— Ninguém é capaz de fazê-la voltar, não presa no pesadelo em que
está revivendo. — Laura solta um gemido, meus olhos se prendem na mulher
encolhida no chão que começa a puxar seus cabelos.
— Como tu sabes? — Encaro Olesya, abrindo e fechando minhas
mãos.
— Porque passei pelo mesmo. — Minhas palavras a paralisa. — Ela
confia em mim.
— Em um assassino? — Aperto os dentes com impaciência, dando
mais um passo à frente e a encarando em desafio.
— Um assassino que a enxergou como mais ninguém. — Olesya
vacila, fico encarando-a.
— Ruslan nã...
— Saia da minha frente. — Minha voz soa como uma ordem calma e
determinada, Olesya se encolhe quando passo por ela, esbarrando de leve em
seu ombro.
Laura chora desesperada, abraçada em seus joelhos encolhidos,
balançando para frente e para trás enquanto seus olhos estão fixos à frente,
sem foco.
Ela não está aqui!
Me aproximo mais um pouco, deixando meus olhos navegarem por seu
corpo.
— O que aconteceu? — Pergunto, analisando-a. — Quem te ligaste?
— Quando Laura sente que entrará em crise, ela sempre entra em
contato comigo. Meu número é seu contato de emergência. — Meneio a
cabeça.
— O que aconteceu? — Repito a pergunta, olho para trás, vendo-a
andar de um lado para o outro.
— Ela não me disse, quando cheguei ela estava assim. Já aconteceu
outras vezes, mas hoje... está pior. — Olesya passa as mãos no rosto, desvio
meu olhar focando minha atenção em Laura, lembrando-me de quando surtei
na prisão, fazendo o mesmo que ela.
— Ei, minha pequena flor... — Sussurro, mantendo a voz serena para
que ela não se assuste. — Lembra do seu desenho preferido?
Coloco a mão na boca, controlando minhas emoções. Vê-la desse jeito
me parte em mil pedaços. Fecho meus olhos, seu choro é um pedido de
socorro saído de uma alma quebrada e dilacerada. Quem fez isso com ela,
merece queimar no inferno.
— Lembra do Coragem? — Volto a conversar com ela, soltando o ar
pela boca e fechando as mãos. — Quem diria que aquele cãozinho tão
medroso fosse tão corajoso, não?
— Ruslan? — Olesya me chama, ignoro ao me aproximar mais de
Laura abraçada em seus joelhos, seu rosto também está arranhado.
— Coragem morre de medo, mas mesmo assustado ele luta contra
monstros, enfrenta bandidos perigosos e cruéis, corre contra o tempo e
constrói armadilhas, quase enlouquece... — sorrio ao lembrar dela sentada no
sofá assistindo esse desenho como se nada no mundo fosse capaz de tirá-la da
frente da tv. — Além de tudo, Coragem ainda tem que carregar dois
velhinhos, e protegê-los a todo custo. — Sento-me no chão diante dela,
encarando seus olhos vidrados em um passado doloroso, onde arrancaram sua
alma impiedosamente. Fúria percorre minhas veias, sinto vontade de quebrar
algo para me proporcionar alívio. Umedeço meus lábios, me impedindo de
trazê-la para meus braços.
— Lembre-se que por maior que seja seu medo, sua insegurança ou por
mais gigante que seja sua vontade de... desaparecer, a vida precisa de heróis
assim como o Coragem. — Me aproximo de Laura quando para de chorar. —
Busque o Coragem que está dentro de você, nesse momento você precisa
dele, lute por você, pequena flor, enfrente seu medo e... volte para mim. —
Ela solta um soluço, seu corpo inteiro treme.
— Eu não consigo... — Balbucia, voltando a chorar e se arranhar. —
Dói... dói tanto estar sozinha....
— Tu não estás mais sozinha. — Ela balança a cabeça. — Estou aqui.
— Laura coloca as mãos nos ouvidos, inspiro fundo sem saber o que fazer.
— Preciso sedá-la, será o único jeito de fazê-la se acalmar. — Mordo
meu lábio, não sei se sedação seria a melhor solução, quando isso me
aconteceu, continuei preso num inferno sem fim, no mesmo ciclo, um
pesadelo doloroso demais para suportar.
— Foda-se — me levanto e ando de um lado para o outro. — Ela
precisa ser acordada antes.
— O que estás pensando? — Olho para Olesya por um momento.
Sem dizer mais nada, vou até Laura que se encolhe com minha
aproximação, então a pego no meu colo em meio a protestos e gritos.
— Endoidaste, Ruslan? — Olesya grita, me seguindo até o banheiro.
— Foda-se, Olesya. — Coloco-a no chão e ligo o chuveiro, deixando
que a água caia sobre sua cabeça.
Me agacho na sua frente, devastado. Laura se encolhe com os olhos
fechados, reprimindo o choro e a repulsa ao sentir minhas mãos, acredito que
esteja também sentindo ardência nos seus machucados.
— Ruslan, deixe que eu...
— Vá, quero ficar sozinho.
— O quê? — Balanço a cabeça, desesperado para que Laura volte. —
Tu estás doido?
— Olesya, nos deixe sozinhos.
— Jamais! — Olho sério para ela, mostrando que não estou brincando.
— Não me faça perder a paciência. — Olesya trinca os dentes, lutando
contra minha ordem. — Saia!
— Tu estás cometendo erros, Ruslan.
— Cuidarei da Laura, espero que mantenha segredo. — Falo,
ignorando-a.
— Okay! — Murmura, saindo e fechando a porta com cuidado.
Junto minhas mãos e as encosto na boca, fecho os olhos e tento me
acalmar antes de voltar a observá-la. Laura continua murmurando palavras
que não entendo, ela encolhe suas pernas e as abraça, encostando a testa nos
joelhos enquanto o jato de água cai nas suas costas.
— Laura, pequena flor, lute contra seus demônios e volte para mim. —
Murmuro, angustiado e ao mesmo tempo sentindo um desespero sem fim
dentro do meu peito, como se o chão estivesse prestes a ceder, me levando
para um abismo.
Me aproximo dela, inspiro fundo e tiro sua blusa. Laura está devastada
demais para protestar. Apanho uma bucha e sabão, ela se encolhe enquanto
com cuidado, vou limpando-a, tirando todo o sangue dos machucados do seu
braço.
— Preciso que se levante, Laura. — Digo, mas ela não responde, então
a pego novamente e a sento na tampa do vaso e cuidadosamente tiro sua
calça. — Não te farei mal.
Laura volta a chorar, tento tocá-la o mínimo possível, porque é
necessário que eu faça isso. Ela solta um gemido quando passo a calça por
seu tornozelo, analiso a gravidade do ferimento.
— Caralho, Laura! — Xingo ao notar que parece uma mordida de
cachorro, inspiro fundo e lavo com cuidado.
— Eu não fiz nada para merecer isso... — Olho para cima, Laura me
encara com um olhar sem vida. — Eu era apenas uma criança, nada do que
fazia adiantava, até que percebi que sou culpada...
— Ei...
— Tento buscar por respostas, encontrar motivos para merecer o que
me fez, mas não encontro nada. — Lágrimas escorrem por seu rosto. — Se
eu... morrer, será que tudo vai parar? — Pergunta, partindo de vez meu
coração.
— Em muitos momentos da minha vida trancafiado, eu achava que a
melhor solução era realmente a morte, mas... algo dentro de mim me dizia
para continuar.
— Dói tanto... — Sussurra através do choro. — Estou tão cansada. —
Revela, fechando os olhos.
— “Disse Jesus – Vinde em mim todos os que estais cansados e
sobrecarregados e eu vos aliviarei” — Laura me encara. — Eu sempre
recitava quando me sentia cansado.
— Por quê? — Pergunta em um murmuro. Abaixo a cabeça, sentindo
meus olhos queimarem.
— Porque era o único jeito de não me sentir sozinho. Era como se
alguém, mesmo sem poder ver, estivesse ao meu lado, me fortalecendo, então
eu recitava.
— Não quero mais ficar sozinha... — Confessa, encaro-a surpreso.
— Agora eu compreendo. — Laura me olha. — O que sinto... a pouca
esperança que me impedia de desistir tem um propósito.
— Qual seria? — Me aproximo, ela recua, mas não o suficiente para
me impedir de segurar seu rosto, suas mãos trêmulas se fecham em meus
pulsos, medo transluz por seus olhos.
— Salvá-la da escuridão que a corrói...
— Ruslan...
— Permita-me entrar, Laura. — Peço, encostando minha testa na sua.
— Deixa-me te tirar do abismo e... curá-la de toda dor.
— Eu não...
— Estarei aqui, pequena flor, segurando sua mão e a puxando da
escuridão. — Seus olhos se prendem nos meus. — Seja o Coragem e
encontre dentro de ti a arma que precisas para enfrentar todos seus traumas,
porque somente assim, tu poderás ser feliz.
Laura fecha os olhos, permitindo que mais lágrimas caiam de seus
olhos. Puxo-a para meu peito, acariciando seus cabelos enquanto ela libera
um choro doloroso, se livrando de tudo que a machuca na esperança de que
toda essa dor passe.
Ela não está mais sozinha, estou aqui para segurá-la quando cair,
puxando-a da escuridão e libertando sua alma aprisionada. Farei de tudo para
ficar ao seu lado, e o meu primeiro passo é encontrar a verdade oculta pelas
mentiras.
Coloco Laura na cama, afastando os cabelos do seu rosto, encarando-a
enquanto dorme. Ela pegou no sono depois de meia hora chorando. Inspiro
fundo e olho para a porta, Olesya está parada nos observando com os braços
cruzados.
— Tu conseguiste acalmá-la.
— Sim — murmuro, sentando-me na beira da cama. — Ela precisa de
curativos.
— Eu cuido disso. — Olesya se aproxima com uma pequena mala.
— Laura se arranha todas as vezes que entra em crise? — Pergunto me
inclinando e sustentando meus braços nos joelhos com as mãos cruzadas
enquanto observo Olesya cuidar dos seus ferimentos.
— Sempre quando alguém a toca. — Responde, concentrada. — Só
que hoje foi a primeira vez que a vi nesse estado.
— E o que você é dela? — Olesya me olha.
— Sua psiquiatra. — Responde, se levantando e indo até seu tornozelo.
— Foi uma mordida de cachorro. — Diz.
— Tu se tornaste médica... — Orgulho transborda do meu coração, ela
dá de ombros como se isso não fosse novidade.
— Consegui uma bolsa... graças a você. — Olesya enfaixa o tornozelo
de Laura e vai até seu guarda-roupa.
— Pegue o pijama do Tom e Jerry. — Ela me olha com a testa franzida.
— É o preferido dela.
— Okay.... — Olesya me encara. — Preciso que saia para trocá-la,
tenho que tirar... — Ela aponta para Laura que está vestida apenas com sutiã
e calcinha, assinto.
— Farei um café para gente. — Saio do quarto, deixando-as sozinhas e
começo a preparar o café, perdido nos pensamentos e nos últimos
acontecimentos.
Escuto passos, mas não olho para trás. Olesya suspira.
— Laura irá dormir até amanhã, deixarei alguns remédios para ela
tomar, incluindo o de dor. — Balanço a cabeça. — Amanhã talvez ela não se
lembre do que aconteceu.
— O quê? — Olho para trás, Olesya comprime os lábios.
— Tem certos acontecimentos que apaga da sua memória, isso é devido
aos seus traumas.
— O que ela geralmente esquece? — Pergunto, lhe entregando a
caneca de café.
— Hum... — Ela dá um pequeno gole e se encosta na geladeira. —
Conversas, alguns acontecimentos...
— E as lembranças do passado? — Olesya balança a cabeça.
— Essas permanecem. — Diz, soprando a bebida fumegante. — Pode
ser que ela esqueça a conversa que tiveram, e se permanecer, talvez ela
pensará que foi um sonho.
— O trauma dela é muito... grave? — Ela inspira fundo, soltando o ar
logo em seguida.
— Laura foi muito machucada, Ruslan, prefiro que a própria lhe conte
sua história.
Encosto na bancada, encarando Olesya que fita seu café. Seus cabelos
longos moldam seu rosto delicado, assim como seus olhos verdes a deixam
mais fascinante. Sempre fui apaixonado por minha irmã, queria sempre a ver
feliz e quando lhe entregava uma rosa, o brilho do seu sorriso me iluminava.
— Sente-se bem? — Pergunto, ela fecha os olhos.
— Sim, estou bem, apenas confusa. — Diz, esticando os braços e me
mostrando a caneca vazia.
— Continua amando café?
— Sem dúvida. — Sorri enquanto encho sua caneca. — É estranho ver
você... aqui na minha frente depois de todos esses anos.
— Estou tendo sorte.
— Como conseguiste fugir? — Dou de ombros, cruzando os braços.
— Quando se tem uma oportunidade, tu agarras sem pensar duas
vezes. — Respondo, Olesya morde seu lábio inferior. — Estás morando com
a mamãe?
— Não — ela roda a caneca. — Sai de casa quando consegui me
sustentar sozinha, trabalhei e montei meu consultório.
— Nunca duvidei de você. — Ela me olha e sorri de leve.
— Mirom e Artem ainda moram com ela. — Fala, ficando séria.
— E por que dessa cara?
— Não me dou bem com eles, você sabe, então me mantenho afastada.
— Olesya abaixa a cabeça. — Visito mamãe sempre, mas sem muita
intimidade com eles.
— Por quê? — Ela aperta os lábios. — O que aconteceu?
— Nada, não quero falar sobre eles. — Olesya anda até a pia e começa
a lavar sua caneca.
— Me encontrei com Artem. — Ela se vira para mim.
— E ele... te deixou ir? — Sorrio, esfregando minhas mãos.
— O que ele poderia fazer? Me matar? — Olesya enxuga suas mãos,
me olhando com curiosidade.
— Ele nunca te mataria...
— Tem outras formas de matar uma pessoa, pequena flor. — Ela arfa,
levanto a cabeça, fitando seus olhos que se enchem de lágrimas.
— Senti tanto sua falta. — Sussurra, um nó se forma na minha
garganta.
— Eu mais ainda. — Ficamos encarando um ao outro por longos
segundos, até eu abrir meus braços.
Olesya reluta, seu queixo treme por causa do choro reprimido. Dou um
passo em sua direção, querendo-a em meus braços, assim quando a tinha
antes de ir para prisão.
— Tu cresceste tanto, minha pequena. — Ela coloca as mãos na boca
sem conseguir mais segurar as lágrimas.
— Não faz sentido...
— Eu estar aqui? — Olesya assente, sorrio estendendo minha mão. —
Tem coisas na vida que não faz sentido, por isso que existimos na vida um do
outro para que tudo...
— Faça sentido. — Completa.
Quando éramos pequenos, sempre repetíamos essa frase, completando
a fala do outro. Olesya segura minha mão, puxo-a de uma vez, a trazendo
para meus braços, abraçando-a depois de 14 anos sem ver a segunda mulher
que mais amo nessa vida.
— Oh, meu irmão... — Sussurra, contornando seus braços em volta do
meu pescoço. — Eu sinto tanto...
— Tu não tens culpa, pequena. — Olesya chora, fecho meus olhos
sentindo seu calor, aproveitando cada segundo que tenho.
Sei que nunca terei minha antiga vida de volta, pois tem feridas que
jamais irão se curar, mas sei que posso recomeçar do zero. Reviver o homem
que morreu ao sofrer pela injustiça de um destino incerto.
Fico encarando minhas mãos espalmadas na bancada com os
pensamentos longe, preso no passado, lembrando de tudo o que passei até
estar aqui hoje.
Muitas vezes sinto tanta raiva que minha vontade é de explodir, deixar
com que os demônios me consumam por inteiro, permitindo fazer o que eles
tanto querem, destruir qualquer um.
Inspiro fundo e fecho meus olhos, controlando os tremores do meu
corpo e buscando no fundo da minha alma o autocontrole que tanto necessito
diariamente.
Não posso me perder... não de novo... não agora...
Abro os olhos ao escutar um gemido vindo do quarto, sei que é Laura,
ela ainda não se recuperou por completo. Ela não passou bem a noite, várias
vezes acordou chorando e reclamando de dor, mas sempre se acalmava
quando escutava minha voz.
O fato dela ficar bem comigo ao seu lado, aquece meu coração coberto
por gelo, desamarrando os arames farpados que tanto o machucam.
Aperto meus lábios e apanho uma maçã, vou até a porta do seu quarto e
me escoro no batente, encarando-a enquanto dorme um sono agitado.
Quero tanto poder tocá-la...
— Por que ela? — Olesya pergunta, ela passou a noite aqui me
ajudando com Laura.
— Seus olhos... — Murmuro em resposta. — Eles têm uma tristeza
profunda que desperta em mim uma vontade de tirar esse sentimento deles...
é como se sua alma tocasse a minha... — Sorrio e olho para Olesya atrás de
mim. — Não sei explicar!
— Eu diria que é paixão. — Diz, se encostando do outro lado da porta
com os olhos presos em Laura.
— Quem sabe... — Rodo a maçã na minha mão e a levo a boca, dando
uma mordida.
— Tu tens que tomar cuidado, Ruslan. — Avisa soltando a respiração
pela boca. — Laura não suportaria mais sofrimento.
— Eu nunca a machucaria.
— Às vezes machucamos uma pessoa sem que queiramos. Uma palavra
errada pode destruir o pouco que lhe resta. — Seus olhos se prendem nos
meus. — Você é um assassino condenado, que futuro daria a ela?
Suas palavras duras me acertam em cheio, meu coração parte no
mesmo instante em que a realidade toma conta. Minha irmã está certa, que
futuro daria a Laura se eu não provar que sou inocente? Se é que sou
inocente!
Abaixo a cabeça, um nó se forma na garganta, porque é tão difícil lidar
com o fato de que tudo está contra mim, tantas coisas foram tiradas de mim
abruptamente que sinto uma revolta enorme acumular em meu peito.
— Eu mereço... — Sussurro com a voz embargada encarando a maçã.
— Laura também merece...
— Merecem o quê? — Levanto o olhar, fitando seu rosto.
— Sermos felizes. — Respondo, recostando a cabeça na parede e
encarando o teto. — Nossa pureza, juventude e felicidade foram arrancados
de forma brutal.
— Tem coisas na vida que não podemos mudar...
— Mas podemos evitar — retruco com raiva. — Se tivessem
investigado mais a fundo, teriam provado minha inocência... caralho... eu só
tinha dezoito anos, Olesya... dezoito anos! — Fecho meus olhos com força,
não posso sucumbir a dor, porque perderei o controle e se isso acontecer...
eu... não sei se voltarei.
— Sinto tanto por ti... — Sua voz embargada me acalma um pouco. —
Por que tu não escreveste, Ruslan? — Franzo a testa e a encaro.
— Todos os meses enviei uma carta a vocês, mas nunca me
responderam. — Ela me lança um olhar confuso.
— Nunca recebi uma carta sequer. — Olesya esfrega seu rosto. —
Tentei visitá-lo várias vezes, mas nunca me permitiram, outras vezes diziam
que tu não querias me ver, até que parei de insistir.
Fico paralisado com sua declaração, passei anos pensando que todos,
inclusive ela, tinham me abandonado. Deixei que o ódio me dominasse, mas
Olesya nunca esteve no meu campo de vingança. Balanço a cabeça,
indignado e frustrado.
Claro que nunca iriam deixá-la se aproximar...
— Te enviei uma carta semanas atrás antes de fugir, tu recebeste? —
Olesya nega com a cabeça, sorrio friamente. — Ele nunca iria permitir que tu
se aproximasses de mim.
— Quem? — Umedeço meus lábios e nego com a cabeça.
— Ninguém!
— Ruslan, o que tu escondes? — Mordo a maçã com meus olhos
presos nos dela. Escondo muitas coisas, segredos obscuros, mas não poderei
revelar a verdade, não por agora.
— Nada, pequena flor. — Olesya suspira e abaixa os ombros,
derrotada, sabendo que não falarei mais nada.
— Vou preparar uma sopa para Laura, tu precisas fazê-la comer. —
Assinto em concordância, ela me olha por mais alguns segundos antes de
seguir até a cozinha.
— Laura é apenas sua paciente ou... algo mais? — Pergunto, curioso.
— As duas coisas. — Responde, fico observando minha irmã preparar
a sopa. — Não sei explicar, mas... ela é especial, entende? — Balanço a
cabeça. — Laura é a paciente mais complexa que tenho, são três anos sem
nenhuma evolução de seus traumas. É um quebra cabeça difícil de montar, e
tudo o que mais quero, é que ela melhore, que consiga recuperar um pouco da
sua vida normal, porque o que ele fez com ela, nunca será apagado e nem
esquecido.
Volto a olhar para Laura, a luz de uma manhã fria ilumina o quarto,
transluzindo sua pele machucada e arranhada. Rony se aninha em seu
pescoço com a necessidade de acalmá-la, ou de lhe dar conforto de um
carinho através de um toque que nenhum ser humano é capaz de fazer.
Quero tanto poder prendê-la em meus braços, protegê-la dos pesadelos,
da solidão e da dor que dilacera seu coração. Quero tanto poder sentir seu
calor no meu corpo, sua pele roçando na minha e seus lábios nos meus...
Medo começa a sufocar meu peito com a possibilidade de que isso nunca
venha a acontecer, sei que não a mereço e que ela não me merece, mas isso é
besteira diante ao sentimento de proteção e posse que cresce dentro de mim.
Laura é perfeita para mim e eu a mereço.
— Ruslan? — Olho para Olesya. — Está pronto, dê a ela quando
despertar, preciso ir para o consultório, tenho três pacientes.
— Cuidarei dela. — Minha irmã fica me encarando fixamente.
— Ruslan, não se apegue...
— Eu sei... — Sussurro, ela abaixa a cabeça.
— Não a toque, okay? — Meneio a cabeça. — Volto mais tarde, tudo
bem?
— Nos vemos. — Olesya sorri para mim antes de sair pela porta afora.
Inspiro fundo e volto minha atenção a Laura.
— Como não me apegar quando tudo o que mais quero é tu, pequena
flor? — Sussurro, me aproximando.
Deixo o resto da maçã em cima da cômoda e me sento no chão, ao lado
da cama. Sua respiração está suave, meus olhos percorrem seus braços e
pescoço vermelhos causados por suas unhas. Aperto meus lábios, reprimindo
a vontade de desabar ao vê-la tão... quebrada.
Rony ronrona, encaixando sua cabeça entre o pescoço de Laura, sem a
intensão de deixá-la. Levo minha mão até ela e afasto com delicadeza seus
cabelos do rosto, querendo explorá-la mais que um simples toque cauteloso.
Afasto a mão quando ela remexe, seus olhos se abrem lentamente e se
fixam em mim, leva alguns segundos para perceber que não está sozinha.
Pânico toma conta do seu rosto, ela sobressalta e solta um gemido de dor.
— Shh... sou eu, Ruslan, se acalma! — Digo com a voz suave, Laura
me fita com o corpo tenso. — Estou aqui, pequena. — Ela finalmente relaxa
com uma respiração funda.
— Está doendo... — Murmura com a voz rouca, Rony volta a se
aninhar em seus braços.
— Fique calma, okay? — Ela assente, me inclino para frente e apanho
o copo de água e um comprimido em cima do criado mudo. — Tu precisas
disso, consegue?
— Sim... — Balbucia fazendo uma careta enquanto tenta se erguer com
a ajuda das mãos. Lhe entrego o copo e coloco o comprimido na palma de
sua mão, ela toma, me devolve o copo vazio e volta a se deitar.
— Tem uma sopa te esperando... — Me calo ao ver Laura fechar os
olhos, uma lágrima solitária cai do seu olho, ela não diz nada e minutos
depois volta a dormir.
Não sei o que fazer, então deixo que durma mais uma vez, talvez assim
ela esqueça por algumas horas o que lhe aconteceu. Mas me dói tanto... uma
dor tão intensa que chega a me sufocar, me sinto impotente diante de
tamanha dor.
Devolvo o copo para o criado mudo e me sento de frente à janela,
encarando o lado de fora, me sentindo acuado e aprisionado por um pesadelo
que nunca chega ao fim.
Durante horas me perco nos pensamentos, escutando a respiração de
Laura, não a deixarei por nenhum segundo, porque ela nunca mais estará
sozinha.
Ajeito o capuz enquanto encaro a boate lotada do outro lado da rua.
Luzes coloridas dão vida ao lugar luxuoso, onde percebes que somente
pessoas de classe alta frequentam.
Tiro a credencial do bolso e encaro o cartão dourado em minhas mãos.
Kliment me entregou assim que sai ao anoitecer, depois que Olesya voltou se
dispondo a passar a noite com Laura que dormiu o dia todo.
Quando sai ela não me questionou para onde eu ia, apenas me deixou
sem fazer perguntas, lhe agradeço por isso. Eu deveria estar na construção,
ajudando Egor e Maxim, mas hoje eu os deixaria na mão, tenho outro assunto
a resolver.
Atravesso a rua e vou em direção à boate “Nichnyy klub[3]”. Paro em
frente a um dos seguranças corpulento de aproximadamente 2 metros e lhe
entrego o cartão. Seus olhos se prendem em mim em busca de algo errado,
ele me devolve e pede para que eu o siga.
A música alta invade meus ouvidos e as batidas estremecem meu
interior. Fico fascinado pela riqueza de cores que transluz através dos globos
e luzes de LED. Pessoas dançam em uma pista, há um palco com Dj e atrás
um telão que passa várias imagens em cores néon. Fumaça preenche a pista
tirando gritos animados e pulos conforme o ritmo da música eletrônica.
Na lateral da boate há um bar com prateleiras lotadas de bebidas,
algumas mesas e bancos com pessoas bebendo e conversando em roda de
amigos.
O segurança me desperta ao segurar meu ombro, ele aponta para um
corredor logo à frente na lateral com uma placa sinalizando “Lugar restrito”.
Sigo-o, a música se torna abafada conforme adentro no lugar. O homem me
olha e sorri ao abrir uma porta, e mais uma vez sou surpreendido por algo
novo.
Meus olhos navegam pelo lugar repleto de luz, mas diferente da
anterior, aqui a música é sexy, há mulheres nuas dançando em um palco onde
homens jogam dinheiro, enlouquecidos. Outras semi nuas dançam pole
dance. É fascinante vê-las se movimentando de forma sensual. Duas
mulheres passam por mim, me lançando olhares, vestidas com pequenos
pedaços de pano e é inevitável não ser atraído a perdição desse lugar.
Uma boate camuflando a outra com segredos escondidos por luzes de
LED.
— Siga-me — o segurança me chama, assinto e volto a segui-lo,
subimos por uma escada até chegarmos à uma porta, ele bate e segundos
depois a abre, permitindo minha entrada.
Aceno em agradecimento, quando entro a porta é fechada, abafando
totalmente os barulhos do lado de fora. Olho para os homens que me
encaram, um em especial sorri e se levanta, vindo em minha direção.
— Estava a sua espera, garoto. — Nikita me cumprimenta, batendo em
minha bochecha com um sorriso escancarado. — O que achaste do meu
lugar?
— Interessante — respondo.
— Esses são meus companheiros — diz, me apresentando aos cinco
homens que bebem tranquilamente. — E esse é meu garoto, apesar de estar
me devendo, ainda é meu garoto. — Retiro o capuz e aceito o copo de bebida
que me oferece.
— O que tu queres? — Vou direto ao ponto, é estranho vê-lo me
tratando dessa forma depois de tudo o que aconteceu.
Nikita me encara por alguns segundos, sorri e pede para que todos se
retirem. Eles obedecem, é claro, nos deixando sozinhos. Coloco o copo na
mesa e o encaro.
— Passamos por muitas coisas juntos, embora aquilo tenha acontecido,
estou disposto a esquecer e... seguir em frente.
— A que custo? — Nikita pega uma garrafa de uísque e enche seu
copo, dando um gole e aponta o dedo em meu peito.
— Nenhum, não sou um monstro, tu sabes disso. — Fala, se sentando à
mesa. — Eu te vi crescer dentro de um inferno, não quero vê-lo voltar para
lá.
— Não? — Franzo a testa totalmente confuso.
— Preste atenção no que irei te dizer, porque como tu sabes odeio
repetir a mesma coisa. — Ele vem até mim e segura meu ombro. — Tu estás
em meu coração, garoto, é estranho dizer isso, mas sinto como se tu fosses
minha responsabilidade, é algo maior do que posso lidar.
— Eu matei Nazariy... — Sussurro entredentes, lembrando de quando
passei a faca no pescoço do seu irmão depois de ter me traído e armado um
atentado contra mim que levou dois dos meus companheiros da unidade 69.
— Sim, tu mataste aquele filho da puta. — Nikita se afasta de mim. —
Nazariy não deveria ter feito aquilo, mas a inveja que tinha de você era maior
do que seus princípios. — Ele me olha. — Estou disposto a esquecer o
passado, mas mesmo assim, tu me deves uma vida e irei cobrar.
Compreende?
Umedeço meus lábios incomodado com sua declaração, não faço ideia
se está mentindo ou falando a verdade, é difícil decifrá-lo. Encaro-o mais
uma vez, tentando achar algo a mais no seu olhar astuto, sem confiar
plenamente nele, porque eu matei seu irmão... caralho!
Passo as mãos em meus cabelos, lembrando desse dia que tudo ruiu,
Nikita tentou me matar várias vezes depois de ter Nazariy morto em seus
braços, nunca o vi tão acabado como naquele dia.
Lutei contra ele, mal conseguia pregar o olho de medo dele fazer o
mesmo comigo, até que uma rebelião aconteceu, Nikita tinha a faca na minha
garganta, mas por algum motivo ele não a rasgou, apenas me deixou e fugiu,
deixando para trás seus ensinamentos.
Eu o amei como irmão, mas o destruí como um traidor.
— Tu escondes alguma coisa em relação a Nazariy. — Digo, Nikita
sorri de lado, mas não diz nada. — Vou tentar deixar no passado, mesmo não
confiando nas suas boas intenções.
— Nazariy te perseguia, tentaste te nocautear inúmeras vezes, tu o
mataste para se proteger... — Nego com a cabeça, calando-o.
— Não o matei para me proteger, mas por vingança. — Nikita me
encara com a expressão séria. — Ele matou meus amigos por motivos toscos,
estava farto e não permitiria que mais ninguém dentro daquele lugar pisasse
em mim, então lhe retribui o favor. — Raiva borbulha por minhas veias, sinto
minhas mãos trêmulas e as fecho em punho.
— Isto é passado — Nikita fala, segundos depois. — Vamos seguir em
frente e viver o agora, pensando no amanhã e planejando o futuro.
— Perdão — ele volta a me olhar. — Sei que não vai o trazer de volta,
e nunca direi que foi um erro, mas te devo pelo menos um pedido de perdão.
Nikita abaixa a cabeça, encarando o uísque no copo sem dizer nada.
Segundos se passam, ele inspira fundo, bebe toda sua bebida e encara a pista
de dança através do vidro da janela. Seus ombros largos estão tensos, sei que
há uma luta interior do que é certo ou errado, entretanto, Nikita nunca faz o
certo, o errado é sempre mais atrativo para ele.
— Tu já encontraste uma solução para provar sua inocência? —
Pergunta, mudando o foco da conversa.
— Estou em busca...
— Pois bem, tenho o que precisa. — Ele retira seu celular do bolso e o
leva ao ouvido. — Pode me trazer. — Nikita finaliza a ligação e sorri para
mim.
Minutos depois um dos seus homens entra e coloca uma caixa em cima
da mesa, deixando-nos sozinhos outra vez. Nikita pede para me aproximar e
abre a caixa.
— Sou um homem de contatos, por isso adiantei alguns detalhes sobre
sua vida, e por isso te chamei aqui. — Ele retira algumas pastas e as colocam
sobre a mesa.
— O que isso significa?
— São as cópias dos seus assassinatos, contendo todas as informações
que necessita. — Choque de surpresa me atinge, deixando-me paralisado.
— Sério?
— Veja — me aproximo e começo a abrir cada pasta, balançando a
cabeça de um lado para o outro, indignado com a brutalidade de cada morte.
Organizo cada pasta por data de acontecimentos, todas as mulheres
tinham cabelos escuros na faixa de 20 a 30 anos de idade, todas mortas da
mesma forma, esfaqueadas de forma violenta.
Me inclino, sustentando meus cotovelos sobre a mesa e encosto as
mãos na boca, fitando os olhos da última vítima, responsável pela minha
prisão. Lembranças daquela noite pipocam minha mente, vozes gritam por
meus ouvidos, o som de passos, o rangido da lâmina cortando sua pele, das
minhas mãos ensanguentadas e do barulho da chuva.
Fecho meus olhos com o coração acelerado.
— Ruslan? — Nikita me chama. — Tu sabes quem foi o responsável,
certo? — Enterro meu rosto entre as mãos antes de endireitar-me e solta um
suspiro longo.
— Sim, mas...
— Mas? — Nikita se aproxima com a sobrancelha arqueada.
— Não tenho certeza! — Confesso. — Preciso não só provar a justiça
que sou inocente como a mim mesmo, entende?
— Não, eu não entendo. — Nikita me olha sério. — Se você sabe quem
é, pelo menos desconfia, por que tem que provar para si mesmo?
Esfrego meus lábios e caminho até a janela, observando as mulheres
dançarem sedutoramente para a plateia de homens em busca de mais
dinheiro.
— Quando a raiva me domina... quando permito que isso aconteça... —
Fecho meus olhos com força. — Eu perco a consciência e sofro de apagão.
— Como dizes? — Sua voz sai espantada.
— Não me lembro de ter matado Nazariy ou os outros que entraram em
meu caminho. Sou consumido pelo fogo e tudo evapora como pó, deixando
apenas vestígios, flashs e pequenos episódios.
— Desde sempre?
— Acho, Nikita... — Murmuro, abrindo os olhos e olhando para ele.
— Então tu podes ser mesmo o Serial Killer de Kharkiv? — Assinto
com pesar. — Cacete, Ruslan! — Nikita dá um gole no uísque pelo bico da
garrafa, é engraçado vê-lo tão alterado pela suposição de que talvez eu seja o
culpado sendo que o próprio é um criminoso. — Tu alegavas com tanto
fervor que é inocente, agora me vem com essa?
— Só que... tem alguma coisa estranha. — Digo, voltando para mesa e
apontando para as vinte duas vítimas. — Cada uma dessas mulheres morreu
no prazo de um mês. Só que a primeira foi Halyna em 2004 e a última em
2005 quando fui preso.
— Isso quer dizer que tens um padrão.
— Sim, mas não é isso... — Esfrego meu rosto em confusão. — Eu
esqueço do que faço quando fico com raiva, mas quando esses assassinatos
aconteceram... eu não tinha motivos para matar ninguém, cara!
— Tem gente que mata por prazer — retruca se sentando e recostando
na cadeira de forma relaxada.
— Em 2004 eu tinha 17 anos de idade, era um moleque.
— Moleques matam, um exemplo é o caso de Jordan Brown, de 11
anos, que matou a madrasta grávida em 2009, na Pensilvânia. — Fico o
encarando, tentando lembrar do meu passado, dos dias em que sucederam os
assassinatos, mas mesmo assim não faz sentido, não há uma lógica.
— Eu o vi... — murmuro, encarando o rosto da Ordak, uma das
vítimas, através da foto. — Eu escutei gritos, era uma noite chuvosa, estava
voltando depois de um dia vendendo rosas, entrei em desespero e fui na
direção dos gritos. Havia um homem de capuz, esfaqueando-a violentamente,
corri até Ordak e tudo aconteceu em um borrão. De repente, eu estava sobre
seu corpo, com a faca nas mãos ensanguentadas, havia arranhões em meus
braços que foi comprovado que eram dela, seu rosto estava desfigurado e ela
segurava uma rosa... a mesma que eu vendia... estava confuso, desorientado e
então a polícia me pegou. — Pisco várias vezes, me desprendendo desse dia.
— Tu já imaginaste que talvez esse cara de capuz foi fruto da sua
mente para dizer que não és o culpado? — Umedeço os lábios e assinto.
— Sim, mas... lembro dos seus olhos e de reconhecê-lo, só que com o
tempo fui desprendendo a lembrança do seu rosto.
— E quem tu achas que és?
Procuro pela pasta dos arquivos da minha família, dentro dela retiro
três fotos e as coloco na mesa. Posiciono minha foto no meio, a de Artem ao
lado direito e de Mirom no lado esquerdo, encaro-os por alguns segundos
antes de levantar o olhar e os prender em Nikita.
— Um de nós três — confesso, porque uma certeza eu tenho; um de
nós é o verdadeiro assassino.
Contorço minhas mãos com nervosismo, vou até a porta do meu quarto
e a abro um pouco, vendo minha mãe sentada na mesa.
Será que ela vai acreditar em mim?
Seus cabelos castanhos e longos caem como cascata por suas costas,
seu corpo cheio de curvas é o que mais chama a atenção dos seus clientes,
mas o que mais acho lindo na mamãe são seus olhos azuis, herdados do seu
pai. Os meus são iguais ao dela.
Inspiro fundo sentindo meu coração palpitando, tenho que aproveitar
essa oportunidade, e contar a ela, o que James está fazendo comigo, que está
me machucando mesmo eu sendo boazinha.
Engulo em seco e me sento na beira da cama, encarando minhas
bonecas sem a roupa de baixo. É tão ruim me sentir sozinha, sem poder
contar para ninguém. E se eu contar, James vai bater na mamãe e em mim.
Inspiro fundo, sentindo tanta vergonha que tenho vontade de me
esconder, mas preciso dizer a ela o que está acontecendo. Tomo ar, me
levanto e com passos lentos saio do quarto e paro ao seu lado. Mamãe está
inclinada um pouco para frente na mesa, bebendo mais uma vez.
Meu coração bate tão acelerado que dói, quero recuar e deixar isso
para lá, me calar diante tamanha dor, mas não aguento ficar calada.
— Mamãe? — Ela vira o rosto, suas bochechas estão coradas por
causa do álcool.
— Fala — contorço minhas mãos, encarando meus pés. — Vai ficar
calada? — Nego com a cabeça com meus olhos pinicando por causa das
lágrimas que seguro.
— A senhora me ama? — Pergunto, levantando a cabeça e encarando
seus olhos, ela sorri de lado, enche seu copo de mais bebida e dá um gole,
fazendo careta.
— Você é tudo o que mais amo nessa vida. — Nego com a cabeça, se
ela me amasse tanto quanto diz, não deixaria James me machucar e não
ficaria bêbada todos os dias.
— Não ama, não! — Retruco com raiva, mamãe franze a testa.
— Como?
— Se a senhora me amasse não beberia todo dia e... não deixava
James me machucar. — Revelo por fim, ela arrasta a cadeira para trás
abruptamente, me assustando.
— Não estou te entendendo, Lauriana! — Mamãe se inclina para
frente, ficando mais perto de mim, com olhos fixos nos meus.
— Mamãe, James me machuca... — Digo, engasgando com minhas
lágrimas. — Ele é mal, mamãe.
— Onde você aprendeu a mentir? — Olho para ela através das
lágrimas. — Bem que ele me falou que você estava se tornando mentirosa,
mas não acreditei e brigamos.
— Não estou mentindo, mamãe, ele fala que se eu contar vai te
machucar e... e dói muito.
— Chega! — Ela me dispensa e volta a beber com a expressão furiosa,
solto um soluço.
— Mamãe, James...
— CHEGA! — Sobressalto, ela se levanta abruptamente, deixando a
cadeira cair para trás. — Estou farta dessa vida de merda que levo, estou
cansada, Lauriana. É tudo eu nessa porra de casa! Eu tento te dar tudo, não
deixo faltar nada apenas para se tornar uma mentirosa?
— Não, mamãe! — Balanço a cabeça, chorando por ela não acreditar
em mim.
— James me falou que você está fazendo de tudo para chamar atenção,
está com ciúmes, não é? — Nego com a cabeça. — Deveria sentir vergonha,
Lauriana.
— Mas...
— Cala boca! — Coloco as mãos na boca, abafando o gemido causado
pelo choro. — Vai para seu quarto e a próxima vez que eu te pegar mentindo
e inventando histórias, vou te dar uma surra. Me ouviu? — Assinto, recuando
alguns passos.
— Tá, mamãe... — Sussurro e corro até meu quarto, fecho a porta e me
sento encolhida no chão ao lado da cômoda, liberando um choro doloroso.
Mamãe deveria acreditar em mim, pelo menos me escutar, porque ela é
a única pessoa que tenho nesse mundo. Bonecas, roupas e dinheiro não
substitui o amor, não cura o que sinto no meu coração.
Abraço meus joelhos e encosto minha testa neles, chorando de medo,
porque quando ela falar para James que eu disse que ele me machuca, vou
ser punida, e mais uma vez, sofrerei sozinha. Ninguém vai acreditar em mim,
não em uma criança mentirosa e enciumada, como mamãe disse.
Escuto uma porta bater com força, assusto ao escutar uma voz
masculina, olho ao redor do meu quarto em busca de algum esconderijo, mas
não há tempo, pois a porta do meu quarto é aberta e os olhos de James se
prendem em mim.
Pavor me consome e sei que mais uma vez sofrerei nas mãos de um
monstro...
Abro os olhos assustada, meu rosto está encharcado de lágrimas e meu
coração dói. Se passaram tantos anos e ele ainda continua na minha mente,
me atormentando dia após dia.
Será que isso nunca terá fim?
Aperto meus olhos com as palmas das mãos, tentando acalmar as
lágrimas e o choro que insistem em cair, minha alma está tão dilacerada que
estou perdendo a esperança de que um dia isso acabe.
Escuto barulho de panelas, afasto as cobertas e me levanto com
dificuldade, meu tornozelo grita de dor ao me colocar de pé. Estou trêmula
com um nó na garganta, querendo me livrar dessa angústia que me sufoca.
Me equilibro com a ajuda da parede, meus olhos se fixam no homem
alto que anda de um lado para o outro pela cozinha. Ruslan está vestindo uma
blusa de manga fina preta, o tecido abraça perfeitamente cada músculo dos
seus braços e de seus ombros largos.
Encosto a cabeça na parede, observando-o, poderia ficar assim a vida
toda. Seus cabelos estão mais curtos, parece tê-los cortado, sua barba por
fazer o deixa fascinante, despertando em mim uma vontade de tocá-la.
Nunca toquei em uma barba antes, ou em um rosto masculino. Como
será beijar um homem? Sentir sua pele contra a minha ou sentir suas mãos
navegando por meu corpo?
Estremeço de repulsa só de imaginar. Aperto meus lábios, segurando
mais uma vez o choro de indignação, eu tinha tanto para viver...
— Ruslan? — Chamo em um sussurro, ele congela ao escutar minha
voz e lentamente ergue o rosto, fixando seus olhos verdes em mim.
— Finalmente levantaste — ele solta a faca que cortava alguns
legumes.
Seu olhar suave se torna preocupado quando lágrimas escorrem por
meu rosto, queria tanto poder ser normal...
— Ele me tirou tudo, Ruslan — falo entre os soluços. — Eu era
apenas uma criança, mamãe não acreditou em mim e... eu me sinto um lixo
por isso...
— Ei... — Ruslan se aproxima, mas para, quando me assusto com sua
investida, dando um passo para trás. Faço uma careta quando choque de dor
espalha por minha perna esquerda.
— Às vezes eu me pergunto por que eu? — Volto a encostar a cabeça
na parede. — O que fiz de errado? Sempre fui obediente e entedia que minha
mãe precisava se prostituir para nos dar uma vida melhor, era a única saída
vindo de uma mulher sem estudos. Mas ela o levou para casa, preferiu o
James a mim, Ruslan... Ela escolheu acreditar no meu padrasto do que na sua
filha... por quê? Por que eu tenho que passar por isso? O que eu fiz de tão
errado para merecer tamanha dor? Eu estou tão cansada... tão casada,
Ruslan...
Limpo meu rosto e aliso meus braços arranhados. Me machuquei de
novo e já não sei mais o que fazer para que tudo isso acabe. James me
destruiu de uma maneira que nunca poderei mais ser consertada, estou a um
passo de desistir de tudo, quero poder fechar meus olhos e esquecer que um
dia existi.
— Uma vez, depois de ter sido torturado pelos detentos, encontrei um
pedaço de espelho e com ele comecei a me cortar — Ruslan revela, se
encostando na parede de frente para mim. — Nunca senti tanto alívio ao
sentir dor, porque o ato em si era cometido por mim, eu tinha o controle.
Cada rasgo era um peso que caia dos meus ombros, ninguém acreditou na
minha verdade, viraram as costas para mim... me jogaram em um inferno e eu
ia tirar minha própria vida.
— Mas você não tirou... — Ruslan abaixa a cabeça, comprimindo os
lábios.
— Porque Nikita não deixou. — Diz, voltando a me encarar. — Não
entendo o propósito da vida, Laura, muito menos porquê devemos arcar com
a maldade de uma pessoa. mas acredite, não temos culpa do que fizeram com
a gente.
— Eu nunca poderei ser normal, Ruslan. Ele me tirou tudo... — Ruslan
se aproxima, só que dessa vez não me afasto.
— Nem tudo, pequena flor. — Murmura com a voz suave, espalhando
arrepio por meu corpo. — Ele não tirou sua vontade de viver, porque se
tivesse tirado, tu não estarias mais aqui, lutando contra seus demônios. —
Fico encarando seus olhos.
Ele é tão lindo!
— Mas ele continua aqui — aponto para minha cabeça — na minha
mente.
— Temos que lidar com nossos fantasmas, enfrentar nossos demônios e
lutar para não ficarmos presos em um passado de tormentos. A coragem
dentro de nós nos faz encontrar o caminho de volta. — Inspiro fundo,
absorvendo suas palavras.
— Mas eu não encontrei meu caminho, Ruslan... — Ele sorri,
inclinando a cabeça para o lado.
— Tu já encontraste, pequena flor. — Ficamos encarando um ao outro
por longos segundos, nenhuma palavra foi dita nesse meio tempo e a única
coisa que consegui pensar, foi no quanto Ruslan me faz bem. — Venha, você
precisa comer. — Diz, se afastando.
— Okay... — Limpo meu rosto mais uma vez e vou até a mesa,
fazendo o impossível para não colocar o peso do meu corpo na perna
esquerda.
Ruslan coloca um prato de sopa à minha frente, fico observando-o
preparar a comida de Rony, que mia desesperado de fome.
— Rony é como você — falo, chamando sua atenção.
— Por quê? — Ruslan se senta do outro lado da mesa, dou de ombros.
— Você se esgueira pela noite, livre e misterioso, esconde por trás da
alma um passado conturbado, mas quando menos espera, você está de volta.
— Remexo minha sopa. — É esquisito...
— Nós?
— Sim, os dois. — Aponto a colher na direção do gato. — Rony fica
mais sumido do que presente, você também. — Olho para Ruslan. — Ele te
segue?
— Às vezes — ele sorri de leve. — Rony sempre está atrás de mim.
— Ah... por isso que quase não o vejo quando você não está. — Volto a
remexer na sopa, perdida nos pensamentos e sentindo seu olhar em mim.
— Tu não estás comendo — me repreende, assinto e me forço a comer.
— Você quem fez? — Pergunto, achando a sopa deliciosa.
— De certo que sim — levanto meu olhar e encaro seu rosto, Ruslan
está me encarando fixamente como se só eu existisse na sua frente.
De repente, sinto um formigamento subir pelo meu pescoço e se instala
no meu rosto, me remexo na cadeira e desvio do seu olhar, envergonhada
pela forma que me encara.
— Você aprendeu rápido... — Murmuro, pigarreando.
— Quando estava na unidade 69, trabalhei na cozinha por alguns anos.
Apesar de fazer apenas o mesmo tipo de comida, aprendi um pouco de cada
coisa. — Levo a colher cheia à boca, assentindo de leve.
— Mas quando você chegou aqui, mal sabia fritar um ovo.
— Havia anos que estava trancafiado no Colony 100, apenas eu e as
paredes na ala de segurança máxima. — Franzo a testa, curiosa.
— O que você fez para ir para o presídio Colony 100 e ser considerado
uns dos criminosos mais perigosos da Ucrânia? — Ruslan umedece seus
lábios e inclina a cabeça para o lado, apesar dos seus olhos estarem fixos em
mim, tenho certeza que seu pensamento está no passado, revivendo o que
viveu.
Suas mãos começam a tremer, aperto a colher quando vejo seu rosto
ficar pálido, Ruslan trinca a mandíbula de raiva. Prendo a respiração um
pouco assustada com seu comportamento repentino.
O que se passa em sua mente nesse momento?
— Ruslan? — Chamo, me encolhendo. — Você está aqui? Ei?
— O passado às vezes vem de uma vez. — Fala, fechando os olhos. —
É difícil suportar. — Engulo em seco.
— Você está... bem? — Pergunto, soltando o ar e relaxando o corpo.
— Sim — assegura, abrindo os olhos e se levantando. — Assim que
terminar de comer, se arrume, temos um lugar para ir.
— Hum? — Ruslan pega uma chave em cima do balcão e vai em
direção à porta.
— Preciso de um pouco de ar, te espero no carro. — Antes de eu
questionar qualquer coisa, ele sai pela porta, me deixando sozinha cheia de
perguntas, e com um gato se esfregando em minhas pernas.
— Seu dono é estranho, Rony. — Sussurro para ele que me fita com
grandes olhos amarelos, sentado, na esperança de ganhar algum agrado. — E
o que eu posso falar se também sou estranha... — Inspiro fundo e pego um
pedaço de cenoura e lhe dou, deixando-o feliz.
Depois de finalizar a sopa, me arrumo e tomo um remédio para dor,
vou atrás de Ruslan que me espera encostado em um carro escuro com capuz
escondendo seu rosto.
Paro na escada sem que perceba que estou aqui, apenas para olhá-lo um
pouco mais, o que vem acontecendo com muita frequência ultimamente.
Sinto a necessidade de decifrá-lo, entender o que se passa em sua mente.
Ruslan está atraindo minha atenção mais do que posso permitir, e isso de
certa forma me assusta.
Ele levanta a cabeça ao notar minha presença e me encara, aqui fora,
com os raios de luz, o verde de seus olhos fica de uma cor mais cristalina... é
fascinante. Ruslan desencosta do carro e abre a porta do passageiro com um
sorriso discreto nos lábios perfeitamente delineados.
Franzo o cenho, é estranho estar reparando em cada detalhe dele, só
que é inevitável não ser fisgada por ele e um frio na barriga toma conta de
mim. Sensações estranhas que jamais tinha sentido. Inspiro fundo e me
aproximo com um pouco de dificuldade devido ao meu machucado.
— Precisas de ajuda? — Nego com a cabeça.
— Não! — Me sento no banco fazendo uma careta, Ruslan fecha a
porta e contorna o carro, aproveito e afivelo o sinto. — Está tudo bem... —
Murmuro para mim mesma, ansiosa e nervosa com a fato de estar dentro de
um carro com um homem.
— Tens certeza? — Pergunta ao se acomodar em seu lugar, assinto
encarando o lado de fora.
Não demora muito para ele se afastar de casa. Ficamos em silêncio por
alguns segundos, aliso a palma das minhas mãos sobre a calça para enxugar o
suor.
— De quem é esse carro? — Pergunto, quebrando a tensão que criei.
— Olesya me emprestou — revela, sem desviar o olhar da estrada. —
Tu sabes que ela é minha irmã, correto?
— Sim — Ruslan meneia a cabeça.
— Desde quando? — Encolho meus ombros e ajeito meu casaco.
— Uma vez, em uma sessão, ela contou um pouco de sua vida, algo
que nunca tinha me dito. — Falo, encarando minhas mãos. — Mas comecei a
desconfiar quando ela me chamou de “pequena flor”, da mesma forma que
você me chama. O resto foi se encaixando, tive a confirmação mesmo quando
entrevistei sua mãe. — Sinto seus olhos sobre mim.
— Minha mãe?
— É... — Balbucio — Estou investigando sua vida, Ruslan, não porque
eu quero. — Olho para ele, seu cotovelo está encostado na porta do carro
enquanto esfrega seus lábios, pensativo.
— O que mais descobriu?
— Nada, apenas que você era um adolescente carinhoso, gentil e
trabalhador... — Passo a língua no meu lábio inferior. — Sabe, Ruslan, acho
tudo isso muito estranho.
— O fato de eu ser um assassino em série?
— Exatamente, tem alguma coisa que não se encaixa. — Digo, com o
pensamento preso em todos os arquivos em que juntei.
— E... como mamãe estava? — Olho para ele.
— Dona Okasana te ama, ela falou de você com carinho e tristeza. —
Ruslan balança a cabeça.
— Não sei se posso levar isso em conta.
— Como assim?
— Minha família me abandonou, pequena flor, incluindo minha mãe.
— Fico calada com a mágoa estampada no tom da sua voz.
Me acomodo de forma confortável no banco, encarando a paisagem do
lado de fora. Queria poder dizer algo reconfortante, mas não consigo, não
quando deixei minha mãe para trás sem me despedir.
Como será que ela está agora? Será que ela ainda se lembra de mim?
Fecho meus olhos quando um nó se instala na garganta. Lembrar dela é
como ser arrastada novamente para o pesadelo que tanto tento me manter
longe, só que às vezes a saudade é maior.
— Ela era uma mãe boa... — murmuro, lembrando do seu rosto. — Eu
puxei seus olhos e seus cabelos.
— Creio que a beleza também. — Ruslan diz, acelerando mais o carro.
— Sim — abro os olhos e suspiro, afastando as lembranças. — Me
diga, onde está me levando?
— Aguarde. — Responde me lançando um olhar misterioso, aperto
meus lábios.
Minutos se passam, começo a balançar a perna direita ansiosa e ao
mesmo tempo nervosa, com mil e uma coisas passando por minha mente,
uma delas é a possibilidade dele me machucar.
— Ruslan? — Chamo com a voz embargada, isso não está certo, não
deveria ter entrado nesse carro, ainda mais sem fazer a mínima ideia de suas
intenções...
Ele entra em uma estrada de chão onde há apenas vegetação, árvores
nos abraçam como se estivéssemos entrando em uma floresta fechada.
Engulo em seco, balançando a cabeça de um lado para o outro com as mãos
trêmulas.
Não... não... não...
Minha mente começa a gritar, temer o pior, porque é isso o que penso,
sozinha dentro de um carro com um suposto assassino de mulheres...
— Rusl... — me calo quando ele freia o carro, meu coração salta ao
olhar para ele que encara a estrada fixamente. — Por... quê? — Gaguejo,
olhando para os lados.
— Necessito que faç... — Ruslan congela ao notar a minha inquietação,
suor escorre por entre meus seios e a única coisa que ouço são as batidas do
meu coração.
— Você... você me trouxe para isso? — Digo, virando e tentando abrir
a porta, mas o clique da trava me congela. — Abre a porta, Ruslan!
— Laura...
— Abra a porta... — Suplico, sentindo-me sufocada. — Não vou deixar
você me machucar, eu não... você não... — Lágrimas escorrem por meu rosto
quando forço a porta.
— Se acalma, Laura, não farei nada...
— Abra a porta... por favor... — Peço, encostando a testa no vidro e
controlando a respiração acelerada. — Por favor... preciso de ar... não... não
estou bem!
Escuto a trava e saio do carro, soltando um grito de dor ao forçar meu
tornozelo machucado no chão. Inspiro o ar da vegetação, sentindo o vento
fresco beijar meu rosto ao mesmo tempo em que me acalma. Encosto no
carro, inspiro e expiro...
— Ei... — Ruslan se aproxima, me assusto ao olhar para ele tão perto
de mim.
— Desculpa, eu...
— Pensaste que eu iria te machucar? — Pergunta, com um olhar
magoado.
— Sim — respondo com sinceridade. — É que...
— Por que razão faria isso com você? — Ele penteia seus cabelos para
trás, esfregando seu rosto logo em seguida. — Nunca tocaria em você sem
que permitisse, só preciso que aprenda a confiar em mim. — Abaixo a
cabeça, mais calma.
— Não é tão fácil como parece. — Falo com raiva.
— Eu sei... — Ruslan solta a respiração. — Dá-me um voto de
confiança, pequena, tu nunca irás se arrepender. — Olho para ele por alguns
segundos.
— Dói muito não ser normal...
— E me dói ainda mais ver o brilho de pavor ao me encarar, como se
eu fosse um monstro.
— Você de certa forma é! — Digo, vendo-o arquear a sobrancelha.
— Sou?!
— Sim! — Ruslan balança a cabeça de leve e umedece os lábios.
— Entre no carro, temos um destino a chegar. — Ele não espera por
minha resposta, apenas contorna e entra dentro do carro.
Inspiro mais uma vez e volto para meu lugar, fechando a porta.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Abro a boca para pedir desculpas
por ter reagido dessa forma, mas congelo quando ele estende uma venda e se
vira para mim.
— Preciso que confie verdadeiramente em mim, Laura. — Seus olhos
se fixam nos meus de uma forma que não consigo me mexer.
— Não é uma boa ideia.
— É a melhor ideia de todas. — Diz, se inclinando em minha direção,
chego para trás até encostar na porta. — Primeiro, porque tu me darás o que
quero, sua confiança.
— E segundo? — Pergunto, umedecendo os lábios quando meus
batimentos se tornam intensos, seu olhar recai em minha boca e permanece
nela por alguns segundos antes de voltar encarar meus olhos.
— Vou te revelar quando chegar a hora. — Engulo em seco. — Não te
tocarei, a não ser que queira. — Assinto, apreensiva.
— Me diga para onde irá me levar. — Ruslan sorri, negando com a
cabeça.
— Chegue mais perto, deixe-me fazer isso. — Fecho minhas mãos em
volta do cinto que puxei sem nem perceber. — Te prometo!
Seu olhar firme me dá a coragem que necessito para chegar mais perto
dele. Meu coração bate tão forte que o sinto na garganta. A respiração de
Ruslan se mistura com a minha, seu cheiro me invade, espalhando uma
sensação desconhecida de prazer.
— Estamos perto do local, tu não ficarás com a venda por muito tempo.
— Assinto, ele me encara mais uma vez antes de erguer as mãos, e com
cuidado coloca a venda sobre meus olhos, dando um nó atrás da cabeça. —
Consegue enxergar alguma coisa? — Pergunta tão perto do meu rosto que
meus pelos eriçam, nego com a cabeça.
— Não...
— Ótimo — diz se afastando, ele liga o carro e arranca, recosto a
cabeça no encosto do banco com o coração palpitando.
Ruslan cruzou uma barreira que mais ninguém foi capaz de cruzar,
lapidando meu medo e minhas inseguranças, travando uma luta contra meus
demônios nesse caminho incerto da vida.
Será que devo me preocupar?
Inspiro fundo e me deixo levar pela sensação de voltar a confiar em
alguém. Só que esse alguém é considerado um assassino, e nunca imaginei
que um dia, um homem sombrio fosse trazer tanta luz à minha escuridão.
— Estás tudo bem? — Ele pergunta, travo uma batalha interna contra
meus instintos de jogar tudo para o alto, arrancar essa venda e fugir, mas não
quero viver assim para sempre, quero me sentir viva, humana, livre de todo
tormento.
Então assinto com coragem e com a decisão tomada de que, não
importa o medo que eu sentir, irei enfrentar todos os desafios que me cercam.
— Sim, estou bem — confirmo, preparada para o que me espera.
Minutos se passam, tento relaxar e de vez em quando consigo sentir seu
olhar sobre mim. Contorço as mãos que estão em meu colo, agoniada pela
demora.
Noto o carro fazer uma curva e parar, Ruslan abre a porta e sai, escuto
passos estalando no que parece ser cascalho ficarem distantes. Prendo a
respiração, aguçando minha audição, me seguro para não tirar a venda por
causa da curiosidade.
— Feito — Ruslan diz ao retornar para o carro. — Pronta?
— Sim — respondo, mordendo meu lábio inferior.
Depois de dirigir mais um pouco, ele para o carro e fica em silêncio,
deixando-me ainda mais nervosa.
— Essa é a segunda parte da ideia. — Ruslan diz, se mexendo no
banco.
— Será porquê não gostei disso? — Ele solta uma risada baixa,
aquecendo meu coração.
— A vida é cheia de desafios, mas só vencem aqueles que estão
dispostos a arriscar. — Fala, me encolho quando o sinto mais próximo de
mim. — E não existe coragem sem medo...
Mordo o interior das bochechas sem fazer ideia de qual é essa segunda
parte de sua ideia, só sei que não gosto de todo esse mistério.
— Diga — peço, controlando minha respiração.
— O caminho que iremos percorrer é um pouco distante e você não
está enxergando. — Viro meu rosto na sua direção, sua respiração colide em
meus lábios.
— Você está muito perto — murmuro, trêmula.
— Isso te incomoda?
— Hum... de certa forma sim.
— Preste atenção, Laura, nada disso é para seu mal, tu precisas
florescer e lutar contra sua mente. — Assinto, concordando. — Tu precisarás
segurar minha mão. — Leva um tempo para digerir suas palavras.
— O-o quê?
— É um dos muitos passos que tu terás que fazer, requer autocontrole e
confiança.
— Ruslan... acho que não estou preparada... — Sussurro, apavorada
com a possibilidade dele me tocar.
— Nem sempre estamos preparados, apenas chega um momento em
que precisamos tomar uma decisão e essa é a sua. — Engulo meu nervosismo
e fecho minhas mãos em punhos. — Tu irás lutar ou recuar?
Recuar, é o que minha mente grita desesperadamente, mas... eu quero
lutar, quero sentir seu calor e sua pele sem ter medo de sentir nojo de mim.
Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas pessoas... É tudo culpa sua...
Balanço a cabeça afastando sua voz e as lembranças do passado. Quero
poder viver, sentir e... amar como nunca fiz. Uma determinação nasce dentro
de mim, e de repente me vejo assentindo.
Fecho meus olhos, me viro e tateio até abrir a porta quando Ruslan
desce do carro. Espero por ele com o coração tão acelerado que temo um
ataque.
— Estou diante de ti — ele diz, percebo uma leve ansiedade no timbre
de sua voz. — Apenas alguns centímetros.
Engulo em seco, inspiro fundo e lentamente levanto minha mão
trêmula. A vontade de poder senti-lo é maior do que o receio de tocá-lo.
Choque espalha por meu corpo quando as pontas dos meus dedos
tocam os seus. Uma emoção se instala em meu peito, porque dessa vez eu
estou no comando, é com minha permissão que Ruslan irá me tocar.
Começo a explorar com calma a palma da sua mão, sentindo seu calor e
os pequenos calos que sobressaltam dela, não sei explicar o que passa em
meu coração.
Ontem entrei em crise por terem me tocado e hoje... hoje estou tocando
em uma pessoa, sentindo o que há anos não sinto. Fecho minha mão em torno
da sua e ele envolve a minha. Grande, firme e protetora. Coloco minhas
pernas do lado de fora e com um leve impulso, Ruslan me puxa para cima,
me ajudando a ficar de pé.
— Agora, tu seguirás meus comandos, tudo bem? — Assinto, inebriada
pelo seu toque e pela firmeza em que me segura.
Ruslan fecha a porta do carro e começa a me guiar, conduzindo-me por
um caminho desconhecido, instruindo-me onde devo pisar, desviar e
caminhar.
Sua voz fica um pouco distante quando foco na sensação de estar
segurando sua mão. Calor percorre meu corpo, desejando que essa não seja a
última vez em que me toca. Porém, mesmo aceitando, dentro de mim há uma
luta incansável contra o passado que me atormenta.
— Chegamos — Ruslan diz, acariciando minha mão com o polegar,
deixando minha pele formigando. — Vou retirar a venda, e no três, abra os
olhos.
— Estou nervosa — confesso com um pouco de dor no meu tornozelo.
— Sim, imagino! — Sua mão começa a escorregar da minha, até não
estarmos mais conectados. Um vazio toma conta de mim ao mesmo tempo
em que meu interior agita com a sua falta.
Um arrepio percorre minha espinha quando para atrás de mim. Inspiro
fundo, controlando minha mente, dizendo-a que estou no controle e que tudo
o que está acontecendo é com minha permissão.
Fecho as mãos em punhos, a venda fica frouxa e me encolho ao sentir a
respiração de Ruslan próximo ao meu pescoço, meu coração sobressalta.
— 1... 2... — sussurra com a voz suave, tão sedutora que uma
cor rente quente navega por meu corpo, fazendo meu sangue
pulsar. — 3... — Ele retira a venda. — Abra os olhos, pequena flor.
Faço o que diz, e lentamente abro meus olhos. O que está à minha
frente me faz perder o fôlego, a beleza e delicadeza se espalha em um mar de
plantação de rosas vermelhas. O vento toca cada uma delas com graciosidade,
espalhando por todo o lugar o perfume adocicado de cada pétala.
Enquanto admiro o mar de rosas, uma emoção se aloja e aperta meu
peito. Vivi tantos anos na escuridão que estar aqui é como se as janelas se
abrissem, me libertando, permitindo que reviva, reconstrua aquilo que foi
quebrado.
— Gostaste? — Ruslan pergunta, parando diante de mim, chamando
minha atenção para ele.
Ele fixa o olhar em mim, como se estivesse contemplando algo. Ignoro
o frio na barriga, achando estranho não ficar incomodada com ele tão perto.
Meus olhos o analisam, enxergando melhor cada traço do seu rosto.
— Laura? — Ele me chama, despertando-me do torpor em que me
colocou.
— Hum? — Ruslan sorri de lado, passando a língua nos lábios,
atraindo meus olhos para sua boca.
— Estás bem? — Assinto, encontrando seu olhar de novo.
— Err... estou bem! — Pigarreio, desviando e forçando-me a encarar as
rosas e não ele.
— Certo — diz, se abaixando e pegando uma cesta que não tinha visto.
— O que é isso? — Pergunto, curiosa.
— Iremos fazer um piquenique — responde, estendendo a mão para
mim. — Esse dia é nosso. — Fico o encarando, sem acreditar no que ele
pretende, engulo em seco e olho para sua mão.
— De novo? — Pergunto, alisando as palmas da minha sobre a calça,
enxugando o suor.
— Até descer essas escadas, depois tu não precisarás mais segurar
minha mão... só se quiser! — Assegura, respiro fundo e seguro sua mão mais
uma vez, Ruslan sorri e me ajuda a descer as escadas que dá acesso à
plantação.
Ele me solta assim que desço o último degrau, seguro o impulso de
limpá-las, mas a verdade é que eu queria que continuasse me segurando.
Andamos um do lado do outro pelo corredor de rosas. Inalo o perfume
das pétalas, parando para acariciar as folhas verdes e apreciando a sensação
que me transmitem.
— Quando era mais novo, antes de tudo acontecer, aqui era meu lugar
preferido. — Revela com a voz um pouco fraca, olho para ele que tem uma
rosa na mão.
— Você as adquiria aqui? — Ele assente.
— Não só comprava para revender, mas para trabalhar nos fins de
semana. — Ruslan estende a rosa para mim, apanho e a levo ao meu nariz,
inspirando seu cheiro. — O proprietário era muito amigo do meu tio.
— Por que essa fascinação pelas rosas? — Ruslan comprime os lábios,
me olhando.
— As rosas sempre esteve presentes na minha vida, elas simbolizam a
perfeição, o amor, o coração, a paixão... — diz, parando e cortando mais duas
com uma tesoura de jardinagem que tirou de dentro do cesto, ele me entrega.
— É a representação de tudo de bom no mundo, da pureza e beleza.
— E os espinhos?
— Eles fazem parte dela. — Ruslan me entrega mais quatro. — É fácil
amar uma rosa, mas é preciso um grande coração para aceitar seus espinhos.
— Ruslan para e me encara.
— Ninguém quer a parte feia, não é? — Fixo meus olhos nos dele.
— Quem ama a rosa, suporta os espinhos. — Ele fica me encarando. —
A rosa é que nem você, Laura, para te amar, terá que aceitar seus espinhos.
De repente sinto minhas bochechas queimarem e rola uma tensão no ar,
acelerando meu coração. Ruslan me encara como se eu fosse o centro do
mundo, passo a língua nos meus lábios e seus olhos acompanham o
movimento.
— Dentro de cada um de nós existe uma rosa que, para fortalecer e
desabrochar, precisa ser regada com amor. — Diz, inclinando a cabeça para o
lado ainda me encarando. — Nossa rosa interior é a alma perfumada com
aroma da liberdade que precisa desabrochar para que revele toda sua beleza
em puro amor.
— Que profundo... — Ruslan solta uma risada, desviando o olhar de
mim, quebrando a tensão.
— Conquistei muitas garotas assim quando era um pirralho. — Revela,
voltando a caminhar.
— Percebi que tem muito talento.
— Perdi a prática, — ele me olha — pois tu não caíste na minha lábia.
— Sou difícil — jogo uma piscadela em sua direção, seus olhos
brilham com diversão. — Você era... como vou dizer... galanteador?
— Ah sim! — Ruslan dá de ombros. — Eu era muito mulherengo,
gostava de seduzir. — Ele me entrega mais duas rosas. — Era um meio de
ganhar mais dinheiro com a venda das rosas, tinha que saber como induzir
um cliente a comprá-las, e em algumas vezes conseguia uma mulher como
brinde.
— Você era um garoto...
— Que era ativo — rebate, me olhando com um sorriso bonito no rosto.
— Meus olhos verdes era um atrativo para elas.
— Sente falta? — Seu sorriso desaparece lentamente, substituindo uma
expressão fria.
— Arrancaram minha vida, pequena flor. — Responde, ficando em
silêncio, o clima fica pesado entre nós.
Me condeno por ter feito essa pergunta sem sentido. Sente falta? Claro
que ele sente! Repreendo-me mentalmente.
— Tu conheces a tradição Vinok? — Pergunta, me entregando a cesta e
pegando duas rosas da minha mão.
Nego com a cabeça, não por não saber, mas porque quero que ele
explique, que continue conversando.
— A famosa coroa de flores Ucraniana é originalmente chamada de
Vinok, possui um significado por trás de sua beleza. Sabe qual é?
Balanço a cabeça negativamente, olhando para suas mãos trabalhando
na construção de uma coroa com as rosas que colheu. Ruslan levanta o olhar
por alguns segundos se encontrando com o meu antes de voltar para as rosas.
— Elas eram usadas por mulheres que estavam prontas para um
relacionamento. Durante o verão, usava-se flores recém colhidas, já no
inverno, podiam ser feitas de papel ou tecido. — Ele pega mais duas rosas do
buquê que seguro. — Quando se casavam, não podiam mais fazer uso da
coroa. Ela estava associada a virgindade, matrimônio e feminilidade; passava
a ideia de pureza.
Ruslan aponta para frente onde há um espaço forrado por grama,
pétalas espalhas pelo chão como se alguém tivesse feito de propósito, mas
acredito que seja apenas a mãe natureza fazendo sua mágica.
— A tradição surgiu no dia de Ivana Kupala, na qual jovens meninas
colocavam arranjos na água e acendiam uma vela, esperando que seu futuro
romântico fosse assim revelado a partir de como suas flores flutuassem.
Coloco a cesta no chão e lhe entrego o resto das rosas. A coroa se
forma. Ruslan trabalha com precisão e delicadeza, mesmo com espinhos.
— Se o arranjo parasse em algum ponto e não flutuasse pelas águas, a
garota não se casaria; caso o arranjo afundasse, ela morreria; e se a vela
apagasse, significava azar. — Ruslan apanha as últimas rosas. — Os homens,
então, deveriam mergulhar e pegar o Vinok de sua mulher amada. — Ele
sorri. — A coroa também simboliza proteção. No século 20, essa tradição se
ressignificou. Com a chegada do comunismo, fazer uso de vestidos bordados
e coroas de flores, eram símbolos de protesto.
— Então o adereço se tornou moda? — Ele assente.
— Sim. Além disso, adquirir um Vinok havia se tornado fácil e barato
em cidades como Kiev.
— E hoje vemos as coroas espalhadas pelo mundo todo, certo? —
Ruslan assente, finalizando seu trabalho. — Qual foi a última vez que fez
uma coroa floral?
— 14 anos atrás. — Ele sorri, sem se abalar.
— Ainda se lembra de cada detalhe?
— Tem coisas que nunca esquecemos. — Ruslan me olha, satisfeito. —
O que achas?
— Linda!
— Assim como você.
Ergo a cabeça para olhá-lo quando suas poucas palavras me atingem,
me assustando com o quanto está perto, nossos olhos se fixam.
Ruslan levanta a coroa de flores e a pousa em minha cabeça. Meu
coração acelera ao mesmo tempo que uma força magnética intensa me puxa
para ele. Seus dedos alisam meus cabelos, estou congelada com o poder que
irradia do seu olhar, fazendo-me querer me afundar na profundeza dos seus
olhos.
— Eu mergulharia por você — diz com a voz rouca.
— Por mim?
— Sim — Ruslan recua um passo e quebra o contato visual.
Fecho meus olhos por alguns segundos, soltando a respiração presa.
Passo as mãos trêmulas pelo rosto antes de observá-lo estender um forro no
chão.
— Venha, sente-se, deves estar cansada. — Vou até ele, contorço meu
rosto ao me agachar para sentar.
— Sinto apenas um pouco de dor no tornozelo — digo, me
acomodando.
Ruslan deita de costas ao meu lado enquanto olha para o céu. Fico
encarando seus olhos e observando eles se perderem. Recolho meus joelhos,
abraço e encosto a bochecha neles, ainda olhando para Ruslan perdido no que
parece ser suas lembranças.
Dizem que o tempo sempre cura, mas, no nosso caso, o tempo só torna
mais pesado. Nada poderá ser dito para fazer nossos corações baterem
melhores ou de fazer parar a dor que nos corrói dia após dia.
A maneira como a nossa mente nos faz sentir o que vivemos é
insuportável, às vezes acredito que a única cura é a morte.
Olho para cima assim que sinto os raios do sol beijar minha pele, a
nuvem lentamente se afasta, revelando uma grande estrela que ilumina não só
todo o lugar, mas meu coração, fazendo acreditar que tudo pode ser possível.
Volto para Ruslan, ele me olha nos olhos parecendo memorizar meu
rosto, sem dizer nenhuma palavra, um encarando o outro. Sinto em meu
coração uma felicidade que achei que nunca mais vivenciaria.
A última vez em que me lembro de sorrir, foi antes de James chegar em
casa. Minha mãe me levou em um parque de diversão e depois para um
rodízio de pizza. Naquele dia, ela tinha se dedicado apenas a nós duas, só
para revelar que James chegaria.
Fiquei tão feliz por ganhar um pai, só que tudo de bom dentro de mim
foi destruído quando ele colocou as mãos em mim. Assim como o meu
sorriso desapareceu, o da minha mãe também.
Ela não era feliz... nós não éramos felizes...
— Venha — Ruslan me desperta. — Deite-se ao meu lado.
— O verão chegou — murmuro, me deitando ao seu lado e pousando
as mãos sobre a barriga. — Sua estação preferida. — Digo, virando meu
rosto para encará-lo.
— Como sabes?
— Foi uma das perguntas que me fez quando te visitei na prisão. — Ele
sorri, assentindo.
— Sim! — Responde, erguendo uma das mãos em direção ao sol. —
Senti falta do sol, do calor que se espalha e aquece a pele, das cores que
transluz por onde toca, trazendo vida a mundos e lugares sombrios. — Ruslan
solta uma risada. — Sou um verdadeiro romântico.
— Apaixonante — completo com um tom divertido, e assim como ele,
ergo minha mão, deixando-a próxima à sua. — Você está apenas
reencontrando aquele garoto que ainda corre por entre esses corredores,
colhendo rosas.
— Esse garoto está morto, Laura. — Olho para ele, que encara suas
mãos com seriedade.
— Nem tudo está perdido.
— Sim, concordo, mas tem coisas que não há conserto. — Ruslan vira
o rosto em minha direção. — Esse garoto inocente, cheio de vida e romântico
foi jogado nas sombras, se tornando a própria escuridão.
Engulo em seco quando calafrios espalham por meu corpo.
— Eu estou conseguindo enxergá-lo... — Murmuro, ele apenas balança
a cabeça negativamente.
— Tenho muitas coisas para fazer enquanto estiver aqui fora.
— Quais seriam essas coisas? — Ruslan umedece os lábios.
— Uma delas é te tirar da escuridão em que te colocaram. — Um
sorriso estica por seus lábios.
— E a outra?
— Acabar com aquele que me destruiu. — Sua voz sai tão fria que me
espanto com a sua determinação. — Sou um assassino, pequena.
— Mas...
— Não há “mas”, essa é minha realidade. — Desvio meu olhar,
incapaz de continuar vendo tanto ódio em seu rosto.
— Você vai voltar, não é?
— Meu tempo é curto. — Revela, voltando a erguer a mão e posicioná-
la ao lado da minha que ainda não a abaixei.
— Como você vai me tirar da escuridão, Ruslan? — Ele não responde
de imediato.
— Tu já estás saindo. — Sua mão toca a minha e nela há uma rosa. —
Permita-se florescer mesmo repleta de espinhos, mas nunca faça isso por uma
pessoa. — Olho para ele, então de repente sinto sua mão entrelaçar na minha
sob a rosa. — Faça isso por você. Supere por você. Pois nada nesse mundo
será capaz de te salvar além de você mesma.
— Você vai embora? — Murmuro, com a voz trêmula.
Ruslan fecha os olhos por alguns segundos antes de fixá-los novamente
em mim. Ele abaixa nossas mãos entrelaçadas e a leva aos seus lábios,
acariciando minha pele em um beijo delicado.
Mesmo querendo reprimir o que está fazendo, permito-me sentir,
aproveitar a oportunidade que me foi dada, nem que seja por um curto
período.
— Sim — sussurra, abrindo os olhos.
— Mas e se provar sua inocência?
— Isso não tira o fato de ser quem sou, Laura. — Uma dor aperta meu
peito. — Provar a injustiça que fizeram comigo não anula o que fiz dentro da
cadeia. Eu me tornei um assassino, e é isso o que sou!
— Como puderam fazer isso com você?
— A maldade não tem explicação.
— Por que não foge para longe? Reconstrua su... — Me calo quando
ele nega com a cabeça.
— Não posso me rebaixar, é um jogo de gato e rato, e não há um
vencedor.
— Ambos perdem? — Ele assente, solto um suspiro doloroso
desejando poder mudar o destino.
— Não penses demasiado nisso, não foi para isso que a trouxe aqui.
— Me trouxe por quais motivos? — Ruslan solta minha mão,
estendendo a rosa.
— Para reconstruir um pedaço do que lhe foi quebrado. — Diz com um
sorriso. — Apenas sinta, não penses no passado e nem no futuro, o agora é o
que importa.
Respiro fundo o perfume da rosa, convicta do efeito que me causa,
abraçando a sensação que inunda meu coração. Olho para ele, querendo mais
do que pode me proporcionar... querendo me misturar na escuridão em que o
envolve.
Ruslan sorri para mim, gravo em minha mente cada traço seu, pois
quando tudo vier a ruir, seu sorriso será o único que poderá me puxar para a
superfície e me tirar das sombras.
Ele ultrapassou outra barreira imposta por mim, e dessa vez, não quero
impedi-lo de chegar mais perto.
Estaciono o carro em frente ao prédio depois de ter passado o dia
inteiro ao lado de Laura, conversando e nos conhecendo. Uma felicidade
pulsa dentro do peito por ter conseguido chegar tão perto dela, segurado sua
mão e sentir seu calor, mesmo por tão pouco tempo.
Deito a cabeça no encosto do banco e olho para ela, segurando a coroa
de rosas que fiz. De vez em quando, percebi em seus olhos sua luta para não
sucumbir à crise e às lembranças dolorosas, então fazia com que se distraísse.
— Espero que tenha gostado do dia de hoje. — Laura vira o rosto e
assente, ainda retraída.
— Foi o dia mais feliz que tive em todos esses anos. — Diz,
emocionada.
— Estou contente por ter aceito meu convite. — Ela assente, focada
nas rosas em sua mão.
— Eu também...
— Gostarias de ir jantar um dia destes? — Laura levanta a cabeça e
crava os olhos nos meus, tão surpresa quanto eu pela sua reação.
— Um encontro? — Pergunta, reprimo meu sorriso.
— Tu já tiveste um encontro? — Ela nega. — Sim, considere um
encontro.
— Hum... — Laura franze a testa, pensativa. — Posso negar?
— Fique à vontade, não podemos ceder tão facilmente. — Ela estreita
os olhos. — Tu aceitas?
— Sem dúvida. — Umedecendo os lábios ao sentir meu coração bater
mais acelerado.
— Quando chegar o dia, te avisarei.
— Certo! — Laura abre a porta. — Você não vai entrar? — Nego com
a cabeça, vendo-a suspirar.
— Preciso resolver algumas coisas e... quanto menos tempo passar com
você, menos provável me encontrarem. — Ela assente sutilmente.
— Você é um foragido... às vezes esqueço.
— Não se preocupes, estarei aqui antes de tu ires trabalhar amanhã.
— Boa noite, então! — Laura fica me encarando por longos segundos,
sustento seu olhar, mergulhando na superfície do mar de seus olhos.
— Nos vemos, pequena flor.
— Fica bem! — Diz, saindo do carro.
Espero até que adentre no prédio para seguir meu caminho até Nichnny
Klub, grato por Olesya ter deixado seu carro comigo com o intuito de não me
expor.
— Eu não deveria estar fazendo isso, Ruslan, mas tu és meu irmão e eu
morreria por ti. — Disse ela, na noite passada. — Por isso deixarei meu
carro contigo, assim tu evitas de vagar pelas ruas, e é mais fácil caso ocorra
uma fuga.
— Tu estás ajudando um criminoso.
— Não. Estou ajudando meu irmão....
Respiro fundo lembrando de seus olhos marejados, notando remorso
transluzir através deles ao me encarar. Olesya não tem culpa do que me
aconteceu, e de toda minha família, ela é a única que não sinto mágoa.
Estaciono o carro quase em frente à boate. Tudo o que falei para Laura
é verdade, quanto mais tempo demorar para descobrir a verdade, mais meu
prazo diminui. Eles irão me encontrar, mais cedo ou mais tarde, me
trancafiando novamente dentro de uma cela, e quando isso acontecer, nunca
mais poderei sair.
Sigo para dentro da boate vazia, dessa vez não sou guiado por um
guarda. Entro na sala de Nikita e me surpreendo ao encará-lo lotado de
papéis.
— O que houve aqui? — Pergunto, ele ergue a cabeça um pouco
desorientado.
— Ah... chegaste — Nikita suspira e recosta na cadeira. — Estou
trabalhando. — Diz, segurando a ponte do nariz com frustração.
— Ser empresário não é fácil, certo?
— Não é com isso que estou focado, até porque tenho funcionários. —
Franzo o cenho, me aproximando.
— Então o que é tudo isso?
— Seu caso, o que mais seria? — Arrasto uma cadeira e me sento à sua
frente, assimilando sua declaração.
Por que ele está tão determinado em encontrar o culpado?
— E...?
— E que tem coisas que não batem, Ruslan. — Nikita se inclina. — Tu
não és culpado!
— Como tens tanta certeza? — Ele se levanta e gesticula para que o
siga.
Encaro a pirâmide no quadro em que montamos com todas as vítimas,
os horários das mortes e os lugares onde ocorreram. Cruzo meus braços,
esperando que ele me explique sua linha de raciocínio.
— Tu disseste que na sua mente há falhas, correto?
— Exato!
— Todos os lugares onde ocorreram esses assassinatos foram próximos
de onde tu estavas trabalhando naquela época, mas não quer dizer que tu
tenhas perdido a memória. — Nikita me olha. — Acredito eu que essa
confusão tenha ocorrido no dia em que te pegaram, conforme me informou
sobre os fragmentos presente em sua mente.
— Onde tu queres chegar?
— Preste atenção, garoto! — Nikita aponta para o quadro. — Cada
vítima tem um padrão de idade e aparência, mas além disso, todas, sem
exceção, pertenciam à famílias ricas.
— Como descobriste? — Pergunto, desconfiado e esfregando meus
lábios com o polegar.
— Assim tu me ofendes — murmura, batendo em meu ombro. —
Venha aqui, tenho algo interessante. — Sigo-o de volta para sua mesa, ele
apanha duas pastas e estende para mim.
— O que é isto?
— Não adianta investigar os acontecimentos se não descobrirmos tudo
sobre os suspeitos. — Abro a pasta, dando de cara com a foto de Artem. —
Seu irmão é bem sujo, não?
— Ele sempre foi ambicioso. — Balbucio, folheando seus arquivos e
analisando as fotos tiradas dele em locais diferentes. — E o que encontrou
sobre ele?
— Oficial Artem é um filho da puta... — Lanço um olhar repreensor
em sua direção, Nikita pigarreia. — Sua mãe não tem culpa. — Diz,
amenizando sua raiva. — O que quero dizer é que Artem cobra propina de
traficantes de drogas, ele libera o acesso e limpa as sujeiras de muitos
criminosos. Tirando o fato de que há dois anos atrás, recebeu uma acusação
de corrupção dentro do departamento onde trabalha, mas foi arquivado por
falta de provas.
— Se mamãe souber... — Balanço a cabeça, indignado com o que meu
irmão se tornou. — Uma decepção! — Falo com raiva, fechando a pasta e
abrindo a outra.
Sinto a fúria borbulhar minhas veias ao encarar os olhos de Mirom.
Laura me contou que foi seu cachorro que a atacou, que a tratou de forma
estranha.
Entre ele e Artem, Mirom é o mais perigoso.
— Ruslan — levanto o olhar, Nikita me encara preocupado. — Não
encontrei nada que comprometa Mirom. — Ele bate o dedo nos arquivos. —
Seu primo pertence a SBU.
— SBU?![4] — Trinco meus dentes, controlando minha respiração,
Nikita assente. — Cacete! — Jogo a pasta na mesa e levo as mãos aos
cabelos.
— Mirom trabalha para o governo no departamento contra espionagem
do aparato do Serviço de Segurança da Ucrânia, por isso que não encontrei
nada dele. O cara combate crimes, corrupção, terrorismo e... porra, é um
desgraçado perigoso que tenho certeza que está no teu rastro, tão perto que
nem nos atentamos a isso.
Me afasto e vou até a janela, encarando a pista de dança vazia,
alarmado com essa descoberta. Deixei minha guarda tão baixa por pensar que
ele era o mais inútil de nós três, que agora nada me tira da cabeça que ele
sabe onde estou e de tudo o que faço. Mirom só está esperando o momento
certo de agir.
Droga...
Coloco as mãos no bolso. Mirom se deu bem no final das contas,
podendo fazer qualquer merda sem se manchar. Ele teve treinamento, sabe
ocultar crimes, mas... meu primo não era nada antes de eu ser preso.
Quem é o culpado?
— Ei, garoto? — Olho para trás, Nikita balança um bloco de dinheiro.
— Isto é para você, tu precisas de dinheiro e trabalhar naquela construção
poderá te colocar em risco. — Diz, se aproximando.
— Não posso aceitar! — Recuso, atônito.
— Sim, tu vais! — Nikita fica me encarando. — Tem outra coisa.
— Que outra coisa? — Ele abaixa a cabeça, esfregando o pescoço. —
Eu marquei um Neurologista para você, é um amigo que me deve um favor.
Seus olhos se prendem nos meus, estou estagnado e chocado com o que
acabou de dizer. Fecho meus olhos e volto a encarar a pista de dança, agora
ocupada por algumas mulheres seminuas, ensaiando para logo mais.
— Tu relataste sobre perda de memória, precisamos descobrir por que
e quando isso se iniciou, poderá ser uma pista. — Aperto meus lábios,
assentindo em concordância.
Não vou negar o medo que estou sentindo nesse exato momento. Ir ao
Neurologista poderá ser comprometedor, não em relação a ser pego, mas sim,
em encontrar algo em meu cérebro. Passei por tantas coisas durante anos,
lembranças que se tornaram fragmentos, outras que foram simplesmente
apagadas, mas nenhuma feliz, todas têm rastros de sangue.
Após fugir do Colony 100, muitas delas começaram a vir à tona e de
repente estou preso em uma determinada lembrança, me fazendo reviver tudo
de novo. É como assistir um filme de terror sem conseguir passar a cena para
frente.
Inspiro fundo, é perturbador saber que a qualquer momento posso ser
sucumbido por elas e não ser capaz de retornar.
— Quando?
— Daqui a dois dias.
— Certo! — Concordo, soltando a respiração pela boca.
Tenho que encarar os fatos, minha mente não está sadia. Me viro para
Nikita, congelando ao vê-lo estender uma pistola.
— Chega de correr risco, tu és considerado uns dos assassinos mais
perigosos da Ucrânia, mas acredite, existem pessoas mais perigosas que você,
garoto. — Passo a mão por meu rosto. — Estamos entrando em uma guerra,
não existe piedade quando se tem tanto a perder. Não me refiro a você, mas
ao culpado por toda essa merda.
Encaro a arma na sua mão antes de pegá-la e escondê-la atrás das
costas. Nikita sorri com um olhar determinado, frio e calculista, me dizendo
que não importa por quais meios eu decida escolher, ele estará ao meu lado.
— E agora? — Pergunta, cruzando os braços, ansioso para começarmos
a agir.
— Preciso que tu mandes um recado. — Nikita arqueia uma
sobrancelha, sorrio quando um brilho de entendimento passa por seus olhos.
— Chegou a hora de me encontrar com Mirom.
Vasculho dentro da minha bolsa pelo gravador que contém a entrevista
com a mãe de Ruslan. Coloco a mão na testa, estou gelada e com o coração
acelerado em desespero.
Vou na sala, depois na cozinha e volto para meu quarto, olhando cada
parte da minha casa, mas nada... não encontro o gravador!
Levo a mão à boca e mordo com um pouco de força minha pele,
relembrando do que aconteceu dias atrás. Após ser mordida pelo cachorro,
entrado em crise com o toque de Yaroslav e ter chegado em casa, a única
coisa que me lembro depois disso é... nada!
— Bosta, Andry vai me matar! — Choramingo, já imaginando os
gritos, as reclamações e a raiva dele.
Vou até o criado mudo e pego meu celular, ligando-o depois de ter
passado esses dias desligado. Mais um motivo para os gritos de Andry.
Mordo meu lábio inferior ao deslizar o dedo na tela, vendo as notificações de
mensagens e ligações perdidas.
— Arch, estou ferrada!
Guardo o celular na bolsa sem abrir as mensagens, na verdade estou me
borrando de medo do que vai acontecer quando chegar na AS, porque uma
jornalista não pode em hipótese algum ficar incomunicável, Andry sempre
diz.
Sigo até a cozinha e preparo um café e ovos mexidos, deixando um
pouco para Ruslan que ainda não chegou.
Me encosto no balcão, soprando o café fumegante na caneca, tentando
lembrar onde coloquei o gravador... no caso se tiver colocado em algum
lugar.
Só que... acho que o perdi!
Fecho meus olhos, contraindo meu rosto. Só de pensar nas
consequências... me dá um frio na barriga, embora eu queira correr e me
esconder, tenho que enfrentar a fera.
Escuto a porta ser aberta e abro os olhos, Ruslan entra em silêncio com
a cabeça baixa escondida no capuz do moletom. Ele fecha a porta devagar e
se vira para mim.
— Bom dia! — Deseja, colocando a chave sobre a mesa e vindo em
minha direção.
— Bom dia — retribuo, me virando e pegando a caneca que deixei
preparada para ele.
— Dormiste bem? — Assinto estendendo-a, ele pega e agradece com
um murmúrio, se encostando na pia à minha frente.
— Sim — respondo, encarando-o tomar seu café.
Ruslan abaixa o capuz, seus olhos descem por meu corpo, me
estudando. Ele esboça um sorriso, fitando a estampa do desenho da
Margarida no meu moletom.
— Estás linda como sempre. — Elogia, abaixo a cabeça envergonhada,
fitando meu all star.
— Obrigada... — Sussurro, dando um gole no meu café.
— Como estás o tornozelo? — Ergo a barra da calça, analisando o
curativo que fiz quando acordei.
— Acredito que vou ficar com uma cicatriz — digo, pisando mais
firme com o pé esquerdo. — Ainda dói um pouco, não quanto nos primeiros
dias, mas dá para sobreviver.
— Creio que sim. — Concorda, divertido.
— Agora preciso ir. — Coloco a caneca no balcão e aponto para o
fogão. — Deixei preparado ovos mexidos, do jeito que gosta. — Olho para
Ruslan que inclina a cabeça para o lado, me fitando contente, pigarreio. —
Chego às seis.
— Sentirei sua falta! — Declara, fazendo meu estômago revirar como
se estivesse cheio de borboletas.
— Hum... — mordo meu lábio inferior. — Eu também! — Confesso,
saindo apressada da cozinha.
— Nos vemos — olho para ele e meneio a cabeça.
— Até logo! — Apanho minha bolsa e saio de casa, trancando a porta
enquanto controlo as batidas do meu coração.
Com ajuda da parede, me sustento ao descer as escadas devido ao meu
tornozelo. Faço uma careta de dor e inspiro fundo, procurando por Gana.
— Foda-se, Laura! — Assusto com a voz dela, meus olhos procuram
por Gana que está a alguns metros à frente, com os braços cruzados e cara de
poucos amigos. — Tu sabes o que fizeste comigo?
Me aproximo apreensiva e culpada. Gana franze a testa, descendo os
olhos por meu corpo, procurando o que há de errado.
— Perdoa-me, tive alguns problemas.
— O que aconteceu? — Pergunta preocupada, se aproximando um
pouco e descruzando os braços.
— Uma longa história. — Digo. — Quer almoçar comigo hoje?
— Tu não mereces minha amizade — fala rancorosa. — Eu liguei, mas
seu telefone estava desligado. Bati à sua porta, só que ninguém atendeu. Juro
por Deus que estava quase chamando a polícia, pensei que tu estavas morta...
merda, se tu tiveste morrido, eu também teria. O que me impediu foi o
Kliment, que me disse que viu tu sair com alguém. — Gana para, toma ar e
arqueia a sobrancelha direita. — Quem é esse alguém?
— Se você aceitar, posso te contar... — Ela faz um bico ultrajado.
— Foda-se de novo, eu aceito. — Ela estende a chave do carro. — Tu
terás que rebolar para me reconquistar. — Gana passa por mim, mas para e
se vira, me fintando mais atentamente. — A propósito, tu estás muito linda
hoje, não sei porque... sua áurea está mais brilhante, consegue me entender?
— Não! — Gana ri, gesticula com a mão, um deixa para lá e entra no
prédio.
Solto um suspiro quando me acomodo no carro e sigo meu caminho,
me preparando durante todo o trajeto. Não só Andry ficará furioso, como
também Yaroslav por não ter dado notícias e, principalmente, por ter perdido
a gravação.
Encosto a testa no volante quando estaciono na AS, me condenando por
ter sido tão desatenta. Apanho minhas coisas e saio do carro com o coração
aflito.
— Laura?! — Congelo ainda em frente ao xoxo quando sua voz entoa
pelo estacionamento, me gelando inteira.
O que Mirom faz aqui?
Engulo a aflição misturada com o medo e giro em sua direção.
Surpresa me atinge quando meu olhar recai no homem alto, inclinado
no capô de um jipe amarelo, vestido com uma farda escura e... meu Deus, ele
está armado!?
Ele sorri.
Eu recuo.
Mirom prende seus olhos nos meus, espalhando calafrios por cada parte
do meu corpo.
— Venha, preciso trocar uma palavra contigo. — Seus dedos batucam a
lataria do jipe, não há mais sorriso em seu belo rosto, agora a única coisa que
consigo ver é uma máscara impenetrável ocultando seu verdadeiro eu.
— Acredito que não seja o melhor momento. — Retruco, recuando
mais um passo. — Estou atrasada. — Viro na direção da entrada da AS sem a
intenção de chegar perto dele.
Mirom me desperta medo.
— Lauriana Silva da Souza — paro de uma vez ao escutá-lo, choque
me faz virar e encarar seu sorriso de vitória. — Creio que esse seja o seu
nome verdadeiro, não?
— O... o quê? — Mirom estala a língua e me chama com a mão.
— Venha aqui querida, porque não estou por conta própria, mas em
nome do governo.
Governo?
Aliso minhas mãos trêmulas na calça antes de me aproximar com
cautela, sem desgrudar meus olhos dos dele. Fico do outro lado do jipe, uma
distância capaz de me dar tempo de fugir ou gritar caso faça alguma coisa
errada.
No seu peito direito há a sigla SBU bordada na farda, respondendo a
minha pergunta.
— Sabia que tu escondias segredos, seus olhos azuis fascinantes são
transparentes demais. — Diz, me chamando a atenção para ele.
— O que você quer? — Mirom sorri.
— Eu quero muitas coisas! — Sua língua passa por seu lábio inferior,
me lançando um olhar ardiloso. — Tu és uma delas.
Fecho minhas mãos em punhos, Mirom sorri arrastando uma foto em
minha direção.
— Lívia é tão linda quanto você! — Meus olhos encaram o rosto da
minha mãe.
Prendo a respiração, havia tantos anos que não a via. Será que é recente
essa foto?
Meus olhos começam a pinicar por causa das lágrimas, trinco a
mandíbula quando Mirom coloca por cima a foto de James.
Um ódio tão forte começa a me invadir, viro o rosto incapaz de
esconder a repulsa que sinto por ele.
— Essa é sua família, não é? — Encaro Mirom, furiosa pelo que está
fazendo.
— Por que está fazendo isso?
— Porque tu entrastes no meu caminho. — Ele range os dentes. —
Uma jornalista vasculhando o que não deve ser desenterrado me deixa
descontente.
— O que teme? — Ergo meu queixo em desafio. — Se você é tão
limpo, por que está com tanto medo de que eu vasculhe essa história?
— Eu com medo? — Mirom ri, deixando-me mais irritada. — Quem
deve estar com medo é você que está xeretando onde não deve.
— Não estou fazendo isso por que quero.
— Mas está curiosa para descobrir, já que escondes um assassino. —
Ele sorri friamente, vendo meu espanto. — Não tente me fazer de idiota.
— Não faço ideia do que está falando.
— Lauriana, vou falar a sua realidade, mesmo que seja crua. — Mirom
se inclina um pouco mais no capô a fim de chegar mais perto de mim. — Tu
podes ter o visto permanente, mas ainda é uma brasileira que pode ser
deportada a qualquer momento. Tenho o poder de te mandar para longe ou te
colocar na cadeia. Nesse caso tu escolhes qual a melhor opção. O que quero
dizer é que, saia do meu caminho. Não meta o dedo onde não faz a mínima
ideia do que te cerca. É um aviso, não de um amigo, mas de um soldado
disposto a acabar com qualquer ameaça.
Seu olhar está tão sombrio que só consigo perceber a maldade em seu
rosto. Suas palavras foram como tapas, óleo quente sendo derramado
lentamente na minha pele, queimando de forma insuportável.
Sinto que sua ameaça é verdadeira, Mirom é capaz de fazer qualquer
coisa. Dou um passo para trás, ele é escrupuloso. Sua beleza ofuscante é uma
armadilha.
— Uma ameaça? — Ele não responde, apenas sorri de leve, me
encarando fixamente. — Okay!
Fito seu rosto uma última vez e caminho em direção à AS.
— Laura, não quer saber dos seus pais? — Olho para Mirom por cima
do ombro.
— Não quero saber de nada do que sai da sua boca. — Digo, voltando
para perto do jipe e pegando a foto da minha mãe. — Apenas essa foto me
interessa, o resto quero que desapareça assim como você.
— Não vou condenar por estar acolhendo Ruslan. Quando se tem um
coração inocente, é mais fácil de ser enganado. — Diz, recolhendo a foto de
James.
Fico calada, fitando seu rosto.
— Perdoe-me pela Axel. — Ele me olha.
— Sua cachorra me rasgou...
— Ela deveria estar presa.
— Você a soltou! — Mirom nega com a cabeça, mas não retruca.
— Acredito que isso te pertença. — Ele coloca em cima do capô um
gravador. — É teu?
— Sim! — Me inclino e pego meu gravador, cravando meus olhos nos
seus. — Qual a chance de ter apagado tudo o que está aqui?
— Nenhuma — fala com um sorriso prepotente.
Balanço a cabeça, incapaz de acreditar em suas palavras. Giro os
calcanhares e caminho apressada para longe de Mirom.
Droga... não só tinha as gravações da sua mãe como as outras. A minha
sorte é que fiz copias e as entreguei a Yaroslav.
Cumprimento o guarda da AS ao entrar no elevador. Quando as portas
se fecham, permito-me respirar aliviada, mas não dura muito tempo quando
encaro a foto da minha mãe.
Uma lágrima escorre por meu rosto enquanto contorno os traços do seu
rosto. Mamãe está mais velha, embora o tempo tenha passado, não ofuscou
sua beleza.
— Que saudade...
Ela está sentada em uma mesa com outras mulheres. São 15 anos sem
sentir seu abraço e seu calor. Às vezes me sinto tão culpada por tê-la
abandonado, mas quando lembro que não acreditou em mim, se fechando
para a realidade, tenho a certeza que fiz a coisa certa.
Limpo meu rosto e guardo dentro da bolsa tanto o gravador quanto a
foto. Inspiro e expiro antes de sair do elevador e caminhar na direção do meu
setor.
Paro em frente à porta da minha sala e vejo meus colegas conversando
distraídos.
— Senti falta de vocês — digo, assustando-os.
— Não acredito! — Aksinya coloca as mãos na boca, seus olhos se
enchem de lágrimas.
— Meu Deus, Laura? — Justik me olha pálido.
— Graças aos céus ela está de volta! — Yaroslav se deixa cair na
cadeira como se tivesse caído um peso do corpo.
— Eu não morri!
— Não foi o que passava em minha mente. — Aksinya retruca
sobressaltada. — Tu não atendeste nossas ligações, nós três fomos na sua
casa ontem e nada.
— Nosso alívio foi que nenhuma notícia ruim chegou. — Indaga Justik.
— Peço desculpas, foram dias difíceis.
Meus colegas me lançam olhares de compreensão.
— Bem, trouxe algo para você. — Yaroslav diz, se aproximando com
cuidado e estende uma pequena caixa. — Não sabia se tu irias vir, mas
comprei assim mesmo. — Ele sorri.
— Obrigada! — Pego-a, ponho minha bolsa na minha mesa e abro a
caixa. — éclair intergaláctico!?
— Com “poeira de estrelas” — diz, sorrindo. — Sabor chocolate, como
tu gostas.
Sento-me na cadeira e depois de borrifar álcool na mesa e nas minhas
mãos, pego o doce de pequenas galáxias reluzentes e levo à boca, saboreando
seu sabor delicioso.
— Vou desaparecer mais vezes. — Murmuro ao engolir o pedaço, eles
caem na risada, um nó se aloja na garganta e meus olhos ardem.
Abaixo a cabeça para esconder a emoção que sinto, talvez felicidade
por estar com eles de novo? Volto a encarar cada um, gravando seus traços,
sorrisos e brilho no olhar, me dando conta que os adoro de uma forma tão
simples que nunca imaginei.
— LAURA!? — O grito de Andry faz com que eu engasgue.
Começo a tossir, meu rosto queima enquanto tento me controlar. Justik
estende uma água, agradeço em silêncio e dou um gole.
Olho para meu chefe, furioso parado na porta, pronto para me esganar.
— Na minha sala agora! — Andry sai, deixando o ar tenso.
— Que merda! — Yaroslav resmunga, eles me lançam um olhar de
piedade que sai de forma engraçada.
— Vou encomendar seu caixão. — Diz Aksinya.
— E eu as coroas de flores. — Justik senta à sua mesa, se recolhendo
em seu cubículo.
— A pior parte fica para mim? — Yaroslav contesta.
— Claro, precisa preparar a cova e comunicar a todos do fim trágico de
Laura. — Aksinya fala com os olhos esbugalhados.
— Eu ainda estou viva! — Comunico guardando meu doce e me
levantando.
— Por pouco tempo. — Ela retruca com um suspiro, balançando a
cabeça.
Respiro fundo e caminho pelos corredores apreensiva. Não deveria
sentir tanto medo assim do meu chefe, mas só quem trabalha com ele sabe
como Andry é.
Sinto mais medo dele do que de qualquer outra pessoa.
É estranho?
Sim, eu sei, posso estar exagerando, mas... Arch, no mínimo irei ganhar
uma advertência, senão um corte no salário. É a cara de Andry fazer isso.
Paro em frente à porta, enxugo minhas mãos na calça e inspiro fundo,
tomando coragem de enfrentá-lo. Só espero que meus colegas não precisem
preparar meu velório depois dessa reunião.
Remexo o bolo no meu prato lembrando da conversa com Mirom e dos
gritos ensurdecedores de Andry, que como imaginado me aplicou uma
advertência.
Não contestei e muito menos quis lhe falar dos motivos que me
levaram a faltar no emprego. Ele sabe que quando isso acontece – porque já
aconteceu outras vezes – eu desapareço. Só que para Andry tenho que ser
clara, dizer o que não conto a ninguém.
Solto um suspiro quando os olhos de Mirom reaparecem em minha
mente, me deixando inquieta. Tem alguma coisa nele que me incomoda. Será
que ele desperta esse medo em mim por que acha divertido, ou ele é
realmente um lunático?
— Estou escutando suas engrenagens rangerem. — Levanto a cabeça e
encaro os olhos curiosos de Gana do outro lado da mesa no restaurante.
Ela leva um pedaço de bolo à boca, se inclinando um pouco em minha
direção.
— Ainda pensando no... qual o nome dele mesmo?
— Mirom.
— Isso, no Mirom! — Expiro pela boca, olhando para meu bolo de
chocolate.
— Ele é estranho, Gana... muito estranho.
Fito seu rosto delicado, ela comprime seus lábios entendendo minha
preocupação depois de eu ter contado tudo sobre essa reportagem, tirando a
parte em que estou escondendo Ruslan.
— Tu és apenas uma jornalista, não tem poder de ir contra qualquer
coisa que ele faça, então meu conselho é que tu fiques longe dessa família. —
Dou um gole no meu leite. — Sei que é teu trabalho, mas... Laura, Mirom te
ameaçou!
— Eu sei...
— Mas isso desperta mais seu interesse, não é? — Assinto de leve,
Gana suspira. — Por isso que nos filmes de terror as pessoas sempre se
fodem. — Resmunga, enchendo a boca de bolo. — Em vez de irem embora,
não, continuam lá, xeretando e no final, morrem!
— Minha vida não é um filme!
— Ah, será? — Ela arqueia uma sobrancelha. — Por trás de um roteiro
bem trabalhado sempre há um fato real, seja qualquer coisa.
— Você sabe que não assisto filme de terror, certo? — Gana sorri,
dando de ombros.
— Seu passado foi um filme de terror, Laura, mesmo não sabendo dos
fatos. — Mordo meu lábio inferior, concordando com ela.
— Existe coisas que não temos o controle, elas simplesmente entram
em nossas vidas.
— Mas tu tens o poder de recusar e caminhar por um caminho
diferente. — Ela ergue a colher e aponta para mim. — Com esses Rotam não
se brinca, Laura, afaste-se!
— Okay! — Gana fica me encarando por alguns segundos, sem
acreditar em minhas palavras, porque estou muito mais envolvida do que ela
imagina.
— Vai, me diga, quem é o boy que tu estás saindo?
— Não existe esse boy. — Gana faz uma careta.
— Kliment falou uma coisa diferente...
— Um fofoqueiro sempre inventa histórias. — Retruco sem encará-la.
— Sério?
— Sim!
— Então quem é que tu saíste?
— Yaroslav, e foi a trabalho. — Minto descaradamente.
Estou ficando boa na mentira!
Sobressalto quando bate na mesa, olho para ela vendo uma Gana em
completa frustração.
— Pensei que tu tinhas permitido que alguém chegasse perto de ti.
Fiquei até com ciúmes por essa pessoa não ser eu! — Franzo a testa. — Um
namorado poderá resolver seus traumas, se sentir amada e adorada por um
homem é a coisa mais mágica do mundo.
— Gana!
— Estou furiosa, porque quero que tu melhores, que encontre o amor e
não sinta repulsa quando as pessoas te tocam. Foda-se, queria tanto um
abraço da minha melhor amiga. — Gana desvia o rosto quando seus olhos
lacrimejam.
— Sinto por te decepcionar...
— Não, querida — ela volta a me olhar. — Tu não me decepcionaste,
mas sim esses homens frouxos que não conseguem enxergar o quanto tu és
incrível.
— As pessoas não querem problemas, Gana.
— Há exceções, e quando ele chegar, vai ultrapassar todos seus
espinhos, moldando sua tristeza e iluminando sua alma. — Ela suspira. — Eu
rezo todos os dias por isso. — Lanço um olhar agradecido, Gana sorri e volta
a comer seu bolo.
— E como vai Yevhen?
— Não estamos mais tão próximos. — Revela com tristeza na voz.
— O que houve?
— Ah, Laura! — Gana solta a colher e se recosta na cadeira, olhando
em volta no restaurante pouco lotado. — Sou uma prostituta, que futuro eu
tenho?
— E daí? Você é igual a todos nós. — Ela solta uma risada sem humor.
— Estás vendo aquelas mulheres? — Gana aponta para uma mesa perto
da janela à nossa direita. — Desde que pisamos dentro desse restaurante, elas
não pararam de me olhar e cochichar. — Volto minha atenção para Gana. —
Ando com roupas curtas, mostrando a maior parte do meu corpo, porque sou
dona de mim e eu gosto. Mas esses panos não definem o que está dentro de
mim, Laura. Sou julgada diariamente por meu estilo e profissão, todos acham
que sou uma ladra de maridos, talvez eu seja por transar com quem paga,
mas... essa é minha realidade.
— Eu imagino como se sente. — Comprimo meus lábios, deixando de
lado o pequeno pedaço do bolo que sobrou por ter perdido a fome. — Minha
mãe era uma prostituta também. — Revelo, pela primeira vez em todos esses
anos em que nos conhecemos.
Gana me encara estagnada, assombro e surpresa passam por seu rosto.
— Como dizes?
— Você sabe que fui abusada, tocada sem minha permissão, mas não
sabe de toda a história ou dos detalhes sobre ela.
— Tu nunca quiseste me contar.
— Está na hora — engulo em seco — de contar minha história.
Então começo a narrar desde o início tudo o que me aconteceu. Dos
abusos, das surras, da omissão e da culpa. Enquanto vou contando, lágrimas
escorrem por seu rosto, assim como no meu.
Não é fácil revelar a sujeira da minha vida. Cada palavra que sai da
minha boca é como farpas que me arranham dolorosamente. Meu peito
aperta, minhas mãos estremecem e tudo o que mais desejo é que no lugar de
Gana fosse minha mãe. Contar tudo o que ela não quis enxergar.
A única pessoa que sabe além de Gana, é Olesya que sempre me diz
que quando a gente compartilha fica mais fácil.
Não sou a única que passou por isso, o mundo está cheio de mulheres
que assim como eu sofrem desse mal, que estão trancafiadas dentro de si,
reféns da dor.
Quando me calo, sinto mais um peso se esvair de dentro de mim. Gana
está vermelha e chocada, sem reação. Noto em seu olhar a busca pelas
palavras certas, mas elas não existem. Nada nesse mundo pode mudar o que
me foi feito, está marcado na minha alma.
— Sinto muito... — Ela sussurra entre meio ao choro.
— Já passou...
— Não, não passou! — Gana se inclina sobre a mesa e arrasta a mão
em minha direção. — Você ainda vive esse pesadelo, Laura, você sofreu
calada por tantos anos... — Seus olhos inundam de lágrimas. — Meu Deus,
não consigo imaginar o quanto tu tiveste que aguentar sozinha...
— O que não nos mata, nos fortalece. — Recito, encarando sua mão.
— Estou bem, tenho recaídas, mas estou bem! — Arrasto minha mão e
seguro a sua, sentindo seu calor.
Um arquejo sai de sua garganta ao me sentir tocá-la.
Eu tive a coragem e iniciativa, estou lutando contra todo o tormento de
dentro de mim, não quero ser a mesma mulher reclusa. Quero mudar, sentir e
amar como todo mundo e isso só depende de mim.
— Não estou acreditando! — Gana entrelaça nossas mãos sorrindo e
chorando ao mesmo tempo. — Tu estás me tocando!?
— Devagar... lentamente... estou passando por cima de tudo que me
puxa para baixo. — Falo.
Sua mão é fina, macia e delicada. Suas unhas grandes, perfeitamente
feitas a deixam ainda mais linda. Olho para Gana que me encara com
fascinação.
— De fato, esse é o melhor dia da minha vida. — Revela, sorrindo.
— Por quê?
— Porque estou vendo a pessoa mais especial desse mundo superando
toda sua dor. Tu estás florescendo e faço parte dessa mágica. — Gana leva a
outra mão à boca, abafando o choro. — Eu te amo tanto, Laura.
— Eu também te amo.
— Como irmãs? — Assinto com a cabeça.
— Como irmãs!
Quando minhas palavras a atinge, Gana não consegue mais segurar o
choro, então em meio a um restaurante cheio de pessoas, ela começa a chorar
que nem uma criança.
Sinto olhares questionadores, mas ignoro, porque nada me tira a
felicidade que sinto ao vê-la chorar por mim, por lhe ter tocado pela primeira
vez e por ter compartilhado meu passado sombrio.
Gana é a luz que não se apaga. Por ter uma vida difícil, ela luta dia após
dia para sair do buraco que se encontra. É julgada, condenada e excluída por
uma sociedade cega por conceitos errados, que preferem apontar o dedo e
virar as costas do que entender e ajudar o próximo.
E mesmo assim continua...
Lutando, sofrendo, sorrindo e agradecendo, porque todos sabemos que
depois de um dia difícil, sempre há calmaria no coração de quem amamos.
Inspiro fundo sentindo pela primeira vez uma paz que nada no mundo é
capaz de estragar.
Um passo de cada vez...
Uma ferida curada de cada vez....
E assim vou me reerguendo, colando cada caco do meu coração até
estar completo. Ainda irá conter fraturas, sendo possível de ser destroçado de
novo, e se vier acontecer, juntarei de novo e farei a mesma coisa, me
reerguerei.
Coloco a mão contra a porta e encosto meu ouvido nela, escutando
vozes de desenhos animados abafados pelas paredes. Suspiro, destranco-a e
sou recepcionada por Rony, que vem em minha direção miando desesperado,
se esgueirando em minhas pernas.
— Ei garoto, que recepção é essa? — Ponho minhas coisas em cima da
mesa e agacho para fazer cafuné no gato cheio de mistérios. — Ruslan te
deixou para trás, foi?
Seus olhos amarelos se cruzam com os meus por alguns segundos antes
de desviar sua atenção para a caixa que tenho ao meu lado.
— Eu te trouxe um presente.
Rony se senta, balançando o rabo de um lado para o outro, me
observando tirar o brinquedo arranhador para gatos com andar suspenso,
comprei antes de vir embora com a intensão de fazê-lo se entreter.
Coloco seu brinquedo em um canto na sala, Rony vai até ele, cheirando
e analisando cuidadosamente até começar a arranhar e a subir na parte
elevada.
— Certo, acho que agora uma comida te faria bem, não?
Deixo Rony distraído e vou tomar um banho quente para lavar toda a
sujeira de hoje. Apesar de ter levado uma bronca do meu chefe, o dia se
arrastou normalmente. Fiquei tão focada na construção da reportagem de
Ruslan que nem vi o tempo passar, e quando dei por mim, meu expediente já
tinha terminado.
Visto meu pijama, confiro meu celular e vou preparar meu jantar antes
de voltar a trabalhar. Apanho o controle, colocando no desenho Kim Possible
no canal da Disney.
Deixo com que as vozes dos personagens me façam companhia
enquanto arrumo minha comida e a do Ronny. Fico tão absorta no que estou
fazendo que esqueço por um momento a conversa que tive com Mirom que
me perturbou o dia todo.
Sento-me à mesa depois de uma hora, ligo meu notebook e começo a
revisar meu trabalho. Solto um suspiro e recosto na cadeira, relendo tudo o
que escrevi sobre os Rotam. Olho para o gravador pensando em Mirom de
novo.
“— Não meta o dedo onde não faz a mínima ideia do que te cerca. É
um aviso, não de um amigo, mas de um soldado disposto a acabar com
qualquer ameaça.”
Calafrios percorrem minha espinha pelo pavor que ele me provoca.
Coloco os cotovelos sobre a mesa e me inclino, pegando o gravador. Uma
parte de mim quer jogar tudo para o alto, esquecer dessa história, mas a
outra... a outra grita desesperada para que eu continue, descubra o que há de
errado mesmo com os poucos recursos que tenho.
“— Não vou te condenar por estar acolhendo Ruslan, quando se tem
um coração inocente, é mais fácil de ser enganado...”
Se Mirom e Artem sabem que Ruslan está comigo, por que eles não
vieram prendê-lo? O que eles estão esperando? Respiro fundo, alarmada com
o fato de que ambos estão planejando alguma coisa, porque não há lógica em
saber que o criminoso que procuram está aqui e não fazerem nada.
Frustrada, aperto o botão do player para escutar de novo a entrevista da
mãe de Ruslan e vou preparar um café. Sua voz soa pelo gravador, dou um
gole na minha bebida, fechando os olhos ao sentir a cafeína navegar por
minhas veias.
— Não... por favor... — Olho para trás de uma vez quando a voz de
Okasana é substituída por uma completamente diferente e em total pavor,
fazendo meu coração saltar pela boca. — NÃOOOOO... — Sobressalto ao
escutar gemidos de dor, pancadas e grunhido.
O que está acontecendo?
Aperto minha caneca, estagnada no lugar enquanto continuo escutando
a mulher gritar por socorro.
— Eu... eu tenho uma fi-i-ilh-a... n-não-o me mate-e... — Ela implora
em desespero, dou um passo à frente com a respiração acelerada e
aterrorizada.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada... — A caneca escorrega da
minha mão se estilhaçando no chão ao escutar a voz mecânica do que parece
ser o responsável.
— Não... — A moça choraminga. — Não, eu juro que não falarei a
ninguém, mas deixe-me ir embora...
— Toda rosa estragada deve ser arrancada...
Sobressalto, levando a mão à boca quando a moça grita em pânico que
logo é substituído por uma voz de dor e angústia. Sons de algo cortando no
que assemelha ser a própria pele, me faz perder o equilíbrio.
Encosto no balcão para não cair com minha mente sendo preenchida
pelos barulhos de engasgo, pancadas, murmúrios e de repente, silêncio.
Minha respiração acelerada preenche o silêncio, engulo em seco e me
assusto quando passos são soados na gravação. Forço-me a ir até a mesa,
pego o gravador com as mãos tremendo.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada... — Salto para trás,
deixando cair o gravador que faz um click quando a gravação termina.
Silêncio preenche minha casa. Levo as mãos à cabeça sem acreditar no
que acabou de acontecer.
Um assassinato...
É a gravação de um assassinato!
Deixo-me cair na cadeira mais próxima e sem saber como reagir, fico
paralisada e assustada sem conseguir me mover, apenas relembrando e
associando os últimos minutos.
Mirom...
Ele me devolveu o gravador, então quer dizer que... foi ele? Mirom
quem colocou essa gravação?
“— ... É um aviso, não de um amigo, mas de um soldado disposto a
acabar com qualquer ameaça.”
Me levanto, pego o gravador e aperto o replay, escutando tudo de novo.
Sinto que esse assassinato tem alguma relação com o Ruslan, mas... por que
Mirom faria isso? Por que vejo em seus olhos suspeitas?
Eu entrei em algo que não deveria, não por minha culpa, posso sair e ir
contra as ordens de Andry, porém, a cada dia mais curiosa e mais envolvida
eu fico.
Quero apenas a verdade e sei que a verdade está mais próxima a cada
dia. Preciso apenas encontrar uma brecha, uma falha que me leve ao real
culpado por toda essa atrocidade.
Ando de um lado para o outro, ansioso para a chegada de mais tarde e
tentando encontrar um caminho que me leve a descobrir a maldita verdade.
Minha mente grita em desespero com lembranças que insistem em
reaparecer. Vou até a mesa cheia de papéis, pego um caderno, caneta e
começo a rabiscar, desenhando a imagem que apareceu como flash.
Os traços desordenados começam a ganhar forma, minha visão pisca
freneticamente como se tivessem ligado uma luz e sobrasse apenas pouco
tempo para visualizar o que está à minha frente.
— Ruslan? — Nikita me chama, fazendo com que a imagem na minha
mente desapareça.
Fecho os olhos e inspiro fundo, largando a caneta sobre a mesa. Ele se
aproxima com cautela.
— O que é isso? — Abro os olhos, encarando o desenho de uma
silhueta com capa e capuz em um beco escuro enquanto gotas de chuvas
caem sobre o corpo caído à sua frente, escorrendo sangue pelos
paralelepípedos.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada... — Balbucio, encarando o
rosto do assassino coberto pelas sombras.
— Não compreendo... — Olho para Nikita.
— Naquela noite foi isso que vi. — Digo, recordando-me vagamente
do que aconteceu. — Lembro-me dele recitar essa frase depois de ter atacado
a moça... essa é a imagem de quando tudo aconteceu.
— Tu não lembras do rosto?
— Não! — Bato na mesa e me afasto.
— Fique tranquilo. — Nikita tenta me acalmar, mas é em vão. —
Preciso de ti equilibrado para o encontro com Mirom.
— Estou bem! — Asseguro, encarando o quadro. — Precisamos
encontrar pistas...
— Vamos com calma...
— Eu não tenho mais tempo. — Encaro os olhos de Nikita. — Quando
me encontrar com Mirom, tudo irá explodir.
— Como assim? — Ele franze a testa.
— Artem e Mirom sabem onde estou, eles estão me cercando,
mandando pessoas vigiar o bairro onde estou.
— E como sabes disso?
— Tenho olhos por lá. — Afirmo, cruzando os braços. — Eles estão
esperando o momento certo.
— Então eles querem que tu os encontres? — Dou de ombros sem
saber de suas intenções, é uma hipótese.
— Houve relatos de assassinatos como esses nesses 14 anos?
— Nada, apenas aquele quando tu fugiste. — Olho para a reportagem
da AS que Laura escreveu, eu estava seguindo-a e vi o corpo da mulher
estirado no chão.
— Isso tem quase um mês... — Meu corpo fica em alerta quando algo
vem à tona. — Precisamos encontrar os corpos...
— Como dizes?
Fecho meus olhos ao segurar meu nariz, analisando o que me veio à
mente. Foram vinte mulheres assassinadas, com intervalo de um mês entre
cada morte. Fui preso e tudo voltou ao normal, mas quem quer que seja o
culpado por tirar tantas vidas não pararia de cometer atrocidades por tantos
anos e voltar só agora que estou livre. Isso quer dizer que...
— Necessito que consigas os dados de mulheres desaparecidas durante
esses 14 anos.
— Posso conseguir, mas por quê? — Me volto para Nikita.
— Acredito que ele não tenha parado de matar, o que me diz que todas
as suas vítimas estão em algum lugar onde ninguém possa encontrar.
— Oh... — Ele me olha chocado. — Um Serial Killer nunca para de
matar...
— Eles sentem prazer no ato em si. — Umedeço os lábios. — Quatorze
anos é tempo demais para viver sem sentir um único prazer.
— E a que morreu recentemente?
— Ele vai colocar a culpa em mim a todo custo, porque sou uma pedra
em seu caminho.
— Artem ou Mirom?
— Ambos sabem camuflar e esconder corpos, são altamente treinados.
— Toco na foto deles, encontrando a linha que pode me levar a uma pista.
— Quando tudo aconteceu, vocês eram apenas pirralhos, por isso que
havia muitas pistas, agora ambos trabalham para o governo, tem influências
lá dentro... cacete! — Observo o rosto de Nikita adquirir um tom pálido. —
Tu tens toda razão, garoto!
— O que indica que...
— O quê? — Balanço a cabeça, fazendo as contas e deduzindo o
improvável.
— Que ele irá procurar sua próxima vítima...
— Vai fazer um mês que tu saíste... puta merda!
— Essa será a nossa chance de encontrá-lo. — Solto uma respiração
forte, encarando cada uma das mulheres que morreram injustamente.
— Como faremos? — Comprimo meus lábios, sem fazer a mínima
ideia.
— Não sei, mas iremos descobrir. — Falo convicto de que antes de
voltar para a cadeia, encontrarei o culpado e farei pagar por tudo o que
fizeste.
Tudo na vida há consequências e uma hora ou outra tu terás que pagar.
Vidas foram tiradas, sonhos destruídos e famílias quebradas.
O garoto inocente que fui pagou por algo que não cometeu, e é esse
mesmo inocente que foi trancafiado e calado quem revelará a verdade, nem
que seja a última coisa que ele faça, a verdade virá à tona!
Aperto o volante enquanto encaro a estrada escura e solitária no meio
de uma vegetação. Nikita e seus homens estão camuflados, prontos para agir
se algo sair errado.
Eu preferia ter vindo sozinho, mas Nikita negou. Às vezes sinto que ele
esconde alguma coisa de mim, como se quisesse falar o que está preso em sua
garganta, mas sem coragem de revelar a verdade.
Encosto o cotovelo na porta e esfrego meus lábios vendo um farol
distante vindo em minha direção. Embora Mirom nunca tenha me visitado na
prisão, ele me enviou muitos recados que me perturbaram durante anos.
Fecho meus olhos afastando as lembranças de suas palavras, das
ameaças e de tudo o que acredita que eu tenha feito. Não é necessário estar à
sua frente para sentir seu ódio por mim. Balanço a cabeça, ele mandou
detentos me darem uma lição dentro da cadeia... cacete!
Abro os olhos quando o jipe para e abaixa o farol. Mirom desce,
parando em frente dele, sendo iluminado pela luz fraca de LED do carro.
Engulo em seco ao vê-lo depois de tantos anos, seu corpo repleto de
músculos, farda e maxilar marcado faz jus ao homem perigoso e manipulador
que é.
Respiro fundo e saio do carro, batendo a porta ao encarar seus olhos
frios. Me aproximo, mantendo uma certa distância. Sei perfeitamente que não
posso de jeito nenhum subestimá-lo.
Mirom me analisa minuciosamente, fechando e abrindo as mãos em
punhos, se segurando para não me atacar, porque sabe que se isso acontecer,
capangas irão contra-atacar.
Ele sabe que não estou sozinho.
— Estás com tanto medo que tiveste que trazer seus cachorrinhos? —
Sua voz gélida me dá calafrios.
— Bom te ver, Mirom! — Ele estala a língua, se remexendo e olhando
para os lados, vendo Nikita encostado em uma árvore distante.
— Queria poder dizer o mesmo. — Retruca, colocando as mãos no
bolso e voltando a me encarar. — Poderia ter mandado um esquadrão para te
pegar.
— Mas não mandaste.
— Sim, não mandei! — Murmura me encarando com um olhar frio. —
Queria ver até onde tu irias.
— Precisava olhar nos olhos do meu ex melhor amigo antes de fazê-lo
pagar. — Mirom solta uma gargalhada, encarando o chão de cascalho.
— Tu és muito... — Ele balança a cabeça.
— Estúpido? — Completo.
— Sim, mas o pior é se fazer de inocente. — Mirom passa as mãos em
seu rosto. — Caralho, tu se vitimizas, não?
— Eu recebi seus recados.
— Ótimo... pelo visto se saiu bem! — Afirma com sarcasmo.
Umedeço meus lábios, controlando minha raiva.
— Por que fizeste isso? — Mirom me encara por alguns segundos sem
dizer nada, então dá dois passos em minha direção com um olhar duro. Não
me movo um centímetro.
— Sinto nojo de ti. Sempre foi o bonzinho, se sacrificando por sua
família, sempre sorrindo... — Revela com os dentes cerrados. — Tu podias
voltar depois de um dia sem ganhar nada com as vendas do caralho das rosas,
mas sempre estavas com um sorriso na droga do rosto, olhar agradecido...
porra, eu merecias ser assim que nem você e só recebia surras do meu pai. —
Mirom bate em meu ombro, me empurrando. — O que tu tinhas que eu não
merecia?
— Eu sempre tive você ao meu lado, quando tu caíste eu estava lá para
te puxar. — Ele solta uma risada gélida.
— Não eras suficiente para tirar o que sentia por ti! Meu pai lhe amava,
apenas você, e eu? Hum? Me diga! Como eu ficava vendo meu pai te
tratando como filho? Por que eu ficava com a pior versão daquele homem?
— Por isso me mandaste para a cadeia? — Mirom arqueia uma
sobrancelha e gargalha baixinho.
— Tu foste porque és um assassino, um psicopata que acredita ser
inocente. — Ele inspira fundo, se afastando de mim. — Mas uma coisa não
vou negar. — Mirom recosta no jipe, penteando seus cabelos para trás. — Foi
delicioso ver meu pai sucumbindo à doença que o levou à morte.
— Kostyantyn era seu pai, não fales dessa forma.
— Ele era muito mais seu pai, do que o meu. Ele nunca me tratou
como um filho, mas sim como um peso em seus ombros. — Esfrego meu
rosto, afastando o ódio que sinto dele.
— O que eu te fiz no final das contas? — Pergunto, exasperado e
cansado.
Mirom sorri mais uma vez, sempre com um sorriso frio e olhos cruéis
capazes de cometer qualquer monstruosidade.
— Tu exististe! — Tensão aumenta entre nós. — Eu só estava
esperando tu me encontrar e acertarmos nossas pendências, porque a partir de
agora começarei uma caçada para te pôr de volta onde nunca deverias ter
saído.
— Estou preparado. — Desafio, Mirom volta a se aproximar de mim.
— É bom que esteja, porque farei da sua vida um inferno... — Dessa
vez sou eu que sorrio.
— O inferno não me assusta mais, estou lá há muitos anos vivendo o
que tu não suportarias passar por um segundo. — Seguro seu ombro
esquerdo. — E quando eu fizer cada um de vocês pagar, poderei saborear
minha vitória. — Mirom tira minha mão do seu ombro de forma brusca.
— Tu não sabes com quem está lidando...
— Sei perfeitamente quem tu és. — Me afasto, andando de costa em
direção ao carro. — Sua ficha pode estar limpa, mas não quer dizer que não
encontrarei nada. Irei espalhar cada merda sua e encontrar o culpado que me
colocou naquele lugar.
— Tu és uma pedra em meu caminho, sempre foi...
— Cuidado, Mirom! — Sorrio e abro a porta. — Essa pedra pode ser a
mesma que te fará cair.
— Tu se achas, não é? — Pergunta alterado. — Só porque conseguiste
fugir da cadeia achas que é um herói.
— Um herói? — Olho para ele com ironia. — Não existe heróis na
minha história.
— Odeio sua confiança. — Ele range os dentes com fúria. — Não és
porque tu estás andando com um bando de gangsters que tu serás melhor,
lembre-se, tu és um assassino fracassado...
— Certo! — Solto uma risada calma. — Um fracassado que te coloca
medo? Cuidado para não cair sozinho, irmão! — Mirom rosna.
— Eu sei onde te encontrar, por ondes andas e com quem estás metido,
posso fazer todos caírem antes de ti. — Assinto, acreditando nele, mas sem
me importar porque assim consigo desestruturá-lo. — Se tu queres guerra, é
o que terás!
— Quero a verdade. — Fito mais uma vez seus olhos perturbados. — E
se para isso terei que enfrentar uma guerra, bom, vamos lá, porque tu não
enfrentarás aquele garoto que tu sentias inveja. Posso ser ruim, Mirom, mas
posso ser muito pior se assim desejas.
Pisco um olho de modo sarcástico, entrando no carro já que o deixei
sem palavras, ou melhor, furioso.
— Sei do seu ponto fraco. — Congelo, segurando a porta com força. —
Oh, como ela é linda! Olhos azuis, lábios carnudos... ah, que corpo aquela
cadela tem! — Fecho meus olhos, controlando a fúria que me estremece.
— Não faço ideia de quem seja... — Me calo quando Mirom gargalha
alto.
— O que farás se eu a tomar para mim? — Viro meu rosto em sua
direção, encarando-o mortalmente.
— Não ouse se aproximar dela. — Aviso, me segurando.
Mirom sorri em vitória ao ver que conseguiu me abalar.
— Eu investiguei a vida dela... uma pena, não? — Me afasto do carro e
ando a passos lentos em sua direção. — Encontrei uma ficha de
desaparecimento, parece que seus pais a deram como desaparecida... oh, não
está, certo? Já que escondes um assassino em sua casa!
— Não se meta com ela, porque se tu tocares um dedo naquela mulher,
eu te farei sentir a pior dor que um ser humano podes sentir.
— Tu achas que ela se apaixonará por um bosta como você? — Ele se
aproxima, quase encostando o rosto no meu. — Eu sou melhor que tu, Laura
nunca ficará com você e sim comigo. — Ranjo os dentes. — Vamos lá, seja
realista.
— Estou sendo, Mirom, tão realista que poderia acabar contigo nesse
exato momento, mas não farei isso, porque seria fácil demais. — Recuo um
passo. — Fique longe dela! — Viro de costas, voltando para o carro.
— James... — Paro de uma vez. — O que ele fará ao descobrir que sua
enteada está vivendo tranquilamente enquanto acham que ela está... — Ele se
cala quando giro de uma vez, sacando uma pistola das costas e apontando em
sua cabeça.
Seu sorriso desaparece.
A fúria dentro de mim explode.
— O que tu disseste? — Mirom me encara nos olhos, estou prestes a
perder a calma.
— James é o pai dela, merece saber que sua filhinha está viva... — Me
aproximo, encostando a arma na sua testa, ele ergue as mãos em rendição.
— Vou acreditar que seja apenas um blefe seu. — Mirom solta uma
gargalhada.
— Estás com medo de perder sua cadela? — Ranjo os dentes. — Eu o
trouxe!
— O quê? — Mirom comprime os lábios e dá de ombros.
— É isso que tu acabaste de ouvir.
A pistola na minha mão estremece ao mesmo tempo que minha mente
explode de raiva. Empurro-o e acerto sua testa com uma coronhada, Mirom
grunhe de dor e surpresa, dando vários passos para trás. Quando levanta a
cabeça, acerto meu punho em seu maxilar, derrubando-o no chão.
— Tu mereces a pior de todas as torturas. — Rosno, colocando a ponta
da arma em sua boca e prensando meu joelho em seu peito. — Um dos teus
erros foi me subestimar, achar que sou aquele garoto que tu mandaste torturar
da pior forma, mas sabe o que aconteceu com Joraslov, aquele que tu
pagaste? — Empurro a pistola contra seus dentes, seu olhar se prende ao
meu, uma mistura de ódio e surpresa. — Cortei sua garganta, assim como
todos que tu mandaste ir atrás de mim com o dinheiro do seguro do seu pai.
Me levanto, puxando-o para cima pelo colarinho. Mirom apenas me
encara com assombro. Sangue escorre por sua testa devido ao rasgo que
causei. Sua respiração acelerada me diz que está se segurando.
Ele quer que eu faça isso.
Mirom quer que eu o ataque.
— Sabia... — Murmura quando encosto a arma em baixo do seu
queixo, calando-o e fazendo-o inclinar a cabeça para trás.
Fecho minha mão em torno do seu pescoço, no ponto ideal de fazê-lo
sucumbir a escuridão.
— Não mecha com um monstro quando tu não aguentas as
consequências.
— Aperta o gatilho. — Rosna. — Vai, o que tu estás esperando?
— Te matar com uma bala seria fácil demais.
— Mas tu mataste várias mulheres e não tens coragem de apertar o
gatilho? — Ele sorri.
— Fique longe de Laura, se eu ver tu se esgueirando perto dela, não irei
me segurar, vou contra tudo o que acredito e dos meus princípios para fazê-lo
sofrer.
— Princípios? — Mirom ri, se engasgando quando empurro mais a
arma e aperto sua garganta. — Vou te mandar para o inferno, seu merda!
— O inferno faz parte de mim, é o meu mundo. — Digo, descendo a
arma e prensando-a em seu peito, louco... sedento por sangue.
— Vou tirar tudo o que lhe resta! — Cospe as palavras com fúria, mas
nada me abala. — Cuidado, Ruslan, sua pequena flor poderá ser deportada a
qualquer momento, tenho poder para isso. A enviarei de volta para casa...
para James...
Coloco a arma em seu ombro, ficando cego com suas palavras que usa
para me atacar. Nunca permitirei que aquele desgraçado a tenha de volta, não
vivo. Minha mão estremece só de imaginá-lo a tocan...
Cacete!
Fecho meus olhos para me controlar e não fazer besteira.
— Se despeça de seus olhos azuis... — Abro os olhos, notando o brilho
de satisfação, se ele está falando a verdade ou não, não faço ideia. — James
estás chegando, paguei sua passagem...
— O que você fez?
— Apenas o certo... — Aperto o gatilho, Mirom solta um grito
ensurdecedor de dor quando a bala ultrapassa sua pele, espirrando sangue no
meu rosto. — Seu desgraçado...
Ele grunhe, se contorcendo de dor. Seguro seu pescoço com mais força,
seus olhos se prendem nos meus. Afasto a arma suja de sangue do seu ombro
e a coloco em sua boca.
— Não tenho nada a perder se eu impregnar uma bala no seu cérebro.
— Rosno baixinho. — Tu és um fracote que só tem lábia, eu sou o demônio
que buscará sua alma de forma calma e calculada. — Me inclino, chegando
perto do seu ouvido. — Fique longe da Laura!
Limpo o cano da pistola em sua farda, sustentando seu olhar. Me
afasto, deixando-o cair no chão. Mirom rosna de dor, levando a outra mão ao
seu ombro que jorra sangue. Guardo a pistola nas costas.
— Recomendo que tu vás ao hospital, porque essa bala irá fazê-lo
sangrar até morrer. — Aviso, voltando para o carro com um gostinho de
satisfação.
Mirom não é nada do que imaginei, mas não deixarei com que isso me
deixe baixar a guarda, porque mais uma vez, ele pode estar jogando comigo,
fazendo-me acreditar que ele é um fraco.
Ele não revidou.
Apenas me provocou até eu perder a cabeça...
Mirom estava apenas me estudando, vendo até onde sou capaz de ir.
Uma guerra começou... e não há vencedor.
Arranco com o carro e me perco nos pensamentos em todo o caminho
em direção à casa de Laura. Preciso descobrir se Mirom estava falando a
verdade em relação ao James.
E se for a verdade, Laura estará em perigo e eu sou o culpado. Não
posso suportar vê-la destruída novamente. Preciso protegê-la nem que seja
com a minha própria vida.
Ao chegar no apartamento, paro em frente à porta e coloco a mão
sobre ela, controlando a respiração. Limpo meu rosto com o casaco e inspiro
fundo antes de abrir a porta e entrar.
Procuro por ela. Laura ergue a cabeça e um pouco atrapalha pega o
gravador e o desliga. Seus olhos assustados me deixam em alerta, analiso-a
louco para pegá-la nos meus braços e sentir seu calor em um conforto que
tanto almejo.
Fecho a porta atrás de mim, trancando-a com cuidado. Laura continua
me olhando, fazendo meu corpo reagir à sua presença. Retiro meus coturnos
e caminho ao banheiro sem trocar nenhuma palavra.
Estou excitado... mordo meu lábio inferior, retiro minhas roupas e me
enfio debaixo da água fervente. Coloco as mãos na parede e abaixo a cabeça,
controlando minha mente e o desejo ardente que me queima por dentro.
Estou a ponto de explodir!
Ergo a cabeça, inclinando para trás, deixando a pressão da água lavar o
sangue, meus medos e o ódio que sinto.
— Cacete! — Murmuro, encostando a testa na parede, buscando algo
que possa fazer para aliviar a pressão que sinto dentro do meu ser.
Desligo o chuveiro e passo a mão pelo espelho, tirando vapor que
impregna e se espalha como névoa pelo banheiro. Encaro meus olhos,
recordando de cada palavra de Mirom, da ameaça direcionada a Laura.
Ele está certo... ela é meu ponto fraco, se tornou o centro do meu
mundo, aquela que ultrapassou minha frieza e me deu motivos para lutar.
Quero arrancar toda dor de dentro dela, trazer de volta seu sorriso e
mostrar-lhe como é ser amada por um homem.
Fecho meus olhos, não conseguindo mais aguentar. O desejo... é maior
do que posso segurar.
Visto um short e uma camisa que já se encontrava aqui e saio do
banheiro. Rony me encara em cima do seu brinquedo, sorrio para ele que tem
uma expressão feliz no rosto. Procuro por Laura e a encontro na pia, lavando
um copo distraída.
Me aproximo lentamente.
Ela enrijece quando sente minha presença atrás dela. Não posso perdê-
la... quero essa mulher como nunca quis qualquer outra, mas não sei se o que
farei em seguida será o certo. Só que meus instintos... Inspiro fundo quando
meus olhos percorrerem seu corpo coberto pelo pijama do Coragem.
— Como foste seu dia? — Minha voz sai rouca, reparo no estremecer
do seu corpo.
— Foi tranquilo. — Responde, desligando a torneira e sustentando as
mãos na pia. — E o seu?
— Não foi agradável... — Murmuro segurando sua cintura, ela
sobressalta de leve ao sentir meu toque. Escorrego minhas mãos até sua
barriga e a trago para mais perto. — Tu já foste tocada por um homem atraído
por você, Laura?
Afasto os cabelos do seu ombro. Fecho meus olhos inspirando seu
cheiro, roçando meu nariz em seu pescoço. Ela está imóvel com a respiração
acelerada e cortante.
— Tu és tudo o que preciso nesse momento...
— Ruslan... — Sussurra com a voz falha, Laura prende a respiração ao
sentir meus lábios contra sua pele.
— Eu estou sendo imprudente, ultrapassando o que tu construíste, mas
quero quebrar todas as paredes que me afasta de ti. — Espalmo minha mão
em sua barriga e com a outra subo até segurar seu rosto. — Te quero, Laura...
— Murmuro em seu ouvido, ela encolhe seus ombros.
Seguro sua cintura fina de novo e a giro, virando-a para mim. Suas
bochechas estão coradas e seus olhos espantados, não de uma maneira ruim,
mas de luxúria... de algo que jamais sentiu antes.
Entrelaço meus dedos nos cabelos da sua nuca. Laura inspira fundo
sem conseguir dizer nada. Puxo de leve seus cabelos, inclinando sua cabeça
para trás e colando seu corpo no meu, fazendo-a sentir o calor que sai de mim
que irradia por ela.
— Feche os olhos, pequena flor... — Ela abre a boca para contestar,
mas se cala quando roço meus lábios nos seus.
— O... que-e... está fazendo? — Cochicha, fechando os olhos sem
conseguir mantê-los abertos, sentindo-me acariciar seu rosto com meus lábios
e nariz.
— Permita-se experimentar...
— Experimentar... o quê? — Sorrio, encostando minha testa na sua,
posso sentir sua respiração se misturando com a minha.
— Isso... — Digo, capturando seus lábios, Laura fica paralisada.
Espero um momento para que perceba o que está acontecendo e
aprofundo o beijo ao senti-la suspirar, relaxar e permitir sentir a sensação
inebriante de uma paixão que espalha por cada toque meu.
Sinto algo estourar dentro de mim, uma emoção que jamais vivi. Já
beijei e transei com algumas mulheres na prisão, mas todas elas tinham a
intensão de levar drogas para dentro, fazer sexo era um bônus... uma
distração sem sentimentos.
Então posso afirmar que nunca beijei uma mulher que adorasse.
Solto um gemido, me controlando para não a devorar de forma brusca,
evitando assustá-la com meu jeito possessivo. Desço minhas mãos por seu
pescoço, mordendo seu lábio sem desfazer o beijo ardente.
Ergo seus braços e os contorno em volta do meu pescoço. Desço
minhas mãos lentamente por seu corpo, agarro sua cintura e a sento na pia.
Seus braços ficam mais firmes e me encaixo entre suas pernas,
saboreando seus lábios, conhecendo seu sabor e sentindo sua pele, seu calor e
perfume que a cada segundo me deixa mais louco.
Envolvo seu rosto nas mãos, impedindo-me de tocar meu membro nela.
Mordo seu lábio, o puxando com meus dentes e quebrando o beijo. Laura
continua com os olhos fechados e com uma respiração acelerada, assimilando
o que acabou de acontecer.
Suas mãos entrelaçam meus cabelos, sua língua passa por seus lábios
fazendo meu membro pulsar.
— Estás bem? — Sussurro, Laura abre os olhos e me encara.
— Eu... eu... — Ela engole seco, desviando o olhar, seguro seu queixo
e volto a morder seus lábios.
— Não tema, pequena flor. — Falo, beijando seu pescoço e me
encostando nela lentamente.
— Ruslan... acho que... acho que... — Ela me empurra, pulando da pia
e se afastando apavorada, arrumando seus cabelos desgrenhados. — Vamos
assistir a um desenho comigo?
Sorrio ao ver que mesmo que esteja assustada com o novo, ela me quer
por perto.
— Claro... — Quando Laura se vira, agarro-a pelo braço, a empurrando
contra mim e capturando seus lábios com um beijo feroz e intenso.
Laura retribui me deixando alucinado de desejo. Encosto-a na parede,
prensando meu corpo no seu, segurando sua nuca e com a outra seguro mais
firme sua cintura.
Meus batimentos aceleram a ponto de não conseguir mais respirar.
Quero-a mais do que tudo o que já desejei. Quero Laura na cama, sem
roupa... cacete!
Me afasto, arfando.
Estou a assustando...
Levanto meu olhar me prendendo no dela que está brilhante e surpreso.
Seus lábios inchados e bochechas coradas me deixam maluco. Não faço ideia
do que se passa em sua mente, mas eu a queria... ah como eu a queria agora!
Só que não posso...
— Perdoe-me por querer tomá-la dessa forma... eu... eu... preciso
respirar!
Me afasto bruscamente, escondendo minha ereção que pulsa excitado.
Engulo em seco e caminho até a porta.
— Ruslan? — Laura me chama, fecho meus olhos com força, querendo
gritar um “foda-se” e voltar para ela... transar com ela... amá-la a noite
inteira... senti-la em meu ser.
— Prepare algo para comermos, preciso apenas... tomar um ar.
Saio apressado, fechando a porta atrás de mim e a deixando sozinha. Eu
sei que é errado abandoná-la dessa forma, confusa e sem compreender o que
aconteceu, mas... não consigo ficar diante dela se eu não me acalmar.
Encosto na parede do beco mais próximo e me agacho, enterrando meu
rosto entre as mãos sem conseguir esquecer a sensação dos seus lábios no
meu, do seu corpo colado ao meu...
De repente, começo a gargalhar por me sentir vivo de novo. Meu
coração pulsa com intensidade me dizendo que sou capaz de amar, que não
estou completamente estragado... que não estou morto.
Estou vivo!!!
Escuto passos e olho para o lado, alarmado. Kliment para um pouco
distante com uma expressão ilegível. Me levanto e inspiro fundo.
— O que manda, patrão? — Pergunta, colocando as mãos no bolso.
— Tu sabes o que deves fazer. — Repasso as informações, ele assente.
— Hora de ver Artem cair no seu próprio mundo. — Kliment retribui um
sorriso de satisfação e vai embora, misturando-se com o breu do beco.
Passo a mão pelo rosto, inspiro fundo mais uma vez antes de voltar
para dentro me sentindo mais calmo. Só espero conseguir me segurar e não a
pegar nos meus braços outra vez.
Paralisada contra a parede, encaro a porta sem conseguir assimilar o
que acabou de acontecer. Meus lábios formigam por ter sido beijada pela
primeira vez por um homem.
Minha mente grita desesperada, uma luta com meus demônios que
insistem em permanecer. A sensação de suas mãos ainda está presente por
cada parte do meu corpo onde foi tocado. O carinho misturado com desejo
me fez sentir... viva!
Levo meus dedos aos lábios recordando da forma penetrante em que
me olhava, da sua respiração se misturando com a minha e do seu cheiro que
me deixou inebriada e sem reação.
Nunca pensei que seria capaz de permitir que alguém ultrapassasse esse
limite que coloquei. Acreditei que nunca aconteceria comigo pelo fato de ser
tão quebrada a ponto de afastar qualquer homem que queira um
relacionamento, porque eles desejam mulheres completas e não aquelas que
faltam pedaços.
Só que Ruslan é diferente, ele nada contra a maré em um desafio que o
deixa com sede de vitória. Quanto mais ele nada, mais consegue ter acesso ao
meu coração.
Lágrimas escorrem por meu rosto quando a emoção me abate. Pensei
que vivenciaria esse momento apenas em filmes ou em livros. Pressupus que
jamais seria adorada com tamanho carinho, que nunca despertaria o amor de
alguém ao ponto de fazê-lo lutar por mim.
Mas tudo é demais dentro de mim, não sei se é certo Ruslan ter me
beijado ou é errado eu ter gostado. Minhas mãos começam a tremer e tudo de
bom vai desaparecendo quando sua voz volta a me atormentar.
“Ninguém vai te amar... você é asquerosa, só sabe dar nojo nas
pessoas...”
Será que Ruslan sentiu nojo de... mim?
Arfo, balançando a cabeça de um lado para o outro. Será que James tem
razão? Será que sou tão asquerosa a ponto de nunca ser amada?
— Ninguém vai me amar... — Murmuro, me abraçando e contendo o
choro e a vontade de me arranhar. — Sou asquerosa, por isso que Ruslan
saiu... ele... ele sentiu nojo!
Olho para meus braços, querendo me cortar, me lavar e me rasgar por
ser a culpada por tudo isso.
“É tudo culpa sua... por isso que faço isso, para te punir...”
— Sai da minha cabeça! — Falo, batendo a palma da mão na têmpora,
fazendo com que a voz de James saia e se cale para sempre.
Estou cansada... tão cansada...
Não quero viver assim para sempre, quero ser feliz como uma pessoa
normal, mas por que meu passado não me deixa? O que eu fiz de errado para
merecer tudo isso?
Solto um soluço prestes a mergulhar na escuridão. Vou até a mesa,
apanho meu celular, disco seu número e me tranco no banheiro.
— Laura? — A voz de Olesya é a partida para a liberação do meu
choro. — Estou aqui. Estou te ouvindo!
— Olesya... — Sento-me no chão em prantos. — Eu... eu quero tanto
ser feliz. — Conto entre soluços e lágrimas. — Quando acho que finalmente
consegui, tudo despenca de novo. O que eu fiz, Olesya? O que eu fiz para
merecer tudo o que aconteceu comigo? Por que não posso ser feliz? Por que
James fez isso comigo? Por que...
Encolho minhas pernas, chorando com tanta intensidade que o ar é
sugado dos meus pulmões. Começo a tossir sem parar em uma busca para
respirar.
Morrer talvez seria a melhor solução?
— Não tenho todas as respostas que tu necessitas, porque às vezes,
precisamos passar por uma longa tempestade para encontrar o significado
da vida. — Diz, com a voz tão calma e doce que meu coração começa a se
acalmar. — Acredito que tudo na vida tem um propósito da qual não
sabemos até a hora certa.
— Estou tão cansada... — sussurro, encostando a testa nos joelhos. —
Cansada de me sentir sozinha, de não poder ser tocada sem entrar em crise,
de James na minha mente... eu às vezes sinto que foi culpa minha, eu deveria
ter feito algo antes...
— Tu fizeste, olha só aonde tu estás! — Fala com confiança. — Tu és a
mulher mais forte que eu conheço. Uma guerreira que luta uma guerra
interior mais difícil que um ser humano é capaz de suportar.
— Estou me perdendo...
— Não, pequena flor, tu estás vencendo. — Fecho os olhos com força,
permitindo que lágrimas de dor escorram por meu rosto.
— Olesya?
— Sim?
— Ruslan me beijou e... eu deixei. — Ouço ela arfar e por longos
segundos, Olesya não diz nada.
— Ele te beijou!? — Pergunta com incredulidade.
— Não sei o que pensar... foi bom... bom não, maravilhoso. Foi como
estar flutuando nas nuvens... como se tudo fizesse sentido, se encaixando da
melhor forma possível. — Umedeço meus lábios. — Ruslan me tocou... ele
me segurou... suas mãos em mim... não sei se está certo, estou confusa.
— Estou surpresa. — Revela, posso até imaginá-la com olhos
arregalados. — Tu retribuíste o beijo?
— Exato! — Confirmo. — Eu toquei em seu pescoço, foi... foi surreal!
— Digo, deslumbrada com a sensação que estou sentindo.
— O beijo é mágico, une dois mundos e duas vidas se tornando uma
só. — Olesya suspira do outro lado da linha. — Estou admirada, Laura.
Admirada não, estou emocionada!
— Por quê? — Pergunto confusa, levantando a cabeça.
— Por tu estar permitindo superar. Vocês dois são as pessoas que mais
merecem ser felizes nesse mundo. Duas almas injustiçadas, quebradas,
lapidadas ao sofrimento, mas que encontraram um no outro motivos para
vencer. — Inspiro, segurando o choro. — Mas o que me deixa mais
emocionada é o fato de um estar fazendo o outro acordar de um sono
interminável. Não digo por causa do que sentem, mas sim, porque juntos
estão ultrapassando barreiras, explorando o limite e se permitindo reviver.
Estico minhas pernas, uma pequena fisgada de dor me faz lembrar que
meu tornozelo ainda está debilitado.
— Ruslan saiu apressado sem dizer nada. — Revelo com a mente
bagunçada. — Será que ele sentiu nojo de mim? Nojo de ter me tocado?
— Jamais! — Olesya diz com confiança. — É tudo novo para vocês. O
sentimento que cresce dentro de seus corações depois de tanto sofrimento é
algo intenso que vira desconforto e confusão. Ruslan é tão quebrado quanto
você, Laura, é tudo muito novo para ambos.
— Então ele não...
— Ruslan te adora, vejo isso na forma que ele te olha. — Conta, me
fazendo imaginá-la sorrindo. — Só não posso te prometer que nunca irá
sofrer. — Meu peito aperta com sua declaração.
— Não quero mais sofrer, Olesya!
— Quando entregamos nosso coração à outra pessoa, estamos fadados
ao sofrimento. Se apaixonar e amar não é fácil, mas podemos lidar, é como
um quebra cabeça infinito que requer muita dedicação. Alguns amores
duram para sempre, outros são passageiros e muitos acabam.
— O que eu faço? — Olesya fica calada até eu pensar que talvez a
ligação tenha caído.
— Permita-se ser amada pela primeira vez. Adorada por um homem
da maneira certa. Explorada com carinho e admiração. Permita-se sofrer
por amor, sinta a intensidade da paixão navegar por suas veias. Porque só
assim tu saberás se vale a pena ou não. E se não der certo? Bom, a gente
começa de novo. — Respiro fundo, absorvendo todas as suas palavras.
— Obrigada...
— Sou sua terapeuta, mas além de tudo, sou a pessoa que mais torce
para te ver feliz.
— Uma amiga? — Olesya ri de leve.
— Amiga e terapeuta!
— Laura? — Sobressalto quando Ruslan bate na porta, prendo a
respiração quando meu coração dispara.
— Permita-se florescer, pequena flor. — Olesya diz. — Qualquer
coisa me liga, estou à sua disposição.
— Gratidão por tudo!
— Tchau, Laura. — Se despede antes de finalizar a ligação.
— Laura, estás tudo bem? — Ruslan volta a perguntar com um tom
preocupado.
— Sim, estou bem! Já estou saindo.
— Certo, te espero na cozinha.
Levanto-me e ligo a torneira, lavando meu rosto encharcado de
lágrimas. Com uma toalha úmida, tento amenizar a vermelhidão que meu
rosto adquiriu por causa do choro. Dez minutos depois, saio do banheiro. Um
frio no pé da barriga faz-me encolher.
Ruslan está de costas para mim enquanto lava alguns legumes, fazendo-
me lembrar de quando contornou seus braços por minha cintura, acariciando
meu pescoço com seus lábios.
— Farei Borsch[5] para nós. — Diz ao me aproximar. — Tu gostas?
— Sim. — Olho para a tela do meu tablet onde está exposto a receita.
— Você gosta de cozinhar, né?
— Um dos prazeres da vida. — Responde, começando a cortar em
cubos o bacon. — Sinto-me relaxado.
— Eu também gosto, mas prefiro comer. — Ruslan me olha por cima
do ombro, sorrindo.
Ele deixa de lado a carne e vai até o liquidificador, colocando uma
bebida vermelha em um copo e estendendo para mim.
— Preparei um Kompot[6] para ti, espero que goste. — Agradeço e dou
um gole, sentindo o sabor de várias frutas misturadas como maçã, damasco e
pera, com um leve toque de mel e canela.
— Você está pronto para se tornar um chefe. — Ruslan sorri com os
olhos brilhando.
Abaixo a cabeça um pouco envergonhada pela forma que me olha. A
cor dos seus olhos me instiga a ficar encarando-os sem desviar, como se algo
me puxasse para eles, como imã.
— Só se for para ti — diz, um arrepio percorre meu corpo. — Se tu
quiseres posso cozinhar apenas para ti. — Levanto a cabeça, notando de
repente que está muito mais perto de mim.
Prendo a respiração ao reparar seus olhos caírem em meus lábios, meu
coração acelera com a possibilidade dele me beijar novamente. Sinto uma
força me puxar em sua direção, querendo que avance ao mesmo tempo que
minha teimosia diz que é melhor ele não se aproximar demais.
Na verdade, eu preciso fazer isso, me desafiar e permitir que minha
história mude e molde meu futuro sem dor e traumas, mas além de tudo,
quero sentir a sensação de ser beijada. Mas a única coisa que faço é abaixar a
cabeça, porque eu não consigo me mexer, estou em um conflito absurdo do
que devo ou não devo fazer.
Eu queria tanto...
Sobressalto ao sentir Ruslan virar meu rosto em sua direção e o erguer
para que eu possa encarar seus olhos que me fitam com admiração e muitos
outros sentimentos que não faço ideia do que sejam.
Ele se aproxima lentamente, aperto o copo que ainda seguro e fecho
meus olhos tentando me manter no controle, tentando controlar as batidas do
meu coração.
Ruslan roça seus lábios nos meus em uma carícia que faz minha pele
formigar. Meu estômago parece ter um monte de borboletas batendo asas, e
quando ele aprofunda o beijo ao permitir que avance, eu simplesmente perco
a capacidade de me controlar.
O copo escorrega das minhas mãos fazendo um baque ao colidir no
chão, mas não me importo. Contorno meus braços em torno do seu pescoço,
inebriada pelo gosto de frutas que ele tem. Suas mãos apertam minha cintura
me levando para mais perto dele, que tende a eliminar qualquer espaço que
nos separa.
Ele quer mais de mim e eu... dele.
Sinto algo querer me levar para as profundezas, da voz daquele que um
dia fez com que eu acreditasse que nunca seria amada, dizendo que eu
despertava o nojo nas pessoas. Quantas vezes acreditei em suas palavras...
quantas vezes me condenei por terem me tocado...
Lágrimas escorrem por meu rosto fazendo Ruslan parar de uma vez.
Sinto seus ombros ficarem tensos, ele se afasta, olhando para dentro de meus
olhos como se fosse capaz de enxergar minha alma.
Eu não sou uma pessoa limpa e ele precisa saber disso.
— Perdoe-me... — Fala angustiado, segurando meu rosto.
Balanço a cabeça, ele não tem culpa.
— É que... — Mordo meu lábio. — Ruslan, não sou uma mulher pura,
eu... eu... sou suja! — Digo aflita.
— Ei, o que é isso? — Pergunta com um tom indignado. — Como
podes dizer uma coisa dessas?
Abaixo a cabeça, encarando o copo que por incrível que pareça se
manteve intacto com a queda brusca.
— Eu tinha sete anos quando tudo começou... — As palavras saem por
minha boca, afasto suas mãos de mim e me abaixo, sentando-me no chão.
Ruslan faz a mesma coisa, só que se senta do outro lado, de frente para mim.
— Eu costumava ser uma garotinha reclusa, minha mãe sempre dizia que eu
era um bicho do mato, e era verdade, de uma certa forma as pessoas me
assustavam, principalmente pelo tamanho. Sempre fui baixa, um “cotoco de
gente” como minha mãe se referia.
Pego o copo, segurando-o para me dar a coragem que necessito para
jogar tudo para fora, para que Ruslan entenda que se me quiser, terá que
conhecer meu passado manchado.
— Mamãe sempre cuidou muito bem de mim, dava tudo o que uma
criança poderia querer, até mesmo um pai que não tinha. — Um nó se aloja
na minha garganta. — No primeiro ano James foi tudo o que eu mais queria.
Atencioso, brincalhão e carinhoso, fazíamos praticamente tudo o que pai e
filha fazem. Acreditei em cada palavra quando dizia que iria cuidar de mim
para o resto da vida. Ele sempre me exaltava, elogiava minha beleza e me
dava muita atenção. Eu sempre atraí olhares por causa dos meus olhos azuis.
Muitos diziam que eu parecia uma boneca, até que isso começou a incomodar
o James.
Ruslan se levanta e pega o copo do liquidificador, colocando mais
Kompot no meu copo sem dizer nada. Dou um gole e suspiro.
— Ele não queria que eu saísse mais com a desculpa de que eu
despertava o interesse nas pessoas, poderia ser perigoso para mim. Até aí
tudo bem, Ruslan, um pai ciumento que presa por sua filha. Mas por trás
desse cuidado havia um homem sujo.
Sinto meus olhos queimarem, dou mais um gole na bebida, tomando
fôlego para continuar.
— James começou fazer pedidos inusitados que até então acreditei
serem normais. Ele queria que eu sentasse em seu colo, sempre que possível
me acariciava de um modo diferente do habitual, pedia para dormir ao seu
lado quando mamãe saia para trabalhar e a cada dia, mais em casa ele ficava.
— Engulo em seco quando meu peito aperta. — James queria me dar banho,
dizendo que não estava me banhando direito. Uma desculpa para me... tocar.
Fecho os olhos com força, repousando a cabeça contra o balcão,
sentindo uma angústia no peito com a lembrança repugnante.
— Todos os dias era um avanço, a carícia ficava mais ousada e ele
sempre pedia que não contasse à minha mãe, que era um segredo nosso. —
Ranjo meus dentes. — O pior é que eu... gostava Ruslan! Céus eu gostava...
— Comprimo um gemido.
Aguardo um momento para retomar as forças. Ruslan não fala nada,
apenas me escuta com atenção, nunca pensei que fosse tão reconfortante tê-lo
aqui comigo.
— Mas com o tempo isso começou a me incomodar. — Volto a relatar
meu passado. — Não queria mais que ele me desse banho ou sentar em seu
colo, porque sempre que sentava sentia algo entre suas pernas se movimentar.
Era esquisito, ficava assustada. Sabia que o que estava fazendo não era certo.
Algo dentro de mim tinha certeza que era errado.
Abro os olhos e encaro o pouco de Kompot dentro do copo. O vermelho
me fez reviver os momentos que iniciaram meu pesadelo, que me levaram a
viver em um inferno.
— Então, um dia perguntei para minha mãe se homens podiam tocar
em mulheres. Seu olhar tinha um brilho estranho, até porque eu era uma, e
um pouco desconfortável, mamãe explicou que isso pode acontecer, mas
detalhou as formas certas. Foi naquele momento que tive a certeza que o que
James estava fazendo era errado. Eu iria contar à minha mãe no instante
daquela explicação, mas James nos interrompeu. Ele escutou toda a nossa
conversa. Seu olhar... seu olhar me apavorou. Nunca o conheci, aquele James
que eu amava, era tudo mentira.
Tomo todo o resto da bebida e rodo o copo na minha mão, perdida nas
lembranças.
— Eu tinha dez anos, três anos depois dele ter entrado em nossas vidas
e feito acreditar que me amava como pai que tudo ruiu. Eu não o permitia
mais me tocar e nem me dar banhos. Mesmo criança percebi que o tinha que
evitar, que não era certo o que vinha fazendo.
Encolho minhas pernas e faço o copo rolar em direção a Ruslan, que o
pega.
— O evitei o máximo que pude, só que foi o ponto crucial para
despertar o monstro pedófilo dentro dele. — Engulo a bile, sentindo repulsa,
me encolho com a recordação. — James ficou irritado, então em uma noite
ele entrou bêbado em meu quarto e... — Comprimo meu corpo, lembrando
nitidamente de tudo o que me fez. — Ruslan... doeu tanto, mais tanto que
pensei que não fosse suportar. Ainda sinto suas mãos pressionando minha
cabeça contra o colchão enquanto cometia o ato. Quanto mais eu gritava, com
mais força ele fazia. Quanto mais eu chorava, mais prazer ele sentia.
Solto um gemido enojado, passando as unhas no meu braço enquanto
mantenho meus olhos fechados, preso nesse dia.
— Acreditei que nunca iria parar. Parecia que estava me rasgando,
sentia tanto ódio de mim por não ter conseguido sair de suas mãos ao mesmo
tempo que desejava morrer...
Assusto quando as mãos de Ruslan me tocam. Abro os olhos,
encarando os seus cheios de aflição e dor. Encaro meus braços com os
arranhões das minhas unhas.
— Quando ele terminou, disse-me que mataria minha mãe se eu
contasse. Fiquei um tempo imóvel sem conseguir me mover. A dor era
intensa e quando fui me lavar... eu não parava de sangrar... — Minha voz
falha, balanço a cabeça segurando o choro de dor e humilhação. — Minha
mãe tinha viajado nesse dia para visitar um cliente muito rico, porque além de
ser uma prostituta e deixar claro isso para mim, ela também era
acompanhante de luxo. Eu não tinha ninguém... estava sozinha dentro de casa
com um monstro.
Levo as mãos ao meu rosto, limpando as lágrimas e sentindo raiva.
— No outro dia James me pediu desculpas, mas nada poderia apagar o
que ele me fez, fui marcada para sempre. Eu tinha medo dele, esse sentimento
o excitava, o atraía de uma forma... doentia. — Encaro os olhos de Ruslan,
revoltada. — O que foi uma vez se tornou duas, três, quatro... não parou
mais. Eu tinha medo de dormir, sabia que quando minha mãe fosse trabalhar,
ele faria de novo e de novo e de novo... — Engulo as lágrimas, fitando as
mãos de Ruslan.
— Tu nunca contaste à sua mãe? — Ele pergunta com a voz
embargada.
— James me ameaçava, eu tinha medo. — Umedeço meus lábios. —
Mas um dia, tomei coragem e disse que ele me machucava, só que James
sabia manipular as pessoas, minha mãe não acreditou em mim. Eu senti tanta
raiva, Ruslan... ela podia me dar de tudo, mas o mais importante, ela me
privou, que foi seu carinho e atenção. Mamãe se afundou na bebida e
começou a usar drogas, estava difícil para ela também. Ela sofria muito, mas
eu era sua filha, tinha que ser seu motivo de viver.
Balanço a cabeça sem acreditar que ela deixou que James fizesse isso
comigo. Se mamãe tivesse me ouvido naquela época...
— James sempre falava que eu despertava nojo nas pessoas, começou a
me afastar delas por medo de eu revelar alguma coisa. Não podia ter amigos
ou brincar com outras crianças, ele era rigoroso e conforme fui crescendo,
mais obsessivo James se tornou.
— E como parou aqui, na Ucrânia?
— Mamãe sempre prezou pelos meus estudos, dizendo que se eu
quisesse vencer na vida, seria através deles. Então me dedicava com a
esperança de encontrar uma saída.
Passo meus dedos na palma de sua mão, sentindo sua pele que tanto
reconforta.
— Quando completei quinze anos, decidi que mudaria para outro país,
o mais longe possível, um lugar que James não me encontraria. Pesquisei
vários e me apaixonei pela Rússia e Japão, dois lugares rigorosos com
pedófilos e que tinha pena perpétua e pena de morte, se ele viesse atrás de
mim, seria julgado rigorosamente. Só que precisava aprender a língua.
Quando pedi para minha mãe, ela não hesitou em pagar meus estudos, desde
que isso não me prejudicasse na escola e não contasse ao James por ele falar
que é desnecessário, ela pagaria nem que para isso tivesse que aumentar seus
clientes.
Faço uma pausa e seguro seu dedo recordando do sorriso e esforço da
minha mãe. Ela fazia de tudo por mim, fui egoísta com ela. Inspiro fundo
sentindo meu coração em frangalhos.
— Estudei escondido o russo e o inglês, pensei que nunca aprenderia
por ser muito difícil. Eu chorava de desespero, mas continuava, porque eu
sabia que essa era minha única oportunidade. Quase completando dezoito
anos, tomei uma atitude que poderia mudar a minha vida para sempre. Decidi
denunciar James, porque não aguentava mais. — Mordo meu lábio inferior,
sacudindo a cabeça. — Na primeira vez que compareci à delegacia, fui
tratada como um lixo, Ruslan. Eu disse que estava sofrendo abuso dentro de
casa, mas fui tratada com tanto descaso que desisti, levantei e fui embora sem
levar à frente a denúncia. Como pessoas que trabalham nesse ramo podem ser
tão frias? Como podem tratar uma pessoa mal, quando o que mais precisa, é
ser ouvida? Para que denunciar, se desconfiam da gente? — Balanço a cabeça
de um lado para o outro, olhando-o com indignação.
Solto o ar abruptamente, sentindo ódio por essas pessoas que fecharam
as portas quando mais precisei, permitindo-me continuar a sofrer por aquilo
que não merecia.
— Apesar do que aconteceu, eu tentei voltar, fui um dia depois da
escola, porém no meio do caminho James me impediu. Seu olhar insano foi a
resposta de que pegaria muito mais pesado do que vinha fazendo. Quando
chegamos em casa, James me espancou, só que ele era capaz de me machucar
e não deixar marcas. Como iria provar que me batia? Não tinha como! —
Solto uma lufada de ar, exausta. — Nesse dia ele acabou descobrindo que eu
pretendia fugir para o Japão depois de ter visto uma mensagem dizendo que
fui selecionada para o intercâmbio que me candidatei. James ficou furioso a
ponto de... — Fecho meus olhos sem conseguir dizer. — Ele me torturou o
dia inteiro como forma de punição e me trancafiou dentro de casa. Na frente
da minha mãe ele fingia ser o marido e pai maravilhoso mesmo sendo
sustentado por ela, fazendo com que eu mentisse. Ela nunca desconfiou.
— Mas você conseguiu? — Ruslan aperta minha mão, me dando a
força que preciso.
— Além de me inscrever para ir para o Japão, eu também me inscrevi
em uma faculdade da Rússia para jornalismo, eu precisava fazer uma prova,
tinha que tirar uma nota acima do que seria capaz de tirar. Só que eu
precisava, era minha única chance de ganhar essa bolsa integral. Então, fiz a
prova escondido e sem pensar em como viveria em um outro país sem
dinheiro. No dia do meu aniversário, recebi a carta de aceitação e que tinha
passado em terceiro lugar.
Inspiro fundo e expiro, lembrando do alívio que senti por ter
encontrado a carta antes de James.
— Como já tinha idade para tomar minhas próprias decisões, consegui
arrumar todos meus documentos, escondida de James. Minha mãe também
não fazia ideia, o dinheiro que me dava era para os cursos pré-vestibular que
eu dizia fazer. Ela estava radiante por eu querer ir para a faculdade, mas mal
sabia que um mês depois eu a abandonaria sem nem olhar para trás, levando
comigo todo o dinheiro que juntou durante anos. Espero que um dia ela me
perdoe por isso.
Comprimo meus lábios, deixando mais lágrimas escorrerem. Não faço
ideia de como reagiu, eu era sua garotinha, mas James e a bebida era mais
importante para ela.
— Foram anos difíceis, ninguém entendia a minha repulsa de ser
tocada, de me excluir e não conversar com ninguém. Consegui um trabalho
em uma biblioteca onde eu me mantinha afastada das pessoas. Em trabalhos
de grupo da faculdade, eu fazia o essencial sem me envolver com ninguém.
Eu era um fantasma nos corredores da faculdade, quebrada e sozinha, mas
agradecida por ter conseguido fugir. James continuou dentro da minha
cabeça, mas não podia mais me tocar e quando consegui um trabalho aqui na
Ucrânia, decidi que iria em busca de ajuda, não podia mais sofrer sozinha
com tudo o que me aconteceu, de algum jeito eu precisava me curar de toda
essa merda, e assim Olesya entrou em minha vida. — Prendo a respiração por
alguns segundos e fito os olhos de Ruslan. — E aqui estou!
Ruslan fica me encarando, absorvendo tudo o que contei. Dois mundos
completamente diferente se colidindo como o Big Bang, unindo duas almas
solitárias.
— Tu já percebeste o quanto és uma mulher forte? — Diz, quebrando o
silêncio. — Olha só para tudo o que viveu e lutou sozinha... olha tudo o que
suportaste.
— Não sei se sou tão forte...
— Na vida, sempre teremos dias bons e dias ruins. Dias que queremos
apenas desaparecer, mas outros em que levantamos prontos para lutar. Um
dia ruim não a deixa mais fraca, e sim, mais humana. — A convicção em sua
voz penetra meu coração.
— Estou lhe dizendo isso, Ruslan, porque serei para sempre marcada.
Tem coisas que não se apagam... não se esquece...
— Quem ama a rosa suporta os espinhos, lembra? — Assinto, Ruslan
se aproxima mais de mim.
— Eu não sou completa... — murmuro, encarando-o através das
lágrimas.
— Eu te completo! — Fala, segurando meu rosto. — Se tu estás
quebrada, eu conserto. Se tu caíres, eu te levanto. — Ruslan encosta a testa
na minha. — Mas permita-se ser amada por mim, da forma que merece...
Fecho meus olhos inebriada com seu cheiro, sentindo sua respiração
acariciar meus lábios. Quero poder ficar assim pelo resto da vida, pois em
seus braços tudo se cala... tudo se silencia como se nada fosse capaz de me
machucar enquanto estiver ao seu lado.
Envolvo meus braços em torno do seu pescoço, sinto-o suspirar antes
de me envolver em um abraço que jamais pensei sentir.
Inspiro seu cheiro, sentindo seu coração batendo contra o meu. Suas
mãos em minhas costas, firmes e grandes, me dão a certeza de que posso
superar e deixar tudo no passado.
Eu já dei o primeiro passo e o segundo...
Permiti que ele me beijasse e chegasse em meu coração...
Deixei com que me abraçasse pela primeira vez...
— Tu queres o Borsch ainda? — Aperto meus lábios e assinto sem
querer me desgrudar dele.
— Sim, chefe! — Confirmo com diversão, seu corpo estremece com
sua risada. Ruslan me afasta para que eu possa o encarar.
— Muitas coisas que vivemos não pode ser apagado. Será sempre um
fantasma, mas cabe a você deixá-los aprisionados ou libertos para te
atormentar a vida toda. Tu viveste no inferno, saíste de lá sozinha... Tu tens o
poder de escolher seu caminho, basta querer sair da escuridão. — Ruslan
enxuga minhas lágrimas com o polegar. — A vida não acabou, Laura, ela
ainda permanece, e ela quer te acordar para lhe mostrar a beleza da
felicidade, não se esqueça disso.
— Não vou! — Cochicho, ele sorri, entrelaçando os dedos em meus
cabelos.
— Obrigado...
— Pelo quê? — Seus olhos brilham de uma forma diferente, Ruslan
umedece os lábios e inspira fundo.
— Por ter ido na prisão... — Fala me puxando em direção aos seus
lábios.
Abro os olhos de uma vez, assustada por ter sido arrancada
bruscamente de um pesadelo onde era perseguida por alguém que se
misturava com as sombras. Sua imagem parada, bloqueando a única saída do
beco, pisca em minha mente.
Inspiro fundo lembrando da faca em uma das mãos e uma rosa na outra.
“Toda rosa estragada deve ser eliminada...” Sua voz ressoava através da
chuva e do trovão, como sussurro beijando meus ouvidos.
Sobressalto com o toque do celular que me arranca do torpor do
pesadelo. Viro de lado e me estico em direção ao criado mudo. Tateio a mão
trêmula até sentir a textura do celular, com os olhos semicerrados pela forte
luz que irradia da sua tela, leio o nome de Andry no identificador.
Deixo meu corpo cair para trás, suspiro antes de atender.
— Alô? — Minha voz arranha a garganta.
Fecho os olhos com sono.
— Laura, necessito que se arrume. — Informa Andry, agitado. — O
motorista que te enviei estás chegando na sua casa em poucos minutos.
Abro os olhos, franzindo o cenho. Afasto o celular da orelha e olho no
relógio que marca 04:00 horas da manhã.
— Meu horário é às oito, Andry! — Questiono.
— Yaroslav já está a caminho. — Ele ignora meu questionamento. —
Quero que tu registres tudo, antes das oito quero a reportagem pronta.
— Certo... hum... pode me explicar? — Impulsiono meu corpo para
frente, me sentando.
— Uma mulher foi assassinada esta noite, tudo indica ser mais uma
vítima de Ruslan Rotam. — Prendo a respiração quando calafrios me
percorrem e aloja em meu peito.
— Como?
— Tu não tens tempo. Se essa reportagem não estiver pronta no tempo
que lhe foi estipulado, Laura, não precisarás voltar para AS. — Abro a boca
para contestar, mas a linha fica muda.
— Babaca... — resmungo, não costumo xingar... aliás, nunca uso
palavras desse tipo, mas com Andry... quero colecionar palavrões.
É impossível Ruslan ter matado essa mulher por ter passado o tempo
inteiro comigo.
Me levanto com cuidado para não forçar muito meu tornozelo.
Caminho em direção ao receptor, mas não acendo a luz, apenas abro a porta
com cuidado, sentindo sob meus pés descalço o frio do piso de madeira.
Coloco as mãos na parede e espio Ruslan deitado com um livro aberto
repousado no seu peito nu. Rony está aninhado em seu pescoço enquanto
ambos dormem sob a luz da televisão e sussurros do desenho animado em um
sono profundo e tranquilo.
Suspiro. É a primeira vez que o vejo dormir tão em paz. Ando até o
banheiro e me arrumo sem fazer barulho. Trinta minutos depois, junto minhas
coisas e saio do apartamento sem que ele acorde.
Como Andry informou, o motorista já estava me esperando ao sair do
prédio. Ao longo do caminho repasso todo o momento em que me abri para
Ruslan, sentindo um alívio tão grande que nem sei explicar.
Mais um peso caindo sob meus pés.
Verifico minha câmera antes de descer do carro. Agradeço ao motorista
e encaro o aglomerado de policiais, paramédicos e a perícia em volta da
calçada. Uma faixa amarela circunda o lugar, afastando os curiosos que
perambulam pela madrugada.
Avisto Yaroslav vindo em minha direção com o rosto pálido.
— Uma merda tudo isso! — Afirma, assustado.
— Faz muito tempo que você chegou?
— Tens uns cinco minutos, mas não consegui me aproximar. — Lhe
entrego a câmera e aponto com o queixo para irmos.
— Precisamos de uma boa reportagem, ou então estou fora da AS.
— Andry te ameaçou também? — Ranjo os dentes de raiva.
— Ele soou sério.
— Fodido seja Andry! — Rosna com raiva. — Precisamos de uma boa
visão.
— Vamos nos esgueirar. — Digo, Yaroslav me fita preocupado.
— Mas tu não...
— Não temos escolha, ou temos? — Olho de soslaio para ele que nega
com a cabeça.
— Não temos — resmunga, andando ao meu lado.
Paro em frente à uma parede de corpos, há alguns repórteres querendo
uma visão tão boa quanto a gente. Fico na ponta dos pés em busca de um
caminho que me leve para mais perto da cena do crime.
— Laura!? — Congelo. — Estava esperando por ti! — Viro para trás,
encontrando com os olhos perspicazes de Artem.
Um sorriso estica em seus lábios moldados por uma beleza que julgo
ser injusta para uma pessoa de caráter vil.
— Oh meeeeerda.... — Yaroslav grunhe, olho para ele em advertência.
— Você não costuma xingar tanto — ele enruga o nariz sem contestar.
Volto minha atenção para Artem que vem ao nosso encontro com sua
farda policial, e com um sorriso largo, que me desperta vontade de arrancá-lo
jogando a câmera que Yaroslav segura em sua cara.
— Acredito que foi arrancada de sua cama para estar aqui.
— É o meu trabalho.
— Um trabalho que requer cuidados, não? — Artem passa a mão por
sua barba por fazer. — Ainda mais quando bisbilhota a vida alheia. — Ele
me lança um olhar sombrio, troco o peso do meu corpo para outra perna sem
me abalar.
— Assim como você tem que lidar com suas merdas, eu tenho que
lidar com as que me resignam. — Artem sorri, desviando o olhar.
— Me sigam, quero lhes mostrar algo interessante. — Seus olhos se
prendem em Yaroslav, tão indiferente que meu estômago revira.
Artem passa por nós, outros policiais abrem caminho para ele como se
o próprio fosse um rei. Olho para meu colega que retribui com um olhar
aflito.
— Registre tudo — peço, ele assente.
Sigo-o sentindo olhares curiosos e cheios de perguntas dos outros
profissionais. Um policial ergue a faixa amarela, permitindo nossa passagem.
Meus passos diminuem conforme me aproximo do corpo estirado no
chão, ensanguentado, perfurado e destroçado. Quem quer que tenha feito
isso, depositou toda sua raiva atacando-a brutalmente.
Yaroslav resmunga ao meu lado sem conseguir tirar minha atenção do
que antes foi uma moça cheia de vida e sonhos.
Seu rosto tem uma expressão de horror, olhos arregalados, apavorados.
Sua garganta, peito e barriga foram perfurados no que parecem ser mais de
dez golpes de faca. Sob a poça de sangue se encontra uma rosa vermelha.
Volto a encarar Artem que me observa fixamente. Um brilho de
decepção ultrapassa seus olhos como se quisesse me abalar com esse fato.
Mas mal sabe ele que a única coisa que me assusta é ser tocada, o
resto... é apenas... nada!
— Onde você quer chegar com isso? — Pergunto, Artem range os
dentes e desvia o olhar para o cadáver.
Olho de esguelha para Yaroslav, uma ordem silenciosa para que
comece a coletar as informações que precisamos.
— Queria te mostrar o estrago que Ruslan fez. Aquele que tu tanto
defendes. — Sinto o olhar de Yaroslav recair em mim, mas não desvio o meu
de Artem.
— Não foi ele — seu rosto gira em minha direção.
— Como podes ter tanta certeza?
— Você sabe que não foi. Nunca foi ele. — Artem me fuzila com um
olhar sombrio.
— Tu deverias tomar mais cuidado em quem acredita para não sofrer
depois. — Ficamos encarando um ao outro por um longo momento, Yaroslav
pigarreia.
— Alguma câmera pegou o momento do ataque? — Meu colega
pergunta, tentando quebrar o clima pesado entre mim e Artem.
Me agacho ao lado do corpo.
— Tu és muito corajosa, diria fria por ficar tão tranquila com essa
exposição — Artem fala, ignorando por completo a pergunta de Yaroslav,
apenas apontando em sua direção. — Diferente do seu colega que está quase
colocando as entranhas para fora.
— Isso não me assusta, mas sim quem fez. — Consto, fitando a rosa
encharcada de sangue.
“Toda rosa estragada deve ser eliminada” Balanço a cabeça,
recordando da gravação que Mirom me entregou, da voz do assassino e dos
gritos apavorados.
— Tu sabes quem foi.
— Não foi ele! — Afirmo de novo, me levantando.
— Laura?
— Por que não foi até hoje na minha casa em busca dele? — Indago
ficando estressada com seu jeito, Artem respira fundo. — É tão simples. O
que você e seu primo estão esperando?
Artem desvia o olhar, dando permissão para que os peritos voltem ao
trabalho. Me afasto, fitando-o.
— Você deveria acreditar nele — murmuro, Artem abaixa a cabeça.
— Em um assassino?
— Tem certeza que ele é realmente o assassino?
— As provas são concretas.
— Provas podem ser facilmente forjadas. — Artem esfrega o rosto,
sem dizer nada. — Ele é seu irmão.
— Dispenso — Artem age tão friamente, que prefiro deixar o assunto
morrer.
— Você não respondeu à pergunta de Yaroslav — ele meneia a cabeça,
encarando sobre o ombro os peritos cobrir o corpo da moça com um pano
branco.
— Estamos coletando as informações. — Responde, fitando Yaroslav
parado ao meu lado.
— Que informações tu tens nesse momento? — Ele pergunta,
retribuindo o olhar descrente do policial.
— Nada — Artem contorce os lábios. — Apenas uma moça na faixa de
20 anos, família muito rica... apenas o básico. — Ele balança a cabeça de
leve.
— Policial Artem Rotam? — Olho para o lado quando uma voz rouca e
forte corta nossa conversa.
O homem com um terno perfeitamente alinhado para a poucos
centímetros da gente, com dois policiais em seu encalço. Artem enrijece.
— Sim, no que posso lhe ajudar, promotor Alexey.
— Pelo visto me conhece. — Alexey sorri de lado, seus olhos se
prendem nos meus por alguns segundos antes de voltar para Artem.
Com meu cotovelo, cutuco Yaroslav, chamando sua atenção. Olho para
ele de relance, achando engraçado a forma que me encara. Inclino a cabeça
em direção ao que está acontecendo. Um aceno seu é a confirmação de que
ele entendeu o que quero dizer.
— Estou aqui com um mandado de prisão contra ti, Artem.
— Como dizes?
— Necessito que me entregues seu distintivo, sua arma e estenda seus
pulsos. Vamos pular a etapa padrão que diz “Você tem o direito de
permanecer calado e blá-blá-blá...” é demasiado cansativo esses protocolos.
— Alexey faz um sinal com dois dedos e os policiais avançam em Artem que
está tão surpreso que não reage.
— Mas que porra é essa? — Vocifera ao ser algemado.
— Vamos conversar, tenho algumas coisas a discutir contigo. —
Alexey responde com calma, ordenando com apenas um olhar que os
policiais o levem.
Artem me olha de relance com uma máscara inabalável antes de ser
arrastado, demonstra estar tranquilo, dando a entender que é apenas um mal
entendido. Alexey estala a língua, fito seu rosto marcado, maxilar quadrado e
olhos tão azuis que chegam a ser transparentes.
— Uma lástima! — Sussurra, olhando para mim e lançando um sorriso
triunfante antes de girar e seguir para o jipe escuro com a sigla SBU que o
espera.
— O que acabaste de acontecer aqui? — Exclama Yaroslav, fico
encarando as costas largas de Alexey sem ter a resposta.
— Você gravou?
— Sim, as fotos ficaram perfeitas. — Mordo meu lábio inferior,
encontrando com o olhar do meu colega, tão satisfeito quanto eu.
— Agora temos uma matéria completa e digna de capa. — Yaroslav
sorri com os olhos brilhando que nem uma estrela.
Tiro meu celular da bolsa e deslizo o dedo na tela até encontrar o
número de Aksinya. Levo ao ouvido. Aponto para os peritos, Yaroslav
assente e vai até eles.
— Eu — sua voz ressoa animada.
— Aksinya, preste atenção, preciso que seja esperta.
— Eu sou esperta. — Fala baixinho.
— Artem acabou de ser levado pela SBU. Pelo que entendi, ele tem
uma ordem de prisão. Quero que descubra tudo, porque talvez ele será capa
da AS nesta manhã.
— Informações exclusivas? — Pergunta.
— Creio que sim — olho para os outros repórteres, que tiram fotos sem
parar do jipe. — Eles estão saindo daqui o promotor responsável se chama
Alexey.
— Alex sei... — zomba do nome, rindo do outro lado da linha. — Esse
promotor é um babaca.
— Você o conhece?
— Por fofoca — responde, suspirando. — Estou indo para a sede da
SBU. Te ligo assim que souber de alguma coisa.
— Obrigada.
— Tudo bem, mas Alex sabe — caçoa, rindo de novo.
— Aksinya! — Sibilo, reprovando sua brincadeira.
— Certo, parei!
— Fico no aguardo — finalizo a ligação.
Respiro fundo e encaro Yaroslav, sentindo as pontas dos meus dedos
loucos para encontrarem o teclado do meu computador.
— Vamos para sua casa. — Declaro, fazendo-o me olhar estranho. —
Tenho algo muito sigiloso a te contar.
— Acredito que seja devido essa conversa que tu e Artem tiveram, não
é? — Assinto, Yaroslav suspira. — Estou tenso.
— Vai ficar mais ainda quando te contar, podemos? — Ele arqueia uma
sobrancelha.
— Okaaaay! — Aquiesceu ao meu pedido.
Só espero que eu esteja fazendo a escolha certa envolvendo-o nessa teia
de mentiras.
Aperto o enter, enviando toda a matéria para que Andry verifique antes
de ser publicada. Recosto na cadeira, encarando a tela do notebook.
— Está faltando quantos minutos? — Olho para Yaroslav sentado do
outro lado da mesa, comendo pão e tomando leite.
— Cinco para às oito. — Ele sorri, mastigando casualmente.
— Não seremos demitidos.
— Não dessa vez. — Suspiro, olhando o pequeno apartamento de
Yaroslav.
As paredes brancas reluzem com as cores amarela, azul marinho e
vermelha das almofadas do sofá em formato de L da cor bege. Samambaias
dão vida à cada cantinho onde estão.
— Como está seu namorado? — Pergunto, ele dá de ombros, encarando
o copo de leite.
— Estás bem... eu acho!
— Como assim “eu acho”?
Yaroslav suspira, dando um gole no leite.
— Não estamos em um momento muito legal. — Confessa, tristonho.
— Creio que terminamos.
— Sinto muito — ele me lança um sorriso fraco que não chega aos seus
olhos claros.
— Acontece o tempo todo. Tu acreditas em amor eterno?
— Não!
— Pois bem, eu também não. — Yaroslav se espreguiça, cravando os
olhos em mim. — Agora diga-me, o que tanto rodeia e não me dizes nada?
Aperto meus lábios em dúvida. Prendo meus cabelos, inclino para tirar
de dentro da minha bolsa o gravador e coloco na sua frente. Ele arqueia uma
sobrancelha.
Espero por um momento antes de apertar o play. Quando faço isso,
assisto o rosto de Yaroslav empalidecer enquanto escuta a voz do assassino e
da vítima.
Ele fica me encarando pasmo depois da gravação parar, estagnado
demais para formular as palavras.
Meu colega pega o copo e bebe todo o leite em um gole, mãos trêmulas
e olhos espantados.
— Puta merda — chia, incrédulo. — Sei que tu não gostas de
xingamentos, mas... que merda é essa?
— Lembra de quando o cachorro de Mirom me atacou? — Yaroslav
assente. — Em algum momento eu perdi minhas coisas, só dei falta do
gravador dias depois.
— E tu encontraste?
— Não — coloco meus braços em cima da mesa. — Mirom achou. —
Yaroslav ergue as sobrancelhas, umedecendo os lábios.
— Certo... espera... — Ele franze o cenho. — Então foste ele quem lhe
entregou essa gravação? — Assinto. — Se Mirom tem isso aí gravado, indica
que...
— Talvez ele saiba quem é o assassino.
— Mas pode ser Ruslan.
— Não é ele, Yaroslav.
— Por que tu defendes tanto ele? — Coço minha cabeça, contraindo
meu rosto. — Por que tu disseste com tanta confiança que não foi ele quem
matou a moça de hoje? O que escondes, Laura?
— Ele — revelo, me levantando. — Eu escondo Ruslan Rotam em
minha casa desde que fugiu da prisão. — Yaroslav me encara boquiaberto.
Seus olhos esbugalham de um tanto que penso que irá escapulir.
— Lauraaaaa.... — Sibila, em choque.
— Não sei o que aconteceu, mas desde o momento em que cravei meus
olhos nos dele, senti algo dentro de mim... mudar. É como se eu me visse
nele. Como se nossas almas se conectassem e se tornassem uma só. A sua
dor, era a minha quando o entrevistava, ou quando invadiu minha casa, ou...
ou quando me pediu ajuda.
Esfrego meu rosto, arfando e andando de um lado para o outro na sala.
— Ele... ele me beijou.
— O QUÊ? — Yaroslav grita tão alto que sobressalto, olho para ele
que está prestes a cair morto no chão.
— Ruslan ultrapassou um limite que nunca ninguém foi capaz.
— Ele pode ser um assassino, Laura. — Suspiro, assentindo.
Sim, ele pode ser, mas não é!
— Eu sei...
— Céus, colega. — Yaroslav se levanta. — Não faço ideia do que tu
passaste, sei do seu problema de não poder ser tocada. Imagino até o que lhe
tenha acontecido. Mas ao mesmo tempo, o fato dele ter chegado tão perto de
ti me alegra, também me apavora, porque... Ruslan é uma alma condenada a
viver trancafiada. Não tem futuro.
Mordo meu lábio inferior e fecho meus olhos ao sentir suas palavras
como um soco em meu estômago, escutando-o concluir.
— Se provarmos que ele não é o Serial Killer que todos julgam ser, não
anula os crimes que ele cometeu dentro da cadeia. Sabemos disso. Ruslan se
tornou um mercenário, Laura, por isso que o isolaram.
— Ele não teve culpa do que fizeram...
— Sim, mas... — Abro os olhos, Yaroslav me encara com dor. —
Ninguém sabe o que ele teve que viver lá dentro. O que teve que suportar
sozinho.
— Assassinar alguém é um erro! — Ele diz. — Quando as mãos são
cobertas por sangue, nada pode limpá-las, estarão manchadas para o resto da
vida.
Fico encarando meu colega, balanço a cabeça e me sento no sofá,
deitando a cabeça no encosto. Encaro o teto.
— É tarde para isso — respondo baixinho.
— Por isso aquela conversa estranha com Artem?
— Eles têm certeza que estou escondendo Ruslan, só que não fazem
nada para provarem isso.
— Por quê? — Dou de ombros.
— É o que quero descobrir.
— A gravação, você acha que... — Yaroslav se cala, compreendendo
tudo. — Um aviso... Mirom te deu um aviso!
— De que se eu não parar as investigações, ou continuar a bisbilhotar
suas vidas, poderei ser a próxima vítima.
— Agora pronto! — Resmunga, exasperado. — Andry nunca disse que
nossa missão viria com ameaças.
— Quero descobrir a verdade. Os motivos do porquê fizeram isso com
Ruslan. — O sofá afunda quando Yaroslav se senta ao meu lado.
— Tu estás apaixonada... — Ele murmura. — Tinha que ser logo com
um cara todo enrolado? E depois? O que fará quando tudo acabar?
Levo as mãos ao rosto, aperto meus olhos soltando a respiração
bruscamente com uma dor enorme no peito.
— O deixarei ir.
— Tu vais sofrer...
— Me acostumei com o sofrimento, Yaroslav, posso suportar mais um.
— O sofrimento do amor é diferente. — Viro o rosto, encontrando com
seu olhar. — A dor é mais intensa, a saudade machuca e é como se estivesse
sendo sufocado a todo instante. A angústia de nunca saber que aquela pessoa
estará ao seu lado é... perturbadora.
— Não tenho escolha.
— Tem, a de não se envolver. — Inspiro fundo, desviando meu olhar e
encarando a luz que irradia do lustre.
— Já me envolvi, não há mais volta... quero mais, aproveitar o pouco
tempo que me foi dado... quero me sentir viva e amada. — Yaroslav solta um
suspiro. — Quero que o amor me cure de toda essa dor que sinto por tantos
anos. Quero... reviver.
— Tu mereces...
— Nós merecemos ser felizes, Yaroslav. — Volto a encará-lo.
— Você pode encontrar o amor de novo, se não der certo. Mas eu...
essa será a minha única chance, porque quando Ruslan se for, tudo se fechará
de novo.
— Tu podes tentar com outra pessoa. — Nego com a cabeça, olhos
pinicando e nariz ardendo por causa do choro que estou reprimindo.
— Pessoas quebradas como eu, só tem uma chance para amar. —
Inspiro fundo, apertando os lábios.
— Vai dar tudo certo...
— E se não der? — Fecho os olhos, lágrimas escorrem
involuntariamente.
— A gente faz dar certo. — Levanto minha mão e a levo para
Yaroslav.
Olho para ele através das lágrimas, notando-o congelar ao perceber que
estou pedindo por sua mão. Tantos anos ao meu lado, compartilhando
momentos, dividindo tarefas e compreendendo que ambos têm segredos. Mas
nunca deixamos um ao outro, sempre respeitando o silêncio do outro.
Sua mão entrelaça na minha, seus olhos se enchem de lágrimas. Afasto
a sensação de repulsa. Yaroslav deita a cabeça em meu ombro como se fosse
uma criança depois de ter sido magoada.
— O que aconteceu com você? — Sussurro, encostando a bochecha em
seus cabelos lisos. — Sou tão egoísta.
— Por que dizes isso?
— Porque acreditei que eu era a única que sofria. — Yaroslav acaricia
minha pele com o polegar.
— Todos os dias vestimos nossa armadura a fim de esconder aquilo
que dói. Meu sorriso é um deles. — Fecho meus olhos, inspirando seu cheiro
e permitindo ser aconchegada por seu calor.
Ficamos em silêncio por longos minutos. Aproveito a sensação de paz
que se alojou dentro de mim. Mesmo que as palavras de James entoem em
minha mente em um sussurro abafado, a sensação de repulsa e a linha que
tende a me puxar para o escuro, eu resisto a todos eles.
— Mirom sabe do meu passado. — Confesso.
— Ele sabe de alguma coisa desse caso. — Yaroslav consta incerto.
— Artem e Mirom...
— O que faremos? — Ele se afasta para me olhar.
— Eu tenho uma ideia que pode ser idiota.
— Conte-me! — Umedeço meus lábios e me levanto.
— Artem e Mirom ainda moram com Okasana, pelo menos é o que
acho. — Mordo meu lábio. — Ela é o nosso caminho.
— Não compreendi.
— Se nos aproximarmos dela, Okasana será mais aberta em relação aos
seus filhos, o que indica que teremos mais espaço para investigar.
— Tu estás pensando em...
— Aquela casa pode esconder o que estamos procurando. — Declaro,
fitando o rosto de Yaroslav.
Olho para trás quando meu celular apita. Vou até ele, deslizo o dedo
para ler a notificação.
— Estamos nas manchetes — Entro no site da AS e leio um pedaço do
que foi escrito — Oficial Artem foi preso nesta manhã por corrupção, no
mesmo dia em que mais uma suposta vítima de Ruslan Rotam foi
encontrada... — Olho para Yaroslav. — A carreira de Artem está escorrendo
pelo ralo.
— Será? Corruptos sempre se safam. — Comprimo meus lábios.
— Então vamos encontrar mais sujeira dele. — Lanço um olhar
determinado em direção a Yaroslav.
— Somos jornalistas investigativos agora...
— Responsáveis por expor a verdade, doa a quem doer. — Yaroslav
estica os lábios em um sorriso triunfante.
— Vamos fazer nosso nome cair na boca de todo mundo. Vamos
encontrar o verdadeiro culpado, Yaroslav.
— E livrar Ruslan das acusações. — Assinto.
— Também, mas além de tudo, vamos fazer justiça a todas as mulheres
que sofreram nas mãos desse infeliz de merda.
— Custe o que custar.
— Sim, custe o que custar... — Confirmo com uma determinação que
jamais senti.
Ruslan é inocente e farei todos engolir suas acusações, mesmo que ele
volte para a cadeia, que morra dentro dela, eu revelarei a verdade para que
possa pelo menos, voltar com a cabeça erguida.

Desço do ônibus depois de um dia tumultuado. Após deixar a casa de


Yaroslav, fomos para a AS que fervilhava por causa da notícia de Artem.
Andry ficou satisfeito, mas não demonstrou muita emoção. Apenas
resmungou um bom trabalho e se trancou em seu escritório. Ajeito a bolsa no
meu ombro e cruzo os braços a fim de me proteger do vento gelado.
Ando apressada querendo chegar logo em casa. Por ser um bairro
perigoso, pouco iluminado, o risco de ser assaltada é muito maior do que
durante o dia.
Suspiro de tão cansada, Andry suga todas as nossas energias.
Inspiro fundo, viro a esquina de casa com um alívio se alojando em
minhas entranhas e paro de uma vez. Carros cercam meu prédio. Homens
encapuzados, fardados e armados fazem a guarda.
O que está acontecendo?
Mirom e Artem são policiais... droga, Ruslan...
Meu coração bate desesperado, eles demoraram a ir atrás de Ruslan,
mas essa demora acabou e aqui estão eles.
Forço-me a caminhar. As luzes das ambulâncias e das viaturas
iluminam todo o lugar. Os paramédicos correm para dentro do prédio com
duas macas. Engulo em seco.
Passo por um dos policiais, ele apenas me encara. Os murmúrios me
deixam assustada, há três vizinhas minhas chorando em desespero, as ignoro
e olho para cima.
A janela do apartamento acima do meu tem um buraco. Desço meus
olhos como se estivesse vendo uma pessoa caindo por ela. Um corpo está
estendido no chão com um pano branco ensopado de sangue.
Calafrio me faz estremecer. Olho para os policiais sabendo que nenhum
deles me contará o que está acontecendo. Resolvo entrar.
— Senhora, tu não podes entrar — um policial intervém, olho para ele.
— Minha casa é no andar de baixo — ele me avalia. — É a minha casa.
— Tudo bem. — Ele diz, me dispensando sem parar de me encarar.
Um jipe me chama atenção, prendo a respiração por alguns segundos
antes de entrar no verdadeiro caos.
Choro inconformado e gritos de dor estremecem as paredes velhas e
descascadas. Parece que estou entrando no inferno, na devastação de vidas
humanas.
Engulo em seco, chegando no meu andar, mas tentada a subir mais um
hall de escadas para espiar o que houve. Encosto na parede ao avistar um
paramédico correndo na frente, então mais dois aparecem carregando uma
maca com um corpo ensanguentado em cima.
Eles passam por mim apressados, não consigo identificar a vítima por
estar coberta, mas levando em conta a quantidade de sangue... quem quer que
seja não está no seu melhor momento.
Um grito horrível soa do andar de cima. Como se estivessem
arrancando sua alma dolorosamente. Meus pelos eriçam e decido ir para casa.
Sou uma jornalista cagona, não irei me meter nesse assunto.
Engulo o caroço alojado na garganta e me encaminho até meu
apartamento. Com as mãos trêmulas, empurro a porta entreaberta.
Alguém está aqui e não é Ruslan.
Meu coração entoa desesperado contra meu peito.
Mais gritos, choro e gemidos.
Paro e encaro a figura vestida de preto curvada no balcão da cozinha
enquanto roda um copo que parece ser de água.
Como ele entrou aqui?
Mirom ergue a cabeça lentamente, me atingindo com o poder que
irradia por ele. Olhos verdes cravados nos meus, frios e implacáveis, tão
sombrios que não duvido que já tenha visto o inferno.
Ele sorri para mim como se estivesse acabado de capturar sua presa.
— Boa noite, Lauriana.
Meu sangue lateja por todo meu corpo enquanto estagnada o encaro.
Mirom dá um aceno curto, me lançando um olhar cético. Ele levanta uma
sobrancelha, parecendo impaciente e mais frio do que das outras vezes que o
encontrei.
— Bem, estás a planejar ficar aí empacada? — Ousado e perigoso, são
exatamente essas atitudes que o deixa atraente no final de tudo.
Engulo em seco e fecho a porta atrás de mim, reparando-o me estudar
com um olhar intimidante.
— O que faz aqui? — Encosto na porta, pronta para fugir. — Como
entrou aqui?
Mirom sorri.
— Não és assim que tu recebes um convidado.
— Convidado? — Ele é muito cínico... — Você invadiu minha casa.
— Tu sabes o que aconteceste no andar de cima? — Mirom se afasta
do balcão e abre a porta da minha geladeira.
— Quero que vá embora!
— Uma chacina. — Me ignora, procurando algo lá dentro. — Um
esposo ciumento, um amante que acha ser blindado. Um filho enfurecido e
uma esposa louca. — Ele retira de dentro da geladeira duas bandejas, uma de
presunto e outra de queijo, e acrescenta: — Sabes o que acontece quando
tudo isso se junta?
— Uma chacina. — Mirom sorri, sem me olhar.
— Garota esperta.
Ele pega um tomate. Meus batimentos aceleram ao vê-lo empunhar
uma faca. Seu olhar se encontra com o meu. Um brilho de satisfação estampa
seu rosto, fazendo-me acreditar que seus pensamentos assassinos estão muito
mais aguçados agora.
Prenso as costas na porta.
— Só que tens coisas que não temos o controle. Matar nunca é um erro,
porque erros tu consertas. Quando tu apontas uma arma na cabeça do seu
adversário, é um caminho sem volta. Neste momento não há falha, ou apertas
o gatilho ou morre.
— Por que está me contando isso? — Mirom abaixa a cabeça e começa
a picar o tomate.
— Estou a explicar o que aconteceste enquanto estavas fora.
Ele abre meu armário e apanha um saco de pão, concentrado em montar
dois sanduíches.
— Tu já mataste alguém, pequena? — Comprimo meus lábios.
— Onde você quer chegar com isso, Mirom?
— Quando se mata pela primeira vez, tu sentes como se estivesse sendo
sugado para dentro do inferno. — Ignorada de novo, Mirom continua a
montar os sanduíches. — Tu sentes dentro de si algo morrer, desaparecer.
Parte da nossa alma é arrancada, como uma dívida sendo cobrada pelo
demônio. E a cada morte, mas tu perdes sua alma até não sobrar mais nada
dela, apenas pó... ou o rastro do que um dia existiu.
Fico observando-o pegar dois pratos. Mirom coloca os sanduíches um
do lado do outro em cima do balcão, espalma as mãos no mármore e me
encara através dos cílios longos e marcantes que realça a cor ofuscante de
seus olhos
— Escolha um — diz, com um sorriso prepotente. — Mas seja esperta,
um deles poderá te matar.
O ar dos meus pulmões é sugado ao mesmo tempo que uma névoa
gelada ultrapassa cada parte do meu corpo.
Mirom só pode estar brincando... eu o observei o tempo inteiro, desde o
momento em que começou a montar os sanduíches. Ele não colocou nada
neles... a não ser antes de eu chegar.
— Te parabenizo pela reportagem de hoje sobre Artem.
— É o meu trabalho, apenas. — Murmuro.
— Lauriana — ele umedece os lábios, — sabes quantos jornalistas
desaparecem durante o ano na Ucrânia? Ou foram mortos nesse tempo?
— Muitas pessoas são assassinadas diariamente...
— Não estou a falar de pessoas, mas de jornalistas. — Me corta com
frieza. — Ninguém gosta de ratos bisbilhotando a vida alheia, muito menos
expondo segredos para o país inteiro ver.
— Onde você quer chegar, Mirom? — Repito a pergunta, rangendo os
dentes.
— Foram quatro jornalistas mortos só na metade deste ano...
— Policiais morrem muito mais do que jornalistas. — Retruco,
escondendo as mãos trêmulas atrás das costas.
— Sim, mas jornalistas não sustentam uma arma, ou vão para guerra de
facções... Jornalistas são pagos por fofocarem e xeretarem o que não lhes
dizem respeito. — Ele morde o lábio inferior, enrugando o nariz de raiva. —
Jornalistas são como baratas. E sabes o que fazemos com baratas, Laurinha?
— Engulo em seco outra vez. — Exterminamos.
— Você está me ameaçando dentro da minha casa? — Mirom gargalha,
apontando para os pratos.
— Escolha um, e vamos ver quantas vidas tu tens, gatinha! — Olho em
volta. Ruslan não está aqui, obvio, mas e...
— Onde está meu gato?
— Que gato? — Pergunta, franzindo o cenho.
— Meu gatinho, você o assustou. — Afasto da porta, deslizo a bolsa
por meu braço e a coloco na mesa.
— Talvez esteja morto a essa altura. — Congelo, ele não...
— Você não matou meu gato, matou? — Mirom fica me encarando
com um sorriso tão... tão... nojento que me seguro para não avançar em sua
direção.
Fecho as mãos em punho.
— Uma pena... — Comprimo meus lábios e seguro minha língua. — O
bom é que tu podes adquirir outro animal...
— Animal não é um objeto! — Mirom sorri. — Amor não se
substitui...
— Pouco me importo. — Desdenha, batendo o anel em seu dedo anelar
no vidro do prato. — Pena que as sete vidas dele foi apenas ilusão.
— Você é desprezível... — Digo, enojada.
— Não és a primeira a me dizer isto.
— Onde está Rony?
— Rony... um belo nome para um gato pulguento. — Aperto minhas
mãos com mais força. — Debaixo da roda do meu jipe, foi delicioso vê-lo
agonizando até dar seu último suspiro.
Lágrimas escorrem por meu rosto, não de tristeza ou medo, mas de
raiva... lágrimas de ódio. Porque na minha frente vejo um homem como
James... sem nenhum escrúpulo.
— O que você quer?
— Venha, se aproxime, Lauriana. — Mirom se inclina para baixo e de
repente coloca um aquário redondo com três peixinhos amarelos nadando em
círculo.
— Quero que saia da minha casa.
— Ou? — Ecoa com a atenção focada nos peixes. — Lindos, não é?
— Vou chamar a polícia... — Mirom solta uma risada que faz calafrios
percorrerem minha espinha.
— Tu sabes quem eu sou?! — Ele me olha. — Estou acima de qualquer
polícia local... uma palavra, Laurinha, apenas uma ordem, e tu estás em meu
poder.
— Ruslan não está aqui, pelo que pode ver.
— Tem roupas de homens, pena que se foi antes de eu chegar. —
Umedeço meus lábios, desviando do seu olhar cruel.
— Alguém já lhe disse que é feio mentir? — Cantarola, comprimo
meus lábios. — Eu estou a par do seu passado, uma boa mentirosa sempre és
uma mentirosa.
— Não me ofenda, Mirom.
— Será que não foi realmente por tua culpa? Olha para ti! — Seus
olhos descem por meu corpo com malícia. — És capaz de despertar o desejo
de qualquer homem... O que ele fez contigo foste culpa sua, não? — Minha
boca se abre em choque.
O que ele está falando?
— Vamos lá, tu mereceste o que aconteceu contigo. — Meu peito
aperta com sua declaração doente... esse cara é...
— Você não sabe o que diz.
— Sei perfeitamente! — Rebate, encarando os peixes. — Mulheres só
servem para destruir nossas vidas, então sim, tu mereceste.
Balanço a cabeça, incrédula com suas palavras. Em segundos paro há
pouco centímetros dele, encarando o fundo de seus olhos com raiva
borbulhando em minhas veias.
— Estuprar uma criança é certo? — Um brilho ultrapassa seus olhos,
uma máscara impenetrável. — Não seja estúpido ao ponto de proferir
palavras tão baixas como essas. Você nunca esteve na pele de uma mulher
que foi estuprada desde a infância, violada e privada de qualquer tipo de
felicidade. Cale-se quando você não está na pele de uma mulher que é
espancada pelo marido e silenciada. Cale a porra da boca quando não faz
ideia do que é viver em um relacionamento abusivo. Você é um monstro
psicopata de merda.
Mirom sustenta meu olhar. Não consigo interpretar sua expressão dura
como rocha.
— Tome muito cuidado, Mirom, porque você não sabe o que é viver no
inferno dentro de sua mente.
— Apenas escolha um dos sanduíches. — Exige com a voz fria e sem
um pingo de emoção.
Trinco os dentes, olho para os sanduíches sem acreditar que acatarei
sua ordem. Com a respiração acelerada, pego o sanduíche do lado direito e o
levo à boca, mordendo com cuidado.
Volto a encarar seus olhos em desafio, ele me analisa em silêncio
enquanto mastigo devagar. O canto de seu lábio se curva em um sorriso
pequeno. Tento respirar pausadamente para controlar a sensação de pavor.
— Ótima escolha. — Consta, pegando o outro sanduiche e esfarelando
o pão dentro do aquário.
Os peixes começam a comer desesperados e segundos depois eles
começam a boiar... mortos.
Paro de mastigar com os olhos arregalados.
Meu coração bate tão rápido que me sinto ofegante.
De fato, ele envenenou o sanduíche e... eu escolhi o certo. Mirom se
vira para mim, sério.
— Esse é o último aviso que lhe dou. — Ele se inclina, ficando tão
perto do meu rosto que sinto sua respiração se misturar com a minha. — Se
continuar a xeretar minha vida, Lauriana, seu fim será igual daqueles peixes.
Mirom passa por mim, esbarrando em meus ombros. Aperto o
sanduíche contra minha mão. Suas palavras me atingem como um soco no
meu estômago, cheia de promessas.
Ele abre a porta e encaro-o, engolindo o pedaço que desce rasgando a
garganta.
— Como... — pigarreio. — Como sabia que eu escolheria o certo? —
Mirom me olha e sorri mais uma vez.
— Eu não sabia — falando isso ele sai porta a fora me deixando
completamente desorientada.
Enterro meu rosto molhado entre as mãos trêmulas. A náusea pressiona
meu estômago enquanto tento me acalmar. Não consigo acreditar que Mirom
tentou me envenenar e que... e que matou Rony.
Afasto minhas mãos e volto a enchê-las, jogando água em meu rosto,
evitando ser puxada para a escuridão de novo. Para o pesadelo que acreditei
ser possível esquecer.
Mirom não é James... então por que sinto tanta semelhança?
Olho-me no espelho, vermelha de raiva e por causa do choro. Quero
poder arrancar sua cabeça e jogar aos porcos.
Inspiro fundo... mais fundo e mais fundo... tentando encontrar meu
autocontrole, a força para não sucumbir à crise e a vontade de me arranhar.
Não deixarei que esse psicopata me desestruture dessa forma.
— Rony... — Chamo com a voz dolorosa, lágrimas voltam a escorrer
por meu rosto. — Droga... — Apanho uma toalha e enxugo meu rosto e volto
para sala. Ainda consigo escutar a movimentação dos policiais do lado de
fora, apesar dos choros e gritos terem cessados.
Estou sozinha e pela primeira vez depois de tantos anos em que moro
nesse apartamento, sinto medo.
Medo de quem possa entrar... medo de estar sozinha.
Encaro o arranhador de Rony e uma dor dilacerante aperta meu coração
com a certeza de que nunca mais o verei.
Ruslan ficará arrasado, ele era apaixonado pelo gato.
Como pode existir uma pessoa tão baixa a ponto de descontar seu ódio
em um pobre animal?
Engulo o nó que se forma na garganta e fito o aquário com os peixes
boiando sem vida. E se eu tivesse escolhido aquele sanduíche? Eu estaria
morta nesse momento?
— De certo que sim... — murmuro, suspirando sem saber o que fazer.
Meu celular apita fazendo-me saltar de susto. Vou até ele, desbloqueio
e fico congelada olhando para a tela. Um número desconhecido acaba de me
enviar uma mensagem. Parte de mim não quer saber do conteúdo.
E se for Mirom?
Balanço a cabeça tomando coragem e abro a mensagem que está
escrito: Estou no quarteirão abaixo esperando por ti. Franzo a testa sem fazer a mínima
ideia de quem possa ser a essa hora da noite. Não que nove horas seja tarde,
mas...
Uma outra mensagem chega com apenas “Pequena flor” escrito. Meu
coração acelera, deixo o celular no balcão e saio em disparada.
Diminuo meus passos ao chegar do lado de fora para disfarçar e não
despertar a curiosidade nos policiais que ainda fazem a vigia do prédio.
Meus olhos são direcionados para onde o jipe estava estacionado mais
cedo. Vou até lá relutante, só que não encontro nada que indique que Rony
foi atropelado.
Ando em volta, procurando seu pequeno corpo, tão frágil. Estremeço só
de imaginar aquele monte de metal esmagando-o. Fecho meus olhos, incapaz
de suportar essa dor e vou de encontro a Ruslan.
Olho por cima do ombro para ver se alguém me seguiu. Os policiais
permanecem focados no que estão fazendo. Viro para frente prestando
atenção no caminho e ajeito meu casaco.
De súbito levo a mão à boca, abafando um grito assustado ao ver uma
figura se movimentar na escuridão do beco há poucos metros de mim.
Ruslan sai do breu, parando diante de mim, me analisando
minuciosamente. Embora esteja com uma expressão fria, seus olhos tem um
brilho desolado.
— Ele machucou-te? — Sua voz sai baixa, ele se aproxima e segura
meu braço, me levando para dentro do beco. — Diga-me, aquele desgraçado
te machucou?
Nego com a cabeça quando me encosta no muro, se inclinando para
encarar o fundo dos meus olhos. Seu aperto se intensifica e sinto suas mãos
tremerem.
— Estou bem — asseguro.
Ruslan inspira fundo, fecha os olhos e gira, acertando o punho no outro
muro. Seu corpo inteiro se retesa ao ponto de tremer.
— Ruslan... eu estou bem...
— Bem? — Ele me olha por sobre o ombro. — Mirom fodeu com sua
cabeça, deixando-a apavorada. Filho da puta desgraçado! — Ele afasta do
muro, andando de um lado para o outro.
— Você sabia que ele estava lá?
— Desapareci quando a merda toda começou no andar de cima. — Ele
para de andar e tira o capuz. — Começou com uma briga que evoluiu para
algo pior. Por isso saí, mas fiquei na espreita te esperando. O cara foi jogado
pela janela... — Ruslan faz uma pausa. — Minutos depois a polícia chegou e
junto com eles, Mirom.
— Isso durou quanto tempo?
— Uma hora e meia até a polícia chegar. Mirom entrou e não saiu
mais. Naquele instante entendi suas intenções. Ele sabia que eu estaria
vigiando...
— Não pense muito nisso, eu estou bem! — Garanto a ele,
desencostando do muro e ocultando a parte do veneno.
— O que ele disse a ti? — Passo a língua nos dentes, escolhendo as
palavras certas.
— Um monte de merda. — Ruslan me olha e sorri segundos depois. —
E agora?
— Não vou poder mais ficar aqui... contigo. — Nosso olhar se prende
um no outro, meu coração parece se partir em pequenos pedaços.
Eu não quero que ele vá.
Abaixo a cabeça quando meus olhos ardem.
— É demasiado perigoso agora. — Assinto, evitando encará-lo.
— O Rony... o Mirom... — Engulo as lágrimas, mas não volto a falar,
por não conseguir proferir as palavras que dói.
— Tu se apegaste demais... — Ele diz, ergo a cabeça quando para à
minha frente.
— Eu sabia que isso iria acontecer, mas... não tão cedo. — Ruslan
respira fundo e segura meu rosto. Inclino para o lado, apreciando o calor da
sua mão.
— Tu não me contaste tudo sobre Mirom. — Fecho meus olhos,
incapaz de segurar minhas emoções.
— Não quero que você vá... — Confesso, sendo beijada pela delicadeza
do vento de verão.
— Laura? — Abro os olhos, surpreendendo-me com sua aproximação.
Ruslan não diz nada, apenas fita meu rosto antes de enlaçar seus lábios
nos meus. Ele desliza as mãos até minha cintura e me empurra até o muro,
prensando meu corpo com o seu, me enjaulando.
Sua língua se encontra com a minha em uma dança em meio às
sombras. Deslizo as mãos por seus braços, sentindo seus músculos se
contraírem com meu toque. Sua respiração acelera e entrelaço seus cabelos,
querendo-o mais perto de mim... querendo que fique comigo.
A maneira que Ruslan me faz sentir é como se velas fossem acesas, não
de uma vez, mas aos poucos. Uma por uma. Será que há algo que eu possa
fazer para mantê-lo ao meu lado?
Será que existe a possibilidade de ele permanecer sempre aqui?
Curando-me todos os dias?
Sinto-me afogando em seu calor. Seus braços me levando para mais
perto de si... me embebedando pelo sabor de sua boca e permito-me ser
banhada por essa sensação inebriante.
Ruslan desfaz o beijo, mordendo meu lábio inferior e desce por meu
pescoço, mordiscando e roçando sua barba por fazer em minha pele, me
irrompendo em arrepios.
— Tu não podes — sussurra em meu ouvido, encolho-me quando
mordisca o lóbulo da minha orelha — beijar-me tão deliciosamente desta
forma, Laura. — Diz, passando a língua em meus lábios. — Tu estás me
enlouquecendo!
Assinto e abro a boca para respondê-lo, mas nada sai. Estou tão
consumida por Ruslan que fico sem palavras, sua mão segura minha nuca.
— Abra os olhos, pequena flor — pede, obedeço. — Tomes cuidado,
okay? Procure um novo lugar para morar, aqui não é seguro para ti. Até lá
pedirei para que Kliment fique de olho.
— Não preciso... — Ele me cala com um balançar de cabeça.
— Mirom e Artem podem usá-la para me atingir. — Ruslan aperta os
dentes. — Não sei se ter vindo de encontro a ti foi uma boa ideia.
— Você me tirou do abismo. — Seus olhos estremecem.
— Tu me tiraste de lá também. — Ele beija minha testa. — Vou estar
por perto, quando menos esperar, estarei com minha boca colada na sua.
— Promete? — Ruslan fica me encarando, vejo em seus olhos uma
bagunça de sentimentos.
— Vou tentar, pequena flor.
— Cuidado, por favor. — Ele assente, colando seus lábios nos meus
por longos segundos antes de se afastar.
— Rony?! — Ruslan chama e um gato negro de olhos amarelos como o
sol sai da escuridão miando. — Cuide bem da nossa flor, pequeno.
Aperto meus lábios quando eles começam a tremer. Meu peito aperta
de alívio por ele não estar morto.
— Eu pensei... pensei que Rony... — Engasgo com as palavras,
agacho-me e pego-o no colo.
— Sai com ele em meus braços. — Ruslan revela.
Assinto de leve, acariciando e estudando o rostinho delicado de Rony
que ronrona. Mirom mentiu, jogou sujo comigo. Trinco os dentes para evitar
xingá-lo mais do que estou fazendo mentalmente.
— Vou cuidar bem dele. — Asseguro, levantando a cabeça.
Ruslan assente e coloca o capuz me lançando um olhar de despedida
que parte mais ainda meu coração.
— Eu voltarei... — Ele sussurra antes de sair andando.
Ruslan se esgueira pela noite de modo imperceptível, como uma brisa,
escondendo por trás da alma um passado conturbado.
Aperto Rony em meus braços antes de encontrar com seus olhos cheios
de vida e segredos.
— Vamos para casa, garoto.
— Tu tens que se acalmar, garoto! — Olho para Nikita por alguns
segundos, sua tranquilidade me deixa ainda mais nervoso.
Volto a andar de um lado para o outro, querendo quebrar qualquer coisa
que possa obter alívio. Preciso encontrar um caminho que me leve ao
verdadeiro culpado. Ele agiu antes do tempo previsto.
— Precisamos ir ao médico...
— Não vou — corto-o, enchendo um copo de vodca e entornando todo
o líquido. Faço uma careta por causa do álcool.
— Precisamos cuidar da sua mente fodida.
— Precisamos encontrar o culpado. — Enfatizo, enchendo o copo mais
uma vez. — O que adiantou entregarmos aquela papelada para o promotor
que tu alegaste ser bom se Artem conseguiu se safar? — Nikita cruza os
braços.
— Temos que ir com calma, não é assim tão rápido.
— Catorze anos, Nikita... Catorze longos anos trancafiado por crimes
que não cometi! — Resmungo, virando todo o conteúdo do copo na garganta,
ranjo os dentes. — Não tenho mais tempo.
— Mirom está limpo...
— Não — o interrompo, voltando a encher o copo — ele está sujo, só
que sabe muito bem como esconder.
— O que faremos agora?
— Precisarei ficar aqui contigo — declaro, jogando a vodca garganta
adentro, esperando um segundo para continuar. — Não posso permanecer
com Laura, não quando Mirom a está usando para atingir-me.
— Ah... — Entoa com um sorriso sagaz. — Então sua aflição tem
nome e endereço?
Umedeço meus lábios, afasto da mesa, ignorando-o e aproximo dos
arquivos presos na parede. Encaro o rosto de cada vítima, inclusive a de
ontem. Fecho meus olhos, balançando a cabeça.
Preciso de respostas... preciso me acalmar acima de tudo.
— Estou apaixonado por aquela mulher, fato. — Esfrego meus olhos,
frustrado. — Cacete... ela é meu ponto fraco, tanto Artem quanto Mirom
sabem disso.
— Desde quando? — Nikita para ao meu lado.
— Desde o dia em que encarei seus olhos vazios. — Sorrio de lado,
lembrando de como estava apavorada naquele dia. Recordando do nosso
primeiro beijo e da capacidade de despertar o homem cheio de vida dentro de
mim.
— Tu sabes, não sabe?
— Sim — confirmo, abaixando a cabeça. — Quero apenas provar
minha inocência. Mostrar que aquele garoto inocente, foi injustiçado... eu
quero apenas... descansar.
— Descansar em que sentido? — Inspiro fundo.
— Serei pego em questão de dias, o plano que tenho será meu último
passo.
— Tu ainda me deves uma vida, não se esqueças disso!
Olho para Nikita, sei que terei que pagar o que devo a qualquer
momento. Embora seja um bom amigo, amizade e negócios jamais devem ser
misturados.
— Quando toda essa merda acabar, prometes protegê-la? — Seus olhos
brilham com meu pedido, Nikita segura meu ombro, apertando-o firme.
— Com minha própria vida se necessário for. — Assinto, suas
promessas são como pactos de sangue. Quando estávamos juntos na unidade
69, tive muitos anos para provar isso. Nesse ponto eu confio cegamente em
Nikita e sei que cumprirá com sua palavra.
Meu tempo está se esgotando. Meu desejo maior nesse instante é
conseguir pelo menos, aproveitar mais tempo com Laura... minha pequena
flor. E ter a confirmação de que ela está fora do abismo que a engolia,
podendo assim, seguir em frente sem que seus demônios interfiram em sua
felicidade. Depois disso poderei ir embora... só que dessa vez será para
sempre.
— Qual o teu plano? — Passo a língua em meus lábios, prendendo
meus olhos na foto da primeira mulher que já amei em toda minha vida.
— Começar pelo começo.
— Como assim? — Solto um suspiro exasperado e olho para Nikita.
— Tudo tem um começo, meio e fim. Se tu se perdes, a única solução é
voltar ao início para retomar o caminho certo. Meu começo vem dela, —
aponto para a foto que encaro — da minha mãe.
— Então...
— Chegou a hora de vê-la.
Esfrego meus lábios com os dedos enluvados enquanto olho para a casa
onde cresci. Esse lugar abriga e esconde segredos, momentos, choros e
muitos sorrisos.
Não foi uma fase boa quando meu pai faleceu, sua morte desestruturou
nossa família, quebrando o vínculo que tínhamos, destruindo a ligação que
nos tornavam unidos.
Mamãe ficou devastada, principalmente, quando não conseguia
emprego. Recordo-me de várias vezes a encontrar chorando pelos cantos, ou
trancada em seu quarto. Eu era o único que fazia de tudo para manter a
família como era antes, mas eu não consegui!
Foi insuficiente tudo o que fiz...
Eu falhei com todos... eu falhei comigo.
Tamborilo os dedos no volante no ritmo da música que toca baixinho.
Artem foi liberado das acusações, como esperado. Continuará trabalhando
como policial, o que é pior ainda.
Certamente está rindo da minha cara nesse exato momento sentado em
uma mesa de bar com seus amigos da mesma laia que a dele.
Inspiro fundo, controlando-me para não contornar o carro e ir até lá e
quebrar sua cara fodida. Cacete... Soco de leve o volante, aborrecido.
O barulho da notificação do celular afasta Artem da mente. Apanho o
aparelho e encaro a mensagem “Mirom e Artem estão fora. Caminho limpo.” Jogo o
celular no banco do passageiro e desço do carro.
Meu coração bate acelerado conforme me aproximo da minha antiga
casa... O lar que não pertenço... O lugar onde não sou mais bem vindo.
Fito o cadeado do pequeno portão, depois analiso em volta. Do outro
lado o jardim está repleto de rosas espalhado por todo o quintal, o perfume
das flores invade minhas narinas despertando-me uma sensação de conforto.
Olho para trás, a neblina de uma noite úmida cobre cada canto da rua.
As luzes dos postes deixam tudo mais sombrio, escondendo os perigos do
entorno desse lugar.
Impulsiono meu corpo para cima ao segurar no pequeno muro, passo
minhas pernas e aterrisso silenciosamente dentro da propriedade. Respiro de
forma lenta, mesmo que seja difícil devido a adrenalina que corre por minhas
veias.
Espero mais alguns segundos, aguçando minha audição. O único
barulho é do vento que toca as folhas balançando-as com delicadeza, uma
dança suave.
Meus olhos se prendem na janela coberta por uma cortina. Uma luz
branca reluz pela brecha. Encaminho-me em direção à porta, tocando as
pétalas pelo caminho. Subo o pequeno degrau com passos silenciosos e paro
diante dela, encarando-a como se a própria fosse capaz de me dar coragem.
Fecho os olhos. Comece pelo começo... e o começo é a partir daqui.
Ergo minha mão em punho e bato à porta. Recuo um passo, encarando
com ansiedade meus pés. Escuto passos, a chave destrancando e o ranger da
porta sendo aberta.
Engulo em seco, uma mistura de vergonha e saudade se bagunçando
em meu coração.
Catorze anos sem vê-la e tocá-la... conto de um até três antes de
levantar a cabeça lentamente e prender meus olhos nos seus.
Mamãe franze a testa. Afasto o capuz para mostrar meu rosto. Ela abre
a boca para falar, mas a fecha novamente. Seus olhos começam a encher de
lágrimas me reconhecendo... reconhecendo seu filho.
Aperto meus lábios sem conseguir quebrar a tensão entre nós. É como
se o mundo estivesse desaparecido. Mamãe afasta as mãos da porta e as
levam à boca, abafando um gemido surpreso.
— Rus... Ruslan? — Sussurra com a voz trêmula.
Fito com mais atenção seu rosto envelhecido pelo tempo, que mesmo
assim não ofuscou sua beleza.
— Oi... mãe.
Em instantes ela corre até mim. Prendo-a em meus braços, afundando
meu rosto na curva de seu pescoço, sentindo-a estremecer por causa do
choro. Seguro minhas próprias lágrimas, apertando-a, matando a saudade que
me corrói todos os dias.
Agora não existe mágoa dentro de mim, apenas a necessidade de ser
abraçado por minha mãe. Àquela que tanto chamei... que tanto gritei por
ajuda, desesperado e sozinho. Um garoto inocente jogado no ninho de
demônios. Uma alma pura e cheia de vida, e agora só resta um homem
morto... sem esperanças de um futuro.
Fui privado da felicidade, de crescer ao lado das pessoas que amo, de
realizar meus sonhos e, acima de tudo, privado de criar minha própria
família.
O que me resta?
Aperto mais seu corpo, fechando os olhos e sendo consumido por seu
cheiro natural que nunca esqueci.
Ah... como eu esperei que ela me tirasse daquele inferno... que me
dissesse que tudo iria passar, que iria me proteger do mal, mas fui deixado
sozinho.
Mamãe chora em meus braços, um nó na garganta diz que estou prestes
a me entregar também ao choro. Ela se afasta e segura meu rosto, encarando-
me com fascinação. Seus olhos me analisam com cuidado.
— Meu pequeno... — Murmura com a voz embargada. — Meu
pequenino...
— Por quê? — Pergunto, segurando seus pulsos. — Por que não me
buscaste? — Mamãe aperta os lábios trêmulos. — Por que me deixaste
naquele inferno, Mamis?
— Sinto muito... — Seus olhos devastados transbordam lágrimas.
— Eu errei contigo, pequeno... errei tanto...
— Tu não acreditas em mim? — Mamãe limpa as lágrimas que
escorrem no meu rosto, meu choro silencioso é a deixa para trazer de volta
aquele garoto encolhido em um canto coberto pela escuridão.
— Eu acredito em ti...
— Fiz de tudo, Mamis... de tudo para manter nossa família... eu... eu
trabalhei tanto para não te ver chorando, trouxe comida para casa quando
estávamos passando fome... lutei tanto para... para ser jogado daquela
forma... estou destruído... eu... eu só quero... descansar.
Confesso, sentindo de repente um peso tão grande que mal consigo me
manter de pé. Estou cansado, exausto de tanto sofrimento. Cansado de não
saber da verdade.
— Venha, entre meu pequeno. — Diz com a voz doce, me fazendo
encolher como uma criança querendo consolo e colo.
Mamãe me puxa para dentro, limpa seu rosto com as mãos e fecha a
porta atrás de mim assim que entro. Meus olhos navegam pela sala,
analisando cada mínimo detalhe.
Meu peito aperta quando a mágoa volta. Tiraram de mim a
possibilidade de ter um lar, de escolher cada móvel e decoração da minha
própria casa. Tudo é uma grande merda em vista de tudo o que passei dentro
daquele inferno.
Enquanto eles sorriam, eu chorava. Enquanto eles conquistavam seu
lugar, eu me afundava na depressão, na desolação. Enquanto eles viviam,
eu... morria, dia após dia.
Fecho meus olhos, impedindo que essa dor quebre o momento que
tenho com minha mãe, de tentar encontrar uma explicação para tudo o que
fizeram comigo.
— Eu escrevi cartas... — Falo, voltando minha atenção para a senhora
diante de mim. — Todo mês eu mandava cartas para ti, Mamis. Por que não
me respondeste? — Ela abaixa a cabeça, balançando-a de um lado para o
outro, abalada demais para dizer alguma coisa.
— Tu não fostes me visitar... por catorze anos eu esperei por ti.
— Me perdoa... — Lamenta.
Respiro fundo, me aproximando dela e segurando seus ombros
enquanto volta a chorar compulsivamente. Levo-a até o sofá, fazendo com
que se sente para se acalmar.
Ajoelho-me à sua frente e levanto seu rosto, fazendo com que me olhe
nos olhos.
— Não chores, Mamis... — Peço com carinho, ela sorri, encostando a
testa na minha, fecho meus olhos. — Amo-te...
— Eu queria ter ido, pequeno, mas... tantas coisas aconteceram. Tu és
um assassino... — Prendo a respiração, permanecendo calado. — Não sei o
que fiz de errado para que tomastes esse caminho, mesmo sentindo dentro de
mim que tu não és culpado. Eu errei tanto contigo...
— Não se culpe por isso. — Tranquilizo-a, beijando seu rosto. — Não
tenho muito tempo, Artem deves estar chegando daqui a pouco.
— Que saudades do meu pequeno. — Mamãe sorri enquanto percorre
os dedos delicados por meu rosto. — Tu cresceste tanto... estás um homem
tão lindo.
— Tive a quem puxar. — Ela ri.
— Estás a cara do teu pai.
— Acho que estou mais parecido contigo do que com ele, Mamis! —
Protesto de forma divertida, tirando mais um sorriso de seu rosto perfeito,
vendo um brilho de felicidade em seus olhos.
— Estás tão lindo...
— Tu que estás perfeita, como uma rosa vermelha em meio a tantas
outras que são ofuscadas por sua beleza.
— Oh, meu pequeno poeta ainda vive aí dentro? — Pergunta,
colocando a mão em meu peito, no rumo do meu coração. — Apesar de tudo?
— A única coisa que restou foi o rastro do que fui um dia. — Mamãe
me olha com tristeza, umedeço meus lábios e deito a cabeça em seu colo, da
forma que sonhei durante tantos anos.
— Existe coisas que nunca são destruídas, mesmo que tentem tirar isso
da gente, nossa essência sempre continuará dentro de nós.
— Posso descansar um pouco em seu colo, Mamis? — Peço, fechando
meus olhos e me segurando para não desabar.
— Chore meu pequeno... chore que tua Mamis estás contigo agora...
Suas palavras penetram meu coração me impedindo de aguentar tanta
dor. Então, depois de tanto tempo, liberto o choro reprimido por anos.
Um choro de dor, saudade e injustiça... Um choro tão doloroso que não
sei se serei capaz de um dia parar.
É como estar sendo liberto após tantos anos trancafiado em uma jaula.
Suas mãos em meus cabelos, o carinho de seu toque é tudo o que mais
preciso.
Afundo meu rosto em seu colo, meu corpo treme conforme o choro
intensifica. Não sou um homem agora, mas um menino... aquele garoto que
viu sua vida ruir sem poder fazer nada.
Fecho as mãos em torno do seu vestido de seda. Dentro de mim há um
redemoinho de sentimentos que não consigo lidar. Existem certos momentos
em que ficamos impotentes, fracos, nessa hora o que devemos fazer é apenas
se recolher, libertar tudo o que há dentro do coração.
Tudo passa... sempre dizem isso e de fato, tudo passa. Mas o que
permanece é a dor de ter sido destruído, essa dor é constante, é para sempre,
mesmo que lute para evitar, essa dor nunca vai embora.
Sinto minha alma rachar, assim como senti por tantos anos. As
lembranças sempre serão fantasmas, mesmo sem conseguir te dominar, tu
sabes que ela está lá, no fundo, esperando uma brecha para te dominar e te
levar de volta para o abismo.
Eu não quero me perder... ou me entregar a essa dor que me leva para o
fundo a cada dia, meu desejo é apenas descansar e... ser feliz pelo menos uma
única vez em toda minha vida.
Fico observando-a andar pela cozinha. A saia do seu vestido flutuando
com delicadeza, seus cabelos grisalhos, tão perfeitos, resplandece sob a luz
da lâmpada florescente.
Seus olhos, aqueles que são quase idênticos aos meus, se predem em
mim, transluzindo sentimentos que não consigo ler, talvez seja saudade, culpa
ou arrependimento, ou todos eles em uma mistura insuportável de emoção.
Mamãe coloca uma travessa de Vareniki[7] sobre a mesa, diante de mim
e sorri.
— Esses eram seus preferidos. — Franzo a testa, sustentando seu olhar.
— Na verdade, meus preferidos são os Pyrizhky recheado com carne e
cogumelo. — Seu rosto adquire uma expressão triste. — Mas gosto desses da
mesma forma. — Sorrio, pegando um dos bolinhos.
Levo à boca, sentindo o sabor da massa e o recheio de carne. Mamãe
despeja suco no meu copo e me entrega, agradeço, tomando um gole. Ela se
senta, colocando os braços na mesa, me observando atentamente enquanto
devoro seus bolinhos, os quais eu detesto.
— Tu estás foragido... a polícia está atrás de ti! — Paro de mastigar,
encarando seus olhos e estranhando seu tom de advertência.
— Sim, eu sei... — Ela balança a cabeça, gesticulando para que eu
volte a comer.
— Onde tu estás ficando? — Dou de ombros.
— Fico vagando pela cidade, sem um lugar específico. — Minto,
engolindo a carne que praticamente inchou na minha boca.
Franzo as sobrancelhas, encarando o Vereniki.
— Estás limpo e não parece abatido, estás forte... — Elevo meus olhos,
mamãe me estuda. — Como estás conseguindo dinheiro? Não me diga...
— Eu tenho amigos — corto-a, afastando os bolinhos de mim. — Estou
recebendo ajuda.
— De criminosos, presumo. — Resmunga, me lançando um olhar
decepcionado.
— Infelizmente, é o que sou, Mamis. — Recosto na cadeira, ela inspira
fundo e fita suas mãos. — Tu não me respondeste à pergunta que fiz.
— Que pergunta?
— Sobre as cartas que enviei.
Dona Okasana fica me olhando por tempo demais para que eu cogite
que talvez esteja buscando alguma desculpa que justifique sua ausência, no
entanto, qualquer coisa que disser, vai ser a prova de que ela está escondendo
algo de mim em relação à toda essa história.
— Não minta, Mamis — peço com a voz fraca, ela não responde. —
Foi o Artem? Ele que a proibiu de me ver? — Ela se levanta, pegando a
travessa de forma brusca e a levando até à pia.
— Quando o impacto da sua prisão chegou em todos, a única coisa que
senti era vergonha, ainda sinto, até hoje. — Encaro suas costas, aperto os
dentes com tanta força que sinto um pouco de dor. — Não tínhamos dinheiro
para um advogado. Quando tu foste condenado... — Sua voz some, levanto-
me e vou até ela, parando ao seu lado para olhar seu rosto encharcado por
lágrimas. — Passamos meses difíceis, Ruslan. Artem tinha que trabalhar e
sabe como ele era acomodado. A crise econômica apertou e novamente
passamos fome... Quase fomos despejados dessa casa.
— Mas conseguiram, não é? — Mamãe assente, guardando o restante
dos bolinhos em um pote.
— Sim, pequeno, conseguimos graças a Mirom. — Fecho meus olhos
ao escutar seu nome. — Ele conseguiu se alistar no exército e nos tirou do
abismo. Desde então ele cuida da nossa família. Estamos bem agora. Olesya e
Artem tem um bom emprego, é o que importa.
— Parabéns para vocês! — Digo, amargurado, me afastando.
— Tu tens que entender, Ruslan Rotam. — Mordo meu lábio, meu
nome completo sendo soado por ela é uma alerta da bronca que levarei.
— Entender o quê? — Me viro, encarando seu olhar autoritário. —
Aceitar de cabeça baixa que fui abandonado por minha família? Aceitar a
humilhação que sofri tanto de vocês quanto dentro daquele inferno? Eu
escrevi para vocês, pedi ajuda... Artem e Mirom... — Fecho os olhos e fito o
fogão. — Não existe uma explicação para isso.
— E o fato de tu matar mulheres indefesas? — Olho para mamãe com
o coração acelerado. — Existe uma desculpa para o que fizeste?
— Eu não as matei!
— Prove, então! — Me desafia, jogando um pano de prato em mim. —
Se passaram catorze anos e tu diz a mesma coisa, que nunca matou nenhuma
daquelas mulheres, mas são palavras, cadê a prova da sua inocência? De que
é inocente. Até o momento, nada disso tem! Enquanto tu não provares,
continuarás sendo um assassino, o Serial Killer de Kharkiv... a vergonha da
família!
Ficamos um encarando o outro. A dor que sinto por assistir sua
decepção rasga meu coração. Apesar de estar com muita raiva de sua
declaração, no fundo ela está certa. Enquanto não tiver provas, continuarei
sendo o que todos julgam.
Abro a boca para falar, mas uma batida de porta de carro me desperta.
Olho para trás, escutando vozes que logo reconheço ser de Artem e Mirom.
— Preciso ir — digo, me encaminho até a porta dos fundos.
Mamãe não diz nada, mas sinto seus olhos cravados nas minhas costas.
Seguro a maçaneta e a encaro por sobre o ombro.
— Nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, — seus
olhos estremecem — irei descobrir a verdade. — Saio pela porta apressado.
Avisto uma casinha de cachorro e olhos brilhantes me encaram lá de dentro.
Tensão ultrapassa meu corpo, mas não paro, continuo atravessando o quintal
repleto de rosas.
Chego no muro, e antes de pular, olho para trás a tempo de ver pela
janela Artem abraçar mamãe e Mirom sorrir, falando alguma coisa que não
compreendo.
Talvez seja inveja que esteja se alojando dentro de mim nesse instante.
Eu tinha sonhos, planos e objetivos, por vezes desejei uma vida melhor, um
emprego decente... estudo... porra, eu queria ser um agrônomo...
Abaixo a cabeça, balançando-a de um lado para o outro, inconformado
com o rumo que minha vida se encaminhou. Tantos sonhos destruídos... Pulo
o muro, querendo esquecer de tudo, quem sabe assim essa dor insuportável se
torne mais suportável.
Entro no carro e soco o volante com tanta raiva que penso que quebrei
minha mão. Encosto a testa no volante, controlando a respiração acelerada.
Voltarei para prisão e cumprirei pena perpétua, eles vão intensificar a
vigia, me isolar do mundo novamente e dessa vez só sairei de lá, morto.
Ergo a cabeça, apertando o volante, uma luz azul e vermelha invade o
interior do carro. Antes de me afastar dos policiais que se aproximam, fito
minha antiga casa com a promessa de que isso não ficará assim.
Sou o único que poderá expor a verdade... o único a me salvar dessa
escuridão. Farei isso não somente para esfregar o que fizeram comigo, mas,
sobretudo, ao chegar à noite, terei a certeza de que não sou o assassino que
todos acreditam que eu seja.
Depois de uma noite conturbada cheia de pesadelos, me levanto
sentindo dor por todo meu corpo causada pela tensão. Se passaram dois dias
desde que Ruslan me encontrou... dois dias desde que Mirom invadiu minha
casa.
— Bom dia, garoto — me agacho para acariciar Rony, que se esgueira
em minhas pernas, miando.
Desde ontem estou a observá-lo, sua agitação está me deixando em
alerta. Ontem esse gato mal comeu. Inspiro fundo, preocupada não só com
ele, mas com Ruslan também.
Vou até a Tv e coloco no desenho Pegue o pombo que mostra as
aventuras de Dirck Vigarista e sua Esquadrilha Abutre, caçando
freneticamente o pombo-correio Doodle, que leva mensagens secretas para
aliados durante a 1º Guerra Mundial.
Além dele ser uns dos desenhos que mais amo, era o preferido da
minha mãe. Juntas passávamos horas rindo e dublando “Vamos, rapazes, não
fiquem aí parados. É só um pombo e precisamos pegá-lo...”
Deixo o controle na mesinha de centro, com uma inspiração profunda.
Começo a me arrumar, escutando as vozes de Dirck, Muttley, Klunk e Zilly.
Depois de pronta, vou até a cozinha preparar o café, repetindo tudo o
que eles dizem, de cor e salteado.
Me inclino no balcão, encarando a TV. O bom desse desenho, é que
todos morrem na queda de avião e no episódio seguinte ressuscitam, além de
ter várias cenas pesadas para quem realmente entende.
Em um dos episódios, Muttley passa por cima do pombo com o avião.
O pombo morre com as tripas para fora, a hélice do avião o parte ao meio.
Balanço a cabeça, porque morte não existe, apenas suposições e a certeza de
que ele ressuscitará.
Viva as impossibilidades dos desenhos animados.
Deixo a caneca na pia, repetindo suas palavras como se fosse eu ali
dentro, em um mundo onde tudo é possível.
— Prendam, segurem, agarrem, capturem. Peguem o pombo agora... —
De volta à frente da TV, me vejo fascinada por eles estarem voando em
aviões que se despedaçam conforme eles se atrapalham. Olho para o lado
quando Rony faz um barulho estranho.
Desligo a TV e vou até ele e estaco no lugar. Rony está vomitando sem
parar. Meu estômago revira e aperta. Ele não está bem!
— Ei garoto, o que está acontecendo? — Rony levanta a cabeça e me
encara ao deitar no chão, fraco e com a respiração cortante.
Seu olhar... o olhar que me direciona é de pura dor. Não estão
brilhantes como de costume. Vou até meu quarto e apanho uma manta, o
enrolo e pego-o no colo, caçando minhas coisas e meu cartão de crédito que
uso apenas em caso de emergência.
— Vai ficar tudo bem, okay? — Digo, tentando não me apavorar.
Saio de casa apressada, Rony fecha os olhos. O tempo que está comigo
nunca o vi tão mal assim. Um nó se aloja na garganta, e se... e se... Afasto
essa ideia da mente.
— Ei, Gana!!! — Chamo assim que ela desce do carro.
— Laura, o que foi?
— Preciso de ajuda, meu gato está passando mal e... — Faço uma
pausa, acalmando meu desespero.
— Desde quando tu tens um gato? — Gana pergunta, se inclinando no
teto do carro, seu olhar cansado me avalia.
— Poucos dias. O que eu faço?
— Leve em um veterinário. — Ela diz, entrando de novo no carro. —
Vamos! — Me ajeito no banco com Rony aninhado em meus braços.
Gana dirige em silêncio vendo minha preocupação. Depois de longos
minutos, ela para em frente a uma clínica veterinária 24 horas, me dizendo
para entrarmos.
Desço e entro apressada. A recepcionista me olha alarmada, depois vê
Rony em meus braços, que geme de dor.
— Ele está passando muito mal. — Digo, apavorada.
— Preciso que esperes apenas alguns minutos — ela se afasta e entra
por uma porta.
Olho para Gana.
— Ele vai ficar bem? — Pergunto a ela, que acaricia com suas unhas
grandes e perfeitas a cabecinha de Rony.
— Creio que sim. Ele receberá o melhor dos atendimentos. — Consta,
tentando me tranquilizar de alguma forma. — Tu pareces uma mãe
desesperada. — Sorri para mim, comprimo meus lábios, me virando quando a
recepcionista retorna com uma mulher alta e negra vestida com um macacão
verde por baixo de um jaleco.
— Bom dia, sou a Doutora Darya — seus olhos se prendem em Rony
que está respirando com a boca aberta. — Me permite? — Pergunta,
apontando para ele.
— Sim, claro! — Darya se aproxima, coloca as mãos em Rony,
estudando-o com cuidado.
— Vamos para minha sala, necessito examiná-lo. — Olho para Gana
que assente. Sigo a doutora para dentro de sua sala. Coloco Rony em cima da
mesa de exames, tiro a manta enrolada em seu corpo e me afasto para que
Darya o examine.
Depois de alguns minutos, ela me olha.
— Me conte...
— Laura.
— Certo. — Diz, apalpando a barriga de Rony. — Conte-me o que
aconteceu com ele, Laura.
— Ontem percebi que Rony estava muito agitado, não comeu muita
coisa.
— O que esse garotão costuma comer? — Umedeço os lábios.
— Costumo lhe dar comida própria para gatos.
— Tu o criaste desde pequenino?
— Não, Rony está aos meus cuidados a pouco tempo. — Darya me
encara.
— Então tu não sabes se ele é vacinado, vermifugado... — Nego com a
cabeça, ela inspira fundo e acena. — Tudo bem, vamos cuidar disso. — Diz.
— Acredito que o melhor para ele é ficar internado por agora para que eu
possa fazer alguns exames e descobrir o que ele tem. Vendo-o assim, indica
início de anemia, pode ser até mesmo problemas renais.
— Mas ele vai ficar bem?
— Vou fazer o possível para que sim, por isso necessito que o deixe
para que possa iniciar o tratamento. — Aperto meus lábios. — Faz assim,
Laura. Deixe-o aqui comigo, no final da tarde tu voltas. Se ele estiver melhor,
tu podes levá-lo para casa, se não estiver... tu terás que deixá-lo internado.
Pode ser?
— Sim — confirmo.
— Vou levá-lo para dentro, deixarei Rony no soro. Fica tranquila, vai
dar tudo certo! — Afirma, pegando o gato, acaricio sua cabecinha em
despedida antes dela levá-lo.
Deixo-me cair na cadeira com as pernas bambas. Apanho meu celular
dentro da bolsa, destravo e deslizo meu dedo na tela, procurando o número
em que Ruslan me mandou mensagem dois dias atrás.
Fico encarando o celular, como se esperasse que me ligasse. Fecho os
olhos, levo o celular até o ouvido depois de selecionar a opção ligar, a única
voz que escuto é da secretária eletrônica.
Suspiro, devolvendo o celular à bolsa.
— Prontinho, Laura. — Darya volta, se sentando no outro lado da mesa
e começando a digitar no computador. — Não se preocupes, cuidarei bem do
seu garoto, só preciso observá-lo por mais tempo por estar fraco. — Ela me
olha com carinho, meu peito aperta em ter que deixá-lo nas mãos de outras
pessoas, mas é necessário.
— Obrigada.
— Qualquer coisa, entro em contato contigo. Preciso apenas que dê os
seus dados e de Rony para Svitlana.
— Claro — confirmo, me levantando e saindo da sua sala.

Escoro a cabeça no banco depois de ter deixado Rony no veterinário,


me sentindo de repente, exausta. A tensão se esvaindo de meus músculos me
deixa impotente.
— Não fique muito preocupada, vai dar tudo certo. — Tranquiliza
Gana, me entregando um copo de café que acabou de comprar. Agradeço,
tomando um gole.
— E se não der?
— Laura, do que adiantará ficar com pensamentos negativos? Ele está
em boas mãos.
— Rony não é meu... — Murmuro, rodando o copo. — Está apenas em
meus cuidados.
— De quem ele é?
— De uma pessoa especial... — Fito seu rosto, Gana arqueia uma
sobrancelha, mas não diz nada. — Você parece cansada.
— Estou... — Confirma, recostando-se no banco e encarando o prédio
da AS. — Cansada de tudo, sabe?
— Não, não sei. — Ela suspira, dando um gole no café.
— Não tive uma noite muito boa...
— Você nunca me conta seus problemas.
— Meu mundo é... só existe sexo e dinheiro nele, Laura, só que nunca
sairei dessa vida, entende? — Gana me olha com o semblante triste.
— Você já está saindo. Está estudando para encontrar outra saída.
— Sim... — Ela limpa a garganta e me olha. — Eu venho buscar-te
para almoçarmos juntas e depois para buscar Rony, okay?
— Okay! — Abro a porta, mas não antes de fitar seu rosto cansado. —
Obrigada de novo.
— Estarei aqui sempre — assinto, descendo do carro.
Aceno em despedida e caminho para dentro da AS. Tomo o último gole
de café e travo na porta da minha sala. Meus colegas não estão aqui, somente
a Bogdana, sentada em uma cadeira lixando suas unhas pintadas de rosa
choque.
— Chegaste atrasada, Laurita! — Ela levanta os olhos sem parar de
lixar as unhas.
— Imprevistos acontecem. — Bogdana enruga os lábios e aponta com
a lixa na direção do escritório de Andry.
— Com seu atraso vem as consequências. Estás preparada?
— Não!
— É melhor que esteja, Andry está pistola hoje. — Deixo minhas
coisas sobre a mesa, suspirando.
— Estou indo.
— E eu voltando para recepção. — Declara, se levantando. — Boa
sorte com Andry, porque hoje já levei o sermão do mês inteiro.
— O que você fez? — Ela dá de ombros, passando por mim.
— Nada, esse é o problema!
Duvido muito que ela não tenha feito nada.
Fico encarando-a rebolar até sumir no corredor. Sigo meu caminho,
empurro a porta entreaberta do escritório de Andry e entro, atraindo seu olhar
enraivecido.
É ridículo, mas me sinto uma adolescente entrando na sala do diretor
depois de ter feito merda. Paro ao lado de Yaroslav, ele me olha de esgueira,
balançando a cabeça com sutileza e franzindo a testa de tédio.
Aksinya e Justik estão com a mesma expressão que a de Yaroslav,
prestes a serem comidos vivos. Andry chama minha atenção ao pigarrear. Ele
me fita por cima dos óculos.
— Nove e meia da manhã... que eu saiba o seu horário é às oito.
— Eu tive u...
— Não me importo — ele me corta sem nenhuma educação. — Vamos
às atualizações. Artem foi solto como Aksinya relatou na coluna um dia
depois dele ser preso, que foi uma das melhores reportagens feitas por vocês.
Tudo indica que o caso morreu, mas como jornalistas, nosso dever é sempre
relatar a verdade. Quero ele estampado novamente na capa do jornal. Um
policial na área de homicídios deve ser mais sujo que chiqueiro.
— Só que não é tão fácil assim — Aksinya comenta, com a voz
cuidadosa. — Somos jornalistas Senhor Andry, não detetives. Acho que estás
a confundir as funções.
— Quem és tu para me dizer isto? — Aksinya abre a boca para
retrucar, mas se cala com um olhar severo do nosso chefe.
— E o andamento do documentário de Ruslan Rotam? — Pergunta, se
dirigindo a mim e Yaroslav. — O que mais descobriram sobre a nova vítima
desse maníaco? — Ranjo os dentes escondendo meu incômodo pela forma
que se referiu a ele. Yaroslav prende a respiração, roçando o braço no meu.
— Não obtivemos muito sucesso, nenhum avanço. As pessoas que têm
alguma informação, foram todas entrevistadas. — Informo com meu coração
palpitando.
— E ficará por isso mesmo?
— Estamos indo atrás de informações, senhor. — Yaroslav se
pronuncia. — Só que...
— Não somos detetives! — Debocha Andry, suspirando e recostando
na cadeira.
— Temos um plano. — Yaroslav se adianta.
— Um plano? — Os olhos de Andry percorrem cada um de nós.
— Sim. — Confirma Justik.
— Hum... vou ter que esperar até quando para desembucharem? —
Engulo em seco.
Nos entreolhamos, Justik tem os olhos arregalados. Aksinya parece ter
visto um fantasma. Yaroslav olha para todos os lados, menos para Andry.
Suspiro, entediada.
— Acredito que se nos aproximarmos de Okasana, — conto, depois de
tomar fôlego — poderemos descobrir alguma coisa em relação à família.
Artem mora com ela ainda e... talvez ela se abra e nos conte mais sobre
Ruslan e seus filhos. — Andry fica me encarando, vejo em seus olhos
dúvidas, ele está se questionando se isso valerá a pena.
— Estávamos pensando em talvez... seguir Artem, algo do tipo. —
Justik fala, fazendo Andry desviar o olhar de mim e encará-lo.
— Nem pensar.
— Como dizes? — Justik ergue as sobrancelhas, surpreso com a recusa
do nosso chefe.
— Vocês são uma péssima equipe de jornalistas investigativos. Achaste
que eu iria permitir que seguissem um policial corrupto? — Justik engole em
seco. — Temos que ter um limite, e esse é ultrapassar o bom senso. — Andry
me olha. — Gostei da tua ideia, faça acontecer. Enquanto isso, continuem
com as outras reportagens. Hoje de manhã recebi uma informação sobre um
caso de feminicídio, quero que façam uma reportagem impactante usando
esse tema...
Enquanto Andry jorra informações e ordens, permito que minha mente
se desligue do meu chefe. O engraçado, apesar de tudo, sempre quem estão
nas manchetes são os assassinos, estupradores, agressores, nunca uma mãe de
família que trabalha para sustentar seus filhos sem ajuda de um marido. Ou as
Babushkas que trabalham nas feiras com idades tão avançadas que deveriam
estar descansando depois de tanto se doarem, ou das crianças que estão
jogadas nas ruas, roubando para conseguir um pouco de dinheiro, passando
fome e frio.
Isso sim faria diferença, conscientizaríamos toda a população de que
devemos abrir os olhos para essa situação, não dar ibope a criminosos.
Porém, a AS reporta o que vende, o que desperta o interesse nas pessoas e a
conscientização não é uma delas.
Escorrego na cadeira, rodando-a com o pé de um lado para o outro,
fitando o teto e escutando Aksinya digitar freneticamente.
— Saudade da época em que eu escrevia sobre literatura. — Lamenta
Justik, comendo éclair intergaláctico, as ponta dos seus dedos estão azuis,
assim como seus lábios.
Parece uma criança se lambuzando com doce.
— Andry é que nem o Dick Vigarista do desenho pegue o pombo. —
Revelo, chamando a atenção deles.
Não desvio o olhar do teto, esperando que continuem a linha do meu
raciocínio.
— Rabugento e vive reclamando dos outros e nos xingando. —
Yaroslav diz, estalando a língua. — Só falta nos chamar de palermas, tirando
o fato de suas ordens darem sempre errado.
— "Raios! Raios Duplos! Raios Triplos!" — Imito a voz de Dick
quando algo dá errado. Todos riem da minha atuação.
— A Bogdana é o Mutley. — Declara Aksinya, entrando na
brincadeira. — Sempre em busca de medalha, ou melhor, de promoção.
— "Medalha, medalha, medalha" — Imito a voz do cachorro Mutley,
dando sua risadinha no final.
Todos gargalham novamente, se divertindo com nossa comparação.
— Zilly é o Justik. — Aponto para ele, seus olhos se arregalam. — Na
verdade, Tanto Justik quanto Yaroslav são o Zilly!
— Nós? — Justik sibila, engolindo o último pedaço do seu doce,
Yaroslav apenas ri.
— Claro, cagões do jeito que são! — Retruca Aksinya.
— Vocês são tímidos e medrosos. Yaroslav não pode ver um cadáver
que está colocando as tripas para fora.
— Justik é mijão. — Rebate Aksinya, rindo de Justik que lhe joga uma
bola de papel, ela desvia.
— São os menos preocupados em capturar o pombo. Quando sentem
medo escondem-se em seu uniforme de aviador ou fogem no momento de
embarcar no avião, deixando a roupa e sumindo por debaixo da terra.
— Como eu disse, são cagões! — Assinto para ela, que ri mais ainda,
sem parar de digitar.
— E tu és o Klunk. — Justik diz, me olhando com expectativa.
— Eu?!
— Sim, tu! — Viro para Yaroslav. — Klunk é inteligente, o mesmo
que projeta e constrói as absurdas e incríveis máquinas que são utilizadas
para capturar o pombo. Ele é calmo, possui sotaque, tu tens sotaque, se falar
português ninguém aqui vai entender. Klunk é legal também.
— Concordo — anuncia Aksinya.
— Eu também! — Confirma Justik, dou de ombros.
— A Aksinya é o General. — Me endireito na cadeira, ela para de
digitar para me olhar por cima da sua cabine. — É um dos personagens mais
misteriosos, nunca foi visto, aparece apenas depois dos fracassos do grupo
por meio de telefonemas com uma voz gritalhona. Mas a questão não é por
ser misteriosa, mas sim autoritária, mandona e um pouco... estressada demais.
— Aksinya estreita os olhos, me fuzilando de forma brincalhona.
— Não sou assim...
— É sim! — Justik a interrompe, ela rosna para ele. — Vivi anos
contigo, meus ouvidos sofreram com suas ligações que eram só gritos. —
Resmunga, se sentando aborrecido.
— Muito mimimi... — Desdenha, voltando a digitar e segurando o riso.
Yaroslav não consegue segurar e muito menos Justik, em segundos os
três estão gargalhando. A vibração de suas risadas preenche meu coração.
Queria poder sorrir e gargalhar como eles estão fazendo agora.
É tão bonito...
— E quem é o pombo? — Pergunta Aksinya.
— Ruslan Rotam, óbvio! — Afirma Yaroslav.
— A Patrulha Abutre em ação... — Justik fala com uma voz arrastada.
— Vamos, rapazes, não fiquem aí parados. — Cantarolo, desligando
meu computador e juntando minhas coisas. — É só um pombo e precisamos
pegá-lo...
— Ou senão Andry arrancará nosso salário. — Aksinya canta, saindo
do roteiro.
— Nossas cabeças ele irá arrancar! — Justik estremece, rindo.
— Então pegue o pombo. Pegue o pombo... — Canto, eles riem,
acenando para mim e para Yaroslav.
— Até logo, Klunk. — Aksinya se despede com um aceno, retribuo.
— Adeus, Patrulha de Abutre. — Justik sai em disparada atrás dela,
que nem um cachorrinho.
Suspiro, balançando a cabeça e pegando meu celular.
Na hora do almoço acabei ligando para Darya, querendo saber como
estava Rony. A notícia não foi muito boa, ele voltou a vomitar e precisará
passar a noite lá, podendo receber visita somente de manhã, só poderei vê-lo
amanhã. Desde então não recebi mais nenhuma notícia dele, nem de Ruslan.
— Laura? — Olho para Yaroslav, tinha me esquecido de que ele ainda
estava aqui.
— Pensei que você tinha ido embora.
— Tu estavas inerte demais. — Comprimo meus lábios. — Ele não te
deu notícias, não é? — Assinto, Yaroslav inspira fundo, se aproximando.
— Estou mais preocupada com Rony. — Confesso, Yaroslav sorri. —
Rony precisa de mim, Ruslan sabe se cuidar.
— Entendo. Entendo também que esse gato é tudo que Ruslan tem, por
isso que está tão dispersa. — Abaixo a cabeça.
É horrível quando alguém te conhece tão bem.
— É...
— Mudando de assunto... — Ele olha para os lados antes de se
aproximar da minha cabine. — Precisamos dos arquivos de todas as vítimas
de Ruslan, sabe como é? Tipo nos seriados e filmes de detetives. — Yaroslav
arregala os olhos, como se estivesse fazendo suspense.
— Mas as informações que temos são somente pelos jornais, são
redundantes!
— Sim, eu sei! — Ele passa a língua nos lábios, voltando a olhar para
os lados e abaixa a voz ao falar. — Tenho um amigo, que tem um amigo e
esse amigo tem um conhecido dentro da polícia.
— Muita gente até chegar no específico... — Yaroslav revira os olhos.
— O que eu quero dizer, é que podemos conseguir o contato dessa
pessoa. Então obtemos a cópia dos arquivos.
— E quanto isso vai nos custar? — Arqueio a sobrancelha, porque
sempre há um preço.
— Não é barato...
— Eu não tenho dinheiro!
— Nem eu! — Yaroslav se afasta, aborrecido. — Mas Andry tem. —
Enrugo meus lábios.
— Será?
— Temos que tentar, não? — Suspiro, abaixando os ombros e
concordando. Pego minhas coisas, levanto e aponto para a saída, para irmos
embora e lavar todo esse dia exaustivo.
Yaroslav conversa por todo caminho, coisas aleatórias como notícias de
fofocas que viu na internet, mostrando vídeos engraçados do TikTok. Franzo
a testa quando ele gargalha até chorar de um vídeo totalmente sem noção e
sem graça.
— Certo... — Murmuro, fazendo-o rir mais ainda, me inclino em sua
direção e passo o vídeo com meu dedo na tela do seu celular. — Besta!
Ele revira os olhos, segundos depois volta a gargalhar de outro vídeo,
fico apenas o encarando, tentando entender onde tem graça. Quando mais
olha para mim, mais ri.
— Eu vou mijar na roupa! — Declara, se contorcendo, apenas balanço
a cabeça, saindo do elevador e fingido não fazer ideia de quem possa ser essa
hiena.
Estaco de uma vez ao olhar para frente. Yaroslav esbarra em mim,
percebendo quem está parada na portaria. Engulo em seco, me aproximando
de Okasana.
— Senhora Okasana? — Ela se vira, prendendo os olhos na gente.
— Olá, Laura e Yaroslav. — Cumprimenta, sorrindo.
— A senhora está esperando alguém? — Yaroslav pergunta, me
olhando por alguns segundos.
— Ah, sim, estava aguardando vocês.
— Nós? — Ela assente, abraçando sua bolsa.
— É que passei por essa redondeza e lembrei-me de vocês, de como
são simpáticos. Então gostaria de chamá-los para jantar comigo hoje. —
Surpresa me percorre, não estava esperando por isso.
— Oh... — Yaroslav me fita, assustado. — Eu acho que n... — Ele se
cala quando lhe dou uma cotovelada sutil.
— Gostaríamos muito de acompanhá-la essa noite, senhora Okasana,
mas marquei com uma amiga de jantar com ela...
— Não, não se preocupes. — Me corta, sorrindo de novo. — Leve-a
contigo, há muito tempo não recebo visitas.
Eu e Yaroslav nos entreolhamos. Uma aproximação era nosso plano,
mas... não estávamos preparados para ser tão rápido assim.
Volto a encarar os olhos cheios de expectativas de Okasana, ao mesmo
tempo que vejo também uma tristeza dentro deles. Mordo meu lábio inferior,
assentindo.
Se é para arquitetar uma aproximação, que seja agora, nesse exato
momento.
Okasana sorri com um brilho no olhar. Yaroslav se remexe ao meu
lado. Apesar de termos esse plano, nenhum dos dois quer essa aproximação,
no final das contas. Ele me olha apavorado sem poder recusar.
— Vamos? — Pergunto, apontando para o estacionamento.
— Claro, estou pensando em que comida prepararei para vocês.
— Acredito que qualquer comida que a senhora fizer, será divina. —
Diz Yaroslav, a enaltecendo.
— Não pense demasiado nisso, eu erro a mão, garoto. — Ele ri,
abaixando a cabeça um pouco envergonhado.
Logo à frente avisto Gana escorada no xoxo mexendo no celular. Ela
está vestida com um mini short, uma blusa de manga que deixa sua barriga
zero gordura de fora, com um piercing no umbigo. A bota de salto e cano
curto deixa suas pernas torneadas alongadas, uma verdadeira modelo de tirar
o fôlego.
— Gana? — Ela levanta a cabeça, olhando para nós três antes de sorrir.
— Oiiii, temos companhia hoje? — Gana desencosta do carro e guarda
o celular no bolso de trás do short, se aproximando.
— Gana, essa é Okasana Rotam, ela nos convidou para jantarmos com
ela hoje. — Seu sorriso vacila por um instante, lembrando de tudo o que lhe
disse.
— Comida caseira, senhora Okasana? — Olho para a senhora ao meu
lado que fita Gana dos pés à cabeça.
Yaroslav encontra com meu olhar, esperando que a julgue por seu
estilo de vestir.
— Tu não sentes frio, querida? — Okasana pergunta, com a testa
franzida.
Gana me olha de soslaio, seu sorriso querendo desaparecer, mas ela o
mantém, mesmo com suas bochechas avermelhadas.
— Me acostumei....
— Tu trabalhas de quê? — A senhora pergunta, cheia de incertezas.
— Sou... professora de dança. — Gana mente, limpando a garganta e
fazendo de tudo para não deixar o sorriso morrer de constrangimento.
— Então és dançarina?
— Sim, sou sim!
— Hum... — Okasana me olha inexpressiva, meu coração aperta. —
Ganha muito bem? — Ela volta a encarar Gana que abre a boca, surpresa.
— Sim, ganho super bem! — Apressa em dizer.
— Estás convidada, já que és amiga de Laura e Yaroslav. — Okasana
fala de forma fria, franzo o cenho.
— Ah... não te preocupes com isto, não quero incomodar de forma
alguma.
— Tu estás convidada, meu desejo é que vás — Okasana insiste, firme.
Gana nos olha de novo, engolindo em seco e assente.
— Certo, então podemos ir? — Pergunta, tirando a chave do carro do
bolso e desativando o alarme.
— Esse carro é seu? — A voz de Okasana sai surpresa, Gana assente
devagar, encarando a expressão impassível da senhora.
— Sim...
— Pensei que era de Laura.
— Ah... — Me adianto a esclarecer o mal entendido. — Não tenho
carro, temos apenas um acordo, eu fico durante o dia. Gana trabalha à noite.
Okasana assente de leve, segundos depois sorri. Um sorriso largo e
alegre.
— Parabéns Gana, tu és muito linda. — Okasana elogia, se sentando no
banco de trás com ajuda de Yaroslav.
Ele fecha a porta e nos olha com o rosto enrugado e constrangido. Gana
o abraça antes de assumir o banco do motorista, sem me olhar.
Inspiro fundo, entrando logo em seguida, me arrependendo no mesmo
instante por ter aceito o convite.
— Só me informar o caminho... — Gana pede, saindo do
estacionamento.
Okasana a instrui por qual caminho deve seguir. Yaroslav de alguma
forma quebra a tensão entre nós com seu jeito descontraído. Gana começa a
relaxar, mesmo me lançando olhares cheios de perguntas.
Ela para rente à calçada da casa de Okasana.
— Chegamos, majestades — diz, desafivelando o cinto.
Yaroslav e Okasana saem primeiro, se dirigindo ao portão. Olho para
Gana que balança a perna sem parar.
— Tu viste a forma que ela me analisou? — Aperto meus lábios,
vendo-a batucar as unhas contra o volante. — Okasana não gostou de mim,
fato!
— Não pense assim, foi apenas um impacto, ela é uma senhora
sistemática. Sabe como são essas pessoas antigas. — Gana abaixa o olhar,
assentindo.
— Já p... — Ela solta um grito assustado ao escutar Yaroslav batucar a
janela, nos chamando para entrar.
Gana respira fundo e sai do carro, dando o seu melhor sorriso, o mesmo
que deixa qualquer um fascinado por ela. Os acompanho, sentindo meu
coração acelerado, temendo outro ataque de Axel, a rottweiler de Mirom.
Okasana fecha a porta quando entramos na sala, coloca a bolsa no sofá
e nos encara, sorrindo.
— Sejam bem-vindos!
— É muito bom estar aqui novamente, senhora...
— Pare de me chamar assim, garoto! — Ela adverte Yaroslav, batendo
de leve em seu ombro, tirando uma risada dele. — Sei que sou velha, mas
não necessitas de me lembrar a todo instante.
— Perdoe-me, Okasana — ela assente, satisfeita, olhando para Gana.
— Fique à vontade, querida, minha casa és tua casa. — Ela assente. —
Venham, vamos para a cozinha. Tenho certeza que estão famintos depois de
um longo dia de trabalho.
— Não vou mentir, senhora... — Okasana lança um olhar bravo em
direção a Yaroslav que ergue as mãos em rendição. — Estou com muita
fome, Okasana, não vou mentir. — Conserta, fazendo-a rir.
Observo-a colocar o avental enquanto interage com Yaroslav, puxando
Gana para conversar. Escoro na parede com os braços cruzados, lembrando
da mamãe. Amanhã é seu aniversário e... que saudade...
Meus olhos navegam pela cozinha, parando em uma foto antiga onde
Okasana está sentada com três meninos à sua volta e um bebê em seu colo.
Acredito que eles sejam Mirom, Artem e Ruslan, o bebê a Olesya.
— A senhora foi quem criou Mirom? — Pergunto, Okasana me olha
por sobre o ombro.
— Ele não tinha uma relação muito boa com a mãe e nem com o pai.
— Revela, picando em cubos a carne. — Então sempre estavas aqui com a
gente, sou como uma mãe para ele, mais do que aquela que o colocou no
mundo.
Sinto sua raiva pelo tom de voz. Gana fica me olhando, percebendo aos
poucos os motivos de eu estar aqui. Ela apenas balança a cabeça, voltando a
lavar os legumes.
— Eu vi que tu que fizeste a reportagem de Artem — conta, impassível,
sem me olhar.
Fico tensa, desencosto da parede e arrasto uma cadeira para me sentar.
— É o meu trabalho, estava presente quando tudo aconteceu.
— Sim, eu entendo! — Okasana fala, soltando a faca. — Só não
compreendo — ela faz uma pausa ao colocar a panela no fogo — onde errei
na criação dos meus filhos. — Conclui com decepção visível em sua
expressão.
— Não se condenes por isso. — Yaroslav fala. — Tu fizeste o que
podias, eles são adultos, sabem o que fazem, Okasana.
— Não foi o suficiente, filho. — Ela olha para Gana, que lava os
legumes com ombros tensos. — Tu tens mãe, pequena?
— Eu? — Gana a encara, confusa. — Tinha! — A senhora fica em
silêncio por alguns segundos.
— Sinto muitíssimo.
— Faz muito tempo — Ela tranquiliza Okasana com um sorriso que
não chega aos olhos.
— E tu, Laura? — Os olhos de todos se prendem em mim, meu coração
salta acelerado.
— Ela está no Brasil. — Revelo, rodando a maçã que peguei no cesto
em cima da mesa.
— Tens contato com ela? — Olho para Gana que me encara.
— Laura é apaixonada pela mãe, dona Okasana, precisa ver o quanto
elas são idênticas. — Assinto, agradecida por Gana ter tomado a frente.
— Sério? — Okasana pergunta, me olhando.
— Sim — confirmo, buscando uma forma de mudar de assunto.
— Okasana? — Yaroslav a chama. — Eu acho que tu deverias abrir
um restaurante para sempre nos alimentarmos. — Ela ri, batendo nele com
um guardanapo.
— Quero descansar, querido, esses meninos me dão muito trabalho.
— Meninos não, homens, né? — Yaroslav a lembra, fazendo-a dar de
ombros. Para uma mãe seus filhos serão sempre meninos.
Minutos se passam entre conversas e risadas. Fico observando cada um
deles, calada e admirada por Okasana deixar tudo mais leve.
Sinto meu peito apertar ao lembrar de seus olhos verdes e perturbados
me encarando como se eu fosse a única a existir no mundo.
Suspiro, finalmente mordendo a maçã.
Quando é que ele me ligará? Quando me reencontrará de novo?
Pequena flor... que saudades de ouvir sua voz e de... seu toque. Desde
meus dezoito anos moro sozinha, então nunca tive a sensação de minha casa
estar tão grande e solitária como agora.
— Laura!? — Levanto a cabeça, piscando ao escutar Okasana me
chamar.
— Sim?
— Tu és calada e quietinha — diz, me estudando minuciosamente.
— Laura é reservada, dona Okasana — Yaroslav informa, sempre me
poupando de responder.
— Observa mais do que fala — acrescenta Gana.
— Por quê? — Okasana indaga, me avaliando.
— É... — Pigarreio. — Creio que sou assim desde que me lembro.
— Eu sou risonho desde que nasci, dona Okasana. — Ela olha para
meu colega, amassando as batatas cozidas. — Tu precisas ver minhas fotos
de infância, sempre com um sorriso nos lábios. Gargalhando até ver a
garganta.
— Eu já vi as fotos desse garoto, e posso afirmar que é verdade. —
Gana conta, divertida, concordo com ela em relação as fotos.
Okasana volta a me olhar, notando o desespero deles de tirar o foco de
mim. Ao ver seus olhos repleto de perguntas, depois de tomar ar para falar,
me levanto apressada e me adianto ao dizer:
— Preciso ir ao banheiro. — Ela faz uma pausa, piscando.
— Ah, sim, querida! — Okasana aponta para o corredor atrás de mim.
— É só virar à direita no corredor, é a quarta porta à esquerda.
— Obrigada, será rápido.
— Tempo de prepararmos a mesa. — Assinto antes de seguir pelo
corredor.
Meu coração entoa em meus ouvidos com a tensão correndo por meu
corpo. Não tenho intenção de ir necessariamente ao banheiro, mas sim...
investigar o real intuito de estar aqui.
Paro no corredor escuro, sombrio. Calafrio sobe por minha espinha
enquanto em passos lentos adentro no espaço que parece se fechar a qualquer
momento.
Encaro a primeira porta à minha esquerda. Coloco a mão na madeira
e deslizo até a maçaneta, fechando meus dedos em torno dela. Prendo a
respiração. Esse quarto é de um dos três moradores daqui.
Giro com cuidado, forço a porta para frente, nada acontece, está
trancada. Solto a respiração, mordendo o interior do meu lábio e me dirijo à
próxima porta.
Meu coração bombeia em meus ouvidos. A adrenalina corre por minhas
veias ao abrir a segunda porta. Engulo em seco, escancarando-a. Dou um
passo à frente, entrado no quarto que parece ser de... Okasana.
O perfume de rosas invade minhas narinas. Olho para o fim do
corredor, me certificando de que não há ninguém e fecho a porta atrás de
mim.
— O que faço agora? — Sussurro, percorrendo meus olhos pelo quarto
decorado com as cores branco e vermelho.
A colcha e almofadas vermelhas fazem uma combinação perfeita com
os móveis e as paredes branco gelo. Em cima dos criados mudos há vasos de
rosas de várias cores, todas, suponho eu, são do seu jardim.
Afasto a cortina da janela, a luz do luar ilumina todo o jardim, os
botões de rosas estão prestes a abrirem, todas elas balançam suavemente
conforme o vento as tocam em uma dança delicada.
Me afasto, contornando o quarto em busca de alguma coisa. Abro as
portas do armário e as gavetas, apalpando para encontrar algo escondido.
Depois de alguns segundos e de ter olhado em baixo da cama de casal,
decreto minha procura um fracasso total. Não há nada de comprometedor.
Giro meus calcanhares, fincando meus pés no lugar quando meus olhos
se prendem na foto de Ruslan em cima da cômoda. Ele está sorrindo com um
cesto cheio de rosas nos braços, um sorriso tão... vivo que aperta meu
coração.
Ele sorri para mim, mas não dessa forma tão cheio de vida. Me
aproximo da fotografia e contorno meus dedos por seu rosto. Ruslan tinha
quantos anos aqui? Dezesseis?
Queria poder rever esse brilho nos seus olhos de novo, o qual se perdeu
quando tudo aconteceu.
Me apresso para sair do quarto de Okasana. Fecho a porta com cuidado
e aguardo alguns segundos antes de partir para o próximo.
Será o de Artem ou de Mirom?
Giro a maçaneta e congelo, ponderando os prós e contras dessa burrice.
Afasto a sensação de alerta que grita para que eu esqueça essa ideia ao
escancarar a porta. Fecho as mãos em punho, dando dois passos à frente,
adentrando no quarto que parece ser de... Mirom.
Meu coração acelera, desejando ter sido o de Artem e não desse louco
lunático. Entretanto, já que estou na chuva, irei me molhar.
Fecho a porta atrás de mim, encostando-me nela e estudando o lugar.
Nas paredes brancas estão penduradas fotos de quando ele era pequeno,
adolescente e de quando se alistou no exército. Uma das fotos parece ser do
dia em que conseguiu entrar na SBU.
Em quase todas estão Artem e Okasana, sorrindo com a vitória dele.
Raiva perdura em meu coração. Os sorrisos, as conquistas... Ruslan foi
privado de tudo isso.
Desencosto da porta e paro diante de uma foto onde ele está abraçado
com uma jovem sorridente, sentados no capô de uma BMW esportiva.
Parecem tão apaixonados... a única foto com mulher entre tantas outras em
torno do seu quarto.
Apresso-me a vasculhar suas coisas. Em cima do criado mudo há
pulseiras de relógios, balas de menta e uma cartela de cigarro. Vou até seu
armário e abro as portas de correr, vasculhando por entre suas roupas, fardas
e gavetas.
Congelo ao abrir a outra porta do guarda-roupa, amaldiçoando todos os
demônios.
— Oh, merda!
Meus olhos se prendem em cada arma pendurada na parede do armário.
Armas de fogo que não faço ideia de como se chamam. Talvez fuzil...
metralhadora?
Contorço meus lábios sabendo perfeitamente o quanto são perigosas,
letais. Todas escuras, brilhantes e tentadoras. Reconheço as pistolas, Gana
tem uma escondida na gaveta de calcinhas.
Quando a levou, disse-me que era para se proteger por morar em um
prédio onde noventa por cento eram criminosos e bêbados de merda.
Palavras dela.
Não disse nada em relação a ela ter uma arma em casa, não sou
ignorante ao ponto de discutir sobre segurança. Ainda mais ela que... se
envolve com qualquer tipo de homem, que paga qualquer valor para tê-la na
cama.
Fecho as portas com cuidado. Solto a respiração que prendia e me
aproximo da cama de solteiro perfeitamente arrumada e impecável. Coloco
meus cabelos de lado e me agacho, afastando a colcha que arrasta no chão
para olhar por debaixo da cama.
Estico minha mão, puxando uma caixa preta em minha direção. Meu
sangue pulsa em meus ouvidos, encaro a caixa e olho para trás antes de tirar a
tampa.
Engulo com dificuldade ao ver o conteúdo. Há fotos de mulheres...
várias mulheres, todas jovens. Há envelopes que aparentam ser de cartas.
A pergunta que não quer calar é: por que Mirom tem fotos de mulheres
em uma caixa debaixo da cama?
Franzo a testa, encarando uma foto. A mulher está sorrindo em frente a
uma mansão de luxo. Afasto as fotos e paraliso ao ler o destinatário de uma
das cartas.
Para: Mirom Mandichevsky
De: Ruslan Rotam
Logo abaixo revela a data... meses atrás. Apressada por perceber que
demorei demais aqui no quarto de Mirom, seguro a carta e fecho a caixa, me
levantando a tempo de escutar a porta ser aberta.
Meu coração acelera, chuto a caixa para debaixo da cama e escondo a
carta na minha barriga, tampando com minha blusa.
Aperto meus dentes ao sentir seu perfume, não preciso me virar para
saber que Mirom está parado atrás de mim. Sua presença é notada pelo
simples impacto que tem sobre as pessoas.
— Por que não me surpreendo em vê-la aqui? — Sua voz me
estremece, umedeço meus lábios e me viro, encontrando seus olhos
fumegantes de ódio.
— Eu... eu... — Limpo a garganta sem conseguir me explicar, ou
melhor, esclarecer uma mentira.
Mirom arqueia uma sobrancelha.
— Confundiste com o banheiro, certo? — Assinto devagar, ele entra,
fechando a porta atrás de si. — Então encontraste meu quarto e... achou
atraente?
— Suas fotos... — Aponto com o queixo. — Elas me atraíram. —
Mirom sorri de lado, sem acreditar em minha desculpa.
— Gosto de registrar momentos — revela, desabotoando os primeiros
botões da sua farda escura. — Me ajuda a lembrar do que conquistei.
— Muitas coisas, pelo visto.
Seus olhos se encontram com os meus, frios como um cubo de gelo.
Mirom se inclina e desafivela o coldre preso em sua coxa, depois duas
pequenas facas presas no tornozelo, colocando-as em cima da cômoda com
um baque.
Sobressalto, sem desprender do seu olhar inexpressivo.
— Hoje foi um dia cansativo — conta, tirando também o colete que
usa. Mirom está tirando sua armadura. — Tivemos uma operação contra
terroristas rebeldes de merda. Acertei três na cabeça. — Mirom começa a
desmontar uma pistola que tirou atrás das costas. — Era eu ou eles. Matar às
vezes é a única solução diante de um desafio que te coloca em risco. Somos
selvagens, dentro de cada um há um instinto assassino.
— Por que está me contando isso? — Mirom sorri, friamente, se
recostando na cômoda e cruzando os braços, me avaliando.
— Um jornalista foi baleado no tiroteio. — Ele estala a língua. — Qual
o sentido de colocar a vida em risco por uma matéria de merda?
— É o nosso trabalho... — me calo quando ele solta uma gargalhada.
— São obrigados? — Abro a boca para retrucar, mas me calo, recuando
um passo quando ele se aproxima como um predador.
Medo me faz encolher, entro em alerta.
— Todos nós temos escolha, ninguém é dono de ninguém, Lauriana.
— Não me chama assim! — Peço.
Os olhos de Mirom brilham ao notar meu medo. Sou uma diversão para
seu tédio.
— Como está seu gato? — Pergunta com ruindade cravado no olhar.
Não respondo, apenas sustento seu olhar.
— O banheiro é no fim do corredor — diz, passando por mim e abrindo
a porta do guarda-roupa, onde estão suas armas.
Engulo em seco e me seguro para não sair correndo. Controlo-me ao
abrir a porta e sem o encarar, saio do quarto indo direto ao banheiro, me
trancando e permitindo respirar novamente.
— Merda! — Xingo em voz alta, tirando a carta escondida na barriga e
a encarando.
Dentro daquela caixa há informações das quais talvez eu esteja
procurando. Fecho meus olhos, me acalmando antes de voltar.
Escondo a carta e depois de longos minutos saio em direção à cozinha,
fingindo que nada aconteceu. Sinto-me tensa e nervosa, apavorada com a
certeza de que Mirom está aqui e sabe perfeitamente que mexi em suas
coisas.
Meus olhos encontram Gana de imediato ao chegar na cozinha. Ela está
encostada na pia, pálida como se tivesse visto um fantasma, assim como
Yaroslav. A tensão irradia por cada poro dos seus corpos.
Mirom está sentado à mesa, ainda fardado, implacavelmente relaxado
na cadeira enquanto conversa com Okasana sobre seu dia.
Seus olhos se voltam para mim e um sorriso cínico estica em seus
lábios, contorcendo meu estômago e despertando em mim a vontade louca de
ir embora.
Ele é apavorante!
— Estávamos esperando por tu, Laura. — Okasana diz, afastando uma
cadeira e indicando para que me sente. — Tu demoraste, estás tudo bem?
— Sim...
— Só curiosidade, mamãe. — Mirom fala com a voz arrastada, me
acompanhando com o olhar até eu me sentar à mesa. — Tu tens belos
amigos. — Ele aponta com o queixo em direção a Yaroslav e Gana. Vejo
maldade em seu olhar. — Conheço o jornalistinha, agora a prostitut...
— Gana, o nome dela é Gana. — Corto-o, ele solta uma risada rouca.
— Bom te rever, Mirom — Yaroslav o cumprimenta, se sentando ao
meu lado esquerdo.
— Gostaria de dizer o mesmo.
— Não seja desagradável, Mirom! — Okasana o adverte.
Me viro quando Gana se senta ao meu lado direito, tensa com a
presença de Mirom. Volto a encará-lo, ele inclina a cabeça, estudando-a com
cuidado, sem nenhuma emoção.
— Acho que tu foste enganada. — Fala para Gana, que o encara
confusa.
— O quê?
— Eles esqueceram de te vender o resto da tua roupa. — Gana enrijece,
seu pescoço adquire um tom avermelhado. O silêncio é substituído pela
risada sarcástica de Mirom.
— Talvez eu tenha deixado o restante da roupa na loja, preferindo
apenas esses pedaços de pano. — Retruca ela, fazendo o sorriso de Mirom se
alargar ainda mais.
— Quanto uma prostituta ganha? — Pergunta, se ajeitando na cadeira e
se inclinando sobre a mesa. — Quantos homens tu comes em uma noite?
Três? Quatro? Ou vários?
Gana fica congelada, assim como eu e Yaroslav. Os olhos de Mirom
nos percorrem, apesar do sorriso, não há nenhuma diversão.
— Sou uma dançarina...
— De pau! — Ele completa.
Gana se remexe em desconforto, seguro sua perna por baixo da mesa, a
tranquilizando. Ela apenas balança a cabeça. Olho para Okasana que apenas
nos observa.
— Mirom, pelo amor de Deus, não seja desagradável. — Ele se recosta
na cadeira, batendo as mãos na mesa, fazendo um baque, nos assustando.
— Tive um dia estressante. — Fala para Okasana, comprimindo os
lábios. — Como estava dizendo a Laura ao encontrá-la dentro do meu quarto,
hoje aniquilei três homens em um tiroteio e um jornalista foi baleado. Como
disse, foi estressante. — Abaixo a cabeça e passo a mão sobre a sobrancelha,
rangendo os dentes.
— Ela estava em seu quarto? — Pergunta Okasana.
— Eu a encontrei lá. — Olho para ele.
— Ah, deve ter errado a porta do banheiro.
— Foi o que me disse. — Ele sustenta meu olhar por alguns segundos
antes de se prenderem em Okasana.
Sinto o olhar de Yaroslav em mim, minha perna começa a balançar.
— Certo, vamos jantar, todos devem estar famintos. — Okasana sorri,
tentando amenizar o clima pesado na mesa. — Querida? — Ela chama por
Gana. — Não ligue para o que Mirom diz, ele é muito... antipático.
— Tudo bem! — Gana a tranquiliza, pegando o prato que Okasana
estende.
— Yaroslav, quero ver tu raspar todo o prato.
— Pode deixar que isso eu dou conta — ele responde, sorrindo.
Finalmente permito-me olhar pela mesa, encontrando travessas de
Vareniki, Borsch repleto de legumes, arroz e macarrão com carne e milho.
Parece estar delicioso, minha boca saliva.
— O que mais tu consegues fazer? — Mirom pergunta a Yaroslav,
encarando-o. — Comer macho?
— Céus Mirom! — Okasana grita, jogando em seu rosto o pano de
prato. — Eles são minhas visitas, não permitirei que tu os trates desta forma
repugnante. Não se esqueça que independente de ser um homem feito, ainda
posso lhe dar uma surra. — Ele ergue as mãos em rendição, nos encarando
com desgosto sem dizer mais nada.
Yaroslav fica sem graça com o comentário de Mirom, mas mesmo
assim mantém a compostura. Mexo minha comida sem um pingo de vontade
de comer, sentindo o olhar de Mirom em mim, reparo também que encara
Gana com intensidade. Ela se remexe com desconforto.
— O que estão achando da comida?
— Deliciosa, dona Okasana. — Gana diz, sorrindo com doçura.
— E tu, Laura? — Olho para ela, assentindo.
— Maravilhosa — confirmo, Okasana sorri satisfeita.
— Tu tens namorado, Laura? — Ela pergunta, me surpreendendo. —
Uma moça tão linda como tu deves ter pretendentes caindo aos seus pés.
— Sou solteira — respondo, pigarreando.
— Por quê? — Abro a boca para responder, mas sou interrompida por
Mirom.
— Devido a um passado conturbado, não é Laura? — Ele enfatiza meu
nome.
— Como assim? — Olho para Okasana, Yaroslav e eu nos
entreolhamos.
— Só não encontrei o homem certo — falo, voltando minha atenção
para minha comida.
— Tem certeza? — Mirom pergunta, inspiro fundo, ignorando-o.
— Depois irei convidá-la para ir em minha casa, dona Okasana. —
Yaroslav diz, tentando mudar o foco da conversa, Mirom trinca os dentes. —
É um apartamento pequeno, mas tenho certeza que tu vais amar. É bem
colorido, minha mãe tem essa mania de cor.
— Vou adorar, é só marcar. — Okasana confirma, arrancando um
pedaço de pão e comendo junto com a sopa.
— Recebi uma pessoa em minha casa que tem uma conexão contigo,
Laura. — Mirom fala distraído, dando um gole no seu suco.
— Tu não moras aqui? — Pergunta Yaroslav.
— Sim e não. — Mirom responde. — Tenho outra residência. —
Ignorando-o, levo à boca a colher cheia de sopa e carne.
— James... acho que tu o conheces. — Congelo com colher no meio do
caminho. — Ele tem uma cicatriz cruzando todo o rosto... recorda-se?
Meu olhar se encontra com o seu, meu coração acelerado me faz perder
o ar. A pressão contra meu peito é insuportável e começo a tremer com sua
declaração, encarando-o com indignação.
Não posso acreditar que ele trouxe James... ele está mentindo assim
como mentiu em relação a Rony... não fiz nada para que sinta tanto ódio
assim de mim, a não ser que esteja fazendo isso por causa de Ruslan e...
certo, estou bisbilhotando sua vida também.
— Quem é James? — Okasana pergunta.
— O padrasto de Laura. — Responde. — Queria ajudá-la a rever sua
família. — Deixo a colher cair, espirrando sopa para todos os lados, ao notar
em seus olhos que é possível que esteja falando a verdade.
— Você não fez...
— Ele é simpático, tu foste a culpada por tudo.
— Culpada? — Okasana indaga sem entender nada.
— Mulheres só servem para destruir vidas, abrir as pernas por dinheiro,
prostitutas são sujas. — Seu olhar se prende em Gana que se levanta de uma
vez.
— Chega! — Diz, agarrando meu braço e me levantando. — Não
ficarei aqui de cabeça baixa enquanto esse escroto de merda nos ofendes
dessa forma. — Ela me afasta da mesa. — Obrigada pela janta e pela
gentileza, dona Okasana, mas acredito que não somos bem-vindos aqui.
— Saia do meu caminho, Laura. — Mirom diz, sem se abalar, com
frieza o comandando. — Não avisarei novamente.
Fico encarando-o, paralisada e sem reação enquanto sou arrastada por
Gana para fora. Por todo o caminho escuto-a xingando, blasfemando.
— Desgraçado... — Diz ao sair da casa, ela me solta e segura meu
rosto. — Acorda, Laura.
— Ele o trouxe... — Sussurro com o medo me invadindo em um baque.
— Ele... ele me encontrou...
“— Não importa para onde você for, eu irei te encontrar.” — Ele
disse, naquela noite. — “Nem que seja no inferno, eu vou te encontrar e te
destruir... você é minha, Lauriana...”
Estremeço, sentindo lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Os lábios de
Gana se movimentam, não a ouço, o zumbido em meus ouvidos ofusca
qualquer som.
— Ela vai surtar... — Yaroslav diz ao fundo.
— Cacete... — Gana resmunga, me levando para longe.
Antes de me colocarem dentro do carro, olho para casa uma última vez,
encontrando com Mirom parado em frente à porta com os braços cruzados,
me encarando sem nenhuma expressão no rosto.
Se ele queria me destruir de alguma forma, ele acabou de conseguir.
Começo a respirar pesado, sentindo o ar sumir dos meus pulmões. Gana
freia bruscamente no acostamento e me olha preocupada. Não é preciso dizer
nada para que saiba que estou prestes a sucumbir à escuridão. A voz de James
entoa em minha cabeça, seu toque... estremeço, travando a garganta quando
meu estômago revira.
— Tu precisas de ar — fala, saindo do carro, fecho meus olhos por
alguns segundos até ela abrir a porta e me tirar de dentro, fazendo-me sentar
no meio fio, o vento frio beija minha pele exposta. — Vamos lá, respira e
inspira, estamos aqui contigo, Laura.
Sustento os cotovelos no joelho e enterro meu rosto entre as mãos,
controlando o turbilhão de sentimentos dentro de mim. Do medo de ter que
reviver todo aquele inferno, da repulsa que estou sentindo por Gana ter me
tocado e da vontade de me arranhar por tê-los deixado me tocar.
— Aqui, colega — Yaroslav estende uma garrafinha de água. Onde ele
encontrou não faço ideia, mas aceito, dando um gole com as mãos trêmulas e
geladas. — Inspire e expire mais um pouco.
— Eu vou ficar bem! — Afirmo, respirando pausadamente.
— Arch, que ódio por não ter metido a mão na cara daquele escroto. —
Gana rosna, se afastando e chutando o pneu de trás do xoxo.
— Mirom é esquisito, me dá arrepios aquele olhar. — Declara
Yaroslav, assinto, concordando.
— Laura? — Levanto a cabeça, Gana franze a testa. — Eu avisei para
tu ficares longe dos Rotam... — Murmura, esfregando o rosto.
— Precisamos de respostas.
— Que respostas? — Pergunta, colocando as mãos na cintura. — Mais
uma vez aquele filho... do demônio te ameaçou, eu vi, Laura, em seus olhos.
Foi real, Mirom estás a falar a verdade.
Desvio meu olhar do dela, encontrando com os de Yaroslav, que
concorda com um aceno leve de cabeça.
— E se Mirom for o culpado? — Ele murmura, me fitando
desconfiado.
— Eu encontrei uma caixa em seu quarto, dentro dela havia fotos de
mulheres e... cartas, entre elas uma do Ruslan. — Encaro a garrafinha de
água, tirando o rótulo enquanto sinto o olhar deles presos em mim.
— Tu entrastes... — Gana começa, mas faz uma pausa, indignada. —
Como diz o ditado que tu sempre falas lá do seu país?
— Não cutucar a onça com vara curta! — Digo, olhando para ela.
— Isso, esse mesmo. Só que tu estás cutucando a onça com vara curta.
— Ela passa a língua em seus lábios. — Esses Rotam são psicopatas,
começando por Ruslan que é considerado um Serial Killer, e mesmo que não
tenha matado essas mulheres, que duvido muito, ele matou dentro da cadeia.
Mirom és um doente lunático, tenho certeza que nem coração ele deve ter.
Aquele policial... qual o nome dele?
— Artem — responde Yaroslav.
— Um merda de um corrupto, e a mãe... arch viu a forma como me
olhavas? Ou da forma que me trataste? Certo, sou uma prostituta, transo por
dinheiro, mas não mereço ser tratada daquela forma não!
Gana cruza os braços, se recostando no carro com o rosto emburrado e
com raiva. Não tiro sua razão, até porque a coagi de ficar enquanto era tratada
com desrespeito.
— Vocês deveriam parar com isso. — Ela diz, baixinho.
— Andry nos esfola. — Yaroslav solta um suspiro longo. — Mas eu
concordo, acho que a gente foi longe demais. — Fala derrotado.
— Eu não quero parar — digo, balançando a cabeça. — Mirom
esconde alguma coisa, ele está com medo de que eu descubra, por isso está
dessa forma. Acredito que não tenha relação com Ruslan, mas com ele
mesmo. Entende? — Indago, olhando para ambos.
— Amanhã tu vais no teu chefe — começa Gana, me olhando com
frieza — e irá dizer que tu estás fora dessa investigação. Escreva, monte o
que já tem, mas chega! Não vou perder minha única amiga. — Meus olhos
vão até Yaroslav, agachado diante de mim. Seu rosto pálido pelo que
aconteceu é a certeza de que realmente devemos parar.
— Acho que é tarde. — Embora eu saiba dos riscos, quero provar que
Ruslan não é o culpado.
— Nunca é tarde...
— Para uma pessoa que está envolvida demais, é tarde, Gana. —
Murmuro com a voz falhando, sem coragem de encará-la.
— Envolvida demais? O que tu não estás me contando, Laura? —
Engulo em seco, ela precisa saber...
— Laura estás escondendo Ruslan e... — Yaroslav começa, mas para
quando Gana arfa.
— O... Quê!? — Sobressalto com seu grito, seus olhos arregalados me
encaram. — Tu estavas o escondendo... espera! — Ela ergue a mão e fica me
olhando por alguns segundos. — Foda-se, tu se apaixonaste por ele? — Não
respondo, mas ela lê em meu rosto a verdade. — Cacete... eu falei para tu
arrumar um homem, mas não um criminoso, Laura. Então Ruslan estava no
nosso prédio o tempo todo? Na sua casa? É inacreditável!
Gana vira as costas com as mãos na cabeça, seus ombros tensos é a
prova de que não gostou de saber o quanto estou envolvida.
— Merda! — Xinga, chutando outra vez o pneu.
Yaroslav comprime os lábios se afastando de mim e indo até ela para
tentar acalmá-la. Seus ombros estremecem, fazendo meu coração apertar.
Eu a fiz chorar!
Aperto a garrafinha, perdida na minha própria dor.
— Não estou acreditando... — Ela sussurra com a voz embargada.
Engulo o caroço que se formou na garganta e pego meu celular do
bolso quando ele vibra. Leio a mensagem de Olesya que diz que voltou do
congresso e que amanhã é nossa sessão.
Inspiro fundo, deslizando o dedo na tela até encontrar o seu número.
Me levanto e afasto, levando o celular a orelha. A voz da secretária faz meu
coração acelerar, aguardo até o bipe para deixar recado.
Limpo a garganta e tomo ar antes de começar a falar: — Hum... Oi... —
Faço uma pausa afastando a ardência dos meus olhos. — Sei que deve estar
se escondendo, porque Artem está atrás de você... queria só te dizer que Rony
está internado, a Darya, sua veterinária, disse que ele está com problemas
renais, mas está melhorando. — Olho para baixo, esfregando meu pé nas
ervas daninhas. — Rony é forte que nem você, então tenho certeza que ficará
bom. A veterinária ainda não sabe o dia em que ele receberá alta... e... eu
sinto sua falta... — Aperto meus lábios, piscando para dissipar as lágrimas.
— Queria saber se está bem... Tchau!
Finalizo a ligação e encaro o celular.
— Laura? — A voz de Gana, tão doce e calma, acaba me
desestruturando.
— Será... será que nunca serei feliz? — Pergunto, permitindo que as
lágrimas escorram. — Será... que sempre serei essa pessoa morta por dentro?
— Olho para cima, tentando conter as lágrimas.
— Ei... — Yaroslav roça sua mão na minha, olho para ele. — Tu serás
muito feliz, tenho certeza disso.
— Perdoe-me — Gana para diante de mim, pegando uma mecha do
meu cabelo. — Só estou preocupada e com medo por você, Laura. É que...
amo-te demais para cogitar lhe perder. Eu não suportaria, entende? —
Assinto, apertando a mão de Yaroslav.
— Vamos comer alguma coisa? — Ele pergunta depois de um tempo,
quebrando o clima melancólico.
— Tu não encheste o bucho não? — Gana entoa, chocada.
— É que... — Yaroslav enruga o rosto. — Será que foi só eu que achei
que a comida estava... estranha? Ruim? — Fico encarando-o.
— Mas você estava elogiando. — Recordo, ele morde o lábio.
— Estavas sendo educado — Gana solta uma risada.
— Foda-se, estava péssima. — Concorda com Yaroslav. — Não só a
comida é estranha, mas a Okasana, Mirom... Afe, a família inteira.
— Eu também achei ruim. — Revelo, fazendo-os rirem.
— Um sanduíche com batatas fritas e Coca-Cola? — Yaroslav sugere,
olhando para Gana com expectativa.
Ela inspira fundo, derrotada.
— Olha, apenas hoje irei fugir da dieta, só porque Laura estás triste,
okay? Mas não se acostumem!
Yaroslav estremece de entusiasmo, puxando minha mão para que eu
aceite. Assinto, me sentindo melhor por estar com eles e dividindo essa
angústia e medo. Ao lado de Gana e Yaroslav tudo fica mais leve... menos
insuportável.
Encosto na parede do beco mais escuro que encontrei, a falta de fôlego
está afetando meus pulmões. Passo a barra do moletom pela testa, enxugando
o suor e o sangramento do meu lábio cortado enquanto aguardo.
Correr durante vários minutos de policiais altamente treinados pela
avenida movimentada e entrar em luta corporal com eles, não é uma missão
muito fácil diante do meu despreparo.
Prendo a respiração, colando as costas no muro ao escutar passos
cautelosos se aproximando. O pior é que sempre estão com uma pistola na
mão, seja ela de fogo ou de choque, não importa, qualquer uma será letal para
mim.
Escuto sussurros e arrisco olhar por cima do muro. Artem, com uma
pistola na mão e um rádio na outra, parece jorrar ordens ou está pedindo por
reforços... não faço ideia, mas pelo timbre da voz autoritária, julgo ser uma
dessas duas coisas.
Olho em volta em busca de uma saída. Há algumas casas cercadas por
apenas cercas e árvores, aqui é o melhor lugar para me esconder. Escoro a
cabeça contra o muro, fechando e abrindo a mão dolorida, me controlando
para não empunhar a arma que estás nas minhas costas, que pulsa para ser
usada com quem quer que seja.
Se eu a usar contra eles, será muito pior...
Preciso só de mais alguns minutos... preciso distraí-los por mais algum
tempo.
Ajeito meu capuz escondendo meu rosto e saio do beco com passos
rápidos em direção à rua. Ouço murmúrios e olho por sobre o ombro, os
policiais estão me olhando, inclusive aqueles que deixei um estrago no rosto.
Artem se vira e rosna.
— Peguem-no, seus idiotas! — Ordena, sorrio de lado ao perceber sua
frustração, ele sabe que estou lhe fazendo de bobo.
Os policiais vêm em minha direção, começo a correr nas calçadas,
passando por entre os carros, pulando cercas e invadindo os quintais apenas
para ganhar a droga do tempo.
Sirenes entoam por entre a noite calma de um bairro silencioso, a luz
do luar me guia pelo caminho até entrar em uma esquina. Paro de uma vez ao
avistar carros de polícia bloqueando a rua. Olho para trás e lá estão mais
policiais me cercando.
— Ruslan, aqui é a polícia, mãos para cima onde podemos vê-las! —
Artem grita, apontando uma arma em minha direção. Há um sorriso em seus
lábios, seus olhos mesmo distantes, brilham de vitória.
Começo a levantá-las, encarando-o e recordando do momento em que
invadiu a boate Nichnny Klub seguindo perfeitamente nosso plano.
Artem, com cuidado se aproxima e pega uma algema. Ele para diante
de mim com os outros policiais a poucos metros. Seu sorriso desperta a raiva
que estava oprimindo.
— Te peguei! — Diz, com a arma ainda apontada para mim. —
Achastes que conseguiria fugir por muito mais tempo? — Fico calado,
contando os minutos, fitando seu rosto contorcido por ódio.
— Tu voltarás para o inferno...
— Que tu me colocaste? — Completo, inclinando a cabeça para o lado,
o estudando.
— Duas mulheres foram mortas desde que tu saíste do Colony, quantas
mais pretendes assassinar? — Trinco os dentes.
— “Pior cego é aquele que não quer ver” — sussurro, fazendo-o franzir
a testa.
— Como dizes?
Ficamos encarando um ao outro por alguns segundos, quando Artem
faz um movimento, eu entro em ação. Com agilidade acerto seu nariz com
meu punho ao mesmo tempo em que o desarmo. Em instantes a pistola está
encostada em sua testa.
Sorrio mais uma vez com meus olhos cravados nos seus e em alerta aos
movimentos dos outros policiais que aguardam ansiosos por uma ordem.
Artem geme de dor e ergue as mãos em rendição ao escutar o engatilhar da
arma. Seu nariz escorre sangue.
— Tu, com calma, pedirás aos teus homens para abaixarem as armas.
— Ordeno, pausadamente. — Depois tu virarás de costas para mim, como
um bom garoto. — Artem rosna.
Vendo a determinação em meus olhos, meu irmão, com cautela, abaixa
a mão em direção ao rádio preso em seu cinto, o leva à boca e trinca os
dentes.
— Abaixem as armas... — Manda, empurro com força sua testa com a
arma. — Agora!!
De soslaio consigo perceber todos acatando suas ordens com ódio no
olhar. Ergo as sobrancelhas, Artem gira, ficando de costas para mim. Passo
meu braço por seu pescoço e posiciono a arma em sua têmpora, usando-o
como escudo.
Observo os policiais ficarem mais tensos com expressões assustadas ao
verem um dos seus líderes como refém. Não vão fazer qualquer movimento,
não até terem certeza de que Artem estará em segurança. Uma das minhas
vantagens.
Começo arrastá-lo para o beco à minha direita, suas mãos continuam
erguidas e minha arma pressionando sua pele. Artem chia de raiva, meus
olhos percorrem cada policial.
— O que tu estás pensando? — Ele pergunta.
— Já pensei, estou apenas executando — respondo com frieza,
mergulhando na escuridão e escutando as vozes alarmadas dos policiais.
— Isto o que estás fazendo, te levará para o abismo...
— Cale-se, Artem! — Ordeno, intensificando meu braço em seu
pescoço, ele arfa.
— Eu te pegarei...
— Tu és fraco — retruco. — Um banana, por isso que tenho certeza
que tu não és o culpado. — Artem gargalha, paro de andar, olhando para dois
policiais com armas apontadas em minha direção na entrada do beco.
— O que quer?
— A verdade... quem tu estás acobertando? — Ele enrijece, aperto a
arma, rangendo o dente para não apertar o gatilho. — Sei que tu sabes de
quem estou a falar.
— Tu és o assassino, quem mais eu encobertaria?
— Mirom? É ele? — Artem ri, mas não diz nada.
— Eu poderia dar uma ordem de execução, poderia morrer, mas tu
irias comigo. — Olho para trás, ansioso.
— Faça e vamos viver juntos no inferno, porque para mim não fará
diferença alguma.
— Tu se achas, não é? Sempre foste assim desde pequeno. Sempre
inflando o peito...
— Eu trabalhei para que tu e Olesya estudassem, para que tivessem um
futuro. — Relembro a ele a sua ingratidão. — Eu passava a noite vendendo
rosas para que não passássemos fome, e tu? O que tu fazias? Reclamava e
ficava em casa, deitado... sem fazer nada, vivendo às custas da nossa mãe.
— Tu não és e nunca serás o preferido dela...
— E tu és? — Pergunto. — Um corrupto de merda... te dá o título de
preferido?
— Sou melhor que tu, não foi eu que me tornei um assassino.
— Eu fiz de tudo por vocês, deixei de seguir meu sonho para alimentá-
los, apoiá-los nos estudos para que fossem alguém no futuro... para que na
primeira oportunidade virassem as costas para mim.
— Tu és um bosta! — Alega com tanto ódio que estremeço.
Escuto uma freada brusca atrás de mim, olho para trás a tempo de ver
Nikita abrir a porta do passageiro por dentro, seus olhos se encontram com os
meus e um aceno me diz que é hora de ir.
— Vou lhe dar um aviso — sussurro em seu ouvido. — Te colocarei na
cadeia junto com aquele que tu estás protegendo. Não terei minha vida de
volta, mas assim como eu, vocês irão apodrecer no mesmo inferno em que
vivo. — Retiro meu braço em torno do seu pescoço.
— Se ajoelhe, Artem — ele fica imóvel, respiro fundo e chuto as juntas
dos seus joelhos, obrigando-o a me obedecer. — Te vejo em breve, se tu
fizeres qualquer movimento, apertarei o gatilho. — Aviso, olhando para os
policiais logo à frente.
Desencosto a pistola da sua têmpora e começo a recuar até estar perto
do carro. Giro com rapidez e entro, Nikita não espera por mais nenhum
segundo e arranca.
Escuto sirenes, olho pelo retrovisor. Duas viaturas começam a nos
seguir. Nikita pisa fundo no acelerador, cortando os carros, entrando na
contramão e furando os sinais.
Recarrego a pistola e a deixo engatilhada, pronto para disparar se assim
for preciso. Passo a língua em meus lábios, prestando atenção ao nosso redor.
As luzes são apenas um borrão enquanto Nikita ganha mais velocidade, ele
vira à direita e depois por uma ruela, e entras na rodovia, cantando pneu.
Volto a olhar pelo retrovisor, a luz azul e vermelha da viatura se torna
apenas um ponto, tão distante que não há como nos alcançar. Encosto no
banco, soltando a respiração e finalmente relaxo.
— Foi fácil, não? — Olho de esgueira para Nikita, rindo.
— Para ti que só precisou invadir uma casa! — Retruco, olhando pela
janela. — Encontraste alguma coisa?
Nikita fica em silêncio por alguns segundos, volto a olhá-lo, sua
expressão ilegível agita meu coração.
— Invadi a casa de sua mãe, mas...
— Não tinha nada no quarto dele? — Nikita confirma com um aceno.
— Ruslan, Laura estavas lá.
— Como dizes? — Pergunto, me endireitando.
— Eu esperei até sua mãe sair, de fato, ela passou boa parte fora, mas
foi Mirom quem enrolou para deixar o caminho livre. Quando ele se foi,
consegui entrar e invadi o quarto de Artem, não encontrei nada
comprometedor, iria ao quarto de Mirom se tua mãe não tivesse chegado
antes do previsto acompanhada de Laura e de mais duas outras pessoas,
soube naquele momento que teria que sair.
— O que ela estava fazendo lá? — Nikita balança a cabeça.
— Não faço ideia...
— E depois? Encontrou algo na casa dele? — Ele me olha por alguns
instantes.
— Afinal, se eles moram com tua mãe, por que diabos tens outra casa?
— Questiona com a atenção voltada para a estrada.
— Eles são homens feitos, apesar de mamis mantê-los debaixo de suas
asas, os idiotas precisam de privacidade para fazer suas merdas. — Respondo
com amargura. — Encontrou algo?
— Acho que sim!
— Acha que sim? — Nikita batuca os dedos contra o volante.
— Foi uma jogada de manipulação tu dizeres a ele que escondes o
verdadeiro criminoso ou tu desconfiavas mesmo disso? — Esfrego meus
lábios, pensativo.
— As duas coisas. — Respondo, por fim.
— Bom, talvez tu tenhas acertado. — Olho para ele, pedindo com o
olhar para que desembuche, Nikita respira fundo. — Encontrei gravações,
alguns arquivos, provas do qual nunca chegaram nas mãos dos
investigadores.
— Então... ele sabe?
— De certo que sim! — Confirma, fico olhando-o por um longo
momento, Nikita comprime os lábios. — Essa será a nossa chance de
descobrir a verdade... Melhor se despedir, Ruslan, porque realmente seu
tempo está curto.
— Onde estão as evidências?
— Na boate, achei mais prudente enviá-las direto.
— Tu conferiste? — Nikita assente.
— Prefiro que tu vejas depois que colocar um ponto final na tua
história com a Laura.
— Por que tu estás a me dizer isto? — Ele fica calado, isso me
incomoda e faz meu coração acelerar ao mesmo tempo em que arrepios
irrompem pelo meu corpo.
— Tu confias em mim? — Pergunta, me olhando fixamente.
— Claro!
— Então faça o que eu digo. — Nikita acelera mais o carro. — Sorria
mais uma vez... antes de tudo explodir.
Tem dias que eu desejo nunca abrir os olhos... ou apenas dormir até que
tudo desapareça, que o mundo se exploda. Às vezes é um sentimento que não
consigo compreender. A dor, a solidão, a desolação me destroem aos poucos,
fazendo-me perder o sentido da vida.
Meus olhos se nublam de lágrimas quando meu despertador grita
desesperado, me dizendo que é hora de levantar. O problema é que não quero
sair da cama, quero ficar aqui até sucumbir... até parar de existir.
Coloco meus antebraços nos olhos, ignorando por completo o
despertador, sem me incomodar com seu barulho insuportável, sem forças
para levantar, sem vontade de viver.
Rony não está aqui e Ruslan não chegará, como fazia toda manhã.
Estou sozinha como antes... como sempre foi minha vida, eu estava
acostumada a viver assim, até eles chegarem e bagunçar tudo.
Sem mais suportar o barulho estridente do despertador, viro e bato
minha mão nele com força, calando-o. Afasto as cobertas, coloco as pernas
para fora da cama e encaro meu tornozelo.
A mordida de Axel ainda está nítida em minha pele, deixará uma
cicatriz enorme. Respiro fundo e forço-me a levantar, me encaminhando até a
sala, onde apanho o controle e ligo a Tv que passa o desenho Os Flintstones.
Fico assistindo em pé por alguns minutos, sentindo inveja por eles
terem uma família e eu não. Deixando de lado o controle, vou até a cozinha,
pego o doce éclair intergaláctico cor-de-rosa e enfio um enorme pedaço na
boca antes de começar a me arrumar.
Depois de levar mais tempo que o costume, apanho minha bolsa,
aumento o volume da Tv e abro a porta. Ao sair, acabo tropeçando em uma
caixa preta, franzo a testa.
— Mas que... — Calo-me antes que qualquer xingamento saia, agacho-
me e com cautela abro a caixa, prendendo a respiração logo em seguida.
Dentro há duas rosas vermelhas, murchas. Um pressentimento ruim
percorre meu corpo, estou petrificada no lugar, sentindo meu sangue pulsar.
Olho para os lados em busca de respostas, mas a única coisa que vejo é um
corredor vazio e silencioso.
Talvez não seja para mim... Talvez alguém deixou aqui essa noite
depois de uma discussão ou estão querendo me pôr medo, afinal, houve uma
chacina no andar de cima, os moleques do prédio querem nos amedrontar....
Quem estou querendo enganar?
É claro que quem deixou essa rosa aqui não tinha boas intenções e tinha
um único objetivo, me assustar. Engulo em seco com o pensamento fixo em
duas pessoas, que tem motivos de sobra para fazer isso... não, duas não, três.
Artem, Mirom e... Fecho meus olhos ao sentir calafrios percorrer minha
espinha. Eu preciso parar, mas por quê parte de mim pede para eu continuar?
Estou na mira de um assassino, fui ameaçada várias vezes e... Droga,
ainda assim quero continuar. Coloco a tampa novamente, e jogo no lixo a
caixa junto com as rosas assim que avisto xoxo estacionado.
Por todo o caminho até o consultório, tento bloquear a sensação ruim
em relação às rosas. Olho para a secretária, ela sorri para mim.
— Bom dia, Laura. — Cumprimenta, educada como sempre.
— Oi, bom dia. Olesya chegou?
— Estás à sua espera. — Assinto.
— Obrigada.
Respiro fundo e entro no consultório. Olesya está sentada à sua mesa,
lendo um livro que não consigo identificar. Ela levanta a cabeça e sorri... um
sorriso tão parecido com o de Ruslan que aperta meu coração, espalhando
choque por meu corpo.
— Parece-te bem, Laura — diz, fechando o livro e se levantando.
Ela está vestida com uma blusa de seda vermelha combinando com
uma saia de couro que bate até os joelhos, modelando seu corpo curvilíneo.
Seus cabelos estão presos em uma trança raiz e a maquiagem natural a deixa
com um ar mais leve.
— Está muito linda hoje — elogio, me acomodando no sofá.
— Muito obrigada. — Ela se senta na cadeira à minha frente.
— Como foi o congresso?
— Enriquecedor. — Responde, sinto seus olhos me analisando,
enquanto batuco meus dedos uns nos outros, encarando o teto depois de me
deitar.
— Me conte, Laura, o que estás te incomodando? O porquê de estares
agitada e com o olhar distante?
Aguardo um longo momento, dou de ombros e engulo em seco,
sentindo as lágrimas vindo. Umedeço meus lábios, balanço os pés cruzados
no tornozelo.
— Laura?
— Eu... — Engulo as lágrimas. — Hoje... eu não queria ter aberto os
olhos. Uma dor... uma solidão tão grande dentro do meu peito está me
sufocando, tirando todo meu ar a ponto de... não querer existir.
Lágrimas escorrem por meu rosto mesmo eu tentando controlá-las.
— Por quê?
— Eu me sinto... sozinha. — Confesso.
— Sei que não é só isso.
— Eu me sinto... vazia.
— E...? — Fecho meus olhos.
— Hoje é seu aniversário... o dia em que fui embora... — Seguro o
choro, apertando os olhos com as mãos. — Eu a deixei com aquele maldito,
sozinha. Eu a abandonei, não dei notícias... 15 anos... quinze anos que deixei
de ser Lauriana, mas Lauriana nunca deixou de ser eu. Não consigo ser
feliz... eu quero tanto sorrir!
Não consigo segurar o choro que vem com intensidade. Encolho-me,
dolorosamente. Olesya aguarda ao meu lado, sempre transmitindo
tranquilidade mesmo em tempos agitados. Ela é como o sopro de um vento.
— Ligue para ela... — murmura, depois de vários minutos.
Olho para ela através das lágrimas, negando com a cabeça.
— Eu não posso...
— Ano passado tu não conseguiste contato com ela, assim como anos
anteriores. — Olesya estende seu celular. — Talvez agora tu consigas.
— Mas...
— Ligue — insiste, engulo com dificuldade, esticando minha mão
trêmula.
— Ela nunca mudou o número... — Balbucio. — Será que ela vai
atender? — Pergunto, encarando o celular. — Ela odeia que lhes deem
parabéns, ela nunca atendia nenhuma ligação...
— Tu só saberás quando tentar. — Incentiva, destravo o celular e
encaro o número que Olesya salvou.
— Certo...
Respiro fundo, seleciono a opção de ligar. Meu coração bate tão
acelerado que fico com dificuldade de respirar, até mesmo de ouvir.
O primeiro toque entoa, atingindo em cheio meu coração. Segundo
toque... terceiro... quarto... e quando decido desligar ao perder a coragem,
uma voz me congela.
— Alô? — Sua voz é firme ao mesmo tempo delicada. — Alô, quem
fala?
Português, ela está falando em português... Havia anos que não ouvia
alguém falar minha língua, apenas em desenhos. O sotaque puxado...
— Quem está falando? Alô? — Repete com impaciência, a única coisa
que consigo emitir é um soluço.
Estou paralisada, sem reação diante a saudade de ouvi-la, sei que irá
desligar em instantes, mas o fato de eu ter escutado sua voz depois de tantos
anos e por ela nunca ter trocado de telefone, me desestrutura de uma maneira
impossível de consertar.
Mamãe permanece na linha, esperando... por que ela não desliga?
— La... Lauriana? — Sussurra com a voz tão trêmula que me atinge
como soco... ela sabe que sou eu que estou ligando? — Lauriana, é você que
está aí?
Nego com a cabeça, apertando meus lábios com força, tentando não
fazer nenhum ruído. Sonhei por tantos anos o dia em que escutaria meu nome
ser emitido por sua voz de novo... só que... afasto o celular e finalizo a
ligação.
Por longos minutos fico parada, encarando o aparelho, sem me mover,
sem nem ao menos respirar. É como se eu apenas existisse, mas nada. Como
um cacto no meio do deserto, solitário.
— Laura?
— Eu... — Meus lábios tremem e em instantes volto a chorar
descontroladamente.
Olesya faz o impensável, puxa-me para um abraço. Fecho meus olhos e
retribuo, me sentindo destruída. Nesse momento a única coisa que eu quero, é
desaparecer... ou melhor, me afogar nas lágrimas.
Minha mãe atendeu a ligação, eu escutei sua voz, mas isso só mostra o
quanto estava na beira do abismo, agora me sinto caindo... caindo e caindo...
no entanto, assim como das outras vezes, conseguirei me manter em pé,
machucada, destroçada, mas continuando assim como fiz todos esses anos.
A vontade de desaparecer é grande, mas a de viver e de ser feliz
ultrapassa qualquer dor que sinto dentro da minha alma despedaçada.
Meus olhos navegam pela vitrine de doces e salgados da Confeitaria
Musse Confectinery, escolhendo o que irei pedir antes de chegar a minha vez
de ser atendida.
Havia muito tempo que não vinha aqui, desde que encontrei Artem
nesse mesmo lugar. Meus olhos se prendem no Bolo Kievski com camadas
não só de pão de ló, mas de merengue de nozes que deixa a textura do bolo
crocante e arejada.
O sininho da porta toca. Solto um suspiro longo e nem olho para saber
quem acabou de entrar. Eu vi sua viatura parada do outro lado da rua.
— Será porque não é uma coincidência vê-lo aqui? — Resmungo
assim que sinto-o parar atrás de mim.
— Bom dia para ti também — fala com sarcasmo. — Eu frequento
muito aqui.
— Ótimo! — Dou um passo à frente quando a fila anda.
Cruzo meus braços, batucando os dedos contra o tecido macio da
minha camisa.
— Fiquei sabendo que tu foste jantar com minha mãe.
— Ela nos convidou.
— Hum... Mamãe estavas furiosa com Mirom. — Mordo meu lábio
inferior, me impedindo de falar. — Pena que não pude estar presente, estavas
perseguindo Ruslan.
Prendo a respiração, tentada a me virar e olhar em seus olhos, exigindo
mais detalhes. Aperto meu braço.
— Pelo visto fracassou! — Dou outro passo à frente.
— Ele fez um estrago em alguns dos meus homens. — Sem conseguir
aguentar, viro-me em sua direção, estudando-o.
Seu rosto esculpido está intacto, sinto um pouco de raiva.
— Infelizmente você saiu ileso, não é? Que pena! — Volto para frente,
instruindo a atendente a pegar meu bolo.
— Estamos em seu encalço... — O ignoro ao pegar meu bolo. Olho
para o fundo de seus olhos, Artem retribui o olhar.
— Qualquer coisa que você disser, não fará nenhuma diferença para
mim, eu não me importo.
— Tem certeza? — Ele arqueia a sobrancelha.
— Absoluta! — Confirmo, Artem sorri de lado, colocando as mãos no
bolso da farda. — Me deixe em paz. — Digo, indo até uma pequena mesa no
fundo da confeitaria.
Me ajeito, coloco o notebook na mesa ao lado da minha bolsa e ergo a
cabeça, encontrando com o olhar de Artem. Sustento até ele desviar e sair
porta afora sem fazer seu pedido. Mais uma vez, estava aqui apenas por
minha causa.
Inspiro fundo, afastando-o da minha mente e foco no meu trabalho, em
montar a matéria que Andry solicitou ontem. Só falta o texto. E durante uma
hora mergulho nas palavras até me assustar com o barulho de notificação do
meu celular.
Olho para ele com o coração acelerado e seleciono a mensagem,
ficando congelada mais uma vez, a mensagem diz:
Estou a esperar-te no Derzhprom
Prendo a respiração, olho para os lados e encaro o celular de novo ao
chegar outra notificação, a mensagem completa a anterior.
Pequena flor!
Solto a respiração começando a juntar minhas coisas. Sinto meu
coração acelerar não de susto, ou de medo, ou... sei lá, agora ele bate
desesperado com a possibilidade de revê-lo... de poder rever Ruslan Rotam, o
homem que todos dizem para me afastar, mas que a cada dia, mais perto dele
quero ficar.
Ao sair do carro, depois de muito custo para achar uma vaga, encaro
maravilhada o Derzhprom, a casa Industrial do Estado. É um grande edifício
governamental no centro de Kharkiv.
Ativo o alarme do xoxo, tendo comigo apenas meu celular. Com o
olhar estreito devido ao sol, estudo o Derzhprom que ocupa o centro da vasta
praça circular nomeada Praça da Liberdade. Ele tem três grupos de torres de
concreto e vidro, cuja altura varia de cinco a dez andares.
Paro de andar para admirar as impressionantes superfícies, um
horizonte instantâneo de mini arranha-céus, mas o que realmente torna
Derzhprom é a série de pontes suspensas interconectadas entre cada
aglomerado, atingindo até oito andares.
Maravilhada com suas torres com profusão de superfícies de vidro,
escadarias envidraçadas de dez andares de altura total e longas passarelas
forradas com janelas, paro debaixo da profunda superfície e olho para cima,
tão alto que fico tonta.
Olho para frente quando gritos de crianças me assustam. Elas correm
pela praça segurando balões de desenhos animados e outras brincam com
armas de água. Há alguns carrinhos de sorvete espalhados pelo lugar e
também algumas mulheres que estão deitadas na grama aproveitando o sol de
verão.
Sinto mãos deslizarem gentilmente por minha cintura e antes de eu ter
qualquer reação, o responsável me gira tão rápido que a única coisa que sinto
são seus lábios grudados nos meus.
Meu corpo rígido relaxa ao reconhecer Ruslan. Sua mão aperta minha
cintura, me levando contra seu corpo. Permito que aprofunde o beijo,
sentindo alívio por finalmente tê-lo aqui comigo.
Contorno meus braços em torno do seu pescoço e ele me tira do chão.
Sinto seu sorriso entre meus lábios. Ele afasta assim que me devolve ao chão.
— Você me assustou. — Murmuro, encarando seus fascinantes olhos
verdes.
— Queria fazer-te uma surpresa — responde, colocando meu cabelo
atrás da orelha e acariciando minha bochecha. — Tu estás linda, pequena
flor.
Um frio se aloja no pé da barriga com seu elogio.
— Como você está? — Seus olhos nublam. — Eu fiquei sabendo que
você estava fugindo de Artem.
— Como soube?
— Ele me contou. — Sua expressão fica sombria. — Ele queria só se
vangloriar.
— Um babaca... — Rosna, seguro sua mão.
— Ruslan? — Umedeço os lábios. — Eu tentei falar com você, mas
não consegui. Você sempre está com um número diferente...
— Assim eles não me rastreiam.
— Entendo... — Inspiro fundo. — Rony está internado, sei o quanto
aquele gatinho é importante para você. A veterinária que está cuidando dele
disse que são problemas renais e... bom, acredito que o deixou ainda mais
debilitado por sentir sua falta.
Entrelaço minha mão na sua, quando ele não diz nada. Levanto a
cabeça e encaro seus olhos que transmitem dor. Por anos, Rony foi sua única
família, seu melhor amigo e companheiro.
— Ele vai ficar bem — asseguro, Ruslan assente, desviando o olhar.
— Rony tem sete anos... sete anos em que apareceu na janela da minha
cela, desde lá nunca mais nos desgrudamos.
— Ele está melhor, é um gatinho forte. — Comprimo meus lábios
quando seu olhar se fixa no meu, aquecendo cada parte do meu corpo.
— Estavas com saudades — diz, se aproximando, inclino a cabeça para
trás para fitar seus lindos olhos. — Saudades de escutar tua voz, de sentir teu
cheiro e, além de tudo, sentir seus lábios nos meus. — Ele roça sua boca na
minha, me arrepiando.
— Estamos na rua...
— Não me importo... — murmura, mordendo meu lábio inferior,
inspiro seu cheiro, inebriada pela forma que me faz sentir.
— Quero sorvete. — Peço, uma forma de mudar o rumo de onde
estamos indo.
Ruslan sorri.
— Certo, vamos tomar sorvete. — Ele se afasta de mim e permito-me
analisá-lo.
Seus cabelos estão perfeitamente arrumados em desordem, sua barba
por fazer marca seu maxilar e suas roupas pretas o deixam com um ar de
mistério. Ruslan inclina a cabeça, esperando que eu termine de estudá-lo,
minhas bochechas queimam.
— Você não está com capuz.
— Não.
— Podem te reconhecer.
— Quero passar o dia contigo. Sem me esconder. — Na mesma forma
que suas palavras me deixam feliz, sinto um aperto no peito.
Jogo esse sentimento para o fundo, não quero pensar nisso agora.
— Tu tens cara de amar sorvete de morango. — Consta, me puxando
em direção à praça.
— E você de limão. — Ruslan balança a cabeça.
— Não me lembro do sabor de um sorvete. — Revela, me olhando.
— Vamos resolver esse problema agora! — Apresso o passo em
direção ao carrinho de sorvete e peço dois de casquinha sabor limão com
cobertura de morango e confetes.
Entrego para Ruslan que o analisa minuciosamente. Fico ansiosa, quero
ver sua expressão. Ele me fita antes de levar o sorvete à boca. Consigo ver
em seu rosto o prazer quando o sabor invade seus sentidos.
— Isso é bom... — Sussurra, tomando mais.
— Sim, muito! — Confirmo.
Depois de dez minutos, Ruslan pede mais outro sorvete, só que de
morango. Enquanto caminhamos entre conversas sobre os sabores, noto o
quanto está distante de alguma forma. No entanto, se eu perguntar, ele não irá
falar.
— Eu vendia rosas aqui — revela, assim que termina seu sorvete. — A
época mais difícil era no inverno, ninguém gosta de sair de casa no frio e nem
na neve.
— Mas você sim — completo.
— Ou dormiríamos com fome. — Conta. — Já enfrentei chuva, neve,
sol... tudo para colocar comida na mesa.
— Não entendo porque fizeram isso com você. — Ruslan leva minha
mão aos seus lábios, dando um leve beijo no dorso.
— Maldade não se explica. — Ele me olha. — Agora diga-me, por que
tu estás triste? — Abro a boca pronta para mentir, mas me calo.
— Sinto sua falta. — Confesso, dando de ombros e olhando para o
chão. — Hoje é o aniversário da... minha mãe.
Paramos em um banco, sentamos e Ruslan me leva para seu peito,
contornando o braço em volta do meu ombro enquanto sua outra mão acaricia
minhas unhas pintadas de rosa bebê.
— E...?
— Preciso falar sobre isso? — Ruslan se inclina e me beija.
— Não, só se tu quiseres.
— Eu não consegui falar quando liguei... foi como se tudo tivesse
parado no tempo. A minha voz não saiu. Junto com a saudade e a surpresa de
ouvi-la, veio a raiva de tudo o que ela poderia ter evitado.
Ruslan percorre seus dedos por meu braço sem dizer nada.
— Por que você não fala muito da sua mãe? — Finalmente pergunto,
tentando matar minha curiosidade, ele respira fundo e olha para duas crianças
brincando com bolhas de sabão.
— Assim como tu, tenho mágoas das quais dói mais do que qualquer
coisa nesse mundo.
— Eu entrevistei sua mãe... como sabe, estou fazendo um
documentário sobre você e... dona Okasana acredita na sua inocência.
— Dizer não significa que seja verdade. — Olho para Ruslan, sua testa
está franzida. — Pessoas mentem o tempo todo, Laura...
— Ruslan...
— Fique aqui. — Ele se afasta rapidamente.
— O que foi? — Me levanto alarmada, Ruslan agacha na frente de uma
garotinha com uma cesta de rosas.
O vento balança seus cabelos, ela ri para Ruslan antes de virar e sair
correndo. Me aproximo dele que se levanta e gira, estendendo uma rosa
amarela.
— Assim como as rosas vermelhas representam a paixão, as amarelas
representam amor, respeito, alegria, amizade e desejo.
— É linda...
— Tudo o que sinto por você, minha pequena flor.
De repente, três crianças me circundam com pistolas de água. Elas me
encaram com malícia e antes de repreendê-las, elas apertam o gatilho, me
molhando enquanto gritam e gargalham de alegria.
Protejo com as mãos meu rosto, soltando um grito de surpresa. Olho
para Ruslan em busca de ajuda, sentindo um pouco de raiva e ao mesmo
tempo divertimento por esses pirralhos serem tão abusados. Porém, em vez
de me ajudar, Ruslan fica rindo, afastado, me olhando com duas pistolas na
mão.
Então...
— Ei! — Grito quando acertam água dentro dos meus olhos. — Eu
vou pegar vocês! — Aviso indo atrás deles que soltam um grito e começam a
correr.
— Tu estás presa! — Um deles grita, seus olhos azuis me olham com
astúcia.
— Não antes de pegá-lo! — Falo, avançando em sua direção, ele grita
quando consigo pegá-lo.
— Tio, ajude-me! — Grita para Ruslan, seus amigos investem em mim,
me encharcando de água.
— Ei, pequena? — Olho para Ruslan. — Pegue! — Ele me joga uma
pistola carregada, consigo pegá-la e olho para cada um deles.
— Agora vou pegá-los! — Alerto com a voz firme, eles arregalam os
olhos e começam a correr em círculos.
Uma guerra de água se inicia, Ruslan entra na brincadeira. Não faço
ideia de como ele encontrou essas crianças, mas elas estão nos
proporcionando uma felicidade que a muito tempo não sentíamos.
A inocência de cada um é contagiante, e por alguns minutos brincamos
até ficarmos sem munição, ou melhor, água.
Com a respiração ofegante e acelerada, olho para Ruslan. Gotículas de
água estão por todo seu rosto, beijando-o com delicadeza. Seus cabelos estão
molhados e pingando, um sorriso lindo está estampado em seu rosto.
Fico presa em seu olhar por longos segundos sem entender os motivos
de estar paralisado, me encarando como se nada existisse no mundo.
— Tu... — Começa, ofegante. — Tu estás sorrindo...
Suas palavras me atingem em cheio, choque percorre meu corpo e tudo
ao meu redor parece congelar. Levo minha mão aos meus lábios, e de fato,
eles estão esticados e... uma lágrima cai dos meus olhos, porque depois de
tantos anos, estou sorrindo de novo.
Meu coração pulsa contra meu peito, a manifestação dos meus lábios,
da alegria que sinto... é mágica... e quando meu olhar se fixa em Ruslan, tudo
o que tenho é a certeza de que minha alma acaba de encontrar o que sempre
procurou.
Não o Ruslan... ou o amor que sinto por ele, mas a felicidade, o
momento perfeito... a cura através de um sorriso... a cura de uma vida regada
pela dor. Essa é a melhor sensação do mundo... a sensação de poder ser capaz
de sorrir.
Seu sorriso era tudo o que eu mais desejava ver, mas nunca imaginei
que teria o poder de apagar toda e qualquer tristeza impregnada em meu ser.
Laura acaba de preencher o vazio existente dentro de mim, com o poder
de me alegrar, de me devolver a esperança e a vontade de sonhar.
Ela é tudo o que minha alma ansiava...
Uma dor em meu coração me faz lembrar da minha realidade. Não
posso ficar com ela ao meu lado... sou um homem condenado, privado de
qualquer liberdade.
Eles me destruíram, me tiraram tudo...
Laura leva as mãos aos lábios sem acreditar que está sorrindo, por um
momento seu olhar se perde. Dou um passo à frente, determinado a tirar toda
a dor dentro de si... doar-me com o pouco que tenho, apenas para que seu
sorriso nunca desapareça de seu rosto.
Quero que sempre se lembre do poder de um sorriso, de que meu
coração foi lhe entregue por inteiro mesmo destroçado. Quero que saiba que
mesmo que eu esteja longe, ela sempre estará comigo, marcada na minha
pele... na minha alma e em meu coração.
Seus olhos voltam a focar em mim, e é tudo o que preciso para avançar
em sua direção. Laura não se move quando entrelaço minha mão em sua nuca
e a trago para mim, beijando-a forte e exigente.
O toque de suas mãos em meu rosto desperta o homem adormecido
dentro de mim. Sua língua se encontra com a minha cedendo ao desejo
fervente que espalha por cada poro de nossos corpos.
Estou ciente de que estamos em um lugar público, não quero parar...
nem me afastar, quero mais que antes... mais que agora... eu a quero em meus
braços sem preliminares, sem limites para amar.
Quero Laura de todas as formas, em minha cama, em meus braços e em
baixo de mim. Suas mãos em meu peito me empurram para trás, fazendo-me
desprender de seus lábios deliciosos.
Encosto a testa na sua com a respiração tão rápida que me ouço
respirar.
— Perdoe-me... — Murmuro, mordendo seus lábios. — Mas está
ficando difícil...
— O que está ficando difícil? — Levanto a cabeça assim que escuto
uma movimentação estranha, olho por cima de seu ombro, ranjo os dentes ao
avistar policiais vindo em minha direção.
— Vá para casa — falo, voltando a encará-la.
— Por quê? — Impeço de olhar para trás ao segurar seu rosto.
— Obedeça-me — peço, ela passa a língua nos lábios, um movimento
inocente que se torna atrevido em minha mente. — Vá para casa e espere por
mim.
— Ruslan? — Colo meus lábios nos dela antes de virar de costas e sair
correndo.
Escuto gritos de ordens logo em seguida. Esbarro em algumas pessoas,
indo em direção à movimentação para que seja mais fácil dissipar os
policiais.
Meu coração acelera ao notar que tem mais policiais que o normal
espalhado por toda a praça. Ao longe consigo reconhecer Artem.
— Cacete! — Olho para os lados em busca de uma saída.
Decido entrar no Derzhprom, assim como pode ser minha chance de
me livrar deles, poderá ser uma armadilha e se eu for pego, tudo o que fiz até
hoje será perdido.
Tentando disfarçar a pressa, entro no edifício, subo alguns lances de
escadas, olho para trás apenas para ver mais de dez policiais me seguindo.
Entro no corredor longo tendo a certeza de que o único jeito será lutar
contra eles igual da última vez. Viro em outro corredor à minha esquerda,
passando por duas senhoras andando normalmente. Fecho e abro as mãos, me
preparando para o que me espera.
Paro de uma vez ao avistar Artem no fim do corredor com mais dois
policiais. Me viro, deparando com mais dois. Respiro fundo e relaxo meus
músculos.
Minha sorte é que não estão empunhando uma arma, não onde poderão
ferir inocentes acidentalmente.
— Polícia, parado! — Artem grita, fecho meus olhos com impaciência.
— Tu não tens saída a não ser se entregar, Ruslan Rotam. — Sorrio,
friamente.
Umedeço meus lábios, voltando a abrir meus olhos a tempo de escutar
dois dos policiais se aproximando. Espero mais alguns segundos, para que
estejam mais perto, antes que eu possa agir.
Quando o momento exato chega, ataco os dois de uma vez. Acerto o
punho no nariz do policial à minha esquerda, puxo seu colarinho, fazendo-o
colidir contra o outro, ambos caem no chão.
Mãos me agarram por trás. Sem pensar, projeto meu cotovelo para trás,
acertando em cheio seu olho direito. Esquivo do ataque do outro policial,
acertando um soco em seu estômago, ele dá dois passos para trás.
Giro de uma vez, segurando a garganta de um deles, jogo-o contra a
parede e dou um golpe na garganta do policial à minha direita, ambos caem
desacordados com a intensidade do ataque.
Analiso os quatro policiais deitados no chão, levou segundos até que
tivesse todos fora do meu caminho. Estalo meu pescoço e levanto o olhar,
fixando em Artem que me encara com espanto.
— Tu sabes como me chamavam dentro da cadeia? — Sorrio, dando
um passo à frente. — Demônio da Rosa. — Falo, lançando lhe um olhar
mortal.
— Tu? — Debocha com um sorriso de lado.
— Tens coisas das quais tu não sabes. — Estalo a língua. — E ainda
que eu te odeie, tu continuas sendo meu irmão. — Falo ao chegar perto, tão
perto que nossa respiração se mistura. — Em respeito o que sinto por ti, pela
mamis... mesmo que eu me deteste por isso, não tocarei em teu rosto, porque
tem outras formas de destruí-lo.
Artem range os dentes, sem nem se mover, apenas me encara sem
expressão alguma.
— O que tu escondes, irei descobrir — falo, passando por ele e
esbarrando em seu ombro.
— Tu não se cansas? — Paro ao escutar sua voz fria.
— Sim, estou exausto — confesso.
— Se entregue. — Sorrio, esfregando meu rosto.
— O que tu estás a esconder, está lhe corroendo aos poucos. Vejo em
seus olhos um brilho de arrependimento encoberto por uma raiva que tu
criaste. — Olho para ele por sobre o ombro, suas costas estão rígidas e suas
mãos em punho, esbranquiçadas de tanto apertar. — Tu estás atrás de mim
porque é seu trabalho. — Completo.
— Tu nunca deverias ter fugido...
— Sim — concordo.
Ficamos calados por um tempo, escutando os gemidos dos homens
nocauteados.
— Te darei 24 horas antes de mandar a cidade inteira atrás de ti. —
Fala, por fim.
Não digo mais nada, apenas me afasto. Artem não vem atrás de mim. O
que quer que esteja escondendo é muito maior do que imaginei e esse segredo
está o corroendo, destruindo-o toda vez em que me olha.
Seja lá o que for, sinto dentro de mim que não irei gostar do que tem a
me dizer. Respiro fundo, entrando em uma sala vazia quando mais policiais
aparecem.
No entanto, não pensarei nisso agora, descobrirei daqui a pouco quando
investigar o que Nikita tem para mim. Nesse instante meu desejo é apenas
conseguir sair daqui e ir direto para ela... para a única mulher que foi capaz
de iluminar minha vida novamente, depois de muitos anos.
Fico me encarando através do espelho do banheiro, sem acreditar que
fui capaz de sorrir... que senti dentro de mim que algo foi consertado. É uma
sensação tão... incrível, a sensação de ser liberta de um pesadelo sem fim.
Fecho meus olhos, esticando meus lábios em um sorriso de libertação,
que aos poucos se transforma em uma gargalhada misturada com choro.
Encosto na parede e escorrego até o chão, encolhendo as pernas e
lembrando-me de tudo o que vivi, dos momentos em que mataram meu
sorriso, em que destruíram minhas chances de ser feliz.
Sei que nunca serei normal, que não suportarei ser tocada por outra
pessoa, ou por outro homem. Estou ciente de que Ruslan vai embora e me
deixará.
Dói... essa realidade me dói mais do que posso suportar. Quero que ele
fique ao meu lado, que me veja sorrir todos os dias. Ele foi o responsável por
toda a minha evolução, por causa dele pude permitir ser tocada... Ruslan
mudou minha vida.
Ele veio apenas para isso? Para me tirar do abismo?
Recosto a cabeça na parede, lágrimas escorrem em abundância. Como
pude deixá-lo entrar em minha vida desprovida de felicidade, sabendo que
nosso tempo tem prazo de validade? Como ficarei depois disso?
Solto um suspiro, não quero que tudo o que vivi ao seu lado nesses
meses desapareça. Senti hoje que James não pode mais me ferir, que não
pode mais tirar tudo de bom dentro de mim. Eu mereço ser amada... mereço
ser feliz.
— Babaca... — Xingo-o com toda raiva que tenho, mas ao mesmo
tempo, me livrando dessa dor que me atormenta.
Sobressalto de susto quando um trovão ensurdecedor entoa tão forte
que meu coração salta. Olho pela pequena janela que dá para o lado de fora.
Uma chuva forte começa a cair. Levanto-me e limpo meu rosto, vendo a luz
vacilar devido ao vento forte e aos raios que iluminam o banheiro.
Paro em frente ao espelho do meu quarto, esticando meus lábios,
tentando sorrir, incrédula demais para acreditar nesse fato. Aliso a seda do
vestido, depois meus cabelos... meus olhos... nunca parei para analisá-los...
nunca parei para me analisar.
Todas as vezes que tentei fazer isso, a voz de James preenchia minha
mente “Ninguém nunca irá te amar... você é asquerosa, só desperta nojo nas
pessoas...” Só que ele está errado, não sou asquerosa, não desperto nojo nas
pessoas e... eu sou amada... amada pelos meus amigos, por mim e por...
Ruslan.
— Você não tem mais poder sobre mim, James — murmuro, vendo sua
imagem através do espelho. — Eu vou ser feliz... e você nunca mais me fará
chorar...
Mesmo com meu corpo trêmulo, não recuo, sustento seu olhar
repugnante, jamais esquecerei tudo o que me fizeste, mas diferente de antes,
eu vou superar, ultrapassar todas as barreiras... consertar aquilo que ele
destruiu.
— Você não tem mais poder sobre mim — repito, uma lágrima cai do
meu olho. — Nunca mais... James... nunca mais você irá me fazer...
Me calo assim que escuto minha porta ser esmurrada. Tensão me faz
congelar, as batidas parecem ser exigentes. Forço-me a andar e coloco as
mãos tremendo sobre ela. Salto para trás no momento em que ela é esmurrada
novamente. Estou com medo... a não ser que seja... ele falou que viria, disse
para eu o esperar em casa...
Sem perder mais tempo, abro a porta de uma vez. Ruslan está parado
com a cabeça baixa e as mãos no batente da porta. Ele está encharcado, sua
respiração acelerada me faz engolir em seco.
— Ruslan?
Ele sorri, balançando a cabeça antes de erguê-la e se fixar em mim.
Seus olhos têm um brilho diferente... Ruslan está diferente, tanto, que faz
meu inteiro vibrar pela intensidade do seu olhar.
— Tu sorriste — sussurra.
Sua língua percorre seus lábios, acompanho o percurso com um frio na
barriga, descendo meu olhar por seu corpo. O tecido da sua blusa está colado
em sua pele, realçando seus músculos, o peito rígido.
Minha boca seca e meu coração acelera.
— Laura? — Ergo o olhar. — Não consigo...
— O que você não consegue? — Pergunto com a voz fraca, Ruslan me
fita, no segundo seguinte, ele avança em minha direção e captura meus
lábios.
Escuto a porta ser fechada em um baque. Ruslan me gira e me prensa
contra ela, entrelaçando a mão em meus cabelos. Percorro seus braços com
minhas mãos, sentindo seus músculos se contraírem a cada toque meu, seu
beijo a cada segundo fica mais intenso... mais quente.
Tudo dentro de mim irrompe em arrepios, permitindo-me afundar nessa
sensação sem a capacidade de me controlar. Seguro firme seus cabelos,
querendo mais de Ruslan... querendo tudo dele.
Sei que ele me quer, mais do que eu o quero. Seu beijo se torna sedutor
demais para pensar o contrário. Seu corpo cola mais no meu, ele não
interrompe o beijo, nem eu quero. Mesmo que eu precise respirar, quero me
afogar no seu desejo.
No entanto, uma sensação estranha me acomete, não sou completa...
nunca me deitei com um homem... muito menos beijei um, antes de Ruslan.
Tudo o que experimentei foi... repugnante, doloroso e... asqueroso.
Será que irá me querer mesmo sabendo o que vivi?
Só que eu quero isso, quero continuar sentindo essa sensação, o desejo
dele por mim...
De repente, Ruslan interrompe o beijo, afasta as mãos do meu corpo e
as sustenta na porta ao meu lado, me enjaulando enquanto olha para baixo.
Nossa respiração acelerada e ofegante se mistura, sinto medo de que
me diga que não me quer, ou que... não sou o que necessita. Minha mente
começa a se tornar uma bagunça, a rejeição sobressaltando.
— Me peça para ir embora, Laura — diz com a voz baixa e rouca. —
Peça-me... para deixá-la. — Franzo a testa sem compreender seu pedido.
Ruslan ergue a cabeça, seus olhos estão nublados por algo que não consigo
detectar.
— Eu não quero machucar você... porque não está certo... está tudo
errado.
— O que na nossa vida é certo, Ruslan? — Seus olhos estremecem. —
Tiraram tudo da gente...
— O que eu posso fazer? — Fico calada, encarando-o. — Diga-me, eu
faço.
— Eu quero... isso.
— Isso o quê? — Pergunta, umedecendo os lábios.
— Tudo... — Confesso. — Eu quero tudo...
— Sua dor me dominou no momento em que coloquei meus olhos em
ti... Quero me afundar, Laura... afundar na sensação que tu me transmites.
— Eu também... — Balbucio, fervendo de desejo.
— Tu sabes que... não ficarei — assinto, perfeitamente ciente.
— Então me marque... — Me aproximo dele. — Marque a ponto de
nunca mais poder te esquecer... faça-me sentir amada pela primeira vez... me
faça sua, Ruslan, mesmo que apenas por uma noite.
Ele me encara, sustento seu olhar com determinação, com a certeza de
que eu quero isso... que necessito desesperadamente sentir sua entrega, para
me entregar de corpo e alma pela primeira vez, mesmo que nosso tempo seja
limitado.
Sinto suas mãos na minha cintura, apertando-a. Ele está dividido entre
o medo e a excitação, ele morde seu lábio inferior. Cada minuto leva uma
eternidade, há um conflito em seus olhos...
— Faça — peço, e era tudo o que Ruslan precisava para avançar.
Sua língua quente invade minha boca, desesperada e ansiosa. Percorro
minhas mãos por seu peito, sentindo seu coração bater acelerado. Nosso beijo
se aprofunda, me fazendo perder todos os meus sentidos, sendo transportada
para um mundo onde não existe dor, medo e traumas.
Afasto o aperto no coração que me diz que amanhã ele não estará mais
aqui. Essa realidade dá um nó em meus sentimentos, então me agarro mais a
ele, e aprofundo mais o beijo.
Não quero que vá...
Ruslan me levanta, cruzo as pernas em volta da sua cintura. Ele me leva
até a mesa, me colocando em cima e se encaixando entre minhas pernas sem
interromper os beijos apaixonados, fortes e exigentes.
Inclino para trás, sua mão nas minhas costas me empurra para colar
mais ainda em seu corpo. Sua outra mão começa a percorrer a pele exposta da
minha perna, subindo devagar, lenta, sem pressa.
Ruslan geme contra meus lábios. Sua língua se movimenta como uma
dança sexy, minhas mãos empurram sua camisa para cima, tirando-a e
sentindo o calor de sua pele, explorando seu abdome definido.
Seus lábios desgrudam dos meus, começando a depositar beijos suaves
ao longo do meu pescoço, clavícula, na linha do meu maxilar e mordiscando
o lóbulo da minha orelha, arrepiando-me por inteira.
— Tu... — Seus olhos se prendem nos meus, brilhando com desejo. —
Estás me deixando louco...
Sorrio de leve, seus olhos se prendem nos meus lábios.
— Não sorria...
— Ou então? — Pergunto, puxando-o para mim.
— Não me responsabilizarei pelo que farei. — Ruslan volta a me
encarar, sorrio de novo e é a deixa para que tudo exploda, que o desejo
ardente sobressalte e nos faça perder a cabeça.
Ruslan mergulha em minha boca, desesperado, querendo mais e mais.
Suas mãos apertam minha coxa, entrando por debaixo do meu vestido,
estremeço de excitação. Ele me puxa para frente, fazendo-me sentir seu
membro rijo entre minhas pernas.
Sinto meu interior pulsar de desejo, suas mãos apertam minhas nádegas
com uma intensidade tão sedutora que arfo, apertando as pernas ao seu redor.
Ouço um ronronar sair de sua garganta ao sentir seus dedos em volta da
borda da minha calcinha. Seus ombros tencionam, ele espera um momento,
afastando os lábios dos meus e volta a beijar meu pescoço, suas mãos
navegam por minha pele, calejadas, quentes e fortes.
Seu toque... seus beijos despertam minhas emoções, mesmo que o
tempo corra, que os anos passem, esse contato... esse momento nunca se
apagará da minha memória.
Percorro as mãos por suas costas. Ruslan arfa contra meus lábios,
subindo cada vez mais meu vestido até poder arrancá-lo. Os movimentos dos
seus lábios... da sua língua me fazem estremecer.
Ruslan contorna minha cintura e me ergue, me levando para o quarto,
beijando meu pescoço, minha boca e apertando meus cabelos.
Ele me deita na cama com cuidado, encostando seu corpo no meu,
sentindo meu calor. Ruslan afasta os cabelos do meu rosto com os olhos fixos
nos meus. Com os dedos, começa a navegar por minha pele, contornando
meus seios, barriga e em torno da calcinha... Seu toque é como faíscas prestes
a acender o fogo dentro de mim.
Seu peito sobe e desce em um ritmo acelerado. Ergo as mãos, acaricio
seu rosto, pescoço e ombros, conhecendo-o, sentido sua pele, seu calor e
inspirando seu cheiro antes de puxá-lo em direção aos meus lábios.
Ruslan pressiona seu corpo contra o meu ao segurar minha coxa direita
e se encaixar entre minhas pernas, como se seu lugar perfeito fosse aqui
comigo. Seu toque se torna mais cuidadoso, cauteloso, como se estivesse com
medo de... me quebrar ou de avançar.
Desfaço o beijo, Ruslan se afasta.
— Não tenha receio — digo, agarrando seus cabelos. — Eu quero você.
— Um sorriso travesso estica em seus lábios e seus olhos brilham.
— Não vou ter pressa — fala, acariciando minha bochecha com seu
nariz, sua mão se afundando na carne da minha cintura. — Mas ao mesmo
tempo... estou desesperado por ti...
Abro a boca para falar, mas sou silenciada quando sua língua me
invade. Minha mente memoriza cada segundo de nossa entrega, não há
nenhuma palavra que explique o que estou sentindo.
A maneira que me toca, que me beija... faz-me sentir a mulher mais
amada do mundo. Algo dentro de mim completa, como se o quebra cabeça
tivesse acabado de encontrar a peça que estava faltando.
Arqueio as costas quando começa a depositar beijos ao longo do meu
corpo, sua língua navega por minha pele, me arrepiando de uma forma
mágica. Com cuidado, Ruslan desliza suas mãos por minhas costas, tirando
meu sutiã, prendo a respiração. Seus lábios contornam meus mamilos,
mordiscando de leve e contornando todo meu seio.
Fecho os olhos, sua mão desce por minha barriga até encontrar minha
intimidade. Arfo ao sentir seus dedos, sua boca captura a minha. Um
turbilhão de sensações me faz contorcer de desejo. Ruslan se afasta e volta a
beijar meu corpo.
Minhas veias pulsam com os batimentos acelerados do meu coração.
Agarro com força a colcha da cama ao sentir minha calcinha sendo deslizada
por minhas pernas, lentamente. Ruslan deposita beijos em meu tornozelo
quase cicatrizado, subindo por toda minha perna, espalhando arrepios ao
longo do caminho.
Arqueio as costas mais uma vez e prendo a respiração quando seus
lábios e língua acariciam minha intimidade, fazendo-me contorcer conforme
seus movimentos se tornam sedutores demais para suportar tudo o que sinto.
Quando penso que não irei mais aguentar, Ruslan se afasta, seus olhos
se encontram com os meus, fervendo de luxúria. Ele tira sua calça, a única
peça que nos impedia de nos conectar.
Meus olhos descem por seu corpo, analisando-o, meu coração acelera e,
de repente, o medo começa a crescer dentro de mim. A sensação de ser
tocada daquela forma... de... minhas mãos começam a tremer, meu corpo fica
tenso e me ergo, chegando para trás, meus olhos nublam.
— Ei... — Sua voz suave me tira do caminho nebuloso em que se abria.
Olho para Ruslan, lutando contra a escuridão dentro de mim, só que não
permitirei que isso aconteça. — Ei... — Suas mãos seguram meu rosto, leva
um tempo para conseguir focar nele, sua expressão é de preocupação e medo.
— Eu não quero... — Ruslan assente.
— Claro... — Nego com a cabeça, ele me olha confuso.
— Eu não quero que meu passado nos atrapalhe. — Revelo com a voz
falhando. — Por favor... faça-me esquecer... — Peço, seus olhos brilham.
— Quando tudo parecer difícil... — começa a dizer, roçando seus
lábios nos meus. — Sorria.
Um nó se aloja na minha garganta. Ruslan aos poucos vai se
encaixando entre minhas pernas e vou relaxando, me entregando a ele.
Seguro seus ombros ao sentir seu membro na minha entrada.
— Quando tu só enxergar neblina... — Ele morde meu lábio inferior,
apertando minha coxa. — Sorria.
— E se tudo ruir? — Pergunto, arfando.
Minha respiração acelera mais ainda, mordo seu lábio, fazendo-o soltar
um gemido, Ruslan está se controlando, mas não quero que ele se controle,
porque ele é o único a me tirar do abismo.
— Sorria... — Murmura. — Quando se lembrar de mim...
— Sorrirei — ele assente.
— Lembre-se dessas palavras que irei dizer... — Ruslan afasta a cabeça
um pouco para olhar no fundo dos meus olhos. — Quando se sentires
perdida, ao ponto de se entregar à escuridão, lembre-se dessas palavras...
Aperto meus lábios, Ruslan inspira fundo, contemplando esse momento
único de nossas vidas. Quero tanto pedir para que fique...
— Amo-te... — Suas palavras me invadem, congelando-me. — Amo-te
mais do que posso suportar... Amo-te de alma e coração...
Lágrimas escorrem por meu rosto, Ruslan sorri, limpando-as com o
polegar.
— Sorria — balbucia e fecho meus olhos quando aos poucos suas
palavras começam a penetrar em meu coração. — Sorria, Laura, porque tu és
amada...
Seus lábios voltam a se encontrar com os meus, agarro seus cabelos,
soltando um gemido de prazer quando, por fim, Ruslan se funde, nos
tornando apenas um, eliminando qualquer espaço que tende a nos separar.
Minha alma se completa ao seu ritmo sedutor, paciente e calmo. Seus
ombros estremecem ao sentir minhas unhas fincarem em suas costas. Sinto-o
pulsar dentro de mim, se tornando mais exigente, indo mais fundo, beijando-
me como se eu fosse tudo o que necessita para respirar.
A chuva que cai do lado de fora, tão forte e escandalosa, se torna uma
canção que invade cada parte do meu ser. Minha alma grita ao ser liberta da
dor, que achei ser incurável.
Cada cadeado é destrancado e caem sob meus pés, abrindo-me as
portas, mostrando-me que eu posso ser feliz. Que nada nesse mundo será
capaz de apagar esse momento.
Ruslan se afasta para me olhar, me perco em seus olhos, perguntando-
me se tivesse recusado a fazer a entrevista, de vê-lo na prisão, ou se nossos
caminhos não tivessem se cruzado, será que eu estaria vivendo o momento
mais lindo e inesquecível da minha vida?
Ele me salvou, mostrou que mereço ser amada. Ruslan tinha as chaves
do meu coração e nem sabia, dominou meu corpo e minha alma, fez-me
esquecer das horas, da dor e fez o tempo se tornar incerto, essas são as
minhas últimas horas com o único homem que já amei.
Mesmo que os anos passem, que tudo se cale, eu sempre serei sua rosa,
e ele minha fragrância, a canção da chuva de uma madrugada, o vento que me
acaricia. Ruslan Rotam sempre será minha eterna e intensa paixão...
Com as mãos no bolso e o capuz escondendo meu rosto, caminho pela
rua, perdido na dor de tê-la deixado... sem ter tido coragem de me despedir.
Uma lágrima dolorosa cai de meus olhos, quero poder destruir quem
me privou de ser feliz, porque nesse momento eu estaria com a mulher que
amo em meus braços, assistindo todos os dias seu sorriso brotar como uma
rosa em seus lábios.
Ranjo os dentes, girando meu corpo e metendo o punho contra o muro
de um prédio, um grito de indignação se aloja na garganta. Estou engasgado,
tudo está pesado, concretos caem em abundância em meus ombros.
Fecho os olhos ao encostar a testa contra o muro úmido e gelado, a rua
solitária de uma madrugada fria me faz companhia. É assim que me sinto,
sozinho, sem rumo e perdido na dor que me dilacera.
Quero tanto poder ficar ao seu lado...
Solto a respiração, me sentindo um fracassado... derrotado. Inspiro
fundo, acalmando-me aos poucos enquanto minha mente me leva de volta
para o momento mais feliz de toda minha existência.
Seu corpo quente e macio gritando por meu toque. Os movimentos dos
seus lábios... de suas mãos me enlouquecendo... Laura se tornou minha, eu
pude ver em seus olhos que eu a tirei do abismo. Esse era meu objetivo, fazê-
la sorrir outra vez. Estava consciente de que meu tempo estava acabando,
mas... cacete, não consigo aceitar...
O toque do meu celular me desperta, tiro-o do bolso e atendo sem me
mover. Estou petrificado na indignação do que se tornou a minha vida.
— Foda-se, Ruslan! — Nikita grita do outro lado da linha. — Onde tu
estás? Estou te procurando por dois dias, garoto.
Dois dias...
Dois dias perambulando pelas ruas sem um destino, me destruindo com
as drogas que encontrei ao longo do caminho, fugindo de Artem...
Dois dias inconformado por tê-la deixado....
— Ruslan? — Inspiro fundo. — Cacete garoto!
— Estou bem! — Respondo com a voz arranhando a garganta. —
Apenas alterado.
— Tu usaste drogas? — Passo a língua por meus lábios secos.
— Precisava de uma... fuga.
— Adiantaste? — Desencosto da parede, olho para o lado, esperando-a.
— Como pode um homem viver se por dentro estás morto? —
Pergunto, me afastando de onde estou.
— Tu já sabes o teu caminho, precisamos terminar essa merda.
— Preciso resolver um assunto antes. — Nikita fica em silêncio
sabendo do que se trata.
— Te espero aq... — Finalizo a ligação sem esperar que termine.
Devolvo o celular ao bolso, encarando o farol distante de um carro que
se aproxima. Paro no meio da rua e ergo a cabeça, a motorista freia e abaixa
os faróis. Leva alguns segundos para que desça.
— Ruslan?! — Olesya se aproxima com cautela ao me reconhecer.
Levou dois dias para descobrir onde ela mora, sabia que hoje ela
voltaria de madrugada depois de uma confraternização da empresa de seu
namorado, um executivo muito rico.
Olesya me olha espantada, seu rosto está pálido e seus olhos
conflitantes percebem que estou alterado.
Ela é a única que pode me ajudar.
— Preciso que tu tragas uma pessoa. — Vou direto ao assunto.
— O quê!? Quem? — Sua expressão confusa me mantém firme.
— Dentro do seu correio está tudo o que necessita.
— O que estás acontecendo, Ruslan? — Sua voz sai trêmula, me
aproximo dela e seguro seu rosto, depositando um beijo em sua testa.
— Tu me enches de orgulho. — Olesya arfa, me encarando através das
lágrimas. — Sei que tu lutaste por mim em segredo, pagando advogados
caros, mas... chega!
— Como... como descobriste? — Enxugo seu rosto quando lágrimas
escorrem.
— Tenho meus meios. — Respondo vagamente. — Não se preocupes
comigo, viva por mim, tudo bem? — Ela balança a cabeça, segurando meu
pulso com as mãos tremendo.
— Não me deixe... tu tens a Laura...
— Acabou, minha pequena... meu tempo acabou. — Seguro firme sua
cabeça quando ela faz um movimento de negação.
— Ela sorriu... — Revelo, finalmente permitindo-me fraquejar.
— Como dizes?
— Laura sorriu, pequena... eu a fiz... sorrir. — Olesya me olha com
surpresa. — Meu tempo acabou, por isso preciso que faça isso para mim.
— Rusl...
— Tu fazes? — Minha irmã fecha os olhos e assente.
— Quem que tu queres que eu traga? — Encaro-a com firmeza.
— Lívia Silva... — seus olhos arregalam. — Quero que traga a mãe de
Laura.
Sentada à mesa coberta por documentos e fotos, encaro as cinco rosas
já murchas que Ruslan deixou antes de ir embora sem se despedir.
Quando abri meus olhos, ele não estava mais deitado me olhando como
fez até eu pegar no sono depois de uma noite inesquecível. Tinha apenas as
rosas, não pude me segurar, chorei por horas, porque ele fez o certo, eu não
suportaria dizer adeus.
Acordei de um sonho, é tudo o que sinto agora.
Desvio os olhos nublados das rosas, focando nas fotos das vítimas do
demônio da rosa. Yaroslav descobriu que era assim que Ruslan era chamado
na prisão por causa dos assassinatos das mulheres, então Andry decidiu dar
esse título ao documentário.
Por incrível que pareça, meu chefe aceitou dar a quantia para obter
todas as cópias dos arquivos e documentos de Ruslan, assim como estão as
informações de sua família, uma ficha completa.
Coloco o cotovelo sobre a mesa e sustento o queixo na palma da mão,
soltando um suspiro longo, encarando o rosto de Ruslan através da única foto
dele.
As provas estão tão concretas, há alguns vídeos de câmeras de
segurança que capturaram ele em alguns becos, mas mesmo assim... tem
alguma coisa errada. Em todos os vídeos ele estava normal, como se nada
tivesse acontecido. Mesmo que isso seja uma prova, não acredito, tem algo
mal explicado.
Preciso encontrar a verdade, mas como?
Sobressalto de susto quando meu celular vibra. Levo a mão ao coração
acelerado, desejando que seja Ruslan me ligando... que... que de alguma
forma seja ele dizendo que irá voltar.
Rony pula em cima da mesa, se deitando sobre os papéis como fez
várias vezes ao longo da madrugada. Em todas às vezes tive que tirá-lo. Olho
para ele tão aliviada por ter melhorado que acabo permitindo que fique.
— Gato abusado! — Murmuro, atendendo a ligação. — Sim?
— O que está fazendo? — Andry pergunta, evito soltar uma lufada de
ar.
— Estou terminando o material sobre o Ruslan, assim como me foi
ordenado. — Ele estala a língua.
— A repórter Lybochka aceitou apresentar o documentário, acabaste
de assinar o contrato. — Contorço meus lábios, Ly é uma mulher linda,
famosa e uma profissional integra.
— Uma boa escolha.
— Preciso que esteja tudo pronto essa semana, tu consegues?
— Acho que sim — respondo.
— Não penses demasiado nisso. Tu me entregas tudo pronto essa
semana. — Respiro fundo e murmuro um sim.
Sem se despedir, Andry desliga. Aperto os dentes diante da sua falta de
educação e reviro os olhos para Rony, que balança o rabo.
— Você está amassando meus papéis, está ciente disso? — Ele me
ignora, levanto-me e vou preparar sua comida.
Enquanto separo seus remédios, minha mente volta para Ruslan ao
mesmo tempo em que meu coração aperta de saudades. Sem que Rony veja -
porque se ele ver, o filho da mãe joga os remédios fora - coloco dentro de
bolinhas de patê os comprimidos e me viro para lhe entregar.
Ele come facilmente, meu celular volta a tocar e antes de atender,
coloco seu café da manhã em seu pote de comida. Franzo a testa ao ver o
nome de Andry.
Por que está me ligando de novo?
— O que foi?
— Mais uma vítima... — Revela afobado, meu coração acelera.
— Como?
— Acabei de saber que foi encontrada mais uma mulher assassinada,
estão dizendo que foi Ruslan. Yaroslav e Aksinya estão indo para o local.
— Não foi ele...
— Tudo indica que sim, Laura, assim como o corpo perfurado, uma
rosa foi deixada. Tem alguma dúvida que não seja ele?
Meus olhos navegam por entre as fotos e minhas anotações que tem o
cronograma do tempo entre cada morte.
— Não faz sentido... — Seleciono o viva-voz, coloco meu dedo
indicador sobre as datas que anotei e vou descendo até a última.
— O que não faz sentido?
— Desde que os assassinatos começaram, o demônio tinha um padrão,
mulheres jovens e ricas, mas todas elas mortas no intervalo de um mês.
— Certo, e qual a novidade?
— Quando Ruslan foi preso, resolveu o problema. Não houve relatos
de assassinatos...
— Mas ele continuou matando dentro da cadeia. — Desdenha me
interrompendo.
— Aí que se engana. — Prossigo, procurando os arquivos do Colony
100. — Ruslan matou um dos detentos anos depois. Certo que ele se tornou
um assassino em série lá dentro, mas mesmo assim, não se encaixa no padrão
do demônio da rosa.
— Não consigo compreender-te.
— Depois que ele fugiu, voltou os assassinatos, porém, posso afirmar
que não foi ele.
— Tens provas? — Fecho meus olhos com uma respiração funda.
— Olha Andry, acho que nós, como jornalistas, necessitamos encontrar
a verdade. — Coloco as fotos da família de Ruslan uma ao lado da outra. —
Não tem nem um mês que o demônio assassinou uma mulher, e se ele não for
de fato Ruslan, mas alguém próximo a ele? Que sabia dos seus horários, do
local onde ia, das câmeras que o pegaria...
— Hum...
— Ele aproveitou essas informações para cometer os assassinatos, para
que se a casa caísse, ele teria a quem culpar. Ruslan passou fome, assim
como a família, mas era um garoto cheio de sonhos que se sacrificou para
colocar comida na mesa, poderia muito bem despertar inveja.
— Quem teria inveja de um moleque? — Pergunta Andry, uma buzina
invade meus ouvidos, deve estar no trânsito.
— Artem ou Mirom?
— Eles são irmãos, não faz sentido...
— Andry — o interrompo. — Toda a maldade, noventa por cento vêm
de pessoas próximas, daqueles que nunca imaginamos serem capazes.... eu
sou a prova disso. — Ele fica em silêncio, consigo apenas ouvir o movimento
do trânsito.
— Prossiga — pede, inspiro fundo.
— Isso me faz pensar que ele não parou de assassinar, apenas mudou
sua estratégia de esconder seus crimes. — Prendo meus cabelos em um coque
bagunçado. — Andry?
— Sim?
— E se... — Paro de falar indo para meu computador.
— E se...? O que, Laura? — Indaga impaciente.
— Só um momento, chefe! — Ele rosna, meus dedos voam no teclado,
o banco de desaparecidos me dá o que preciso. — Todo ano em Kharkiv
muitas pessoas desaparecem, entre elas mulheres, homens e crianças, mas
diante do que estamos procurando, acredito que as vítimas do demônio
estejam nesses dados. São 14 anos, Andry, um psicopata não iria ficar esse
tempo todo sem cometer uma barbaridade que lhe proporciona prazer.
— Mas não há vestígios.
— A pessoa por trás de tudo, sabe esconder suas evidências. Irei agora
ao departamento de desaparecidos buscar essas vítimas. Vou descobrir quem
é o culpado.
— Laura? — Olho para o celular. — Tu és uma jornalista.
— Você nos colocou nessa Andry, vou até o fim para provar que
Ruslan é inocente.
— Por que tu tens tanta afeição por esse louco? — Umedeço meus
lábios, evitando não me alterar.
— Preciso me apressar. — Desligo antes de falar qualquer outra coisa.
Esfrego meu rosto e me levanto pronta para me arrumar quando uma
batida na porta me faz parar. Vou até ela e abro já com a palavra na ponta da
língua pensando ser Gana, mas quem está à minha frente é Okasana.
— Bom dia, Laura — seu sorriso me surpreende.
— Okasana!? — Olho para trás, minha mesa está uma bagunça, não
posso deixar que veja. — Não estava esperando por você.
— Eu precisava passar aqui.
— Entre — abro mais a porta, mas ela nega com a cabeça.
— Perdoe-me por recusar seu pedido, mas é breve, Artem me passou
seu endereço. — Balanço a cabeça, permitindo que continue. — Quero pedir
desculpas pelo que aconteceu naquele jantar. Só agora tive coragem para vir
falar contigo, Mirom foi... indelicado.
Um escroto, retruco mentalmente.
— Tudo bem... — Okasana olha por cima do meu ombro, como se
estivesse procurando alguém. — Ele não está aqui! — Digo.
Seus olhos se voltam para mim, nublados com lágrimas. Ela aperta os
lábios e arranha a tampa da vasilha que segura com as unhas.
— Tu sabes... onde ele possa estar? — Leva um segundo para eu
responder captando suas intenções.
— Ele se foi — respondo com a voz fraca, Okasana assente,
vagamente.
— Eu trouxe uns Vareniki de carne e uns de morango também. — Ela
estende a vasilha, eu aceito. — Uma forma de ressarcir o ocorrido.
— Não se preocupe, dona Okasana.
— Bom... preciso voltar, tenho um compromisso. — Assinto, olhando-
a com mais atenção, em seu pescoço há um colar com um pingente de um
botão de rosa.
Okasana o envolve com a mão, um pouco agitada.
— Está tudo bem? Tem certeza que não quer entrar, dona Okasana? —
Ela me lança um olhar perdido.
— Não querida, só...
— Queria vê-lo?
— Sim — responde em um murmuro.
— Não sei onde ele possa estar. Me desculpe... — Okasana assente,
sorri para mim e sai pelo corredor, deixando uma sensação estranha se agitar
dentro de mim. Respiro fundo e fecho a porta a tempo de ouvir meu celular
tocar.
— Andry de novo, certeza! — Me aproximo colocando a vasilha em
cima da mesa e atendo sem ver quem é. — O que é?
— Senhorita Lauriana Silva? — A voz masculina espalha calafrios por
meu corpo.
— Sim, é ela.
— Aqui é o policial Nazariy do departamento de homicídios. Estou
entrando em contato para que compareça na 13º delegacia para
esclarecimento. — Minhas mãos começam a tremer.
— O... quê?
— Precisamos de apenas algumas respostas, se por acaso não
comparecer até à uma da tarde, teremos que ir buscá-la com uma ordem
judicial.
— Como assim? Do que se trata?
— Senhorita, não posso lhe passar informações por telefone, ficarei
lhe aguardando. — Nazariy desliga, deixando-me transtornada.
Estou encrencada...
Olho para os lados, Rony me encara percebendo que há algo de errado.
Sem pensar em mais nada, saio do meu apartamento, apressada. Subo
algumas escadas que me levam ao andar de cima e paro em frente à sua porta,
batendo com desespero.
Gana abre segundos depois, suada e arfando, interrompi seus exercícios
matinais. Ela franze a testa ao me ver agitada.
— O que aconteceste, Laura?
— Preciso de sua ajuda. — Gana estreita os olhos, confusa.
— Claro, o que precisas que eu faça? — Engulo em seco, meu coração
bate acelerado.
— Eu acabei de receber uma ligação de um policial e... — Me calo,
engolindo o nervosismo.
— E?
— Preciso que vá comigo à delegacia, não vou ter coragem de ir lá
sozinha. — Falo, atropelando as palavras. — Se eu não for, posso ser presa.
— Mas por quê? — Não respondo, Gana começa a compreender. —
Merda, Laura.
— Estou ferrada!

Gana caminha ao meu lado conforme adentramos na delegacia, vários


policiais nos olham. Fecho e abro minhas mãos, nervosa demais para ao
menos tentar me acalmar.
Paramos em frente a uma recepcionista, ela encara Gana com certo
desdém, descendo seus olhos por seu corpo.
— O que querem? — Pergunta depois de me olhar.
Gana abre a boca para falar, mas é interrompida por outro policial.
— Laura? — Ele fica me encarando, aceno um sim com a cabeça. —
Sou Nazariy, me acompanhe, por favor. — Sem esperar, ele se vira e sai
andando por um logo corredor.
Olho para Gana, ela inclina o queixo na direção em que o policial se
foi. Respiro fundo e sigo-o com minha amiga ao meu lado, tentando se
manter calma, assim como eu.
Nazariy para em frente a um homem alto com uma farda escura, meu
coração sobressalta quando seus olhos frios se fixam em mim e depois em
Gana.
— Merda... — Ela sussurra.
Mirom cruza os braços, encosta na parede em frente à porta e não diz
nada, apenas nos encara de forma intensa.
— Senhorita Laura, por favor, entre. — Nazariy me orienta, inspiro
fundo e assinto, andando a passos lentos. — Tu não podes entrar.
Ele barra Gana, olho para ela e nego com a cabeça.
— Sou advogada dela. — Mirom solta uma risada seca, Gana olha para
ele e retira do seu bolso uma identificação alegando ser advogada, claro que é
falsa, e Mirom sabe disso.
Nazariy pega quando ela estende, analisando.
— Minha cliente só falará se eu estiver ao seu lado. — Os olhos do
policial percorrem seu corpo.
— Advogada é? — Diz, com um sorriso de malícia.
— Deixe-a entrar — Mirom ordena, percebo o policial estremecer ao
escutar sua voz autoritária, Gana fica encarando Mirom por alguns segundos.
— Obrigada — diz, entrando junto comigo em uma sala vazia com
apenas uma mesa e três cadeiras. — Foda-se, parece filme investigativo.
— Eles poderiam te prender, sua louca. — Murmuro, ela dá de ombros,
sem se importar.
Sobressaltamos de susto quando uma pasta é jogada em cima da mesa
ao sentarmos. Meus olhos se prendem em Artem.
— Aonde ele está? — Fico encarando-o, Mirom se encosta na porta e
cruza os braços sem se envolver.
— Quem? — Pergunto.
— Não minta, eu sei que tu estavas na Praça da Liberdade com Ruslan
Rotam. — Declara.
Olho para cada um deles. Estou presa com dois homens que podem de
alguma forma ser o demônio da rosa, os que colocaram Ruslan na cadeia,
irmãos de sangue, mas não de coração.
Gana coloca a mão em meu joelho em baixo da mesa. Artem a encara.
— O que uma prostituta faz aqui? — Pergunta quase gritando, abro a
boca para retrucar, mas Gana se inclina, sorrindo de lado.
— Acho bom você abaixar a bola, ainda mais vindo de um policial
corrupto. — Ele estreita os olhos, sorrindo como se ela tivesse contado uma
piada. — Sou advogada de L...
Artem a interrompe com uma gargalhada, Gana fica vermelha. Mirom
parece uma estátua, não se move um centímetro, fica com rosto inexpressivo,
não faço ideia do que se passa em sua mente. Seu olhar permanece fixo em
mim.
— Você acha que sairá ilesa? — Artem se vira para mim, se inclinando
sobre a mesa. — Se eu descobrir que tu ajudaste Ruslan a sair do país, irei te
trancafiar em um presídio, é isso que tu queres?
— Tu não podes ameaçar minha...
— Cale a boca! — Ele ordena para Grana, erguendo um dedo indicador
sem parar de me olhar.
Olho para ela e balanço a cabeça, dizendo em silêncio que essa briga é
minha, e que não irei recuar.
— Assim como você fez com Ruslan? Trancafiando um inocente
dentro de um inferno?
— Um assassino de merda, não um inocente.
— Tem certeza disso, Artem? Você faz ideia do erro que cometeu e
que continua cometendo? — Retruco, fuzilando-o com o olhar.
— Tu achas que sou um palhaço? — Ele bate a mão na mesa,
assustando Gana, mas não eu. — Onde está aquele filho DA PUTA, Laura!
— Seu grito me faz levantar, meu movimento acaba derrubando a cadeira
atrás de mim.
— Você pode ser um babaca de merda, mas não tem direito de gritar
comigo, aliás, nenhum homem grita comigo dessa forma. Então encontre o
seu lugar, Artem, porque você não me assusta. Da próxima vez que nos
desrespeitar, sofrerá consequências das quais irá se arrepender. — Ele
sustenta meu olhar.
— Quero respostas. — Fala com um certo desespero.
— Seu desespero está te deixando irracional. Conheço meus direitos.
Da próxima vez que você exigir minha presença, terá que ser com uma ordem
judicial e com outro policial. Um mais integro, que saiba tratar uma mulher
com respeito. Então, se não quer que sua cara esteja estampada em todos os
jornais amanhã e com um processo de difamação, saia do meu caminho e
nunca mais me procure. — Me viro para Gana, gesticulando para irmos.
— Laura...
— Não faço ideia de onde Ruslan possa estar. — Meus olhos se
prendem em Mirom. — As últimas palavras dele foram “meu tempo acabou”
— Volto para Artem. — Ele se foi... foi embora da minha vida.
Contorno a mesa, parando em frente à Mirom. Ele abaixa a cabeça e
abre a porta para sairmos sem dizer nenhuma palavra, só que antes de passar,
me viro para Artem.
— Quando tentar me assustar, por favor, pense em algo realmente
perturbador. Uma delegacia, uma sala com uma mesa no centro e dois
sociopatas como vocês, jamais me assustará.
Passo por Mirom e até que estejamos seguras dentro do carro, nenhuma
palavra é dita. Raiva borbulha em minhas veias ao ponto de querer voltar e
meter a mão na cara daqueles dois idiotas.
Fico encarando a delegacia, furiosa, mas ao mesmo tempo encucada
com a forma alterada de Artem.
— Gana?
— Sim? — Balanço a cabeça.
— Artem sabe...
— É um babaca, Laura.
— Não Gana! — Olho para ela que franze a testa. — Ele está
desesperado, Ruslan sumiu do seu rastro, o que quer dizer que está esperando
o momento certo para expor a verdade.
— Que verdade, Laura? — Gana fica me olhando, confusa.
— Artem sabe quem é o culpado... ele sabe quem é o demônio da rosa,
Gana. Ele sabe!
— Como podes dizer isso sem provas, baseada apenas em suposições?
E se ele for realmente o assassino que procura, o que irá fazer? — Recosto no
banco, esfregando meus lábios.
— Não sei, mas vou provar, nem que seja a última coisa que eu faça,
Gana. Eu vou descobrir e expor a verdade!
Jogo as chaves em cima da mesa sentindo meu corpo fraquejar depois
dessa lufada de emoções. Estou exausta. Durante todo o percurso de volta
para casa, Gana me fez algumas perguntas e respondi, sendo verdadeira com
ela, sem esconder nenhum segredo.
Foi bom compartilhar o que está passando dentro de mim. Yaroslav me
enviou informações sobre a suposta vítima de Ruslan, que de fato se encaixa
no padrão.
Olho para o sofá onde a coberta que ele usava está dobrada. Um nó se
aloja na minha garganta. Retiro minhas sandálias e me deito no sofá, me
cobrindo com ela e me encolhendo enquanto assisto ao desenho do Coragem,
inspirando seu cheiro ainda presente.
Rony fica brincado com um rolo de barbante que comprei para ele.
Lágrimas escorrem por meus olhos lembrando de tudo o que eu e Ruslan
passamos juntos, de como chegou de mansinho, fazendo-me enfrentar meus
demônios.
Me encolho mais e fecho meus olhos, deixando o sono me levar para a
terra dos sonhos, onde posso me encontrar com Ruslan.... Abro os olhos
sobressaltada ao escutar meu celular tocar, o relógio da parede da sala marca
nove da noite.
Espreguiço-me, relaxando meus músculos. Dormi o dia inteiro e nem
sequer sonhei. Forço-me a levantar e vou até meu celular com o objetivo de
recusar a ligação de quem quer que seja.
Encaro o identificador de chamadas, meu coração acelera com
expectativa ao encarar um número desconhecido, será que é Ruslan?
Umedeço meus lábios e engulo em seco.
Antes que a ligação caia, atendo e lentamente levo ao ouvido com o
coração palpitando, sentindo calafrios percorrerem meu corpo.
— Alô? — Murmuro, a pessoa por trás da linha não diz nada, escuto
apenas sua respiração. — Ruslan, é você? — Pergunto, espero por mais
alguns segundos.
— Te encontrei, Lauriana. — Tudo congela ao meu redor quando sua
voz penetra meus ouvidos... ele... ele...
— Ja-ames? — Balbucio, começando a tremer.
Não... não... não...
— Achou que ficaria livre de mim? — Lágrimas caem dos meus olhos,
fico encarando a parede, congelada enquanto sou arrastada para o passado...
Não aguento mais... não aguento... não consigo... digo sem parar,
enquanto passo a bucha com força em minha pele depois dele ter me
tocado... me machucado... foi tão dolorido... não aguento mais...
Abraço meus joelhos, querendo gritar, pedir por socorro, mas apenas
um choro doloroso sai de mim tão silencioso quanto minha voz, assim como
tudo em minha vida. Não consigo desfazer a sensação de suas mãos em mim,
dele atrás de mim, dentro de mim...
Abafo o grito entre as mãos. Quero tanto morrer, mas sobretudo, quero
tanto matá-lo. Olho para a porta do banheiro, imaginando-o caindo morto
com uma bala na testa ou perfurado por uma faca.
Levanto-me, esfregando minhas partes íntimas, tentando a todo custo
lavar a sujeira impregnada em mim. Por que não consigo reagir? Por que
não posso ignorar suas ameaças?
Sou uma covarde... quero tanto matá-lo...
Começo a me enxugar, minha pele está esfolada, cortada e vermelha
pelas sucessões de arranhões causadas por mim e hematomas causados por
seus espancamentos. Ele sempre deixa marca onde posso esconder, muitas
delas nem aparecem, são internas.
Visto minhas roupas e saio do banheiro. Olho pelo quarto, sem sentir
mais nenhuma emoção. Preciso apenas arrumar um jeito de sair daqui... de
fugir...
Agacho e puxo uma caixa debaixo da cama, dentro dela há o envelope
que escondi, com meu passaporte, a passagem e os documentos que preciso
para ir embora.
É amanhã... falta pouco...
Escondo o envelope atrás das costas. Não existe nada para levar. Meu
plano era fugir amanhã durante a aula, mas não aguento mais nenhum
segundo aqui, nesse inferno.
Com passos cautelosos, caminho até a porta de casa que fica sempre
trancada. Giro a chave, tentando não fazer barulho, mas é em vão.
Sinto-o atrás de mim, estremeço e viro lentamente, encarando seu rosto
petrificado com olhos malignos. A cada dia, mais exigente ele se torna, mais
estupros durante o dia acontecem... cada dia mais violentos...
Ele vai me matar, é questão de tempo.
Sempre me pergunto como minha mãe nunca percebeu o que acontece
dentro de sua casa, o problema é que quando não está fazendo programas,
ela está drogada e bêbada, cada dia mais viciada.
É pesado... tão pesado lutar sozinha sabendo que ninguém acreditará
em minhas palavras. Sem amigos, afastando todos que tentam de algum jeito
chegar até mim, vivo nesse inferno que me destrói, que tirou meu sorriso,
vivendo sempre em silêncio.
— Onde pensa que vai? — Estremeço, o timbre da sua voz é de puro
ódio.
— Eu... eu... — Não consigo inventar uma mentira que ele possa
acreditar.
Meu coração acelera, encosto as costas na porta quando dá um passo
em minha direção.
— Vá para o quarto — ordena, nego com a cabeça.
— Não — pela primeira vez eu retruco sua ordem.
Sem que perceba, destranco a porta.
— Eu mandei ir para o quarto — engulo em seco, negando com a
cabeça.
Se eu obedecer, ele irá me tocar de novo e dessa vez vai me machucar
muito mais do que costuma, vejo isso em seus olhos. Medo toma conta de
mim, preciso ser rápida. Viro e abro a porta, mas não sou tão ágil ao ponto
de conseguir sair.
James agarra meus cabelos e me puxa para trás, me jogando no chão.
Bato a cabeça contra o piso, quase perdendo os sentidos. Minha visão
escurece.
— Acha que vai fugir?
Com ajuda das minhas mãos, me ergo um pouco.
— Tenho nojo de você... — Murmuro, me levantando.
Ele ri.
— Você que desperta nojo nas pessoas, eu estou sujo por sua causa,
Lauriana. Você não presta. Por sua causa eu faço coisas que não deveria.
— Como me estuprar? — Retruco, procurando algo que possa me
ajudar.
— Eu te puno por ser asquerosa. Já se olhou no espelho? Você é
horrorosa, ninguém gosta de você, por isso que não tem amigos...
Bloqueio todas as suas palavras, ele anda em minha direção como um
predador, só consigo ver ódio em seus olhos... olhos insanos.
— Vou te punir por isso — sua voz me faz estremecer, sem esperar que
chegue mais perto de mim, corro até a cozinha.
Com as mãos, eu procuro por algo que possa me ajudar a me proteger.
Todas as facas e garfos foram abolidos da nossa casa. James manipulou a
mente da minha mãe para que acreditasse que ela era um perigo ao estar
drogada. Ela acreditou, como sempre.
Apenas ele sabe onde estão... apenas ele as usa.
Lágrimas caem sem parar, arfo por não encontrar nada. Escuto James
entrar na cozinha, olho para pia e corro até ela, agarrando a única faca
presente dentro de casa. Ele deveria estar usando-a e se descuidou ao notar
que eu estava tentando fugir.
Minha chance... essa é minha chance... viro e aponto a faca em sua
direção. Ele para de andar, encaro-o através das lágrimas.
— Não chegue mais perto! — Aviso, segurando mais firme o cabo da
faca, determinada a pôr um fim em tudo.
A prisão é muito melhor do que estar com ele.
— Acha que vai conseguir me atacar? — Diz, com um sorriso maléfico
nos lábios. — Você é muito ingrata, deveria agradecer por tudo o que fiz por
você e sua mãe.
— Você só trouxe dor. — Rebato. — NÃO SE APROXIME! — Grito
quando ele dá um passo à frente.
— Estou ficando com raiva.
— Eu vou te matar — ameaço tão decidida, que surpresa percorre seu
rosto. — Eu te odeio...
— Ah é?
Segundos se passam enquanto ficamos encarando um ao outro. James
avança em minha direção tão rápido que não consigo me defender do tapa
em meu rosto que corta meus lábios.
A faca cai no chão, ele agarra meus cabelos com tanta força, que solto
um grito que é silenciado com um soco no meu estômago. Me encolho,
choramingando...
— Vagabunda — xinga, me jogando no chão, ele me chuta e pisa em
mim enquanto profere xingamentos. — Me mata agora, sua putinha!
Ele me gira, sangue escorre de meu nariz e lábios. Me debato quando
começa a tirar minha calça de moletom. Grito agoniada com ele me tocando,
perdendo a esperança de permanecer viva.
Acerto seu rosto com as unhas quando se encaixa entre minhas pernas.
Afundo meus dedos em seus olhos, ele solta um gemido de dor e acerta meu
rosto.
Pontos pretos nublam meus olhos, ele aproveita minha fraqueza e
começa. Volto a me debater, lutando com tudo o que eu tenho contra ele,
suas mãos contornam meu pescoço e começa apertar sem parar seus
movimentos contra mim, seu gemido me causa ânsia.
Fixo meus olhos nos seus ao segurar seus pulsos, vejo que a sanidade...
a escuridão... ele vai me matar, James vai me matar... Lágrimas escorrem,
talvez seja minha salvação, mas... quero lutar, quero viver... quero... quero...
Volto a debater minhas pernas ao sentir o ar dos meus pulmões
desaparecerem, ele está me sufocando. Em seu rosto não há expressão... até
um demônio tem expressão... Olho para o lado sem mover a cabeça, a faca
está poucos metros de mim... eu só...
Fecho meus olhos, não conseguindo mais respirar. James está imóvel,
olhos presos em mim, sem alma... sem sentimentos.... sem coração.
Estico meu braço e tateio o chão, preciso de alguns segundos, só mais
um pouco... consigo sentir o cabo da faca, com cuidado arrasto-a com as
pontas dos meus dedos em minha direção, fecho a mão em torno do cabo.
— Eu te odeio... — Balbucio, encarando-o. — Você destruiu minha
vida, eu vou te matar....
Ergo a faca e então, no segundo seguinte, afundo a lâmina com toda
força que me resta na lateral de sua cintura. James solta um berro de dor,
soltando meu pescoço e se afastando de mim.
Puxo o ar, desesperada para respirar. Rolo para o lado. A faca
ensanguentada é jogada para perto da geladeira. Preciso pegá-la.
— Desgraçada — ele agarra meus tornozelos, solto um grito, inclino
para frente e soco seu rosto, James chia.
Aproveito e me arrasto até a faca, pegando-a. Sinto suas mãos em cima
de mim, me tocando e tentando me levar até ele. Com a faca posicionada em
minha mão, giro e corto seu rosto.
James grita, cambaleia para trás com as mãos no rosto
ensanguentado. Minhas mãos tremem, o cheiro de ferrugem invade minhas
narinas.
Ele me olha com apenas um olho, o outro escorre sangue, não sei se
ele voltará a enxergar novamente. Com dificuldade me levanto, pronta para
lutar. James avança cambaleando, esquivo e viro o atacando de novo,
fincando a faca com um grito ensurdecedor em suas costas.
Ele rosna e cai de joelhos, me afasto com as mãos tremendo. Tenho a
oportunidade de matá-lo, mas... perderia a chance de recomeçar uma nova
vida.
Limpo meu rosto, não quero chorar... não vou chorar e nem me
arrepender. Começo a sair da cozinha, mas congelo ao escutar sua voz.
— Não importa para onde você for, eu irei te encontrar. — diz com
dificuldade, arfando. — Nem que seja no inferno, eu vou te encontrar e te
destruir... você é minha, Lauriana...
— Quando isso acontecer, eu irei atrás de você e te matarei. — Afirmo
com tanta certeza que ele me olha. — Eu te matarei, James, não irei me
importar com as consequências, apenas vê-lo sangrar até morrer...
Me aproximo dele friamente, arranco a faca de sua pele. Agora ele não
passa de um abusador ensanguentado e fracassado. Ele escorrega até se
sentar no chão. Passo a faca em sua bochecha, ele grita e tenta me impedir,
piso em sua mão com tanta força, que prazer navega por cada parte do meu
corpo por vê-lo sofrer.
Passaria dias fazendo isso... o torturando, escutando-o clamando por
misericórdia.
— Eu te matarei. Isso é uma promessa. — Recuo, deixando a faca
fincada em sua coxa, ele tenta retirar.
Dou-lhe as costas, visto-me e pego todas as minhas coisas, saindo de
casa ensanguentada e machucada. A chuva limpa todo o sangue enquanto
vago pela madrugada sem rumo.
Ao chegar no terminal, vou direto ao banheiro, me tranco no
reservado. Sento-me no vaso e tiro o envelope e três maço de dinheiro que
tinha debaixo da blusa de moletom, dinheiro que minha mãe vinha juntando
ao longo dos anos. Mesmo que eu tenha escondido, ele ficou um pouco
molhado. Retiro de dentro meus documentos, a passagem e o cartão do
banco da minha mãe. Preciso limpar a conta.
Durante horas permaneço dentro do banheiro até amanhecer.
Caminho até uma loja de malas e compro uma e vou direto ao caixa
eletrônico, tirando de lá os cinco mil reais que é permitido sacar por dia.
Avisto um orelhão e vou até ele, disco o número da minha mãe a
cobrar. Espero que aceite, sua voz invade meus ouvidos, começo a chorar.
— Lauriana, é você? — Pergunta com desespero, acredito que tenha
encontrado James.
— Sim...
— Meus Deus, onde você está? Cheguei em casa e encontrei James
machucado, ele está internado, fora de perigo. Disse que invadiram nossa
casa e que lutou contra o ladrão, e que você fugiu com medo.
— Você acreditou nele, mãe? — Pergunto, limpando as lágrimas, ela
fica em silêncio.
— O que está acontecendo, Lauriana?
— Mãe, para de se drogar... — Murmuro em uma súplica. — Para de
beber... assim quem sabe, consiga tirar a venda de seus olhos e enxergar o
estrago. James é um mentiroso... ele me destruiu... — Minha voz some por
causa do choro.
— Laur...
— Eu te amo, mãe... te amo demais...
— Eu também, — mentira, ela não me ama, apenas James — volta
para casa, estou preocupada.
— Não vou voltar... nunca mais...
— O... quê?
— Adeus, mãe! — Coloco o telefone no gancho, um choro intenso sai
de dentro de mim, não consigo me manter de pé e caio no chão.
Por que tem que ser assim? Por que minha mãe não pode acreditar em
mim? Eu sou sua filha, eu deveria ser sua primeira escolha.
— Moça, está tudo bem? — Sinto mãos em cima de mim, solto um grito
e me afasto, encarando o rosto de uma senhora.
— Não me toca... não me toca... nunca mais me toque — falo me
levantando e passando a mãos por meus braços, como se estivesse limpando
sujeira.
A senhora recua, assustada.
Ignorando-a, apanho minha mala e saio apressada em busca de um
táxi que possa me levar ao aeroporto de Brasília. Depois de muito custo,
encontro um disposto, mas que cobra uma quantia absurda.
Aceito sem me importar, pronta para ir embora e tentar esquecer todo
esse inferno que vivi...
Infelizmente esse inferno nunca me deixou... nunca fui capaz de
esquecer o que ele me fez passar, da dor que me fez sentir. Mesmo em outro
país, James nunca me deixou em paz.
Agora ele está de volta, cumprindo com suas palavras e sei
perfeitamente que ele vai até o fim para acabar comigo. Porém, ele não faz
ideia de que a minha promessa também é verdadeira.
— Não vejo a hora de te encontrar! — Afirma ainda na linha, deixo o
celular escorregar da minha mão, sentindo o ódio crescer dentro de mim.
Chegou a hora... chegou o dia em que irei cumprir com aquilo que
prometi. Não deixarei James me destruir, não deixarei que me toque outra
vez, porque eu o matarei...
Matarei James e nada me fará parar até vê-lo sangrar.
Fico encarando o celular caído no chão, só tem uma pessoa que é capaz
de trazê-lo de volta. Ele me ameaçou com meu passado... Olho para a mesa e
vou até ela em busca do seu verdadeiro endereço, nada encontro.
Fito meu celular, agacho pegando-o do chão e disco o número de
Aksinya. Depois de quatro tentativas, ela me atende.
— Laura? — Sua voz sai alarmada. — O que houve?
— Desculpa por estar te incomodando, mas preciso de uma
informação. — Mantenho minha voz calma para não perceber meu
desespero.
— Claro, mas tu estás bem?
— Estava trabalhando no material do documentário, uma informação
apareceu e preciso com urgência do... endereço de Mirom, de sua casa. —
Ouço ela bocejar.
— Mas tu já tens. — Fecho meus olhos, controlando-me.
— Não, preciso da verdadeira casa dele, não o da Okasana.
— Ah, sim! — Escuto um barulho de papéis. — Tenho aqui, consegui
quando Artem foi preso, te mandarei por mensagem.
— Preciso que seja agora.
— O que aconteceu? — Indaga, percebendo meu desespero.
— Como falei, preciso falar com ele.
— Okay! — Aksinya finaliza a ligação, espero por sua mensagem
andando de um lado para o outro, sentindo os segundos se tornarem uma
eternidade.
O celular apita com a chegada da mensagem, agradeço a Aksinya e vou
para meu quarto, abro o guarda-roupa e visto roupas pretas, prendo meus
cabelos, calço um tênis e coloco o capuz, me encarando pelo espelho.
— ... eu irei atrás de você e te matarei. — Afirmo com tanta certeza que
ele me olha. — Eu te matarei, James, não irei me importar com as
consequências, quero apenas vê-lo sangrar até morrer...
Inspiro fundo ao lembrar da promessa que fiz a mim mesma. Rony mia,
se aninhando em meus pés. Agacho e passo minha mão em seu pelo negro.
— Preciso fazer isso — falo, tentando tranquilizá-lo. — Ele me
destruiu... — Me levanto e saio de casa, subindo apressada as escadas até o
segundo andar. Esmurro a porta de Gana, sei que ela ainda não foi trabalhar.
Ela abre a porta, entro sem olhar para ela.
— Laura? — Vou até seu quarto. — Por que tu estás vestida assim? —
Abro sua gaveta, jogando suas calcinhas no chão.
— Cristo Laura, o que está acontecendo? — Ignoro-a e congelo ao ver
a pistola escondida.
Gana arfa.
— Laura, não...
— Eu preciso... — Fecho a mão em torno dela. — Eu vou matá-lo...
— Matar quem? — Me viro para Gana, pálida como um defunto.
— Preciso ir...
— Não, de jeito nenhum te deixarei sair por essa porta com uma arma
na mão.
Fico encarando-a enquanto bloqueia a porta. Já tomei minha decisão,
não tenho mais nada a perder. Então, lentamente ergo a arma, apontando-a
para Gana que arregala os olhos.
— Laura, se acalme primeiro. Tu não estás raciocinando direito.
— Saia do meu caminho — peço, destravando a arma. — Eu não quero
te machucar.
— Não és tu, Laura... eu não a reconheço. — Lágrimas escorrem por
meu rosto, mas me mantenho firme.
— Não sou a Laura, Gana — digo. — Sou a Lauriana... — Seus olhos
arregalam, ela balança a cabeça de um lado para o outro.
— Deixe-me passar! — Vendo a determinação em meus olhos, ela se
afasta.
Sem abaixar a arma, passo por ela, andando de costas com meus olhos
fixos nos seus nublados de lágrimas.
— Não faça isso, não destrua sua vida.
— Ele me destruiu... não tenho nada a perder. — Apanho as chaves do
seu carro. — Eu te amo, Gana, não como Lauriana, mas como Laura.
— Como assim?
Não respondo, apenas viro as costas e saio do seu apartamento,
escondendo a pistola atrás das costas, em segundos, arranco com o carro
pelas ruas, apressada e sem diminuir a velocidade.
Posso estar errada, talvez Mirom não tenha trazido James.... talvez ele
tenha vindo sozinho por outros meios ou descoberto apenas meu número para
me atormentar como fez durante todos os anos em que vivi com ele.
Só que não irei esperar sentada, preciso comprovar se é verdade.
Mirom sabe que James é minha fraqueza, mas não faz ideia da forma
que eu reagiria. Nesse momento eu só quero vingança... quero ver James
morrer, assim como matou meus sentimentos... da mesma forma que me
torturou todos esses anos.
Vou até o inferno para encontrá-lo se preciso for, e através das minhas
mãos, James irá sucumbir à morte, de forma lenta e dolorosa.
Sou Lauriana Silva, aquela que teve sua vida destruída por alguém que
deveria cuidar e amar... aquela que acreditou ter ganho o pai que tanto
sonhou, a que foi aprisionada em um abismo sem fim. E é essa mesma garota,
que colocará fim em todo esse pesadelo.
Paro o carro em frente a uma casa de dois andares em um dos lugares
mais ricos de Kharkiv. Desço do carro e encaro-a com a voz de Mirom
entoando em minha mente.
“Queria ajudá-la a rever sua família...” ele declarou naquele maldito
jantar “... Ele é simpático, tu foste a culpada por tudo...” Mirom estava
falando a verdade, ele trouxe James, sei que ele está dentro dessa maldita
casa, mas não sairá com vida, não se depender de mim.
Certifico de que a arma está escondida atrás das costas. Olho para os
lados, a rua está deserta, há apenas neblina. Ajeito o capuz e com a respiração
funda, pulo o pequeno muro que cerca a propriedade, aterrissando no quintal.
Com a pistola na mão, me aproximo da entrada. Jogo para o fundo da
minha alma, trancafiando qualquer sentimento de medo que possa me fazer
parar... que possa me fazer recuar. A frieza e a vingança tomam conta de
mim.
Paro diante da porta, seguro a maçaneta e giro. Ela se abre, hesito por
um instante antes de entrar.
A casa é uma verdadeira mansão. A sala é enorme com decoração em
branco e um lustre vermelho reluzindo cada detalhes da perfeita decoração. A
escada que dá acesso ao andar de cima está forrada com um carpete
vermelho.
Seguro a pistola com as duas mãos quando começo a tremer, meu
coração bate tão acelerado que temo que faça eco por toda casa. Paro por
alguns segundos, tentando escutar qualquer ruído que seja.
Vou até a cozinha, meus olhos navegam impressionados pelo tamanho
e sofisticação. Decorada com vermelho e branco, ela se torna o sonho de
qualquer mulher que ame cozinhar.
Viro para trás ao escutar uma porta ser fechada. Calafrios percorrem
meu corpo e ando com passos lentos em direção ao barulho. Olho para cima
diante à escada.
Ele está lá em cima...
Respiro fundo e começo a subir. Cada degrau é uma batida do meu
coração entoando junto com os ponteiros do relógio. Chego ao patamar e
olho para o corredor à minha frente.
Estreito meus olhos para acostumar minha visão com a escuridão, dou
um passo à frente, engolindo em seco e controlando a vontade de recuar.
Aperto a pistola, contendo a respiração desregulada, andando com
passos silenciosos. Congelo de repente, meu corpo se arrepiando enquanto
meus olhos se enchem de lágrimas ao encarar a silhueta distante.
Sozinha, meu caminho se encontra com o seu, onde o mundo hostil não
tem voz. É dele que sempre fugi, que tive medo de que esse dia chegasse.
Entre a escuridão, a vida me traz a tristeza de voltar para onde meu
coração se ruiu.
Sozinha, encaro seu rosto coberto por cicatrizes que eu causei. Meus
pensamentos sempre ficaram presos no passado, se afogando nas lembranças
de todo o mal que me fez. Sempre tentei curar todas as feridas, tentando fazer
minha vida voltar a brilhar, esquecer do que vivi e reconstruir meu lugar, meu
pequeno espaço, libertar-me dele.
Mas a cada batalha, ele permaneceu.
— Eu te... encontrei! — Digo com a voz carregada de dor.
James dá um passo à frente, deixando mais nítido seu rosto cicatrizado.
A íris de seu olho direito está de um branco intenso.
Eu o ceguei.
— Como você cresceu... — Sua voz acerta em cheio cada sentido meu.
— Te procurei por anos, mas se escondeu muito bem.
— Não tão bem, porque acabou me encontrando. — Retruco, rangendo
os dentes e deixando o ódio me dominar.
— Você é como sua mãe. — Fala, percorrendo os dedos por toda a
superfície do rosto. — Uma verdadeira puta!
— E você continua o mesmo merda de sempre. — Rebato, recuando
um passo.
James solta uma risada.
— Está vendo esse estrago? — Aponta para seu rosto. — Achou que
iria ficar impune por muito tempo?
— Na verdade, — começo, passando a língua em meus lábios —
sempre soube que você retornaria, que me encontraria.
— Esperta... — Balbucia.
— Quem te trouxe? — James sorri de lado.
— Mirom... acho que é esse o nome do dono dessa casa, não entendo
uma só palavra do que diz.
— Porque é inútil demais para aprender qualquer outra língua. — Ele
fica me encarando com seu olho bom.
— Você ficou desaforada, me deve respeito.
Ele só pode estar brincando!
— Respeito? — Balanço a cabeça. — Você se lembra da minha
promessa, James? Lembra que faltou pouco para eu te matar?
— Mas não matou.
— Porque fui fraca... mas não sou mais. — Digo, dando um passo à
frente. — Eu vou acabar com você!
Inspiro, encarando o fundo de seus olhos e lentamente começo afundar
meu dedo no gatilho, enfrentando meu medo. Dentro de mim não há nada
além de dor, o sussurro de sua voz de anos atrás, apenas a escuridão se faz
presente.
Quero que queime no inferno e me deixe para sempre. Que pare de
atormentar meus sonhos e minha vida... quero que desapareça para sempre...
Um barulho engasgado sai da pistola, meu coração para ao perceber
que a arma falhou.
Um sorriso brota de seus lábios, então me vejo de novo, imponente e
fraca. Não há como voltar atrás. A luz dentro de mim, aquela que se recusa a
apagar, começa a desaparecer, nunca pude viver meus sonhos... nunca pude
ser livre, tudo o que procurei, nunca me foi dado.
Minha mente grita desesperada, mas não consigo me mover, não
consigo sair dessa prisão. Todas as correntes voltam aos meus pulsos
enquanto o vejo se aproximar.
James dá um tapa tão forte na pistola que ela sai voando, batendo
contra a parede e caindo no chão. Dou um passo para trás, encurralada por
ele. Sua mão de repente contorna meu pescoço, apertando-o.
Arfo e seguro seu pulso sentindo o ar desaparecer. James me joga
contra a parede, solto um gemido ao colidir com tanta força que meus
pulmões reclamam.
Quero acordar, lutar contra essas correntes que me aprisionam, que
queimam minha pele para que eu possa destruí-lo. Inspiro fundo, segurando-
me para não cair.
James volta a segurar meu pescoço, apertando-o com força. Começo a
me debater, arranhando seu braço. Seu olho bom permanece fixo em mim.
Frio. Insano.
— Você se tornou uma mulher linda — diz, aproximando a outra mão e
percorrendo-a por meu corpo. Tento impedir, mas ele intensifica o aperto. —
Por que fez isso? Por que me abandonou? Eu estava apenas te punindo por
me deixar confuso. — Paro de me debater e fito seu rosto, sentindo nojo.
— Eu te odeio... — Sussurro. — Te-enho... nojo de você... — Declaro,
cuspindo em seu rosto.
James fecha os olhos, inclina a cabeça para o lado e sorri antes de
voltá-los a abrir. Pavor me consome ao ler em sua expressão suas
motivações.
Ele vai terminar o que não conseguiu anos atrás...
— Vou te punir — dizendo isso, ele aperta mais forre meu pescoço,
ódio nubla seus olhos escuros.
Nada poderá me libertar, ninguém pode sentir o que sinto. Noite após
noite sendo atormentada, pensando em cada momento de dor. Fecho meus
olhos, tentando buscar a migalha de força que me resta.
Eu vou acordar, jogar para longe essa corrente que me liga a James e
um passado de dor. Irei florescer como uma rosa, lutarei até meu último
suspiro. Sou a única que pode fazer isso. Abro os olhos e o encaro.
Sou a única que pode me salvar!
Com impulso, ergo meu joelho e acerto entre suas pernas, ele chia de
dor. Levanto meus braços e impulsiono para baixo com força sua mão em
torno do meu pescoço. James me solta e acerto meu punho em seu rosto,
fazendo-o recuar alguns passos para trás.
Arfo em busca de ar, sentindo-o voltar a circular.
— Vagabunda! — Olho para James, encolhido de dor, não espero que
se recomponha, vou até ele e tento acertar seu rosto, mas ele é mais ágil e me
dá um tapa em meu rosto.
Vacilo alguns passos, sentindo sangue em minha boca. Solto um grito
quando ele agarra meus cabelos, inclinando minha cabeça para trás.
— Você continua sendo fraca. — Ranjo os dentes e com o cotovelo,
acerto a lateral de seu corpo, ele me solta, giro e volto a acertar seu rosto.
James cambaleia e me encara, limpando o nariz que sangra. Olho para a
arma perto de mim com a respiração acelerada, mas não posso arriscar a
pegá-la, não agora.
Volto meu olhar para ele, que sorri mesmo diante dessa situação. Não
sou a mesma menina que ele tinha poder sobre mim, a Lauriana cresceu.
— Vou acabar com você, James. — Digo, olhando por cima de seu
ombro, e antes que reaja, corro até ele e o empurro com força.
Sorrio ao encarar seu rosto surpreso adquirindo uma expressão de
pavor antes de cair nas escadas e sair rolando. Ouço seus ossos colidindo a
cada degrau, gemidos saem de sua garganta e tudo se silencia quando ele fica
estirado no chão, ao pé da escada.
Pego a pistola e começo a descer lentamente. Engatilho a arma, aponto
em sua direção quando me aproximo. Contorno seu corpo e o empurro com
meu pé, mas então sou agarrada pelo tornozelo e puxada para frente.
Caio de costas com tudo no chão, a arma faz outro barulho engasgado,
escorrega da minha mão e em instantes James está em cima de mim, com as
mãos em torno do meu pescoço.
Debato minhas pernas, ele está vermelho de raiva e estremece enquanto
tenta me sufocar. Ranjo os dentes e afundo meus dedos em seus olhos, ele
grita.
Intensifico meus dedos para dentro de sua pele, James solta meu
pescoço e me dá um tapa em meu rosto, fazendo minha visão escurecer, mas
não vou desmaiar... não permitirei que me mate.
Tento livrar-me dele quando volta esmagar meu pescoço.
— Eu vou te matar, sua asquerosa...
Eu acredito em suas palavras. Fecho meus olhos prestes a ser levada
pela escuridão. Quando volto a abri-los ao sentir que James se levantou um
pouco, dou uma joelhada entre suas pernas e o empurro para o lado ouvindo-
o gemer de dor.
James cai, não perco tempo, mesmo arfando, chuto seu rosto. Ele leva
as mãos ao nariz, gritando de dor. Rastejo até a pistola e me viro de costas,
apontando a arma para ele que está de pé.
Seu nariz está jorrando sangue, assim como sua cicatriz que de alguma
forma se abriu. Seu peito sobe e desce em uma respiração rápida e furiosa, se
essa arma falhar, será meu fim.
Meu coração e minha alma nunca irão perdoá-lo. Não há nada a perder,
eu não vou recuar, James matou meus sonhos. Meu coração chora ao lembrar
de seu toque. Ele me empurrou em um abismo sem fim, sorriu enquanto eu
rastejava em busca de saída.
Chorei aos céus, rezando todos os dias para me livrar desse tormento...
chegou a hora de colocar um fim...
Inspiro e afundo o dedo no gatilho, o tiro ensurdecedor zumbe em meus
ouvidos. James dá um passo para trás quando a bala penetra sua testa, calafrio
percorre meu corpo encarando seus olhos presos em mim enquanto o brilho
vai desaparecendo.
Sangue escorre do buraco da sua testa, ele cai de joelhos, sendo ceifado
pelos demônios... sendo carregado para o lugar que nunca deveria ter saído.
James inspira uma última vez antes de cair para trás, morto. Tudo se
cala ao meu redor. As batidas do meu coração entoam em meus ouvidos e
lentamente me viro, encontrando com seu olhar...
A bala que nocauteou James não saiu da minha arma, porque ela falhou
outra vez, mas sim da de Mirom, que está parado com a pistola ainda
levantada.
Ele acabou de salvar minha vida ou... de destruí-la mais uma vez.
Sua expressão ilegível e dura não diz nada. Não faço ideia do estado do
meu coração, do que pensar ou sentir.
James está morto e Mirom... me encara.
Sinto ser aprisionada por outro demônio, por uma nova corrente... mais
uma vez implorarei por liberdade, por um apagão, pedindo para que tudo
desapareça.
Mirom abaixa a arma, começando a andar em minha direção. O encaro
petrificada, sem nem abaixar a arma. Ele para à minha frente, tento apertar o
gatilho, ciente de que não funcionará. Mirom respira fundo e se inclina,
arrancando a arma da minha mão.
Ele sorri, analisando a pistola.
— Tu pretendias matá-lo com uma arma de mentira? — Olho para ele,
confusa.
Mirom estala a língua e vai até o corpo do meu padrasto, me ergo e o
observo sentada.
— Se eu não tivesse assistindo tudo, — seus olhos verdes cintilam ao
me encarar — tu estarias morta agora.
— Fal... falsa?
— Não me surpreende tu não saberes diferenciar. — Ele agacha e
coloca dois dedos no pescoço de James, certificando de que está morto. —
Que bagunça...
— Por que trouxe ele? — Murmuro. — Por que você fez isso?
— Para que possamos seguir em frente, necessitamos enfrentar e
aniquilar o passado. — Diz, estalando a língua de novo. — Ele era o seu,
apenas dei uma forcinha.
— Sua atitude foi motivada por outra coisa.
— Levante-se, precisamos limpar essa merda. — Mirom fala, olhando
para os lados.
— O-o quê? — Olho para ele desorientada. — A polícia... chame a
polícia...
— E em quem eles irão acreditar? — Prendo a respiração. — Se
levante, estás uma bagunça. — Diz, indo até a cozinha.
Solto um suspiro e forço-me a levantar. Cambaleio com as pernas
bambas, quando me preparo para cair, sinto as mãos de Mirom nas minhas
costas, me sustentando. Estremeço e me afasto.
— Aqui — ele estende um saco de gelo. — Coloque em seu rosto, vai
diminuir o inchaço.
— Pensei que era verdadeira... a arma. — Ele solta uma risada.
— Venha aqui! — Me chama, com cautela me aproximo dele. — Olhe
para esse vídeo.
Mirom aperta o play do notebook em cima da mesa. Meus olhos
nublam de lágrimas ao ver minha luta com James e o momento em que ele
atirou em sua testa, só que não mostra Mirom, em todo caso, eu atirei em
James... nas filmagens, eu sou a assassina.
Giro a cabeça, dando de cara com a câmera de segurança. Desvio os
olhos e prendo em Mirom, sentado na cadeira de forma relaxada com um
copo de uísque na mão.
— Você o matou... — Ele nega com a cabeça, jogando uma pasta sobre
a mesa.
— Tu mataste um homem, as filmagens não negam. — Balanço a
cabeça.
— Era um plano... era a merda de um plano.
— Bingo — comemora dando um gole na sua bebida. — Tu disseste
que para te assustar deverias ser algo realmente assustador, acho que
consegui.
— Você é doente...
— Não — ele coloca o copo sobre a mesa e sem terminar de falar, vai
até James. — Abra a pasta.
Com a respiração funda, faço o que pede. Uma foto da minha mãe com
um macacão laranja e com uma placa numerada faz meu mundo desabar.
— Lívia ficou presa durante seis anos por tentativa de assassinato. —
Esclarece, folheio todo o documento. — Ela tentou matar James, acredito que
na época em que tu fugiste, mas o filho da puta foi mais esperto. — Fecho
meus olhos com força.
— Agora ela está livre... — Murmuro.
— Ela tentou matá-lo quando saiu da prisão. — Olho para Mirom. —
Mas uma vez o filho da puta a trancafiou, tem dois meses que ela está livre.
— Onde... ela está agora? — Mirom enruga os lábios.
— Não faço ideia. — Coloco o saco de gelo em meu pescoço, sentindo
minha voz falhar. — Talvez morta por ele.
— Eu... liguei para ela, mamãe está viva.
— Ótimo! — Solto um suspiro.
Então... mamãe tentou matá-lo por minha causa? Eu senti tanto ódio, a
condenei por tantos anos, mas... mesmo assim não apaga sua negligência.
— Como conseguiu essa informação? — Pergunto, traçando o rosto da
minha mãe.
Sinto tantas saudades...
— Quando se tem dinheiro, se consegue tudo.
— O que você está fazendo? — Pergunto quando começa a enrolar o
corpo com o carpete.
— Temos um corpo a ocultar. — Aperto a bolsa de gelo.
— Por que está fazendo isso? — Ele para e me olha.
— Eu sei do seu crime, o que me torna um cúmplice. Se tu caíres, eu
caio. — Explica. — Não fique aí parada, não temos tempo.
— Por que você se importa?
— Entenda, eu preciso fazer essa escolha, preciso te prejudicar de
alguma forma.
— Por causa do Ruslan? — Mirom abaixa a cabeça, sorrindo de lado.
— Ele é o de menos. — Seus olhos se prendem em mim, mais intensos.
— Agora pare de falar e me ajuda. — Diz.
Não há como recusar, eu posso ver a ameaça em seus olhos. Por que o
destino me jogou em mais essa armadilha?
O que eu faço agora?
Sei que não há escapatória, mas também não vou correr, vou encarar de
frente. Tenho que ficar firme e não ceder.
Vou até Mirom e começo a ajudá-lo. Se eu não fizer isso, ele me
destruirá. A verdade está dentro de mim, sempre estará, não importa o tempo
que passar, ela sempre estará oculta e isso não tem volta.

Esfrego meus braços encarando o nada, apenas uma mata nos cercando.
Olho para trás quando Mirom abre o porta-malas do jipe e retira de dentro
uma pá. Ele passa por mim sem dizer nada, eu o sigo em silêncio.
Ele finca a pá na terra perto de uma grande árvore que seus galhos
balançam conforme o vento da madrugada toca suas folhas com a força do
vento. Mirom joga um par de luvas, pego antes que caia do chão.
— Comece a cavar — ordena, se afastando e sentando nas grandes
raízes da árvore.
— O... quê? — Ele arqueia uma sobrancelha, seu rosto sendo
iluminado pelo farol do seu carro.
— A vítima não é minha.
— Mas foi você quem matou...
— Não é o que o vídeo mostra. — Mirom acende um cigarro, tragando
e soltando a fumaça pela madrugada.
Respiro fundo, calço as luvas e começo a cavar.
— Tu foste preparada para morrer? — Pergunta minutos depois, dou de
ombros, concentrada na cova que abro.
— Um de nós dois sairia sem vida — respondo.
— Tu lutaste bravamente, tenho que reconhecer o quanto és corajosa.
— Não respondo por um longo momento, passo o dorso da mão enluvada na
testa suada.
— Por que tem tanto ódio de Ruslan?
Mirom traga, prende a fumaça por alguns segundos e solta lentamente.
— É maconha? — Pergunto, ele sorri em confirmação.
— Você quer? — Oferece, nego com a cabeça. — Ajuda a relaxar. —
Ele aponta para a cova que bate no meu tornozelo.
— Cave mais rápido. — Murmuro suas palavras antes mesmo que as
diga.
— Ele é um assassino — responde minha pergunta, minutos depois.
— Bom... você também é... enfim, viva a hipocrisia. — Sustento seu
olhar por alguns segundos.
— Tu achas que sou o verdadeiro assassino? — Umedeço meus lábios,
fecho e abro minhas mãos, as articulações dos meus dedos gritando de dor.
— Não... — Respondo. — Não mais!
— Por quê?
— Você só está com medo de que eu consiga descobrir a verdade e
com isso seus segredos. — Estico meus lábios. — Você tem podridão
escondida por trás da sua farda, dor por trás de seus olhos frios e solidão por
trás de seu sorriso sem emoção.
Mirom me encara por longos segundos.
— Volte a fazer essa merda. — Inspiro fundo e volto a cavar.
Depois de mais ou menos duas horas cavando, Mirom assume meu
lugar. Meus olhos o acompanham até o carro, ele pega o corpo de James
enrolado no carpete e um litro que parece ser de gasolina.
O corpo de James é jogado, fazendo um baque ao colidir no fundo da
cova. Meu coração salta com o barulho, inspiro fundo assistindo a gasolina o
encharcar.
Mirom acende um fósforo e me entrega.
— Faça as honras.
Solto um suspiro e jogo o fogo. O fogo cresce quando se une com a
gasolina. Lágrimas silenciosas caem de meus olhos, lembrando do que me foi
tirado, de quando a esperança se extinguiu da minha alma. Desejei tanto que
a vida me levasse, mas agora... me sinto abraçada pelo vento, beijada pela luz
da manhã.
— Temos um segredo, Laura. — Mirom quebra o crepitar do fogo,
sinto o cheiro de pele e pano queimado. — Pare de investigar os Rotam.
— A verdade sempre aparecerá, não adianta correr. — Digo, sem
desprender meus olhos do corpo que queima.
— Como se sente? — Murmura, balanço a cabeça, lembrando do meu
passado... de James...
Ele nunca mais me atormentará, a partir de hoje ele é apenas cinzas.
— Livre — revelo, lançando um olhar cansado para Mirom. — Depois
de tantos anos... eu me sinto... aliviada... me sinto liberta.
— Viva sua vida, mas nunca se esqueça do dia de hoje. — Assinto,
voltando a encarar o corpo queimando em fogo.
— Obrigada... — sussurro com a voz trêmula. — Obrigada por tê-lo
matado.
— Cacete, Ruslan! — Vocifera Nikita quando entro na sala e me sento,
sustentando seu olhar. — Onde tu estavas todo esse tempo?
— Por aí! — Ele esfrega seus olhos.
— Cada esquina de Kharkiv tem policiais, pensei por um momento que
talvez tu tinhas sido capturado.
— Estou de boa — minto.
Nikita inspira fundo, coloco as mãos no bolso do moletom e começo a
balançar a perna. Ansiedade e nervosismo me corroem aos poucos.
— Tu viste o quanto emagreceu? — Abaixo a cabeça sem responder.
— Cacete, garoto!
— Eu estou bem — minto outra vez sem revelar que, na verdade,
estava com Olesya esse tempo todo, despedindo-me da minha irmã e
tentando trazer Lívia para Kharkiv.
— Conseguiste? — Assinto.
— Olesya embarcou ontem à noite. Estará de volta depois de amanhã.
— Certo! — Nikita esfrega o rosto. — Não some dessa forma de novo,
porque espalhei homens por todos os lados atrás de ti.
— Só precisava de um tempo.
— Tu achas que tem tempo para pensar? — Ele balança a cabeça.
— E tu querias o quê? — Pergunto, ficando com raiva. — Que eu
sorrisse diante de toda essa merda? Diante de tudo o que perdi?
— Deverias estar ciente disso.
Levanto de uma vez, pego a cadeira, giro e com impulso jogo-a contra
a parede com um rugido furioso. Coloco as palmas das mãos na testa
andando de um lado para o outro, controlando a raiva dentro de mim e a
fisgada de dor de cabeça, que insiste em não ir embora.
Estou uma bagunça...
— PORRA!
— Se acalma, garoto. — Me viro para ele.
— Acalmar? — Indago, inconformado. — Como tu achas que estou?
Deixei a mulher que amo sem me despedir, não posso construir uma família
com ela porque sou um merda de um criminoso, condenado por crimes que
não cometi. Me diga como achas que deve estar aqui dentro? — Bato em
meu peito. — Estou exausto... estou cansado de toda essa merda!
Nikita fica me olhando sem dizer nada, mas vejo em seus olhos,
compreensão, de alguma forma ele entende o que estou passando.
— Não podemos fugir do nosso destino.
— Que destino merda é esse? — Resmungo, parando em frente à janela
que dá acesso à pista de dança da boate.
— Beba um pouco de álcool, te fará bem. — Respiro fundo e aceito o
copo de vodca que me entrega. Jogo a bebida na boca, ela desce rasgando a
garganta. Nikita bate em meus ombros tentando me tranquilizar.
— Olha garoto, tu precisas ser ainda mais forte. — Olho para ele, que
dá um gole na sua vodca. — O que tenho... não é bom!
Nikita se afasta, sobre a mesa lotada de papéis, ele pega uma pasta e
volta até mim, estendendo-a.
— Eu entendo perfeitamente o que sentes em relação à Laura, vai por
mim, eu sei. — Conta com o olhar perdido.
Abro a pasta, folheio alguns documentos e seguro a foto de um homem
na faixa de uns cinquenta anos. Franzo a testa, ele não me é estranho...
— O nome dela era Mariya, olhos castanhos capazes de me fazer
sonhar. Vivemos grandes momentos, mas... — Ele engole mais uma dose de
vodca. — Conheces a história de Romeo e Julieta?
— Sim.
— Detesto essa comparação, mas nossa história foi parecida. Uma
moça pertencente a uma das famílias mais importantes da Ucrânia e eu um
criminoso, filho de um mafioso.
Nikita faz uma pausa, seus olhos ficam vermelhos e marejados.
— Eu a amava mais que minha própria vida, essa garota era tudo para
mim, Ruslan.
— Imagino que sim.
— Um namoro escondido não é uma escolha sábia, não vindo de
famílias rivais. Seu pai um juiz renomado, meu pai, um dos mafiosos mais
perigosos. — Ele balança a cabeça, dando um gole no bico da garrafa da
vodca. — Claro que daria errado, mas... não como Romeo e Julieta que se
mataram. Mariya foi morta por seu próprio pai, Ruslan, ele não aceitou nosso
romance, era obcecado por ela de modo doentio, era um merda de um
abusador.
Lágrimas caem por seu rosto, desvio o olhar e encaro os olhos escuros
do juiz, sentindo ódio por meu amigo.
— Ela estava fugindo, vindo até mim... — Uma fisgada de dor aperta
meu peito ao imaginar sua dor. — Então ele atirou... na minha frente, ele a
matou... matou a mulher que dava sentido à minha vida de merda. Ele atirou
na nuca de Mariya e eu não pude fazer nada. Ela morreu em meus braços,
levou com ela tudo de bom dentro de mim.
— Então Adam colocou a culpa em você pelo assassinato? — Nikita
limpa o rosto, assentindo.
— Meu pai estava de acordo... porra, ele a aceitou como nora, viu o
quanto Mariya era importante para mim. Eu morri Ruslan. Nada mais fez
sentindo... até te encontrar naquele banheiro com o pulso cortado. Um garoto
em meio aquele inferno. Seus olhos... merda, seus olhos inocentes me
lembraram os dela.
— Tu salvaste minha vida.
— Algumas coisas devem acontecer, o destino nunca erra. — Diz,
dando outro gole na sua bebida. — Se ela não tivesse sido morta, tu estarias
morto. Se tu não tivesses fugido, não teria salvo Laura da escuridão. Tudo
está intercalado... tudo acontece com um propósito e tudo no final faz
sentido.
— Por que ainda não o matou? — Nikita não responde a princípio.
Fico analisando sua expressão adquirir uma expressão de raiva, seus
olhos se fixam no meu.
— Eu tentei, mas ele tem uma escolta de seguranças e policiais, não
posso arriscar ser preso de novo, não quando preciso assumir todos os
negócios do meu pai. — Revela. — Ele está doente, não viverá por muito
tempo.
— Então?
— Tu irás fazer isso. — Franzo a testa, sem desviar de seu olhar. —
Tu me deves uma vida, e prometi cuidar de Laura.
— Quer que eu o mate? — Ele confirma com um aceno.
— Mas isso tem ligação contigo também.
— Como assim? — Nikita me entrega seu copo, bebo a vodca em um
só gole, chiando por causa da intensidade do álcool.
— Foi ele quem te julgou. O mesmo quem bateu o martelo e te
condenou à pena perpétua.
Volto a encarar os olhos do juiz, começando a recordar da frieza em
que me olhava. De como desdenhou do meu pedido de ajuda ou quando me
ajoelhei aos prantos diante de si, pedindo por socorro, implorando, pois
estava condenando a pessoa errada.
Uma criança pedindo por misericórdia...
— Adam é um dos criminosos de colarinho branco mais sujo da
Ucrânia, sempre foi. — Diz. — Por isso tenho quase certeza de que ele
trabalhou com o verdadeiro assassino. Ele deve ter descoberto alguma sujeira
do juiz e o coagiu a te condenar e forjar as provas.
— Cacete... — Xingo, quando penso que nada pode ficar pior, essa
bomba explode em minhas mãos.
— Quando tudo acabar, é ele quem tu irás procurar e em meu nome, tu
o matarás.
— E minha dívida será paga. — Nikita assente.
— Está tudo esquematizado, quando chegar a hora meus homens
entrarão em ação. Também preparei uma rota de fuga para ti.
— Fuga?
— Sim! — Responde, rodando a garrafa. — Espanha, México...
qualquer lugar que tu escolheres, eu te enviarei.
— Não sei se é uma boa ideia, fugir não é a solução. — Nikita e eu
ficamos em silêncio por um momento, sua proposta batucando minha mente.
— Não podemos perder mais tempo. — Fala com uma respiração
funda. — Eu o encontrei, depois de muita investigação enquanto tu
refrescavas a mente, eu consegui identificar quem é o culpado.
— Quem é? — Pergunto com meu coração acelerado, meu corpo
inteiro irrompe em calafrios.
Nikita abre a boca para revelar, mas o toque do meu celular o faz calar.
Tiro-o do bolso e atendo a ligação de Kliment.
— Sim?
— Tu não irás gostar disso... — Seguro a ponte do meu nariz,
fechando os olhos em um suspiro longo. — Me enviaram um vídeo de um
número desconhecido e te encaminhei na mesma hora, quem quer que tenha
feito isso, sabe que tenho uma ligação contigo.
— Agradeço-te por isso.
— Assista, não é nada bom. — Dizendo isso, ele finaliza a ligação,
hesito um pouco antes de apertar o play do vídeo.
Choque me atinge ao assistir Laura e um homem lutando ferozmente.
Ela tentando a todo custo se afastar dele ao mesmo tempo que anseia por
espancá-lo, ele a machucando, esmagando seu pescoço...
Meu coração parece parar ao ver toda essa cena, fico congelado vendo-
a apontar uma arma em sua direção e... cacete, ela aperta o gatilho,
impregnando a bala na testa do sujeito. O filho da puta recua, cai de joelhos e
tomba para trás, morto.
Sinto meu chão ceder sob meus pés, sem acreditar no que estou vendo.
Laura não cometeria esse ato do nada... a não ser que ele seja a pessoa que ela
mais deseja matar.
Passo minhas mãos por meu rosto, tentando buscar uma resposta que
justifique sua aparição ou... quem o trouxe tinha a intenção de provocá-la da
maneira mais covarde que existe.
Sem conseguir raciocinar direito, saio apressado ignorando os gritos de
Nikita. Não hesito, preciso chegar até Laura o mais rápido, para me certificar
de que ela está bem, de tentar entender toda essa merda.
Entro no carro de Olesya e arranco em alta velocidade. Minha mente
grita me repreendendo por tê-la deixado. Não posso permitir que destruam
sua vida de novo. Piso mais fundo no acelerador.
Apesar de tudo, entendo suas motivações, ela sempre esteve
procurando por sua liberdade... para poder se livrar do demônio que a
atormentava dia após dia.
Eu a entendo... entendo porque eu faria o mesmo.
Freio bruscamente em frente ao seu prédio e entro correndo, bato à sua
porta, rodo a maçaneta empurrando a porta, mas está trancada.
— Laura, sou eu, Ruslan! — Chamo, mas não há resposta.
Escuto alguma porta ser aberta, coloco meu capuz e saio discretamente,
voltando para o carro. Tento ligar para seu celular, mas está desligado...
— Cacete! — Esmurro o volante e encosto a testa nele, controlando a
respiração. Não importa o tempo, irei esperar até que ela apareça.
Não importa onde esteja agora, ela terá que voltar para casa, Laura não
deixaria Rony tanto tempo sozinho.
Espero mais ou menos duas horas dentro do carro e quando começo a
ficar impaciente, um jipe vira a esquina, me chamando atenção. Sangue
borbulha em minhas veias ao vê-los descerem do carro. Não espero por mais
nenhum segundo, saio e vou até Mirom, esse desgraçado armou para ela,
tenho certeza!
Empurro suas costas, giro-o e soco seu rosto. Mirom revida, partindo
para cima, acertando meu estômago. Encolho-me com falta de ar, um erro
terrível. Um instante depois caio no chão com meu rosto queimando de dor
depois do seu soco.
— Ruslan!
A voz de Laura ao fundo me deixa mais furioso com Mirom. Ele
mexeu com ela, a perturbou da maneira mais covarde que um ser humano é
capaz. Esse desgraçado não sabe nada do que essa garota passou na mão
daquele desgraçado, para cometer uma barbaridade dessa.
Levanto-me, encaro seus olhos frios e o ataco. Entre socos, chutes e
xingamentos, a briga se estende. Seu nariz sangra e um corte se abre em sua
sobrancelha esquerda enquanto bato sua testa contra o vidro da janela do jipe,
que se rompe, cortando o rosto de Mirom ainda mais.
Ele rosna de raiva e dor, me afastando com uma cotovelada na minha
garganta. Cambaleio para trás, Mirom segura minha cabeça e a leva em
direção ao seu joelho, acertando-me com força.
Dor me faz estremecer, sangue escorre pelos cortes do meu rosto.
Contorno meus braços em sua cintura e o derrubo no chão, acertando
novamente seu rosto, várias e várias vezes.
Minhas mãos queimam de dor, Mirom tosse e geme, mas não desiste.
Ele me joga longe, se levantando e chutando-me.
— Seu merda! — Vocifera, furioso, consigo segurar seu tornozelo,
puxo para frente e faço com que caia.
Gemendo e tentando controlar a dor, me viro, cuspo o sangue da boca e
me levanto. Zonzo e cansado, ele faz o mesmo. Viro-me para ele arrancando
a arma escondida nas costas, destravo-a e aponto na sua cabeça. Encaro sua
arma também apontada em minha direção antes de encontrar com seus olhos.
— Tu não deverias ter feito aquilo. — Rosno.
— Feito o quê? — O sarcasmo de sua voz me irrita. — Cada um faz
suas escolhas, ela fez a dela.
— E tu acabas de assinar sua sentença de morte...
— Assim como tu! — Rebate. — Como ficaria sua pequena flor se
você morrer na sua frente? — Meus olhos se encontram com os de Laura,
assustados com nossa briga.
— Tu és doente!
— Precisava fazer isso. — Responde, duro como uma rocha.
— Eu também preciso apertar esse gatilho...
— Aperte, me mate. Não fará nenhuma diferença, não é? — Minhas
mãos estremecem.
— Parem... — A voz fraca de Laura me impede de apertar o gatilho.
— Parem... — Ele debocha, respiro fundo e abaixo a arma, não irei
matá-lo na frente de Laura, não depois de tudo o que ela passou.
Mirom sorri vitorioso e abaixa a arma. Embora eu não tenha apertado o
gatilho, não quer dizer que o deixarei impune. Em passos largos o alcanço,
acertando seu rosto outra vez.
Mesmo exausto e machucado, continuo, quero vê-lo apagar olhando em
meus olhos, quero que fique por dias lembrando do meu punho.
Ele me olha, arfando, tão exausto quanto eu. Mirom cospe no chão e
vem em minha direção, mas Laura e outra mulher entra no meio, nos
impedindo.
— Parem, isso está ridículo! — A moça de frente a Mirom diz. — Se
querem se matar, aqui não é o melhor lugar. Aqui tem famílias e crianças.
As mãos de Laura repousam em meu peito que sobe e desce com minha
respiração acelerada. Meus olhos recaem nela, a súplica em seu rosto me
desestrutura, assim como os hematomas em seu rosto e pescoço... fico sem ar.
— Chega Ruslan, vamos conversar direito, okay? — Fala com a voz
rouca, fecho meus olhos e assinto, contornando minhas mãos em seu pulso.
— Tu és um merda... — Mirom rosna, volto a encará-lo. — Vou acabar
contigo, Ruslan... assim como fizeste com ela.
— Como dizes? — Franzo a testa, confuso.
Mirom ri, incrédulo. Dá um passo à frente, mas a moça o impede,
dando-lhe um empurrão.
— Eu falei para parar, cacete! — Ela diz, o empurrando de novo.
Mirom fica encarando-a. Tenho que admitir que ela é corajosa para
enfrentá-lo dessa forma.
— Cuidado! — Ele avisa com a voz gélida.
— Com o quê? Com você?
— Não volte a me tocar. — Mirom se afasta dela sem desprender do
seu olhar. — Me ouviu?
— Tu és um babaca de merda.
— Gana! — Laura intervém, indo até ela e a puxando para trás. —
Chega!
— Vai embora seu idiota — a moça continua.
Mirom sorri como um predador que acaba de selecionar sua próxima
vítima. Noto um encolher de ombros dela diante ao olhar assassino dele.
— Vamos, Gana. Vamos entrar! — Laura me olha e aponta com o
queixo para entrarmos. Respiro fundo e por ela eu a obedeço, mas não antes
de encará-lo com a promessa de que essa conversa ainda não terminou.
— Babaca! — Gana rosna antes de ser puxada para dentro do prédio.
Sento-me no sofá, colocando a cabeça entre as mãos enquanto balanço
a perna. Estou furioso demais para conseguir me acalmar ou dizer alguma
coisa.
Gana anda de um lado para o outro, xingando. Ambos estamos
alterados pelo que aconteceu. Laura permanece encostada na parede, em
silêncio.
Ergo a cabeça, encontrando seu olhar carregado de dor. Inspiro fundo e
me levanto.
— Tu poderias ter morrido. — Digo, passando por ela em direção à
cozinha e enchendo um copo de água.
— Mas não morri!
— Laura? — Olho para Gana por sobre o ombro. — Tu apontaste uma
arma para mim! — Me viro.
— Desculpa...
— Tu terias apertado o gatilho, não teria? — Angustia nos olhos de sua
amiga faz Laura se encolher.
— Não, mas... precisava te assustar para me deixar passar. — Gana
bufa, entrelaçando seus cabelos.
— Fiquei com tanto medo...
— Gana, a arma era de mentira — franzo a testa ao escutar essa
declaração. — Por que tinha uma arma falsa dentro da gaveta?
— Fa-aal-sa? — Gana começa a empalidecer.
— Tu foste atrás daquele homem com uma arma falsa?! — Pergunto,
deixando o copo de lado e me aproximando.
— Eu não sabia...
— Cacete Laura, e se tivesse morrido? Céus, uma arma falsa!? — A
intensidade que minha voz sai a assusta.
— Não pensei, está bem? — Diz, se desencostando da parede. — Eu
queria matá-lo e não importava o que acontecesse, um de nós não sairia com
vida.
— E tu conseguiste! — Laura me olha espantada, sustendo seu olhar.
— Preciso ir... — Gana declara. — Preciso respirar!
— Gana me perdoa! — Laura vai atrás de sua amiga.
— Sabe Laura, — Gana solta uma respiração pesada — se eu tivesse
coragem, se não fosse covarde, eu teria feito o mesmo. — Declarando isso,
ela sai, fechando a porta atrás de si.
— Ele te enviou o vídeo? — Esfrego meu rosto, lembrando de toda a
cena.
— Sim, tu mataste... James? — Laura abaixa a cabeça.
— Não! — Inclino a cabeça para o lado, sem desgrudar meus olhos
dela. — A arma era falsa, Ruslan, a bala... impregnada na testa do meu
padrasto foi de Mirom. — Ela levanta a cabeça e me encara com seus olhos
azuis marejados. — Mirom que o matou.
— Merda! — Vocifero, levando as mãos à cabeça e me virando de
costas para ela. — Agora ele está te ameaçando?
— Sim...
— Cacete! — Grito, dando um soco na parede, mas me arrependo de
imediato ao escutar um arfar, me viro para Laura.
Ela está trêmula, suja e machucada, me olhando com medo. Ranjo
meus dentes e respiro fundo. Jogando para o fundo toda minha raiva.
É com Mirom que devo ficar com raiva e não com ela.
— Perdoe-me — ela assente.
— Tudo bem! — Nego com a cabeça.
— Não está nada bem, pequena! — Laura aperta os lábios, estendo
minha mão para que venha. — Venha, tu precisas lavar toda essa sujeira.
Laura enlaça sua mão na minha, tão fria, que aperta meu coração.
Lentamente percorro as mãos por seu rosto, descendo por seu pescoço e
braços, sentindo seu calor, sua pele e agradecendo por ela estar aqui viva,
mesmo ferida.
Seguro a barra do seu moletom e passo por sua cabeça. Seus pelos
eriçam conforme contorno seus seios, cintura e barriga. Trinco os dentes ao
encontrar mais hematomas.
Fito seus olhos antes de me ajoelhar à sua frente. Tiro seus tênis e,
lentamente, desço sua calça, engolindo em seco. Em instantes Laura está nua
diante de mim.
Afasto seus cabelos do seu ombro, seus olhos se mantêm presos em
mim.
— O que eu faço? — Murmuro com a voz embargada.
— Você veio até mim — diz, rouca.
— Como poderia deixar você? — Lágrimas caem de seus olhos
cristalinos. — Nunca senti tanto medo...
— Medo de quê? — Seguro sua cintura e trago-a para mim, encostando
minha testa na sua.
— De te perder. — Confesso, pegando-a no colo. — Não tenho muito
tempo. — Seus braços contornam meu pescoço.
— Você precisa ir? — Assinto, roçando meus lábios nos seus.
— Não penses nisso agora. — Levo-a para o banheiro, colocando-a no
chão.
— Você deveria tirar suas roupas e vir se banhar comigo. — Sorrio
com malícia, Laura retribui.
— Tens certeza? — Suas mãos descem por meu peito e sobem até meu
pescoço.
Tiro minhas roupas, ligo o chuveiro e limpo seu rosto com delicadeza,
despertando a luxúria dentro de mim.
— Laura? — Paro, encarando seu olhar vazio.
— Sim?
— Estou aqui... — Sussurro, seus olhos estremecem. — Pode chorar,
eu te seguro. Não deixarei que caia, não enquanto estiver em meus braços.
— Ruslan, eu... eu me sinto feliz por ele ter morrido. — Confessa. — É
errado estar sentindo isso?
— Não, não é errado!
— Sou cúmplice de um assassinato, ocultei um corpo e ajudei a
queimá-lo... — Laura balança a cabeça. — Por todos esses anos eu chorei,
gritei e sangrei com as lembranças do que ele me fez. Sua voz me
perturbando, seu toque impregnado em minha pele... Eu deveria estar com
remorso, mas em vez disso, sinto-me... salva. James não mais me atormentará
diariamente, não me sinto derrotada. É como se sua morte me devolvesse a
vida, estou respirando novamente. Ruslan, estou livre!
— Não queres chorar? — Laura nega com a cabeça.
— Eu quero sorrir... — Declara. — Quero você... — Seguro seu queixo
e sorrio, ela retribui com um tão cheio de vida, que as batidas do meu coração
falham. Preciso dela... Laura é tudo o que eu necessito.
— Você floresceu... — Sussurro, trazendo-a para mim. — Minha
pequena flor floresceu.
Roço meus lábios no seu, sentindo sua respiração ficar acelerada. Um
nódulo cresce em minha garganta enquanto olho no fundo de seus olhos,
conseguindo ver sua alma sendo reconstruída.
Laura destrancou as portas. Se libertou das correntes. Sua mudança me
deixa renovado, mais forte para enfrentar qualquer desafio.
Ela lutou grandes batalhas, e venceu. Agora chegou a hora dela viver
sem medo, de encontrar sua felicidade com intensidade. Queria poder estar ao
seu lado, mas não posso, entretanto, meu coração permanecerá com ela.
Inclino e capturo seus lábios, envolvendo meus braços em volta da sua
cintura e a puxo para perto de mim, seu sorriso puxando seus lábios entre
nosso beijo exigente.
Empurro-a contra a parede do banheiro. Percorro minha mão por seu
corpo molhado e levanto sua perna esquerda, aperto sua coxa e solto um
gemido ao me encaixar entre suas pernas, sentindo sua intimidade, me
segurando para não me afundar em seu desejo.
Com a outra mão, seguro firme sua nuca, exigindo mais de seus lábios,
querendo cada vez mais.
Não vou esquecer de como é tê-la em meus braços. Quero permanecer
apaixonado mesmo com a tristeza de tê-la deixado. Quero ir para cama,
dormir ao seu lado todas as noites, ao amanhecer, quero assisti-la despertar e
sorrir. Não posso impedir que meu coração deseje ser feliz ao seu lado.
O que fiz de errado para que arrancassem tudo de mim? Minha
felicidade, meus sonhos, minha liberdade...
Afasto meus lábios dos dela sem conseguir mais aguentar. Coloco as
mãos ao seu redor e encosto minha testa na sua, permitindo-me desabar e sem
dizer nada, Laura me vê chorar.
Sinto-me cair, tudo desaparecendo, se definhando. Minha hora está
chegando ao fim. Não existe a possibilidade de as coisas mudarem, o trajeto
da minha vida já foi trilhado. Mesmo que eu lute, meu destino é certo. Ao
sair daqui, sairei morto como antes, a neblina me jogará para o caminho que
me espera, me deixando sem nada, me devolvendo para o abismo.
Porém, o que me resta é o agora. Levanto a cabeça, o brilho de seus
olhos diz que não importa o que aconteça, sempre permaneceremos um ao
outro. Laura iluminará minha escuridão quando não houver esperança, como
um sonho... como uma rosa em meio à devastação de uma vida injustiçada
pelo destino.
Enquanto as noites se tornarem anos, meu lugar permanecerá em seu
coração, onde a névoa é eliminada com seu sorriso, e em seus braços eu
sonharei em estar até o momento em que darei o meu último suspiro.
— Eu te amo — Laura sussurra, deslizo meus dedos nos seus cabelos.
— Obrigado — inspiro fundo, ocultando toda a dor que sinto nesse
momento. — Obrigado por ter me tornado um homem completo.
Ela sorri, não perco mais tempo e colo seus lábios nos meus. Sua língua
se encontra com a minha. Seguro sua cintura e a levanto. Laura contorna suas
pernas em mim, encosto-a na parede, beijando-a com paixão, entregando meu
coração em suas mãos e sentindo o seu coração bater mais rápido a cada
momento em que a toco.
Pressiono meu corpo no seu e encontro a porta da sua alma, nos
levando para um mundo onde poderemos ficar juntos, sem que a esperança
desapareça.
Laura geme ao ser amada da forma que merece, ela tem tudo de mim
mesmo que não tenhamos um futuro. Minha alma chora, meu coração se
quebra e a rosa dentro de mim murcha a cada instante em que digo adeus.
Fico me encarando pelo espelho, olhos vazios e alma dilacerada, mas
tudo ocultado por uma máscara inabalável. Ninguém faz ideia do que é viver
o pesadelo de seus sonhos.
Estico meus lábios em um sorriso, preciso sorrir mesmo que eu queira
chorar. Nunca desejei tanto que Laura tivesse apertado aquele gatilho... eu
pensei... cogitei que talvez se lutasse contra ela, a arma dispararia e me tiraria
daqui.
Mas não pude... não podia fazer aquilo com a única pessoa que me olha
sem me condenar, por ser quem eu sou. Laura se tornou minha rocha.
Quando pensei que ninguém sofria tanto quanto eu, ela me mostrou que há
sofrimento maior.
Desvio meu olhar e encaro Tamara, sorrio para ela.
— O que tu estás fazendo aqui e não tentando arrumar um cliente? —
Pergunta, descendo o zíper da sua bota.
— Iryna quer que eu vá buscar duas garotas no aeroporto. — Tamara
fecha os olhos.
— São tão idiotas quanto nós fomos. — Assinto, calçando minhas
botas.
— Estou ficando exausta — confesso, Tamara suspira.
— Temos que achar um jeito...
— A morte... é o único jeito. — Desvio do seu olhar, dou de ombros e
sorrio para afastar a tristeza.
— Gana? — Olho para trás ao escutar a voz doce de Zoya. —
Mandaram entregar-te esta caixa.
Levanto-me da cadeira e apanho a caixa preta. Zoya começa a se
arrumar.
— Eles me mandaram para rua. — Confessa, balançando a cabeça. —
Que merda!
— Obedeça calada, Zoya, assim eles confiarão em ti e te darão os
melhores clientes.
— E ser capacho como você? — Ela me encara com seus olhos
escuros, Zoya não tem mais que vinte e dois anos, tão linda que despertou o
interesse deles.
— Sou livre... — Me calo quando Tamara solta uma risada.
— Livre? — Debocha. — Que liberdade, não?
— É o único jeito de sobreviver a tudo isso. — Elas se calam.
— Não vi mais a Fernanda... — Zoya diz, se sentando e me olhando
pelo espelho.
Fernanda era uma de nós, brasileira de carteirinha, mas que...
desapareceu e eu sei porquê.
— Talvez eles a tenham enviado para outro lugar.
— Gana, não se iluda. — Aliso a caixa, sem prolongar essa conversa.
— Porra! Cacete! Caralho! — Olena entra no camarim soltando fogo
pelo nariz.
— O que aconteceu? — Pergunto, ela não me olha, mal conversa
comigo, porque me culpa por tê-la trazido.
— Não te suporto, garota burra! — Diz para mim, tirando suas roupas e
colocando uma mais ousada.
Um nó se aloja em minha garganta. Ela se aproxima das minhas coisas
e nota meus cadernos e livros. Abro a boca para impedi-la, mas Zoya me
barra com um aceno sutil de cabeça.
— Você acha que vai conseguir aprender alguma coisa? — Olena
pergunta, pegando meu caderno.
— Estou conseguindo...
— E se formando vai sair daqui? — Engulo em seco, ela ri.
— Você é burra Gana, gente burra nunca sai daqui.
— Não seja cruel, Olena! — Zoya a intervém. — Gana não tem culpa
de não conseguir aprender as coisas.
Abaixo a cabeça, esticando meus lábios em um sorriso que impede que
as lágrimas caiam de meus olhos. Tamara apenas assiste toda a cena, ela
nunca se intromete.
— Ela é a queridinha... não podemos tocá-la. — Olena caçoa.
Ignorando suas ofensas, abro a caixa. Dentro dela há duas rosas
vermelhas murchas, minhas mãos estremecem.
— Pelo jeito alguém deseja má sorte a você. — Olena para diante de
mim, levanto a cabeça e encaro seus olhos castanhos. — Tomara que essas
rosas sejam o sinal de que você desaparecerá de nossas vidas.
— Não tive culpa... — Murmuro, ela estala a língua e pega uma rosa.
— O que é seu está guardado, sua puta burra! — Diz, enfiando a rosa
dentro da minha boca antes de sair do camarim.
Cuspo a rosa, balançando a cabeça sem conseguir reagir devido a culpa
e o remorso que me corroem. Olho para Tamara e Zoya, elas apenas dão de
ombros.
Respiro fundo e saio pelos fundos da boate, sentindo a brisa da noite
beijar minha pele. Não ligo que elas não gostem de mim, todas tem razão em
me condenar dessa maneira, mas pelo menos, tenho uma amiga que me faz
sentir uma pessoa normal.
O salto da minha bota entoa pelo beco. A música da boate soa abafada,
estremeço de frio quando o vento passa por mim. Queria estar dentro de
roupas quentes, sendo abraçada pelo calor.
Olho para o lado e vejo Luba me assistindo com o queixo erguido e
braços cruzados. Ofereço um aceno leve antes de desviar e seguir até meu
carro em meio ao estacionamento vazio e silencioso.
Escuto passos e olho para trás, Luba não está mais onde estava. Meus
olhos percorrem o estacionamento, não há mais ninguém. Volto a andar,
agora em alerta e com o coração palpitando.
Tiro a chave do xoxo do bolso, encarando-a. Dentro desse chaveiro há
um rastreador, igual ao que está impregnado na minha nuca.
Paro de andar assim que escuto os passos de novo. Engulo em seco,
minha respiração acelerando assim como os batimentos do meu coração.
Olho por sobre o ombro, piscando até encontrar o responsável pelos
ruídos. Alguns metros distantes de mim, encaro uma silhueta escura, coberta
por uma capa que balança conforme o vento toca o tecido.
Viro para frente e volto a caminhar apressada em busca do meu carro.
Meu pé se afunda em uma poça de água, molhando minha perna. Balanço-a
para tirar o excesso e volto a caminhar.
O estacionamento parece se fechar ao meu redor, despertando uma
sensação estranha. Gotas de chuva começam a cair como melodias ao
colidirem na lataria dos carros. Prendo a respiração e seguro com mais força a
chave e a caixa em minhas mãos.
Diminuo os passos e disfarçadamente olho para trás por sobre o ombro.
Meu coração salta ao ver um pouco distante que a sombra encapuzada
continua a me seguir.
Volto a olhar para frente, meu instinto de sobrevivência soando a cada
segundo. Apresso os passos a ponto de estar quase correndo pelo
estacionamento, que parece não ter fim. Desespero aumenta ao não conseguir
chegar até meu carro.
Onde ele está?
Olho para trás e percebo que a figura sombria está cada vez mais perto.
Cada movimento seu é calmo, calculado. Meu medo faz com que eu comece
a correr, meus pés se afundando nas poças, respiração ofegante e coração
palpitando em desespero.
Deixo cair a caixa enquanto corro mais rápido. Olho para frente, e
finalmente vejo meu carro.
Preciso entrar... preciso fugir!
Volto a olhar para o perseguidor, ele está parado como uma estátua,
implacável.
Preciso fugir!
Corro até meu carro, a chuva se intensifica, enquanto tento destrancar a
porta com as mãos trêmulas e escorregadias.
Passo a mão em meu rosto para limpar minha visão. Estou encharcada,
meu instinto grita para que eu fuja, preciso me salvar. A chave cai no chão,
dentro de uma poça.
— Cacete! — Sussurro em desespero.
Olho para o lado e prendo a respiração quando uma faca aparece em
sua mão, e o relâmpago reluz em sua lâmina. Me sinto um rato acuado pelo
gato. Sou sua diversão nesta noite e ele não vai parar até me pegar.
Giro meus calcanhares e corro em direção a uma ruela. Meu peito
aperta, já sem fôlego. Paro de uma vez antes de colidir com uma parede.
Entrei em um caminho sem saída de puro desespero.
Encosto a mão no muro, sentindo sua textura gelada e molhada em
busca de salvação. Ouço passos e congelo. Calafrio percorre minha espinha,
me viro lentamente e encaro a silhueta.
Engulo em seco fitando a faca em sua mão, imaginando-a perfurando
minha pele. Encosto as costas no muro sem conseguir respirar direito.
Não tenho para onde fugir. Estou presa!
Me encolho quando ele solta uma risada sombria, ecoando através da
chuva. Engulo em seco, meus olhos arregalados estão fixos em quem quer
que esteja prestes a me atacar.
— Po-or... fa-a-vor... — gaguejo aterrorizada, minha súplica não surte
efeito.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada... — Diz, levantando a
cabeça, seus olhos se fixando nos meus e prendo a respiração quando seu
rosto é iluminado pelo raio e logo em seguia o trovão estremece todo o chão.
Solto um grito apavorado quando avança em minha direção, me
esfaqueia enquanto tento proteger meu rosto com as mãos.
Ele não para, sinto a lâmina perfurar meus braços, me tirando gemidos
e gritos de dor. Choro pedindo socorro, não consigo me afastar ou lutar por
estar guerreando contra a faca que me perfura.
Choramingo, sem mais forças, tamanha dor. Ele se afasta, e me
encolho, desesperada. Olho para meus braços, estão cortados e jorram
sangue. Levanto a cabeça, um trovão irrompe e abafa meu grito de ajuda em
meio a noite chuvosa.
— Po-or... fa-avor... não me machuque... — Peço e antes de tentar
gritar de novo, ele avança. Perco o ar ao sentir a lâmina afundar na minha
barriga.
A dor é tão insuportável que meu corpo paralisa. Seguro seus pulsos,
estremecendo e encarando seus olhos verdes sem acreditar... arfo em busca
de ar... estou morrendo, meu coração começa a bater mais lento, entoando em
meus ouvidos, dizendo que daqui alguns segundos não existirei mais.
Talvez seja bom ser levada para um lugar onde não há sofrimento... um
lugar onde posso ser eu mesma, sem ter medo de criar laços.
Solto um gemido quando retira a faca do meu estômago. Escorrego até
o chão perdendo os sentidos. Olho para baixo, o sangue não para de escorrer
do corte.
Começo a engasgar com meu próprio sangue, desejando que essa dor
acabe... Tombo a cabeça para frente com a visão embaçada, ouço passos e
depois silêncio, apenas o barulho da chuva permanece.
Estou sozinha em um beco, morrendo na calada da noite enquanto a
maioria do mundo vive uma vida agitada.
Acreditei que a morte seria a única solução para me tirar dessa vida, eu
estava certa. Tombo a cabeça para frente, não consigo mais respirar... mãos
envolvem meu rosto antes de tudo desaparecer como pó.
Inclinada sobre a mesa de reunião cheia de papéis, assisto toda a
discussão de como será o andamento do documentário de Ruslan que
entreguei ontem.
Os diretores, roteiristas, editores e Andry acertam os detalhes, montam
os roteiros, excluindo os furos que encontram, dando vida à sua história. Será
meses de trabalho árduo até ficar perfeito, hoje é apenas o começo.
Recosto na cadeira, encontrando com o olhar de Aksinya e Justik, eles
surtaram quando me viram machucada, menti dizendo que tinha sido
assaltada perto de casa, a mesma mentira foi contada a Andry.
Yaroslav não caiu, mas também não exigiu a verdade, respeitando meu
silêncio. Volto minha atenção para os diretores que conversam, Lybochka
tenta dar sua opinião, mas para Andry a sua própria é a única que importa,
principalmente essa reunião que já estava marcada há dias, e eu nem sabia.
Respiro fundo, notando-a fuzilar meu chefe com um olhar mortal.
— Acho que ela se arrependerá de trabalhar com Andry. — Sussurra
Yaroslav.
— Já se arrependeu! — Ele ri.
Viro a folha indo para segunda parte da reunião, mas meu celular me
interrompe ao vibrar em meu bolso. Olho para Yaroslav avisando que sairei
para atender.
Aceito a ligação assim que saio do estúdio.
— Sim?
— Senhora Laura? — A mulher pergunta.
— É ela!
— Bom dia, sou a enfermeira Hanna do Kharkiv City Clinical Hospital
№ 8, estou entrando em contato para informar que a senhorita Gana
Navolska deu entrada às 03:00 da manhã em estado grave. Seu contato é o
de emergência, você é da família?
Fico congelada sem conseguir assimilar o que ela acabou de dizer.
Gana no hospital? Em estado grave?
Começo a tremer, minha respiração acelera, ao mesmo tempo, em que a
luz branca embaça minha visão.
— Senhorita Laura?
—Si-im... — Consigo dizer, tentando me acalmar. — Como... como ela
está? O que aconteceu?
— Não estou autorizada a passar informações por telefone, preciso
que compareça à unidade o mais rápido que puder.
— Tudo bem, estou indo. — Finalizo a ligação, olhando para os lados,
desorientada e sem saber o que fazer.
— Laura? — Yaroslav para à minha frente. — Tu estás pálida... O que
aconteceste? — Olho para ele através das lágrimas. — Meu Deus Laura, o
que ouve? — Ele se aproxima automaticamente com uma expressão
preocupada, dou um passo para trás, assustada com seu avanço. Ele congela
por alguns segundos antes de balançar a cabeça como se dissesse que não irá
me tocar.
— É a Gana... ela... ela está no hospital. — Conto, vendo seus olhos
adquirirem um brilho assustado. — A enfermeira disse que... é grave.
— Quando isso aconteceu? — Nego com a cabeça sem saber a
resposta. — Vamos, eu te levo.
Yaroslav recua alguns passos para que eu possa andar ao seu lado.
Agradeço, porque sou incapaz de pegar um ônibus nesse estado.
Enterro meu rosto entre as mãos ao me acomodar no carro. Às vezes
não tenha sido algo tão grave assim... talvez tenha sido apenas um acidente.
Funcionários de hospitais gostam de nos assustar.
O caminho até o hospital parece levar uma eternidade. Yaroslav
estaciona o carro em frente ao prédio antigo dizendo que irá encontrar uma
vaga enquanto vou na frente.
Entro apressada sem prestar atenção em nada. Encontro a recepção e
paro em frente ao balcão, fitando o rosto das duas recepcionistas.
— Gana... estou... — Faço uma pausa por estar ofegante demais para
falar. — Sou amiga da Gana Navolska, me ligaram, falaram que ela deu
entrada aqui.
— Só um instante, senhorita. — Abaixo a cabeça e esfrego meu rosto.
Olho em volta, analisando o lugar, hospital é tudo igual, o mesmo cheiro, a
mesma sensação de morte, doença e dor.
Yaroslav vem correndo em minha direção, lanço um olhar de medo que
o faz comprimir os lábios ao parar ao meu lado.
— Senhorita...
— Laura... Lauriana Silva. — A moça assente, digita por mais alguns
segundos e prende seus olhos azuis nos meus.
— Nesse momento ela está na UTI.
— O qu... — me calo, sem conseguir falar mais nada.
— Ela deu entrada no hospital com ferimentos causados por arma
branca, passou por cirurgia e no momento está em observação.
— Ela ficará bem? — Yaroslav pergunta.
— Sinto muito, mas não tenho todas as informações. Por favor,
esperem na sala de espera da UTI. Avisarei ao médico que os responsáveis
por ela estão aqui.
— Obrigado. — Yaroslav agradece, me guiando pelo caminho.
Não posso perdê-la, sempre tive medo de que algo desse tipo
acontecesse. Minha mãe já apareceu em casa espancada por causa de um dos
seus clientes, e a outra vez, foi por se envolver em uma briga com uma das
prostitutas que trabalhava na mesma boate que ela.
Esse mundo em que vivem é perigoso, muitos homens pegam
prostitutas apenas para cometer barbaridades, mas no final elas só querem
trabalhar e ganhar seu dinheiro.
Yaroslav me orienta a sentar evitando me tocar, encosto as mãos
entrelaçadas na boca enquanto espero impaciente pelo médico.
— Parentes da senhorita Gana? — Me levanto ao encarar o médico que
aparece meia hora depois de chegarmos.
— Sim.
— Sou Avgust, médico de Gana.
— Como ela está, doutor? — Pergunta Yaroslav, ele nos olha por
alguns segundos.
— Ela tem cortes por toda parte do corpo e um que perfurou o
estômago. Tivemos que fazer uma cirurgia de urgência, no momento ela está
estável.
— Então está fora de perigo?
— As primeiras 24 horas são cruciais, sinto muito, mas Gana precisará
ser forte para se recuperar. Estamos fazendo o possível para tratá-la da
melhor forma.
— O que aconteceu? — Pergunto com a voz fraca.
— Ela foi esfaqueada. — Declara. — Gana tem algum inimigo...
alguém que queira seu mal?
— Não sei... — Balbucio.
— A polícia foi acionada, em alguns minutos eles estarão aqui e
poderão abrir uma investigação.
— Posso vê-la? — Lanço um olhar de súplica, ele respira fundo.
— Apenas por trás dos vidros. — Assinto.
— Venham!
Sigo Avgust pelos corredores do hospital, passando por pacientes
machucados, doentes e enfermeiros correndo apressados. Inspiro o odor
próprio do lugar, pressentindo algo ruim.
Olho para Yaroslav em busca de apoio, ele balança a cabeça me
tranquilizando, mas um barulho ensurdecedor me assusta, não sei dizer o que
significa. Vejo movimentação de médicos e enfermeiros como se estivessem
desesperados.
— Doutor? — Uma moça para na nossa frente, ela passa as mãos no
tecido do seu uniforme. — É a paciente Gana, ela está com complicações!
Arregalo os olhos, meu coração acelera. Avgust não espera e corre até
ela, eu os sigo, esquivando das enfermeiras que tentam me impedir.
Paro na porta do quarto, meus olhos presos em Gana que estremece na
cama com os olhos fechados. Seus braços e suas mãos estão enfaixados e seu
rosto pálido está cheio de cortes.
— O que aconteceu? — O médico pergunta.
— Não sei doutor, ela estava bem minutos atrás. — Levo as mãos à
boca quando o corpo dela fica imóvel, então o aparelho de batimentos faz
meu coração parar. — Sem pulso! — Avgust declara.
Todos começam a agir, meus olhos não param de acompanhar seus
movimentos. O médico abre a blusa de Gana e começa a reanimá-la.
Estou paralisada, sem saber como reagir, não posso perder minha
amiga... não posso... perdê-la também.
Cambaleio para trás, Yaroslav me segura impedindo que eu caia. Eles
continuam tentando trazê-la de volta. A cena é demais para eu suportar.
— Temos pulso! — Uma enfermeira grita, meu corpo relaxa.
— Ela está de volta. — Avgust declara, soltando um suspiro longo
minutos depois. — Bom trabalho, pessoal! — Ele se vira e me olha. — Te
darei dois minutos enquanto a enfermeira a monitora. Gana voltou, mas seu
quadro ainda é crítico.
Ele passa por mim, os demais enfermeiros o seguem, ficando apenas
uma que monitora o respirador e os aparelhos que estão ajudando a manter
Gana viva.
Olho para Yaroslav antes de me aproximar da sua cama. Analiso seu
corpo ligado à vários fios, seu rosto machucado e seu peito sobe e desce
lentamente.
— Você ficaria furiosa se visse o estado do seu rosto. — Murmuro.
— Você ficará boa, okay? — Passo a mão em seus cabelos e olho para sua
mão fechada em punho. Assim como o resto do seu corpo, ela está enfaixada
me impedindo de ver o estrago que fizeram com sua pele.
Viro sua mão para cima e delicadamente a abro. Meu sangue gela ao
fitar o artefato na sua palma, sentindo o chão ceder sob meus pés.
Olho para os lados e para a enfermeira antes de encarar a mão de Gana,
pego o artefato e guardo no bolso.
— Yaroslav? — Chamo, me virando e encarando-o.
— O que foi? — Pergunta alarmado, passo a língua em meus lábios
secos, sentindo-o cortado.
— Alguém esteve aqui e tentou matá-la. — Murmuro, indo para o
canto do quarto.
— Como dizes? — Esfrego meu rosto, meneando a cabeça.
— Encontrei algo... — Engulo em seco, observando a enfermeira
cuidar de Gana. — Yaroslav, acho que quem fez isso foi o maníaco da rosa.
— Ele arregala os olhos.
— Mas, por que ela? — Entrelaço as mãos em meus cabelos com os
olhos presos em Gana.
— Apesar de ela ser uma prostituta, Gana é linda e jovem, quem a vê
acredita que ela tem dinheiro.
— Laura, isso não se encaixa. — Mordo meu lábio inferior. — E como
o assassino entrou aqui sem que ninguém percebesse? Como entrou no
hospital, passou pela CTI e tudo mais sem ninguém perceber?
— Yaroslav, ele conseguiu se esconder durante anos, acredito que essa
é sua primeira falha, deixou uma vítima viva. Entrar no CTI para terminar o
serviço que começou não é um obstáculo.
— Só que falhou de novo. — Confirmo com um balançar de cabeça.
— Vocês precisam ir. — A enfermeira informa, respiro fundo e assinto,
dando um beijo na testa de Gana antes de sair.
— Laura, o que estás planejando? — Yaroslav indaga lendo minha
expressão.
— Eu preciso ter certeza. — Digo, andando de um lado para o outro no
corredor. — Me empresta o carro. — Estendo minha mão.
— Tu irás fazer besteira.
— Preciso que fique aqui vigiando-a. — Peço, ele umedece os lábios.
— Os policiais vão chegar e quero que conte a verdade, não permita que
ninguém entre, muito menos enfermeiros desconhecidos.
— Mas como vou fazer isso?! — Pergunta exasperado. — Como
impedirei que enfermeiros entrem?
— Você vai saber como agir. Agora me dê a chave do seu carro. —
Exijo, Yaroslav bufa de raiva e me entrega.
— Me liga, okay?
— Okay!
Percorro os corredores em direção à recepção, ao chegar, encaro as
meninas que me olham alarmadas. Espero alguns segundos para minha
respiração se acalmar.
— Antes de mim, Gana teve outra visita?
— Ela não estava autorizada a receber nenhuma visita, senhorita. —
Uma delas responde, franzindo a testa.
— Está proibido qualquer visita antes de me comunicarem, tudo bem?
— Elas assentem, passo a mão na testa e me afasto.
— Senhorita? — Olho para trás. — Precisamos que preencha a ficha da
paciente Gana.
— Ah sim! — Hanna, que é uma das recepcionistas, me entrega vários
documentos, preencho com todos os dados necessários e sou dispensada
assim que termino.
— Manteremos contato. — Diz, assinto e vou embora.

Chego em casa com o coração sobressaltado. Procuro por toda parte até
encontrar a carta que roubei da caixa de Mirom. Antes de ver o conteúdo,
apanho um copo de água e tomo em um só gole com as mãos trêmulas.
Sento-me à mesa, fecho meus olhos acalmando meu coração. Inspiro
fundo e solto um grito assustado quando Rony pula em meu colo. Seguro-o
para que não caia.
— Merda, Rony! — Vocifero, colocando-o em cima da mesa, ele senta
com os olhos amarelos presos no meu. — Estou apavorada... — Confesso,
respirando fundo e abrindo a carta.
Franzo a testa escutando meus próprios batimentos enquanto sinto meu
sangue gelar. Isso... isso é um desenho de uma silhueta em frente a um corpo
de uma mulher ensanguentada e machucada, a faca em sua mão pinga sangue
e seus olhos estão fixos à frente, como se estivessem me encarando.
Seu rosto nítido e sem expressão é de pura insanidade, seus olhos estão
frios e algo dentro de mim estala. Não posso acreditar... não pode ser real...
Embaixo da carta, tem apenas a assinatura de Ruslan, significando que
foi ele quem desenhou. Mas por que estava com Mirom? Por que Ruslan
nunca citou que sabia quem era o assassino o tempo todo? Ou será que... ele
esqueceu?
Minha mente me leva aos primeiros dias em que ele chegou, Ruslan
estava desorientado. Depois de tudo o que viveu, é normal ter amnésia devido
aos traumas. Só que preciso ter certeza. Levanto meu olhar e encontro com o
de Rony fixo em mim, como se dissesse para eu não fazer o que estou
pensando, mas já estou com a decisão tomada, a mais burra de toda minha
vida.
Estaciono em frente à casa com o quintal cheio de roseiras, meu
coração aperta ao lembrar que as pessoas que estão nesse lugar são as
responsáveis por terem destruído a vida de Ruslan, e tirado nossa chance de
ficarmos juntos.
Sinto lágrimas queimarem meus olhos ao lembrar de ontem, quando
ficamos juntos, em uma despedida silenciosa. Engulo em seco e apanho meu
celular dentro da bolsa, discando para Yaroslav.
— Oi!
— Como Gana está? — Pergunto, batucando o volante sem desprender
os olhos da casa dos Rotam.
— Até o momento estável.
— Certo! — Coloco meus cabelos atrás da orelha. — Eu acho que
descobri quem é o maníaco da rosa.
— Laura, não me diga que tu estás...
— Sim — corto-o. — Estou parada na frente da casa deles, mas não se
preocupe, irei apenas sondar para ter certeza.
— MEU DEUS LAURA!!! — Yaroslav grita do outro lado da linha. —
Cacete! Tu podes correr risco de vida se descobrirem que tu sabes quem é!
— Não vão fazer nada. — Asseguro, Yaroslav respira fundo,
murmurando inconformado.
— Laura, estou indo aí, vamos fazer isso juntos.
— Não! Vigie Gana, te retorno em duas horas.
— Em duas horas você pode estar morta! — Mordo meu lábio sem
deixar que isso me impeça de prosseguir. — Quem é, Laura?
— Não tenho certeza, se em duas horas eu não retornar é porque
aconteceu alguma coisa. — Digo, descendo do carro.
— Foda-se Laura! não deixarei que faça uma burrice dessa!
— Eu já fiz! — Respondo, abrindo o portão. — Preciso ir. — Finalizo
a ligação adentrando na propriedade que um dia foi o lar de Ruslan.
Paro para analisar as roseiras. Acaricio as pétalas de algumas,
admirando-as antes de subir o pequeno degrau e bater na porta. Meu coração
acelera em expectativa, bato novamente e encosto o ouvido contra a porta
tentando escutar algum ruído.
— Dona Okasana? — Chamo, girando a maçaneta e percebendo que a
porta está aberta. — Dona Okasana, é a Laura, a senhora está aqui? — Com
passos cautelosos, adentro na casa silenciosa. Mantenho minha respiração
calma enquanto percorro o cômodo, indo até à cozinha.
— Dona Okasana?
Nada de barulho, ruído ou sinal de que há alguém na casa. Ando para
trás e giro nos calcanhares, entrando no corredor dos quartos. Paro em frente
ao de Artem e tento abrir sua porta, mas está trancada.
— Merda, o que tem aí dentro? — Murmuro, olhando para trás.
Desvio o olhar e encaro a porta de Okasana, cogitando entrar lá, mas
um barulho me impede de prosseguir. Engulo em seco, viro a cabeça e
encontro-a parada no começo do corredor com uma tesoura de jardinagem
um pouco grande, com um vestido de verão e chapéu de palha parecendo
uma camponesa. Okasana me encara com uma expressão ilegível no rosto.
Começo a tremer.
— Laura?! — Sua voz sai surpresa.
— Oi, dona Okasana. — Pigarreio, afastando da porta. — Peço
desculpas por ter invadido sua casa, mas a senhora não respondeu. Achei que
talvez estaria no seu quarto.
Ela fica me olhando, ponderando se acredita na minha mentira ou não.
Seus lábios esticam em um sorriso e seu olhar amolece. Suspiro um pouco
aliviada por ter conseguindo convencê-la.
— Perdoe-me, não te ouvi. — Meneio a cabeça de leve. — Estava nos
fundos adubando as rosas. Venha, logo mais começo a preparar o almoço.
Vou até ela com seu olhar me avaliando. Tento disfarçar minhas
intensões. Passo ao seu lado, sentindo calafrios percorrerem meu corpo ao
fitar a tesoura em sua mão.
— Os meninos chegarão daqui a pouco.
— Eu gostaria de pedir ajuda a eles, por isso estou aqui. — Minto,
seguindo-a porta afora.
— O que ouve? — Pergunta, parando em frente ao canteiro de rosas
que estava trabalhando antes de ser interrompida.
Ela agacha e começa a mexer na terra.
— Gana foi atacada. — Okasana me lança um olhar atônito.
— Meu Deus! Ela está bem?
— Não, mas vai melhorar, tenho certeza! — Ela assente, meus olhos se
prendem em seu pescoço onde seu colar transluz com os raios do sol.
Franzo a testa, piscando para dissipar meu choque.
— Queria pedir ajuda a Mirom, já que ele é da SBU, talvez consiga
pegar quem fez isso com ela. — Continuo.
— Encontrar assassinos desse tipo não é sua função. — Diz, cortando
algumas folhas secas da roseira. — Acredito que Artem seja mais qualificado
para esse caso.
— Confio mais em Mirom, se eu tentar convencê-lo, talvez ele possa
me ajudar. — Okasana levanta a cabeça, estreitando os olhos e me fitando
com estranheza.
— Como disse, essa não é a função dele. — Fala pacífica, meneio a
cabeça.
— Artem me ajudaria?
— Claro. — Sorri para mim, voltando a trabalhar. — Tu gostas da cor
vermelha, Laura? — Pergunta, concentrada em podar as rosas.
— Sim.
— O vermelho foi utilizado pelos iconógrafos nos mantos e túnicas de
Cristo e dos mártires. — Conta, movimentando as mãos para que eu agache
ao seu lado. — Simboliza o sangue do sacrifício, assim como também o
amor, pois, o amor é a causa principal do sacrifício.
Okasana me entrega uma rosa, inclina a cabeça para o lado e fica me
encarando sem dizer nada.
— Ao contrário do branco que significa o intangível — seus olhos
percorrem meu blazer branco. — O vermelho é a cor que representa o
humano, e está relacionada à plenitude da vida terrena. Na iconografia, Jesus
veste uma túnica vermelha, porque é o Filho do homem preparado para o
sacrifício. — Okasana deixa a tesoura de lado e apalpa a terra. — Por isso
que o vermelho está tão presente nos bordados. Tu bordas Laura?
— Não. — Digo, sem graça.
— Bordar é uma arte plena. Os pontos, as cores, os desenhos, as
formas, as folhas, flores, linhas e curvas é a riqueza que reflete a alma
exuberante do povo que ama sua pátria e suas tradições. — Ela volta a me
olhar e sorri. — Se quiser, posso ensiná-la.
— Eu adoraria. — Okasana me entrega mais uma rosa, juntando as
folhas secas.
— É muito importante sempre manter as roseiras podadas. — Diz,
voltando a apalpar a terra. — Caso a poda não seja feita, ela irá crescer de
maneira irregular e com galhos fracos.
— E as pragas? — Pergunto, curiosa e fitando sua mão se
movimentando.
— Como a maioria das plantas, elas ficam em estado de dormência
para guardar energia para a atividade na primavera, por isso que ficam mais
sujeitas às doenças e a contaminação dos jardins por pragas. — Relata,
cortando uma rosa murcha da roseira.
Meu coração para de bater por alguns segundos enquanto encaro as
mãos de Okasana. Ela alisa o que parece ser cabelos loiros, a rosa murcha cai
sobre eles e meu corpo congela.
— Por isso que toda rosa estragada deve ser eliminada. — Suas
palavras me atingem em cheio e lentamente ergo meus olhos, prendendo nos
seus que agora estão frios e inexpressivos.
— Vo-o-cê... — Okasana sorri e antes que eu constate que é a
verdadeira assassina e que era seu rosto desenhado naquela carta, ela acerta
minha têmpora com a tesoura em um baque que zumbi meus ouvidos.
Caio sobre as roseiras com a visão turva, sentindo os espinhos
perfurarem minha pele antes de ser levada pela escuridão.
Sinto uma dor na cabeça que estremece todo meu corpo ao começar a
despertar. Confusa, levanto a cabeça, tombando-a para trás por estar ainda
tonta e solto um gemido de aflição. Passo a língua em meus lábios secos,
pisco ao tentar abrir os olhos.
O que aconteceu?
Engulo em seco e tento me mover, congelo quando minha mente
clareia.
Eu chegando na casa dos Rotam, Okasana me encontrando e me
levando até o canteiro e... merda... merda, merda... Meu coração começa a
acelerar, pavor me consome de uma forma insuportável.
Ela é a assassina!
Começo a me debater, pisco até conseguir focar minha visão, então
constato que meus pulsos estão presos atrás da cadeira e meus tornozelos em
seus pés. Arfo em desespero, levantando a cabeça e analisando o lugar.
Meu estômago embrulha na mesma hora em que o cheiro de ferrugem
invade minhas narinas, mas, na verdade é cheiro de... sangue!
Merda!
Volto a me debater, parece que estou dentro de um porão iluminado por
apenas uma lâmpada em cima de mim. Há vários facões e facas pendurados
na parede em frente à uma mesa de madeira suja.
Minha mente grita desesperada para eu sair daqui, estou tão assustada
que me vejo sem saber o que fazer, pensar ou até mesmo reagir.
Calafrios percorrem meu corpo ao escutar a porta ser aberta, a luz do
dia que irradia do lado de fora ilumina seu corpo antes dela fechá-la. Aperto
minhas mãos trêmulas escutando seus passos ecoarem pelo porão.
Okasana retira seu chapéu e para à minha frente, me encarando sem
expressão. Estou sozinha com uma assassina, começo a rezar por ajuda,
porque não sei se sairei com vida. E mais uma vez, estou lutando com um
insano.
Estou perdida, o que eu faço?
Queria tanto que isso não fosse real. Queria que Ruslan não tivesse que
passar por isso, porque sua alma sangrará ao descobrir que sua mãe foi a
responsável por colocá-lo na prisão, será um tiro em seu coração.
— Eu realmente gosto de ti, Laura. — Sua voz me estremece, fico
imóvel encarando seus olhos gélidos. — Mas infelizmente tu entrastes em
meu caminho, xeretando onde não te diz respeito e descobrindo o que jamais
deveria saber.
Balanço a cabeça, desejando com todas as forças da minha alma que
isso não passe de um pesadelo. Ela dá um passo à frente e percorre a mão por
meus cabelos, rosto e ombros. Me encolho com seu toque.
— Nunca a vi sorrir — diz, esfregando meus lábios. — Só que eu via
em seus olhos o sorriso que tu não conseguias expressar. Tão quebrada que
perdeu o dom mais precioso da vida, o sorriso.
Uma lágrima escorre em meu rosto. Okasana a limpa com o polegar.
— O que fizeram com você, pequena? — Pergunta, ainda alisando
meus cabelos. — Tão linda... — Murmura. — Por que não se afastou quando
foi avisada? Por que se envolveu com minha família?
— Você... colocou Ruslan na cadeia! — Digo, finalmente despertando
do transe em que me encontrava.
Okasana abaixa a cabeça, afastando as mãos sujas de mim.
— Chega um momento na vida em que temos que sacrificar algo,
mesmo doendo em minha alma, tive que fazer o que fiz. — Balanço a cabeça.
— Não entendo... ele é seu filho! — Ela vira de costas para mim, indo
até à mesa.
— Tu já passaste fome, Laura? — Pergunta, voltando a me olhar. — Já
sentiu a dor de ver seus filhos dormirem com fome? — Okasana pisca
algumas vezes até eu perceber que seus olhos estão nublados de lágrimas por
causa das lembranças de um passado conturbado.
— Depois que meu esposo faleceu, tudo ruiu. Todos os dias meus
filhos pediam por comida e eu não podia dar. Ouvia seus choros de lamento,
de fome. Então me questionava, por que existir dessa forma? Por que
continuar vivendo nesse inferno? — Seus olhos se perdem. — Vi a esperança
se esvair através dos olhos dos meus filhos, da magreza e da tristeza. Eu os
amava tanto que era demais para suportar tamanho sofrimento. Entre a falta
de esperança e desespero, comecei a sentir raiva de Deus, do mundo e de
mim. Eu batia na porta pedindo um prato de comida em troca de serviços. A
maioria, Laura, a maioria fechou a porta em recusa. — Okasana começa a
chorar, um choro doloroso de uma pessoa que perdeu a fé. — Eu só queria
alimentar meus filhos!
Ela abaixa a cabeça, seus ombros estremecem conforme seu choro
aumenta. É triste, queria que tudo fosse diferente, e que isso nunca tivesse
acontecido com eles. Uma mãe nunca deveria ver seus filhos passarem fome.
— Tudo o que me restava era a desilusão absoluta de uma alma
entregue a escuridão. Nem todos temos o que sonhamos, o meu, era apenas
ver meus filhos sorrindo de novo, esse era meu sonho. A dor não tinha fim,
era insuportável. — Ela solta um suspiro longo e limpa seu rosto, indo até a
parede de facas. Eu não consigo falar, é como se todas as palavras tivessem
desaparecido, consigo apenas encará-la sem reação.
— Eu os deixava dormindo à noite e me tornava uma sombra vagando
sem rumo pelas ruas. Lágrimas escorriam por meu rosto, meu coração
rasgava a cada olhar devastado deles. Em um momento achei que me
culpavam, e me via a cada dia em um labirinto sem fim. — Okasana me lança
um olhar de raiva. — Em uma dessas noites, enquanto caminhava em um
bairro rico da cidade, sonhando em ver meus filhos morando em uma dessas
casas, correndo felizes e longe da pobreza, presenciei uma briga.
Okasana faz uma pausa ao colocar duas facas em cima da mesa e dois
facões. Engulo em seco, o que ela pretende fazer com elas?
— A moça era linda e rica, mas não respeitava sua mãe, que queria
apenas seu bem. Ódio tomou conta de mim, porque enquanto estavam
brigando por coisas fúteis, meus filhos dormiam com fome. — Ela balança a
cabeça, estalando a língua. — Eu a segui pelas ruas quando saiu para arejar a
mente. Queria lhe dar uma lição, mas algo dentro de mim, agitava, minhas
mãos tremiam e soavam, eu precisava fazer aquilo. Então eu a puxei para um
beco, tirei a faca que escondia para me proteger por andar sozinha à noite e
depositei todo meu ódio nela. A cada golpe, era um prazer incalculável, era
como se algo dentro de mim, aliviasse a pressão que sentia. Assim como as
roseiras que temos que podar, tirar as estragadas, a moça deveria desaparecer.
— Okasana me encara no fundo dos olhos.
— Vo-o-cê a matou?! — Ela confirma com um aceno leve.
— O prazer alcançou as depressões profundas do meu ser, abriu
caminho para me libertar. Estava presa em um mundo de becos sem saída. —
Diz. — Fiquei assustada encarando minhas mãos sujas de sangue, mas ao
mesmo tempo me senti bem. — Seus olhos estremecem, perdendo o foco
novamente. — Este mundo é maldoso, Laura, egoísta e sádico, a dor estava
me matando, eu precisava disso. — Okasana balança a cabeça. — Abandonei
o corpo no beco, me perguntando se alguém iria descobrir. Eu matei a filha
de alguém... eu matei uma pessoa.
Ela soluça voltando a chorar, meu coração aperta de medo e confusão,
me perguntando até onde uma pessoa consegue ir quando está dominada pelo
ódio.
— Cheguei em casa, — continua a contar com olhos fixos na parede —
lavei toda a sujeira e chorei... um choro tão doloroso que acreditei que
morreria. Alguém ia me culpar pelo assassinato e... iriam tirar meus filhos de
mim, eu preferiria a morte do que vê-los sendo arrancados de minhas mãos,
Laura.
— Você matou uma inocente! — Sussurro, piscando para dissipar as
lágrimas.
— Não existe inocentes nesse mundo insano. — Responde, engulo em
seco ao lembrar de James. Ela fica em silêncio, apenas me olhando como se
soubesse do que fiz... do corpo que ocultei.
— Eu era como gasolina correndo solta, não havia mais medo, e fui
dominada pela maldade. — Revela com a expressão fria. — Um mês depois
matei outra moça... a cada mês uma morria em minhas mãos. Porém, as
mortes não alimentavam a fome dos meus filhos, sentia aos poucos o remorso
me corroendo, não estava matando por algo, era apenas para satisfazer meu
ego.
Okasana pega uma cadeira e arrasta até estar sentada diante de mim.
Remexo meus pulsos, começando a me apavorar com a forma que me olha.
— Então passei um mês calculando meu próximo ataque. Tinha que ser
perfeito, não tinha dinheiro e comecei a roubar nas feiras até que o dia
chegasse. — Ela respira fundo e olha para suas mãos. — Sequestrei, matei e
desossei. — Arregalo os olhos. — Sentada à mesa, assisti meus filhos
comerem a carne, o brilho em seus olhos foram retornando e finalmente pude
rever o sorriso de cada um de novo. Naquele momento, eu soube que o que
fiz foi o correto. Teríamos comida por vários dias, eles não dormiriam mais
com fome.
Um nódulo se forma na minha garganta. Okasana espera até eu
conseguir assimilar o que acabou de revelar. Mas... é impossível, meu rosto
começa a retorcer de nojo, assombro. Ela sorri.
— Você... comia suas vítimas? — Indago, nauseada.
— Não me olhe dessa forma. — Diz, balançando a cabeça. — Eu
precisava para alimentar meus filhos.
— Okasana... isso... isso é demais! — Balbucio, é repugnante tudo isso,
não pode ser real. — Ruslan... ele... ele viu você? — Seus olhos estremecem.
— Meu pequeno era o que mais sofria. Perdi as contas de quantas vezes
ele enxugou minhas lágrimas. — Revela com uma lágrima caindo de seus
olhos. — Ele começou a vender rosas, eu me sentia feliz por isso. Ruslan
estava virando o homem da casa. Só conseguia sentir orgulho dele.
— Não entendo por que fez isso.
— Ninguém entende. — Okasana respira fundo. — Continuei matando,
alguns corpos eu deixava onde havia cometido o crime, outros eu trazia
comigo quando a carne de casa acabava. Foram anos difíceis, Laura, só que
pensei que melhoraria, mas... não melhorou. — Diz, se levantando.
Fecho meus olhos, incapaz de acreditar.
— Você é a mãe dele! — Murmuro, abrindo meus olhos e encarando-a,
incrédula. — Você é a mãe de Ruslan, Okasana, como pôde?
— Foi aberta uma investigação sobre os meus assassinatos, o cerco
estava se fechando. — Revela, voltando a se sentar. — Ruslan tinha paixão
nos olhos. Seus sonhos o levaram a enxergar a vida de uma forma diferente
da qual eu enxergava, comtemplando a noite, se ajoelhando e orando antes de
dormir. Eu perdi a fé e deixei que o crime destruísse meu coração.
— Você deveria protegê-lo e não o jogar em um ninho de cobras. —
Ela abaixa a cabeça, assentindo.
— Um dia, ele me disse que desejava que a noite durasse para sempre,
só que não fazia ideia de que as sombras o envolviam, que seus sonhos
desapareceriam. — Okasana prende seus olhos nos meus. — Naquela noite
em que assassinei uma moça, ele acordou para a realidade. Chorando, ele me
encarou. O sofrimento em seu coração tinha acabado de começar e ali, eu me
despedi do meu pequeno com o coração mais puro e o mais forte entre os
outros. A chuva era como uma orquestra. Deus, eu iria acabar com sua vida,
mas eu tinha mais dois filhos para criar, então Ruslan eu teria que sacrificar.
— Fecho meus olhos com força. — Naquela noite, ele se tornou o assassino.
Aperto meus lábios segurando meu choro indignado. Sua mãe destruiu
sua vida, o abandonou no inferno... não é real... não pode ser real!
— Laura, tu tens que entender que fiz isso por amor. Se eu fosse presa,
meus filhos iriam para abrigos. Eu nunca mais os veria.
— Você é um monstro! — Sussurro, incapaz de olhar para seu rosto. —
Como conseguiu esconder seus crimes? Como o juiz e o júri não viram as
falhas? Por que você não foi presa? — Encaro-a com tanta raiva que sinto-me
ferver por dentro.
— Eu presenciei o juiz assassinar sua filha. — Revela, me congelando.
— O mesmo responsável pelo caso de Ruslan. Estava perambulando em
busca de mais uma moça que eu pudesse matar e aliviar minha dor, quando
me deparei com toda a cena que resultou na morte de uma moça que tentava
fugir com seu namorado.
— E você o ameaçou? — Okasana assente. — E nunca parou de matar?
— Eu tinha que continuar alimentando meus filhos e ele me obedeceu,
só tinha que condenar Ruslan. — Conta, se levantando e arrastando a cadeira.
— Adam fez o que ordenei. Com todos pensando que Ruslan era o assassino,
retomei minha vida. Passamos por vários momentos difíceis, mas foi
melhorando. Olesya e Artem conseguiram entrar na faculdade e Mirom no
exército. O sacrifício de Ruslan foi por uma boa causa.
— E os assassinatos? — Ela apanha uma faca e liga o afiador de
lâminas me fazendo sobressaltar.
— Nunca parei. — Diz, focada no que está fazendo. — Vendi muitas
comidas, meu congelador nunca mais ficou vazio.
— Então... meu Deus, a comida que eu comi... era carne humana? —
Ela olha para atrás, sorrindo.
Seu olhar é a confirmação da minha pergunta, me inclino para frente de
uma vez e vomito. Toda aquela comida que me ofereceu era carne humana...
Quanto mais penso, mais enjoada eu fico. Depois de alguns minutos, levanto
a cabeça, arfando com os olhos cheios de lágrimas.
— Onde estão os corpos?
— Adubo para minhas roseiras.
— Você é doente... — Sussurro, me debatendo. — Você atacou Gana,
duas vezes! — Olho para ela, me sentindo exausta de tanto vomitar.
— Ela é linda, não? — Fecho meus olhos, com ânsia e nojo. — Jovem,
espírito valente e rica.
— Não é seu padrão de vítimas. — Ela dá de ombros.
— Mas é sua amiga. — Abro a boca para retrucar, mas nada sai. —
Gostou das rosas que te enviei? Ou da chacina em seu prédio? — Arregalo os
olhos, Okasana ri.
— Foi... você? Por quê?
— Para te colocar medo, avisar para ficar longe antes que fosse tarde
demais. Pelo jeito não adiantou, olha só onde você está. — Seu olhar se torna
maléfico.
— Você não conseguiu matar Gana, falhou duas vezes.
— Não costumo falhar na terceira vez! — Afirma.
— Você começou a deixar suas vítimas para trás apenas para
incriminar Ruslan?
— Ele tem que voltar para cadeia, Laura.
— Você destruiu sua vida, Okasana. Não faz ideia do inferno em que
ele viveu dentro daquela cadeia. Você o destruiu, seu monstro!! — Vocifero,
me debatendo.
— Seu sacrifício fez com que os outros crescessem na vida.
— E ele? — Pergunto, indignada. — Ruslan nunca pôde amar, estudar
e viver sua vida, por que foi condenado por crimes que não cometeu! Ele não
pode ser feliz, sua alma se definhou, seu coração se quebrou e por sua culpa,
não podemos ficar juntos! Por sua culpa Ruslan teve sua inocência e vida
arrancados! Então não me venha falar de sacrifício, eles teriam vivido muito
melhor sem você, seu mostro!
Okasana larga a lâmina que estava afiando, encaro-a com a respiração
acelerada. Seus olhos estão tão sombrios, que duvido que tenha alguma alma
dentro da carcaça que é seu corpo. Ela vem em minha direção, e acerta em
meu rosto um tapa ensurdecedor. Viro a cabeça, sentindo a queimação do seu
toque.
— Cala a boca! — Ordena, segurando meu queixo com força e virando
meu rosto para que eu a encare. — Tu não tens o direito de me julgar quando
não entende o que passei. Quando tiver filhos, talvez entenda o que é fazer de
tudo por eles.
— Ruslan te ama mais do que tudo nessa vida. — Digo, tentando me
livrar do seu aperto. — Ele chorou por você. Gritou por sua mãe quando
aqueles desgraçados o torturavam na prisão. Ele suplicou por sua ajuda
quando a mesma o trancafiou naquele inferno. Okasana, você é desprezível!
Sustento seu olhar durante vários segundos antes dela me soltar e
recuar alguns passos.
— Você não acha que já o fez sofrer demais? — Ela permanece calada.
— Ele te ama tanto... quando estava na minha casa, muitas noites chamou por
você. Ruslan tinha esperança de que sua mãe o salvasse da dor e solidão.
Você não sente nada? Que coração é esse que não sangra por seu filho? Que
mãe é essa que faz seu filho sofrer por algo que não cometeu?
— Tu achas que não sofri? — Pergunta, batendo em seu peito. — Eu
sofri, Laura. Lutei contra todos, eu salvei minhas crianças. O sangue em
minhas mãos foi por eles.
— Você continuou quando não precisava mais. Você deixou seu filho
na cadeia, Okasana. — Falo, tentando mostrar a ela que não existe nada que
justifique seus crimes.
Seus olhos ficam de um verde pálido e marejados. Ela balança a cabeça
de um lado para o outro.
— Eu precisava fazer isso, eles estavam passando fome. — Diz, se
virando e voltando para suas facas. — Não se preocupe, Ruslan nunca
saberás da verdade.
— Okasana — chamo, me remexendo. — Livre o Ruslan desses
crimes. Foram quatorze anos tirados dele, mas você pode fazer com que ele
recupere o tempo perdido. — Digo, sabendo que não adiantará. — Liberte-o
de toda dor e aflição. Você já criou seus filhos, eles são adultos agora, deixe
que Ruslan viva agora. — Ela para de manusear as facas e me olha,
estreitando os olhos.
— Tu estás apaixonada por ele, não é? — Pergunta, aperto os dentes e
assinto.
— Liberte-o, Okasana. — Peço, ela inclina a cabeça para o lado sem
esboçar nenhuma emoção em seu rosto. — Chegou a hora de libertar seu
filho. — Ela nega com a cabeça.
— Eu realmente gostei de ti, Laura. — Okasana respira fundo,
balançando a cabeça. — Mas não posso deixá-la ir, sabe demais e Ruslan se
sacrificou.
— Você o sacrificou! — Tento livrar meus pulsos da fita, mas está
apertada demais. — Deixe-me ir! — Imploro. — Eu não contarei a ninguém,
ficarei em silêncio.
— Tu és esperta, com certeza contou a alguém que estás aqui. — Diz,
estalando a língua. — Não vai doer nadinha, prometo.
— O que você vai fazer? — Indago, apavorada.
Ela sorri.
— Te matar! — Revela, pegando a faca que afiava. — Sinto muito. —
Diz, andando em minha direção. Remexo-me apavorada e com olhos
assustados. Okasana não é mais aquela senhora doce e gentil, mas sim um
monstro sedento por sangue e morte.
— Mãe!? — Ela congela, meu coração para, encarando-a parada perto
de mim.
Okasana gira a cabeça, eu faço o mesmo. Artem está parado, segurando
a porta com uma expressão impassível. Meu corpo fica mais tenso quando
seu olhar se fixa em mim.
Penso em pedir ajuda, mas não sei de qual lado ele está.
— O que faz aqui? — Okasana pergunta em um tom furioso.
— Mãe... — Murmura ainda me encarando. — Por que a Laura está
aqui? — Artem olha para ela e fecha a porta atrás de si.
Okasana solta a respiração e volta para mesa, jogando a faca sobre ela.
— Essa sonsa descobriu tudo. — Revela, ele esfrega seus olhos. — É
melhor eu calá-la e... bom, preciso disso.
— Mãe, tu me prometeste que não faria mais isso. — Fala, se
aproximando dela. — Não consigo mais esconder suas merdas, fui afastado e
estou sendo investigado.
Balanço a cabeça, indignada. Artem sabe... por todos esses anos, ele
sabia o que sua mãe fazia.
Faz todo sentindo agora...
As provas inconclusivas, o arquivamento dos casos, a demora das
investigações e seu desespero atrás de Ruslan. Sendo um policial na área de
homicídios, facilmente conseguiu roubar todas as provas que incriminava sua
mãe, podendo assim forjá-las para culpar Ruslan.
É um pesadelo... não é real!
— Não temos outro jeito, filho. — Ela diz. — Por favor, vá abrir a cova
na lateral da casa, a noite a gente a enterra. — Okasana cruza os braços,
sustentando seu olhar.
— Ela é a Laura! — Artem exclama. — Ruslan é louco por ela, mãe!
— Ele se vira com as mãos trêmulas na cabeça. — Mirom está perto de
descobrir alguma coisa, ele está estranho, mãe. Ele não é como Ruslan ou eu,
aquele cara é sádico e não vai se calar. A corda está em nosso pescoço e tu
não colabora!
— Nada vai acontecer. — Okasana olha para mim.
— Mãe... você me prometeu que pararia. Tu juraste...
— Quer apodrecer na cadeia como seu irmão? — Ela o cala. — Se tu
quiseres, é só libertá-la. — Artem fica encarando-a.
— Estou cansado, mãe. — Sussurra. — Chega de matar as pessoas...
chega mãe! Eu não sei mais o que fazer.
— Você sabe, filho, não há outra forma de calá-la. — Artem a fita por
alguns segundos e me olha, desesperado.
— Eu te pedi tanto para desaparecer, Laura. — Ele me fala.
— Você sabia o tempo todo? — Artem abaixa a cabeça, parecendo
impotente.
— Tem pouco tempo que soube.
— E decidiu se tornar seu cúmplice? — Ele fecha os olhos.
— Ela é minha mãe, faço o que for preciso para mantê-la a salvo. —
Diz, se afastando.
— Vocês destruíram a vida de Ruslan. — Minha voz sai fraca. —
Vocês são dois monstros! — Lágrimas escorrem por meu rosto, Artem me
encara pálido.
— Artem... — Okasana o adverte, seus olhos permanecem em mim.
— Mãe, não podemos fazer isso com Ru...
— Vá fazer o que te pedi!
— Estamos indo longe demais, se fizermos isso, não haverá volta. —
Okasana lança um olhar sombrio em sua direção que o faz encolher.
Artem se vira e sai do porão me deixando sozinha com sua mãe. Ela
respira fundo e me olha. Calafrios percorrem meu corpo ao encará-la através
das lágrimas de pavor, alimentando meu desprezo por tudo o que fez.
Okasana destruiu vidas inocentes e por uma causa que acha justo,
destruiu seu filho e sem arrependimento, continua agarrada na crueldade.
Ela nos seduziu com sua simpatia e inocência como um predador
silencioso, nos enganou com seu amor. Um demônio que não faço ideia de
como conter, estou presa em suas mãos.
— Sinto muito, Laura — diz, sem me olhar. — Eu gostei de ti desde
quando veio pela primeira vez, mas, ao mesmo tempo, senti que tu serias um
problema. Queria que as coisas fossem diferentes. — Ela vai até à parede de
facas e me olha por sobre o ombro, olhos nublados de lágrimas. — Queria te
deixar livre, mas não posso.
Sinto a sinceridade em sua voz, sempre tão doce. Seus olhos malignos
escondidos atrás de uma máscara de bondade continuam me analisando.
Encaro-a com raiva, desejando que um dia ela chore lágrimas de
arrependimento, que um dia se pergunte como pôde fazer isso com seu filho.
Quero que um dia deseje desaparecer, que seu coração encontre a
verdadeira dor do sofrimento, e como uma rosa doente, ela murche em seu
próprio veneno.
Fico olhando os policiais saírem do refeitório depois de quase uma hora
de perguntas sobre Gana. Mesmo não a conhecendo direito, presumo ter me
saído bem com o pouco que sei. Esfrego meu rosto, torcendo para que eles
tenham acreditado no que falei.
Apanho meu celular e olho para o relógio. Se passaram três horas desde
que Laura me ligou. Mordo minha unha, ansioso ao tentar ligar para ela pela
décima vez e xingo ao cair na caixa postal, de novo.
Peço um carro por aplicativo e caminho até o lado de fora para esperar
por ele. Laura foi descuidada ao ir sozinha, e eu estou sendo tão descuidado
quanto ela.
Depois de alguns minutos, o carro para em frente à casa dos Rotam.
Agradeço ao motorista assim que lhe passo o pagamento e desço com meu
coração acelerado.
— Yaroslav, tu estás sendo burro. — Digo a mim mesmo, discando o
número de Aksinya.
— Oi? — Fala assim que me atente.
— Preste atenção no que irei te dizer, Aksinya.
— Ande, estou ocupada! — Reviro os olhos.
— Se eu não der notícias daqui a duas horas, vá até o bairro de Laura e
pergunte por Kliment, diga que tu precisas falar com Ruslan Rotam.
— O quê?
— Tu irás dizer para ele, que eu e a Laura estamos com a sua mãe.
— Do que está falando, Yaroslav? — Pergunta, alarmada. —Ruslan...
o Ruslan, assassino?
— Esse mesmo. — Confirmo.
— Tu estás louco?
— Se tu não fizeres isso, Aksinya, nunca mais nos verá.
— Oi?!
— Se eu não entrar em contato, tu ligas para Ruslan e diga que estamos
com a sua mãe. Ele saberá do que se trata. — Repito.
— Yaroslav... — Finalizo a ligação, irritado com Aksinya.
Engulo em seco com meus batimentos acelerados, guardo o celular no
bolso, abro o portão e entro na propriedade repleta de segredos.
Bato na porta e aguardo alguns segundos, mas ninguém me atende.
Desço o degrau, decidindo contornar o quintal na tentativa de ver se alguém
está nos fundos.
Paro ao escutar algo. Aguço meus ouvidos e sigo o barulho,
encontrando com Artem sem camisa, cavando um buraco. Pigarreio
chamando sua atenção, ele congela e levanta a cabeça, me olhando com
surpresa.
— Errr... oi? — Digo sem graça com um sorriso forçado.
— O que faz aqui? — Pergunta, fincando a pá na terra.
— Laura me disse que vinha ver sua mãe. Estou atrás dela, mas
ninguém me recebeu na porta. — Sua expressão se torna ilegível.
— Ela não está aqui.
— Ah, sim! — Murmuro, olhando para os lados e vendo meu carro
estacionado do outro lado da rua. — Desculpe-me a intromissão, mas acho
que ela está aqui sim!
— Eu disse que não está!
— Aquele carro é meu. — Falo, apontando na direção dele. — Eu o
emprestei para que ela viesse até sua casa. — Declaro, Artem fica me
olhando por tempo demais.
— Elas foram à feira. — Engulo em seco, não há sinceridade em seu
olhar.
— Então vou esperar ela no carro. — Sorrio, dando um passo para trás,
receoso. — Desculpe o incômodo.
Sorrio, olhando para o buraco que parece grande demais para ser mais
um canteiro de rosas. Entretanto, visto que o quintal é cheio de roseiras,
convenço-me a pensar que é para plantá-las.
— Ei Yaroslav! — Artem me chama, viro a cabeça e encaro seus olhos.
Ele ergue a pá, no instante seguinte estou caído no chão com meu nariz
sangrando ao ser atingido por ela.
Solto um gemido e me encolho de dor, tentando não desmaiar com a
intensidade da pancada. Artem se aproxima e me olha de cima.
— Deveria ter ido embora, idiota! — Diz, pegando meus braços e me
arrastando.
Pisco, choramingando de dor e sem conseguir reagir por estar zonzo
demais. Tento me manter acordado mesmo que seja uma tarefa difícil.
Artem me solta, abre o que parece ser uma porta de metal e volta a me
arrastar. Solto um gemido de dor ao ser jogado por uma escada. Meus ossos
rangem de dor ao colidirem nos degraus. Quando chego no fim, me viro
espalmando a mão no chão para tentar me levantar.
— Por que tu estás fazendo isso? — Pergunto com a voz pesada.
— Merda! — Ele diz, chutando meu estômago e me derrubando de
novo. — Cala a boca, seu merdinha! — Rosna, começando a me arrastar de
novo.
Ele me solta, escuto um grito abafado, fazendo meu sangue gelar. Giro
com dificuldade e olho para frente onde encontro Laura sentada, amarrada e
amordaçada em uma cadeira, se debatendo enquanto me encara.
Seus olhos estão cheios de lágrimas, ela desvia seu olhar e encara à
frente. Sigo seu olhar e congelo imediatamente.
Okasana?
— O que é isso? — Ela pergunta a Artem.
— Eu te falei para tu parar, mãe. — Ele fala. — Merda!
— Vamos enterrá-lo vivo também. — Okasana declara, me encarando
com um brilho nos olhos que jamais vi em uma pessoa.
— Mãe, estamos indo longe demais.
— Faça o que te mandei, à noite os enterramos. — Ela nos dá as costas
e sai.
— Perdoe-me, cara, mas é minha mãe. — Artem diz com pesar.
Volto a encarar Laura e sem dizer nada, compartilho o medo e o pavor.
Estamos em uma situação que não há saída, só o que nos resta é rezar por
nossas vidas e esperar que de alguma forma Ruslan nos encontre, ou então...
morreremos.
Olho para Serhiy em busca de alguma resposta, ele apenas nega
sutilmente com a cabeça. Volto a andar de um lado para o outro na espera de
Nikita que desapareceu sem nenhum vestígio.
— Quando teve contato com Nikita? — Pergunto a ele.
— Ontem quando tu saíste, senhor. — Serhiy responde, encho meu
copo de vodca e dou um gole, fechando os olhos.
Não faço ideia de onde Nikita pode estar, nem seus capangas sabem, o
que me deixa muito mais preocupado. Encho mais uma vez o copo tentando
me acalmar de alguma forma, porque dentro de mim há uma agitação que não
consigo entender.
Sinto meu coração apertar com uma intensidade que chega a ser
insuportável. Olho para trás quando a porta é aberta de uma vez, Nikita entra,
seu olhar se encontra com o meu.
— Onde tu esteves? — Ele retira sua jaqueta, jogando para Serhiy que
pega antes de cair no chão.
— Estava com meu pai. — Diz, desviando o olhar por estar mentindo.
— Quero a verdade! — Ele suspira.
— Estava no hospital. — Franzo a testa. — A amiga de Laura, uma tal
de Gana, foi atacada. Fiquei sabendo quando estava com meu pai e fui direto
para lá averiguar a situação.
— E a Laura?
— Está bem! — Aperto o copo. — Mas sua amiga, não!
— O que aconteceu?
— Pelo que consegui descobrir, Gana foi esfaqueada ontem à noite.
Não se sabe quem a levou para o hospital.
— Certo, o que mais? — Nikita dá um gole na vodca pelo gargalo.
— Tudo indica que foi a pessoa que estamos procurando. — Revela,
indo até seus documentos em cima de sua mesa. — Ruslan, preciso te
contar... — Ele me olha. — É melhor se sentar, não será fácil.
— Tu estás falando isso tem dias, Nikita. — Repreendo, ele apenas
meneia a cabeça.
— Não é fácil! — Franzo o cenho, ele inspira fundo e quando vai
revelar o que tanto esconde, barulhos de tiros soam.
Viro-me assustado, já empunhando minha pistola quando a porta é
escancarada com um dos capangas de Nikita caindo com um tiro na perna.
Ele geme, se arrastando para longe do responsável pelo ataque.
Ergo a arma e me preparo para apertar o gatilho. Prendo a respiração,
dando um passo para o lado para conseguir enxergar além da porta. Ranjo os
dentes ao ver Mirom parado com a pistola abaixada ao lado do corpo, nos
encarando com frieza, sem se importar com as várias armas apontadas para
sua cabeça.
— Que porra é essa? — Nikita pergunta, não desprendo meus olhos
dele, nem ele dos meus.
— Precisamos conversar, Ruslan. — Aperto mais firme a arma, vendo
em seus olhos que algo aconteceu.
— Abaixem as armas! — Nikita ordena, abaixo a minha e inspiro
fundo. — Tu deverias ter solicitado uma visita e não ter feito todo esse show.
— Foda-se! — Mirom diz, entrando na sala.
Guardo a pistola nas costas, observando Serhiy e mais outro retirarem o
capanga baleado. A porta é fechada nos deixando sozinhos, fico em alerta
sentindo a presença de Mirom, estamos tão vulneráveis que ele poderia nos
matar em segundos. Nikita se encosta em uma parede mais afastada, fingindo
não se abalar com sua presença.
— O que tem a me dizer? — Pergunto, olhando-o se aproximar da
mesa.
Ele folheia cada documento e encara o painel com as informações do
meu caso. Eu e Nikita não nos preocupamos em esconder, apenas deixamos
ele verificar o que quer que esteja procurando.
Encosto-me na parede e espero.
— Foda-se! — Diz com fúria, jogando todos os papéis no chão.
Cruzo meus braços, sem me afetar com seu comportamento explosivo.
Mirom coloca as mãos sobre a mesa e abaixa a cabeça, seus ombros
começam a estremecer até eu perceber que está rindo.
— Teremos que esperar até quando para o rei começar a desembuchar?
— Nikita pergunta com tranquilidade.
— Pensei que tinha sido você. — Começa erguendo a cabeça. —
Ordak... tu lembras dela? — Seus olhos se prendem em mim, busco em
minha memória até me lembrar que ela é a moça que encontrei morta na noite
em que fui preso.
— Sim.
— Ela era uma amiga, na verdade, mais que amiga. Só não tive tempo
de dizer a ela, porque tu a mataste. — Sustento seu olhar, Mirom fecha os
olhos, rangendo os dentes. — Nada faz sentido agora, é tudo uma bagunça.
— Descobriu? — Nikita pergunta se aproximando dele.
— Tu sabes? — Eles se encaram por longos segundos. — Não contou?
— Nikita nega e ambos me lançam olhares ilegíveis.
Desencosto da parede com calafrios percorrendo meu corpo. Fecho as
mãos em punhos e umedeço meus lábios.
— O que estão escondendo? — Pergunto, estreitando os olhos,
desconfiado.
— Descobri tem poucas horas. — Mirom fala.
— Eu há alguns dias, mas não tive coragem. — Nikita declara, dando
mais um gole na vodca.
— Falem, porra!
Mirom esfrega o rosto, negando com a cabeça e dando as costas como
se fosse difícil demais me olhar. Nikita respira fundo, me fitando por longos
segundos.
— Sinto muitíssimo, Ruslan. — Diz, pigarreando. — Mas a
responsável pelos assassinatos e por ter te colocado na prisão, foi... — Ele se
cala e abaixa a cabeça, dou um passo à frente.
— É sua mamãe. — Mirom fala, se virando para mim. — A
responsável por tudo é a Okasana Rotam. Sua mãe, Ruslan.
Sinto o chão ceder ao sentir suas palavras penetrarem em minha mente.
Olho para Nikita que confirma com um aceno. Minhas mãos começam a
tremer, congelo no lugar. Não consigo nem sequer me mover, falar ou
raciocinar.
Minha mãe? Minha Mamis?
Balanço a cabeça... não pode ser real! Deve ser um mal-entendido...
Dentro de mim não há nada além da dor. Lágrimas escorrem por meu rosto
ao ser levado para o dia em que minha vida foi destruída...
Olho para a cesta com as rosas que restaram depois de horas entre
bares, restaurantes e praças. Os arranjos delicados foram os que meus
clientes mais se interessaram. Paro em frente a um cartaz do Festival de Ivan
Kupalo que temos todos os anos, cheio de tradições, rituais e flores, minha
chance de ganhar um pouco mais de dinheiro.
Arranco da parede já ansioso para a chegada desse dia. Dobro e
guardo no bolso, voltando a caminhar de volta para casa em um frio de doer
os ossos.
Olho para cima quando um relâmpago entoa intensamente
estremecendo o chão. Encolho-me e apresso meus passos quando gotas de
chuva começam a cair.
Não há lugar onde eu possa me esconder da chuva por estar em uma
ruela de casas simples, é certo que irei me encharcar antes mesmo de chegar
em casa. Tiro meu casaco e cubro as rosas para que não estraguem.
Suspiro e me preparo para correr.
— SOCORRO! — Paro de uma vez ao escutar o grito. — Por... favor...
não... não... — Meu coração falha as batidas, hesito um pouco e lentamente
olho para o lado em que escutei os lamentos desesperados.
Escuto ruídos, choro e mais súplicas. A chuva engrossa, quando penso
em ir embora, me vejo caminhando em direção ao barulho como um imã.
Engulo em seco e coloco a cesta em cima do contêiner de lixo que está
fechado. O beco é estreito, paro ao escutar junto ao barulho da chuva,
murmúrios de dor.
Caminho, controlando minha respiração, a curiosidade me
comandando. Viro no beco, inspiro fundo e olho para frente, paraliso de
imediato ao ver uma pessoa com capa e capuz esfaqueando uma mulher que
está imóvel no chão.
Arregalo os olhos, assustado com a cena. Arfo, estagnado no lugar. O
assassino para com as mãos segurando a faca no ar ao notar minha
presença.
Ele fica imóvel, eu não me movo e é como se o tempo tivesse parado.
Seu rosto vira como se estivesse em câmera lenta sendo iluminado
pelos raios. Minhas pernas vacilam e coloco a mão na parede para evitar
cair. Encaro seus olhos verdes sem acreditar que é...
— Mamis? — Ela se levanta com o corpo diante de si.
Olho para baixo, o sangue escorre do corpo da moça e da lâmina da
faca. Seu rosto está desfigurado. Ergo meu olhar, e prendo-o no de minha
mãe.
— Ruslan? — Murmura, contornando o corpo e se aproximando de
mim. Recuo alguns passos, assustado, fazendo-a parar.
— O que tu fizeste?
— O que está fazendo aqui, pequeno? — Sua voz sai calma e doce
como sempre.
— Mamis...
— É um sonho, não é real, volte por onde veio. — Balanço a cabeça,
sentindo o frio do muro sob minha mão.
É real, tudo isso é real!
— Você a matou?
— Olhe para mim, filho. — Pede, desprendo meus olhos do corpo
ensanguentado. — Nem sempre temos o controle das coisas. Às vezes a vida
nos obriga a fazer coisas que não queremos.
Balanço a cabeça sem acreditar em sua declaração, isso não faz
sentido. Tudo ao meu redor começa a girar, sinto frio e encaro seus olhos
sem conseguir enxergar sua inocência.
Minha mãe matou uma pessoa, e não há como negar.
— Por quê? — Ela abaixa a cabeça, soltando a faca que cai no chão,
tilintando.
— Vocês estão sofrendo por minha culpa... — Diz, fico encarando-a
com a chuva impedido de saber se ela está chorando. — É por vocês que fiz
isso.
— Não, Mamis... você... você...
— Tu és um rapaz agora. — Mamãe me cala, olhando para dentro dos
meus olhos. — Tens que ser forte, mais do que já é.
— O que você vai fazer, mãe? — Pergunto.
— Vamos dar um jeito.
Fito-a sem dizer nada, o brilho em seus olhos me dá a resposta antes
mesmo que eu formule uma pergunta. Mamãe não vai se entregar à polícia.
— Mamis, tu cometeste um crime. — Murmuro, ela percorre a língua
em seus lábios. — Tu precisas contar, mamãe.
— Você e seu senso de justiça... — Fala, sorrindo para mim. — Mas
teremos que mudar isso.
— Como dizes?
— Tu e eu, vamos guardar esse segredo. — Franzo a testa. — Porque o
que fiz, foi por você e por seus irmãos.
— Eu não entendo, Mamis!
— Sacrifícios são necessários, meu pequeno. — Ela se aproxima, dessa
vez não me movo. — Tu se lembras quando disse que gostaria que a noite
durasse para sempre? — Assinto. — Por quê?
— O brilho do luar deixa as rosas ainda mais lindas. — Respondo,
mamãe sorri, assentindo. — É como se as rosas sorrissem.
— Talvez ela dure para sempre. — Franzo a testa, confuso. — Talvez a
escuridão da noite o consuma até o momento em que a rosa dentro de si seja
iluminada pelo luar de novo.
— Não estou entendendo. — Ela se aproxima, pega minha mão e me
puxa para perto dela.
— Eu te amo, meu pequeno. — Lágrimas escorrem por meu rosto. —
Amo-te mais que tudo nessa vida. Você é meu orgulho, mas tem certas
escolhas que temos que fazer mesmo que nossa alma sangre.
— Mamis, o que está acontecendo? — Pergunto, olhando por cima do
seu ombro.
— Um dia saberás, meu filho... — Ela segura meu rosto, fazendo-me
encará-la. — Perdoe-me... — Mamãe se inclina e deposita um beijo
demorado na minha testa. — Adeus!
Antes de processar o que está acontecendo, minha cabeça é empurrada
com força contra o muro, arfo de dor desmaiando imediatamente.
Abro os olhos sentado no chão, sentindo uma dor insuportável na
cabeça. Levo a mão até ela, mas paro ao vê-la vermelha mesmo com a visão
um pouco turva.
Confusão me atinge ao olhar para minha outra mão que segura uma
faca. Começo a tremer, prendendo meus olhos no corpo diante de mim...
Solto um grito apavorado quando minha visão foca no rosto desfigurado.
Pisco várias vezes tentando lembrar o que aconteceu e de como vim parar
aqui.
O que faço aqui com ela? Por que estou segurando uma faca? O
sangue... o sangue é dela?
Uma luz forte me cega, fecho os olhos com força, escutando barulhos
de sirenes e vozes. Abro-os com dificuldade e olho para frente assim que a
luz diminui.
Fico imóvel ao ver policiais com armas apontadas em minha direção.
Eles estão falando alguma coisa, nesse momento, só consigo ver seus lábios
se movendo sem nenhum som.
Meus ouvidos zumbem e com um estalo repentino, volto a ouvir.
— Você está preso em flagrante por assassinato! Mãos ao alto! — Um
deles diz, fazendo-me entender o que está acontecendo.
Olho para minhas mãos, para faca e depois para a moça deitada, sem
vida. Eu a matei? Eu que fiz isso com seu corpo? Mas por quê?
Não me lembro de ter vindo aqui, estava voltando para casa e... minha
memória acaba nesse momento.
Desespero me faz soltar a faca, desorientado me arrasto para longe,
balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Não... não foi eu! — Consigo dizer. — Não foi eu!
Dois dos policiais me alcançam.
— Erga as mãos! — Nego com a cabeça.
— Não, vocês estão errados, eu não matei... eu não matei... não matei!
— Tu tens direito a um advogado. — Um deles fala, me levantando e
me algemando.
— Não, eu não a matei, tu tens que acreditar em mim. — Olho para o
policial, mas a única coisa que faz é abaixar minha cabeça e me arrastar
para uma viatura.
Sou jogado no porta-malas, chorando e pedindo por ajuda, vendo
minha vida caindo em uma verdadeira desgraça...
O retorno das lembranças daquele dia fatídico, que tinha acreditado que
nunca recuperaria, me deixa paralisado, mal conseguindo respirar.
Abro a boca para tentar dizer alguma coisa, mas o que sai, é apenas um
som de angústia da minha garganta. Ela jogou sujo, foi cruel, me fez acreditar
que eu era o assassino de várias mulheres, me empurrou e me abandonou no
inferno. Fez todos me desprezarem.
Essa traição começa a queimar minha alma. Minha mãe destruiu meus
sonhos com sua crueldade, não restando nada para mim. Estou em um
caminho sem saída, caindo em um abismo sem fim.
— Ruslan? — Movo meus olhos.
— Foi ela... — Sussurro. — Eu a vi matar Ordak... ela me incriminou...
— Meus olhos nublam de lágrimas. — Mas... não pode ser verdade!
— Artem sabe. — Mirom revela. — Não sei a quanto tempo, mas é ele
quem encobre seus crimes, esconde os corpos e elimina as evidências. Eu
estava investigando desde o dia em que tu me enviaste um desenho sem
rosto. Embora a raiva de você me dominasse, continuei a investigar para te
colocar de volta na prisão, mas então...
— Descobriu. — Completo, ele assente. — Como?
— Gana... — Murmura, limpando a garganta. — Eu ia me encontrar
com aquela prostituta, mas então a vi entrar em um beco, logo em seguida
uma figura foi atrás, fiquei encucado. Demorei um pouco a compreender que
talvez aquilo que me perturbava fosse algo, quando fui atrás, escutei gritos e
corri para ajudá-la, o assassino fugiu assim que notou minha presença.
Deixando Gana no hospital, comecei a busca por imagens pela redondeza que
tenha registrado o ataque. Encontrei um vídeo onde mostrava nitidamente o
rosto de Okasana depois de ter corrido. Vim direto para cá, porque eu sabia
onde se escondia.
Umedeço meus lábios, percorrendo minhas mãos por meu rosto,
despertando-me do choque em que estou.
— Por que estava atrás da Gana? — Mirom não diz nada, apenas me
encara.
— Precisamos prendê-la antes que destrua mais vidas, Ruslan. —
Mirom fala sem responder minha pergunta, fico olhando para ele sem
conseguir acreditar que tudo não passa de um pesadelo.
Meu celular de repente toca, retiro do bolso e franzo o cenho ao ler o
número do Kliment. Atendo de imediato.
— O que foi?
— Ruslan, não queria te incomodar, mas ela insistiu.
— Quem? — Pergunto, me afastando um pouco.
— Aksinya, ela fala sem parar, não consigo compreender. — Escuto
uma voz de mulher pedindo para falar comigo. — Ela disse que trabalha com
a Laura.
— Me passe para ela.
— Certo!
— Ruslan Rotam? — A voz feminina invade meus ouvidos.
— Sim.
— Olha, não sei o que está acontecendo, mas Yaroslav me disse que se
não entrasse em contato comigo em duas horas, era para procurar o Kliment
e pedir para falar contigo. — Ela faz uma pausa.
— O que aconteceu?
— Não sei! Estou tentando ligar para ele, mas só cai na caixa postal, e
demorei para encontrar Kliment. Ele não soava bem ao telefone. — Ela faz
mais uma pausa para controlar a respiração. —Yaroslav apenas pediu para
avisar que estão com a sua mãe agora.
— Onde está Laura?
— Com ele. — Responde, franzo o cenho.
— Eles estão com minha mãe?
— Sim. — Confirma com um suspiro. — Tu sabes do que se trata?
— Não, mas vou descobrir.
— Certo! Por favor, me mantenha informada, estou muito preocupada.
— Okay! — Finalizo a ligação com o coração acelerado.
Viro-me para Nikita e Mirom.
— Yaroslav, quem é Yaroslav?
— Amigo de trabalho da Laura, não se lembra? — Nikita revela, nego
com a cabeça. — Por quê?
— Uma moça chamada Aksinya me ligou, disse que eles estão com
minha mãe.
— Eles quem? — Nikita estreita os olhos.
— Laura e Yaroslav. — Fico encarando-os, atordoado.
— Porra! — Mirom vocifera. — Não temos tempo! — Diz me
olhando.
— Merda... — Nikita nos olha. — Merda, merda, merda...
— Será que Laura já sabe quem é minha mãe de verdade? — Murmuro
sem conseguir me mover.
— Laura sabe das coisas, Ruslan. — Mirom fala, balançando a cabeça.
— Eu avisei para ela não meter o nariz nessa droga de investigação. Ela com
certeza descobriu a verdade.
— Cacete! — Amaldiçoo, levando as mãos à cabeça desesperado com
a possibilidade de minha mãe a ter machucado.
Sinto mais uma vez o chão ruir sob meus pés, só que agora a queda é
ainda maior.
Dirijo pela noite, vidrado na viatura que segue à minha frente, a tensão
me domina. A lua brilha em um céu repleto de estrelas, como um mar
silencioso, e a impressão é que tudo está em câmera lenta, cada minuto
parecem horas.
A raiva me domina, deixando-me insano de novo, como antes de ser
trancafiado sozinho em uma cela. Meu sangue ferve enquanto corre por
minhas veias.
— Não dá para acreditar que isso está acontecendo.
— Eu te odiei por anos — fala, engatilhando sua pistola. — Mandei te
matar, fui o responsável por torna sua vida na prisão um inferno. Eu te
abandonei quando mais precisou e aqui está a verdade.
— No fundo, tu sabias que eu era inocente. — Mirom estala a língua,
descontente. — Senão já teria me pegado. — Olho para ele. — Assim como
Artem.
— Vivemos em uma mentira... uma vida dominada pela mentira.
Solto um suspiro longo, percebendo que fui o único que sofreu as
consequências dessa mentira.
— Quando tudo acabar, irei atrás de você. — Mirom declara.
— Eu sei!
— Apesar de tudo, você se tornou um perigo, matou muitos dentro da
cadeia, agia como um assassino de aluguel lá dentro. — Sorrio friamente.
— Mas sobrevivi. — Retruco. — Quando nada mais fazia sentindo, a
escuridão me dominava, e eu deixava.
Mirom não fala mais nada. Em silêncio seguimos para casa. Meu
coração volta a bater desesperado com a possibilidade de eles terem a
machucado.
— Aguente firme, Laura... — Sussurro, estacionando uma esquina
antes.
Faço menção de descer, mas Mirom segura meu braço, me impedindo
de prosseguir.
Olho para ele e franzo o cenho.
— Vamos aguardar só mais um pouco, precisamos pegá-los agindo.
— Esperar para que matem Laura? — Ele balança a cabeça.
— Vamos fazer do jeito certo. — Diz, pegando seu celular.
Mirom desce, soco o volante de raiva e faço o mesmo, sentindo o vento
frio bater em meu rosto enquanto encaro de longe a casa em que cresci.
Fecho meus olhos e encosto a testa na janela do carro, esperando o que
parece ser uma eternidade. Escuto Mirom pedir reforços à sua equipe. O
tempo está passando, o maldito medo me dominando, e Laura está sozinha
com aqueles maníacos.
— Chega! — Afasto do carro, confiro minha arma e olho para Mirom.
— Não irei mais esperar.
— Ainda não é o momento de agir.
— Foda-se!
Caminho sem me importar com o maldito momento de agir. Eu preciso
salvá-la a qualquer custo. O que minha mãe fez não tem perdão, ela me
transformou em seu próprio inimigo, e não pensarei duas vezes para proteger
Laura.
Por que o destino insiste em nos fazer sofrer dessa maneira? Parece
existir uma maldição em minha vida que faz com que eu perca o pouco do
que me resta.
Paro em frente à casa, inspiro fundo e fecho meus olhos em busca de
controle. Não irei cair... não deixarei com que a machuquem, não comigo
vivo.
Remexo meus braços dormentes pelas horas presa na mesma posição.
A noite tomou conta do lado de fora, Okasana sumiu, assim como Artem,
deixando-me com ainda mais medo sobre o que pretendem fazer conosco.
Olho para Yaroslav, seu rosto está inchado e machucado depois da
surra que Artem lhe deu na minha frente, a mando de Okasana. Um aviso
para que eu ficasse quieta.
Fiquei tão apavorada de eles o matarem que me vi sem chão. Com a
cabeça baixa e a respiração lenta, tento chamá-lo mesmo com a mordaça que
machuca minha boca, abafando o som da minha voz.
Ele geme, meche seus braços e levanta a cabeça. Lágrimas caem por
meu rosto.
Ele está tão machucando...
Seus olhos se encontram com os meus, desesperados.
Precisamos sair daqui!
Desvio meu olhar quando a porta é aberta. Okasana e Artem entram.
Meu sangue ferve de ódio e medo ao encará-los.
— Chegou a hora, querida. — Okasana diz, com sua mascará de boa
senhora.
Não posso permitir que façam isso, não depois de tudo o que vivi
durante anos. Agora que pensei estar livre para recomeçar sem o demônio de
James, me vejo em outra guerra.
Artem se aproxima, encarando o fundo dos meus olhos.
— Fique quieta. — Pede, eu apenas o encaro com ódio.
Ele começa a tirar as fitas dos meus tornozelos presos no pé da cadeira.
Fico esperando com calma o momento certo de reagir. Mexo minhas pernas
livres do aperto que estava me incomodando, calculando uma estratégia de
fuga.
Noto uma corda em sua mão quando ele se levanta e vai para trás de
mim, solta meus pulsos presos no encosto da cadeira. Sinto o sangue voltar a
correr por eles ao serem livres da fita.
Levanto a cabeça e encontro com o olhar de Okasana, depois olho para
Yaroslav que a encara com pavor, vendo em seus olhos a morte se
aproximando.
Artem segura meus braços. Inspiro, buscando a força que ainda me
resta, mantendo a respiração no controle antes de levantar de uma única vez,
soltando meus braços e pegando a cadeira.
Nosso olhar se encontra segundos antes de eu jogá-la nele, que se
protege com as costas. O estrondo da cadeira se quebrando faz com que eu
recue alguns passos. Artem se desequilibra, mas não cai, e o sangue começa a
escorrer por seu pescoço.
Viro para ver Okasana me encarando com fúria.
Tiro a mordaça da minha boca e ranjo os dentes.
— Sua doente, não deixarei que faça isso! — Rosno, andando para trás.
Ela sorri, vindo em minha direção.
— Não seja teimosa, criança. — Sua voz me estremece.
Pisco na tentativa de manter minha coragem, viro para ir à parede de
facas, mas ao dar um passo à frente, Artem agarra meus cabelos com tanta
força que solto um grito.
Ele me joga na mesa e prensa minha cabeça contra ela, fazendo-me
lembrar das agressões de James, de quando ele me colocava nessa posição
apenas para... para... começo a chorar, tentando livrar suas mãos de mim ao
mesmo tempo, em que luto para não ser tragada pelas lembranças.
— Eu pedi para ficar quieta. — Artem diz, prensando mais minha
cabeça. — Isso que acontece quando não me obedece. — Congelo com suas
palavras, ele acabou de falar como James, uma alma tão podre como a dele.
— Vocês vão se arrepender... — Murmuro, tentando acertá-lo com o
cotovelo, uma tentativa em vão, porque ele consegue segurar meu braço.
Movimento meus olhos e vejo uma faca perto de mim. Sem pensar duas
vezes, estico meu outro braço e fecho a mão em torno do cabo, respiro fundo
e me mantenho imóvel até sentir que seu aperto diminuiu.
Com impulso, o empurro e giro meu corpo, conseguindo me livrar de
sua mão na minha cabeça, e finco a faca em seu braço.
Artem solta um grito e acerta a mão em meu rosto, derrubando-me no
chão. Sinto o gosto de sangue na boca.
— Desgraçada! — Xinga, chiando de dor.
Balanço a cabeça, espalmando a mão no chão e me levantando com
minha visão embaçada pelo golpe. Cambaleio em direção à parede de facas,
ainda acreditando que conseguirei sair daqui com vida... que conseguirei lutar
contra dois doentes.
Lágrimas inundam meus olhos, a fraqueza me dominando.
Pego uma faca, arfando de dor e me viro, dando de cara com Artem
apontando uma arma na cabeça de Yaroslav.
Meu sangue gela.
— Tens certeza que irá lutar? — Okasana pergunta com os braços
cruzados e uma tranquilidade assustadora.
Yaroslav estremece de medo tentando ser forte, mas falha
miseravelmente. Minhas pernas enfraquecem. Artem destrava a arma, pronto
para atirar.
— Mate-o, Artem! — Ordena.
— Não! — Solto a faca e dou um passo à frente. — Não o mate!
— Desistiu de lutar, querida? — Pergunta com um tom frio na voz. —
Mate-o, Artem!
— Por favor... — Ergo as mãos e me ajoelho, derrotada.
— Mãe, não é uma boa ideia. — Artem intervém. — Vamos manter o
plano. — Diz, me olhando.
Okasana fica encarando-o com uma expressão ilegível antes de
concordar. Ele abaixa a arma e vem até mim, e prende meus pulsos, com
fitas, atrás das costas.
Yaroslav me olha um pouco aliviado por ainda termos ganho um pouco
mais de tempo. Respiro fundo, ficando de pé quando Artem me puxa para
cima. Okasana sai pela porta liderando o caminho, enquanto seu filho me
arrasta para a cova em que cavaram.
Quero implorar para que não cometam esse erro, mas tudo o que eu
disser será em vão. Ela está dominada pela maldade, a frieza consome seus
olhos e acredito que não há como a senhora simpática que conheci voltar,
aliás, ela nunca existiu.
Artem me faz ajoelhar em frente ao buraco que abriu.
Okasana fica do outro lado, me olhando. As recordações do que fiz
com James retornam com intensidade.
Eu abri uma cova e joguei seu corpo lá dentro. Ateei fogo e cobri seus
restos com terra vermelha. Agora estou aqui, em frente a uma cova prestes a
ser enterrada viva.
Artem volta trazendo Yaroslav que luta para se manter lúcido.
— Sinto muito, Laura. — Ela diz.
Desvio o olhar do meu amigo e fixo na senhora louca com sangue
assassino.
— Você não sente, Okasana. — Retruco, com raiva. — Você não tem
coração para sentir alguma coisa.
— Você está enganada, querida. — Seus olhos se prendem em Artem.
— Tudo o que fiz foi por meus filhos, e continuo fazendo isso por eles.
Ruslan se sacrificou e em hipótese alguma pode descobrir quem sou.
— Ele saberá da verdade mais cedo ou mais tarde. — Balanço a
cabeça. — Já pensou na Olesya? Sua filha, Okasana... o que ela vai sentir
quando descobrir o que fez?
— Ela seguiu com sua vida longe de mim, se tornou uma mulher linda
e bem-sucedida.
— Porque vocês sempre a jogaram contra seu irmão. — Retruco,
bufando.
— Eu a amo, Laura. — Diz, me fitando com olhos marejados. —
Mesmo que tenha cortado laços, eu sempre a amarei.
— Por quê? — Pergunto, curiosa. — Por que se afastaram?
— Ela defende Ruslan com toda alma, não aceita que ele seja o
culpado. Foi contra minhas ordens de não reabrir o caso dele ou de contratar
qualquer advogado que o tirasse da cadeia. — Esclarece. — Então saiu de
casa e nunca mais voltou, nem ao menos ligou.
— Você é a culpada, não Ruslan!
— As provas existem e apontam para ele. — Fecho meus olhos por
alguns segundos.
— Então é isso, Artem? — Olho para ele que anda de um lado para o
outro. — Vai nos matar?
— Não posso fazer nada! — Diz, parando de andar. — Eu pedi para
você parar de vir atrás da gente, mas não parou. O aviso foi dado, Laura.
— Vocês estão cometendo um grande erro. — Alerto. — As pessoas
vão procurar pela gente...
— E assim como as outras, vocês dois não passarão de meras
lembranças. — Artem rebate, me lançando um olhar furioso.
— Vamos acabar com isso, antes que amanheça. — Ela o orienta,
Artem concorda com um aceno de leve.
Franzo a testa observando seu comportamento. A submissão é visível
em sua expressão, me dando a certeza que não importa o que ela quer fazer,
ele irá obedecê-la.
Okasana sorri para Artem como se estivesse orgulhosa dele,
substituindo sua feição fria para uma calorosa, amorosa e doce, a mesma que
presenciei todas às vezes em que a vi.
Ela se aproxima do filho, segura seu rosto e beija sua testa antes de vir
até nós. Desespero me abate ao ver suas mãos repousarem nos ombros de
Yaroslav que estremece diante do seu toque.
— Perdoe-me, querido. — Diz, o empurrando para dentro da cova,
solto um grito que é abafado pelas mãos de Artem, me debato vendo
Yaroslav caído lá dentro, imóvel.
Artem me segura com mais força e me amordaça, seu toque me
desperta tanta repulsa que meu estômago embrulha. Ele segura meus ombros
e me empurra para dentro da cova.
Um gemido sai da minha garganta ao cair desajeitada em cima de
Yaroslav, meu corpo inteiro dói. Ele se remexe debaixo de mim e tentamos
nos ajeitar num espaço tão pequeno.
Com muita dificuldade, consigo me sentar e sair de cima dele. O cheiro
da terra invade minhas narinas, olho para cima e fecho os olhos com força
quando terra cai sobre nós. Encolho-me, sentindo-me impotente, não sei mais
o que fazer, estão nos enterrando vivos. Com minhas mãos atadas atrás das
costas nunca conseguirei fugir.
Abro meus olhos depois de alguns minutos e encontro com o olhar
desesperado de Yaroslav quase coberto pela terra. Começo a chorar,
balançando a cabeça e percebendo que essa luta, iremos perder. Vendo um
caminho sem fim, clamo por ajuda enquanto ainda me resta alguma
esperança.
O som da pá quebra o silêncio da noite, chocando contra a terra que em
seguida cai sobre nós, aos poucos, nos cobrindo, tornando doloroso demais
para suportar essa morte cruel.
— Mamis? — Meu coração para ao escutar o som da voz de Ruslan.
— O que está fazendo?
— Ruslan? — A voz de Okasana sai trêmula e a terra para de cair.
Um silêncio recai sobre nós, nada é dito... nada é esclarecido
— Por quê? — Ele pergunta com a voz falhando.
— Meu pequeno...
— Tu me tiraste o direito de ser ouvido, de ser amado, de ser livre e de
realizar meus sonhos para continuar fazendo essas barbaridades? — Meu
peito aperta, sentindo sua dor. — Naquela noite, quando eu a encontrei, tu
deixaste claro que destruiria minha vida... por quê? Para continuar matando?
— Eu tinha mais duas crianças para criar Ruslan, não podia deixar com
que a justiça os tirasse de mim. — Okasana responde com convicção. — Eu
tinha que criar vocês... alimentá-los, por isso, fiz o que fiz. Estava
desesperada...
— O que a morte de inocentes tem a ver com a gente, Mamis?
Mesmo que esteja com raiva e indignado, ainda consigo sentir o amor
que sente por ela através da sua voz.
— Cansei de vê-los com fome e... essas moças alimentaram vocês. —
Yaroslav arregala os olhos ao compreender o que Okasana quis dizer com
essa afirmação. — Vocês não passaram mais fome, tínhamos carne todos os
dias...
— Mamis... me diga que é mentira! — A voz de Ruslan sai incrédula.
— Por favor, diga-me que é uma criação da sua cabeça.
— É verdade, meu pequeno. — Eles se calam por alguns segundos. —
Tu és o mais forte entre todos, sabia que conseguiria aguentar.
— Conseguir aguentar? Sério? — Sua voz sai revoltada. — Eu só
encontrei escuridão em todos esses anos. Vivi sem amor, sem misericórdia,
mas acreditando que tu ainda me amavas.
— Eu amo-te, filho.
— Ama? — Ruslan solta uma risada fria. — Tu és uma espécie
maldita, Mamis! Uma alma doente. — Declara com fúria. — O que tu fizeste,
não tem perdão.
— Tu tens que me entender, Ruslan...
— Deitei em seu colo, dias atrás... tu viste meu sofrimento sabendo o
tempo todo que eu era INOCENTE! — Escuto passos, meu corpo fica tenso.
— Tu, a mulher que eu amo e que chamo de mãe, não passa de uma
mentira... um monstro!
— Filho...
— Não me chame de FILHO! — Ele grita.
Sobressalto de susto quando alguém pula dentro da cova. Não pode ser
Ruslan, ele está com Okasana, então... tento me arrastar para mais perto de
Yaroslav no pouco espaço que temos, apavorada e com muito medo de que
seja Artem.
— Shh! Sou eu, Laura, o Mirom! — Pisco várias vezes até seu rosto se
tornar nítido.
Ele se agacha retirando de dentro do seu coturno uma pequena faca e se
aproxima. Colo as costas na parede de terra com medo dele fazer algum mal
contra a gente, mas a única coisa que ele faz é esticar as mãos e tirar a
mordaça da minha boca.
— Fique calada. — Diz em um sussurro. — Agora se vire! — Fico
encarando-o, escutando Ruslan e Okasana conversarem. — Ande! — Hesito
por mais alguns instantes, quando ele inspira com impaciência, me viro e em
instantes tenho meus braços livres.
— Yaroslav... — Me inclino, tirando a mordaça e a terra de seu rosto,
suspirando aliviada por estarmos quase saindo desse buraco apertado. —
Você está bem?
— Vou ficar... — Responde baixinho, Mirom corta a fita dos seus
pulsos e o ajuda a se sentar.
— Vou te ajudar a subir. — Mirom fala, segurando meu braço. —
Chegando lá, tu me ajudas com Yaroslav. — Assinto, ele cruza as mãos e
coloco meu pé esquerdo sobre elas. — Tente manter silêncio, não distraia
Ruslan.
— Certo!
— No três, okay?
— Okay! — Confirmo, repousando as mãos na parede.
— Um, dois e três! — Mirom me empurra para cima, agarro a beirada
da cova e saio de dentro com a respiração pesada.
Espero alguns segundos agachada até me recuperar do pavor instalado
dentro de mim. Fecho as mãos sob a terra solta, quase caindo no choro por
estar livre daquele buraco.
Com as pernas bambas, começo a me levantar, mas paro de uma vez, e
me arrasto a tempo de ver Artem erguer a pá e quase me acertar.
Meu coração acelera, encarando seu olhar cruel.
— Não deixarei que fuja, Laura! — Diz com a voz bradando, entro em
desespero quando vem em minha direção com a pá pronta para acertar minha
cabeça, não vou conseguir desviar dessa vez.
Fecho meus olhos esperando a pancada, mas nada acontece, o único
som que vem é da voz de Okasana e Ruslan. Volto a abri-los, calafrios
percorrem meu corpo ao ver Mirom, com a mão em sua boca, o arrastando
para as sombras.
Seus olhos se encontram com os meus. Mirom lança um aceno discreto,
viro-me e vou para beira da cova, chamando Yaroslav que se mantém sentado
com a cabeça caída para frente.
— Ei, Yaroslav? — Chamo em um murmuro, olhando rapidamente
para Ruslan. — Consegue vir até mim?
— Acho... — Sussurra em resposta, se movimentando e chegando perto
de mim.
— Venha! — Estendo minhas mãos. — Vai doer só mais um pouco.
— Eu aguento. — Ele fecha as mãos em meus pulsos e eu nos dele.
Inspiro fundo, concentrando o pouco de força que ainda tenho.
— Um, dois... três! — Puxo-o para cima.
— Arch!!!!! — Reclama com um gemido alto.
Ranjo os dentes, ele é pesado demais para mim e acaba caindo de volta,
quase me levando junto.
— Merda! — Xingo, preocupada. — Você está bem?
— Sim... — Balbucia, se levantando com dificuldade.
— Vamos tentar mais uma vez, okay? — Yaroslav assente e olha além
de mim, congelando de imediato e arregalando os olhos.
— Laura, atrás de ti!
Meu coração gela, olho para trás e encontro Artem com a pá novamente
levantada com o rosto coberto por sangue. Sento-me estagnada, sem saber o
que fazer.
Artem acertará minha cabeça, e eu não sobreviverei a essa pancada.
Levanto as mãos para proteger meu rosto, mas antes dele me acertar, dois
disparos soam pela noite.
Solto um grito e cubro meus ouvidos, assustada. Olho para Artem que
dá dois passos para trás com olhos arregalados, a pá cai de suas mãos fazendo
um barulho abafado.
Ele se ajoelha, leva as mãos trêmulas ao peito que jorra sangue e olha
para frente, além de mim, perplexo.
— Não a machuque, não na minha frente! — A voz de Ruslan, tão
intensa e fria, me arrepia. Olho para trás, fixando meus olhos no seu rosto
inexpressivo. — Eu avisei para ficar longe dela... para não tocar nela!
— Eu... sempre... te odiei! — Artem diz, pausadamente.
— Nunca duvidei. — Ruslan concorda, apesar de estar sendo frio, sinto
em cada parte do meu ser, a sua dor.
— Sempre... o bo-o-om garoto... o filho preferido... — Artem tosse,
sorrindo enquanto balança a cabeça. — Quando... tu foste preso... nunca me
senti tão... grato. Torci para que não precisasse nunca mais te ver... queria te
ver sofrer.
— Tu conseguiste! — A voz de Ruslan vacila, olho para seus olhos
marejados, a arma que segura treme.
— Quando... quando descobri o que mamãe estava fazendo... — Artem
geme e sangue sai por sua boca. — Eu a ajudei... enterrei e a protegi... Queria
fazer de tudo para que tu continuaste dentro daquela cadeia.
— Eu sei... — Ruslan murmura, lágrimas escorrem por seu rosto. — Eu
sempre senti sua raiva, era sempre uma tensão ficar ao seu lado. Queria a
atenção do meu irmão mais velho, trabalhei para que estudasse e nos tirasse
daquela vida de merda... — Artem gargalha.
— Babaca... sempre foi o merda de um babaca! — Ele arfa. — Eu
nunca te tiraria daquela vida... eu iria vencer, mas no fim, te jogaria no lixo
onde tu sempre pertenceste.
— Estás feliz agora? — Ruslan pergunta, hesitante.
— Não... — Artem trinca os dentes. — Porque tu estás aqui, vivo,
amando, sorrindo e tendo uma mulher do seu lado... lutando por você... —
Seus olhos se prendem em mim. — Eu quero matá-la, porque... porque eu
vejo que tu a ama... eu o odeio por isso... por sempre vencer...
— Artem... — Okasana murmura. — Filho, olhe para mim... — Ela dá
um passo à frente.
— Não se mexa, Mamis. — Ruslan alerta, ela para.
— Tu machucaste teu irmão, não lhe ensinei isso, Ruslan!
— Dentro daquele inferno, aprendi a não ter piedade, Mamis. — Ele
revela, olhando para o fundo de seus olhos. — Eu aprendi a matar tudo de
bom dentro de mim sem ter rancor ou arrependimentos, sem me importar
com quem seja.
— Filho...
— Só que, se expormos a realidade, nada disso aprendi. — Ruslan ri,
friamente. — Porque a crueldade impregnada em meu ser, foi herdado de ti e
acredito que ela só desabrochou!
— Eu sempre criei vocês para se tornarem pessoas boas...
— Não me importo em matá-lo. — Ruslan declara.
— E sua mãe? Tens coragem de matá-la? — Ele não responde,
mantendo a expressão dura, impassível.
— Ouch... — Volto minha atenção para Artem, seus olhos perdem o
foco e em instantes seu corpo cai para trás.
— Laura? — Yaroslav me chama, desperto-me e vou até ele, sentado
na cova.
— Você está bem? — Ele assente. — Espere só mais um pouco.
— Eu queria ter a coragem de te matar, mãe... — Ruslan fala, sem
olhá-los, me levanto e vou atrás de Mirom, passando por Artem desacordado.
Se está morto, não faço ideia e nem paro para conferir.
Estreito meus olhos, tentando enxergar direito na escuridão. Ele trouxe
Artem até aqui... tropeço em algo e caio com as mãos no chão.
— Droga... — Murmuro de dor, me sento e tiro os espinhos das rosas
que fincaram em minhas palmas. — Mirom! — Exclamo assim que percebo
que foi nele que tropecei. — Mirom?
Me aproximo, notando um grande corte na testa que vai até sua
sobrancelha. Engulo em seco, tocando seu rosto ensanguentado com as mãos
trêmulas.
— Ei... acorda! — Sacudo-o de leve, entrando em desespero. — Eu
preciso de você, entende?
— Siiim... — Ele murmura, solto um suspiro.
— Você está bem?
— Acha que estou? — Retruca, gemendo de dor, continuando imóvel.
— Quase morrendo e continua um babaca! — Rosno, segurando seu
pulso e o puxando para cima. — Tire Yaroslav daquele buraco. — Peço.
Mirom abre os olhos e toca sua testa, amaldiçoando. — Uma bela pancada!
— Digo, ele ignora.
— Onde está Artem? — Pergunta, se levantando sem minha ajuda,
parece recuperado.
— Morto... eu acho! — Seus olhos se prendem em mim.
— Como?
— Ruslan... — Aponto para ele que ainda segura a arma na direção de
Okasana.
— Porra! — Xinga, indo até Artem, e eu o sigo. — Vivo, ainda! —
Consta, com dois dedos no pescoço dele.
— Bom ou ruim? — Indago, sem paciência.
— Os dois. — Responde, indo até Yaroslav.
Mirom pula para dentro da cova, ajuda meu amigo a se levantar e com
minha ajuda, conseguimos tirá-lo de lá de dentro. Puxo-o para mim em um
abraço forte. Seu corpo treme por conta do seu choro.
Respiro fundo, segurando minhas lágrimas e de repente, escuto ao
longe, barulhos de sirenes. Yaroslav desfaz o abraço e me encara.
— A polícia está chegando, Laura. — Yaroslav comunica tão aliviado
quanto eu.
Assinto, me levantando e olhando para Mirom que sai de dentro da
cova.
— Mirom? — Ele me encara. — Os corpos... eles estão... — Faço uma
pausa, tendo dificuldade de falar. — Tem corpos enterrados aqui!
— Como dizes?
— Eles escondem os corpos aqui, nas roseiras. — Mirom fica me
encarando sem se mover, dou um passo para trás e encontro com o olhar
devastado de Ruslan.
— Okasana, acabou! — Falo, fazendo-a olhar para mim. — Sei de tudo
o que teve que passar, mas está na hora de você assumir seus erros.
Luzes vermelhas e azuis reluzem pela noite que estava sendo iluminada
apenas pelo luar. Policiais encapuzados contornam toda a casa, confirmando
minhas palavras.
Ruslan abaixa a arma, encarando sua mãe que olha para o corpo caído
de Artem, sem esboçar nenhuma emoção.
— Lutei tanto contra a dor e a obsessão que crescia dentro de mim, mas
o único alívio que encontrei, foi esse. Eu não aguentava mais ver vocês com
fome. — Ela desvia o olhar de Artem, voltando sua atenção para Ruslan. —
Chorei por você todas as noites, Ruslan... entenda, meu pequeno, não tive
outra escolha. Todos me viraram as costas quando mais precisei. Eu era uma
mãe viúva, sem dinheiro e com quatro crianças para criar. — Okasana encara
Mirom que está um pouco distante de mim com os olhos cheios de lágrimas.
— Eu não tive outra escolha...
— Sempre tem outra escolha, mãe... — Ele diz.
— Quando me chamas de mãe, Mirom, sinto-me realizada. — Revela.
— Mesmo com tudo o que aconteceu, tu me transformaste em tua mãe. Eu
nunca irei me esquecer de vocês... eu os amo! — Diz com a voz embargada,
voltando a encarar Ruslan. — Eu nunca me esqueci de você, pequeno...
— Eu também nunca me esqueci do som da sua voz e do seu cheiro...
— Ruslan revela com a cabeça baixa. — Quando pensava em ti, eu pedia
para Deus fazer com que tu foste me buscar logo, eu não conseguia mais
aguentar... eu só queria estar seguro em seus braços.
A dor no coração de Ruslan domina sua alma, jogando-o em um chão
frio, onde sozinho enfrenta a solidão do abandono e da injustiça.
Na minha frente, não está o homem misterioso que conheci, e sim,
aquele garoto de dezoito anos que tanto gritou por socorro, se ajoelhou e
implorou para ser ouvido quando sua própria mãe, de forma cruel, o
condenava.
— Mamis, queria tanto que isso não passasse de um pesadelo. Queria
tanto te dizer o quanto te amo com um sorriso no rosto, e não com lágrimas
de dor e traição.
— Sempre carreguei você em meu coração, filho, mesmo não
conseguindo olhar dentro de seus olhos, eu sempre te amei e te amarei.
— É cruel e injusta essas palavras... — Ele balança a cabeça,
recusando-as.
— Sinto muito, pequeno, mas não poderei apagar tudo o que te causei...
— Okasana dá um passo à frente, começando a chorar.
— Eu me sinto morto, mãe... — Ruslan se ajoelha no chão, soltando a
arma, Okasana faz o mesmo, segurando seu rosto. — Guardei em minha
memória seu carinho e seu amor, porque era o único jeito de sobreviver
naquele lugar.
— Perdoe-me... — Ela implora. — Perdoe-me por tudo, filho!
— A dor, mãe... faça essa dor acabar! — Ele suplica, Okasana o leva
para seus braços em prantos.
Fecho minhas mãos em punhos com raiva, me segurando para não ir lá
e retirar suas mãos sujas de Ruslan. Ele não merece esse sofrimento, nada do
que ela fez justifica essa maluquice que chama de amor de mãe.

Dou um passo à frente, decidida a afastá-la dele, mas Mirom me


impede ao segurar meu braço. Olho em seus olhos assustada com seu toque,
afasto meu braço e congelo quando nega com a cabeça, lendo o que pretendia
fazer.
— Mãe, me livre desse inferno, estou tão cansado de lutar...
Meu coração se parte ao escutar as palavras dolorosas de Ruslan. Não
quero vê-lo sofrendo dessa forma, quero dizer que isso tudo é apenas uma
merda de um pesadelo, nada é real...
— Filho, tem que ser forte... seja forte, meu amor... — Ela limpa seu
rosto. — Perdoe-me... Ruslan. — Ele a encara, dentro de seus olhos só
consigo ver confusão, Ruslan não quer aceitar que sua mãe seja a culpada por
sua devastação, a dor... que ele sente, está tão pesada a ponto de se tornar
insuportável.
Sua alma sangra, assim como a minha por vê-lo tão... vulnerável.
— Eu te perdoo, mãe, te perdoo... porque eu te amo... te amo mais-que-
tudo nessa vida! — Ele segura seu rosto.
Percebo Mirom dar um passo à frente, seus olhos também estão
nublados de lágrimas em um choro silencioso. Fecho os meus por alguns
instantes, tentando com todas as forças controlar minhas emoções.
Sobressalto de susto ao escutar um disparo, meus ouvidos zumbem, me
encolho e minhas mãos tremem. Olho para Mirom com as mãos na cabeça,
medo me consome e aos poucos me viro para Ruslan.
Prendo a respiração, o tempo parece passar em câmera lenta. Levanto
imediatamente as mãos em rendição ao ver Okasana com uma arma apontada
para a cabeça de Ruslan com olhos em mim.
— Não se mexam! — Ela ordena. — Tu és um ingrato, Ruslan! —
Seus olhos se prendem nele que se mantém congelado.
— O que está fazendo, Mamis? — Okasana balança a cabeça e vem em
nossa direção, fico imóvel, porque seus olhos estão cheios de determinação e
qualquer movimento, poderá colocar fim a qualquer um de nós.
Ela passa por mim e Mirom, meu coração bate disparado com sua
aproximação. Okasana para ao lado de Artem, prendendo seus olhos nele.
— Tudo o que fiz foi por vocês. — Diz, se agachando.
— Abaixa a arma, mãe! — Mirom pede, calmo. — Vamos dar um jeito
nessa situação. — Olho para ele a tempo de vê-lo dar um comando com os
dedos para os policiais que se aproximam, eles recuam e Mirom volta sua
atenção para Okasana.
— Que jeito, filho?
— Um jeito de tudo isso acabar bem. — Insiste, se aproximando
devagar. — Essa situação não precisa acabar em tragédia.
— Seu irmão atirou em Artem... — Okasana resmunga, acariciando o
rosto do filho. — Ele vai morrer, não vai?
Engulo em seco ao ver seu rosto repleto de dor, lágrimas escorrem por
ele como água corrente repleta de medo. Meu peito aperta, vendo-a destruída
com a possibilidade de ele estar morto.
— Eu não vou aguentar, Mirom... não vou aguentar perder um filho...
— Mãe... — Ele se agacha à sua frente. — Podemos salvá-lo ainda.
— Artem está fraco e... Sinto meu coração sendo arrancado dentro do
meu peito... — Declara em prantos. — Eu daria minha vida por vocês,
morreria no lugar de qualquer um, mas não tire um filho de mim... por
favor... não o tire de mim! — Ela se curva sobre o corpo de Artem com o
choro mais doloroso que eu já vi.
— Eu errei, fiz tudo errado quando acreditava fazer o certo... vocês
cresceram, essa foi a única escolha que tive.
— Tu continuaste, Mamis! — Ruslan fala, se levantando e dando um
passo à frente. — Se tivesses parado...
— Não consegui... — Okasana revela, passando as mãos por Artem. —
O prazer do ato me dominou. Quando tu fugiste, eu fiquei com medo de a
justiça tirá-los de mim, é como se eu estivesse presa nos anos em que vocês
passaram fome.
— Artem pode sobreviver se tu largar a arma. — Mirom afirma. Ela
levanta a cabeça, adquirindo um olhar sombrio.
— Eu nunca te ensinei a matar, Ruslan! — Fala, se voltando a ele. —
Te ensinei a ser um homem integro, trabalhador e honesto, eu fiz o que fiz
para o bem de todos, nunca te ensinei a ser um assassino.
— Não? Tu me colocaste na prisão, mãe. — Ele retruca, franzindo a
testa e balançando a cabeça, inconformado.
— Você não deveria ter aparecido de novo, era para estar na cadeia. —
Raiva começa a borbulhar minhas veias. — Se continuasse lá, nada disso
teria acontecido. É assim que são os sacrifícios.
— Mamis... — Ruslan murmura, dando mais um passo.
Seus olhos devastados se prendem nos meus. Ele está exausto de tudo
isso, pedindo desesperadamente para que retirem a angústia de seu coração.
Dou um passo em sua direção, congelando logo em seguida ao sentir algo
gelado encostar na minha nuca.
Fico imóvel, encarando o rosto pálido de Ruslan.
— E se eu a matar, Ruslan? — Okasana pergunta, prensando a ponta da
arma na minha pele. — O que irá acontecer? Pelo visto gosta muito dela,
não?
— Mãe, abaixa a arma! — Mirom pede, Ruslan apenas permanece
petrificado.
— Tu farias isso? — Ele pergunta.
— Por que não? Olhe só o que já fiz! — Mantenho minha respiração
calma. — Porém, meu pequeno, o medo de perdê-la não chega nem perto da
perda de um filho.
— Eu sou seu filho também, por que me tratas como se não fosse?
— Por que tu és um assassino. — Respiro fundo. — Tu suportaste os
momentos mais difíceis, se manteve de pé...
— Não Mamis, a vida que não me impediu de deixá-la. — Okasana
arfa. — Eu tentei acabar com tudo inúmeras vezes...
— Por isso que tenho que ir, pequeno, não consigo mais suportar essa
dor... — Fico em alerta. — Eu te amo e... salva seu irmão, apesar de tudo ele
te ama.
Sinto a arma abandonar minha nuca, fecho e abro minhas mãos e olho
para trás, assistindo Okasana apontar a arma debaixo do queixo, encarando
Ruslan com olhos cheios de lágrimas.
Ele não suportaria essa cena... ela não pode sair ilesa depois de tudo o
que fez, então no segundo seguinte, avanço em sua direção e afasto a arma
dela, que dispara quase me acertando.
O barulho zumbe em meus ouvidos, me desequilibro e caio no chão,
levando Okasana comigo. Ela cai em cima de mim, a empurro e viro, a
procura da pistola.
— Garota estúpida! — Ela xinga, puxando meus cabelos antes que eu
chegue até a arma.
— Maluca! — Devolvo a ofensa, girando e acertando um tapa em seu
rosto, ela me solta e apanho a arma, me levantando e apontando em sua
cabeça.
Minhas mãos tremem e seguro firme a pistola, encarando seus olhos.
— Não deixarei que se mate, Okasana. — Digo, seus olhos fervem de
ódio. — A morte é muito pouco para pagar pelas atrocidades que fez. Não é
uma punição!
— Eu não entendo! — Ela se levanta, limpando a terra de seu vestido
com tranquilidade. — Não entendo porque gosto de ti!
— Okasana... você me enganou... — Murmuro, magoada. — Eu estava
gostando de você e poderia facilmente considerá-la uma mãe, mas... tudo o
que existe dentro de você é crueldade.
— Não leve para o lado pessoal, querida. — Balanço a cabeça,
indignada.
— Seu filho perdeu tudo por sua culpa, que amor é esse que mata,
engana, mente e finge, Okasana? — Pergunto, mantendo a arma apontada em
sua direção.
— Foi preciso...
— Por isso... — Corto-a. — Por isso que você deve apodrecer na
cadeia, pagando por todo mal que fez a Ruslan e as famílias que você
destruiu. Quero que o arrependimento consuma seu coração, que a solidão
seja tão opressora que você comece a definhar como uma rosa doente, e a
cada pétala perdida, seja a lembrança do mal cometido.
Okasana fica me encarando por alguns segundos e abaixa a cabeça,
assentindo.
— Quero que tu sejas feliz... tu és tudo que meu filho precisa. —
Declara, me surpreendendo com sua mudança de comportamento. — Perdoe-
me, Laura, por todo mal que causei, mas... dói dentro de mim, como se meu
coração não aguentasse mais tantos espinhos. Quero descansar, me livrar da
necessidade de continuar matando para alimentar meus filhos... quero deitar e
poder dormir à noite sem escutar vozes, gritos e grunhidos de dor das almas
atormentadas que enterrei em cada canteiro de roseira aqui.
— Ruslan não merece isso... — balbucio.
— Tu não mereces isso, querida. Uma mulher tão gentil, educada, forte
e linda... não merece passar pelo que passou... não merece ser quebrada ao
ponto de perder o sorriso.
— Você é mãe dele... você o abandonou! — Okasana nega com a
cabeça.
— Ser mãe é ter no colo o poder de acalmar, no sorriso o poder de
confortar, é rastejar se necessário, é abrir janelas a cada porta fechada. É o
sangue e a pólvora... — Ela dá um passo à frente. — Ser mãe é errar,
pequena, sofremos calada, no canto e na madrugada para que nossos filhos
não percebam. É se sentir fracassada ao ver que não pode proporcionar uma
vida melhor aos seus pequenos... somos a escuridão dos sonhos não
realizados...
— São meras palavras, porque você nunca o amou de verdade... —
Falo com raiva.
— Como nunca, Laura? Se tudo o que fiz foi por eles!
— Trancafiá-lo em um inferno ainda garoto é fazer tudo por ele? É
egoísmo Okasana, é maléfico em uma proporção incalculável! — Ela se
aproxima, sem se importar com a arma apontada em sua cabeça.
— Como mãe, eu errei em trancafiar meu filho na cadeia por crimes
que não cometeu... eu quase matei a mulher que ele ama. — Confessa com
olhos presos nos meus. — Fui dominada pelo sofrimento, pela dor e solidão,
fiquei cega, Laura... A crueldade tomou conta de mim, mas nem por isso eu
deixei de amá-lo.
Balanço a cabeça sem acreditar em suas palavras... elas não me
descem! Como uma mãe pode falar desses sentimentos depois de ter matado
várias mulheres, colocado a culpa em seu filho que tinha apenas dezoito anos
e ainda por cima, quase ter enterrado duas pessoas vivas?
Não consigo ver bondade em seu olhar e muito menos em suas
palavras, tudo o que vejo é uma mulher calculista tentando me manipular
com esse papinho de boa mãe.
Okasana é cruel, é uma assassina!
Fico em silêncio por alguns segundos, lembrando do meu passado e de
como James se vitimizava, dando uma justificativa para suas atrocidades.
É isso o que Okasana está fazendo, desde que Ruslan chegou, ela
começou a se vitimizar, se culpando e justificando seus crimes, mas dentro
dessa carcaça de corpo humano, só há podridão... ela tentou tirar Gana de
mim... por quê?
Abro a boca para perguntar, mas sou surpreendida com sua
proximidade. Okasana sorri e no instante seguinte, retira a arma das minhas
mãos e me dá um empurrão no peito tão forte que dou vários passos para trás,
batendo as costas na parede.
— Estúpida... — Xinga com a arma apontada para mim. — Tu és uma
mulher muito estúpida, Laura!
— Mãe não! — Ruslan grita, Okasana não desvia seu olhar de mim.
— Você é desprezível, Laura! — Rosna com tanto ódio que estremeço.
— Se tu não tivesses aparecido, nada disso estaria acontecendo!
— E continuaria matando e colocando a culpa em Rus... — Me calo
quando começa a gargalhar.
— Primeiramente, ele nem teria fugido... acredito que tu foste um dos
motivos árduos de ele orquestrar sua fuga. Tu devolveste a esperança que ele
tinha perdido... da possibilidade de ser feliz... tudo, Laura, tudo começou por
ti!
— Nada acontece por acaso... — Sussurro, virando a cabeça e
encontrando com o olhar desesperado de Ruslan, Mirom o segura para que
não venha até mim. — O destino sempre trilha nosso caminho sem que
percebemos, se o meu cruzou com o do Ruslan, foi por um propósito. —
Volto minha atenção a Okasana. — E esse propósito foi te encontrar e te
colocar na cadeia, para apodrecer sozinha por seus crimes. — Ela fica calada
por um instante.
— Mirom, mandem seus homens recuarem! — Ela ordena, me
olhando. — Ou eu a mato!
— Tu sabes que não me importaria, certo? — Fecho meus olhos ao
escutá-lo.
— Acredito que Ruslan se importaria, não é, filho? — Olho para ele,
imobilizado por Mirom.
— Não faça isso, Mamis! — Ele pede, com os olhos carregados de
medo.
— Onde tudo começou e onde tudo deve terminar! — Okasana declara,
engatilhando a pistola e dando um passo à frente.
Com o coração acelerado, encaro a arma, colando as costas na parede,
querendo de algum jeito me afundar nela para me proteger da bala que está
prestes a me perfurar.
Fui uma idiota por baixar a guarda quando mais precisava ficar atenta,
ela aproveitou minha distração, jogou sujo.
A mulher diante de mim é ardilosa com um amor pútrido.
— RECUEM! — Mirom grita a ordem para seus homens. — Agora
deixe a Laura vir, mãe, e vamos resolver isso!
— Vá querida, vá até eles. — Diz, inclinando a cabeça para o lado com
o rosto ilegível, engulo em seco. — ANDA!
Desencosto da parede e começo a me afastar. Okasana não baixa a
arma e sei que não me deixará livre. Ela está apenas brincando comigo, me
apavorando a ponto de eu fazer uma loucura de sair correndo... e está
conseguindo.
— Você não vai me deixar ir! — Consto, olhando para Ruslan. — Eu
te amo... — Murmuro, através das lágrimas.
— Mamis, não faça isso! — Ele se solta de Mirom, dando um passo à
frente.
— Tarde demais, pequeno! — Volto meu olhar para ela e inspiro
fundo, assistindo-a apertar o gatilho como se tudo estivesse em câmera lenta.
Quero tanto acordar desse pesadelo. Acreditei durante anos que a morte
seria o único jeito de me livrar da solidão em que me encontrava e que
matando James seria a chave para minha liberdade, mas agora vejo que estou
fadada a ter esse fim mesmo optando por sempre seguir em frente.
Ruslan foi tudo o que eu precisava para enxergar a vida de uma forma
diferente, por ele eu soube como é ser tratada com amor, de como é ser
tocada por um homem que me ama. Ao seu lado, mesmo que tenhamos
passado pouco tempo juntos, eu soube que o amor pode ser o alívio de muitas
dores, mesmo que os traumas nunca se curem, que as lembranças não se
calem. Com amor, tudo se torna suportável.
O som do tiro quebra o silêncio assim como o grito devastado de
Ruslan, selando meu destino, libertando minha mente e apagando meu
passado.
Só que a bala não penetra meu coração, mas sim o de Artem que se
joga à minha frente. Aconteceu tão rápido que não consegui perceber seus
movimentos. Ele cai de joelhos, Okasana fica congelada com olhos
arregalados como se não pudesse ser capaz de acreditar que seu filho entrou
na frente de uma bala.
— Chega... — Ele sussurra com a voz fraca. — Chega de... destruir a
vida de... Ruslan... — Artem solta um gemido doloroso.
— Por... quê? Por que tu fizeste isto? — Okasana pergunta, com os
olhos cheios de lágrimas, sua mão treme e ela deixa a arma cair.
— Ruslan... — Artem arfa. — Mãe...
Seu corpo cai para o lado lentamente, Okasana vai até ele e o segura
antes de colidir no chão. Encaro seus olhos que começam a perder o brilho,
sangue escorre de sua boca e de seu peito.
— Não filho, olha para mamãe... fique aqui comigo... — Pede o
embalando.
— Médico!!!! — Mirom grita.
Sinto mãos segurarem meus ombros e me girar, fazendo-me desprender
o olhar de Okasana e Artem. Encaro os lábios de Ruslan movimentarem, mas
não consigo escutar sua voz... está tudo silencioso. Ele me balança para que
eu possa acordar, mas a cena de Artem morrendo no meu lugar se repete
inúmeras vezes.
O grito estridente de Okasana quebra o silêncio e uma coisa estranha
percorre todo meu corpo que nenhuma palavra conseguiria definir, é como se
algo rasgasse sua carne... como se algo a estivesse comendo viva...
É um grito de perda... um grito de uma mãe que acaba de perder seu
filho.
Meu olhar se encontra com o de Ruslan antes de me virar para trás e
encarar Okasana abraçada ao corpo de Artem balançando para frente e para
trás.
No fim, ela acabou matando seu próprio filho que se sacrificou para
que ela não cometesse mais um crime que destruiria seu irmão. A culpa e as
lembranças sempre a atormentará como um demônio perfurando seu coração
a todo instante, e onde um ciclo começou, é onde outro termina...
Uma nova ferida se abre em meu coração. As sombras da escuridão
encheram a vida do meu irmão. Não existe uma maneira de voltar atrás e
apagar tudo o que aconteceu.
Pouco a pouco o destino foi nos trazendo a esse final. Cheguei ao ponto
de estar disposto a atirar em seu peito sem me importar em matá-lo... me
perdi de tão cego que fiquei com ele ameaçando Laura.
Agora que Artem se foi, as sombras do passado e todas as lembranças
ficarão como um sussurro na calada da noite. Quero chorar por ele... sofrer
por ele, mas fiz isso durante tantos anos que a única coisa que espero é que
sua alma se liberte.
Encaro seu rosto, me despedindo antes de cobri-lo com o pano branco.
Eu tentei severamente encontrar a verdade, voltei para casa e os persuadi,
mas no fundo, desejava que todos fossem inocentes.
Odiamos um ao outro, nos ofendemos e nos acusamos, para no fim, ter
meu irmão morto. Esfrego meus lábios, incrédulo com toda essa merda.
Se eu venci essa guerra? Não, porque me sinto um perdedor... um
derrotado no meio de um campo de batalha.
Como eles puderam me olhar sabendo da verdade? Como puderam
fazer isso, quando me viam em pedaços?
Eles deixaram com que o mundo me transformasse em um homem sem
esperança e sonhos, meu coração se transformou em aço, nem uma bala
consegue penetrá-lo.
Me sinto vazio por dentro, estou quase no meu limite, toda minha
agonia querendo fazer-me desaparecer, não sei mais o que sobrou de mim...
do que restou do meu coração.
— Sinto muito — Mirom diz, se agachando diante de mim, erguendo o
pano para olhar o rosto de Artem.
— Tu perdeste um irmão também. — Relembro, embora pareça estar
tranquilo com toda essa merda, Mirom está sofrendo muito mais do que
transparece.
Ele sofre em silêncio.
— Foram encontrados corpos por toda parte desse quintal. — Revela.
Balanço a cabeça, incrédulo com tamanha barbaridade.
— Quanto tempo eu tenho? — Ele respira fundo.
— Te darei dez horas antes de mandar toda a cidade atrás de você. —
Assinto.
— Onde minha mãe está?
— Dentro da viatura, esperando ser levada. — Responde, sinto seu
olhar sobre mim enquanto fico calado. — Quer vê-la?
— Por quais motivos?
— Não sei, últimas palavras? — Me levanto, olhando para o horizonte.
— Tudo o que precisava dizer, foi dito. — Respondo, procurando por
Laura.
— Ela está sentada na ambulância do outro lado da rua. — Meneio a
cabeça, juntando coragem para ir até ela.
— Se cuide, cara! — Digo com sinceridade, Mirom assente. — O
enterre e... faça nossa mãe pagar pelo que ela fez.
— Farei isso. — Confirma com um olhar inexpressivo.
Respiro fundo, seguro seu ombro em um até logo silencioso e saio
andando em direção à Laura.
Há algo que eu preciso dizer, mesmo que não encontre as palavras
certas... mesmo que minha alma sangre, preciso fazer isso. Sou um homem
condenado com um destino traçado, e a cada passo me sinto no fundo do
poço, sem saída, não tenho esperança de retornar.
E é assim que me aproximo cada vez do meu fim...

Estou morrendo aos poucos, cada vez que Ruslan se aproxima de mim.
Gostaria que nosso destino não fosse esse, que não acabasse com sofrimento.
A cada segundo a realidade vai minando o que restou de mim, tirando
de forma dolorosa o homem que me ama e ultrapassou meus espinhos, que
me fez desabrochar quando estava encolhendo, findando no passado.
Não quero acreditar que dessa vez é verdade... que o adeus definitivo
está estampado em seu rosto, porque agora não resta nada que nos ligue além
da paixão e das lembranças que ficarão.
Me levanto e coloco meu cobertor nos ombros de Yaroslav, sentado ao
meu lado com o braço enfaixado. Seus olhos se encontram com os meus,
depois recaem em Ruslan atrás de mim, compreendendo que não há mais
fuga.
Precisamos colocar um ponto final!
Me viro e vou até ele. Quando me segura em seus braços, todas as
muralhas da minha alma desabam, restando apenas devastação. Não podemos
terminar assim... não irei perder a esperança de que nosso fim seja o que
merecemos.
Ruslan me afasta para que eu possa olhá-lo. Com os polegares ele
limpa as lágrimas do meu rosto. Não é necessário palavras para dizer quando
estamos lendo um no outro todo medo, toda dor e solidão que nos acomete.
Ele segura meu rosto e se curva, tocando seus lábios nos meus,
beijando-me com delicadeza, deslizando suas mãos por meu corpo com
cuidado como se estivesse verificando se tudo está em seu devido lugar.
Contorno meus braços em seu pescoço, sentindo o beijo se tornar mais
profundo e intenso. Um nó aperta minha garganta, o calor de seu corpo
colado no meu faz meu coração queimar, simplesmente não consigo aceitar
nosso destino.
O vento traz um novo amanhecer, dizendo que nada permanece para
sempre, que pessoas cruzam nosso caminho com tempo determinado, sempre
com um propósito.
Preciso sufocar a dor enquanto consigo me manter forte. O doce cheiro
da chuva nos invade antes dela cair sobre nós, nos encharcando, limpando
não só a sujeira de nossos corpos, mas de nossas almas.
Ruslan desfaz o beijo e encosta a testa na minha. O som da chuva se
torna uma canção para nos lembrar de tudo o que vivemos... uma canção para
nunca esquecermos desse momento.
— Tu estás bem? — Pergunta. — Senti tanto medo...
— Eu vou ficar bem. — Deslizo minhas mãos até seu rosto. — E como
você está? — Ele inspira, roçando seus lábios nos meus.
— Vou ficar bem... — Diz, se afastando e tirando meus cabelos do
rosto. — Mais tarde Kliment te entregará uma carta minha, quero que aceite o
que está dentro dela.
— Carta? — Franzo a testa, fitando seus olhos verdes. — Que tipo de
carta?
— Tu irás descobrir. — Ruslan esboça um sorriso triste. — Hoje, às
seis da tarde, quero que tu vás buscar Olesya no aeroporto Kiev-Boryspil.
— Quer que eu conte o que aconteceu? — Ele comprime os lábios,
pensativo.
— Até chegar lá, ela já estará sabendo. — Responde. — Ela tem algo
para você.
— Muitas surpresas, não? — Ruslan sorri, beijando de leve meus
lábios.
— Quero que tu continues com sua vida, pequena, sorria sempre que
puder. Saia e conheça novas pessoas, permita que elas entrem em seu
coração. Não se afunde na dor... não mais!
— Ruslan, se você voltar para cadeia eu... — Me calo, quando seus
olhos ficam sombrios.
— Não quero que vá me visitar, Laura, não se prenda a mim. Isso não é
a vida que merece. — Diz, balançando a cabeça. — Tu mereces muito mais e
eu não tenho nada a te oferecer.
— Mas...
— Faça isso por mim, pequena flor. — Insiste, engulo em seco, fitando
seus olhos que sempre estarão em meus sonhos. — Viva e sorria por mim,
porque enquanto eu estiver naquela cela, meus pensamentos estarão com
você.
— Não posso acreditar que esse é nosso fim... — Fecho meus olhos
com força, incapaz de suportar essa dor.
— Quando ficar pesado demais, lembre-se de nossos momentos, e não
importa o que aconteça, eu estarei contigo.
— Por quê...? — Murmuro. — Por que temos que terminar assim? —
Abro os olhos e encaro os seus, cheios de lágrimas.
— Encontrei dentro de ti, Laura, a luz que eu precisava para me sentir
vivo outra vez. Foi sua maneira de me salvar do pesadelo em que estava
preso. — Sua voz sai trêmula através do som da chuva. — Foi o bastante para
sentir a felicidade que tinha perdido, mesmo que tenha tido tão pouco tempo,
foi o suficiente...
— Eu te amo... — Sussurro, devastada.
— Te amarei para todo sempre, não importa quantos anos passem, eu
sempre serei seu. — Ele diz, encarando o fundo dos meus olhos.
Eu sempre irei esperar por ele, mesmo que o mundo lute contra, porque
nunca superarei o que não pudemos viver. Esse não será nosso último beijo e
muito menos nosso adeus.
Um carro escuro chama minha atenção ao parar um pouco à frente, meu
coração salta de medo. Encontro com seu olhar fixo no meu rosto como se
estivesse gravando em sua memória minha imagem.
— Chegou a hora... — Nego com a cabeça, não posso aceitar.
— Não... não me diga adeus... — Ruslan me puxa, capturando meus
lábios, a realidade pesa em meus ombros, me afogando na chuva.
Pressiono meu corpo contra o seu, sentindo sua mão percorrer meus
cabelos. Meu coração luta para manter a esperança de um amanhã, mas o
brilho de seus olhos me mostra que nosso destino já está traçado.
Ruslan desfaz o beijo e me abraça, enterrando seu rosto em meu
pescoço. Vai ser doloroso abrir os olhos todos os dias e saber que não poderei
vê-lo deitado no meu sofá... ou me entregando rosas todas as manhãs...
— Cuide do Rony... — Murmura em meu ouvido.
— Darei todo amor do mundo. — Ruslan me aperta antes de me soltar
e recuar alguns passos para trás.
— Sinto meu coração rasgando, Laura. — Balanço a cabeça, porque é
assim que me sinto, como se estivessem arrancando cada parte do meu corpo.
— Quando a solidão te oprimir a ponto de não aguentar, grite por mim,
Ruslan... Chame por meu nome, porque eu estarei aqui te esperando,
sonhando com o dia em que poderemos ficar juntos, tentando fazer meu
melhor para seguir em frente.
— Adeus, pequena flor... — Ficamos nos olhando, esperando que tudo
mude, que um sinal nos invada e diga que não precise ele ir embora.
Ruslan se vira e sai andando em direção ao carro, entrando sem olhar
para trás.
Não há nada mais o que fazer, a chama do adeus me queima, os
momentos que passamos nunca desaparecerão, se tornaram lembranças que
reviverei a todo instante. Enquanto o assisto ir embora para longe dos meus
sonhos, minha alma se quebra.
— Finalmente acabou... — Mirom diz, parando ao meu lado, passo a
mão em meu rosto, afastando a água da chuva.
— Você vai atrás dele?
— Sim, apesar de tudo, mesmo que ele seja inocentado pelos crimes de
Okasana, Ruslan ainda é um criminoso perigoso demais para permanecer nas
ruas.
— Ele vai ficar... bem? — Pergunto sem desgrudar os olhos da direção
em que ele se foi.
— Ruslan viveu durante quatorze anos em um lugar em que poucos
suportaria. Ele é forte!
— É tão injusto...
— Nem sempre a vida é justa. — Diz, tocando algo em mim, olho para
sua mão. — Pegue.
— O que é isso? — Seguro um CD sem nada escrito.
— A gravação que mostra o momento em que mato James. — Levanto
meus olhos, encontrando com os seus.
— Por que agora? — Mirom dá de ombros. — Essa gravação vai
adiantar alguma coisa? — Ele sorri, desviando o olhar.
— Eu a persuadi a enterrar James... te ameacei.
— Posso te destruir com isso?
— Pode! — Afirma. — Meu destino está em suas mãos. Irei ser
julgado por assassinato, ocultação de cadáver e ameaça... pegaria uns dez a
quinze anos de prisão. — Ele balança a cabeça.
— Mas você estava me protegendo.
— Entregue à justiça, me denuncie e me veja apodrecer na cadeia.
— Talvez eu te mande, Ruslan adoraria ter sua companhia. — Mirom
me olha sério. — Esse é nosso segredo, vou deixar guardado caso precise
futuramente. — Bato o CD de leve em seu braço e me afasto, andando em
direção a Yaroslav.
— Ele se foi? — Yaroslav pergunta assim que me sento dentro da
ambulância ao seu lado.
— Sim.
— Hoje percebi o quanto somos sortudos. — Olho para ele, apertando
meus lábios trêmulos de frio. — Nunca mais reclamarei da minha vida.
— Acho que tenho sete vidas que nem um gato. — Yaroslav ri,
colocando o cobertor em meus ombros.
— Tu és a mulher mais forte que eu conheço. — Ele passa seu braço
por meu ombro também e me leva para seu peito, permito-me ser aquecida
por ele.
— O hospital me ligou, disse que Gana está fora de risco e que
acordou. — Inspiro tão aliviada que lágrimas escorrem por meu rosto.
— E agora? — Pergunto, encarando vários policiais escavando o
quintal de Okasana que já foi levada para o lugar a que pertence.
— Vamos continuar, só que dando mais valor em nossa vida, nas
pessoas que amamos, fazendo o nosso melhor. — Responde, repousando a
bochecha na minha cabeça.
Fico encarando o horizonte, pensando em como as coisas acontecem
com um propósito, algumas perguntas sempre permanecerão sem respostas,
porque nosso futuro já está escrito, apenas nosso caminho muda conforme
nossas escolhas.
A injustiça muitas vezes permanecerá em cada momento, escolhendo as
pessoas para destroçar... o amor pode curar um coração injustiçado?
Talvez sim... talvez não...
O amor muda as pessoas... o amor muda o mundo, mas talvez ele não
mude o destino já traçado.
O amor pode nos transformar em pessoas mais fortes, nos tirar da
escuridão e nos renascer da morte, e é por ele que continuamos tendo fé,
acreditando que tudo é possível.
Agora meu amor por Ruslan, é apenas uma lembrança, um sonho
distante... um fantasma na névoa.
Percorro meus olhos pela sala de casa. Por um momento cheguei
acreditar que nunca mais voltaria, ou sentaria no meu sofá para assistir aos
meus desenhos.
Agora, sinto como se estivesse acordado de um longo sonho, tão surreal
que ainda é difícil acreditar que seja real. Vou à cozinha com Rony
esfomeado me seguindo.
Desde que cheguei, ele não saiu de perto, acredito ter sentido tanto
medo de me perder quanto senti de nunca mais retornar.
Deposito sua comida no pote e coloco no chão. Agacho e acaricio seu
pelo negro, encarando seus olhos amarelos presos nos meus.
— Sairei por algumas horas, mas voltarei para você, okay? — Rony
ronrona, desviando seu olhar e focando em sua comida.
Fecho meus olhos ao me sentir nauseada, levanto-me e vou para o
banheiro. Me ajoelho no chão e inclino sobre o vaso, colocando o pouco que
tenho dentro do estômago para fora.
É difícil não sentir enjoo ao lembrar das barbaridades de Okasana.
Levanto-me e vou até a pia, jogo água no rosto e inspiro fundo, me
recuperando da fraqueza que me assola.
Quando vou me sentar no sofá para descansar antes de ir para Kiev,
uma batida soa na porta me assustando. Fico paralisada por alguns segundos,
com medo de quem possa ser. Engulo em seco e vou atender, encontrando
com Kliment recostado no batente da porta.
Ele levanta o olhar, sorri de leve e estende um envelope em minha
direção.
— Perdoe-me por estar te incomodando, mas Ruslan pediu para que lhe
entregasse isto.
“Mais tarde Kliment te entregará uma carta minha, quero que aceite.”
Recordo de suas palavras e apanho o envelope, agradecendo.
— Ele só te pediu para me entregar? Nada mais?
— Não, senhora! — Diz. — Preciso ir, fique bem.
— Você também. — Despeço-me dele e fecho a porta, indo até a mesa.
Fico encarando o envelope, temendo o conteúdo. O abro sem demora e
tiro de dentro, duas chaves - uma de carro e outra parece ser de uma casa,
algo assim.
Franzo a testa, sem conseguir entender o intuito disso. Me sento,
retirando alguns documentos de dentro. Em um post-it, há algo escrito que
faz meu chão ceder.
A chave da sua felicidade encontra-se em suas mãos, é acreditando nas rosas que a fazemos
desabrochar, acredite em ti, Laura!
Sempre a manterei em minhas memórias, lembrando do seu sorriso e de seus olhos.
Viva, minha pequena flor, como se fosse o último dia.
Floresça e seja um jardim eterno...
Ruslan Rotam
Finalizo com os olhos cheios de lágrimas, deixo o bilhete de lado e
analiso os documentos. Meu coração salta imediatamente ao notar que é uma
escritura de um apartamento na parte nobre de Kharkiv e os documentos de
um... carro?
... quero que tu aceite.
Solto os documentos e enterro meu rosto entre as mãos, liberando o
choro que vinha segurando desde sua partida. Meu coração rasga, Ruslan me
deixou uma casa e um carro antes de ir embora?
Por que tem que ser assim?
Limpo meu rosto e me levanto, não posso permitir que a derrota de o
ter perdido me abata. Apanho minha bolsa, fecho a mão em torno das chaves
e saio de casa.
Assim que chego na calçada, procuro pelo carro da Caoa Chery Arrizo
6 preto. Minha boca escancara ao encontrá-lo, me aproximo sem acreditar no
que estou vendo.
— Cacete... — Murmuro, passando a mão nele, admirando sua beleza.
— Mas como... — Me calo, não quero saber como Ruslan arrumou tanto
dinheiro para o apartamento e o carro tão caro.
Ao entrar, fico ainda mais surpresa, é tanta tecnologia que não sei nem
se saberei aproveitar tudo que tem. Coloco minha bolsa no banco do
passageiro de couro, aliso o volante e olho para cima, para o teto solar.
— Céus Ruslan... — Sussurro, com os olhos navegando pelo painel e
tento ligá-lo, acreditando que talvez terei que usar o manual de instruções.
Ao conseguir, a câmera traseira é acionada, passo a mão pelo
computador de bordo e a luz ambiente panorâmica é ativada. Balanço a
cabeça impressionada e sigo meu caminho, ainda incrédula.
A viagem até a capital demora aproximadamente seis horas e meia,
contando com as paradas e o congestionamento que peguei em algumas
partes.
Paro o carro no estacionamento do aeroporto Internacional de Kiev-
Boryspil com o coração na mão. Como será que vai ser encarar Olesya depois
de tudo o que sua mãe fez e da morte de Artem? Ainda mais que já está em
todos os jornais e na internet. Andry foi o primeiro a publicar as informações
após eu repassar em detalhes o que aconteceu.
Caminho entre as pessoas, subo as escadas e encaro cada parte do
aeroporto tentando achar meu destino. Ruslan não me falou em que local eu
deveria me encontrar com ela e muito menos de onde ela vinha. Pego meu
celular, tento ligar para Olesya, que infelizmente cai direto na caixa postal.
Fico perambulando sem rumo durante vários minutos, acabo voltando
para a porta principal e aguardando, porque se tem um lugar por onde ela irá
passar, será pela saída.
— Laura? — Olho para trás assim que escuto sua voz.
— Oi! — Ela me lança um olhar triste, respiro fundo e vou até ela. —
Já sabe, certo?
— Sim. — Olesya abaixa a cabeça, segurando a haste da mala. —
Recebi uma ligação de Mirom e Ruslan uma hora atrás me contando o que
aconteceu.
— Sinto muito...
— Tu não tiveste culpa. — Aperto minhas mãos em punhos, querendo
abraçá-la, sei que precisa disso.
Fecho os olhos por um instante tomando coragem de ir consolá-la e
quando volto a abri-los, congelo ao avistar logo atrás de Olesya uma mulher
com os mesmos olhos que os meus.
Minha pulsação aumenta, será que estou vendo coisas? Será que estou
delirando?
Talvez seja os efeitos da noite passada, da tensão de quase ser morta e
dos traumas que ficaram. Eu nem dormi e muito menos descansei, deve ser
isso!
Olho para trás e depois volto, continuando vendo minha mãe, parada,
me encarando fixamente. Seus olhos estão marejados e vermelhos, pisco
tentando afastar sua imagem, que do nada começou a me perseguir.
— Olesya... — Olho para ela, que sorri dando um passo para o lado,
expondo ainda mais minha mãe.
— A pedido de Ruslan, fui buscá-la no Brasil e a trouxe para você. —
Declara, abro a boca, mas nada sai. — Está na hora de acertar as coisas,
Laura, fugir para sempre não é a solução. Permita-se perdoar!
Fico encarando-a, Olesya assente como se dissesse que preciso dar esse
passo. Prendo a respiração e meu olhar se prende em minha mãe, que tem
lágrimas por todo o rosto.
Ela envelheceu, mas mesmo assim continua linda...
Ela dá um passo à frente, soltando sua mala. Mamãe ficou presa
durante anos por tentativa de assassinato cometida contra James, ao sair, fez a
mesma coisa, o caçando. Ela não o encontrou, mas eu sim, e hoje ele é apenas
uma lembrança de um passado distante.
O quanto Lívia, minha mãe, sofreu durante esses 15 anos?
— Lauriana... — Estremeço ao escutar sua voz fraca e trêmula. —
Você está tão... linda!
Sinto meu corpo inteiro começa a tremer, meus olhos inundam de
lágrimas. Quando saí de casa, eu era apenas uma menina que tinha acabado
de completar dezoito anos. Fui embora sem me despedir, sem agradecer por
ela ter tentando me proporcionar uma vida confortável. Fui tão egoísta que
não me dei conta de que ela também sofria, dia após dia se afogando no
fracasso e na tristeza, sendo abusada e agredida por James assim como eu.
Fomos vítimas de um monstro, nos trancando em um mundo destrutivo,
recusando ver além das muralhas.
Quando tentei lhe contar o que ele fazia, ela recusou a acreditar... a me
ouvir. Minha alma pedia por ajuda, eu era uma criança. O vazio dentro de
mim foi devastador, me corroendo durante anos.
Quantas vezes eu a odiei... não conseguia nem olhar para seus olhos,
repleta de vergonha e mágoa, porque eu estava sofrendo sozinha, chorando
sozinha, despedaçando na solidão e a única coisa que eu queria, era o abraço
da minha mãe.
— Eu... — Tento falar, mas minha voz falha, fecho os olhos por alguns
instantes. — Fui tão machucada que tenho medo de ficar perto das pessoas,
perdi a confiança na humanidade, em homens e qualquer um que se
aproxima, porque minha mente sempre me leva para as suas ações... eu era
apenas uma criança, mãe! — Confesso, batendo em meu peito. — Era só
você sair, que James fazia aquilo, era doloroso, nojento...
— Filha... — Vejo através dos seus olhos a culpa a corroendo.
— O que eu fiz de errado? — Pergunto. — Por que ele fazia aquilo
comigo, mãe? Por que você não me protegeu? — O rancor que sinto é tão
grande que começa a me sufocar.
— Me perdoa... perdão por a ter negligenciado... eu... — Ela para de
falar, devastada demais pela culpa para encontrar as palavras certas que
justifiquem seu erro.
— Sinto tanta raiva por não ter conseguido me defender... Me sinto
culpada, mãe! — Ela balança a cabeça, inconformada. — Fui na delegacia, eu
ia denunciar, eles não quiseram acreditar em mim e acabei desistindo da
denúncia.
— Você contou, mas...
— Você estava enterrada no álcool e nas drogas para perceber que sua
filha vinha sendo abusada pelo homem que prometeu ser um pai para mim,
que prometeu cuidar da nossa família. — Falo com raiva.
— Fui cega, filha, me afoguei no assombro do fracasso, porque eu
queria te dar uma vida digna, que tivesse orgulho de mim e não fosse
conhecida como a “filha de uma prostituta”.
— Nunca me importei com isso, mãe! — Ela se aproxima.
— Mas eu sim. Essa realidade me doí a todo instante, uma dor
sufocante. — Mamãe para à minha frente, olhando para dentro dos meus
olhos. — Eu entendo o que você passou, do que sente, porque eu passei por
isso... eu fui... — Ela fecha os olhos e inspira fundo, tomando coragem. —
Você nasceu através de um abuso, Lauriana.
Fico encarando-a, meu sangue gela ao mesmo tempo sinto que meu
coração não vai aguentar essa revelação.
— Fui gravemente abusada por um dos clientes, um mês depois
descobri que estava grávida. Comecei a buscar meios para interromper a
gravidez, mas um dia passando pela praça da cidade, presenciei uma mulher
com seu bebê, e aquele brilho nos olhos daquela mulher mexeu comigo.
Quando fui fazer o primeiro exame e escutei seu coração, tive a certeza de
que jamais poderia tirar meu bebê. — Ela ergue a mão e traça os dedos
trêmulos por meu rosto, fico imóvel sem saber como reagir. — Você foi a luz
para minha escuridão, jamais poderia lhe contar essa parte suja da sua
história, mas eu te amei desde sempre. Você se tornou uma rocha, mesmo me
afundando na desgraça, fechando meus olhos para tudo o que acontecia, era
em você que me segurava.
— Mãe... — Murmuro, segurando meu choro.
— Quando você foi embora... quando descobri o que ele tinha feito
com você, meu mundo explodiu de ódio, porque o que aconteceu comigo, se
repetiu com você e eu não te protegi. — Ela balança a cabeça. — Eu tentei
matá-lo, Lauriana, queria tanto ter conseguido, mas me trancafiaram em um
presídio, não me ouviram e deixaram que James se livrasse. A cada dia,
supria ódio por ele, e o que me sustentava era a única certeza de que um dia
você voltaria, que estaria em meus braços de novo, meu pequeno milagre.
— Ele está morto, mãe... — Confesso. — James me achou, e teve o fim
que mereceu. — Ela fica me encarando.
— Morreu? — Assinto. — Como?
— Por um policial. — Mamãe fecha os olhos, comprimindo os lábios
como se estivesse aliviada.
— Quando você me ligou... — Ao voltar a abri-los, noto um desespero.
— Eu senti tanta saudade... me perdoa, filha, perdoa por não ter cuidado de
você... — Solto um soluço, assentindo, porque tudo o que eu quero, é deixar
essa dor para trás e ter minha mãe de volta.
Sem esperar por mais nenhum segundo, vou para seus braços, ela me
segura tão forte que é como se tudo o que passei apagasse da minha memória.
Nosso choro é intenso, minhas pernas fraquejam e nós duas sentamos
no chão, sem desgrudar, uma nos braços da outra. Seu cheiro... seu calor...
era tudo o que mais desejava.
— Eu esperei tanto por esse momento, — ela conta, me abraçando mais
forte — que acho que estou vivendo um sonho.
— Não é um sonho... você está aqui comigo... — Murmuro entre o
choro.
Sentindo seu cheiro, me dou conta do tamanho da saudade que tanto me
machucou por anos. Perdemos muito ao longo da nossa caminhada, fugi sem
dar um adeus, culpando-a muitas vezes pelo que James fez.
Agora é como um resgate da nossa história, ela sempre esteve presente
na minha mente. Sempre que deitava, era minha mãe que eu reencontrava nos
mais belos sonhos.
Talvez eu esteja apenas sonhando, porque é somente nele que eu podia
a ter... somente em meus sonhos que podia sentir mais do que um simples
toque, onde meu coração ligava ao seu.
— Eu te amo, mãe... muito... muito...
— E eu mais que minha própria vida! — Ela me afasta, segura meu
rosto e começa a depositar beijos carinhosos. — Você voltou para mim, é o
suficiente para me reviver.
— Nunca mais vou te deixar, mãe... — Digo, segurando seu rosto e
sentindo seu calor. — Eu senti saudades! — Ela sorri e me puxa de volta para
seus braços, me embalando como se nada pudesse nos separar.
Sinto a brisa morna nos aquecendo, levando o frio para longe. A alegria
suavemente solene retorna em meu coração. Depois de tudo o que passamos e
lutamos, chega o momento em que tudo é esclarecido, as coisas são
compreendidas e o passado esquecido.
James não está mais aqui, sua morte não só me libertou, mas a minha
mãe também, tornando mais fácil me entregar ao perdão e permitir que eu
volte ao meu lar, para os braços da mulher que mais amo na vida, devolvendo
minha luz e a minha mãe.
Meu coração aperta ao ver a foto de Laura e Lívia no aeroporto que
Olesya enviou, um reencontro de mãe e filha. Era tudo o que faltava para que
minha pequena flor se tornasse completa.
Uma emoção me abate, infelizmente não poderei viver esses momentos
ao seu lado, mas estarei presente em seu coração, e é tudo o que preciso para
me sentir em paz, como se minha missão fosse essa, salvar a mulher que amo
da escuridão. Estou lutando contra a dor de nunca mais poder encarar seus
olhos azuis, de sentir seu sabor e de nunca mais poder tocá-la. Não quero
voltar para escuridão, mas percebo que ela faz parte de mim, é tudo o que
sou.
Respiro fundo e encaro a casa que parece mais uma fortaleza enquanto
espero. Nikita através do comunicador instruí todos os seus homens a agirem.
— Está na hora. — Nikita comunica, respiro fundo eliminando
qualquer sentimento que me faça recuar, minha decisão já foi tomada. — Tu
tens pouco tempo até a SBU chegar. Entre, faça o que deve ser feito e saia o
mais rápido possível.
Solto um suspiro longo com o coração batendo mais rápido, vibrando
contra meu peito como um trovão.
Por anos eu tentei me livrar desse destino de merda, pedindo ajuda,
esperando alguém me tirar desse buraco, lutando para não me tornar um
animal sádico sem sentimentos, mas foi em vão, essa luta foi perdida, deixei
que o obscuro tomasse conta de mim.
Laura conseguiu que eu enxergasse através das sombras, me mostrou o
poder do amor. Não estarei ao seu lado, embora eu esteja inconformado com
esse destino, ela me deu força suficiente para que eu sobreviva no inferno
daquela prisão.
Não consigo escapar dele, agora esse inferno me pertence, faz parte de
mim.
Abro a porta, hesito por alguns instantes antes de descer do carro. O
barulho da luta e dos tiros aumentam, tenho muito pouco tempo.
Me inclino e prendo meus olhos nos de Nikita, eles estão ansiosos e ao
mesmo tempo calmos.
É a sua vingança e eu sou o meio para que isso se concretize.
— Tu estás se esquecendo disso. — Ele estende o capuz, nego com a
cabeça.
— Cumpra com a sua promessa. — Digo, me despedindo em silêncio.
— Não espere por mim! — Fecho a porta e saio andando.
— Ei! — Nikita me grita, paro e olho para trás. — Meus homens
estarão te esperando para te levar para longe daqui.
— Mande-os para casa. — Falo, ele fica me encarando. — Não irei
fugir.
— Não foi esse o combinado, garoto!
— Nem tudo é o que planejamos. — Nikita se afasta do carro,
franzindo a testa. — Obrigado por tudo o que fizeste por mim.
— Que isso... — Ele ri. — Vamos manter o plano.
— Quando eu entrar, voltarei para meu lugar... — Nikita vira o rosto ao
escutar ao longe o barulho das sirenes que não nos deram descanso.
Ele volta a me olhar, inquieto, como se lutasse contra si mesmo para
esquecermos toda essa história de vingança, porém não é apenas a sua, é a
minha também, porque o homem que está dentro daquela mansão, foi o
mesmo que me condenou.
Sorrio em despedida e sigo meu caminho.
Retiro a pistola das costas, certifico de que está carregada e entro na
mansão. O que irei fazer me condenará para sempre e isso destroça meu
coração, transformando meus sonhos de estar ao lado de Laura impossível.
Você me deve uma vida...
Ele a matou na minha frente...
Permito que a frieza me preencha, que o maníaco da rosa retorne.
Caminho pelos corredores e subo as escadas, tudo ao meu redor passa com
lentidão, homens sendo mortos e rendidos por bandidos de Nikita.
Tudo vira uma bagunça, explodindo aos poucos.
Paro em frente a porta do seu escritório, engatilho a arma e chuto-a, a
escancarando. Entro, percorrendo todo o lugar vazio, chego até a mesa e olho
para baixo.
Com dedo no gatilho, encaro seus olhos, aqueles que me condenaram
mesmo sabendo da minha inocência.
— Lembra de mim, juiz Adam? — Ele franze suas sobrancelhas
encolhido debaixo da mesa e com o rosto pálido. — Lembra daquele garoto
que ajoelhou aos pés pedindo ajuda para livrá-lo das acusações de
assassinato? Lembra de como o tratou?
Adam parece confuso, até encarar meus olhos com mais atenção. Sorrio
quando vejo em sua face o reconhecimento.
— Eu voltei, mas em nome de Nikita Ivashcenko. — Ele arregala os
olhos. — Venho cobrar a dívida.
— Não faça isso, sou um DE, tu irás apodrecer na cadeia. — Adam
diz, apavorado, o que desperta em mim a vontade de gargalhar.
— Não se preocupe, você já garantiu isso há catorze anos atrás.
Dentro da prisão vivi uma vida perigosa, me tornei um assassino,
aprendi a trancafiar meus sentimentos, a não ter misericórdia. Aprendi a ser
frio e a me pôr de pé, sempre correndo contra a maré.
— Ah, ele me pediu para dizer as seguintes palavras. — Aponto a arma
em sua cabeça, encarando o fundo de seus olhos. — Que você apodreça no
quinto dos infernos.
Me sinto imbatível, como fogo queimando tudo por onde passa. Eles
me transformaram nisso, estou aqui para tirar a vida do homem que me tirou
a liberdade.
Me inclino, puxo-o pelo colarinho e o coloco sentado em sua cadeira.
Dou dois passos para trás de costas para porta, esperando o momento certo,
encarando seus olhos apavorados, sentindo prazer do seu medo.
Adam implora para que o liberte, digo em um sussurro o nome de sua
filha, ele fica imóvel, ainda mais pálido que antes. Escuto passos e gritos de
ordens do andar de baixo.
Nada pode me parar hoje à noite, todos temos uma escolha, eu fiz a
minha, me transformei em uma tsunami deixando apenas destruição pelo
caminho.
Aperto o gatilho. O barulho do disparo se torna uma canção... um
rugido de vitória e de condenação.
— PARADO, AQUI É A POLÍCIA! — Fecho os olhos por um
segundo. — LARGUE A ARMA E LEVANTE AS MÃOS!
Adam inspira uma última vez, observo seus olhos perderem o brilho,
sangue escorre por sua testa. Levanto as mãos em rendição e solto a arma que
cai no chão.
— De joelhos com as mãos na nuca onde posso vê-las! — Faço como o
ordenado.
Escuto passos se aproximando, um dos policiais vestido de preto,
encapuzado e armado se aproxima de Adam, dando um sinal de que ele está
morto.
Um deles para à minha frente, levanto a cabeça quando aponta uma
pistola na minha testa. Ele retira o capuz e me encara com seus olhos frios.
— Ruslan Rotam, tu estás preso por assassinato. — Mirom declara. —
Tu tens o direito de permanecer calado ou tudo o que disser poderá ser usado
contra ti no tribunal.
Sorrio com suas palavras que selam meu destino.
Estou de volta com minha única companhia, a solidão. Passar os dias
trancado em uma cela, sem tv, apenas costurando para ganhar algumas
migalhas de dinheiro para comprar alguns livros nunca, foi tão tedioso como
agora.
As horas parecem mais longas que o normal, algumas vezes me
encontro agoniado, com pensamentos agitados com medo de um dia
adormecer e esquecer do seu rosto e de todos os momentos que me fazem
manter de pé.
Quando meus pensamentos me levam para um caminho sem saída,
prestes a desistir de tudo, é nela que me apego... é seu sorriso que me puxa
para superfície.
Olho as nuvens se amontoarem, o sol ainda não consegue aquecer meu
rosto, estou congelado, frio por dentro. Fomos destinados a não ficarmos
juntos.
Queria que tudo fosse diferente...
Coloco o antebraço sobre meus olhos, mergulho nas lembranças e me
direciono até Laura. Não quero desparecer, eu só quero poder voltar para seus
braços, sentir o calor de seu corpo e o sabor dos seus lábios.
Quero me sentir completo outra vez, a dor daquilo que não pudemos
viver me corrói, e atrás das grades vi o tempo passar, enquanto os dias se
tornaram meses, e os meses se tornaram um ano.
Como ela está agora?
Sinto saudades...
Meses depois de eu ter voltado, minha mãe foi condenada à prisão
perpétua, as acusações dos seus assassinatos contra mim foram retiradas,
diminuindo minha pena para quarenta anos de prisão.
Segundo eles, os assassinatos que cometi dentro da cadeia foram
cumpridos com os catorze anos que fiquei aqui, ou seja, esses quarenta anos é
pelo assassinato de Adam.
Sobressalto quando o guarda bate nas grades me chamando atenção.
— Seu tempo acabou, Ruslan, levante-se! — Com uma respiração
funda, me levanto do chão e vou até ele, virando de costas para poder me
algemar.
— Meia hora é pouco para meu banho de sol. — Reclamo, Volodymyr
segura meu braço e me guia pelos corredores.
— É o suficiente para você. — Retruca, carrancudo.
— Onde estamos indo, senhor? — Olho para ele que se mantém
impassível.
— Ande Ruslan, sem perguntas.
Sou levado até a sala do psicólogo, estranho porque não é o dia da
minha sessão... ou é?
Volodymyr abre a porta e me coloca sentado em frente à mesa de Olek,
que me encara por cima de seus óculos, recostado na cadeira e com as mãos
cruzadas, repousadas na sua grande barriga me avaliando minuciosamente.
— Boa tarde, Ruslan. Como estás? — Pergunta, fico olhando para seu
rosto rechonchudo, seus cabelos estão mais grisalhos do que da última vez
que o vi, mês passado.
Dou de ombros em resposta, me recostando na cadeira.
— Sua saúde está perfeita. — Ele aponta para os exames que fui
obrigado a fazer. — Gostaria de te colocar junto com outros detentos, viver
solitário não faz bem para sua mente.
— Não me dou bem com pessoas.
— Percebi isso quando esfaqueou Klim. — Abaixo a cabeça, sem me
importar com esse fato, porque o filho da puta me provocou durante dias até
eu não suportar mais. — Sua pena pode aumentar por tentativa de
assassinato, mal comportamento e pegaria mais alguns anos de prisão.
— Tu achas que tenho esperança de um dia sair daqui? — Pergunto,
erguendo a cabeça e fixando meu olhar no seu.
— A esperança só acaba quando seu coração para de bater. — Diz, se
inclinando sobre a mesa.
Arqueio uma sobrancelha, comprimo meus lábios e lanço um olhar
entediado em sua direção. Olek respira fundo e se levanta sem se abalar.
— Por que recusou todas as visitas, Ruslan? — Não respondo, começo
a balançar minha perna já irritado com suas perguntas. — E as cartas, porque
não leu?
— Não tenho interesse em saber o que está acontecendo lá fora.
— Medo de não poder mais suportar a solidão? — Ele para diante de
mim com um olhar avaliador. — De sentir vontade de sair daqui? De ser
livre?
— Sim — respondo, Olek assente.
— Não tiro sua razão, estar trancafiado aqui é realmente lamentável,
porém, cada um que está aqui fez alguma escolha errada. — Ele fica me
olhando por um longo tempo, tempo demais para me deixar incomodado.
Olek se afasta, saindo da sala sem dizer nenhuma palavra. O silêncio
toma conta, balanço a perna querendo voltar para minha cela.
Inclino a cabeça para trás, encaro o teto enquanto espero por Olek que
está demorando a voltar, instigando minha curiosidade. Percorro os olhos por
sua mesa e os prendo na pistola ao lado dos exames.
Talvez essa seja a única chance que terei para acabar com tudo. Que
diferença faz se eu morrer agora ou daqui a quarenta anos? Não sairei da
cadeia com vida mesmo, qual o sentido de continuar respirando?
Entretanto, dias antes da minha fuga, eu facilmente tomaria essa
decisão de acabar com tudo, assim como tentei inúmeras vezes, não teria
ninguém chorando por mim, ninguém se importava se eu estava morto ou
vivo, talvez a Olesya fosse a única a chorar por mim.
Então qual o sentido? Inclino-me um pouco, fitando a arma, me
relembrando do rosto de Laura, ela ficaria arrasada. Mas e se ela estiver
acorrentada a mim? Se mesmo eu estando aqui, esteja a impedindo de seguir
sua vida?
Qual o sentindo de permanecer vivo?
Inspiro fundo e fecho meus olhos, mantendo minha mente sã e
eliminando esses pensamentos que querem me levar a tomar uma decisão...
— Se matar seria um ato de covardia ou de coragem? — Meus
pensamentos congelam ao escutar sua voz. — Eu escolheria covardia! —
Escuto passos se aproximando, ele passa por mim e se senta no lugar de
Olek, relaxado enquanto me encara com seus olhos gélidos.
— Acredito que seja um ato de coragem, Mirom. — Ele sorri.
— Fugir de seus problemas nunca é a solução.
— Mas se livrar da dor que corrói, do tormento da nossa mente dia
após dia é algo que ninguém irá entender. — Digo, apontando para minha
cabeça. — Os pensamentos não se calam, as lembranças nunca vão embora,
são como demônios.
— Certo! — Ele ri, como se isso fosse piada, como se a minha dor
fosse piada.
— Tu queres isso, não quer? — Seu sorriso desaparece no momento
em que as palavras saem da minha boca. — Queres que tudo se cale, mas é
covarde demais, estou errado? — Mirom umedece os lábios e me olha,
esboçando aquele sorriso que desperta raiva em qualquer um.
— Tu estás deplorável! — Declara, recostando na cadeira e colocando
as pernas em cima da mesa, mudando completamente o rumo da conversa.
— O que faz aqui? — Pergunto, estreitando meus olhos.
— Uma visita de rotina, já que é difícil tu aceitares uma. — Ele fecha
os olhos com uma tranquilidade irritante.
— Pensei que nunca mais te veria, e aqui está, na minha frente.
— Nunca é tempo demais. — Responde, soltando um suspiro
impaciente.
— Desembucha logo, cacete! — Mirom ri, no instante seguinte, Olek
adentra na sala e coloca um documento à minha frente, sem dizer nada, ele se
retira, nos deixando sozinhos outra vez.
— Fiquei sabendo que tu esfaqueaste um detento e entrou em uma
briga com mais cinco. Tu és um perigo para sociedade. — Mirom me olha
com tédio.
— O que isso significa? — Aponto com o queixo o papel com uma
caneta em cima, os olhos de Mirom descem até ele.
— Tu já sabes quanto tempo está aqui?
— Quinze anos? — Mirom me lança um olhar frio. —
Aproximadamente um ano. — Respondo, ele assente.
— Pois bem, — Mirom arrasta as chaves da minha algema — essa é a
chave da sua liberdade. — Fico o encarando com o cenho franzido.
— Como dizes?
— Sua filha precisa de ti, e acredito que já tenha passado tempo demais
aqui dentro. — Fico o encarando, congelado. Suas palavras dançam em
minha mente como um emaranhado de linhas. — Esse documento é sua
liberdade, assim que tu assinares, é um homem livre.
Sua filha precisa de ti....
Sua filha...
Minha filha...
Fico sem reação quando as palavras se organizam em minha cabeça,
sinto choque percorrer meu corpo e se alojar em meu coração.
— Como... dizes? — Mirom sorri, se levanta e para atrás de mim.
— Infelizmente eu lutei durante todo esse tempo para tirá-lo daqui,
então me agradeça sem fazer perguntas de como consegui. Agora assina sua
liberdade e vá viver o que lhe foi tirado.
Pego a caneta assim que ele solta as algemas ainda abalado com suas
palavras. Fico encarando o alvará de soltura que me concede a liberdade que
tanto sonhei. Sem perder mais tempo, assino o documento e me levanto.
— O que quis dizer com filha? — Mirom fica me encarando.
— Não quis dizer nada, foi apenas para mexer com sua mente doente.
— Responde, se virando e indo até a porta. — Te espero na saída, tu ainda
precisas seguir o protocolo. — Falando isso, Mirom sai me deixando sozinho
totalmente atônico.
Depois de algumas horas torturantes, finalmente os portões são
abertos para que eu possa passar por eles. Meu coração bate acelerado
incapaz de acreditar que estou livre para sentir e viver aquilo que fui privado
por tantos anos.
Estou segurando minhas emoções, ainda achando que isso é uma
armadilha de Mirom. Fecho meus olhos, inspiro fundo e aperto minhas mãos,
segundos depois coloco os pés para fora do Colony 100.
Cruzo os portões, incrédulo. Viro para trás, encarando a construção que
por anos foi minha casa, me separando do mundo real.
Os portões se fecham, meu coração salta e meus olhos queimam de
emoção. Consigo sentir o peso da minha liberdade no bolso em um papel
delicado que se transformou em algo tão precioso que sou incapaz de
descrever o que estou sentindo.
Estou livre? Eu realmente estou livre?
Viro-me para frente, dando de cara com Nikita recostado em um carro
escuro com os braços cruzados, me encarando com um sorriso escancarado.
— Céus, tu estavas definhando dentro dessa merda! — Diz, estalando a
língua. — Bem vindo de volta, garoto! — Ele vem até mim, me puxando para
seus braços, retribuo sem palavras para expressar esse momento.
— Se tu fizeres merda, serei eu quem te colocará de volta atrás das
grades. — Olho para o lado assim que Nikita me solta.
Mirom está inclinado no seu jipe, fumando enquanto encara o presídio.
Ele me olha e sorri com sinceridade.
— Não cruza o meu caminho, não me procura, para você eu não existo.
— Diz, jogando o cigarro no chão e abrindo a porta, Mirom hesita por um
instante e me olha. — Bem vindo de volta, Ruslan! — Assinto em
agradecimento, ele me fita por mais alguns segundos antes de entrar em seu
carro e partir.
Volto a encarar o Colony 100, relembrando todos os anos em que vivi
aqui. Dos momentos de isolamento, das vezes em que me trancafiaram na
solitária, dos dias em que pensei que não teria mais força para suportar... Mas
sobrevivi a tudo isso, consegui provar minha inocência e além de tudo,
descobri a verdadeira felicidade, do poder de ser amado, de ser ouvido e
jamais esquecido.
Lágrimas escorrem por meu rosto. Entrei como um garoto e estou
saindo como um homem prestes a explorar o que o mundo tem a oferecer,
deixando todo o passado para trás.
— Onde queres que eu o leve? — Nikita pergunta ao meu lado,
encarando o presídio, sabendo perfeitamente que foi dentro desses portões
que perdi sonhos.
Fecho meus olhos e inspiro fundo com um único destino...
— Me leve para casa. — Respondo, sorrindo e ansioso para finalmente
ter a mulher que amo em meus braços para sempre.

A sensação de não ter para onde ir, de sofrer a vida toda em silêncio,
fugir de qualquer sentimento que ainda possa existir dentro de mim, era
como correntes presas em meus pulsos.
Meu nome é Lauriana Silva da Souza, fui abusada sexualmente pelo
meu padrasto dos meus sete anos até minha adolescência.
Na época, eu nem sabia direito o que era sexo. Ele vinha fazendo
aquilo comigo havia um tempo, e eu não entendia o que significava. Ele se
sentia dono do meu corpo. Me tocava, tirava minha roupa e depois de tanto
lutar, eu me encontrava completamente entregue às suas ameaças.
O desespero era vivo, pulsante e terrível. Depois do ato, enojada,
ficava horas no banho tentando me limpar, me sentia suja... Na frente dos
outros, meu padrasto agia como se nada tivesse acontecido, era um homem
bom, sorridente, com vários amigos, e dentro de casa, um verdadeiro
monstro.
O meio de sobrevivência que encontrei foi, justamente, me silenciar. Eu
não tinha coragem de falar, de alguma forma eu me sentia culpada e a
causadora da situação.
Sempre usava roupas largas para tentar esconder ao máximo meu
corpo, fazendo-me anular como pessoa, afastando quem pudesse querer
amizade. Porém, de uma coisa eu tinha certeza, seria os estudos que me
tirariam do inferno em que eu vivia. Essa era a minha única esperança.
O medo, a angústia e todo o nojo que sentia moldaram a mulher que
me tornei. As consequências do abuso sexual causaram uma ferida tão
grande, que só restou dor por ter sofrido em um período onde uma criança
só deveria brincar. Toda vez em que minha mãe saia, na calada da noite, ele
ia atrás de mim. Meu coração sufocava de pavor e a minha única reação
eram as lágrimas.
Era apavorante demais, ele ameaçava matar minha mãe se eu contasse
a alguém, toda vez que eu apresentava certa relutância contra os abusos, ele
a agredia fisicamente. Eu vivia no inferno, com um homem que prometeu
cuidar de mim como um pai e com uma mãe alcoólatra.
O abuso é real, muitas vezes existe dentro de casa. Dei sinal do que
estava acontecendo, mas ninguém prestou atenção. Eu apanhava, ele deixava
marcas internas, o ato era doloroso e quanto mais eu crescia, mas violento
ele ficava.
O ódio dentro de mim me fez reagir, tentei denunciar duas vezes, a
primeira me senti tão acuada que desisti. Na segunda, ele me encontrou
antes, pensei que nesse dia eu morreria. Então só tinha uma saída, estudar,
conseguir uma bolsa para fora do Brasil e fugir.
As marcas do abuso, com o passar do tempo, ficaram mais severas,
não suportava ser tocada, perdi a confiança no ser humano e me mantive
reclusa. Mesmo fazendo tratamento psicológico, eu ainda me via presa no
passado.
Mesmo me tratando, em minha cabeça, eu nunca conseguia superar.
Mas eu não desisti, eu queria tentar... eu merecia ser feliz depois de ter
percebido que não era a culpada pelos abusos, e sim, uma vítima.
Meu coração estava destroçado... despedaçado ao ponto de ninguém
ser capaz de consertá-lo, até que o amor invadiu minha casa, pedindo por
ajuda, seus olhos perturbados, pediam por socorro e eu permiti... permiti que
entrasse.
Esse amor foi a cura das minhas feridas, mostrou o quanto é bom ser
amada. Me tornei o centro do seu mundo, pude sorrir sem medo mesmo que
nosso tempo tenha sido pouco, ainda assim, foi o suficiente para eu me
redescobrir como mulher.
As marcas do abuso são como uma tatuagem, nunca serão apagadas,
estão impregnadas na alma. Sei que terão dias que serão mais difíceis, que
lágrimas irão escorrer por meu rosto pela inocência arrancada, pela
infância que não pude viver e da adolescência que nunca pude aproveitar.
Continuarei a não suportar ser tocada e a confiar menos nas pessoas, e isso
vai doer muito. Só que dessa vez, a dor será menor, as cicatrizes
permanecerão em meu coração e muitas vezes, elas serão as responsáveis
pelo retorno das minhas piores lembranças.
Mas, sobretudo, terei forças para continuar.
Demorou anos para que eu pudesse falar sobre o que me aconteceu. Às
vezes, me pergunto como seria minha vida sem que minha mãe tivesse o
levado para casa, se tivéssemos vivido apenas eu e ela em nosso mundo, ou
se ela tivesse acreditado em mim.
Perguntas que nunca saberei a resposta.
Mães, não coloquem qualquer homem dentro de casa, não deixem seus
filhos com qualquer pessoa, ou ir para qualquer lugar, sempre acreditem
neles. Quando uma criança relata algo grave, ela nunca está mentindo. Você
é o seu porto seguro, é tudo o que ela tem. Preste atenção em seu
comportamento, qualquer sinal, pode indicar que há algo errado. O abuso
existe e com ele vem grandes marcas das quais são incuráveis.
E para você, que assim como eu, foi abusada, te digo que há
esperança, podemos superar essa dor e com ajuda, podemos tornar essa
carga menor. Não temos culpa do mal que nos fizeram. Não se calem, não
permitam que te destruam dessa maneira, tenham coragem e denuncie.
Nós podemos ter um final feliz. Somos fortes e temos direito à justiça,
somos donas de nós mesmas e ninguém tem a permissão de nos tocar sem
nossa permissão. Juntas, somos capazes de vencer esse mal.
E como uma rosa solitária, desabrocharemos em um lugar cheio de
amor e carinho... tenha fé, acredite, o fardo é menor quando compartilhamos
com o outro... e quando menos esperar, um sorriso florescerá em seu rosto,
mostrando que um novo amanhã chegou.
Laura, colunista do Jornal AS – Kharkiv
Aperto o enter para enviar a matéria para Andry com meu rosto
molhado pelas lágrimas. Dói saber de tudo o que James tirou de mim, da vida
que eu poderia ter levado sem que ele tivesse entrado em nosso caminho e
destruído tudo.
Ainda tenho pesadelos a noite, mesmo tendo certeza de que está morto,
percorro a casa toda manhã em busca de algum intruso, sinto repulsa ao toque
e não consigo confiar muito nas pessoas, mantenho apenas meus amigos.
É algo que jamais superarei, porém, agora, é muito mais leve do que
antes, consigo manter minha mente controlada e com a ajuda de Olesya,
consigo seguir em frente.
Ruslan nunca saiu do meu coração e todas as noites chamo por ele.
Choro por ele e sorrio por ele. Tentei mandar cartas, visitá-lo, mas ele nunca
me recebeu. Entendo os motivos que o levaram a fazer isso, ele não quer que
eu fique presa a um homem que não tem nada a me oferecer, mas o que ele
não sabe, é que ele me deu tudo o que precisava.
Tenho fé de que um dia possamos ficar juntos, nem que seja um único
dia antes do meu coração parar de bater, por isso, todos os dias eu rezo para
que Deus possa trazê-lo de volta.
Tem dias que são mais difíceis que os outros, que a dor é mais intensa
comparada aos dias anteriores... dias que desejo me encolher em um canto e
ficar definhando até que tudo um dia silencie de vez.
O que me impede de recair nas profundezas, são seus olhos verdes
como água rasas e cristalinas de uma alma pura que simboliza vida.
Abaixo a cabeça e encaro seu rosto de anjo, bochechas rosadas e pele
de porcelana. Seu cheiro é o que mais me enche de amor, que me fortalece
dia após dia. Por ela eu me torno mais forte a cada dia, o melhor presente que
Ruslan poderia ter me dado.
Quando ouvi seu coração bater pela primeira vez, tudo dentro de mim
explodiu, a incerteza, a insegurança e a incredulidade me abateram. Não me
movi por dez minutos.
Naquele momento eu me tornei uma mãe... uma mulher gerando outra
vida, e aquele pequeno ser, precisava de mim, mais do que qualquer um nesse
mundo.
Eu me tornaria mãe solteira, como seria capaz de cuidar de uma criança
sozinha? Logo eu, quebrada de todas as formas, como poderia me tornar
mãe?
Mas então, percebi a dádiva que me foi dada. Ruslan se foi, mas não
me deixou sozinha, e quando me dei conta de que teria um filho, meu mundo
explodiu em rosas.
Percorro meus dedos por seu rosto delicado. Quando a tive em meus
braços logo que nasceu, não pude segurar minha emoção. Ela se tornou meu
tudo, o centro do meu mundo, minha vida, o ar que eu respiro, o coração que
pulsa dentro de mim.
Chorei por não ter Ruslan ao meu lado, ele merecia vivenciar aquela
felicidade, a maior do mundo, merecia estar lá comigo, ele merece uma
família que o ame.
Solto um longo suspiro, reprimindo a dor da saudade.
Violeta... pequena violeta... minha pequena flor.
Ela se remexe em meus braços, fico imóvel temendo que comece a
chorar, mas a única coisa que faz é segurar meu dedo com sua mão.
Rony pula em cima do sofá e se aproxima dela, ficando perto e a
encarando como se estivesse vendo a coisa mais linda do mundo. Ele se
tornou tão protetor, que quando alguém além de mim e da minha mãe chega
perto dela, ele rosna ao ponto de avançar na pessoa.
Gana e Yaroslav tiveram a prova do seu ciúme, tive que segurá-lo para
que não os machucassem. Passo a mão em seus pelos escuros como a noite,
tão lindo...
Olho para frente quando mamãe entra na sala com uma caneca. Ela
sorri para mim, estendendo o chocolate que preparou. Agradeço dando um
gole, a bebida desce aquecendo meu corpo.
— Quando você nasceu, me deu muito trabalho também. — Diz,
pegando Violeta dos meus braços. — Sentia muita cólica, mas o problema é
que não queria sair do meu colo.
— Que nem Violeta? — Estico meus braços dormentes, aliviando a dor
de ter ficado horas segurando-a.
— Sim, que nem essa pequena chiclete. — Sorrio, observando-as.
— Mãe? — Ela me olha. — Hoje faz um ano... — Murmuro,
encarando a caneca com meus olhos queimando. — Dói muito saber que... o
pai dela não está aqui com a gente.
— Filha... — Levanto o olhar, encarando-a através das lágrimas.
— Eu não consegui tirá-lo de lá mãe... — Fecho meus olhos,
lembrando de todos os advogados que busquei e que não tiveram sucesso. —
Seu silêncio me dói tanto que não consigo aceitar, entende? — Respiro
fundo, voltando a acariciar Rony deitado em meu colo como se
compartilhasse a mesma dor que a minha.
— Acho que nada acontece por acaso, sabe? No fundo tudo tem sua
hora, nem sempre nossos planos coincidem com o momento que pensamos
ser o certo, embora nós não entendemos. — Assinto, me levantando assim
que a campainha toca.
Abro a porta encontrando Yaroslav e Gana parados com braços
cruzados. Percorro meus olhos por suas roupas, arqueando uma sobrancelha e
escondendo a surpresa de ter esquecido do compromisso que tinha com eles.
— Meus Deus... — Sussurro, olhando para minha mãe em busca de
uma saída, ela apena dá de ombros. — Perdoem-me! — Digo, voltando a
encará-los.
— Tu esqueceste? — Gana cruza os braços. — Yaroslav, é realmente
isso?
— Acho! — Ele responde, balançando a cabeça em reprovação.
— Violeta passou a noite em claro e o dia todo com cólica, estou um
caco. — Choramingo, me afastando para que eles entrem.
— Pois bem, Laura, te darei trinta minutos. — Diz, indo até minha
filha, Rony rosna para ela. — Mas que cacete, esse gato tá de brincadeira né?
— Ela se afasta assim que ele desce do sofá.
— Não se preocupe, ele me odeia também. — Yaroslav resmunga se
encolhendo.
— Rony é ciumento com Violeta. — Falo, colocando a caneca em cima
da mesa. — Será que posso remarcar o compromisso? — Gana me lança um
olhar indignado, sorrio sem graça.
— Nem morta. — Fala, apontando para as escadas. — Trinta minutos.
— Uma hora, porque tenho que arrumar Violeta também. — Pego
minha pequena dos braços da minha mãe.
— Ótimo! — Yaroslav se senta no sofá, olho para eles mais uma vez
antes de virar e subir os degraus.
— Dona Lívia, a senhora também. — Gana fala com calma para que
minha mãe possa entender, apesar de ter aprendido um pouco do Ucraniano,
ela ainda tem muita dificuldade de compreender muitas palavras, até porque,
não é uma língua fácil de aprender.
Um ano atrás, antes de Ruslan voltar para cadeia, ele me deixou esse
apartamento e quando o visitei pela primeira vez, fiquei admirada ao perceber
que é uma cobertura, muito luxuosa.
Uma hora depois dirijo em direção à Praça da Liberdade para uma
exposição de flores que Gana e Yaroslav insistiram que eu fosse.
Ajeito minha pequena no carrinho de bebê, cobrindo-a para que não
passe frio e olho para a praça enfeitada com luzes, flores de todas as espécies,
rosas de todas as cores e crianças correndo por todos os lados.
Meu coração aperta, Ruslan iria gostar de vir aqui, esse é seu mundo.
Gana e Yaroslav engatam em uma conversa, eu respondo o essencial,
prestando atenção em cada detalhe. Paro em frente à uma barraca
completamente enfeitada com rosas vermelhas, tão perfeita que meus olhos
marejam, pisco para dissipar as lágrimas da saudade.
Uma babushka com um lenço na cabeça vestida com roupas bordadas
me olha de dentro da barraca, sustento seu olhar que desce para minha filha
dentro do carrinho.
— Não se entristeça, ainda não é o fim. — Diz, me entregando uma
rosa com um sorriso lindo. — Não duvide do poder de Deus, criança. —
Aceito a rosa e saio andando com meu coração palpitando.
— Tudo bem, filha? — Mamãe pergunta ao meu lado, assinto e sorrio
para tranquilizá-la.
Paro para observar Yaroslav e Gana em uma barraca de flores violeta,
olhando para mim com sorrisos escancarados.
— Tu deste um nome perfeito a essa pequena. Olha que lindas! —
Gana ergue um vaso com violetas escuras com detalhes mais claros. — Eu
vou levar. — Ela diz, entregando para a babushka que agradece pela compra.
— Laura, venha aqui, precisas ver isto! — Yaroslav me grita, olho para
Violeta que remexe suas perninhas.
— Vá, eu fico aqui com ela. — Mamãe diz, assinto e vou até Yaroslav
desviando das pessoas pelo caminho.
— Estou embasbacado! — Sigo seu olhar ao parar ao seu lado, diante
de nós há uma barraca de margaridas das cores rosa, amarela e branca, meus
olhos brilham de tamanha perfeição.
— Magnífico! — Elogio, Yaroslav confirma.
— Vamos tirar foto da Violeta aqui, vai ficar linda, o que acha? —
Olho para ele, sorrindo.
— Uma flor em volta de várias outras, assim meu coração de mãe não
aguenta. — Ele ri. — Vou pegá-la!
— Vou esperar, porque vai que é só uma miragem?
— Claro que não, Yaroslav! — Repreendo batendo a rosa em seu nariz.
Quando viro para ir até Violeta, paraliso ao ver um homem agachado
em frente ao seu carrinho. Meu sangue gela, olho para os lados em busca da
minha mãe e de Gana.
Como minha mãe pôde deixar minha filha com uma pessoa
desconhecida?
Engulo meu medo e dou um passo à frente, pronta para afastá-lo da
minha bebê, mas então paro outra vez, congelando quando ele se levanta e se
vira, cravando seus olhos nos meus.
Não consigo ver seu rosto por conta do capuz, minhas mãos começam a
tremer e meus olhos se enchem de lágrimas observando-o tirá-lo, tudo ao
meu redor se silencia.
Durante um ano lutei para tê-lo de volta, fiz de tudo para que a
esperança não desaparecesse, que os pensamentos que insistiam em dizer que
ele não voltaria me libertasse... que me deixasse.
Não fui capaz de aceitar seu adeus, tenho o direito de tê-lo ao meu lado
depois de tudo o que passamos, de lutar para que isso aconteça, porque eu sei
que no fim valerá a pena, que a dor que sinto desaparecerá.
Muitas noites longas, deixaram-me sem forças para continuar. E através
dos sonhos eu via seu rosto, me devolvendo a esperança e me dando motivos
para continuar.
Será que é mais um sonho?
Dou um passo vacilante em sua direção, incapaz de dizer qualquer
coisa, não tenho palavras.
— Te encontrei... — Ruslan diz, fecho meus olhos sentindo sua voz
percorrer cada parte do meu corpo, se alojando em meu coração.
Se for um sonho, por favor, que seja eterno.
Volto a abri-los, percebendo o quanto está perto com o olhar fixo no
meu. Tenho tantas perguntas, mas só quero ter certeza de que ele realmente
está aqui.
Abro a boca para perguntar, mas Ruslan me cala ao segurar minha nuca
e levar-me para seus lábios. Meu coração explode ao sentir seu calor e seu
sabor, seguro seu rosto beijando-o como se nada no mundo fosse capaz de
nos separar outra vez.
A maneira com que me beija, com que me segura me tira todas as
dúvidas de que possa ser um sonho, é real, ele está aqui comigo e toda essa
luta termina aqui, vencemos o que tendia a nos separar.
Ruslan desvencilha dos meus lábios, encostando a testa na minha, sua
respiração acelerada se mistura com a minha. Fecho meus olhos,
memorizando seu toque.
— Você voltou...
— Te encontrar era minha missão, meu destino é pertencer a você. —
Mordo meu lábio inferior, segurando o choro.
— Senti tanta saudade... — Olho para seus olhos verdes que foram
capazes de me salvar da solidão.
— Eu também, estava definhando... — Murmura, segurando meu rosto
e afastando meus cabelos. — Sou um homem morto sem ti, Laura.
— Você permaneceu em meus sonhos, no meu sorriso e na certeza de
que um dia iriamos ficar juntos. — Limpo suas lágrimas. — Você está livre?
— Sim...
— Co-omo? — Ele sorri, entrelaçando os braços por minha cintura.
— Mirom... só não me pergunte como, não faço ideia. — Fico olhando
para Ruslan.
— Ela é a sua cara... — Seus olhos brilham. — Violeta... pequena
Violeta... sua pequena flor... — Ruslan solta uma risada tão linda que
lágrimas caem por meus olhos.
— Minha filha... nossa pequena? — Pergunta sem acreditar, assinto, o
empurrando em direção ao carrinho, ele se vira e agacha, afastando os
cobertores para poder ver melhor sua filha.
— Quando Mirom disse que eu tinha uma filha, tudo se calou, depois o
babaca disse que tinha mentido. — Ruslan a pega e eu o ajudo a segurá-la da
forma correta, ele ri através do choro. — Nikita confirmou, eu... eu não sei o
que sentir, é uma emoção tão grande que não sei se cabe em meu coração.
— Esse amor não tem explicação... — Digo, ele me encara com Violeta
em seus braços.
— Eu estive me perguntando por muito tempo o significado de tudo o
que estava acontecendo comigo, tentando entender meu destino, mas agora
acredito que tudo aconteceu para que meu caminho cruzasse com o seu... com
um propósito. — Ruslan se aproxima, fitando o fundo dos meus olhos. —
Propósito esse de te devolver a vida. — Sorrio.
— Quando você invadiu minha casa, Ruslan, no instante em que tomei
a decisão em te ajudar, esse foi o momento em que nosso destino foi traçado.
— Ele fica me olhando, até ser atraído para Violeta que remexe em seus
braços, prestes a chorar.
— Ei, é o papai! — Ruslan sussurra, lavando-a para o seu peito. —
Estou aqui, pequena flor, para te proteger de todo mal... — Sorrio,
emocionada e sem acreditar que isso está acontecendo. — Eu daria minha
alma para voltar atrás... — Ele fala, voltando a me olhar. — Reviveria tudo
outra vez se significasse te salvar da escuridão. Eu voltaria e então você
estaria em meu caminho de novo.
— Eu te amo... — Murmuro, encostando a testa na sua.
— Obrigado... Obrigado por me fazer o homem mais feliz do mundo,
amo-te. — Ruslan roça os lábios nos meus, Violeta solta um suspiro, nos
fazendo sorrir.
Vivemos por anos na dor, tivemos nossas almas quebradas e nos
decepcionamos, vimos o horror no inferno de nossas vidas, mas conseguimos
vencer o mal que nos torturava.
As cicatrizes permanecerão como lembranças, tudo acabou, chega de
lágrimas, estamos juntos agora. Ruslan está aqui, com a família que formou e
nada no mundo será capaz de nos separar.

Ele se inclina e deposita um beijo na cabeça de

Violeta, me olhando logo em seguida. Vejo em seus olhos tudo o que tivemos

que passar até chegar aqui, e esse não é o nosso fim, mas o começo de uma
nova história.
Escrever esse livro foi um desafio tratando de um tema tão delicado,
Laura e Ruslan me tocaram de uma forma tão única que nem sei explicar. Me
deram uma lição de força e superação, me levando muitas vezes aos prantos,
sem conseguir me pôr no lugar dos dois.
E nada disso teria acontecido sem a ajuda da Carina Barreira, que a
cada capítulo vibrava, me incentivava, apontava os erros e onde eu deveria
consertar. O final foi reescrito umas três vezes até acertarmos o desfecho
perfeito para o vilão.
Obrigada amiga, por estar comigo em mais uma obra, nada disso seria
possível sem sua ajuda, sem seus e-mails de madrugada e sem seus puxões de
orelha.
Outra pessoa que devo meus agradecimentos é a Mariana, minha
amiga, que me escutou quando decidi escrever Intensa Paixão, ouvindo
minhas ideias, me ajudando a encontrar o vilão, me incentivando e
motivando.
Mariana, nada disso teria acontecido sem ter você ao meu lado também,
obrigada por tudo.
Carina e Mariana, eu amo muito vocês.
Agradeço a Deus por tudo o que está fazendo em minha vida, por ter
me ajudado a criar essa história, tentando ao máximo trazer uma trajetória
tocante, poética e que desse significado. Era ele que eu pedia para ficar ao
meu lado todos os dias, às 03:00 da manhã quando começava a escrever,
juntos criamos a história de Laura e Ruslan. Pai, obrigada por estar ao meu
lado, escutar minhas reclamações, sei que às vezes até revirava os olhos para
os meus dramas, por enxugar minhas lágrimas, mas sobretudo, por estar
sempre me ajudando a levantar e superar meus medos.
Agradeço à minha família, namorado, meus irmãos, meus pais por
sempre me apoiarem. Aos meus leitores fiéis, aos bookstagram por
resenharem minhas obras e por ajudarem divulgando para que mais pessoas
possam conhecer minhas histórias. Aos leitores do wattpad que me
incentivam sempre com seus votos, leituras e comentários, e a você que leu
Intensa Paixão e que está lendo esse agradecimento.
"Viva, pequena flor, como se fosse o último dia.
Floresça e seja um jardim eterno...”
E com essas palavras me despeço de você com meu coração repleto de
gratidão.
... É acreditando nas rosas que a fazemos desabrochar, acredite em você e desabroche...
Até o próximo!
[1]
Aciaria é a unidade de uma usina siderúrgica onde existem máquinas e equipamentos
voltados para o processo de transformar o ferro gusa em diferentes tipos de aço.
[2]
Moeda Ucraniana
[3]
Casa noturna
[4]
SBU – Serviço de segurança da Ucrânia – é a principal agencia de segurança do governo nas
áreas de atividade contra espionagem e combate ao terrorismo.

[5]
Borsch é uma “sopa” de vegetais de beterraba como ingrediente principal. Os Ucranianos
não se referem a borsch apenas como sopa, mas como uma das mais importantes entre as refeições.
[6]
Kompot é uma bebida não alcoólica originária da Rússia, mas popular na Europa de Leste,
que se prepara cozendo frutos, frescos ou secos, em um grande volume de água.
[7]
É um bolinho de massa feita de água, sal e trigo, recheado com carne, purê de batata e
muitos outros. É um prato muito comum no dia a dia Ucraniano

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