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Capa: xmagnifiquedesignx
Imagens usadas: pt.pngtree
Revisão: Carina Barreira
Diagramação: Jenniffer Alves
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
desta obra através de qualquer meio — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei no
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Todos os direitos reservados.
Edição Digital | Criado no Brasil.
Uma obra de Jenniffer Alves
Será que o AMOR é capaz de curar uma mente atormentada pela injustiça?
Duas almas quebradas se conectam com apenas um olhar. Ela do lado de fora e ele do outro lado
das grades. O que poderia ser impossível, se torna possível, quando novos sentimentos pulsam de
corações traumatizados.
Laura esconde muito mais do que deixa transparecer. Reclusa sem suportar ser tocada, vive sua
vida entre lutas e recaídas, com a esperança de que um dia possa se tornar uma pessoa normal. Tudo
muda quando é designada a fazer uma entrevista com o criminoso mais perigoso da Ucrânia.
Nada daria errado, afinal, ele estaria do outro lado, sem poder tocá-la e com um vidro separando
dois mundos completamente diferentes. Mas ao encarar seus olhos, algo dentro de si muda.
Ruslan Rotam, preso aos 18 anos por uma série de assassinatos carrega consigo muitos segredos e
após 14 anos surge a primeira oportunidade de fuga. Só há uma única pessoa que ele acredita ser capaz
de ajudá-lo.
Duas vidas marcadas pela maldade. Duas almas solitárias. Um amor capaz de superar qualquer
trauma é forte o bastante para suportar uma série de assassinatos que tem como culpado a única pessoa
que ultrapassou as barreiras impostas por um coração dilacerado?
AVISO: Esse livro pode despertar gatilhos emocionais
Sinopse
Nota da Autora
Aviso
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Epílogo
Agradecimentos
Talvez você goste
Dedico esse livro a todas as mulheres que tiveram seu coração e alma
dilacerada, mas que assim como a Laura, floresceram como uma rosa,
superando o insuperável e buscando seu final feliz.
Intensa Paixão é uma história que despertará em você uma dor no
coração, onde encontraremos dois personagens traumatizados por seu
passado, ambos carregam as consequências de abusos e agressões. Então
esteja preparado para lágrimas, indignação e raiva, mas além de tudo, esteja
preparado para se apaixonar e se emocionar pela força de cada um, pela
determinação e paixão de ambos.
Intensa Paixão é um livro delicado, algumas cenas poderão despertar
gatilhos emocionais, principalmente em mulheres que passou pelo que Laura
passou, mas narrado de forma cautelosa e cuidadosa.
Essa história se passará em Kharkiv cidade da Ucrânia. Tentei trazer o
máximo de representatividade, citando aspectos culturais, e alguns detalhes
para que você mergulhe nessa trama.
Outro ponto a destacar, é que você encontrará muito “estás” “soa-te
bem” “como dizes?”. E muitas outras por se tratar de uma expressão
linguística e por Laura e nós sermos brasileiros, quis dar um pouco de
sotaque para os ucranianos.
Espero que goste da leitura, se emocione e que no fim leve com você
uma grande lição.
Lembre-se, esse livro é uma obra ficção e abordará abuso tanto sexual,
quanto psicológico, se por ventura sentir incômodo com alguns relatos – que
por sinal são inspirados em muitos fatos reais – pare a leitura ou pule as
lembranças.
Quero salientar que por mais que seja lindo – que para mim foi uma
loucura - a atitude da Laura, não faça isso na vida real. Existe maldade por
todos os lados, inclusive poderá bater na sua porta e não virá como Ruslan de
olhos verdes penetrantes. Sua vida é mais importante que qualquer fetiche
literário.
Aprecie a leitura com moderação, okay?
Um beijo e boa leitura!
Acordo assustada e suada depois de mais um pesadelo, a cada dia que
passa, mais recorrentes eles se tornam. Olho para o lado quando o
despertador toca, são cinco da manhã, e está um frio de -11ºC. Me aconchego
debaixo das cobertas querendo permanecer no meu pequeno apartamento, o
que é impossível quando tenho que trabalhar.
Solto um suspiro e me levanto, sentindo os pelos dos meus braços
eriçarem. Ando na escuridão até achar o receptor da luz e a ligo. Engulo em
seco antes de me virar e olhar pelo cômodo. Fecho as mãos em punho quando
meus batimentos aceleram enquanto caminho pelo apartamento, certifico-me
de que não há ninguém. Ao me sentir segura, ligo a tv e vou me arrumar para
o trabalho de logo mais.
Todos os dias sigo a mesma rotina – acordo, ligo todas as luzes, deixo a
tv falando sozinha e vou me arrumar – às vezes me sinto patética por fazer
isso, mas enquanto não tenho a certeza de que estou sozinha, não consigo
fazer nada. São anos com os mesmos tormentos, o medo parece aumentar de
tamanho conforme o tempo se passa e meus pesadelos me torturam de
maneira insuportável.
Apanho minha bolsa depois de estar pronta e olho para tv, o jornal AS
da manhã - o mesmo em que trabalho - está falando sobre a crise econômica
em que estamos passando. Por esse motivo, Kharkiv sofre pelo crescimento
da criminalidade por conta da pobreza e falta de oportunidades. Pessoas cada
vez mais jovens se tornam bandidos e traficantes, o único jeito que encontram
de ganhar dinheiro.
Sobressalto de susto ao escutar um estrondo de porta batendo, gritos
vem logo em seguida, meu vizinho bêbado acabou de chegar em casa depois
de uma longa noite de bebedeira e não foi muito bem recebido pela esposa.
Paro de prestar atenção na briga e volto para tv, que agora fala sobre o
presídio Colony 100, um lugar para criminosos de alta periculosidade e
reincidentes.
Sem querer mais ver, troco de canal deixando no de desenhos animados
e saio de casa, trancando todas as janelas e a porta. A tv permanece ligada,
olho pelo corredor vazio e escuro, aqui vivem pessoas de classe baixa, por
isso é normal esbarrar com bêbados, ladrões e até mesmo prostitutas.
Infelizmente foi o único lugar que encontrei onde meu salário de colunista
consegue cobrir.
Coloco as mãos nos bolsos do casaco e saio do prédio, a estrutura é
muito antiga, dando um ar estranho devido à falta de manutenção. O vento
gelado bate em meu rosto, estremeço de frio. O céu está nublado e garoa,
deixando o ar úmido e nada atrativo.
Um carro estaciona rente à calçada, analiso com atenção, achando
estranho um veículo de luxo em um lugar tão pobre. Balanço a cabeça
quando a motorista desce e me olha com um sorriso escancarado.
— Tu gostaste? — Pergunta, se aproximando.
— É seu? — Arqueio uma sobrancelha, Gana ergue as mãos e gira,
rindo.
— Eu ganhei! — Seus olhos astutos me encaram, brilhantes.
— Sério?
— Creio que sim... — Ela franze a testa, se divertindo com minha
incredulidade. Meus olhos descem por seu corpo curvilíneo, e me pergunto
como ela consegue usar essas “minis” roupas em um frio insuportável.
— Me conte a história — peço, ela tira seus cabelos avermelhados do
rosto e coloca as mãos no peito.
— Sabes o quanto sou esforçada, certo? Pois bem, há mais ou menos
uns dois meses venho investindo em um cliente rico, ele gostou dos meus
serviços e começou a me presentear, até que ontem apareceu com esse carro.
— Ele te deu? — Gana assente, cheia de entusiasmo.
— O que achas? — Analiso o Audi A3 de luxo prata.
— Bonito, mas... não é perigoso deixá-lo aqui? — Ela comprime os
lábios, olhando desanimada para seu carro. — Não temos garagem e... se
você vender, poderá encontrar um lugar melhor para morar.
— Tu queres que eu venda o xoxo? — Seus olhos esbugalham, dou de
ombros, porque é uma opção a se pensar, pelo menos eu faria isso.
— Creio que nomeou o carro de xoxo, então não pretende vender?
— Não pensei nisto — diz um pouco decepcionada. — É meu primeiro
carro...
— Ele te deu os documentos? — Gana inclina a cabeça para o lado,
seus olhos claros se fixam nos meus.
— Não, achas que é necessário? — Faço uma careta, não sei porque
ainda me surpreendo com a ingenuidade de Gana, coloco sempre a culpa na
falta de estudos e da pobreza que a levou a se prostituir.
— Como vai provar que o carro é seu?
— Acho que deixei esse detalhe passar.
— Se seu cliente te deu esse carro de verdade, ele deve te entregar os
documentos em seu nome, provando que é proprietária do veículo, ou então
quando menos esperar, ele irá tomar seu carro e você não poderá fazer nada.
— Ajeito minha boina, sentindo raiva de ver Gana ser enganada outra vez.
— Oh, é muita informação, mas não te preocupes, Yevhen não faria
isso comigo.
— Tem certeza?
— Sim! — Gana sorri e estende a chave. — Passarei o dia dormindo,
não poderei vigiar o carro enquanto ficar aqui fora, por isso quero que tu o
leve contigo, assim poderei ficar tranquila. — Ergo as sobrancelhas. —
Confio-te, somos amigas.
— Okay! — Pego a chave com a mão enluvada, Gana solta um pulinho
animado, fazendo barulho com seu salto alto.
— Sei que xoxo estará protegido no estacionamento do jornal, confio
em ti também. — Assinto de leve. — Adeus Laura, bom trabalho.
— Descansa — me despeço, assistindo-a andar em direção ao nosso
prédio, a polpa da sua bunda está exposta, já que seu short é um cinto e não
consegue cobrir.
Volto a olhar para o carro um pouco alegre por me livrar da
superlotação dos ônibus, é sempre exaustivo. Me acomodo no banco, ligo o
ar quentinho e suspiro.
Conheço Gana desde que me mudei, acho que sou a única que
conversou com ela sem a julgar. As moradoras daqui não gostam nem um
pouco dela, primeiro por ser muito linda, e segundo por ser prostituta.
Acreditam que Gana é um perigo para seus maridos, apesar de ela nunca ter
paquerado nenhum dos moradores, receio fica impregnado cada vez que o
nome dela é citado.
Nossa amizade cresceu de forma natural, Gana respeitando meu espaço,
sabendo que nunca poderá chegar tão perto, e eu sua escolha de vida. Cada
uma de nós tem um passado que nos assombra, deixando os outros verem
apenas o que queremos. Por esse motivo que acredito que houve essa ligação
entre nós.
Estaciono o xoxo numa das vagas, inspiro fundo criando coragem para
enfrentar o frio e saio do carro, ando apressada em direção ao prédio da AS
jornalismo.
Dou bom dia ao segurança e entro no elevador, alguns dos meus
colegas de trabalho entram comigo, aceno com a cabeça de leve por não ser
muito íntima deles. Quando chego na minha cabine, tiro meu casaco, luvas e
a boina, ligo o computador e olho em volta.
— Estás bem? — Encaro Aksinya, que acabou de chegar.
— Estou e você?
— Parece que não descansei nada, sinto-me esgotada. — Reclama. —
Você terminou seu artigo?
— Quase!
— Pareceste eu... — Murmura, se jogando na cadeira. — Andry
deveria nos dar um aumento, somos escravas deste lugar.
— Sabes que este é um pedido em vão. — Yaroslav se intromete
quando chega, seus olhos escuros se encontram com os meus. — Andry
prefere morrer do que nos dar aumento.
— Somos escravos... — Ela choraminga, ligando seu computador,
Yaroslav ri baixinho, indo para seu lugar de trabalho.
— Não posso reclamar, poderia estar pior. — Digo, borrifando álcool
na minha mesa.
— Ou estaríamos melhores. — Retruca Justik, meu colega de cabine.
— Bom dia Justik, espero que tenhas aproveitado tua festa. — Alfineta
Aksinya, lançando um olhar nada amigável em sua direção.
— Festa? — Justik se faz de desentendido, ignorando-a. Balanço a
cabeça, esses dois ficam o tempo todo se cutucando, só estão em paz quando
a boca de ambos está grudada uma na outra.
— E lá vamos nós! — Resmunga Yaroslav, olho para ele e reviro os
olhos, ele retribui o gesto com diversão.
Me desligo total quando foco em terminar o artigo sobre a mais nova
marca de cosméticos que chegou na Ucrânia. Escrever é uma das minhas
paixões, a sensação de estar colocando as palavras no papel é gratificante, me
ajuda a esquecer do mundo lá fora e dos meus tormentos.
— Laura? — Ergo meus olhos. — Pode ajudar-me? — Os cabelos
loiros de Aksinya estão presos em um coque bagunçado, seu rosto está um
pouco contorcido de frustração.
— Com o quê?
— Com meu artigo, você leria para dizer-me se está aceitável?
— Me envie, Aksinya! — Sorrindo, ela volta ao seu trabalho, recebo
seu e-mail e começo a analisar seu artigo, que por sinal está maravilhoso ao
relatar com perfeição a negligência que os asilos estão sofrendo. Foram dias
de árdua pesquisa, coletando informações para chegar ao máximo de
perfeição.
— Como estás? — Pergunta Justik, por cima da minha cabine.
— Ótimo como sempre. — Respondo, erguendo o polegar em sinal de
positivo para ela.
— Hum... — Murmura, voltando para seu lugar.
— Obrigada, Laura! — Ela agradece, olho para minha mesa e encaro a
foto da minha mãe, meu peito aperta de saudades, queria poder estar ao seu
lado agora, lhe abraçando.
Muitas vezes ao longo de todos os dias me pergunto o que eu fiz de
errado, ela deveria estar ao meu lado, afinal, sou sua filha, mas não foi bem
assim. Ela preferiu viver no inferno, se iludindo com a mentira e colocando
toda a culpa em mim. Eu queria apenas que ela me defendesse, me
protegesse, evitando que minha inocência fosse arrancada de forma
monstruosa.
Limpo a garganta, evitando que as emoções tomem conta de mim, não
sou mais aquela menininha de antes, agora sou uma mulher e capaz de fazer
minhas próprias escolhas, sejam as mais duras. Sou dona de mim e nada me
fará mal, a não ser ele...
— Laura? — Sobressalto ao ser arrancada do devaneio. — Andry
deseja vê-la. — Informa Ekaterina, secretária do meu chefe, assinto já me
levantando.
— Boa sorte! — Yaroslav deseja, nunca é bom ser chamado por ele,
pois quando não é bronca, é mais trabalho.
Ekaterina abre a porta para mim, entro no escritório um pouco nervosa
e me sento na cadeira à sua frente. Andrey, um homem alto, pouco acima do
peso e olhos escuros, me encara com cuidado, avaliando-me com atenção.
Ele coloca as mãos entrelaçadas em cima da mesa de forma tranquila,
deixando-me mais nervosa.
— Laura, precisarei de você. — Como disse, vir aqui é sair
sobrecarregado de mais trabalho. — Zhdana teve que se ausentar, acabou
deixando seu trabalho pela metade e como você é uma das melhores
colunistas website que tenho, escolhi você para substituí-la.
— Posso recusar? — Ele fica me encarando sem dizer nada por alguns
segundos.
— Se quiser ser demitida, acredito que sim. — Aperto meus lábios e
assinto.
— Como será?
— Zhdana conseguiu uma entrevista exclusiva no Colony 100. —
Enrijeço. — Ela iria entrevistar Ruslan Rotam, parte do artigo dela está
pronto e assim você saberá o que deverá ser feito.
— Quem é Ruslan Rotam? Um dos guardas do presídio? — Pergunto,
nervosa.
Andry fica me olhando, começo a balançar minha perna esquerda, seu
olhar me diz que não é um guarda, que é um homem muito além disso, meu
medo se torna realidade quando meu chefe revela a verdade.
— Ruslan Rotam é considerado um serial Killer, Laura. — Choque
espalha por meu corpo, não irei conseguir fazer essa entrevista, não quando
tenho medo de... — O que há de errado? — Andry pergunta, mas não consigo
me mexer. — Laura?
— É... — Limpo a garganta, tentando controlar meus nervos. — Eu não
posso...
— Não te preocupes, ao seu lado estará os guardas, ele não lhe fará
mal.
— Não é isso... — Umedeço os lábios, penteio meus cabelos castanhos
e desvio do olhar preocupado do meu chefe.
— A entrevista é amanhã, sei que é fora da sua zona de conforto, mas
será uma experiência nova. — Ele coloca um pen drive em cima da mesa. —
Aqui estão todas as informações que necessitas, confio em ti.
— Certo! — Murmuro sem dizer mais nada, pego o maldito pen drive
com as mãos trêmulas e saio. Preciso desse emprego e sei o quanto Andry
pode ser frio ao decidir que não quer mais alguém trabalhando com ele.
Vou direto para o banheiro, jogo água em meu rosto me acalmando...
me controlando. Só de imaginar aqueles guardas me olhando, aqueles
detentos esfomeados por carne nova... estremeço, limpando minha mente
dessas imagens sujas que me assombram.
Me encaro através do espelho, meus olhos azuis estão espantados, estou
pálida e apavorada, não sei se terei coragem de enfrentar algo assim, sei que
alguma coisa vai acontecer, não é de hoje que tenho esse pressentimento.
Algo ruim se aproxima, estou com medo e sozinha, não sei se serei capaz de
lidar com tudo mais uma vez.
Fecho meus olhos, inspiro fundo acalmando as batidas incontroladas do
meu coração, tentando colocar meus sentimentos em ordem. Preciso me
preparar para o que vier, sei que serei capaz de enfrentar mais esse
obstáculo... Sou forte, independente do que tenha passado, eu vou conseguir
vencer mais esse desafio que colocará à prova as muralhas que construí a
minha volta.
Volto para minha cabine depois de meia hora tentando me acalmar,
meus batimentos continuam acelerados e minhas mãos geladas. Pela forma
que meus colegas estão me olhando, é provável que eu esteja pálida também.
— Estás bem? — Pergunta Aksinya com a testa franzida.
— Sim. — Respondo me sentando e encarando o pen drive.
— Não é o que parece. — Olho para Justik. — Chefe lhe deu mais
trabalho?
— Andry me deu o artigo da Zhdana, disse que ela teve que se
ausentar.
— Creio que tenha sido demitida. — Yaroslav fala, enrugo meus
lábios.
— Mas qual será a reportagem que tu deves fazer? — Aksinya cruza os
braços, curiosa para saber.
— Entrevistar Ruslan Rotam. — Eles ficam mudos, assombro transluz
seus olhos, acho engraçado a reação deles.
— Sério? — Assinto para Justik, ele passa as mãos em seus cabelos
loiros.
— Pelo visto vocês sabem quem é.
— Sem dúvidas! — Murmura Akinya, rodando a caneta em seus dedos.
— Me expliquem.
— Como já deve ter descoberto, Ruslan é considerado um serial Killer,
ele matou mais de 20 mulheres há 14 anos atrás. — Justik conta, ele arrasta
uma cadeira e se senta mais próximo, evitando me tocar. — As motivações
foram fúteis, nada que justificasse assassinar uma pessoa, acredito que ele
gostava de perseguir e matar de forma violenta essas moças. Ele tinha um
padrão, mulheres lindas era um deles, sempre deixando os rostos delas
desfigurados. — Engulo em seco, digito seu nome no google e sua foto
estampa minha tela, fazendo meu coração saltar.
— Então o condenaram? — Pergunto sem desgrudar meus olhos do
garoto à minha frente.
— Pena perpétua e foi considerado o homem mais perigoso da Ucrânia.
— Yaroslav diz.
— Terei que entrevistá-lo amanhã... — Murmuro para ninguém em
específico. — Estarei à frente de um assassino de mulheres...
— Não penses demasiado nisso. — Aksinya tenta me acalmar. — Vai
dar tudo certo!
— Ele estará com guardas, algemado e dentro de uma cela, vão manter
a distância porque Ruslan é perigoso. — Diz Yaroslav.
— Você já fez alguma entrevista assim? — Pergunto a ele por ser o
colunista mais antigo daqui.
— Quando entrei, trabalhei ao lado de uma jornalista criminal, vi
muitas cenas de crimes, fazer entrevista com criminosos é normal na rotina
de quem trabalha nessa área. — Ele me lança um sorriso tranquilizador,
voltando para sua cabine.
Inspiro fundo, plugo o pen drive no computador e começo a ler o artigo
incompleto feito por Zhadana. Nele estão todas as informações referentes ao
passado de Ruslan, sua idade, as mulheres que assassinou, fotos das cenas do
crime, sua família e muito mais do que sou capaz de suportar.
Passo o dia pesquisando sobre ele, tentando entender o que o levou a
assassinar brutalmente essas mulheres que tinham famílias, namorados e até
filhos. Ruslan se declarou inocente de todas as acusações, assisto o vídeo do
seu julgamento, o desespero é visível em sua expressão, ele era apenas um
garoto cheio de vida.
Sinto meu peito apertar quando ele chora de angústia ao ser sentenciado
à pena máxima. De acordo com as leis Ucranianas, a prisão perpétua é de fato
“perpétua”, os prisioneiros nunca mais saem, ficam trancafiados até morrer.
A Ucrânia não revê esses casos depois da sentença final, as chances de
condicional é zero. Fico encarando seus olhos, pesquiso mais sobre ele, mas
nada encontro, apenas fotografias de 14 anos atrás.
Estaciono o xoxo em frente à entrada do meu prédio, reparando olhares
de moradores suspeitos em minha direção. Gana terá que tomar muito
cuidado em relação a esse carro para não ser roubada. Espero alguns minutos,
olho para o lado quando ela bate na janela.
— Estou contente por ter cuidado do xoxo. — Diz quando desço e lhe
entrego a chave.
— Peça os documentos, Gana.
— Pode deixar — fala entrando no carro.
Se ela estiver mesmo com o pensamento de deixar xoxo comigo durante
o dia, sendo que ela trabalha a noite toda, será uma boa alternativa para evitar
que fique estacionado aqui por muito tempo.
Me despeço e entro, quando chego no meu apartamento, colo os
ouvidos na porta, prendo a respiração e aguço minha audição. Ao fundo, com
um som abafado ouço conversas, músicas e barulhos, suspiro fundo e abro a
porta, olhando direto para a tv ligada, nela está passando o desenho de Tom e
Jerry.
Tranco a porta e caminho pelo meu apartamento, olhando por debaixo
da cama, dentro do banheiro, em todos os lugares onde uma pessoa possa se
esconder. Meu estômago ronca de fome, tiro o casaco, minhas botas e vou
para cozinha preparar um sanduíche sem conseguir tirar o dia de hoje da
cabeça.
De todas as formas que tento me acalmar, fico ainda mais nervosa.
Entrevistar um criminoso é me colocar perto do meu passado. Calafrio
percorre meu corpo, sento-me no sofá e observo Tom implicar com Jerry.
Apesar deles se odiarem na maior parte do episódio, no fundo existe uma
paixão platônica entre eles.
Às vezes sinto falta de ter alguém ao meu lado, que possa me entender,
mas o fato de sempre estar sozinha é que não confio em ninguém, sinto como
se a qualquer momento irão me fazer mal. Eu tento me aproximar ou deixar
que se aproximem, entretanto, o medo de ser ferida é maior que eu, por isso
opto em permanecer sozinha.
Meu coração aquece quando o desenho Coragem, o cão covarde
começa a passar. É um dos meus preferidos. Em meio ao medo e assombro
das coisas bizarras que acontecem na sua vida, Coragem luta com unhas e
dentes para proteger sua dona.
Meu maior sonho é que um dia eu possa ser protegida assim como
Muriel é. Ela não faz ideia da sorte que tem por ter alguém ao seu lado que
está disposto a morrer por você. Me imagino dentro do desenho, agora sou a
Muriel e não a Laura, porque só assim consigo me sentir amada e cuidada por
alguém que nunca irá existir.
Um dos motivos por eu ter acordado um pouco mais alegre hoje, foi
por saber que o inverno está chegando ao fim, mesmo que no verão a
temperatura máxima chegue aos 25ºC, não tão calor como em algumas partes
do Brasil, o sol é bem-vindo. As praças se enchem de vida, as pessoas saem
de suas casas e as flores enfeitam cada canto da cidade. É muito comum você
encontrar mulheres carregando buquês de rosas nas ruas, é uma das culturas
mais lindas dos ucranianos.
Estaciono o xoxo e encosto a testa no volante sem coragem de encarar o
presídio à minha frente. A entrevista está marcada para às dez horas da
manhã, ou seja, daqui a trinta minutos. Queria poder recusar, dar essa missão
para outra colunista, mas quando se tem contas a pagar e um salário baixo a
receber, é impossível recusar.
Apanho minhas coisas e desço do carro, engulo em seco quando
finalmente encaro o Colony 100, um legado da união Soviética que até hoje
se ouve falar das histórias terríveis de torturas e assassinatos. Meus olhos
navegam pela arquitetura pesada e sombria, há arames farpados em cima dos
muros altos, causando um impacto depressivo e apavorante.
Pelo que estudei, o Colony 100 é dividido em duas zonas. A principal é
para os reincidentes e a segunda é como uma prisão dentro de outra prisão,
onde fica a segurança máxima, e é lá que estão detidos os piores criminosos
da Ucrânia, incluindo o que irei entrevistar.
Ando em direção aos portões enormes, um policial me olha pela
portaria, estendo meu crachá e logo em seguida os portões são abertos para
que eu possa entrar. Seguro com mais força a alça da bolsa e entro.
— Laura do AS? — Olho para o lado, um homem alto e fardado se
aproxima, seus olhos me analisam.
— Sim.
— Prazer em conhecer-te. — Ele estende a mão, eu apenas a fito,
recuando um passo. — Andry avisou da substituição.
— Terei que ser revistada? — Pergunto receosa, o guarda abaixa a mão
e coloca os braços para trás, ficando ereto.
— São protocolos de segurança. — Assinto, inspirando fundo.
— Eu poderia fazer algumas perguntas em relação ao seu trabalho? —
Ele sorri.
— Claro... — Sigo-o em direção a ala de revista enquanto me responde
às perguntas.
Volodymyr conta que trabalha aqui há seis anos, já presenciou muitas
coisas, aplicou punições severas e até foi ameaçado por detentos enfurecidos.
Ele relata que no começo foi um pouco apavorante ter que lidar com
criminosos tão perigosos, mas acabou se acostumando.
Fico ao seu lado ao cruzar todo o pátio principal para conseguir chegar
no setor de visitas. No meio do pátio consigo ver todos os prédios do
presídio. A ala de segurança máxima é uma construção antiga, o silêncio é
incômodo como se não existissem pessoas trancafiadas aqui. À minha
esquerda, ficam as salas utilizadas pelos guardas e o prédio administrativo
fica à minha direita, a diretoria por sua vez é protegida atrás desses muros
bem altos.
Volodymyr abre a porta para mim, na sala há um detector de metais e
uma mesa onde coloco minha bolsa. Uma guarda me orienta a passar por ele,
que não apita para meu alívio. O melhor de tudo é que não foi preciso me
tocarem. Depois ele me leva a outra sala, passo por portões e portas de grades
até chegar ao meu destino.
— Volto já! — Volodymyr me deixa sozinha na pequena sala de
visitas, analiso-a com cuidado. Há apenas uma cadeira em frente à um vidro,
do outro lado é um cubículo onde o prisioneiro ficará.
Não haverá contato, até porque o que nos separa é uma massa de
concreto e um vidro com furos no meio. Sento-me na cadeira e pego o
gravador, as perguntas estão decoradas em minha mente, agora é só esperar
por ele.
Minutos se passam, mas a impressão que tenho é que são horas de
espera. Meu coração martela sob meu peito, dou um gole na minha água e
tento parar de balançar as pernas. Fecho os olhos, inspiro e expiro... escuto
barulhos, fico ereta e abro os olhos a tempo de vê-lo entrar com a cabeça
baixa, algemado e com dois guardas segurando seu braço. Eles o colocam
sentado à minha frente, Volodymyr acena de leve com a cabeça.
— Você tem uma hora. — Assinto, então ele nos deixa a sós.
Engulo o caroço que se formou na garganta, o homem que está diante
de mim é alto, muito mais alto do que imaginei, seus ombros são largos e
seus braços são um pouco fortes, seu peito sobe e desce em uma respiração
acelerada e seus cabelos lisos caem sobre seu rosto abaixado.
Quero poder dizer alguma coisa, mas as palavras estão engasgadas. Ele
remexe as mãos como se estivesse incomodado com as algemas, as roupas
escuras estão moldando seu corpo rígido. Prendo a respiração quando ele
lentamente ergue a cabeça e fixa seus olhos verdes nos meus. Olhos que
carregam um passado de crime.
Ruslan Rotam não é mais um garoto de 18 anos e muito menos tem os
olhos inocentes de um adolescente repleto de vida e sonhos. O homem que
está à minha frente é sombrio, triste e intenso, pensei que estaria preparada
para esse encontro, mas vejo que não, porque o detento algemado do outro
lado é o homem mais lindo que já vi em toda minha vida.
Seus cabelos castanhos moldam seu rosto marcante, suas olheiras
escuras o deixa sem vida, apesar do semblante esgotado, sua beleza é o que
me impressiona.
Ruslan remexe na cadeira me assustando, inclina a cabeça para o lado
me analisando, esse movimento foi para me testar, estou com medo dele, isso
é fato, e ele sabe muito bem disso.
— Estou contente por ter vindo esta manhã. — Sua voz rouca, forte e
baixa navega por meu corpo e atinge meu coração de uma maneira
inexplicável. Fico sem reação e a única coisa que desejo é fugir do que estou
sentindo nesse exato instante.
Ruslan não sorri, seus olhos estão... mortos, mas ainda assim, lá no
fundo consigo enxergar que ainda sente vontade de viver. A solidão é sua
única companheira e sei o quanto ela é opressora.
— Estava... esperando por mim? — Pergunto com a voz embargada,
seu olhar intenso é a resposta. — Será que posso gravar nossa conversa? —
Ergo o gravador com as mãos trêmulas, ele assente de leve.
— De onde és? — Congelo, ainda não estou acostumada a escutar sua
voz.
— Brasil — recosto na cadeira e passo as palmas das mãos na calça,
limpando o suor. — Ruslan, me chamo Laura e sou colunista do jornal AS de
Kharkiv, gostaria de te fazer algumas perguntas, posso?
— Creio que sim — ele abaixa os olhos por alguns segundos antes de
voltar a se fixarem em mim.
— Quem era o Ruslan de 14 anos atrás? — Meus olhos são atraídos
para seu pescoço, sua garganta se movimenta quando ele engole em seco.
— Um garoto simples que queria explorar o mundo — seu olhar se
perde. — Queria dar conforto à sua família, namorar, estudar e aproveitar o
que a vida tinha para lhe oferecer.
— E quem é o Ruslan de agora? — Ele me fita, sombrio.
— Um assassino — meus pelos se eriçam com sua declaração, sinto o
poder das suas palavras como um soco em meu estômago.
— Por... — Limpo a garganta e remexo, me sentindo incomodada com
seu olhar. — Por que você matou todas aquelas mulheres?
Ruslan não responde, apenas me encara. Noto que não se sente
confortável em me dizer, então tenho que mudar a pergunta antes que me
mande embora, só que... merda, esqueci as perguntas. Me inclino para tirar o
caderno onde estão as perg...
— Como está lá fora? — Congelo com as mãos trêmulas, olho para ele
ainda inclinada. — Em que estação estamos?
— Estamos entrando no verão — digo, abrindo meu caderno. — Como
você vive aqui? — Ruslan franze a testa e curva seus lábios em um quase
sorriso.
— Fico trancado dentro de uma cela de apenas 12 metros quadrados há
14 anos, tenho permissão de passar 30 minutos no pátio que é composto de
celas de isolamento do tamanho de meia garagem. — Responde dando de
ombros. — Tenho uma pequena tv onde vejo o mundo se transformar e
trabalho com costura, é bom para passar o tempo.
— Como você consegue suportar? — Ruslan fecha os olhos por alguns
segundos.
— Não consigo... — Confessa.
— Você se arrepende dos crimes que cometeu? — Minha perna
começa a balançar de novo. — Você matou mulheres que eram amadas e
tinham uma família, arrancou a vida delas sem permissão, não acha que esse
lugar é merecido pela maldade cometida? — Ele me encara paralisado, fico
assustada com a mudança do seu semblante, olho para o lado pronta para
fugir, se acaso ele surtar.
— Eu nunca quis isso — diz entre dentes.
— Mas fez!
— Nunca quis isso... — Repete, perdendo o pouco brilho nos olhos que
tinha. — Eu estava caminhando, voltando para casa, então vi, não consegui
evitar... eu precisava... precisava fazer... e foi quando tudo aconteceu, rápido
demais... — Engulo em seco não suportando as batidas do meu coração. —
Sangue... Grito... Dor... de repente estava aqui, dentro de uma cela, vivendo o
verdadeiro inferno!
— O que você sentiu matando-as? — Ruslan balança a cabeça e volta a
me olhar, franzido a testa. — O que você sentia matando todas aquelas
mulheres?
— Eu tenho raiva...
— Por isso que as matou? Por sentir raiva? — Ele nega com a cabeça,
se perdendo no seu pesadelo de novo.
— Só queria reencontrar...
— Quem? — Pergunto.
— A esperança...
Sinto a sala girar ao meu redor quando suas palavras navegam por
meus ouvidos. Ruslan está paralisado, o olhar fixo à frente como se estivesse
perdido dentro de si mesmo.
Um caroço se forma na minha garganta, de repente sinto vontade de
chorar, não por medo ou algo parecido, mas por ver esse homem tão perdido
assim como me sinto. Ele deseja reencontrar a esperança trancafiado em um
lugar onde nunca mais poderá sair e eu a busco todos os dias quando abro
meus olhos.
É ridículo estar sentindo isso, afinal, ele é um assassino em série, mas
por que eu me vejo nele? Por que a solidão impregnada em seus olhos é tão
parecida com a minha? Passei a vida toda fugindo, querendo poder deitar
minha cabeça no travesseiro sem ter a sensação de que ele entrará em meu
quarto a qualquer momento. Sei perfeitamente o quanto os demônios do
passado podem nos assombrar, mas diferente de Ruslan, eu não fiz mal a
ninguém.
— Você está aqui? — Seus olhos se movem até se prenderem nos
meus... Olhos vazios, desolados e solitários.
— Tens olhos lindos... — Murmura. — Azuis como o céu... — Desvio
meu olhar, aperto a borda do caderno tentando acalmar os efeitos que ele está
me causando.
— Como é a relação com a sua família depois que foi condenado? —
Mudo de assunto, Ruslan umedece os lábios e abaixa a cabeça. — Você tem
família, certo?
— Eles nunca vieram. — Revela, esfregando seu rosto. — Não os vejo
há 14 anos.
— Você já tentou... entrar em contato com eles? — Ruslan levanta a
cabeça e comprime os lábios.
— Eles não querem ter contato com um assassino, não tiro a razão
deles, sou a vergonha da família.
— Ninguém te visita?
— Apenas o psicólogo do presídio. — Ruslan dá de ombros,
conformado.
— Essa visita aconteceu quando?
— 31 dias atrás — responde, balançando as correntes presas em seus
tornozelos.
— Você gosta de receber visitas?
— Sim! — Diz distraído, encarando as correntes.
— Se tivesse a oportunidade de sair daqui o que você faria? — Ele fixa
o olhar na pequena janela atrás de mim.
— Buscaria a verdade...
— Que verdade? — Franzo a testa, querendo saber mais do que está
trancafiado dentro de si. — Você mataria... de novo? — Ruslan me olha,
adquirindo uma expressão fria, arrepiando todo meu corpo.
— Eu mataria uma única pessoa...
— Quem? — Ele não responde. — Por quê? Por que mataria de novo?
— Porque não tenho mais nada a perder... — Revela se levantando,
assusto com seu movimento, meu coração salta enquanto ele me encara. —
Gostei muito de estar contigo. — Diz se virando e indo até a porta que se
abre.
— Ruslan? — Chamo, os guardas seguram seu braço. — Quem você
mataria? — Ele me olha por cima do ombro, seus olhos me analisam com
atenção, quero saber porque ele cometeria mais um crime depois de tantos
anos trancafiado.
É estupidez da minha parte querer saber tanto sobre um assassino, mas
sinto algo diferente, como se ele quisesse o mesmo que eu.
— Quem você mataria? — Repito a pergunta.
— Quem me colocou aqui! — Imaginei qualquer resposta, mas não
essa. — Mataria quem me tirou tudo...
Os guardas o empurram, tirando-o da sala... Tirando-o de perto de mim.
Sento-me na cadeira quando minhas pernas fraquejam, sinto lágrimas
escorrerem por meu rosto enquanto encaro fixamente a porta por onde Ruslan
saiu, porque assim como ele, também desejo matar quem me tirou tudo.
Minha perna direita balança sem parar enquanto espero chegar a minha
vez. Se passaram dois dias desde a entrevista que tive com Ruslan, e desde
então, não o tiro da cabeça.
Os pesadelos voltaram com mais força, a sensação ruim que sinto está
me sufocando e estou prestes a explodir. Esfrego as mãos, sentindo-me
trêmula, não de frio, mas de medo.
— Laura? — Olho para a porta do consultório, Olesya sorri para mim.
— Sua vez!
Entro na sala tensa, meus músculos doem de tanto que se contraem, me
sento no sofá, minha perna volta a balançar e um desespero me invade
quando Olesya se senta à minha frente.
— Soa-te bem? — Nego com a cabeça, porque não estou bem. — O
que houve, Laura?
— Eu... eu estou prestes a surtar. — Revelo com a voz embargada e
com os olhos cheios de lágrimas. — Eu não consigo dormir há dois dias...
— Por quê?
— Os pesadelos... sua voz... suas mãos... — Olesya se aproxima,
assusto e me encolho.
— Não vou te tocar, só quero que se deite e relaxe. — Engulo em seco
e faço o que pede. — Agora fecha os olhos e inspira fundo, depois solte a
respiração lentamente. — Sua voz suave vai me acalmando aos poucos. —
Agora diga-me o que te aflige?
— Estou com medo de que me encontre. — Falo, mantendo a
respiração controlada.
— Ele não vai encontrar-te aqui! — Afirma. — O que você fez de
diferente?
— Eu... fui entrevistar um criminoso.
— Foi interessante? — Cruzo as mãos em cima da barriga e fico com o
olhar fixo no teto.
— Esquisito...
— Esquisito como? — Dou de ombros, lembrando da forma que me
olhava.
— Ruslan é perigoso, mas... senti algo diferente, como se... como se eu
conhecesse sua solidão e ele a minha. Isso faz algum sentido? — Viro a
cabeça, encarando os olhos esverdeados da minha psiquiatra que me encara
fixamente.
— É normal sentir empatia ao enxergar o sofrimento do outro.
— Ele é um assassino, acha que sofre por ter matado tantas mulheres?
— Todo ser humano sofre por alguma causa, até mesmo os psicopatas
que não sentem amor e muito menos compaixão, é algo complexo de
entender.
— Ele não sai da minha cabeça...
— Por quê? — Engulo em seco, desvio meu olhar e encaro as rosas
dentro de um vaso em cima da sua mesa.
— Ruslan disse-me, que deseja matar quem lhe tirou tudo, eu... eu
desejo fazer o mesmo. — Olesya fica em silêncio por alguns segundos,
permitindo que minha mente navegue solitária.
— Há quantos dias você não sofre com as crises?
— Três meses, acho! — Respondo, fechando meus olhos.
— Laura, muitas vezes o medo está impregnado em nossa mente, o
mesmo nos impede de seguir nossos sonhos e realizar nossos objetivos, é
algo que deve ser moldado. — Olho para ela.
— Eu não consigo...
— Não consegue o quê?
— Não sentir medo... — Sussurro, apertando as mãos. — Sabe, alguns
dias atrás eu estava assistindo um desenho animado e me fiz imaginar dentro
dele.
— Por quê?
— Para não me sentir sozinha... para me sentir amada e protegida...
nunca ninguém me amou ao ponto de me tornar o centro do seu mundo...
— Você já ligou para ela? — Nego com a cabeça, soltando um soluço.
— Minha mãe não quer me ver... — O choro sai sem que eu consiga
segurá-lo. — Eu nunca a procurei...
— Por que você acha isso?
— Ela sempre ficou ao lado dele... quando eu disse... quando falei o
que ele fez, ela... ela... — Cubro meu rosto liberando o choro preso dentro de
mim, meu corpo estremece e Olesya apenas me assiste, como todas às vezes
que começo a ter crises.
— Você sente falta da sua mãe? — Assinto, me deitando encolhida.
— Eu ainda consigo sentir seu perfume. Quando está frio, me imagino
em seus braços, mas faz tantos anos, que estou me esquecendo da sensação
que é estar ao seu lado. — Limpo meu rosto. — Eu queria que tudo fosse
diferente...
— Não podemos mudar o nosso passado, mas podemos moldar nosso
presente e fazer nosso futuro diferente.
— Como? — Pergunto para Olesya.
— Você é forte Laura, olha só tudo o que conquistou, isso é vontade de
viver, então continue caminhando. Tudo bem você chorar, fraquejar e querer
sumir, porque não podemos ser fortes o tempo inteiro, mas você jamais deve
desistir, mesmo marcada, fragilizada e quebrada, você tem que continuar.
— E se eu perder... a vontade de viver? — Olesya chega mais perto de
mim, se sentando ao meu lado e tomando cuidado para não me tocar.
— Nós a achamos de novo — ela sorri, seus olhos brilham e assinto,
confiando em suas palavras, porque mesmo querendo desistir, algo ainda me
segura, mostrando que tenho que continuar para que enfim, eu possa superar.
No dia seguinte, reunimos todos na sala de Andry que nos encara com
seriedade. Seu rosto estampa puro descontentamento, nada do que ele
imaginava aconteceu. Foi um desastre total.
— Expulsa? — Sibila entre dentes para Aksinya.
— A delegacia estava lotada de repórteres, então pensei que talvez se
entrasse pelos fundos e conversasse com alguém, eles poderiam me fornecer
o que procurava, mas quando encontrei o detetive, ele simplesmente me
expulsou dizendo que não aguentava mais ver jornalistas — ela explica com
nervosismo.
— E você, Justik?
— Eu? — Ele nos olha inquieto. — Tentei entrar no meio da
aglomeração de repórteres para acompanhar a entrevista, mas eles não
permitiram, então fui empurrado, acotovelado e pisoteado quando seguiram o
detetive para dentro da delegacia.
— Não descobriu nada?
— Nada! — Justik engole em seco, Andry inspira fundo.
— Nome do assassino?
— Não foi divulgado.
— Laura? — Olho para meu chefe batucando nas fotos que tirei. — Se
aproxime e me diga o que vê nessas fotografias. — Passo as mãos sobre a
calça para limpar o suor, e dou um passo à frente, encarando cada uma das
que tirei.
— Hum... ficou embaçadas, né? — Digo, enrugado meu rosto.
— E agora? — Andry ergue as sobrancelhas. — Você acha que ficarão
boas para a matéria, Yaroslav? — pergunta a ele que sobressalta e se
aproxima, olhando atentamente as fotos.
— Essas duas ficaram boas... — ele coloca o dedo na foto do gato
negro, a única que prestou. — Essa também — a seguinte tem como
perfeição o corpo da vítima coberto por um pano branco.
— Diga-me, o que descobriu?
— A vítima aparentemente tem 25 anos de idade, filha de um político
da Kharkiv, ela foi arrastada para o beco onde foi morta com doze facadas,
tendo seu rosto desfigurado. Ainda não se sabe quais foram as motivações,
mas suspeitam que o assassino não tem ligação com ela. — Yaroslav recua
um passo e sorri vitorioso para Andry. — Foram as únicas informações que
obtivemos.
— Céus... — Nosso chefe esfrega a testa. — Vocês foram um
desastre, mas tudo bem, vou relevar! — Seus olhos se prendem em cada um
de nós. — Quero que continuem investigando esse caso, preparem a matéria
com o pouco que tem, e descubram em primeira mão o nome do assassino.
— Eu continuo indo para a delegacia? — Pergunta Aksinya, Andry
coloca seus óculos e a encara com descrença.
— Qual a parte do “descubram em primeira mão o nome do assassino”
você não entendeu?
— Okay, okay, entendi!
— Podem ir, quero essa matéria pronta no fim da tarde. — Sem dizer
mais nada, saímos do escritório e voltamos para nossa sala, contrariados.
— O detetive avisou que se me visse lá outra vez ele me colocaria por
24 horas em uma cela. — Aksinya revela com espanto.
— O que você fez para ele ficar com tanta raiva de você? — Pergunto,
borrifando álcool na minha mesa e em minhas mãos.
— Eu o chateei... vamos dizer que eu meio que me tornei um carrapato
insistente. — Ela morde seu lábio inferior, perdida e sem saber o que fazer.
— Ela saiu gritando com dois policiais a arrastando para fora - “Me
soltem, me soltem, eu só quero o nome do assassino, vocês não podem fazer
isso comigo! É o meu trabalho. Me solteeeeem!” — Justik conta de forma
divertida tirando uma gargalhada de Yaroslav e deixando Aksinya vermelha
de raiva.
— Olha só quem fala, o bonitão que foi pisoteado pelos jornalistas. —
Ela retruca, apontando para os arranhados dele. — E ainda ficava pedindo
“Oi por favor, posso passar para escutar o detetive? Com licença, você
poderia me deixar passar?” Logo para os repórteres que estavam loucos
para ter respostas, levou um empurrão bem dado.
— Fui educado...
— E se fodeste! — Aksinya o fuzila com os olhos enquanto Yaroslav ri
sem parar, olho para ele.
— Por que fica rindo deles, Yaroslav? — Ele me encara, comprimindo
os lábios. — Você caiu de bunda tentando se esconder dos policiais, e ainda
vomitou ao ver o cadáver da moça!
— Ele caiu? — Pergunta Justik.
— Sim, caiu! — Todos de repente começam a rir, se inclinam ao
sentirem dor na barriga, balanço a cabeça vendo-os descontrolados.
— Somos os piores jornalistas da Ucrânia. — Aksinya diz entre as
risadas.
— Sim... — Murmuro, começando a escrever a matéria.
Durante algumas horas fico inerte montando a matéria com base no que
descobrimos com o nosso desastre de investigação. Não demora muito para
eu terminar, envio para meus colegas para analisarmos com atenção.
— Eu acho que ficou bom. — Diz Justik. — Apesar das poucas
informações você conseguiu colocar um mistério nos acontecimentos, com
toda certeza irá deixar os leitores encucados.
— Aprovo! — Aksinya ergue os polegares em sinal de positivo.
— Se colocar a foto do gato, vai ficar melhor ainda. — Brinca
Yaroslav, reviro os olhos.
— A questão agora, é se Andry vai aprovar! — Resmungo, todos
respiramos fundo, calados e pensativos.
— Não posso perder esse emprego, sou a única que está sustentando a
casa e meus pais estão desempregados. — Aksinya confessa, chateada.
— Não vamos, — Justik diz com a voz doce — essa foi a nossa
primeira vez, a segunda vai ser melhor, a terceira será mais fácil, quando
percebermos, estaremos sendo os melhores jornalistas investigativos de
Kharkiv. — Seus olhos brilham de esperança.
— Sonhaste alto agora... — Desdenha Yaroslav.
— É sonhando alto, que se conquista pelo menos, a metade dos seus
objetivos... É através dos sonhos, que criamos motivos para lutar todos os
dias. — Rebate Justik.
— Sonhos se tornam realidade quando se luta por eles. — Aksinya fala,
encarando Justik.
— Qual seu sonho, Laura? — Pergunta Yaroslav, abaixo meus olhos e
dou de ombros.
— Não tenho um sonho... — Sussurro, calando-os com minha
declaração.
Não me lembro de um dia sequer, que sonhei por algo. Desde que ele
apareceu em nossas vidas, comecei a lutar para sobreviver. Tracei metas para
me tirar do seu caminho, e desde então, eu fujo, sobrevivo e vivo um dia de
cada vez.
— Laura? — Olho para cima, Bogdana vem em minha direção, ela é a
recepcionista da AS. — Pediram para te entregar. — Ela estende um botão de
rosa vermelha, fico paralisada encarando-a.
— Para mim? — Ela assente. — Quem foi?
— Não sei boneca, só pediram para te entregar — estico a mão e a
pego, sentindo a textura de cada parte da rosa, das pétalas que se parecem
com seda, delicadas, frágeis e suaves.
— Uau... admirador secreto, Laura? — Aksinya se aproxima. Não
respondo porque estou fascinada demais com o fato de pela primeira vez eu
ter ganhado uma rosa.
— Tu sabes o significado das rosas vermelhas? — Bogdana me olha
divertida, assinto.
— Amor... — Balbucio. Mas afinal, quem é o responsável por ter me
enviado ela?
— A rosa vermelha é associada com a perfeição e a beleza, são uma
forma consagrada pelo tempo de dizer “eu te amo” — Bodgana diz, olho para
ela ao acordar do transe. É ridículo isso, quem me daria uma rosa sendo que
não tenho contato com ninguém?
— Eu acho que foi um engano — digo, devolvendo a rosa. — Justik,
você comprou essa rosa para Aksinya? — Ele me olha e nega com a cabeça.
— Não, e porque eu iria comprar uma rosa para ela?
— Eu nunca iria aceitar! — Ela rebate, aborrecida.
— Yaroslav?
— Sem chances... — Responde, sorrindo com minha confusão.
— Aceite que tem alguém te bajulando — Bogdana arqueia uma
sobrancelha, seus olhos claros brilham de entusiasmo.
— Não faço ideia de quem possa ser.
— E eu não tenho a resposta, boneca. — Ela retruca, divertida. —
Bom, agora preciso ir. Não posso deixar a recepção vazia.
— Obrigada — Bogdana pisca um olho e acena para todos nós.
— Beijos... — Se despende, saindo da sala.
Fico encarando a rosa sem conseguir dizer nada. Meu coração está feliz
por essa demonstração de carinho, mas ninguém vem à minha mente. As
únicas pessoas que tenho contato, são meus colegas de trabalho e a Gana...
talvez tenha sido ela, um gesto de agradecimento por estar cuidando do seu
carro.
No final do dia, entregamos a matéria para Andry que apenas assente e
nos dispensa em silêncio. Se gostou ou não, saberemos somente amanhã
quando liberar no jornal.
Estaciono o xoxo me sentindo exausta, querendo apenas minha cama ou
o meu sofá. Fico esperando Gana descer, olho para rosa estendida no banco
passageiro, tentando entender quem a fez chegar até mim.
Me assusto quando Gana bate na janela, pego minhas coisas e desço,
lhe entregando sua chave. Seu rosto está triste, despertando minha
preocupação.
— O que houve? — Pergunto, encarando-a com atenção.
— Nada, hoje acordei indisposta. — Diz, rodando a chave. — Não se
preocupe, estou bem!
— Tem certeza?
— Por que não? — Balanço a cabeça vendo que há algo de errado, só
que ela não vai revelar.
— Obrigada.
— Pelo quê?
— Pela rosa — ela franze a testa, abre e fecha a boca buscando alguma
palavra, aperto meus lábios já sabendo que não foi ela.
— Hum... não foi eu!
— Certo, pensei que talvez fosse você, por eu estar cuidando do seu
carro. — Gana eleva seu ombro direito, sem graça pelo mal entendido.
— Isto aí é coisa de namorado, ou de alguém que está de olho em você.
— Não conheço quem possa ter me dado.
— Por isso que são denominados admiradores secretos, dona Laura.
— É ridículo... — murmuro, não quero que se aproximem de mim, não
posso dar algo que nunca recebi...
— O que és ridículo? — Levanto o olhar, Gana cruza os braços, me
analisando. — Ridículo ser amada por alguém?
— Amada?
— Laura, eu até compreendo eu nunca ter conseguido formar uma
família, porque sou prostituta, mas você? — Ela me olha dos pés à cabeça.
— Olha só para você, Laura. És linda, inteligente, estudada e trabalhadora!
Você merece ser amada, mas para que isso aconteça, deves permitir que
ultrapassem a barreira que construiu. Fugir não é o caminho, se fechar não és
a solução, e se trancafiar nunca será sua libertação!
Abaixo a cabeça, Gana tem toda razão, só que não consigo... não posso
permitir que isso aconteça. Sozinha no meu mundo posso controlar a
situação, e permitir que alguém entre, é... estar exposta ao sofrimento, é viver
o inferno que eu vivi. Não quero passar por tudo o que passei de novo.
— Eu acho que... que prefiro deixar do jeito que está. — Gana suspira,
sorri e se aproxima com a intenção de colocar as mãos em meus ombros,
recuo três passos, impedindo que me toque, ela paralisa surpresa.
— Preciso ir trabalhar, qualquer coisa é só me ligar. — Diz sem graça,
ela entra no carro e arranca para longe de mim, magoada com a minha reação.
Olho para a rosa e depois para o lixo ao meu lado, faço menção em
jogá-la fora, mas desisto, prefiro mantê-la comigo. Subo até meu
apartamento, coloco a mão na porta e encosto meu ouvido nela, ouço
conversas vindo da tv, mas não é de desenho animado.
Meu corpo entra em alerta imediatamente, minha pulsação acelera, e
se... e se ele tiver me encontrado? Engulo em seco, seguro a maçaneta e giro,
a porta não está trancada como a deixei de manhã, será que a deixei
destrancada?
Dúvida me invade, entro com passos receosos, meus olhos navegam
pela escuridão da minha casa, a sala está sendo iluminada apenas pela
televisão. Minhas mãos tremem, aperto com mais força a rosa. Deixar a porta
destrancada pode ter sido um descuido meu, mas as luzes desligadas? Não...
não, eu nunca as deixo desligadas!
Olho para a tv, o presídio Colony 100 está sendo filmado, há uma
grande aglomeração de pessoas, policiais, bombeiros e detentos ajoelhados
no chão com as mãos na nuca, não consigo escutar o que a repórter diz. Meu
coração bate tão alto que ofusca qualquer outro barulho.
Me aproximo e quando leio a causa da reportagem, fico tonta. Houve
uma rebelião 24 horas atrás resultando na fuga de três detentos. Criminosos
invadiram o presídio depois que um mafioso foi preso, começando assim uma
rebelião que ainda não chegou ao fim.
Dou mais um passo à frente olhando fixamente para a televisão, meu
coração salta quando a foto de Ruslan é estampada, eles pedem que qualquer
pessoa que o tenha visto, entre em contato com urgência, pedem também, que
mantenhamos distância por ele ser um criminoso perigoso e imprevisível...
A repórter continua falando, mas paro de prestar atenção ao sentir algo
atrás de mim. Fico paralisada, minhas mãos tremem e minha respiração
acelera sem coragem de olhar para trás. Minha casa foi invadida, e quem quer
que seja, está atrás de mim, e sabe quem sou.
Me viro lentamente, estremeço quando seu corpo largo e alto bloqueia
a porta. Engulo em seco ao observá-lo fechar a porta, pavor me invade. Estou
trancada com um desconhecido... quero gritar por ajuda, para que o tirem
daqui, só que não consigo, há um caroço na garganta impedindo que qualquer
palavra seja dita.
Ele está usando um capuz sobre a cabeça impedindo que seu rosto seja
exposto. Ele se vira, ergue a cabeça e crava seus olhos em mim, a tv ilumina
sua feição fazendo meu coração falhar as batidas. Prendo a respiração quando
seus lábios se curvam em um sorriso sutil. A rosa cai das minhas mãos
enquanto encaro o rosto de Ruslan Rotam, o assassino de mulheres.
— Te encontrei...
Não consigo me mover, meu coração bate tão acelerado que temo um
ataque. Preciso retomar o controle para que eu possa me salvar, mas seus
olhos... seus olhos me prendem de uma maneira inexplicável, é como se ele
tivesse poder sobre mim, e isso me assusta... me apavora!
Ele dá um passo à frente, eu recuo um passo balançando a cabeça.
Ruslan matou mulheres por motivos fúteis, ele falou que quando saísse
mataria de novo, que não tinha mais nada a perder. Estou em seu caminho,
vulnerável e sozinha, não conseguirei nenhuma ajuda, meus vizinhos se
mantêm surdos e mudos, eles não se importam com o que está acontecendo.
Lutei tanto para morrer aqui. Consegui que tirasse as mãos sobre mim,
fugi sem deixar rastros... agora me vejo outra vez aprisionada por um
assassino de olhos vazios e frios.
Minhas costas colidem com a parede, não tinha percebido que andava
para trás, tentando ao máximo colocar distância entre nós. Fecho as mãos que
tremem sem parar, Ruslan tira o capuz e bagunça seus cabelos sem
desprender os olhos de mim.
— O qu-e-e... — Engulo em seco. — O que faz aqui? — Ele apenas
inclina a cabeça para o lado sem dizer nada. — Você invadiu minha casa, eu
vou... eu vou chamar a polícia... — Ruslan ergue as sobrancelhas, céus... o
que se passa em sua mente?
Reaja Laura, reaja! Digo mentalmente e lembro que estou com minha
bolsa, posso estar sendo idiota, mas enfio a mão lá dentro e apanho meu
celular, preciso fazer... Solto um grito quando ele para à minha frente, deixo a
bolsa cair e uma lágrima escorre por meu rosto, ele é muito alto e... grande!
— Dá-me isso que tens na mão — sua voz é firme, aperto o celular, não
posso lhe entregar a única coisa que pode salvar minha vida.
— Você-ê invadiu minha casa... — sussurro com a voz embargada. —
Eu vou gritar se não for embora. — Me encolho quando ele pega o celular da
minha mão sem me tocar e sem ser agressivo, ele se inclina para baixo,
apanha minha bolsa e se afasta.
— Tu és minha única alternativa. — Olho para ele que coloca tanto a
bolsa quanto o celular em cima da pequena mesa. Ruslan vai até a porta,
tranca e retira as chaves, colocando-a dentro do bolso do moletom.
— Alternativa? — Pergunto confusa, tentando ganhar tempo até pensar
em uma possibilidade de fugir.
— Sim, Laura! — Ele me olha. Ruslan esfrega seus dedos um no outro,
reparo também que suas mãos estão trêmulas, suas roupas estão desgastadas e
sujas.
— Eu não tenho dinheiro... nem bens e... e... — Solto um soluço,
olhando para todos os lados menos para o assassino diante de mim. — Vá
embora, prometo não dizer nada à polícia, só não... só não me machuca... —
As últimas palavras saem sussurradas como súplica, foi assim que eu disse
quando... quando ele estava com as mãos em mim, me tocando sem que eu
permitisse, me machucando e...
— Não irei machucar-te — Ruslan me olha com cuidado.
— Não? — Mordo meu lábio inferior. — Você mata mulheres... —
Solto um grito estridente quando sinto algo encostar em minhas pernas, meu
coração salta do peito, olho para baixo ao escutar um miado. Olhos amarelos
me encaram, ele ronrona esfregando em mim, franzo a testa, já vi esse gato...
ergo a cabeça e encaro Ruslan.
— Rony é um bom garoto — ele diz, apontando para o gato que ainda
se esfrega em mim, mas meu pavor não é esse.
— Você... ele... vocês estavam lá... — Minha voz sai vacilante, Ruslan
passa a língua no seu lábio inferior, range os dentes e desvia o olhar. — Foi
você... você disse que mataria...
— Uma única pessoa. — Completa com a expressão irritada.
— Você estava lá... aquela moça foi assassinada e... você está aqui... —
Ruslan fica calado me encarando, calafrios percorrem minha espinha e nuca,
ele está me assustando, nada do que diz me acalma, apenas me apavora.
— Eu estava... te seguindo — confessa, inspirando fundo.
— Me seguindo? — Encosto mais na parede desejando que fosse uma
porta.
— Sim...
— O que você quer de mim... Céus, como conseguiu fugir da Colony
100? — Ruslan se senta no braço do sofá com as mãos entrelaçadas, a luz da
tv esculpe seu rosto perfeito e beleza ofuscante.
— Não foi fácil...
— Como um detento na prisão de segurança máxima, monitorado em
tempo integral conseguiu fugir? — Pergunto pasma, me encolhendo de medo
até do pobre gato. — Volodymyr me falou que é impossível haver uma fuga,
o complexo todo é rodeado por um muro com várias camadas de arame
farpado, se algum preso conseguisse passar por cima iria cair no meio do
nada sem entrada e nem saída. — Ruslan fica me olhando, inspiro fundo
tentando me acalmar. — E tem os guardas armados nas torres que vigiam
esses corredores, eles têm ordem de atirar se ver algum preso tentando fugir,
não há falha, como conseguiu?
— Tudo tem falhas, nada é perfeito...
— Tem os cães, como passou por eles? — Sinto meus olhos
arregalados. — Você vivia trancafiado em uma cela pequena, só saia
algemado e... não consigo achar um jeito que justifique sua fuga. Sua ala é
isolada. Então como fugiu? O que faz aqui? Por que me seguiu? Por que...
eu?
— Levei 14 anos planejando — fala de forma tranquila, umedeço meus
lábios secos e esfrego meu rosto. — Eu vi...
— Viu o quê? — Ruslan se levanta e se aproxima de mim, prendo a
respiração.
— Teus olhos... sua alma pedindo socorro. — Congelo com sua
declaração. — Olhos da cor do céu que gritam desesperadamente por
libertação, você não é diferente de mim, Laura. Apesar de estar vivendo no
mundo, sua alma está trancafiada em uma prisão... Você está presa em uma
jaula, assim como eu vivi durante 14 anos.
Suas palavras me chocam de forma que não consigo reagir, quero que
ele vá embora, que me deixe sozinha, só que seus olhos me encaram
diferente, como se fossem capazes de ver através dos muros que construí em
volta de mim.
— Você é um assassino...
— Sim — concorda com uma respiração longa.
— Vai embora, você invadiu minha casa e... é perigoso. — Ruslan
entrelaça seus cabelos, assisto seu movimento me perguntando como os
guardas permitiram que ele ficasse com os cabelos maiores do que é
permitido nas regras.
— Preciso da sua ajuda — ele sussurra, olhando no fundo dos meus
olhos. — Tu és a única que me entende.
— Eu te entendo? — Ruslan assente, dando mais um passo à frente.
— Tu conheces a dor da solidão, sabes o quanto a injustiça nos corrói
aos poucos até não sobrar mais nada.
— Como pode ter certeza disso?
— Seus olhos são tristes, perturbados e solitários, não existe sorriso
nesse rosto tão perfeito como o seu... o que aconteceste com você, Laura? —
Ele estica a mão para me tocar, mas me encolho voltando a tremer. — Por
que desejo conhecer-te mais?
— Isso é ridículo — sussurro dando um passo para o lado, chutando o
gato sem querer. — Eu... eu... vai embora... — Abraço meu corpo, minha
visão fica turva por causa das lágrimas.
— Por que razão não queres isto? — Olho para ele sem entender, sua
expressão está confusa.
— Você é um assassino condenado, invadiu minha casa e é foragido da
justiça. — Ruslan me encara, ele não se move, embora esteja com o olhar
fixo no meu, ele parece estar em um outro lugar.
Me assusto quando ele arfa, sua respiração acelera e suas mãos fecham
em punhos, medo me invade assistindo-o trancafiado em algum pesadelo
dentro de sua cabeça, digo isso porque... é assim que fico quando minha crise
me abate. Volto para o inferno, revivendo tudo aquilo que ainda não superei.
— Ruslan? — Chamo ficando ainda mais assustada, suas mãos estão
tremendo mais que as minhas, seu peito sobe e desce em uma respiração
acelerada e seu rosto está pálido, meu Deus, aonde ele está? — Ei...
Ruslan fecha os olhos, inspira fundo e quando volta a abri-los, meu
coração aperta ao ver sua dor através do brilho fosco de seu olhar.
— Você está aqui? — Sussurro, ele assente ainda perdido. — Você vai
embora? — Minha pergunta sai como um pedido, uma súplica para que se vá.
— Não — responde, inclinando a cabeça para o lado. — Vou ficar!
— Aqui?
— Contigo — diz com convicção, balanço a cabeça negativamente.
— Eu não...
— Não sou um homem ruim — suas palavras saem apertadas.
— Você assassinou mulheres e... você matou aquela moça de ontem?
— Não!
— Então o que fazia lá?
— Te seguindo.
— Isso não faz sentido... — Balbucio, Ruslan comprime seus lábios. —
Não posso abrigar um assassino que poderá me matar a qualquer momento...
— Para! — Ele me corta, fechando os olhos. — Não me chame assim.
— Assim como?
— Assassino... — Ruslan me encara tão quebrado que minhas pernas
vacilam. — Não me chama assim... não você!
— Por que eu? Por que fala como se eu fosse algo importante para
você? — Ele engole em seco, desvia o olhar e olha para tv.
— Sua alma vazia é como a minha que grita desesperadamente para ser
preenchida. Você foi a única capaz de olhar para dentro de mim, enxergar o
que sou de verdade. Quando consegui sair do Colony 100, sua imagem era a
única na minha mente, só precisei encontrar o jornal onde trabalha, te segui
até saber onde morava e aqui estou te implorando por ajuda.
— Eu não sei se posso te ajudar.
— Não tenho mais ninguém — engulo em seco, abaixo a cabeça e
aponto em direção ao meu quarto.
— Eu preciso tom... — Paro de falar quando Ruslan estende a rosa que
tinha deixado cair.
— Permita-me que eu fique. — Um nó se forma na garganta, então foi
ele... ele que me deu?
— Foi você? — Sussurro. — Você que mandou me entregar essa rosa?
— Prendo meus olhos nele, Ruslan assente e tira das costas mais duas, só que
cor-de-rosa.
— Por favor, acredite no que digo...
— Acreditar em você? — Balanço a cabeça. — Eu... eu... preciso de
ar! — Falo, ele assente me olhando fixamente, dou um passo para o lado e
quando vejo que não vai fazer nada, corro até meu quarto, tranco a porta e
deslizo até o chão, incapaz de me manter em pé, estou apavorada.
Sinto lágrimas escorrerem por meu rosto. Faz quinze anos que não me
sinto tão encurralada, encarando o perigo dessa forma sem conseguir me
defender. Quinze anos fugindo do mal. Seco meu rosto, ligo a luz do quarto,
olho embaixo da cama e dentro do guarda roupa com cuidado, quando me
certifico de que estou sozinha, tiro minhas roupas e vou para o chuveiro.
A água quente ao colidir na minha pele espalha um prazer em meu
corpo, relaxando a tensão dos meus músculos e me acalmando mesmo tendo
um assassino dentro de casa. Não estou acreditando que estou ponderando em
aceitar seu pedido, todas as suas palavras podem ser mentira. Ruslan pode
estar encenando, me manipulando para que eu acredite no que diz..., mas em
nenhum momento negou ter assassinado todas aquelas mulheres, ele se
manteve calado e... por quê?
Desligo o chuveiro com dúvidas rondando minha mente, perguntas
querendo respostas e a curiosidade me tomando. Visto meu moletom, olho
para janela, se ela não tivesse grades tanto por dentro quanto por fora, era por
ela que eu fugiria.
Respiro fundo e saio do quarto, as luzes estão ligadas agora, não há
escuridão, suspiro aliviada. Meus olhos procuram por ele, encosto na parede
quando o vejo encarando alguns ingredientes em cima do balcão, parece não
saber o que fazer com eles.
— Por que não gosta do escuro? — Pergunta sem me olhar.
— A escuridão esconde muita maldade. — Ruslan levanta a cabeça.
— Suas chaves estão do lado da sua bolsa e do seu celular. — Assinto,
indo até lá. Olho para ele e depois para as chaves.
— Se eu fugir?
— Eu te encontro.
— Se eu não quiser que você fique? — Ele pega a faca ainda me
encarando, meu coração acelera quando ele começa a picar o tomate.
— Eu vou embora. — Declara, largando a faca de forma rude. — Eu...
vou embora agora! — Ele diz caminhando em direção à porta. Ele gira a
maçaneta e a abre, fico surpresa por estar aberta. — Perdoe-me por ter te
assustado. — Dizendo isso ele sai, batendo a porta em seguida.
Solto a respiração estranhando o fato de ter sido tão fácil tirá-lo daqui,
mas por que me sinto mal por isso? Fico encarando as rosas dentro de um
copo com água, ele se preocupou em mantê-las bem, me aproximo e acaricio
as pétalas.
Ruslan disse que não tem ninguém, na entrevista confessou que
ninguém o visitava, e que sua família não queria contato com um assassino.
Ele foi preso quando completou 18 anos, viveu em dois presídios antes de ser
sentenciado a prisão perpétua, sendo trancafiado no Colony 100 e declarado o
homem mais perigoso da Ucrânia.
Olho para porta, ele está sozinho, não tem dinheiro, não tem amigos e
muito menos comida. Está foragido e só tem a mim... céus, por que estou
pensando em ajudar um criminoso?
Seus olhos vazios me dizem coisas bem diferentes do que é falado, tem
alguma coisa de errado nessa história que está despertando minha
curiosidade.
Inspiro fundo e vou até a porta, nunca fiz nada de idiota. Sempre fugi,
tentei gritar para todos dizendo o que estava fazendo comigo e muitos não
acreditaram, me condenaram, me apedrejaram, foram quinze anos vivendo
sozinha sem permitir que ninguém se aproximasse. Eis que farei a primeira
burrice da minha vida.
Abro a porta e paraliso ao vê-lo encostado na parede do outro lado com
os braços cruzados, seus olhos encaram seus tênis surrados. Ele sabia que eu
não o deixaria no frio passando fome, seu olhar se encontra com o meu.
Respiro fundo tomando a decisão que poderá me levar a morte, porém,
preciso me arriscar, enfrentar o desconhecido, permitir que entrem em minha
vida, mesmo que seja um criminoso.
— Eu te ajudo.
A solidão é a sensação mais angustiante que o ser humano pode sentir,
ela nos deixa vulneráveis, desamparados e acima de tudo, sozinhos. Ela é
opressora, te envolve em um casulo e te deixa como um nada.
Hoje ela se tornou minha única companhia, junto a ela vi o tempo
passar por essas grades e pela pequena televisão. Através da minúscula janela
da minha cela, eu vi a neve, a chuva e os raios solares, tudo sem poder tocar...
sem poder sentir.
Luto a cada dia para não perder o único fio de esperança que me
mantém respirando, quero poder voltar ao mundo, sentir a brisa em meu
rosto, a chuva colidir na minha pele e o sol me acariciar como lábios
delicados.
Minha mente se perde facilmente, durante meus dias e minhas noites eu
só tenho meus pensamentos como amigo. Às vezes ele se torna meu inimigo,
sempre me leva para o inferno onde vivi, para os momentos de humilhação,
de dor e vergonha, de olhares vazios, olhares maldosos... Às vezes, desejo
que minha mente se cale, e eu já tentei, inúmeras vezes tentei, mas algo
sempre me impede de ir em frente, me trazendo do abismo, me fazendo
questionar se o que vivi foi realmente o inferno ou se o inferno é ainda pior.
Dirijo pelas ruas com meus pensamentos presos na conversa que tive
com Artem, algo nele me incomoda, pode ser o olhar astuto ou o sorriso frio,
mas tem alguma coisa por trás daqueles olhos verdes. Entro em um bairro de
classe baixa, onde há crianças descalças brincando na rua, as casas estão
desgastadas e velhas, há mendigos deitados no chão e jovens em grupo
conversando.
Mais adentro, viro em uma esquina que é menos pobre da que estava
passando, aqui as casas são melhoradas, há lojas de flores, sacolão e até um
mercadinho de esquina.
— É esse o bairro onde Ruslan morava? — Pergunto, estacionando o
carro um pouco distante de uma frutaria.
— Creio que sim... — Yaroslav diz olhando para o gps. — É aqui!
Desço do carro e olho em volta, as pessoas nos encaram desconfiadas,
garotos param de conversar para nos observar, meus olhos são atraídos para
uma senhora que está borrifando água nas frutas. Apanho minhas coisas e
com Yaroslav ao meu lado, me aproximo dela.
— Senhora Bohuslava? — Pergunto, ela nos olha com as sobrancelhas
franzidas e cara de poucos amigos.
— Sim, o que querem?
— Meu nome é Laura e esse é meu colega Yaroslav, somos colunistas
do jornal AS, gostaríamos de fazer algumas perguntas relacionadas a Ruslan
Rotam — a senhora diante de mim congela, seu rosto adquire uma expressão
assustada, despertando em mim um alerta nada agradável.
— Senhora? —Yaroslav a tira do transe, Bohuslava fita seu rosto e
limpa a garganta, tentando esconder sua surpresa.
— Perdoem-me, mas não tenho nada a declarar — diz, voltando a
borrifar as frutas e desviando o olhar, reparo que suas mãos ficam trêmulas,
olho para meu colega que dá de ombros.
— Peço desculpas por nossa insistência senhora, mas estamos
documentando a vida de Ruslan...
— Como já disse, não tenho nada a falar.
— Soube que a senhora é muito amiga da mãe dele e que o viu crescer
— ela me olha com raiva. — Por favor, só queremos a verdade! — Lanço lhe
um olhar de súplica, porque preciso desse emprego e claro, descobrir mais
sobre o criminoso que está abrigado em minha casa
— Ruslan... — Bohuslava suspira, encara as frutas e sorri de leve
perdida nas lembranças. — Eu o vi nascer, assim como seus outros irmãos,
mas ele era diferente...
— Diferente como? — Pergunta Yaroslav, pego meu gravador.
— A senhora se importa se eu... gravar? — Ela fica me encarando
receosa, sustento o olhar dando-lhe a confiança que precisa, Bohuslava
assente.
— Ruslan tinha uma alma livre antes do seu pai falecer. — Bohuslava
entra na frutaria, seguimos ela enquanto borrifa água nas outras frutas.
— Ele era um bom garoto? — Pergunta Yaroslav.
— Ruslan era o melhor garoto que já conheci, era sonhador,
trabalhador e muito, mas muito carinhoso. — Ela sorri para nós com os olhos
brilhando. — Uma vez, ele percebeu o quanto eu estava triste, então veio até
mim e sem dizer nada, me entregou um botão de rosas vermelhas e disse-me
que tudo iria passar. Pode ser algo bobo, mas aquele garoto iluminou meu
dia.
Bohuslava nos entrega uma maçã gentilmente, aceito evitando que me
toque, ela me encara e sorri.
— Ele gosta de... rosas? — Pergunto, a senhora assente.
— Ruslan era apaixonado por elas, desde que nasceu sempre gostou de
flores.
— Pelas informações que temos, — Yaroslav fala — Ruslan vendia
rosas para ajudar a família, correto?
— A família Rotam nunca teve muito dinheiro, sempre passaram por
dificuldades, mas Lemmar, seu pai, sempre conseguiu sustentar a família,
nunca deixou de colocar comida no prato, até... falecer. —Sinto um aperto no
coração da forma triste que Bohuslava fala. — Okasana nunca tinha
trabalhado na vida, a crise econômica dificultou em arrumar um emprego
decente, então ela fazia faxinas, não ganhava muito, mas o pouco dava para
alimentar seus filhos, só que tinha dias em que ela não conseguia dinheiro.
Infelizmente muitas noites eles dormiam sem se alimentar, e mesmo assim,
Ruslan não tirava o sorriso do rosto. Foi nessa época, incapaz de ver a família
sofrer que começou a vender rosas.
— Ele conseguia ganhar muito? — Pergunta Yaroslav, Bohuslava dá
de ombros.
— Era o suficiente para levar comida para casa. — Ela respira fundo.
— Ruslan trabalhava dia e noite, fazia sol ou chuva, ele estava lá na esquina,
nos bares, restaurantes, parques, vendendo suas flores. Fazia de tudo para
ajudar seus irmãos.
— A senhora nunca percebeu algo diferente nele? — Pergunto. —
Ruslan escondia segredos? Era agressivo ou algo parecido? — Bohuslava
nega com a cabeça.
— Ele era um garoto abençoado — ela cruza os braços.
— Como foi sua reação ao descobrir que ele era um... assassino? —
Bohuslava abaixa a cabeça, ela aperta os lábios.
— Não acreditei que isso fosse possível, porque Ruslan era incapaz de
matar uma mosca, ainda mais tantas mulheres. — Ela balança a cabeça,
incrédula. — Era impossível naquela época, mas as provas estavam lá,
esfregando na minha cara que aquele garoto que vendia flores com um
sorriso lindo, era um perigo para qualquer mulher.
— Como ficou a família? — Yaroslav pergunta, curioso.
— Destruídos...
— A senhora acredita que ele pode ser inocente? — Ela me encara. —
Hum... que alguém armou para ele? — Yaroslav me olha surpreso com minha
pergunta.
— Eu não sei, é confuso... — Bohuslava diz, descruzando os braços e
se afastando. — Desculpe-me, mas não quero mais responder suas perguntas,
já falei demais.
— A senhora sabe que Ruslan fugiu da cadeia? — Ela assente,
ajeitando as frutas uma em cima da outra.
— Sim, eu vi na tv.
— O que achaste sobre o ocorrido? — Yaroslav insiste, ela congela e
nos olha.
— Eu acho que é uma ferida que não deve ser tocada e que vocês
devem ir embora. — Umedeço meus lábios, quero que fale mais, porém, não
quero irritá-la ao ponto de futuramente não querer mais nos ver.
— Muito obrigada pelo tempo que dispôs a nos dar, senhora Bohaslava,
sinto por termos a incomodado. Tenha um ótimo dia! — Ela assente, olho
para Yaroslav e saio da frutaria.
Dentro do carro, encaro a maçã que me deu, pensando em Ruslan no
passado, como um garoto tão amado pôde se tornar um assassino de sangue
frio?
— “Eu acho que é uma ferida que não deve ser tocada” — Yaroslav
imita Bohuslava, me despertando do devaneio, olho para ele que parece
irritado. — Por que isso soou estranho? — Ele me fita com a mesma
desconfiança que eu.
— Porque algo está muito mal contado.
— Você acha? — Inspiro fundo, fitando a fruta em minha mão.
— Tenho certeza!
Estar do lado de fora das grades depois de anos é como aprender tudo
de novo, é andar por um caminho desconhecido que você não está preparado
para enfrentar.
Mesmo que eu tenha assistido tudo mudar através de uma tv, nada é a
mesma coisa que ao vivo. O cheiro de comida, o timbre da voz das pessoas,
as risadas de crianças... tudo muito diferente de 14 anos atrás.
Embora eu esteja vagando pelas ruas, ainda não estou livre, posso ser
preso a qualquer momento e sou uma presa fácil para qualquer delator que
esteja interessado na recompensa que colocaram em minha cabeça.
Arranco o papel grudado na parede com minha foto e o jogo no lixo
com um pouco de raiva. Se eles tivessem ao menos me ouvido... se tivessem
investigado mais a fundo... não teriam destruído minha vida e nem da minha
família.
A raiva que sinto não é por causa da verdade não dita, mas também da
injustiça que fizeram com um garoto repleto de sonhos. Engulo o nó que se
formou na garganta ao vê-la sair da frutaria da Bohuslava, a mulher que me
olhava com fervor, com orgulho e amor, tão mais velha que percebo o tanto
que perdi.
Olho para o céu alaranjado, indício de que o verão vem vindo, pisco
para dissipar a dor que esmaga meu coração por não poder ao menos, sentir o
cheiro das pessoas que amo.
Sua voz navega por meu corpo... a voz que me fazia dormir, que me
incentivava a continuar... a voz que tanto amo. Espio através do muro do
beco onde estou escondido.
Seus cabelos estão grisalhos, seu rosto com marcas de uma vida repleta
de provações e tristezas, mas com muitas histórias a contar e aprendizados a
nos dar.
Ela está tão linda!
Quero tanto poder sair de onde estou escondido para correr ao seu
encontro e me aconchegar em seus braços, dizer o quanto me doeu vê-la
sofrer por minha causa, contar a ela tudo de ruim que passei, e que em todos
esses momentos chamei por seu nome, o nome da minha mãe.
Mas nada disso posso fazer, apenas observá-la de longe, dizer mesmo
distante o quanto a amo e que entendo os motivos que a impediu de visitar
seu filho na prisão.
Exalo profundamente ao sentir meus batimentos acelerados, minhas
mãos tremem querendo tocá-la. Será que ela está bem? Será que ela ainda se
lembra de mim ou será que ela me esqueceu? Ela está feliz?
Espero que esteja feliz.
Ajeito meu capuz e a máscara no rosto quando começa a caminhar na
direção de casa. Viro e adentro mais ao fundo do beco, coloco as mãos no
muro, sentindo a superfície gelada devido ao frio. Dou um passo para trás e
com impulso escalo o muro, aterrissando do outro lado, em um outro beco.
É impressionante como muitas coisas se mantém iguais, principalmente
minhas lembranças de quando fugia das normas do meu tio. Eu sabia
perfeitamente por onde correr e como me esconder.
Espero mais alguns segundos encostado na parede a espera dela. De
onde estou, consigo ter o vislumbre da minha casa reformada, ela me olha
com saudade, é como se estivesse feliz por me ver. É apenas a casa onde
passei os melhores dias da minha vida, mesmo passando fome e necessidade,
ali era o meu lar.
Fecho os olhos ao escutar seus passos lentos, pesados e cautelosos, ela
não mudou nada, sempre cuidadosa por onde vai. Mamãe cantarola baixinho,
uma mania que tem de se desligar de tudo enquanto caminha pelas ruas.
Que saudade!
Inspiro fundo e quando ela vai passar por mim, saio do beco com a
cabeça baixa, esbarrando em seus ombros e fazendo-a derrubar uma sacola.
— Oh, senhor! — diz se agachando para recolher as maçãs.
Sua voz penetra em meu coração, fico congelado vendo-a pegar as
frutas de forma calma, ela fala alguma coisa, mas não consigo reagir. De
todos esses anos, essa é a primeira vez que fico perto da primeira mulher que
já amei em toda minha vida.
— Eu compreendo que deves estar com pressa, mas tenha cuidado —
resmunga, me despertando.
— Perdoe-me meu descuido — digo, me agachando e ajudando-a a
apanhar as frutas, minhas mãos estão trêmulas e sinto a emoção me consumir
aos poucos, meu coração bate tão acelerado que começa a doer.
— Assim está bem — fala pegando a sacola de minhas mãos, então ela
congela quando a toco sutilmente.
— Perdoe-me — sussurro, não por ter esbarrado nela, mas pelo
sofrimento que a causei.
Quando ela vai erguer a cabeça para me olhar, me levanto apressado e
volto para o beco, me misturando com as sombras. Ouço um arfar, olho para
trás, assistindo-a pegar uma rosa que deixei no chão ao seu lado.
Ela sabe que era eu... toda mãe sabe quando está de frente para o seu
filho.
Escalo mais uma vez o muro e quando aterrisso do outro lado, deixo
me cair em um choro engasgado. Foi tão difícil me segurar para não a
abraçar, e dizer que estava de volta.
Me levanto segundos depois, recompondo-me da desolação que estou
sentindo, é como se nada fosse capaz de preencher o buraco em meu coração.
Não sei se um dia serei capaz de me recuperar. Quem sabe quando eu o
colocar no lugar em que sempre pertenceu, provando minha inocência, assim
poderei finalmente...
Escuto uma sirene sutil de polícia fazendo meu coração saltar em
desespero. Apresso meus passos, pulo alguns muros entre um beco e outro
tomando cuidado para não ser visto.
Fico escondido até a noite cair, sendo melhor para vagar entre as ruas
de Kharkiv sem que chame atenção. Estremeço com o vento gelado, sempre
olhando para todos os lados à procura de qualquer perigo.
É fácil eu me perder, minha mente sempre me leva para os lugares e
momentos em que quero esquecer. Coloco as mãos dentro do bolso da blusa
de moletom, as poucas pessoas que passam por mim não dão a mínima para
um homem vestido de preto, com capuz e uma máscara, para eles estou
apenas me escondendo do frio.
Paro em frente a um prédio em construção, há luzes espalhadas por
cada canto, máquinas estão ativas e escuto comandos, conversas e ordens dos
trabalhadores que provavelmente irão passar a noite levantando esse prédio.
Olho para cima, avistando dois homens vestidos de amarelo com
capacete e de repente sou levado para lá, para o inferno em que vivi por tanto
tempo.
Seis meses se passaram... seis longos meses de tortura, sofrimento e...
fecho meus olhos sem conseguir dizer a palavra, envergonhado e enojado
com toda essa situação.
Às vezes desejo morrer para que tudo isso acabe, pois a cada dia que
peço para que isso acabe, pior fica. Jaroslav não tem compaixão, então
quando percebe que possivelmente eu possa ter me acostumado com certa
tortura, na próxima ele pega mais pesado, é mais violento e impiedoso.
Sou o brinquedo de um lunático, tornei sua vida menos entediante,
trazendo diversão para seus dias de prisão. Meu choro, minha súplica, meu
sofrimento é tudo o que ele deseja e a morte é tudo o que eu peço.
Sem nenhuma visita ou respostas de um possível erro, assisto minha
vida sendo destruída, meus sonhos desaparecendo e minha esperança se
esvaindo. Não entendo como uma pessoa poderia fazer isso com um garoto
inocente, eu vi seus olhos queimarem de ódio naquele beco, eu senti como me
olhava com ódio, mas nada foi dito.
Caminho pelo corredor depois das celas serem abertas para a hora do
banho de sol. A superlotação é assustadora, qualquer movimento errado
pode te colocar em perigo, aqui todos estão prestes a explodir e você não
pode fazer nada contra isso.
Estou há dois dias sem comer, Jaroslav faz de tudo para que eu
implore até mesmo por um prato de comida. Nenhum detento ousou desafiar
o senhor do presídio, mesmo me lançando olhares de pena, muitos de
indignação, eles não seriam tão burros ao ponto de ir contra Jaroslav.
Estou inerte em meus pensamentos até que sinto um empurrão nas
costas, dou dois passos para frente batendo em um muro de músculos. Olho
para cima já apavorado, Ararat sorri com malícia, meu coração dispara ao
lembrar dele atrás de mim, obtendo seu prazer doentio enquanto os outros
assistiam com diversão.
— Fugindo, hein? — Engulo em seco, apavorado, sou puxado para
longe de Ararat, seguro no corrimão ao sentir um aperto forte na minha
nuca.
— Tu precisas fazer uma coisinha para o Senhor Joroslav —
reconheço a voz de Zelai, seu capanga fiel, engulo em seco olhando para
baixo.
As celas da unidade 69 ficam em vários andares, a minha é no terceiro,
podendo assim ter uma queda nada agradável daqui de cima.
— Porém, antes precisamos fazer uma coisinha — solto um grito de
pavor ao sentir erguerem minhas pernas e as jogarem do outro lado, em
instantes me vejo pendurado e agarrado ao corrimão, o peso do meu corpo
não ajuda, fazendo com que eu escorregue.
Tanto Ararat, quanto Zelai, caem na gargalhada vendo meu desespero,
sinto vontade de soltar e deixar-me cair, só que algo me impede de tomar
essa decisão que pode levar minha vida.
— O negócio é o seguinte, putinha — Zelai se inclina no corrimão. —
Você receberá uma visita íntima, pegará o que ela te entregar e nos trará. —
Seguro mais firme ao escorregar, minhas mãos começam a soar, olho para
baixo, vários detentos pararam para observar, os guardas nem ligam para o
que acontece aqui.
— Acho que não entendeu — solto um gemido de dor sentindo uma
lâmina afiada rasgar minha pele. Ararat sempre carrega uma com ele, e é a
mesma que causou ferimentos por toda parte do meu corpo.
— Tenho a sua resposta? — Zelai pergunta, quero poder recusar por
já saber do que se trata e o que querem, mas... é pedir para morrer.
— Sim... sim... — Murmuro, eles sorriem.
— Às 18:00 horas um guarda irá te buscar, bico calado e quando nos
entregar, pensamos em facilitar as coisas. — Zelai diz se afastando, Ararat
se inclina, rodando o canivete em seus dedos, me encarando de um jeito
doentio e asqueroso.
— Depois se prepara, te encontro na sua cela depois da hora de
recolher — pavor dispara meu coração, de novo não... não... não... Ele sorri
de prazer vendo-me apavorado, me lança mais um olhar e se afasta, me
deixando pendurado.
Um choro se instala em minha garganta, quero tanto poder soltar esse
corrimão e acabar com todo esse sofrimento. Penso, olho para baixo e penso
se isso vale a pena, serei apenas mais um criminoso morrendo, não farei
falta, então realmente penso, chegando à conclusão de que é a melhor coisa
a se fazer.
Fecho meus olhos, relembrando dos momentos que vivi fora daqui,
onde era feliz com o pouco que tinha. Deixo minhas mãos escorregarem,
porque é isso o que eu quero, desaparecer.
— Nada disso, moleque! — Mãos seguram meu pulso e me impulsiona
para cima, colocando-me no chão firme de volta. — Não será hoje que fará
isso.
Me levanto com ajuda de alguns detentos, não olho para nenhum em
especifico, apenas assinto e caminho em direção à minha cela, quebrado e
dilacerado demais para contestar qualquer decisão que fizeram por mim.
Sentado na cama eu espero, aguardo a hora que me falaram com o
olhar fixo no meu novo machucado, faço com que minha mente se desligue, a
cada dia fica mais fácil deixar com que ela vague, esquecendo-me do que
está acontecendo ou do que me fazem todas as noites.
Quero lutar contra todos que me fazem mal, quero que parem de me
machucar, de me humilhar e me usar como um brinquedo. Quero me
reerguer e mostrar que sou forte, mas... nada disso acontece, porque sou
fraco e sou a minoria e estou sozinho.
Esfrego meu rosto, as horas se passam e eu me mantenho imóvel,
encarando minhas mãos entrelaçadas. Sou despertado quando um dos
guardas bate na grade, me viro para ele.
— Visita íntima, 179 — diz, ando até ele, viro de costas colocando as
mãos na abertura da grade para que me algeme.
O guarda me tira da cela e me leva por entre os corredores. Jaroslav
me lança um olhar mortal quando passo por sua cela, deixando claro que se
der algo de errado, pagarei caro por isso. Ódio e nojo me consomem ao
encarar seus olhos, desvio segundos depois sem coragem de desafiá-lo.
Ando com a cabeça baixa, sem prestar atenção por onde estão me
levando, me sinto amortecido, sozinho e dolorido, meus machucados sempre
inflamam e os homens de Jaroslav não são gentis.
Um outro guarda me revista, me entrega uma toalha, forro de cama
limpos e um pacote de preservativo, sou empurrado para dentro de uma sala
e trancado ali dentro. Respiro fundo olhando pelo cômodo até prender meu
olhar em uma mulher com pouca roupa, maquiagem forte e um salto agulha.
— Olha o que me trouxeram — ela diz, passando a língua nos seus
lábios vermelhos vibrantes. — Own... tão novinho!
Ela se aproxima, seu perfume forte impregna minhas narinas, ela
passa a mão por meu rosto, me analisando. Ela apanha o preservativo o
prende entre os dedos, sorrindo para mim.
— O que achas de aproveitarmos enquanto isso? — Ela aguarda
minha resposta, desço os olhos por seu corpo, peitos fartos, cintura fina e
pernas torneadas.
— Acho que não — recuso, porque não faço ideia de quem ela possa
ser para Jaroslav, porque se algo a mais acontecer, pode sair muito caro
para mim.
— Ele te avisou que não poderia me comer? — Pergunta, começando a
tirar suas roupas, sinto meu pau endurecer ao vê-la completamente nua...
porra, ela é atraente!
Engulo em seco, apertando a toalha e o forro que ainda seguro. Sinto-
me esquentar quando ela se vira de costas, sua bunda empinada revira meu
ser, aflorando meu desejo.
— Não se preocupes com o que ele diz — ela fala, se engatinhando até
o meio da cama, prendo a respiração ao assisti-la se apoiar nos cotovelos e
abrir as pernas lentamente com os olhos presos em mim.
— Não posso arriscar — sussurro, sentindo meu pau pulsar
desesperado querendo afundar no seu interior, e quem sabe, me dar um
alívio e prazer que talvez eu precise.
— Ninguém irá contar, será nosso segredo — prendo a respiração,
observando-a se masturbar... céus...
Dou um passo à frente, ela joga a cabeça para trás gemendo, me
enlouquecendo, só que de repente, congelo. Meus olhos arregalam ao notar
ela tirando vários pacotinhos de dentro da sua buceta.
— Isso... isso...
— Cocaína, bebê — revela, gemendo mais um pouco enquanto tira um
por um, me surpreendendo. — Jaroslav não te falou?
— Eu imaginava.
— Hum... — Murmura, se masturbando e tirando mais drágeas de
dentro dela. — Agora tira as roupas e venha fazer o resto do trabalho.
Fico estagnado olhando para ela sem saber se devo fazer isso. Meu
pau pede desesperadamente por ela, encaro sua intimidade, ela está tão
excitada...
— Vamos, antes que eu fique irritada — diz com raiva, ao mesmo
tempo em que geme ao colocar os dedos dentro da sua buceta.
Engulo em seco, mesmo receoso tiro minhas roupas. Seus olhos
percorrem meu corpo magro até se prender na minha ereção.
— Ótimo, nada mal para um garoto — ela se abre mais, mordendo
seus lábios com sedução. — Chegue mais bebê, temos mais para tirar de
dentro daqui.
Me aproximo dela sem jeito, paro no meio de suas pernas e a vejo
fechar os olhos e sorrir. Inspiro fundo, sentindo o tesão ficar insuportável de
aguentar, então com cuidado e delicadeza, começo a masturbá-la, assim
como estava fazendo.
— Isso, bebê... — murmura com a voz embargada.
Ela se remexe ao meu toque querendo mais, então com dois dedos
afundo na sua boceta, sentindo-a pulsar. Sua pele macia e quente me deixa
ainda mais louco, até que sinto. Seguro firme e retiro de dentro dela um dos
pacotinhos, repito umas cinco ou sete vezes, perdendo a conta devido ao
desejo.
Quando não encontro mais, ela me lança um olhar fervente. Quero
transar com ela, só que... não sei se posso. Ela ergue a camisinha, rasga a
embalagem e com um sorriso safado estende para mim.
— Agora venha, temos mais uma hora — pego de sua mão e ajeito a
camisinha no meu membro.
Se é para transar com ela eu não faço ideia, mas depois de tantos
meses aqui, fazer sexo será a primeira coisa prazerosa que terei, talvez a
única, então paro de pensar nas consequências e avanço em sua direção, me
afundando nela com tanto desejo que quase gozo de imediato.
Não é a minha primeira vez, mas também não é das muitas, nunca fui
um cara pegador, até porque nunca tive tempo para isso, mal conseguia me
alimentar, ainda mais transar com várias mulheres todos os dias.
Fecho meus olhos escutando seus gemidos, ela me leva ao ápice do
prazer, me fazendo esquecer por alguns minutos o que é viver aqui. Quando
meu pau pulsa, reprimo um ganido ao sentir-me gozar, ela me acompanha
com um grito suave.
Me afasto um pouco tonto, minha respiração está acelerada e suor
escorre por meu corpo. Ela esfrega mais uma vez sua buceta e sorri com
malícia, me olhando fixamente.
— Você é delicioso, bebê — ela apanha os pacotinhos de drogas e
volta a me olhar. — Agora abra a boca.
— O quê-ê? — Ela me olha com impaciência, se aproximando.
— Tu achas que essas drogas entraram como dentro da cadeia? —
Engulo em seco, assustado.
— Tu queres que eu... que eu engula?
— Ou engole, bebê, ou teremos que colocar no buraco atrás de você —
olho para trás, mas então entendo.
— No meu ânus?
— Abra a boca, não tenho mais tempo — diz com uma certa fúria.
Claro que não fui enviado aqui para transar com uma prostituta
gostosa, talvez isso seja apenas um bônus do que terei que enfrentar.
Ela segura meu queixo e curva minha cabeça para trás, abro a boca.
— Esses pacotinhos estão muito bem embalados, normalmente depois
de engoli-los, você teria que tomar um medicamento para diminuir a
velocidade de movimento de substâncias pelo trato digestivo, até que os
pacotes sejam recuperados, só que não tenho esse remédio — esclarece,
afundando a droga por minha garganta, engulo com dificuldade. — Se uma
delas se romper, você poderá morrer de overdose, então ao sair daqui não
coma e não beba, evite movimento bruscos até tirá-las de dentro de você.
Assinto, calado e aterrorizado, sem saber onde eu errei para minha
vida chegar a esse ponto. Depois de me fazer engolir todos os pacotinhos de
cocaína, ela se afasta e sorri.
— Prontinho — ela se levanta e me ajuda. — Boa sorte, bebê!
Visto minhas roupas, minhas mãos tremem sem parar, meu coração
palpita tão desesperado que temo o pior. Estou assustado com isso, Jaroslav
me quer como sua mula, aquele que leva drogas para dentro da cadeia sem
que os guardas percebam.
— Visita encerrada — um guarda grita do lado de fora, inspiro fundo,
olho mais uma vez para a mulher que retribui com um sorriso antes de me
virar e sair do quarto, pelo menos agradecido pelos momentos de prazer.
Dois deles me seguram pelo braço me levando para outra sala, uma
vazia e gelada. Olho para eles sem entender o que estão fazendo. Um dos
guardas, esboça um pequeno sorriso... um sorriso frio que revira meu
estômago.
— Tira as roupas — não espero que repita a ordem e as tiro
rapidamente. — Agora vai até aquela parede, coloque as mãos nela e abra
as pernas um pouco curvado.
Engulo em seco e faço conforme ordenou. Fecho meus olhos ao sentir
dedos enluvados entrar no meu ânus à procura de algo que eu esteja
escondendo, mas as malditas drogas estão no meu estômago.
Fecho meus olhos diante de tamanha humilhação. O guarda diz que
estou limpo, se afasta, inspiro fundo e de repente solto um grito quando jatos
de água gelada atinge meu corpo, me lavando e tirando todo o vestígio de
suor e sexo da pele.
Engulo o caroço que se formou na garganta, sinto vontade de chorar,
de pedir para que me levem de volta para minha família porque não sei se
serei capaz de suportar tudo isso dia após dia.
Os guardas me lançam olhares divertidos ao me verem tremer de frio,
eles me entregam uma toalha para que possa me enxugar, visto minhas
roupas e sou levado de volta para minha cela.
Eles me deixam no meu lugar, retiram as algemas e vão embora, eu
apenas espero a hora certa de entregar tudo o que está dentro de mim para o
verdadeiro dono.
Duas horas depois sou mais uma vez levado da minha cela, só que
pelos capangas de Jaroslav. Entro no banheiro fedorento, ele está com os
braços cruzados à espera.
— Coloque para fora, garoto — ele chuta um balde, assinto e com um
pouco de dificuldade para vomitar, consigo colocar tudo para fora, pelo
menos acho que tirei tudo.
Jaroslav sorri, encarando os pacotes que tirei através do vômito. Meu
coração dói devido as batidas descompassadas. Se estiver sobrado um
pacotinho dentro de mim, poderá ser meu fim.
Sobressalto quando ele segura meu pescoço com força, seu olhar
penetra no meu, ao invés de me sentir aliviado, sinto muito mais medo,
porque ele não vai parar.
— Bom garoto — fala, batendo com força em minha bochecha. —
Transaste com ela? — Engulo em seco, nego com a cabeça, mentindo
descaradamente. — Se não, foi burro em não aproveitar, mas me trouxe o
que eu precisava, isso que importa. — Jaroslav se afasta, olha para seus
capangas e acena de leve com a cabeça. — Cuidem dele, acho que ele
precisa aliviar a tensão.
Congelo, arrepio de pavor espalha por meu corpo, Jaroslav sai do
banheiro, me viro devagar e assisto o sorriso de vitória dos dois homens
parado à minha frente. Quero poder gritar, ordenar que não me toquem, mas
é impossível.
Eles avançam, sedentos e me prensam contra a parede, lágrimas
escorrem por meu rosto e fecho meus olhos, fazendo com que minha mente se
desligue de todo esse inferno...
— Ei cara! — Uma voz grossa e firme me tira do passado, encaro o
homem diante de mim, me encarando com a testa franzida, leva um tempo
para me recuperar. — Estás bem? — Pergunta.
Elevo meus olhos, observando mais homens me olhando com
curiosidade. Assinto, voltando para o homem à minha frente.
— Preciso de emprego — digo, ele aperta os lábios. — Não tenho
medo do pesado.
— Você parece perdido — fito seus olhos através dos seus óculos.
— Sim, estou à procura de emprego, mas não encontro.
— Não pagamos muito.
— Não há problemas, só preciso de um emprego — ele assente,
franzindo a testa, olha para trás cogitando meu pedido.
— 150 grívnia[2] a diária — diz, voltando a me encarar.
— Okay! — Concordo, é pouco, mas é um dinheiro bem-vindo.
— Sou Egor, o responsável por essa construção — ele informa, me
guiando para dentro. — Ei Alexei! — grita, me entregando um capacete
alaranjado. — Temos um para substituir Maxim.
Egor bate em meus ombros e aponta para o cara que se referiu ao
Maxim. Ele me diz o que devo fazer, assinto obedientemente prestando
atenção nas suas instruções.
Minutos depois começo a soldar, focando no serviço duro e me
esquecendo do que atormenta minha alma, e assim me desligo tanto do
passado quanto do presente.
Me encolho quando escuto gritos do lado de fora, a voz da minha
mãe está alterada, furiosa. Fecho meus olhos querendo dormir para que tudo
isso acabe, mas sei que não vai acabar, ela vai se afundar na bebida, vai me
deixar sozinha e tudo se repetirá.
Quero tanto fugir!
Depois de longos minutos, tudo fica silencioso, não ouço passos, nem
vozes, apenas as batidas aceleradas do meu coração. Tateio a mesinha ao
lado da minha cama em busca do meu celular. Desbloqueio a tela e entro no
site de novo, pela milésima vez só hoje, esperando, ansiando por alguma
resposta.
Eu vou conseguir!
Sobressalto quando uma porta bate, estremecendo as paredes. Prendo
a respiração, eu sei que é ele. Engulo com dificuldade, seguro o celular com
mais força, olhando pela escuridão do meu quarto.
Ele não costuma ligar as luzes, e quando minha mãe está fazendo
programas, ele sempre vem... foi assim desde que eu tinha sete anos, desde
que minha mãe o trouxe para casa.
Escuto passos pesados, sinto cheiro de bebida, meus pelos eriçam,
minha mente grita para eu fugir, gritar e pedir ajuda, mas meu corpo não me
obedece. As ameaças, a influência que tem na nossa pequena cidade me
impede de pedir ajuda...
Ele disse que se eu contar vai matar minha mãe, e toda vez que o
desobedeço, ele a machuca, a agredindo furiosamente. Só que estou cansada,
tenho medo e meu corpo... meu corpo é repugnante e... e...
Escuto minha porta ranger, meus olhos imediatamente se enchem de
lágrimas, aperto minhas pernas contra a outra, porque dói, ele sempre me
machuca.
Escuto-o se aproximando e parando ao meu lado na cama, aperto o
celular contra o peito, reprimindo o choro. Minhas cobertas são tiradas de
cima de mim, solto um gemido de angústia quando sinto suas mãos subindo
por minhas pernas, quero gritar e pedir para que não me toque, mas isso
resultaria em mais dor, seria mais agressivo e... bateria na minha mãe até
ela não conseguir mais andar.
Quero tanto morrer.... Esse é o pensamento que tenho quando ele sobe
na cama depois de tirar meu pijama, sinto sua pele e já sei que está sem suas
calças, é sempre assim... fecho meus olhos, meu estômago embrulha de novo.
— Viu o que você me fez? — Sua voz faz meu corpo inteiro estremecer
de medo. — Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas pessoas, por isso que
faço isso, ninguém gosta de você, Lauriana.
Solto um gemido ao sentir suas mãos em volta do meu pescoço, abro os
olhos, encontrando seu olhar insano, perverso. Ele está furioso comigo, mas
por quê? O que eu fiz?
— É tudo culpa sua — fala, o brilho de seus olhos é a única coisa que
consigo ver na penumbra. — Ninguém vai te amar, sua mãe não te ama...
Lágrimas escorrem por meu rosto, suas mãos começam a apertar meu
pescoço com mais força, um choro silencioso sai da minha garganta.
— Eu vou te punir por isso — solto um grito quando sinto dor entre
minhas pernas, solto meu celular e seguro seu pulso, tentando fazer com que
diminua o aperto que está me tirando o ar.
Só que não consigo, a dor é demais e hoje... hoje ele quer apenas me
machucar. Fecho meus olhos em um pedido silencioso por ajuda, se eu
tivesse apenas uma pessoa... se uma pessoa pudesse me ajudar, eu... eu...
fugiria desse inferno.
— Nunca te machuquei, mas veja como você me deixa — fecho meus
olhos com mais força, apertando seus pulsos. — Isso é por você não me
obedecer...
Solto outro grito quando me violenta com mais força, eu sempre chamo
por minha mãe, mas ela nunca vem, então se ela não pode me salvar, quem
poderá?
Abro os olhos e arfo ao despertar, meu corpo inteiro está encharcado de
suor, meu rosto molhado de lágrimas. Me levanto apressada e ligo as luzes
com as mãos tremendo, olho pelo quarto, temendo vê-lo.
Solto um gemido, no meio das minhas pernas sinto dor. Destranco a
porta do quarto e vou direto para o banheiro, me dispo e entro no chuveiro,
começando a esfregar com força meu corpo na tentativa de tirar a sensação
do seu cheiro em mim.
Ninguém vai te amar, sua mãe não te ama...
Começo a chorar ao mesmo tempo que sinto a dor da esponja contra
minha pele. Sua voz dentro da minha cabeça não sai, então começo a bater
minha mão contra ela, pedindo desesperadamente que vá embora.
Você é asquerosa, só sabe dar nojo nas pessoas, por isso que faço isso,
ninguém gosta de você, Lauriana.
Caio de joelhos, chorando com desespero para que ele pare de me dizer
isso. Digo a mim mesma que ele não está aqui, que não pode mais me tocar,
mas... o que adianta se ele está impregnado em minha mente?
O que eu faço para me livrar dessa dor?
Abraço meus joelhos e descanso minha testa neles, cantarolando,
focando apenas no barulho da água saindo do chuveiro e colidindo em minha
pele.
Várias vezes pensei que a morte era a única solução, ou que eu era
culpada por tudo o que estava acontecendo comigo. Sempre tentei
compreender minha mãe, mesmo se prostituindo, ela nunca me deixou faltar
nada, mesmo sem viver no luxo, ela pagava uma boa escola, cursinhos e
sempre me dizia que os estudos é o que nos leva a ser bem sucedidos.
Ela sempre teve cuidado comigo, mesmo bêbada muitas das vezes
tentou me dar o melhor, mamãe sempre se preocupou com meu futuro, nem
que para isso ela precisasse se prostituir dia e noite.
Tudo mudou quando ela trouxe meu padrasto para dentro de casa, eu
tinha cinco anos, fiquei feliz por finalmente ter ganhado um pai, embora ela
nunca tenha parado seus programas, mamãe me amava. Só que ela acabou
colocando-o entre nós, seu amor por ele chegou ao ponto de fazê-la fechar os
olhos perante o que ele vinha fazendo, perdoando-o pelas surras sem motivos,
por chegar quase todos os dias bêbado em casa, e por não trabalhar, ela o
sustentava.
Aos seus olhos ele era um bom pai, me dava amor e carinho. Na sua
presença ele era realmente um homem perfeito, tinha seus defeitos, mas
cuidava de mim e isso bastava para ela.
Mamãe não fazia ideia do que vinha acontecendo na madrugada ou
quando ela não estava em casa. As brincadeiras dele se tornou incômodas,
começou a me deixar desconfortável até que ele ultrapassou os limites.
Eu era apenas uma criança quando tudo começou, tentei falar para
minha mãe que ele me machucava e que eu não gostava das brincadeiras dele,
mas como punição por tentar revelar a verdade, meu padrasto a espancou e
ameaçou matá-la.
Sofri calada, me senti a pior pessoa do mundo, me culpava por tudo o
que estava acontecendo, mas eu tinha que proteger minha mãe. Quando meu
corpo evoluiu, mostrando que eu não era mais uma criança, mais obsessivo
ele se tornou.
Inspiro fundo, não quero lembrar do meu passado, já se passaram 15
anos, e mesmo assim ainda não consigo seguir em frente. Levanto a cabeça e
observo o estrago que fiz no meu corpo.
Esfreguei minha pele com a parte mais áspera da esponja em mim,
agora ela está vermelha e em algumas partes acabei me machucando, fazia
alguns meses que não me feria assim.
Depois de alguns minutos, me levanto, desligo o chuveiro ao me sentir
mais calma e olho para minhas roupas caídas no chão. Me aproximo e com
receio, ergo minha calcinha em busca de sangue, não encontro. Solto um
suspiro aliviado.
Ele não me tocou!
Visto um moletom quentinho e congelo, encarando a cama. Meu
coração volta a acelerar e olho para trás.
Ruslan!
Merda, eu me esqueci dele. E se ele tiver escutado tudo? Eu chorei
alto? Será que Ruslan... presenciou meu surto?
Saio do quarto e olho para a sala, a luz está ligada, assim como a da
cozinha. Escuto vozes na tv, mas não o encontro, Ruslan não está aqui.
Rony dorme no sofá tão preguiçoso como é, me aproximo e me
aconchego junto a ele. Encaro a tv que está passando O Clube das Winx. O
gato ronrona perto do meu ouvido ao deitar no meu pescoço, ele está
cheiroso, parece que tomou banho.
— Ruslan te banhou? — Pergunto, acariciando seus pelos macios e
negros. — Acho que sim!
Me perco assistindo o desenho, não faço ideia de que horas são, só sei
que é de madrugada e quando tenho pesadelos, dificilmente consigo voltar a
dormir.
Começo a piscar pesado, a coberta em cima de mim, a que está me
esquentando do frio, tem o cheiro do Ruslan e meio que... acho reconfortante,
está me acalmando de algum jeito estranho.
Fecho meus olhos, a respiração de Rony toca com delicadeza meus
ouvidos, é tão gostoso... Sobressalto quando a porta é aberta, olho em sua
direção com o coração acelerado, minha respiração está irregular e por um
segundo penso que ele me achou, mas é apenas Ruslan.
Ele fecha a porta com cuidado, suas roupas estão sujas, seus coturnos
têm barro. Ruslan se inclina e os tira, colocando em um cantinho, então ele se
vira e vai até o pequeno corredor que dá acesso ao meu quarto e o banheiro,
ele se senta no chão, encarando a parede à sua frente sem nem ao menos
notar minha presença.
O que está acontecendo com ele?
— Ruslan? — Sussurro, afastando a coberta e me levantando. — Ei,
onde você estava? — Pergunto, contorcendo minhas mãos, ele não responde.
— Você está aqui?
Ruslan exala forte, dou um passo para trás ao ver suas mãos trêmulas,
sua expressão é de dor, como se ele estivesse preso em um outro mundo,
talvez seja o dos seus pesadelos, porque apenas seu corpo se faz presente
diante de mim.
Meu coração aperta por vê-lo tão... destruído, mas acabo me afastando
e deixando-o no seu canto, até porque, não o conheço e muito menos sei do
que é capaz.
Volto para o sofá, Rony vai até ele e se aninha entre suas pernas, um
sinal de que Ruslan não está sozinho e que seu gato está lá por ele. Me cubro
com sua coberta e fico o encarando sem dizer nada até amanhecer.
Gana me deixa na porta de casa antes de ir para seu trabalho, olho para
meu prédio desgastado pelo tempo e inspiro fundo lembrando-me de Ruslan.
Quando sai cedo de casa ele não estava, o que quer dizer que passou a noite
fora.
Mil e uma coisas me vêm em minha mente em relação ao seu sumiço,
só que nem o conheço direito para exigir alguma resposta.
Céus, como posso ter abrigado um desconhecido em casa debaixo do
mesmo teto que eu? E se ele tiver voltado a matar? E se ele me mata...
— Estás pensando besteiras! — sobressalto de susto, reprimindo um
grito surpreso. A voz de Ruslan veio do pequeno beco entre meu prédio e
outro, ele está coberto pelas sombras da noite.
— Ruslan, você me assustou — murmuro, dando um passo para o lado,
tentando vê-lo melhor. — O que faz aqui fora? — Pergunto quando não me
responde.
— Esperando por você! — Diz, acendendo um cigarro, a chama que sai
do isqueiro ilumina sutilmente seu rosto coberto pelo capuz, dando-lhe um ar
de mistério e perigo.
— Você está fumando?
— Sim!
— Por quê?
— Isso importa? — Sinto seus olhos em mim, meu estômago revira.
— Isso pode te matar...
— Mais do que já estou? — Ruslan traga, a ponta alaranjada do cigarro
é a única coisa que ilumina a escuridão.
— Você quer... caminhar?
— Tu queres caminhar comigo? — Dou um passo para trás com o
coração acelerado quando ele sai do beco, sua altura é intimidante e seus
olhos penetram minha alma.
— Bom... — Limpo a garganta, contorcendo as mãos e desviando do
seu olhar. — Que mal tem?
— Existe muita maldade dentro de mim, Laura, uma delas está ficando
difícil de conter. — Engulo em seco, voltando a encará-lo.
Ruslan leva o cigarro à boca, me fitando com intensidade. Sua beleza é
tão hipnotizante que poderia passar o dia olhando-o sem piscar. Ele ganhou
peso desde que chegou e também ficou mais forte.
— Pretende me machucar? — Ele sorri, jogando o cigarro no chão e
pisando até apagá-lo.
— Não estou a falar desse tipo de maldade — murmura, colocando as
mãos no bolso e começando a andar pela calçada.
— O que fica fazendo durante o dia? — Pergunto, mantendo uma
distância segura enquanto o acompanho.
— Algumas coisas.
— Que coisas? — Ruslan me olha por alguns segundos.
— Matando não é uma delas! — Solto um suspiro longo, encarando a
rua sem dizer mais nada.
— Você já sabe o que vai fazer enquanto está fugindo da polícia? —
Ele não me responde, apenas caminha calado, concentrado nos seus passos.
Não vou mentir, estou curiosa para saber o que ele faz quando não
estou em casa ou o que faz quando sai de madrugada e só volta no outro dia
de manhã.
— Como conseguiu o cigarro e o isqueiro?
— Vai por mim, é a coisa mais fácil de conseguir.
— Hum... você roubou? — Ruslan estala a língua.
— Se tu tens diálogo, boa conversa e uma boa história para contar, —
ele me lança um olhar pretensioso — tu consegues sentar em uma mesa sem
pagar absolutamente nada.
— Você é esperto...
— Temos que estar sempre à frente. — Comprimo meus lábios e
observo a barraquinha de cachorro quente na pequena praça do meu bairro.
— Vou comprar um negócio — Ruslan me encara com o cenho
franzido.
— Negócio?
— Sim, vou te trazer um negócio, espera aqui e descobrirá o que é! —
Ele assente.
Fico olhando para ele por mais alguns segundos antes de virar e ir em
direção à barraquinha. Não costumo andar por meu bairro à noite, pois é
nessas horas que caras perigosos zanzam por todos os lados, vendendo e
usando drogas.
Essas é uma das poucas vezes em que vim até essa praça, posso contar
nos dedos dos anos que vivo aqui. Mas de vez em quando eu e Gana
gostamos de comprar o cachorro quente do Vyacheslav, embora nunca tenha
trocado uma palavra com ele, sei perfeitamente que seu tempero é um dos
melhores que já saboreei.
— Boa... noite — me aproximo um pouco cautelosa, ele sorri para
mim.
— Boa noite, aposto que vieste por causa do meu cachorro quente.
— Dois por favor! — Vyacheslav assente, olho para trás enquanto ele
prepara meu pedido, Ruslan está parado na esquina me observando.
Sinto um tremor vendo-o assim tão distante e ao mesmo tempo tão
perto, mas até que ponto posso permitir que ele adentre em minha vida? Será
que estou fazendo a coisa certa? Quem em sã consciência iria abrigar um
assassino dentro de casa?
— Aqui está! — Sou arrancada do devaneio, Vyacheslav coloca os dois
cachorros quentes em cima de uma das mesas, lhe entrego o dinheiro e volto
com eles em mãos.
Noto na esquina de baixo um grupo de rapazes me encarando de forma
estranha, eles estão fumando e reconheço um deles por morar no mesmo
prédio que eu.
Uma alerta dispara meu coração, ter convidado Ruslan para caminhar
não foi uma ideia sábia em vista do quanto aqui é perigoso.
— Eu trouxe... — Me calo quando o encontro encarando o outro lado
da rua, seu corpo está tenso, seu olhar sem nenhum brilho.
— Laura!
— Sim? — Aperto os cachorros quentes, minhas mãos tremem de
medo do que está por vir.
— Vire-se e ande de volta para casa...
— Hum?
— Vá, pequena flor — diz com a voz rouca e baixa, seus olhos se
prendem nos meus. — Ande!
Pisco algumas vezes antes de girar e caminhar na direção de casa.
Escuto seus passos atrás de mim, me seguindo. Não sei o que está
acontecendo, na verdade, nem quero saber, porque Ruslan chegou na minha
vida pacata, tirando-me do sossego que tanto lutei para conseguir.
Certo que eu vivo com medo dele voltar, de cumprir com sua promessa,
por isso que deveria ter tomado mais cuidado ao deixar que um criminoso
entrasse assim na minha vida.
Subo os degraus que levam ao meu andar, mas paro por um instante e
olho por cima do meu ombro querendo encontrá-lo, mas Ruslan não está
parado na entrada, ele seguiu adiante sem me dizer nada, e mais um dia, ele
passará a noite fora.
Isso não deveria me incomodar tanto assim, eu deveria ficar alegre por
ele se manter afastado de mim a maior parte do tempo, mas é que... quanto
mais fico perto de Ruslan, seja por apenas alguns minutos, mais me sinto
instigada a desvendar os segredos trancafiados dentro de sua alma quebrada.
Olho para os cachorros quentes em minhas mãos, desejando que
estivesse aqui e não pela noite que esconde tantos perigos e tantos traumas.
Uma das coisas que aprendi estando na cadeia, é que você deve fazer
aliados, mostrar do que você é capaz e ter olhos espalhados para todos os
lados, sem jamais demonstrar sua fraqueza.
Quando os olhos se fecham à noite, demônios se levantam dominando a
escuridão de vidas fragilizadas sem nenhuma piedade, eles invadem sua
mente, destroem seu coração e dilaceram sua alma.
Olho para o outro lado da rua, os garotos me acompanham, enquanto
caminho, um deles me olha e me lança um aceno sutil, me dando a
confirmação de que ele está aqui.
Eu tinha certeza de que ele viria atrás de mim, era questão de tempo até
me encontrar. Viro em um outro beco e me encosto na parede e espero. Os
garotos se mantêm na guarda, se acontecer alguma coisa, eles agirão em
minha defesa. Foi fácil persuadi-los, uma boa história e um pedido de
cumplicidade trouxe-os para o meu lado. São jovens curiosos que apesar de
se acharem perigosos, não passam de meras crianças em busca de um
propósito em um caminho errado.
Escuto passos, meu coração acelera e arrepios percorrem meu corpo
com as lembranças que pipocam em minha mente. Inspiro fundo e olho para
frente, vendo-o parar a alguns metros de distância de mim, olhos dos quais eu
confiei cegamente, apenas para ser enganado e traído.
— Estou contente em saber que está livre — meu coração dispara ao
escutar sua voz, desencosto da parede e fico à sua frente, há cinco homens
atrás dele.
— Pensei que não lembraste mais de mim — digo, notando o quanto
envelheceu desde a última vez em que o vi.
— Como poderei esquecer meu garoto — Ele sorri friamente. —
Ruslan Rotam... você me deve!
— O que te devo, Nikita?
— Uma vida...
...
“Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temerei mal
algum, porque tu estás comigo” recito essas palavras várias vezes durante
meu dia, tentando encontrar algum significado para continuar vivendo.
Passaram-se um ano desde que fui condenado, desde que virei um saco
de pancadas de Jaroslav, a “putinha” que todos comem, o garoto que engole
drogas para contrabandeá-las para dentro da cadeia, o menino que perdeu o
significado de viver.
Passarei minha vida aqui dentro, sem poder nunca mais ver o mundo,
namorar, realizar meus sonhos... tudo foi tirado de mim sem nenhuma
explicação, me tornei um assassino em série.
Engulo as lágrimas, hoje foi mais uma tentativa fracassada de entrar
em contato com a minha família, mamãe não atende as ligações e meus
irmãos não me escrevem de volta. Todas às vezes que me dizem que tenho
uma visita, meu coração grita de esperança, mas sempre é uma prostituta ou
alguém ligado a Jaroslav.
Minha família não quer saber de mim e eu entendo, juro que entendo,
mas dói... como dói estar sozinho sem ninguém para me dizer que todo esse
inferno passará.
Solto um gemido de dor quando Ararat puxa meus cabelos, Zelai me
olha sorrindo enquanto sirvo de brinquedo sexual para Fedir, dor... é a
única coisa que sinto, dor e humilhação.
— Era assim que estuprava suas vítimas? — Jaroslav diz, encostado na
parede. — Estás sentindo prazer?
Fecho os olhos, quero morrer, mas nada do que faço tenho sucesso.
Sinto gosto de sangue na minha boca, antes de estar aqui, eles me bateram,
me machucaram e ganharam grana como se eu fosse seu garoto de
programa para satisfazer os desejos doentios dos detentos que não se
importam em estuprar qualquer um em busca de sexo violento e sangrento.
— Amanhã Odarka te encontrará novamente, te dará as drogas e dessa
vez tu terás que ser mais audacioso, pois os guardas estão desconfiando da
movimentação. — Ranjo meus dentes quando o detento sai de dentro de mim,
soltando um uivo asqueroso por ter aliviado seu desejo.
Fecho meus olhos mais uma vez, Ararat prensa minha cabeça contra a
pedra da pia do banheiro, permitindo que outro comece. Estou cansado,
dolorido e fraco, querendo apenas desaparecer.
Choramingo, o que estão fazendo comigo é doentio, Jaroslav faz de
tudo para tirar todos os poucos benefícios que tenho. Estou sem comer há
dois dias, mas ao meu lado um pouco distante está uma marmita de comida.
— Se tu comportaste como sempre, posso maneirar nas punições —
diz, erguendo o dinheiro que outro detento deu para ser o próximo a obter
seu desejo.
Fecho meus olhos, levando minha mente para outro lugar, me
esquecendo da dor de ser preenchido com brutalidade, sem a minha
permissão e em minha imaginação onde não sinto nenhuma dor ou
humilhação, eu encontro minha família.
Ali, em um campo verde e cheio de rosas, sinto o quanto me amam, eles
fariam qualquer coisa por mim, morreriam por mim se fosse preciso, mas
logo desaparecem, seus rostos felizes se transformam em expressões furiosas.
Assassino... Assassino... Assassino... gritam, dou um passo para trás,
balançando a cabeça e dizendo que não, que não fui eu, mas eles continuam
me afastando... fazendo-me voltar para esse inferno onde estou.
A família é o alicerce de nossas vidas, a força que nos guia e a mão
que nos segura, estão ali, para passarem por momentos difíceis juntos, mas
comigo foi o contrário. As pessoas que mais deveriam estar ao meu lado,
foram as primeiras a me virar as costas.
Ararat ergue minha cabeça e me joga no chão quando tudo acaba,
estou sem forças para reagir, meus braços estão magros demais e minhas
costelas aparentes, estou desidratado e desnutrido, esperando apenas pela
morte.
— Estás a sofrer, putinha? — Jaroslav diz, segurando meu queixo e
fazendo-me encará-lo. — Isto é culpa sua, você que causou tudo isso, é o
mínimo que deves sofrer por tantas famílias que você destruiu.
Ele apanha a marmita e joga toda comida em cima de mim, solto um
soluço doloroso, escutando risadas antes de o silêncio reinar quando eles me
deixam no chão sujo.
Encaro um pedaço de carne, meu estômago ronca de tanta fome que
me inclino e a pego com as mãos trêmulas, colocando-a na boca e
mastigando enquanto choro ao sentir seu sabor.
Dar valor as pequenas coisas, agradecer por tudo o que tem, sorrir
mesmo diante de tamanha tempestade, foram ensinamentos do meu pai antes
de falecer. Fiz de tudo para me tornar o exemplo para minha família, me
sacrifiquei para que meus irmãos estudassem, dormia tarde e acordava de
madrugada com o objetivo de trazer comida para casa, mas... o que
adiantou?
Por que estão fazendo isso comigo? Por que me humilham dessa
maneira? Por que devo sofrer tanto por algo que não cometi? Por que
ninguém me ajuda? Por que... por que... por que...
Tento me levantar, só que minhas pernas estão fracas demais, então me
deito no chão, pegando mais um pedaço de carne e mastigando-a em busca
de aliviar minha fome.
Minutos se passam, a dor permanece, a fome se torna algo
insignificante e meus pensamentos... esses buscam incansavelmente uma
maneira de tudo isso acabar.
De repente algo chama minha atenção, ao lado da privada há algo que
me instiga a me arrastar para descobrir o que é. O fedor da sujeira não me
afeta mais, fecho a mão em volta do pequeno pedaço de espelho e me sento
encostado na parede.
Abro a mão e o ergo, me assustando ao ver meu rosto, estou
completamente destruído, mais magro do que imaginei e meus olhos verdes...
eles... eles... estão mortos. Tento sorrir, mas o que sai é um choro dolorido.
Tudo isso tem que acabar!
Abaixo o espelho, inspiro fundo e aperto-o contra minha pele. Se eu
morrer agora, não terei nada a perder, já fui abandonado pelas pessoas que
amo, então por que continuar respirando?
Prenso o lado afiado do espelho no meu pulso, ranjo os dentes quando
a dor me consome, sangue escorre... só que sinto prazer em fazer isso, então
começo a me arranhar e perfurar meu braço esquerdo.
Sorrio ao sentir o calor do sangue, a dor que estou sentido não é
causado pelos caras que me abusam, ou que me espantam, mas sim por mim,
isso me deixa aliviado e me sinto extasiado.
Solto uma gargalhada fraca quando minhas vistas ficam turvas, perco
o movimento do meu corpo, meus braços estão todos perfurados, meu
coração começa a bater lentamente, zumbidos preenchem meus ouvidos e me
sinto feliz... feliz por esse sofrimento finalmente ter chegado ao fim.
Ouço passos, mas não me importo, quem quer que seja vai terminar
com o resto do meu sofrimento. Levanto meus olhos e encaro o homem
agachado à minha frente, ele não diz nada de imediato, apenas me observa
com uma expressão fechada.
— Garoto fraco... — murmura, estalando a língua. — O que fizeste?
Esboço um sorriso, fiz a melhor coisa, estou acabando com a minha
vida por não aguentar mais, se é o certo eu não sei, mas nesse momento é
tudo o que mais quero.
— Achas que se matando vai resolver seus problemas? — Ele diz,
tirando o espelho da minha mão. — Essa escolha só me diz que tu és fraco...
— Não foi eu... — Murmuro, fechando meus olhos. — Eu não matei
ninguém...
— Não permitirei que morra — diz se aproximando. — Vamos lá, se
torne o que todos temem... se torne o assassino que todos acham que tu és, e
faça todos pagarem pelo que fizeste contigo.
— Sou fraco...
— Se torne forte, porque só assim conseguirá viver nesse inferno.
Encarando seus olhos escuros, sinto ódio invadir meu coração... ódio
por tudo o que estão fazendo, então a partir de hoje, farei de tudo para fazê-
los pagar, afinal, não tenho nada a perder.
...
Fico encarando-o, uma hora ele iria cobrar e eu sabia disso, me preparei
para isso, embora tenha que agradecê-lo por ter salvo minha vida, aqui fora
somos apenas inimigos com uma conta a ser quitada.
— Pensei que tínhamos resolvido — falo, tentando ler suas intenções.
— Pensaste errado — retruca, tirando um cigarro do bolso. — Muitas
coisas não podem ser apagadas, sabes perfeitamente disso.
— Tu me ensinaste muitas coisas, uma delas é nunca confiar em
ninguém, muito menos na pessoa que te tirou do buraco. — Ele me olha com
pesar, balança a cabeça e estica a mão, oferecendo-me o cigarro.
— Como fugiu?
— Me agarrei à minha única oportunidade — pego o cigarro que
oferece, Nikita assente, acendendo o seu próprio.
— A vida sempre nos surpreende — fala, tragando e soltando a fumaça
na escuridão da noite, encarando o céu estrelado de um sábado frio e úmido.
— Não quero te fazer mal — revelo, escorando meu ombro direito na
parede e fitando o cigarro. — Poderia ter feito isso anos atrás.
— E por quê?
— Te considero, porque seus ensinamentos me fizeram estar aqui hoje
— Nikita inspira fundo.
— Você não deveria ter feito aquilo...
— Ele que não deveria ter feito aquilo — corto-o com certa raiva.
— Um garoto... porra, tu eras um garoto!
— Não, eu não era mais — Nikita me olha, vejo um brilho de dor
transluzir seus olhos escuros, tão sutil que logo desaparece. Ele não é um cara
ruim, é apenas uma vítima da pobreza e do descaso da sociedade.
— Você sempre será meu garoto — abaixo a cabeça, é difícil olhar
para uma pessoa que você tanto confiava e acreditava.
— Você me traiu — confesso, soltando uma risada fria. — Porra...
— Foi necessário — olho para ele. — Têm coisas na vida que não
temos o controle da situação, eu tive que fazer.
— Até porque, eu viveria o resto da minha vida na cadeia, certo?
— Você nunca iria ser solto de qualquer forma — retruca, balanço a
cabeça com incredulidade.
— Eu tenho apenas uma coisa para fazer, então poderíamos deixar
nossa dívida para depois? — Levo o cigarro à boca, mas não acendo.
— E se tu morreres? — Dou de ombros.
— Nossa dívida será paga — Nikita ri, jogando o cigarro no chão.
— Não irei me intrometer nos seus negócios, tu lutaste por isso a vida
toda — Ele se aproxima e segura meu ombro. — Estarei no seu encalço.
Nikita me encara antes de se virar e voltar pelo mesmo caminho por
onde veio. Ele pode parecer um cara legal, mas isso é apenas manipulação, se
você lhe entregar toda confiança, não te restará mais nada, ele sugará até a
última gota da bondade que lhe sobrou.
Esse mundo onde fui jogado destrói qualquer alma bondosa. Olho para
trás, os garotos ainda permanecem à espera, dou um sinal e eles se vão, me
deixando sozinho, até o momento tudo está sob controle.
Paro em frente à porta de Laura, seus olhos azuis são tão fascinantes
que poderia mergulhar no mar cristalino que tanto desejo. Tentei me manter
afastado, até para não trazer mais complicações para sua vida, só que o seu
cheiro... sua voz... é tudo o que desejo.
Algo me puxa para ela, a tristeza impregnada em seus olhos faz cada
parte do meu corpo vibrar desesperado para tirar isso dela. É estranho, visto
que a conheço tão pouco tempo, mas foi o suficiente para ficar encantado.
Abro a porta e entro, encontrando-a sentada na mesa encarando os dois
cachorros quentes que comprou. Laura levanta a cabeça e me olha surpresa.
— Pensei que não iria mais voltar. — Diz, se remexendo na cadeira,
Rony mia se deitando em meus pés, me abaixo e o pego em meu colo.
— O que queres tomar? — Pergunto, indo até a geladeira.
— Ruslan? — Olho para trás, meu nome saindo por sua boca desperta
algo desconhecido dentro de mim, ainda não me acostumei com esse efeito.
— Sim?
— Comprei dois cachorros quentes e... quer comer? — Umedeço meus
lábios, acariciando o gato em meus braços.
— Por que não? — Laura balança a cabeça e arrasta a comida até o
outro lado da mesa, ela não gosta que eu fique muito perto dela, muito menos
que a toque, vejo o medo impregnado em seus olhos.
— Certo, suco seria bom. — Sorrio de leve, porque é só o que temos,
suco e água.
Coloco o Rony no chão, apanho a garrafa de suco, dois copos e levo até
ela. Ao sentir minha aproximação, Laura se encolhe, me deixando paralisado.
Ela esconde suas mãos debaixo da mesa, coloco o copo com o suco à sua
frente sem me preocupar com a demora, tentando desvendar o porquê de ela
ser assim.
— Estás bem? — Pergunto ao me sentar do outro lado, ela assente e dá
um gole no seu suco sem me direcionar um olhar.
— Estou bem — Laura roda o copo, fitando minhas mãos que segura o
cachorro quente. — O que aconteceu que você ficou tenso e me mandou
voltar?
Ela dá uma mordida no seu lanche, gosto do fato dela me perguntar as
coisas, por se interessar pelas coisas que acontecem em minha vida, é uma
certeza de que Laura me quer por perto.
— Um assunto pendente — ela me olha, arqueando uma sobrancelha,
inclino a cabeça para o lado, observando seu rosto delicado, lábios carnudos e
bem delineados, sua pele mais morena a deixa atraente ao ponto de me
despertar.
— Seus olhos são lindos — elogio, Laura congela. — Teus olhos azuis
cor de anil, da cor do mar, faz-me amar... São duas joias preciosas, dois
diamantes irradiando. Luz, meiguice, doçura e sensibilidade de uma Mulher-
menina que me fascina... Quando olho para os olhos teus, reluz a paz que
tanto necessito... — Finalizo a citação de Elias Akhenaton notando sua
surpresa, Laura não é acostumada com elogios e nem imagina o quanto é
linda.
— O que foi isso? — Pergunta, limpando a garganta e tentando se
recuperar.
— Sou um romântico de nascença — respondo divertido.
— Você deveria comer seu cachorro quente — assinto, concordando.
— Deveria! — Murmuro, levando a comida à boca e mordendo, o
sabor me invade com uma intensidade que me deixa emocionado.
— Está bom?
— Sim, ainda não me acostumei a comer essas comidas.
— O que você sente? — Olho para ela, devorando meu lanche.
— Emoção...
— Por quê? — Comprimo meus lábios, engolindo o último pedaço.
— Laura? — Ela se inclina sobre a mesa. — Queres mesmo saber?
— É ruim? — Assinto, ela abaixa a cabeça.
— A cada dor e humilhação um garoto morria e um monstro nascia. —
Fecho meus olhos com um ranger de dentes. — Cada dia que eu passava
naquele inferno, mais minha alma se perdia...
— Mas você pode reencontrá-la... — Sussurra.
— Eu não desejo encontrá-la.
— Por quê? — Laura me olha com surpresa, solto o ar pela boca e
balanço a cabeça, sentindo o ódio me consumir.
— Porque quando se tem uma alma, você perde a coragem de matar —
Digo, encarando-a com intensidade.
Laura engole em seco, desviando do meu olhar furioso, é visível seu
desconforto diante do que eu disse, ela sente medo de mim e eu apenas fiz
com que esse medo aumentasse de tamanho.
— Um dia, me disseram que nunca iria me machucar, e eu acreditei,
mas essa mesma pessoa que usou essas palavras foi a que me feriu. —
Confessa, fazendo meu coração disparar. — Você diz que não tem alma, que
deseja matar, não mente, não esconde seu verdadeiro eu, apesar de saber que
do outro lado de seus olhos, ainda existe um garoto esperando ser liberto, eu
não acredito em você.
— Não é questão de acreditar...
— A questão aqui é: se permitiremos que a dor nos consuma dia após
dia, ou superamos ela com o pouco de força que temos, essa é uma escolha
que somente nós podemos fazer.
— Tu superaste, Laura? — Pergunto, sua respiração está acelerada e
vejo sombras em seus olhos.
— Eu... nunca consegui — confessa em um sussurro, meu coração
aperta querendo iluminar a escuridão que a reprime.
— Eu também não!
Ficamos encarando um ao outro por longos segundos, quero poder
deixá-la entrar, lhe entregar as chaves, mas isso resultaria em sofrimento, dor
e desilusão, posso ter sido um bom garoto, mas isso se perdeu. Tenho sangue
derramado em minhas mãos, não quero fazê-la sofrer mais do que já sofre,
mas ao mesmo tempo, quero que me ajude a arrancar a aflição da minha
mente atormentada.
Laura luta contra seus demônios e eu contra os meus, mas e se
decidirmos lutar juntos, será que conseguiríamos recomeçar? Será que ela me
aceitaria do jeito que sou?
— Você irá sorrir outra vez — declaro com confiança. — Nem que
para isso eu tenha que lhe trazer a lua.
— Ela é muito grande — diz, com a voz embargada.
— Não quando temos um sonho a alcançar — Laura assente, se
levantando e caminhando em direção ao seu quarto.
— Ruslan? — Sua voz suave me chama, mas eu não a olho. — Qual
seria seu sonho?
— Existem dois — me levanto e a encaro, Laura recua um passo
quando me aproximo dela. — O primeiro é poder te tocar e o segundo... te
fazer sorrir. — Ela me olha em choque.
— Mas... você não sonha em encontrar quem fez isso com você? —
Nego com a cabeça.
— Isso é meu objetivo, meu sonho nesse momento é você. — Digo, me
virando e indo até a porta.
— Esse seria seu terceiro sonho... — Ela sussurra, sorrio fechando a
porta atrás de mim.
— Não é o terceiro, mas sim, um conjunto de sonhos — sussurro
enquanto mergulho pela noite, me perdendo nas lembranças do seu olhar.
Levanto da cama depois de ter passado mais uma noite em claro, as
palavras de Ruslan não saem da minha mente. Será que ele estava flertando
comigo? Congelo com a pantufa nas mãos.
Será que ele estava dando em cima de mim?
Franzo a testa, relembrando da nossa conversa que tanto mexeu
comigo, e ao mesmo tempo me deixou confusa, sem saber como reagir ou o
que pensar.
Vou para o banheiro, enquanto escovo os dentes, fico me encarando
pelo espelho “Teus olhos azuis cor de anil, da cor do mar, faz-me amar... São
duas joias preciosas, dois diamantes irradiando...” Quando ele recitou meu
coração deu um estalo, achei tão lindo e ao mesmo tempo tão perturbador.
Escuto uma porta se abrir, saio do banheiro apressada e o vejo se
inclinando e tirando seus coturnos sujos. O que Ruslan está aprontando? Seus
olhos se prendem nos meus, um sorriso de canto estampa seu rosto cansado.
— Estás acordada... — Seus olhos descem por meu corpo e seu sorriso
aumenta.
Olho para mim, estou realmente engraçada com um pijama rosa,
pantufas do Coragem, um coque bagunçado caído para o lado e com a escova
de dente na boca...
— Estás muito bonita esta manhã — volto a olhar para ele que tira sua
blusa me fazendo paralisar.
Ruslan está tão à vontade que acho que perdeu a noção de que estou em
sua presença. Ele se inclina e... céus... tira a calça, arregalo os olhos vendo-o
apenas de cueca. Engasgo com a pasta de dente, Ruslan nem me olha quando
passa por mim, entrando no banheiro.
— Preciso tirar a sujeira do corpo, vai levar apenas alguns segundos —
não me mexo, chocada demais com o que acabou de acontecer. — Deixarei a
porta aberta se quiser entrar... — Viro-me para ele, que tem um sorriso
prepotente nos lábios.
Tiro a escova de dentro da boca e aponto em sua direção, meus olhos
descem por seu corpo involuntariamente, meu coração acelera e minhas mãos
tremem, dou um passo à frente, estico a mão e fecho a porta, soltando a
respiração.
Estou tão espantada que me mantenho no lugar sem conseguir me
mover. Por que ele fez isso? Vou até a pia da cozinha e enxáguo minha boca
com sua imagem pipocando minha mente.
Vou para meu quarto com meu coração acelerado e me jogo na cama,
encarando o teto. Escuto uma batida sutil na porta minutos depois, me ergo
um pouco e encaro Ruslan, vestido com roupas escuras.
— Você foi pretensioso — digo, ele me olha divertido.
— Gostarias de tomar café comigo? — Pergunta, aperto meus lábios e
assinto.
— Você vai fazer?
— Não, mas você vai.
Me levanto e vou preparar o café da manhã que resume apenas em ovos
mexidos, café e pão. Enquanto isso, Ruslan se senta no sofá com Rony,
acariciando-o e murmurando algo que não entendo. Fico tão inerte nos dois
que quase queimo a comida.
Ruslan senta à mesa, pego meu celular e me encosto na geladeira lendo
as mensagens do grupo do trabalho.
Aksinya: Eu estarei incomunicável hoje.
Yaroslav: Pq?
Justik: Bom dia pra quem ainda não acordou!
Aksinya: Por quê???? Para Andry não me atormentar
Justik: Hoje é nossa folga...
Aksinya: Ele se importa?
Eu: Ñ, ele não se importa
Yaroslav: Anein... irei desligar tbm!
Justik: Voltando a dormir, meu celular está sem rede, não sei pq!
Yaroslav: kkkkkkk
Eu: O meu descarregou e ñ tenho carregador!
Aksinya: Eu desliguei mesmo! Até logo, Fui...
Justik: Foda-se, é minha folga!
Congelo quando Ruslan para na minha frente, minha respiração acelera,
fiquei com a guarda tão baixa que não percebi sua aproximação. Aperto o
celular e levanto o olhar, me encontrando com seus olhos fascinantes. É a
primeira vez que fico tão perto dele a ponto de dar um passo à frente e me
colidir no seu peito.
— Tu escutaste? — Pergunta, nego com a cabeça. — Eu necessito de
água. — Engulo em seco, fico confusa por alguns segundos antes de perceber
que estou encostada na porta da geladeira.
— Ah... — Dou um passo para o lado, seus olhos continuam fixos nos
meus, desvio do seu olhar e vou até o sofá, sentindo um pouco de falta de ar
devido às batidas incontroláveis do meu coração.
— Você não trabalha hoje? — Ruslan abre a garrafinha de água, nego
com a cabeça.
— Hoje é domingo — digo, desligando o celular.
— O que faz no seu dia livre? — Pergunta, lavando os pratos sujos.
— Leio, assisto desenho, mais desenho, leio de novo e durmo um
pouquinho, também como pipoca, e às vezes faço muitas comidas nada
saudáveis. — Ruslan enxuga suas mãos, me observando.
— Então passarei o dia com você.
— Comigo? — Minha voz sai mais alta do que o normal, ele assente.
— Você não tem nada para fazer? Você sempre está saindo...
— Tu não queres que eu fique aqui? — Mordo o interior das minhas
bochechas.
Ruslan passará o dia comigo, na mesma casa, dividindo o mesmo sofá,
embora ele esteja morando aqui já há alguns dias, nós nunca ficamos tanto
tempo juntos. Isso me deixa mais assustada do que já estou.
— Laura? — Olho para ele.
— É que vou na feira daqui a pouco... — Umedeço meus lábios, aperto
os dentes e abaixo a cabeça. — Você quer ir?
— Adoraria — responde sem nem pensar, assinto me aconchegando no
sofá quando o desenho do Coragem começa, mas não presto atenção, a
presença de Ruslan não permite que isso aconteça, só espero que esse dia
transcorra sem nenhuma surpresa.
Ajeito minha touca e luvas quando saio de casa, olho para cima, o céu
está limpo, o sol... ah como é bom sentir o sol novamente. O frio continua,
mas hoje é sinal de que está quase acabando.
— O verão chegou, Ruslan — me viro para ele que está me encarando.
— Sim — diz, desviando o olhar e esticando a mão para sentir o calor
dos raios do sol em sua pele. — Ele chegou!
— Vamos? — Pergunto, Ruslan assente e ajeita o capuz, escondendo
seu rosto para que ninguém possa reconhecê-lo.
Caminhamos em silêncio por uns quinze minutos até chegarmos ao
nosso destino. Aqui compramos muito mais nas feiras do que nos
supermercados, geralmente elas são muito maiores e englobam muitas lojas e
tendas.
Meus olhos varrem o espaço lotado com tendas coloridas, aqui é
possível encontrar muito além de frutas, verduras ou legumes, mas também
roupas, calçados, livros, flores, louças e por aí vai.
São tão atraentes que é a alegria não somente dos moradores, mas
também dos turistas que podem comprar roupas típicas, artesanatos e
bordados ucranianos. Quando vim pela primeira vez, fiquei fascinada pela
riqueza que é, pelas cores e peças extremamente ricas em detalhes e
significados.
Olho para alguns homens e mulheres vestidos com roupas bordadas,
uma tradição repleta de cor e elegância. Ruslan parece fascinado enquanto
caminhamos por entre as tendas e barracas, parecendo ser sua primeira vez.
Sinto dentro do meu coração uma queimação que diria ser felicidade
por vê-lo redescobrindo o mundo onde foi privado de viver. Emoção também
se mistura com a indignação da injustiça que destruiu sonhos de um garoto
simples e inocente.
Mas espera... será que realmente ele é inocente para eu estar falando
assim? Respiro fundo, desvio meu olhar fixo nele e volto a prestar atenção na
feira que ainda está vazia, uma das vantagens de vir nas primeiras horas de
abertura, e outra vantagem é o preço, que é mais em conta do que nos
supermercados, é possível comprar muitos produtos frescos e produzidos
artesanalmente.
Paro em frente a uma tenda de livros, todas às vezes que venho, sempre
volto com uns dois ou três livros novos, mas que infelizmente não fico muito
tempo com eles. Meu apartamento é pequeno demais para ter uma coleção.
Então sempre estou doando aqueles que sei que não irei reler.
— Esse livro é muito bom — mostro para Ruslan quando para ao meu
lado. — Você gosta de romance? Ontem disse que é um romântico, então
deve ser do seu gosto.
— Seduzida por um Guerreiro Escocês? — Assinto, quando ele lê o
título do livro.
— A escrita da Maya Banks é muito gostosa e essa história se passa
naqueles tempos medievais, a protagonista é surda e muda, e se casa com um
homem depois de um tratado de paz. Vale a pena, quer que eu leve para
você? — Ruslan fica me olhando estranho, pigarreio e desvio do seu olhar,
pegando o segundo e o terceiro volume.
— Ficarei contente — responde por fim.
— “Graeme a fascinava. Não era como se pudesse ouvir suas
palavras, mas a voz dele soava como um zumbido grave e prazeroso em seus
ouvidos. Um raio de luz em seu sombrio mundo de silêncio” — termino de
recitar um trecho do livro, uns dos meus preferidos na verdade.
— Troque Graeme por Ruslan — ele diz, com um sorriso nos lábios
pegando a sacola dos livros que a senhora nos dá.
— Você não é Graeme.
— Mas sou Ruslan — Olho para ele e reviro os olhos, voltando a
andar.
Paro na banca de frutas e escolho as minhas preferidas, peço para que
Ruslan escolha também, é fascinante observá-lo pegar as frutas, sentindo seu
cheiro... é como ver uma criança descobrindo algo novo.
Despois das frutas escolhidas, voltamos a caminhar por entre as
pessoas, tento a todo custo não ser tocada por elas, sempre escolhendo
corredores mais vazios para andar.
Uma das coisas que nunca irei me acostumar nas feiras é a forma em
que vendem as carnes, elas ficam expostas em mesas ou em freezers. Então
sempre compro carne em supermercados.
— Tu queres? — Me viro para Ruslan, ele aponta para a senhora com
roupas coloridas que sorri para gente.
— Sim — confirmo, Ruslan faz o pedido e a senhora começa a
preparar um pão recheado, nos entregando minutos depois. — Onde arrumou
dinheiro? — Pergunto depois de ele efetuar o pagamento e voltarmos a andar.
— Acredite, foi de forma justa — ele pisca um dos olhos, sorri e morde
seu pão.
— Okay! — Murmuro sem pedir por mais detalhes.
Meus olhos se prendem nas senhoras de idade vendendo verduras e
flores, uma está sentada vendendo carne de frango exposta em cima de um
plástico, pode ser até normal aqui no país essa forma de comercialização, mas
não para mim. Faço uma careta para essa peculiaridade, isso se aplica
também aos peixes, eles amam comer peixes desidratados, eu particularmente
não gosto.
As senhoras que trabalham nas feiras têm uma idade bem avançada, são
chamadas de “babushkas”, ou seja, “vovozinhas”. Isso me deixa um pouco
triste, porque reflete a dura realidade de muitos que enfrentam neste país,
onde o salário e as aposentadorias são baixos.
Paro de uma vez, olho para os lados e não vejo Ruslan, a feira começou
a encher. Meu coração começa a bater acelerado, será que ele me deixou
aqui?
— Laura? — Viro-me assustada ao reconhecer sua voz, ele está parado
segurando uma rosa.
— Fiquei assustada — Digo, colocando a mão no coração.
— Por quê?
— Você sumiu — Ruslan sorri, o sol reflete seus olhos deixando-os
com uma cor verde cristalino, tão vibrantes que meu estômago se contorce.
— As babushkas insistiram que eu deveria lhe dar uma rosa. — Olho
para as vovozinhas da banca de flores, elas acenam para mim, sorrindo,
retribuo o aceno e volto a encarar Ruslan.
— Elas são fofas, não são? — Digo, pegando a rosa vermelha de sua
mão.
— Senti falta delas.
— Você vendia rosas, certo?
— Sim — confirma, andando ao meu lado. — Vendi muitas rosas
nessas feiras aos domingos, sempre ficava ao lado delas, são muito
simpáticas.
— Você ganhava muito?
— Suficiente para ajudar em casa — responde, balançando as sacolas.
— Por que rosas, Ruslan?
— Pegue as sacolas, Laura — olho para ele assustada com o tom da sua
voz.
— O que foi? — Pergunto, pegando-as.
— Volte para casa, okay? — Ele me olha sério, balanço a cabeça
confirmando sem entender o que ocasionou essa mudança de comportamento
tão repentina. — Cuide-se, estarei por perto!
— Ruslan? — Chamo quando ele sai andando apressado sem
explicação, fico desapontada, mas logo entendo o que aconteceu para ele
ficar assim.
Prendo a respiração ao perceber quatro policiais rodando a feira, só que
eles estavam de olho em nós, dois deles começam a seguir Ruslan que se
mistura entre as pessoas.
— Droga... — resmungo, chateada e com medo de que o peguem de
novo.
Olho para os lados perdida sem saber o que fazer, queria poder ajudá-
lo, mas neste momento sou inútil. Encaro um policial que me observa à
distância, choque percorre meu corpo ao perceber que ele pode estar
desconfiando de mim.
Vou até uma tenda de roupas, escolho duas blusas bordadas para mim
na tentativa de dissipar sua atenção e vou embora sutilmente minutos depois.
Durante todo o caminho, fico olhando para trás para ver se estou sendo
seguida.
Será que eles descobriram que era Ruslan ao meu lado?
Aperto com mais força as sacolas em minhas mãos, era questão de
tempo até a polícia chegar nessa região, um lugar onde é possível um
assassino em série se esconder.
Solto um suspiro longo e preocupado, espero que ele fique bem...
congelo quando viro a esquina e ergo a cabeça, meu coração bate tão
acelerado que se ele não estivesse me encarando, eu teria saído correndo.
— Bom dia, Laura — Artem saúda com um sorriso no rosto, ele está
com os braços cruzados, e escorado em um carro esportivo.
Pela forma divertida e ao mesmo tempo furiosa que me olha, tenho a
leve impressão de que ele sabe que Ruslan está aqui, não sei até onde posso
omitir essa informação, mas sei que da minha boca ele nunca saberá a
verdade.
Custe o que custar, protegerei Ruslan mesmo que isso me torne uma
mulher louca por essa escolha. Ele só tem a mim, nesse mundo onde todos
acreditam que ele é um assassino, se ele é eu não tenho certeza, mas farei de
tudo para descobrir o que está acontecendo e porque essas pessoas agem tão
estranho quando seu nome é citado.
Estou permitindo que Ruslan entre em minha vida, porque o reflexo
dos seus olhos é como estar me olhando do outro lado do espelho, a solidão e
a tristeza que o reprime é como as minhas, só que ele sorri mesmo diante de
tanta dor, e eu... eu quero apenas desvendar todos os seus segredos.
É um risco, estou entregando minha confiança a um homem com um
passado sombrio, que poderá me machucar, mas eu quero que ele fique, ao
meu lado, porque em todos os anos, Ruslan é o único capaz de enxergar meu
coração.
Fico o encarando sem dizer nada, um vento frio beija minha pele, o
silêncio que nos envolve é perturbador, sinto como se houvesse uma disputa
entre mim e Artem, e talvez tenha, porque enquanto ele quer a resposta, eu
escondo a verdade.
— O que faz aqui? — Pergunto, segurando com mais força as sacolas.
— Onde está seu acompanhante? — Artem passa a língua no seu lábio
inferior, mudando o peso do seu corpo para a outra perna.
— Que acompanhante? — Ele solta uma risadinha, abaixando a cabeça
como se eu tivesse lhe contado uma piada sem graça.
— Tu não me enganas! — engulo em seco.
— Está me seguindo? Como sabe onde moro? — Artem me olha
fixamente, meu estômago revira com a intensidade do seu olhar.
— Sou um policial, sei de muitas coisas — declara, desencostando do
carro.
— Eu não quero você aqui! — Ajeito as sacolas sentindo dor nos nós
dos meus dedos por conta do peso.
— Tu escondes segredos, pequena, segredos que me deixam encucado
e curioso ao mesmo tempo. — Meu coração acelera com as suas palavras, ele
coloca as mãos no bolso da calça, ainda me encarando como se eu fosse a
única coisa existente para olhar.
— Você está me assustando — digo, engolindo meu nervosismo.
— Tu nunca paraste para imaginar que pode ser presa se eu descobrir
que escondes um assassino na sua casa? — Fala com a expressão dura. —Tu
serás uma cúmplice, a responsável por permitir que ele volte a cometer
atrocidades.
— Eu não... — Me calo quando ele solta uma risada, olhando para os
lados.
— Tu és linda, uma mulher que atrai qualquer olhar, mas... além da
beleza ofuscante, és uma bela mentirosa — diz com raiva. — Tão mentirosa
que mente para si mesma, uma pena!
Ranjo os dentes com fúria diante das suas ofensas, quem ele pensa que
é? O último biscoito do pacote? Sim, estou escondendo uma droga de um
criminoso, estou mentindo, mas isso não lhe dá o direito de me insultar dessa
maneira.
— Vou te pedir só mais uma vez. — Me aproximo, olhando no fundo
dos seus olhos. — Não o quero mais perto de mim, suas desconfianças não
lhe dão o direito de me ofender dessa maneira quando você nem ao menos
me conhece. Então não me deixa ficar com ódio da sua cara, tenho certeza
que não vai me querer como inimiga, certo?
Artem sustenta meu olhar, seus lábios se curvam em um sorriso cético,
sou um enigma que desperta sua curiosidade. Minha aversão ao toque, meus
traumas e minhas lembranças dolorosas me fizeram uma pessoa firme,
mesmo diante a tantas provações, e eu jurei que nunca mais iria ser tocada ou
maltratada por um homem novamente.
Eu tenho voz, devo ser ouvida, respeitada e acima de tudo valorizada,
não por ser uma mulher, mas por ser uma pessoa que não é mais e nem
menos que ninguém, sou igual a qualquer um, com meus erros e defeitos.
— Espero que nunca se arrependa. — Diz, quebrando a tensão que nos
rodeia.
— Talvez eu me arrependa, porque cometo muitos erros — retruco,
Artem balança a cabeça.
— Estou de olho em você, pequena flor. — Diz, se virando e entrando
em seu carro.
Espero ele virar a esquina para soltar a respiração que estou perdendo
tempo demais. Sinto-me um pouco zonza com o que acabou de acontecer.
Medo consome meu coração e espero que Ruslan tenha conseguido despistar
os policiais.
Olho para os lados, estagnada no lugar e tentando me recuperar. Ruslan
não irá voltar hoje para casa, não quando tem pessoas me rondando. Meus
olhos se prendem em dois garotos do outro lado da rua que me observam com
atenção, franzo a testa estranhando quando um deles me oferece um pequeno
aceno.
— Laura? — Olho para frente ao escutar a voz de Gana. — O que faz
parada aí?
— Acabei de chegar da feira. — Falo, olhando-a ativar o alarme do seu
carro e se aproximar de mim. — Está tudo bem?
— O que achas de passar o dia comigo? Podemos assistir filmes... ah,
quero muito assistir Timão e Pumba, sei que tu amas. Então topa?
— Claro — aceito de imediato, Gana fica me encarando, paralisada. —
O quê?
— Mesmo?
— Sim!
— Tu não vais recusar como todas as outras vezes? — Nego com a
cabeça, ela desvia o olhar incrédulo. — Céus, eu vivi para ver isso...
— Como?
— Nada! — Gana volta a me olhar, sorrindo. — Vamos? Acredito que
queiras guardar suas compras primeiro.
— É questão de minutos — ela assente, subindo comigo até meu
apartamento, Gana espera do lado de fora enquanto isso. — Vamos? —
Pergunto, trancando a porta.
— Vamos!
Entro em seu apartamento, observando o quanto é colorido e divertido,
há plantas em cada cantinho da sala e vasos de flores na janela, deixando sua
casa mais aconchegante.
Gana deixa as chaves em cima da mesa, tira seus sapatos e vai para a
cozinha, separada apenas por um balcão da sala. Ela ama cores, faz de tudo
para deixar seu lar o mais alegre possível, uma das qualidades que me faz
gostar dela.
— Preparei algumas coisas para gente.
— Você sabia que eu aceitaria? — Pergunto, me inclinando no balcão.
— Não, se tu não aceitaste, eu passaria o dia sozinha — ela levanta a
cabeça, me olha e sorri. — Por isso foi uma grande surpresa quando tu
aceitaste.
— Estou... deixando as pessoas entrarem — sussurro, Gana aperta os
lábios, limpa a garganta e começa a preparar algumas comidas, como
sanduíches, pizzas e pipoca.
— Estou muito interessada em engordar hoje — diz, meus olhos
descem por seu corpo curvilíneo, ela se mata na academia e segue uma
alimentação rigorosa, até porque seu corpo é sua fonte de renda.
— Depois a gente perde — Gana estreita seus olhos, divertida.
Minutos se passam enquanto ela prepara tudo para nossa sessão de
cinema em casa. Gana me conta várias coisas de sua vida, detalhes do seu
trabalho, de como queria fazer outra coisa além de se prostituir e do quanto
está feliz por estar estudando, ela diz que nunca pensou ser capaz de mudar
de vida e quem sabe ter uma profissão decente.
Depois de aproximadamente duas horas conversando sem parar, ela
coloca as comidas que já tinha preparado na mesa de centro, pega o controle
de sua tv e me olha.
— Seguinte — Gana me encara, fico agoniada com seu suspense.
— O quê?
— Tu já foste em um karaokê?
— Não! — Respondo, me sentando no sofá cheio de almofadas.
— Certo, espere aqui! — Ela sai correndo em direção ao seu quarto e
volta, segundos depois com dois pares de pantufas e pijamas.
— O que pretende fazer?
— Estamos fazendo um dia de pijama com muita comida, karaokê e
filmes — diz, me entregando uma pantufa do timão e um pijama com a
mesma estampa.
— Não sabia que você gostava tanto assim desse desenho. — Falo,
tirando a roupa e colocando o pijama assim como Gana está fazendo.
— Eu não gostava, até assistir uma vez com você. — Ela estala a
língua de forma divertida chamando minha atenção. Gana ergue as mãos e
gira para mostrar seu pijama com estampa do Pumba e pantufas, ela está
muito engraçada. — O que achaste?
— Bonita — me levanto, olhando para o meu. — E eu?
— Como sempre, fascinante — diz rindo, pega o controle novamente e
liga a tv. — Estás pronta?
— Sim! — Apanho uma garrafinha de água que estava em cima da
mesa de centro, Gana me olha.
— Eu sou o timão e você o pumba, Simba continua o mesmo —
assinto.
Gana estremece de entusiasmo, afasta a mesa de centro para nos dar
mais espaço e sorri como uma criança que acabou de ganhar um pirulito.
Seus cabelos em coque bagunçados a deixa tão linda que sinto um calor em
meu coração por tê-la como amiga.
A música do desenho começa a tocar, ela se movimenta conforme a
canção, acenando para que eu, assim como ela, entre no papel do
personagem, o que não é muito difícil de acontecer.
— Hakuna Matata — Gana começa a dublar se movimentando que nem
o timão — é lindo dizer... — Ela aponta para mim.
— Hakuna Matata — digo ao mesmo tempo em que o Pumba, fazendo
Gana rir. — Sim, você vai entender...
— Os seus problemas você deve esquecer — Gana canta enquanto
dança. — Isso é viveeeeeer, é aprender, Hakuna Matataaaaaaa.... — Ela solta
uma gargalhada.
— Hakuna Matata? — A voz do Simba sai pela tv, Gana faz uma
careta como se o que ele perguntou fosse um absurdo.
— É... é o nosso lema — dublo a fala de Pumba.
— Lema? O que é isso? — Simba pergunta.
— Nada, não confunda com lesma! hahaha! — Gana imita a risada de
Timão.
— Sabe garoto... — Digo, olhando para o filhote de leão na tv — Essas
duas palavras resolvem todos os seus problemas
— Tem razão, veja o Pumba, por exemplo... — Gana aponta para mim,
imitando o personagem Timão — Ouça, quando ele era um filhoooooote...
— Quando eu era um filhóóóóóte — falo de forma divertida.
— É... foi bom isso, hein? — Diz, enrugando os lábios.
— Obrigado — inclino, agradecida como Pumba faz.
— Sentiu seu cheiro era de um porcalhão, esvaziava a savana depois da
refeiçãoooooo... — Gana diz.
— Era só eu chegar, e era um tormentooooo. — Falo, pegando um
pouco de pipoca — Quando via todo mundo sentar contra o veeeento. Ai que
vexame!! — Coloco a pipoca na boca.
— Era um vexaaaame! — Gana dubla rindo.
— Quis mudar meu nomeeeee!!! — Engulo em seco quando dublo essa
parte, fazendo-me lembrar do meu passado.
— Ah, quê que tem o nome?
— Me sentia tãooo triste!! — Abaixo o olhar, ela estala a língua.
— Se sentia triste... — Ela faz uma cara tristonha.
— Cada vez que eu... — Fecho meus olhos com força.
— Ei Pumba, na frente das crianças não... — Gana grita, abro os olhos
e a encaro, vejo em seu olhar o entendimento que isso me trouxe recordações
que me machucaram.
— Ah, desculpa — ela assente, sorrindo.
— Hakuna Matata, é lindo dizeeeer... — Fala com os olhos fixos em
mim.
— Hakuna Matata, sim você vai entedeeer...
— Os seus problemas, você deve esqueceeer... — Simba canta.
— É isso aí garoto! — Gana imita, encarando a tv.
— Isso é viver!!!
— É aprendeeeer...
— Hakuna Matata — Ela para e abre os braços como se estivesse
mostrando um lugar novo.
— Bem-vindo ao nosso humilde lar... — Diz para Simba.
— Vocês moram aqui? — Ele pergunta.
— Moramos onde queremos — Gana fala, fazendo uma careta.
— É... lá é onde o bumbum descansa — digo, remexendo a minha e
fazendo-o gargalhar.
— É bonitooooo... — Ele diz.
Abro a boca e finjo arrotar.
— Que fome! — Digo Gana faz outra careta.
— Eu seria capaz de comer uma zebra inteira. — Simba declara.
Gana paralisa e me olha com olhos arregalados e mãos no coração. Ela
faz a mesma risada do Timão — Aqui não tem zebra...
— Um antílope? — Ele pergunta, Gana balança a cabeça
negativamente, se fazendo de chocada.
— Não!
— Coelho? — Ela solta uma respiração pesada.
— Não... ouça, aqui vivendo com a gente, vai comer como a gente... —
Gana se aproxima das comidas. — Olhe! Aqui é um bom lugar para descolar
algum “grude” ...
— Hã... o que é isso!? — Simba pergunta, curioso.
— Comida! O que parece? — Gana diz, aproximando um pedaço de
pizza em direção à tv.
— Argh! Que nojo!
— Hum... hm.. hm... gosto de galinha... — Ela imita, mastigando a
pizza.
— Viscoso, mas gostoso — digo a fala de Pumba, pegando também
uma pizza e comendo.
— Isso são guloseimas raraas... — Gana morde um pedaço do
sanduíche. — Uma noz, muito gostosa e crocanteee...
— Vai aprender a gostar — falo, olhando para Simba na tv.
— É o que eu digo, garoto, esta que é a boa vida, sem regras, sem
responsabilidades — Gana se joga no sofá com três sanduíches na mão e uma
pizza na outra. — Hm... é do tipo cremosooo — ela lambe o queijo. — E
acima de tudo sem problemas! E então?
—Tudo bem... Hakuna Matata... — Simba concorda, olho para ele que
engole um inseto com dificuldade. — Viscoso... mas gostoso!
— É isso ai! — Gana se levanta animada e começa a dançar no ritmo
da melodia, gesticulando para que eu a acompanhe.
— Hakuna Matata, Hakuna Matata, Hakuna Matata, Hakuna... —
cantamos em uníssono, andando em círculo como se estivéssemos na selva
como eles estão no desenho.
— Os seus problemas, você deve esqueceeer... — Simba canta.
— Isso é viver, é aprender... — Acompanho, me movimentando
conforme a música.
— Hakuna Matataaaaaaaaa
— Hakuna Matataaaaaa
— Hakuuuuuuuuuna matata... Hakuna Matataaaa iiiiiiiiiié.... — Gana
sai andando cantarolando até que a música acaba.
Nossa respiração está acelerada, Gana começa a rir feliz por esse
momento, ela me olha e aponta um sanduíche em minha direção.
— Laura, seus problemas você deve esqueceeer... — Comprimo
meus lábios.
— Isso é viver, é aprender...
— Nunca se esqueça, — ela se aproxima, me olhando nos fundos dos
meus olhos — quando a tristeza te abater e a dor permanecer, Hakuna
Matata...
Fico olhando para ela sentindo meus olhos queimarem, mesmo que
esteja fazendo de tudo para me ver sorrir ou me fazer feliz, ainda sinto a
tristeza de tudo o que me aconteceu, me abater dia após dia.
Estou tão quebrada que tenho medo de nunca ser capaz de me
consertar. Ninguém imagina, como é sentir que tudo foi tirado de você, sua
inocência, sua pureza, sua juventude e sua alma... a cada dia uma parte de
mim morria. A cada segundo que eu o sentia me maltratando, perdia um
pedaço de mim. Hoje tento encontrar meus cacos nas pequenas coisas da
vida, a cada sorriso direcionado a mim e a cada tentativa de me fazer feliz,
porque é isso que me faz continuar, mesmo que seja a passos pequenos, isso
me motiva a superar qualquer que seja a dor impregnada em meu coração.
— Obrigada — sussurro com um caroço na garganta.
— Eu que agradeço por... me aceitar do jeito que sou — ela diz,
limpando as lágrimas.
— Quer repetir? — Aponto para a tv, Gana balança a cabeça.
— O que achas de dublarmos a Barbie?
— Sim!
Ela sorri animada mudando de canção, e passamos o dia comendo,
cantando e assistindo filmes sem pensar em nossas vidas, fugindo da
realidade e adentrando em um mundo onde tudo é possível.
Encaro a boca de Andry que se movimenta enquanto jorra bronca por
termos desligado os telefones, mesmo que seja nossa folga, isso nunca deve
acontecer.
Eu deveria estar prestando atenção no que ele está falando, me sentir
realmente culpada por ter negligenciado meu trabalho que tem uma carga
horária pesada, deixando-me apenas com o domingo livre... aliás, às vezes
livre, porque até isso Andry costuma nos tirar.
Troco o peso do meu corpo para outra perna, sua voz é como um
zumbido de uma mosca voando em meu ouvido. Seria errado eu chamá-lo de
mosca? Sim, eu acho que sim! Então Andry não é uma mosca, apenas um
patrão exigente!
Respiro fundo, querendo que essa reunião de broncas acabe, mas o
motivo de eu estar tão dispersa tem um nome... nome do qual faz meu interior
vibrar e meu coração saltar.
Ruslan não voltou para casa, já tem mais de 24 horas que não escuto
nem ao menos uma notícia sua, isso está me perturbando de forma que me
sinto desesperada e... com medo de que algo ruim lhe tenha acontecido.
— Laura?
Ontem eu e Rony o esperamos até tarde, acabei pegando no sono no
sofá com suas cobertas irradiando seu cheiro. Estou parecendo uma louca e
obcecada, certo? Como posso me sentir assim com um homem que mal
conheço?
— Laura?
Inspiro fundo, apertando meus lábios descontente com tudo o que vem
acontecendo. Nunca me senti assim com homem algum, até porque sempre
fiz de tudo para me manter longe, sempre me excluindo, me afastando e
escondendo, mas desde que permiti que Ruslan entrasse conforme Olesya me
orientou, algo estranho vem acontecendo dentro de mim...
— Laura? — Sobressalto quando uma bola de papel acerta meu rosto,
pisco várias vezes voltando a real para encontrar com a feição furiosa do meu
chefe. — Tu estás me ouvindo?
— Hum... sim! — Andry arqueia uma sobrancelha e me lança um olhar
de desafio.
— O que eu acabei de dizer? — Olho para os lados, meus colegas
abaixam a cabeça, Yaroslav pigarreia.
— Não sei! — Afirmo, voltando a encará-lo, Andry suspira e deixa
seus ombros caírem em derrota.
— Céus... — Murmura, esfregando o rosto. — Vão... vão fazer o que
deve ser feito! — Ele nos dispensa, gesticulando com a mão.
Aperto meus lábios me sentindo mais uma vez culpada. Borrifo álcool
na minha mesa e em minhas mãos encarando a tela do meu celular, querendo
pelo menos receber uma mensagem sua. Porém, Ruslan não tem telefone e
muito menos sabe meu número, portanto, ele não entrará em contato.
— Soa-te bem, Laura? — Ergo a cabeça, Justik se inclina na minha
cabine e se estica para pegar o chocolate que Aksinya me deu de manhã.
Borrifo álcool em sua mão e apanho meu doce, fazendo cara feia para
ele que me olha divertido.
— Eu nem queria! — Resmunga, enrugando o nariz de forma
descontraída. — Ela não me deu...
— Chocolate? — Justik assente.
— Aksinya não está conversando comigo. — Um brilho de tristeza
percorre seus olhos, sei que mesmo que discutam, há um amor entre eles que
não é explicado, apenas sentido.
— Você deveria parar de encher o saco dela. — Ele suspira, olhando
para a foto da minha mãe.
— Ontem... vi ela com outro, mas até que entendo, somos complicados
como deves perceber, mas doeu, não vou mentir. — Seguro o encosto da
cadeira, observando-o perdido na dor que o atormenta, me fazendo lembrar
do episódio Blue Cat Blues de Tom e Jerry.
O episódio começa com Tom sentado nos trilhos do trem deprimido.
Jerry o observa da ponte sobre os trilhos, começando a narrar como Tom
acabou assim.
O engraçado é que o episódio mostra Tom e Jerry como amigos muito
próximos até que Tom é hipnotizado por uma gata branca. A gata retorna o
amor de Tom e acabam em um relacionamento amoroso. Mas como sempre,
entra um vilão. O vilão é o Sr. Butch, o gato rico que mora ao lado da gata
branca. Ele a atrai com sua riqueza, como uma oportunista que é, a gata não
perde nenhum milésimo de segundo e deixa Tom.
Embora Tom tenha percebido o quão pilantra era a gata, ele não parou
de correr atrás do seu suposto amor, usando todas as suas finanças, indo
contra o conselho de Jerry, na tentativa de reconquistá-la.
Não importava o quanto Tom tentasse, Butch sempre estava a um passo
à sua frente, ostentando sua riqueza. Para o triste destino de Tom, Butch e a
gata branca se casam, deixando-o sem dinheiro, sem herança e em uma
imensa depressão.
Foi um dos episódios que eu mais senti a dor da traição, ainda mais
quando Jerry, pensado em sua namorada Toots, que foi fiel a ele todo esse
tempo o deixa, indo embora com outro rato, se casando assim como a gata
branca.
Jerry, de coração partido, junta-se a Tom nos trilhos, mostrando o
quanto uma traição pode destruir um coração que só queria ser amado. O
desenho acaba com apito do trem, dando a entender que ambos cometeram
suicídio.
Para uma criança esse episódio é só mais um de muitos que não faz
sentido, apenas diversão, mas para nós que entendemos o que se passa, o
impacto é maior, porque captamos a mensagem transmitida por apenas um
desenho.
Todas às vezes que reflito sobre esse episódio, algo dentro de mim diz
que é impossível terem cometido suicídio, pois eles sobreviveram a coisas
piores como martelos, tiros, explosões... Mas se parar para pensar e analisar,
o amor pode ferir muito mais que qualquer outra coisa, e sei como a
depressão é opressora, o quanto nos esmaga dia após dia. Só que cada um
luta com as armas que têm, porém... um dia cansa, toda essa dor, esse
sofrimento e esse vazio cansa...
Olho para Justik que borrifa meu álcool em suas mãos, imerso em seu
próprio pensamento. Sempre os comparei com Tom e Jerry, devido às
disputas, as brigas e as discussões, mas que sempre permaneceu o respeito e o
amor.
— Justik? — Ele levanta o olhar, prestando atenção em mim. — Você
a ama?
— Será que amar é o suficiente? — Justik fecha os olhos por alguns
segundos. — Sabe Laura, todos que nos vê aqui no trabalho, ou que
acompanhou nosso relacionamento acontecer e terminar, acham que fui o
responsável por tudo, talvez eu tenha mesmo culpa, mas...
— Ela não é fácil de lidar — completo, fazendo-o rir de leve.
— Sinto-me cansado...
— Eu não entendo nada sobre relacionamento, mas sei que quando a
gente ama, corremos atrás para termos a pessoa que queremos ao nosso lado,
porém, amar também significa deixar ir. Se acredita que não dará certo ou
que nunca será feliz, deixe-a ir. — Justik movimenta seus lábios, evitando me
olhar. — Sei que pode ser difícil, afinal, quem quer permitir que a pessoa que
a gente ama vá embora? Só que uma decisão assim é necessária, porque nós
também precisamos ser livres e quem sabe, permitir que a pessoa certa entre
em nossa vida. Não se prenda a um amor que talvez só vá te machucar, seja
forte, Justik, e a deixe ir para que você possa ser feliz.
Uma lágrima solitária cai de seu olho, ele funga e a limpa, erguendo o
rosto segundos depois. Justik está sofrendo, mais que qualquer outro dia.
Sinto um aperto no peito por vê-lo assim, ele é um bom amigo,
engraçado e atrapalhado, chato na maior parte do tempo, mas quem não é,
não é verdade?
— Tu és especial, Laura, sorte daquele que um dia conquistar seu
coração. — Justik inspira fundo, tentando se recuperar.
— Fica bem, okay? — Ele assente e se afasta quando Yaroslav e
Aksinya entram.
Aksinya finge que nem o vê ao passar por sua cabine, me fazendo
questionar qual dos dois está errando com o outro. Yaroslav estende um copo
de café e aponta para a porta, franzo o cenho sem entender seu gesto.
— Vamos?
— Aonde? — Pergunto, confusa.
— Tu não escutaste nada, não é? — Enrugo meus lábios e beberico
meu café, sentindo uma leve queimação na língua por conta da temperatura.
— Nada!
— Onde estás com a cabeça? — Suspiro, dando de ombros, não irei
revelar que ela está em certo alguém. — Estamos indo entrevistar a mãe de
Ruslan. — Engasgo com o café assim que suas palavras atingem meus
ouvidos.
— Sério? — Pergunto, controlando a tosse e tomando fôlego.
— Sim, Andry conseguiu.
— Por que agora ela quer falar? — Pergunto, juntando minhas coisas e
o seguindo. — Foram 14 anos de silêncio.
— Talvez seja pela sua fuga, e está com medo, ou algo assim. —
Destravo o xoxo e nos acomodamos antes de partirmos em direção à antiga
casa de Ruslan.
Fico em silêncio por todo caminho, Yaroslav questiona o porquê de eu
estar tão aérea hoje, respondo apenas que estou pensando no que irei
questioná-la.
Viro a esquina e paro em frente à antiga casa de Ruslan. Abro a pasta
que contém todas as informações do caso e pego uma foto antiga, onde a
mesma casa bonita, com jardim na frente e uma cerca branca circundando era
apenas um barracão de três cômodos desgastado e sem vida.
— Eles acabaram vencendo na vida, não? — Yaroslav diz, saindo do
carro.
— Eu acredito que seja por merecimento, eles sofreram muito pelo que
pesquisei.
— Estou muito nervoso! — Inspiro fundo e lanço um olhar de
compreensão, porque sinto o mesmo.
Abro o pequeno portão da cerca e caminhamos em direção à porta da
frente. O sol transluz o verde da grama, nas plantas e nos pés de rosa que
esperam ansiosamente pela primavera para florir e trazer ainda mais beleza
para esse lugar.
Um movimento chama a minha atenção, a cortina de uma das janelas se
movimenta, um latido de um cachorro me assusta por parecer ser grande e
bravo.
— A gente entrou sem certificar se tem cachorro e se está solto. —
Resmungo, subindo o pequeno lance de escada, Yaroslav me olha um tanto
assustado, notando o erro que cometemos.
— Já foi — declara batendo na porta, ele dá um passo para trás na
espera de ser atendido. — Será que el... — Yaroslav se cala quando a porta é
aberta.
Um homem alto e magro nos recepciona, seu olhar se fixa em nós, nos
avaliando de forma nada discreta. Ele está vestindo roupas escuras, sua pele é
um pouco pálida e há olheiras escuras debaixo dos olhos, e ainda assim, é um
homem bonito, não tanto quanto Ruslan e Artem, mas bonito de uma forma
comum.
— Boa tarde, somos os jornalistas da AS. — Yaroslav diz com a voz
travando pela forma que o homem nos encara.
Recuo um passo quando seus olhos se prendem nos meus, não faço
ideia de quem ele é ou porque desperta em mim um medo que a muito tempo
não sentia.
— Sei quem são. — Fala, ainda me olhando.
— É... bom... — Yaroslav pigarreia, sem graça. — Temos um encontro
com a... — Ele pega seu bloco de nota, um pouco atrapalhado tentando
lembrar e busca pelo nome da mãe de Ruslan.
— Okasana — digo. — Ela está nos esperando. — O homem inclina a
cabeça um pouco para o lado, seu olhar me deixa tentada a me encolher.
— Uma entrevista? — Pergunta com a expressão ilegível.
— Sim, sim... é... ela está nos esperando? — Yaroslav olha para mim,
inquieto.
— Creio que sim. — O homem empurra a porta, escancarando-a, dando
apenas um passo para o lado para que possamos entrar.
Aperto com mais força a pasta, não quero entrar nessa casa, não com
ele me olhando dessa maneira perturbadora, isso não é normal.
Quem é ele?
Yaroslav entra, mas sei que assim como eu, ele quer dar meia volta e
entrar no carro para nunca mais voltar. Meu colega se vira para mim,
acenando para que eu entre, o homem não desgruda os olhos de mim... céus,
estou com medo!
— Não vai entrar? — Pergunta de forma fria, assinto forçando-me a
entrar.
Estremeço ao passar ao seu lado, sinto seu perfume e um tremor nas
minhas mãos. Sobressalto quando a porta se fecha, o ar dos meus pulmões
some ao me ver presa dentro de uma casa desconhecida com um homem
totalmente estranho.
— Ela está na cozinha, só ir reto por aquele corredor. — Nos orienta,
encostado na porta com os braços cruzados.
— Vamos Laura — Yaroslav sussurra, chamando minha atenção,
assinto e sigo-o pelo corredor, segundos depois olho para trás, para onde o
homem estava, só que ele não está mais lá.
— Céus, que cara sinistro. — Assinto em concordância.
— Essa casa é bem grande, não?
— Não é, Laura, nós que estamos andando à passos lentos — Yaroslav
diz rindo.
— Certo! — Fico ereta e aperto o passo. — Okasana? — Chamo da
porta da cozinha decorada com armários inox e vários enfeites e decorações
de crochê e mais uma vez, repleta de rosas.
— Estou aqui! — Sua voz delicada me faz entrar na cozinha, uma
mulher de idade está em frente ao fogão, misturando algo na panela com um
avental estampado com pequenas galinhas.
— Somos da AS.
— Sim, estava esperando por vocês. — Ela se vira para nós, nos
observando com seus olhos verdes fascinantes, mesmo que tenha passado por
tantas coisas e que as linhas de expressões em seu rosto entregue sua idade,
Okasana continua linda.
— Sou a Laura e este é Yaroslav — Ela sorri sem parar de mexer a
colher dentro da panela. — Muito obrigada por nos receber.
— Imagina — diz, apontando para a mesa. — Fiz algumas coisas para
comermos, faz tempo que não recebo visitas.
— Olha senhora, não vou recusar não, porque esse cheiro fez meu
estômago contorcer. — Yaroslav fala, pegando um pedaço de bolo e levando-
o a boca. — Meu Deus, está divino!
— Gratidão, querido. — Ela sorri sem graça, desligando o fogão.
— Tudo bem para senhora... conversar sobre seu filho? — Okasana
suspira e assente, mas não diz nada, apenas arrasta uma das cadeiras e se
senta.
— Sente-se querida, vamos começar antes que eu perca a coragem. —
Me aproximo e sento à sua frente, suas mãos se contorcem no colo.
— Primeiramente sinto muito por tudo o que a senhora passou e
continua a passar. — Ela umedece os lábios, olhando Yaroslav comer seus
biscoitos.
— Uma pena não termos o controle do destino — ela volta a me olhar
com uma expressão devastada.
— Posso gravar nossa conversa? — Okasana assente, coloco o
gravador em cima da mesa e me ajeito. — Darei a palavra à senhora.
— Obrigada... — Ela sussurra, fechando os olhos por alguns segundos
antes de começar. — Quando nós nos tornamos mãe, a única coisa que
desejamos é proteger nossos filhos do mundo, da maldade e da pobreza. Perdi
meu esposo quando meus meninos ainda eram crianças, eles tiveram que
crescer mais rápido do que o normal, às vezes me sinto culpada por não ter
lhes dado uma infância feliz.
— A senhora não teve culpa — Yaroslav tenta acalmá-la.
— Sim, eu tive uma parcela de culpa. Não deveria ter tido filhos
quando eu mal conseguia me sustentar, não que me arrependa, jamais. Porém,
quando se vive na pobreza, o que nos resta é um ao outro. Eu tinha meu
esposo e queria filhos, fui egoísta, porque em vários momentos, fiz com que
eles dormissem sem comer. Se eu não tivesse tão cega e parado para analisar
nossa situação, teria evitado ter filhos.
— Mas a senhora teve 3 filhos e acredito que eles foram e são seu
pilar. — Digo, vendo-a enxugar suas lágrimas. — Acredito que apesar de
tudo, eles foram sua fortaleza.
— Eu falhei, menina. — Okasana balança a cabeça. — Eu falhei com
meu menino.
— A senhora estás a falar de Ruslan? — Yaroslav pergunta, ela não
responde, apenas encara suas mãos em cima do colo.
— Como era Ruslan antes de tudo acontecer?
— Ah... — Okasana levanta a cabeça e sorri, com um olhar perdido,
preso nas lembranças. — Ruslan era o mais compreensível, educado e
sonhador entre seus irmãos, às vezes até bobo demais por sempre encobrir as
artes feitas por Artem e Olesya. — Meu coração salta ao escutar seus nomes,
eu estava desconfiada, mas saber da comprovação de que eles realmente são
irmãos, faz o impacto ser maior.
Tenho Olesya como terapeuta há três anos, sempre atenciosa e muito
carinhosa, vem me ajudando a superar meus traumas e meus medos de me
socializar. Ela sabia que eu tinha visitado Ruslan na cadeia, me abri em
relação ao sentimento estranho que senti por ele. Olesya não demonstrou
surpresa ao estar falando do seu irmão.
Artem soube no momento em que coloquei meus olhos sobre ele por se
parecerem muito um com o outro. Só que, através do seu olhar furioso ao
citar o nome de Ruslan, notei que há um assunto mal resolvido entre eles.
Ruslan foi abandonado por sua família, por quê? Por que eles não
quiseram saber mais dele? Por que não lutaram para provar sua inocência?
Quem é o culpado no final das contas?
— Não tenho nada de ruim a dizer do meu menino, até porque ele era a
luz dos nossos dias, aquele que não nos deixava abater pela tristeza. Ruslan
se sacrificou para que seus irmãos estudassem, vendendo rosas sem nunca
cansar, acordando de madrugada e indo dormir tarde. Uma vez o vi tão
cansado que achei que ele não iria aguentar de exaustão, mas Ruslan
continuou... — Okasana inspira fundo, ela se vira e coloca chocolate quente
em duas canecas, entregando uma para mim e outra para Yaroslav.
— Como foi descobrir que ele é um assassino? — Ela congela por um
momento antes de voltar a cortar uma fatia de bolo.
— Ele não é um assassino, mesmo que insistam, que o condenem...
Ruslan não é culpado!
— Mas as provas dizem o contrário.
— Meu coração é prova suficiente de que ele é inocente! — Fala com
os olhos cravados nos meus.
— Por que não fizeram nada? — Pergunto, deixando transparecer uma
raiva desconhecida. — Por que alega que Ruslan é inocente sem nunca o ter
visitado? A senhora se manteve em silêncio por quatorze anos, olha para
vocês agora, poderiam ter conseguido um advogado, mas não, se mantiveram
em silêncio.... — Balanço a cabeça, incrédula. — Sentir que ele é inocente
não é o suficiente, deveriam tê-lo tirado de lá, daquele inferno...
— Você não faz ideia...
— Não, eu não faço, mas são vocês que não fazem ideia do que ele
viveu lá dentro. — De repente minha respiração e meus batimentos ficam
acelerados. — Todos que entrevistei falaram a mesma coisa, que ele era um
garoto bom e que não faria mal a ninguém, mas que foi trancafiado durante
quatorze anos por uma série de assassinatos. Se acreditassem realmente que
ele era inocente, por que não foram visitá-lo? Por que não escreveram? Por
que o abandonaram?
Okasana me encara com olhos marejados e com raiva, ultrapassei um
limite do qual não deveria, mas essa de que ele é inocente não é o suficiente,
tem que ter alguma coisa a mais, tem que ter uma explicação lógica que
explique esse descaso.
— Ruslan era um garoto quando foi preso. — Completo com a voz
embargada.
— Um garoto que matou mais de vinte mulheres. — Sobressalto ao
escutar sua voz, olho para trás, encontrando com o homem de antes, escorado
na parede com os braços cruzados. — Okasana é mãe, nunca irá acreditar que
seu filho não passa de um doente.
— Quem é você? — Pergunto a ele, fechando a mão em torno da
caneca.
— Mirom, primo dos Rotam — revela tão frio que calafrios percorrem
meu corpo. — Fui criado com esta família, fui melhor amigo de Ruslan e
posso afirmar o quanto ele é cruel.
Meu coração salta quando ele se aproxima, seu olhar penetrante me
apavora tanto que quero me encolher, e desaparecer igual antes. É estranho,
mas... não sinto uma vibração boa vindo dele.
— Ruslan é manipulador e frio, engana cada pessoa que está ao seu
lado, fazendo acreditar que ele é bom, mas não passa de um maníaco doente.
— Mirom para atrás de Okasana, repousando suas mãos em seus ombros.
— O que me diz a respeito de sua fuga? — Pergunto com desconforto,
ele sorri de lado, acariciando o pescoço de Okasana enquanto ela encara suas
mãos.
— Que ele vai continuar cometendo assassinatos, destruindo famílias e
fingindo ser inocente. Não acredite em suas palavras!
— Ele nunca falou que era inocente — fico encarando os olhos escuros
de Mirom, que retribuiu com mais intensidade.
— Tu fizeste entrevista com Ruslan...
— E em nenhum momento ele alegou ser inocente. — Mirom umedece
os lábios e se inclina um pouco para frente.
— Acho que está na hora de encerrar a entrevista, o que acha, mamãe?
— Fico encarando-os, preciso de mais informações.
Olho para Yaroslav que observa Mirom com a testa franzida. Tomo um
gole do chocolate quente, pensando em como estender mais a conversa.
Minha perna começa a balançar e meu coração a palpitar.
— Vocês disseram que Ruslan começou a vender rosas por incentivo
do tio, onde ele está agora? — Mirom levanta a cabeça lentamente, fixando
os olhos em mim, só que mais furiosos e mais frios.
— Infelizmente ele faleceu anos depois de Ruslan ser condenado. —
Responde Okasana, fungando e dando batidinhas nas mãos de Mirom.
— Ele era meu pai. — Ele declara, passando a língua nos lábios.
— Meus pêsames. — Digo, Mirom agradece com um aceno de leve
com a cabeça. — Como era a relação entre ele e Ruslan?
— Unha e carne. — Okasana sorri ao se lembrar. — Tu não fazes ideia
de como eles se amavam. Eram como pai e filho, Kostyantyn era louco por
meu filho.
— De certo que foi difícil lidar com o fato de o sobrinho ser um
assassino. — Yaroslav fala, receoso.
— Kostyantyn ficou arrasado. — Okasana murmura, olho para Mirom.
— Como você reagiu? — Ele comprime os lábios, estreito meus olhos
ao reparar que há um esforço para fazer uma expressão triste.
— Não muito surpreso — declara, abaixando a cabeça. — Como já
disse, sabia com quem estava lidando.
— Por que Kostyantyn não depôs a favor de Ruslan? — Mirom solta
uma risada rouca.
— Tu não estás compreendendo. — O canto do seu lábio superior se
eleva levemente. — Ruslan é um assassino, foi comprovado, investigado, não
havia o que fazer. Aceite, querida, Ruslan Rotam é doente.
Mordo o interior da bochecha com vontade de questioná-lo, buscar
mais a fundo o que estão escondendo, mentindo. Okasana se levanta e eu a
acompanho, colocando a caneca em cima da mesa.
— Acredito que já disse o suficiente. — Ela se afasta e em seguida
volta com duas vasilhas. — Levem com vocês esses Pyrizhky, eram os
preferidos de Ruslan. — Okasana me estende um.
— Obrigada. — Ela sorri de leve, me olhando enquanto mordo o
bolinho cozido e recheado com carne. Sinto a massa mole amanteigada se
dissolver enquanto mastigo. Entendo o porquê de Ruslan amar tanto esses
bolinhos. — Uma delícia. — Elogio, fazendo seus olhos brilharem.
— Sei que é! — Diz, entregando uma vasilha para mim e outra para
Yaroslav, que sorri feito um bobo.
— Muito obrigado pela gentileza, senhora. — Ele diz, enquanto arrumo
minhas coisas.
Okasana nos acompanha até a porta ao lado de Mirom. Sinto sua
presença por todo caminho, como se seus olhos fossem incapazes de
desgrudar de mim.
— Mais uma vez, obrigada por nos receber.
— Sinto por ter sido breve. — Okasana me lança um sorriso sem
brilho.
— Adeus, senhora. — Yaroslav se despede, olho mais uma vez para
Mirom antes de passar pela porta com meus pelos eriçados.
— Cuide-se, Laura. — Viro-me para ele, que sorri com uma expressão
e olhar esquisito, dou dois passos para trás como se estivesse sido atingida
por algo desconhecido.
Mirom não desprende o olhar de mim, meu coração bate alarmado.
Assinto por educação e desço as escadas rumo ao carro, louca para ir embora.
Sobressalto de susto com uma batida brusca da porta, olho para trás mais uma
vez, não há ninguém.
— Ué! — A voz alarmada de Yaroslav me chama atenção.
— O quê?
— Veja, o portão está trancado. — Desço meus olhos e franzo o cenho,
há realmente um cadeado na tranca.
— Estranho, por que iriam nos trancar?
— Não faço ideia. — Ele resmunga, soltando a respiração. — Vou
voltar e pedir para que abram. — Assinto, sem a intenção de acompanhá-lo.
— Okay, te espero aqui! — Yaroslav se afasta, seguro o cadeado me
perguntando se isso foi de propósito.
— Laura?
— Sim? — Olho para ele parado no meio do caminho, imóvel. — O
que foi... — Me calo quando vejo além dele um Rottweiler com a boca
espumando de ódio, seu rosnado estremece meu corpo inteiro.
— Laura...
— Estou vendo! — Digo, apavorada e sem saber o que fazer, porque se
eu correr o cachorro vai atrás e se eu ficar... ele nos atacará.
Yaroslav recua um passo, encarando o cachorro que dá um passo à
frente com seus enormes dentes aparentes, deixando claro que não somos
bem-vindos.
Desespero me consome, se ele nos pegar, não irá sobrar nada. Olho
para casa, quero gritar, mas se eu fizer isso, farei com que o Rottweiler nos
ataque muito mais rápido.
Merda, quem trancou o portão?
— Laura, ele está vindo! — Yaroslav diz, meu coração salta quando o
cachorro começa a andar em nossa direção, meu colega me olha apavorado e
a única coisa que fala antes de tudo acontecer é: — CORRE!!!!!!!!
Solto o cadeado e corro atrás de Yaroslav com o cachorro em nosso
encalço. Viramos a lateral da casa sem saber ao certo para onde ir. Escuto o
latido e o rosnado cada vez mais perto, já imaginando seus dentes perfurando
minha pele e rasgando-a.
— Laura? — Olho para Yaroslav que corre em direção à casinha do
cachorro que é alta o suficiente para que o animal não suba.
Olho para trás, uma burrice, porque isso me faz perder preciosos
segundos. Apresso meus passos, tento subir no teto da casinha, desesperada,
querendo fugir do animal enfurecido.
— Deixe-me te ajudar! — Yaroslav se inclina, mas recuso.
— Não! — Olho para trás, céus... o cachorro vem em disparada.
— Foda-se! — Sinto mãos se fecharem em volta dos meus braços,
meus olhos se prendem no rosto suado e vermelho de Yaroslav com o único
pensamento de que ele me tocou!
— Você... me...
— Ande Laura, ajude-me. — Pede em desespero me puxando para
cima. Me impulsiono, mas então solto um grito estridente de dor quando
sinto os dentes do cachorro perfurarem meu tornozelo.
Solto um gemido, lágrimas escorrem por meu rosto, escuto Yaroslav
amaldiçoar. Outro grito sai por minha garganta ao sentir a minha pele ser
rasgada, uma dor insuportável percorre toda minha perna.
Me debato na tentativa de fazê-lo me soltar, Yaroslav me puxa para
cima, até que me solta e começa a chutar a cabeça do cachorro que não tem a
intenção de largar seu brinquedo de diversão.
— AXEL!!!!! — A voz de Okasana corta os rosnados do cachorro.
— AXEL, PARA!!! — Mirom grita, trinco meus dentes de dor,
Yaroslav volta a me puxar até que o cachorro me solta quando seu dono se
aproxima.
— Laura? — Yaroslav me chama quando me sento, meu tornozelo está
latejando de dor. — Oh, merda! — Xinga, coloco as mãos trêmulas no rosto,
controlando meus pensamentos.
— Quero ir embora! — Digo, me erguendo.
— Céus, ele te machucou! — Olho para meu tornozelo ensanguentado,
me inclino e subo a barra da calça, soltando um barulho de angústia.
— Você me tocou, Yaroslav — Murmuro, olhando para seu rosto
pálido e respiração acelerada. — Você me tocou!
— Eu tinha que fazer isso ou tu virarias comida de cachorro! —
Balanço a cabeça.
— Você não deveria ter me tocado! — Trinco os dentes.
— Perdoe-me... — Sussurra com os olhos marejados. — Eu só estava...
te protegendo! — Um soluço escapa de mim.
— Querida, está tudo bem? — Olho para baixo, Okasana tem as mãos
no coração e Mirom está segurando o cachorro sem expressar nenhuma
emoção. Encarando seus olhos é que percebo que isso foi de propósito... esse
ataque foi de propósito!
Me arrasto para frente, Yaroslav faz um movimento de me ajudar, mas
para quando lhe lanço um olhar de alerta. Ele me tocou... ele me tocou...
minha mente grita desesperada.
Você dá nojo nas pessoas quando elas te tocam...
Prendo a respiração antes de saltar da casinha, caio de joelhos no chão
com um gemido de dor. Fecho meus olhos com força, acalmando a dor, meus
pensamentos e minha respiração, preciso chegar em casa.
— Laura?
— Não me toca! — Digo quando se aproximam de mim. — Não me
toca! — Peço, aflita e me levanto.
— Meu Senhor, me perdoa por isso! — Okasana diz, tão assustada
quanto eu.
— O portão estava trancado! — Revelo, me equilibrando.
— O quê? — Balbucia confusa.
É tudo sua culpa, Lauriana!
Fecho meus olhos ao escutar sua voz, pavor me consome mais do que a
dor em meu tornozelo. Ele está invadindo minha vida novamente, como
sempre fez... como sempre faz...
Preciso ir embora!
Abro meus olhos e começo a andar, tentando a todo custo não colocar
muito peso sobre minha perna esquerda. Olho para o cachorro sentado aos
pés de Mirom, tão diferente do ataque... tão mais calmo! Ergo o olhar e
prendo no rosto do homem que sustenta meu olhar como se sentisse
satisfação pelo que acabou de acontecer.
Eu entrei em seu caminho... um caminho que não deveria ter cruzado.
Mirom tem o mesmo olhar que meu padrasto... um olhar insano, perturbador
e apavorante.
Me inclino para pegar minhas coisas que joguei no meio do quintal
quando saí correndo sem nem perceber. Fecho meus olhos reprimindo a dor,
inspiro fundo e volto a caminhar mancando.
— Tu estás enganada — a voz de Mirom me estremece. — O portão
não estava trancado. — Não viro para olhá-lo, continuo a passos lentos.
— Como assim? — Yaroslav sussurra ao meu lado.
— Ignore! — Falo, me aproximando do portão que não há mais
cadeado, tiro a chave do carro do bolso.
— Laura, tu estás bem? — Abro a porta e me sento, ofegante.
— Eu vou ficar... sempre fico! — Encaro meu machucado, vasculho
minha bolsa até encontrar um lenço. — Eu vou ficar bem! — Repito,
estancando o sangramento.
Trinco os dentes quando dou um nó no lenço em volta do meu
tornozelo. Minha perna pulsa de dor. Ajeito-me no banco, recosto a cabeça
no banco controlando a respiração antes de ligar o carro.
— Você vai conseguir? — Yaroslav pergunta, sua voz está tão distante
que é como se ele estivesse desaparecendo como uma névoa.
— Eu consigo! — Sussurro, aperto o volante com as mãos trêmulas.
Suor escorre por meu corpo enquanto dirijo pelas ruas, minha visão
começa a ficar turva, minha pele febril e meu tornozelo lateja. Só que o que
estou sentindo não é por causa da mordida em si, mas sim porque ele está
perto de atormentar minha mente de novo... sua voz fica cada vez mais
grave... mais perto... Me vejo em meio a uma mata fria e úmida, sozinha e
perdida enquanto sou perseguida sem pressa, uma diversão antes do
tormento, da tortura e da dor.
Freio bruscamente, encosto a testa no volante, controlando a
respiração.... controlando meu coração... “Você é asquerosa, só dá nojo nas
pessoas, por isso que faço isso com você, Lauriana...” Solto um soluço,
buzinas soam atrás de mim por estar parada no meio da avenida.
— Estás acontecendo de novo? — Yaroslav pergunta com a voz baixa.
— Preciso que vá! — Peço, minhas mãos estão tão trêmulas que mal
consigo controlá-las.
— Okay... — Diz sem contestar e sai do carro. Não é a primeira vez
que me vê entrando em crise, porém, dessa vez, parece ser pior... muito pior...
Caminho por entre as ruas do meu bairro, escondendo meu rosto do
vento. Uma frente fria chegou de uma vez no estado de Goiás, bagunçando
minha imunidade. Ontem estava um calor de rachar e hoje um frio de
lascar... Sorrio de leve mesmo em pensamentos por ter rimado essas duas
palavras.
Olho para frente, a neblina toma todo o bairro. É até engraçado que
meio-dia está parecendo cinco da manhã. Fecho mais meu agasalho e solto
um suspiro ao escutar risadas e conversas.
Queria poder fazer parte de um grupo de amigos, sorrir e brincar com
eles, conversar sobre garotos, novelas e até falar mal das meninas populares
da minha escola, mas sou impedida de criar esse vínculo.
Uns dos garotos do outro lado da rua me olha. Sou a estranha da
escola, aquela que fica reclusa em um canto com fones de ouvido, que não
conversa, que se isola das pessoas e do mundo, que não liga por sofrer
bullying, porque nada disso se compara ao que passo em casa.
Quero tanto poder contar para alguém o que meu padrasto faz comigo,
mas tenho vergonha. O que irão pensar de mim? Será que vão acreditar?
Filha de prostituta não tem nenhum privilégio, minha mãe sofre com os
preconceitos e com os olhares tortos das mulheres do bairro, serei apenas
mais uma que provocou o próprio padrasto.
Serei a culpada!
Sinto um nó na garganta. Por que é tão difícil pedir socorro? Por que
as pessoas não veem que tem alguma coisa de errado comigo? Por que elas
sempre apontam o dedo para mim e falam mal, em vez de me ajudar?
O ser humano é egoísta, prefere fechar os olhos do que tentar ao
menos entender aquilo que julga.
Desvio o olhar dos garotos que começam a fazer piadinhas, ignorando
tudo o que falam. Se eu contar para a polícia, eles irão me ajudar?
Viro à direita, direção contrária à minha casa. Eu preciso tentar... ao
menos tentar... Apresso os passos, olho no relógio e meu coração dispara.
Ele sempre está lá quando chego, o que o deixará irritado comigo por não
estar lá na hora estabelecida por ele.
Preciso tentar!
Depois de vários minutos caminhando, paro em frente à delegacia da
minha região. Será que vão acreditar em mim? Sento-me no meio-fio,
encarando a delegacia. Abraço meus joelhos e coloco o queixo em cima,
balançando meu corpo levemente para frente e para trás.
Hoje é meu aniversário de dezesseis anos, estou quase chegando aos
dezoito e quando isso acontecer, poderei fugir. E se ele me trancafiar como
fez todas as outras vezes?
O pior de tudo é que minha mãe nunca desconfiou, pelo menos é nisso
que acredito, porque seria o fim para mim se ela souber de tudo e não estar
fazendo nada para me ajudar.
Ela me ama... ela me ama... ela me ama...
Repito essas palavras em minha mente todos os dias e todas as horas,
só que depois que ela se afundou na bebida e nas drogas, mamãe não é a
mesma. Continua me dando o que preciso, roupas, sapatos, produtos de
beleza e materiais de qualidade... tudo o que ela consegue me dar.
Mesmo se drogando e bebendo, ela ainda faz qualquer coisa para que
eu tenha um pouco de luxo. Mal sabe ela que sua princesinha é estuprada
quase todos os dias, obrigada a se manter calada para proteger a única
pessoa que ama, sua mãe.
As brigas entre eles aumentaram e ele desconta em mim suas
frustrações. Fecho meus olhos, estou sozinha, sem amigos, sem ninguém que
possa me dar forças além de mim.
Quero tanto gritar!
Pego meu celular e olho novamente para o site onde me inscrevi para o
intercâmbio. Apesar de ter apenas dezesseis anos, esse é o meu último ano na
escola. Mamãe sempre falou que os estudos é a porta da nossa liberdade, por
isso, me matriculou cedo para que eu começasse logo.
Acatei seu ensinamento e meti a cara nos estudos. Pedi que me
matriculasse nas aulas de Russo. Ela estranhou, mas rendeu-se ao meu
pedido, e escondido do meu padrasto comecei a estudar, porque para ele isso
é uma perca de tempo.
Por que o Russo? Bom, a Rússia é um país fechado, longe daqui...
quase impossível de o meu padrasto ir atrás de mim quando eu for embora...
só preciso conseguir a bolsa de estudos que me inscrevi mês passado.
Essa será a oportunidade de fugir, porque não importa aonde me
esconder aqui no brasil, ele sempre me encontrará.
Guardo o celular, me levanto, tiro o capuz e inspiro fundo, tomando a
coragem de contar o que está acontecendo, do que ele está fazendo. Cada
passo que dou em direção à delegacia, mais sinto a liberdade me consumir.
Eles precisam acreditar em mim!
Quando coloco o pé na calçada da delegacia, alguém agarra meus
cabelos e me puxa para trás. Solto um grito assustado e seguro seus pulsos.
— Onde pensa que vai? — Sua voz enfurecida e baixa, estremece meu
corpo. — Sabia que iria aprontar!
Ele me arrasta pelas ruas, agarrado em meus cabelos e me joga dentro
do carro. Lágrimas escorrem por meu rosto quando seus olhos se prendem
aos meus no retrovisor. James tem o canto de seu lábio elevado, enojado.
— Estou decepcionado com você, Lauriana. — Diz, estalando a língua
e arrancando com o carro. — Estava pensando em fazer o quê? Acha que
eles iriam acreditar em você? — Ele solta uma risada forçada. — Ninguém
acredita em você. Já se olhou no espelho? Você é asquerosa, desperta nojo
nas pessoas, por isso ninguém gosta de você, Lauriana.
Solto um soluço, preciso sair, fugir dele. Vou até a porta do carro,
congelo quando escuto o clique. Ele as trancou. Minhas mãos tremem, perco
o ar só de imaginá-lo me machucando.
— Você sabe que faço isso para te punir, não é? — Olho para ele
através das lágrimas. — Sou o único que pode fazer isso!
James estaciona o carro na garagem, me tirando à força somente
quando os portões de casa se fecham. As pessoas jamais saberão o que
realmente acontece dentro dessa casa... dentro desse inferno.
— Me perdoa... — Imploro entre o choro, ele me arrasta agarrado em
meus cabelos. — Eu não ia fazer nada!
— Mentirosa! — Ele abre a porta e me joga no chão, caio um pouco
desajeitada, sentindo dor no meu pulso e na boca que foi contra o piso. —
Suas mentiras não me convencem.
Tento me levantar, mas paro ao sentir suas mãos em mim. Ranjo os
dentes quando ele levanta minha cabeça pelos cabelos e sussurra em meus
ouvidos:
— Estou furioso com você, sua mãe... — James estala a língua, fecho
os olhos ao sentir seu nariz em meu pescoço. — O que você fará se ela
morrer? Quer que eu a mate, Lauriana? Quer ver sua mãe apanhar até
morrer? — Fecho meus olhos, negando com a cabeça.
— Me solta! — Grito, me virando e batendo em seu rosto.
James solta um grunhido de dor, não irei mais deixá-lo fazer isso... não
vou... não vou... ele me solta bruscamente, fazendo com que eu bata a testa
no chão. Choramingo de dor.
— Ótimo, então vamos fazer do jeito que gosto. — Olho para ele com a
visão turva.
James desafivela seu cinto, me encarando com um olhar insano,
profanado, que sempre me causa medo. Começo a me arrastar para longe
dele, preciso reagir... preciso lutar contra isso. Me levanto a tempo de fugir
da sua investida.
Se eu gritar ninguém vai me ouvir, eu fiz isso uma vez e ele... ele fez
com que eu não conseguisse andar no outro dia. Os vizinhos nem ligam,
fecham os olhos e tapam os ouvidos, deixando-me a mercê da minha própria
sorte.
Estou sozinha!
Me encosto na parede com a respiração acelerada, lágrimas escorrem
por meu rosto ao encarar o seu rosto cheio de diversão. Essa minha recusa o
deixa mais excitado, faz com que ele seja mais agressivo nas suas investidas.
Sou sua diversão e estou tão cansada...
James avança em minha direção, saio correndo, mas ele consegue
pegar meu braço e me puxar, rodeando seus braços em volta de mim,
murmurando palavras obscenas. Solto um grito, mas ele tampa minha boca
com sua mão, me levando para o quarto.
Me debato desesperada através dos choros e dos pedidos de socorro
abafados por sua mão. James me joga no chão, escuto o trinco da porta e
olho para ele, parado aos meus pés, sorrindo como se tivesse ganhado na
loteria.
— Eu tenho nojo de você. — Diz, segurando meus tornozelos e me
arrastando para perto dele. — Você dá nojo nas pessoas. — Ele me prende
ao colocar o joelho em minhas costas. — Ninguém te suporta... ninguém
suporta tocar em você.
— Socorro... — Tento gritar, mas ele é abafado pelo choro de
desespero.
— Grite... grite mais... — Ele rasga minhas roupas, rindo de mim. —
Grite que ninguém te ouvirá, porque ninguém se importa com você, apenas
eu! — Sinto o corpo de James sobre mim, sua mão entrelaça entre meus
cabelos, puxando minha cabeça para trás, com tanta força que sinto dor no
pescoço. — Isso é sua culpa... faço isso por sua culpa...
Solto um grito quando me morde e gemo de dor ao jogar minha testa
contra o chão. Ele me levanta de uma vez e me deita na cama de costas para
ele. Me debato, grito mesmo que seja baixo, o arranho, mas é tudo em vão...
Ele sempre consegue o que quer, reprimo a dor, a humilhação e o nojo
que sinto. Quero fugir, matá-lo... morrer, mas não consigo fazer nada, todas
as minhas tentativas foram em vão.
Olho para a foto da minha mãe através das lágrimas. Ela deveria estar
me protegendo... deveria ter prestado atenção na minha mudança quando o
inferno começou... deveria ter se mantido solteira, do que trazido um
desconhecido, tendo dentro de casa uma filha.
Eu a culpo por isso, por tudo o que vem acontecendo, eu a culpo.
Minha inocência foi arrancada de mim da forma mais brutal e violenta. Eu
era uma criança... Eu tinha falado para ela que ele estava me machucando,
não com palavras, mas através de desenhos, me isolando de todo mundo,
demonstrando o medo que sentia de todos que se aproximavam,
principalmente dos homens, de quando falava alto ou quando chorava por
coisa atoa. Eu despia as bonecas, rasgava suas partes íntimas dizendo que
aquilo estava acontecendo comigo, mas ela não me ouviu... mamãe não me
ouviu e nem viu meus sinais.
Sei que para ela deve estar sendo difícil, mamãe se afundou nos vícios,
fechou os olhos para mim e me deixou do lado. Não adianta tentar me dar
coisas boas, me proporcionando um pouco de luxo se tudo o que mais
preciso é ser ouvida.
Fecho meus olhos, não quero odiá-la, porque sei que está sofrendo,
mas e eu? Como vou viver daqui para frente? Será que viverei nesse inferno
para sempre?
Quero tanto morrer para que isso tudo acabe... James me joga no
chão, me arrasto até um canto e me encolho, envergonhada, destruída,
devastada...
Ele não diz nada, apenas me deixa sozinha no quarto. Libero o choro,
preciso de ajuda, preciso fugir. Escuto o barulho de notificação do meu
celular, meu coração salta, olho pelo quarto, mas ele caiu na sala.
Me levanto apressada, James não pode ver, se ele desco... Sobressalto
quando ele abre a porta bruscamente, meus olhos encaram sua mão que
segura meu celular, James está furioso.
— Japão? — Pergunta com a voz tão fria que me encolho. — Então é
para lá que quer fugir?
Nego com a cabeça, tirando um sorriso cínico de seus lábios. Eu
também me inscrevi para uma bolsa no Japão, só precisava saber inglês.
Mas não é para lá que irei, pois sei que serei aceita na Rússia, e ele nunca
me encontrará, só preciso aguentar mais um pouco... só mais um pouco...
Sua mão colide no meu rosto tão forte que cambaleio para o lado.
Sinto gosto de sangue e quando olho para ele, James me acerta outra vez.
Ele não para de me bater, dizendo que nunca me livrarei dele e que não
importa para onde eu for, ele irá me encontrar, nem que seja no inferno...
Esfrego meus braços encarando o nada, apenas uma mata nos cercando.
Olho para trás quando Mirom abre o porta-malas do jipe e retira de dentro
uma pá. Ele passa por mim sem dizer nada, eu o sigo em silêncio.
Ele finca a pá na terra perto de uma grande árvore que seus galhos
balançam conforme o vento da madrugada toca suas folhas com a força do
vento. Mirom joga um par de luvas, pego antes que caia do chão.
— Comece a cavar — ordena, se afastando e sentando nas grandes
raízes da árvore.
— O... quê? — Ele arqueia uma sobrancelha, seu rosto sendo
iluminado pelo farol do seu carro.
— A vítima não é minha.
— Mas foi você quem matou...
— Não é o que o vídeo mostra. — Mirom acende um cigarro, tragando
e soltando a fumaça pela madrugada.
Respiro fundo, calço as luvas e começo a cavar.
— Tu foste preparada para morrer? — Pergunta minutos depois, dou de
ombros, concentrada na cova que abro.
— Um de nós dois sairia sem vida — respondo.
— Tu lutaste bravamente, tenho que reconhecer o quanto és corajosa.
— Não respondo por um longo momento, passo o dorso da mão enluvada na
testa suada.
— Por que tem tanto ódio de Ruslan?
Mirom traga, prende a fumaça por alguns segundos e solta lentamente.
— É maconha? — Pergunto, ele sorri em confirmação.
— Você quer? — Oferece, nego com a cabeça. — Ajuda a relaxar. —
Ele aponta para a cova que bate no meu tornozelo.
— Cave mais rápido. — Murmuro suas palavras antes mesmo que as
diga.
— Ele é um assassino — responde minha pergunta, minutos depois.
— Bom... você também é... enfim, viva a hipocrisia. — Sustento seu
olhar por alguns segundos.
— Tu achas que sou o verdadeiro assassino? — Umedeço meus lábios,
fecho e abro minhas mãos, as articulações dos meus dedos gritando de dor.
— Não... — Respondo. — Não mais!
— Por quê?
— Você só está com medo de que eu consiga descobrir a verdade e
com isso seus segredos. — Estico meus lábios. — Você tem podridão
escondida por trás da sua farda, dor por trás de seus olhos frios e solidão por
trás de seu sorriso sem emoção.
Mirom me encara por longos segundos.
— Volte a fazer essa merda. — Inspiro fundo e volto a cavar.
Depois de mais ou menos duas horas cavando, Mirom assume meu
lugar. Meus olhos o acompanham até o carro, ele pega o corpo de James
enrolado no carpete e um litro que parece ser de gasolina.
O corpo de James é jogado, fazendo um baque ao colidir no fundo da
cova. Meu coração salta com o barulho, inspiro fundo assistindo a gasolina o
encharcar.
Mirom acende um fósforo e me entrega.
— Faça as honras.
Solto um suspiro e jogo o fogo. O fogo cresce quando se une com a
gasolina. Lágrimas silenciosas caem de meus olhos, lembrando do que me foi
tirado, de quando a esperança se extinguiu da minha alma. Desejei tanto que
a vida me levasse, mas agora... me sinto abraçada pelo vento, beijada pela luz
da manhã.
— Temos um segredo, Laura. — Mirom quebra o crepitar do fogo,
sinto o cheiro de pele e pano queimado. — Pare de investigar os Rotam.
— A verdade sempre aparecerá, não adianta correr. — Digo, sem
desprender meus olhos do corpo que queima.
— Como se sente? — Murmura, balanço a cabeça, lembrando do meu
passado... de James...
Ele nunca mais me atormentará, a partir de hoje ele é apenas cinzas.
— Livre — revelo, lançando um olhar cansado para Mirom. — Depois
de tantos anos... eu me sinto... aliviada... me sinto liberta.
— Viva sua vida, mas nunca se esqueça do dia de hoje. — Assinto,
voltando a encarar o corpo queimando em fogo.
— Obrigada... — sussurro com a voz trêmula. — Obrigada por tê-lo
matado.
— Cacete, Ruslan! — Vocifera Nikita quando entro na sala e me sento,
sustentando seu olhar. — Onde tu estavas todo esse tempo?
— Por aí! — Ele esfrega seus olhos.
— Cada esquina de Kharkiv tem policiais, pensei por um momento que
talvez tu tinhas sido capturado.
— Estou de boa — minto.
Nikita inspira fundo, coloco as mãos no bolso do moletom e começo a
balançar a perna. Ansiedade e nervosismo me corroem aos poucos.
— Tu viste o quanto emagreceu? — Abaixo a cabeça sem responder.
— Cacete, garoto!
— Eu estou bem — minto outra vez sem revelar que, na verdade,
estava com Olesya esse tempo todo, despedindo-me da minha irmã e
tentando trazer Lívia para Kharkiv.
— Conseguiste? — Assinto.
— Olesya embarcou ontem à noite. Estará de volta depois de amanhã.
— Certo! — Nikita esfrega o rosto. — Não some dessa forma de novo,
porque espalhei homens por todos os lados atrás de ti.
— Só precisava de um tempo.
— Tu achas que tem tempo para pensar? — Ele balança a cabeça.
— E tu querias o quê? — Pergunto, ficando com raiva. — Que eu
sorrisse diante de toda essa merda? Diante de tudo o que perdi?
— Deverias estar ciente disso.
Levanto de uma vez, pego a cadeira, giro e com impulso jogo-a contra
a parede com um rugido furioso. Coloco as palmas das mãos na testa
andando de um lado para o outro, controlando a raiva dentro de mim e a
fisgada de dor de cabeça, que insiste em não ir embora.
Estou uma bagunça...
— PORRA!
— Se acalma, garoto. — Me viro para ele.
— Acalmar? — Indago, inconformado. — Como tu achas que estou?
Deixei a mulher que amo sem me despedir, não posso construir uma família
com ela porque sou um merda de um criminoso, condenado por crimes que
não cometi. Me diga como achas que deve estar aqui dentro? — Bato em
meu peito. — Estou exausto... estou cansado de toda essa merda!
Nikita fica me olhando sem dizer nada, mas vejo em seus olhos,
compreensão, de alguma forma ele entende o que estou passando.
— Não podemos fugir do nosso destino.
— Que destino merda é esse? — Resmungo, parando em frente à janela
que dá acesso à pista de dança da boate.
— Beba um pouco de álcool, te fará bem. — Respiro fundo e aceito o
copo de vodca que me entrega. Jogo a bebida na boca, ela desce rasgando a
garganta. Nikita bate em meus ombros tentando me tranquilizar.
— Olha garoto, tu precisas ser ainda mais forte. — Olho para ele, que
dá um gole na sua vodca. — O que tenho... não é bom!
Nikita se afasta, sobre a mesa lotada de papéis, ele pega uma pasta e
volta até mim, estendendo-a.
— Eu entendo perfeitamente o que sentes em relação à Laura, vai por
mim, eu sei. — Conta com o olhar perdido.
Abro a pasta, folheio alguns documentos e seguro a foto de um homem
na faixa de uns cinquenta anos. Franzo a testa, ele não me é estranho...
— O nome dela era Mariya, olhos castanhos capazes de me fazer
sonhar. Vivemos grandes momentos, mas... — Ele engole mais uma dose de
vodca. — Conheces a história de Romeo e Julieta?
— Sim.
— Detesto essa comparação, mas nossa história foi parecida. Uma
moça pertencente a uma das famílias mais importantes da Ucrânia e eu um
criminoso, filho de um mafioso.
Nikita faz uma pausa, seus olhos ficam vermelhos e marejados.
— Eu a amava mais que minha própria vida, essa garota era tudo para
mim, Ruslan.
— Imagino que sim.
— Um namoro escondido não é uma escolha sábia, não vindo de
famílias rivais. Seu pai um juiz renomado, meu pai, um dos mafiosos mais
perigosos. — Ele balança a cabeça, dando um gole no bico da garrafa da
vodca. — Claro que daria errado, mas... não como Romeo e Julieta que se
mataram. Mariya foi morta por seu próprio pai, Ruslan, ele não aceitou nosso
romance, era obcecado por ela de modo doentio, era um merda de um
abusador.
Lágrimas caem por seu rosto, desvio o olhar e encaro os olhos escuros
do juiz, sentindo ódio por meu amigo.
— Ela estava fugindo, vindo até mim... — Uma fisgada de dor aperta
meu peito ao imaginar sua dor. — Então ele atirou... na minha frente, ele a
matou... matou a mulher que dava sentido à minha vida de merda. Ele atirou
na nuca de Mariya e eu não pude fazer nada. Ela morreu em meus braços,
levou com ela tudo de bom dentro de mim.
— Então Adam colocou a culpa em você pelo assassinato? — Nikita
limpa o rosto, assentindo.
— Meu pai estava de acordo... porra, ele a aceitou como nora, viu o
quanto Mariya era importante para mim. Eu morri Ruslan. Nada mais fez
sentindo... até te encontrar naquele banheiro com o pulso cortado. Um garoto
em meio aquele inferno. Seus olhos... merda, seus olhos inocentes me
lembraram os dela.
— Tu salvaste minha vida.
— Algumas coisas devem acontecer, o destino nunca erra. — Diz,
dando outro gole na sua bebida. — Se ela não tivesse sido morta, tu estarias
morto. Se tu não tivesses fugido, não teria salvo Laura da escuridão. Tudo
está intercalado... tudo acontece com um propósito e tudo no final faz
sentido.
— Por que ainda não o matou? — Nikita não responde a princípio.
Fico analisando sua expressão adquirir uma expressão de raiva, seus
olhos se fixam no meu.
— Eu tentei, mas ele tem uma escolta de seguranças e policiais, não
posso arriscar ser preso de novo, não quando preciso assumir todos os
negócios do meu pai. — Revela. — Ele está doente, não viverá por muito
tempo.
— Então?
— Tu irás fazer isso. — Franzo a testa, sem desviar de seu olhar. —
Tu me deves uma vida, e prometi cuidar de Laura.
— Quer que eu o mate? — Ele confirma com um aceno.
— Mas isso tem ligação contigo também.
— Como assim? — Nikita me entrega seu copo, bebo a vodca em um
só gole, chiando por causa da intensidade do álcool.
— Foi ele quem te julgou. O mesmo quem bateu o martelo e te
condenou à pena perpétua.
Volto a encarar os olhos do juiz, começando a recordar da frieza em
que me olhava. De como desdenhou do meu pedido de ajuda ou quando me
ajoelhei aos prantos diante de si, pedindo por socorro, implorando, pois
estava condenando a pessoa errada.
Uma criança pedindo por misericórdia...
— Adam é um dos criminosos de colarinho branco mais sujo da
Ucrânia, sempre foi. — Diz. — Por isso tenho quase certeza de que ele
trabalhou com o verdadeiro assassino. Ele deve ter descoberto alguma sujeira
do juiz e o coagiu a te condenar e forjar as provas.
— Cacete... — Xingo, quando penso que nada pode ficar pior, essa
bomba explode em minhas mãos.
— Quando tudo acabar, é ele quem tu irás procurar e em meu nome, tu
o matarás.
— E minha dívida será paga. — Nikita assente.
— Está tudo esquematizado, quando chegar a hora meus homens
entrarão em ação. Também preparei uma rota de fuga para ti.
— Fuga?
— Sim! — Responde, rodando a garrafa. — Espanha, México...
qualquer lugar que tu escolheres, eu te enviarei.
— Não sei se é uma boa ideia, fugir não é a solução. — Nikita e eu
ficamos em silêncio por um momento, sua proposta batucando minha mente.
— Não podemos perder mais tempo. — Fala com uma respiração
funda. — Eu o encontrei, depois de muita investigação enquanto tu
refrescavas a mente, eu consegui identificar quem é o culpado.
— Quem é? — Pergunto com meu coração acelerado, meu corpo
inteiro irrompe em calafrios.
Nikita abre a boca para revelar, mas o toque do meu celular o faz calar.
Tiro-o do bolso e atendo a ligação de Kliment.
— Sim?
— Tu não irás gostar disso... — Seguro a ponte do meu nariz,
fechando os olhos em um suspiro longo. — Me enviaram um vídeo de um
número desconhecido e te encaminhei na mesma hora, quem quer que tenha
feito isso, sabe que tenho uma ligação contigo.
— Agradeço-te por isso.
— Assista, não é nada bom. — Dizendo isso, ele finaliza a ligação,
hesito um pouco antes de apertar o play do vídeo.
Choque me atinge ao assistir Laura e um homem lutando ferozmente.
Ela tentando a todo custo se afastar dele ao mesmo tempo que anseia por
espancá-lo, ele a machucando, esmagando seu pescoço...
Meu coração parece parar ao ver toda essa cena, fico congelado vendo-
a apontar uma arma em sua direção e... cacete, ela aperta o gatilho,
impregnando a bala na testa do sujeito. O filho da puta recua, cai de joelhos e
tomba para trás, morto.
Sinto meu chão ceder sob meus pés, sem acreditar no que estou vendo.
Laura não cometeria esse ato do nada... a não ser que ele seja a pessoa que ela
mais deseja matar.
Passo minhas mãos por meu rosto, tentando buscar uma resposta que
justifique sua aparição ou... quem o trouxe tinha a intenção de provocá-la da
maneira mais covarde que existe.
Sem conseguir raciocinar direito, saio apressado ignorando os gritos de
Nikita. Não hesito, preciso chegar até Laura o mais rápido, para me certificar
de que ela está bem, de tentar entender toda essa merda.
Entro no carro de Olesya e arranco em alta velocidade. Minha mente
grita me repreendendo por tê-la deixado. Não posso permitir que destruam
sua vida de novo. Piso mais fundo no acelerador.
Apesar de tudo, entendo suas motivações, ela sempre esteve
procurando por sua liberdade... para poder se livrar do demônio que a
atormentava dia após dia.
Eu a entendo... entendo porque eu faria o mesmo.
Freio bruscamente em frente ao seu prédio e entro correndo, bato à sua
porta, rodo a maçaneta empurrando a porta, mas está trancada.
— Laura, sou eu, Ruslan! — Chamo, mas não há resposta.
Escuto alguma porta ser aberta, coloco meu capuz e saio discretamente,
voltando para o carro. Tento ligar para seu celular, mas está desligado...
— Cacete! — Esmurro o volante e encosto a testa nele, controlando a
respiração. Não importa o tempo, irei esperar até que ela apareça.
Não importa onde esteja agora, ela terá que voltar para casa, Laura não
deixaria Rony tanto tempo sozinho.
Espero mais ou menos duas horas dentro do carro e quando começo a
ficar impaciente, um jipe vira a esquina, me chamando atenção. Sangue
borbulha em minhas veias ao vê-los descerem do carro. Não espero por mais
nenhum segundo, saio e vou até Mirom, esse desgraçado armou para ela,
tenho certeza!
Empurro suas costas, giro-o e soco seu rosto. Mirom revida, partindo
para cima, acertando meu estômago. Encolho-me com falta de ar, um erro
terrível. Um instante depois caio no chão com meu rosto queimando de dor
depois do seu soco.
— Ruslan!
A voz de Laura ao fundo me deixa mais furioso com Mirom. Ele
mexeu com ela, a perturbou da maneira mais covarde que um ser humano é
capaz. Esse desgraçado não sabe nada do que essa garota passou na mão
daquele desgraçado, para cometer uma barbaridade dessa.
Levanto-me, encaro seus olhos frios e o ataco. Entre socos, chutes e
xingamentos, a briga se estende. Seu nariz sangra e um corte se abre em sua
sobrancelha esquerda enquanto bato sua testa contra o vidro da janela do jipe,
que se rompe, cortando o rosto de Mirom ainda mais.
Ele rosna de raiva e dor, me afastando com uma cotovelada na minha
garganta. Cambaleio para trás, Mirom segura minha cabeça e a leva em
direção ao seu joelho, acertando-me com força.
Dor me faz estremecer, sangue escorre pelos cortes do meu rosto.
Contorno meus braços em sua cintura e o derrubo no chão, acertando
novamente seu rosto, várias e várias vezes.
Minhas mãos queimam de dor, Mirom tosse e geme, mas não desiste.
Ele me joga longe, se levantando e chutando-me.
— Seu merda! — Vocifera, furioso, consigo segurar seu tornozelo,
puxo para frente e faço com que caia.
Gemendo e tentando controlar a dor, me viro, cuspo o sangue da boca e
me levanto. Zonzo e cansado, ele faz o mesmo. Viro-me para ele arrancando
a arma escondida nas costas, destravo-a e aponto na sua cabeça. Encaro sua
arma também apontada em minha direção antes de encontrar com seus olhos.
— Tu não deverias ter feito aquilo. — Rosno.
— Feito o quê? — O sarcasmo de sua voz me irrita. — Cada um faz
suas escolhas, ela fez a dela.
— E tu acabas de assinar sua sentença de morte...
— Assim como tu! — Rebate. — Como ficaria sua pequena flor se
você morrer na sua frente? — Meus olhos se encontram com os de Laura,
assustados com nossa briga.
— Tu és doente!
— Precisava fazer isso. — Responde, duro como uma rocha.
— Eu também preciso apertar esse gatilho...
— Aperte, me mate. Não fará nenhuma diferença, não é? — Minhas
mãos estremecem.
— Parem... — A voz fraca de Laura me impede de apertar o gatilho.
— Parem... — Ele debocha, respiro fundo e abaixo a arma, não irei
matá-lo na frente de Laura, não depois de tudo o que ela passou.
Mirom sorri vitorioso e abaixa a arma. Embora eu não tenha apertado o
gatilho, não quer dizer que o deixarei impune. Em passos largos o alcanço,
acertando seu rosto outra vez.
Mesmo exausto e machucado, continuo, quero vê-lo apagar olhando em
meus olhos, quero que fique por dias lembrando do meu punho.
Ele me olha, arfando, tão exausto quanto eu. Mirom cospe no chão e
vem em minha direção, mas Laura e outra mulher entra no meio, nos
impedindo.
— Parem, isso está ridículo! — A moça de frente a Mirom diz. — Se
querem se matar, aqui não é o melhor lugar. Aqui tem famílias e crianças.
As mãos de Laura repousam em meu peito que sobe e desce com minha
respiração acelerada. Meus olhos recaem nela, a súplica em seu rosto me
desestrutura, assim como os hematomas em seu rosto e pescoço... fico sem ar.
— Chega Ruslan, vamos conversar direito, okay? — Fala com a voz
rouca, fecho meus olhos e assinto, contornando minhas mãos em seu pulso.
— Tu és um merda... — Mirom rosna, volto a encará-lo. — Vou acabar
contigo, Ruslan... assim como fizeste com ela.
— Como dizes? — Franzo a testa, confuso.
Mirom ri, incrédulo. Dá um passo à frente, mas a moça o impede,
dando-lhe um empurrão.
— Eu falei para parar, cacete! — Ela diz, o empurrando de novo.
Mirom fica encarando-a. Tenho que admitir que ela é corajosa para
enfrentá-lo dessa forma.
— Cuidado! — Ele avisa com a voz gélida.
— Com o quê? Com você?
— Não volte a me tocar. — Mirom se afasta dela sem desprender do
seu olhar. — Me ouviu?
— Tu és um babaca de merda.
— Gana! — Laura intervém, indo até ela e a puxando para trás. —
Chega!
— Vai embora seu idiota — a moça continua.
Mirom sorri como um predador que acaba de selecionar sua próxima
vítima. Noto um encolher de ombros dela diante ao olhar assassino dele.
— Vamos, Gana. Vamos entrar! — Laura me olha e aponta com o
queixo para entrarmos. Respiro fundo e por ela eu a obedeço, mas não antes
de encará-lo com a promessa de que essa conversa ainda não terminou.
— Babaca! — Gana rosna antes de ser puxada para dentro do prédio.
Sento-me no sofá, colocando a cabeça entre as mãos enquanto balanço
a perna. Estou furioso demais para conseguir me acalmar ou dizer alguma
coisa.
Gana anda de um lado para o outro, xingando. Ambos estamos
alterados pelo que aconteceu. Laura permanece encostada na parede, em
silêncio.
Ergo a cabeça, encontrando seu olhar carregado de dor. Inspiro fundo e
me levanto.
— Tu poderias ter morrido. — Digo, passando por ela em direção à
cozinha e enchendo um copo de água.
— Mas não morri!
— Laura? — Olho para Gana por sobre o ombro. — Tu apontaste uma
arma para mim! — Me viro.
— Desculpa...
— Tu terias apertado o gatilho, não teria? — Angustia nos olhos de sua
amiga faz Laura se encolher.
— Não, mas... precisava te assustar para me deixar passar. — Gana
bufa, entrelaçando seus cabelos.
— Fiquei com tanto medo...
— Gana, a arma era de mentira — franzo a testa ao escutar essa
declaração. — Por que tinha uma arma falsa dentro da gaveta?
— Fa-aal-sa? — Gana começa a empalidecer.
— Tu foste atrás daquele homem com uma arma falsa?! — Pergunto,
deixando o copo de lado e me aproximando.
— Eu não sabia...
— Cacete Laura, e se tivesse morrido? Céus, uma arma falsa!? — A
intensidade que minha voz sai a assusta.
— Não pensei, está bem? — Diz, se desencostando da parede. — Eu
queria matá-lo e não importava o que acontecesse, um de nós não sairia com
vida.
— E tu conseguiste! — Laura me olha espantada, sustendo seu olhar.
— Preciso ir... — Gana declara. — Preciso respirar!
— Gana me perdoa! — Laura vai atrás de sua amiga.
— Sabe Laura, — Gana solta uma respiração pesada — se eu tivesse
coragem, se não fosse covarde, eu teria feito o mesmo. — Declarando isso,
ela sai, fechando a porta atrás de si.
— Ele te enviou o vídeo? — Esfrego meu rosto, lembrando de toda a
cena.
— Sim, tu mataste... James? — Laura abaixa a cabeça.
— Não! — Inclino a cabeça para o lado, sem desgrudar meus olhos
dela. — A arma era falsa, Ruslan, a bala... impregnada na testa do meu
padrasto foi de Mirom. — Ela levanta a cabeça e me encara com seus olhos
azuis marejados. — Mirom que o matou.
— Merda! — Vocifero, levando as mãos à cabeça e me virando de
costas para ela. — Agora ele está te ameaçando?
— Sim...
— Cacete! — Grito, dando um soco na parede, mas me arrependo de
imediato ao escutar um arfar, me viro para Laura.
Ela está trêmula, suja e machucada, me olhando com medo. Ranjo
meus dentes e respiro fundo. Jogando para o fundo toda minha raiva.
É com Mirom que devo ficar com raiva e não com ela.
— Perdoe-me — ela assente.
— Tudo bem! — Nego com a cabeça.
— Não está nada bem, pequena! — Laura aperta os lábios, estendo
minha mão para que venha. — Venha, tu precisas lavar toda essa sujeira.
Laura enlaça sua mão na minha, tão fria, que aperta meu coração.
Lentamente percorro as mãos por seu rosto, descendo por seu pescoço e
braços, sentindo seu calor, sua pele e agradecendo por ela estar aqui viva,
mesmo ferida.
Seguro a barra do seu moletom e passo por sua cabeça. Seus pelos
eriçam conforme contorno seus seios, cintura e barriga. Trinco os dentes ao
encontrar mais hematomas.
Fito seus olhos antes de me ajoelhar à sua frente. Tiro seus tênis e,
lentamente, desço sua calça, engolindo em seco. Em instantes Laura está nua
diante de mim.
Afasto seus cabelos do seu ombro, seus olhos se mantêm presos em
mim.
— O que eu faço? — Murmuro com a voz embargada.
— Você veio até mim — diz, rouca.
— Como poderia deixar você? — Lágrimas caem de seus olhos
cristalinos. — Nunca senti tanto medo...
— Medo de quê? — Seguro sua cintura e trago-a para mim, encostando
minha testa na sua.
— De te perder. — Confesso, pegando-a no colo. — Não tenho muito
tempo. — Seus braços contornam meu pescoço.
— Você precisa ir? — Assinto, roçando meus lábios nos seus.
— Não penses nisso agora. — Levo-a para o banheiro, colocando-a no
chão.
— Você deveria tirar suas roupas e vir se banhar comigo. — Sorrio
com malícia, Laura retribui.
— Tens certeza? — Suas mãos descem por meu peito e sobem até meu
pescoço.
Tiro minhas roupas, ligo o chuveiro e limpo seu rosto com delicadeza,
despertando a luxúria dentro de mim.
— Laura? — Paro, encarando seu olhar vazio.
— Sim?
— Estou aqui... — Sussurro, seus olhos estremecem. — Pode chorar,
eu te seguro. Não deixarei que caia, não enquanto estiver em meus braços.
— Ruslan, eu... eu me sinto feliz por ele ter morrido. — Confessa. — É
errado estar sentindo isso?
— Não, não é errado!
— Sou cúmplice de um assassinato, ocultei um corpo e ajudei a
queimá-lo... — Laura balança a cabeça. — Por todos esses anos eu chorei,
gritei e sangrei com as lembranças do que ele me fez. Sua voz me
perturbando, seu toque impregnado em minha pele... Eu deveria estar com
remorso, mas em vez disso, sinto-me... salva. James não mais me atormentará
diariamente, não me sinto derrotada. É como se sua morte me devolvesse a
vida, estou respirando novamente. Ruslan, estou livre!
— Não queres chorar? — Laura nega com a cabeça.
— Eu quero sorrir... — Declara. — Quero você... — Seguro seu queixo
e sorrio, ela retribui com um tão cheio de vida, que as batidas do meu coração
falham. Preciso dela... Laura é tudo o que eu necessito.
— Você floresceu... — Sussurro, trazendo-a para mim. — Minha
pequena flor floresceu.
Roço meus lábios no seu, sentindo sua respiração ficar acelerada. Um
nódulo cresce em minha garganta enquanto olho no fundo de seus olhos,
conseguindo ver sua alma sendo reconstruída.
Laura destrancou as portas. Se libertou das correntes. Sua mudança me
deixa renovado, mais forte para enfrentar qualquer desafio.
Ela lutou grandes batalhas, e venceu. Agora chegou a hora dela viver
sem medo, de encontrar sua felicidade com intensidade. Queria poder estar ao
seu lado, mas não posso, entretanto, meu coração permanecerá com ela.
Inclino e capturo seus lábios, envolvendo meus braços em volta da sua
cintura e a puxo para perto de mim, seu sorriso puxando seus lábios entre
nosso beijo exigente.
Empurro-a contra a parede do banheiro. Percorro minha mão por seu
corpo molhado e levanto sua perna esquerda, aperto sua coxa e solto um
gemido ao me encaixar entre suas pernas, sentindo sua intimidade, me
segurando para não me afundar em seu desejo.
Com a outra mão, seguro firme sua nuca, exigindo mais de seus lábios,
querendo cada vez mais.
Não vou esquecer de como é tê-la em meus braços. Quero permanecer
apaixonado mesmo com a tristeza de tê-la deixado. Quero ir para cama,
dormir ao seu lado todas as noites, ao amanhecer, quero assisti-la despertar e
sorrir. Não posso impedir que meu coração deseje ser feliz ao seu lado.
O que fiz de errado para que arrancassem tudo de mim? Minha
felicidade, meus sonhos, minha liberdade...
Afasto meus lábios dos dela sem conseguir mais aguentar. Coloco as
mãos ao seu redor e encosto minha testa na sua, permitindo-me desabar e sem
dizer nada, Laura me vê chorar.
Sinto-me cair, tudo desaparecendo, se definhando. Minha hora está
chegando ao fim. Não existe a possibilidade de as coisas mudarem, o trajeto
da minha vida já foi trilhado. Mesmo que eu lute, meu destino é certo. Ao
sair daqui, sairei morto como antes, a neblina me jogará para o caminho que
me espera, me deixando sem nada, me devolvendo para o abismo.
Porém, o que me resta é o agora. Levanto a cabeça, o brilho de seus
olhos diz que não importa o que aconteça, sempre permaneceremos um ao
outro. Laura iluminará minha escuridão quando não houver esperança, como
um sonho... como uma rosa em meio à devastação de uma vida injustiçada
pelo destino.
Enquanto as noites se tornarem anos, meu lugar permanecerá em seu
coração, onde a névoa é eliminada com seu sorriso, e em seus braços eu
sonharei em estar até o momento em que darei o meu último suspiro.
— Eu te amo — Laura sussurra, deslizo meus dedos nos seus cabelos.
— Obrigado — inspiro fundo, ocultando toda a dor que sinto nesse
momento. — Obrigado por ter me tornado um homem completo.
Ela sorri, não perco mais tempo e colo seus lábios nos meus. Sua língua
se encontra com a minha. Seguro sua cintura e a levanto. Laura contorna suas
pernas em mim, encosto-a na parede, beijando-a com paixão, entregando meu
coração em suas mãos e sentindo o seu coração bater mais rápido a cada
momento em que a toco.
Pressiono meu corpo no seu e encontro a porta da sua alma, nos
levando para um mundo onde poderemos ficar juntos, sem que a esperança
desapareça.
Laura geme ao ser amada da forma que merece, ela tem tudo de mim
mesmo que não tenhamos um futuro. Minha alma chora, meu coração se
quebra e a rosa dentro de mim murcha a cada instante em que digo adeus.
Fico me encarando pelo espelho, olhos vazios e alma dilacerada, mas
tudo ocultado por uma máscara inabalável. Ninguém faz ideia do que é viver
o pesadelo de seus sonhos.
Estico meus lábios em um sorriso, preciso sorrir mesmo que eu queira
chorar. Nunca desejei tanto que Laura tivesse apertado aquele gatilho... eu
pensei... cogitei que talvez se lutasse contra ela, a arma dispararia e me tiraria
daqui.
Mas não pude... não podia fazer aquilo com a única pessoa que me olha
sem me condenar, por ser quem eu sou. Laura se tornou minha rocha.
Quando pensei que ninguém sofria tanto quanto eu, ela me mostrou que há
sofrimento maior.
Desvio meu olhar e encaro Tamara, sorrio para ela.
— O que tu estás fazendo aqui e não tentando arrumar um cliente? —
Pergunta, descendo o zíper da sua bota.
— Iryna quer que eu vá buscar duas garotas no aeroporto. — Tamara
fecha os olhos.
— São tão idiotas quanto nós fomos. — Assinto, calçando minhas
botas.
— Estou ficando exausta — confesso, Tamara suspira.
— Temos que achar um jeito...
— A morte... é o único jeito. — Desvio do seu olhar, dou de ombros e
sorrio para afastar a tristeza.
— Gana? — Olho para trás ao escutar a voz doce de Zoya. —
Mandaram entregar-te esta caixa.
Levanto-me da cadeira e apanho a caixa preta. Zoya começa a se
arrumar.
— Eles me mandaram para rua. — Confessa, balançando a cabeça. —
Que merda!
— Obedeça calada, Zoya, assim eles confiarão em ti e te darão os
melhores clientes.
— E ser capacho como você? — Ela me encara com seus olhos
escuros, Zoya não tem mais que vinte e dois anos, tão linda que despertou o
interesse deles.
— Sou livre... — Me calo quando Tamara solta uma risada.
— Livre? — Debocha. — Que liberdade, não?
— É o único jeito de sobreviver a tudo isso. — Elas se calam.
— Não vi mais a Fernanda... — Zoya diz, se sentando e me olhando
pelo espelho.
Fernanda era uma de nós, brasileira de carteirinha, mas que...
desapareceu e eu sei porquê.
— Talvez eles a tenham enviado para outro lugar.
— Gana, não se iluda. — Aliso a caixa, sem prolongar essa conversa.
— Porra! Cacete! Caralho! — Olena entra no camarim soltando fogo
pelo nariz.
— O que aconteceu? — Pergunto, ela não me olha, mal conversa
comigo, porque me culpa por tê-la trazido.
— Não te suporto, garota burra! — Diz para mim, tirando suas roupas e
colocando uma mais ousada.
Um nó se aloja em minha garganta. Ela se aproxima das minhas coisas
e nota meus cadernos e livros. Abro a boca para impedi-la, mas Zoya me
barra com um aceno sutil de cabeça.
— Você acha que vai conseguir aprender alguma coisa? — Olena
pergunta, pegando meu caderno.
— Estou conseguindo...
— E se formando vai sair daqui? — Engulo em seco, ela ri.
— Você é burra Gana, gente burra nunca sai daqui.
— Não seja cruel, Olena! — Zoya a intervém. — Gana não tem culpa
de não conseguir aprender as coisas.
Abaixo a cabeça, esticando meus lábios em um sorriso que impede que
as lágrimas caiam de meus olhos. Tamara apenas assiste toda a cena, ela
nunca se intromete.
— Ela é a queridinha... não podemos tocá-la. — Olena caçoa.
Ignorando suas ofensas, abro a caixa. Dentro dela há duas rosas
vermelhas murchas, minhas mãos estremecem.
— Pelo jeito alguém deseja má sorte a você. — Olena para diante de
mim, levanto a cabeça e encaro seus olhos castanhos. — Tomara que essas
rosas sejam o sinal de que você desaparecerá de nossas vidas.
— Não tive culpa... — Murmuro, ela estala a língua e pega uma rosa.
— O que é seu está guardado, sua puta burra! — Diz, enfiando a rosa
dentro da minha boca antes de sair do camarim.
Cuspo a rosa, balançando a cabeça sem conseguir reagir devido a culpa
e o remorso que me corroem. Olho para Tamara e Zoya, elas apenas dão de
ombros.
Respiro fundo e saio pelos fundos da boate, sentindo a brisa da noite
beijar minha pele. Não ligo que elas não gostem de mim, todas tem razão em
me condenar dessa maneira, mas pelo menos, tenho uma amiga que me faz
sentir uma pessoa normal.
O salto da minha bota entoa pelo beco. A música da boate soa abafada,
estremeço de frio quando o vento passa por mim. Queria estar dentro de
roupas quentes, sendo abraçada pelo calor.
Olho para o lado e vejo Luba me assistindo com o queixo erguido e
braços cruzados. Ofereço um aceno leve antes de desviar e seguir até meu
carro em meio ao estacionamento vazio e silencioso.
Escuto passos e olho para trás, Luba não está mais onde estava. Meus
olhos percorrem o estacionamento, não há mais ninguém. Volto a andar,
agora em alerta e com o coração palpitando.
Tiro a chave do xoxo do bolso, encarando-a. Dentro desse chaveiro há
um rastreador, igual ao que está impregnado na minha nuca.
Paro de andar assim que escuto os passos de novo. Engulo em seco,
minha respiração acelerando assim como os batimentos do meu coração.
Olho por sobre o ombro, piscando até encontrar o responsável pelos
ruídos. Alguns metros distantes de mim, encaro uma silhueta escura, coberta
por uma capa que balança conforme o vento toca o tecido.
Viro para frente e volto a caminhar apressada em busca do meu carro.
Meu pé se afunda em uma poça de água, molhando minha perna. Balanço-a
para tirar o excesso e volto a caminhar.
O estacionamento parece se fechar ao meu redor, despertando uma
sensação estranha. Gotas de chuva começam a cair como melodias ao
colidirem na lataria dos carros. Prendo a respiração e seguro com mais força a
chave e a caixa em minhas mãos.
Diminuo os passos e disfarçadamente olho para trás por sobre o ombro.
Meu coração salta ao ver um pouco distante que a sombra encapuzada
continua a me seguir.
Volto a olhar para frente, meu instinto de sobrevivência soando a cada
segundo. Apresso os passos a ponto de estar quase correndo pelo
estacionamento, que parece não ter fim. Desespero aumenta ao não conseguir
chegar até meu carro.
Onde ele está?
Olho para trás e percebo que a figura sombria está cada vez mais perto.
Cada movimento seu é calmo, calculado. Meu medo faz com que eu comece
a correr, meus pés se afundando nas poças, respiração ofegante e coração
palpitando em desespero.
Deixo cair a caixa enquanto corro mais rápido. Olho para frente, e
finalmente vejo meu carro.
Preciso entrar... preciso fugir!
Volto a olhar para o perseguidor, ele está parado como uma estátua,
implacável.
Preciso fugir!
Corro até meu carro, a chuva se intensifica, enquanto tento destrancar a
porta com as mãos trêmulas e escorregadias.
Passo a mão em meu rosto para limpar minha visão. Estou encharcada,
meu instinto grita para que eu fuja, preciso me salvar. A chave cai no chão,
dentro de uma poça.
— Cacete! — Sussurro em desespero.
Olho para o lado e prendo a respiração quando uma faca aparece em
sua mão, e o relâmpago reluz em sua lâmina. Me sinto um rato acuado pelo
gato. Sou sua diversão nesta noite e ele não vai parar até me pegar.
Giro meus calcanhares e corro em direção a uma ruela. Meu peito
aperta, já sem fôlego. Paro de uma vez antes de colidir com uma parede.
Entrei em um caminho sem saída de puro desespero.
Encosto a mão no muro, sentindo sua textura gelada e molhada em
busca de salvação. Ouço passos e congelo. Calafrio percorre minha espinha,
me viro lentamente e encaro a silhueta.
Engulo em seco fitando a faca em sua mão, imaginando-a perfurando
minha pele. Encosto as costas no muro sem conseguir respirar direito.
Não tenho para onde fugir. Estou presa!
Me encolho quando ele solta uma risada sombria, ecoando através da
chuva. Engulo em seco, meus olhos arregalados estão fixos em quem quer
que esteja prestes a me atacar.
— Po-or... fa-a-vor... — gaguejo aterrorizada, minha súplica não surte
efeito.
— Toda rosa estragada deve ser eliminada... — Diz, levantando a
cabeça, seus olhos se fixando nos meus e prendo a respiração quando seu
rosto é iluminado pelo raio e logo em seguia o trovão estremece todo o chão.
Solto um grito apavorado quando avança em minha direção, me
esfaqueia enquanto tento proteger meu rosto com as mãos.
Ele não para, sinto a lâmina perfurar meus braços, me tirando gemidos
e gritos de dor. Choro pedindo socorro, não consigo me afastar ou lutar por
estar guerreando contra a faca que me perfura.
Choramingo, sem mais forças, tamanha dor. Ele se afasta, e me
encolho, desesperada. Olho para meus braços, estão cortados e jorram
sangue. Levanto a cabeça, um trovão irrompe e abafa meu grito de ajuda em
meio a noite chuvosa.
— Po-or... fa-avor... não me machuque... — Peço e antes de tentar
gritar de novo, ele avança. Perco o ar ao sentir a lâmina afundar na minha
barriga.
A dor é tão insuportável que meu corpo paralisa. Seguro seus pulsos,
estremecendo e encarando seus olhos verdes sem acreditar... arfo em busca
de ar... estou morrendo, meu coração começa a bater mais lento, entoando em
meus ouvidos, dizendo que daqui alguns segundos não existirei mais.
Talvez seja bom ser levada para um lugar onde não há sofrimento... um
lugar onde posso ser eu mesma, sem ter medo de criar laços.
Solto um gemido quando retira a faca do meu estômago. Escorrego até
o chão perdendo os sentidos. Olho para baixo, o sangue não para de escorrer
do corte.
Começo a engasgar com meu próprio sangue, desejando que essa dor
acabe... Tombo a cabeça para frente com a visão embaçada, ouço passos e
depois silêncio, apenas o barulho da chuva permanece.
Estou sozinha em um beco, morrendo na calada da noite enquanto a
maioria do mundo vive uma vida agitada.
Acreditei que a morte seria a única solução para me tirar dessa vida, eu
estava certa. Tombo a cabeça para frente, não consigo mais respirar... mãos
envolvem meu rosto antes de tudo desaparecer como pó.
Inclinada sobre a mesa de reunião cheia de papéis, assisto toda a
discussão de como será o andamento do documentário de Ruslan que
entreguei ontem.
Os diretores, roteiristas, editores e Andry acertam os detalhes, montam
os roteiros, excluindo os furos que encontram, dando vida à sua história. Será
meses de trabalho árduo até ficar perfeito, hoje é apenas o começo.
Recosto na cadeira, encontrando com o olhar de Aksinya e Justik, eles
surtaram quando me viram machucada, menti dizendo que tinha sido
assaltada perto de casa, a mesma mentira foi contada a Andry.
Yaroslav não caiu, mas também não exigiu a verdade, respeitando meu
silêncio. Volto minha atenção para os diretores que conversam, Lybochka
tenta dar sua opinião, mas para Andry a sua própria é a única que importa,
principalmente essa reunião que já estava marcada há dias, e eu nem sabia.
Respiro fundo, notando-a fuzilar meu chefe com um olhar mortal.
— Acho que ela se arrependerá de trabalhar com Andry. — Sussurra
Yaroslav.
— Já se arrependeu! — Ele ri.
Viro a folha indo para segunda parte da reunião, mas meu celular me
interrompe ao vibrar em meu bolso. Olho para Yaroslav avisando que sairei
para atender.
Aceito a ligação assim que saio do estúdio.
— Sim?
— Senhora Laura? — A mulher pergunta.
— É ela!
— Bom dia, sou a enfermeira Hanna do Kharkiv City Clinical Hospital
№ 8, estou entrando em contato para informar que a senhorita Gana
Navolska deu entrada às 03:00 da manhã em estado grave. Seu contato é o
de emergência, você é da família?
Fico congelada sem conseguir assimilar o que ela acabou de dizer.
Gana no hospital? Em estado grave?
Começo a tremer, minha respiração acelera, ao mesmo tempo, em que a
luz branca embaça minha visão.
— Senhorita Laura?
—Si-im... — Consigo dizer, tentando me acalmar. — Como... como ela
está? O que aconteceu?
— Não estou autorizada a passar informações por telefone, preciso
que compareça à unidade o mais rápido que puder.
— Tudo bem, estou indo. — Finalizo a ligação, olhando para os lados,
desorientada e sem saber o que fazer.
— Laura? — Yaroslav para à minha frente. — Tu estás pálida... O que
aconteceste? — Olho para ele através das lágrimas. — Meu Deus Laura, o
que ouve? — Ele se aproxima automaticamente com uma expressão
preocupada, dou um passo para trás, assustada com seu avanço. Ele congela
por alguns segundos antes de balançar a cabeça como se dissesse que não irá
me tocar.
— É a Gana... ela... ela está no hospital. — Conto, vendo seus olhos
adquirirem um brilho assustado. — A enfermeira disse que... é grave.
— Quando isso aconteceu? — Nego com a cabeça sem saber a
resposta. — Vamos, eu te levo.
Yaroslav recua alguns passos para que eu possa andar ao seu lado.
Agradeço, porque sou incapaz de pegar um ônibus nesse estado.
Enterro meu rosto entre as mãos ao me acomodar no carro. Às vezes
não tenha sido algo tão grave assim... talvez tenha sido apenas um acidente.
Funcionários de hospitais gostam de nos assustar.
O caminho até o hospital parece levar uma eternidade. Yaroslav
estaciona o carro em frente ao prédio antigo dizendo que irá encontrar uma
vaga enquanto vou na frente.
Entro apressada sem prestar atenção em nada. Encontro a recepção e
paro em frente ao balcão, fitando o rosto das duas recepcionistas.
— Gana... estou... — Faço uma pausa por estar ofegante demais para
falar. — Sou amiga da Gana Navolska, me ligaram, falaram que ela deu
entrada aqui.
— Só um instante, senhorita. — Abaixo a cabeça e esfrego meu rosto.
Olho em volta, analisando o lugar, hospital é tudo igual, o mesmo cheiro, a
mesma sensação de morte, doença e dor.
Yaroslav vem correndo em minha direção, lanço um olhar de medo que
o faz comprimir os lábios ao parar ao meu lado.
— Senhorita...
— Laura... Lauriana Silva. — A moça assente, digita por mais alguns
segundos e prende seus olhos azuis nos meus.
— Nesse momento ela está na UTI.
— O qu... — me calo, sem conseguir falar mais nada.
— Ela deu entrada no hospital com ferimentos causados por arma
branca, passou por cirurgia e no momento está em observação.
— Ela ficará bem? — Yaroslav pergunta.
— Sinto muito, mas não tenho todas as informações. Por favor,
esperem na sala de espera da UTI. Avisarei ao médico que os responsáveis
por ela estão aqui.
— Obrigado. — Yaroslav agradece, me guiando pelo caminho.
Não posso perdê-la, sempre tive medo de que algo desse tipo
acontecesse. Minha mãe já apareceu em casa espancada por causa de um dos
seus clientes, e a outra vez, foi por se envolver em uma briga com uma das
prostitutas que trabalhava na mesma boate que ela.
Esse mundo em que vivem é perigoso, muitos homens pegam
prostitutas apenas para cometer barbaridades, mas no final elas só querem
trabalhar e ganhar seu dinheiro.
Yaroslav me orienta a sentar evitando me tocar, encosto as mãos
entrelaçadas na boca enquanto espero impaciente pelo médico.
— Parentes da senhorita Gana? — Me levanto ao encarar o médico que
aparece meia hora depois de chegarmos.
— Sim.
— Sou Avgust, médico de Gana.
— Como ela está, doutor? — Pergunta Yaroslav, ele nos olha por
alguns segundos.
— Ela tem cortes por toda parte do corpo e um que perfurou o
estômago. Tivemos que fazer uma cirurgia de urgência, no momento ela está
estável.
— Então está fora de perigo?
— As primeiras 24 horas são cruciais, sinto muito, mas Gana precisará
ser forte para se recuperar. Estamos fazendo o possível para tratá-la da
melhor forma.
— O que aconteceu? — Pergunto com a voz fraca.
— Ela foi esfaqueada. — Declara. — Gana tem algum inimigo...
alguém que queira seu mal?
— Não sei... — Balbucio.
— A polícia foi acionada, em alguns minutos eles estarão aqui e
poderão abrir uma investigação.
— Posso vê-la? — Lanço um olhar de súplica, ele respira fundo.
— Apenas por trás dos vidros. — Assinto.
— Venham!
Sigo Avgust pelos corredores do hospital, passando por pacientes
machucados, doentes e enfermeiros correndo apressados. Inspiro o odor
próprio do lugar, pressentindo algo ruim.
Olho para Yaroslav em busca de apoio, ele balança a cabeça me
tranquilizando, mas um barulho ensurdecedor me assusta, não sei dizer o que
significa. Vejo movimentação de médicos e enfermeiros como se estivessem
desesperados.
— Doutor? — Uma moça para na nossa frente, ela passa as mãos no
tecido do seu uniforme. — É a paciente Gana, ela está com complicações!
Arregalo os olhos, meu coração acelera. Avgust não espera e corre até
ela, eu os sigo, esquivando das enfermeiras que tentam me impedir.
Paro na porta do quarto, meus olhos presos em Gana que estremece na
cama com os olhos fechados. Seus braços e suas mãos estão enfaixados e seu
rosto pálido está cheio de cortes.
— O que aconteceu? — O médico pergunta.
— Não sei doutor, ela estava bem minutos atrás. — Levo as mãos à
boca quando o corpo dela fica imóvel, então o aparelho de batimentos faz
meu coração parar. — Sem pulso! — Avgust declara.
Todos começam a agir, meus olhos não param de acompanhar seus
movimentos. O médico abre a blusa de Gana e começa a reanimá-la.
Estou paralisada, sem saber como reagir, não posso perder minha
amiga... não posso... perdê-la também.
Cambaleio para trás, Yaroslav me segura impedindo que eu caia. Eles
continuam tentando trazê-la de volta. A cena é demais para eu suportar.
— Temos pulso! — Uma enfermeira grita, meu corpo relaxa.
— Ela está de volta. — Avgust declara, soltando um suspiro longo
minutos depois. — Bom trabalho, pessoal! — Ele se vira e me olha. — Te
darei dois minutos enquanto a enfermeira a monitora. Gana voltou, mas seu
quadro ainda é crítico.
Ele passa por mim, os demais enfermeiros o seguem, ficando apenas
uma que monitora o respirador e os aparelhos que estão ajudando a manter
Gana viva.
Olho para Yaroslav antes de me aproximar da sua cama. Analiso seu
corpo ligado à vários fios, seu rosto machucado e seu peito sobe e desce
lentamente.
— Você ficaria furiosa se visse o estado do seu rosto. — Murmuro.
— Você ficará boa, okay? — Passo a mão em seus cabelos e olho para sua
mão fechada em punho. Assim como o resto do seu corpo, ela está enfaixada
me impedindo de ver o estrago que fizeram com sua pele.
Viro sua mão para cima e delicadamente a abro. Meu sangue gela ao
fitar o artefato na sua palma, sentindo o chão ceder sob meus pés.
Olho para os lados e para a enfermeira antes de encarar a mão de Gana,
pego o artefato e guardo no bolso.
— Yaroslav? — Chamo, me virando e encarando-o.
— O que foi? — Pergunta alarmado, passo a língua em meus lábios
secos, sentindo-o cortado.
— Alguém esteve aqui e tentou matá-la. — Murmuro, indo para o
canto do quarto.
— Como dizes? — Esfrego meu rosto, meneando a cabeça.
— Encontrei algo... — Engulo em seco, observando a enfermeira
cuidar de Gana. — Yaroslav, acho que quem fez isso foi o maníaco da rosa.
— Ele arregala os olhos.
— Mas, por que ela? — Entrelaço as mãos em meus cabelos com os
olhos presos em Gana.
— Apesar de ela ser uma prostituta, Gana é linda e jovem, quem a vê
acredita que ela tem dinheiro.
— Laura, isso não se encaixa. — Mordo meu lábio inferior. — E como
o assassino entrou aqui sem que ninguém percebesse? Como entrou no
hospital, passou pela CTI e tudo mais sem ninguém perceber?
— Yaroslav, ele conseguiu se esconder durante anos, acredito que essa
é sua primeira falha, deixou uma vítima viva. Entrar no CTI para terminar o
serviço que começou não é um obstáculo.
— Só que falhou de novo. — Confirmo com um balançar de cabeça.
— Vocês precisam ir. — A enfermeira informa, respiro fundo e assinto,
dando um beijo na testa de Gana antes de sair.
— Laura, o que estás planejando? — Yaroslav indaga lendo minha
expressão.
— Eu preciso ter certeza. — Digo, andando de um lado para o outro no
corredor. — Me empresta o carro. — Estendo minha mão.
— Tu irás fazer besteira.
— Preciso que fique aqui vigiando-a. — Peço, ele umedece os lábios.
— Os policiais vão chegar e quero que conte a verdade, não permita que
ninguém entre, muito menos enfermeiros desconhecidos.
— Mas como vou fazer isso?! — Pergunta exasperado. — Como
impedirei que enfermeiros entrem?
— Você vai saber como agir. Agora me dê a chave do seu carro. —
Exijo, Yaroslav bufa de raiva e me entrega.
— Me liga, okay?
— Okay!
Percorro os corredores em direção à recepção, ao chegar, encaro as
meninas que me olham alarmadas. Espero alguns segundos para minha
respiração se acalmar.
— Antes de mim, Gana teve outra visita?
— Ela não estava autorizada a receber nenhuma visita, senhorita. —
Uma delas responde, franzindo a testa.
— Está proibido qualquer visita antes de me comunicarem, tudo bem?
— Elas assentem, passo a mão na testa e me afasto.
— Senhorita? — Olho para trás. — Precisamos que preencha a ficha da
paciente Gana.
— Ah sim! — Hanna, que é uma das recepcionistas, me entrega vários
documentos, preencho com todos os dados necessários e sou dispensada
assim que termino.
— Manteremos contato. — Diz, assinto e vou embora.
Chego em casa com o coração sobressaltado. Procuro por toda parte até
encontrar a carta que roubei da caixa de Mirom. Antes de ver o conteúdo,
apanho um copo de água e tomo em um só gole com as mãos trêmulas.
Sento-me à mesa, fecho meus olhos acalmando meu coração. Inspiro
fundo e solto um grito assustado quando Rony pula em meu colo. Seguro-o
para que não caia.
— Merda, Rony! — Vocifero, colocando-o em cima da mesa, ele senta
com os olhos amarelos presos no meu. — Estou apavorada... — Confesso,
respirando fundo e abrindo a carta.
Franzo a testa escutando meus próprios batimentos enquanto sinto meu
sangue gelar. Isso... isso é um desenho de uma silhueta em frente a um corpo
de uma mulher ensanguentada e machucada, a faca em sua mão pinga sangue
e seus olhos estão fixos à frente, como se estivessem me encarando.
Seu rosto nítido e sem expressão é de pura insanidade, seus olhos estão
frios e algo dentro de mim estala. Não posso acreditar... não pode ser real...
Embaixo da carta, tem apenas a assinatura de Ruslan, significando que
foi ele quem desenhou. Mas por que estava com Mirom? Por que Ruslan
nunca citou que sabia quem era o assassino o tempo todo? Ou será que... ele
esqueceu?
Minha mente me leva aos primeiros dias em que ele chegou, Ruslan
estava desorientado. Depois de tudo o que viveu, é normal ter amnésia devido
aos traumas. Só que preciso ter certeza. Levanto meu olhar e encontro com o
de Rony fixo em mim, como se dissesse para eu não fazer o que estou
pensando, mas já estou com a decisão tomada, a mais burra de toda minha
vida.
Estaciono em frente à casa com o quintal cheio de roseiras, meu
coração aperta ao lembrar que as pessoas que estão nesse lugar são as
responsáveis por terem destruído a vida de Ruslan, e tirado nossa chance de
ficarmos juntos.
Sinto lágrimas queimarem meus olhos ao lembrar de ontem, quando
ficamos juntos, em uma despedida silenciosa. Engulo em seco e apanho meu
celular dentro da bolsa, discando para Yaroslav.
— Oi!
— Como Gana está? — Pergunto, batucando o volante sem desprender
os olhos da casa dos Rotam.
— Até o momento estável.
— Certo! — Coloco meus cabelos atrás da orelha. — Eu acho que
descobri quem é o maníaco da rosa.
— Laura, não me diga que tu estás...
— Sim — corto-o. — Estou parada na frente da casa deles, mas não se
preocupe, irei apenas sondar para ter certeza.
— MEU DEUS LAURA!!! — Yaroslav grita do outro lado da linha. —
Cacete! Tu podes correr risco de vida se descobrirem que tu sabes quem é!
— Não vão fazer nada. — Asseguro, Yaroslav respira fundo,
murmurando inconformado.
— Laura, estou indo aí, vamos fazer isso juntos.
— Não! Vigie Gana, te retorno em duas horas.
— Em duas horas você pode estar morta! — Mordo meu lábio sem
deixar que isso me impeça de prosseguir. — Quem é, Laura?
— Não tenho certeza, se em duas horas eu não retornar é porque
aconteceu alguma coisa. — Digo, descendo do carro.
— Foda-se Laura! não deixarei que faça uma burrice dessa!
— Eu já fiz! — Respondo, abrindo o portão. — Preciso ir. — Finalizo
a ligação adentrando na propriedade que um dia foi o lar de Ruslan.
Paro para analisar as roseiras. Acaricio as pétalas de algumas,
admirando-as antes de subir o pequeno degrau e bater na porta. Meu coração
acelera em expectativa, bato novamente e encosto o ouvido contra a porta
tentando escutar algum ruído.
— Dona Okasana? — Chamo, girando a maçaneta e percebendo que a
porta está aberta. — Dona Okasana, é a Laura, a senhora está aqui? — Com
passos cautelosos, adentro na casa silenciosa. Mantenho minha respiração
calma enquanto percorro o cômodo, indo até à cozinha.
— Dona Okasana?
Nada de barulho, ruído ou sinal de que há alguém na casa. Ando para
trás e giro nos calcanhares, entrando no corredor dos quartos. Paro em frente
ao de Artem e tento abrir sua porta, mas está trancada.
— Merda, o que tem aí dentro? — Murmuro, olhando para trás.
Desvio o olhar e encaro a porta de Okasana, cogitando entrar lá, mas
um barulho me impede de prosseguir. Engulo em seco, viro a cabeça e
encontro-a parada no começo do corredor com uma tesoura de jardinagem
um pouco grande, com um vestido de verão e chapéu de palha parecendo
uma camponesa. Okasana me encara com uma expressão ilegível no rosto.
Começo a tremer.
— Laura?! — Sua voz sai surpresa.
— Oi, dona Okasana. — Pigarreio, afastando da porta. — Peço
desculpas por ter invadido sua casa, mas a senhora não respondeu. Achei que
talvez estaria no seu quarto.
Ela fica me olhando, ponderando se acredita na minha mentira ou não.
Seus lábios esticam em um sorriso e seu olhar amolece. Suspiro um pouco
aliviada por ter conseguindo convencê-la.
— Perdoe-me, não te ouvi. — Meneio a cabeça de leve. — Estava nos
fundos adubando as rosas. Venha, logo mais começo a preparar o almoço.
Vou até ela com seu olhar me avaliando. Tento disfarçar minhas
intensões. Passo ao seu lado, sentindo calafrios percorrerem meu corpo ao
fitar a tesoura em sua mão.
— Os meninos chegarão daqui a pouco.
— Eu gostaria de pedir ajuda a eles, por isso estou aqui. — Minto,
seguindo-a porta afora.
— O que ouve? — Pergunta, parando em frente ao canteiro de rosas
que estava trabalhando antes de ser interrompida.
Ela agacha e começa a mexer na terra.
— Gana foi atacada. — Okasana me lança um olhar atônito.
— Meu Deus! Ela está bem?
— Não, mas vai melhorar, tenho certeza! — Ela assente, meus olhos se
prendem em seu pescoço onde seu colar transluz com os raios do sol.
Franzo a testa, piscando para dissipar meu choque.
— Queria pedir ajuda a Mirom, já que ele é da SBU, talvez consiga
pegar quem fez isso com ela. — Continuo.
— Encontrar assassinos desse tipo não é sua função. — Diz, cortando
algumas folhas secas da roseira. — Acredito que Artem seja mais qualificado
para esse caso.
— Confio mais em Mirom, se eu tentar convencê-lo, talvez ele possa
me ajudar. — Okasana levanta a cabeça, estreitando os olhos e me fitando
com estranheza.
— Como disse, essa não é a função dele. — Fala pacífica, meneio a
cabeça.
— Artem me ajudaria?
— Claro. — Sorri para mim, voltando a trabalhar. — Tu gostas da cor
vermelha, Laura? — Pergunta, concentrada em podar as rosas.
— Sim.
— O vermelho foi utilizado pelos iconógrafos nos mantos e túnicas de
Cristo e dos mártires. — Conta, movimentando as mãos para que eu agache
ao seu lado. — Simboliza o sangue do sacrifício, assim como também o
amor, pois, o amor é a causa principal do sacrifício.
Okasana me entrega uma rosa, inclina a cabeça para o lado e fica me
encarando sem dizer nada.
— Ao contrário do branco que significa o intangível — seus olhos
percorrem meu blazer branco. — O vermelho é a cor que representa o
humano, e está relacionada à plenitude da vida terrena. Na iconografia, Jesus
veste uma túnica vermelha, porque é o Filho do homem preparado para o
sacrifício. — Okasana deixa a tesoura de lado e apalpa a terra. — Por isso
que o vermelho está tão presente nos bordados. Tu bordas Laura?
— Não. — Digo, sem graça.
— Bordar é uma arte plena. Os pontos, as cores, os desenhos, as
formas, as folhas, flores, linhas e curvas é a riqueza que reflete a alma
exuberante do povo que ama sua pátria e suas tradições. — Ela volta a me
olhar e sorri. — Se quiser, posso ensiná-la.
— Eu adoraria. — Okasana me entrega mais uma rosa, juntando as
folhas secas.
— É muito importante sempre manter as roseiras podadas. — Diz,
voltando a apalpar a terra. — Caso a poda não seja feita, ela irá crescer de
maneira irregular e com galhos fracos.
— E as pragas? — Pergunto, curiosa e fitando sua mão se
movimentando.
— Como a maioria das plantas, elas ficam em estado de dormência
para guardar energia para a atividade na primavera, por isso que ficam mais
sujeitas às doenças e a contaminação dos jardins por pragas. — Relata,
cortando uma rosa murcha da roseira.
Meu coração para de bater por alguns segundos enquanto encaro as
mãos de Okasana. Ela alisa o que parece ser cabelos loiros, a rosa murcha cai
sobre eles e meu corpo congela.
— Por isso que toda rosa estragada deve ser eliminada. — Suas
palavras me atingem em cheio e lentamente ergo meus olhos, prendendo nos
seus que agora estão frios e inexpressivos.
— Vo-o-cê... — Okasana sorri e antes que eu constate que é a
verdadeira assassina e que era seu rosto desenhado naquela carta, ela acerta
minha têmpora com a tesoura em um baque que zumbi meus ouvidos.
Caio sobre as roseiras com a visão turva, sentindo os espinhos
perfurarem minha pele antes de ser levada pela escuridão.
Sinto uma dor na cabeça que estremece todo meu corpo ao começar a
despertar. Confusa, levanto a cabeça, tombando-a para trás por estar ainda
tonta e solto um gemido de aflição. Passo a língua em meus lábios secos,
pisco ao tentar abrir os olhos.
O que aconteceu?
Engulo em seco e tento me mover, congelo quando minha mente
clareia.
Eu chegando na casa dos Rotam, Okasana me encontrando e me
levando até o canteiro e... merda... merda, merda... Meu coração começa a
acelerar, pavor me consome de uma forma insuportável.
Ela é a assassina!
Começo a me debater, pisco até conseguir focar minha visão, então
constato que meus pulsos estão presos atrás da cadeira e meus tornozelos em
seus pés. Arfo em desespero, levantando a cabeça e analisando o lugar.
Meu estômago embrulha na mesma hora em que o cheiro de ferrugem
invade minhas narinas, mas, na verdade é cheiro de... sangue!
Merda!
Volto a me debater, parece que estou dentro de um porão iluminado por
apenas uma lâmpada em cima de mim. Há vários facões e facas pendurados
na parede em frente à uma mesa de madeira suja.
Minha mente grita desesperada para eu sair daqui, estou tão assustada
que me vejo sem saber o que fazer, pensar ou até mesmo reagir.
Calafrios percorrem meu corpo ao escutar a porta ser aberta, a luz do
dia que irradia do lado de fora ilumina seu corpo antes dela fechá-la. Aperto
minhas mãos trêmulas escutando seus passos ecoarem pelo porão.
Okasana retira seu chapéu e para à minha frente, me encarando sem
expressão. Estou sozinha com uma assassina, começo a rezar por ajuda,
porque não sei se sairei com vida. E mais uma vez, estou lutando com um
insano.
Estou perdida, o que eu faço?
Queria tanto que isso não fosse real. Queria que Ruslan não tivesse que
passar por isso, porque sua alma sangrará ao descobrir que sua mãe foi a
responsável por colocá-lo na prisão, será um tiro em seu coração.
— Eu realmente gosto de ti, Laura. — Sua voz me estremece, fico
imóvel encarando seus olhos gélidos. — Mas infelizmente tu entrastes em
meu caminho, xeretando onde não te diz respeito e descobrindo o que jamais
deveria saber.
Balanço a cabeça, desejando com todas as forças da minha alma que
isso não passe de um pesadelo. Ela dá um passo à frente e percorre a mão por
meus cabelos, rosto e ombros. Me encolho com seu toque.
— Nunca a vi sorrir — diz, esfregando meus lábios. — Só que eu via
em seus olhos o sorriso que tu não conseguias expressar. Tão quebrada que
perdeu o dom mais precioso da vida, o sorriso.
Uma lágrima escorre em meu rosto. Okasana a limpa com o polegar.
— O que fizeram com você, pequena? — Pergunta, ainda alisando
meus cabelos. — Tão linda... — Murmura. — Por que não se afastou quando
foi avisada? Por que se envolveu com minha família?
— Você... colocou Ruslan na cadeia! — Digo, finalmente despertando
do transe em que me encontrava.
Okasana abaixa a cabeça, afastando as mãos sujas de mim.
— Chega um momento na vida em que temos que sacrificar algo,
mesmo doendo em minha alma, tive que fazer o que fiz. — Balanço a cabeça.
— Não entendo... ele é seu filho! — Ela vira de costas para mim, indo
até à mesa.
— Tu já passaste fome, Laura? — Pergunta, voltando a me olhar. — Já
sentiu a dor de ver seus filhos dormirem com fome? — Okasana pisca
algumas vezes até eu perceber que seus olhos estão nublados de lágrimas por
causa das lembranças de um passado conturbado.
— Depois que meu esposo faleceu, tudo ruiu. Todos os dias meus
filhos pediam por comida e eu não podia dar. Ouvia seus choros de lamento,
de fome. Então me questionava, por que existir dessa forma? Por que
continuar vivendo nesse inferno? — Seus olhos se perdem. — Vi a esperança
se esvair através dos olhos dos meus filhos, da magreza e da tristeza. Eu os
amava tanto que era demais para suportar tamanho sofrimento. Entre a falta
de esperança e desespero, comecei a sentir raiva de Deus, do mundo e de
mim. Eu batia na porta pedindo um prato de comida em troca de serviços. A
maioria, Laura, a maioria fechou a porta em recusa. — Okasana começa a
chorar, um choro doloroso de uma pessoa que perdeu a fé. — Eu só queria
alimentar meus filhos!
Ela abaixa a cabeça, seus ombros estremecem conforme seu choro
aumenta. É triste, queria que tudo fosse diferente, e que isso nunca tivesse
acontecido com eles. Uma mãe nunca deveria ver seus filhos passarem fome.
— Tudo o que me restava era a desilusão absoluta de uma alma
entregue a escuridão. Nem todos temos o que sonhamos, o meu, era apenas
ver meus filhos sorrindo de novo, esse era meu sonho. A dor não tinha fim,
era insuportável. — Ela solta um suspiro longo e limpa seu rosto, indo até a
parede de facas. Eu não consigo falar, é como se todas as palavras tivessem
desaparecido, consigo apenas encará-la sem reação.
— Eu os deixava dormindo à noite e me tornava uma sombra vagando
sem rumo pelas ruas. Lágrimas escorriam por meu rosto, meu coração
rasgava a cada olhar devastado deles. Em um momento achei que me
culpavam, e me via a cada dia em um labirinto sem fim. — Okasana me lança
um olhar de raiva. — Em uma dessas noites, enquanto caminhava em um
bairro rico da cidade, sonhando em ver meus filhos morando em uma dessas
casas, correndo felizes e longe da pobreza, presenciei uma briga.
Okasana faz uma pausa ao colocar duas facas em cima da mesa e dois
facões. Engulo em seco, o que ela pretende fazer com elas?
— A moça era linda e rica, mas não respeitava sua mãe, que queria
apenas seu bem. Ódio tomou conta de mim, porque enquanto estavam
brigando por coisas fúteis, meus filhos dormiam com fome. — Ela balança a
cabeça, estalando a língua. — Eu a segui pelas ruas quando saiu para arejar a
mente. Queria lhe dar uma lição, mas algo dentro de mim, agitava, minhas
mãos tremiam e soavam, eu precisava fazer aquilo. Então eu a puxei para um
beco, tirei a faca que escondia para me proteger por andar sozinha à noite e
depositei todo meu ódio nela. A cada golpe, era um prazer incalculável, era
como se algo dentro de mim, aliviasse a pressão que sentia. Assim como as
roseiras que temos que podar, tirar as estragadas, a moça deveria desaparecer.
— Okasana me encara no fundo dos olhos.
— Vo-o-cê a matou?! — Ela confirma com um aceno leve.
— O prazer alcançou as depressões profundas do meu ser, abriu
caminho para me libertar. Estava presa em um mundo de becos sem saída. —
Diz. — Fiquei assustada encarando minhas mãos sujas de sangue, mas ao
mesmo tempo me senti bem. — Seus olhos estremecem, perdendo o foco
novamente. — Este mundo é maldoso, Laura, egoísta e sádico, a dor estava
me matando, eu precisava disso. — Okasana balança a cabeça. — Abandonei
o corpo no beco, me perguntando se alguém iria descobrir. Eu matei a filha
de alguém... eu matei uma pessoa.
Ela soluça voltando a chorar, meu coração aperta de medo e confusão,
me perguntando até onde uma pessoa consegue ir quando está dominada pelo
ódio.
— Cheguei em casa, — continua a contar com olhos fixos na parede —
lavei toda a sujeira e chorei... um choro tão doloroso que acreditei que
morreria. Alguém ia me culpar pelo assassinato e... iriam tirar meus filhos de
mim, eu preferiria a morte do que vê-los sendo arrancados de minhas mãos,
Laura.
— Você matou uma inocente! — Sussurro, piscando para dissipar as
lágrimas.
— Não existe inocentes nesse mundo insano. — Responde, engulo em
seco ao lembrar de James. Ela fica em silêncio, apenas me olhando como se
soubesse do que fiz... do corpo que ocultei.
— Eu era como gasolina correndo solta, não havia mais medo, e fui
dominada pela maldade. — Revela com a expressão fria. — Um mês depois
matei outra moça... a cada mês uma morria em minhas mãos. Porém, as
mortes não alimentavam a fome dos meus filhos, sentia aos poucos o remorso
me corroendo, não estava matando por algo, era apenas para satisfazer meu
ego.
Okasana pega uma cadeira e arrasta até estar sentada diante de mim.
Remexo meus pulsos, começando a me apavorar com a forma que me olha.
— Então passei um mês calculando meu próximo ataque. Tinha que ser
perfeito, não tinha dinheiro e comecei a roubar nas feiras até que o dia
chegasse. — Ela respira fundo e olha para suas mãos. — Sequestrei, matei e
desossei. — Arregalo os olhos. — Sentada à mesa, assisti meus filhos
comerem a carne, o brilho em seus olhos foram retornando e finalmente pude
rever o sorriso de cada um de novo. Naquele momento, eu soube que o que
fiz foi o correto. Teríamos comida por vários dias, eles não dormiriam mais
com fome.
Um nódulo se forma na minha garganta. Okasana espera até eu
conseguir assimilar o que acabou de revelar. Mas... é impossível, meu rosto
começa a retorcer de nojo, assombro. Ela sorri.
— Você... comia suas vítimas? — Indago, nauseada.
— Não me olhe dessa forma. — Diz, balançando a cabeça. — Eu
precisava para alimentar meus filhos.
— Okasana... isso... isso é demais! — Balbucio, é repugnante tudo isso,
não pode ser real. — Ruslan... ele... ele viu você? — Seus olhos estremecem.
— Meu pequeno era o que mais sofria. Perdi as contas de quantas vezes
ele enxugou minhas lágrimas. — Revela com uma lágrima caindo de seus
olhos. — Ele começou a vender rosas, eu me sentia feliz por isso. Ruslan
estava virando o homem da casa. Só conseguia sentir orgulho dele.
— Não entendo por que fez isso.
— Ninguém entende. — Okasana respira fundo. — Continuei matando,
alguns corpos eu deixava onde havia cometido o crime, outros eu trazia
comigo quando a carne de casa acabava. Foram anos difíceis, Laura, só que
pensei que melhoraria, mas... não melhorou. — Diz, se levantando.
Fecho meus olhos, incapaz de acreditar.
— Você é a mãe dele! — Murmuro, abrindo meus olhos e encarando-a,
incrédula. — Você é a mãe de Ruslan, Okasana, como pôde?
— Foi aberta uma investigação sobre os meus assassinatos, o cerco
estava se fechando. — Revela, voltando a se sentar. — Ruslan tinha paixão
nos olhos. Seus sonhos o levaram a enxergar a vida de uma forma diferente
da qual eu enxergava, comtemplando a noite, se ajoelhando e orando antes de
dormir. Eu perdi a fé e deixei que o crime destruísse meu coração.
— Você deveria protegê-lo e não o jogar em um ninho de cobras. —
Ela abaixa a cabeça, assentindo.
— Um dia, ele me disse que desejava que a noite durasse para sempre,
só que não fazia ideia de que as sombras o envolviam, que seus sonhos
desapareceriam. — Okasana prende seus olhos nos meus. — Naquela noite
em que assassinei uma moça, ele acordou para a realidade. Chorando, ele me
encarou. O sofrimento em seu coração tinha acabado de começar e ali, eu me
despedi do meu pequeno com o coração mais puro e o mais forte entre os
outros. A chuva era como uma orquestra. Deus, eu iria acabar com sua vida,
mas eu tinha mais dois filhos para criar, então Ruslan eu teria que sacrificar.
— Fecho meus olhos com força. — Naquela noite, ele se tornou o assassino.
Aperto meus lábios segurando meu choro indignado. Sua mãe destruiu
sua vida, o abandonou no inferno... não é real... não pode ser real!
— Laura, tu tens que entender que fiz isso por amor. Se eu fosse presa,
meus filhos iriam para abrigos. Eu nunca mais os veria.
— Você é um monstro! — Sussurro, incapaz de olhar para seu rosto. —
Como conseguiu esconder seus crimes? Como o juiz e o júri não viram as
falhas? Por que você não foi presa? — Encaro-a com tanta raiva que sinto-me
ferver por dentro.
— Eu presenciei o juiz assassinar sua filha. — Revela, me congelando.
— O mesmo responsável pelo caso de Ruslan. Estava perambulando em
busca de mais uma moça que eu pudesse matar e aliviar minha dor, quando
me deparei com toda a cena que resultou na morte de uma moça que tentava
fugir com seu namorado.
— E você o ameaçou? — Okasana assente. — E nunca parou de matar?
— Eu tinha que continuar alimentando meus filhos e ele me obedeceu,
só tinha que condenar Ruslan. — Conta, se levantando e arrastando a cadeira.
— Adam fez o que ordenei. Com todos pensando que Ruslan era o assassino,
retomei minha vida. Passamos por vários momentos difíceis, mas foi
melhorando. Olesya e Artem conseguiram entrar na faculdade e Mirom no
exército. O sacrifício de Ruslan foi por uma boa causa.
— E os assassinatos? — Ela apanha uma faca e liga o afiador de
lâminas me fazendo sobressaltar.
— Nunca parei. — Diz, focada no que está fazendo. — Vendi muitas
comidas, meu congelador nunca mais ficou vazio.
— Então... meu Deus, a comida que eu comi... era carne humana? —
Ela olha para atrás, sorrindo.
Seu olhar é a confirmação da minha pergunta, me inclino para frente de
uma vez e vomito. Toda aquela comida que me ofereceu era carne humana...
Quanto mais penso, mais enjoada eu fico. Depois de alguns minutos, levanto
a cabeça, arfando com os olhos cheios de lágrimas.
— Onde estão os corpos?
— Adubo para minhas roseiras.
— Você é doente... — Sussurro, me debatendo. — Você atacou Gana,
duas vezes! — Olho para ela, me sentindo exausta de tanto vomitar.
— Ela é linda, não? — Fecho meus olhos, com ânsia e nojo. — Jovem,
espírito valente e rica.
— Não é seu padrão de vítimas. — Ela dá de ombros.
— Mas é sua amiga. — Abro a boca para retrucar, mas nada sai. —
Gostou das rosas que te enviei? Ou da chacina em seu prédio? — Arregalo os
olhos, Okasana ri.
— Foi... você? Por quê?
— Para te colocar medo, avisar para ficar longe antes que fosse tarde
demais. Pelo jeito não adiantou, olha só onde você está. — Seu olhar se torna
maléfico.
— Você não conseguiu matar Gana, falhou duas vezes.
— Não costumo falhar na terceira vez! — Afirma.
— Você começou a deixar suas vítimas para trás apenas para
incriminar Ruslan?
— Ele tem que voltar para cadeia, Laura.
— Você destruiu sua vida, Okasana. Não faz ideia do inferno em que
ele viveu dentro daquela cadeia. Você o destruiu, seu monstro!! — Vocifero,
me debatendo.
— Seu sacrifício fez com que os outros crescessem na vida.
— E ele? — Pergunto, indignada. — Ruslan nunca pôde amar, estudar
e viver sua vida, por que foi condenado por crimes que não cometeu! Ele não
pode ser feliz, sua alma se definhou, seu coração se quebrou e por sua culpa,
não podemos ficar juntos! Por sua culpa Ruslan teve sua inocência e vida
arrancados! Então não me venha falar de sacrifício, eles teriam vivido muito
melhor sem você, seu mostro!
Okasana larga a lâmina que estava afiando, encaro-a com a respiração
acelerada. Seus olhos estão tão sombrios, que duvido que tenha alguma alma
dentro da carcaça que é seu corpo. Ela vem em minha direção, e acerta em
meu rosto um tapa ensurdecedor. Viro a cabeça, sentindo a queimação do seu
toque.
— Cala a boca! — Ordena, segurando meu queixo com força e virando
meu rosto para que eu a encare. — Tu não tens o direito de me julgar quando
não entende o que passei. Quando tiver filhos, talvez entenda o que é fazer de
tudo por eles.
— Ruslan te ama mais do que tudo nessa vida. — Digo, tentando me
livrar do seu aperto. — Ele chorou por você. Gritou por sua mãe quando
aqueles desgraçados o torturavam na prisão. Ele suplicou por sua ajuda
quando a mesma o trancafiou naquele inferno. Okasana, você é desprezível!
Sustento seu olhar durante vários segundos antes dela me soltar e
recuar alguns passos.
— Você não acha que já o fez sofrer demais? — Ela permanece calada.
— Ele te ama tanto... quando estava na minha casa, muitas noites chamou por
você. Ruslan tinha esperança de que sua mãe o salvasse da dor e solidão.
Você não sente nada? Que coração é esse que não sangra por seu filho? Que
mãe é essa que faz seu filho sofrer por algo que não cometeu?
— Tu achas que não sofri? — Pergunta, batendo em seu peito. — Eu
sofri, Laura. Lutei contra todos, eu salvei minhas crianças. O sangue em
minhas mãos foi por eles.
— Você continuou quando não precisava mais. Você deixou seu filho
na cadeia, Okasana. — Falo, tentando mostrar a ela que não existe nada que
justifique seus crimes.
Seus olhos ficam de um verde pálido e marejados. Ela balança a cabeça
de um lado para o outro.
— Eu precisava fazer isso, eles estavam passando fome. — Diz, se
virando e voltando para suas facas. — Não se preocupe, Ruslan nunca
saberás da verdade.
— Okasana — chamo, me remexendo. — Livre o Ruslan desses
crimes. Foram quatorze anos tirados dele, mas você pode fazer com que ele
recupere o tempo perdido. — Digo, sabendo que não adiantará. — Liberte-o
de toda dor e aflição. Você já criou seus filhos, eles são adultos agora, deixe
que Ruslan viva agora. — Ela para de manusear as facas e me olha,
estreitando os olhos.
— Tu estás apaixonada por ele, não é? — Pergunta, aperto os dentes e
assinto.
— Liberte-o, Okasana. — Peço, ela inclina a cabeça para o lado sem
esboçar nenhuma emoção em seu rosto. — Chegou a hora de libertar seu
filho. — Ela nega com a cabeça.
— Eu realmente gostei de ti, Laura. — Okasana respira fundo,
balançando a cabeça. — Mas não posso deixá-la ir, sabe demais e Ruslan se
sacrificou.
— Você o sacrificou! — Tento livrar meus pulsos da fita, mas está
apertada demais. — Deixe-me ir! — Imploro. — Eu não contarei a ninguém,
ficarei em silêncio.
— Tu és esperta, com certeza contou a alguém que estás aqui. — Diz,
estalando a língua. — Não vai doer nadinha, prometo.
— O que você vai fazer? — Indago, apavorada.
Ela sorri.
— Te matar! — Revela, pegando a faca que afiava. — Sinto muito. —
Diz, andando em minha direção. Remexo-me apavorada e com olhos
assustados. Okasana não é mais aquela senhora doce e gentil, mas sim um
monstro sedento por sangue e morte.
— Mãe!? — Ela congela, meu coração para, encarando-a parada perto
de mim.
Okasana gira a cabeça, eu faço o mesmo. Artem está parado, segurando
a porta com uma expressão impassível. Meu corpo fica mais tenso quando
seu olhar se fixa em mim.
Penso em pedir ajuda, mas não sei de qual lado ele está.
— O que faz aqui? — Okasana pergunta em um tom furioso.
— Mãe... — Murmura ainda me encarando. — Por que a Laura está
aqui? — Artem olha para ela e fecha a porta atrás de si.
Okasana solta a respiração e volta para mesa, jogando a faca sobre ela.
— Essa sonsa descobriu tudo. — Revela, ele esfrega seus olhos. — É
melhor eu calá-la e... bom, preciso disso.
— Mãe, tu me prometeste que não faria mais isso. — Fala, se
aproximando dela. — Não consigo mais esconder suas merdas, fui afastado e
estou sendo investigado.
Balanço a cabeça, indignada. Artem sabe... por todos esses anos, ele
sabia o que sua mãe fazia.
Faz todo sentindo agora...
As provas inconclusivas, o arquivamento dos casos, a demora das
investigações e seu desespero atrás de Ruslan. Sendo um policial na área de
homicídios, facilmente conseguiu roubar todas as provas que incriminava sua
mãe, podendo assim forjá-las para culpar Ruslan.
É um pesadelo... não é real!
— Não temos outro jeito, filho. — Ela diz. — Por favor, vá abrir a cova
na lateral da casa, a noite a gente a enterra. — Okasana cruza os braços,
sustentando seu olhar.
— Ela é a Laura! — Artem exclama. — Ruslan é louco por ela, mãe!
— Ele se vira com as mãos trêmulas na cabeça. — Mirom está perto de
descobrir alguma coisa, ele está estranho, mãe. Ele não é como Ruslan ou eu,
aquele cara é sádico e não vai se calar. A corda está em nosso pescoço e tu
não colabora!
— Nada vai acontecer. — Okasana olha para mim.
— Mãe... você me prometeu que pararia. Tu juraste...
— Quer apodrecer na cadeia como seu irmão? — Ela o cala. — Se tu
quiseres, é só libertá-la. — Artem fica encarando-a.
— Estou cansado, mãe. — Sussurra. — Chega de matar as pessoas...
chega mãe! Eu não sei mais o que fazer.
— Você sabe, filho, não há outra forma de calá-la. — Artem a fita por
alguns segundos e me olha, desesperado.
— Eu te pedi tanto para desaparecer, Laura. — Ele me fala.
— Você sabia o tempo todo? — Artem abaixa a cabeça, parecendo
impotente.
— Tem pouco tempo que soube.
— E decidiu se tornar seu cúmplice? — Ele fecha os olhos.
— Ela é minha mãe, faço o que for preciso para mantê-la a salvo. —
Diz, se afastando.
— Vocês destruíram a vida de Ruslan. — Minha voz sai fraca. —
Vocês são dois monstros! — Lágrimas escorrem por meu rosto, Artem me
encara pálido.
— Artem... — Okasana o adverte, seus olhos permanecem em mim.
— Mãe, não podemos fazer isso com Ru...
— Vá fazer o que te pedi!
— Estamos indo longe demais, se fizermos isso, não haverá volta. —
Okasana lança um olhar sombrio em sua direção que o faz encolher.
Artem se vira e sai do porão me deixando sozinha com sua mãe. Ela
respira fundo e me olha. Calafrios percorrem meu corpo ao encará-la através
das lágrimas de pavor, alimentando meu desprezo por tudo o que fez.
Okasana destruiu vidas inocentes e por uma causa que acha justo,
destruiu seu filho e sem arrependimento, continua agarrada na crueldade.
Ela nos seduziu com sua simpatia e inocência como um predador
silencioso, nos enganou com seu amor. Um demônio que não faço ideia de
como conter, estou presa em suas mãos.
— Sinto muito, Laura — diz, sem me olhar. — Eu gostei de ti desde
quando veio pela primeira vez, mas, ao mesmo tempo, senti que tu serias um
problema. Queria que as coisas fossem diferentes. — Ela vai até à parede de
facas e me olha por sobre o ombro, olhos nublados de lágrimas. — Queria te
deixar livre, mas não posso.
Sinto a sinceridade em sua voz, sempre tão doce. Seus olhos malignos
escondidos atrás de uma máscara de bondade continuam me analisando.
Encaro-a com raiva, desejando que um dia ela chore lágrimas de
arrependimento, que um dia se pergunte como pôde fazer isso com seu filho.
Quero que um dia deseje desaparecer, que seu coração encontre a
verdadeira dor do sofrimento, e como uma rosa doente, ela murche em seu
próprio veneno.
Fico olhando os policiais saírem do refeitório depois de quase uma hora
de perguntas sobre Gana. Mesmo não a conhecendo direito, presumo ter me
saído bem com o pouco que sei. Esfrego meu rosto, torcendo para que eles
tenham acreditado no que falei.
Apanho meu celular e olho para o relógio. Se passaram três horas desde
que Laura me ligou. Mordo minha unha, ansioso ao tentar ligar para ela pela
décima vez e xingo ao cair na caixa postal, de novo.
Peço um carro por aplicativo e caminho até o lado de fora para esperar
por ele. Laura foi descuidada ao ir sozinha, e eu estou sendo tão descuidado
quanto ela.
Depois de alguns minutos, o carro para em frente à casa dos Rotam.
Agradeço ao motorista assim que lhe passo o pagamento e desço com meu
coração acelerado.
— Yaroslav, tu estás sendo burro. — Digo a mim mesmo, discando o
número de Aksinya.
— Oi? — Fala assim que me atente.
— Preste atenção no que irei te dizer, Aksinya.
— Ande, estou ocupada! — Reviro os olhos.
— Se eu não der notícias daqui a duas horas, vá até o bairro de Laura e
pergunte por Kliment, diga que tu precisas falar com Ruslan Rotam.
— O quê?
— Tu irás dizer para ele, que eu e a Laura estamos com a sua mãe.
— Do que está falando, Yaroslav? — Pergunta, alarmada. —Ruslan...
o Ruslan, assassino?
— Esse mesmo. — Confirmo.
— Tu estás louco?
— Se tu não fizeres isso, Aksinya, nunca mais nos verá.
— Oi?!
— Se eu não entrar em contato, tu ligas para Ruslan e diga que estamos
com a sua mãe. Ele saberá do que se trata. — Repito.
— Yaroslav... — Finalizo a ligação, irritado com Aksinya.
Engulo em seco com meus batimentos acelerados, guardo o celular no
bolso, abro o portão e entro na propriedade repleta de segredos.
Bato na porta e aguardo alguns segundos, mas ninguém me atende.
Desço o degrau, decidindo contornar o quintal na tentativa de ver se alguém
está nos fundos.
Paro ao escutar algo. Aguço meus ouvidos e sigo o barulho,
encontrando com Artem sem camisa, cavando um buraco. Pigarreio
chamando sua atenção, ele congela e levanta a cabeça, me olhando com
surpresa.
— Errr... oi? — Digo sem graça com um sorriso forçado.
— O que faz aqui? — Pergunta, fincando a pá na terra.
— Laura me disse que vinha ver sua mãe. Estou atrás dela, mas
ninguém me recebeu na porta. — Sua expressão se torna ilegível.
— Ela não está aqui.
— Ah, sim! — Murmuro, olhando para os lados e vendo meu carro
estacionado do outro lado da rua. — Desculpe-me a intromissão, mas acho
que ela está aqui sim!
— Eu disse que não está!
— Aquele carro é meu. — Falo, apontando na direção dele. — Eu o
emprestei para que ela viesse até sua casa. — Declaro, Artem fica me
olhando por tempo demais.
— Elas foram à feira. — Engulo em seco, não há sinceridade em seu
olhar.
— Então vou esperar ela no carro. — Sorrio, dando um passo para trás,
receoso. — Desculpe o incômodo.
Sorrio, olhando para o buraco que parece grande demais para ser mais
um canteiro de rosas. Entretanto, visto que o quintal é cheio de roseiras,
convenço-me a pensar que é para plantá-las.
— Ei Yaroslav! — Artem me chama, viro a cabeça e encaro seus olhos.
Ele ergue a pá, no instante seguinte estou caído no chão com meu nariz
sangrando ao ser atingido por ela.
Solto um gemido e me encolho de dor, tentando não desmaiar com a
intensidade da pancada. Artem se aproxima e me olha de cima.
— Deveria ter ido embora, idiota! — Diz, pegando meus braços e me
arrastando.
Pisco, choramingando de dor e sem conseguir reagir por estar zonzo
demais. Tento me manter acordado mesmo que seja uma tarefa difícil.
Artem me solta, abre o que parece ser uma porta de metal e volta a me
arrastar. Solto um gemido de dor ao ser jogado por uma escada. Meus ossos
rangem de dor ao colidirem nos degraus. Quando chego no fim, me viro
espalmando a mão no chão para tentar me levantar.
— Por que tu estás fazendo isso? — Pergunto com a voz pesada.
— Merda! — Ele diz, chutando meu estômago e me derrubando de
novo. — Cala a boca, seu merdinha! — Rosna, começando a me arrastar de
novo.
Ele me solta, escuto um grito abafado, fazendo meu sangue gelar. Giro
com dificuldade e olho para frente onde encontro Laura sentada, amarrada e
amordaçada em uma cadeira, se debatendo enquanto me encara.
Seus olhos estão cheios de lágrimas, ela desvia seu olhar e encara à
frente. Sigo seu olhar e congelo imediatamente.
Okasana?
— O que é isso? — Ela pergunta a Artem.
— Eu te falei para tu parar, mãe. — Ele fala. — Merda!
— Vamos enterrá-lo vivo também. — Okasana declara, me encarando
com um brilho nos olhos que jamais vi em uma pessoa.
— Mãe, estamos indo longe demais.
— Faça o que te mandei, à noite os enterramos. — Ela nos dá as costas
e sai.
— Perdoe-me, cara, mas é minha mãe. — Artem diz com pesar.
Volto a encarar Laura e sem dizer nada, compartilho o medo e o pavor.
Estamos em uma situação que não há saída, só o que nos resta é rezar por
nossas vidas e esperar que de alguma forma Ruslan nos encontre, ou então...
morreremos.
Olho para Serhiy em busca de alguma resposta, ele apenas nega
sutilmente com a cabeça. Volto a andar de um lado para o outro na espera de
Nikita que desapareceu sem nenhum vestígio.
— Quando teve contato com Nikita? — Pergunto a ele.
— Ontem quando tu saíste, senhor. — Serhiy responde, encho meu
copo de vodca e dou um gole, fechando os olhos.
Não faço ideia de onde Nikita pode estar, nem seus capangas sabem, o
que me deixa muito mais preocupado. Encho mais uma vez o copo tentando
me acalmar de alguma forma, porque dentro de mim há uma agitação que não
consigo entender.
Sinto meu coração apertar com uma intensidade que chega a ser
insuportável. Olho para trás quando a porta é aberta de uma vez, Nikita entra,
seu olhar se encontra com o meu.
— Onde tu esteves? — Ele retira sua jaqueta, jogando para Serhiy que
pega antes de cair no chão.
— Estava com meu pai. — Diz, desviando o olhar por estar mentindo.
— Quero a verdade! — Ele suspira.
— Estava no hospital. — Franzo a testa. — A amiga de Laura, uma tal
de Gana, foi atacada. Fiquei sabendo quando estava com meu pai e fui direto
para lá averiguar a situação.
— E a Laura?
— Está bem! — Aperto o copo. — Mas sua amiga, não!
— O que aconteceu?
— Pelo que consegui descobrir, Gana foi esfaqueada ontem à noite.
Não se sabe quem a levou para o hospital.
— Certo, o que mais? — Nikita dá um gole na vodca pelo gargalo.
— Tudo indica que foi a pessoa que estamos procurando. — Revela,
indo até seus documentos em cima de sua mesa. — Ruslan, preciso te
contar... — Ele me olha. — É melhor se sentar, não será fácil.
— Tu estás falando isso tem dias, Nikita. — Repreendo, ele apenas
meneia a cabeça.
— Não é fácil! — Franzo o cenho, ele inspira fundo e quando vai
revelar o que tanto esconde, barulhos de tiros soam.
Viro-me assustado, já empunhando minha pistola quando a porta é
escancarada com um dos capangas de Nikita caindo com um tiro na perna.
Ele geme, se arrastando para longe do responsável pelo ataque.
Ergo a arma e me preparo para apertar o gatilho. Prendo a respiração,
dando um passo para o lado para conseguir enxergar além da porta. Ranjo os
dentes ao ver Mirom parado com a pistola abaixada ao lado do corpo, nos
encarando com frieza, sem se importar com as várias armas apontadas para
sua cabeça.
— Que porra é essa? — Nikita pergunta, não desprendo meus olhos
dele, nem ele dos meus.
— Precisamos conversar, Ruslan. — Aperto mais firme a arma, vendo
em seus olhos que algo aconteceu.
— Abaixem as armas! — Nikita ordena, abaixo a minha e inspiro
fundo. — Tu deverias ter solicitado uma visita e não ter feito todo esse show.
— Foda-se! — Mirom diz, entrando na sala.
Guardo a pistola nas costas, observando Serhiy e mais outro retirarem o
capanga baleado. A porta é fechada nos deixando sozinhos, fico em alerta
sentindo a presença de Mirom, estamos tão vulneráveis que ele poderia nos
matar em segundos. Nikita se encosta em uma parede mais afastada, fingindo
não se abalar com sua presença.
— O que tem a me dizer? — Pergunto, olhando-o se aproximar da
mesa.
Ele folheia cada documento e encara o painel com as informações do
meu caso. Eu e Nikita não nos preocupamos em esconder, apenas deixamos
ele verificar o que quer que esteja procurando.
Encosto-me na parede e espero.
— Foda-se! — Diz com fúria, jogando todos os papéis no chão.
Cruzo meus braços, sem me afetar com seu comportamento explosivo.
Mirom coloca as mãos sobre a mesa e abaixa a cabeça, seus ombros
começam a estremecer até eu perceber que está rindo.
— Teremos que esperar até quando para o rei começar a desembuchar?
— Nikita pergunta com tranquilidade.
— Pensei que tinha sido você. — Começa erguendo a cabeça. —
Ordak... tu lembras dela? — Seus olhos se prendem em mim, busco em
minha memória até me lembrar que ela é a moça que encontrei morta na noite
em que fui preso.
— Sim.
— Ela era uma amiga, na verdade, mais que amiga. Só não tive tempo
de dizer a ela, porque tu a mataste. — Sustento seu olhar, Mirom fecha os
olhos, rangendo os dentes. — Nada faz sentido agora, é tudo uma bagunça.
— Descobriu? — Nikita pergunta se aproximando dele.
— Tu sabes? — Eles se encaram por longos segundos. — Não contou?
— Nikita nega e ambos me lançam olhares ilegíveis.
Desencosto da parede com calafrios percorrendo meu corpo. Fecho as
mãos em punhos e umedeço meus lábios.
— O que estão escondendo? — Pergunto, estreitando os olhos,
desconfiado.
— Descobri tem poucas horas. — Mirom fala.
— Eu há alguns dias, mas não tive coragem. — Nikita declara, dando
mais um gole na vodca.
— Falem, porra!
Mirom esfrega o rosto, negando com a cabeça e dando as costas como
se fosse difícil demais me olhar. Nikita respira fundo, me fitando por longos
segundos.
— Sinto muitíssimo, Ruslan. — Diz, pigarreando. — Mas a
responsável pelos assassinatos e por ter te colocado na prisão, foi... — Ele se
cala e abaixa a cabeça, dou um passo à frente.
— É sua mamãe. — Mirom fala, se virando para mim. — A
responsável por tudo é a Okasana Rotam. Sua mãe, Ruslan.
Sinto o chão ceder ao sentir suas palavras penetrarem em minha mente.
Olho para Nikita que confirma com um aceno. Minhas mãos começam a
tremer, congelo no lugar. Não consigo nem sequer me mover, falar ou
raciocinar.
Minha mãe? Minha Mamis?
Balanço a cabeça... não pode ser real! Deve ser um mal-entendido...
Dentro de mim não há nada além da dor. Lágrimas escorrem por meu rosto
ao ser levado para o dia em que minha vida foi destruída...
Olho para a cesta com as rosas que restaram depois de horas entre
bares, restaurantes e praças. Os arranjos delicados foram os que meus
clientes mais se interessaram. Paro em frente a um cartaz do Festival de Ivan
Kupalo que temos todos os anos, cheio de tradições, rituais e flores, minha
chance de ganhar um pouco mais de dinheiro.
Arranco da parede já ansioso para a chegada desse dia. Dobro e
guardo no bolso, voltando a caminhar de volta para casa em um frio de doer
os ossos.
Olho para cima quando um relâmpago entoa intensamente
estremecendo o chão. Encolho-me e apresso meus passos quando gotas de
chuva começam a cair.
Não há lugar onde eu possa me esconder da chuva por estar em uma
ruela de casas simples, é certo que irei me encharcar antes mesmo de chegar
em casa. Tiro meu casaco e cubro as rosas para que não estraguem.
Suspiro e me preparo para correr.
— SOCORRO! — Paro de uma vez ao escutar o grito. — Por... favor...
não... não... — Meu coração falha as batidas, hesito um pouco e lentamente
olho para o lado em que escutei os lamentos desesperados.
Escuto ruídos, choro e mais súplicas. A chuva engrossa, quando penso
em ir embora, me vejo caminhando em direção ao barulho como um imã.
Engulo em seco e coloco a cesta em cima do contêiner de lixo que está
fechado. O beco é estreito, paro ao escutar junto ao barulho da chuva,
murmúrios de dor.
Caminho, controlando minha respiração, a curiosidade me
comandando. Viro no beco, inspiro fundo e olho para frente, paraliso de
imediato ao ver uma pessoa com capa e capuz esfaqueando uma mulher que
está imóvel no chão.
Arregalo os olhos, assustado com a cena. Arfo, estagnado no lugar. O
assassino para com as mãos segurando a faca no ar ao notar minha
presença.
Ele fica imóvel, eu não me movo e é como se o tempo tivesse parado.
Seu rosto vira como se estivesse em câmera lenta sendo iluminado
pelos raios. Minhas pernas vacilam e coloco a mão na parede para evitar
cair. Encaro seus olhos verdes sem acreditar que é...
— Mamis? — Ela se levanta com o corpo diante de si.
Olho para baixo, o sangue escorre do corpo da moça e da lâmina da
faca. Seu rosto está desfigurado. Ergo meu olhar, e prendo-o no de minha
mãe.
— Ruslan? — Murmura, contornando o corpo e se aproximando de
mim. Recuo alguns passos, assustado, fazendo-a parar.
— O que tu fizeste?
— O que está fazendo aqui, pequeno? — Sua voz sai calma e doce
como sempre.
— Mamis...
— É um sonho, não é real, volte por onde veio. — Balanço a cabeça,
sentindo o frio do muro sob minha mão.
É real, tudo isso é real!
— Você a matou?
— Olhe para mim, filho. — Pede, desprendo meus olhos do corpo
ensanguentado. — Nem sempre temos o controle das coisas. Às vezes a vida
nos obriga a fazer coisas que não queremos.
Balanço a cabeça sem acreditar em sua declaração, isso não faz
sentido. Tudo ao meu redor começa a girar, sinto frio e encaro seus olhos
sem conseguir enxergar sua inocência.
Minha mãe matou uma pessoa, e não há como negar.
— Por quê? — Ela abaixa a cabeça, soltando a faca que cai no chão,
tilintando.
— Vocês estão sofrendo por minha culpa... — Diz, fico encarando-a
com a chuva impedido de saber se ela está chorando. — É por vocês que fiz
isso.
— Não, Mamis... você... você...
— Tu és um rapaz agora. — Mamãe me cala, olhando para dentro dos
meus olhos. — Tens que ser forte, mais do que já é.
— O que você vai fazer, mãe? — Pergunto.
— Vamos dar um jeito.
Fito-a sem dizer nada, o brilho em seus olhos me dá a resposta antes
mesmo que eu formule uma pergunta. Mamãe não vai se entregar à polícia.
— Mamis, tu cometeste um crime. — Murmuro, ela percorre a língua
em seus lábios. — Tu precisas contar, mamãe.
— Você e seu senso de justiça... — Fala, sorrindo para mim. — Mas
teremos que mudar isso.
— Como dizes?
— Tu e eu, vamos guardar esse segredo. — Franzo a testa. — Porque o
que fiz, foi por você e por seus irmãos.
— Eu não entendo, Mamis!
— Sacrifícios são necessários, meu pequeno. — Ela se aproxima, dessa
vez não me movo. — Tu se lembras quando disse que gostaria que a noite
durasse para sempre? — Assinto. — Por quê?
— O brilho do luar deixa as rosas ainda mais lindas. — Respondo,
mamãe sorri, assentindo. — É como se as rosas sorrissem.
— Talvez ela dure para sempre. — Franzo a testa, confuso. — Talvez a
escuridão da noite o consuma até o momento em que a rosa dentro de si seja
iluminada pelo luar de novo.
— Não estou entendendo. — Ela se aproxima, pega minha mão e me
puxa para perto dela.
— Eu te amo, meu pequeno. — Lágrimas escorrem por meu rosto. —
Amo-te mais que tudo nessa vida. Você é meu orgulho, mas tem certas
escolhas que temos que fazer mesmo que nossa alma sangre.
— Mamis, o que está acontecendo? — Pergunto, olhando por cima do
seu ombro.
— Um dia saberás, meu filho... — Ela segura meu rosto, fazendo-me
encará-la. — Perdoe-me... — Mamãe se inclina e deposita um beijo
demorado na minha testa. — Adeus!
Antes de processar o que está acontecendo, minha cabeça é empurrada
com força contra o muro, arfo de dor desmaiando imediatamente.
Abro os olhos sentado no chão, sentindo uma dor insuportável na
cabeça. Levo a mão até ela, mas paro ao vê-la vermelha mesmo com a visão
um pouco turva.
Confusão me atinge ao olhar para minha outra mão que segura uma
faca. Começo a tremer, prendendo meus olhos no corpo diante de mim...
Solto um grito apavorado quando minha visão foca no rosto desfigurado.
Pisco várias vezes tentando lembrar o que aconteceu e de como vim parar
aqui.
O que faço aqui com ela? Por que estou segurando uma faca? O
sangue... o sangue é dela?
Uma luz forte me cega, fecho os olhos com força, escutando barulhos
de sirenes e vozes. Abro-os com dificuldade e olho para frente assim que a
luz diminui.
Fico imóvel ao ver policiais com armas apontadas em minha direção.
Eles estão falando alguma coisa, nesse momento, só consigo ver seus lábios
se movendo sem nenhum som.
Meus ouvidos zumbem e com um estalo repentino, volto a ouvir.
— Você está preso em flagrante por assassinato! Mãos ao alto! — Um
deles diz, fazendo-me entender o que está acontecendo.
Olho para minhas mãos, para faca e depois para a moça deitada, sem
vida. Eu a matei? Eu que fiz isso com seu corpo? Mas por quê?
Não me lembro de ter vindo aqui, estava voltando para casa e... minha
memória acaba nesse momento.
Desespero me faz soltar a faca, desorientado me arrasto para longe,
balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Não... não foi eu! — Consigo dizer. — Não foi eu!
Dois dos policiais me alcançam.
— Erga as mãos! — Nego com a cabeça.
— Não, vocês estão errados, eu não matei... eu não matei... não matei!
— Tu tens direito a um advogado. — Um deles fala, me levantando e
me algemando.
— Não, eu não a matei, tu tens que acreditar em mim. — Olho para o
policial, mas a única coisa que faz é abaixar minha cabeça e me arrastar
para uma viatura.
Sou jogado no porta-malas, chorando e pedindo por ajuda, vendo
minha vida caindo em uma verdadeira desgraça...
O retorno das lembranças daquele dia fatídico, que tinha acreditado que
nunca recuperaria, me deixa paralisado, mal conseguindo respirar.
Abro a boca para tentar dizer alguma coisa, mas o que sai, é apenas um
som de angústia da minha garganta. Ela jogou sujo, foi cruel, me fez acreditar
que eu era o assassino de várias mulheres, me empurrou e me abandonou no
inferno. Fez todos me desprezarem.
Essa traição começa a queimar minha alma. Minha mãe destruiu meus
sonhos com sua crueldade, não restando nada para mim. Estou em um
caminho sem saída, caindo em um abismo sem fim.
— Ruslan? — Movo meus olhos.
— Foi ela... — Sussurro. — Eu a vi matar Ordak... ela me incriminou...
— Meus olhos nublam de lágrimas. — Mas... não pode ser verdade!
— Artem sabe. — Mirom revela. — Não sei a quanto tempo, mas é ele
quem encobre seus crimes, esconde os corpos e elimina as evidências. Eu
estava investigando desde o dia em que tu me enviaste um desenho sem
rosto. Embora a raiva de você me dominasse, continuei a investigar para te
colocar de volta na prisão, mas então...
— Descobriu. — Completo, ele assente. — Como?
— Gana... — Murmura, limpando a garganta. — Eu ia me encontrar
com aquela prostituta, mas então a vi entrar em um beco, logo em seguida
uma figura foi atrás, fiquei encucado. Demorei um pouco a compreender que
talvez aquilo que me perturbava fosse algo, quando fui atrás, escutei gritos e
corri para ajudá-la, o assassino fugiu assim que notou minha presença.
Deixando Gana no hospital, comecei a busca por imagens pela redondeza que
tenha registrado o ataque. Encontrei um vídeo onde mostrava nitidamente o
rosto de Okasana depois de ter corrido. Vim direto para cá, porque eu sabia
onde se escondia.
Umedeço meus lábios, percorrendo minhas mãos por meu rosto,
despertando-me do choque em que estou.
— Por que estava atrás da Gana? — Mirom não diz nada, apenas me
encara.
— Precisamos prendê-la antes que destrua mais vidas, Ruslan. —
Mirom fala sem responder minha pergunta, fico olhando para ele sem
conseguir acreditar que tudo não passa de um pesadelo.
Meu celular de repente toca, retiro do bolso e franzo o cenho ao ler o
número do Kliment. Atendo de imediato.
— O que foi?
— Ruslan, não queria te incomodar, mas ela insistiu.
— Quem? — Pergunto, me afastando um pouco.
— Aksinya, ela fala sem parar, não consigo compreender. — Escuto
uma voz de mulher pedindo para falar comigo. — Ela disse que trabalha com
a Laura.
— Me passe para ela.
— Certo!
— Ruslan Rotam? — A voz feminina invade meus ouvidos.
— Sim.
— Olha, não sei o que está acontecendo, mas Yaroslav me disse que se
não entrasse em contato comigo em duas horas, era para procurar o Kliment
e pedir para falar contigo. — Ela faz uma pausa.
— O que aconteceu?
— Não sei! Estou tentando ligar para ele, mas só cai na caixa postal, e
demorei para encontrar Kliment. Ele não soava bem ao telefone. — Ela faz
mais uma pausa para controlar a respiração. —Yaroslav apenas pediu para
avisar que estão com a sua mãe agora.
— Onde está Laura?
— Com ele. — Responde, franzo o cenho.
— Eles estão com minha mãe?
— Sim. — Confirma com um suspiro. — Tu sabes do que se trata?
— Não, mas vou descobrir.
— Certo! Por favor, me mantenha informada, estou muito preocupada.
— Okay! — Finalizo a ligação com o coração acelerado.
Viro-me para Nikita e Mirom.
— Yaroslav, quem é Yaroslav?
— Amigo de trabalho da Laura, não se lembra? — Nikita revela, nego
com a cabeça. — Por quê?
— Uma moça chamada Aksinya me ligou, disse que eles estão com
minha mãe.
— Eles quem? — Nikita estreita os olhos.
— Laura e Yaroslav. — Fico encarando-os, atordoado.
— Porra! — Mirom vocifera. — Não temos tempo! — Diz me
olhando.
— Merda... — Nikita nos olha. — Merda, merda, merda...
— Será que Laura já sabe quem é minha mãe de verdade? — Murmuro
sem conseguir me mover.
— Laura sabe das coisas, Ruslan. — Mirom fala, balançando a cabeça.
— Eu avisei para ela não meter o nariz nessa droga de investigação. Ela com
certeza descobriu a verdade.
— Cacete! — Amaldiçoo, levando as mãos à cabeça desesperado com
a possibilidade de minha mãe a ter machucado.
Sinto mais uma vez o chão ruir sob meus pés, só que agora a queda é
ainda maior.
Dirijo pela noite, vidrado na viatura que segue à minha frente, a tensão
me domina. A lua brilha em um céu repleto de estrelas, como um mar
silencioso, e a impressão é que tudo está em câmera lenta, cada minuto
parecem horas.
A raiva me domina, deixando-me insano de novo, como antes de ser
trancafiado sozinho em uma cela. Meu sangue ferve enquanto corre por
minhas veias.
— Não dá para acreditar que isso está acontecendo.
— Eu te odiei por anos — fala, engatilhando sua pistola. — Mandei te
matar, fui o responsável por torna sua vida na prisão um inferno. Eu te
abandonei quando mais precisou e aqui está a verdade.
— No fundo, tu sabias que eu era inocente. — Mirom estala a língua,
descontente. — Senão já teria me pegado. — Olho para ele. — Assim como
Artem.
— Vivemos em uma mentira... uma vida dominada pela mentira.
Solto um suspiro longo, percebendo que fui o único que sofreu as
consequências dessa mentira.
— Quando tudo acabar, irei atrás de você. — Mirom declara.
— Eu sei!
— Apesar de tudo, você se tornou um perigo, matou muitos dentro da
cadeia, agia como um assassino de aluguel lá dentro. — Sorrio friamente.
— Mas sobrevivi. — Retruco. — Quando nada mais fazia sentindo, a
escuridão me dominava, e eu deixava.
Mirom não fala mais nada. Em silêncio seguimos para casa. Meu
coração volta a bater desesperado com a possibilidade de eles terem a
machucado.
— Aguente firme, Laura... — Sussurro, estacionando uma esquina
antes.
Faço menção de descer, mas Mirom segura meu braço, me impedindo
de prosseguir.
Olho para ele e franzo o cenho.
— Vamos aguardar só mais um pouco, precisamos pegá-los agindo.
— Esperar para que matem Laura? — Ele balança a cabeça.
— Vamos fazer do jeito certo. — Diz, pegando seu celular.
Mirom desce, soco o volante de raiva e faço o mesmo, sentindo o vento
frio bater em meu rosto enquanto encaro de longe a casa em que cresci.
Fecho meus olhos e encosto a testa na janela do carro, esperando o que
parece ser uma eternidade. Escuto Mirom pedir reforços à sua equipe. O
tempo está passando, o maldito medo me dominando, e Laura está sozinha
com aqueles maníacos.
— Chega! — Afasto do carro, confiro minha arma e olho para Mirom.
— Não irei mais esperar.
— Ainda não é o momento de agir.
— Foda-se!
Caminho sem me importar com o maldito momento de agir. Eu preciso
salvá-la a qualquer custo. O que minha mãe fez não tem perdão, ela me
transformou em seu próprio inimigo, e não pensarei duas vezes para proteger
Laura.
Por que o destino insiste em nos fazer sofrer dessa maneira? Parece
existir uma maldição em minha vida que faz com que eu perca o pouco do
que me resta.
Paro em frente à casa, inspiro fundo e fecho meus olhos em busca de
controle. Não irei cair... não deixarei com que a machuquem, não comigo
vivo.
Remexo meus braços dormentes pelas horas presa na mesma posição.
A noite tomou conta do lado de fora, Okasana sumiu, assim como Artem,
deixando-me com ainda mais medo sobre o que pretendem fazer conosco.
Olho para Yaroslav, seu rosto está inchado e machucado depois da
surra que Artem lhe deu na minha frente, a mando de Okasana. Um aviso
para que eu ficasse quieta.
Fiquei tão apavorada de eles o matarem que me vi sem chão. Com a
cabeça baixa e a respiração lenta, tento chamá-lo mesmo com a mordaça que
machuca minha boca, abafando o som da minha voz.
Ele geme, meche seus braços e levanta a cabeça. Lágrimas caem por
meu rosto.
Ele está tão machucando...
Seus olhos se encontram com os meus, desesperados.
Precisamos sair daqui!
Desvio meu olhar quando a porta é aberta. Okasana e Artem entram.
Meu sangue ferve de ódio e medo ao encará-los.
— Chegou a hora, querida. — Okasana diz, com sua mascará de boa
senhora.
Não posso permitir que façam isso, não depois de tudo o que vivi
durante anos. Agora que pensei estar livre para recomeçar sem o demônio de
James, me vejo em outra guerra.
Artem se aproxima, encarando o fundo dos meus olhos.
— Fique quieta. — Pede, eu apenas o encaro com ódio.
Ele começa a tirar as fitas dos meus tornozelos presos no pé da cadeira.
Fico esperando com calma o momento certo de reagir. Mexo minhas pernas
livres do aperto que estava me incomodando, calculando uma estratégia de
fuga.
Noto uma corda em sua mão quando ele se levanta e vai para trás de
mim, solta meus pulsos presos no encosto da cadeira. Sinto o sangue voltar a
correr por eles ao serem livres da fita.
Levanto a cabeça e encontro com o olhar de Okasana, depois olho para
Yaroslav que a encara com pavor, vendo em seus olhos a morte se
aproximando.
Artem segura meus braços. Inspiro, buscando a força que ainda me
resta, mantendo a respiração no controle antes de levantar de uma única vez,
soltando meus braços e pegando a cadeira.
Nosso olhar se encontra segundos antes de eu jogá-la nele, que se
protege com as costas. O estrondo da cadeira se quebrando faz com que eu
recue alguns passos. Artem se desequilibra, mas não cai, e o sangue começa a
escorrer por seu pescoço.
Viro para ver Okasana me encarando com fúria.
Tiro a mordaça da minha boca e ranjo os dentes.
— Sua doente, não deixarei que faça isso! — Rosno, andando para trás.
Ela sorri, vindo em minha direção.
— Não seja teimosa, criança. — Sua voz me estremece.
Pisco na tentativa de manter minha coragem, viro para ir à parede de
facas, mas ao dar um passo à frente, Artem agarra meus cabelos com tanta
força que solto um grito.
Ele me joga na mesa e prensa minha cabeça contra ela, fazendo-me
lembrar das agressões de James, de quando ele me colocava nessa posição
apenas para... para... começo a chorar, tentando livrar suas mãos de mim ao
mesmo tempo, em que luto para não ser tragada pelas lembranças.
— Eu pedi para ficar quieta. — Artem diz, prensando mais minha
cabeça. — Isso que acontece quando não me obedece. — Congelo com suas
palavras, ele acabou de falar como James, uma alma tão podre como a dele.
— Vocês vão se arrepender... — Murmuro, tentando acertá-lo com o
cotovelo, uma tentativa em vão, porque ele consegue segurar meu braço.
Movimento meus olhos e vejo uma faca perto de mim. Sem pensar duas
vezes, estico meu outro braço e fecho a mão em torno do cabo, respiro fundo
e me mantenho imóvel até sentir que seu aperto diminuiu.
Com impulso, o empurro e giro meu corpo, conseguindo me livrar de
sua mão na minha cabeça, e finco a faca em seu braço.
Artem solta um grito e acerta a mão em meu rosto, derrubando-me no
chão. Sinto o gosto de sangue na boca.
— Desgraçada! — Xinga, chiando de dor.
Balanço a cabeça, espalmando a mão no chão e me levantando com
minha visão embaçada pelo golpe. Cambaleio em direção à parede de facas,
ainda acreditando que conseguirei sair daqui com vida... que conseguirei lutar
contra dois doentes.
Lágrimas inundam meus olhos, a fraqueza me dominando.
Pego uma faca, arfando de dor e me viro, dando de cara com Artem
apontando uma arma na cabeça de Yaroslav.
Meu sangue gela.
— Tens certeza que irá lutar? — Okasana pergunta com os braços
cruzados e uma tranquilidade assustadora.
Yaroslav estremece de medo tentando ser forte, mas falha
miseravelmente. Minhas pernas enfraquecem. Artem destrava a arma, pronto
para atirar.
— Mate-o, Artem! — Ordena.
— Não! — Solto a faca e dou um passo à frente. — Não o mate!
— Desistiu de lutar, querida? — Pergunta com um tom frio na voz. —
Mate-o, Artem!
— Por favor... — Ergo as mãos e me ajoelho, derrotada.
— Mãe, não é uma boa ideia. — Artem intervém. — Vamos manter o
plano. — Diz, me olhando.
Okasana fica encarando-o com uma expressão ilegível antes de
concordar. Ele abaixa a arma e vem até mim, e prende meus pulsos, com
fitas, atrás das costas.
Yaroslav me olha um pouco aliviado por ainda termos ganho um pouco
mais de tempo. Respiro fundo, ficando de pé quando Artem me puxa para
cima. Okasana sai pela porta liderando o caminho, enquanto seu filho me
arrasta para a cova em que cavaram.
Quero implorar para que não cometam esse erro, mas tudo o que eu
disser será em vão. Ela está dominada pela maldade, a frieza consome seus
olhos e acredito que não há como a senhora simpática que conheci voltar,
aliás, ela nunca existiu.
Artem me faz ajoelhar em frente ao buraco que abriu.
Okasana fica do outro lado, me olhando. As recordações do que fiz
com James retornam com intensidade.
Eu abri uma cova e joguei seu corpo lá dentro. Ateei fogo e cobri seus
restos com terra vermelha. Agora estou aqui, em frente a uma cova prestes a
ser enterrada viva.
Artem volta trazendo Yaroslav que luta para se manter lúcido.
— Sinto muito, Laura. — Ela diz.
Desvio o olhar do meu amigo e fixo na senhora louca com sangue
assassino.
— Você não sente, Okasana. — Retruco, com raiva. — Você não tem
coração para sentir alguma coisa.
— Você está enganada, querida. — Seus olhos se prendem em Artem.
— Tudo o que fiz foi por meus filhos, e continuo fazendo isso por eles.
Ruslan se sacrificou e em hipótese alguma pode descobrir quem sou.
— Ele saberá da verdade mais cedo ou mais tarde. — Balanço a
cabeça. — Já pensou na Olesya? Sua filha, Okasana... o que ela vai sentir
quando descobrir o que fez?
— Ela seguiu com sua vida longe de mim, se tornou uma mulher linda
e bem-sucedida.
— Porque vocês sempre a jogaram contra seu irmão. — Retruco,
bufando.
— Eu a amo, Laura. — Diz, me fitando com olhos marejados. —
Mesmo que tenha cortado laços, eu sempre a amarei.
— Por quê? — Pergunto, curiosa. — Por que se afastaram?
— Ela defende Ruslan com toda alma, não aceita que ele seja o
culpado. Foi contra minhas ordens de não reabrir o caso dele ou de contratar
qualquer advogado que o tirasse da cadeia. — Esclarece. — Então saiu de
casa e nunca mais voltou, nem ao menos ligou.
— Você é a culpada, não Ruslan!
— As provas existem e apontam para ele. — Fecho meus olhos por
alguns segundos.
— Então é isso, Artem? — Olho para ele que anda de um lado para o
outro. — Vai nos matar?
— Não posso fazer nada! — Diz, parando de andar. — Eu pedi para
você parar de vir atrás da gente, mas não parou. O aviso foi dado, Laura.
— Vocês estão cometendo um grande erro. — Alerto. — As pessoas
vão procurar pela gente...
— E assim como as outras, vocês dois não passarão de meras
lembranças. — Artem rebate, me lançando um olhar furioso.
— Vamos acabar com isso, antes que amanheça. — Ela o orienta,
Artem concorda com um aceno de leve.
Franzo a testa observando seu comportamento. A submissão é visível
em sua expressão, me dando a certeza que não importa o que ela quer fazer,
ele irá obedecê-la.
Okasana sorri para Artem como se estivesse orgulhosa dele,
substituindo sua feição fria para uma calorosa, amorosa e doce, a mesma que
presenciei todas às vezes em que a vi.
Ela se aproxima do filho, segura seu rosto e beija sua testa antes de vir
até nós. Desespero me abate ao ver suas mãos repousarem nos ombros de
Yaroslav que estremece diante do seu toque.
— Perdoe-me, querido. — Diz, o empurrando para dentro da cova,
solto um grito que é abafado pelas mãos de Artem, me debato vendo
Yaroslav caído lá dentro, imóvel.
Artem me segura com mais força e me amordaça, seu toque me
desperta tanta repulsa que meu estômago embrulha. Ele segura meus ombros
e me empurra para dentro da cova.
Um gemido sai da minha garganta ao cair desajeitada em cima de
Yaroslav, meu corpo inteiro dói. Ele se remexe debaixo de mim e tentamos
nos ajeitar num espaço tão pequeno.
Com muita dificuldade, consigo me sentar e sair de cima dele. O cheiro
da terra invade minhas narinas, olho para cima e fecho os olhos com força
quando terra cai sobre nós. Encolho-me, sentindo-me impotente, não sei mais
o que fazer, estão nos enterrando vivos. Com minhas mãos atadas atrás das
costas nunca conseguirei fugir.
Abro meus olhos depois de alguns minutos e encontro com o olhar
desesperado de Yaroslav quase coberto pela terra. Começo a chorar,
balançando a cabeça e percebendo que essa luta, iremos perder. Vendo um
caminho sem fim, clamo por ajuda enquanto ainda me resta alguma
esperança.
O som da pá quebra o silêncio da noite, chocando contra a terra que em
seguida cai sobre nós, aos poucos, nos cobrindo, tornando doloroso demais
para suportar essa morte cruel.
— Mamis? — Meu coração para ao escutar o som da voz de Ruslan.
— O que está fazendo?
— Ruslan? — A voz de Okasana sai trêmula e a terra para de cair.
Um silêncio recai sobre nós, nada é dito... nada é esclarecido
— Por quê? — Ele pergunta com a voz falhando.
— Meu pequeno...
— Tu me tiraste o direito de ser ouvido, de ser amado, de ser livre e de
realizar meus sonhos para continuar fazendo essas barbaridades? — Meu
peito aperta, sentindo sua dor. — Naquela noite, quando eu a encontrei, tu
deixaste claro que destruiria minha vida... por quê? Para continuar matando?
— Eu tinha mais duas crianças para criar Ruslan, não podia deixar com
que a justiça os tirasse de mim. — Okasana responde com convicção. — Eu
tinha que criar vocês... alimentá-los, por isso, fiz o que fiz. Estava
desesperada...
— O que a morte de inocentes tem a ver com a gente, Mamis?
Mesmo que esteja com raiva e indignado, ainda consigo sentir o amor
que sente por ela através da sua voz.
— Cansei de vê-los com fome e... essas moças alimentaram vocês. —
Yaroslav arregala os olhos ao compreender o que Okasana quis dizer com
essa afirmação. — Vocês não passaram mais fome, tínhamos carne todos os
dias...
— Mamis... me diga que é mentira! — A voz de Ruslan sai incrédula.
— Por favor, diga-me que é uma criação da sua cabeça.
— É verdade, meu pequeno. — Eles se calam por alguns segundos. —
Tu és o mais forte entre todos, sabia que conseguiria aguentar.
— Conseguir aguentar? Sério? — Sua voz sai revoltada. — Eu só
encontrei escuridão em todos esses anos. Vivi sem amor, sem misericórdia,
mas acreditando que tu ainda me amavas.
— Eu amo-te, filho.
— Ama? — Ruslan solta uma risada fria. — Tu és uma espécie
maldita, Mamis! Uma alma doente. — Declara com fúria. — O que tu fizeste,
não tem perdão.
— Tu tens que me entender, Ruslan...
— Deitei em seu colo, dias atrás... tu viste meu sofrimento sabendo o
tempo todo que eu era INOCENTE! — Escuto passos, meu corpo fica tenso.
— Tu, a mulher que eu amo e que chamo de mãe, não passa de uma
mentira... um monstro!
— Filho...
— Não me chame de FILHO! — Ele grita.
Sobressalto de susto quando alguém pula dentro da cova. Não pode ser
Ruslan, ele está com Okasana, então... tento me arrastar para mais perto de
Yaroslav no pouco espaço que temos, apavorada e com muito medo de que
seja Artem.
— Shh! Sou eu, Laura, o Mirom! — Pisco várias vezes até seu rosto se
tornar nítido.
Ele se agacha retirando de dentro do seu coturno uma pequena faca e se
aproxima. Colo as costas na parede de terra com medo dele fazer algum mal
contra a gente, mas a única coisa que ele faz é esticar as mãos e tirar a
mordaça da minha boca.
— Fique calada. — Diz em um sussurro. — Agora se vire! — Fico
encarando-o, escutando Ruslan e Okasana conversarem. — Ande! — Hesito
por mais alguns instantes, quando ele inspira com impaciência, me viro e em
instantes tenho meus braços livres.
— Yaroslav... — Me inclino, tirando a mordaça e a terra de seu rosto,
suspirando aliviada por estarmos quase saindo desse buraco apertado. —
Você está bem?
— Vou ficar... — Responde baixinho, Mirom corta a fita dos seus
pulsos e o ajuda a se sentar.
— Vou te ajudar a subir. — Mirom fala, segurando meu braço. —
Chegando lá, tu me ajudas com Yaroslav. — Assinto, ele cruza as mãos e
coloco meu pé esquerdo sobre elas. — Tente manter silêncio, não distraia
Ruslan.
— Certo!
— No três, okay?
— Okay! — Confirmo, repousando as mãos na parede.
— Um, dois e três! — Mirom me empurra para cima, agarro a beirada
da cova e saio de dentro com a respiração pesada.
Espero alguns segundos agachada até me recuperar do pavor instalado
dentro de mim. Fecho as mãos sob a terra solta, quase caindo no choro por
estar livre daquele buraco.
Com as pernas bambas, começo a me levantar, mas paro de uma vez, e
me arrasto a tempo de ver Artem erguer a pá e quase me acertar.
Meu coração acelera, encarando seu olhar cruel.
— Não deixarei que fuja, Laura! — Diz com a voz bradando, entro em
desespero quando vem em minha direção com a pá pronta para acertar minha
cabeça, não vou conseguir desviar dessa vez.
Fecho meus olhos esperando a pancada, mas nada acontece, o único
som que vem é da voz de Okasana e Ruslan. Volto a abri-los, calafrios
percorrem meu corpo ao ver Mirom, com a mão em sua boca, o arrastando
para as sombras.
Seus olhos se encontram com os meus. Mirom lança um aceno discreto,
viro-me e vou para beira da cova, chamando Yaroslav que se mantém sentado
com a cabeça caída para frente.
— Ei, Yaroslav? — Chamo em um murmuro, olhando rapidamente
para Ruslan. — Consegue vir até mim?
— Acho... — Sussurra em resposta, se movimentando e chegando perto
de mim.
— Venha! — Estendo minhas mãos. — Vai doer só mais um pouco.
— Eu aguento. — Ele fecha as mãos em meus pulsos e eu nos dele.
Inspiro fundo, concentrando o pouco de força que ainda tenho.
— Um, dois... três! — Puxo-o para cima.
— Arch!!!!! — Reclama com um gemido alto.
Ranjo os dentes, ele é pesado demais para mim e acaba caindo de volta,
quase me levando junto.
— Merda! — Xingo, preocupada. — Você está bem?
— Sim... — Balbucia, se levantando com dificuldade.
— Vamos tentar mais uma vez, okay? — Yaroslav assente e olha além
de mim, congelando de imediato e arregalando os olhos.
— Laura, atrás de ti!
Meu coração gela, olho para trás e encontro Artem com a pá novamente
levantada com o rosto coberto por sangue. Sento-me estagnada, sem saber o
que fazer.
Artem acertará minha cabeça, e eu não sobreviverei a essa pancada.
Levanto as mãos para proteger meu rosto, mas antes dele me acertar, dois
disparos soam pela noite.
Solto um grito e cubro meus ouvidos, assustada. Olho para Artem que
dá dois passos para trás com olhos arregalados, a pá cai de suas mãos fazendo
um barulho abafado.
Ele se ajoelha, leva as mãos trêmulas ao peito que jorra sangue e olha
para frente, além de mim, perplexo.
— Não a machuque, não na minha frente! — A voz de Ruslan, tão
intensa e fria, me arrepia. Olho para trás, fixando meus olhos no seu rosto
inexpressivo. — Eu avisei para ficar longe dela... para não tocar nela!
— Eu... sempre... te odiei! — Artem diz, pausadamente.
— Nunca duvidei. — Ruslan concorda, apesar de estar sendo frio, sinto
em cada parte do meu ser, a sua dor.
— Sempre... o bo-o-om garoto... o filho preferido... — Artem tosse,
sorrindo enquanto balança a cabeça. — Quando... tu foste preso... nunca me
senti tão... grato. Torci para que não precisasse nunca mais te ver... queria te
ver sofrer.
— Tu conseguiste! — A voz de Ruslan vacila, olho para seus olhos
marejados, a arma que segura treme.
— Quando... quando descobri o que mamãe estava fazendo... — Artem
geme e sangue sai por sua boca. — Eu a ajudei... enterrei e a protegi... Queria
fazer de tudo para que tu continuaste dentro daquela cadeia.
— Eu sei... — Ruslan murmura, lágrimas escorrem por seu rosto. — Eu
sempre senti sua raiva, era sempre uma tensão ficar ao seu lado. Queria a
atenção do meu irmão mais velho, trabalhei para que estudasse e nos tirasse
daquela vida de merda... — Artem gargalha.
— Babaca... sempre foi o merda de um babaca! — Ele arfa. — Eu
nunca te tiraria daquela vida... eu iria vencer, mas no fim, te jogaria no lixo
onde tu sempre pertenceste.
— Estás feliz agora? — Ruslan pergunta, hesitante.
— Não... — Artem trinca os dentes. — Porque tu estás aqui, vivo,
amando, sorrindo e tendo uma mulher do seu lado... lutando por você... —
Seus olhos se prendem em mim. — Eu quero matá-la, porque... porque eu
vejo que tu a ama... eu o odeio por isso... por sempre vencer...
— Artem... — Okasana murmura. — Filho, olhe para mim... — Ela dá
um passo à frente.
— Não se mexa, Mamis. — Ruslan alerta, ela para.
— Tu machucaste teu irmão, não lhe ensinei isso, Ruslan!
— Dentro daquele inferno, aprendi a não ter piedade, Mamis. — Ele
revela, olhando para o fundo de seus olhos. — Eu aprendi a matar tudo de
bom dentro de mim sem ter rancor ou arrependimentos, sem me importar
com quem seja.
— Filho...
— Só que, se expormos a realidade, nada disso aprendi. — Ruslan ri,
friamente. — Porque a crueldade impregnada em meu ser, foi herdado de ti e
acredito que ela só desabrochou!
— Eu sempre criei vocês para se tornarem pessoas boas...
— Não me importo em matá-lo. — Ruslan declara.
— E sua mãe? Tens coragem de matá-la? — Ele não responde,
mantendo a expressão dura, impassível.
— Ouch... — Volto minha atenção para Artem, seus olhos perdem o
foco e em instantes seu corpo cai para trás.
— Laura? — Yaroslav me chama, desperto-me e vou até ele, sentado
na cova.
— Você está bem? — Ele assente. — Espere só mais um pouco.
— Eu queria ter a coragem de te matar, mãe... — Ruslan fala, sem
olhá-los, me levanto e vou atrás de Mirom, passando por Artem desacordado.
Se está morto, não faço ideia e nem paro para conferir.
Estreito meus olhos, tentando enxergar direito na escuridão. Ele trouxe
Artem até aqui... tropeço em algo e caio com as mãos no chão.
— Droga... — Murmuro de dor, me sento e tiro os espinhos das rosas
que fincaram em minhas palmas. — Mirom! — Exclamo assim que percebo
que foi nele que tropecei. — Mirom?
Me aproximo, notando um grande corte na testa que vai até sua
sobrancelha. Engulo em seco, tocando seu rosto ensanguentado com as mãos
trêmulas.
— Ei... acorda! — Sacudo-o de leve, entrando em desespero. — Eu
preciso de você, entende?
— Siiim... — Ele murmura, solto um suspiro.
— Você está bem?
— Acha que estou? — Retruca, gemendo de dor, continuando imóvel.
— Quase morrendo e continua um babaca! — Rosno, segurando seu
pulso e o puxando para cima. — Tire Yaroslav daquele buraco. — Peço.
Mirom abre os olhos e toca sua testa, amaldiçoando. — Uma bela pancada!
— Digo, ele ignora.
— Onde está Artem? — Pergunta, se levantando sem minha ajuda,
parece recuperado.
— Morto... eu acho! — Seus olhos se prendem em mim.
— Como?
— Ruslan... — Aponto para ele que ainda segura a arma na direção de
Okasana.
— Porra! — Xinga, indo até Artem, e eu o sigo. — Vivo, ainda! —
Consta, com dois dedos no pescoço dele.
— Bom ou ruim? — Indago, sem paciência.
— Os dois. — Responde, indo até Yaroslav.
Mirom pula para dentro da cova, ajuda meu amigo a se levantar e com
minha ajuda, conseguimos tirá-lo de lá de dentro. Puxo-o para mim em um
abraço forte. Seu corpo treme por conta do seu choro.
Respiro fundo, segurando minhas lágrimas e de repente, escuto ao
longe, barulhos de sirenes. Yaroslav desfaz o abraço e me encara.
— A polícia está chegando, Laura. — Yaroslav comunica tão aliviado
quanto eu.
Assinto, me levantando e olhando para Mirom que sai de dentro da
cova.
— Mirom? — Ele me encara. — Os corpos... eles estão... — Faço uma
pausa, tendo dificuldade de falar. — Tem corpos enterrados aqui!
— Como dizes?
— Eles escondem os corpos aqui, nas roseiras. — Mirom fica me
encarando sem se mover, dou um passo para trás e encontro com o olhar
devastado de Ruslan.
— Okasana, acabou! — Falo, fazendo-a olhar para mim. — Sei de tudo
o que teve que passar, mas está na hora de você assumir seus erros.
Luzes vermelhas e azuis reluzem pela noite que estava sendo iluminada
apenas pelo luar. Policiais encapuzados contornam toda a casa, confirmando
minhas palavras.
Ruslan abaixa a arma, encarando sua mãe que olha para o corpo caído
de Artem, sem esboçar nenhuma emoção.
— Lutei tanto contra a dor e a obsessão que crescia dentro de mim, mas
o único alívio que encontrei, foi esse. Eu não aguentava mais ver vocês com
fome. — Ela desvia o olhar de Artem, voltando sua atenção para Ruslan. —
Chorei por você todas as noites, Ruslan... entenda, meu pequeno, não tive
outra escolha. Todos me viraram as costas quando mais precisei. Eu era uma
mãe viúva, sem dinheiro e com quatro crianças para criar. — Okasana encara
Mirom que está um pouco distante de mim com os olhos cheios de lágrimas.
— Eu não tive outra escolha...
— Sempre tem outra escolha, mãe... — Ele diz.
— Quando me chamas de mãe, Mirom, sinto-me realizada. — Revela.
— Mesmo com tudo o que aconteceu, tu me transformaste em tua mãe. Eu
nunca irei me esquecer de vocês... eu os amo! — Diz com a voz embargada,
voltando a encarar Ruslan. — Eu nunca me esqueci de você, pequeno...
— Eu também nunca me esqueci do som da sua voz e do seu cheiro...
— Ruslan revela com a cabeça baixa. — Quando pensava em ti, eu pedia
para Deus fazer com que tu foste me buscar logo, eu não conseguia mais
aguentar... eu só queria estar seguro em seus braços.
A dor no coração de Ruslan domina sua alma, jogando-o em um chão
frio, onde sozinho enfrenta a solidão do abandono e da injustiça.
Na minha frente, não está o homem misterioso que conheci, e sim,
aquele garoto de dezoito anos que tanto gritou por socorro, se ajoelhou e
implorou para ser ouvido quando sua própria mãe, de forma cruel, o
condenava.
— Mamis, queria tanto que isso não passasse de um pesadelo. Queria
tanto te dizer o quanto te amo com um sorriso no rosto, e não com lágrimas
de dor e traição.
— Sempre carreguei você em meu coração, filho, mesmo não
conseguindo olhar dentro de seus olhos, eu sempre te amei e te amarei.
— É cruel e injusta essas palavras... — Ele balança a cabeça,
recusando-as.
— Sinto muito, pequeno, mas não poderei apagar tudo o que te causei...
— Okasana dá um passo à frente, começando a chorar.
— Eu me sinto morto, mãe... — Ruslan se ajoelha no chão, soltando a
arma, Okasana faz o mesmo, segurando seu rosto. — Guardei em minha
memória seu carinho e seu amor, porque era o único jeito de sobreviver
naquele lugar.
— Perdoe-me... — Ela implora. — Perdoe-me por tudo, filho!
— A dor, mãe... faça essa dor acabar! — Ele suplica, Okasana o leva
para seus braços em prantos.
Fecho minhas mãos em punhos com raiva, me segurando para não ir lá
e retirar suas mãos sujas de Ruslan. Ele não merece esse sofrimento, nada do
que ela fez justifica essa maluquice que chama de amor de mãe.
Estou morrendo aos poucos, cada vez que Ruslan se aproxima de mim.
Gostaria que nosso destino não fosse esse, que não acabasse com sofrimento.
A cada segundo a realidade vai minando o que restou de mim, tirando
de forma dolorosa o homem que me ama e ultrapassou meus espinhos, que
me fez desabrochar quando estava encolhendo, findando no passado.
Não quero acreditar que dessa vez é verdade... que o adeus definitivo
está estampado em seu rosto, porque agora não resta nada que nos ligue além
da paixão e das lembranças que ficarão.
Me levanto e coloco meu cobertor nos ombros de Yaroslav, sentado ao
meu lado com o braço enfaixado. Seus olhos se encontram com os meus,
depois recaem em Ruslan atrás de mim, compreendendo que não há mais
fuga.
Precisamos colocar um ponto final!
Me viro e vou até ele. Quando me segura em seus braços, todas as
muralhas da minha alma desabam, restando apenas devastação. Não podemos
terminar assim... não irei perder a esperança de que nosso fim seja o que
merecemos.
Ruslan me afasta para que eu possa olhá-lo. Com os polegares ele
limpa as lágrimas do meu rosto. Não é necessário palavras para dizer quando
estamos lendo um no outro todo medo, toda dor e solidão que nos acomete.
Ele segura meu rosto e se curva, tocando seus lábios nos meus,
beijando-me com delicadeza, deslizando suas mãos por meu corpo com
cuidado como se estivesse verificando se tudo está em seu devido lugar.
Contorno meus braços em seu pescoço, sentindo o beijo se tornar mais
profundo e intenso. Um nó aperta minha garganta, o calor de seu corpo
colado no meu faz meu coração queimar, simplesmente não consigo aceitar
nosso destino.
O vento traz um novo amanhecer, dizendo que nada permanece para
sempre, que pessoas cruzam nosso caminho com tempo determinado, sempre
com um propósito.
Preciso sufocar a dor enquanto consigo me manter forte. O doce cheiro
da chuva nos invade antes dela cair sobre nós, nos encharcando, limpando
não só a sujeira de nossos corpos, mas de nossas almas.
Ruslan desfaz o beijo e encosta a testa na minha. O som da chuva se
torna uma canção para nos lembrar de tudo o que vivemos... uma canção para
nunca esquecermos desse momento.
— Tu estás bem? — Pergunta. — Senti tanto medo...
— Eu vou ficar bem. — Deslizo minhas mãos até seu rosto. — E como
você está? — Ele inspira, roçando seus lábios nos meus.
— Vou ficar bem... — Diz, se afastando e tirando meus cabelos do
rosto. — Mais tarde Kliment te entregará uma carta minha, quero que aceite o
que está dentro dela.
— Carta? — Franzo a testa, fitando seus olhos verdes. — Que tipo de
carta?
— Tu irás descobrir. — Ruslan esboça um sorriso triste. — Hoje, às
seis da tarde, quero que tu vás buscar Olesya no aeroporto Kiev-Boryspil.
— Quer que eu conte o que aconteceu? — Ele comprime os lábios,
pensativo.
— Até chegar lá, ela já estará sabendo. — Responde. — Ela tem algo
para você.
— Muitas surpresas, não? — Ruslan sorri, beijando de leve meus
lábios.
— Quero que tu continues com sua vida, pequena, sorria sempre que
puder. Saia e conheça novas pessoas, permita que elas entrem em seu
coração. Não se afunde na dor... não mais!
— Ruslan, se você voltar para cadeia eu... — Me calo, quando seus
olhos ficam sombrios.
— Não quero que vá me visitar, Laura, não se prenda a mim. Isso não é
a vida que merece. — Diz, balançando a cabeça. — Tu mereces muito mais e
eu não tenho nada a te oferecer.
— Mas...
— Faça isso por mim, pequena flor. — Insiste, engulo em seco, fitando
seus olhos que sempre estarão em meus sonhos. — Viva e sorria por mim,
porque enquanto eu estiver naquela cela, meus pensamentos estarão com
você.
— Não posso acreditar que esse é nosso fim... — Fecho meus olhos
com força, incapaz de suportar essa dor.
— Quando ficar pesado demais, lembre-se de nossos momentos, e não
importa o que aconteça, eu estarei contigo.
— Por quê...? — Murmuro. — Por que temos que terminar assim? —
Abro os olhos e encaro os seus, cheios de lágrimas.
— Encontrei dentro de ti, Laura, a luz que eu precisava para me sentir
vivo outra vez. Foi sua maneira de me salvar do pesadelo em que estava
preso. — Sua voz sai trêmula através do som da chuva. — Foi o bastante para
sentir a felicidade que tinha perdido, mesmo que tenha tido tão pouco tempo,
foi o suficiente...
— Eu te amo... — Sussurro, devastada.
— Te amarei para todo sempre, não importa quantos anos passem, eu
sempre serei seu. — Ele diz, encarando o fundo dos meus olhos.
Eu sempre irei esperar por ele, mesmo que o mundo lute contra, porque
nunca superarei o que não pudemos viver. Esse não será nosso último beijo e
muito menos nosso adeus.
Um carro escuro chama minha atenção ao parar um pouco à frente, meu
coração salta de medo. Encontro com seu olhar fixo no meu rosto como se
estivesse gravando em sua memória minha imagem.
— Chegou a hora... — Nego com a cabeça, não posso aceitar.
— Não... não me diga adeus... — Ruslan me puxa, capturando meus
lábios, a realidade pesa em meus ombros, me afogando na chuva.
Pressiono meu corpo contra o seu, sentindo sua mão percorrer meus
cabelos. Meu coração luta para manter a esperança de um amanhã, mas o
brilho de seus olhos me mostra que nosso destino já está traçado.
Ruslan desfaz o beijo e me abraça, enterrando seu rosto em meu
pescoço. Vai ser doloroso abrir os olhos todos os dias e saber que não poderei
vê-lo deitado no meu sofá... ou me entregando rosas todas as manhãs...
— Cuide do Rony... — Murmura em meu ouvido.
— Darei todo amor do mundo. — Ruslan me aperta antes de me soltar
e recuar alguns passos para trás.
— Sinto meu coração rasgando, Laura. — Balanço a cabeça, porque é
assim que me sinto, como se estivessem arrancando cada parte do meu corpo.
— Quando a solidão te oprimir a ponto de não aguentar, grite por mim,
Ruslan... Chame por meu nome, porque eu estarei aqui te esperando,
sonhando com o dia em que poderemos ficar juntos, tentando fazer meu
melhor para seguir em frente.
— Adeus, pequena flor... — Ficamos nos olhando, esperando que tudo
mude, que um sinal nos invada e diga que não precise ele ir embora.
Ruslan se vira e sai andando em direção ao carro, entrando sem olhar
para trás.
Não há nada mais o que fazer, a chama do adeus me queima, os
momentos que passamos nunca desaparecerão, se tornaram lembranças que
reviverei a todo instante. Enquanto o assisto ir embora para longe dos meus
sonhos, minha alma se quebra.
— Finalmente acabou... — Mirom diz, parando ao meu lado, passo a
mão em meu rosto, afastando a água da chuva.
— Você vai atrás dele?
— Sim, apesar de tudo, mesmo que ele seja inocentado pelos crimes de
Okasana, Ruslan ainda é um criminoso perigoso demais para permanecer nas
ruas.
— Ele vai ficar... bem? — Pergunto sem desgrudar os olhos da direção
em que ele se foi.
— Ruslan viveu durante quatorze anos em um lugar em que poucos
suportaria. Ele é forte!
— É tão injusto...
— Nem sempre a vida é justa. — Diz, tocando algo em mim, olho para
sua mão. — Pegue.
— O que é isso? — Seguro um CD sem nada escrito.
— A gravação que mostra o momento em que mato James. — Levanto
meus olhos, encontrando com os seus.
— Por que agora? — Mirom dá de ombros. — Essa gravação vai
adiantar alguma coisa? — Ele sorri, desviando o olhar.
— Eu a persuadi a enterrar James... te ameacei.
— Posso te destruir com isso?
— Pode! — Afirma. — Meu destino está em suas mãos. Irei ser
julgado por assassinato, ocultação de cadáver e ameaça... pegaria uns dez a
quinze anos de prisão. — Ele balança a cabeça.
— Mas você estava me protegendo.
— Entregue à justiça, me denuncie e me veja apodrecer na cadeia.
— Talvez eu te mande, Ruslan adoraria ter sua companhia. — Mirom
me olha sério. — Esse é nosso segredo, vou deixar guardado caso precise
futuramente. — Bato o CD de leve em seu braço e me afasto, andando em
direção a Yaroslav.
— Ele se foi? — Yaroslav pergunta assim que me sento dentro da
ambulância ao seu lado.
— Sim.
— Hoje percebi o quanto somos sortudos. — Olho para ele, apertando
meus lábios trêmulos de frio. — Nunca mais reclamarei da minha vida.
— Acho que tenho sete vidas que nem um gato. — Yaroslav ri,
colocando o cobertor em meus ombros.
— Tu és a mulher mais forte que eu conheço. — Ele passa seu braço
por meu ombro também e me leva para seu peito, permito-me ser aquecida
por ele.
— O hospital me ligou, disse que Gana está fora de risco e que
acordou. — Inspiro tão aliviada que lágrimas escorrem por meu rosto.
— E agora? — Pergunto, encarando vários policiais escavando o
quintal de Okasana que já foi levada para o lugar a que pertence.
— Vamos continuar, só que dando mais valor em nossa vida, nas
pessoas que amamos, fazendo o nosso melhor. — Responde, repousando a
bochecha na minha cabeça.
Fico encarando o horizonte, pensando em como as coisas acontecem
com um propósito, algumas perguntas sempre permanecerão sem respostas,
porque nosso futuro já está escrito, apenas nosso caminho muda conforme
nossas escolhas.
A injustiça muitas vezes permanecerá em cada momento, escolhendo as
pessoas para destroçar... o amor pode curar um coração injustiçado?
Talvez sim... talvez não...
O amor muda as pessoas... o amor muda o mundo, mas talvez ele não
mude o destino já traçado.
O amor pode nos transformar em pessoas mais fortes, nos tirar da
escuridão e nos renascer da morte, e é por ele que continuamos tendo fé,
acreditando que tudo é possível.
Agora meu amor por Ruslan, é apenas uma lembrança, um sonho
distante... um fantasma na névoa.
Percorro meus olhos pela sala de casa. Por um momento cheguei
acreditar que nunca mais voltaria, ou sentaria no meu sofá para assistir aos
meus desenhos.
Agora, sinto como se estivesse acordado de um longo sonho, tão surreal
que ainda é difícil acreditar que seja real. Vou à cozinha com Rony
esfomeado me seguindo.
Desde que cheguei, ele não saiu de perto, acredito ter sentido tanto
medo de me perder quanto senti de nunca mais retornar.
Deposito sua comida no pote e coloco no chão. Agacho e acaricio seu
pelo negro, encarando seus olhos amarelos presos nos meus.
— Sairei por algumas horas, mas voltarei para você, okay? — Rony
ronrona, desviando seu olhar e focando em sua comida.
Fecho meus olhos ao me sentir nauseada, levanto-me e vou para o
banheiro. Me ajoelho no chão e inclino sobre o vaso, colocando o pouco que
tenho dentro do estômago para fora.
É difícil não sentir enjoo ao lembrar das barbaridades de Okasana.
Levanto-me e vou até a pia, jogo água no rosto e inspiro fundo, me
recuperando da fraqueza que me assola.
Quando vou me sentar no sofá para descansar antes de ir para Kiev,
uma batida soa na porta me assustando. Fico paralisada por alguns segundos,
com medo de quem possa ser. Engulo em seco e vou atender, encontrando
com Kliment recostado no batente da porta.
Ele levanta o olhar, sorri de leve e estende um envelope em minha
direção.
— Perdoe-me por estar te incomodando, mas Ruslan pediu para que lhe
entregasse isto.
“Mais tarde Kliment te entregará uma carta minha, quero que aceite.”
Recordo de suas palavras e apanho o envelope, agradecendo.
— Ele só te pediu para me entregar? Nada mais?
— Não, senhora! — Diz. — Preciso ir, fique bem.
— Você também. — Despeço-me dele e fecho a porta, indo até a mesa.
Fico encarando o envelope, temendo o conteúdo. O abro sem demora e
tiro de dentro, duas chaves - uma de carro e outra parece ser de uma casa,
algo assim.
Franzo a testa, sem conseguir entender o intuito disso. Me sento,
retirando alguns documentos de dentro. Em um post-it, há algo escrito que
faz meu chão ceder.
A chave da sua felicidade encontra-se em suas mãos, é acreditando nas rosas que a fazemos
desabrochar, acredite em ti, Laura!
Sempre a manterei em minhas memórias, lembrando do seu sorriso e de seus olhos.
Viva, minha pequena flor, como se fosse o último dia.
Floresça e seja um jardim eterno...
Ruslan Rotam
Finalizo com os olhos cheios de lágrimas, deixo o bilhete de lado e
analiso os documentos. Meu coração salta imediatamente ao notar que é uma
escritura de um apartamento na parte nobre de Kharkiv e os documentos de
um... carro?
... quero que tu aceite.
Solto os documentos e enterro meu rosto entre as mãos, liberando o
choro que vinha segurando desde sua partida. Meu coração rasga, Ruslan me
deixou uma casa e um carro antes de ir embora?
Por que tem que ser assim?
Limpo meu rosto e me levanto, não posso permitir que a derrota de o
ter perdido me abata. Apanho minha bolsa, fecho a mão em torno das chaves
e saio de casa.
Assim que chego na calçada, procuro pelo carro da Caoa Chery Arrizo
6 preto. Minha boca escancara ao encontrá-lo, me aproximo sem acreditar no
que estou vendo.
— Cacete... — Murmuro, passando a mão nele, admirando sua beleza.
— Mas como... — Me calo, não quero saber como Ruslan arrumou tanto
dinheiro para o apartamento e o carro tão caro.
Ao entrar, fico ainda mais surpresa, é tanta tecnologia que não sei nem
se saberei aproveitar tudo que tem. Coloco minha bolsa no banco do
passageiro de couro, aliso o volante e olho para cima, para o teto solar.
— Céus Ruslan... — Sussurro, com os olhos navegando pelo painel e
tento ligá-lo, acreditando que talvez terei que usar o manual de instruções.
Ao conseguir, a câmera traseira é acionada, passo a mão pelo
computador de bordo e a luz ambiente panorâmica é ativada. Balanço a
cabeça impressionada e sigo meu caminho, ainda incrédula.
A viagem até a capital demora aproximadamente seis horas e meia,
contando com as paradas e o congestionamento que peguei em algumas
partes.
Paro o carro no estacionamento do aeroporto Internacional de Kiev-
Boryspil com o coração na mão. Como será que vai ser encarar Olesya depois
de tudo o que sua mãe fez e da morte de Artem? Ainda mais que já está em
todos os jornais e na internet. Andry foi o primeiro a publicar as informações
após eu repassar em detalhes o que aconteceu.
Caminho entre as pessoas, subo as escadas e encaro cada parte do
aeroporto tentando achar meu destino. Ruslan não me falou em que local eu
deveria me encontrar com ela e muito menos de onde ela vinha. Pego meu
celular, tento ligar para Olesya, que infelizmente cai direto na caixa postal.
Fico perambulando sem rumo durante vários minutos, acabo voltando
para a porta principal e aguardando, porque se tem um lugar por onde ela irá
passar, será pela saída.
— Laura? — Olho para trás assim que escuto sua voz.
— Oi! — Ela me lança um olhar triste, respiro fundo e vou até ela. —
Já sabe, certo?
— Sim. — Olesya abaixa a cabeça, segurando a haste da mala. —
Recebi uma ligação de Mirom e Ruslan uma hora atrás me contando o que
aconteceu.
— Sinto muito...
— Tu não tiveste culpa. — Aperto minhas mãos em punhos, querendo
abraçá-la, sei que precisa disso.
Fecho os olhos por um instante tomando coragem de ir consolá-la e
quando volto a abri-los, congelo ao avistar logo atrás de Olesya uma mulher
com os mesmos olhos que os meus.
Minha pulsação aumenta, será que estou vendo coisas? Será que estou
delirando?
Talvez seja os efeitos da noite passada, da tensão de quase ser morta e
dos traumas que ficaram. Eu nem dormi e muito menos descansei, deve ser
isso!
Olho para trás e depois volto, continuando vendo minha mãe, parada,
me encarando fixamente. Seus olhos estão marejados e vermelhos, pisco
tentando afastar sua imagem, que do nada começou a me perseguir.
— Olesya... — Olho para ela, que sorri dando um passo para o lado,
expondo ainda mais minha mãe.
— A pedido de Ruslan, fui buscá-la no Brasil e a trouxe para você. —
Declara, abro a boca, mas nada sai. — Está na hora de acertar as coisas,
Laura, fugir para sempre não é a solução. Permita-se perdoar!
Fico encarando-a, Olesya assente como se dissesse que preciso dar esse
passo. Prendo a respiração e meu olhar se prende em minha mãe, que tem
lágrimas por todo o rosto.
Ela envelheceu, mas mesmo assim continua linda...
Ela dá um passo à frente, soltando sua mala. Mamãe ficou presa
durante anos por tentativa de assassinato cometida contra James, ao sair, fez a
mesma coisa, o caçando. Ela não o encontrou, mas eu sim, e hoje ele é apenas
uma lembrança de um passado distante.
O quanto Lívia, minha mãe, sofreu durante esses 15 anos?
— Lauriana... — Estremeço ao escutar sua voz fraca e trêmula. —
Você está tão... linda!
Sinto meu corpo inteiro começa a tremer, meus olhos inundam de
lágrimas. Quando saí de casa, eu era apenas uma menina que tinha acabado
de completar dezoito anos. Fui embora sem me despedir, sem agradecer por
ela ter tentando me proporcionar uma vida confortável. Fui tão egoísta que
não me dei conta de que ela também sofria, dia após dia se afogando no
fracasso e na tristeza, sendo abusada e agredida por James assim como eu.
Fomos vítimas de um monstro, nos trancando em um mundo destrutivo,
recusando ver além das muralhas.
Quando tentei lhe contar o que ele fazia, ela recusou a acreditar... a me
ouvir. Minha alma pedia por ajuda, eu era uma criança. O vazio dentro de
mim foi devastador, me corroendo durante anos.
Quantas vezes eu a odiei... não conseguia nem olhar para seus olhos,
repleta de vergonha e mágoa, porque eu estava sofrendo sozinha, chorando
sozinha, despedaçando na solidão e a única coisa que eu queria, era o abraço
da minha mãe.
— Eu... — Tento falar, mas minha voz falha, fecho os olhos por alguns
instantes. — Fui tão machucada que tenho medo de ficar perto das pessoas,
perdi a confiança na humanidade, em homens e qualquer um que se
aproxima, porque minha mente sempre me leva para as suas ações... eu era
apenas uma criança, mãe! — Confesso, batendo em meu peito. — Era só
você sair, que James fazia aquilo, era doloroso, nojento...
— Filha... — Vejo através dos seus olhos a culpa a corroendo.
— O que eu fiz de errado? — Pergunto. — Por que ele fazia aquilo
comigo, mãe? Por que você não me protegeu? — O rancor que sinto é tão
grande que começa a me sufocar.
— Me perdoa... perdão por a ter negligenciado... eu... — Ela para de
falar, devastada demais pela culpa para encontrar as palavras certas que
justifiquem seu erro.
— Sinto tanta raiva por não ter conseguido me defender... Me sinto
culpada, mãe! — Ela balança a cabeça, inconformada. — Fui na delegacia, eu
ia denunciar, eles não quiseram acreditar em mim e acabei desistindo da
denúncia.
— Você contou, mas...
— Você estava enterrada no álcool e nas drogas para perceber que sua
filha vinha sendo abusada pelo homem que prometeu ser um pai para mim,
que prometeu cuidar da nossa família. — Falo com raiva.
— Fui cega, filha, me afoguei no assombro do fracasso, porque eu
queria te dar uma vida digna, que tivesse orgulho de mim e não fosse
conhecida como a “filha de uma prostituta”.
— Nunca me importei com isso, mãe! — Ela se aproxima.
— Mas eu sim. Essa realidade me doí a todo instante, uma dor
sufocante. — Mamãe para à minha frente, olhando para dentro dos meus
olhos. — Eu entendo o que você passou, do que sente, porque eu passei por
isso... eu fui... — Ela fecha os olhos e inspira fundo, tomando coragem. —
Você nasceu através de um abuso, Lauriana.
Fico encarando-a, meu sangue gela ao mesmo tempo sinto que meu
coração não vai aguentar essa revelação.
— Fui gravemente abusada por um dos clientes, um mês depois
descobri que estava grávida. Comecei a buscar meios para interromper a
gravidez, mas um dia passando pela praça da cidade, presenciei uma mulher
com seu bebê, e aquele brilho nos olhos daquela mulher mexeu comigo.
Quando fui fazer o primeiro exame e escutei seu coração, tive a certeza de
que jamais poderia tirar meu bebê. — Ela ergue a mão e traça os dedos
trêmulos por meu rosto, fico imóvel sem saber como reagir. — Você foi a luz
para minha escuridão, jamais poderia lhe contar essa parte suja da sua
história, mas eu te amei desde sempre. Você se tornou uma rocha, mesmo me
afundando na desgraça, fechando meus olhos para tudo o que acontecia, era
em você que me segurava.
— Mãe... — Murmuro, segurando meu choro.
— Quando você foi embora... quando descobri o que ele tinha feito
com você, meu mundo explodiu de ódio, porque o que aconteceu comigo, se
repetiu com você e eu não te protegi. — Ela balança a cabeça. — Eu tentei
matá-lo, Lauriana, queria tanto ter conseguido, mas me trancafiaram em um
presídio, não me ouviram e deixaram que James se livrasse. A cada dia,
supria ódio por ele, e o que me sustentava era a única certeza de que um dia
você voltaria, que estaria em meus braços de novo, meu pequeno milagre.
— Ele está morto, mãe... — Confesso. — James me achou, e teve o fim
que mereceu. — Ela fica me encarando.
— Morreu? — Assinto. — Como?
— Por um policial. — Mamãe fecha os olhos, comprimindo os lábios
como se estivesse aliviada.
— Quando você me ligou... — Ao voltar a abri-los, noto um desespero.
— Eu senti tanta saudade... me perdoa, filha, perdoa por não ter cuidado de
você... — Solto um soluço, assentindo, porque tudo o que eu quero, é deixar
essa dor para trás e ter minha mãe de volta.
Sem esperar por mais nenhum segundo, vou para seus braços, ela me
segura tão forte que é como se tudo o que passei apagasse da minha memória.
Nosso choro é intenso, minhas pernas fraquejam e nós duas sentamos
no chão, sem desgrudar, uma nos braços da outra. Seu cheiro... seu calor...
era tudo o que mais desejava.
— Eu esperei tanto por esse momento, — ela conta, me abraçando mais
forte — que acho que estou vivendo um sonho.
— Não é um sonho... você está aqui comigo... — Murmuro entre o
choro.
Sentindo seu cheiro, me dou conta do tamanho da saudade que tanto me
machucou por anos. Perdemos muito ao longo da nossa caminhada, fugi sem
dar um adeus, culpando-a muitas vezes pelo que James fez.
Agora é como um resgate da nossa história, ela sempre esteve presente
na minha mente. Sempre que deitava, era minha mãe que eu reencontrava nos
mais belos sonhos.
Talvez eu esteja apenas sonhando, porque é somente nele que eu podia
a ter... somente em meus sonhos que podia sentir mais do que um simples
toque, onde meu coração ligava ao seu.
— Eu te amo, mãe... muito... muito...
— E eu mais que minha própria vida! — Ela me afasta, segura meu
rosto e começa a depositar beijos carinhosos. — Você voltou para mim, é o
suficiente para me reviver.
— Nunca mais vou te deixar, mãe... — Digo, segurando seu rosto e
sentindo seu calor. — Eu senti saudades! — Ela sorri e me puxa de volta para
seus braços, me embalando como se nada pudesse nos separar.
Sinto a brisa morna nos aquecendo, levando o frio para longe. A alegria
suavemente solene retorna em meu coração. Depois de tudo o que passamos e
lutamos, chega o momento em que tudo é esclarecido, as coisas são
compreendidas e o passado esquecido.
James não está mais aqui, sua morte não só me libertou, mas a minha
mãe também, tornando mais fácil me entregar ao perdão e permitir que eu
volte ao meu lar, para os braços da mulher que mais amo na vida, devolvendo
minha luz e a minha mãe.
Meu coração aperta ao ver a foto de Laura e Lívia no aeroporto que
Olesya enviou, um reencontro de mãe e filha. Era tudo o que faltava para que
minha pequena flor se tornasse completa.
Uma emoção me abate, infelizmente não poderei viver esses momentos
ao seu lado, mas estarei presente em seu coração, e é tudo o que preciso para
me sentir em paz, como se minha missão fosse essa, salvar a mulher que amo
da escuridão. Estou lutando contra a dor de nunca mais poder encarar seus
olhos azuis, de sentir seu sabor e de nunca mais poder tocá-la. Não quero
voltar para escuridão, mas percebo que ela faz parte de mim, é tudo o que
sou.
Respiro fundo e encaro a casa que parece mais uma fortaleza enquanto
espero. Nikita através do comunicador instruí todos os seus homens a agirem.
— Está na hora. — Nikita comunica, respiro fundo eliminando
qualquer sentimento que me faça recuar, minha decisão já foi tomada. — Tu
tens pouco tempo até a SBU chegar. Entre, faça o que deve ser feito e saia o
mais rápido possível.
Solto um suspiro longo com o coração batendo mais rápido, vibrando
contra meu peito como um trovão.
Por anos eu tentei me livrar desse destino de merda, pedindo ajuda,
esperando alguém me tirar desse buraco, lutando para não me tornar um
animal sádico sem sentimentos, mas foi em vão, essa luta foi perdida, deixei
que o obscuro tomasse conta de mim.
Laura conseguiu que eu enxergasse através das sombras, me mostrou o
poder do amor. Não estarei ao seu lado, embora eu esteja inconformado com
esse destino, ela me deu força suficiente para que eu sobreviva no inferno
daquela prisão.
Não consigo escapar dele, agora esse inferno me pertence, faz parte de
mim.
Abro a porta, hesito por alguns instantes antes de descer do carro. O
barulho da luta e dos tiros aumentam, tenho muito pouco tempo.
Me inclino e prendo meus olhos nos de Nikita, eles estão ansiosos e ao
mesmo tempo calmos.
É a sua vingança e eu sou o meio para que isso se concretize.
— Tu estás se esquecendo disso. — Ele estende o capuz, nego com a
cabeça.
— Cumpra com a sua promessa. — Digo, me despedindo em silêncio.
— Não espere por mim! — Fecho a porta e saio andando.
— Ei! — Nikita me grita, paro e olho para trás. — Meus homens
estarão te esperando para te levar para longe daqui.
— Mande-os para casa. — Falo, ele fica me encarando. — Não irei
fugir.
— Não foi esse o combinado, garoto!
— Nem tudo é o que planejamos. — Nikita se afasta do carro,
franzindo a testa. — Obrigado por tudo o que fizeste por mim.
— Que isso... — Ele ri. — Vamos manter o plano.
— Quando eu entrar, voltarei para meu lugar... — Nikita vira o rosto ao
escutar ao longe o barulho das sirenes que não nos deram descanso.
Ele volta a me olhar, inquieto, como se lutasse contra si mesmo para
esquecermos toda essa história de vingança, porém não é apenas a sua, é a
minha também, porque o homem que está dentro daquela mansão, foi o
mesmo que me condenou.
Sorrio em despedida e sigo meu caminho.
Retiro a pistola das costas, certifico de que está carregada e entro na
mansão. O que irei fazer me condenará para sempre e isso destroça meu
coração, transformando meus sonhos de estar ao lado de Laura impossível.
Você me deve uma vida...
Ele a matou na minha frente...
Permito que a frieza me preencha, que o maníaco da rosa retorne.
Caminho pelos corredores e subo as escadas, tudo ao meu redor passa com
lentidão, homens sendo mortos e rendidos por bandidos de Nikita.
Tudo vira uma bagunça, explodindo aos poucos.
Paro em frente a porta do seu escritório, engatilho a arma e chuto-a, a
escancarando. Entro, percorrendo todo o lugar vazio, chego até a mesa e olho
para baixo.
Com dedo no gatilho, encaro seus olhos, aqueles que me condenaram
mesmo sabendo da minha inocência.
— Lembra de mim, juiz Adam? — Ele franze suas sobrancelhas
encolhido debaixo da mesa e com o rosto pálido. — Lembra daquele garoto
que ajoelhou aos pés pedindo ajuda para livrá-lo das acusações de
assassinato? Lembra de como o tratou?
Adam parece confuso, até encarar meus olhos com mais atenção. Sorrio
quando vejo em sua face o reconhecimento.
— Eu voltei, mas em nome de Nikita Ivashcenko. — Ele arregala os
olhos. — Venho cobrar a dívida.
— Não faça isso, sou um DE, tu irás apodrecer na cadeia. — Adam
diz, apavorado, o que desperta em mim a vontade de gargalhar.
— Não se preocupe, você já garantiu isso há catorze anos atrás.
Dentro da prisão vivi uma vida perigosa, me tornei um assassino,
aprendi a trancafiar meus sentimentos, a não ter misericórdia. Aprendi a ser
frio e a me pôr de pé, sempre correndo contra a maré.
— Ah, ele me pediu para dizer as seguintes palavras. — Aponto a arma
em sua cabeça, encarando o fundo de seus olhos. — Que você apodreça no
quinto dos infernos.
Me sinto imbatível, como fogo queimando tudo por onde passa. Eles
me transformaram nisso, estou aqui para tirar a vida do homem que me tirou
a liberdade.
Me inclino, puxo-o pelo colarinho e o coloco sentado em sua cadeira.
Dou dois passos para trás de costas para porta, esperando o momento certo,
encarando seus olhos apavorados, sentindo prazer do seu medo.
Adam implora para que o liberte, digo em um sussurro o nome de sua
filha, ele fica imóvel, ainda mais pálido que antes. Escuto passos e gritos de
ordens do andar de baixo.
Nada pode me parar hoje à noite, todos temos uma escolha, eu fiz a
minha, me transformei em uma tsunami deixando apenas destruição pelo
caminho.
Aperto o gatilho. O barulho do disparo se torna uma canção... um
rugido de vitória e de condenação.
— PARADO, AQUI É A POLÍCIA! — Fecho os olhos por um
segundo. — LARGUE A ARMA E LEVANTE AS MÃOS!
Adam inspira uma última vez, observo seus olhos perderem o brilho,
sangue escorre por sua testa. Levanto as mãos em rendição e solto a arma que
cai no chão.
— De joelhos com as mãos na nuca onde posso vê-las! — Faço como o
ordenado.
Escuto passos se aproximando, um dos policiais vestido de preto,
encapuzado e armado se aproxima de Adam, dando um sinal de que ele está
morto.
Um deles para à minha frente, levanto a cabeça quando aponta uma
pistola na minha testa. Ele retira o capuz e me encara com seus olhos frios.
— Ruslan Rotam, tu estás preso por assassinato. — Mirom declara. —
Tu tens o direito de permanecer calado ou tudo o que disser poderá ser usado
contra ti no tribunal.
Sorrio com suas palavras que selam meu destino.
Estou de volta com minha única companhia, a solidão. Passar os dias
trancado em uma cela, sem tv, apenas costurando para ganhar algumas
migalhas de dinheiro para comprar alguns livros nunca, foi tão tedioso como
agora.
As horas parecem mais longas que o normal, algumas vezes me
encontro agoniado, com pensamentos agitados com medo de um dia
adormecer e esquecer do seu rosto e de todos os momentos que me fazem
manter de pé.
Quando meus pensamentos me levam para um caminho sem saída,
prestes a desistir de tudo, é nela que me apego... é seu sorriso que me puxa
para superfície.
Olho as nuvens se amontoarem, o sol ainda não consegue aquecer meu
rosto, estou congelado, frio por dentro. Fomos destinados a não ficarmos
juntos.
Queria que tudo fosse diferente...
Coloco o antebraço sobre meus olhos, mergulho nas lembranças e me
direciono até Laura. Não quero desparecer, eu só quero poder voltar para seus
braços, sentir o calor de seu corpo e o sabor dos seus lábios.
Quero me sentir completo outra vez, a dor daquilo que não pudemos
viver me corrói, e atrás das grades vi o tempo passar, enquanto os dias se
tornaram meses, e os meses se tornaram um ano.
Como ela está agora?
Sinto saudades...
Meses depois de eu ter voltado, minha mãe foi condenada à prisão
perpétua, as acusações dos seus assassinatos contra mim foram retiradas,
diminuindo minha pena para quarenta anos de prisão.
Segundo eles, os assassinatos que cometi dentro da cadeia foram
cumpridos com os catorze anos que fiquei aqui, ou seja, esses quarenta anos é
pelo assassinato de Adam.
Sobressalto quando o guarda bate nas grades me chamando atenção.
— Seu tempo acabou, Ruslan, levante-se! — Com uma respiração
funda, me levanto do chão e vou até ele, virando de costas para poder me
algemar.
— Meia hora é pouco para meu banho de sol. — Reclamo, Volodymyr
segura meu braço e me guia pelos corredores.
— É o suficiente para você. — Retruca, carrancudo.
— Onde estamos indo, senhor? — Olho para ele que se mantém
impassível.
— Ande Ruslan, sem perguntas.
Sou levado até a sala do psicólogo, estranho porque não é o dia da
minha sessão... ou é?
Volodymyr abre a porta e me coloca sentado em frente à mesa de Olek,
que me encara por cima de seus óculos, recostado na cadeira e com as mãos
cruzadas, repousadas na sua grande barriga me avaliando minuciosamente.
— Boa tarde, Ruslan. Como estás? — Pergunta, fico olhando para seu
rosto rechonchudo, seus cabelos estão mais grisalhos do que da última vez
que o vi, mês passado.
Dou de ombros em resposta, me recostando na cadeira.
— Sua saúde está perfeita. — Ele aponta para os exames que fui
obrigado a fazer. — Gostaria de te colocar junto com outros detentos, viver
solitário não faz bem para sua mente.
— Não me dou bem com pessoas.
— Percebi isso quando esfaqueou Klim. — Abaixo a cabeça, sem me
importar com esse fato, porque o filho da puta me provocou durante dias até
eu não suportar mais. — Sua pena pode aumentar por tentativa de
assassinato, mal comportamento e pegaria mais alguns anos de prisão.
— Tu achas que tenho esperança de um dia sair daqui? — Pergunto,
erguendo a cabeça e fixando meu olhar no seu.
— A esperança só acaba quando seu coração para de bater. — Diz, se
inclinando sobre a mesa.
Arqueio uma sobrancelha, comprimo meus lábios e lanço um olhar
entediado em sua direção. Olek respira fundo e se levanta sem se abalar.
— Por que recusou todas as visitas, Ruslan? — Não respondo, começo
a balançar minha perna já irritado com suas perguntas. — E as cartas, porque
não leu?
— Não tenho interesse em saber o que está acontecendo lá fora.
— Medo de não poder mais suportar a solidão? — Ele para diante de
mim com um olhar avaliador. — De sentir vontade de sair daqui? De ser
livre?
— Sim — respondo, Olek assente.
— Não tiro sua razão, estar trancafiado aqui é realmente lamentável,
porém, cada um que está aqui fez alguma escolha errada. — Ele fica me
olhando por um longo tempo, tempo demais para me deixar incomodado.
Olek se afasta, saindo da sala sem dizer nenhuma palavra. O silêncio
toma conta, balanço a perna querendo voltar para minha cela.
Inclino a cabeça para trás, encaro o teto enquanto espero por Olek que
está demorando a voltar, instigando minha curiosidade. Percorro os olhos por
sua mesa e os prendo na pistola ao lado dos exames.
Talvez essa seja a única chance que terei para acabar com tudo. Que
diferença faz se eu morrer agora ou daqui a quarenta anos? Não sairei da
cadeia com vida mesmo, qual o sentido de continuar respirando?
Entretanto, dias antes da minha fuga, eu facilmente tomaria essa
decisão de acabar com tudo, assim como tentei inúmeras vezes, não teria
ninguém chorando por mim, ninguém se importava se eu estava morto ou
vivo, talvez a Olesya fosse a única a chorar por mim.
Então qual o sentido? Inclino-me um pouco, fitando a arma, me
relembrando do rosto de Laura, ela ficaria arrasada. Mas e se ela estiver
acorrentada a mim? Se mesmo eu estando aqui, esteja a impedindo de seguir
sua vida?
Qual o sentindo de permanecer vivo?
Inspiro fundo e fecho meus olhos, mantendo minha mente sã e
eliminando esses pensamentos que querem me levar a tomar uma decisão...
— Se matar seria um ato de covardia ou de coragem? — Meus
pensamentos congelam ao escutar sua voz. — Eu escolheria covardia! —
Escuto passos se aproximando, ele passa por mim e se senta no lugar de
Olek, relaxado enquanto me encara com seus olhos gélidos.
— Acredito que seja um ato de coragem, Mirom. — Ele sorri.
— Fugir de seus problemas nunca é a solução.
— Mas se livrar da dor que corrói, do tormento da nossa mente dia
após dia é algo que ninguém irá entender. — Digo, apontando para minha
cabeça. — Os pensamentos não se calam, as lembranças nunca vão embora,
são como demônios.
— Certo! — Ele ri, como se isso fosse piada, como se a minha dor
fosse piada.
— Tu queres isso, não quer? — Seu sorriso desaparece no momento
em que as palavras saem da minha boca. — Queres que tudo se cale, mas é
covarde demais, estou errado? — Mirom umedece os lábios e me olha,
esboçando aquele sorriso que desperta raiva em qualquer um.
— Tu estás deplorável! — Declara, recostando na cadeira e colocando
as pernas em cima da mesa, mudando completamente o rumo da conversa.
— O que faz aqui? — Pergunto, estreitando meus olhos.
— Uma visita de rotina, já que é difícil tu aceitares uma. — Ele fecha
os olhos com uma tranquilidade irritante.
— Pensei que nunca mais te veria, e aqui está, na minha frente.
— Nunca é tempo demais. — Responde, soltando um suspiro
impaciente.
— Desembucha logo, cacete! — Mirom ri, no instante seguinte, Olek
adentra na sala e coloca um documento à minha frente, sem dizer nada, ele se
retira, nos deixando sozinhos outra vez.
— Fiquei sabendo que tu esfaqueaste um detento e entrou em uma
briga com mais cinco. Tu és um perigo para sociedade. — Mirom me olha
com tédio.
— O que isso significa? — Aponto com o queixo o papel com uma
caneta em cima, os olhos de Mirom descem até ele.
— Tu já sabes quanto tempo está aqui?
— Quinze anos? — Mirom me lança um olhar frio. —
Aproximadamente um ano. — Respondo, ele assente.
— Pois bem, — Mirom arrasta as chaves da minha algema — essa é a
chave da sua liberdade. — Fico o encarando com o cenho franzido.
— Como dizes?
— Sua filha precisa de ti, e acredito que já tenha passado tempo demais
aqui dentro. — Fico o encarando, congelado. Suas palavras dançam em
minha mente como um emaranhado de linhas. — Esse documento é sua
liberdade, assim que tu assinares, é um homem livre.
Sua filha precisa de ti....
Sua filha...
Minha filha...
Fico sem reação quando as palavras se organizam em minha cabeça,
sinto choque percorrer meu corpo e se alojar em meu coração.
— Como... dizes? — Mirom sorri, se levanta e para atrás de mim.
— Infelizmente eu lutei durante todo esse tempo para tirá-lo daqui,
então me agradeça sem fazer perguntas de como consegui. Agora assina sua
liberdade e vá viver o que lhe foi tirado.
Pego a caneta assim que ele solta as algemas ainda abalado com suas
palavras. Fico encarando o alvará de soltura que me concede a liberdade que
tanto sonhei. Sem perder mais tempo, assino o documento e me levanto.
— O que quis dizer com filha? — Mirom fica me encarando.
— Não quis dizer nada, foi apenas para mexer com sua mente doente.
— Responde, se virando e indo até a porta. — Te espero na saída, tu ainda
precisas seguir o protocolo. — Falando isso, Mirom sai me deixando sozinho
totalmente atônico.
Depois de algumas horas torturantes, finalmente os portões são
abertos para que eu possa passar por eles. Meu coração bate acelerado
incapaz de acreditar que estou livre para sentir e viver aquilo que fui privado
por tantos anos.
Estou segurando minhas emoções, ainda achando que isso é uma
armadilha de Mirom. Fecho meus olhos, inspiro fundo e aperto minhas mãos,
segundos depois coloco os pés para fora do Colony 100.
Cruzo os portões, incrédulo. Viro para trás, encarando a construção que
por anos foi minha casa, me separando do mundo real.
Os portões se fecham, meu coração salta e meus olhos queimam de
emoção. Consigo sentir o peso da minha liberdade no bolso em um papel
delicado que se transformou em algo tão precioso que sou incapaz de
descrever o que estou sentindo.
Estou livre? Eu realmente estou livre?
Viro-me para frente, dando de cara com Nikita recostado em um carro
escuro com os braços cruzados, me encarando com um sorriso escancarado.
— Céus, tu estavas definhando dentro dessa merda! — Diz, estalando a
língua. — Bem vindo de volta, garoto! — Ele vem até mim, me puxando para
seus braços, retribuo sem palavras para expressar esse momento.
— Se tu fizeres merda, serei eu quem te colocará de volta atrás das
grades. — Olho para o lado assim que Nikita me solta.
Mirom está inclinado no seu jipe, fumando enquanto encara o presídio.
Ele me olha e sorri com sinceridade.
— Não cruza o meu caminho, não me procura, para você eu não existo.
— Diz, jogando o cigarro no chão e abrindo a porta, Mirom hesita por um
instante e me olha. — Bem vindo de volta, Ruslan! — Assinto em
agradecimento, ele me fita por mais alguns segundos antes de entrar em seu
carro e partir.
Volto a encarar o Colony 100, relembrando todos os anos em que vivi
aqui. Dos momentos de isolamento, das vezes em que me trancafiaram na
solitária, dos dias em que pensei que não teria mais força para suportar... Mas
sobrevivi a tudo isso, consegui provar minha inocência e além de tudo,
descobri a verdadeira felicidade, do poder de ser amado, de ser ouvido e
jamais esquecido.
Lágrimas escorrem por meu rosto. Entrei como um garoto e estou
saindo como um homem prestes a explorar o que o mundo tem a oferecer,
deixando todo o passado para trás.
— Onde queres que eu o leve? — Nikita pergunta ao meu lado,
encarando o presídio, sabendo perfeitamente que foi dentro desses portões
que perdi sonhos.
Fecho meus olhos e inspiro fundo com um único destino...
— Me leve para casa. — Respondo, sorrindo e ansioso para finalmente
ter a mulher que amo em meus braços para sempre.
A sensação de não ter para onde ir, de sofrer a vida toda em silêncio,
fugir de qualquer sentimento que ainda possa existir dentro de mim, era
como correntes presas em meus pulsos.
Meu nome é Lauriana Silva da Souza, fui abusada sexualmente pelo
meu padrasto dos meus sete anos até minha adolescência.
Na época, eu nem sabia direito o que era sexo. Ele vinha fazendo
aquilo comigo havia um tempo, e eu não entendia o que significava. Ele se
sentia dono do meu corpo. Me tocava, tirava minha roupa e depois de tanto
lutar, eu me encontrava completamente entregue às suas ameaças.
O desespero era vivo, pulsante e terrível. Depois do ato, enojada,
ficava horas no banho tentando me limpar, me sentia suja... Na frente dos
outros, meu padrasto agia como se nada tivesse acontecido, era um homem
bom, sorridente, com vários amigos, e dentro de casa, um verdadeiro
monstro.
O meio de sobrevivência que encontrei foi, justamente, me silenciar. Eu
não tinha coragem de falar, de alguma forma eu me sentia culpada e a
causadora da situação.
Sempre usava roupas largas para tentar esconder ao máximo meu
corpo, fazendo-me anular como pessoa, afastando quem pudesse querer
amizade. Porém, de uma coisa eu tinha certeza, seria os estudos que me
tirariam do inferno em que eu vivia. Essa era a minha única esperança.
O medo, a angústia e todo o nojo que sentia moldaram a mulher que
me tornei. As consequências do abuso sexual causaram uma ferida tão
grande, que só restou dor por ter sofrido em um período onde uma criança
só deveria brincar. Toda vez em que minha mãe saia, na calada da noite, ele
ia atrás de mim. Meu coração sufocava de pavor e a minha única reação
eram as lágrimas.
Era apavorante demais, ele ameaçava matar minha mãe se eu contasse
a alguém, toda vez que eu apresentava certa relutância contra os abusos, ele
a agredia fisicamente. Eu vivia no inferno, com um homem que prometeu
cuidar de mim como um pai e com uma mãe alcoólatra.
O abuso é real, muitas vezes existe dentro de casa. Dei sinal do que
estava acontecendo, mas ninguém prestou atenção. Eu apanhava, ele deixava
marcas internas, o ato era doloroso e quanto mais eu crescia, mas violento
ele ficava.
O ódio dentro de mim me fez reagir, tentei denunciar duas vezes, a
primeira me senti tão acuada que desisti. Na segunda, ele me encontrou
antes, pensei que nesse dia eu morreria. Então só tinha uma saída, estudar,
conseguir uma bolsa para fora do Brasil e fugir.
As marcas do abuso, com o passar do tempo, ficaram mais severas,
não suportava ser tocada, perdi a confiança no ser humano e me mantive
reclusa. Mesmo fazendo tratamento psicológico, eu ainda me via presa no
passado.
Mesmo me tratando, em minha cabeça, eu nunca conseguia superar.
Mas eu não desisti, eu queria tentar... eu merecia ser feliz depois de ter
percebido que não era a culpada pelos abusos, e sim, uma vítima.
Meu coração estava destroçado... despedaçado ao ponto de ninguém
ser capaz de consertá-lo, até que o amor invadiu minha casa, pedindo por
ajuda, seus olhos perturbados, pediam por socorro e eu permiti... permiti que
entrasse.
Esse amor foi a cura das minhas feridas, mostrou o quanto é bom ser
amada. Me tornei o centro do seu mundo, pude sorrir sem medo mesmo que
nosso tempo tenha sido pouco, ainda assim, foi o suficiente para eu me
redescobrir como mulher.
As marcas do abuso são como uma tatuagem, nunca serão apagadas,
estão impregnadas na alma. Sei que terão dias que serão mais difíceis, que
lágrimas irão escorrer por meu rosto pela inocência arrancada, pela
infância que não pude viver e da adolescência que nunca pude aproveitar.
Continuarei a não suportar ser tocada e a confiar menos nas pessoas, e isso
vai doer muito. Só que dessa vez, a dor será menor, as cicatrizes
permanecerão em meu coração e muitas vezes, elas serão as responsáveis
pelo retorno das minhas piores lembranças.
Mas, sobretudo, terei forças para continuar.
Demorou anos para que eu pudesse falar sobre o que me aconteceu. Às
vezes, me pergunto como seria minha vida sem que minha mãe tivesse o
levado para casa, se tivéssemos vivido apenas eu e ela em nosso mundo, ou
se ela tivesse acreditado em mim.
Perguntas que nunca saberei a resposta.
Mães, não coloquem qualquer homem dentro de casa, não deixem seus
filhos com qualquer pessoa, ou ir para qualquer lugar, sempre acreditem
neles. Quando uma criança relata algo grave, ela nunca está mentindo. Você
é o seu porto seguro, é tudo o que ela tem. Preste atenção em seu
comportamento, qualquer sinal, pode indicar que há algo errado. O abuso
existe e com ele vem grandes marcas das quais são incuráveis.
E para você, que assim como eu, foi abusada, te digo que há
esperança, podemos superar essa dor e com ajuda, podemos tornar essa
carga menor. Não temos culpa do mal que nos fizeram. Não se calem, não
permitam que te destruam dessa maneira, tenham coragem e denuncie.
Nós podemos ter um final feliz. Somos fortes e temos direito à justiça,
somos donas de nós mesmas e ninguém tem a permissão de nos tocar sem
nossa permissão. Juntas, somos capazes de vencer esse mal.
E como uma rosa solitária, desabrocharemos em um lugar cheio de
amor e carinho... tenha fé, acredite, o fardo é menor quando compartilhamos
com o outro... e quando menos esperar, um sorriso florescerá em seu rosto,
mostrando que um novo amanhã chegou.
Laura, colunista do Jornal AS – Kharkiv
Aperto o enter para enviar a matéria para Andry com meu rosto
molhado pelas lágrimas. Dói saber de tudo o que James tirou de mim, da vida
que eu poderia ter levado sem que ele tivesse entrado em nosso caminho e
destruído tudo.
Ainda tenho pesadelos a noite, mesmo tendo certeza de que está morto,
percorro a casa toda manhã em busca de algum intruso, sinto repulsa ao toque
e não consigo confiar muito nas pessoas, mantenho apenas meus amigos.
É algo que jamais superarei, porém, agora, é muito mais leve do que
antes, consigo manter minha mente controlada e com a ajuda de Olesya,
consigo seguir em frente.
Ruslan nunca saiu do meu coração e todas as noites chamo por ele.
Choro por ele e sorrio por ele. Tentei mandar cartas, visitá-lo, mas ele nunca
me recebeu. Entendo os motivos que o levaram a fazer isso, ele não quer que
eu fique presa a um homem que não tem nada a me oferecer, mas o que ele
não sabe, é que ele me deu tudo o que precisava.
Tenho fé de que um dia possamos ficar juntos, nem que seja um único
dia antes do meu coração parar de bater, por isso, todos os dias eu rezo para
que Deus possa trazê-lo de volta.
Tem dias que são mais difíceis que os outros, que a dor é mais intensa
comparada aos dias anteriores... dias que desejo me encolher em um canto e
ficar definhando até que tudo um dia silencie de vez.
O que me impede de recair nas profundezas, são seus olhos verdes
como água rasas e cristalinas de uma alma pura que simboliza vida.
Abaixo a cabeça e encaro seu rosto de anjo, bochechas rosadas e pele
de porcelana. Seu cheiro é o que mais me enche de amor, que me fortalece
dia após dia. Por ela eu me torno mais forte a cada dia, o melhor presente que
Ruslan poderia ter me dado.
Quando ouvi seu coração bater pela primeira vez, tudo dentro de mim
explodiu, a incerteza, a insegurança e a incredulidade me abateram. Não me
movi por dez minutos.
Naquele momento eu me tornei uma mãe... uma mulher gerando outra
vida, e aquele pequeno ser, precisava de mim, mais do que qualquer um nesse
mundo.
Eu me tornaria mãe solteira, como seria capaz de cuidar de uma criança
sozinha? Logo eu, quebrada de todas as formas, como poderia me tornar
mãe?
Mas então, percebi a dádiva que me foi dada. Ruslan se foi, mas não
me deixou sozinha, e quando me dei conta de que teria um filho, meu mundo
explodiu em rosas.
Percorro meus dedos por seu rosto delicado. Quando a tive em meus
braços logo que nasceu, não pude segurar minha emoção. Ela se tornou meu
tudo, o centro do meu mundo, minha vida, o ar que eu respiro, o coração que
pulsa dentro de mim.
Chorei por não ter Ruslan ao meu lado, ele merecia vivenciar aquela
felicidade, a maior do mundo, merecia estar lá comigo, ele merece uma
família que o ame.
Solto um longo suspiro, reprimindo a dor da saudade.
Violeta... pequena violeta... minha pequena flor.
Ela se remexe em meus braços, fico imóvel temendo que comece a
chorar, mas a única coisa que faz é segurar meu dedo com sua mão.
Rony pula em cima do sofá e se aproxima dela, ficando perto e a
encarando como se estivesse vendo a coisa mais linda do mundo. Ele se
tornou tão protetor, que quando alguém além de mim e da minha mãe chega
perto dela, ele rosna ao ponto de avançar na pessoa.
Gana e Yaroslav tiveram a prova do seu ciúme, tive que segurá-lo para
que não os machucassem. Passo a mão em seus pelos escuros como a noite,
tão lindo...
Olho para frente quando mamãe entra na sala com uma caneca. Ela
sorri para mim, estendendo o chocolate que preparou. Agradeço dando um
gole, a bebida desce aquecendo meu corpo.
— Quando você nasceu, me deu muito trabalho também. — Diz,
pegando Violeta dos meus braços. — Sentia muita cólica, mas o problema é
que não queria sair do meu colo.
— Que nem Violeta? — Estico meus braços dormentes, aliviando a dor
de ter ficado horas segurando-a.
— Sim, que nem essa pequena chiclete. — Sorrio, observando-as.
— Mãe? — Ela me olha. — Hoje faz um ano... — Murmuro,
encarando a caneca com meus olhos queimando. — Dói muito saber que... o
pai dela não está aqui com a gente.
— Filha... — Levanto o olhar, encarando-a através das lágrimas.
— Eu não consegui tirá-lo de lá mãe... — Fecho meus olhos,
lembrando de todos os advogados que busquei e que não tiveram sucesso. —
Seu silêncio me dói tanto que não consigo aceitar, entende? — Respiro
fundo, voltando a acariciar Rony deitado em meu colo como se
compartilhasse a mesma dor que a minha.
— Acho que nada acontece por acaso, sabe? No fundo tudo tem sua
hora, nem sempre nossos planos coincidem com o momento que pensamos
ser o certo, embora nós não entendemos. — Assinto, me levantando assim
que a campainha toca.
Abro a porta encontrando Yaroslav e Gana parados com braços
cruzados. Percorro meus olhos por suas roupas, arqueando uma sobrancelha e
escondendo a surpresa de ter esquecido do compromisso que tinha com eles.
— Meus Deus... — Sussurro, olhando para minha mãe em busca de
uma saída, ela apena dá de ombros. — Perdoem-me! — Digo, voltando a
encará-los.
— Tu esqueceste? — Gana cruza os braços. — Yaroslav, é realmente
isso?
— Acho! — Ele responde, balançando a cabeça em reprovação.
— Violeta passou a noite em claro e o dia todo com cólica, estou um
caco. — Choramingo, me afastando para que eles entrem.
— Pois bem, Laura, te darei trinta minutos. — Diz, indo até minha
filha, Rony rosna para ela. — Mas que cacete, esse gato tá de brincadeira né?
— Ela se afasta assim que ele desce do sofá.
— Não se preocupe, ele me odeia também. — Yaroslav resmunga se
encolhendo.
— Rony é ciumento com Violeta. — Falo, colocando a caneca em cima
da mesa. — Será que posso remarcar o compromisso? — Gana me lança um
olhar indignado, sorrio sem graça.
— Nem morta. — Fala, apontando para as escadas. — Trinta minutos.
— Uma hora, porque tenho que arrumar Violeta também. — Pego
minha pequena dos braços da minha mãe.
— Ótimo! — Yaroslav se senta no sofá, olho para eles mais uma vez
antes de virar e subir os degraus.
— Dona Lívia, a senhora também. — Gana fala com calma para que
minha mãe possa entender, apesar de ter aprendido um pouco do Ucraniano,
ela ainda tem muita dificuldade de compreender muitas palavras, até porque,
não é uma língua fácil de aprender.
Um ano atrás, antes de Ruslan voltar para cadeia, ele me deixou esse
apartamento e quando o visitei pela primeira vez, fiquei admirada ao perceber
que é uma cobertura, muito luxuosa.
Uma hora depois dirijo em direção à Praça da Liberdade para uma
exposição de flores que Gana e Yaroslav insistiram que eu fosse.
Ajeito minha pequena no carrinho de bebê, cobrindo-a para que não
passe frio e olho para a praça enfeitada com luzes, flores de todas as espécies,
rosas de todas as cores e crianças correndo por todos os lados.
Meu coração aperta, Ruslan iria gostar de vir aqui, esse é seu mundo.
Gana e Yaroslav engatam em uma conversa, eu respondo o essencial,
prestando atenção em cada detalhe. Paro em frente à uma barraca
completamente enfeitada com rosas vermelhas, tão perfeita que meus olhos
marejam, pisco para dissipar as lágrimas da saudade.
Uma babushka com um lenço na cabeça vestida com roupas bordadas
me olha de dentro da barraca, sustento seu olhar que desce para minha filha
dentro do carrinho.
— Não se entristeça, ainda não é o fim. — Diz, me entregando uma
rosa com um sorriso lindo. — Não duvide do poder de Deus, criança. —
Aceito a rosa e saio andando com meu coração palpitando.
— Tudo bem, filha? — Mamãe pergunta ao meu lado, assinto e sorrio
para tranquilizá-la.
Paro para observar Yaroslav e Gana em uma barraca de flores violeta,
olhando para mim com sorrisos escancarados.
— Tu deste um nome perfeito a essa pequena. Olha que lindas! —
Gana ergue um vaso com violetas escuras com detalhes mais claros. — Eu
vou levar. — Ela diz, entregando para a babushka que agradece pela compra.
— Laura, venha aqui, precisas ver isto! — Yaroslav me grita, olho para
Violeta que remexe suas perninhas.
— Vá, eu fico aqui com ela. — Mamãe diz, assinto e vou até Yaroslav
desviando das pessoas pelo caminho.
— Estou embasbacado! — Sigo seu olhar ao parar ao seu lado, diante
de nós há uma barraca de margaridas das cores rosa, amarela e branca, meus
olhos brilham de tamanha perfeição.
— Magnífico! — Elogio, Yaroslav confirma.
— Vamos tirar foto da Violeta aqui, vai ficar linda, o que acha? —
Olho para ele, sorrindo.
— Uma flor em volta de várias outras, assim meu coração de mãe não
aguenta. — Ele ri. — Vou pegá-la!
— Vou esperar, porque vai que é só uma miragem?
— Claro que não, Yaroslav! — Repreendo batendo a rosa em seu nariz.
Quando viro para ir até Violeta, paraliso ao ver um homem agachado
em frente ao seu carrinho. Meu sangue gela, olho para os lados em busca da
minha mãe e de Gana.
Como minha mãe pôde deixar minha filha com uma pessoa
desconhecida?
Engulo meu medo e dou um passo à frente, pronta para afastá-lo da
minha bebê, mas então paro outra vez, congelando quando ele se levanta e se
vira, cravando seus olhos nos meus.
Não consigo ver seu rosto por conta do capuz, minhas mãos começam a
tremer e meus olhos se enchem de lágrimas observando-o tirá-lo, tudo ao
meu redor se silencia.
Durante um ano lutei para tê-lo de volta, fiz de tudo para que a
esperança não desaparecesse, que os pensamentos que insistiam em dizer que
ele não voltaria me libertasse... que me deixasse.
Não fui capaz de aceitar seu adeus, tenho o direito de tê-lo ao meu lado
depois de tudo o que passamos, de lutar para que isso aconteça, porque eu sei
que no fim valerá a pena, que a dor que sinto desaparecerá.
Muitas noites longas, deixaram-me sem forças para continuar. E através
dos sonhos eu via seu rosto, me devolvendo a esperança e me dando motivos
para continuar.
Será que é mais um sonho?
Dou um passo vacilante em sua direção, incapaz de dizer qualquer
coisa, não tenho palavras.
— Te encontrei... — Ruslan diz, fecho meus olhos sentindo sua voz
percorrer cada parte do meu corpo, se alojando em meu coração.
Se for um sonho, por favor, que seja eterno.
Volto a abri-los, percebendo o quanto está perto com o olhar fixo no
meu. Tenho tantas perguntas, mas só quero ter certeza de que ele realmente
está aqui.
Abro a boca para perguntar, mas Ruslan me cala ao segurar minha nuca
e levar-me para seus lábios. Meu coração explode ao sentir seu calor e seu
sabor, seguro seu rosto beijando-o como se nada no mundo fosse capaz de
nos separar outra vez.
A maneira com que me beija, com que me segura me tira todas as
dúvidas de que possa ser um sonho, é real, ele está aqui comigo e toda essa
luta termina aqui, vencemos o que tendia a nos separar.
Ruslan desvencilha dos meus lábios, encostando a testa na minha, sua
respiração acelerada se mistura com a minha. Fecho meus olhos,
memorizando seu toque.
— Você voltou...
— Te encontrar era minha missão, meu destino é pertencer a você. —
Mordo meu lábio inferior, segurando o choro.
— Senti tanta saudade... — Olho para seus olhos verdes que foram
capazes de me salvar da solidão.
— Eu também, estava definhando... — Murmura, segurando meu rosto
e afastando meus cabelos. — Sou um homem morto sem ti, Laura.
— Você permaneceu em meus sonhos, no meu sorriso e na certeza de
que um dia iriamos ficar juntos. — Limpo suas lágrimas. — Você está livre?
— Sim...
— Co-omo? — Ele sorri, entrelaçando os braços por minha cintura.
— Mirom... só não me pergunte como, não faço ideia. — Fico olhando
para Ruslan.
— Ela é a sua cara... — Seus olhos brilham. — Violeta... pequena
Violeta... sua pequena flor... — Ruslan solta uma risada tão linda que
lágrimas caem por meus olhos.
— Minha filha... nossa pequena? — Pergunta sem acreditar, assinto, o
empurrando em direção ao carrinho, ele se vira e agacha, afastando os
cobertores para poder ver melhor sua filha.
— Quando Mirom disse que eu tinha uma filha, tudo se calou, depois o
babaca disse que tinha mentido. — Ruslan a pega e eu o ajudo a segurá-la da
forma correta, ele ri através do choro. — Nikita confirmou, eu... eu não sei o
que sentir, é uma emoção tão grande que não sei se cabe em meu coração.
— Esse amor não tem explicação... — Digo, ele me encara com Violeta
em seus braços.
— Eu estive me perguntando por muito tempo o significado de tudo o
que estava acontecendo comigo, tentando entender meu destino, mas agora
acredito que tudo aconteceu para que meu caminho cruzasse com o seu... com
um propósito. — Ruslan se aproxima, fitando o fundo dos meus olhos. —
Propósito esse de te devolver a vida. — Sorrio.
— Quando você invadiu minha casa, Ruslan, no instante em que tomei
a decisão em te ajudar, esse foi o momento em que nosso destino foi traçado.
— Ele fica me olhando, até ser atraído para Violeta que remexe em seus
braços, prestes a chorar.
— Ei, é o papai! — Ruslan sussurra, lavando-a para o seu peito. —
Estou aqui, pequena flor, para te proteger de todo mal... — Sorrio,
emocionada e sem acreditar que isso está acontecendo. — Eu daria minha
alma para voltar atrás... — Ele fala, voltando a me olhar. — Reviveria tudo
outra vez se significasse te salvar da escuridão. Eu voltaria e então você
estaria em meu caminho de novo.
— Eu te amo... — Murmuro, encostando a testa na sua.
— Obrigado... Obrigado por me fazer o homem mais feliz do mundo,
amo-te. — Ruslan roça os lábios nos meus, Violeta solta um suspiro, nos
fazendo sorrir.
Vivemos por anos na dor, tivemos nossas almas quebradas e nos
decepcionamos, vimos o horror no inferno de nossas vidas, mas conseguimos
vencer o mal que nos torturava.
As cicatrizes permanecerão como lembranças, tudo acabou, chega de
lágrimas, estamos juntos agora. Ruslan está aqui, com a família que formou e
nada no mundo será capaz de nos separar.
Violeta, me olhando logo em seguida. Vejo em seus olhos tudo o que tivemos
que passar até chegar aqui, e esse não é o nosso fim, mas o começo de uma
nova história.
Escrever esse livro foi um desafio tratando de um tema tão delicado,
Laura e Ruslan me tocaram de uma forma tão única que nem sei explicar. Me
deram uma lição de força e superação, me levando muitas vezes aos prantos,
sem conseguir me pôr no lugar dos dois.
E nada disso teria acontecido sem a ajuda da Carina Barreira, que a
cada capítulo vibrava, me incentivava, apontava os erros e onde eu deveria
consertar. O final foi reescrito umas três vezes até acertarmos o desfecho
perfeito para o vilão.
Obrigada amiga, por estar comigo em mais uma obra, nada disso seria
possível sem sua ajuda, sem seus e-mails de madrugada e sem seus puxões de
orelha.
Outra pessoa que devo meus agradecimentos é a Mariana, minha
amiga, que me escutou quando decidi escrever Intensa Paixão, ouvindo
minhas ideias, me ajudando a encontrar o vilão, me incentivando e
motivando.
Mariana, nada disso teria acontecido sem ter você ao meu lado também,
obrigada por tudo.
Carina e Mariana, eu amo muito vocês.
Agradeço a Deus por tudo o que está fazendo em minha vida, por ter
me ajudado a criar essa história, tentando ao máximo trazer uma trajetória
tocante, poética e que desse significado. Era ele que eu pedia para ficar ao
meu lado todos os dias, às 03:00 da manhã quando começava a escrever,
juntos criamos a história de Laura e Ruslan. Pai, obrigada por estar ao meu
lado, escutar minhas reclamações, sei que às vezes até revirava os olhos para
os meus dramas, por enxugar minhas lágrimas, mas sobretudo, por estar
sempre me ajudando a levantar e superar meus medos.
Agradeço à minha família, namorado, meus irmãos, meus pais por
sempre me apoiarem. Aos meus leitores fiéis, aos bookstagram por
resenharem minhas obras e por ajudarem divulgando para que mais pessoas
possam conhecer minhas histórias. Aos leitores do wattpad que me
incentivam sempre com seus votos, leituras e comentários, e a você que leu
Intensa Paixão e que está lendo esse agradecimento.
"Viva, pequena flor, como se fosse o último dia.
Floresça e seja um jardim eterno...”
E com essas palavras me despeço de você com meu coração repleto de
gratidão.
... É acreditando nas rosas que a fazemos desabrochar, acredite em você e desabroche...
Até o próximo!
[1]
Aciaria é a unidade de uma usina siderúrgica onde existem máquinas e equipamentos
voltados para o processo de transformar o ferro gusa em diferentes tipos de aço.
[2]
Moeda Ucraniana
[3]
Casa noturna
[4]
SBU – Serviço de segurança da Ucrânia – é a principal agencia de segurança do governo nas
áreas de atividade contra espionagem e combate ao terrorismo.
[5]
Borsch é uma “sopa” de vegetais de beterraba como ingrediente principal. Os Ucranianos
não se referem a borsch apenas como sopa, mas como uma das mais importantes entre as refeições.
[6]
Kompot é uma bebida não alcoólica originária da Rússia, mas popular na Europa de Leste,
que se prepara cozendo frutos, frescos ou secos, em um grande volume de água.
[7]
É um bolinho de massa feita de água, sal e trigo, recheado com carne, purê de batata e
muitos outros. É um prato muito comum no dia a dia Ucraniano