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© COPYRIGHT 2022 MARY DIONISIO

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Todos os direitos estão protegidos de acordo com a Lei Nº 9.610/98,
Art. 184 do código penal.

Revisão: Raianne Viana


Capa | Diagramação: Larissa Chagas
Leitura Sensível: Mariana Lima | CRM-PR: 47353, Nathiara Santos | CRP-
MG: 04/50345, Marcella M.
Leitura Beta: Caroline Kimura, Maria Clara Siqueira, Amanda Goes, Laura
Feitosa, Maria Fernanda Rodrigues, Livia Barbosa, Vitória Santos, Jéssica
Campos, Barbara de Oliveira
Ilustração: Eduarda Oliveira (@arda.arts)
Logo Irving: Maria Cláudia Schmidt

COMO EU NÃO ME APAIXONEI POR VOCÊ [recurso digital] / Mary Dionisio — 1ª


Edição 2022.
Avisos De Conteúdo & Notas Da Autora
Playlist No Spotify
Prólogo
Capítulo 1.1
Capítulo 1.2
Capítulo 2
Capítulo 3.1
Capítulo 3.2
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8.1
Capítulo 8.2
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12.1
Capítulo 12.2
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15.1
Capítulo 15.2
Capítulo 15.3
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20.1
Capítulo 20.2
Capítulo 21.1
Capítulo 21.2
Capítulo 21.3
Capítulo 22.1
Capítulo 22.2
Capítulo 23
Capítulo 24.1
Capítulo 24.2
Capítulo 24.3
Capítulo 25.1
Capítulo 25.2
Capítulo 26.1
Capítulo 26.2
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29.1
Capítulo 29.2
Capítulo 30.1
Capítulo 30.2
Capítulo 31.1
Capítulo 31.2
Capítulo 31.3
Capítulo 32
Capítulo 33.1
Capítulo 33.2
Capítulo 34.1
Capítulo 34.2
Capítulo 35.1
Capítulo 35.2
Capítulo 35.3
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40.1
Capítulo 40.2
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44.1
Capítulo 44.2
Capítulo 45.1
Capítulo 45.2
Capítulo 45.3
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Epílogo
Cena Extra
Crossover | Cheering Beside You
Agradecimentos
Redes Sociais
Sejam muito bem-vindos ao universo CENMAPV!
Como autora dessa obra, eu não poderia deixar de dar alguns
recadinhos e também deixá-los a par de quais tipos de conteúdos sensíveis
você encontrará nessa história.
Em primeiro lugar, prazer, eu sou a Mary, e este é o livro que celebra a
minha estreia no mercado literário. Minha ideia foi trazer um romance bem
clichê para aquecer seu coração e te distrair um pouquinho da loucura que
tem sido os últimos dois anos.
Caso ao final dessa leitura você se identifique com essa história, não
deixe de me seguir nas redes sociais para acompanhar tudo sobre os meus
próximos lançamentos, e também de avaliar esse livro ao final da sua leitura.
Além disso, caso você tenha acompanhado CENMAPV desde o
Wattpad, eu sinto em lhe dizer que muita coisa mudou desde que nos vimos
pela última vez, portanto, para não ficar perdido na leitura, eu recomendo
que você NÃO PULE AS PÁGINAS deste livro. Elas são cruciais para o
entendimento do enredo.
Você não irá encontrar, em meio ao conteúdo desta obra, cenas de
estupro ou qualquer outra forma de abuso sexual.
ATENÇÃO! Este livro PODE conter gatilhos para pessoas
sensíveis aos seguintes temas:
Cenas gráficas de consumo de álcool, drogas lícitas, ilícitas, sexo,
euforia causada por crises de pânico e ansiedade. Além disso, a obra
trata sobre alcoolismo funcional, luto, racismo e relações abusivas
(familiares e românticas).
O livro passou por leituras sensíveis para a publicação.
A história se passa na cidade de Nova Iorque, entretanto, a instituição
de ensino central da história, os veículos de imprensa, bem como
determinados estabelecimentos comerciais e os fatos históricos relacionados
a eles, são de origem fictícia, fruto da imaginação da autora e especialmente
idealizados para o universo da obra. Qualquer semelhança com a realidade é
mera coincidência.
A Irving University of New York foi criada exclusivamente para este
livro, bem como o Irving Lions, time de basquete da instituição.
O calendário, a configuração do basquete universitário, bem como a
formação das ligas e conferências, foram alterados para se encaixarem no
tempo em que acontece a trama.
Como Eu Não Me Apaixonei Por Você é um livro sobre erros e
evolução. É um romance “Academic Rivals To Friends To Lovers” e SLOW
BURN, portanto, há uma evolução gradual para o romance.
No mais, espero que vocês aproveitem e se divirtam muito
acompanhando a jornada desses personagens! Boa leitura!
P.S: Querido leitor, sua família não tem o direito de desrespeitar sua
existência. DNA não é passe livre para humilhação, manipulação e
chantagem. Você tem o direito de ser tratado com respeito em sua própria
casa. Não permita que te façam pensar o contrário.
Clique aqui se preferir :)
Para Marcella e Cheering Beside You, por
me lembrarem do porque eu amo escrever.

Para você, que tem monstros escondidos


debaixo da sua cama. Puxe o lençol e os encare de
frente.
“Ele tocou meu pensamento antes de chegar à minha cintura, meu quadril
ou minha boca, ele não disse que eu era bonita de primeira, ele disse que
eu era extraordinária.”

Como Ele Me Toca | Rupi Kaur


E agora estamos chorando e amando
E agora estamos brigando e tocando
Parece que estou fazendo amor com o inimigo
SMALL DOSES | Bebe Rehxa

Poucas coisas foram tão viscerais em minha vida quanto a raiva que eu
sentia borbulhar em minhas veias cada vez que ele me jogava suas piadinhas
e me direcionava seus sorrisinhos cínicos. Nós mal nos conhecíamos, mas eu
tinha todas as fotos anuais da nossa turma com o seu rosto riscado com
caneta preta.
Todos os dias, enquanto ele esbanjava toda a sua glória, eu desejava
internamente que ele tropeçasse na frente de todos enquanto saía da sala de
aula, o que, claro, nunca aconteceu. Ele sempre esteve lá com sua postura
irritante e correta, e aquele ar de quem sabe seu próprio valor, e de que tem
certeza que o mundo é seu.
Acho que, no fundo, eu almejava sua autoconfiança com o mesmo
afinco que admiro hoje em dia.
Eu possuía uma lista enumerada com cada coisinha que odiava
completamente nele e, sem sombra de dúvidas, o ápice da minha semana era
vê-lo irritado, se descabelando e com o rostinho vermelho de raiva.
Como eu disse, nós mal nos conhecíamos.
E a vida não foi exatamente nossa amiga quando nos colocou presentes
na vida um do outro em período integral, mas foi aí que tudo mudou.
Realmente não sei dizer em que ponto, exatamente, as coisas viraram do
avesso, e desafio a todos que nos conhecem a descobrirem em que ponto
todos os sentimentos gratuitos de raiva e repulsa se esvaíram e foram
reduzidos a pó dentro de nós.
Existiam mil motivos para que eu não me apaixonasse por Ethan
Harris, fui capaz de citar e listar cada um deles para, logo em seguida,
ignorá-los.
Estaria mentindo se dissesse que essa é uma história melodramática de
como eu me apaixonei por um cara que jurava odiar, porque não é. Durante
todo o tempo em que passamos tendo de dar uma segunda chance para nós, o
que cresceu foi muito mais do que uma mera paixão de faculdade recheada
de melodrama. Nós nos fizemos bem primeiro, para, só depois, fazermos
bem um ao outro.
Ele me segurou quando caí, e fui seu abrigo quando tudo ao redor dele
pareceu se resumir a nada. Nós caímos, levantamos e crescemos juntos.
Eu conheci um lado dele que não tinha tanta certeza assim de que o
mundo lhe pertencia, conheci sua face que fazia um cara de quase dois
metros parecer um menino indefeso, conheci seus medos, suas angústias,
suas perdas e suas vitórias. E foi quando me vi sem saída, encurralada em
um beco iluminado em que cada lado gritava “amor”.
Então, caso você decida passar para a próxima página e mergulhar de
cabeça no nosso mundo, saiba que está diante da parte mais bonita da minha
vida, ainda que ela esteja recheada de momentos feios e quebrados. Porque
precisei ruir para entender qual futuro eu realmente queria construir.
Dedico cada uma dessas páginas para Ethan Harris, agora, com todo o
meu amor.
Porque todas as histórias de amor me lembram você.
“Às vezes você precisa queimar algumas pontes
para criar alguma distância
Eu sei que eu controlo meus pensamentos
e que eu deveria parar de lembrar
Mas eu aprendi com o meu pai
que é bom ter sentimentos”
I HATE U, I LOVE U | Gnash

2 de julho de 2021 - Início do Semestre na Irving

Megan está namorando.


E não tenho ideia de com quem seja.
Penso, bufando e encostando meu corpo na cadeira, depois de passar
as últimas duas horas vasculhando cada centímetro das suas redes sociais,
tentando encontrar o responsável por fisgar o coração da minha melhor
amiga.
Quando acordei hoje pela manhã, e Meg já me esperava na cozinha do
nosso dormitório com duas canecas cheias de café e um semblante nervoso,
eu já sabia que alguma revelação bombástica estava prestes a cair de
paraquedas no meu colo. Foi uma conversa rápida e sem muitos detalhes.
Ela me disse que há um tempo estava conhecendo uma pessoa e que eles
decidiram finalmente oficializar. E isso incluía nos apresentar.
Até agora, não sei exatamente pelo que fiquei mais chocada, se pelo
fato da minha melhor amiga estar namorando e não ter me contado nem que
estava conhecendo alguém, ou porque ela segue não me dando uma mínima
pista de quem é o cara misterioso.
Esse não é o tipo de coisa que se faz com uma futura jornalista. É
sério, somos fofoqueiros por natureza.
Infelizmente, minha bolha de curiosidade é estourada no exato instante
em que Christian Portner, meu terrível professor, começa a chamar os alunos
até sua mesa para resgatar a primeira avaliação processual do semestre já
corrigida. Dá pra acreditar? Estamos a menos de quinze dias de volta à
universidade e já tivemos nossa primeira prova.
Isso é insano.
Encaro a movimentação dos alunos conforme seus nomes são
chamados, e observo atentamente o instante em que o aprendiz do diabo
assina no iPad e pega sua avaliação. O ritual é sempre o mesmo, são poucos
segundos encarando a folha, um meio sorriso convencido cresce e… Voilà!
Ethan Harris está sorrindo em minha direção e apontando para a própria nota
antes de me oferecer uma piscadinha ridícula.
8.5, desgraçado.
De forma quase involuntária, meus olhos reviram em desdém,
expressando o quanto, por mim, ele poderia explodir bem ali, diante dos
meus olhos, e eu me limitaria a abrir uma garrafa de vinho em comemoração.
Entretanto, se tem algo que aprendi ao longo desses quase três árduos anos
lidando com o Sr. Sorrisinho, é que a vitória dele costuma durar somente até
a próxima cena.
— Eu simplesmente amo esse lance de vocês competirem por nota. Me
faz lembrar dos nerds da minha turma da sexta série — Nate, o garoto que
sempre se senta ao meu lado nessa aula, sussurra em minha direção enquanto
salvo algumas anotações em meu notebook.
— Não existe um lance, nós não nos falamos. Ele que é um cretino
egocêntrico — quase rosno enquanto meus olhos se alternam entre a tela do
computador e o cara a alguns metros.
— Se é o que você diz...
Nate dá de ombros e se volta para as suas anotações. Encaro a nuca do
garoto à minha frente imaginando um dos lustres do auditório caindo em sua
cabeça, uma prática quase que rotineira minha, imaginá-lo em acidentes
sangrentos ou qualquer coisa que envolva arrancar o maldito sorriso da sua
cara.
Ethan Harris é aluno do terceiro ano de jornalismo na Universidade
Irving de Nova Iorque, assim como eu. É também um dos melhores alunos do
nosso ano, com o plus de ser a grande estrela — e capitão — do time de
basquete da nossa faculdade. Algo que lhe garante, sem dúvidas, um enorme
prestígio, haja vista que nosso time está invicto há uns bons anos, e que
vivemos na cidade onde o basquete é idolatrado.
Tudo que sei sobre ele é exatamente o que todo mundo nesse prédio
sabe, que ele é o típico atleta: popular, mulherengo e, dizem as más línguas,
bom de cama. A última parte, devo dizer que jamais tive a comprovação, e
nem mesmo pretendo.
E quando digo que ele é um típico atleta, é realmente típico. Harris
parece ter saído de um daqueles milhares de filmes sobre universidades que
todo mundo já assistiu alguma vez na vida, além de ser evidentemente um
imã humano para o sexo oposto. O cara vive numa eterna expressão de pós
sexo que inclui cabelo desarrumado e sorriso torto, conjunto que,
certamente, faz muitas garotas pelo campus terem orgasmos involuntários.
Não me incluo nisso.
Mas devo citar o que o diferencia, ainda que me cause náuseas
proferir qualquer elogio que seja a ele: Ethan é um verdadeiro gênio quando
o assunto é comunicação e jornalismo.
De verdade, ele é amplamente elogiado em todas as aulas por seus
posicionamentos firmes, embasados e suas análises sempre muito minuciosas
em todos os nossos trabalhos. O que eu não tenho certeza se me faz odiá-lo
mais, ou se ameniza a repulsa que sinto de sua face ridiculamente desenhada
que parece ter sido esboçada por algum anjo caído bastante inspirado.
Enquanto eu guardo meu notebook em minha bolsa, ouço meu nome ser
chamado por Christian, que embora agraciado com um dos inúmeros nomes
bíblicos existentes, de cristão não tem nada. O cara é o próprio demônio
encarnado em um idoso baixinho e carrancudo.
E como para um universitário toda desgraça é pouca, de brinde ele
ministra a matéria fundamental do curso de Jornalismo, a tão aclamada
Metodologia de Pesquisa e Comunicação.
O homem é um carrasco, do tipo que de forma alguma cede um dez
para um aluno, a menos que ele tenha revolucionado a comunicação em
alguma de suas respostas. Não que ele chegue ao ponto de pensar em dar
muitas notas desse tipo, boa parte da turma nunca atinge mais do que um oito,
e dentro de sala de aula eu posso jurar que ele pensa que é uma espécie de
deus da imprensa. Nada muito inesperado para um professor de uma
universidade da Liga Ivy, a Irving é recheada deles.
São quase todos homens insuportáveis com tendências ególatras. Mas
Christian é certamente um dos piores, o que lhe garante um lugar reservado
na minha lista do ódio, bem ao lado de Ethan Harris.
Me levanto respirando fundo, caminhando em passos largos e com uma
expressão de falsa simpatia até a parte baixa do auditório. Assino meu nome
no iPad aceso em sua mesa e então, ele me entrega minha prova. Mal consigo
conter o sorriso ao ver o nove gigante grafado no canto superior da folha.
Estendo para o docente um polegar erguido em sinal de positivo, e
com uma expressão já zerada de emoções, me viro na direção do garoto alto,
que me encara em apreensão. É sempre assim, cenho franzido, mãos
entrelaçadas sobre a mesa e toda a sua atenção voltada para a expressão que
sairá do meu rosto. A expectativa em seu interior é quase que possível de
sentir.
Parece que hoje a brincadeira acabou cedo.
Penso, encarando a avaliação em minhas mãos.
Caminho até ele, que está sentado na primeira fileira do auditório, e
então, coloco o papel sobre sua mesa o encarando com um sorriso triunfante
que rasga meus lábios. Ethan sobe seu olhar lentamente de minha mão
apoiada em sua mesa até meu rosto. Mantenho minha expressão irredutível, e
sem vacilar sequer um músculo da face, apoio minha outra mão diante dele.
— Pode ficar com ela, acho que pode identificar onde errou — falo,
num tom inocente completamente teatral. — Considere um presente.
Passamos alguns segundos nos encarando. Sigo sorrindo e sinto os
olhares do auditório presos em nós, até que seu habitual sorrisinho brota em
seus lábios.
— Você é sempre muito gentil. É uma pena que também não tenha
conseguido um dez. Quem sabe na próxima, Coelhinha — retruca, soltando
uma risada sarcástica e usando o apelido tosco de sempre que me faz querer
estrangulá-lo.
Desde a maldita festa à fantasia do curso de engenharia, no início do
segundo ano, Ethan decidiu que esse seria o meu mais novo apelido e ele só
me chama assim.
Coelhinha.
Era uma recepção aos calouros do curso em questão, e a festa foi
amplamente divulgada para o restante da faculdade. Só esqueceram de me
avisar que era, de fato, uma festa à fantasia elaborada. Megan estava
assistindo à uma cirurgia naquela noite e eu fui sozinha. Não preciso
explicar muito para que o mundo inteiro entenda o quão patética pareci
usando um vestido florido com tênis e apenas um arquinho de coelho, que
comprei em uma lojinha aleatória enquanto dirigia para o trabalho, em meio
a pessoas extremamente bem produzidas em fantasias alugadas e maquiagens
impecáveis.
Lembro-me de sentir meu rosto ruborizar ao notar os olhares em minha
direção quando entrei naquela casa de fraternidade, e também de beber além
do habitual com pessoas que mal conhecia. Afinal, haviam poucos alunos de
jornalismo lá.
Mas ele estava.
Óbvio que estava. Com seu ar triunfante e sorriso galanteador, chegou
junto do time de basquete, liderando o grupo, como sempre fazem em suas
grandes entradas em festas. Estava numa roupa ridiculamente bem feita de
astronauta. Nos esbarramos na pista de dança e lembro de como ele me
escaneou com o olhar, dos pés a cabeça, e soltou um “gostei da fantasia,
Coelhinha. Criativa.”
Não sei descrever ao certo o que seus olhos estavam me dizendo
enquanto ele proferia aquelas palavras. Não sei definir o que senti ao escutá-
las, mas sinto raiva desse momento todas as vezes em que ele relembra esse
apelido.
— Eu deveria processar você por importunação no ambiente
acadêmico, seu desgraçado — falo baixo, mais para mim do que para ele.
— Eu adoraria te ver tentar, gata. — Seu sorriso se alarga e sinto meu
sangue esquentar.
— Vá se foder. E use seu tempo vago para tentar um dez da próxima
vez — esbravejo, lhe oferecendo um sorriso amarelo. — Você consegue, não
é?
— Na verdade, fiquei um pouco confuso. No meu tempo vago, você
prefere que eu me foda ou que eu tente um dez? — pergunta num tom
debochado, e posso jurar que estou ouvindo o cara ao seu lado prendendo o
riso. Idiotas.
Encaro-o cética e reúno todo o meu autocontrole para me impedir de
pular em seu pescoço. O bastardo parece ter engolido um cabide, porque
nada parece ser capaz de minar o sorriso enorme em seu rosto. Antes mesmo
que ele tenha tempo de dizer mais alguma besteira, ergo o dedo médio em
sua direção, oferecendo-lhe um sorriso de desgosto, e então lhe dou as
costas, seguindo de volta para meu lugar. Pego meus materiais, os despejo
em minha bolsa caótica e me dirijo para a parte externa do auditório.
Caminho pelos corredores lotados de universitários atarefados e
barulhentos seguindo em direção ao estacionamento. Já fazem três anos que
estudo na Irving e não me canso de observar as pessoas, a estrutura física da
instituição e tudo o que a compõe. Esse lugar cheira a inteligência e
produção acadêmica, tudo aqui me parece sempre tão mágico como se fosse
a primeira vez.
Fundada em 1860, a Universidade Irving de Nova Iorque é a terceira
melhor da cidade e uma das melhores do mundo, encabeçando a maioria dos
rankings que avaliam os métodos das instituições de ensino superior. Com a
sede localizada no coração do famoso bairro Midtown East, a faculdade
possui três campus em diversas partes da cidade, tornando Nova Iorque, de
certa forma, parte da sua estrutura.
Cada um dos três campus leva o nome dos fundadores da instituição e
eles são separados por áreas do conhecimento. O Coleman Campus é o
maior de todos, ele abriga, além da sede da universidade, os prédios das
ciências humanas e linguagens, as moradias universitárias e o nosso
complexo esportivo. E todos esses prédios se agrupam em uma única rua,
batizada de Academic Street exclusivamente por receber as instalações da
Irving University.
Ainda sobre a faculdade, seu nome é uma homenagem ao escritor e ex-
embaixador Washington Irving[1], o primeiro autor nascido nos Estados
Unidos a ganhar notoriedade mundial dentro da literatura. Foi dele que
surgiu, pela primeira vez, a ideia de chamar Nova Iorque de Gotham,
apelido que se popularizou tempos depois com a criação do herói Batman.
Além das homenagens espalhadas pelos diversos prédios, a Irving é
conhecida por ser referência mundial na formação de profissionais do
jornalismo, e possui destaque nacional nas ligas esportivas. Tendo o
basquete como seu esporte de maior tradição e prestígio.
Para minha tristeza, checo o relógio digital em meu pulso e tomo
ciência de que já passa das duas da tarde. Embora passar minutos
observando esses corredores seja para mim um verdadeiro deleite, se eu não
apertar o passo chegarei atrasada ao trabalho.
Assim que ponho os pés para fora do enorme prédio, caminhando pelo
jardim arborizado rumando o estacionamento, sinto o ar abafado se
agarrando ao meu corpo e, de imediato, retiro minha jaqueta, a pendurando
no espaço entre as alças da minha bolsa. É verão em Nova Iorque, estamos
em julho e as temperaturas estão nas alturas, fazendo com que eu esteja me
sentindo em um forno vestindo uma calça jeans, camiseta e tênis.
Em passos apressados, caminho pelo estacionamento e destravo com
um botão meu Kia Cerato vermelho, presente do meu pai por ter entrado na
faculdade e mais conhecido como o meu pior pesadelo.
O veículo não é nem de longe o tipo de carro que se adeque às minhas
necessidades, não que meu pai se importe com isso, e na maior parte do
tempo me irrita que o modelo seja tão baixo, suas peças mal feitas. Tudo
isso, além dos fatos de que ele vive me deixando na mão e seu motor conta
com uma durabilidade menor que a de unhas de gel. Entretanto, enquanto eu
não consigo juntar dinheiro para comprar outro, é com ele que eu me viro.
Sento no banco acolchoado e encaro meu reflexo no retrovisor
conforme prendo meus cachos em um coque firme. Giro a chave na ignição e
ouço o roncar do motor sentindo sua pressão em meus pés nos pedais. Dou
partida, saio do estacionamento e sigo pela avenida por alguns quarteirões,
tomando a liberdade de ir observando os prédios enormes em tons terrosos,
característicos de bairros como o Midtown East.
Não demora muito para que eu esteja estacionando o carro em uma das
vagas reservadas para funcionários da cafeteria onde trabalho.
Com os vidros fumês devidamente fechados, passo meu corpo para o
banco traseiro e troco de roupa, vestindo meu uniforme — um vestido preto
com gola polo que vai até o meio das minhas coxas, um avental inferior
branco e um arco preto que coloco em minha cabeça após arrumar meus
cabelos em um rabo de cavalo baixo, deixando alguns fios soltos na parte da
frente. Checo minha aparência no retrovisor antes de sair, coloco meu
celular e minhas chaves no bolso do avental e caminho até a entrada da
"Letras e Grãos".
Assim que passo pela porta, ouço o barulhinho do sino que anuncia a
entrada e saída de todos os clientes, o cheiro de café penetra por minhas
narinas e abro um meio sorriso de satisfação. Se eu pudesse pontuar a minha
parte favorita de trabalhar neste lugar, o cheiro constante de café sendo
servido estaria no top 1.
Vou para a porta que dá acesso à parte de trás do balcão e vejo Lily
Stanford, uma das minhas melhores amigas e colega de trabalho, me
esperando encostada na parede. Nós duas dividimos os mesmos turnos desde
que começamos a trabalhar aqui. Ela cursa Licenciatura em História pela
NYU e nós simpatizamos uma com a outra logo de cara. Quando me dei
conta já estávamos indo juntas para festas de fraternidade ou passando tardes
intermináveis em seu apartamento maratonando séries.
— Boa tarde, gostosa — cumprimento-a, beijando sua bochecha e
posicionando meu dedo no leitor digital que registra o horário de entrada e
saída dos funcionários.
— Boa tarde, gata. Posso saber que animação é essa? O Inominável
quebrou algum osso por acaso? — ri, posicionando seu dedo no leitor.
— Acredite, se isso acontecer algum dia, eu não virei trabalhar,
estarei ocupada ficando bêbada em algum pub irlandês. — Dou risada e levo
a mão até a maçaneta da porta, avisando aos balconistas que estão
dispensados. — Mas... Eu consegui um nove naquela matéria ferrada que te
contei.
— E ele? — questiona, ansiosa.
— Oito e meio.
— Boa, garota! — comemora me estendendo a mão para um high five
que eu prontamente acompanho. — Sabe que eu amo as fofocas do mundinho
de vocês, não sabe?
— Mundinho coisa nenhuma! — chio e ela gargalha.
Lily Stanford é, sem sombra de dúvidas, a prova de que eu sou capaz
de fazer alguém odiar Ethan até mesmo sem intenção. De tanto me ouvir
bufando irritada por ele simplesmente existir, aos poucos ela se tornou uma
verdadeira torcedora fiel do Time Amelie em nossa disputa inexistente.
Acontece que minha amiga se empolga muito fácil, a ponto de
comemorar qualquer mínima vitória que eu tenha sobre o cara. E também,
devo pontuar, Lily não chama Ethan pelo nome, ela diz que isso seria uma
forma de atraí-lo, então o nosso apelido interno é "o inominável", algo que
sempre me faz gargalhar feito louca quando lembro em momentos aleatórios.
Nós duas pegamos nossos respectivos broches debaixo do enorme
balcão. O meu tem escrito "Letras e Grãos" enquanto o dela é gravado com o
nome "Palavras e Grãos". Me dirijo para a parte esquerda do balcão
enquanto ela se mantém onde está, e pelas próximas quatro horas e meia, nós
trabalhamos em empresas distintas.
Até o início do ano passado, éramos uma coisa só, a tão conhecida e
procurada por universitários que desejavam ler bons livros enquanto bebiam
seus cafés, Letras e Grãos, uma espécie de livraria dentro de uma cafeteria.
A loja pertencia ao então casal Meredith e George Green que, após se
divorciarem, resolveram manter uma espécie de sociedade ocupando o
mesmo espaço físico mas com empresas diferentes.
Lily trabalha para Meredith e eu para o Sr.Green o que, para mim, foi
um alívio. Trabalhar para a Meredith era um verdadeiro inferno,
diferentemente de como funciona com George, ele é um dos caras mais
legais que já conheci.
Embora toda a situação pareça uma verdadeira piada, essa rachadura
entre as equipes ficou bem evidente, visto que trabalhamos de acordo com os
métodos de nossos chefes, levando até alguns funcionários a se afastarem, o
que claramente não é o meu caso com Lily.
Faltam pouco mais de quarenta minutos para o final do meu turno
quando sinto meu celular vibrando em meu bolso. Pego-o discretamente após
entregar um Vanilla Latte ao último cliente que resta na fila e, ao ler o
identificador de chamadas, sinto meu estômago revirar antes mesmo de
atender.
É uma ligação de casa. Ou do que um dia foi minha casa.
Engulo a bile que já tenta subir por minha garganta, vou até o banheiro
dos funcionários e tranco a porta antes de respirar fundo e clicar na tela para
receber a chamada.
— Alô? — Minha voz sai um pouco mais trêmula do que o esperado.
— Amelie? — Consigo identificar como a voz doce de Madelyn, a
governanta da casa, soa com uma tranquilidade falsa pelos autofalantes do
meu celular.
— Mad, oi, algum problema? — pergunto receosa. — Estou no
trabalho.
— Querida, aconteceu de novo. Sinto muito incomodar com a ligação,
mas achei por bem lhe informar — fala com uma voz triste que me faz tremer
por dentro.
— Em qual hospital? — questiono, já pegando a chave do carro no
bolso do meu avental.
— NYU Langone Medical Center — responde direta.
— Certo, eu estou indo para aí.
“Mãos ficando frias
Perdendo sentimentos, envelhecendo
Eu fui feita de um molde quebrado?
Ferida, não consigo esquecer
Nós cometemos todos os erros
Só você sabe como eu quebro”
IDONTWANNABEYOUANYMORE | Billie Eilish

2 de julho de 2021

Guardo o aparelho de volta no bolso e saio do banheiro, me sentindo


sobrecarregada por saber o que estou prestes a enfrentar de novo. Vou até o
balcão e peço para que Lily me cubra no tempo que resta. Digo que é uma
emergência familiar e em poucos segundos estou dentro do carro dando a
partida e dirigindo pelas ruas de Nova Iorque.
Levo pouco mais de vinte minutos até o hospital em Midtown
Manhattan. Tiro meu avental e o arco em minha cabeça, coloco minha
jaqueta por cima do vestido, deixo meu carro no estacionamento e caminho
depressa até a entrada do hospital.
As portas automáticas se abrem e eu entro, sentindo o ar gelado bater
contra minha pele e provocando-me um arrepio enquanto caminho até a
recepção. Uma mulher ruiva assente para que eu me aproxime, então apoio
meus cotovelos sobre o balcão.
— Gostaria de ver Virgínia Morgan — falo rápido por conta do
nervosismo.
A funcionária com o crachá escrito “Valerie” assente mais uma vez e
me lança um sorriso compreensivo. Ela digita algumas coisas em seu
computador e, conforme aguardo, tamborilo minhas unhas no balcão,
correndo o olhar pela estrutura hospitalar do lugar.
É enorme e moderno, parece especialmente caro, e eu torço para que o
plano de saúde de Virgínia esteja em dia. Observar estruturas de hospitais se
tornou algo involuntário em minha vida depois de conhecer Megan, minha
melhor amiga e estudante de medicina na Irving. Ela vive dizendo como a
estrutura do hospital da nossa faculdade é excelente, e adora proferir
discursos sem fim sobre todos os hospitais que já entrou.
— Aqui está! Virgínia Morgan, ela está internada. Preciso de um dos
seus documentos para gerar uma credencial — Valerie exclama, chamando
novamente a minha atenção.
Noto que deixei minha bolsa no carro, então pego meu celular do
bolso da jaqueta e abro o aplicativo da faculdade, o IrvingApp, onde se
encontra minha carteira de estudante virtual. Entrego o aparelho para a
balconista, que copia minhas informações e o devolve para mim.
— Você é parente dela ou apenas visitante? — questiona, digitando
com os olhos fixos no computador.
— Filha. Sou a filha dela — digo antes de engolir seco.
— Certo, me dê alguns segundos — fala, arrastando sua cadeira para
trás e pegando um cartão. Ela passa o mesmo por um leitor, que suponho que
sirva para ativá-lo e transferir minhas informações, e o entrega para mim. —
Quarto cinquenta e seis, quinto andar.
Caminho em direção ao elevador sentindo meu estômago se dobrando
ao meio em receio e nervosismo. Absolutamente tudo que diz respeito a
hospitais me dá pânico e ânsia de vômito pelo simples fato de que eu sei
bem como é frequentá-los, porque minha mãe infelizmente faz com que eu os
visite com uma certa regularidade. O cheiro de álcool, as pessoas de jaleco
indo de um lado para o outro, os sons… Tudo me faz ter vontade de vomitar.
Enquanto as portas metálicas do elevador se fecham, checo o horário
em meu relógio. São quase oito da noite e cá estou eu, andando pelos
corredores gélidos da área de internação de um centro médico.
Abro a porta do quarto que me foi indicado e meus olhos de imediato
se fixam no corpo que repousa sobre a cama. Ela parece estar sedada ou
apenas dormindo, então ando em passos leves até estar próxima o suficiente
para que o cheiro de bebida que exala de seu corpo penetre por minhas
narinas. Ainda que eu jure de pé junto que o único sentimento que essa
situação me desperta é raiva, não consigo deixar de sentir meu coração se
quebrar vendo-a desse jeito.
Dói. Eu tento fingir que não, mas dói.
Estou tão vidrada em sua imagem e em seu estado deprimente que mal
noto a presença de Madelyn sentada na poltrona ao lado da cama. A
senhorinha baixinha, de pele pálida e cabelos pretos impecavelmente
cortados em chanel é, basicamente, a única referência materna que eu tenho.
A única que me tratou como filha, pelo menos.
Meus olhos umedecem ao encontrar os seus me encarando com
compaixão e um fundo de pena. Embora eu deteste que me olhem dessa
forma, meio que a compreendo. Só nós duas sabemos como os últimos anos
têm sido exaustivos e como essa situação toda tem me destruído.
Mad se levanta, abre os braços e me chama com um movimento de
cabeça. Me aproximo dela e sou envolta num abraço acolhedor que torna a
missão de não chorar quase impossível.
— Como ela está? — pergunto, secando algumas lágrimas assim que
nos afastamos.
— Como sempre, querida. Deve receber a alta mais tarde.
— O que foi dessa vez? — me refiro ao que causou sua internação.
— O de sempre, notícias sobre o seu pai e uísque — Mad diz fazendo
uma careta enojada.
— Os médicos perguntaram alguma coisa? Você disse algo? —
Recebo um balançar de cabeça de negação da mulher.
— Fizeram as perguntas de rotina, se eram comuns episódios desse
tipo, se ela tem algum tipo de transtorno, e disseram que vão mantê-la em
observação até que acorde. Eu disse que foi culpa de uma comemoração
irresponsável. Um dos médicos não pareceu acreditar, mas não disse mais
nada.
— Certo, muito obrigada mesmo, Mad. Pode ir para casa descansar, se
quiser, eu assumo daqui. Peça ao Alfred que venha em algumas horas, pode
ser?
Madelyn assente, se despede de mim e sai pela porta, me deixando
sozinha no quarto. Encaro a face empalidecida de minha mãe. Sua pele negra
retinta está opaca e seus lábios cheios estão esbranquiçados, ela dorme
profundamente e seus cachos estão embolados sobre o travesseiro.
A visão é triste, tão triste quanto a situação por completo.
São quase quatro anos mentindo para médicos, e eu não me orgulho
nem um pouco disso. Quase quatro anos indo em diversos hospitais para
evitar que algum médico a reconheça e indique a internação, quase quatro
anos que eu não conheço mais a mulher forte e corajosa que me deu à luz,
quase quatro anos que tenho a plena certeza de que minha mãe é
dipsomaníaca, ou na linguagem clara, alcoólatra.
E que eu não posso fazer nada para mudar isso.
Virgínia, logo nos primeiros episódios, se ajoelhou aos meus pés
chorando e me fez jurar que jamais a delataria para um médico ou para o
meu pai. Ela me prometeu, em alto e bom som, que caso eu ao menos
tentasse fazer isso, ela sumiria do mapa, porque jamais aceitaria ser tratada
como uma inválida ou uma doente.
E desde então, por medo do que possa acontecer caso ela realmente
suma, eu lido com a infinidade de hospitais sozinha.
Houve um momento em minha vida que ela não era assim, momento
esse engavetado em um passado turvo que me exige força para buscar na
memória de tão distante que ele se encontra do presente. A memória que
tenho da época dos meus doze anos é a de uma mulher forte, de opinião, que
era vista somente em seus vestidos longos, sempre estampados por cores
vívidas, com sua maquiagem sempre impecável, cachos sempre definidos e
um imenso sorriso rasgando seu rosto.
Minha mãe sempre foi uma mulher vaidosa, bonita, cheia de vida e
essencialmente extrovertida, entretanto, em algum ponto dos meus dezessete
anos em diante, eu vi essa mesma figura poderosa e contagiante começar a
ruir, parte por parte, até restar a pessoa deitada diante de mim.
Ver minha mãe nesse estado deplorável deixou de ser um choque para
mim conforme os episódios se tornaram frequentes. Era sempre a mesma
coisa, ela bebia até cair, Madelyn a enviava para algum hospital e em
seguida me ligava, e eu… Eu faço sempre exatamente o que estou fazendo,
venho até ela.
Mad me dizia que essa era uma forma de chamar a atenção do meu pai,
e que passaria, mas como ele nunca ficou sabendo, essa ideia foi refutada em
minha cabeça. Para mim, ela escolheu a forma errada de enfrentar a dor da
separação, e até hoje nada foi capaz de mudar a forma que penso.
No início minha vontade era dirigir até Greenwich Village, área de
luxo onde Esteban Castillo, meu pai, vive com sua adorável esposa, e gritar
uma infinidade de verdades em sua cara. Apontar o dedo bem no centro de
seu peito e culpá-lo por me fazer viver esse inferno, por ter me deixado
sozinha tentando limpar o estrago que ele fez na vida de nós duas.
Porque boa parte de tudo que já passei com a minha mãe poderia ser
evitado caso ele, ao notar o ruir de seu casamento, houvesse dado um basta
na relação ao invés de trair e abandonar minha mãe para, três meses depois,
anunciar o noivado com uma de suas sócias.
Um grandíssimo filho da puta.
Contudo, embora eu ainda deseje viver esse momento de apontar
dedos, hoje em dia eu prefiro manter-me o mais distante possível da
confusão que é a relação existente entre os meus pais, porque sei que uma
vez tendo escolhido um lado, eu irei viver um inferno ainda pior tendo meu
pai como vilão principal.
Esteban não é o que se possa chamar de exemplo de paternidade, já
que ele não conhece minhas preferências e suspeito que não me conheça
direito. Nós nos vemos regularmente, mas nossas conversas são tão rasas
quanto uma piscina de plástico. Me irrita também que ele exija minha
presença em seus eventos mais vezes do que posso suportar ver a paz em que
ele e minha madrasta convivem, em comparação com o caos que é a mansão
dos horrores onde minha mãe vive se lamentando pelos cantos.
Ele é um ex-marido terrível e um pai displicente, ainda assim, algo em
mim acredita que isso seja melhor do que não ter nada.
E eu sei que caso eu resolva, de fato, comprar essa briga, estarei
lidando com uma versão controladora e manipuladora de Esteban Castillo,
coisa que não posso arriscar pagar para ver quando é o seu dinheiro que
financia meus estudos na faculdade dos meus sonhos.
Nada, absolutamente nada, do que vivo hoje me faz lembrar dos dias
quentes de sol que eu e papai íamos à piscina ou brincávamos no gramado,
muito menos das noites de chuva em que nós três nos reuníamos ao redor do
piano para ouvir mamãe tocando e cantando as mais belas melodias. Às
vezes penso que daria tudo para viver congelada em momentos assim.
Quando tudo era tranquilo e eu tinha um lar.

Já passa de uma e meia da manhã quando enfim estou diante do prédio


da Chisholm House, minha tão amada moradia universitária. Minha mãe
recebeu alta e eu acionei o motorista da família para que a levasse para
casa, já que, por estar tarde, eu preferia não pegar a estrada para a cidade
vizinha.
Ao menos essa é a desculpa que escolhi para mim dessa vez, para não
ter que estar em casa.
Até hoje não sei dizer se gosto da ideia da minha mãe ter ficado com a
mansão na partilha de bens do divórcio. Em primeiro lugar porque ela não
tem grana para manter tudo aquilo e em segundo lugar, aquela casa jamais
voltará a ser como era na minha infância.
Hoje em dia é horripilante estar lá.
O jardim de margaridas, tulipas e girassóis que ela cuidava com tanto
zelo foi abandonado, a estufa está largada às traças e o borboletário que eles
estavam construindo para mim nunca foi terminado. Os corredores frios
daquela casa imensa quase gritam um lembrete de quantas brigas, quanta dor
e mágoa eles presenciaram. De quantas vezes me escondi no meu ateliê para
não precisar ouvir as súplicas da minha mãe para que fosse amada como
merecia.
Ela implorava.
Saio do elevador e caminho pelos corredores do alojamento sentindo
minha cabeça latejar. Eu preciso urgentemente de uma aspirina, comida e
algumas horas de sono antes de estar de pé novamente para estudar. Giro a
chave na fechadura e, de imediato, vejo que a luz do quarto de Megan está
acesa. Entro mais relaxada em nosso dormitório por saber que ela não estava
dormindo e eu posso fazer barulho, então vou até a cozinha e pego uma
garrafinha d’água na porta da geladeira, alcançando o remédio que fica em
uma caixinha na bancada.
Engulo o comprimido e enquanto bebo o líquido da garrafa, escorada
na parede do corredor, vejo minha amiga vestida em seu pijama de
estrelinhas azuis vindo em minha direção com o olhar compreensivo de
quem sabe exatamente o que aconteceu. Megan está com os cabelos loiros
presos em um rabo de cavalo, seus óculos estão na metade de seu nariz e as
íris azuis esverdeadas me encaram com aflição.
Ela anda até mim com seus braços abertos e um meio sorriso nos
lábios, e só quando meu corpo está envolvido por seu abraço caloroso e
aconchegante é que me permito soltar todo o ar que eu nem sabia há quanto
tempo estava prendendo.
Apoio meu rosto em seu ombro e sinto meus braços penderem ao lado
do meu corpo. Fecho a tampa da garrafa d’água e a solto no chão,
envolvendo o corpo da minha amiga em um abraço apertado. Megan e eu
somos como irmãs, e ela é uma das poucas pessoas que conhece toda a
novela interminável que é a minha família, portanto, todas as vezes em que
eu chego de madrugada de hospitais, como é o caso dessa noite, e ela está
aqui, sou recebida exatamente assim, com abraços apertados, aconchego,
poucas palavras, mas a certeza de que eu não estou sozinha.
Sou extremamente agradecida à universidade por ter me trazido minha
melhor amiga para toda uma vida daqui em diante.
— Ela está bem? — questiona com sua voz doce, quando nos
afastamos para nos encararmos. Assinto com a cabeça sentindo lágrimas
quentes se formando em meus olhos. — Você está com fome? — Assinto
mais uma vez. — Sente-se, vamos te alimentar.
Ela fala apontando para o banco na frente da bancada da nossa
cozinha. Eu a obedeço e me posiciono de frente para ela, analisando sua
movimentação. Vejo quando ela pega uma frigideira, quebra dois ovos
dentro, pica alguns legumes por cima e mistura com uma colher de silicone.
Logo em seguida, Megan liga o fogão e, segundos depois, o cheiro de
omelete invade o nosso apartamento.
Confesso que embora dias assim sejam terríveis, eu realmente gosto da
parte de chegar em casa, porque é uma das raras situações em que minha
melhor amiga cozinha para nós. Meg detesta cozinhar, o que é uma pena,
porque tudo que ela faz fica impecavelmente saboroso e saudável.
— Como foi na aula hoje? — pergunta, enquanto espreme alguns
limões em um copo.
— Boa, consegui um nove em Metodologia e Pesquisa e Comunicação.
Se eu me mantiver nesse ritmo no restante do semestre, meu rendimento vai
ficar excelente.
— Ótimo. Fico feliz por você. Fiquei sabendo que os ânimos se
agitaram hoje em uma das suas aulas. Ainda brigando com Harris? —
questiona, rindo e virando a omelete na frigideira.
Um fato importante: Megan é parte da torcida organizada do time de
basquete, sendo assim, ela e Ethan vez ou outra trocam algumas palavras e,
bom, eles convivem o bastante para se conhecerem.
— Ah, pode apostar — respondo, cansada, passando a mão pelo rosto.
— E você, que coisa extraordinária fez hoje? — pergunto com uma
empolgação que não me pertence no momento, mas sei que Megan está
vivendo seu sonho, e cada dia é uma pequena conquista para ela.
— Eu auxiliei o parto de trigêmeos! — fala empolgada com um sorriso
rasgando o rosto. — A mãe me deixou tirar fotos com eles porque me viu
chorar enquanto passava visita no quarto e olhava para eles. Me lembre de
mostrar para você depois.
Não consigo evitar de abrir um sorriso. Apesar de estar no último ano
da faculdade de medicina, Megan é perdidamente apaixonada pela carreira
que escolheu para si e pelo curso que batalhou tanto para entrar, o brilho no
olhar ainda é o mesmo desde o dia em que nos conhecemos. Essa paixão
transborda em seu coração de forma tão vigorosa que é possível
compartilhar desse sentimento ao ouvi-la contar sobre seus dias nos
hospitais.
Não tenho dúvidas de que será uma médica incrível.
— Colocou três crianças no mundo hoje e ainda está cuidando de
mim, eu é quem deveria estar cozinhando para você! — Dou risada quando
ela coloca o prato com omelete e um copo de limonada na minha frente na
bancada.
— Não se preocupe com isso, fui muito bem alimentada com um
Mac’n Cheese de microondas depois do plantão. — Ela ri e se senta ao meu
lado.
— Ugh, você e essas comidas congeladas. Pelo menos posso comer
essa belezinha sem dividir com você e sem remorso — Enfio uma garfada
de omelete na boca e sinto meu estômago pular de alegria. — Você é a minha
pessoa preferida no mundo, Meg, sério.
— Eu sei disso, bobinha! — Sorri me dando um beijo na bochecha e
me encara satisfeita enquanto devoro a janta que ela fez especialmente para
mim.
— Ah, e não pense que eu me esqueci do que me contou mais cedo.
Vai me deixar conhecer seu novo namorado quando, hein? — Cerro os olhos
em sua direção e ela solta uma risadinha.
— Vai ter uma festa de boas vindas na sexta, na fraternidade das
Vixens. Ele vai com uns amigos, apresento vocês lá.
— Esse mistério todo vai atacar minha gastrite, e eu nem tenho gastrite
— resmungo.
Enquanto eu como, ouço minha amiga contar sobre os casos novos que
chegaram no hospital, e eu lhe explico sobre o meu trabalho de Comunicação
e Política, que vai ter como base casos de crimes famosos dos Estados
Unidos e suas repercussões na imprensa.
Em matérias políticas eu geralmente levo uma boa vantagem, mas
nessa, em específico, Ethan está na minha turma, e suas fortes análises já
citadas são grandes adversárias que podem salvar ou arruinar todo o meu
trabalho de pesquisa.
Quando termino de comer, vou para o banheiro enquanto Megan vai
para o meu quarto fazer o que sempre faz em noites assim. Ela deixa minha
cama pronta para que eu apenas me enfie debaixo das cobertas e coloca um
dos meus vinis de músicas calmas para tocar, bem baixinho, na vitrola que
comprei em um brechó no Soho.
Lembro que, no início, eu sempre tentava convencê-la de me deixar
lidar com isso sozinha, de apenas me ignorar e ir dormir, porque no dia
seguinte eu estaria melhor, mas com o tempo, os anos convivendo juntas
nesse apartamento me ensinaram duas coisas: Megan precisa e ama cuidar de
pessoas, e eu preciso ser cuidada.
Não como uma pessoa indefesa, mas como alguém nova demais para
suportar o peso de lidar com tudo sozinha — universidade, trabalho, pai
distante, mãe em apuros e todos os múltiplos traumas que ganhei de brinde
na minha adolescência.
É muita coisa.
E em noites como essa tudo o que eu preciso é de cuidado, algo que
me foi negado por anos a fio, porque todos ao meu redor estavam ocupados
demais para me enxergar.
Megan Lewis além de minha melhor amiga, é a minha referência de
família, é a irmã mais velha que eu não tive. Foi ela quem, desde o primeiro
dia, me estendeu o braço e se ofereceu para carregar o peso do mundo junto
comigo e me ensinou que eu posso ir bem sozinha, mas que caminhar com
alguém é muito melhor.
“Você sabe que deve ficar longe
(A tentação te deixou de joelhos)
Você nunca verá o restante de mim
Agora eu sou a inimiga que você precisa ”
THE ENEMY YOU NEED | Blameshift
(TRADUÇÃO ADAPTADA)

3 de julho de 2021

Alguma merda está prestes a acontecer.


Se eu fosse obrigado a listar as coisas que eu mais detesto na
faculdade de jornalismo, eu teria apenas duas certezas: a primeira é de que
seria uma lista extremamente curta, porque eu realmente gosto do que estudo,
a segunda é de que, certamente, o momento em que algum professor diz que
“tem uma surpresa incrível” seria o primeiro item da lista.
Na maior parte das vezes, essas surpresas vêm acompanhadas de
trabalho exaustivo e atividades em grupo com pessoas escolhidas
aleatoriamente, o que devo citar que está longe de ser o meu forte.
É exatamente por isso que quando a Sra. Prescot profere essas exatas
palavras, solto o ar exasperado, tendo em mente ao menos meia centena de
possibilidades de qual trabalho mirabolante nossa professora de Teoria do
Jornalismo estaria prestes a nos indicar.
Já passava das onze quando fomos notificados pelo aplicativo da
faculdade que todos os alunos do terceiro ano estavam convocados para uma
reunião no auditório principal do prédio da faculdade de Jornalismo. Ao que
me parece, nos seria feito um anúncio importante, e agora, diante da nossa
professora, posso sentir a tensão emanando das pessoas ao meu redor.
— Todos vocês aqui conhecem o The Politician, certo? — ela
questiona, encarando o auditório.
Um coro de “sim” é audível diante de sua pergunta. É óbvio que
conhecemos, é o maior veículo de imprensa da cidade de Nova Iorque,
responsável pela cobertura dos bastidores da política da cidade e o jornal
que vem faturando os maiores furos de reportagem dos últimos tempos, todos
os escândalos começam com uma matéria deles. Acredite, não há um
estudante de jornalismo que não o conheça.
— Então, eu fui pessoalmente procurada pelo redator chefe do jornal,
Russel Lambrock, para anunciar que no final do semestre um de vocês,
alunos do terceiro ano do curso de jornalismo da Irving, terá a honra de
estagiar de forma remunerada como repórter do The Politician.
Cacete.
Estou surpreso. De verdade. E o burburinho crescente dentro do
auditório me diz que o restante da classe também.
— Antes que se perguntem, será uma única bolsa, e ela será conferida
a um de vocês por meio de um processo seletivo — Prescot explica, e
aponta para algumas informações que aparecem na lousa eletrônica. — Os
alunos que desejarem participar vão pegar os envelopes comigo antes de
sair, preenchê-los e entregá-los na secretaria. Vocês tem até amanhã à tarde.
— E como vai funcionar o processo todo? — um cara atrás de mim
pergunta.
— Eu estava quase lá, mas já que perguntou, vai ser o seguinte: até o
penúltimo mês desse período vocês estarão sendo avaliados por nota. Então,
quem for se saindo bem nas provas tem mais chances de entrar. Após isso, os
dez melhores rankeados serão convocados para uma entrevista com a equipe
do próprio jornal, e então, através dessa entrevista, teremos o nosso
vencedor.
— E quanto ao valor do salário? — uma garota ruiva questiona.
— Três mil e quinhentos dólares, com acréscimos caso as reportagens
de vocês ganhem boa repercussão — ela fala sorrindo, e então coloca várias
pilhas de envelopes em sua mesa. — Se me permitem dar um conselho,
agarrem essa oportunidade, ela não é comum no nosso meio. Vocês estão
tendo a chance da carreira de vocês, sem dúvidas.
O barulho dos alunos eufóricos, misturado à empolgação evidente que
estou sentindo por saber que sou um forte candidato para essa vaga, faz com
que minha mente fique um tanto quanto desnorteada no momento em que me
levanto para seguir em direção à mesa, localizada na parte baixa do
auditório.
Agarro firme a alça da minha mochila, e com os olhos vidrados na
pilha de envelopes que contém os formulários de inscrição do que pode ser a
chance da minha vida, caminho entre o aglomerado de pessoas que se forma
nas escadas. Quando estico minha mão para pegar um envelope, ela se choca
com uma outra mão bem menor e mais delicada. Corro os olhos desde os
diversos anéis prateados nos dedos, subindo pela extensão do braço
desnudo, por conta do vestido florido de alças finas, até chegar em seu rosto
que já me encara com a sua expressão costumeira.
A de fúria.
Levo pouco mais que dois segundos encarando a face franzida de
Amelie até afrouxar meu próprio semblante em um sorriso preguiçoso.
— Me desculpe, Coelhinha — falo, fazendo referência ao apelido que
sei que ela detesta e vejo suas bochechas ruborizando. — Você primeiro.
Assisto enquanto, mecanicamente, ela pega dois envelopes da pilha,
guarda um deles em uma bolsa gigantesca que está pendurada em seu ombro,
e me entrega o outro com um sorriso radiante o suficiente para me parecer
maléfico, porque seu semblante fica aberto demais. Seus olhos, que
normalmente são um pouco repuxados, ficam arregalados demais, e ela fica
parecendo uma maníaca de filmes de terror.
Ela sempre direciona esses sorrisos para mim quando está prestes a
me dizer algo que se encontra entre um “vá se foder, Ethan” e um “bom
trabalho", que vem sempre recheado da acidez irônica típica de suas falas.
E nesse momento é mais esquisito ainda por ela estar tão perto.
— Espero que esteja preparado para me ver ganhando essa vaga —
ralha.
— Digo o mesmo. — Seguro o envelope firme e me aproximo dela o
suficiente para sussurrar baixinho — Mas não quero que se prepare, ver
você se descabelando quando perder vai ser delicioso.
Me afasto a tempo de ver a careta enjoada que se forma em seu rosto
quando captura o sorriso satisfeito em meus lábios.
— Você é um babaca e isso soou um tanto pervertido — fala, bufando.
— Você me diz isso há três anos, e está vendo malícia onde não tem. A
menos, claro, que você queira que tenha, porque posso resolver isso em
alguns instantes — provoco, e ela solta uma risada de escárnio.
— Dura tão pouco tempo assim, Harris? — zomba, projetando os
lábios para frente em um bico. — Acho que sua fama por essa faculdade
anda baseada em notícias falsas, afinal. — Ela ri e eu reviro os olhos.
Diaba.
— Acredite, Coelhinha, eu banco cada uma das minhas famas nesse
lugar. Me ligue quando quiser testar, vai ser um prazer desfazer esse seu
constante estado de estresse.
Ouço ela soltar um grunhido irritado quando já estou de costas,
rumando para fora do auditório. Me misturo na multidão de alunos
desesperados para seguirem para suas tarefas e enquanto meu corpo — nem
um pouco pequeno — é empurrado entre os corpos, solto um resmungo
involuntário.
Odeio corredores cheios e odeio o som ensurdecedor de centenas de
pessoas falando juntas em um espaço apertado. É agoniante.
Quando enfim me livro da confusão, sinto meu celular vibrando em
meu bolso, mensagem do Tyler, meu melhor amigo. Antes de responder,
checo o relógio em meu pulso e vejo que me resta uma hora e meia até o
horário da minha aula de Cultura das Mídias. Por isso, desvio do caminho
que estou fazendo e entro no primeiro corredor à esquerda, seguindo em
direção ao meu lugar favorito do campus.
Tyler: Onde vc tá?
Eu: Prédio de jornal, por quê?
Tyler: Deixou a porra da sua bolsa de treino na sala de casa (mais
uma vez), trouxe comigo.
Eu: Me salvou, te amo.
Tyler: Odeio você.
Eu: Não é o único.
Tyler: Oh, claro que não sou, mande meus cumprimentos à rainha do
seu clube de haters.
Solto uma risada contida. Minha rixa imaginária com Amelie Castillo
é certamente o entretenimento gratuito favorito de Tyler, seus comentários
aleatórios sobre isso sempre me trazem boas risadas. Me encosto na parede
para encerrar a conversa e entro no local sentindo o ar condicionado gelado
bater contra o meu corpo me causando arrepios, cumprimento Diana, a
bibliotecária simpática que está atrás do balcão, com um aceno e ela sorri
quando me vê.
Sento em uma das cabines de estudo e coloco minha mochila sobre a
mesa, puxando de dentro dela meu exemplar de “O Assassinato de Roger
Ackroyd”. Antes que eu possa mergulhar na leitura, no entanto, Tyler me
encaminha uma última mensagem com o flyer de divulgação de uma festa que
vai acontecer amanhã nas Vixens, a fraternidade feminina da Irving.
Tyler: Preciso que vá comigo, quero te apresentar uma pessoa.
Eu: Ainda não estou à procura de uma namorada, cara.
Tyler: Não falei que a pessoa era pra você…
Eu: Isso significa o que eu acho que significa?
Ele nem precisa responder para que eu saiba que minha teoria está
certa. Conheço esse cara com a palma da minha mão.
Tyler: Talvez. Te vejo mais tarde no treino.
Tyler Mansen é, sem dúvidas, o cara mais irritante e o mais legal que
já conheci em toda a minha vida. Crescemos juntos graças à amizade dos
nossos pais, que se perdurou desde a infância até hoje, e ao fato de sermos
vizinhos de porta no prédio onde morávamos no Queens, antes da família
dele enriquecer e ele se mudar para uma cobertura no Upper East Side.
Nossas casas eram quase extensões uma da outra, bastava que
deixássemos as portas abertas e já não se tinha noção se estava na residência
dos Harris ou na dos Mansen. Passávamos tardes intermináveis disputando
cestas na quadra improvisada que meu pai montou para nós no jardim do
prédio, íamos para a escola juntos, para as festas, todos diziam que de tanto
convivermos já estávamos começando a parecer um com o outro até mesmo
fisicamente.
E não preciso nem mesmo me estender para que se imagine a festa que
foi quando, dois anos depois da sua carta de aprovação na Irving pela bolsa
de esportes chegar, a minha trazer um resultado exatamente igual. Fazendo
com que, claro, como já era de se esperar, passássemos de vizinhos e
melhores amigos, para colegas de apartamento e melhores amigos.
Por essas e outras coisas, não fica tão difícil de imaginar que meu
amigo está, possivelmente, namorando. Acredite, Tyler Mansen não faz o
tipo que “apresenta uma pessoa” para mim. A maioria dos seus rolos eu
descubro quando acaba, o cara é bom na arte das pegações sigilosas, e se
quer que eu conheça a garota, já sei que é porque vou vê-la com frequência
no nosso apartamento.

Minha respiração está ofegante e descontrolada, minhas costas estão


encharcadas de suor e minha boca está seca quando me deito no chão gelado
da Arena John Jay, o local que abriga a sede do time masculino de basquete
da faculdade. Passamos as últimas duas horas treinando num ritmo intenso as
estratégias de defesa que iremos precisar para o jogo de estreia na
temporada contra Dartmouth em algumas semanas.
O treinador Butler está nos fazendo suar até as últimas gotas de água
existentes em nossos corpos porque, sem sombra de dúvidas, perder em
nosso primeiro jogo da temporada não pode ser uma opção.
— Estão dispensados por hoje. O treino amanhã vai ser depois das
aulas do período da tarde, cheguem aqui às três. Nem sonhem em se atrasar,
porque caso isso aconteça, vou fazer todos vocês correrem o Midtown East
inteiro! — Bradley Butler tem as cordas vocais mais potentes do mundo,
porque eu posso jurar que um dia ficaremos todos surdos com seus gritos.
Esse cara definitivamente não sabe falar baixo.
Fecho os olhos tomando fôlego e coragem para me levantar, e enquanto
caminho até o vestiário, Tyler se junta a mim.
— Cara, você está péssimo — fala, rindo do cansaço estampado em
meu rosto. — Esse suspense para a escolha do capitão está matando você.
É verdade. A temporada de basquete da Liga Ivy começa em outubro, e
estamos no início de julho. O semestre recém começou, e todos os anos esse
período entre a volta das aulas e o início dos jogos é quando o treinador
Butler escolhe quem será nomeado o capitão do time para a temporada.
Fui o responsável por liderar a equipe no ano passado, após o draft do
nosso antigo capitão, Matt Jenner, e sei que impressionei a comissão técnica.
Principalmente por ser o primeiro capitão escolhido ainda enquanto calouro.
Não acontece com frequência. Mas não foi como se eu tivesse sido apenas
escolhido, Butler não faz isso. Passei o último ano de Matt, e o meu
primeiro, sendo preparado pelo próprio para liderar o time da melhor forma
possível.
Além de seguir os conselhos que recebi, acabei desenvolvendo o meu
próprio modo de auxiliar os outros jogadores e cumprir com as minhas
obrigações de capitão, e ficou nítido o quanto isso ajudou a nos consagrar
campeões da temporada passada.
Portanto, esse ano estou dando duro para que o mesmo aconteça
novamente. A posição que jogo, a de armador, já é por si só uma posição de
liderança, haja vista que boa parte das jogadas se originam da minha visão
do jogo, mas ser o capitão vai muito além disso. É muito mais do que só
estar a frente do grupo em quadras, é sobre cuidar e orientar meus colegas,
ajudá-los a melhorar e crescer dentro do esporte, uma responsabilidade e
tanto, mas que eu gosto de ter.
— Nah, preciso de um banho e de doses cavalares de cafeína, estarei
novinho em folha — digo, puxando minha camiseta e jogando-a em cima da
minha bolsa de roupas para lavar, que descansa em um dos bancos do
vestiário. — Tenho que terminar um relatório da minha aula de Cultura das
Mídias, e depois disso sou um homem livre, o que vamos fazer hoje? —
pergunto, me dirigindo ao chuveiro.
— Annelise comprou vinho, queijos e baixou a terceira temporada de
Friends.
— Me contaram que Ross e Rachel vão se afastar nessa temporada, já
tô puto — falo, enfiando a cabeça debaixo da ducha.
— Ei! Isso é spoiler, sabia? — meu amigo reclama e eu solto uma
risada que faz uma quantidade generosa de água entrar pelo meu nariz.
— Não é spoiler quando a série é mais velha do que você, cara.
— Claro que é! Eu não sabia! — ele resmunga, realmente chateado. —
A propósito, Bruce comeu mais uma almofada, é a sua vez de substituir.
— Caralho, ele é uma peste, sério — falo rindo. — Já é o quê? A
vigésima terceira almofada?
— Vigésima oitava — Tyler corrige.
Bruce é o mascote do nosso apartamento, que divido com Tyler e
Annelise, sua irmã mais nova. O cachorro é um bulldog inglês caramelo com
a cara enrugada, o sono de oito recém nascidos e um gosto peculiar por
almofadas. Tyler tem uma teoria de que ele nos odeia secretamente por
vestirmos ele com roupinhas constrangedoras. Eu, por outro lado, acho que
ele é um cão com bom gosto, porque as almofadas com estampas de capitais
mundiais que Tia Joscelyn, mãe do Tyler, comprou para o nosso sofá são
pavorosas, e a missão do Bruce foi nos livrar delas.
Levo pouco mais de dez minutos até estar devidamente vestido, saindo
em direção ao estacionamento da arena e caminhando até a área onde minha
amada Harley Davidson Iron 883 está devidamente estacionada. Guardo
minha bolsa de treino no bagageiro e me sento, colocando meu capacete
para, enfim, dar a partida e acelerar rumo a Manhattanville, bairro onde
moro.

Fecho o tampo do notebook assim que a confirmação do envio da


minha atividade brilha na tela. Afasto a cadeira da escrivaninha até a cama,
pegando meu celular para checar — e responder — as mensagens que recebi
na última hora em que meu foco estava totalmente direcionado para o meu
texto sobre a hipermodernidade de Gilles Lipovetsky.
Assim que coloco o pé para fora do quarto, o dueto afinadíssimo de
Annelise Mansen e Taylor Swift cantando ecoa pelo apartamento. Eu me
aproximo da sala em passos sorrateiros, me escorando no portal que a
separa do corredor para assistir o show da garota. Annelise é um ano mais
nova do que eu, tem vinte e um, é a nossa caçula e, certamente, uma das
pessoas mais talentosas que eu conheço.
É dona de um estilo excêntrico, que faz com que ela pareça que jamais
saiu da adolescência, os cabelos curtos e repicados são castanhos num tom
claro, mas estão tingidos numa tonalidade alaranjada. A pele branca possui
algumas pequenas tatuagens de traço fino e, certamente, camisetas de banda
são sua peça de roupa predileta.
Annelise, ou Lise — como nós a chamamos —, é estudante de
educação musical na New York University, a NYU, e além de ter uma voz
divina, ela também é excepcional com o violão. Observo rindo enquanto ela
performa Blank Space como se estivesse no palco do Coachella, sua
concentração no clipe passando na TV é tamanha, que minha presença só é
notada quando a canção chega ao fim e eu a aplaudo com empolgação.
— Annelise Mansen, senhoras e senhores! — falo, entrando na sala e
acenando para uma plateia invisível.
— Obrigada, obrigada, é sempre bom ser elogiada pelos meus fãs —
agradece, rindo, e me abraçando. — Deu tudo certo com o seu texto?
— Aham, meu professor vai ter explosões mentais depois das minhas
argumentações.
Afasto-me dela o suficiente para pegar um amendoim de um dos potes
de guloseimas que ela distribui sobre a nossa mesa de centro. Annelise me
arrasta pela mão até a cozinha para ajudá-la e enquanto ela pica alguns
cubos de queijo sobre a tábua, eu lavo as taças que estão na bancada.
— Sabe, às vezes eu quase esqueço que debaixo dessa sua carcaça de
estrelinha do basquete você é um belo de um nerd.
— Pacote completo, as garotas adoram — me gabo, rindo, e ela
revira os olhos.
— Um dia, manézão, você vai cair de quatro por uma garota que
deteste seu “pacote completo”, e eu vou dar gargalhadas sinceras te
assistindo correr atrás dela.
— Espere sentada por esse dia — declaro, antes de pegar as taças
lavadas e a garrafa de vinho para levar para a sala. — Falando em
esperar… Cadê o seu irmão?
— Mamãe chamou ele para assistir uma audiência dela para poder,
você sabe, tomar notas e todas essas drogas do direito que eu não entendo.
Ele deve chegar daqui a pouco.
— Pensei que ele estivesse com a namorada secreta — solto, sem
perceber.
Não sei como, mas Annelise aparece na minha frente num piscar de
olhos.
— Ele também não contou pra você? — questiona, indignada. Faço
que não com a cabeça. — Ugh! Acho que vou endoidar com essa merda!
Qual é o problema do meu irmão? Por que ele não faz como as pessoas
normais e só… Sei lá, entra com a garota por aquela porta e fala: aí gente,
essa é a minha namorada? Essa enrolação está me dando nos nervos.
Solto uma gargalhada escandalosa porque, porra, a única coisa melhor
do que Annelise cantando é Annelise estressada com o Tyler, sério. Os dois
são eternas crianças implicantes.
— Acho que ele quer que seja um momento descontraído, sei lá.
— É só a garota trazer cerveja, vai ser mega descontraído se
estivermos bêbados. Assim a gente até deixa passar caso ela seja
insuportável.
Isso não aconteceria. Diferente de mim e da irmã, que temos históricos
bem duvidosos no quesito garotas, Tyler sempre atrai as divertidas e
simpáticas. Sério, desde a escola, suas duas ex-namoradas foram garotas
incríveis e que acabaram se tornando nossas amigas mesmo depois do
término.
Annelise e eu deixamos a sala completamente arrumada, pronta para
deitarmos no sofá e maratonarmos o máximo de episódios de Friends que
conseguirmos. Tyler chega quando estamos assando brownies para
comermos depois da bebedeira, e enquanto ele se troca, nós finalizamos
tudo.
É uma noite boa, nós três damos risada até nossas barrigas doerem e,
como eu já imaginava, Rachel e Ross realmente se distanciam, o que faz uma
Annelise bêbada chorar feito uma criança agarrada ao próprio travesseiro.
Às tantas da madrugada, quando o vinho já controla boa parte do nosso
corpo, nós adormecemos ali mesmo, largados no sofá e com Bruce roncando
nos nossos pés.
Sendo sincero, eu simplesmente amo dias assim. Quando nós três
estamos juntos, fazendo algo que gostamos e deixando de lado os estresses
da faculdade e as angústias quanto aos nossos futuros. Apenas sendo o trio
Ethan, Tyler e Annelise, vendo séries e se divertindo, como na nossa
infância no Queens. Em momentos como esse eu me lembro do porquê é tão
legal morar com os meus melhores amigos.
Tyler e Annelise também são a minha família, e eles fazem com que
esse apartamento seja, de fato, a minha casa.
“Tem sido difícil para mim confiar (oh)
E eu tenho medo de estragar tudo (oh)
De jeito nenhum eu posso te abandonar
Porque você nunca me deixou na mão”
STAY | The Kid Laroi

4 de julho de 2021

Minha sexta-feira já começou atípica, para não dizer desesperadora.


No momento em que meus pés tocaram o corredor da Chisholm House
em direção ao estacionamento, algo já me dizia que hoje não era, nem de
longe, o meu dia. E como um brinde completamente infeliz, está armando um
temporal daqueles bem em cima de Nova Iorque.
Recapitulando: acordei duas horas mais cedo que o habitual para
finalizar meu relatório de Mídias Digitais, e consegui terminá-lo com trinta
minutos de sobra até o horário em que eu realmente deveria ter acordado. Só
por isso, decidi que seria uma boa ideia tirar um cochilo para compensar as
horas de sono perdidas.
Spoiler? Foi uma decisão muito mal calculada.
Com exatos trinta e dois minutos de atraso, escovar os dentes, me
enfiar em uma calça jeans e um moletom da faculdade foi o mais perto que
cheguei de conseguir me arrumar. E foi com o rosto amassado e o cabelo
embolado — preso em um coque —, que dirigi como uma desesperada pelo
curto trajeto do alojamento até o prédio de jornalismo, onde eu teria minha
primeira aula.
E é exatamente esse o estrago que eu tentava reparar, até agora. Checo
o relógio e noto que tenho exatos quatro minutos para estar dentro do
auditório entregando meu relatório, portanto, arrumar o cabelo está longe de
ser uma opção. Torno a prender os fios em um coque desajeitado e pego
minha bolsa no banco do carona, saindo apressada de dentro do carro.
Corro em direção à escadaria enorme do prédio. Entretanto, um fato
me chama atenção e em segundos, minha passada perde o ritmo quando, a
alguns metros, vejo Ethan descendo de um Corolla branco. O adesivo no
painel indica que o carro pertence a uma estudante da NYU, e eu vejo ele se
despedindo de maneira carinhosa da menina que o dirige.
Uma namorada, talvez, ou apenas mais uma na sua lista extensa de
relações casuais. Chuto a segunda opção. Ainda que eu não seja a maior
detentora de informações sobre a vida pessoal do cara, sua fama na Irving
não tem como ponto principal o apreço por relações sérias.
De qualquer forma, sinto pena da pobre alma que tem de aturá-lo por
mais do que dois minutos. Deve ser uma morte lenta e dolorosa.
Balanço a cabeça, afastando meus pensamentos da suposta vida
amorosa do meu odioso colega de turma, e volto ao foco de chegar na aula
em tempo de conseguir um lugar para me sentar. Subo a escadaria correndo,
sem tomar o cuidado de olhar ao redor para me certificar de que não estou
parecendo uma estranha. Ainda em passos largos e rápidos atravesso os
corredores do prédio, rumando o caminho para o auditório.
Ouço um barulho de pisadas duras vindo logo atrás de mim, mas estou
focada demais em correr como se minha vida dependesse disso que acabo
me limitando a seguir meu caminho. Entretanto, como esperado, cheguei
tarde demais.
— Droga! — esbravejo, baixinho, diante da porta fechada.
Um fato sobre os dias de entrega de relatório da aula de Mídias
Digitais ministrada pelo Sr. Carter: atrasos não são tolerados.
Portanto, porta fechada significa esperar por uma hora e meia até que
se possa entrar e, se der sorte — ou se tiver um histórico milimetricamente
impecável, como o meu —, tentar negociar para que ele aceite seu trabalho
fora do horário de entrega.
Por alguns segundos, a ideia de apenas girar a maçaneta e entrar no
auditório, como se nada estivesse acontecendo, me parece, no mínimo,
sedutora. Mas, quando minha mão está prestes a tocá-la, uma voz rouca ecoa
atrás de mim, como um chamado de volta à realidade.
— Pelo bem da sua integridade emocional, não faz isso.
O conselho vem de um Ethan Harris com óculos escuros e cabelo
levemente bagunçado. Ele está exalando ressaca, mas ainda assim, é notável
que levou um bom tempo para se arrumar. O que indica que ele claramente
penteou o cabelo e depois o despenteou, propositalmente, para obter o ar
despojado que tenta exalar.
Esse cara é tão previsível.
— E desde quando se importa com a minha integridade emocional? —
questiono, levando minha mão até a cintura.
— Cara, não — diz, erguendo as palmas das mãos em um gesto para
que eu pare. — Não me venha com essas porras agora. E eu acabei de
acordar, estou sem disposição para suas discussões, certo?
Tenho certeza de que estou fazendo uma careta.
— O fato é que Carter é um filho da puta sádico que sente prazer em
humilhar os alunos. E embora meu apreço por você seja ridículo de tão
pequeno, caso abra essa porta ele vai encher o nosso saco. E eu não quero
vê-lo fazer isso com alguém da minha turma e, certamente, não quero que
faça comigo — explica, bufando, enquanto aponta para a porta. — Além do
mais, convenhamos, você não está no seu melhor dia.
Ele solta uma risada sarcástica quando termina e ergue o queixo na
minha direção. Eu, por outro lado, estou encarando-o como se fosse um ET.
— Tá bom… Posso saber o que te garante que não estou no meu
melhor dia? — Eu sei que não estou, mas não está nos meus planos admitir
isso para ele.
Ethan grunhe. Acho que esperava que eu ficasse quieta, mas já deveria
saber que não faz muito o meu feitio.
— Está sem as roupas de princesa que sempre usa e o seu cabelo
raramente fica preso. Posso chutar que acordou atrasada, exatamente como
eu — conclui, apontando para seus óculos.
— Não diria que “exatamente”, acho que foram por motivos bem
diferentes — debocho, relembrando da cena dele descendo do carro da
garota misteriosa da NYU, que provavelmente foi o motivo do seu atraso. —
E não acha que está prestando atenção demais em mim, não?
— Acredite, eu presto atenção em tudo. E leio livros policiais o
suficiente para saber identificar desvios do padrão — ele se gaba e eu
reviro os olhos.
— Uau, você lê! Estou surpresa, juro. Achei que se limitava às leituras
obrigatórias da faculdade.
Ele solta uma risada de escárnio e abaixa o óculos para que eu
vislumbre seu olhar de tédio.
— Sua ideia de que atletas são neandertais é um tanto preconceituosa e
batida, sabia?
— Não acho que atletas são neandertais, só acho que você divide seu
tempo entre o basquete, seu espelho e infernizar a minha vida. Não me
parece sobrar muito tempo para leitura.
— Acho fofo o jeito que você se supervaloriza, Coelhinha. Sério, sou
super adepto do amor próprio, das mulheres amarem a si mesmas e todo
aquele lance de “meu corpo é um templo” e tal. Mas sério, precisa relaxar
com essa mania de perseguição aí, isso faz mal.
Se eu pudesse definir o quanto revirei os olhos, seria numa faixa de
“muito” a “fiquei com medo deles não voltarem ao normal”.
— Ah, sim, pode deixar. Vou anotar sua sugestão. Agora se me der
licença, vou atrás de um lugar para passar minha uma hora de espera, porque
‘nem ferrando’ fico aqui com você — decreto, antes de sair andando pelo
corredor.
É no mínimo impressionante o que quinze minutos no banheiro, água,
uma escova de cabelo e os apetrechos de maquiagem certos podem fazer na
vida de uma pessoa. Me sinto um pouco menos incomodada com o fato de ter
acordado tarde agora que encaro meu reflexo no espelho. Guardo tudo que
usei de volta na minha bolsa e decido mandar uma mensagem para Adam
Maddox, aluno de literatura e atleta de arco e flecha com quem tenho
conversado recentemente.
Nos conhecemos em uma festa durante as férias. Acabamos nos
beijando bêbados em um canto aleatório e passamos a trocar algumas
mensagens, até saímos juntos uma vez para o cinema. Adam tem um papo
decente e um beijo bom, então não é de se jogar fora.
Eu: Ei, está livre?
Encaro a mensagem por poucos segundos antes de clicar em “enviar”.
Penso se Adam vai me achar uma esquisita por estar convidando-o para algo
à essa hora da manhã. Íntimo demais, talvez?
Errado. É o que concluo pela resposta que chega em uma fração de
segundo.
Adam M: Eu sempre estou livre para você :)
Eu: Me atrasei para uma entrega de relatório, queria companhia
para um café…
Adam M: Refeitório do Coleman Campus em três minutos?
Comemoro mentalmente.
Eu: Chego em quatro, estou na área leste do prédio de jornal.
Adam M: Tranquilo, estarei te esperando :)
Adam bebe expresso sem açúcar.
Tenho uma mania estranha de prestar atenção em todos os detalhes do
pedido de alguém quando ela toma café e, graças aos meus anos trabalhando
em uma cafeteria, consigo traçar um perfil — que só faz sentido na minha
cabeça — para as pessoas que quase sempre é bem exato. O do garoto na
minha frente, por exemplo, encaixa perfeitamente.
Adam é um cara metódico, rigoroso e com mania de organização.
Consegui perceber isso pelo seu carro quando me levou ao cinema, e agora,
vendo-o organizar de forma alinhada a tampa do copo de café, os
guardanapos e o seu biscoito sobre a bandeja. Fico maravilhada com o fato
de que minhas teorias nunca falham.
Pessoas que bebem expresso sem açúcar são sempre organizadas. É
quase um padrão entre os clientes que atendo na Letras e Grãos.
— E aí, como está sendo sua manhã? — questiona, inocente, antes de
tomar um gole da bebida.
O encaro por alguns segundos, pensando em uma resposta breve e
acabo soltando uma risada contida quando chego a um veredito.
— Terrível. Eu sei que esse não é o certo a se dizer quando alguém
pergunta isso, mas é verdade. Eu queria poder voltar nesse exato momento
para a Chisholm House e me enfiar debaixo das cobertas para dormir pra
sempre — concluo, me afundando na poltrona do refeitório e me sentindo um
tanto arrependida por ter sido tão sincera. Não é todo mundo que realmente
quer saber como você está quando faz esse tipo de pergunta.
— Sinto muito — me consola, antes de dar um gole em seu café. —
Mas fico feliz que tenha pensado em mim para tomar um café e tornar sua
manhã um pouco menos ruim.
— Fico feliz que não esteja achando isso uma droga — confesso,
soltando uma risadinha, e ele me acompanha.
Adam é um cara de beleza óbvia. Parece um príncipe foragido de
algum live action da Disney e não é preciso muito esforço para achá-lo
atraente. Os cabelos num tom loiro escuro estão sempre penteados em um
topete curto e arrumado, as íris azuis parecem abrigar oceanos dentro delas e
a boca tem uma tonalidade rosa-claro que contrasta de forma chamativa com
a pele branca.
O cara é bonito, e negar isso seria como dizer que 2 + 2 são 5.
— Claro que não. Inclusive, tenho pensado em você com frequência…
— ele inicia, e eu acompanho o seu indicador girar sobre a borda do copo.
— Pensou, é? — pergunto, com um sorriso bobo no rosto. — Espero
que só coisas boas.
— Foram. Na verdade, eu queria sair com você de novo, algo mais
íntimo, sabe? Pensei de você ir até o meu apartamento, podemos pedir
alguma coisa, beber um vinho… Algo do tipo.
Seu tom acende um alerta em minha mente e, de uma hora para outra,
eu sinto que esse café talvez não tenha sido uma boa ideia. Adam quer sexo.
Um convite para um vinho no seu apartamento deixa isso bem claro, esse não
é o tipo de programação que você dura muito tempo com as roupas no corpo.
E eu, definitivamente, não estou pronta para avançar para essa etapa ainda.
Entenda, não é como se eu fosse puritana nem nada do tipo. Eu gosto
de sexo, gosto mesmo, mas não tenho a mesma facilidade que a maioria das
pessoas nessa faculdade para ir para a cama com um cara. Sexo casual não é
o meu forte. Eu preciso de um pouco mais do que alguns amassos em uma
festa e uns beijos com mão boba em um cinema para conseguir transar com
alguém sem me sentir terrivelmente desconfortável.
— Ah, eu… Nós… Que tal um jantar? Tipo, em um restaurante.
Podemos ir juntos, conversar e daí, quem sabe, deixamos seu apartamento
para o nosso próximo encontro. Tudo bem por você? — sugiro. Adam
assente, e a frustração mancha seu semblante, mas tão rápido quanto chega,
ela desaparece.
— Por mim, ótimo — o sorriso empolgado em seu rosto me diz que
ele já deu o jogo como vencido. Como se o jantar que sugeri fosse apenas
uma etapa até chegar no que ele realmente quer. Um último desafio antes da
vitória.
Malditos atletas.

Benjamin Carter é um filho da puta sádico.


Repito mentalmente a frase que Ethan proferiu mais cedo quando, ao
final da segunda aula, restamos apenas nós três dentro do auditório, o
professor, Ethan e eu.
Eu e Harris estamos sentados lado a lado, em duas cadeiras na
primeira fila, enquanto nosso professor nos encara andando em círculos,
pois está “pensando” se irá aceitar nossos trabalhos. O suspense feito pelo
docente é de irritar até o mais calmo dos seres, e seu olhar questionador
pairando sobre nós me faz querer acabar com essa palhaçada de uma vez.
— Não estou certo de que devo acreditar que seus atrasos são casos
isolados que não possuem qualquer correlação. Isso me soa como um atraso
conjunto fruto de irresponsabilidade — sua voz tem um tom de inquisição
que faz o sangue ferver em minhas veias.
— Mas que porr... — Ethan começa a chiar, porém, antes que o
termine e enfie nós dois em encrenca, acerto uma cotovelada em seu braço.
— Vocês são os melhores alunos dessa cadeira, e os dois perdem o
horário no dia da entrega do relatório, com a mesma desculpa de que
dormiram até tarde e não ouviram seus alarmes? No mínimo estranho, não
acham? — sua fala me deixa boquiaberta, e eu juro que me vejo chutando o
meio das suas pernas.
Não é possível que esse cara esteja insinuando isso, e bem na minha
cara.
— M-Me desculpe, professor, mas onde, exatamente está tentando
chegar? — indago, completamente indignada.
— Ah, vamos lá, garotos. Eu leciono há dez anos nesta universidade,
conheço jovens cheios de hormônios como a palma da minha mão…
Não consigo ouvir muito do restante da sua baboseira porque sinto a
raiva se alastrando por minhas veias como se fosse uma dose fatal de
veneno. Cada célula do meu corpo está altamente revoltada com a suposição
feita e, principalmente, com o olhar nojento que está sendo direcionado,
especialmente para mim. Carter acha que Ethan e eu nos atrasamos para a
aula porque dormimos juntos?
— Como é que é? — esbravejo, me levantando e segurando com força
o pendrive com os arquivos do relatório. — O senhor só pode estar
brincando! Esse tipo de conversa nem ao menos deveria ser permitida, isso é
antiético em todos os níveis possíveis!
— Senhorita Castillo, eu apenas fiz uma pergunta — responde calmo,
fazendo minha paciência se esgotar.
— O senhor não fez uma pergunta, apenas me acusou de ter perdido o
prazo por conta dele — falo, brava, apontando para Ethan, que está sentado
com a coluna enrijecida. — Isso é nojento, a minha vida não te diz respeito!
— Não foi… — ele começa, mas é impedido por uma bufada alta.
— É o seguinte, eu tenho treino em dez minutos, e esse papo furado
pode me custar um banco no jogo do fim de semana. Se me permite pontuar,
professor, o que seus alunos fazem ou deixam de fazer fora dessa
universidade definitivamente não é da sua conta, e ainda que eu e ela — diz,
apontando para mim — estivéssemos, você sabe… Novamente, não é da sua
conta e não cabe ao senhor julgar os motivos dos atrasos dos alunos como
verdadeiros ou falsos com base em achismos. E mais, não cabe ao senhor
insinuações sobre a vida privada dos seus acadêmicos.
Ele solta uma risada de escárnio e eu acho que nunca o vi irritado
dessa forma. Nunca.
— Então, por favor, diga logo se irá aceitar nossos relatórios ou não,
porque eu quero dar o fora daqui, e acredito que após esse constrangimento,
a senhorita Castillo também. Só nos diga, devemos requerer a segunda
chamada ou não?
Encaro Ethan completamente chocada.
Não só por sua argumentação não apresentar sequer uma gaguejada,
mas também pelo fato dele não ter sido o egoísta que sempre é e ter me
incluído na missão “cair fora daqui”. Balanço a cabeça em sinal de
concordância para expressar que também quero ir embora e volto meu olhar
para meu professor, que prontamente nos estende uma das mãos onde
depositamos nossos pendrives.
Feito isso, pego minha bolsa e sigo em direção à saída do auditório
sem olhar para trás. A cada passo que dou para fora do prédio, a ficha do
que acabou de acontecer vai caindo e eu vou me sentindo ainda mais
impotente. Posso sentir meu sangue esquentando cada vez mais em minhas
veias e penso que posso explodir a qualquer momento, como uma bomba.
Benjamin Carter não é o primeiro professor antiético dessa faculdade,
e também não será o último, mas não é normal passar pelo que acabei de
viver e eu não consigo deixar de me perguntar o que teria acontecido caso
Ethan não estivesse lá. É inevitável me sentir fraca ao perceber que homens
só respeitam outros homens, e que se eu estivesse naquela sala sozinha, eu
poderia ter ouvido coisas ainda piores.
Dói ainda mais porque sei que mesmo que eu abra uma denúncia pelo
diretório acadêmico, o desgraçado provavelmente vai sair impune e
continuar lecionando, impondo medo e constrangimento às outras alunas
livremente.
É um ciclo sem fim.
Eu ainda tenho mais uma aula para assistir, mas a essa altura eu não me
importo mais, e sei disso porque sem que eu perceba, já estou no
estacionamento diante do meu carro. Abro o porta malas para pegar a
mochila preta que tanto me acompanha em momentos como esse, e então, me
acomodo no banco do motorista, trocando de roupa ali mesmo para, em
seguida, dar a partida rumo à academia que fica a alguns quarteirões do
campus.

O suor que escorre desenfreadamente por minha testa não é o


suficiente para me trazer alívio. Meu coração pulsa forte a cada soco, e o
barulho do material das luvas estalando contra o saco de pancadas na minha
frente é quase inaudível aos meus ouvidos. A única coisa que consigo
escutar é um zumbido forte de pura raiva e ressentimento.
Cada vez que meu punho, embalado na luva de boxe, se choca contra
os dez quilos do saco, sinto como se a mágoa reverberasse por meu corpo
sendo conduzida em ondas elétricas até minhas mãos. Distribuo uma
sequência de golpes fortes e certeiros que ecoam alto pela academia onde
outras pessoas também treinam, mas aqui e agora, é como se só existisse eu e
toda a consternação que me preenche.
Pratico kickboxing desde os meus quinze anos, e desde nova as luvas e
os sacos de pancada sempre foram o meu refúgio para me livrar da realidade
conturbada que eu enfrentava em casa. No entanto, atualmente, além do
alívio emocional, treino o esporte também como uma forma de aprender a
me proteger, já que se trata de uma arte marcial de defesa pessoal.
Essa prática já me livrou, e livrou amigas minhas, de umas enrascadas
enormes em festas na faculdade, onde caras bêbados demais com intenções
ruins estão sempre em busca de alguma garota tão bêbada quanto para se
aproveitarem.
Com o tempo de prática, fui adquirindo técnica e paixão pelo esporte.
Por isso, boas horas do meu mês passaram a ter como destino certo a
academia em que me encontro.
— Concentra, Amy! — Ouço a voz grave de Simon Lang, o meu
personal trainer, zunindo em meus ouvidos como um chamado de volta para a
realidade.
Meu olhar volta a ficar vidrado no saco de pancadas e a cada soco que
desfiro contra o mesmo, meu imaginário projeta uma face única como alvo: a
do meu professor. Uma sequência de socos certeiros é dada mentalizando,
um dia, ter poder o suficiente para nunca mais ter minha vida posta em pauta
de uma maneira sexualizada e insinuante como aquela.
Somente quando sinto minha garganta arder e meus braços doerem,
tomo consciência de que estou massacrando o alvo em minha frente.
Posiciono minhas mãos nas laterais mantendo-o firme e encosto minha testa
molhada contra a lona, respirando profundamente e sentindo meus pulmões
enchendo e esvaziando. Repito o processo por um tempo até que meu corpo
pare de tremer.
— Dia difícil ou semana difícil? — A voz de Simon soa mais
empática e doce.
— Dia — respondo cedendo ao cansaço e me sentando no chão.
Sempre que ele me pergunta isso eu sinto vontade de responder
“vida”, mas minha consciência sempre pesa uns bons vinte quilos a mais
quando essa palavra está na ponta da minha língua. Eu sempre tive tudo.
Faltou afeto, mas eu tive tudo, materialmente falando.
É injusto ignorar essa parte.
Simon me estende minha garrafa d’água. Aperto-a com força, drenando
todo o líquido que consigo.
— Acordei atrasada, tive um encontro com um cara que aparentemente
só quer transar comigo, me atrasei para uma entrega de trabalho, tive
problemas com um professor pé no saco e mal consegui pentear o meu
cabelo. — Foi um caos, e acho que ele percebeu, porque está me encarando
com compaixão. — Além do mais, eu tenho certeza de que estou fedendo
agora.
Simon ri.
— Como o responsável pela sua saúde e condicionamento físico, eu
deveria te indicar uma volta de bicicleta ou até correr. Mas treino você há
tempo o suficiente para poder dar minha opinião como amigo…
— Que é?
— Chame uma amiga e vá tomar uma cerveja, Amy! Sério, você está
precisando, teve um dia de cão.
Gargalho alto, de verdade. E gargalho mais ainda porque, para uma
universitária que passou por dois anos de faculdade na base da
“cervejaterapia”, essa é realmente a minha opção.
— Tenho uma festa de fraternidade hoje, depois do trabalho. Megan
vai me apresentar o namorado novo.
— Excelente pedida. Cerveja aguada, pessoas novas e músicas de
gosto duvidoso são um ótimo jeito de desestressar — ele fala rindo e eu o
acompanho.
— Simon, eu já te disse que você foi promovido à terapeuta?
— Acredite, eu sempre soube que esse momento chegaria.
É verdade.
Simon Lang é o filho do dono desta academia. Ele é alguns anos mais
velho do que eu e nos conhecemos desde a adolescência. Começamos
treinando juntos, mas conforme ele foi evoluindo e demonstrando interesse
em lecionar, seu pai o capacitou para ser treinador e, desde então, é ele
quem me acompanha quando venho até aqui descarregar umas boas
pancadas.
Fomos nos tornando próximos com o passar dos anos e até já saímos
juntos algumas vezes. É mais fácil conversar com ele, principalmente sobre
a minha família, porque, de certa forma, ele acompanhou a fase terrível do
divórcio dos meus pais. Todos os nossos treinos se dividem um pouco entre
o esporte e a conversa, o que eu adoro. Simon sempre me deixa falar pelos
cotovelos e escuta tudo com bastante cuidado, me ajudando sempre que
possível.
E agora, enquanto encaro o teto iluminado da academia, processando
seu conselho, eu só desejo que esse dia pavoroso termine comigo bêbada e
dançando alegre na sala das Vixens. Ou, pelo menos, algo bem perto disso.
“Eu digo uma vez
Você diz duas vezes
Você sabe que eu gosto de uma competição de vez em quando”
COMPETITION | Little Mix

4 de julho de 2021

Festas de fraternidade são sempre um caos.


É o que minha mente responde quando Charles Brooks afirma, ao meu
lado, que aquele lugar está “um caos”.
Universitários embriagados em grande quantidade se locomovem de
um lugar para o outro, outros dançam de forma desengonçada uma música
ruim que estrala nas caixas de som, e alguns estão parados encarando-nos
enquanto eu e meu amigo entramos na festa acompanhados de meia dúzia de
jogadores de basquete extremamente altos. Chegar em algum lugar é quase
sempre um evento quando se tem uma altura nem um pouco convencional,
como é o nosso caso.
Preciso encontrar Tyler o mais rápido possível, segundo a última
mensagem que me enviou, ele está me esperando no jardim. Confesso que
estou morrendo de curiosidade para saber quem foi a sortuda que faturou o
coração do meu amigo, mas sinto que ainda estou sóbrio demais para encarar
a multidão.
Por isso, desvio do caminho que os outros jogadores estão fazendo e
vou até a cozinha, onde está o barril de cerveja. Encho um copo vermelho
que encontro na bancada enquanto dois caras com moletons de engenharia
disputam para ver quem vira mais vodka, acompanhados de uma plateia
calorosa de umas dez pessoas que, com certeza, estão muito bêbadas.
— Pode colocar um pouco para mim também? — Abro um sorriso ao
ouvir a voz feminina, já conhecida, soar atrás de mim .
— Com toda certeza — respondo, me virando em sua direção.
Ava Christie é a capitã do time de vôlei da faculdade, estudante de
arquitetura, o nome mais endeusado no vestiário do time de basquete e, por
coincidência, a mais recente frequentadora assídua da minha cama. Nos
conhecemos em alguma festa logo que entrei para a faculdade, mas acabamos
nos aproximando mais nos últimos tempos, porque, bom, queremos as
mesmas coisas e somos bons no que fazemos.
E não, eu não estou falando das vitórias expressivas nas quadras.
— Como vão os treinos? — pergunta, me entregando seu copo e se
sentando em uma banqueta que está ao meu lado.
— Bons. Butler tem nos colocado pra suar. Pré temporada é sempre
meio fodido — falo, enchendo seu copo e colocando-o ao lado do meu na
bancada. — E você, Rainha do Vôlei, como está?
— Ando entediada, sabe? — a provocação está implícita em sua voz e
eu a observo enrolar uma mecha de cabelo no indicador. — Sentindo falta de
uma boa distração, se é que me entende.
Tombo a cabeça para trás e gargalho, sabendo exatamente de que tipo
de distração ela está falando, e é quando Ava vê a brecha perfeita para me
puxar para si pelo tecido da minha camisa. Me deixo levar, ficando de pé
entre as suas pernas. O banco em que está sentada é alto, fazendo com que
nossos rostos estejam alinhados.
— Estou livre amanhã… — solto, antes de me aproximar do seu rosto
e puxar seu lábio inferior entre os dentes.
— Hoje não? — questiona, passando os braços pelo meu pescoço.
Desço o olhar devagar pelo seu corpo enquanto minhas mãos vão até a
sua cintura, Ava está com uma camisa de lã preta, de manga comprida, que
vai até um pouco abaixo dos seus seios e deixa seu top de renda da mesma
cor aparecendo. A calça jeans escura tem um corte que valoriza seu quadril
e, de fato, eu entendo os caras babando por ela, a garota é bonita pra cacete.
— Hoje não — falo baixo, me aproximando da sua boca e esperando
alguma negativa por sua parte. — Tô meio enrolado com umas coisas, foi
mal.
— Amanhã, então. No meu apartamento, às nove?
— Estarei lá.
Simples assim, ela sorri e me beija com lascívia. As mãos ansiosas
passeiam pelos meus braços e eu sinto quando suas unhas afiadas sobem
pelo meu pescoço arranhando a pele. Preciso tomar as rédeas da situação e
conduzir o beijo para um ritmo mais lento antes que eu fique duro no meio de
uma cozinha cheia de gente, e conforme a euforia vai se dissipando, me
afasto devagar, deixando beijos breves em sua boca.
— Preciso encontrar os caras, mas… Amanhã, às nove, está
combinado — digo, me afastando devagar, para não quebrar o clima de
forma tão brusca. — Tudo bem?
— Sim — ela confirma e se estica para dizer algo no meu ouvido. —
Vou esperar você sem roupa.
Ava se afasta e me lança uma piscadinha inocente antes de pegar seu
copo e levá-lo até os lábios. Balanço a cabeça em negação, com um sorriso
besta no rosto, porque porra, se essa não é a melhor frase para se escutar, eu
não faço ideia de qual seja.
Me despeço da garota com um beijo rápido e então viro um gole
generoso de cerveja antes de me enfiar no mar de pessoas ocupando a sala
das Vixens. Chegar até a porta de vidro que leva ao jardim é uma missão
trabalhosa, mas assim que consigo me livrar da multidão e, finalmente,
respirar ar fresco, varro o ambiente com os olhos e localizo meu amigo a
alguns metros.
— Achei você! — digo, em uníssono com uma outra pessoa ao meu
lado.
E é nesse instante que a minha ficha não cai, ela despenca.
Puta merda.
— Surpresa? — a garota loira, que eu conheço de algum lugar, fala ao
lado do meu amigo, completamente desconcertada.
Amelie e eu nos encaramos incrédulos, e alternamos o olhar dos
nossos próprios rostos com o dos nossos amigos, que estão lado a lado e,
para não deixar nenhuma dúvida, de mãos dadas. Aos poucos, todas as peças
vão se encaixando e eu entendo exatamente o que diabos está acontecendo.
Eles esconderam o relacionamento justamente por saberem do nosso
histórico.
E isso me deixa um pouco chateado.
Não é pra tanto. Ou é?
— Ethan, esta é Megan Lewis — Tyler quebra o silêncio causado pelo
choque inicial.
— Amelie, este é Tyler Mansen — Megan fala, olhando para a amiga.
— E a gente tá junto — eles dizem ao mesmo tempo, e eu os encaro
ainda impactado.
Não sei exatamente o porquê, mas acho que imaginei todas as garotas
da universidade, menos Megan. O que é uma tolice, a garota é parte da
torcida organizada do time e uma fã de basquete ferrenha. Eu já os vi
trocando diversos olhares em festas da galera do basquete, mas não fazia
ideia de que já tinham ficado.
Ou que estavam namorando.
Meu melhor amigo está namorando a melhor amiga da garota que
precisa fazer um esforço sobre-humano para não acertar um chute no meu
saco a cada dez minutos. Essa vai ser boa, mal posso esperar.
Cumprimento Megan com um abraço e faço algumas piadas sobre ela
cuidar bem do meu irmão de alma e toda aquela palhaçada clichê de anúncio
de namoro. Amelie faz o mesmo com Tyler, mas demonstra estar tão
perplexa quanto eu estou por dentro. Existe um fato sobre mim que é inerente
à minha personalidade: eu faço piadas quando fico nervoso ou quando não
sei como agir. Muitas delas.
Por isso, evito ao máximo abrir a boca enquanto Tyler e Megan nos
contam sobre sua recente relação. Eu quero, de coração, conseguir prestar
atenção no que eles estão dizendo, mas tudo em que minha mente foca é no
fato de que, definitivamente, agora existe um elo que me ligue à Senhorita
Chatinha. Como se já não bastasse o curso de jornalismo.
Estou fodido.
— Ethan, por favor, vai dar uma volta!
O pedido desesperado vem de um dos meus companheiros de time,
Elói Pierre, intercambista francês, estudante de Literatura e um dos melhores
pivôs do atual cenário universitário. Ele e Mark, um cara do time de hóquei,
estão quase implorando de joelhos para que eu e Nate, um estudante do meu
curso, saiamos da mesa de beerpong após ganharmos quatro partidas de
lavada.
Tombo a cabeça para trás explodindo em uma gargalhada alta diante
do chilique dos perdedores, e então resolvo lhes oferecer uma trégua.
— Vou dar uma volta, mas só porque ter ganhado todas as partidas não
me deixou beber nada e estou com sede — falo ainda rindo e deixando a
mesa, caminhando com destino à cozinha.
Assim que adentro o cômodo, me deparo, mais uma vez, com a silhueta
inconfundível da minha detestável colega de curso. Sua gargalhada alta e
esganiçada chega até meus ouvidos, me arrancando uma careta involuntária.
Nunca fui exatamente o maior fã de barulho, exceto o da torcida vibrando na
arena.
Ela está de costas para mim, um casaco de lã branco fino está caído
em seus cotovelos, deixando à mostra um pouco de seus ombros nus cobertos
apenas por duas finas alças pretas, e se estende até sua panturrilha, que está
coberta por uma calça jeans de lavagem clara. Nos pés, um par de all star
brancos completa seu estilo despojado e ao mesmo tempo arrumado.
Passado o choque inicial da notícia de que nossos amigos estão
namorando, Amelie e eu passamos um tempo conversando com os dois, e
não preciso nem dizer que o clima ficou uma merda, porque nós não somos
capazes de concordar em absolutamente nada. Depois, nos dispersamos para
tentar curtir um pouco da festa. E também para que os mais novos pombinhos
pudessem se pegar sem plateia.
Ainda estou digerindo a informação, confesso, mas de qualquer
modo, estou feliz pelo Tyler.
— Pelo visto vamos nos ver mais vezes, então — falo baixo, parando
atrás dela e me curvando em sua direção.
Vejo que suas amigas me encaram com olhares arregalados, como se
eu fosse uma espécie de extraterrestre. No fundo, acho que estão curiosas
pelo desfecho de um diálogo entre nós dois. Foco minha visão em seu
contorno enquanto ela respira fundo e se vira vagarosamente para mim.
— Para o meu desprazer — retruca com aquele sorriso de assassina
típico. — O que você quer, hein?
Noto quando as garotas atrás dela se afastam e fingem não prestar mais
atenção em nós.
— Nossa, abaixe as armas aí, eu vim em paz — provoco, rindo, e seu
semblante fica ainda mais irritado. — Queria pedir desculpa pelo lance com
o Carter mais cedo, ele foi um babaca, principalmente com você.
Acho que a peguei desprevenida, porque sua boca forma um “o”
enorme e ela me olha como se eu tivesse falado algum absurdo.
— Só está dizendo isso por causa do Tyler e da Megan, não é? —
pergunta, e eu bufo.
— Você não pode não ser insuportável por, sei lá, meia hora?
— E você não pode parar de fingir que realmente se importou comigo?
Okay, você nos livrou daquela conversa horrorosa, mas foi só isso, não
somos amigos. — Ai, essa doeu!
— Acredite, não quero ser seu amigo. — Solto uma risada irônica e
ela me olha com desdém.
— Você não sabe o quanto estou triste em saber disso — diz,
simulando uma voz de choro. — É quase semelhante ao que vou sentir ao
ganhar aquele estágio.
Sua menção ao processo seletivo me faz ter vontade de rir, pois
consigo imaginá-la colocando meu rosto em um alvo em seu quarto onde ela
acerta dardos para ter sua motivação diária para os estudos.
— Sabe, às vezes eu realmente acho que você leva isso aqui… —
Aponto para nós dois, de maneira intercalada, e logo em seguida dou um
último gole em um resto da minha cerveja. — Muito à sério, como se valesse
alguma coisa.
Uma risada sarcástica escapa de seus lábios e ela leva uma das mãos
até a cintura, em uma pose que a faz assumir a imagem de uma bad girl sexy
de filmes de universidade.
— Não é verdade. Eu só estou fazendo o mesmo que você. Você é um
atleta, gosta de competir, e é isso que fazemos. Estamos competindo —
explica de maneira calma e pausada, e posso estar ficando bêbado, mas
tenho quase certeza de que ela está mais perto de mim do que segundos atrás.
— E eu não entro em competições para perder, Harris.
Aprumo minha postura, fazendo com que minha coluna fique ereta, o
que me dá uns bons centímetros de diferença para ela, que agora me encara
com o queixo erguido e uma determinação voraz cintilando pelos olhos
tornando a tensão quase que palpável.
— Você está errada — declaro, tensionando a mandíbula e temendo
que ela me acerte um soco.
Top duas coisas que eu tenho certeza de que Amelie Castillo odeia: eu,
em primeiríssimo lugar, e ser contrariada, em segundo, mas não menos
importante.
— C-Como é?
— Você não compete comigo, ou seja lá como chame isso, porque eu
gosto de competir. Sim, eu sou atleta, e sim, a competição é algo quase que
encruado em meu DNA, mas não é por isso que entrou nessa. Porque você
não se importa com o que eu gosto, compete comigo porque você é, na
verdade, tão competitiva quanto eu, e sabe disso — constato, lhe oferecendo
um sorriso e, ao visualizar o semblante que ela adota, sei que está irritada
por saber que estou certo.
Olho ao redor rapidamente para me certificar de que não estamos
mesmo sendo observados como animais em uma rinha, percebo que não há
nem mesmo um universitário sóbrio o suficiente para isso e suas amigas já
não estão mais por perto. Estão todos dançando, bebendo, se pegando,
fumando ou fazendo qualquer outra coisa que os mantenha ocupados o
suficiente para não observarem sua novela favorita no campus: nós.
Volto meu olhar para a garota diante de mim que parece estar
formulando alguma sentença para rebater o que acabei de lhe dizer. Não tiro
seu mérito; nós, futuros jornalistas, nascemos com aversão a derrotas em
discussões. Mas dessa vez não existe contestação.
— Gostando de competições ou não, estamos em uma real agora, a do
estágio — fala, cruzando os braços na frente do corpo e me encarando com o
queixo erguido. Consigo ver sua mente se iluminar no instante em que suas
sobrancelhas se erguem e uma ideia surge em sua mente. — Ei, o que acha
de fazermos uma aposta?
Nada termina bem depois dessa pergunta, nunca. É justamente por isso
que eu respondo:
— Manda ver, Coelhinha.
— Se você ficar com a vaga, eu vou ser sua motorista até o fim do
semestre, te busco em casa de manhã, levo para a aula, e depois te deixo em
casa. Já te vi reclamando por ter que dirigir a moto em dias de chuva ou de
muito sol, então é algo que você pode querer. Só não incluo os treinos
porque eu trabalho, você sabe — propõe, quase fazendo uma careta por
pensar pensar na possibilidade de virar minha chofer.
— Por mim, okay. Vai me economizar uma grana em gasolina para a
moto, e acho que se eu dormir o caminho inteiro posso não derreter meu
cérebro por estar em um carro com você. Mas e se você ganhar? — Ergo a
sobrancelha, já imaginando qual coisa terrível ela tem em mente para mim, e
da minha lista, a menos pior é dirigir vendado em um desfiladeiro. Sério,
essa garota me odeia, muito.
— Você vai ter que desfilar pela faculdade vestido numa fantasia de
coelho. Completa.
O sorriso diabólico em seus lábios me diz que eu devo recusar essa
aposta imediatamente, porque sei, por conta da raiva que ela nutre por eu tê-
la apelidado de Coelhinha, que ela fará desse dia um evento histórico. Caso
se concretize, poderia ter até um cartaz escrito “o enterro de uma vida
social”.
Mas vê-la tão prepotente, certa de que vai vencer, só faz com que eu
sinta ainda mais vontade de ganhar. Já consigo sentir a sensação divina que
será lhe mandar uma mensagem do tipo “você está atrasada e eu tenho aula”
e também o alívio que será poder dormir mais alguns minutos no trajeto para
o campus. Pondero por alguns segundos os prós e os contras, e então,
resolvo arriscar.
— Fechado. — Lhe estendo a mão para selarmos nossa aposta. —
Mas tenho uma condição para aceitar oficialmente…
— Diga.
— Tem que me ganhar no beerpong, uma partida. — Sorrio
convencido. — Pode escolher a dupla que quiser. Caso você perca…
— Caso eu perca… — Me encara séria.
— As regras mudam.
— E quais seriam as suas regras?
— Se eu perder a vaga, o que não vai acontecer, eu faço seus trabalhos
da faculdade enquanto você estagia, mas se eu ganhar… — faço uma pausa
dramática porque sei que vai irritá-la. Seu revirar de olhos comprova minha
tese.
— Fala logo!
— Você vai em todos os jogos que os Lions jogarem fora de casa.
Todos. E se torturar com boas horas de muito basquete e muito Ethan —
concluo, cruzando os braços e a encarando. — É pegar ou largar.
— Você consegue ser um narcisista até em apostas, como é possível?
Elogia seu próprio reflexo sempre que passa por um espelho?
— Pode apostar que sim — falo rindo, esperando sua resposta. — E
aí?
— Desafio aceito — responde com firmeza enquanto varre o olhar
pelo ambiente, acredito eu, em busca da sua dupla.
Amelie continua sua varredura pelo amontoado de universitários até
que sigo seu olhar quando ele pousa em Adam Maddox, quatro vezes
campeão de arco e flecha. Olho para seu rosto com uma expressão incrédula
quando ela anuncia que já tem seu parceiro.
Ela só pode estar brincando comigo.

Amelie não estava brincando. Foi um massacre. Nate está virando o


último copo que perdemos em poucos minutos de partida, a bolinha molhada
em minhas mãos parece desconhecer minha falta de habilidade repentina, e o
sorriso no rosto da minha adversária do outro lado da mesa está me dando
nos nervos.
Ela caminha até mim com um ar de superioridade que é capaz de me
tirar do sério. Seus cabelos em algum momento da partida foram presos em
um coque bagunçado, e sua arrogância exala por seus poros enquanto ela
diminui a distância entre nós. Quando já está próxima o suficiente, ainda sem
deixar de sorrir, Amelie ajeita a gola da minha jaqueta e pousa as mãos em
meus ombros de maneira firme.
— Me passe suas medidas depois, vou mandar fazer a fantasia. —
Cara, eu a odeio tanto.
Seguro suas mãos pequenas e as afasto dos meus ombros, lhe lançando
um olhar fuzilante.
— Pode esperar sentada. A vaga é minha.
Vejo-a olhar ao redor para, em seguida, ficar na ponta dos pés com os
lábios na altura do meu ouvido.
— Isso é o que nós vamos ver.
“Eu não tenho amigos, eu tenho família
No final do dia, isso é tudo que eu preciso
E você sabe, isso é o que você sempre será ”
FAMILY | David Guetta

14 de julho de 2021

Já passa do meio dia quando estaciono em frente ao antigo prédio bege


com portões de ferro. O sol forte esquenta minha pele e faz com que o início
da tarde esteja extremamente abafado no Queens. Desço da moto e guardo o
capacete no bagageiro antes de seguir rumo ao hall de entrada. Subo as
escadas rápido com passadas ritmadas e só paro quando estou diante do
corredor onde passei boa parte da minha vida brincando com Tyler e
Annelise.
Puxo o ar e sinto o cheiro de molho tomando todo o ambiente. Sei
exatamente de onde ele vem e meu estômago faz um barulho alto, que se não
fosse pela fome, me faria dar boas gargalhadas. Aperto a campainha do
apartamento, ouvindo os passos apressados de uma certa garota vindo em
direção à porta, e meu coração se alegra em antecipação. É sempre bom
estar em casa.
— Thitan! — Seu grito fino e estrangulado é música para os meus
ouvidos.
Sem ao menos me dar tempo para pensar, assim que abre a porta e me
vê, Angeline pula em meus braços soltando alguns barulhinhos de alegria.
Ergo-a no colo, abraçando forte seu pequeno corpo enquanto seus braços se
apertam com carinho ao redor do meu pescoço. Respiro fundo, com as
narinas próximas aos seus cabelos, sentindo o perfume de jasmim com amora
penetrar por elas. Aos poucos, todo o estresse e cansaço do dia vai se
apagando.
— Thitan, você está muito alto, consigo ver muita coisa aqui de cima!
— exclama rindo e olhando para trás, mantendo-se agarrada ao meu
pescoço.
— E você não cresce nunca né, tampinha? — provoco, fazendo
cócegas em suas costelas e a ouço gargalhar enquanto se debate em meu
colo.
Lhe dou um tempo para respirar e a coloco de volta no chão. Angeline
faz um gesto para que eu me aproxime, como quem precisa contar um
segredo, então me ajoelho e fico mais próximo de sua altura.
— Papai está fazendo sua lasanha favorita. Era para ser segredo, mas
a gente combinou que irmãos não guardam segredos. — Prendo a risada
ouvindo atentamente sua revelação. — Ele também comprou aquele
refrigerante de adulto que você gosta para te dar de presente. Isso é segredo
também.
Assinto com rapidez e pisco para minha pequena parceira de crimes,
que me lança um sorriso cúmplice. Seguro sua mão e entramos no
apartamento, caminhando em direção à cozinha.
Toda vez que venho visitar meu pai ele compra um engradado de
cerveja artesanal para me presentear, seja pelo bom desempenho nos jogos,
seja pelo boletim acadêmico incrível, ou só para me agradar. Antes eu
tentava recusar, não gostava que gastasse dinheiro comigo por bobagem, mas
aos poucos fui entendendo que isso também o fazia feliz, então passei a
aceitar e guardá-las para comemorações especiais.
O cheiro maravilhoso que pode ser sentido já do corredor é ainda
mais forte aqui dentro. Quando eu e Angeline entramos na cozinha, meu pai
está tirando a lasanha do forno. Ele dá um sorriso ao me ver e logo leva o
tabuleiro com a comida fumegante até a mesa de refeições.
— Papai, o Thitan está ficando com o cabelo igual ao meu!
Um fato sobre minha irmãzinha de oito anos: ela nunca aprendeu a
pronunciar o meu nome. Ainda que “Ethan” seja um nome muito mais fácil de
falar do que “Thitan”, ela sempre me chamou assim, e eu nem ao menos ouso
corrigir, bem como meu pai. Simplesmente fomos nos acostumando com o
fato de que um dia ela vai descobrir sozinha e, se posso prever algo, ela vai
ficar arrasada e eu talvez cogite realmente mudar o meu nome.
A pirralha consegue tudo o que quer.
Eu e Angeline ajudamos o papai a colocar a mesa e então, quando tudo
está em seu devido lugar, nos sentamos em volta dela para comer nossos
deliciosos pedaços de lasanha.
— Como vão os treinos? — meu pai pergunta, antes de enfiar uma
garfada de lasanha na boca.
— Cansativos. Butler é um poço vazio de paciência, o cara está
chutando nossas bundas — respondo com um sorriso cansado.
— Isso deve doer! — Angeline comenta horrorizada.
Eu e meu pai nos encaramos por uma fração de segundo antes de
explodirmos em gargalhadas altas enquanto minha irmã nos observa confusa.
— É uma metáfora, Anjinha — explico.
— O que é isso? — questiona com o cenho franzido.
— Metáfora? — Ela assente com a cabeça.
— Como posso explicar…
— Thitan, eu tenho oito anos, eu não sou burra.
Ouço meu pai engasgar em uma risada.
— Certo, é tipo quando você usa algumas palavras com um sentido
que não é o verdadeiro para falar sobre alguma coisa, entendeu? — Vejo-a
assentir.
Continuamos comendo em silêncio, apenas o quebrando para falar
sobre bobagens do cotidiano. Quando terminamos de almoçar, ajudo minha
irmã a escovar os dentes enquanto papai põe a louça para lavar. Feito isso,
nós três nos deitamos no sofá da sala para assistir um filme, até que minha
irmã parece ter uma brilhante ideia.
— Papai, tenho uma metáfora! O Thitan é um ornitorrinco! — diz, se
remexendo em meu colo.
Eu juro que às vezes queria poder entrar na cabeça dessa criança. Não
sei porque raios isso fez sentido para ela, e não sei ao certo se quero
descobrir. A careta confusa do meu pai entrega o mesmo pensamento.
— Como assim, filha?
— Aprendi ontem na aula que ornitorrincos não namoram, o Thitan
também não, então se eu chamar ele de ornitorrinco é uma metáfora! —
explica como se estivesse dizendo algo óbvio.
— Okay, pestinha, já chega de metáforas para você — falo fazendo
cócegas em suas costelas enquanto meu pai, do outro lado da sala, tenta
esconder o riso.
Conheço muitas pessoas que, ao entrarem para a faculdade, são
tomadas pelo sentimento de terem “se livrado” de casa, por diversos
motivos. A Irving está cheia de jovens que não viam a hora de se afastar da
casa dos pais e de tudo que envolve o ambiente familiar, mas comigo essa
experiência foi completamente contrária — quanto mais precisei conquistar
independência e me afastar, mais eu quis estar de volta.
Papai e Angeline sempre foram as maiores prioridades da minha vida,
e ainda que morando a poucos minutos daqui, a saudade sempre faz questão
de chegar para ficar. Dou o meu melhor para estar presente, faço visitas
regulares e, sempre que posso, tento passar a noite. Se não fosse a
praticidade de morar perto da faculdade, eu com certeza ainda estaria aqui
com eles para acompanhar de perto o crescimento da minha irmã.
Uma das coisas que prometi que faria.
Não sei ao certo qual dos dois adormeceu primeiro, meu pai ou
Angeline, por isso, me despeço em silêncio quando checo o relógio e
descubro que está quase na hora do meu treino. Ir embora sempre dói um
pouco, mas pelo menos, já dói menos do que antes.
Euforia, angústia, alívio, felicidade e redenção.
Esses são apenas cinco dos múltiplos sentimentos que me tomam
quando estou dentro de uma arena de basquete. Ouvir a torcida gritando, os
sons de palmas, batucadas, e até mesmo vaias, ter toda essa cacofonia
entrando pelos meus ouvidos e fazendo cócegas em meu cérebro é como
receber doses cavalares de felicidade.
Meu coração bate cem vezes mais rápido, a adrenalina viaja por minha
corrente sanguínea numa velocidade extraordinária, e ali, naqueles
incontáveis milésimos de segundos, eu tenho a plena certeza de quem eu sou
e de quem quero ser.
Dentro daquele ginásio, quando somos só eu, meus colegas de time,
uma bola, a cesta e os adversários, eu sei que sou capaz de fazer tudo aquilo
que treinei por tanto tempo. Enquanto o marcador corre apressado, o tempo
que se passa ao meu redor é devagar, bem devagar. É como se eu pudesse
ver em câmera lenta cada passo dos meus adversários, para assim,
raciocinar uma estratégia que me traga aquilo que busco: a vitória.
Se você perguntar para 10 meninos que cresceram no Queens, bairro
onde morei por toda a minha vida, o que eles gostariam de ser no futuro, eu
tenho certeza de que a resposta de pelo menos um deles seria “jogador de
basquete”. E se engana quem pensa que eu seria o menino que responderia
isso, não é verdade.
Eu sempre soube que queria, mais do que tudo, ser jornalista. Falo
sobre isso desde que aprendi a falar. Eu sonho, idealizo e almejo trabalhar
com a imprensa desde… Bom, desde sempre.
Entretanto, se engana também quem acha que o basquete não tem um
posto de destaque na minha vida apenas por não ser a carreira que almejo
seguir. Porque ele tem. Esse esporte glorioso, acompanhado e praticado por
milhares de pessoas ao redor do mundo, uma verdadeira “batalha de
gigantes”, pioneiro em movimentos sociais e políticos através da prática
desportiva é, sem dúvidas, uma peça chave da minha trajetória.
Não só porque o pratico desde criança, seja na escola, no quintal do
prédio, e agora, na faculdade. Mas porque foi graças ao basquete que hoje eu
tenho tanta certeza daquilo que eu quero pra mim e foi também graças a ele
que eu superei o que é, ou era, um dos maiores fantasmas da minha vida.
Existe um Ethan antes e depois da perda de Anastasia Harris, e eu
acho que é exatamente esse o ponto, o lugar exato onde tudo muda. Até os
meus quinze anos, o basquete era uma distração, um jogo onde eu e eu
amigos passávamos horas apenas nos divertindo. Porém depois que a minha
mãe se foi e eu tive de compreender na marra o quão abrangente pode ser o
significado de família, o basquete passou a ser muito mais do que só um
jogo.
Foi no basquete que a minha relação de irmandade com o Tyler se
iniciou e se estruturou, foi onde eu pude extravasar a confusão de
sentimentos que me tomou naquela época. Foi onde eu entendi, junto de todos
os companheiros de quadra que tive, quem eu quero ser, quem eu sou, e quem
eu não quero ser.
E eu não quero ser jogador de basquete, mas até o fim da faculdade, eu
sou, bem como sou estudante de jornalismo, e eu realmente amo tudo o que
eu faço. E segundo o meu pai: tudo o que se faz com amor, se faz bem.
E é por isso, que na sexta à noite, enquanto eu e meus amigos do time
estamos sentados na sala de projeção da Arena John Jay, esperando o
treinador Butler para nos dizer quem será oficialmente o capitão do time
nessa temporada, eu tenho a plena certeza de que sou um forte candidato e de
que meu esforço nunca foi em vão.
— Cara, eles vão tocar de novo amanhã no Central Park, mas é na hora
do nosso jogo.
Elói Pierre, que está sentado ao meu lado, fala enquanto me mostra em
seu celular o flyer da banda de rock que fomos ver tocar ontem à noite junto
com alguns amigos.
— Inclusive, o que vamos fazer amanhã depois do jogo? — pergunta.
— Eu voto em irmos ao Grove’s! — A sugestão vem do nosso ala,
Charles Brooks, que está sentado logo atrás de nós.
— Eu topo! Se vencermos, a primeira rodada é por minha conta —
Tyler se empolga.
Eu e o restante dos caras comemoramos em um coro animado com
palmas, assobios e urros.
Toda a comemoração é cortada pelo rompante estrondoso com que o
treinador Butler entra no cômodo em que estamos. Como esse homem
consegue ser tão barulhento?
Butler está segurando uma prancheta e caminha em passos firmes até a
sua mesa. Logo atrás vem Dave e Emily, nosso preparador físico e nossa
fisioterapeuta, ambos se sentam ao lado do treinador e nos encaram com um
semblante sério que, se nós não os conhecêssemos, poderíamos jurar que
estão extremamente tensos. É tudo parte do show.
Sempre que iniciamos uma nova temporada, alunos do primeiro ano
são recrutados para o time, e nossa comissão técnica, com seu senso de
humor um tanto quanto diferenciado, sempre gosta de deixar esse ar de
suspense antes da primeira partida, pela pura diversão de ver os novatos
nervosos.
Os felizardos desse ano são Ryan, Justin e Cory, que estão com as
posturas rígidas encarando nosso treinador com atenção. Nosso jogo contra
Dartmouth é amanhã, passamos a tarde inteira treinando, assistimos às
partidas anteriores dos nossos adversários e agora, nosso técnico vai nos
dizer as duas coisas pelas quais nossos neurônios tem fritado a semana
inteira: qual será o time titular e quem será o capitão nessa temporada.
O silêncio no ambiente é quase ensurdecedor, entretanto, é
rapidamente rompido pelo barulho que Butler faz ao coçar a garganta para
chamar nossa atenção, como se ela não fosse toda dele desde que entrou.
— Tenho uma notícia boa e uma ruim, qual vocês querem ouvir
primeiro? — questiona nos encarando.
— A boa — respondo, prontamente. — Vai amenizar o impacto da
ruim.
— Certo, todos estão de acordo? — Ele recebe várias cabeças
balançando em concordância como resposta. — A notícia boa é que todos
vocês passaram na avaliação física e no teste antidoping, portanto
poderemos contar com o time inteiro amanhã, o que particularmente é um
alívio para o meu coração, já que vocês têm tendência a voltarem das férias
fazendo merda.
Risadas baixas tomam o ambiente. Bradley Butler é ou não é um fofo?
— Enfim, obrigado por fazerem o mínimo. Agora vamos ao que
interessa, time titular: Elói como pivô, Harris na armação, Charles Brooks
como ala-armação, Mansen, você será o nosso ala. Para ala-pivô, você aí,
novato — ele fala, apontando para um dos três calouros. — Vamos testar
você, certo?
Cory Covey é um cara de dezenove anos, dois metros de altura e uns
cem quilos de pura massa muscular. Ele entrou na Irving pelo programa de
bolsas esportivas e, pelo pouco que treinamos juntos, sei que é uma versão
minha mais novo, só que três vezes mais irritante. Pelo que os caras andam
dizendo, o moleque tem feito sucesso entre as garotas e é aí que mora o
perigo.
Bonito, talentoso e esquentado, é o combo perfeito para um futuro
capitão ou para tomar umas boas surras.
— O restante de vocês ficará no banco, mas não relaxem. Lembrem-se
que estamos nos preparando para um jogo ofensivo. Dartmouth não brinca
em serviço, teremos uma linha bem rotativa.
— Afinal, qual é notícia ruim? — A pergunta vem de Charles.
Vejo Dave, Emily e o treinador Butler trocarem olhares cúmplices e o
último solta uma risada.
— A notícia ruim é que vão ter que aguentar Ethan Harris como seu
capitão por mais uma temporada — fala rindo e jogando um embrulho
pequeno em minha direção. — A braçadeira é sua por mais uma temporada,
garoto!
Tenho exatos três segundos até que eu esteja esmagado no chão por
nove jogadores de basquete de mais de cem quilos completamente eufóricos.
A sala está preenchida por assobios e comemorações, e não tenho como
explicar exatamente onde, mas esse gesto toca em um ponto meu que me faz
ficar um tanto emocionado.
Já ouvi por diversas vezes os caras elogiando minha conduta como
capitão na temporada passada, mas não imaginava que estivessem torcendo
para que eu estivesse no posto novamente, como aparentam no momento.
Peço um pouco de espaço para respirar, e quando me levanto, recebo
os cumprimentos dos meus companheiros de time me parabenizando, um a
um. Tyler vem por último, e diferentemente dos toques de mãos másculos dos
nossos amigos, ele me encaixa em um abraço fraterno dando tapinhas nas
minhas costas.
— Parabéns irmão, tô orgulhoso. Você merece muito! — Tyler fala
enquanto me abraça e é extremamente gratificante estar vivendo isso com
ele.
— Para com essa porra se não eu vou chorar, cara! — resmungo rindo
e arrancando gargalhadas do time e da comissão técnica.
Ficamos mais algum tempo na sala de mídia conversando e então
decidimos encerrar por hoje, já que amanhã teremos uma noite importante.
Eu não sei o que seria de mim sem essas pessoas, juro.
“A maneira como jogamos hoje à noite
É o que deixamos para trás (isso mesmo)
Tudo se resume a agora, depende de nós (vamos)
Então, o que nós vamos ser? ”
NOW OR NEVER | High School Musical 3

15 de julho de 2021

Jogar em casa é sempre um evento.


Por isso, não me surpreendo quando, acomodado no banco do carona
do carro de Tyler, tenho um pequeno vislumbre da fila enorme que se forma
ao redor da Arena John Jay. Estamos entrando no estacionamento lateral
destinado aos atletas e delegações, daqui já é possível ver a multidão azul e
branca formada por alunos e torcedores da Irving.
Tyler e eu descemos do carro e seguimos em direção à entrada que
desemboca no corredor dos vestiários, cada um em seu próprio ritual de
concentração.
A maioria do time já está por aqui. Deixo minha bolsa no banco
enquanto me troco, deixando de lado o moletom cinza e dando olá ao bom e
velho uniforme que tanto senti saudade de vestir. Visto a braçadeira de
capitão e pego em minha maleta de primeiros socorros os adereços para
manter meus cabelos no lugar.
Não sei se devido às minhas diversas tentativas mal sucedidas ou aos
grunhidos irritados que estou soltando, mas Elói Pierre se oferece para me
ajudar. Encarando pelo espelho seu coque loiro perfeitamente alinhado e a
faixa preta fina devidamente colocada para prender os fios que se soltarem,
me dou conta de que deveria ter pedido ajuda antes.
Elói e eu somos os únicos com fios compridos no time. Os cabelos
loiros do cara vão quase até seus ombros, já os meus passam um pouco da
minha mandíbula. O basquete é um jogo de contato que pode se tornar bruto
dependendo da situação, por isso Butler determinou que precisaríamos jogar
com o cabelo preso para evitar acidentes, caso não quiséssemos cortar.
— Valeu, cara! — agradeço assim que ele termina.
Faltam menos de quinze minutos para entrarmos em quadra quando o
vestiário está completamente ocupado pelos times principal e reserva da
Irving. Estou sentado em uma das macas perto da saída e Emily, nossa
fisioterapeuta, está alongando meu pescoço e joelhos, verificando se tudo se
encontra na mais perfeita ordem.
— Está na sua melhor forma física, Ethan, use isso ao seu favor —
fala, segurando minha cabeça para o lado direito. — E evite se desgastar
muito no início, guarde a surpresa para o final.
Solto uma risada baixa, escutando suas recomendações com atenção.
Não posso evitar de me sentir orgulhoso, tenho malhado feito um filho da
puta e seguido o plano alimentar à risca.
Quando já estou descendo da maca, ouço a porta do vestiário se
abrindo com um baque. Bradley Butler, e toda sua indelicadeza barulhenta,
cumprimenta todos os jogadores, um por um.
— Atenção aqui, garotos! — nos chama atenção, batendo palmas altas.
— É o seguinte, esse é o primeiro jogo de vocês na temporada. Vocês
passaram o mês inteiro treinando e obtendo resultados excelentes, por isso,
eu não aceito que vocês façam em quadra qualquer coisa abaixo do que vi
nas últimas semanas. Estamos jogando em casa. Aquela arquibancada possui
pequenos pontos verdes sendo engolidos por um mar azul — fala com
firmeza apontando para a porta. — Então, mostrem para eles o porque nós
somos os atuais campeões da liga.
— Sim, senhor! — um coro firme ressoa no ambiente.
— Prestem atenção no que eu quero que vocês façam. O armador
principal deles é Toby Benson, lidamos com ele ano passado numa versão
menos esperta, e tenho certeza de que fizeram um treinamento intensivo com
o moleque. Elói, ele é problema seu agora — Sinaliza ao nosso pivô. —
Você vai sufocar as jogadas do cara até que eles tenham que mudar
completamente o jogo deles. Não quero o Benson conseguindo dar dois
passos com a bola, entendeu?
Elói assente vigorosamente.
— Covey, quero você em cima do Emmet Cleve a porra do jogo
inteiro. Ele vai tentar tirar o Tyler das jogadas, não deixe isso acontecer.
— Pode deixar.
— No geral, deixem o caminho livre para Harris, Mansen e Brooks
fazerem o que treinamos, entendido? — Assentimos. — Temos cinco
minutos. A palavra é toda sua, moleque.
Butler dá dois tapinhas nas minhas costas e se afasta do círculo em que
estamos. Encaro a face dos meus colegas, tendo em mente o que vou dizer.
— Só façam o que sabem fazer melhor: jogar e se divertir. É a nossa
estreia, essa partida não vale muita coisa, a arena está lotada e nós estamos
bem pra caralho, então só relaxem e joguem. Façam o que o Butler pediu, e
por favor, mantenham aqueles caras longe da nossa cesta — imploro, rindo.
— Não estamos dentro daquela quadra sozinhos. Somos cinco pessoas
jogando uns pelos outros. Joguem por mim, porque eu estarei jogando por
vocês. Galera do banco, fiquem atentos nas jogadas, quando vocês entrarem
é importante que saibam o que vão enfrentar. E quem pontuar menos paga a
primeira rodada da cerveja!
Risadas altas preenchem o vestiário e o frio na barriga gostoso da
tensão pré-jogo já está se apoderando de mim, bem como a adrenalina que
dá o ar da graça em meu corpo, deixando meus sentidos em alerta.
— Um por todos! — exclamo, colocando os braços sobre os ombros
dos que estão ao meu lado e unindo mais a roda.
— Todos pela Irving! — respondem em coro.
— Quem somos nós?
— Lions!
— E o que viemos fazer?
— Vencer!
— Para depois?
— Beber!
Gritos e urros nos acompanham enquanto caminhamos junto da
comissão técnica pelo corredor em direção à quadra. Logo no primeiro
passo, quando o calor alucinante da torcida beija o meu rosto, sinto meu
estômago se dobrar em ansiedade. Há um mar azul e branco na
arquibancada, alunos com os rostos pintados, bandeiras enormes com o
nosso leão estampado, e as músicas da torcida ecoam alto pela arena.
No momento em que o apito inicial invade minha audição, eu esvazio
minha mente e me concentro unicamente em fazer aquilo que pedi dos outros
jogadores: relaxar e me divertir.
O clima dentro da quadra é balanceado. O jogo da Dartmouth é mais
ofensivo e bruto, entretanto, graças às ordens do treinador Butler, nossa
defesa está desarticulando grande parte das jogadas adversárias e estamos
conseguindo travar seus melhores jogadores, o que contribui para esfriar o
clima.
Tyler, Charles e eu somos, definitivamente, uma combinação que exala
sinergia. Absolutamente nada está conseguindo nos parar.
Em nosso campo de defesa, estou atento quando Elói deixa Benson
sem ângulo, levando-o a perder a bola. Tomo-a para mim e arranco para
longe com uma velocidade controlada o suficiente para me distanciar do meu
marcador e ver Tyler passar por mim, ficando debaixo da cesta. Com um
arremesso certeiro, deixo a bola na posição perfeita para que meu melhor
amigo faça uma enterrada digna de prêmio.
A torcida explode em euforia após a jogada, e eu, que tanto detesto
barulhos altos, não poderia estar mais feliz.
O jogo se encerra com o placar de 97 x 88 para o time da casa, o que
significa que o clima dos alunos da Irving é de extrema excitação no
momento em que chegamos ao Grove 's. O bar está abarrotado de
universitários vestidos de azul que comemoram alto no momento em que eu e
o restante do time entramos pela porta.
Charles Brooks está segurando a cabeça do nosso mascote, o leão
Eros, no alto como se fosse algum tipo de troféu. Penso em avisá-lo que isso
com certeza vai ser fotografado e postado no Twitter com algum meme, mas
desisto porque será espetacular de ver.
Uma mesa enorme está reservada para nós nos fundos do
estabelecimento, e quando nos acomodamos no local a cabeça medonha do
leão é posta ao centro. Os olhos costurados são esquisitos e fazem parecer
que ele fumou uns dez baseados de uma vez só. Cory foi o que menos
pontuou na partida, então é ele o felizardo que pede a primeira rodada para o
time inteiro. Quando nossas canecas já estão diante de nós, Brooks se
levanta e ergue sua cerveja.
— À nossa primeira vitória, e ao fato de que eu não me lembro quem é
o mascote atual para devolver a cabeça do Eros que, por conta da minha
desatenção, ficará decapitado.
Como os eternos sexta série que somos, todos erguemos as canecas
num coro baixo de “descanse em paz, Eros” e brindamos a nossa vitória.
Aproveito para mandar uma mensagem para a minha tia Suzy informando
sobre o jogo antes que eu fique um pouco alegre demais. Ela responde com
uma série de emojis felizes e alguns de sushis, nossa forma preferida de
comemorar qualquer coisa.
Noto quando um grupo de pessoas se aproxima da mesa e Tyler se
levanta para os cumprimentar. Megan está entre elas. A jaqueta com o
emblema da faculdade de medicina bordado no peito é a sua marca
registrada e ela veste a peça por cima de uma blusa fina preta e uma calça
jeans escura rasgada. Com o início do namoro deles, Megan Lewis tem
virado quase que a quarta moradora do nosso apartamento, e por estarmos
convivendo tanto, acabamos desenvolvendo um certo grau de intimidade, o
suficiente para a seguinte cena acontecer:
— Não acredito que perdeu aquela cesta ridícula, Harris — fala,
rindo, antes de me envolver em um abraço.
— Eu é que não acredito que você está me cobrando uma cesta de um
ponto depois de eu ter feito vinte e sete — chio, ultrajado. — Qual é, loira,
eu mereço um desconto, foi a primeira partida.
— Posso pensar no seu caso se me pagar uma cerveja — ela fala com
um sorriso travesso.
— Já disse que você é a pior cunhada do mundo?
— Não, porque você adora quando eu faço o café no lugar da Lise —
ela se gaba e eu reviro os olhos.
Megan detesta cozinhar, mas manda muito bem com cafés e sucos.
Segundo ela, eles são sua contribuição para as refeições, já que a mesma
foge das panelas. E Annelise que me perdoe, mas o café preto com canela da
Megan é, definitivamente, a melhor coisa do planeta.
No fim, deixo a garota pedir uma cerveja pela minha comanda e nós
todos passamos a noite fazendo duas das melhores coisas do mundo: encher
a cara e falar de basquete. Se tem algo que eu goste mais do que o jogo, esse
algo é, certamente, a comemoração pós jogo. Nunca vou me cansar de noites
assim e nunca vou me cansar da família que o esporte me deu.
“Outro capítulo na história dos caras errados.
Ontem nenhuma faísca
No coração dolorido fascínio”
THE HISTORY OF WRONG GUYS | Kinky Boots: The Musical

17 de julho de 2021

Acordo com o som enervante do despertador de Megan se espalhando


pela sala do nosso dormitório. Mexo o corpo com dificuldade, sentindo um
pouco de dor em minha cervical ao tentar realizar algum movimento mais
significativo, e minha melhor amiga começa a despertar sob meu braço que
descansa em suas costas.
É domingo. Eu e Meg passamos a noite anterior inteira completamente
apartadas do mundo exterior maratonando as duas últimas temporadas de
Gossip Girl pelo que julgo ser a oitava vez desde que moramos juntas. Por
conta da nossa maratona, acabamos adormecendo de qualquer maneira em
nosso sofá de cinco lugares duro feito pedra, cortesia da tia Antonella, mãe
da Megan, que queria que nosso apartamento tivesse um sofá chique para
receber visitas.
Acontece que as únicas pessoas que se sentaram nele, além de mim e
Meg, foram Daniel Clifford — meu ex namorado galinha — e Lily, porque
absolutamente ninguém que vem aqui troca o tapete fofo e confortável por
essa coisa.
Me levanto, ficando de joelhos e, ainda sonolenta, me arrasto para fora
do enorme sofá em direção ao meu quarto para continuar dormindo sem
interrupções.
Toda primeira e terceira semana do mês, no domingo, Megan acorda
cedo para ir de trem até Providence, onde sua mãe e sua avó moram há uns
bons anos, para visitá-las. Ela segue esse ritual religiosamente desde que
nos conhecemos.
Quando já estou prestes a despencar em minha cama, ouço-a remexer o
armário de utensílios de cozinha e sei que vai preparar algo para comer. A
dor branda em meu estômago denuncia que em pouco tempo estarei perdendo
o sono por conta da fome e, por isso, desisto de me entregar de volta aos
braços de Morfeu e caminho para o cômodo onde minha amiga está.
— Sai daí. Vá tomar banho, eu cuido disso — falo, roubando a
frigideira de suas mãos.
— Te amo, bom dia! — comemora, me dando um beijo molhado na
bochecha e saltitando em direção ao seu quarto.
Coloco a frigideira sobre o fogão e saio pescando pela cozinha os
ingredientes para fazer minhas famosas panquecas pelas quais Megan é
fissurada. Em uma tigela acrescento o leite, a manteiga derretida, açúcar,
fermento, ovo, farinha e uma pitada de sal. Misturo tudo adicionando
algumas gotas de xarope de baunilha, e quando a frigideira já está quente,
despejo duas pequenas poças de massa. Repito o processo algumas vezes e
em alguns minutos, duas pequenas pilhas de panquecas douradinhas estão
dispostas em nossos pratos.
Pego a embalagem de suco de laranja na geladeira e a coloco junto do
restante do nosso café da manhã na bancada. Meg já está de volta vestindo
calça jeans e camiseta preta, e enquanto arrumo as coisas para comermos,
ela passa um pouco de café e serve nossas canecas.
— Volta que horas? — pergunto, subindo no banco e me sentando
diante dela.
— Não sei, vou de carro com Tyler. Provável que eu durma lá no
apartamento.
Assinto antes de tomar um gole de café quentinho. Desde que minha
amiga começou a namorar, ela tem estado em casa com uma menor
frequência. Na primeira semana foi estranho e eu confesso que me senti um
pouco abandonada, mas depois percebi que havia uma infinidade de coisas
que eu poderia fazer para aproveitar meu tempo sozinha nesse apartamento.
É uma nova fase na vida de Megan e eu estou genuinamente feliz por
ela e pelo Tyler. Sei que a empolgação inicial é normal e que logo as coisas
vão se ajeitando.

Já passa das duas quando acordo novamente, sentindo meu corpo


pesado pelo cochilo enquanto caminho até o banheiro em meu quarto. Assim
que giro o registro e o jato d’água gélido entra em contato com a minha pele,
sinto uma onda elétrica se espalhar pelo meu corpo como se estivesse me
acordando. Deixo que a água encharque meu cabelo, e conforme enfio os
dedos entre os fios molhados, abro espaço mentalmente para que eu possa
refletir a respeito das questões que circulam em minha mente.
Passei a semana inteira mergulhada nos estudos, completamente
compenetrada na avaliação que farei depois de amanhã, e isso me deixou um
tanto quanto exausta, psicologicamente falando. Se antes eu já dava tudo de
mim para obter os melhores resultados, agora, ciente de que cada mísero
ponto pode me deixar ainda mais próxima do estágio da minha vida, tenho
me dedicado cinco vezes mais.
Trabalhar no The Politician é o meu maior sonho desde que tenho uns
dezesseis anos. Sabe aquele tipo de trabalho que você olha e pensa que um
dia será você lá? É como eu me sinto sobre trabalhar no jornal chefiado por
Russel Lambrock, um dos maiores nomes do jornalismo político no mundo.
Também estou aflita com a mensagem de texto ainda não lida ou
respondida em meu celular, que é de Adam. Ele está me chamando para sair
para irmos tomar uns drinques em um bar no West Village.
Continuamos trocando mensagens depois do café da manhã nem um
pouco positivo, em partes porque fiquei com vergonha de dispensá-lo. Uma
parte de mim, inocente e boba, acha que ele pode estar tentando se mostrar
um cara legal, e que se eu aceitar, posso acabar o conhecendo um pouco
mais. A outra parte, experiente e um tanto amargurada, tem a plena certeza de
que sabe exatamente o que ele quer com esse encontro.
Saltar o obstáculo que o separa do sexo.
E no momento, não estou com tempo ou disposição para lidar com
isso.
Saio do banho enrolando meu corpo na toalha e fazendo o mesmo com
o meu cabelo. Sento na cama e tateio-a em busca do meu celular,
desbloqueio o aparelho e abro a lista de contatos apertando com força sobre
o nome de Lily.
— Só cubro seu turno essa semana se me pagar um Cosmopolitan.
Solto uma risada alta da forma com que minha amiga atende o telefone,
e ela não se aguenta, me acompanhando.
— Não liguei por isso, bobona! Preciso de um conselho — falo baixo,
porque acho o ato de pedir conselhos “amorosos” um tanto tosco quando
você ainda não tem nada com a pessoa. Como é o meu caso com Adam.
— Espere um segundo. — Ouço alguns ruídos e o barulho de uma
porta se fechando passa pelos alto falantes. — Sou toda sua. O que lhe
aflige, Senhorita Castillo?
Respiro fundo antes de começar, tentando organizar as ideias na
cabeça.
— Tem um carinha da faculdade, Adam, estamos saindo há um tempo e
agora ele quer, você sabe…
— Transar?
— Isso. Acontece que não nos conhecemos muito bem ainda e eu não
me sinto confortável de ir pra cama com ele agora. Ele acabou de me chamar
pra sair e eu não sei se devo ir ou só dispensá-lo.
— Ele é legal? — é a primeira coisa que a minha amiga pergunta.
— É. Tem uma mania irritante de falar sobre si o tempo todo, mas fora
isso… Ele é bem gatinho também — confesso, e ouço minha amiga rir. —
Estou com medo dele se frustrar com os meus limites e, no fim, ser uma
grande perda de tempo.
— Seguinte, você só vai saber se o cara é uma perda de tempo se
você, de fato, perder o seu tempo indo até lá. Ele é legal, como você mesma
disse, então talvez seja o nervosismo falando mais alto. Dê uma chance, se
achar que está bem com isso. Além do mais, você disse que ele é gato, acho
que vale a pena ver no que vai dar.
— É… Acho que vou fazer isso.
— Tente pensar menos e viver mais. Saia com o cara, se divirta, e
quando chegar a hora de ir embora, deixe claro que quer ir direto para casa e
sozinha. Acredito que vá dar tudo certo, mas de qualquer forma, me
mantenha informada. Qualquer coisa eu apareço lá e salvo você.
Lily gargalha do outro lado da linha e eu a acompanho. Agradeço pela
ajuda e prometo informá-la da minha decisão antes de desligar o telefone e
vestir uma camiseta larga, surrada e manchada de tinta. Encaro as paredes do
meu quarto ainda aflita. Sinto que estou indecisa e que preciso espairecer.
Abro a parte direita do meu armário e puxo o cavalete pequeno de lá.
Abro-o próximo da minha escrivaninha e retorno ao armário para buscar
uma tela curta junto da caixa de materiais.
Apoio a tela no cavalete e me sento na minha cadeira com a caixa
sobre o colo. Puxo um pincel grosso e um fino, e observo a diversidade de
cores em busca das que irei usar. Por fim, me rendo ao costume. Sempre que
quero extravasar algo por meio da pintura, uso minha cor favorita: amarelo.
Pego algumas bisnagas e distribuo as diferentes tonalidades dos
pigmentos em minha paleta. Misturo algumas tintas com a ajuda da espátula e
então seguro o pincel entre os dedos. Geralmente, quando vou pintar, eu
sempre desenho alguma base na tela com lápis e depois pinto por cima, mas
hoje meu único desejo é me distrair de tudo que está preenchendo minha
cabeça.
Molho o pincel na tinta e o pressiono com força sobre a tela, vendo as
cerdas se abrindo. Giro-o com firmeza e formo uma espiral amarela no
espaço em branco. Repito o processo mais algumas vezes, distribuindo
círculos por toda a superfície, e de alguma forma isso me acalma.
Faz algum tempo que não transo com um cara, e talvez seja isso que
esteja me causando receio de deixar que as coisas aconteçam com Adam —
o medo de agir errado, ou somente para me blindar de vivenciar algo
frustrante.
Encaro por alguns segundos a pintura molhada em minha frente,
alternando o olhar com o meu celular que descansa ao meu lado. Mergulho
meu indicador na tinta disposta na palheta e pressiono o dedo na tela,
marcando-a com a minha digital e fazendo alguns pontinhos.
Quando o quadro me parece completo, tiro-o do cavalete e o
posiciono perto da janela para secar. Esfrego a ponta do dedo em minha
blusa para limpá-lo, e então pego meu celular, determinada a agir.
Adam M: Hey! Tudo bem? Tá afim de tomar um drink no West
Village mais tarde?
Eu: Oi, desculpa a demora! Ainda tá de pé o convite? Porque eu
aceito hahahaha
Seguro o aparelho com força entre os dedos, sentindo meu estômago se
revirar em ansiedade, algo que se agrava quando, em poucos segundos, um
“digitando” aparece ao lado do seu nome no aplicativo de mensagens.
Adam Maddox: É claro que está de pé! Te busco às oito, sim?
Eu: Combinado, te espero aqui!
Bloqueio a tela do celular com o canto dos meus lábios repuxando em
um meio sorriso. Resolvo afastar da minha cabeça todos os pensamentos
ruins que criei a respeito de Adam. Não acho justo reduzi-lo a um único dia
que, por acaso, já havia começado mal para mim. Não quando ele foi tão
legal todas as outras vezes.
Noto que ainda tenho pouco mais do que duas horas para estar pronta.
Me livro do telefone e começo a reunir meus materiais de volta na maleta.
Lavo os pincéis na pia com cuidado e os coloco para secar.
Quando meu quarto está devidamente arrumado, vou até meu armário
em busca do que irei vestir. Não faço a menor ideia de como é o bar, então
receio que terei de escolher algo versátil. Vasculho as gavetas e cabides
para montar combinações e encaminho as fotos para Lily analisar. Ela
escolhe um vestido azul marinho, entretanto, uma roupa em específico me
chama atenção, e decido que usarei essa.
Estou de frente para o espelho checando minha aparência há pelo
menos dez minutos. Uma maquiagem leve cobre o meu rosto. Estou vestida
com uma minissaia branca, e na parte de cima o top rendado igualmente
branco é coberto por uma blusa preta de amarração em cetim de mangas
grandes e bufantes. Dois colares pendem em meu pescoço e uso saltos pretos
nos pés.
Levo as mãos até minha cabeça, dando uma bagunçada nos cachos e
ajeitando a tiara perolada que os mantém para trás.
Enquanto encaro meu reflexo, minha mente me leva para algumas
semanas atrás, quando Ethan e eu nos atrasamos, e ele deu a entender que
sabia que eu não estava em um bom dia porque eu não estava com minhas
“roupas de princesa”.
Não era a primeira vez que eu o ouvia dizer aquilo, ele sempre deixou
esse deboche com a forma que me visto implícito — e explícito — em
muitas das nossas conversas. E agora, pronta para sair, reparo que eu
realmente me visto “como uma princesa”. Solto uma risada baixa enquanto
coloco os brincos de pérola.
Ainda rindo, pego meu celular, tiro uma foto e publico-a em meu
Instagram com a legenda “sempre como uma princesa”. Assim que a foto
termina de carregar, uma mensagem de Adam avisando que chegou surge em
minha tela. Coloco tudo que preciso em uma bolsa pequena cor creme e saio
do dormitório seguindo para a entrada da Chisholm House.
Um jeep azul limpíssimo está parado com os faróis acesos. Assim que
me vê, Adam desce o vidro e acena para mim. Caminho em passos rápidos e
puxo a maçaneta da porta, entrando no veículo. Me inclino no banco para
cumprimentá-lo com um abraço desajeitado, ele sorri e seus dedos acariciam
de leve minha coluna.
— Pronta? — pergunta animado, levando as mãos para o volante.
— Sempre estou.
Adam sorri, e assim que dá a partida, me ponho a analisá-lo. Ele está
vestido com uma camisa polo azul marinho e uma calça cáqui, um relógio
pequeno abraça seu pulso esquerdo e seus óculos de grau estão pendendo
para o dorso de seu nariz. Ele faz o estilo intelectual e mauricinho, o que
honestamente combina com seus traços desenhados e delicados. Os olhos
azuis estão focados no trânsito e uma música baixa preenche o ambiente,
impedindo que o absoluto silêncio se instale.
— Como passou o dia? — pergunto, tentando amenizar o clima
indiferente que paira sobre o ambiente.
— Bom, tive algumas coisas de trabalho para resolver cedo, mas
depois não fiz nada demais — responde antes de dar seta para dobrar a
esquina.
— Com o que você trabalha? — Demonstro interesse e seu semblante
se fecha.
— Negócios da família, não vai querer saber — Sua voz sai firme e
séria.
Um vinco se forma em minha testa e meu coração acelera os
batimentos em desespero. Que diabos de negócios são esses?
Ao notar a careta em meu rosto, Adam gargalha alto.
— É brincadeira! Ajudo meus pais no escritório de contabilidade
deles — explica. Sua mão vai até meu joelho em um carinho e eu me rendo à
risada também. — Não sou narcotraficante nem nada do tipo, eu juro!
Aliviada e me sentindo uma boba por ter caído em sua atuação barata,
me encosto no banco, me sentindo mais confortável.
— E você, o que faz além de se matar de estudar e viver em pé de
guerra com Ethan Harris?
A menção a Ethan me faz torcer o nariz em descontentamento.
Mantenho os olhos fixos na rua e, internamente, questiono o universo por que
esse garoto me persegue em todo canto.
— Trabalho em uma cafeteria perto do campus, e não vivo em pé de
guerra com Ethan, ele só é… É um babaca completo.
— Se te consola, não sou o maior fã dele também, de nenhum deles na
verdade, os caras do basquete. Sinto que eles andam pela faculdade como se
fossem celebridades.
— O que não é completamente mentira — comento. — Ouvi dizer que
são os melhores do estado. Eu não ligo, pra ser sincera, se eles acham que
são os donos da Irving é problema deles, o que me irrita é que Ethan e eu
somos da mesma turma, e ele age assim nas aulas também.
— Que otário — bufa alto, se atentando aos retrovisores enquanto
estaciona o carro. — Chegamos!
Olho para o lado de fora e noto que estamos na esquina de uma área
boêmia. Abro a porta saltando para fora do carro e dou a volta caminhando
para a parte da frente onde Adam se junta à mim. O bar onde vamos é num
estilo futurista, a decoração usa e abusa do neon e colorido, parece ter saído
de algum filme.
— Espero que você goste de moscow mule, eu sou viciado nos daqui,
achei que seria uma boa, mas se voc… — corto suas desculpas pousando
minha mão em seu ombro.
— Eu adoro moscow mule! — digo, tranquilizando-o, e vejo-o sorrir.
— Que bom, porque esse é o melhor do mundo. — Seu braço envolve
meus ombros e começo a achar que estava enganada sobre esse encontro ser
uma perda de tempo, Adam Maddox é um cara legal.

O drink era realmente maravilhoso, e ficou melhor ainda acompanhado


de uma boa conversa. Passamos pouco mais de três horas no bar, e entre
algumas canecas de moscow, falamos sobre os mais diversos assuntos, o que
me permitiu conhecê-lo um pouco melhor.
Adam tem 23 anos, é um ano mais velho do que eu, entretanto, é o mais
novo dos seus três irmãos. Seus pais se conheceram na faculdade, no Texas,
sua família vem de lá. Ele começou com o arco e flecha aos doze anos e
nunca mais parou, inclusive, entrou na Irving com bolsa por conta disso.
Descubro também que sua família tem uma casa na costa oeste para
onde eles viajam no verão, mas o principal foi que ao mesmo tempo em que
nosso papo flui impressionantemente bem, nós dois não temos absolutamente
nada em comum. Diferentemente do que pensei, isso não me frustrou, na
verdade foi algo que passou batido depois de uma noite tão agradável, mas é
um ponto que acho importante se considerar.
Em resumo, foi uma noite boa, e estou feliz — um pouco bêbada
também — enquanto observo-o dirigindo de volta para o meu alojamento.
Adam parou de beber antes de mim, por estar ao volante, passando o fim do
nosso encontro apenas bebendo água, o que me fez sentir segura o suficiente
para estar aqui com ele.
Quando avisto a fachada imponente da Chisholm House, ele estaciona
o jeep em uma das vagas reservadas para os estudantes e desliga o motor do
carro se virando em minha direção.
— Espero que tenha se divertido, eu gostei bastante — diz sincero,
ajeitando os óculos no rosto.
— Eu me diverti, de verdade. Obrigada por hoje.
Aproximo meu rosto do seu devagar, e quando seus lábios tocam os
meus, Adam pousa uma das mãos sobre a pele exposta da minha perna. É
uma carícia gostosa e ela se prolonga quando nossas línguas se encontram e
deslizam uma sobre a outra. Maddox tem um beijo tranquilo, daqueles que te
faz querer continuar, e é o que eu faço por um bom tempo até me afastar
lentamente.
— Obrigada pela noite, de novo — falo um pouco envergonhada antes
de sair do carro.
Adam acena se despedindo e segue na mesma rua para o seu
alojamento, o Luther King Hall, que é vizinho ao meu.
Enquanto me apresso para entrar em meu dormitório, faço uma
anotação mental de mandar uma mensagem para Lily agradecendo pelo
incentivo. Eu realmente poderia ter perdido uma noite divertida por conta
das barreiras que eu mesma coloco em minha frente.
“ Diga que sou muito louca
Você não consegue me domar
não consegue me domar”
BLOW YOUR MIND | Dua Lipa

18 de julho de 2021

Toda véspera de prova, pra mim, é um sinônimo de morar na faculdade


em todos os sentidos possíveis. Sinto como se cada segundo valioso aqui
dentro devesse ser aproveitado ao máximo. E é exatamente o que estou
fazendo quando, após duas aulas massantes de Cultura das Mídias, me dirijo
até a biblioteca do prédio de jornalismo em busca de um lugar quieto para
estudar.
Assim que entro, cumprimento a bibliotecária ranzinza com um aceno.
Nas segundas quem toma conta da biblioteca é Tracy, uma mulher de meia
idade rabugenta que vive com a cara fechada, o completo oposto de Diana,
uma senhorinha fofinha e minha bibliotecária favorita dessa faculdade.
Vou até a seção de livros e pesco da prateleira um exemplar de
“Radical Chique e o Novo Jornalismo”, de Tom Wolfe, uma das leituras de
apoio para a prova de amanhã de História da Mídia. Eu li a obra completa
em versão e-book, quero só separar alguns pontos relevantes e me sinto mais
confortável de fazer isso com o livro físico.
Com tudo que preciso em mãos, caminho até a parte de estudos da
biblioteca, largo minhas coisas na primeira cabine que encontro e me sento,
organizando meus materiais antes de começar a fazer minhas anotações.
Poucos minutos se passam até que o barulho irritante de uma caneta
batucando o tampo da mesa rouba minha atenção do que estou escrevendo.
Noto que o som vem do outro lado da minha cabine. Ergo meu corpo para
avistar o dono do “tec tec” e devo confessar que não me surpreendo em
nada ao encontrar o topo da cabeça da pessoa mais detestável desta
faculdade.
Irritada, me inclino sobre a divisória de madeira e puxo seus fones de
ouvido para chamar sua atenção.
— Você tem algum problema? — questiona com um vinco formado na
testa.
— Estou prestes a ter, com você, se não parar de bater essa droga de
caneta na mesa — sussurro embravecida e tentando não chamar atenção.
Recebo como resposta um revirar de olhos. Ethan coloca novamente
os fones e me ignora, entretanto, não volta a fazer barulhos. Retorno minha
atenção para as minhas anotações alternando o olhar entre o livro aberto e o
caderno. Pouco tempo depois sou novamente tirada do meu foco quando
sinto meu ombro sendo tateado. Viro a cabeça apoiando meu queixo por
cima do ombro, e subo o olhar, indo de encontro com a vista indiferente de
Ethan Harris.
— O que você quer? — pergunto já impaciente.
— Preciso do livro — Indica com o dedo o exemplar aberto em minha
mesa.
— Sem chance! — falo baixo, ficando de pé. — Pegue outro, estou
usando este.
— Não tem outro, Amelie, você está com o único que ainda está na
biblioteca. É rápido — implora já parecendo irritado.
Faço sinal de negativo com a cabeça e torno a me sentar. Segundos
depois, tenho um sobressalto quando a cadeira sai alguns centímetros do
chão. Ethan abre espaço e coloca uma outra cadeira ao meu lado. Não sei ao
certo se estou mais irritada ou impressionada com a força desmedida desse
cara.
— O que você pensa que está fazendo? — Seguro seu braço com
firmeza. Ethan está com um semblante sério e pela vermelhidão em seu
pescoço, sei que não está nem um pouco feliz.
— Olha só, eu também preciso estudar, e eu não posso ficar esperando
sua boa vontade de terminar porque tenho treino. Então só facilita a minha
vida e não torne isso uma coisa maior do que realmente é. Em qual página
você está? — Seu tom é mais controlado, e ele questiona retirando minha
mão de seu braço.
Algo nesse gesto faz com que as linhas de pensamento em minha
cabeça fiquem desconexas e eu alterne o olhar entre seu rosto, que me encara
ainda sério, e sua mão enorme que envolve meu pulso com delicadeza.
Ethan parece notar, porque se desvencilha de mim com rapidez e abre
seu caderno ao lado do meu. Depois, apoia o livro na divisória da cabine
para deixá-lo de frente para nós.
— Trinta, anotações finais, mas já terminei. Pode pegar o que precisar,
eu te espero.
Dou um meio sorriso amarelado e ele assente, se concentrando em ler
a página e transcrever o que julga necessário. Quando termina, puxa um
papel com diversos números aleatórios e quadradinhos ao lado de cada um
deles, e vejo quando ele marca um “x” no quadrado ao lado do número
trinta. Balanço a cabeça em negação enquanto puxo meu controle de páginas
e faço a mesma marcação.
Ethan e eu temos o mesmo método de estudo. Lemos o livro fazendo
uma lista das páginas mais importantes, e depois voltamos nessas páginas
anotando tudo o que precisamos. Ele solta uma risada fraca quando nota o
que estou fazendo, então partimos para a próxima página.
O processo todo dura o total de uma hora e alguns quebrados, tudo em
absoluto silêncio. O clima estranho está prestes a me sufocar e, assim que
terminamos, ambos recolhemos nossas coisas e seguimos nossos caminhos.
Assisto mais três aulas e saio da última correndo em direção ao
estacionamento, acabei ficando depois do horário para tirar algumas dúvidas
com a Sra. Prescot sobre um trabalho de Teoria do Jornalismo que preciso
entregar no final do mês, e isso vai me custar um atraso no trabalho.
Abro a porta do meu carro totalmente afobada, largo minhas coisas no
banco do carona, me acomodo atrás do volante e giro a chave na ignição
enquanto procuro o contato do meu chefe no celular para avisá-lo de que já
estou indo.
Acelero para sair da vaga, ainda distraída com o celular, e sigo até a
saída do estacionamento. Quando direciono o carro para passar pela
cancela, sou interrompida por uma buzina alta que repercute nos meus
ouvidos e me faz dar uma freada brusca. Olho para frente assustada e, pelo
amor de Deus, o universo só pode estar brincando comigo.
— Mas que porra foi essa, Castillo? — Ethan xinga, bravo, se
apoiando no capô do meu carro para se reequilibrar sobre a sua moto. Eu
quase o atropelei.
— Foi mal aí — grito, completamente envergonhada.
— Preste atenção por onde anda — grita de volta, enquanto checa sua
moto.
— Deixe de ser um babaca! Não aconteceu nada! — falo, já irritada
pelo seu tom.
Escolha errada de palavras. Ethan ergue o protetor do capacete e me
encara com os olhos brilhando em fúria.
— Você quase passou por cima de mim com essa porra dessa sua
joaninha com rodinhas e quer dizer que não foi nada?
— Quase bater não é bater, e eu já pedi desculpas — esbravejo, antes
de desviar dele e arrancar com o carro para fora do campus.
Joaninha com rodinhas? Quem esse desgraçado pensa que é?
— Surtada — ele ralha assim que acelera e passa ao lado da minha
janela.
Filho da puta.
Abaixo meu vidro e coloco a cabeça para fora, sem tirar os olhos do
caminho.
— Volte aqui e eu mostro pra você quem é surtada! Você é um babaca,
Ethan Harris, está me ouvindo? Você é um BA-BA-CA! — berro em plenos
pulmões enquanto ele se distancia.
O sangue em minhas veias ferve quando vejo o garoto erguer o braço e
estender o dedo médio, me encarando pelo retrovisor. Por alguns segundos,
me arrependo por não ter realmente passado com o carro por cima do
desgraçado, seria um réu primário perdido por uma das causas mais nobres
da minha vida.
Tyler e Megan que me perdoem, mas eu odeio esse cara com todas as
minhas forças.
“É difícil criar coragem
Num mundo cheio de pessoas
Você pode perder tudo de vista
E a escuridão que está dentro de você
Pode te fazer sentir tão insignificante”
TRUE COLORS | Cyndi Laupher

19 de julho de 2021

Encosto a cabeça no granito frio, observando o sol fraco que cobriu


Nova Iorque nesta tarde, se pondo bem diante dos meus olhos. A temperatura
hoje está amena, por volta dos vinte e dois graus, e um vento fresco sopra em
meu rosto, pinicando a pele e bagunçando meus cabelos.
Passo a ponta do meu indicador pelas pétalas das margaridas brancas,
que trouxe da floricultura, e comprimo a vontade que sinto de chorar. Dizem
que depois que você perde alguém e o tempo passa, alguns dias são sempre
melhores do que outros. Hoje não é um deles.
Esfrego os dedos polegar e indicador em uma pétala e solto um
suspiro cansado. Não dormi bem noite passada e fui me arrastando para a
faculdade fazer uma prova hoje. Não sei se me saí bem, mas espero que sim,
porque o peso no peito me acompanhou o dia inteiro e só se esvaiu quando
me sentei aqui e comecei a falar sobre tudo que estou sentindo.
Principalmente sobre a saudade.
Em dias assim, é inevitável não sentir falta dela, de seu sorriso
confortante e de seu abraço apaziguador. Sinto falta de como, em poucas
palavras, ela conseguia resolver todos os problemas do mundo. Acho que
mães tem essa coisa de superpoderes mesmo.
E é nesse instante, com a cabeça apoiada em sua lápide, sentado bem
ao lado de onde ela está enterrada, que me permito ser consumido e
abraçado pela ausência de Anastasia Harris, a mulher mais incrível que já
conheci, minha super heroína da vida real, a minha mãe.
Eu detestava cemitérios quando era mais novo, mas conforme fui
crescendo, minhas visitas a este lugar começaram a se tornar frequentes. Não
entro mais aqui pensando que estou em um lugar negativo cheio de pessoas
mortas, sinto que estou em só mais um dos lugares que preservam a memória
da minha mãe, e estar perto dela não se parece em nada com algo ruim.
Papai não gosta de vir até aqui, vem apenas nas manhãs de aniversário
de nascimento e morte dela. Ele detesta olhar para essa lápide, detesta tudo
que comprove que ela está morta e prefere se apegar em suas lembranças de
vida, como fotografias, quadros que ela pintava para passar o tempo, e até
mesmo gravações antigas.
Cada um tem a sua forma de lidar com o luto, e eu entendo e respeito a
dele.
Eu, por outro lado, só quero mantê-la viva em minha memória,
independentemente de como. Tenho uma caixa em meu quarto que é recheada
de lembranças de nós dois juntos e a vasculho com regularidade. Em
contrapartida, também mantenho seu túmulo sempre repleto de flores e bem
cuidado. De onde ela estiver, quero que saiba que não me esqueci dela e que
continuo cuidando de tudo com todo o amor e carinho presentes em meu
coração.
Tudo que eu faço é pensando nela. Eu sei que, de algum lugar, ela está
me vendo amadurecer, porque em meu peito, o sentimento de que ela está
viva arde como brasa. Minha mãe está viva em mim, está viva no sorriso do
papai e nos olhos redondos e castanhos de Angeline. Ela vive em cada alma
que ela tocou e transformou.
E eu não tenho dúvida alguma disso.
— Você faz muita falta, mamãe — digo baixinho, já não conseguindo
segurar as lágrimas que escorrem pelo meu rosto. Merda, não gosto de
chorar quando falo com ela. — Fez falta ontem, está fazendo hoje, e vai fazer
amanhã, e eu sinto muito que tudo aquilo tenha acontecido com você, mas eu
prometo que nunca vou deixar de ir atrás de justiça.
Me sento de lado e apoio a bochecha na lápide para encarar as
margaridas, sempre escolho as brancas e as mais bonitas. Pra mim, ela está
ali, naquela pequena porção de vida que embeleza qualquer lugar, até mesmo
um cemitério.
— Você foi a pessoa mais extraordinária que eu já conheci. Obrigada
por tanto, pelos quinze anos que passamos juntos, eu te amo muito, mesmo.
Obrigada por viver em mim.
Encaro a margarida que tenho tatuada na batata da perna e corro meus
dedos pelos seus traços finos e precisos, só mais um lembrete de que ela
está aqui, cravada na pele e no coração. Tudo que sou, eu devo a ela.
E por isso, Angeline virou meu coração batendo fora do peito, porque
somos centelhas vivas e o legado que minha mãe deixou para o mundo.
Me orgulho disso, de conseguir representá-la.
Depois de passar quase uma hora preso em minha pequena bolha, me
despeço da minha mãe e prometo voltar para visitá-la em breve.
Quando estou no estacionamento do cemitério, me sentindo bem
melhor depois de um longo desabafo e prestes a subir em minha moto, sinto
meu celular tremendo em meu bolso. Puxo-o, vendo o nome da minha tia
piscando na tela com uma notificação de mensagem.
Suzy Harris: E aí, meu sobrinho top blaster está disponível para
mim hoje?
Solto uma risada esganiçada ao ler sua mensagem. Suzan Harris, além
de irmã mais nova do meu pai, é também, com certeza, a minha maior fã.
Eu: Tia, por favor, delete o contato de quem está te ensinando a usar
gírias!
Suzy Harris: Top blaster não é legal? Meu Deus, eu vou brigar com
a sua irmã!
Eu: Acho que Angeline não é a melhor pessoa para te ensinar coisas
de jovens, ela só tem oito anos!
Suzy Harris: Faz sentindo, como foi o seu dia? E você está aonde?
Eu: Sendo sincero? Meu dia foi uma merda. E eu vim ver mamãe, dia
da saudade, sabe?
Suzy Harris: Sei bem. E vamos resolver isso imediatamente, estou
saindo agora do trabalho, nos encontramos no nosso restaurante favorito
e afogamos suas mágoas com sushi, que tal?
Cara, eu amo a minha tia!

— Estive com o seu pai e com Angeline hoje — fala, equilibrando um


sashimi entre os hashis — Sua irmã colocou na cabeça que você é um
ornitorrinco, e não quis me explicar o motivo.
Uma gargalhada estrangulada me toma, quase derrubo o sushi dentro
do potinho com shoyu. Angeline ainda não desistiu da ideia das metáforas,
pelo visto.
— Minha irmã acha que eu não gosto de namorar, ornitorrincos são
animais solitários, pareceu uma boa analogia para ela — explico antes de
levar a comida até a boca e saboreá-la.
Minha tia tenta segurar o riso, mas não se contém por muito tempo.
Assinto com a cabeça, dando permissão para que ela se divirta com a pérola
da minha querida pestinha.
— Ela está impossível, não é? Está crescendo tão rápido!
— Nem me fale, cada vez que vou visitar ela e o papai ela parece
ainda mais esperta. Sinto falta de quando ela era um bebê que só dormia e
não falava besteiras.
— Numa coisa ela está certa, Ethan, você tem aversão aos namoros —
constata.
— Olha… Isso não é verdade — protesto, apontando os hashis em sua
direção. — Eu já namorei uma vez!
Tia Suzy faz uma careta engraçada enquanto mastiga um pouco do seu
sunomono.
— A Claire que você namorou por três meses no seu primeiro ano da
faculdade definitivamente não conta, ela era chata demais!
— Tia! — repreendo rindo.
— É verdade! A garota não te deixava fazer nada, eu até entendo sua
aversão a relacionamentos depois daquilo. Mas, se serve de alguma coisa o
conselho dessa sua "tia mãe" aqui, quando a hora certa chegar, e a pessoa
certa, você vai saber que aquela é a pessoa, porque você nunca vai ter se
sentido tão livre em toda a sua vida. Relações não são e nem devem ser
prisões, amar é libertador demais para isso, meu amor.
Ouço tudo com atenção, ainda que ache absurda essa fixação da minha
família em me ver com alguém. Sei que, em partes, um pouco da minha fuga
constante de relacionamentos sérios se deve ao fato da minha única
experiência ter sido um terror.
E Tia Suzy me conhece como ninguém para identificar isso.
Meu relacionamento com Claire Blamer durou o total de cinco meses,
sendo apenas três como uma relação assumida publicamente. Era metade do
primeiro ano da faculdade, eu ainda estava como reserva do time. Nos
conhecemos após uma vitória da Irving em cima de Harvard, em uma das
festas de comemoração.
Ela era um ano mais velha que eu, estudava economia na Irving.
Passamos a noite toda juntos e dali em diante ela foi tomando tudo — meus
dias, meu tempo livre, meus fins de semana, cada segundo do meu dia em
que eu não estava treinando, ou estudando, eu estava com ela.
Contudo, esse “tomar” estava longe de ser saudável, para mim e para
ela. Toda vez em que eu saía com os caras era uma dor de cabeça sem fim,
almoços de família então, nem se fala, e por conta disso, aos poucos eu me
sentia tão culpado por não “estar me doando ao meu relacionamento” — era
o que ela dizia — que fui apenas deixando de fazer as coisas que gostava
para me encaixar nos ideais de Claire. Eu não queria magoá-la, não queria
brigar, eu só… Queria conseguir conviver em paz com ela.
Meu pai e minha tia foram os únicos a conhecê-la. Sempre tive em
minha mente que Angeline só conheceria a garota por quem eu realmente
estivesse apaixonado, aquela que eu soubesse que seria como uma família
para nós dois, e infelizmente, ou felizmente, meu relacionamento com Claire
não durou tempo o suficiente para que eu tivesse essa certeza. Não quero que
ninguém entre na vida da minha irmã, faça morada e de uma hora para outra,
suma. Eu não posso deixar que ela passe por isso de novo, não quando viveu
essa situação pela primeira vez sendo tão nova.
— Obrigado, Tia. De verdade, pode ter certeza que quando a pessoa
certa chegar, você irá saber — falo sorrindo e comendo mais um sashimi.
— Acho bom mesmo!
— Mas, e aí, como vai o trabalho? E a Esther? — Questiono,
levantando e abaixando as sobrancelhas com um sorriso brincalhão no rosto.
— Tá tudo bem, ela está ótima. Só aquela mesma coisa chatinha de
sempre… Ah, não queria ter me lembrado disso! — Ela esconde o rosto com
as mãos me fazendo rir.
Tia Suzy é colunista de uma das maiores revistas de moda do país.
Suas matérias sempre repercutem muito no mundo fashion, o que,
consequentemente, faz com que ela seja amplamente respeitada nesse meio.
Acontece que há alguns meses ela engatou num lance secreto com uma
outra colunista da revista, a Esther, já saí com as duas uma vez, foi bem
divertido. Tendo como base que minha tia me tem como filho, é possível
imaginar que ela não perdeu tempo em nos apresentar para saber se eu
“aprovava”.
Particularmente, qualquer pessoa que a faça feliz ganha pontos comigo,
mas com Esther é diferente. É bonito demais ver como as duas se gostam,
porém, assumir a relação está longe de ser algo próximo da realidade delas,
visto que ambas temem que suas carreiras sejam prejudicadas caso a
empresa considere o envolvimento delas algo antiético ou pouco
profissional.
Queria que elas pudessem ser felizes sem medo.
— Vai dar tudo certo, já já você vai ser promovida a chefona e isso
tudo vai se resolver — tranquilizo.
— Assim espero, meu amor, assim espero.
“Eu costumava implorar pela atenção do mundo
Acho que chorei vezes demais
Eu só preciso de mais carinho
Qualquer coisa que me faça seguir em frente”
ANYONE | Demi Lovato

19 de julho de 2021

ANTES

O barulho dos outros adolescentes era quase inaudível, não porque


estávamos longe, mas sim porque mais uma vez eu estava em um estado de
torpor imenso e devastador. A decepção que se escancarava em minha face
só não era maior do que a que se alojava em meu peito. Mais uma vez eu
estaria sozinha.
Na Hoboken High School Preparatory, instituição de ensino cara e
renomada onde estudei, toda primeira terça-feira do mês era o dia em que os
alunos do primeiro ano do ensino médio apresentavam para os pais e a
comunidade escolar um pouco do seu talento. Era uma manhã inteira
destinada única e exclusivamente para que cada um de nós pudesse mostrar
para as pessoas algo que sabíamos fazer além de uma enxurrada de provas.
Esse sempre foi o meu dia preferido.
Todo o pátio ficava organizado como uma feira. Várias barraquinhas
eram montadas e cada aluno (ou grupo de alunos) podia usar uma barraca
para expor o que quisesse. Eu sempre fui uma aluna excelente, dedicada e
esforçada, do tipo participativa nas aulas, que ficava horas estudando e
tirava as melhores notas. Mas embora eu soubesse que aquele desempenho
me levaria a uma boa faculdade, a arte era, definitivamente, o que me
completava.
Naquele dia em específico eu estava muito animada, porque tinha
planejado uma barraquinha ainda mais bonita para expor as minhas pinturas
e colagens. Havia saído com Madelyn dias antes para comprar luzinhas,
vasinhos com flores, fiz até alguns penduricalhos com origamis… Enfim,
trabalhei duro, planejando e montando cada detalhe para que a minha
barraca estivesse perfeita.
Além disso, havia mais um detalhe que estava me causando tamanha
empolgação: era a primeira vez em muito tempo que o papai havia
conseguido um horário em sua agenda para ir à exposição. Minha mente de
quinze anos estava entrando em profusão tamanha era a felicidade de saber
que ele ficaria orgulhoso do meu esforço.
“Trabalho duro só ganha de talento quando o talento não trabalha
duro”, Kevin Durant disse uma vez.
Era a frase que meu pai sempre repetia para mim. Cresci ouvindo
sobre o valor do trabalho e do esforço, fui ensinada a dar tudo de mim em
prol dos meus sonhos e ambições, deixando minhas emoções de lado e me
mantendo firme em meus objetivos, custe o que custar.
Sempre soube que ainda que eu tivesse privilégios e vantagens, não
seria fácil, porque quando se é filha de uma mulher negra afroamericana com
um mexicano em um país racista, na maioria das vezes o dinheiro é o que
menos importa. Porque o seu sobrenome e a cor da sua pele chegam antes de
você, e para conseguir um mínimo que fosse de espaço, eu teria de trabalhar
o dobro. Ou até mesmo o triplo.
Eu nunca achei que seria fácil.
Entretanto, aos quinze anos, algumas coisas machucam mais do que o
normal.
— Mi hija, eu prometo que isso não irá se repetir, mas agora, o papai
precisa mesmo ir. Me desculpe. — Seu olhar se alternava entre meu rosto e
nosso motorista, Alfred, que estava logo atrás.
— Por favor, papai, é rapidinho, eu juro! Já vai começar! — Com as
mãos unidas e as lágrimas escorrendo desenfreadas pelo meu rosto, eu quase
implorei para que ele ficasse.
Eu queria muito que ele visse tudo o que fiz. Queria e precisava de sua
aprovação.
— Não dá, Amelie, o papai precisa ir. Prometo te levar para lanchar
mais tarde, para compensar. — Meu rosto se mantinha irredutível porque eu
não queria um lanche, queria o meu pai, sua atenção, seu carinho, seu zelo.
— E compro um kit de pintura novo, que tal?
Sacudi a cabeça em negação e o ouvi discorrer sobre as mil formas
que ele encontraria para recuperar o momento perdido. A bufada alta e
consternada que escapou de meus lábios foi o sinal de rendição. Eu não
queria ter que implorar pelo meu próprio pai.
— Tudo bem — falei arrastado, me dando por vencida.
Tantos kits de pintura e você nunca vem ver os meus quadros, foi o
que passou pela minha cabeça.
Dito isso, tudo aconteceu como um borrão. Ganhei um beijo na testa,
um aperto no ombro e fomos juntos caminhando até o estacionamento. Papai
se despediu, entrou no carro e tudo que me restou de um dia que deveria ter
sido feliz, foi aquela cena.
Eu sozinha, de pé na calçada, vendo o carro de luxo se afastar e se
perder em meio ao trânsito. Nunca uma cena se repetiu tantas vezes em
minha vida. E eu sinto como se, inevitavelmente, eu tivesse sido programada
exatamente para isso, para a rejeição.
AGORA…
— Obrigada mesmo pela carona, amiga.
Digo enquanto Megan e eu caminhamos juntas até o estacionamento do
alojamento. São seis e meia da manhã. Hoje é um daqueles dias em que já
acordei com lágrimas escorrendo pelo meu rosto e o colo da minha melhor
amiga foi o meu único refúgio.
— Não precisa agradecer, Amy. — Sua voz é doce e seu olhar é tão
compreensivo e acolhedor quanto o seu abraço.
Sinto como se depois de dias, chorar compulsivamente tivesse
colocado minha cabeça, enfim, no lugar. Ou perto disso. Ainda preciso de
umas boas horas sobre o tatame.
A luta tem esse efeito mágico sobre mim. É como se depois de largar
alguns socos bem fortes em um saco de pancadas e realizar a rotina de
treinos que Simon monta para mim, meu corpo e minha mente se alinhassem
de novo.
Despenco o corpo sobre o banco de couro do seu Nissan Sentra,
porque meu carro está mais uma vez no mecânico, e prendo os fios do meu
cabelo em um rabo de cavalo. Eles ainda estão molhados pelo banho, mas
não estou com paciência ou vontade de arrumá-los, não sabendo que estou
prestes a encontrar o meu pai. Não tenho vontade de fazer nada quando se
trata dele, muito menos me arrumar.
— Para onde vamos mesmo? — minha amiga questiona, enquanto
dirige para fora do Coleman Campus.
— Windsor Plaza Hotel, entrada leste.
Um amargor toma minha boca assim que termino de falar e a ficha de
que estarei cara a cara com ele cai. Todo bendito mês esse sentimento se faz
presente em mim.
Afundo-me ainda mais no banco e abraço meu tronco numa tentativa
falha de trazer alguma sensação de segurança para a minha mente. Meu
coração está apertado e um nó se forma em minha garganta a cada segundo
que me deixa mais próxima de vê-lo. Esses cafés da manhã esporádicos para
os quais ele me convida mensalmente são, quase sempre, uma piada.
Cerca de duas horas de pura atuação onde ele finge ser o pai que
preciso e eu finjo ser a filha que não precisa mais dele.
Eu queria que em algum desses encontros meu pai conseguisse notar o
quanto sua ausência deixou buracos em meu peito, o quanto não tê-lo como
suporte me tornou alguém muito diferente do que eu poderia ser. Queria que
ele percebesse que tem algo errado sem que eu precise gritar por ajuda ou
implorar pelo seu amor.
Esteban Castillo é um homem de um metro e oitenta. Tem um corpo
que faria os caras da faculdade chorarem de inveja. Sua pele clara em tom
oliva e seus traços fortes lhe rendem uma jovialidade incomum — se
considerar que está no auge dos seus cinquenta e três anos. Possui um riso
frouxo e uma das risadas mais esquisitas do mundo, a qual me lembro de
sempre render boas gargalhadas para a minha versão de oito anos de idade.
Ele é um dos sete maiores empresários do ramo de investimentos da
cidade, um dos peixes grandes de Wall Street, detentor de um capital
financeiro que sustentaria — com tranquilidade — mais de cem famílias por
uns bons anos. É também uma grande figura de poder e influência na
mundialmente vigiada “Grande Maçã”, Nova Iorque para os menos
chegados.
E foi em prol de conquistar tudo isso que ele abriu mão de mim, sua
primeira e única filha, e da nossa família. São resultados grandiosos, devo
admitir, mas não consigo me conformar de que tenha sido uma troca justa.
Não é uma troca que eu faria.
Filhos não deveriam ser a coisa mais importante na vida dos pais?
— Prontinho, senhorita, aproveite seu café da manhã!
A voz de Megan me puxa de volta para a realidade e noto que o carro
está parado diante do luxuoso hotel onde meu pai marcou nosso encontro.
Sinto as batidas do meu coração acelerarem e o nó em minha garganta
se aperta ainda mais. Faço uma careta desanimada que arranca um sorriso
dela de imediato, me inclino em sua direção e seus braços finos me
envolvem em um abraço sincero. Sua mão se arrasta pelas minhas costas em
um consolo quando, involuntariamente solto uma fungada baixa.
— Eu não aguento mais sentir raiva dele, Meg. Isso está me deixando
doente há tanto tempo… — falo contra seu ombro, sentindo o cheiro forte do
seu perfume cítrico. — Eu sei que parece exagero, mas é verdade. Odiar o
meu pai está acabando comigo.
— Isso vai passar, tá bem? Vai passar. Tente relaxar um pouquinho,
tire esse sentimento do seu coração, você é muito mais do que isso, amiga.
Pense que falta pouco para a faculdade acabar e você se livrar dele, certo?
Assinto com a cabeça ainda colada em seu corpo e a abraço com mais
força, respirando fundo antes de me recompor.
— Obrigada, por todos esses anos, de verdade… Eu não sei o que
faria sem a sua ajuda! — agradeço sorrindo e deixo um beijo em sua
bochecha antes de me afastar. — Me mande uma mensagem quando chegar
ao Wallch[2] — falo já saindo do carro.
— Pode deixar! Qualquer coisa me liga, se cuida!
Assinto e lhe mando um beijo no ar. Espero até que ela dê a partida
para, só então, me virar de frente para a fachada do hotel. Caminho devagar
sentindo meu estômago arder, estou morrendo de fome e extremamente
nervosa. Essa combinação está bem longe de ser positiva para mim.
Assim que ponho os pés na recepção, uma mulher com sorriso largo,
maçãs coradas e olhos oblíquos impecavelmente maquiados vem até mim
segurando um tablet contra o peito coberto por um terninho preto
perfeitamente alinhado.
— Bom dia, senhorita. Eu me chamo Mina, em que posso ajudá-la?
— Reserva em nome de Esteban Castillo — digo lhe estendendo
minha identidade e acentuando o meu sotaque na pronúncia do nome do meu
pai.
Ela assente e desliza o dedo pela tela do tablet em busca da reserva.
— Aqui está! Mesa onze da ala vip, seja bem vinda ao Windsor Plaza
Hotel, senhorita Castillo, é um prazer recebê-la.
Lhe ofereço um meio sorriso, pego o cartão que ela me entrega e
caminho pelos corredores segurando forte a alça da minha bolsa, até que
avisto ao longe meu pai sentado checando o cardápio. Diferentemente da
maioria dos nossos encontros, hoje ele não veste um de seus ternos caros.
Está com uma calça de moletom azul marinho, tênis de corrida e uma
camiseta igualmente azul dos Islanders, time de hóquei da cidade do qual ele
é fã e patrocinador.
Ao notar minha aproximação, Esteban deixa o cardápio sobre a mesa e
abre um sorriso largo. Engulo seco a vontade de chorar — novamente — ,
porque se não fosse toda a mágoa e ressentimento que há entre nós, eu estaria
muito feliz de ver esse sorriso sendo direcionado a mim.
Em momentos assim, eu quase esqueço do grande filho da puta que ele
foi comigo e com a minha mãe. Aceno com a cabeça antes de tomar o meu
lugar na mesa para dois de frente para ele.
— ¡Hola, buenos días papi! — Estico minha mão sobre a mesa para
um cumprimento.
— Buenos días mi hija — responde, também em espanhol, e eu rezo
para que a conversa no idioma se encerre por aí.
Ele aperta minha mão e eu me desfaço do toque rapidamente, pegando
o cardápio para escolher o que vou pedir. Embora pertença a ele a minha
herança mexicana, quem sempre fez questão de me manter ligada a cultura,
para que eu entendesse as minhas raízes, foi a minha mãe.
Esteban só usa o espanhol comigo para me testar — e debochar do
meu sotaque americanizado — ou quando está irritado, o que me fez detestar
praticar a língua perto dele, ainda que haja uma exigência implícita de que
os cumprimentos sejam feitos dessa forma.
— Como vão as coisas? — ouço-o perguntar por trás do cardápio que
uso para cobrir meu rosto de seu campo de visão.
— Bem.
Mentira 1.
— E a faculdade?
— Bem também.
Meia verdade, se descartarmos o fato de ver Ethan Harris todo
maldito dia.
— Sua mãe está bem?
— Sim.
Mentira 2.
— Está concorrendo a um estágio.
— Estou — respondo no automático, mas logo tenho um sobressalto ao
notar que não foi uma pergunta. — Como sabe disso?
Abaixo o cardápio para encarar seu rosto. O riso vitorioso costumeiro
está por lá. Ele apoia os cotovelos sobre a mesa e sustenta o queixo nas
mãos.
— Ainda sou eu quem paga a sua faculdade, garotinha! — Seguro o
impulso de revirar os olhos pelo “garotinha” e tomo a mesma postura que a
sua. — O reitor Barnard me enviou um e-mail dizendo que estava feliz de tê-
la representando a Irving nesse processo seletivo.
Há esse fato. Meu pai e o reitor da faculdade por acaso jogam tênis no
mesmo clube e trocam mensagens mais do que o normal para o meu próprio
bem.
— Ele me disse que você é uma forte candidata para a vaga e que
poucos alunos estão à sua altura.
— Isso é verdade — anuo, apontando em sua direção. — Tem só um
cara que poderia ser um problema pra mim, mas vou trucidá-lo. A vaga é
minha — declaro confiante, e seu semblante se abre em aprovação.
— Excelente. Quando vou saber o resultado? — Seu interesse
repentino em minha vida acadêmica me faz querer dar risada, entretanto, me
contenho porque não posso suportar mais um estresse em minha semana.
— Em seis meses, vai demorar.
— Certo. Dê tudo de si, você sabe como funciona.
Respiro fundo e abstraio a cobrança implícita. Seu tom é quase um
“ganhe esta merda ainda que para isso você precise morrer de estudar”.
Apenas assinto.
— Trabalho duro, ganhar do talento… É, eu me lembro. Agora
podemos só comer? Tenho aula em quarenta minutos.
Meu pai concorda e chama o garçom. Peço panquecas com morango,
ovos e um matcha latte grande. Meu pai, por outro lado, escolhe ovos com
bacon e café preto. Nossa conversa se resume a trivialidades como o clima,
o placar da última partida de hóquei e os livros que precisarei para o
próximo mês.
Comemos em um completo e absoluto silêncio. Quando terminamos,
ele paga a conta e pede para que eu o acompanhe até o estacionamento. Fico
estática diante da Range Rover Velar branca que destrava quando meu pai
aperta um botão na chave em sua mão.
Esse é, apenas, o carro dos meus sonhos.
Contei isso para o meu pai um milhão de vezes. Ele nunca deu muita
importância, já chegou a dizer que achava o modelo sem graça, e agora,
enquanto espero ele vasculhar o porta malas, minha expressão é de puro
choque.
— T-Trocou de carro? — questiono, ainda babando pela lataria do
veículo.
Seria sonhar demais cogitar que ele está prestes a me dá-lo?
— Oh, sim. Tiffany gostou mais desse, acabou me convencendo a tê-lo.
Gostou?
Sim, Amelie, seria. Minha mente responde a minha própria pergunta.
Parece piada. Dou alguns passos para trás sentindo meu coração se
estilhaçando um pouquinho. Ele nem ao menos se lembrou de mim, de como
sempre falei que achava esse modelo lindo. Parece algo fútil e irrelevante,
mas saber que ele não presta atenção em nada do que eu falo me deixa
sempre um pouco mais magoada e ressentida.
— Achei! — anuncia alegre, segurando uma caixa pequena e
caminhando em minha direção. — Espero que goste.
Sorrio fraco e agradeço de forma silenciosa enquanto a desembrulho.
É uma câmera fotográfica profissional. Encaro a caixa um tanto
surpresa, subo o olhar para ele confusa. Meu pai me deu uma câmera
exatamente igual a essa há cerca de cinco meses. Mandou entregar em meu
alojamento junto com uma bolsa de grife que nunca saiu da caixa.
— Você é uma futura jornalista, acho que isso pode te ajudar com seus
trabalhos da faculdade. Sua avó amava fotografar tudo e todos, e o seu
Instagram me diz que você tem isso em comum com ela. Pode ser útil, não
sei.
Sua voz suave e baixa faz com que o nó em minha garganta se aperte
mais uma vez, e ele quase volta a ser o pai da Amelie de oito anos. Isso me
confunde e me machuca.
Ele realmente não se lembra de já ter me dado esse presente ou
simplesmente não se importa o suficiente nem mesmo para saber o que ele
me dá? Será que foi ele quem escolheu ou passou a missão para uma de suas
secretárias?
A minha avó gostava mesmo de fotografia ou é mais uma de suas
histórias para me fazer acreditar que somos uma família?
Esses e outros muitos questionamentos metralham minha mente e me
deixam um tanto zonza. Sinto uma súbita vontade de gritar, explodir, despejar
de vez tudo o que eu sinto em cima dele. Uma irritação desmedida começa a
se espalhar pelo meu peito.
Quando estou a ponto de tomar uma atitude, meu celular vibra no bolso
da minha calça de viscose verde musgo, arrancando toda a minha atenção e
estourando a bolha em que mergulhei nos últimos segundos.
É uma notificação do aplicativo da faculdade anunciando que minha
primeira aula começa em quinze minutos.
— Preciso ir — digo sem olhar em seus olhos. — Valeu pela câmera.
Ele assente e eu me afasto, caminhando de volta para a entrada do
hotel para pegar um táxi.
— Onde está o seu carro? — ouço-o gritar atrás de mim.
Olho para ele por cima do ombro e solto uma risada sarcástica.
— No mecânico, de novo! O motor daquele troço é uma droga, mas eu
espero que esteja feliz com o seu carro novo! Porque o meu só me dá dor de
cabeça. Embora você nunca tenha perguntado.
Foda-se, eu estou sem paciência.

São quase sete da noite. Estou espremida em uma cadeira


desconfortável do corredor sentindo meu corpo doer por toda parte enquanto
aguardo a médica chegar para dar a alta para minha mãe.
É tudo tão familiar e mecânico que parece que estou apenas atuando
em looping na mesma cena.
Leva cerca de quarenta minutos até que estejamos rumando à saída do
centro médico. Uma enfermeira empurra a cadeira de rodas onde uma
Virgínia ainda meio bêbada disserta sobre o quanto odeia hospitais. Abraço
meu corpo andando logo atrás e sinto vontade de perguntar por que raios ela
continua me fazendo voltar para esses lugares se os detesta tanto assim.
Não seria mais fácil só parar de se afogar em álcool?
Engulo a pergunta junto com toda a raiva e indignação, que sempre me
rodeiam em momentos como esse, e sigo fazendo o meu papel de filha.
Embora tenha um bom tempo que ela não faça o dela de mãe.
Peço um táxi e a coloco sentada, presa ao cinto de segurança, no banco
traseiro. Me acomodo no assento do passageiro e dou o endereço ao taxista.
Estou tão anestesiada pelo drama dos meus pais ter me englobado por
completo que mal me dou conta de que, depois de meses, estou indo até a
mansão dos horrores onde minha mãe mora, o que restou do que um dia foi o
meu lar.
O trajeto inteiro é tomado por um completo silêncio, e enquanto o
veículo desliza pelo Holland Tunnel com rapidez, me atenho à tarefa de
enviar uma mensagem para Megan avisando que vou demorar um pouco.
Eu: Levando Virgínia em casa :(
Eu: Devo estar aí às nove.
Não demora muito para que sua resposta preencha a tela.
Meg: Vou comprar cookies, acho que você vai precisar.
Meg: Tenho uma prova absurda amanhã de manhã e um plantão de
tarde, vou estar acordada quando chegar.
Eu: Okay, pega leve com você, por favor.
Meg: Vou tentar :)
Quando enfim terminamos a travessia do túnel e demos adeus ao solo
nova iorquino, guio o motorista até o endereço do nosso destino final.
O muro alto, tomado por heras, aparentemente bem conservado, passa
a impressão de que bem ali, do outro lado, está abrigada uma fortaleza forte
e indestrutível, claramente uma fachada para esconder as ruínas de uma
família que sucumbiu aos próprios erros.
Me identifico pelo interfone e logo os portões altos de ferro se abrem.
O caminho iluminado que leva até a entrada é mal cuidado, algumas folhas
secas cobrem o gramado que há tempos não vê um cortador e a pintura das
paredes externas da casa está coberta por limo. Parece mesmo uma cena de
filme de terror.
O táxi pára diante da escadaria principal que leva até o hall de
entrada, Madelyn, a governanta, e Alfred, o motorista, estão a postos nos
aguardando. Pago o taxista pela corrida e saio do carro para auxiliar Alfred
no trabalho de carregar minha mãe até seu quarto.
Já no andar de cima, me sento na borda da cama e encaro com firmeza
os olhos de Virgínia, que está encostada na cabeceira. Nenhuma de nós
parece disposta a dar o primeiro passo, e por isso, assim como fiz mais cedo
com o meu pai, deixo que minha mente se liberte um pouco.
— Quando pretende dar um fim nisso tudo? — pergunto, mantendo
meus olhos grudados aos seus.
— O quê? — sua confusão me deixa ainda mais exausta.
— Quando acha que vai tomar de volta as rédeas das coisas e me
deixar quieta no meu canto? Estou começando o meu penúltimo ano na
faculdade e nada mudou. É sério mesmo que pretende me deixar presa a essa
situação pelo resto da minha vida?
Suas íris pretas me escrutinam brilhando pura melancolia e eu sinto
como se essa conversa fosse uma grande perda de tempo. Entretanto, não
paro de falar.
— Eu estou tão cansada dessa inversão de papéis, tão cansada…
— Amelie…
— Essa foi a última vez, e eu estou falando muito sério. Eu não
aguento mais isso — aviso controladamente, deixando em segundo plano a
súbita vontade de chorar. Passei o dia fazendo isso.
Ela me olha com ainda mais atenção agora, e aparenta ter sido pega de
surpresa. Parece estar buscando uma explicação para me dar e eu rezo aos
céus internamente que não fale sobre o meu pai, eu não suporto mais vê-la
colocando-o como pretexto para estar nesse buraco de onde nunca mais saiu.
Ambas sofremos quando ele nos deixou, quando ele escolheu viver
uma outra vida em uma outra casa com uma nova família. Ambas passamos
pela dor da perda, e eu sei o quanto meu pai tem sua parcela de culpa em
muita merda que aconteceu em nossas vidas.
Mas foi ela quem escolheu lidar com tudo desse jeito, foi ela quem
escolheu me esquecer, me deixar ser criada pela governanta e se afundar em
uísque caro e compras de luxo ao invés de tomar o controle da sua própria
vida. Eu só tinha doze anos quando tudo desandou, e quinze quando eles de
fato se divorciaram.
E eu sinto, até hoje, que perdi o meu pai e a minha mãe em uma tacada
só.
Acredite, eu sei bem o quanto eu poderia usar a desculpa da família
desajustada para simplesmente ser uma adolescente rebelde que não se
importa com nada. Poderia ter feito como a minha mãe, estagnado a minha
vida, mandado tudo pelos ares e acatado qualquer punição maluca que meu
pai me designasse.
Mas eu descontei toda a minha dor nos estudos, me dediquei como uma
filha da puta para entrar em uma Ivy, estudar em uma das melhores
universidades do país e do mundo foi o que eu fiz com a minha dor. Minha
mãe escolheu o próprio caminho, e é injusto que tenha me arrastado junto.
Por favor, não fale do meu pai. É o que minha mente grita quando noto
sua menção a me responder.
— Me desculpe, filha, eu só… Você sabe, tem sido difícil desde que
tudo aconteceu e eu ainda não consigo… Eu não consigo parar.
— Não é possível! — esbravejo, saltando da cama e enfiando os
dedos em meus cabelos. — Já fazem seis anos, Virgínia! Seis malditos anos!
Pelo amor de Deus, chega!
Encaro-a irritada sentindo todo o meu corpo alcançando a explosão
final, tudo que eu tinha acumulado em meu peito ao longo do dia — e da
semana — está circulando por minhas veias nesse instante. Minha mãe
permanece estática e um vinco enorme se afunda em sua testa como se
estivesse ofendida. Fico de pé diante dela e mal consigo controlar meu tom
de voz.
Não é possível que ela não perceba o quanto isso é doentio.
— Fazem seis anos, mãe, acabou! O papai não vai voltar, o casamento
de vocês não vai se reconstruir e não tem nada que você possa fazer a não
ser aceitar! Então, por favor, pare de achar que uma garrafa de uísque vai
resolver todos os seus problemas, porque não vai! — As palavras saem da
minha boca desenfreadas e sinto minha voz embargar ao passo que as
lágrimas brotam em meus olhos. — Você e o meu pai já ferraram a minha
vida o suficiente quando morávamos juntos nesse inferno que chamavam de
casa, por favor, me deixem em paz! É a única coisa que estou pedindo.
Minha mãe me olha escandalizada, e sua expressão me diz que
qualquer vestígio de não-sobriedade que habitava em seu organismo acaba
de evaporar. É a primeira vez que perco o controle, a primeira vez que
externo um pouco de toda a mágoa que carrego. E não me arrependo nem por
um segundo.
Eu estou cansada de aguentar essa merda toda sozinha.
— Filha, não é tão simples quanto parece, você não entende…
— É claro que eu não entendo! O papai foi embora? Okay, eu sinto
muito que tenha perdido seu marido, mas eu também perdi o meu pai e a
minha mãe, sabia? Ou você acha mesmo que depois que ele foi embora nada
mudou na minha vida? Porra, você mal olhava na minha cara! Eu era só uma
criança, Virgínia, uma criança!
— Acha mesmo que eu não sei disso? — ela questiona, o tom de voz
irritado sobe uma oitava. — Que eu não estava à par do que estava
acontecendo na minha própria casa? Da ruína da minha família?
— Sendo sincera? Eu acho sim, acho que você foi totalmente incapaz
de entender o que estava acontecendo, porque é nisso que eu prefiro
acreditar. Prefiro acreditar que não percebeu que, enquanto tentava salvar
um casamento fracassado, sua filha de doze anos precisava de você e do seu
amor. Porque caso eu ouse pensar o contrário, caso eu ouse pensar que você
escolheu priorizar Esteban e me deixar sozinha, eu sinto muito, mas eu nunca
vou ser capaz de perdoar você — digo, ríspida. Minha mandíbula dói
conforme vai se apertando e meus punhos cerrados ao lado do corpo fazem
com que minhas unhas se afundem na minha palma.
— Pelo amor de Deus, não é nada disso, filha, sente aqui, vamos
conversar!
— De verdade, eu já estou de saco cheio de compreender todo mundo.
Meu dia foi uma droga, eu estou cansada… Tô indo embora — anuncio,
firme, passando minha bolsa por meu braço e caminhando até a porta. Paro
no batente e olho-a de soslaio uma última vez. — Por favor, só me chame de
filha de novo quando souber ser uma mãe. E não me ligue mais, é sério.

O caminho de volta para Nova Iorque é lento e doloroso. O alívio em


meu peito divide espaço com a angústia de ter trazido à tona todos os
sentimentos ruins que tenho em relação à minha família. Enquanto o Uber
avança pelas avenidas, busco uma distração rolando a tela pelo Instagram.
Megan postou um storie que mostra seu notebook e seu caderno repleto
de anotações, fez também um post no feed sobre Greys Anatomy, seu
verdadeiro vício. Mais para baixo, uma foto de Lily segurando um cartaz me
chama atenção, é uma manifestação em prol das causas ambientais. Faço
questão de curtir, comentar e compartilhar demonstrando meu apoio.
Logo em seguida, um card aparece sugerindo contas para seguir, solto
uma risada baixa quando vejo o rosto de Ethan preenchendo a tela. Eu me
lembro que o segui no início do curso, mas logo que nossos atritos
começaram, dei unfollow porque não queria ver seu rosto além do que já era
obrigada.
Intercalo o olhar entre a janela e o celular, pensando se devo segui-lo
novamente em nome da cordialidade já que nossos melhores amigos
namoram agora. Mordo o lábio, clicando sobre sua foto de perfil, e o
aplicativo me redireciona para sua conta.
O perfil é aberto, típico. Há algumas fotos e vídeos seus jogando
basquete, não entendo muito sobre o esporte, mas pelos poucos segundos
gravados que assisto, ele parece ser realmente bom no que faz. Há uma foto
recente com Megan, publicada no início da semana. Os dois estão fazendo
caretas e parecem realmente bons amigos.
Uma risada me escapa quando rolo para uma publicação onde um
bulldogue está com o rosto apoiado na cama, que suponho que seja a sua, ao
lado de uma caixa de pizza. Acabo me dando por vencida e clico no botão
para segui-lo.
Desligo o telefone e me ponho a observar as ruas novamente, estou a
alguns quarteirões do alojamento. Poucos segundos se passam até que meu
celular vibre e a tela se acenda.
Notificação do Instagram.
@ethanharris seguiu você de volta.
E lá vamos nós.
“Eu fico sobrecarregada tão facilmente
Minha ansiedade me mantém em silêncio
Quando tento falar
O que aconteceu comigo
Parece que eu sou outra pessoa”
OVERWHELMED | Royal & The Serpent

23 de julho de 2021

Qual a chance de um carro quebrar menos de vinte e quatro horas


depois de sair do mecânico?
É o que me pergunto, completamente revoltada, depois da vigésima
tentativa frustrada de dar a partida e nada acontecer. Emprego um pouco
mais de força ao rodar a chave na ignição, na esperança de que isso resolva
alguma coisa, mas tudo o que acontece é um enorme nada.
O carro não pega.
Saio do veículo irritada e abro o capô, checando os níveis de água e a
fiação. Tudo parece normal. Nossa, eu odeio tanto essa droga! Amaldiçoo
meu pai milhares de vezes em pensamento enquanto tento mentalizar alguma
solução. Checo o relógio mais uma vez, concluindo que eu certamente vou
me atrasar, pela segunda vez, em menos de uma semana.
O Sr. Green é um homem paciente, mas certamente não nesse nível.
Entro novamente e pego o celular em minha bolsa, vasculho a lista de
contatos atrás do número do meu mecânico, envio uma mensagem de áudio
explicando o que aconteceu e enquanto aguardo sua resposta, continuo
tentando, sem sucesso, dar a partida no automóvel.
Já me dando por vencida e prestes a pedir um Uber, ouço batidas no
vidro que me fazem virar a cabeça em um movimento rápido e assustado.
Pelo amor de Deus, não.
— O que foi? — Abaixo o vidro, encarando seus olhos através do
espaço do capacete que cobre sua cabeça.
— O que tá pegando? Com o carro — Ethan pergunta, esticando o
pescoço para olhar o capô aberto.
Penso em retrucar, pedir para que vá embora, mas estou exausta e
estressada demais para isso. Tive duas provas infernais hoje, e tudo que
minha mente quer é um pouquinho de paz.
— Bom, o ponto é exatamente esse: não está pegando. — Solto uma
risada sem humor. — Acho que pode ser algo no motor porque ele acabou de
voltar da oficina para ajeitá-lo. Estou atrasada pro trabalho, vou pedir um
Uber e… — Sou interrompida pelo barulho do meu celular desligando.
Bateria fraca. Era só o que me faltava.
Largo o aparelho em meu colo e levo as mãos até o rosto, esfregando-
o com força e tentando conter as lágrimas que ousam brotar em meus olhos,
porque nem ferrando vou dar para Ethan o gosto de me ver chorar.
— Me empresta seu celular, por favor? — peço, ainda com os olhos
fechados e a mão no rosto. Ouço-o grunhir baixo.
— A rua de acesso ao campus está interditada, vai demorar muito e
você está atrasada. Vamos, eu levo você.
Não tenho tempo de responder porque ele já abriu minha porta e está
caminhando de volta para a moto parada ao lado do meu carro. Pego minha
bolsa e fico de pé o encarando incrédula.
Ele só pode estar brincando comigo, ou pirou de vez.
— Está louco se pensa que vou subir nessa coisa com você. Não me
leve a mal, mas eu prefiro morrer de uma forma mais digna do que sendo
uma garota na sua garupa.
Ethan revira os olhos e me estende um capacete, ignorando tudo o que
eu disse.
— Que outra opção você tem? Eu não estou com o meu celular.
Olho em volta e noto que o estacionamento está vazio. Não há mais
nenhum estudante além de nós.
Droga. Droga. Droga.
Checo o relógio em meu pulso. Estou cinco minutos atrasada. As vozes
em minha mente berram alto o quanto eu deveria simplesmente ir andando e
tentar me resolver depois com o meu chefe, entretanto, minha impulsividade
e cansaço fazem com que eu tome o capacete de sua mão e o coloque na
cabeça de forma desajeitada.
Ethan se aproxima e ajusta o fecho sem olhar nos meus olhos, sobe na
moto e me estende a mão para me ajudar a fazer o mesmo. O macaquinho que
estou vestindo não facilita muito o processo e posso jurar que o escutei rir
da minha cara.
Por fim, quando caio em mim do quão absurdo tudo isso é, ele já está
dando a partida rumando à saída do campus. Envolvo meus braços em sua
cintura sentindo seu abdômen rígido por baixo da blusa fina que veste, e
quando tomamos as ruas de Nova Iorque, duas coisas piscam em minha
mente.
1- Eu nunca andei de moto.
2- Sou mais uma garota na garupa de Ethan Harris.
Universo, você me paga, e muito caro.
O trajeto até a cafeteria consiste em apertar o tronco do cara sentado
na minha frente com toda força e implorar aos céus para não morrer. É a
primeira vez que toco-o de maneira tão próxima. Isso me aterrorizará nos
meus mais sombrios pesadelos.
Assim que ele para em um sinal próximo ao local onde trabalho, sinto
sua mão cutucando minha pele de forma incisiva.
— Sim?
— Coelhinha, você tá me machucando — fala, se contorcendo sob os
meus braços.
Afrouxo um pouco o aperto ao seu redor e sinto meus membros
doloridos. Eu estava o envolvendo tão firmemente por conta do medo que
não dosei a força. Sinto-o puxar o ar com vontade, até encher os pulmões.
— Desculpa.
É o que tenho tempo de dizer antes dele acelerar novamente ganhando
a avenida. Quando Ethan estaciona em frente à Letras & Grãos, desço da
moto em um salto, agradecendo aos deuses e energias que me mantiveram
viva.
Paro diante dele, que prontamente leva os dedos até o fecho do
capacete e o tira com cuidado, deixando-o escorregar por seu braço. Com
uma das mãos, Ethan ajeita os fios rebeldes do meu cabelo, passando os
dedos por entre eles ao mesmo tempo em que tomo a mesma iniciativa.
— Desculpa — fala, afastando a mão.
— Não tem problema — tranquilizo, sorrindo sem graça. — Obrigada
pela carona. E se pensa que vai usar isso como forma de me chantagear para
me obrigar a fazer algo por você, sinto muito, não vai rolar.
Ethan me olha de cara feia e bufa baixinho enquanto coloca o capacete
que tirou de mim em um compartimento da moto.
— Você não sabe só agradecer sem parecer uma chata ranzinza não?
— Reviro os olhos e quando estou prestes a virar de costas, ouço-o
perguntar. — Que horas você termina aí?
— Às seis, por quê?
— Te vejo às seis então.
Solto uma risada e volto a encará-lo.
— Foi uma boa piada, vou fingir que acredito.

Ele não estava brincando.


Pontualmente às seis horas, quando estou saindo da cafeteria para
pedir um Uber para voltar para a faculdade, tenho a visão de Ethan sentado
atrás do volante de um Kia Soul preto. Ele está olhando para frente e
tamborilando os dedos no volante como se estivesse esperando há algum
tempo.
— O que faz aqui? — pergunto, me aproximando da janela do carro.
Ethan me encara com indiferença e destrava a porta.
— Eu falei que vinha, entra aí — ordena, fazendo um aceno com a
cabeça.
— De quem é esse carro?
— Entra logo, Castillo — Ele parece exausto. — Eu tenho treino daqui
a pouco, não posso atrasar.
Dito isso, abro a porta e subo no banco com um pequeno salto,
lembrando que também faltam poucas horas para a biblioteca fechar. Me
acomodo e coloco o cinto de segurança, ouvindo as vozes em minha cabeça
gritando pelo que julgo ser a centésima vez hoje. Ethan dá a partida e seu
olhar se mantém focado no trajeto.
— De quem é o carro? — pergunto outra vez.
— Do Tyler.
— Por que veio me buscar?
— Eu te disse que viria, por que o espanto?
— Qual é, nós dois sabemos que você não faria uma gentileza por mim
de forma gratuita — falo, sarcástica. — Sério, por qual motivo decidiu me
ajudar?
— Não sei, acho que estou tentando ser um cara legal para ver se
garanto minha vaga no céu. Essas coisas, sabe — seu tom é munido de pura
ironia. Seus olhos não desgrudam da avenida na nossa frente.
— Sinto lhe informar, mas está tentando tarde demais. O inferno está
abarrotado de babacas como você — ralho, alternando o olhar entre a rua e
o seu rosto.
— Você tem que ser sempre tão escrota? — questiona revirando os
olhos.
— Eu não sou escrota, só quero entender por que raios você resolveu
deixar de ser o grandíssimo filho da puta que sempre foi comigo da noite pro
dia! É por causa do Tyler e da Megan, não é? Foram eles que te mandaram
ser bonzinho comigo? — pergunto, já com a irritação queimando em meu
peito. — Porque se for, eu definitivamente não preciso disso…
— Pelo amor de Deus! Você está se ouvindo? É tão irreal assim para
você que eu só esteja sendo a porra de uma pessoa decente? — seu tom se
eleva e sua mandíbula está trincada enquanto ele luta para não desviar o
olhar para o meu rosto.
— Depois de quase três anos infernizando a minha vida? Olha, é sim,
bem irreal.
— Eu não… Ah, me poupe! Não fale como se fosse uma santa… —
ele esbraveja, mas é interrompido pelo celular tocando no sistema central do
carro. — O que foi?
Ethan quase grita ao atender, tamanha a sua irritação.
— Eita, calma aí cara. Só liguei para saber se deu tudo certo aí com a
Am… — a voz de Tyler ecoa pelo carro por pouco tempo antes da ligação
ser encerrada.
Solto uma risada desprovida de qualquer humor e sacudo a cabeça em
negação.
— Inacreditável — bato três palmas longas. — Por alguns segundos eu
quase caí nesse papo de tentar conquistar a sua vaga no céu, sabia?
Parabéns, Ethan Harris, você é um terrível mentiroso.
Noto seus nós dos dedos ficarem brancos quando ele aperta com força
o volante em suas mãos.
— Quer saber de uma coisa, pra mim chega — ouço-o dizer antes de
virar o volante de maneira brusca e parar o carro. — Eu não quero saber
como você vai pra faculdade, como vai buscar seu carro, de Uber, táxi, à pé,
correndo, não me importo. Desce do carro.
— O quê? — Minha voz quase não sai, tamanha a minha
incredulidade.
Ethan se vira em minha direção e solta meu cinto de segurança que
desliza pelo meu corpo. Seus olhos estão queimando em raiva e eu posso ver
as chamas brilhando nas íris castanhas.
— Eu não vou ficar ouvindo esse monte de merda enquanto eu,
literalmente, só estou tentando te ajudar, então, se você não sabe reconhecer
isso e prefere o Ethan babaca, olha que legal! Eu posso ser o babaca, com
muita facilidade! — O sorriso raivoso em seu rosto me faz engolir seco. —
Anda, Castillo, desce do carro.
Encaro-o escandalizada com seu tom de voz alto. Minhas mãos tremem
levemente quando as levo até a maçaneta e salto para fora do veículo,
batendo a porta com toda força que consigo. Ethan dá a partida me deixando
sozinha na rua movimentada, observando o carro se afastar e se perder em
meio ao trânsito caótico de Nova Iorque.
Brava e completamente mortificada, solto um grito estrangulado de
irritação e caminho em passos firmes em direção ao campus. Enquanto me
desloco, uma sensação ruim invade meu peito e minha mente e eu preciso
respirar fundo para não sucumbir a vontade de explodir em lágrimas.
Pelo último olhar que trocamos, Ethan parecia não só irritado como
magoado pela forma com que falei com ele, sentimentos esses refletidos
também eu seu tom de voz quando me mandou sair do carro, como se o fato
de eu não acreditar na sua vontade real de me ajudar o deixasse chateado. E
eu sinto que, talvez, eu tenha entendido tudo errado.
Magoar alguém que ajudou você é uma merda.
Ainda que eu o deteste, não consigo evitar de me sentir mal por isso.

A Arena John Jay também fica no Coleman Campus, a alguns metros


da Chisholm House. Por isso, assim que saio da biblioteca e avisto o carro
do Tyler ainda no estacionamento, antes mesmo que eu consiga raciocinar o
que estou fazendo, meus pés me levam até a entrada do local onde o treino
do time de basquete está acontecendo.
Caminho pelos corredores sentindo o sangue fervendo em minhas
veias. A cada passo que dou em direção à quadra, minha raiva aumenta e eu
sinto que posso acertar um chute no meio das pernas daquele desgraçado.
É difícil definir as sensações que permeiam meu peito agora, mas sei
que meu corpo treme em irritação e estou quase sufocando no bolo de saliva
e choro que tento, a todo custo, engolir.
Não vou chorar na frente dele, não vou deixar que ele me afete.
A primeira coisa que senti, ao sair daquele carro mais cedo, foi culpa.
Uma quantidade vultosa de culpa misturada com rejeição. Senti-me culpada
por tê-lo julgado tão mal, a partir de conclusões precipitadas, e por tê-lo
ofendido de maneira tão incisiva quando, sendo realista, tudo o que ele fez
hoje foi tentar me ajudar.
E fez além do que precisava.
Isso me corroeu pelos minutos intermináveis que levei caminhando até
o campus. Coloquei meus complexos na frente dos meus julgamentos e fiquei
cega por isso.
“Nem todo mundo quer ferrar com a sua vida”, foi o que repeti por
diversas vezes.
Atrelado a isso, o sentimento de rejeição que se alojou em meu peito
vem de um lugar muito mais sensível do que Ethan seria capaz de entender.
Quando ele arrancou com aquele carro e me deixou sozinha, a sensação
vertiginosa de já ter vivido aquela mesma cena tantas outras vezes ao longo
da vida me fez mergulhar em um poço fundo de autopiedade e amargura.
No entanto, com a mesma força e rapidez que esses sentimentos se
apossaram do meu peito, eles se tornaram raiva e mágoa quando recebi a
ligação de Megan, perguntando se eu estava bem e se já tinha conseguido
“resolver as coisas do carro”.
Eu não falei com Megan o dia inteiro, nem mesmo depois que
carreguei meu celular no trabalho, o que significa que não fui eu a contar
para ela sobre o problema com o meu carro. O que me leva de volta ao meu
ponto: Ethan está fingindo se importar comigo para agradar o amigo.
Veja bem, não sou contra darmos uma trégua se isso for fazer Tyler e
Megan felizes, posso realmente tentar fazer isso se conversarmos. Mas não
dessa forma, não com mentiras.
Preferia mil vezes que todas as minhas insinuações sobre ter um
motivo por trás de sua mudança repentina caíssem por terra, e que eu só
tivesse sido uma mal agradecida. Porque, de alguma forma, isso seria muito
melhor do que descobrir que nada, nenhuma parte, foi real ou sincero. Eu
preferia que eu o tivesse magoado, que eu tivesse de enterrar meu orgulho
para em algum momento me desculpar.
Ele agiu exatamente como os meus pais, me tratou como um fardo, um
problema que ele teve que abafar.
Eu odeio essa merda, e odeio ele.
Entro no corredor de acesso à quadra no instante em que um monte de
caras altos e musculosos está saindo de uma das passagens. Todos eles já
estão vestidos com roupas casuais e carregam bolsas ou mochilas. O grupo
conversa animadamente, no entanto, no momento em que alguns deles notam
a minha presença, um silêncio sepulcral se instala no local.
— Miss Jornal, o que faz aqui? — Tyler pergunta, me olhando como se
eu fosse um animal fora do meu habitat.
— Quero falar com ele — falo, movendo o queixo na direção do
capitão do time que já me analisa com o semblante fechado.
Tyler parece captar as faíscas saindo de nossas cabeças apenas ao
alternar o olhar entre nós, e ao invés de tentar impedir nossa conversa, ele
apenas chama o restante do time para ir embora, deixando Ethan e eu a sós
no corredor.
— O que você quer, hein? Veio continuar me xingando? — ele
pergunta, rindo, caminhando em minha direção.
— Quero saber porque não me disse o que estava fazendo no momento
em que te perguntei.
— De novo esse papo? Agora eu te devo satisfação até dos motivos
pelos quais não deixei você se ferrar sozinha e te dei a porra de uma carona?
— questiona, passando as mãos pelos cabelos para descontar a irritação.
— Quando o seu melhor amigo namora a minha melhor amiga e
qualquer coisa que acontece entre nós pode afetá-los, sim, eu gostaria de
explicações sim.
— Certo, vamos lá, você quer explicações, então aí vai: Tyler é
praticamente o meu irmão, eu faria qualquer coisa pra aquele cara ser feliz, e
sabe quem faz ele feliz? A sua amiga. E mais, sabe quem é a pessoa mais
importante da vida dela? Você. Então, para mim, foda-se que passamos os
últimos três anos em pé de guerra, se você é importante para quem eu amo,
eu não vou ignorar isso e simplesmente deixar você na mão! É como as
coisas funcionam comigo, tá legal?
Respiro fundo, encarando-o. É uma atitude louvável, mas eu ainda não
consigo evitar de me sentir como um fardo.
— Por que não me disse isso mais cedo?
— Que diferença isso faz pra você? — pergunta, agoniado.
— Toda. Porque se só vai me tratar bem por fingimento para fazer
média com a minha amiga, não precisa fingir, é só esquecer que eu existo, de
verdade. Não precisamos encenar nada. Eu não vou fazer isso, sério. —
Tento controlar meu tom, embora esteja irritada.
Realmente não quero que ele se sinta na obrigação de ser meu amigo
ou algo do tipo. Ethan não gosta de mim, eu não gosto dele, vivemos assim
por anos, e está tudo bem. Não precisa mudar só porque Tyler e Megan
assumiram um namoro, é a vida deles, não a nossa.
— Isso não tem nada a ver com encenação, é o básico da convivência.
— Eu só não quero ser um projeto de caridade, entende? Não sou
sensível desse jeito, não vamos mais brigar, mas posso lidar com a sua
indiferença.
— E se eu não quiser ser indiferente? — Seu tom beira o chiado.
— O quê? — pergunto confusa.
— É isso que você ouviu. E se eu não quiser ser indiferente? Porque,
desde o início, você parece querer ditar como eu lido com a situação, mas
em momento algum me perguntou o que eu penso.
— O que você quer, então?
Ethan me encara por alguns segundos, parecendo pensar. Não demora
muito para que sua postura se desmonte e ele leve uma das mãos até o rosto,
sacudindo a cabeça em negação.
— Esquece, eu tô cansado pra caralho, faça o que quiser, só não
deixe que isso — fala, intercalando o dedo entre nós — seja maior do que
sua vontade de ver Megan feliz, porque nem que eu tenha que aprender na
marra a te suportar, de verdade, eu vou fazer isso com dedicação para que
Tyler seja feliz. Ele é muito mais do que o meu amigo, é um irmão, não
duvide de tudo que eu faria por ele, porque eu faria muito. — Seu tom é
firme e seu olhar pétreo me deixa mais séria. A convicção que ele tem ao
mostrar que prioriza a felicidade de Tyler me faz sentir uma amiga péssima.
— E eu não vou deixar você ferrar com tudo por conta dessa briga boba,
Castillo.
É um aviso claro. Ele passa por mim, seguindo direto para o
estacionamento antes que eu tenha tempo de dizer qualquer outra coisa.
Assinto com a cabeça, mesmo que ele não tenha visto, obrigando meus pés a
imitarem seus passos e caminharem para fora da arena.
“Garota de pele negra
Sua pele é como pérolas
A melhor coisa do mundo
Nunca troque você por mais ninguém ”
BROWN SKIN GIRL | Beyoncé

25 de julho de 2021
Faltando pouco mais do que cinco minutos para o início da aula,
estou quase voando pelos corredores do prédio onde se localiza o
departamento de Ciências Sociais. É uma construção grandiosa e antiga, bem
como a maioria dos prédios do Coleman Campus. Entretanto, nada que se
compare ao departamento do meu curso, afinal, somos o carro chefe da
faculdade.
Se existisse um templo do jornalismo mundial, ele seria a Irving
University.
Respiro ofegante, sentindo minhas costelas doerem um pouco devido
ao treino extra que eu e Simon fizemos ontem. Quando estou a poucos passos
de distância do auditório onde acontece a minha aula de Comunicação e
Política, apoio minha mão na parede e tomo fôlego para tentar parecer um
pouco menos desesperada.
Espero alguns segundos, e só então puxo o ar com força uma última
vez. Amasso um pouco meus cachos e passo as palmas das mãos sobre o
tecido do meu vestido para desamassá-lo.
Zero a distância entre mim e a porta, abro-a e caminho pelo corredor
em passos ágeis, escaneio a arquibancada lotada por alguns instantes até me
dar conta do único lugar disponível e solto uma lufada de ar, já me
preparando para o que está por vir. A sorte, definitivamente, não está ao meu
favor.
Ethan está com um falso semblante indiferente e encara o celular,
fingindo rolar uma timeline. Sei que é mentira, porque os movimentos de seu
polegar estão rápidos demais e, a menos que ele seja um Spencer Reid[3] da
vida, estou certa de que ninguém consegue ler alguma coisa tão rápido assim.
— Oi — falo, assim que me sento ao seu lado. Ele me olha de
esguelha e então volta a encarar a tela de seu telefone. Limpo a garganta para
chamar sua atenção. — Bom dia, Harris.
— Bom dia, Castillo. — Seu tom emburrado e sem humor me faz
revirar os olhos. Por alguns segundos cogito esquecer a boa convivência,
mas desisto assim que me recordo do real motivo pelo qual decidi voltar
atrás na minha decisão.
É tudo por Megan e Tyler, e pela felicidade deles.
Me aproximo da lateral de seu rosto e, antes que ele possa se virar
em minha direção, seguro seu queixo com a ponta dos dedos mantendo-o
reto.
— Você me disse para não ferrar com tudo, eu estou tentando, então
colabora — sussurro para que apenas ele escute.
Me afasto um pouco e vejo seu pomo de adão subir e descer
vagarosamente. Ethan leva a mão até a minha, que está alojada em seu
queixo, e a retira com cautela. Em seguida, mexe o rosto em minha direção
fazendo com que, em segundos, suas íris escuras estejam apontadas
diretamente para os meus olhos, escaneando cada parte do meu rosto.
Observo atentamente cada um dos seus movimentos e meu estômago
se contrai em nervosismo por estar sob sua análise. Vejo quando ele desliza
a língua devagar pelo lábio inferior e mordo a parte interna da minha
bochecha, porque o movimento me deixa um tanto transtornada.
Uma quantidade limitada de pele se repuxa em sua face, e não demora
muito para que eu veja aquilo que tanto detesto, aquele combo maldito e tão
praguejado por mim, com direito a lábios fechados, covinhas em evidência e
sobrancelha arqueada.
Como num passe de mágica, seu semblante carrancudo se desfaz e lá
está, seu típico sorrisinho de canto.
— Bom dia, Coelhinha. — O tom de voz exageradamente açucarado
me faz querer chutar o meio de suas pernas.
Ridículo.
Não tenho tempo de dizer mais nada, porque somos puxados para fora
da bolha de tensão que nos engloba quando em um rompante, pra lá de
indiscreto, nossa professora de Comunicação e Política, Srta. Devlin,
adentra a sala de aula chamando toda a atenção da classe para si.
Diferentemente da Nicole Kidman em Esposa de Mentirinha, a Srta.
Devlin é uma mulher gorda, negra retinta, de quase um metro e setenta, e
facilmente uma das professoras mais bonitas que já tive. Ela tem um tipo de
presença que torna impossível não notar, ou até mesmo desviar o olhar. Suas
aulas são sempre muito dinâmicas e recheadas de provocações que nos
levam a reflexões profundas a respeito do compromisso social que iremos
assumir ao nos formarmos.
Aulas como as dela me fazem nunca esquecer do real motivo para eu
amar tanto a imprensa.
Nossa professora faz uma pequena introdução de como funcionará a
nossa aula de hoje, onde vamos assistir os dois últimos episódios da
minissérie documental que iniciamos na semana passada,“When They See
Us”, que retrata o caso dos “Cinco do Central Park”, um crime que ficou
famoso e chocou o país.
Tudo que envolve esse caso é como um soco no estômago e eu
confesso que, por diversas vezes, tive que esconder o rosto com as mãos
enquanto assistia os dois primeiros capítulos, para que os alunos ao meu
redor não me vissem chorar. Basicamente, o caso gira em torno de cinco
adolescentes negros que foram condenados por um estupro que não
cometeram.
Em uma noite, uma banqueira de investimento chamada Trisha Meilli,
que na época tinha 28 anos, estava correndo no Central Park, em Manhattan,
quando foi atacada e violentada sexualmente. Além do estupro, ela também
foi espancada e, por muito pouco, não foi a óbito, ficando em coma durante
12 dias. Acontece que, nessa mesma noite, havia um grupo de cerca de trinta
garotos de descendência afro-americana e hispânica promovendo uma
“baderna” no parque e cometendo pequenos delitos.
Quando a polícia chegou ao local e encontrou a corredora, as
investigações se iniciaram e cinco deles foram levados para a delegacia. O
que se vê daí em diante é um show de horrores de racismo, elitismo,
manipulação e desrespeito aos direitos humanos.
Mesmo sem haver provas que indicassem a culpa dos garotos, eles
tiveram sua identidade e informações pessoais reveladas, como se fossem
verdadeiros criminosos. Além disso, eles também foram condenados à
prisão, e somente em 2002, Matias Reyes, um criminoso que já havia sido
condenado à prisão perpétua, confessou ter estuprado a mulher e revelou
fatos nunca expostos na mídia. O DNA confirmou a revelação e os meninos,
já adultos, foram soltos e seus nomes foram limpos.
Mas ninguém devolve doze anos de vida perdidos. Ninguém consegue
limpar doze anos pagando e sofrendo por um crime não cometido. E isso dói.
Dói como se fosse comigo, dói porque poderia ter sido comigo, dói
porque, embora mais de uma década nos separe do ocorrido, o sistema
judiciário desse país ainda é tão podre quanto e casos como esse continuam
acontecendo. A violência sistemática contra pessoas pretas nunca termina, e
é exaustivo lutar contra isso.
Quando o último episódio chega ao fim, há algo que dificulta a
passagem de ar por minha garganta, um choro entalado que mal pode esperar
para se libertar. As luzes do auditório se acendem de novo e eu me apresso,
passando as mãos pelo rosto e tentando parecer minimamente bem.
— Alguém se habilita a pontuar quais os erros cometidos pela
imprensa da época ao tratar desse caso? — nossa professora pergunta,
caminhando devagar diante da arquibancada e passeando o olhar pelos
alunos. — Ethan Harris?
— Sim, professora — o garoto responde ao meu lado, e parece ter
sido pego de surpresa com a convocação.
— Divida conosco seus pensamentos.
Viro-me de forma sutil em sua direção para escutá-lo. Vejo-o engolir
seco e alternar o olhar entre seu bloco de anotações e a nossa professora.
— Creio que inúmeras falhas tenham sido cometidas nesse caso. É
impossível não pensar em como as coisas poderiam ter sido diferentes caso
a quantidade absurda de informações não tivesse sido liberada para a mídia.
Não me entenda mal, eu acredito fielmente na liberdade de imprensa e no
jornalismo como parceiro na busca pela verdade, mas não da forma com que
foi feito. Poderia ter sido diferente se…
— Se a mídia não fosse racista — digo, completando sua frase e
chamando a atenção do auditório inteiro.
— É. Isso — Ethan concorda e nós dois voltamos nossos olhares para
a Srta.Devlin.
— Interessante colocação, senhorita Castillo. Continuem, por favor —
pede.
Ethan e eu trocamos olhares rápidos e ele faz um gesto com a cabeça
como se pedisse para que eu começasse.
— Sobre os erros da imprensa, eu ouso dizer que toda a participação
deles foi um erro, exceto pelo fato de que foi dando informações além das
noticiadas pelos jornais que o real culpado pelo crime teve sua confissão
validada. A imprensa atual está, sim, passando por um processo de
desaproximação de ideais conservadores, mas estamos falando de um caso
de 1989 e de um país segregado. Não é preciso ir muito a fundo no caso para
notar como os jornais sensacionalistas promoveram uma caça e pintaram
como predadores garotos de quatorze anos — falo, tentando controlar a
revolta que ainda agita meu peito.
— Fora que, se não fosse esse sensacionalismo inflamando a
população e a inspetora do caso que queria a todo custo culpabilizar garotos
negros mesmo sem as mínimas provas, essa investigação tinha chance de não
ir até o fim na condenação dos meninos — é Ethan quem fala. — Pela série,
a gente consegue perceber que havia uma pressão sendo feita para que os
policiais resolvessem o caso, e boa parte dessa pressão vinha da imprensa,
o que é louvável, já que isso faz parte do nosso trabalho, mas…
— Eles não queriam a resolução do caso por si só, queriam poder
encarcerar cinco meninos negros ainda que sem provas para isso. Porque é
como o nosso país funciona, a população é racista, a polícia é racista, a
imprensa é racista, é um sistema muito bem estruturado para que lutar contra
ele seja impossível — completo.
— Mas é nosso dever continuar tentando — Ethan diz num tom mais
baixo.
Um silêncio assustador paira sobre o auditório enquanto a nossa
professora nos encara com um sorriso orgulhoso nos lábios. Por um bom
tempo, não se escuta nenhum som e todos parecem estar assimilando o que
dissemos.
— Excelente — Srta. Devlin diz, por fim. — Vocês dois nunca
decepcionam, formariam uma dupla e tanto.
Ethan e eu nos encaramos e soltamos risadas constrangidas, porque
santo Deus, essa mulher não faz ideia do que está falando. E se ela
soubesse…
— Bom trabalho, Coelhinha — Ethan fala baixo, perto do meu ouvido.
— Parece que somos uma dupla e tanto. Mal posso esperar para que ela
descubra que seu sonho é dançar macarena no meu caixão.
Fixo meu olhar nas minhas mãos descansando em meu colo e sacudo a
cabeça de um lado para o outro, mordendo um sorriso. Odeio esse cara.
— Bom trabalho, Harris — digo, sem olhar nos seus olhos.
“Este poderia ser o início de algo novo
Parece tão certo
Estar aqui, com você”
START OF SOMETHING NEW | High School Musical - Trilha Sonora

25 de julho de 2021

— ETHAN HARRIS! Traga essa sua bunda aqui agora!


O grito ensurdecedor do meu treinador vem acompanhado de um apito
forte e estridente. Tombo a cabeça para trás em um suspiro e bato a bola
contra o chão com força, sentindo o vento leve que ela faz ao subir em
direção ao teto.
Me arrasto até a lateral da quadra sabendo que estou prestes a ouvir
uma boa quantidade de xingamentos e berros desconexos. Se nem ao menos
eu estou conseguindo aceitar meu mau desempenho no treino, não quero nem
pensar como está a cabeça de Bradley Butler vendo seu capitão errar sete
cestas seguidas em jogadas básicas de ataque.
— Foi mal. Eu vou acertar a próxima — me antecipo quando estou
diante dele.
— É claro que vai! Porque caso contrário você vai correr esse bairro
inteiro trinta vezes até toda a água do seu corpo estar na sua camiseta! Que
merda aconteceu com você hoje, Harris?
— Não é nada. Vou acertar, me desculpe pelas distrações — respondo,
firme, e mantenho minha postura rígida.
Butler assente e assopra o apito com força na minha cara, ordenando
que o time inteiro faça uma pausa de cinco minutos porque, em seguida,
faremos uma disputa de lances livres. Um fato sobre o treinador: ele
demonstra afeto de forma bruta. Sabe que há algo de errado e que eu não
quis dizer, e como forma de me demonstrar apoio, propôs uma atividade
mais leve no treino para que eu consiga acertar umas cestas e pegar o
embalo.
O cara é durão, mas tem amor pelo que faz. E muito amor pelo time.
Caminho até o banco onde os caras estão matando suas garrafas d’água
e me junto a eles, fazendo o mesmo antes de despencar o corpo em direção
ao chão para me sentar.
— Irmão, que bicho te mordeu hoje?
— Deixa eu adivinhar, tem cabelo cacheado e estuda jornalismo?
As perguntas vêm da dupla dinâmica Elói e Charles, respectivamente.
Os dois se sentam ao meu lado e me encaram com expectativa.
Elói Pierre é um cara branco, loiro, de dois metros de puro charme
europeu com uma personalidade misteriosa de fuck boy de filmes de
romance e um mau humor quase rotineiro, e Charles Brooks é o seu completo
oposto.
Brooks tem um metro e noventa, é um dos mais baixos do time, a pele
é negra num tom médio e os traços são fortes. Ainda que seja um dos mais
baixos, Charles ganha de quase todos nós na força e na agilidade, além de
ser, certamente, o cara mais alto astral do time.
Ser de uma família bilionária com certeza contribui para tamanho bom
humor, não tenho dúvidas. Isso sem contar todo o estilo californiano que lhe
garante um magnetismo além da conta.
Me deito contra o chão gelado, cobrindo os olhos com o braço suado.
Ouço uma terceira pessoa se aproximando e não demora para que a voz de
Tyler chegue aos meus ouvidos.
Nada de bom sai quando meus três melhores amigos se juntam,
acredite.
— Essa aí mesmo. Eles andam se estranhando e ela o deixou com o
ego ferido — Tyler está gargalhando assim como os outros. Bufo mais uma
vez, irritado.
— Eu juro que se mais alguém mencionar Amelie Castillo perto de
mim hoje, eu vou fazer engolir aquela bola de basquete — falo ainda com os
olhos cobertos.
A verdade é que esse é exatamente o motivo do meu mau humor e da
minha desatenção. Quando não se gosta de uma pessoa, existe uma linha
muito tênue entre o que é saudável e o que é psicótico. Eu e Amelie, por
exemplo, no meu ver, estamos no primeiro caso. Eu não vou mentir e dizer
que vê-la toda estressadinha não me diverte, porque diverte, é quase que um
evento à parte nos dias exaustivos na faculdade.
O jeito pilhado e esquentadinho da garota sempre me arrancou boas
risadas, e sei que quando eu caio em suas provocações ela também se
diverte. Sempre levei o lance na esportiva, e é por isso que o considero
saudável. Porque sei que mesmo não sendo próximos, caso necessário, ela
não me deixaria em apuros, bem como eu nunca, jamais, sentiria prazer em
vê-la chorando ou triste por minha culpa.
Entretanto, dois dias atrás, quando discutimos e eu a deixei sozinha na
rua, eu sinto que ultrapassamos essa linha. Dizem que não existe nada pior
do que a consciência pesada, e posso assegurar a veracidade desse ditado.
Mesmo que, em tese, estejamos “bem” depois da aula que tivemos mais
cedo, Tyler me disse que Megan a ouviu chorar no dia em que tudo
aconteceu e, desde então, o peso de um mundo inteiro está sustentado bem
em cima dos meus ombros.
Odeio coisas mal resolvidas e odeio saber que fiz alguém chorar.
O final do treino corre melhor do que o início. Usando uma força
brutal, tento afastar toda a nebulosidade que paira sobre minha mente e
consigo não arrancar mais palavrões do treinador Butler.
Assim que saio do vestiário já em um conjunto de moletom cinza e um
tênis branco nos pés, vou até a arquibancada onde Megan está sentada,
entretida escrevendo sem parar em um caderno enquanto aguarda Tyler
terminar de se trocar.
— Fala, Srta. Grey, vocês vão pra onde depois daqui? — questiono,
parado de frente para ela e segurando a alça da minha bolsa, que está
transpassada em meu tronco.
— Vamos jantar e depois ele vai me deixar no hospital, vou auxiliar
uma cirurgia ocular hoje. — O ar orgulhoso que ela exala me arranca um
sorriso. Megan Lewis é um dos seres humanos mais fofos e apaixonados
pelo próprio curso que já conheci. — Jogou mal pra caramba hoje, hein,
capitão!
Cubro os olhos com os dedos fingindo me esconder. Megan surte em
mim o efeito de uma irmã mais velha que pega no meu pé.
— Acredite, eu sei disso. Mas boa cirurgia para a senhorita, salve
vidas e todo aquele discurso encorajador. Sabe que eu acredito demais em
você, né? — Ela assente sorrindo e eu levo a mão até sua cabeça,
bagunçando os fios loiros só por implicância. — Faz alguma ideia de por
onde a Castillo está?
— No alojamento. — Encaro-a com as sobrancelhas arqueadas num
sinal para que ela seja mais específica. — Chisholm House, segundo andar,
apartamento 12, e não fui eu quem contei isso pra você, caso reste alguma
dúvida.
Dou risada de sua piscadinha, agradeço e me despeço dela, rumando a
saída em passos apressados, porém, a tempo de ouvi-la gritar “seja a porra
do cara legal que você sabe ser, Ethan Harris”.
Gargalho alto enquanto coloco os fones de ouvido e me preparo para
seguir em caminhada pelos dois quarteirões que separam os alojamentos do
complexo esportivo da faculdade. Maldito dia em que resolvi pegar carona
com Tyler.

Encaro a porta do apartamento, que possui um tapete temático de


Gossip Girl na entrada, pelo que julgo ser uns quarenta segundos antes de, de
fato, tocar a campainha. O barulho estridente soa abafado para mim, já que
estou do lado de fora. Em pouco tempo a porta se abre, somente para se
fechar num baque surdo instantes depois.
— Vai embora, Harris! — Escuto Amelie gritar do outro lado.
— Só depois que você me escutar, precisamos conversar — retruco,
enfiando as mãos no bolso do moletom. — Me deixa entrar, vai…
— Não tenho nada pra falar para você, vai embora. — Bufo,
inflamado por sua teimosia.
— Por favor… — suplico.
— Eu. Não. Vou. Falar. Com. Você.
— Não te pedi pra me dizer nada, eu só te pedi para me ouvir. Abre
essa porta, pelo amor de Deus, mulher!
O tom angustiado parece surtir algum efeito porque, segundos depois,
a porta se abre revelando uma pessoa bem diferente da que estou
acostumado a ver na faculdade.
O vestido coral — com corpete no tronco e mangas curtas bufantes —
que ela vestia mais cedo foi substituído por uma regata branca fina que vai
até o meio de suas costelas e uma calça de tecido com vários desenhos que
claramente foram pintados à mão. Os cabelos cacheados estão presos em um
coque alto e uma faixa branca segura os fios mais curtos para trás. Seu rosto
está limpo e seu semblante está emburrado.
Okay, esse último detalhe eu já vi muitas vezes.
Ela se afasta do batente e caminha corredor adentro. Sigo-a, fechando
a porta atrás de mim e trancando-a, por segurança. O corredor estreito tem
três portas, a do que suponho ser o quarto da Megan tem uma placa “é um
lindo dia para salvar vidas” pregada e um aviso pendurado na maçaneta com
a frase “futura médica em surto, favor não atrapalhar”. Prendo o riso porque
isso é completamente a cara dela.
A porta ao lado tem uma infinidade de flores coloridas pintadas à mão
com a frase “não tema o que te faz feliz” escrita com colagens de recortes
de revista. Me demoro um pouco mais analisando-a porque é uma obra de
arte de dar inveja, e considerando que ninguém mais vive aqui, concluo que
se trata do quarto da minha colega de curso.
Caminho o restante do corredor mais depressa e quando chego na sala,
Amelie está encolhida no enorme sofá cama — que está aberto tomando
grande parte do cômodo, por sinal — enfiada sob um edredom branco
felpudo, segurando uma caixa de donuts enquanto assiste…
Mentira.
— Você está vendo High School Musical? — pergunto, incrédulo,
fitando a imagem do Zac Efron adolescente na tela. Ela não se move, apenas
mantém-se focada no filme que se desenrola na TV.
Posso estar errado, mas acho que estamos num jogo do silêncio, e ela
não parece estar afim de ceder.
Coloco minha bolsa de treino no chão próximo ao pé do sofá e me
sento na ponta contrária da qual ela está. Respiro fundo encarando seu perfil
por um tempo e decido mudar de estratégia. Ao invés de falar sozinho feito
uma maritaca sobre o quanto sinto muito por toda confusão que vem rolando,
vou derrotá-la no próprio jogo, fazê-la querer falar.
Encosto o corpo no sofá enquanto os protagonistas do filme estão
chegando em um hotel luxuoso. Vejo que repousando sobre a mesinha de
centro há um exemplar de “Eu Te Darei o Sol” da Jandy Nelson, me estico
para alcançá-lo.
Não que eu a conheça o bastante, mas este, me parece o tipo exato de
leitura da garota. Cult e um tanto artístico.
— Esse livro é incrível, sério, passei um pouco de raiva lendo, mas é
muito bom. Tá gostando?
Nada.
— Você já bebeu água hoje? — Me atrevo a cutucar com o indicador a
sola de seu pé. Ela apenas o encolhe mais e se mantém vidrada, movendo-se
apenas para abocanhar uma borda do donut. — Qual o seu sabor favorito de
donut? Ei, você sabe o tanto de açúcar que tem nesse troço?
Ouço-a bufar irritada e sei que estou quase atingindo seu limite.
Prendo o riso e volto a prestar atenção no filme enquanto tento pensar em
algo que seja minha cartada final. A personagem loira que só se veste de
rosa entra em cena. Reviro os olhos mediante sua voz afetada e solto sem
perceber:
— Cara, essa garota é insuportável.
Leva menos que uma fração de segundo para que uma bola de papel
esteja voando direto para a minha cara. Eu acho que despertei um
monstrinho.
— Sai da minha casa! — Tenho um sobressalto quando sua voz ecoa
pelo ambiente. Encaro Amelie, assustado, enquanto ela me olha feio após
pausar o filme. — Não se fala mal de Sharpay Evans debaixo deste teto,
Ethan Harris!
Franzo o cenho e uma luz se acende em minha cabeça.
— Rá! Ganhei, você está falando comigo! — comemoro apontando em
sua direção e um bico emburrado se forma em seus lábios. Sinto vontade de
rir. — Agora é sério, a gente pode conversar?
A garota larga o controle remoto e tomba a cabeça sobre o encosto do
sofá, soltando um grunhido sôfrego. De olhos fechados, ela esfrega a própria
face como quem tenta dissipar irritação, e então se vira de frente para mim,
apoiando a lateral do corpo no encosto e me encarando no fundo dos olhos.
— Sou toda ouvidos — decreta, por fim.
Sorrio mediante sua guarda baixa e tomo a mesma postura que ela,
ficando de frente para o seu corpo. Engulo seco tentando organizar meus
pensamentos de forma coerente.
— Me desculpe, de verdade. Me desculpe por ter deixado você
sozinha, por ter aumentado meu tom de voz com você naquele mesmo dia no
ginásio, por ter, mesmo que minimamente, questionado sua lealdade à
Megan… Enfim, por tudo. Desculpa mesmo.
Ela escuta cada palavra com atenção e vejo um lampejo de
desconfiança passar por seus olhos, e é aí que eu entendo que esse lance não
vai ser tão simples como imaginei.
— O que me garante que isso tudo não é só pela Megan e pelo Tyler?
Solto uma risada fraca julgando-a internamente por ser tão chata. Eu
vou ter que trabalhar toda a minha paciência adquirida em 22 anos de vida
apenas para lidar com ela.
— Pra ser sincero, o que ultimamente não tem sido sobre eles? Tipo,
qual é, sabe? São os nossos melhores amigos, eu faria tudo pelo Tyler, e
você faria tudo pela Meg, é óbvio que isso também é sobre eles. Quero que
possamos, sei lá, sair para beber todos juntos sem nenhum constrangimento.
A gente precisa de uma trégua, por eles. Mas eu estou aqui, às nove horas da
noite de uma terça feira, após um treino ridículo de tão ruim, por nós, okay?
Porque eu entendo e assumo que fui um otário. Então, por favor, me perdoa?
Seus olhos cintilam em minha direção enquanto ela parece processar o
que acabou de ouvir. Levam poucos segundos até que Amelie chacoalhe a
cabeça em concordância.
— Tudo bem, você está certo. E, a propósito, me desculpe também.
Não tenho sido exatamente a pessoa mais receptiva do mundo.
— Definitivamente não — falo, rindo, e ela se esconde sob o
edredom.
Puxo o tecido felpudo, revelando seu rosto novamente. Amelie revira
os olhos na minha direção fazendo pirraça como uma criança.
— A trégua não afeta a aposta, certo? — pergunta curiosa.
Por alguns segundos eu quase me esqueci que essa garota tem um plano
fodido de destruir minha reputação.
— Não mesmo, você ainda vai ser minha motorista particular.
— Aham, vai sonhando.
— Sou capitão de um time tri campeão, gata, vencer não é uma
novidade pra mim.
— Quero te ver repetir isso quando tiver perdido a vaga e a aposta —
murmura.
Um silêncio confortável se instala por pouco mais de um minuto.
Estamos os dois encarando o teto e, acredito eu, tentando enxergar uma
forma disso funcionar.
— Amigos, então? — Estendo a mão em sua direção.
— Não força a barra, Harris — repreende, arqueando a sobrancelha.
— Inimigos em trégua — decreta apertando minha mão de maneira firme.
— Traduzindo: amigos — implico.
— Traduzindo: nem ferrando.
Gargalho alto sentindo meu corpo tremer. O clima leve toma o
ambiente e sinto que estamos diante de um recomeço.
— Coelhinha… — inicio, mas sou interrompido por seu chiado.
— Estamos de volta com o apelido tosco?
— Xiu! Não me interrompa, é deselegante — provoco e vejo seus
olhos revirarem. — Como eu ia dizendo, Coelhinha, eu achei sua calça
muito bonita.
Noto que ela franze o cenho confusa e encara as próprias pernas como
se não fosse algo tão importante.
— Foi você quem pintou? — pergunto, e ela assente com a cabeça. —
Então esse é o seu lance? Arte e essas coisas?
Ela encara o tecido que se agarra às suas pernas e passa o dedo sobre
ele.
— É… Tipo isso.
Uma luz então se acende em minha cabeça.
— Faz isso no meu tênis?
Amelie encara meus pés incrédula.
— Quer customizar um air force branquinho? Não mesmo, sou contra
esse tipo de crime.
— Não! Tá maluca? Não é esse tênis. — Me estico para trás e abro
minha bolsa de treino, puxando de lá o par dos meus sapatos de jogo. — São
esses.
Ela encara o calçado em minhas mãos e parece pensar um pouco, até
que um sorriso diabólico toma seus lábios e o olhar de assassina costumeiro
surge em sua face.
— Com uma condição…
— Que é? — questiono, já temendo o que ela tem em mente.
— Vai terminar de assistir High School Musical 2, sem reclamar.
Céus, não.
— Ha ha ha, foi uma ótima piada. Nem morto! — Dou risada,
entretanto, ela não me acompanha. — Espera, isso é sério?
— Pode apostar que sim, Troy Bolton Falsificado.
Sua postura é irredutível. Ela me encara com a sobrancelha erguida
como quem diz “eu sei que você vai desistir”. Sério que ela não aprendeu
nada com o fato de eu ser atleta?
— Beleza, vamos logo com isso, quero ir pra casa dormir — bufo,
frustrado.
Amelie, por outro lado, está batendo palmas animadas enquanto vai até
a mesa de centro e pega o controle juntamente da caixa de donuts e se senta
novamente. Tento pegar um da caixa, mas sou impedido por um tapa nem um
pouco gentil. Que diabo de mão pesada essa mulher tem!
Enquanto o filme se desenrola, concluo duas coisas:
1- Tyler me meteu numa fria.
2- Eu odeio Sharpay Evans.
“Eu jogo as minhas mãos para cima
Estão tocando a minha música
Eu sei que ficarei bem
É, é uma festa nos Estados Unidos”
PARTY IN THE USA | Miley Cyrus

27 de julho de 2021

O cheiro de café expresso sempre foi algo que me trouxe uma certa
paz.
É como se aquele forte aroma dos grãos torrados e triturados sendo
processados junto à água fervente dentro da máquina fosse capaz, de alguma
forma, de penetrar profundamente cada micro espaço em meu peito trazendo-
me alívio e conforto em dias angustiantes.
Fazem exatos dois dias desde que eu e Ethan selamos um “acordo de
paz”, e desde então minha mente tem estado em constante alerta, aguardando
o momento em que iremos nos encontrar novamente e teremos de colocar
nosso acordo em prática.
Isso porque, desde que concordamos em tentar existir no mesmo
ambiente sem que alguma briga aconteça nós, que dividimos tantas aulas e
compromissos, mal nos esbarramos por aí. Na quarta feira, todas as
agremiações atléticas tiveram de marcar presença durante o dia inteiro em
um evento beneficente da universidade em prol do desenvolvimento
esportivo infantil em Central Valley.
Fiquei sabendo por intermédio de Megan, que não parava de discorrer
sobre como estava furiosa por Tyler ter ido para outra cidade e deixado o
estetoscópio dela trancado dentro do carro dele.
“Por que raios ele não deixou a chave do carro em casa? Ele foi no
ônibus com o time!”
Foi o que eu ouvi durante a manhã inteirinha.
Ontem um temporal tenebroso encobriu a cidade causando um apagão
geral no campus da faculdade, e graças a isso, todas as aulas do dia foram
suspensas, e a recomendação dada aos alunos por meio do App Irving foi de
que todos permanecessem em seus alojamentos.
Megan e o restante dos alunos dos anos finais de medicina foram
enviados ao hospital da Irving para auxiliarem na emergência, em virtude do
aumento de acidentes em dias de tempestades. Com isso, Lily e eu
aproveitamos para fazermos uma reuniãozinha e colocarmos o assunto em
dia.
Hoje pela manhã, o céu nubiloso ainda estampava a paisagem da
grande e movimentada Nova Iorque. Entretanto, a chuva torrencial do dia
anterior já não era mais um problema. Não que isso seja algo realmente
importante se considerar o fato de que todas as cadeiras do dia são apenas
entregas de relatórios, fiz questão de chegar cedo e saí antes mesmo do
restante da turma se aglomerar no auditório, tendo assim tempo livre para
descansar antes de vir trabalhar.
Normalmente eu não trabalho nas sextas, mas a funcionária da dupla
que cobriria o turno de hoje na cafeteria representando o Sr. Green está com
intoxicação alimentar. Toda hora extra remunerada é bem vinda às minhas
economias, então cá estou eu.
É sempre estranho não trabalhar aqui com Lily, eu e ela realmente
formamos uma boa dupla. Dwane, o cara que está dividindo o turno comigo,
por outro lado, parece levar a sério o fato de “trabalharmos em empresas
diferentes”, porque não me dirigiu uma única palavra desde que cheguei.
Estou agachada atrás do balcão, organizando os copos de isopor
destinados as bebidas quentes, quando ouço o sino da porta anunciar a
entrada de mais um cliente. A cafeteria está praticamente vazia, se não
contar o cliente que Dwane está computando o pedido no caixa ao lado.
Ergo o corpo depressa, tendo um sobressalto ao me deparar com um
pequeno grupo de três caras enormes. Sei que são todos jogadores de
basquete porque, não surpreendentemente, um deles é Ethan Harris.
Ele “lidera” ficando na frente. Acredito que, para eles, isso já deva
ser um costume por conta da formação do time. Os outros dois me encaram
com olhos curiosos e examinam-me do limite do balcão para cima como se
eu fosse uma celebridade que eles enfim estão conhecendo.
Consigo formar perfeitamente em minha cabeça a imagem de um Ethan
estourado me xingando pelos quatro cantos daquele ginásio. Esses caras
devem me achar uma bruxa.
Reconheço o garoto loiro que está do seu lado esquerdo, Elói Pierre,
um intercambista francês do curso de Literatura, fizemos uma aula de Língua
Inglesa Avançada juntos no semestre passado. O cara faz a linha badboy,
com direito à jaqueta de couro e o terrível hábito de se encher de nicotina, o
que por si só, já deixaria as garotas aos seus pés. O irresistível charme
francês é apenas um plus muito conveniente.
Do lado direito de Ethan, um garoto de pele negra, cachos curtos
extremamente brilhosos e centímetros mais baixo do que os outros dois, tem
um sorriso bobo nos lábios. Devo destacar, um sorriso bonito demais para o
seu próprio bem. Ele me encara com divertimento enquanto cruza os braços
na frente do corpo, fazendo seus músculos saltarem.
Abro um sorriso simpático, pegando meu bloco de anotações logo em
seguida.
— Boa tarde, sejam bem vindos à Letras & Grãos. Eu me chamo
Amelie, já sabem o que vão pedir? — questiono rodeando a caneta entre os
dedos.
— Vou querer um expresso grande. — O pedido vem de Elói. Pego um
copo grande de isopor e anoto seu nome com uma carinha feliz ao lado.
— Capuccino com caramelo pra mim, por favor, o médio. — É a vez
do garoto que não conheço. Pego o copo e o encaro com um sorriso antes de
anotar esperando que ele me diga seu nome. — Charles.
Assinto, escrevendo sobre o isopor e desenho uma estrelinha ao lado
do seu nome. Olho para Ethan, que permanece quieto desde que chegou.
Antes que eu tenha tempo de soltar alguma provocação, o nosso acordo de
trégua pisca em minha mente e decido ser o mais amigável possível.
— E você?
— Cold Brew de Baunilha, com adoçante e sem cuspe — fala, rindo e
me oferecendo uma piscadinha ridícula.
— Não prometo nada sobre a última parte.
Ethan abre um sorriso largo e os outros dois caras dão risada e tiram
sarro de sua cara. Fecho o pedido e eles pagam, seguindo para uma mesa
perto das estantes de livros. Cada um me deixa uma gorjeta de dois dólares,
por iniciativa de Charles, que me fez ter vontade de dar pulinhos de alegria.
Adoro gorjetas.
Preparo as bebidas e as organizo sobre uma bandeja, equilibro-a no
braço e caminho pela cafeteria até seu interior, onde os três atletas
conversam animadamente. O burburinho cessa assim que fico diante deles e
disponho os copos na frente de seus respectivos donos. Elói é o primeiro a
reparar no desenho ao lado de seu nome, ele sorri me dá uma piscadinha
inocente. Charles faz o mesmo, mas ao invés da piscada me estende a mão
para um high five.
— Ei! Por que o meu desenho é uma cara de raiva? Achei que
estávamos em trégua, Coelhinha. — O tom indignado me dá vontade de
gargalhar. A careta de desdém que ele faz ao encarar o copo é impagável.
— Estamos em trégua, mas ainda detesto você, Sr. Sou Capitão de Um
Time Tricampeão e bla bla bla.
Elói e Charles dão risada da minha imitação pavorosa e Ethan, ainda
que pilhado, não parece estar com vergonha.
— Continue se enganando, Coelhinha. Nos livros, quanto mais ódio o
personagem diz sentir, mais a gente descobre que ele é caidinho pela outra
pessoa.
— Primeiro, não acredito que acabou de comparar isso aqui com um
romance literário. Segundo, nesses livros, quando o protagonista diz isso já
está na cara que ele cruzaria o oceano pelo outro. E eu sinto em lhe informar,
mas eu não daria um passo na calçada por você.
— Credo, você sabe destruir a autoestima de um cara — Charles
comenta e Elói dá risada.
— Alguns caras precisam que alguém dê uma aparada no ego gigante
deles — rebato, piscando.
— Não sei se você se lembra, mas nós estamos em trégua — Ethan
ergue a mão.
— Bem lembrado, e eu preciso trabalhar — falo, dando batidinhas no
topo da sua cabeça como se ele fosse um filhote.
Me despeço dos três indicando que podem me chamar pelo botão na
mesa e os deixo devorando seus cafés. Vez ou outra olho em sua direção e
vejo os olhos de Ethan em mim. Sempre que o pego no flagra, ele desvia de
volta para seus amigos. Imagino que esteja tão surpreso quanto eu. Acho que
esse foi o primeiro diálogo que conseguimos conduzir sem transformarmos
em um enterro completo.

Assim que passo pelo batente da porta do meu alojamento, após o meu
turno, sou recebida pelo abraço caloroso das minhas duas melhores amigas.
Lily, Megan e eu combinamos de irmos juntas para uma festa na casa de uma
colega de curso da Meg, a Tory, que é conhecida na faculdade por ceder a
casa para as tão faladas festas da medicina.
A garota é filha de uns ricaços e mora em uma enorme mansão de luxo
na área nobre de Manhattan. Suas festas sempre repercutem semanas pelos
corredores da Irving.
Megan está vestida em uma de suas clássicas combinações: jeans
escuro justo, camiseta de banda, coturnos e jaqueta de couro. E está
deslumbrante como sempre.
Lily, por sua vez, também está de tirar o fôlego com um vestido justo
preto básico e all star. As pernas torneadas ganham destaque e me fazem
morrer internamente de inveja.
Maldito corpo de cheerleader.
Após os cumprimentos, passo por elas correndo em direção ao meu
quarto para me arrumar enquanto as duas voltam ao que estavam
conversando antes da minha chegada.
Fecho a porta e jogo minha bolsa num canto. Tiro o vestido do
uniforme do trabalho, puxando-o pela cabeça, e entro no banheiro para uma
ducha rápida. Assim que termino, me enrolo na toalha e vou para a porta do
armário buscar algo para vestir que me agrade.
Ponho minhas peças íntimas enquanto fito as prateleiras e cabides por
longos minutos, correndo o olhar sobre as peças em busca de algo. Passo os
dedos por entre as peças penduradas e paro quando encontro o vestido que
ganhei da tia Antonella, mãe da Megan, no meu último aniversário.
É um modelo canelado, com mangas longas e gola média. Seu corte
justo e tecido elástico destacam todas as curvas do meu corpo e sua cor
vermelha vibrante contrasta impecavelmente com o tom negro claro da minha
pele. É perfeito.
Visto a peça com cuidado para não enrolar o tecido e ajeito a bainha
para baixo. Observo-me no espelho com um sorriso satisfeito, o vestido
delineia meu corpo com destreza findando-se na metade das minhas coxas. A
temperatura álgida do lado de fora me faz completar a combinação com uma
jaqueta branca com alguns bottons no peito.
Penteio meus cabelos molhados para trás e me sento na cama para
calçar um all star plataforma branco e, enquanto o faço, meu olhar esbarra no
par de sapatos posicionado em cima da minha caixa de tintas que repousa
sobre a escrivaninha.
São os tênis do Ethan.
Eu realmente não esperava que ele confiasse a mim a importante
missão de estilizar o calçado que ele usa para competir. Na verdade, jamais
me imaginei fazendo qualquer coisa por ele senão o matando, então posso
dizer que não tenho a ínfima ideia do que farei à respeito dessa bomba que
ele largou em meu colo.
Fazem dois dias que as vozes em minha mente gritam como loucas
“POR QUE RAIOS VOCÊ NÃO DEVOLVEU OS SAPATOS?”
Eu realmente não sei.
— Estou pronta! — grito para as meninas enquanto despejo todo o
conteúdo da minha bolsa sobre a cama pegando apenas meus documentos e
meu celular.
Saio do quarto e sou ovacionada por seus assobios e elogios pra lá de
indiscretos. Vejo Megan caminhar em direção ao nosso pote de chaves e
capturar a de seu carro. Lanço um olhar enviesado em sua direção,
recriminando-a, antes de vasculhar o aparador em busca do comprimido
anti-ressaca.
— Acho bom que não esteja pretendendo encostar a boca em um copo
de cerveja… — chamo sua atenção antes de seguir para a cozinha para pegar
uma garrafa d’água.
— Foi mal, me esqueci. Vou chamar um táxi — minha amiga responde
com uma entonação baixa.
Engulo o comprimido com o auxílio da água, e em segundos, Lily se
projeta na cozinha com seu olhar questionador preso em meu rosto.
— Qual o problema? — pergunta, parando diante de mim.
— Não ando em carros de pessoas que já beberam, vocês sabem
disso.
— Sim, eu sei, mas também sei que Megan não bebe demais. Estou te
perguntando o porquê de você ser tão irredutível. — Seus olhos me
escaneiam com rigor e me sinto incomodada. Noto, por cima do seu ombro,
Megan adentrando o cômodo com o celular em mãos.
— Sabem que não podem me julgar por seguir a lei, não sabem? —
pergunto, rindo, tentando desviar o assunto, e devolvendo a garrafa para a
geladeira. Minha amiga ainda me fita com atenção.
Meg coça a garganta, puxando o foco para si.
— Nosso táxi está chegando — anuncia me olhando com as orbes
arregaladas, como quem dá um sinal. Passo por elas, seguindo em direção a
porta.
Existem coisas que o tempo simplesmente não deleta de nossas mentes,
e pior ainda, existem eventos impossíveis de se esquecer.
Eu me lembro.
Eu estava no último ano da escola, o caos já havia se instaurado em
minha casa e chegado para ficar. Meu pai já não morava mais conosco, e eu,
aos poucos, já ia me acostumando com a solidão constante, porque quando
ele se foi, senti como se todo o resto houvesse me deixado também, restando
apenas um enorme vazio.
Ainda que prestes a fazer dois anos da separação definitiva, era tudo
um tanto recente se considerar o tempo que eles estiveram juntos.
Foi uma fase pesada, não há como negar. E também foi nesse período
que comecei a desconfiar sobre a relação da minha mãe com a bebida. Notar
que sua distância em relação a mim se dava por ela estar se embebedando
com uma certa frequência foi como receber um balde de água fria.
Lembro como se fosse ontem do dia em que ela foi me buscar na
escola e tudo aconteceu. De início, estranhei que fosse ela e não o nosso
motorista, como sempre, mas nossa relação andava tão fria que, em
segundos, o estranhamento se tornou felicidade.
Depois de tanto tempo, de tantos anos de rejeição, quase dois anos me
considerando culpada pela separação dos meus pais e culpada pela dor que
ela sentia, minha mãe estava lá, indo me buscar na escola como fazia quando
eu era menor. Parecia o início de um fim de tarde feliz. Mas só parecia.
Minha mãe estava sob efeito de álcool naquele dia, assim como em
todos os outros depois dele. Ela estava alterada e ainda assim foi me buscar
no colégio dirigindo. Na volta para casa não foi necessário mais do que dois
segundos de desatenção e um carro em alta velocidade dirigindo de maneira
imprudente vindo na direção contrária para que a combinação perfeita para
um acidente se fizesse.
Na tentativa de proteger meu rosto do airbag eu fraturei o braço e, com
o impacto da batida, uma parte do meu cabelo, que se prendeu no suporte do
cinto, que fica acoplado à parede do carro, foi arrancada com brutalidade.
E se quer saber, nem mesmo a dor pungente que perturbava minha
cabeça foi capaz de minimizar a decepção estrondosa que se alojou em meu
coração. Não me lembro de ter me sentido tão invalidada em toda a minha
vida.
Senti como se eu fosse irrelevante.
Ela pôs minha vida em risco. A mesma pessoa que me trouxe ao
mundo quase me tirou dele. Carrego essa mágoa comigo até hoje, é
inevitável. Ainda encaro aquela tarde como o início da ruína dos sentimentos
bons entre nós.
Com o acidente, minha mãe sofreu hematomas leves, o carro ficou
destruído, e eu, ainda que não me encontrasse em estado grave naquela sala
de hospital, jurei que jamais entraria no carro com alguém que tivesse
exagerado na bebida novamente.
No início, o intuito era apenas me manter longe do caos de minha
genitora. Foi uma forma de negar suas caronas sob um pretexto coerente,
porque eu nunca sabia o que esperar dela.
Acontece que mantive minha promessa firme mesmo depois de cinco
anos. Eu detesto ser a pessoa que regula a diversão das outras, por isso, Meg
e eu sempre usamos o táxi do campus quando pretendemos beber.
Megan é a única pessoa que sabe desse acidente, porque no ano
seguinte a ele eu entrei para a faculdade e nós começamos a dividir o
alojamento. Ela passou o primeiro semestre inteiro tomando coragem para
me perguntar se eu fazia quimioterapia ou tinha alguma doença que afetasse a
saúde dos fios por conta do crescimento irregular do meu cabelo do lado
direito.
Estudantes de medicina e seus diagnósticos mirabolantes.
Quando descobriu a verdade, minha amiga entrou em choque. Não vi a
pena sombrear seus olhos sequer uma vez, na verdade, ela parecia quase que
ofendida. Fazia pouco tempo que nos conhecíamos, mas vi a dor e a
compaixão estampadas em suas íris azuis-esverdeadas. Eu a fiz prometer que
jamais revelaria para quem quer que seja o motivo real da minha
“caretisse”.
Megan guarda nossos segredos como a própria vida, não só esse como
os muitos outros que lhe confidenciei ao longo de nossa amizade. Mesmo
sabendo um pouco sobre o lado feio de quem eu sou, ela me protege da
mesma forma incisiva, e é por isso que se me perguntarem, hoje, quem é a
minha família, eu não hesitaria em responder “Megan Eleanor Lewis”.
Mais do que morarmos juntas, nos tornamos morada uma para a outra
quando “casa” exige um novo sentido. Existem conexões que o sangue não
une e cabe à vida juntar.
Nossa amizade é 100% sobre isso.

A casa de Tory é a ilustração perfeita de um passeio no inferno.


É o que constato enquanto eu e minhas amigas atravessamos a sala em
direção a varanda traseira. Pelo menos mais da metade da faculdade está
aqui hoje, a quantidade excessiva de universitários sem camisa cantando
Queen em alto e bom som, em uma desafinação pra lá de horrenda, traz uma
atmosfera ainda mais caótica ao local.
Me espremo entre corpos suados de pessoas completamente bêbadas
e, internamente, eu me recrimino por ter trocado minha cama quente e
confortável por este lugar infernal e lotado. Eu amo festas, mas isso aqui está
absolutamente fora de controle.
Quando finalmente conseguimos chegar na área externa, o ar fresco
sopra contra meu rosto, me trazendo um alívio descomunal.
Respiro fundo e dou um gole longo no copo de cerveja que seguro
entre os dedos. Já estamos aqui há pouco mais de duas horas, mas ainda não
estou alterada o suficiente para que minha irritação perante o astral sufocante
da festa passe despercebida por mim e por minhas amigas.
— Gata, você precisa relaxar, é sério — Lily fala, rindo, quando nota
minha careta ao fitar um grupo de caras se jogando na piscina usando roupa.
— Eu sei, foi mal. Eu só… Pensei que estaria mais vazio — explico.
— Alguém exagerou na divulgação do evento. Não queria estar na pele
da dona da casa, meus pais me comeriam viva — comenta antes de beber um
pouco do líquido em seu copo. — Afinal, onde estão os caras gostosos que
vocês me prometeram nessa festa, hein?
— Chegaram… — Megan aponta com o queixo na direção do portão
lateral.
Viro-me para checar, e como em um filme, noto que todos no ambiente
estão com os olhares presos em um mesmo ponto, o grupo de atletas enormes
que atravessa o portão de madeira. São os caras do basquete. Eles estavam
em quadra até uma hora atrás e pelo sorriso brilhante estampado no rosto de
cada um, sei que venceram mais uma partida.
Tyler vem na frente liderando. Está com o braço nos ombros de
ninguém mais ninguém menos que sua irmã, a qual só conheço pelo
Instagram.
Annelise Mansen sorri e cumprimenta algumas pessoas pelo caminho.
Eles são seguidos pelos dois garotos que estavam na cafeteria mais cedo
com Ethan, e o restante do time vem logo atrás. Checo mais de uma vez para
ter certeza e constato que Harris não está com eles. Estranho, porque o cara
é quase que uma figurinha carimbada nesse tipo de evento, mas não me
permito pensar muito sobre o assunto.
O namorado da minha amiga logo nos fita e vem em nossa direção
acompanhado dos outros. Cumprimento os rapazes com abraços desajustados
e rápidos, me demorando apenas com Elói e Tyler, que são os que tenho
mais intimidade.
Assim que me vê, Annelise se joga em meus braços dando gritinhos
histéricos que desencadeiam longas gargalhadas em mim.
— Garota! Eu nem acredito que estou finalmente te conhecendo…
Cacete, você está muito gata! — Ela fala segurando em meus ombros e me
analisando da cabeça aos pés.
Megan já havia me avisado que Annelise é a definição perfeita de
pessoa extrovertida. É também alguém completamente hiperbólica.
Trocamos algumas mensagens e interações nas redes sociais desde que Tyler
e Megan se assumiram, e isso já foi o suficiente para a garota se sentir à
vontade comigo.
— Eu também estava ansiosa por esse momento, e a senhora está um
arraso! — digo rindo e a fazendo dar uma voltinha ao redor do próprio eixo.
Ela está vestida com uma camisa larga do Pink Floyd, uma bermuda
ciclista preta, tênis e uma série de correntes douradas pendem em seu
pescoço. O cabelo curto tem um corte repicado e está solto, a franja
bagunçada em contraste com as argolas grandes em suas orelhas lhe trazem
um ar despojado chique.
Annelise tem a pele branca como a do irmão, mas diferente de Tyler,
que possui um dourado bronzeado, Lise parece não tomar tanto sol e as
bochechas têm um rosado natural.
Ouço um coçar de garganta que me chama atenção. Vejo que Lily está
parada ao meu lado com um sorrisinho tímido e percebo que elas não foram
apresentadas. Puxo-a mais para perto lhe trazendo para o assunto.
— Annelise, esta é Lily Stanford, minha amiga e colega de trabalho.
Lily, essa é Annelise Mansen, um brinde que veio no fundo da caixa quando
Tyler entrou para a família. — Aponto entre as duas que dão risada pela
descrição que fiz.
Ambas se cumprimentam, e Annelise como a boa desbocada que é, não
perde tempo em soltar um “nossa, você é bonita pra cacete”. Lily dá risada e
capto uma troca de olhares incisivo entre as garotas que parecem se analisar
com mais atenção.
Um estalo atravessa minha mente e involuntariamente solto um gritinho
animado.
— Oh, meu deus, como esqueci isso? Lily também estuda na NYU! Ela
faz história. Vocês já devem ter se esbarrado pelo campus!
— Mentira!? — Minha amiga se empolga e em pouco tempo as duas
engatam em uma conversa animada sobre a faculdade.
Observo-as interagindo. Lily parece completamente absorta na
tagarelice de Lise, eu mexo a cabeça no ritmo da música que estala nas
caixas de som sem prestar muita atenção, e minha mente divaga.
Sinto um incômodo na bexiga e preciso com urgência fazer xixi. Me
afasto do grupo caminhando de volta em direção a casa e quando pergunto,
sou aconselhada por uma garota a usar o banheiro de um dos quartos do
segundo andar antes que os tranquem.
Subo as escadas com dificuldade desviando de casais se pegando e
alguns calouros dormindo pelos degraus. Quando chego no corredor, entro na
primeira porta aberta que encontro.
“Sou o primeiro a admitir que sou imprudente
Me perco em sua beleza e
Não enxergo além de um passo”
FOOL’S GOLD | One Direction

27 de julho de 2021

Chegar sozinho em festas está no meu top 3: situações estranhamente


irritantes da faculdade, porque simplesmente é uma droga. Detesto a
sensação de ficar perdido tendo que caçar meus amigos pelos cantos como a
porra de um Sherlock, e é por isso que, assim que adentro a casa
terrivelmente lotada de Tory Velker, aluna de medicina da Irving, a
felicidade pela vitória do jogo contra a Cornell já divide espaço com a
irritação em meu peito.
Para ser honesto, eu não tenho a menor ideia do porquê deixei Tyler e
Annelise me convencerem de estar aqui hoje. Tudo o que mais anseio é pelo
momento em que estarei deitado na minha cama dormindo profundamente na
tentativa de dispersar de meu corpo o cansaço violento que me toma.
Ganhei um hematoma no abdômen significativamente grande no jogo
de hoje, e por isso, diferentemente dos meus colegas de equipe, que saíram
da arena e se deslocaram direto para a festa, eu tive de passar em casa para
fazer algumas compressas antes de expor meu corpo a um local onde o risco
de acertarem meu ferimento são altos.
E eu não estava errado.
Enquanto tento enviar uma mensagem para Elói, a fim de localizá-los,
dezenas de corpos colidem com o meu, me arrancando urros de dor,
enquanto se espremem tentando se deslocar de um lado ao outro da sala.
Bufo zangado cogitando dar meia volta e ir direto para casa, até que, ao
correr o olhar pelo ambiente, vejo uma escada de acesso ao segundo andar
que suspeito estar mais vazio e menos barulhento.
Caminho até ela e subo um tanto atrapalhado, ouvindo uma série de
xingamentos por esbarrar em diversas pessoas. Murmuro alguns “foi mal”,
mas internamente me questiono que porra eles esperavam de uma pessoa do
meu tamanho lidando com lugares apertados.
Encaro o corredor e entro em um dos cômodos fechando a porta logo
em seguida. Há um mini corredor na parte de dentro com duas portas que
estão fechadas. Passo direto por elas, chegando ao quarto que possui uma
cama de casal gigantesca próximo à janela.
Me jogo sobre o colchão confortável e envio algumas mensagens para
os meus amigos numa tentativa de encontrá-los, embora estar em uma parte
mais silenciosa da casa esteja me fazendo repensar se vou mesmo em busca
deles.
Sinto minha coluna quase gritar de felicidade enquanto me aninho na
cama. Deixo o celular sobre a barriga e encaro o teto aguardando uma
resposta. O sono pesado já dá indícios de se alojar em minha mente quando,
para minha surpresa, um grito estridente que já conheço bem chega até os
meus ouvidos.
— O que você tá fazendo aqui e por que a porta está trancada? —
Amelie Castillo, senhoras e senhores, a sutileza em pessoa.
Ela está parada no portal entre o corredor e o quarto. O cabelo
cacheado está solto e ela está usando um vestido vermelho colado e curto
com uma jaqueta amarrada na cintura. A combinação destaca cada
sinuosidade de seu corpo magro e curvilíneo o que a deixa… Diferente.
Diferente pra cacete.
— Boa noite pra você também, Coelhinha, estou bem, obrigado —
debocho rindo e me sentando na cama com as costas apoiadas no parapeito
da janela, que está fechada. — Respondendo sua pergunta: precisava de um
lugar quieto para mandar mensagem pros caras, e eu não tenho ideia do
porquê a porta está trancada, estava aberta quando entrei.
Ela me fuzila com o olhar como se esperasse que eu tirasse uma chave
de dentro do bolso da calça e revelasse uma pegadinha de mau gosto.
Definitivamente não é o que está acontecendo.
— Eu juro, não faço ideia do que tá rolando — tento mais uma vez.
— Ai, droga! — ela grunhe e espalma a mão contra a testa,
expressando uma careta. — Não é possível.
— O que foi?
— Uma garota me disse para usar o banheiro aqui em cima antes que
trancassem os quartos. Tory os deixa abertos apenas enquanto não tem muita
gente na casa, mas depois os mantém trancados para evitar que destruam
tudo — explica enquanto gesticula nervosa.
— Isso significa que vamos ter que ficar aqui a noite toda?
— Não mesmo. Eu morreria antes do fim, ou mataria você — retruca
indignada.
Dou risada e ela arremessa uma almofada da poltrona ao seu lado em
minha direção.
— Estamos em trégua, Coelhinha. Isso me parece meio agressivo —
cantarolo.
Ela bufa frustrada e some de novo no corredor. Ouço suas investidas
na maçaneta e algumas batidas contra a porta numa tentativa fracassada de
chamar a atenção de alguém. A música alta reverberando pela casa torna a
missão praticamente inútil.
Se tem algo que o cansaço faz comigo é retardar meus sentimentos de
desespero. Por isso, enquanto a minha “inimiga em trégua” desce umas boas
porradas na pobre coitada da porta do quarto, eu desbloqueio calmamente o
celular e disco o número do Tyler.
Caixa postal.
Tento o mesmo com Megan.
Caixa postal.
Annelise, Elói, Charles.
Caixa. Postal.
Okay, talvez agora eu esteja um pouco nervoso.
Sob hipótese alguma eu estou planejando passar a festa inteira
trancado nesse lugar.
— Tentou ligar para alguém? — questiono-a.
— Lily não atende. Lise, Megan e Tyler também não — Sua voz viaja
pelo corredor até o quarto. — Vem cá, você é forte pra caramba, por que não
derruba essa porta logo?
— Agradeço o elogio, mas eu sou forte e não otário, já viu a dimensão
dessa casa? Eu teria de vender um rim pra pagar por essa porta. Nem todo
mundo nessa faculdade nasceu em uma família podre de rica não — retruco
com os olhos focados no celular e em segundos, como uma assombração,
Amelie está diante de mim.
— O que foi que você disse? — esbraveja com as mãos na cintura.
O vinco em sua testa me diz para cair fora desse assunto pelo meu
próprio bem, e o cansaço que se sobressai em meu organismo me ajuda a
controlar a vontade de ir mais afundo.
Não é novidade pra ninguém na faculdade que os Castillo são uma
família influente na cidade, e pelos boatos que rolam pelo campus, sei que o
pai de Amelie é um bilionário amigo do reitor Barnard. O cara faz doações
milionárias para o fundo esportivo da Irving. A maior parte, até onde sei, vai
para o time de hóquei por ele ser um grande admirador do esporte, e o resto
é distribuído entre todas as modalidades.
Já me questionei o porquê de ele não investir no fundo de Jornalismo,
já que é o curso da própria filha, mas suponho que assim como Nova Iorque
inteira, ele também saiba que dinheiro não é algo que falte em nosso
departamento, tendo em vista que somos a vitrine da faculdade.
Em suma, o que quero dizer é que eu conheço bem pessoas com o
berço de ouro como o de Amelie Castillo, pessoas que acham que o mundo
funciona da forma que elas querem. E isso me irrita bastante.
— Não disse nada. E aí, como vamos sair daqui? — Me dou por
vencido.
— Não sei. — Seus ombros caem em desapontamento e ela se senta ao
meu lado na cama. — Preciso pensar.
— Leve o tempo que precisar, mas não muito. Vou continuar tentando
falar com a galera — declaro, e Amelie assente.
O silêncio estranho e sufocante que recai pelo ambiente me faz ter
vontade de, de alguma forma, conseguir me teletransportar para qualquer
lugar que não seja esse quarto.
Digito centenas de mensagens para os meus amigos na esperança de
ser resgatado o mais rápido possível. O som abafado que vem da festa
reverbera o ritmo de “No Guidance" e noto que o volume aumenta. Só mais
um lembrete de que, se depender de nossos amigos escutarem seus telefones,
vou passar a noite toda aqui nesse quarto.
— Você acha mesmo que vamos conseguir? — ouço-a perguntar
baixinho, quebrando o gelo entre nós.
Viro a cabeça em sua direção e ela me encara com olhos cansados.
Estamos próximos o suficiente para que eu repare que está sem maquiagem,
um inchaço sutil contorna suas orbes castanhas e ela parece estar tão
sonolenta quanto eu, agora que parou.
— Não seja dramática. O máximo de ruim que pode acontecer é Tory
só nos soltar lá pelas quatro da manhã, ou nossos amigos colocarem a
polícia atrás de nós. Em ambas as situações, estaremos em nossos
respectivos apartamentos antes do amanhecer — falo, rindo, e ela revira os
olhos.
— Não era sobre isso que eu estava falando. Pergunto sobre nossa
“trégua” — explica, fazendo aspas com os dedos.
— Já aguentamos quase três dias, é um recorde louvável — sugiro.
— Mal nos vimos nos últimos dias, não conta. — Ela se vira
completamente em minha direção, me encarando com atenção. Me sinto um
tanto apreensivo com o rumo dessa conversa, afinal, isso tem que dar certo.
Não conseguir não é uma opção.
— Não sabia que sentia tanto a minha falta, Coelhinha — provoco lhe
lançando um sorriso torto. Seus olhos ainda estão fixos em meu rosto e ela
está inclinada em minha direção. Varro sua fisionomia, fitando cada parte.
— Eu detesto esse apelido.
— Eu sei.
— Então por que continua usando?
— Um dia eu te explico — falo, cansado, e sentindo o sono me
tomando.
Solto um grunhido de dor ao me mexer e isso atrai a atenção da garota.
Endireito minha coluna e levanto um pouco a barra da camiseta para conferir
o hematoma em meu abdômen, está terrível.
— Ai, meu Deus. O que fizeram com você? — a garota chia,
escandalizada.
— Um cara do time adversário caiu com o joelho na minha costela —
explico, e ela faz uma careta de dor.
— Machucou muito? — questiona, ainda com os olhos vidrados na
mancha roxa em minha pele.
— Não chegou a fraturar, mas tá doendo pra caralho — confesso.
Amelie parece pensar por um tempo, se levanta da cama e desaparece
no corredor. Ouço o barulho de portas de armário abrindo e fechando, sendo
pego de surpresa quando ela volta com um kit de primeiros socorros nas
mãos.
— Estudantes de medicina sempre têm um desses, a maleta é
igualzinha a da Meg — ela comenta, enquanto caminha até a cama. — Deita
aí.
— O que vai fazer?
— Digamos que eu sei um pouco sobre lidar com hematomas — fala,
fuçando a maleta e pegando o que precisa. — Já não pode mais dizer que
nunca fiz nada por você.
Solto uma risada baixa e estico o corpo em um dos lados da cama.
Amelie larga sua jaqueta sobre o colchão e espalha alguns itens da maleta
sobre ela, para não correr o risco de sujar a cama. Ela sobe e engatinha até
mim, sentando-se sobre os calcanhares e prendendo os cabelos em um
coque. O vestido justo que está usando sobe um pouco pelos movimentos,
deixando mais da sua coxa à mostra, e a posição me dá uma visão
privilegiada da sua bunda delineada pelo tecido vermelho.
Estou certo de que em algum lugar do mundo isso é considerado
tortura.
Não tenho tempo de refletir muito sobre o assunto, porque não demora
para que a garota esteja aplicando uma pomada analgésica com a ponta dos
dedos sobre o meu ferimento. Exprimo um ganido de dor quando ela exerce,
sem querer, um pouco de pressão sobre o machucado, e ouço seu pedido
baixo de desculpas.
Mal consigo respirar durante todo o processo, e quando a pomada
começa a agir, sinto a ardência esfriando minha pele. Amelie cobre o
machucado com algumas gazes, colando as bordas com esparadrapo.
Dispenso o comprimido de anti-inflamatório que ela me oferece, porque já
tomei um. Quando termina, ela me ajuda a sentar novamente na cama e
coloca alguns travesseiros para apoiarem as minhas costas.
— Obrigado, Coelhinha — agradeço, deixando um aperto inocente em
sua perna esticada ao meu lado. Ela assente com a cabeça.
Não sei por quanto tempo ficamos no mais absoluto silêncio até que eu
adormeça sentado. Acordo um tempo depois, um tanto zonzo, sozinho no
quarto e com uma jaqueta branca cobrindo meu tronco. Os bottons literários
e o perfume extremamente doce que exala do tecido não me deixam dúvidas
de quem seja a dona.
Encaro o corredor e vejo que a porta do quarto está aberta. A música
lá embaixo ainda está alta e o som das pessoas conversando me faz perceber
que meu cochilo foi rápido.
Saio da cama sentindo um pouco menos de dor e com o pensamento de
que, talvez, Amelie Castillo seja mais legal do que aparenta.
“Honestamente
Ela é a única que está cuidando de mim
Me dá oxigênio quando fica difícil respirar
E se eu estiver errada ou certa
Ela está sempre do meu lado”
BACK TO LIFE | Zayn
(TRADUÇÃO ADAPTADA)

01 de Agosto de 2021

A primeira vez que customizei uma roupa foi aos quinze anos.
A vítima foi uma camiseta com o Mickey na estampa, que recortei
para transformar em uma regata com mangas cavadas.
Ficou horrível.
Ainda assim, a ideia de transformar minhas roupas antigas em peças
novas e exclusivas era completamente sedutora para minha mente artística,
que passava por constantes explosões criativas. Ao constatar que eu era uma
verdadeira catástrofe quando o assunto era combinar tesouras e tecidos,
decidi me jogar de cabeça nas customizações envolvendo tintas e linhas de
costura. Deu certo.
Na escola preparatória de ensino médio onde estudei, o uso do
uniforme era obrigatório e a peça mais próxima de mostrar um pouco da
nossa própria personalidade eram os adereços de cabelo e os tênis.
A segunda opção foi o que me garantiu a fama de artista da turma,
quando comecei a transformar meus all star brancos em tênis personalizados
e cheios de vida. Não demorou muito para que todos os meus colegas
começassem a me enviar mensagens implorando para que eu fizesse o
mesmo nos calçados deles. Lembro de ter feito de graça no início para as
minhas amigas mais próximas, mas com o restante da classe também a fim de
ter sua peça exclusiva, eu “profissionalizei” a coisa, e ganhei um bom
dinheiro, se quer saber.
Pelos sete anos que se seguiram, daquela época até o presente, eu
nunca mais deixei de transformar minhas roupas, e o que era uma simples
diversão na adolescência se tornou um verdadeiro vício. Os tecidos, então,
se tornaram as extensões das minhas telas.
Acontece que, agora, a minha nova tela é o tênis enorme de uma das
pessoas que mais detesto no planeta.
Rolo a tela do computador com o mouse encarando a minha pasta de
referências aberta no Pinterest, refletindo sobre qual desenho me parece ser
mais constrangedor para adornar os pés do capitão do time de basquete com
complexo de gostosão.
Não vou mentir, realmente cogitei desenhar um pênis e escrever
“babaca do caralho” em letras garrafais só para ter a chance de ver Ethan
Harris em um colapso nervoso.
Entretanto, a forma genuína como elogiou a pintura em minha calça e o
medo dele arruinar minha reputação artística, atribuindo meu nome à uma
obra estilo oitava série, me fizeram repensar sobre a ideia.
Resolvi, por fim, irritar Ethan com uma provocação inocente, fazendo
desenhos bem feitos com uma pegada mais delicada. Algo que, com certeza,
vai ferir seu ego masculino gigantesco.
Paro de rolar a tela quando a foto de pequenas margaridas brilha
diante de mim. Alterno o olhar entre o computador e o sapato sorrindo feito
uma besta ao constatar que encontrei o desenho perfeito.
Faço algumas marcações com o lápis para determinar o espaço certo
onde cada flor vai ficar, deixando uma parte livre para o toque final na
região dos calcanhares. Com as demarcações feitas, uso um marcador à base
d’água amarelo para desenhar os miolos nas laterais de fora do tênis, e com
o auxílio do pincel, pinto pétala por pétala com tinta branca, que contrasta
perfeitamente com o preto do calçado.
O processo todo me exige pouco mais de quarenta minutos. Espero a
tinta secar um pouco antes de fazer alguns detalhes finais com caneta preta, e
quando, por fim, finalizo tudo, uso a tinta branca e um pincel mais grosso
para escrever um “A” enorme no calcanhar direito.
Sorrio satisfeita com o resultado e solto um riso baixo imaginando a
quantidade de palavrões que o garoto vai soltar.
Pego o celular para checar o horário e noto que já passa das nove.
Num ato completamente impensado, abro o aplicativo do Instagram e coloco
seu nome na barra de pesquisa. Há uma foto recente no feed publicada na
noite anterior. É uma selfie que creio que tenha sido tirada no vestiário,
porque ele está com os cabelos molhados e algumas gotas se acumulam por
seu rosto. Na legenda, ele comemora a vitória do time, e nos comentários,
centenas de garotas estão o parabenizando e rasgando elogios à sua face
ridiculamente bem desenhada.
O diabo tem seus favoritos.
Encaro a foto por mais alguns segundos e minha mente me
teletransporta para a semana passada, quando ficamos trancados em um
quarto de festa e eu fiz um curativo em seu machucado. Ele pensa que não
reparei, mas vi e senti seu olhar queimando sobre mim. Meu subconsciente
me trai relembrando a sensação da sua mão apertando a minha perna
enquanto me agradecia.
Aquele toque, que no momento passou despercebido por meus
sentidos, têm rodado em looping ao redor de minha mente desde o momento
em que abri os olhos no dia seguinte. Foi um toque bobo e inocente, mas a
firmeza da sua pele contra a minha me deixou um tanto desnorteada.
Mordo a parte interna da minha bochecha e aperto o aparelho em
minhas mãos, tentando me livrar da recordação indesejada. Solto um suspiro
forte e sou sugada de volta para a realidade quando o barulho da notificação
do telefone rouba minha atenção. É uma mensagem direta.
Falando no Inominável…
@ethanharris: estou vendo vc me stalkeando, gata.
Arregalo os olhos, aterrorizada, e sinto minha pressão despencando ao
notar que curti sua foto sem querer. Meus dedos tremem levemente enquanto
abro a conversa com ele e o vejo digitando, o que não me dá tempo para
ameaçá-lo pelo “gata”.
@ethanharris: não vai nem comentar que sou gostoso? :(
Reviro os olhos com força, sentindo vontade de lhe acertar um chute.
@ameliecastillo: não vou comentar mentiras :) e não fazem 24h da
foto, não é considerado stalk, poderia ter passado na minha timeline só
agora.
@ethanharris: foi o que aconteceu?
Eu odeio muito esse cara.
@ameliecastillo: vai pro inferno, vim apenas avisar que seu tênis
ficou pronto.
@ethanharris: sério? manda foto!
@ameliecastillo: sem chance, vai estragar a surpresa, te entrego
essa semana.
Nessa hora, meus olhos alternam entre o calçado e o telefone e
novamente sinto vontade de rir.
@ethanharris: você anda cheia de surpresas, Coelhinha, estou
ficando preocupado, acho que a próxima será a encomenda da minha
morte.
@ameliecastillo: não prometo absolutamente nada ;)
Acordo assustada com o barulho de um choro estrangulado ecoando
pelo apartamento. É madrugada e leva menos de um minuto para que minha
mente comece a trabalhar com clareza. Percebo que o som persiste, não
limitando-se somente à parte da minha imaginação sonolenta. Ergo o corpo
depressa, saltando do colchão completamente em alerta, e saio do meu
quarto sentindo as batidas frenéticas do meu coração se chocando contra meu
peito.
Toda a área comum está dominada pela penumbra, com exceção do
feixe de luz que escapa sob a porta do quarto de Megan. Nervosa, giro a
maçaneta sem a menor delicadeza e a cena com que me deparo faz todo o
meu peito se estilhaçar.
Já presenciei aquilo mais vezes do que gostaria.
Seu rosto alvo está avermelhado e seus olhos verdes, sempre tão
vívidos e brilhantes, estão banhados por lágrimas que não parecem dispostas
a cessar. Megan alterna olhar desesperado entre mim e a infinidade de
papéis dispostos sobre a sua cama, onde ela se encontra sentada abraçada ao
próprio corpo. Uma de suas mãos está sobre a boca numa tentativa falha de
sufocar os soluços que escapam desenfreados.
Desde que nós começamos a morar juntas, episódios como esse se
apresentam esporadicamente, em sua grande maioria durante o período de
provas. Megan foi diagnosticada com ansiedade em estágio leve aos quinze
anos. Faz terapia desde então, segundo ela, para descarregar um pouco do
que se acumula em seu peito.
Além da sua mãe, sei que sou a única pessoa que já presenciou as
crises que ela tanto tenta esconder, e desde que começamos a dividir
alojamento, sou eu quem sempre lhe ampara em momentos como esse. No
geral, Meg se sai bem no que diz respeito ao controle de suas emoções e dos
sintomas que o próprio distúrbio traz consigo, entretanto, a pressão da vida
acadêmica é, certamente, seu principal obstáculo.
Estudar em um dos cursos mais concorridos da universidade já é, por
si só, algo angustiante e exaustivo. Viver isso se cobrando tanto quanto
minha amiga se cobra é uma combinação perfeita para um pesadelo.
É como se todos, menos ela, fossemos capazes de enxergar a aluna
excepcional que ela é. Por isso, faço questão de lembrá-la diariamente da
importância de colocar menos pressão sobre si e valorizar a própria saúde
tanto quanto valoriza a dos outros.
Caminho agitada em sua direção e lhe estendo minha mão, que ela
agarra com força. Puxo-a para que se levante e a envolvo em um abraço
apertado, sussurrando em seu ouvido que eu estou com ela e que tudo vai
passar. Deixo que ela me aperte enquanto chora copiosamente sobre meu
ombro, e espalmo a mão em suas costas com sutileza acariciando-a até que
se acalme minimamente.
— Consegue prestar atenção no que digo? — pergunto baixo e sinto
sua cabeça assentindo, agitada. — Vamos para o banheiro então.
Ainda abraçada a mim, Megan caminha até o banheiro. Ajudo-a a
entrar no banho depois de fazer alguns exercícios de respiração para
acalmá-la. Enquanto a chuveirada quente se prolonga, volto para seu quarto,
onde busco seu travesseiro, e sigo para o meu, ajeitando a cama para nós
duas.
Quando retorno ao banheiro, minha amiga já está enrolada na toalha e
sentada na tampa da privada com os cotovelos sobre as pernas e as mãos
cobrindo o rosto. Pelos pequenos movimentos de seu corpo sei que ainda
está chorando.
Pego sua escova de cabelo no armário da pia e me posiciono de frente
para ela. Deslizo a escova sobre seus fios loiros, penteando-os para trás
com cuidado, e sinto quando seus braços envolvem minhas pernas e seu
rosto se apoia em minha barriga.
— Vai ficar tudo bem, meu amor — digo suavemente fazendo carinho
em sua cabeça.
— Me desculpa por te acordar, Amy. — Sua voz embargada e fanha
me faz querer guardá-la longe de todo o mal.
— Não se desculpe, nunca. Eu estou aqui com você, e amigas servem
exatamente para isso, Meg.
— Obrigada mesmo. Você é um anjo.
Quando termino de escovar seu cabelo, Megan vai até seu quarto se
vestir e eu aproveito para buscar um copo d’água na cozinha. Na volta, ela já
me espera apoiada ao batente da minha porta, abraçando o próprio corpo e
vestida num pijama de bolinhas.
Um meio sorriso se estica em meu semblante na intenção de
tranquilizá-la. Acomodo-a sob as cobertas e me deito abraçando seu corpo
deixando um carinho em seu rosto até que ela, enfim, caia no sono.
Me pergunto se Tyler faz ideia desses momentos, se ele conhece o
lado que Megan tanto encobre, e se, de alguma forma, ele está disposto a ser
um suporte para quando ela precisar.
Como uma resposta imediata, minha mente repassa os últimos meses e
me dou conta de que faz bastante tempo que não vejo minha amiga desse
jeito. Concluo que talvez, nas minhas constantes ausências por estar sugada
pelo caos da minha família, talvez tenha sido ele quem esteve ao lado da
minha amiga.
E por isso, mentalmente, agradeço mais uma vez a existência de Tyler
Mansen na vida de Megan.
Minutos depois, quando sua respiração se normaliza, escorrego com
cuidado para fora da cama e vou até seu quarto arrumar todo o caos de
cadernos, livros e anotações que se encontram espalhados por toda parte.
Organizo os esquemas e resumos em suas pastas etiquetadas e estico o lençol
para que ela não tenha esse trabalho na manhã seguinte, voltando para minha
cama apenas quando tudo já está em seu devido lugar.
— Cuidamos uma da outra. Amo você — sussurro quando já estou
debaixo do cobertor desligando o abajur, e mesmo não esperando por uma
resposta, ela vem, em forma de um “eu também te amo” completamente
grogue de sono e um abraço desajeitado.
Não trocaria a amizade que temos por absolutamente nada nesse
planeta.
“Eu gosto tanto dela, a ponto de querer tá perto, pronto
Não tem outro jeito de me ver sorrir
É louco o efeito dela aqui”
EU GOSTO DELA | Emicida

02 de Agosto de 2021

— Se você não sossegar nesse banco, eu juro que nunca mais na sua
vida vai ganhar um skittles! — ameaço, sério, lançando um olhar mortal para
minha irmãzinha pelo retrovisor do carro.
— Nem você acredita nisso, Thitan! — retruca rindo.
Olho incrédulo para minha tia, que tenta esconder o riso, sentada no
banco do carona de sua BMW, enquanto dirijo o carro pelas ruas do Queens
em direção à escola de ensino fundamental onde Angeline estuda.
Ontem foi um dos dias típicos em que eu e Tia Suzy passamos a tarde
na casa do meu pai maratonando filmes infantis, graças ao gosto
extremamente duvidoso da criança de oito anos detentora da posse do
controle remoto, e nos enchendo de comida.
É extremamente raro minha tia passar a noite conosco, mas
embalamos em uma maratona sem fim dos incontáveis filmes da Barbie.
Quando nos demos conta, já estava tarde demais para que tanto eu, quanto
ela, fôssemos para nossas respectivas casas. Acabamos ficando e ela me
prometeu uma carona para a faculdade e uma carona para a escola para
Angeline antes de ir para o trabalho.
Acontece que a noção de carona da minha tia é um tanto deturpada,
porque sou eu quem está atrás do volante enfrentando o trânsito matinal
caótico do bairro em que meu pai mora.
Quando, enfim, estou diante da entrada da escola, estaciono o carro e
salto para fora dando a volta no veículo. Abro a porta do passageiro e ajudo
minha irmã a descer, levando sua mochila sobre o ombro. Caminho de mãos
dadas com ela até o portão e quando estou próximo da entrada, me abaixo
para ficar da sua altura.
— Tenha um bom dia de aula, Anjinha. Você é uma garota fantástica,
não se esqueça disso — falo antes de deixar um beijo em sua bochecha e lhe
entregar a mochilinha amarela com estampa de abelhas.
— Não vou me esquecer, Thitan. Boa aula pra você na sua escola de
adulto. — Dou risada e quando estou prestes a me levantar, Angeline se atira
em minha direção me abraçando com força. — Te amo, irmão.
Sorrio sentindo meu peito transbordando amor em sua forma mais
pura e genuína. Acaricio seus fios de cabelo lhe envolvendo em meus braços
como se aquela criaturinha tão pequena e inocente fosse o que há de mais
precioso no mundo. Talvez porque, no meu mundo, ela seja.
— Eu também te amo, Anjinha.
Nos despedimos com o nosso toque de mãos secreto, e espero até que
ela esteja dentro da escola para voltar para o carro, onde minha tia me
encara com um sorriso abobalhado no rosto.
— Dez dólares pelos seus pensamentos, Suzan Harris — falo, rindo,
enquanto passo o cinto pelo corpo.
— Não é nada, só acho bonito demais a forma com que cuida dela,
nunca vou me acostumar. — Ela solta uma risada enquanto dou a partida. —
Acho que ninguém no mundo ama mais Angeline do que você.
— Não discordo. Com todo respeito do mundo pelo papai, mas ele
divide seu amor entre nós dois, e aquela garotinha é a minha vida inteirinha.
— Sou sincero e alterno o olhar entre a avenida e os olhos orgulhosos da
minha tia.
— Aquela época foi difícil demais pra vocês dois. Só eu sei o quanto
você se esforçou para ser bom para todos, e cada dia que passa, vendo sua
irmã crescendo uma criança saudável, criativa, segura de si, eu me sinto
ainda mais certa de que Angeline sempre teve o melhor irmão do mundo.
Suas palavras me acertam em cheio, talvez pelo coração mole que
costumo ter pelas manhãs, ou talvez porque tudo relacionado à morte da
minha mãe me deixa extremamente emocionado.
E ao ouvir o que minha tia diz sinto vontade de parar o carro para lhe
dar um abraço apertado, daqueles que terminam em lágrimas tímidas rolando
pelo rosto, porque só eu sei o quanto Suzy foi crucial na minha vida para que
eu esteja aqui hoje. E só eu sei o quanto tive que amadurecer para criar uma
criança praticamente sozinho mesmo sendo quase uma.
Ouvir elogios à Angeline me dá a sensação de que não falhei, e isso é
algo muito importante pra mim.
— E eu, a cada dia que passa, tenho a certeza de que tenho a melhor
tia-mãe do mundo — falo, levando uma mão até a sua e deixando um aperto
carinhoso.
O caminho entre o Queens e o Coleman Campus se estende com nós
dois rindo e cantando sucessos do Aerosmith e dos Beatles em alto e bom
som. Não existe maneira melhor de começar o dia, digo isso com
tranquilidade.

A biblioteca do prédio de jornalismo da Irving é um dos lugares mais


aconchegantes e emblemáticos de toda a universidade, na minha mais do que
humilde opinião. E é também um dos meus lugares favoritos no mundo.
As imensas prateleiras da Biblioteca Toni Morrison[4] abrigam mais
de dois milhões de volumes dos mais variados temas, é a maior biblioteca
de todo o complexo acadêmico da Irving. Foi construída em 1931, projetada
seguindo o estilo neoclássico.
Originalmente chamada de “Biblioteca Benjamin Harrison[5]”, a
construção foi renomeada em 2010, junto com outros trinta prédios da Irving,
após a vitória histórica em uma assembleia geral, convocada pelo Grupo de
Estudos Sociais e de Raça da universidade, que propôs a renomeação dos
prédios acadêmicos como forma de homenagear grandes personalidades
negras do país.
Eu ainda nem sonhava com a faculdade na época, mas as fotos e os
vídeos são de arrepiar, e pelo que sei, a própria Toni esteve na cerimônia de
inauguração na nova fachada levando seu nome.
Já passa das oito da noite quando checo meu celular depois de passar
as últimas três horas completamente focado em um trabalho sobre “equidade
racial e de gênero” para a minha matéria eletiva de Direitos Humanos. A
ideia do trabalho gira em torno de elaborar uma tese sobre como propor uma
formação descolonial para alunos do ensino fundamental e buscar caminhos
para realizá-la.
Não vou mentir, esses são os meus trabalhos preferidos. Amo lidar
com essa área de DH, e ainda que o jornalismo não seja um curso de
licenciatura, esse não é o primeiro trabalho voltado para a formação infantil
que faço ao longo dos meus quase três anos de faculdade.
Estou organizando os livros na mochila quando o rosto sorridente de
Diana, a bibliotecária, entra em meu campo de visão. Ela se aproxima da
cabine em que estou e me cumprimenta com a gentileza costumeira.
— Já vamos fechar, lindinho, precisa de mais alguma coisa? — Seus
olhos azuis que sempre sorriem junto com ela estão com uma aparência
cansada.
— Não, minha linda, já terminei aqui! Na quarta eu volto pra matar a
saudade de você — falo, rindo, e ficando de pé logo em seguida.
— Suas admiradoras ficariam morrendo de inveja se escutassem isso!
Gargalho alto e a envolvo em um abraço apertado, deixando um beijo
no topo de sua cabeça. Diana é uma senhorinha grisalha, baixinha e divertida
que já está na casa dos setenta, é fissurada por livros como se não pudesse
ser mais óbvia devido à sua profissão, e é também a alegria desse lugar.
No meu primeiro ano na Irving eu enchi tanto a sua paciência
perdendo os prazos para entrega dos livros, que ela foi em um dos meus
treinos me dar um esporro na frente do time inteiro. Daquele dia em diante,
eu virei o maior fã dessa senhorinha, e até hoje damos boas risadas
lembrando disso.
Me despeço dela e vou caminhando até a saída, rolando o Spotify
para escolher a música que vai embalar minha caminhada até em casa. Faço
a anotação mental de parar de ir para os lugares sem a moto, tem me custado
passeios a pé até demais.
Enquanto ando pela rua principal do campus, cujas árvores
iluminadas são uma atração e tanto, Collide, do Howie Day, embala minha
mente, permitindo-a descansar da enxurrada de pensamentos que sempre a
ocupam. Durante o trajeto, escorrego a mão pela alça da minha mochila mais
de uma vez, sentindo o contato com o broche de Amelie, que peguei da sua
jaqueta e deixei preso ali.
Minha mente diabolicamente pervertida me trai como a porra de um
Judas resgatando as memórias da noite da festa. Sinto vontade de socar
minha cara toda vez que me lembro do quão afetado a imagem daquela
garota de vestido vermelho me deixou.
É preciso ser sincero, Amelie Castillo não está nem perto de ser uma
mulher feia.
Muito pelo contrário, me tira do sério que seja bonita até demais pra
uma pessoa com quem eu não consigo ficar sob o mesmo teto por mais de
dois minutos sem trocar farpas. E tendo isso em mente, sabe-se o estrago que
fez na minha cabeça ter começado a reparar nela.
Isso não é nada bom.
Pisco repetidas vezes quando, após banir de vez o assunto “Amelie-
De-Vestido-Vermelho” da minha mente, vejo a silhueta de uma garota
extremamente parecida com ela caminhando um pouco mais à frente pelo
campus vazio. Se todos os meus pensamentos vão se materializar diante de
mim a partir de agora, eu juro que vou começar a mentalizar dinheiro.
Apresso as passadas e quando já estou quase perto, levo minha mão
até seu ombro. Entretanto, não tenho tempo de chamá-la. Tudo acontece
rápido demais, como em um borrão. — AAAAAAAAAI PORRA!
VOCÊ É MALUCA?
Grito desesperado quando, de uma hora para a outra, estou sendo
prensado contra o chão, com o braço torcido para trás, e uma garota de um
metro e sessenta está sentada nas minhas costas.
— Qual é o seu problema? O que você quer? — pergunta, nervosa.
Minha cabeça está doendo pelo impacto.
— Eu só vim te cumprimentar, sua karateca louca! — esbravejo, me
contorcendo sob o seu aperto. — Porra, Amelie, me solta!
É quando ela parece se dar conta de que ainda está sentada em minha
coluna. Sinto ela sair de cima de mim, e giro o corpo, vendo-a ficar de pé e
me oferecer ajuda para levantar.
Alongo o corpo assim que me equilibro novamente, sentindo um pouco
de dor. Limpo as pedrinhas que grudaram no meu rosto e aproveito para
conferir se ainda estou inteiro ou se a garota arrancou algum membro que
não reparei por conta da adrenalina do choque.
— Onde raios você aprendeu a fazer isso? Você me golpeou! — acuso,
completamente chocado. — Passei os últimos três anos testando sua
paciência correndo o risco de tomar uma surra?
— Pratico boxe desde os quinze anos de idade, então, na teoria, sim,
correu esse risco todo esse tempo. Mas isso não foi por querer, foi mal aí.
— Ela me oferece um sorriso amarelado. — À propósito, vou ignorar o fato
de ter confessado que inferniza minha vida de forma consciente para não te
dar um chute agora. Enfim, ninguém te ensinou que não se deve surpreender
uma mulher desse jeito quando ela está sozinha, tarde da noite em uma rua
escura, não? Quase me matou do coração!
Eita, verdade.
— Foi mal, mesmo. Não pensei direito, me desculpe.
— Tá tudo bem, enfim, oi… E tchau? Tô indo nessa… — sugere, um
tanto desconcertada.
— Vai para o alojamento? — pergunto e ela assente. — Eu acompanho
você então. Não se ofenda, sei bem que pode se defender sozinha, mas
segurança extra é sempre bem vinda, não é?
— É sim, mas eu não subo na sua moto de novo nem sob decreto!
Ergo os braços em rendição com um sorriso nos lábios.
— Embora seja cômico demais te sentir tremendo de medo em cima
das duas rodas, eu tô a pé hoje. Aliás, cadê o seu carro?
Amelie revira os olhos e bufa alto.
— Mecânico.
Solto um chiado como quem diz “que merda” e ela assente, dando os
primeiros passos seguindo o trajeto que já fazia e, totalmente vencida pelo
cansaço, não reclama quando eu me ponho a caminhar ao seu lado.
Coloco meu fone de volta, deixando uma orelha livre caso ela queira
conversar, mas me mantenho em silêncio, porque sinceramente, Amelie está
com uma aparência derrotada. Por isso, engulo a vontade de perguntar por
que ela, filha de um bilionário que deve limpar a casa com panos de chão da
Dior, continua com aquele carro terrível.
Quando chegamos na frente da Chisholm House, Amelie desacelera
seus próprios passos, parando de frente para mim. Noto que ela parece
nervosa e encara o chão, completamente inquieta.
— As engrenagens do seu cérebro entrando em profusão são audíveis
aqui de fora, Coelhinha. — Solto uma risada baixa e a encaro, me divertindo
com sua careta. Amelie revira os olhos em resposta. — Não quero tomar
mais do seu tempo, me dispus a acompanhá-la e foi o que fiz.
— Certo… — Ela me encara e um estalo parece atravessar sua mente.
— Quer esperar enquanto busco seu tênis? Já está pronto, como te disse.
— Sério? — pergunto, surpreso. — Pensei que era uma distração para
tirar do foco o fato de que você estava me stalkeando.
Amelie bufa, descontente. Fala sério, irritá-la é muito divertido.
— Pelo amor dos deuses do universo, eu não estava te stalkeando!
— Vou fingir que acredito, e sobre o tênis, me devolve na sexta, vamos
jogar em Princeton, a Meg vai.
— Okay, deixo com ela então — assente, já se virando para entrar no
prédio.
— Não, estou dizendo para você ir com ela ao jogo e me entregar lá.
Ela para de abrupto, e se vira na minha direção completamente
chocada.
— Em que mundo eu iria até Princeton para assistir você e um bando
de caras suados acertando bolas em uma cesta, Ethan Harris?
Gemo indignado quando meu nome completo escapa dos seus lábios.
Sempre que ela o usa nós começamos uma discussão.
— Esse seu preconceito com os atletas caiu por terra no momento em
que você quase quebrou o meu braço minutos atrás, porque você também é
uma atleta. Se não te avisaram, eu aviso, Coelhinha. — Cruzo os braços,
encarando-a de maneira irredutível. — Vamos, vai ser legal, o clima nas
arquibancadas é incrível, vai ser uma partida fora de casa, vamos precisar
de torcida.
— Aposto que se você pedir por torcida no Twitter, suas maria
cestinhas vão lotar a arena de Princeton. Fique tranquilo — diz rindo e
debochando do nome escroto que Megan e as outras fãs do basquete
universitário se auto-intitulam.
Estalo a língua no céu da boca, estando por um triz de perder a
paciência, mas não desisto, por isso, decido tocar em seu ponto fraco:
— Vai ser uma oportunidade de estarmos todos juntos, com Tyler e
Megan. Estamos tentando conviver por eles, não estamos? Chegou a hora! E
se serve de consolo, depois do jogo a gente sempre enche a cara no Grove’s
— A breve menção ao seu bar favorito faz sua carranca se desarmar. Ponto
para Megan pelo tráfico de informações. — Vamos, vai ser legal…
A garota fecha os olhos e respira fundo, parecendo irritada por minha
insistência.
— Tudo bem, eu vou. — Se rende. Eu comemoro. — Agora, se me
permite, preciso de um banho. Boa noite, Ethan.
— Espera…
Chamo-a, antes que ela se vire para ir embora, e pego o broche da
sua jaqueta que está preso em minha mochila. Aproximo-me dela, colocando
o pequeno objeto sobre a palma da sua mão e me inclino em sua direção com
um sorriso amigável, aproximando meus lábios do seu ouvido.
— Quando devolvi a sua jaqueta na festa, não consegui te agradecer
direito, mas obrigado pelo curativo — sussurro, e sinto sua mão envolver
meu pulso. — Acho que por baixo da Amelie Castillo que eu vejo, talvez
exista uma garota que eu gostaria muito de conhecer. Foi bom saber disso.
Me afasto sem dizer mais nada, e ela cambaleia alguns passos para
trás, visivelmente afetada. Observo-a subir as escadas da Chisholm House
um tanto aérea e quando ela está prestes a entrar, falo numa altura suficiente
para que ela escute:
— Boa noite, Coelhinha.
“Oh, acho que encontrei uma líder de torcida para mim
Ela sempre está lá quando eu preciso
Oh, acho que encontrei uma líder de torcida para mim”
CHEERLEADER | Omi

04 de Agosto de 2021

Eu definitivamente não sei o que fiz para os deuses do universo, mas


eles me odeiam.
Afinal, não existe outra explicação coerente para o fato de eu estar
sentada no banco do carona do carro da minha melhor amiga, segurando uma
caixa como se fosse a minha própria vida, enquanto estamos enfrentando um
trajeto de quase uma hora a caminho do Ginásio Jadwin, a arena que abriga
os Princeton Tigers, time de basquete da Universidade Princeton.
Na quarta-feira, quando aceitei o convite de Ethan para ir ao jogo, eu
subestimei completamente a capacidade do capitão da Irving de ser um pé no
saco. Sério.
Quando as palavras “eu vou” saíram de minha boca,
inconscientemente eu já possuía a certeza de que conseguiria me livrar de,
de fato, ir torcer pelo time. O que eu não contava é que meu detestável
“inimigo em trégua” era também um linguarudo, porque acordei no dia
seguinte com uma Megan sorridente e satisfeita por, depois de um bom
tempo, conseguir me arrastar para uma arena.
Além disso, Ethan consegue ser bastante persistente quando quer. As
múltiplas mensagens de confirmação que recebi no Instagram ao longo dos
últimos dias não me deixam mentir. O cara é um chato de primeira, e parece
ter um prazer quase que sexual em me atormentar.
Falando sério, embora o boxe faça parte de boa parcela da minha
vida, eu nunca fui o tipo de pessoa que acompanha esportes no geral.
Frequentei alguns jogos de basquete com Megan, que é a presidente não-
oficial das Maria Cestinha da Irving, e assisti uma quantidade considerável
de partidas de hóquei ao longo da vida. Em partes por meu pai ser um
torcedor fanático dos Islanders, e em partes, quando namorava com Daniel,
um dos atletas do time de hóquei no gelo da faculdade.
Mas nunca fiz o tipo “figurinha carimbada” nas arquibancadas.
Em suma, onde quero chegar, é que eu definitivamente não estou feliz
com a situação em que me encontro. Entretanto, estou me amparando em dois
pilares para me convencer de que a noite não vai ser tão ruim como imagino:
1- O chilique de Ethan pelo tênis florido
2- A cerveja que, ontem de tarde, ele jurou de pé junto que me pagaria.
Sinto meu celular vibrar em minha mão. Imediatamente viro a tela para
cima e me deparo com a notificação de uma mensagem de Adam, ele está me
convidando para irmos a uma sorveteria charmosa que ele conheceu. Alterno
o olhar entre a estrada e o aparelho, grunhindo decepcionada, enquanto
desbloqueio a tela.
Tenho desviado constantemente de seus convites para ir para a sua
casa, e sinto que ele está prestes a me dispensar, mas não é como se eu
pudesse evitar. O cara me procura sempre nos momentos mais inoportunos, e
ele definitivamente ainda não alcançou o patamar suficiente para que eu
mude meus planos por um encontro.
Eu: Não vai dar, foi mal. Estou fora da cidade essa noite :(
Pouquíssimos segundos se passam até que eu receba sua resposta.
Adam M: Tudo bem, podemos nos ver amanhã então?
Eu: Combinado!
— O que tá rolando entre vocês dois, hein? — A voz de Megan
retumba pelo carro e tenho um sobressalto.
— Quê? — Confusa, me pergunto como ela conseguiu ler minha troca
de mensagens.
— Você e o Ethan. Primeiro você customiza o tênis dele, e agora ele
encheu o saco para você vir até Princeton assistir um jogo. Vocês estão se
pegando para gastar a tensão acumulada ou algo do tipo? — Ela segue
focada na estrada mas o semblante desconfiado é visível.
— Não? Meu Deus! Não, que horror, Megan! — O chiado enojado em
minha voz me faz parecer uma criança birrenta e eu encaro minha melhor
amiga com incredulidade. — Eu e ele estamos em trégua, apenas. O fato de
eu estar aqui, indo até aquele ginásio entregar um tênis, não significa nada
além do fato de Ethan Harris ser um babaca folgado.
Sua expressão suaviza e ela gargalha apertando o volante com força.
— Sabe que poderia ter se recusado e ele não teria ido até o
alojamento te arrastar pra cá, não sabe?
— Acredite, ele teria sim — falo, bufando, enquanto me recosto no
banco.
— Vocês dois parecem duas crianças. Tyler deu a ideia de
comprarmos aquela camiseta da amizade para vocês.
— Eu juro que mato vocês dois se fizerem isso — ameaço antes de ter
uma crise desesperadora de riso me imaginando ao lado daquele gigante
dividindo a tal camiseta.
Ficaria ridículo.
Pelos próximos minutos, um silêncio confortável recai sobre o
ambiente, me permitindo lidar com meus pensamentos enquanto observo a
estrada. Embora a tentativa de aproximação entre mim e Ethan seja
completamente louvável, sinto que nossos problemas não vão desaparecer
da noite para o dia como esperamos que seja.
Existe um longo e tortuoso caminho até lá e, para ser sincera, não sei
até que ponto nossa força de vontade será suficiente.
— Amy… — Sua voz me chama de forma suave e a maneira como
alterna o olhar entre meu rosto e a estrada me faz questionar se Megan está
lendo meus pensamentos.
— Sim?
— Dá uma chance para ele, por favor. Não por mim, ou pelo Tyler,
mas por vocês mesmos. Eu sei bem que você olha para Ethan e enxerga
somente o cara do basquete metido a besta, mas ele é muito mais do que
isso, eu juro. — Seus olhos carinhosos me fitam de esguelha e sinto um nó
nervoso se formando em minha garganta. — Ethan pode ser um bom amigo se
você permitir, vocês dariam uma dupla e tanto.
Uma dupla e tanto.
O que tem dado nas pessoas ao meu redor ultimamente para pensarem
isso?
Assinto, um pouco contrariada, porque realmente não consigo
visualizar uma realidade onde me refiro à Ethan Harris como meu amigo.
Não quando ele personifica uma série de coisas que eu detesto, e com
certeza não quando ele supõe coisas ao meu respeito com base no meu
sobrenome.
Ethan pode pensar que eu não entendi sua alfinetada quando estávamos
dentro daquele quarto. Honestamente, eu preferia não ter entendido.
Ele já disse várias vezes, com todas as letras, que me acha “mimada
pra cacete”, portanto sua insinuação não foi exatamente um espanto pra mim.
O que me apavora é que, mesmo evitando de maneira rígida, beirando a
obsessão, ter minha imagem atrelada à do meu pai, pessoas como Ethan
Harris sabem perfeitamente qual sangue corre em minhas veias e o tanto de
dinheiro que me rondou por toda a vida.
E é por isso que ele se acha no direito de me demonizar, pelo que ele
pensa que sabe sobre mim.
Embora lembrar disso me enfureça, não vou cometer o erro de agir de
forma impulsiva.
Megan e Tyler não precisam lidar com o nosso drama, e eu não vou
permitir que a raiva assuma o controle das minhas emoções. Embora minha
melhor amiga tente esconder ao máximo, sei que ela espera que nós nos
acertemos e possamos conviver todos juntos como uma verdadeira família. E
eu não quero ser a responsável por, nas palavras do próprio Ethan, ferrar
com tudo.
— Vou tentar, é uma promessa — digo, por fim.
Assim que estacionamos na ala reservada aos visitantes do Ginásio
Jadwin, eu começo a me solidarizar com o fato de Ethan ter usado o
argumento de precisar de torcida por ser um jogo fora de casa. Quando a
Irving joga na Arena John Jay, todo o entorno do ginásio fica tomado por um
mar azul esmagador formado por estudantes loucos por basquete e toda e
qualquer pessoa desesperada por entretenimento universitário.
Sério, é caótico e impraticável ao menos tentar acessar o local depois
de um certo momento, e a arquibancada reservada aos visitantes, quase
sempre, é preenchida por mais pessoas vestidas de azul.
Entretanto, hoje nós somos os visitantes.
Megan estaciona ao lado do ônibus azul e branco que trouxe o time e
sua comissão técnica. Salto do carro e, ainda de dentro do estacionamento,
tenho o vislumbre da parte de fora da arena que está tomada por alunos
trajando preto e laranja, as cores do time de Princeton.
Os bandeirões e faixas estampam a cabeça enorme do mascote da
universidade que também nomeia o time, um tigre laranja que possui o nome
mais horroroso do planeta: “o tigre”.
Megan entra antes de mim para encontrar um bom lugar para ficarmos,
enquanto eu permaneço no estacionamento e envio uma mensagem para Ethan
avisando que seu querido tênis já está nos domínios da arena.
@ameliecastillo: cheguei com seus bebês novos, estacionamento.
@ameliecastillo: meg parou do lado do ônibus do time.
@ethanharris: vem aqui, deixei seu nome com o segurança, não
posso sair da área do vestiário.
Solto uma risada debochada enquanto encaro a tela. Esse cara é, de
fato, um folgado.
@ameliecastillo: que fique claro, te odeio muito.
@ethanharris: a recíproca é verdadeira, vem logo, to sujando minha
meia nesse chão.
@ameliecastillo: vai pro inferno.
Guardo o celular na bolsa e sigo as placas que indicam o trajeto até o
vestiário do time visitante. Assim que me deparo com o segurança, mostro
minha carteirinha estudantil e ele me instrui a passar por dois corredores e
dobrar à esquerda.
Um misto de nervosismo e ansiedade se aloja em meu peito enquanto
caminho em passos apressados, sentindo meu coração pulsando forte. É
estranho estar em um lugar em que, teoricamente, eu não deveria ter acesso,
e por algum motivo isso me deixa animada.
Acho que possuo uma leve tendência a me deixar seduzir por situações
erradas, afinal, tudo nesse dia me parece um completo erro.
Assim que entro no corredor da esquerda, como dito pelo brutamontes
que faz a segurança do local, avisto Ethan encostado na parede.
Ele está sem camisa, as costas nuas coladas ao concreto parecem
ainda mais extensas sob essa perspectiva. Os fios de cabelo estão presos
com uma faixa e seu pescoço está pendendo para trás enquanto ele encara o
teto, tão concentrado que mal percebe minha aproximação.
— Demorei, mas cheguei — digo, um tanto desconcertada.
Como se uma bolha houvesse se estourado, Ethan empertiga o corpo e
se vira em minha direção. Dou mais alguns passos até estar diante dele, que
me oferece um sorriso de canto, fazendo uma covinha sutil se afundar em seu
semblante. Já falei o quanto detesto esse sorriso?
É necessário um esforço tremendo para manter meus olhos grudados
nos seus. Entretanto, nem mesmo a pessoa com a maior força de vontade do
mundo conseguiria sustentar o olhar sem escorregá-lo rapidamente pelo
abdômen definido do espécime diante de mim.
— Pode checar sem medo, Coelhinha, não precisa se torturar. — A
risadinha que escapa de seus lábios me faz apertar a caixa em minhas mãos
com força para não chutar o meio de suas pernas.
Maldito.
Nesse instante, meus olhos me traem, e quando me dou conta estou
realmente dando uma checada em Ethan Harris.
O corpo esguio e definido tem mais músculos do que já ousei imaginar,
já vi Ethan sem camisa em fotos, muitas delas, porque o cara é a porra de um
narcisista, mas, ao vivo, os múltiplos gominhos distribuídos por sua pele
pálida, levemente bronzeada pelo sol, chamam ainda mais atenção.
A tatuagem com a silhueta de um anjo em sua costela esquerda é algo
que eu ainda não havia reparado, bem como a Vênus em seu ombro direito,
ambas com traços finos, pretos e perfeitamente delineados. Em minha
cabeça, me pergunto quantos desenhos ele possui espalhados pelo corpo e eu
ainda não reparei.
Sou puxada de volta quando a mão de Ethan pousa em meu ombro.
— Chega de me secar. Se quiser usar meu corpo nu tem que entrar na
fila, Coelhinha. — Novamente uma risada debochada, e novamente quero
chutar suas bolas. — Se bem que uma rapidinha pré jogo não cairia mal.
— Pare de ser um pervertido, pelo amor de Deus! — falo,
estendendo a caixa em sua direção. — Toma, abre aí.
— Não vou abrir isso e encontrar meu tênis com um pinto desenhado
não, né? Pelo amor de Deus, Coelhinha, eu não trouxe um tênis extra! — O
lampejo de desconfiança que toma seu olhar e a forma com que agarra a
caixa me fazem ter vontade de rir.
— Larga de ser dramático, abre logo isso!
Ele assente e posso sentir meu estômago se dobrando ao meio porque
de duas uma: ou ele vai ficar muito bravo e teremos uma noite terrível, ou
ele vai ficar bravinho e poderei me divertir com seu mau humor.
Encaro-o nervosa quando, segundos depois, contrariando
absolutamente todas as expectativas que eu possuía, Ethan retira um dos tênis
da caixa e abre um sorriso largo que não exala nada parecido com irritação.
Pelo contrário, ele parece realmente ter gostado da pintura que fiz.
E isso, agora, de alguma forma, parece estranhamente melhor ao meu
coração do que um acesso de raiva.
É justamente quando vejo seus olhos escuros brilhando em adoração
diante da arte que produzi que eu percebo o quanto eu realmente amo pintar,
porque nem mesmo meu desafeto por ele consegue ser maior do que o
orgulho que sinto ao notar que fiz algo capaz de causar um impacto bom em
alguém.
Ainda que esse alguém seja Ethan Harris.
— Você… Você gostou? — pergunto, envergonhada.
Ele desvia o olhar atônito para mim, parecendo ter sido tirado de um
mergulho profundo nos seus próprios pensamentos. As íris escuras estão com
um brilho diferente, e sinto como se toda a felicidade do mundo estivesse
concentrada bem ali.
— Isso tá muito foda! Sério, Coelhinha, para quem é tão mala, você
até que é uma artista e tanto. — O sorriso ainda estampa seu rosto e ele
parece genuinamente contente com o resultado. — Ficou lindo, de verdade,
obrigado por isso.
Assinto tentando esconder o quanto sua alegria me contagiou, reprimo
com veemência um sorriso que tenta rasgar meus lábios. Ethan se põe a
examinar o outro pé do calçado e noto quando ele revira os olhos ao
perceber o “A” grafado no calcanhar do pé direito.
— É claro que você não deixaria de dar um toque final — pontua
rindo.
— É claro, precisava deixar minha assinatura na obra — falo, e ele
revira os olhos mais uma vez enquanto assente. Estico o braço em sua
direção, lhe dando um empurrão leve no ombro. — Agora, eu vou atrás da
Megan e você, Sr. Capitão, trate de ganhar essa merda desse jogo porque eu
definitivamente não vim até Princeton para ver vocês perderem.
— Sim, senhora, mais algum pedido? — O tom debochado desliza por
suas palavras de maneira nem um pouco sutil.
— Faça uma cesta e dedique para mim. Eu mereço, tentar ser sua
amiga tem sido um trabalho árduo — provoco, lhe lançando uma piscadela
antes de me virar e começar a caminhar para longe.
Quando já estou quase virando na esquina do corredor, sua voz me
alcança novamente.
— Gostei do vestido!
Cesso meus passos e sorrio, únicamente porque estou de costas e
Ethan não consegue ver. Viro o rosto somente o suficiente para olhá-lo por
cima do ombro e em um tom divertido, rebato.
— Eu sei. Você não é tão discreto quanto pensa, Harris, estava me
secando descaradamente o tempo inteiro!
E lá vamos nós, de novo.
“Aqui estamos nós, não vire as costas agora
Nós somos os guerreiros que construíram esta cidade
Aqui estamos nós, não vire as costas agora”
WARRIORS | Imagine Dragons

04 de Agosto de 2021

O clima dentro do vestiário hoje é sério. O silêncio fúnebre que recai


sobre o ambiente é um sinal claro de que cada um de nós está severamente
focado em manter a concentração voltada para a partida que acontecerá
daqui alguns minutos.
Diferentemente das partidas disputadas em casa, onde nosso vestiário
apresenta um clima descontraído que beira o festivo, em jogos onde nós
somos os visitantes a única energia presente é a de tensão.
Especialmente esse ano, a temporada regular da NCAA começa em
outubro, fazendo com que o torneio interno das universidades Ivy tenha sido
adiantado para o mês de agosto. Neste torneio, que estamos disputando há
algumas semanas, apenas os oito times membros da liga se enfrentam em
amistosos que garantem nossa boa imagem para a pré temporada da
conferência que vem logo em seguida.
Estou sentado no banco, já uniformizado, encarando meus próprios pés
enquanto tento, a todo custo, afastar o turbilhão de pensamentos que tentam
se apoderar da minha mente. Não preciso nem citar o fato de que todos eles
possuem um único denominador comum: Amelie Castillo e a terrível
coincidência dela ter pintado as flores favoritas da minha mãe no meu tênis.
Meu subconsciente zombeteiro entra em cena enquanto fito o enorme
“A” estampado no calcanhar de um dos sapatos, me levando à conclusão de
que a maioria esmagadora de mulheres presentes na minha vida possuem o
nome iniciando com essa letra.
Angeline, Anastasia, Annelise e… Amelie.
Eu só gostaria que a última me desse menos dor de cabeça do que a
primeira.
Sou desperto quando ouço a porta ao meu lado se fechar num baque
alto, me fazendo sobressaltar em assombro.
Observo o treinador Butler arrastar uma cadeira disposta em um
canto do vestiário e trazê-la para perto dos bancos onde eu e o restante do
time estamos concentrados. A respiração pesarosa e a aparência de poucos
amigos acende o alerta de notícia ruim em minha cabeça.
— Seguinte, eu sei que vocês estão nervosos, mas hoje, mais do que
nunca, eu preciso que lidem com esse nervosismo o mais rápido possível
para que ele não esteja mais com vocês quando entrarem naquela quadra. —
Ele nos estende a prancheta que segura contra o peito e, de imediato, meus
olhos pousam na escalação do time adversário que possui três nomes
grifados com marcador vermelho. Pharrel, Julian e Dexter. Sinto um arrepio
tenebroso na espinha.
Os três nomes se referem à santíssima trindade do jogo sujo de
Princeton.
São uns brutamontes sádicos que possuem o poder de cavar faltas
completamente desnecessárias, porém 100% dolorosas, fazendo com que
seus adversários deixem a quadra com pelo menos um hematoma.
Eles estavam de fora dos primeiros jogos do torneio por estarem
cumprindo uma suspensão de 130 dias ainda referente à temporada passada,
mas, pelo que Butler nos explica, a suspensão terminou no início da semana,
deixando-os disponíveis para a partida de hoje.
— Eles não estão aqui para brincadeira, e nós também não. Então, por
favor, mantenham a atenção de vocês redobrada dentro daquela quadra, não
respondam às provocações, e pelo amor de Deus, não caiam na pilha desses
filhos da puta! Eu fui claro? — A aspereza em sua voz faz meu estômago se
revirar, porque porra, ele está realmente preocupado, e isso está aumentando
a minha preocupação.
Um coro de “sim, senhor” toma o ambiente, fazendo-o prosseguir.
— Se preparem para um jogo duro e ofensivo. O restante do time deve
estar louco para distribuir umas boas porradas em razão do alvoroço com a
volta dos três, estejam atentos. Harris, é seu dever, enquanto capitão, estar
atento ao que está rolando no jogo, não se desconcentre, caso contrário, eles
vão chutar a bunda do time inteiro e eu, vou chutar a sua — fala, apontando
para mim. Anuo em concordância e engulo seco, sentindo a ansiedade
viajando por meu corpo. — Esqueçam a escalação que passei no ônibus.
David e Emily, quais deles estão na melhor forma física hoje?
O treinador direciona sua pergunta para nossa fisioterapeuta e nosso
preparador físico. Todos nós os encaramos em expectativa e é a voz de
Emily que se faz presente no ambiente logo em seguida.
— Elói, Charles, Ethan, Tyler e Cory — responde, firme.
— Essa será a escalação. Charles, quero você como ala-pivô, vai
auxiliar Elói e Tyler nas jogadas, o foco hoje é a defesa, portanto não se
preocupem caso façam menos pontos, Cory e Ethan irão compensá-los. Aos
que ficarão no banco, estejam atentos ao jogo todo, e se preparem para
diversas substituições. Entendido?
Dito isso, todos nós assentimos e Butler me passa a palavra. Faço um
discurso encorajador e peço para que cuidemos uns dos outros durante o
jogo, não me estendo muito porque minha cabeça já está completamente
focada em espantar o nervosismo. Fazemos nosso grito de guerra habitual e
David nos informa que ainda temos alguns minutos antes de irmos para a
quadra.
Saio do vestiário me sentando no chão do corredor com o objetivo de
ficar sozinho, no entanto, sou seguido por Tyler, que se junta a mim sentando-
se na minha frente.
— Gostei das florzinhas no tênis — fala, rindo fraco. — Ela te detesta
mesmo, não é?
Encaro meus pés mais uma vez e solto uma risada.
— Sim, mas pro azar dela, eu gostei pra caralho da pintura.
Margaridas eram as favoritas da mamãe. — Encaro meus pés pelo que julgo
ser a centésima vez desde que coloquei os tênis, admirando incansavelmente
as flores pintadas sob uma camada fina de verniz. — Como estão as
expectativas pro jogo?
— Pharrel voltou, acho que isso diz muito. — Tyler solta uma lufada
de ar e encosta a cabeça na parede fechando os olhos. — Eu odeio esse cara.
Odeia mesmo. Pharrel Maxwell é o responsável por deixar Tyler fora
de três jogos da temporada passada depois que meu amigo cedeu às suas
provocações e os dois caíram na porrada em quadra.
Tyler Mansen é o tipo de pessoa que, no dia a dia, tenta resolver tudo
na base da conversa, e embora ele sempre reitere o quanto odeia estudar
Direito, acho essa característica algo que o aproxima bastante de seu curso.
Entretanto, dentro dos limites da arena, meu melhor amigo é uma
pessoa pra lá de estourada, o que me leva a crer que seja no esporte onde ele
desconta tudo que sente e não pode externar.
Encaro o relógio na parede e vejo que já está quase na hora da
abertura do jogo. Me levanto, apoiando a mão na maçaneta da porta do
vestiário, e volto meu olhar para Tyler.
— Seja lá qual for a merda que aquele cara fale, não dê ouvidos. E
não estou pedindo isso como seu amigo, estou ordenando como seu capitão.

De relance, vejo que o marcador corre acelerado enquanto me


desloco ao centro da quadra, marcando o camisa oito da Princeton, tentando
desarticular a jogada de ataque do time rival. Estamos caminhando para os
segundos finais do primeiro tempo e sinto cada parte do meu corpo pingando
suor.
O placar apresenta uma disparidade de sete pontos entre nós e o time
da casa. Por enquanto, são eles que levam a melhor. Como já imaginávamos,
Princeton está investindo em um jogo mais bruto e ofensivo, enquanto nós
tentamos equilibrar a partida apostando na técnica e no fortalecimento da
defesa, deixando as jogadas ensaiadas para o final numa tentativa de cansá-
los.
Assim que o apito do árbitro encontra meus ouvidos e o fim do tempo
é decretado, corro na direção oposta da quadra, onde Emily já nos espera,
nos estendendo nossas garrafas d’água. Aperto o recipiente sentindo o jato
gelado indo de encontro à minha garganta enquanto respiro de forma
irregular.
Quando todos os jogadores já estão por perto, o treinador Butler nos
reúne em uma roda, mostrando o esquema tático para o segundo tempo. Nas
anotações, a ideia consiste em Tyler e eu sairmos como uma frente de ataque
em que ele me protege do marcador para que eu consiga trocar passes com
Cory, enquanto Elói e Charles marcam o restante do time.
Butler ordena para nós, o time titular, que uma vantagem folgada seja
aberta no placar para que ele possa colocar alguns reservas para jogarem um
pouco, antes de retornar com a formação inicial para finalizar a partida.
Assinto, processando todas as informações e quando o intervalo se
finda, volto para a quadra onde damos início as jogadas com o soar do apito.
Nos minutos iniciais, Cory consegue uma cesta de três pontos e eu,
uma de um ponto, reduzindo nossa distância no placar. O jogo segue intenso
e em um dado momento, enquanto marco Julian, um dos membros do trio do
inferno, vejo que Pharrel chega para marcar Tyler, deixando meu corpo
inteiro em alerta.
Dou alguns passos para o lado a fim de escutar o que eles estão
dizendo enquanto uma jogada se desenrola do outro lado da quadra.
— Quem é a loirinha gostosa gritando seu nome na arquibancada, hein,
Mansen? Sua namorada nova? — Pharrel Maxwell é um excelente filho da
puta.
Meu amigo fica em silêncio e se mantém marcando-o. Agradeço aos
céus por isso, porque se o conheço bem, Megan é um dos assuntos que o
faria perder a cabeça.
— Não vai dizer nada? Posso procurá-la no fim do jogo, então? —
Maxwell tenta outra vez. Vejo a respiração do meu amigo desregular.
— Tyler… — chamo sua atenção de maneira dura.
— Nossa… Chegou quem estava faltando. Veio defender o namorado,
capitão?
De soslaio, vejo a mandíbula de Tyler trincar e suas narinas se dilatam
indicando fúria. Seus olhos coléricos estão fixos em Pharrel. Isso
definitivamente não vai acabar bem.
— Aí, Harris, esqueceram de te avisar que o torneio feminino é em
Harvard hoje ou o que? — Julian fala, rindo, mirando meus tênis.
É preciso um preparo mental absurdo para que eu consiga reprimir o
instinto de acertar um murro na cara dos dois patetas. Não posso perder a
cabeça, tenho que dar o exemplo.
— Tyler! — chamo sua atenção segundos antes de Elói lançar a bola
em sua direção. Por sorte, os reflexos dele estão em dia e, em segundos, ele
desvia da marcação de Pharrel.
Me livro de Julian e corro junto de Tyler, trocando passes até a linha
dos dois pontos onde ele garante uma cesta perfeita. Precisamos de mais um
ponto para empatar.
O jogo corre pelos minutos seguintes com a quadra incendiada, a
torcida grita sem parar e enquanto cumpro alguns minutos de substituição no
banco, após conquistarmos a vantagem que nos foi pedida, Butler me passa
as instruções para uma jogada que garantirá uma cesta de três pontos, se feita
corretamente.
De volta a quadra, tenho exatamente um minuto até o final da partida.
Elói cobra um arremesso livre e logo em seguida a partida reinicia com o
marcador correndo a todo vapor.
Sinto meu coração pulsando feito louco quando faço sinal para que
nosso trunfo de fim de jogo se inicie. A jogada começa com uma troca de
passes entre Charles e Tyler, meu amigo dispara feito um foguete e
arremessa a bola para Cory. Elói, por sua vez, o ajuda a driblar a marcação
enquanto os dois jogadores que iniciaram o movimento se deslocam até meus
marcadores, deixando o espaço livre para mim. Recebo o passe do francês
e, com destreza, arremesso a bola na direção da cesta, onde ela dá duas
voltas completas no aro antes de entrar.
No mesmo instante, o árbitro apita e vejo o marcador zerar.
Fim de jogo.
Eufórico, corro em direção à área onde está a singela torcida da Irving
e varro-la com o olhar até encontrar a garota de cabelos cacheados e vestido
azul bebê.
Amelie está abraçada em Megan e parece ter se deixado levar pelo
clima competitivo, porque as duas estão pulando e gritando provocações
para a torcida adversária. Quando estou bem perto da mureta da
arquibancada, nossos olhares, enfim, se cruzam.
Puxo um dos tênis do pé levando-o até a orelha como se fosse um
telefone e aponto em sua direção. Ela faz um gesto que simula um telefone
com as mãos e leva até o ouvido. Encaro-a sorrindo, sibilando “foi pra
você”.
Vejo quando ela assente, satisfeita, e segura as pontas do vestido
rodado, abaixando o tronco como em uma reverência.
Dou risada, porque ela vive me provocando por andar pela faculdade
como um maldito rei, e agora, ela mesma compactua com essa imagem. Não
tenho muito tempo para analisá-la em seu visual de “Rainha da Irving'',
porque logo em seguida sou esmagado pelo abraço dos meus colegas de time
que comemoram a vitória loucamente.
Estar nas quadras é foda pra caralho. Nunca vou me cansar disso.
“Bem, eu sou muito como você
Quando você está numa encruzilhada
Não sabe qual caminho escolher
Deixe-me ir junto
Porque mesmo se você estiver errado
Estarei com você
Não deixarei ninguém te machucar”
I’LL STAND BY YOU | The Pretenders

04 de Agosto de 2021

Duas horas e meia depois, quando chegamos ao Grove’s, um atendente


simpático me encaminha, junto do restante do time e nossos amigos, para a
enorme mesa que reservamos nos fundos do bar.
Me acomodo no lado do sofá sendo seguido por Megan, Tyler,
Anthony, Cory, Ryan e Collin. Do outro lado da mesa, Amelie se senta de
frente pra mim, e ao lado dela se sentam Charles, Justin, Troian e Melissa,
namorada do Troian.
Ryan foi o que menos pontuou, portanto, é dele a responsabilidade de
pedir a primeira rodada de cerveja. Quando as canecas cheias estão
dispostas diante de nós, Charles se levanta para propor mais um de seus
brindes inusitados.
— À nossa vitória, e ao fato de que temos uma nova companheira de
bar, que inclusive, eu jamais imaginei ter sentada conosco nessa mesa. Seja
bem vinda, Garota do Café — completa, erguendo a caneca na direção de
Amelie, que sorri, brindando com ele.
Dou risada do momento, porque tenho quase certeza de que Charles
vai chamá-la assim para sempre e talvez Amelie fique um tanto puta com
isso. Nos levantamos e então todos unimos nossas canecas no alto em um
brinde conjunto.
Viro um longo gole, sentindo o líquido gélido deslizando por minha
boca. O gosto da cevada misturada ao álcool faz com que uma onda de
felicidade se alastre por meu corpo, levando meus olhos a se revirarem num
impulso natural mediante o prazer que se aloja em meu cérebro.
Porra, eu amo tanto isso.
Um tempo depois, Cory levanta dizendo que vai ao fumódromo do
bar. Ele questiona se alguém vai acompanhá-lo e apenas Justin o segue.
Identifico pela carteira metálica em suas mãos que se trata de um baseado de
maconha.
Amelie parece ter a mesma percepção que eu, porque assim que os
caras se afastam, ela quebra o silêncio, apontando os olhos de águia em
minha direção.
— Vocês não passam por exames antidoping antes dos campeonatos,
não? — questiona com um vinco formado entre a testa.
— Passamos — respondo. Sua pele se enruga ainda mais.
— Você é o capitão, impedir que seus jogadores fumem maconha
durante as competições não é tipo que um dever moral? E se eles forem
pegos no teste?
Ela parece me achar um irresponsável pela forma com que me encara.
— Eu sou o capitão, não a mãe deles. Mas se quer saber, eles não vão
ser pegos.
— Como tem tanta certeza?
— Acredite, gata. Eles não vão ser pegos. — A resposta vem de
Charles. — Estamos jogando o torneio interno da Liga Ivy, fizemos um teste
no início do torneio e faremos um no final, a faculdade faz um teste próprio
exatamente no meio desses. O THC, quando utilizado esporadicamente, leva
uns quinze dias até não ficar mais visível no teste de urina. A janela entre
todas essas datas são os dias que ficamos livres. Coincidentemente, hoje é
um desses dias.
Sufoco uma risada estrangulada, totalmente maravilhado pela forma
com que ele explica cada detalhe do esquema que encontraram para burlar
os testes como se estivesse dando uma aula de história. Amelie, por outro
lado, parece surpresa com o quão longe universitários podem ir atrás de
meios para se drogarem, tudo nessa cena é extremamente cômico.
— E você sabe disso tudo por quê? — questiona ainda incrédula.
— Porque ele fumava uns baseados até a temporada passada —
respondo.
— É, mas eu parei, juro — ele diz por fim.
Ela apenas assente, sem se prolongar no assunto, então pego o
telefone no bolso a tempo de lhe mandar uma mensagem.
@ethanharris: pergunta por que ele parou de fumar
Amelie ergue o olhar até mim, confusa, antes de voltar sua atenção
para o telefone.
@ameliecastillo: tem um motivo especial?
@ethanharris: tem, pergunta aí.
— Brooks, tenho uma pergunta — anuncia séria.
— Pode mandar, Garota do Café.
Como previsto por mim, Amelie revira os olhos quando Brooks
insiste no apelido.
— Por qual motivo você deixou de fumar?
Charles grunhe, resignado, e toma um longo gole de cerveja.
— Rolou um lance no final temporada passada, num fim de semana, eu
saí com os caras e acabei passando um pouco dos limites — Ele faz uma
pausa para lançar uma bola de guardanapo no meu rosto quando percebe que
já estou rindo. — Quando cheguei em casa, eu já estava pra lá de chapado,
fui assistir TV, que por algum motivo estava mutada, e entrei em pânico
achando que eu não podia mais ouvir. Liguei para o Elói desesperado, e nem
por um segundo, o fato de eu conseguir ouvi-lo pelo telefone, tirou de mim a
ideia de que eu não estava mais escutando.
Meu riso se intensifica e se mistura às gargalhadas altas do restante
da mesa. Amelie está com o rosto vermelho e algumas lágrimas escorrem de
seus olhos enquanto ela tenta controlar a crise de risos.
— Depois disso, achei melhor dar um tempo na erva, mas um dia,
quem sabe…
No decorrer da noite, Amelie acaba se entrosando com a galera de
maneira completamente natural, não aparenta estar desconfortável, e porra,
os caras do time amam ela. De alguma forma, a maneira com que tudo flui
faz com que eu sinta que ela sempre pertenceu a esse grupo.
Mesmo com nossas diferenças, não posso deixar de ficar feliz ao
perceber como Tyler e Megan parecem satisfeitos com isso.

— O que vamos fazer amanhã? — A pergunta vem de Charles.


Estamos somente ele, eu e Elói na mesa. Os outros se dissiparam pelo
bar. A essa altura já mudei de lugar umas cinco vezes para poder encontrar
uma posição confortável para meus músculos doloridos.
— Seja lá o que for, eu não posso amanhã — Elói diz enquanto tecla
no celular.
— Vai sair com alguma garota? — pergunto curioso.
— Vou com a Bevs no cinema, saiu um filme novo da Disney que ela tá
doida pra ver.
— Cara, essa garota tá acabando com a sua fama de comedor —
Charles fala, rindo.
Beverly Evans Ford é a melhor amiga de Elói e uma das poucas
pessoas na face da terra, junto de mim e de Brooks, com quem Elói não é a
porra da rocha impenetrável que ele sempre aparenta ser.
A garota é um doce de pessoa e também é meio estourada às vezes,
mas é uma das pessoas mais gentis que já conheci. Além de ser bonita pra
cacete. Eu e Charles apostamos uma grana alta que até a volta de Elói para a
França, eles vão chutar o balde da amizade e se pegar.
— Vou te comprar uma coleira escrito “Beverly” com lantejoulas —
falo, rindo, enquanto o garçom coloca três canecas cheias na nossa frente,
substituindo as vazias.
— Disse o cara de quase dois metros que tá sendo domesticado por
uma garota de um metro e meio — ele retruca, e eu o encaro confuso.
Entretanto, não tenho tempo de questioná-lo porque sinto duas mãos
pequenas pousando sobre meus ombros. — Falando nela...
Tombo a cabeça para trás, completamente curioso, e vejo uma
Amelie já alterada pelo álcool.
— O que foi? — pergunto encarando-a de baixo.
— Quero outra cerveja. Chegou a hora em que você me dá aquela que
me prometeu. Me empresta a sua comanda?
Levo a mão em direção ao cartão que está debaixo do meu celular,
entretanto desvio para a caneca cheia que está na minha frente e a ergo em
sua direção.
— Ainda não bebi, pode pegar.
Levada completamente pela euforia alcóolica, Amelie agarra a
caneca, sorrindo, e dá um gole demorado.
— Obrigada, querido — Um sorriso bêbado se forma em seu
semblante, e suas pupilas dilatadas brilham encarando a caneca.
— Por nada, querida. — Lhe lanço um olhar sugestivo, deixando claro
que estou a provocando pelo adjetivo carinhoso, e ela revira os olhos.
— Ei, sabia que você não fica tão feio nesse ângulo? — questiona, me
encarando de cima.
— Eu não fico feio em ângulo nenhum, Coelhinha. Mas debaixo de
você… Realmente deve ser uma visão interessante.
Não consigo conter o sorriso malicioso e ela não disfarça sua careta
enojada.
— Você, Harris, é um babaca.
— E você, Castillo, está com um bigodinho de cerveja. — Aponto
para a espuma acumulada acima dos seus lábios.
Ela solta um grunhido irritado e seus fios cacheados batem contra o ar
quando se vira para voltar para a pista de dança. Quando Amelie, enfim, se
afasta, volto meu olhar para Charles e Elói, que prendem o riso enquanto me
fitam.
— Acho que quem vai precisar de coleira, definitivamente, não sou eu,
mon chéri[6].
Rolo os olhos e lhe estendo o dedo médio. Francês do caralho.

Já é quase meia noite quando checo o relógio em meu pulso. In My


Feelings, de Drake, começa a reverberar pelo bar, fazendo com que todos
nós abandonemos as cadeiras e nos rendamos ao ritmo envolvente da
música, invadindo de vez a pista de dança.
O álcool, a essa altura, transforma até mesmo eu, que não levo muito
jeito para o ato, em um pé de valsa de primeira. Canto o refrão abraçado em
Charles enquanto balançamos o corpo de um lado para o outro, balançando a
cabeça para cima e para baixo feito dois patetas.
Tyler, Megan, Elói e Amelie performam em sincronia uma coreografia
improvisada enquanto gargalham sem parar. Quando a música atinge a parte
que conta com batidas repetidas, todo o nosso grupo ergue os braços para
acompanhar o estalo com palmas ritmadas.
Noto que a nossa animação acaba contagiando os demais
frequentadores do bar que, pouco a pouco, se juntam a nós na pista de dança
improvisada ao centro do estabelecimento.
Ao longe, escuto a sineta que anuncia a entrada dos clientes soar, em
seguida um murmúrio se funde ao som que escapa dos alto falantes,
chamando minha atenção. Corro o olhar pelas figuras corpulentas que
adentram o ambiente, reconhecendo, logo de cara, que se trata dos caras do
time de hóquei no gelo da Irving.
Parecendo notar meu desvio de atenção, Amelie se aproxima de mim
com a curiosidade estampada no rosto, como quem pergunta o que está
havendo. Aponto na direção da porta com um meneio de cabeça, e
acompanho o exato momento em que sua expressão descontraída vai pelos
ares.
O olhar que, segundos antes, brilhava pela alegria alcoólica, se torna
amedrontado e todo o seu corpo parece retesar como se suas pernas
estivessem criando raízes no chão. Demora pouco mais de um minuto até que
ela dê dois passos para trás. Quando sigo novamente seu olhar, encontro
Daniel Clifford perscrutando o ambiente como quem faz uma varredura.
Em poucos segundos, a luz em minha cabeça se acende, lembrando-me
de que os dois namoraram no passado, e pela postura de ojeriza tomada por
Amelie, entendo que o relacionamento não terminou tão bem como o restante
do campus ficou sabendo.
Amelie se mantém estática. Seus olhos nervosos pulam entre os quatro
cantos do bar como quem busca uma fuga, no mesmo instante, percebo o
olhar de Daniel se aproximando dela. Por instinto, me ponho em sua frente
como uma muralha.
Meus quase dois metros em contrapartida com os um e sessenta e
pouco da garota são o suficiente para que ela passe despercebida pelo olhar
investigador do cara.
Sobre o ombro, vejo quando ela caminha apressada até nossa mesa.
Sigo-a sem pensar duas vezes. Enquanto marcho em sua direção, meu corpo
inteiro entra em alerta, porque se a situação foi tão danosa quanto o
embrulho em meu estômago diante de suas expressões me garante que foi, já
estou me preparando para uma confusão.
— Onde você vai? — questiono quando me aproximo e vejo-a
vasculhando a própria bolsa.
— Para casa. — A voz sempre tão firme, desliza para fora de seus
lábios de maneira falhada.
— Por quê?
Ela, enfim, ergue o rosto para me encarar.
— Já deu a minha hora, quero ir embora.
— Você e Megan não vieram juntas? — questiono, lembrando de uma
breve menção sobre elas terem ido de carro para Princeton.
— Deixamos o carro dela no campus na volta e viemos de Uber —
explica. — Ela está se divertindo, e de qualquer forma, provavelmente irá
dormir no apartamento de vocês. Vou nessa. — Estico o braço na altura de
sua cintura, impedindo-a de seguir, e ela solta um resmungo.
— Isso é por causa do Clifford? Porque se for, pode ficar tranquila
que nada vai acontecer com você, ele não é nem doido de se meter com a
galera do basquete. Os caras do time não suportam ele. Você não tem que
deixar de se divertir por causa dele, Amelie, ninguém aqui vai deixar algo
acontecer com você.
É verdade. Elói, por exemplo, é louco para dar umas porradas em
Daniel, algo sobre ele e uns amigos terem feito comentários nem um pouco
amigáveis sobre uma amiga de Beverly que teve fotos íntimas vazadas na
internet. O cara é, literalmente, conhecido por ser um babaca na Irving.
— É por causa dele, também, e ao mesmo tempo é por mim, não quero
ficar aqui sentindo medo. E de qualquer forma, meu clima acabou. Quero ir
para casa, pode me soltar? — Ela está impaciente, seus olhos grandes me
encaram de baixo.
Retiro o braço de sua cintura. Entretanto, me ponho diante dela, não
permitindo sua passagem, o que lhe arranca uma bufada afoita.
— Como você vai embora? — Fixo os olhos nos seus e vejo suas
pupilas dilatadas. Ela ainda está bêbada.
— Vou pedir um carro por aplicativo, achei que estivesse claro.
— Eu vou com você, então — decreto.
— Por quê? — O cenho franzido e o chiado incrédulo se fazem
presentes.
— Você está bêbada, seu ex babaca está observando a movimentação
do bar feito um gavião, e como você disse, Tyler e Megan estão se
divertindo. Então, como seu “inimigo em trégua”, que não quer te ver em
apuros, nem fodendo vou deixar você entrar em um Uber sozinha. Da
próxima vez que quiser arriscar sua vida, não me deixe perceber, porque eu
não vou ficar com essa culpa nas costas — digo, pausadamente, para que ela
assimile.
Seus braços estão cruzados na frente do peito e ela me encara
irritadiça, parece irredutível. Ela fica engraçada quando está brava.
— Você não vai comigo, eu sei me virar sozinha! — esbraveja.
— Sei que você sabe, mas eu vou te acompanhar.
— Não vai.
— Vou sim.
— Ethan, você não vai. — Seu indicador afunda em meu peito
enquanto ela fala, e por um momento, sinto vontade de dar risada pela
diferença de altura entre nós.
— Você escolhe, ou eu vou com você, te deixo em casa em segurança e
encerramos esse assunto, ou eu chamo Tyler e Megan, e vamos todos embora
— estipulo de maneira impassível, retirando sua mão do meu peito com
delicadeza.
Noto quando seus olhos escorregam para nossos amigos dançando
juntos a alguns metros. Ela parece ponderar por alguns segundos, então seus
braços se descruzam pendendo ao lado do corpo.
— Tá legal. Vamos embora logo. — Se rende.
Assinto e ela toma a frente, caminhando apressada, a sigo feito um
cão de guarda no trajeto até o caixa, mantendo o olhar atento enquanto
pagamos nossas comandas. No instante em que digito a senha do meu cartão,
Amelie pede nosso carro, que chega assim que terminamos.
Caminho logo atrás dela, espalmando a mão em sua coluna para
sustentar seus passos desconexos devido ao estado de embriaguez, vejo
quando Mark Delarue, goleiro e capitão do time de hóquei, está saindo do
banheiro que é colado à saída. Amelie lhe oferece um tchauzinho com a
palma da mão e ele retribui. Suponho que se conheçam da época em que ela
estava com Daniel, e curiosamente, ela parece não temê-lo.
Aceno com a cabeça na direção do cara quando seu olhar se volta para
mim, ele me cumprimenta da mesma forma, mas seus olhos se demoram no
ponto onde minha mão toca Amelie.
Quando, enfim, estamos do lado de fora, o Civic branco já nos espera
rente a calçada. Confiro a placa antes de entrar, e me sento junto de Amelie
no banco de trás, ela em um canto da janela e eu, no outro.
Quando o motorista dá a partida, pego meu celular no bolso e envio
uma mensagem para Tyler.
Eu: te vejo em casa, já dei o fora do bar
Eu: levando a coelhinha pra casa
Tyler: ok, tá tudo bem com ela?
Eu: sim, vim por segurança
Tyler: boa, beleza então, te vejo em casa, tentem não se matar
Dou risada da mensagem e respondo com o emoji do par de olhos.
Amelie permanece acordada e calada o trajeto inteiro. Passo boa
parte do caminho assistindo a garota enrolando o tecido fino do vestido entre
os dedos.
Depois da meia noite, os carros de serviços de aplicativo não são
autorizados a circularem pelo campus, portanto, assim que o motorista
estaciona na frente da cancela de entrada, estendo uma nota de dez dólares
em sua direção sob o olhar reprovador da garota ao meu lado e salto para
fora do carro junto com ela.
— Eu sei o caminho para a Chisholm House — protesta quando me
ponho a caminhar junto dela.
— É o mínimo, mora lá há três anos — retruco, sem paciência para
sua pirraça de bêbada.
— Não precisa ir comigo, Ethan.
— Eu sei que não, estou indo porque eu quero.
— Se acha que vou te convidar para subir e ceder aos seus encantos,
está muito enganado — diz, irritada, e uma risada de escárnio me escapa.
— Não quero que caia em encanto nenhum, não vim até aqui para te
levar pra cama. E, se possível, nunca mais insinue que eu me aproveitaria de
uma garota bêbada. — O tom áspero da minha fala parece surtir efeito
porque, ao olhar para o lado, vejo que ela engole seco, parecendo notar a
asneira que disse.
— Me desculpa, não quis dizer isso.
— Está desculpada, eu sei que não.
Quando a fachada imponente do alojamento universitário se apresenta
diante de nós. Vou com Amelie até a ponta da escada onde, simultaneamente,
cessamos nossos passos. É a segunda vez que acompanho-a até aqui essa
semana, pensar nisso me faz perceber a reviravolta que nossas vidas
sofreram com o início do relacionamento dos nossos amigos.
Porque, porra, até ontem nós mal conseguíamos ficar no mesmo
ambiente sem discutir, e agora, eu a acompanho como um guarda costas,
convido-a para um jogo e a trago em casa de noite.
Ficamos parados um de frente para o outro por longos segundos.
Examino seu rosto corado pela curta caminhada e pelo efeito da bebida, sua
boca está entreaberta e o ar frio da noite se condensa a cada lufada quente de
sua respiração que escapa entre seus lábios carnudos e avermelhados.
A forma como ela me olha me faz entender que as engrenagens de sua
mente trabalham a todo vapor. O silêncio que nos engloba não me incomoda,
entretanto, sinto a necessidade de quebrá-lo e deixar claras minhas boas
intenções.
Amelie acha que sou um otário, e desconstruir isso tem sido difícil.
— Acho que já cumpri minha missão. — Solto um riso fraco. — Tenha
uma boa noite, e não se esqueça de tomar um comprimido antes de dormir
para não vomitar seu apê inteiro. Megan não vai estar aí para ser sua
enfermeira.
— Não sou seus colegas de time, pare de falar desse jeito —
resmunga.
— De que jeito?
— Como se você se preocupasse comigo. — A sentença sai baixa e
tenho quase certeza de que ela não pretendia dizer isso em voz alta.
Solto um grunhido agoniado passando a mão entre os meus fios de
cabelo.
Que garota teimosa!
— Acredite, meu nível de preocupação com você é pior do que com
meus colegas de time. É a pessoa mais importante da vida da pessoa mais
importante da vida do meu melhor amigo, isso faz com que eu me preocupe
com você muito mais do que com os caras. — Ela parece surpresa, e me
pergunto se já não havia deixado essa informação bem clara quando me
propus a tentar me aproximar dela. Amelie assente, mas ainda vejo o
lampejo de desconfiança em seu olhar. — Além do mais, preciso de você
inteira para ter a quem perturbar.
Ela revira os olhos quase de maneira automática.
— Odeio você — murmura.
— Sei bem disso — retruco, rindo.
— Boa noite, Ethan. — É sua deixa para se virar e começar a subir a
escadaria.
— Boa noite, Coelhinha. — Respondo baixo porque ela ainda
consegue me ouvir.
Assisto-a subindo degrau por degrau. Penso que entrará direto
quando suas mãos pousam na alavanca que abre a porta, entretanto, ela me
dá uma última encarada.
— Não sou o babaca que você imagina, vai descobrir isso se
realmente tentar permitir que eu me aproxime — falo alto o suficiente para
que ela escute e baixo o suficiente para não incomodar o sono de ninguém.
— Vou pensar se quero pagar para ver, Harris — responde com um
sorriso debochado sombreando os lábios.
Amelie Castillo é incorrigivelmente orgulhosa.
Sinto que estamos nos aproximando de um novo campo minado.
“Você já passou, você não precisa de aprovação
Boa em qualquer lugar,
não se preocupe com nenhuma recusa”
INTENTIONS | Justin Bieber

07 de Agosto de 2021

A hora do almoço na faculdade é, com certeza, o momento que mais


me incomoda na face da terra. Odeio o refeitório barulhento, odeio ficar
rodando em busca de uma mesa, enfim, detesto pra cacete toda a dinâmica
que envolve esse evento.
Abro pelo celular o plano alimentar montado pelo nutricionista do
time para saber quais opções tenho à minha disposição e quais devo passar
longe. Aguardo minha vez no balcão e encaro o menu do dia. Na parte
destinada aos membros das associações atléticas há três opções diferentes e
acabo escolhendo peito de frango grelhado com salada de espinafre, agrião,
cenoura, abacate e nozes. Para beber, me sinto o cara mais chato da face da
terra, porque peço uma garrafa de água.
Eu mataria por uma coca-cola geladinha.
A atendente do refeitório organiza meu pedido em uma bandeja com
rapidez, espera até que eu passe minha carteirinha no leitor e digite a senha
do meu cartão, e então me entrega meu almoço. Saio da fila varrendo o
refeitório com os olhos e, ao longe, avisto uma mesa vazia. Caminho até ela
em passos rápidos, contando os segundos para poder estar dentro da
biblioteca.
No exato instante em que me sento na cadeira e apoio a bandeja sobre
o tampo da mesa, vejo, por entre o amontoado de alunos no local, Amelie
entrando no refeitório.
Isso definitivamente não seria uma novidade, afinal, estudamos no
mesmo prédio e, consequentemente, usamos o mesmo refeitório. O que
realmente chama minha atenção é o fato de que ela está acompanhada.
Mesmo que de longe, consigo ver quando ela dá risada de algo dito por
Adam Maddox, aluno de literatura da Irving.
A cena é um lembrete enjoado do fato de que jamais a vi sorrir
verdadeiramente em função de algo dito por mim. Por algum motivo que
ainda desconheço, isso me traz um certo desconforto, porque, honestamente,
tenho me esforçado bastante para ser uma companhia agradável quando estou
na sua presença.
Noto quando eles param na fila extensa e ela desvia a atenção para o
celular. De imediato, pesco o meu do bolso e abro nossa conversa no
Instagram.
@ethanharris: Maddox? Sério? Que dedo podre, Coelhinha!
Envio sem refletir muito sobre o quanto ela vai me xingar e subo o
olhar a tempo de vê-la observando ao redor em busca de mim. Me encolho
na cadeira e torno a observá-la.
@ameliecastillo: Me stalkeando na vida real, Sr. Capitão
Tricampeão?
@ameliecastillo: Não acho que seja muito da sua conta os caras
com quem eu saio.
Solto uma risada contida antes de voltar a digitar. Ela não faz ideia.
@ethanharris: Virou da minha conta quando seu ex psicótico nos
viu indo embora daquele bar e infernizou os caras querendo saber se a
gente tá saindo.
@ameliecastillo: Isso é sério?????????
@ethanharris: Pra caralho. O que rolou entre vocês, hein?
Não voltei para o bar naquela noite, e tampouco fui para casa. Quando
estava prestes a pedir um carro, Ava me enviou uma mensagem me chamando
para ir para o apartamento dela que, por acaso, é perto do campus. Fui,
passei a noite lá, e quando acordei sob os lençóis da garota, meu celular
estava recheado de mensagens inquisidoras dos meus companheiros de time.
Eu não faço ideia do que Daniel Clifford fez para Amelie, mas a forma
com que o desespero nublou seus olhos naquela noite é o suficiente para que
eu não esteja nem um pouco a fim de lidar com o cara, porque sei que posso
perder a cabeça. Tenho asco de gente como ele.
@ameliecastillo: O que os meninos disseram para ele?
@ethanharris: Algo do tipo “fique longe dela e não queira comprar
briga com a gente”. É sério, Coelhinha, todo mundo sabe que Clifford é
um babaca.
Escondo dela o fato de que procurei Delarue, amigo de Daniel, e o fiz
passar o recado de que, caso eu saiba que ele ao menos tentou chegar perto
de Amelie, eu pessoalmente vou resolver essa merda. Porque, sinceramente,
não acho que venha ao caso.
O importante é que ela se sinta segura para estar onde quiser e se
divertir com os seus amigos, como toda garota deve se sentir.
@ameliecastillo: Obrigada por isso…
@ethanharris: Somos um time, é o que fazemos, nos protegemos.
Você também faz parte disso.
@ameliecastillo: Obrigada, mesmo :)
Subo o olhar para checar seu rosto. Ela encara o celular com um
semblante irritado e noto quando, discretamente, passa a palma da mão na
lateral dos olhos como se estivesse enxugando uma lágrima. Esse assunto,
aparentemente, a deixa nervosa, então me arrependo imediatamente de ter
aberto a boca.
Se tem algo que aprendi na pouca convivência com Amelie Castillo é
que ela não gosta de parecer frágil, tem dificuldade em receber ajuda e
definitivamente detesta que se metam na sua vida.
Adam está ao seu lado falando feito uma maritaca e não parece notar o
abalo em sua postura. De súbito, sinto vontade de ir até lá e mandá-lo calar a
boca. O mínimo que ele deveria perceber é que ela não está bem, consolá-la
ou pelo menos acalmá-la.
Porra, quando foi que as pessoas se tornaram tão desatenciosas?
Uma voz em minha mente me diz que não é da minha conta — aquela
voz já calejada pelas feridas constantes, aquele lembrete enorme que está
sempre garantindo que eu não me envolva com as pessoas com tanta
profundidade.
Então, por isso, faço o melhor que posso para me concentrar em meu
almoço.
“Até mesmo o melhor falha algumas vezes
Até mesmo as palavras erradas parecem rimar
Fora da dúvida que enche minha mente
De alguma maneira eu acho que você e eu colidimos”
COLLIDE | Howie Day

07 de Agosto de 2021

Daniel Clifford é a personificação completa de tudo que mais


abomino.
O embrulho em meu estômago é forte e queima feito lava em minhas
entranhas enquanto releio, pela terceira vez, as mensagens que troquei com
Ethan. Adam está ao meu lado falando uma série de trivialidades sobre o
quão bem ele está se sentindo depois de ter começado uma reeducação
alimentar. Mal parece notar que não estou prestando atenção em nada, e
tampouco percebe minha mudança de humor repentina.
Sinto vontade de soltar um grito apenas para que me deixe quieta.
Para falar a verdade, sinto vontade de acertar um soco em qualquer
coisa. Sempre busquei me afastar de tudo que me despertasse raiva, porque,
definitivamente, não fui programada para sentí-la. Não sei dosar a
intensidade, não sei sentir pouco, é tudo muito, tudo intenso, tudo brutal.
— Preciso ir, perdi a fome. Te encontro mais tarde. — É o que
consigo sentenciar para Adam antes de, sem titubear, rumar para fora do
refeitório em direção ao jardim do campus.
Enquanto minhas pernas apressadas me guiam, consigo ouvir sua voz
me chamando, entretanto, ao invés de cessar os passos, acelero. Caminho em
passadas firmes escrutinando todas as mesas dispostas pela parte externa do
refeitório em busca da tão conhecida mesa do time de hóquei.
Mediante a ousadia do meu ex-namorado, nem ao menos tento refrear o
sentimento odioso que cresce em meu peito. Sem protelar, me permito ser
engolida por uma raiva descontrolada que arde como fogo em mim.
Sinto todo o meu corpo tremer enquanto esse sentimento devastador se
expande por meu organismo como um veneno, tomando minhas veias e
obstruindo minhas vias respiratórias, tornando o ato de respirar um esforço
notável.
Meu olhar minucioso, enfim, encontra o que procura e, de forma quase
automática, avanço naquela direção. Ele está de costas, mas toda a sua
estatura repugnante é inconfundível aos meus olhos. Vejo a curiosidade
estampada no rosto dos outros garotos sentados à mesa junto com ele, mas
mediante minha expressão colérica, nenhum deles parece se atrever a alertá-
lo sobre minha aproximação.
— Quero falar com você, agora! — digo, puxando-o pela parte de trás
da gola da camiseta para que se levante.
Daniel ergue o corpo num sobressalto, e quando se vira, seus olhos
azuis cinzentos se arregalam em assombro. A expressão mortificada e
surpresa é um reflexo do fato de que essa é a primeira vez em muito tempo
que nós nos falamos.
E eu daria tudo para que não estivesse acontecendo.
— O que você quer? — A voz grossa esbanja frieza.
Alterno o olhar entre ele e os jogadores na mesa. Mark Delarue me
encara com o nervosismo exalando dos poros. Faço um sinal com a cabeça
para que eles se dispersem, e realmente temo a expressão que estou
aparentando, porque no mesmo instante os seis jogadores de hóquei
gigantescos me obedecem sem pestanejar.
Em momento algum deixo de fuzilar Daniel com os olhos, e quando
enfim estamos à sós, sou objetiva.
— Quando terminamos, ou melhor, quando eu terminei com você, eu
fui bem clara ao dizer, com todas as letras, para que ficasse longe de mim, e
para que me deixasse em paz! — As palavras exaltadas fluem para fora
como um sopro. — Por todo esse tempo eu fiquei quieta, eu não me defendi
da historinha ridícula que espalhou por aí. Eu deixei que todo mundo na
porra dessa universidade acreditasse na síndrome de namorada ciumenta que
você criou para encobrir a merda que você fez, mas eu estou farta desse
inferno, estou farta de você, e farta de me sentir acuada!
Aponto o dedo na direção do seu rosto e preciso de uma dose extra de
autocontrole para não sair da minha razão.
— Amy…
— Amy é o caralho! Para você, é Amelie Castillo! Eu não faço a
menor ideia do porquê foi perguntar sobre mim para os meus amigos. Não
me interessa se eu quebrei seja lá qual a porra do ciclo vicioso que você
gosta de envolver as garotas, mas isso acaba agora! — Vocifero, sentindo
minhas cordas vocais queimando. Daniel me encara, nervoso, com as orbes
quase saltando para fora. — A minha vida não te diz respeito, com quem eu
saio não te diz respeito. Não quero que você pergunte sobre mim, fale sobre
mim, ou comigo. E isso é a porra do meu último aviso. Estou de saco cheio
das suas merdas, Daniel Clifford.
— Preste atenção na forma com que você fala comigo! — Ele devolve,
irritado. — Não se esqueça que a verdade sobre o nosso término é bem mais
vergonhosa para você.
A risada amarga vibra em minha garganta mediante a ameaça. A essa
altura do campeonato, eu quero mais é que tudo exploda.
— Preste atenção, você, seu filho da puta, na forma com que fala
comigo. Se quer saber, eu iria amar que a faculdade inteira desse risada da
minha cara por ter sido traída e enganada, pelo menos eles saberão o grande
ordinário que você é, seu nojento desgraçado. — O tom enojado se
incorpora em minha fala naturalmente. Daniel me encara de queixo erguido,
sem a mínima culpa. — O aviso foi dado, não chegue perto de mim, não
procure saber sobre mim, ou eu juro que não vou descansar até que você seja
crucificado pelos corredores desse lugar.
A risada agora escapa de sua boca, é debochada e venenosa.
— E você pretende fazer o que, hein?
— Não queira descobrir. Sei sujeiras demais a seu respeito, e não
duvide da minha capacidade de me proteger — ameaço antes de dar as
costas para ele. — Espero que você arda no inferno.
Caminho tão rápido para longe dele que temo que pareça que estou
fugindo. Existem pessoas que deixam cicatrizes tão profundas em nossas
vidas que somente recuar e deixar nas mãos do tempo não é o suficiente para
reconstruí-las.
É preciso, antes de tudo, afundar o dedo com força naquela ferida
inflamada, assisti-la começar a jorrar novamente, para que se expurgue de
vez todo e qualquer vestígio de contaminação, para que enfim possa se
colocar um ponto final nela.
Estou na fase de assisti-la externar-se.
Lembro-me como se fosse ontem do dia em que descobri tudo. É como
sentir uma adaga fria atravessando meu peito mais uma vez.
Eu sempre fui alguém que necessitou de aprovação, seja dos meus
pais, dos meus amigos e das pessoas ao meu redor em geral. Na época da
escola, apesar de ser alguém sociável, cheia de amigos e, claramente, uma
aluna multi-talentosa, eu nunca fui nem de longe a primeira opção dos
garotos quando o assunto era beijos.
Eu não fui uma adolescente feia, não tenho problemas em ver minhas
fotos do ensino médio, por exemplo. E tirando o fato de eu ser a única
menina afro-latino-americana da minha turma, nada me colocava em uma
posição diferente das outras meninas.
Eu era tão inteligente quanto elas, tão rica quanto elas, tão
comunicativa quanto elas, tinha sempre as melhores indicações de séries,
músicas, filmes, e ainda assim, eu nunca fui vista como o tipo de garota que
os meninos queriam convidar para sair.
Isso me machucava. Por mais fútil que pareça, doía feito o inferno
sentir que em âmbito nenhum da minha vida eu era escolhida. Conforme fui
crescendo, amadurecendo e estudando, entendi com clareza como, de forma
enraizada, o racismo se fez presente no meu cotidiano. É uma espécie de
solidão que só se conhece vivendo.
Entendi sentindo na pele como o dinheiro não basta, porque mesmo
tendo uma das famílias mais ricas daquela escola, eu nunca estive nem perto
de ser igual aos outros.
Quando cheguei na faculdade, as marcas dessa rejeição ainda estavam
vivas em mim, afetando minha autoestima e me tornando uma presa fácil para
caras como Daniel. Eu queria me sentir bem comigo mesma e queria sentir
que era desejada. Foi seguindo essa linha que ele me teve nas mãos boa
parte do primeiro ano.
Conheci Daniel em uma tarde ensolarada no campus em que eu estava
deitada no gramado, com a cabeça sobre a minha antiga mochila e os olhos
concentrados nas linhas do exemplar de capa dura do Diário de Anne Frank.
Ele se sentou ao meu lado, falou algumas coisas engraçadas e elogiou meu
sorriso na primeira oportunidade. Lembro-me de ter ficado envergonhada,
mas ainda assim, fechei o livro e me abri para conversar com ele.
Conselho de ouro: jamais troque um bom livro por um sorriso com
covinhas. Caras eventualmente se tornam pesadelos, mas os livros… Esses
sempre te possibilitam sonhar.
Naquele mesmo dia, ele me convidou para uma festa na casa de um de
seus amigos. Nós bebemos, jogamos “Sete Minutos no Céu” e por uma ironia
do destino, fomos parar juntos dentro da dispensa. Enquanto eu o beijava,
não fazia ideia de que aquela brincadeira inocente seria o começo de um
pesadelo.
Passamos a nos encontrar com frequência. Ele sempre me dizia o
quanto eu era bonita, sem parar, e eu acreditava fielmente, porque a forma
com que ele me olhava parecia ser genuína. Pouco tempo se passou até que o
namoro se tornasse a rotulação do nosso lance, o que, inclusive, descobri
tempos depois ser um rótulo desconhecido por muitas pessoas.
Ele não me dava a mão em público, não deixava que eu publicasse
fotos nossas, muito menos demonstrava carinho por mim na frente dos outros.
Afeto com plateia era algo praticamente raro na nossa relação. Ele dizia que
era por ser um cara reservado, mais uma mentira. Daniel era exatamente
como os caras do ensino médio — me achava boa entre quatro paredes, e só.
Até hoje não consigo entender o porquê das mentiras. Lances casuais
são algo comum, não era muito melhor do que me prender em um namoro
unilateral?
O tempo foi passando e o comodismo me fez aceitar as mais
esdrúxulas desculpas para falhas graves e injustificáveis. Eu me agarrei a ele
como um bote para me salvar do meu passado e mal percebi o estrago que
estava fazendo no meu presente.
Até o fatídico dia.
Eu, desesperada para provar ao meu cérebro que a desconfiança em
meu peito quanto ao desgaste do meu relacionamento nada tinha a ver com
uma traição, decidi ir atrás de respostas. E como diz o ditado: quem procura,
acha.
Eu tinha acabado de assistir a minha última aula do dia. Daniel me
chamou para darmos uma volta e eu recusei, sob a desculpa de ir com Megan
comprar utensílios de cozinha para nosso alojamento. Ele não insistiu, já que
gostava de passar uma pose de namorado compreensivo, uma fachada para
cobrir seu desinteresse.
Lembro-me de seguir seu carro até a área dos alojamentos. O filho da
puta nem se deu ao trabalho de estacionar longe. Senti meu coração se
quebrar em meu peito quando o vi subindo a escadaria da Chisholm House,
porque ele não estava indo me fazer uma surpresa. Ele sabia que eu estaria
fora.
“Então por que foi até lá?”
Não demorei muito para obter essa resposta, pois o segui pelos
corredores como uma gata sorrateira, e silenciosamente assisti quando ele
entrou em um apartamento no corredor ao lado do meu. Vi de camarote ele
beijar a garota que abriu a porta, e como uma punição por ter sido tão idiota,
sentei na frente da porta e escutei cada segundo da sessão de sexo que eles
tiveram.
Eu ouvi tudo.
Os gemidos, as instruções, o ranger da cama, os suspiros, e como se já
não bastasse, ouvi todos os exatos elogios, que eu tanto amava receber,
sendo ditos para outra pessoa com tamanha facilidade.
Foi como ruir por dentro.
Naquela tarde, com o coração partido e a alma dilacerada, eu juntei
cada peça de roupa dele que encontrei em meu armário, coloquei na minha
mochila e deixei na porta daquele alojamento com uma caixa de papel lotada
de preservativos e uma carta dizendo o quanto eu o repugnava e não queria
vê-lo nunca mais.
Fiquei sabendo que ele passou a noite toda batendo na porta do meu
alojamento para tentar falar comigo. Teria sido uma noite infernal se Megan
não tivesse me enfiado dentro do seu carro e dirigido até a casa de sua mãe
em Providence, onde passamos o final de semana inteiro assistindo
comédias românticas e nos afundando em doces hipercalóricos.
Ainda sinto a raiva ardendo em meu corpo mesmo já estando quase
próxima ao estacionamento. Sou sugada para fora do mar de lembranças
horríveis quando meu corpo colide com um Ethan que me encara
preocupado.
— Tá tudo bem com você? — questiona, segurando o meu braço.
Assinto com a cabeça sem olhar em seus olhos e tento passar por ele,
não obtendo sucesso. Ethan estica o braço para o lado, exatamente como fez
no bar sexta passada, e envolve minha cintura pela lateral, travando minha
passagem.
Quero conseguir dizer que não é um bom momento, mas não sai.
— Olha pra mim, o que aconteceu?
Ergo o queixo em sua direção, me forçando a encarar seus olhos
castanhos que me olham intrigados. Sei que há uma quantidade generosa de
lágrimas acumuladas em meus olhos, e fazer isso na frente dele me incomoda
em níveis que jamais vou saber explicar.
— Eu estou bem, tá legal? Pode só… Me deixar em paz, por favor? —
Suplico, tentando não descontar minha raiva sobre ele, porque sei que Ethan
não tem nada a ver com a minha bagunça.
— Só depois que você me disser o que tá acontecendo. Foi o Maddox?
Ele fez alguma coisa que te estressou? — O tom irritadiço e o aperto firme
em meu corpo alimentam ainda mais a chama raivosa dentro de mim.
— Pelo amor de Deus! Não! Qual o seu problema com Adam? E por
que você não me solta? — Chio, irritada, me desvencilhando de seu toque
com brutalidade.
— O que aconteceu nos últimos vinte minutos que te deixou assim,
Amelie?
Sua pergunta vem simultaneamente ao toque do meu celular. Tiro-o do
bolso, e quando leio o identificador na tela, rejeito de imediato.
— Não aconteceu nada, só estou estressada com algumas coisas. Não
quero descontar isso em você, pode me deixar ir embora, por favor?
— Você está mentindo, e eu só estou tentando ajudar. Se acalma —
pontua e novamente o aparelho em minhas mãos toca estridente. Rejeito a
ligação mais uma vez.
— Se quer me ajudar, me deixe ir embora! — Estou prestes a gritar em
agonia.
— Não antes de me dizer o que tá rolando.
— Não vou dizer porque não é da sua conta, Ethan! Cacete! — O
celular toca uma terceira vez e eu bufo, irritada ao tentar rejeitar a ligação
com as mãos trêmulas. — Mas que inferno esse celular!
— Atende essa droga logo! — Aponta para o aparelho impaciente. —
Qual o problema?
Por algum motivo, sua frase funciona como o estopim, eu explodo.
Como se Ethan riscasse um fósforo e o lançasse em direção a um
container de gasolina, eu explodo num misto sombrio de raiva, decepção,
ódio e amargura. É, literalmente, só o que faltava.
— Eu não quero atender! Simplesmente não quero! Na verdade, não
quero nada desse inferno de dia! Não quero a merda da sua falsa
preocupação, porque eu não sou a porra da sua amiga! Cacete! Eu detesto
você! — Solto uma risada melancólica, mas não paro de falar. Ele quer me
ouvir, ele vai me ouvir. — Não quero meu ex namorado maníaco me
perseguindo, não quero lembrar da merda que ele fez eu me sentir, não quero
sentir medo dele, não quero sair com caras que não se importam comigo, e
principalmente, não quero ir socorrer minha mãe bêbada pela milésima vez
porque eu tô cansada pra caralho disso tudo!
As palavras são cuspidas da minha boca com acidez e pura dor.
Agradeço internamente por estarmos em um lugar afastado, porque tenho a
leve impressão de que estou gritando.
— Eu só quero sumir! — digo, antes de me entregar às lágrimas por
completo.
O semblante sério e irritado de Ethan me escrutina com atenção e se
em algum momento quis que ele abrisse a boca para me retrucar, quando o
faz, eu me arrependo amargamente.
— Sua mãe está precisando de você e você simplesmente está
rejeitando suas ligações? — O tom é baixo, mas julgador, e faz um vinco
raivoso se formar em minha testa. — Isso é sério?
Só pode ser sacanagem.
— Oh, sim, eu quase me esqueci, a mimada pra cacete aqui não tem o
direito de, uma única vez na vida, não sair correndo feito uma louca para ir
buscar a mãe que se entope de álcool por vontade própria, num hospital
qualquer, porque teve um dia difícil. Vai em frente, despeje toda a sua
repulsa por mim por eu ser uma filhinha de papai inútil, manda ver!
Sinto meu corpo tremendo dos pés à cabeça. Entretanto, mantenho o
queixo erguido e os braços abertos como quem diz “estou preparada”.
— Diga o quanto você me detesta por viver uma vida perfeita! Eu sei
o quanto é louco para fazer isso, vamos, Ethan, me dê o seu pior! Eu te
garanto que ele não vai me assustar, porque você pode achar que não, mas eu
consigo te descrever exatamente como é viver no inferno.
Uma risada de escárnio flutua de seus lábios quando ele afunda uma
das mãos nos fios de cabelo.
— A sua mãe está doente! Doente! E eu sei que você não é burra, você
sabe disso! Ela não precisa do seu julgamento, precisa do seu cuidado! É a
sua mãe, porra! — As veias de seu pescoço saltam quando ele vocifera.
— Você não me conhece, Ethan, não conhece a minha família — digo,
devagar, erguendo o indicador em sua direção. — Não tem a menor ideia de
tudo que eu já passei, então não venha pagar de advogado das mães só
porque a sua deve ser incrível. Não é assim que funciona no mundo real.
— Ela era incrível mesmo, principalmente antes de estar morta, sabe?
— Sua voz sai fria e os meus olhos se arregalam.
Puta merda. Não.
— Ethan, eu não…
— Não é a única aqui que guarda segredos. Quer falar de mundo real
justo comigo? Sério? Olha, eu não conheço mesmo a sua família, e nisso
você está certa, mas sabe o que eu conheço, Castillo? — A pergunta é
retórica, seus olhos estão injetados de raiva. — A dor da perda, a sensação
de impotência. Eu conheço o frio do granito de uma lápide como ninguém,
sei o que é ansiar por um colo de mãe, por um abraço acolhedor e
aconchegante. O mais próximo que tenho disso desde os meus quinze anos, é
abraçar a porra de uma pedra gelada de um túmulo!
Seu tom se eleva, e eu sinto um arrepio atravessar minha coluna. Eu
achei que já tinha visto o seu pior, mas definitivamente, o Ethan que me
deixou na rua sozinha não chega aos pés do que está na minha frente. Esse
Ethan… Ele não tem só raiva. Ele é quebrado.
Seus olhos refletem ódio e dor em seu estado puro.
— Então, não, eu não sei nada sobre você ou sobre a sua família, e
acho que nunca vou saber, porque como você bem disse, não somos amigos,
e eu não vou continuar lutando por isso sozinho. — Ele ergue a manga da
camiseta e vira o braço em minha direção para que eu veja a parte interna.
Há a tatuagem de uma assinatura. — Pode continuar sendo a estúpida que
sempre foi comigo, mas não faça isso com a sua mãe, porque no dia que a
coisa mais próxima que tiver dela for uma tatuagem, você pode se
arrepender pra caralho de ser uma orgulhosa imatura. É um conselho de
amigo, mesmo que não me veja como um.
Tento abrir a boca para respondê-lo, mas Ethan me dá as costas e num
segundo, está arrancando com a moto para fora do domínio do campus.
Em meu peito, raiva e culpa se fundem em uma mistura densa e
dolorosa que vai, rapidamente, mortificando cada parte de mim, se
alastrando por todo o meu corpo até que só reste um vazio imenso e
melancólico.
Sou uma filha ruim. Ethan me odeia, Tyler e Megan vão me odiar, e
agora, acho que até eu me odeio um pouco mais.
Sinto como se tivesse alcançado o ápice da dor. E ele é terrível.
“Eu sinto sua falta
mais do que eu pensei que poderia
Eu sinto sua falta
Eu sei que você também sente minha falta, como deveria”
RUIN MY LIFE | Zara Larson

09 de Agosto de 2021

Na terça-feira, eu inventei uma desculpa esfarrapada para mim


mesma e não dei as caras nas aulas. Na quarta-feira, eu ainda estou me
esgueirando pelos cantos do meu apartamento, evitando todo e qualquer
contato com Megan ou qualquer outro ser humano e, como de costume, minha
amiga tem respeitado meu espaço, sem tentar furar a bolha que criei ao meu
redor.
Os sentimentos revoltos injetados em meu peito vão da tristeza mais
profunda até a raiva mais poderosa, passando pela culpa e pela vergonha, se
demorando um pouco mais na última.
Estou em frangalhos.
A montanha russa de emoções e acontecimentos que vivi dois dias
atrás se repete constantemente em minha mente, possuindo o efeito imediato
e doloroso de um soco forte bem na boca do estômago. Revisitar tantos
sentimentos destrutivos e conhecer mais um monte deles, pouco a pouco, tem
um efeito cáustico dentro de mim e sinto que me libertar disso não será uma
tarefa tão fácil dessa vez.
Encaro a tela iluminada do meu celular pelo que julgo ser a vigésima
vez em duas horas. As mensagens de Madelyn me informando de que minha
mãe já está bem e em casa não são o suficiente para me livrar do estado
deplorável de torpor que me afundei nos últimos dias. Entretanto, são o
princípio de um alívio.
Ethan estava certo? Sou uma orgulhosa imatura?
Toda vez que repasso nosso diálogo em minha mente, sinto um
azedume automático ganhar minhas papilas gustativas, como se meu corpo
rejeitasse a insensibilidade com que me tratou e, de alguma forma, tentasse
me dizer que, por mais que ele esteja em partes certo, ele não tinha o direito
de falar comigo daquela forma, não quando ele não conhece a fundo o
inferno que vivi.
A cena dele erguendo a manga da camisa e me mostrando sua tatuagem
ronda meus pensamentos de forma repetida, e entendo que a cólera visível
em seus olhos vem de um lugar muito mais particular do que eu poderia
imaginar. A mãe dele morreu, e pela forma com que a dor nublou suas
palavras, essa é uma ferida ainda não cicatrizada dentro dele.
Nós dois somos pessoas machucadas.
A dor de cabeça latejante que tem me acompanhado essa semana
novamente se faz presente, me obrigando a abandonar a enxurrada de
pensamentos complexos que detenho. Checo mais uma vez o horário na tela
do meu celular e vejo que já passa das oito da noite. Me afundo ainda mais
no colchão, enrolando-me sob as cobertas como se fossem uma fortaleza.
Ouço três batidas suaves contra a porta soando pelo quarto. Solto um
grunhido alto e não demora mais do que alguns segundos para que uma
pequena brecha se abra e a cabeça coberta de fios loiros de Megan apareça
em meu campo de visão. Os cabelos estão soltos e os óculos de grau se
acomodam no dorso do nariz. Ela está de pijama e segura o celular contra o
peito.
— Boa noite, princesa! Vai para a aula amanhã? — Seu tom doce e
divertido me faz querer chorar mais uma vez. Eu certamente não mereço essa
garota na minha vida.
— Vou. Uma hora eu tenho que sair desse quarto.
— É assim que se fala! — comemora, rindo. — Era só isso mesmo
que eu queria saber. Boa noite, amiga, dorme bem.
Assinto com a cabeça e mando um beijo em sua direção.
— Boa noite, dorme bem também. Te amo.
Meg devolve o beijinho no ar, diz que me ama também e fecha a
porta, me deixando novamente sozinha com a minha dor de cabeça infernal e
meu coração quebrado. Preciso dar um jeito nisso.

Na quinta, assim que entro no prédio de jornalismo e caminho pelos


corredores até o auditório da minha aula de Mídias Digitais, minhas roupas
refletem todo o meu humor de merda.
No lugar dos vestidos e conjuntos com saias estão apenas uma blusa
gigantesca de uma banda que nunca escutei, uma calça de moletom da
atlética da faculdade da qual jamais fiz parte, e um tênis surrado que puxei
do fundo do armário. Nada nem perto do estilo “Amelie Castillo” de se
vestir. Apenas um reflexo do quanto eu não desejo, nem de longe, ter saído
da minha cama hoje.
Assim que toco a maçaneta da porta, sinto meu estômago embrulhar
em puro nervosismo, porque sei que quando abri-la, vou me deparar com
seus olhos castanhos fulminantes me escaneando com desprezo. Talvez eu
ainda não esteja pronta para lidar com Ethan.
Fecho os olhos, respirando fundo, e me repreendo. Fugir quando tudo
desmorona não faz o meu feitio. Não sou covarde, embora me trancar no
quarto por dois dias inteiros faça parecer que sou. Eu posso lidar com isso.
Sem mais protelar, abro a porta de uma vez, caminho devagar até a
ponta da escada que fica na lateral e, com uma rápida varredura, constato
que Ethan não está no auditório ainda. Subo alguns degraus até alcançar o
quinto corredor, onde me acomodo no primeiro assento disponível que
encontro e coloco meus materiais sobre a mesa.
Benjamin Filho Da Puta Carter não demora mais do que dez minutos
para entrar no auditório. Entretanto, fazem mais ou menos três minutos que,
aparentemente, ele tem prioridades maiores do que lecionar para quase cem
alunos. Assisto irritada conforme ele discute com um aluno de Publicidade e
Propaganda sobre a cor do fundo da apresentação do garoto ser adequada ou
não para o trabalho que apresentamos na semana passada.
Fala sério.
Acabo me desconcentrando da conversa enquanto esboço em meu
caderno um rosto vazio com cabelos de Medusa. Rabisco as linhas
livremente com a lapiseira, afundando-me em meu próprio universo, e não
sei ao certo quanto tempo se passa, mas quando a segunda cobra já ganha
vida no papel, ouço a voz asquerosa do meu professor chamando por mim.
Direciono meu olhar até ele e noto que, ao seu lado, Celine, a
secretária do nosso departamento, me encara, sorridente.
— Senhorita Castillo, sua presença está sendo requisitada na
secretaria.
Alguns olhares curiosos se voltam para mim. Assinto com a cabeça,
engolindo em seco, e jogo minhas coisas dentro da bolsa antes de me
levantar e caminhar em direção a Celine. Andamos juntas pelos corredores
do prédio e a preocupação faz todo o meu organismo se contorcer de medo.
Medo.
Porque um dos poucos motivos para um aluno ser chamado na
secretaria é para tratar questões financeiras, e conhecendo Esteban Castillo
como conheço, sei que não está nem um pouco feliz com o fato de eu ter
recusado seu convite para mais um café da manhã depois da catástrofe que
foi nosso último encontro.
Ele parou de pagar minha faculdade, é o que pisca repetidamente
em minha cabeça.
Não à toa, tenho um espanto gigantesco quando, ao entrar na sala
extensa e extremamente refrigerada da secretaria, Celine vai até o balcão e
captura um buquê enorme de tulipas brancas, entregando-me logo em
seguida.
— Acabaram de chegar, são para você. — O largo sorriso em sua
boca é bonito e iluminado.
— Tem certeza? — questiono, desconfiada.
— O rapaz da floricultura foi bem específico “são para Amelie
Castillo, estudante do terceiro ano de jornalismo” — explica, fazendo aspas
com os dedos.
Agarro as flores com força e as cheiro, sentindo o aroma de suas
pétalas impregnando em minhas narinas e diminuindo gradativamente o mau
humor terrível que me acompanha nas últimas horas.
— Veio com esse bilhete. — Volto minha atenção para o pequeno
envelope amarelo em suas mãos.
Pego e examino a parte de fora, vendo que não possui remetente,
porém meu nome está escrito em letras garrafais do lado de fora. Abro com
cuidado e o conteúdo do bilhete faz com que meus olhos se encham de água
mais uma vez.
Estou um poço de sensibilidade nos últimos dias.

“Você não é uma orgulhosa imatura, tem seus motivos para se


sentir como se sente, e eu não tenho o direito de julgá-los. Eu estava
bravo, falei sem pensar, e você não tem ideia do quanto me arrependo,
me desculpa mesmo. Espero que essas flores melhorem um pouquinho o
seu dia. Mais uma vez, me desculpe por ter sido um “babaca do caralho”
como você mesma sempre diz hahahahaha.
Foi mal mesmo, Coelhinha.
Ethan :)
P.S: Tulipas brancas significam perdão, espero conseguir
conquistar o seu.”

Encaro atônita, e um tanto quanto incrédula, o bilhete que seguro em


minhas mãos trêmulas. Meu coração se agita com tamanha vontade que
parece prestes a explodir pela quantidade de sentimentos desconexos que se
apoderam dele.
Quando ouvi Ethan me pedir desculpas pela primeira vez, uma
surpresa imensa me tomou logo de imediato, mas nem em mil anos acho que
vou conseguir descrever o que se passa por minha cabeça agora.
Tulipas sempre foram minhas flores preferidas. Mamãe costumava
cultivar algumas no nosso jardim, e minha época favorita do ano era quando
elas floresciam e deixavam nossa casa ainda mais bonita.
Muitas pessoas erraram feio comigo ao longo dos anos, inúmeras
vezes, mas essa é a primeira vez que alguém se preocupa em me dar um
pedido de desculpas significativo. Pra ser exata, Ethan foi a primeira pessoa
que de fato tentou se desculpar comigo.
Tanto agora, quanto na vez em que foi até meu alojamento.
Pensar sobre isso faz com que eu me sinta ainda mais entristecida por
ter dito que não o queria por perto. Foi no calor do momento, eu estava
brava, eu sei disso, mas não tenho tanta certeza se ele sabe.
Meus pensamentos são cortados no instante em que Celine abre a porta
e um cara uniformizado lhe entrega mais três tulipas brancas envoltas em um
papel com mais um bilhete. Ele avisa que são para mim, e estou prestes a
gargalhar pelo exagero do capitão do time de basquete.
Abro o segundo bilhete e não consigo reprimir a risada estrangulada
que me escapa.

“Foi mal pelo “caralho” no outro bilhete, acho que fracassei na


tentativa de fazer algo bonitinho. Me desculpa por tudo e pela minha
boca suja também.
Ethan :)”

Levo o dorso da mão até o canto dos olhos para secar as lágrimas
intrusas que se acumulam enquanto quase engasgo em meu próprio choro
que, nesse momento, se funde à uma risada contida.
Esse cara é um idiota incorrigível.
— Tem alguém esperando por você ali fora, querida. — O sorriso
radiante de Celine enquanto me olha faz meu estômago se dobrar ao meio em
ansiedade.
Agarro as flores ao corpo e seguro firme os cartões, seguindo em
direção à porta, que ela abre para que eu passe. No instante em que
atravesso o batente, meus olhos encontram seu corpo esguio encostado na
parede a alguns poucos metros de mim.
A postura ereta que exala confiança com a qual estou tão acostumada
ainda está lá, mas os olhos tristes são uma novidade, bem como as leves
olheiras que circundam suas orbes.
Acho que nós dois estamos um caco.
Ethan está vestido em um jeans preto que abraça as pernas
musculosas, um tênis branco guarda os pés e o moletom azul marinho sem
capuz com a logo da faculdade completa o visual costumeiro do garoto. Seus
fios de cabelo estão emoldurando seu rosto de forma despojada e, assim que
me vê, um meio sorriso se estica em seu semblante.
Caminho em sua direção eximindo a distância que nos separa. Fico
de pé diante dele e o encaro com cuidado, medindo o que falar. Ethan me
estende um cartão que se prende entre seus dedos e, com um maneio de
cabeça, faz sinal para que eu leia.

“Desculpa pelo palavrão nos outros dois bilhetes, e esse não tem
flor porque suas flores prediletas são meio caras e eu sou um
universitário falido e pai de pet. Mas tem eu, olha só que maravilha.
Ethan :)”

— Me desculpa, mesmo, Coelhinha. Eu fui um otário e… Espera, você


tá chorando? — Seus olhos me encaram, confusos, e ele puxa a manga do
casaco até que ela cubra sua mão, usando o tecido para enxugar as lágrimas
desenfreadas que rolam por meu rosto.
Não desvio o olhar dele enquanto abraço firme as flores contra meu
peito. Ethan é todo gigante, e um tanto bruto, mas o toque de seus dedos em
minha pele sob o tecido do moletom é gentil e delicado. Assisto sua
expressão concentrada à medida que tento organizar em minha mente alguma
sentença coerente para expressar o que quero dizer.
— Eu fiz alguma coisa errada? — questiona quando afasta a mão de
mim. Reprimo de imediato o pensamento de que minha pele instintivamente
sentiu a ausência de seu toque. — Tipo, eu sei que fiz, mas agora, fiz algo
errado?
Balanço a cabeça de um lado para o outro em negação diante de seu
nervosismo.
Como ele ainda pode pensar uma coisa dessas?
— Não. Definitivamente, não. Eu tô muito feliz, mesmo, eu juro! É só
que… Não sei exatamente como reagir — falo, soltando uma risada
divertida e um tanto fanha porque meu nariz se encontra entupido. — Você
não fez nada de errado agora.
— Menos mal. — Ele ri e um alívio enorme preenche meu peito. —
Acertei na escolha das flores?
Encaro novamente as tulipas e contenho o sorriso escancarado que
tanto quero dar.
— Acertou, são as minhas favoritas. Eu vou fingir que você descobriu
isso sozinho e não que um passarinho loiro te contou. — Arqueio a
sobrancelha em desafio e ele ergue os braços em rendição.
— Okay, eu assumo, mas Megan só teve quinze por cento de
participação. A ideia geral foi toda minha, prometo. Ela só me contou das
tulipas e me alertou sobre o dia que você sairia do seu retiro no quarto —
ele fala, fazendo menção às minhas duas faltas consecutivas.
— Imaginei. Mas agora, falando sério, me desculpe mesmo pela forma
com que tratei você. Eu estava sobrecarregada e acabei falando coisas que
não queria. Não me orgulho nem um pouco disso. — Seus olhos escuros me
encaram com um brilho afetuoso enquanto ele concorda com a cabeça. — Eu
fiquei brava com o lance do Daniel, fiquei brava comigo, com a situação da
minha mãe, que é algo delicado para mim. E acho que ter você me
confrontando sobre isso me deixou ainda mais irritada. No fim, acabei
descontando em você além do que deveria, eu sinto muito.
Um sorriso compreensivo se forma em seus lábios e quase tenho
vontade de sacudi-lo por estar tão tranquilo.
— Eu quem te peço desculpas, deveria ter respeitado seu espaço no
instante em que me disse que queria ficar sozinha. Eu prometo que só quis
tentar ajudar, mas fodi com tudo no final. — O olhar pesaroso faz meu
coração apertar. — Te peço perdão, não só por essa última briga, mas por
tudo, desde o começo. Eu não sei nada sobre você e não tem sido certo te
julgar com base em conclusões precipitadas. Você não é “mimada pra
cacete” nem “orgulhosa imatura”, não te acho nada disso, sério. Não mais.
Assinto com a cabeça, tentando prender o choro. Ele não faz ideia de
como meu coração está aquecido por estar ouvindo isso.
— Já que estamos falando sobre “tudo”, não te acho uma pessoa ruim.
Na verdade, estou um tanto preocupada, porque eu não planejei nada nem
perto de um buquê de tulipas para me desculpar com você. — Minha risada
se funde com uma fungada alta que escapa do meu nariz.
— Tá tudo bem. E espero que esteja tudo bem entre a gente, já que não
vamos mais tentar o lance da amizade e…
— Eu também não quis dizer aquilo — interrompo-o, e vejo seu olhar
curioso me escanear. — Definitivamente, eu não quis dizer aquilo. Eu estava
aprendendo mesmo a gostar de você nesse meio tempo, e acho que concordo
com a professora Devlin, podemos funcionar bem juntos, se tentarmos. Então
se você não tiver realmente desistido de lutar por isso, eu quero mesmo
tentar ser sua amiga mais uma vez, do jeito certo agora, conhecendo um ao
outro. Pode ser?
Mordo a carne do meu lábio inferior enquanto o encaro em
expectativa. O sorriso largo em sua face é um prelúdio de um recomeço. Não
tenho ideia do quanto de mim estou disposta a mostrá-lo, entretanto, sei que
não o quero distante como disse dias atrás.
Quero aprender sobre o Ethan Harris que Megan tanto gosta, e estou
mesmo disposta a conhecer esse cara que tem o riso mais frouxo da face da
Terra.
— Porra, é claro que sim! Eu realmente não desisti, foi no calor do
momento. — Sua risada faz cócegas nos meus ouvidos. — Vamos tentar
então. Vamos ser amigos, Coelhinha.
— Certo… Acho que é isso, eu até te chamaria para um café para
começarmos desde já, mas temos que correr. Filho Da Puta Carter deve estar
querendo comer nossos fígados. — Ethan ri mais uma vez, acho que gostou
do apelido que dei para nosso professor.
Seus olhos castanhos me encaram e algo dentro de mim se revira.
— Vamos nessa, então. Só preciso buscar minha mochila na moto, quer
ir na frente? — Ele me examina e eu balanço a cabeça em negação.
— Eu espero você. — Se vamos mesmo embarcar nessa, que seja
direito.
— Certo, volto num segundo — avisa antes de sair apressado pelo
corredor.
Fico parada encarando as flores em minhas mãos, sorrindo enquanto
passo os dedos pelas pétalas. Elas me fazem lembrar de casa e, só por hoje,
não me permito sentir raiva ou dor. Tulipas brancas significam perdão, e
esse é o único sentimento que quero em meu coração agora.
— Pronta? — Ergo meu olhar de volta para o corredor, onde Ethan se
aproxima com os polegares presos nas alças da mochila.
— Aham, só… Antes de irmos, você poderia… — Mordo o lábio,
sentindo meu corpo dar uma leve tremida. Ethan me encara em expectativa
enquanto eu reúno força e coragem para pedir o que meu coração quase
implora.
Tenho medo que ele me ache louca, porque não estamos nesse pé, mas
eu realmente preciso disso para entender que realmente está tudo bem, e que
isso é, sim, o começo de algo novo. Passei os últimos dias fugindo com tanto
afinco do contato humano que agora meu corpo suplica por isso.
— Não pire sozinha, do que precisa? — Seus olhos me examinam com
cuidado.
Grunho, consternada, e desvio o olhar para o chão. Não quero estar
olhando em seu rosto quando debochar de mim.
— Pode me dar um abraço? — peço, por fim.
Um silêncio se instala e minha sentença paira no ar como fumaça.
Não me atrevo a me mover, apenas mordo a parte interna da minha bochecha
e sinto um nervosismo esquisito se alastrando pelo meu corpo. Quando já
estou prestes a fingir que meu pedido foi um delírio, Ethan extingue
completamente a distância que nos separa.
Num segundo estou encarando o chão, e no outro meu rosto está
enterrado em seu moletom. Fecho os olhos com força a fim de apreciar cada
milissegundo. Seus braços longos e musculosos envolvem meus ombros e ele
me aperta contra si, deixando um carinho quase imperceptível em minha
cabeça.
Não tenho a oportunidade de abraçá-lo de volta porque estou
segurando as flores, mas Ethan me envolve com tanta firmeza que não tenho
do que reclamar.
Puxo o ar com força sentindo seu perfume masculino penetrando por
minhas narinas. O aroma almiscarado é forte e combina muito com ele e sua
presença que raramente passa despercebida.
— Vou me lembrar dessa fungada quando disser que não quer me pegar
— provoca, rindo, quando nos afastamos.
— Você, Ethan Harris, é a porra de um convencido! — retruco,
esbarrando o ombro no seu braço, e ele faz o mesmo.
— E só pretendo mudar quando você admitir que sou um gostosão!
— Nos seus sonhos! — chio, apressando o passo por pura implicância
e vejo, de esguelha, ele aumentando o ritmo para me acompanhar.
Novas tentativas, velhos hábitos.
“Eu entrei esperando que você estivesse atrasado
Mas você chegou cedo, e se levantou e acenou
Eu caminhei até você
Você puxou minha cadeira e me ajudou a sentar
E você não sabe o quão gentil isso é
Mas eu sei”
BEGIN AGAIN | Taylor Swift

11 de Agosto de 2021

— Qual a sua matéria preferida do curso? — pergunto antes de levar


o copo de papel até a boca.
— Teoria do Jornalismo, com a Prescot, e Comunicação e Política
com a Devlin, umas das únicas matérias que não é lecionada por um babaca.
Solto uma gargalhada alta e recebo um olhar mortal de repreensão da
garota sentada na minha frente. São pouco mais de sete da manhã. Eu e
Amelie estamos sentados em uma cafeteria de temática parisiense próxima
ao campus tomando café da manhã há pouco mais do que vinte minutos, e
para meu completo espanto, ambos estamos vivos.
Ontem, quando nos acertamos, eu pensei que haveria um longo e
tortuoso caminho pela frente até que ela realmente se abrisse para a minha
presença em sua vida. Entretanto, hoje pela manhã, me provando ser uma
verdadeira caixinha de surpresas e nem um pouco digna das minhas pré-
concepções ao seu respeito, Amelie me enviou as seguintes mensagens pelo
Instagram:
@ameliecastillo: café da manhã na “l'usine du bonheur” às sete.
@ameliecastillo: não aceito “não” como resposta, e se você se
atrasar, vai pagar meu matcha.
Eu não me atrasei, mas paguei o matcha dela.
E estamos há uns bons minutos jogando um “perguntas e respostas”,
tentando descobrir coisas triviais um sobre o outro.
— Qual foi a sua menor nota no ensino médio? — pergunta antes de
levar até a boca um pedaço da sua torrada coberta com abacate e chia.
— Zero.
— Nem ferrando.
Sua mão para no ar e ela me fita incrédula, como se aquilo fosse algo
realmente de outro mundo.
— Oh, e põe ferrando nisso. Foi em química, aquela merda. — Solto
um grunhido com a vaga lembrança de como aquela nota me deixou
transtornado na época. — E a sua?
— Oito, em matemática.
— Coelhinha, você é uma vergonha para a nossa classe dos alunos de
humanas — falo, rindo, e apontando em sua direção. — E porque será que
não me espanta seu boletim ser impecável?
— Hmm… Talvez porque eu sempre fico com notas maiores do que as
suas? — Ela se gaba, e eu reviro os olhos.
— Isso não é verdade. Nas aulas do Xavier e da Justine eu sempre
fico uns pontinhos na frente — contesto.
Amelie solta um grunhido antes de bebericar seu matcha latte.
— Isso é injusto. Planejamento de Cobertura é a área que você estuda
como se estivesse dormindo, e em Arquitetura da Informação você ganha
pontos extras porque a Justine com certeza tem sonhos eróticos com você. —
Quase me engasgo com meu café, tamanha a risada que seu comentário me
provoca. — É sério, aquela mulher te come com os olhos.
— Ciúmes? — provoco, apenas para ter o prazer de ouvir ela rosnar
baixinho.
— Acho que nem sob o efeito de cogumelos eu sentiria isso por você.
Foi mal estragar seus sonhos. — Ela ri, debochada, antes de roubar uma
castanha do meu prato. — Próxima pergunta, filme favorito?
— Amor e Outras Drogas, Anne Hathaway botou pra foder nele. E
você?
— Ainda estou processando que seu filme favorito é uma comédia
romântica.
— Tá vendo como você me julgava mal? Adoro comédias românticas.
— Certo… Eu não imaginava. Já leu “Como Eu Era Antes de Você”?
— Óbvio — falo rindo. Convenhamos, quem não leu? — Agora pare
de me enrolar, seu filme favorito é High School Musical, não é?
Amelie esconde o rosto nas mãos, envergonhada, e assente.
— Tive uma fase obcecada pelo Zac Efron graças a esse filme. Fiz
meu pai conseguir um meet & greet com ele e tudo — fala, e eu dou risada.
— Qual a coisa mais aleatória que já te chamaram?
Penso por alguns segundos enquanto bebo mais do meu café e uma luz
se acende em minha mente.
— Ornitorrinco. — Um vinco do tamanho do mundo se afunda em sua
testa. — A pérola é um oferecimento da minha irmãzinha de oito anos
descobrindo o que são metáforas.
— Espera, você tem uma irmã? De oito anos? — Questiona, surpresa,
apontando o indicador cheio de anéis na minha direção.
— Tenho. É uma monstrinha, mais inteligente do que nós dois juntos.
— Por que eu não sabia disso?
— Tirando o fato de que tem coisa pra cacete que você não sabe sobre
mim, estou tão surpreso quanto você, porque no meu Instagram tem uma
porrada de fotos dela. Teria visto quando estava me stalkeando, mas acho
que estava focada demais no meu rostinho lindo. — Mordo o lábio tentando
não rir de sua careta mediante minha provocação.
— Você é insuportável, sabia?
— Claro que sei, você me lembra disso todos os dias. — Dou risada,
e ela concorda com a cabeça. — Quem é a pessoa mais importante da sua
vida?
Amelie dá a mordida final em sua torrada e limpa os dedos em um
guardanapo, parecendo pensar sobre a minha pergunta. Assisto quando ela
apoia o cotovelo esquerdo sobre a mesa e descansa o queixo sobre o dorso
da mão.
— Megan — decreta, por fim. — E da sua?
— Minha irmã — digo sem pestanejar.
— Pensei que fosse dizer que é a sua mãe — pontua com a voz suave.
— Faria sentido. — Tomo a mesma postura que a sua. — Antes dela
morrer, realmente era, mas quando a perdi, Angeline virou meu mundo
inteiro, sabe? Ela é o motivo pelo qual tento ser melhor todos os dias. —
Noto um brilho de afeto tomar os olhos de Amelie e vejo ela apertar o dedo
polegar no indicador. Faz isso quando está nervosa, aprendi ao longo dos
anos.
— Isso é muito bonito, de verdade. Não faço ideia de como é ter um
irmão, mas se eu tivesse, gostaria que nossa relação fosse assim. — Dou um
meio sorriso e ela continua me encarando com as orbes brilhando.
— Achei que fosse responder alguém da sua família quando te
perguntei. — Minha sentença sai quase que como uma confissão sigilosa, de
tão baixo o meu tom de voz.
Vejo ela torcer o nariz e rodear a tampa do próprio copo com o
indicador enquanto observa o ato.
— É complicado. Não fui criada numa estrutura familiar de afeto, eu e
meu pai não temos uma boa relação. As fotos sorrindo em eventos
beneficentes, que vão para as revistas, são uma completa baboseira. E a
minha mãe… Bom, acho que você já deve imaginar que não sou a maior fã
dela. — A fala dura precede um longo gole na bebida. — Megan é a única
família que eu tenho.
— Me desculpa, de novo, por ter julgado você tão mal.
Ela sobe o olhar para mim novamente e as íris escuras parecem
tomadas por mágoa.
— ‘Tá tudo bem, sério mesmo. Não precisa ficar pedindo desculpas
sempre que entrarmos nesse assunto, você já se desculpou e eu aceitei de
coração aberto.
— Eu sei, é que… — Tento falar, mas ela ergue a palma em minha
direção.
— É sério, está tudo bem. Nós temos vinte e dois anos, e crescer é um
processo repleto de erros, Ethan. Como eu posso esperar que alguém perdoe
os meus erros, por piores que sejam, se eu não puder perdoar o de outras
pessoas? Você foi ruim comigo naquele momento, e eu com certeza já fui
ruim com você em outros momentos. A questão é, estamos aqui, não
estamos? — É uma pergunta retórica, mas eu assinto com a cabeça da
mesma forma. — Isso é o que realmente importa a partir de agora.
— Você está certa. E porra, não sabia que você era tão espiritualizada,
Coelhinha. — Um risinho escapa da minha boca, eu estou realmente
impressionado com a maturidade emocional da garota.
— Não sou, não. Ainda não sei como aplicar tudo que acabei de dizer
com os meus pais. — O olhar pesaroso retorna para as próprias mãos.
— Pelo pouco que sei, existe uma ferida profunda demais aí dentro. —
Aponto em direção ao seu peito. — E talvez seja um processo mais
trabalhoso, mas isso não significa que você não possa tomar pequenas
iniciativas para se libertar dessa dor. Quando estiver pronta, é claro.
— É, faz sentido. — Ela me encara e parece mergulhada em uma bolha
reflexiva.
— Espero que sim, agora vamos? Temos Comunicação e Política em
vinte minutos. Eu não estudei o debate de hoje então você vai,
provavelmente, jantar meu fígado. — Falo, chamando sua atenção quando me
levanto, e ela abre um sorriso diabólico enquanto bate palminhas.
— Nada melhor para começar o dia!
“Tudo que você faz é ligar,
tudo que você faz é ligar
Quando você precisar de mim, querida,
para ajudá-lo em tudo
Eu não vou deixar você cair,
não Eu não vou deixar você cair”
I WON’T LET YOU FALL | Foy Vance

13 de Agosto de 2021
As palavras de Ethan ainda ecoam em minha cabeça na madrugada de
sábado para domingo.
Talvez seja um processo mais trabalhoso, mas isso não significa que
você não possa tomar pequenas iniciativas para se libertar dessa dor.
É louco como ter uma visão de alguém de fora sobre uma situação,
ainda que superficial, pode nos mostrar pequenos detalhes em que ainda não
havíamos reparado. Eu, por exemplo, jamais havia notado, de forma clara e
literal, o quanto o sentimento de mágoa que possuo em relação aos meus pais
me aprisiona.
O medo da rejeição, a desconfiança, a incerteza, a dificuldade para
demonstrar e receber afeto. Tudo isso deriva de uma mesma matriz, meus
complexos familiares.
Pensar na forma como Ethan fala sobre a própria mãe me fez passar
horas intermináveis refletindo sobre como eu me sentiria caso minha mãe
morresse hoje, e doeu feito o inferno imaginar isso acontecendo. Eu nem ao
menos me lembro da última vez em que a chamei de “mãe” ou recebi um
abraço dela.
Por anos, a condição de Virginia foi motivo de raiva e indignação para
mim. Sinônimo de noites mal dormidas, idas inesperadas a hospitais e até
mesmo o fatídico acidente. Ser encarregada de limpar toda a merda que
nossa família se tornou sempre foi algo que exigiu demais de mim, e eu
nunca tive tanto assim para dar, ou pelo menos nunca quis ter que me doar
tanto.
Vê-la apagada em algum cômodo da casa com uma garrafa vazia era
triste no começo, mas com o passar dos anos e a frequência dos
acontecimentos, eu só conseguia sentir raiva. Raiva e repulsa. Porque,
cacete, eu estava sofrendo também, eu precisava dela.
Para mim, todos estão sempre enfrentando alguma merda, algo
complicado que nos tira o sono, mas eu nunca consegui entender como
alguém pode escolher envenenar o próprio corpo, dia após dia, de propósito.
Sempre tive a convicção de que minha mãe escolheu fazer a coisa errada.
Mas acho que já não tenho tanta certeza disso.
É o que concluo enquanto pego as caixas no carrinho de compras e as
acomodo no porta malas do meu carro.
São quatro e vinte e cinco da manhã de um domingo e eu estou de pé
no estacionamento de uma loja de jardinagem 24h, vestida em uma legging
preta, moletom cinza da faculdade e tênis, um rabo de cavalo mal feito
mantém meus fios despenteados em ordem. Assim que me sento no banco
atrás do volante, sinto minhas mãos tremerem em nervosismo pelo que estou
prestes a fazer.
Dou a partida no veículo, que desliza com destreza pelas ruas ainda
vazias da cidade mundialmente conhecida. No rádio, alguma música ecoa
baixinho, mas não sei dizer exatamente qual. Se pudesse chutar, diria que é
algum sucesso do Maroon 5. Ainda está escuro e as luzes dos postes
iluminam as calçadas que, dentro de algumas horas, estarão abrigando uma
infinidade de pessoas vindas de todos os cantos.
Permito que meus olhos atentos à rodovia contemplem a majestosa
megalópole que se apresenta diante de mim. Sinto meu coração esquentar em
puro carinho e afeto. Nova Iorque e toda a sua loucura são o meu refúgio. Me
lembro até hoje do meu primeiro dia morando aqui, de como me senti
aliviada por estar me distanciando do caos da minha família, por finalmente
ter o meu espaço e poder respirar sem sentir o drama corroendo cada parte
de mim.
Essa cidade que, por vezes, parece tão fria e impessoal, pouco a
pouco vai se tornando uma pequena extensão de nós conforme vamos
escolhendo os lugares que iremos chamar de nossos. O que certamente mais
encanta por aqui é a forma com que ela atende a todos os gostos; todos aqui
conseguem encontrar um lugar para se sentirem bem.
Ainda que, como no meu caso, isso um dia tenha parecido impossível.
Solto um suspiro leve tentando afastar as memórias da minha cabeça, e
é só quando, enfim, estaciono na frente de um prédio residencial de tijolos
em tons de marrom amendoado em Manhattanville, que percebo o quanto
absolutamente tudo nessa situação é ridiculamente estranho e embaraçoso.
Contrariando meu bom senso e planejando uma série de fugas para o
que estou prestes a fazer, saio do carro, marchando convicta em direção à
entrada do edifício. Abraço meu corpo ao sentir a noite fria me rodeando.
Um porteiro sonolento, que reconheço das outras vezes que esperei por
Megan nesse mesmo hall, vem sorrindo em minha direção e destranca a porta
de vidro para que eu possa entrar. O cumprimento e digo para onde vou,
dispenso quando ele se oferece a anunciar minha chegada pelo interfone, está
cedo demais para isso.
Ele não me impede de subir, não sei se pelo sono ou por estar
acostumado com a rotatividade de garotas nesse lugar.
Ensaio algumas falas enquanto vou em direção ao elevador, e assim
que as portas prateadas se fecham, checo meu relógio. São quatro e quarenta
e três da manhã, devo estar parecendo uma louca.
Numa tentativa frustrada de conter meu nervosismo, enfio minhas mãos
no bolso do casaco e aperto o tecido. As portas se abrem no quarto andar, o
corredor escuro e silencioso se acende conforme caminho em direção ao tão
cobiçado apartamento 413. Paro diante da porta, um tanto quanto
desconcertada e incerta de que devo realmente tocar a campainha.
Puxo meu celular do bolso e verifico, pela vigésima vez, o Instagram
de Annelise. Sua última atualização recente, que mostrava um dj tocando em
uma festa, ainda está lá, o que me dá quase certeza de que ela está na rua.
E quanto a Tyler, posso jurar que antes de sair de casa vi o corpo
gigantesco de um jogador de basquete ressonando abraçado com minha
melhor amiga.
E é só por isso que meus dedos vão de encontro ao botão da
campainha.
Menos de dois segundos depois, ouço latidos ecoando pelo
apartamento e sendo abafados pelas paredes. Não demora muito para que o
barulho de patinhas batendo contra o piso se torne mais audível para, em
seguida, uma respiração irregular e seus pequenos roncos soarem contra a
porta.
Espero mais alguns segundos, e quando estou prestes a apertar a
campainha mais uma vez, ouço o andar pesado se aproximando, o que só me
deixa ainda mais nervosa. Coloco minhas mãos de volta em meu bolso,
apertando com força o tecido entre os dedos. Encaro meus pés, sentindo meu
coração disparando em ansiedade, e cogito dar meia volta para retornar ao
elevador antes que a porta se abra.
Tarde demais.
— Annelise, eu juro que da próxima vez que você for para uma festa,
esquecer sua chave e ousar me acordar às quatro da manhã, eu vou deixar
você dormindo no corredor. — Sua voz rouca de quem acabou de despertar
faz cócegas nos meus ouvidos, me deixando um tanto atônita.
O barulho da fechadura sendo destrancada me faz recuar um passo.
Ainda encarando o chão, vejo a porta se abrir e então subo meu olhar
vagarosamente até que ele vá de encontro ao semblante sonolento e os fios
amassados de Ethan.
Ele me analisa por alguns segundos com os olhos arregalados. Está
vestido apenas com uma bermuda. Seu braço esquerdo está apoiado no
batente da porta enquanto o direito se estende até a maçaneta. Seu abdômen
definido, que está com algumas marcas de lençol, se arrepia pelo que creio
ser um choque de temperatura, já que o barulho vindo da parte de dentro do
apartamento indica que o aquecedor está ligado.
Não sei ao certo quantos segundos passamos analisando um ao outro,
mas noto quando, como em um estalo, seu semblante surpreso se transforma
em uma expressão preocupada.
— Que porr… Espera… Tá tudo bem? — pergunta, examinando meu
rosto em busca de respostas. Assinto. — Aconteceu alguma coisa com a sua
mãe? — Ele parece mais desperto agora. Balanço a cabeça em negação,
ainda pensando no que dizer para justificar minha visita repentina.
— Eu… Posso entrar? — questiono.
O braço de Ethan que estava apoiado no batente pende ao lado de seu
corpo, abrindo passagem para que eu passe.
— Cara, você tem três segundos para começar a me explicar o que
aconteceu para você ter vindo por vontade própria ao meu apartamento às
quatro da manhã, é sério. E nem tente me enrolar, nós dois sabemos que,
embora tenhamos nos resolvido, não é porque sou sua pessoa favorita no
mundo e… — Solto um grunhido agudo levando minha mão até a maçaneta
da porta e a fechando. Eu ainda estou atordoada com tudo que estou prestes a
dizer.
— É o seguinte, eu ainda não dormi, tá legal? Eu tô uma pilha, aquilo
que me disse ontem grudou na minha cabeça.
Vomito as palavras e olho para o teto contendo a súbita vontade de
chorar, porque eu já bati minha cota essa semana de fazer isso na frente dele.
— Você está certo sobre o lance da minha mãe. Eu odeio falar isso e
nem acredito que estou dizendo isso de verdade. É um pouco mais
aterrorizante agora que estou realmente falando, isso faz sentido? Enfim, não
importa, você estava certo e eu sinto que preciso fazer alguma coisa. Eu
podia esperar amanhecer mas não conseguia pregar o olho, e… — Sou
interrompida por seu indicador pousando no centro dos meus lábios. O
encaro, confusa, e vejo um meio sorriso em seu rosto.
— Seja objetiva, pelo amor de Deus, eu acabei de acordar — fala
rindo e afastando o dedo da minha boca. — O que quer de mim?
— Se veste e vem comigo, por favor? — Falo, fazendo beicinho numa
tentativa de convencê-lo. Ethan me olha com uma careta e logo em seguida
explode em uma gargalhada.
— Isso geralmente funciona para você?
— Às vezes. Deu certo?
— Não, mas estou curioso sobre esse seu sequestro disfarçado de
pedido de ajuda. Já adianto que quero refrigerante no cativeiro para o qual
você pretende me levar — fala, rindo e se encostando na parede. — E se
planeja me fazer seu brinquedinho sexual, não me importo de usar cordas.
— Você não acha que anda pensando demais em transar comigo, não?
— provoco, ignorando o convite implícito para um sexo selvagem.
— Gata, eu até adoraria transar com você. Esse lance de descontar o
ódio na cama parece uma boa, mas eu amo meu pau, e amar meu pau inclui
manter ele seguro, bem longe das suas garrinhas que o arrancariam fora na
primeira oportunidade.
— Que bom que você sabe.
— Não sou muito fã de sexo violento. Sabe como é, uns tapas até vai,
mas nada além disso. A menos que você curta, sendo assim, posso realmente
pensar sobre o assunto. — O sorriso sacana em seus lábios me faz cogitar
socá-lo.
— Vai se foder — chio. — Vamos logo?
Ele me encara por alguns segundos. Paro ao seu lado e me abaixo para
pegar Bruce no colo. É a primeira vez que eu o vejo pessoalmente, mas já
ouvi tantas vezes Megan contar as histórias de suas travessuras e minha
timeline fica sempre tão recheada com as inúmeras fotos que seus três donos
babões compartilham, que sinto que já o conheço há tempos.
O bulldog inicia uma série de lambidas eufóricas em meu rosto. Faço
carinho em seu corpo cheio de dobrinhas enquanto caminho pelo corredor
em direção ao que me parece ser a sala de TV.
É estranho pensar que já estive tantas vezes nesse prédio e jamais
passei da porta. Já busquei Megan aqui algumas vezes e já trouxe também,
mas eu jamais entrei. Estar aqui sozinha com Ethan e seu cachorro em plena
madrugada não é exatamente como eu imaginava conhecer o apartamento
dele.
“Você nem ao menos imaginava conhecer o apartamento dele”, uma
voz me repreende em minha cabeça.
O lugar é grande, não exatamente gigante, mas é maior do que meu
alojamento. Ao passar pela porta de entrada, um corredor recheado de outras
portas se estende até um último cômodo aberto ainda escuro.
Não tenho certeza, mas julgo possuir três quartos e que uma das portas
seja o banheiro. As paredes são cor de gelo e os rodapés estão perfeitamente
pintados de preto. Parece ter sido reformado recentemente, ou é muito bem
conservado.
Enquanto caminho, ouço Ethan vindo atrás de mim, mas não contava
que estivesse tão perto, e por isso, tenho um leve sobressalto quando sua
mão repousa em meu ombro dando um aperto singelo como em uma
massagem.
O cansaço que me atinge por estar tantas horas acordada é um lembrete
do motivo de eu estar aqui. Preciso reunir uma força descomunal para não
deitar ali mesmo no chão e me encolher até pegar no sono. Quando chegamos
na sala, ele passa por mim e ajeita a manta que cobre o sofá, indicando com
a cabeça para que eu me sente. Obedeço, acomodando Bruce em meu colo, e
lanço um olhar impaciente para que Ethan se apresse.
— Você não quer tipo… Dormir, e depois a gente vai fazer a
maluquice que está planejando?
— Não, e não tente me enrolar, Harris, anda logo.
— Pode ao menos me dizer por que me escolheu? Fica difícil não
acreditar que está me levando para um cativeiro.
— Você é o único sem noção que toparia fazer qualquer coisa às
quatro da manhã. Lily está passando o fim de semana fora e Megan está
dormindo com Tyler. Só sobrou você. E aí, vai ser um bom amigo e andar
logo ou não?
— Já somos amigos, então? — pergunta, animado.
— Ainda não. — Me obrigo a cortar o barato do cara.
— Ah não, nem fodendo que você vai me tirar de casa de madrugada e
não pode nem me inserir na sua lista de contatos do telefone!
Lhe lanço um olhar fuzilante, e ele cruza os braços, devolvendo o
mesmo olhar como quem diz “é pegar ou largar”.
— Tá beleza, eu te passo o meu número, mas só se você não demorar.
— Me rendo.
— Beleza, espera aqui, já volto. Tente não morrer de saudades de
mim, Coelhinha! — grita, caminhando de volta para o corredor. Reviro os
olhos e encosto a cabeça no sofá.
— Eu juro que estou tentando ser o menos invasivo possível para
respeitar o fato de que você está sem dormir e uma pilha de nervos, mas
sério, por que estamos em Hoboken?
Bufo irritada pela centésima pergunta que Ethan faz no curto trajeto de
vinte minutos do seu apartamento até a cidade vizinha. Seguro o volante com
força, ainda tentando compreender que estou dirigindo com o grandalhão
sentado ao meu lado tagarelando sem parar em pleno amanhecer.
Permaneço com os olhos focados na pista. Aciono a seta dobrando a
esquina e quando, enfim, estou diante dos muros marmorizados majestosos e
cobertos de heras, estaciono o carro e me afundo no banco fechando os olhos
e tentando respirar com calma.
— Eu estava em uma loja de jardinagem antes de ir até o seu
apartamento — confesso, ainda com os olhos fechados.
— Certo… — Percebo a cautela com que ele tenta arrancar mais
informações de mim.
— Tulipas sempre foram minhas flores prediletas. Mamãe as
cultivava, junto com diversas outras flores, no jardim da nossa casa… —
Engulo em seco, me recordando do estado atual desse jardim. — E todos os
anos, quando a primavera chegava, ela as colhia e montava lindos buquês
para me dar de presente. A casa ganhava um colorido magnífico pela
variedade de flores que adornavam os vasos e o jardim. Se eu me concentrar
bem e fechar os olhos, ainda consigo me lembrar de como era. Ela amava
aquele jardim, e eu o amava por amá-la. Essa foi só uma das coisas que o
alcoolismo arrancou de nós, mas é uma das que mais me dói. — Concluo,
abrindo os olhos vagarosamente e me virando de lado para encarar Ethan,
que me lança um olhar triste.
— Eu sinto muito — fala, expirando com força como se estivesse
angustiado.
— Eu também. Sabe, eu realmente não esqueci tudo o que me disse
essa semana, e eu não me sinto pronta para conversar com a minha mãe. Não
me sinto pronta para dizer que a perdôo por toda a merda que rolou entre
nós, porque não sou capaz de dizer isso com sinceridade agora. Ainda
preciso de tempo para assimilar tudo, mas queria que ela soubesse que estou
tentando. — Ethan está com a cabeça encostada no banco do carro e o corpo
virado para mim. — Essa é a casa onde cresci, a fortaleza conturbada onde
meus pais me criaram — digo, apontando para o muro de mármore na nossa
frente.
Ethan parece surpreso ao observar a entrada da mansão. O muro alto e
o portão de aço resistente escondem uma casa enorme e luxuosa que não tem
mais o brilho da minha infância.
— Disse que estava numa loja de jardinagem? — Pergunta, me
olhando com um sorriso de quem está aprontando. Assinto em concordância.
— Vamos recriar o jardim das suas memórias açucaradas de criancinha
então, Coelhinha? Ainda não acredito que me acordou naquele horário para
ser seu paisagista particular. Precisamos rever os termos da nossa aposta
depois. É sério, vou te fazer de mordoma.
Solto uma gargalhada debochada enquanto descemos do carro. Esse
cara é insuportável.
— Só nos seus sonhos. O estágio é meu — digo enquanto dou a volta
em direção ao porta malas.
— É o que veremos.
“Eu não vou esperar até que você termine
De fingir que não precisa de ninguém
Estou aqui, vulnerável”
NAKED | James Arthur

13 de Agosto de 2021

O treinador Butler deveria incluir jardinagem no nosso programa de


treinos.
Sem brincadeira, eu não fazia ideia de que cuidar de um jardim era
algo tão trabalhoso. Amelie está calada desde que entramos na casa
gigantesca, limitando-se apenas a abrir a boca para me passar alguma
instrução do tipo “coloque mais terra ali” ou “plante as flores lá”.
Ainda me espanta pensar que nos deixaram entrar aqui às cinco da
manhã. No exato instante em que passamos pelo portão, segurando as caixas
com as compras da garota, uma senhora de pele pálida e cabelos pretos veio
até nós e nos recebeu com abraços carinhosos antes de nos avisar que a dona
da casa, a mãe de Amelie, não havia passado a noite por ali.
Aquilo, de alguma forma, pareceu aliviar um pouco a postura da
garota. Entretanto, a tensão exalando de seus poros ainda é considerável.
Consigo imaginar o quanto é difícil para ela estar aqui, porque a forma como
se refere à casa é sempre como se aqui ela tivesse vivido seus piores
pesadelos. Fico feliz que tenha confiado em mim para ajudá-la, é um passo
importante no que estamos construindo.
— Essa é a última, quer fazer isso sozinha? — questiono, apontando
para a muda de uma planta que está nas minhas mãos.
Amelie alterna o olhar entre a planta e o buraco que cavei na terra.
Noto quando ela aperta o indicador no polegar antes de se aproximar de
mim. Ela me estende as duas palmas abertas e eu coloco sobre elas o que,
um dia, será uma roseira.
Assisto enquanto ela, cuidadosamente, acomoda a raíz no solo e a
ajudo a afofar a terra ao redor do caule, dando algumas batidinhas. A ponta
dos meus dedos encosta em sua mão e eu recuo, sentindo o olhar da garota
sobre o meu rosto.
— Acho que terminamos — falo. Me levanto e bato uma mão na outra
para tirar o excesso de sujeira. — Coelhinha, acho que se nós dois
perdermos o estágio e dermos errado como jornalistas, podemos abrir uma
empresa de paisagismo.
Cruzo os braços na frente do corpo e viro a cabeça de lado para
encará-la. Ela está de pé observando o fruto de quase quatro horas de muito
trabalho e parece genuinamente satisfeita. Não consigo deixar de reparar nas
olheiras escuras abaixo dos seus olhos e em sua aparência cansada.
— Isso ficou muito bom mesmo, espero que ela goste. — O sorriso
triste em seus lábios faz um ponto em meu peito doer.
Queria conseguir dizer para ela o quanto, independente da reação,
essa atitude dela é bonita e louvável.
— Vai gostar. E aí, vamos embora? Eu ‘tô morrendo de fome. Sério,
parece que meu estômago virou um buraco negro enorme, e você,
definitivamente, precisa dormir.
— Sim, hm... Eu só preciso de um pouco de água, se importa de irmos
lá dentro? — Aponta para trás onde se encontra a enorme construção.
Anuo com a cabeça e a sigo pelo caminho de pedras até estarmos
diante da porta gigantesca que parece terminar no céu. Amelie empurra pela
maçaneta e, assim que entramos, não consigo controlar meu choque.
— Caralho! Quantos bilhões custou a obra dessa casa? — questiono,
boquiaberto, encarando a dupla escadaria que desce pelas laterais do hall de
entrada e o lustre gigantesco que recai sobre o local.
— Não faço a menor ideia, mas estava avaliada em quinze milhões no
ano passado. Um exagero do caramba, se quer minha opinião. — Seu tom é
desinteressado. A acompanho até uma espécie de frigobar que fica no
corredor dos fundos e observo-a enquanto abaixa e pesca uma garrafa d’água
da pequena geladeira. — Quer uma?
— Não, valeu. — Nego com a cabeça e continuo examinando o local
completamente impressionado. Não é todo dia que entro em uma mansão,
então estou parecendo uma criança num castelo na porra da Disney. — Cara,
você não se perdia nesse lugar quando era mais nova? Tipo, isso aqui é
grande pra cacete!
— Acredite, quando você mora num lugar desses, você acaba
selecionando alguns cômodos e só fica neles. Metade das alas dessa casa eu
fui, no máximo, cinco vezes. Fora que, eu era uma criança, então lugares
como o cassino e a sala de reuniões não eram exatamente “para mim” —
responde antes de dar um longo gole na garrafinha.
Cassino. Ela tem a porra de um cassino em casa.
— É, faz sentido. Não tínhamos esse problema no apartamento da
minha família no Queens, ele é bem… Normal.
— Eu daria tudo para ter crescido num apartamento “normal”, é sério.
Solto uma meia risada porque ela só pode estar brincando. Tipo, isso
aqui é um parque de diversões. Sua expressão, no entanto, permanece séria,
fazendo meu sorriso desmanchar.
— Ah, qual é, tem que ter algum lugar que te faça feliz nesse
aglomerado de concreto e lustres que custam meu rim.
Amelie parece pensar. Leva alguns segundos até que seus olhos se
arregalem como em um estalo e ela envolve meu pulso, me arrastando pelo
corredor. Paramos em frente à uma porta com a maçaneta dourada, que fica
ao lado de uma estante com livros antigos de literatura clássica.
— Puxa o livro do Hamlet. — Sua fala me faz encará-la, incrédulo.
— Coelhinha, nem fodendo que eu vou puxar o livro e essa estante vai
abrir uma passagem secreta que nem dos filmes. Sério, se isso acontecer, eu
vou ser obrigado a te odiar para sempre, sua burguesinha. — Ela comprime
os lábios e sei que está segurando uma risada.
Ainda desconfiado, levo a mão até o exemplar indicado e o puxo,
entretanto, nada acontece.
— Era brincadeira, a porta é essa aqui mesmo. — A risada divertida
escapa dos seus lábios, me fazendo revirar os olhos em reação. Besta.
— Você é uma chata, sabia? — digo, mau humorado, seguindo-a para
dentro do cômodo.
— E ainda assim, você não larga do meu pé. Um tanto masoquista, eu
diria.
Estou com a resposta na ponta da língua, contudo, minha voz morre
quando desvio o olhar do seu rosto para a sala repleta de estantes recheadas
de livros, cavaletes de pintura e uma infinidade de quadros coloridos com
múltiplos desenhos.
— Uau. — É a única coisa que consigo formular.
Passo por Amelie, completamente tomado pela curiosidade, e
começo a adentrar o local examinando tudo nos mínimos detalhes. Na
primeira estante, uns cinco boxes contém edições diversas de Percy Jackson,
em capa dura, ilustrada e edições comemorativas. Suponho que tenha sido a
saga que acompanhou sua infância.
Corro o olhar pelos exemplares passando o dedo sobre as lombadas e
a sensação é semelhante à de estar em uma livraria, parece que estou no
paraíso.
Não à toa, meu lugar favorito da faculdade é a biblioteca, sou
fascinado por esse universo.
— São todos seus? — questiono, me virando para ela que me observa
de longe, encostada na parede próxima à porta.
— Todos. Os quadros fui eu quem pintei também.
Desvio o olhar para as telas. Estão preenchidas, em sua grande
maioria, por pinturas de flores, algumas de paisagens e muitas silhuetas
femininas. Tudo é tão bonito e bem feito que me pergunto o que fazem aqui
trancados e não expostos pelas paredes da casa.
— Esse lugar era tipo o seu lugar? — pergunto por perguntar, porque é
óbvio que sim.
— Era — Amelie caminha devagar até parar do meu lado. — Eu
passava horas aqui dentro, lendo, pintando, às vezes ficava só por ficar
também. Esse lugar me fazia esquecer do que estava acontecendo da porta
para fora. De alguma forma, estar cercada por livros e potes de tinta me
fazia sentir segura. Por isso, não ouso discordar quando os chamam da “arma
mais poderosa”. Os livros e a arte, além do meu refúgio, foram a minha
proteção quando tudo parecia desmoronar.
Seu cenho franzido e a forma com que sua mandíbula está saltada me
dão a impressão de que ela está prestes a chorar, e isso me deixa apreensivo.
Engulo saliva com dificuldade, me virando em sua direção e descruzando os
braços. Quero que ela entenda que não precisa temer estar vulnerável.
— Quando a minha mãe morreu… — Inicio, um tanto incerto, e ela
ergue as íris escuras para me encarar. — Eu tinha quinze anos e Angeline
tinha um ano. Perdê-la foi algo que devastou nossa família por completo.
Meu pai parecia ter perdido uma parte dele, ele se fechou pro mundo para
viver o próprio luto e eu tive que segurar a barra toda sozinho. Do dia para a
noite eu fui de um adolescente normal que ia para a escola e jogava basquete
no fim da tarde com os meus amigos, para a pessoa responsável por um
bebezinho indefeso e um adulto em negação.
— Vocês não tinham mais ninguém? — Questiona compadecida.
— Meus avós morreram cedo. Minha tia tinha acabado de terminar a
faculdade de jornalismo e estava no primeiro ano como colunista de uma
revista, mas ela ajudou no que conseguiu. Os pais do Tyler também tentaram
dar um suporte, mas no dia a dia mesmo, quem botou a mão na massa fui eu.
— Sinto minha garganta apertar, me lembrando do quão assustado eu fiquei.
— O maior suporte que tive foi o basquete, por poder extravasar o que eu
sentia nas quadras, e os livros, que eu lia de madrugada enquanto esperava
minha irmã dormir. Então, bom, eu meio que entendo você.
Ela concorda com a cabeça e encara os próprios pés.
— Sinto muito que tenha passado por isso.
— Tá tudo bem, já passou, e se quer um spoiler, minha irmã é uma
criança foda, então acho que fiz um bom trabalho — falo, rindo fraco.
— Tenho certeza que sim. — Ela ainda está encarando o chão, mas
consigo perceber que seu semblante se repuxou em um meio sorriso.
Por alguns segundos, um silêncio estranho recai sobre o ambiente, mas
não permanece, porque Amelie ergue o rosto em minha direção e noto que o
choro que ela prendia antes agora se derrama sobre suas bochechas, me
deixando tenso.
— Quando meus pais brigavam, e isso era quase todos os dias, eu
vinha pra cá. Fechava a porta e sentava bem aqui — diz, se abaixando e
sentando no chão, abraçando as próprias pernas. — Eu cobria os ouvidos
com as almofadas que ficavam no pequeno sofá que existia aqui, e chorava
bem baixinho ouvindo os gritos deles. Eu não podia deixar que eles me
vissem chorando, porque minha mãe ficava brava e dizia que era culpa do
meu pai eu estar daquele jeito, e ele ficava bravo com isso. E pra ser
sincera, eu sabia que meu pai era um filho da puta, mas eu ainda queria o
amor dele, porque ele é o meu pai, sabe? Acho que até hoje, em algum lugar
dentro de mim, eu ainda quero sentir que eles me amam, porque é um inferno
me sentir tão sozinha e tão vazia. — Seus olhos castanhos umedecidos pelas
lágrimas me fitam com tristeza e tudo dentro de mim dói pra caralho. — Isso
faz sentido pra você?
Deixando de lado toda e qualquer ressalva, eu me abaixo diante dela
e, assim como fiz no corredor da faculdade, a envolvo em um abraço
apertado. Sinto quando seus braços finos rodeiam meu tronco e seus dedos
agarram com força o tecido do meu moletom.
Amelie chora de soluçar contra meu ombro e eu me limito a deixar
um carinho leve sobre sua coluna. É estranho estar assim com ela,
vulnerável, justo ela que sempre quer ser tão forte e tão indiferente. Eu nunca
fui suporte emocional para ninguém além da minha família. Tyler não é do
tipo intenso e Annelise lida com suas dores enchendo a cara e comendo
besteiras. Charles e Elói também não fazem o tipo que procuram ombro
amigo, então o que estou vivendo agora é uma experiência completamente
nova.
E eu espero estar tomando as atitudes certas.
— Não precisa fazer sentido para ninguém além de você. São as suas
dores, e você as sente da sua forma, tá legal? — Meu tom de voz é baixo e
seguro. Ainda com o rosto enfiado em meu ombro, Amelie assente com a
cabeça.
— Obrigada, de verdade.
— Não há de que. — Passamos longos minutos nos braços um do
outro. Ouço os barulhos que ela faz quando chora cessando gradativamente,
e só volto a falar quando tenho a certeza de que ela está mais calma. — Acha
que já consegue levantar? Você precisa mesmo dormir.

Amelie permaneceu calada durante todo o trajeto de volta para Nova


Iorque. Pensei que ela iria cochilar em algum momento enquanto eu dirigia
até seu alojamento, entretanto, a garota se manteve acordada e as
engrenagens de seu cérebro pareciam trabalhar feito loucas.
Quando estaciono o carro dela na frente do prédio da moradia
universitária, retiro a chave da ignição e a estendo em sua direção, prestes a
pegar meu celular para pedir um Uber.
— Acho que a gente precisa mesmo conhecer um ao outro se vamos
entrar nesse lance da amizade. — Sua voz corta o silêncio do carro e ela fita
o campus diante de nós.
— O que tem em mente? — questiono, mantendo o olhar reto.
— Nada exatamente. Imaginei que você fosse ter alguma sugestão,
você é o cara das ideias mirabolantes.
Viro o rosto em sua direção e ela me encara com a sobrancelha
erguida em desafio. Penso por alguns segundos, sentindo minha cabeça
trabalhando a todo vapor, até que uma ideia pra lá de absurda e um tanto
genial se ilumina.
— Encontros — digo de imediato, sem pensar muito.
— Hã? — Ela parece um tanto confusa.
— É isso aí que você ouviu, encontros.
— Estou tentando uma forma de nos tornarmos amigos, Harris, e não
para eu acabar na sua cama.
Solto uma risada alta e nego com a cabeça.
— Não tô falando que vou te seduzir, sua chata. A ideia é nós sairmos
mais juntos, só nós dois, e em cada saída um vai ter que escolher, com base
no que tem aprendido sobre o outro, um encontro em um lugar que o agrade.
Assim a gente vai se conhecendo melhor, porque, porra, depois de hoje, eu
estou ligeiramente curioso para te desvendar, Amelie Castillo. — Aperto a
ponta do seu nariz em provocação e recebo um tapa forte e certeiro no braço
que me faz urrar. — Pra que essa agressividade toda?
— Deixe suas mãos longe do meu nariz. E sobre a sua ideia, eu topo,
mas escolha um nome melhor, porque não quero nem pensar na hipótese de
estar em um encontro com você.
— Cara, acredite, de duas uma, ou você vai terminar isso sendo a
minha melhor amiga, ou vai terminar implorando para estar na minha cama.
Aceite seu destino — falo dando risada antes de sair do carro, e ela faz o
mesmo.
— As duas opções me parecem uma tortura sem fim.
Mentira, eu sou legal pra caralho, ela vai me adorar.
“E estive pensando sobre isso ultimamente
Isso já te deixou louca?
A rapidez com que a noite muda?”
NIGHT CHANGES | One Direction

17 de Agosto de 2021

O mundo está do avesso e eu estou vivendo em uma realidade


alternativa. Não existe outra explicação para a droga da comédia de mau
gosto que minha vida se transformou nos últimos dias.
A semana passou como um borrão por mim e quando me dou conta, já
é quinta feira. Lily está deitada na minha cama, o sol da tarde entra pela
janela e cobre seu corpo. Ela está vestida com um conjunto de ginástica
folheando uma edição capa dura de “Mulheres Que Correm Com Os Lobos”
e para meu total assombro, está terrivelmente quieta tendo em vista a
situação que estamos vivendo e tudo que lhe contei.
Fazendo uma breve revisão dos fatos: no domingo, eu tive um surto.
Surto foi a palavra que encontrei para descrever o fato de que às quatro da
manhã fui parar em uma loja de jardinagem, com o coração preenchido por
apreensão, e levei Ethan Harris até a casa onde cresci. Como se já não
bastasse, nós tivemos um… Bom, tivemos um momento.
Um momento sentimental, onde ambos nos colocamos de guarda baixa
perante o outro e abrimos um pouco das feridas que carregamos. Talvez
descobrir um pouco sobre ele esteja me deixando um tanto louca, porque, de
alguma forma, isso tem me feito querer ele por perto, coisa que eu jamais
imaginei querer por livre e espontânea vontade.
Acho que quanto mais humano ele se mostra, quanto mais entendo que,
assim como eu, ele é feito de carne, osso e feridas, mais eu sinto vontade de
descobrir sobre o Ethan que não é o rei da faculdade.
Nesse mesmo dia ele também me abraçou, mais uma vez. E eu o
abracei de volta, pela primeira vez, e isso não saiu da minha cabeça até
agora.
Para incrementar a loucura, na terça feira eu saí com Adam para jantar.
Achei que recusar mais um de seus convites faria ele achar que não estou
interessada, o que não é totalmente verdade.
Adam é um cara legal, não faz o tipo pegador, tem um papo decente e é
uma companhia agradável, além de possuir uma boca pra lá de convidativa.
E pela quantidade de vezes que já nos encontramos, me permiti curtir a noite
para ver no que ia dar. No fim, me soltei mais do que deveria e fui para a
cama com o cara, e bom, não foi ruim.
Não foi um evento, nem me fez ter vontade de transar a noite inteira, ou
provocou furacões em meu corpo, mas, definitivamente, foi um bom sexo, do
tipo que eu repetiria para passar o tempo. O que, pensando bem, é quase
terrível.
O silêncio da dupla Morgan-Castillo tem sido ensurdecedor nos
últimos dias. Minha mãe nem ao menos tentou entrar em contato comigo para
falar sobre o jardim, e meu pai não voltou a me infernizar com seus convites
para cafés da manhã, o que eu considero, no mínimo, estranho.
A verdade é que ter feito o que fiz, no fim, obteve um resultado que diz
muito mais sobre aliviar o peso em meu peito do que, de fato, dar algum
passo em relação à minha mãe, mas já é alguma coisa.
Para ser sincera, acho que prefiro dessa forma. Não creio que eu
realmente esteja pronta para um acerto de contas do passado. Ter me
disposto a entender seus motivos não anula do dia para a noite os anos de
mágoa encruados em meu peito. Minha relação com a minha mãe é um
buraco muito mais profundo, e esse tipo de coisa não se resolve assim, é
necessário tempo.
E é depois de passar por todos esses acontecimentos que chegamos ao
maior dos delírios dessa intensa sequência de dias: falta menos de uma hora
para que eu esteja em um “encontro” com Ethan Harris.
Eu ainda não acredito que aceitei isso.
— Eu ainda não acredito que vai fazer isso. — Lily parece ter entrado
em minha mente.
— Nem eu. A propósito, qual desses dois? — questiono, estendendo
dois cabides com um blazer branco e um preto com listras finas.
— O preto, vai ficar um escândalo com o vestido. Se seu plano é
matar aquele cara, já garanto que vai conseguir. — Ela dá risada antes de
fechar o livro e guardá-lo na mochila.
Olho para o meu reflexo no espelho. O vestido preto de cetim é justo
e destaca a curva do meu quadril. O tecido acaba um pouco acima dos
joelhos e as alças finas, combinadas ao decote em formato de coração, fazem
com que meus seios pareçam maiores do que realmente são.
Estou realmente bonita, e me sinto confiante quanto a isso.
— Não quero matar ninguém, ao menos não desse jeito — Uma risada
me escapa. — Ethan não me deu uma mísera pista de para onde vamos, não
sei ao certo o que esperar.
— Eu acho que ele vai te levar a um restaurante idiota, é a cara dele
ser tão previsível — diz antes de se levantar e vasculhar minha gaveta de
lenços. Concordo com a cabeça enquanto solto uma risadinha. — Me
empresta essa bandana? Esqueci a minha em casa.
Faço que sim com a cabeça e ela enfia o tecido no bolso da mochila.
Lily veio para o meu alojamento impedir que eu tenha um colapso e está
aproveitando para matar tempo antes de ir, junto de outros ativistas, para
uma manifestação na frente de um pet shop que foi denunciado essa semana
por maus tratos.
— Ei! — chamo sua atenção. — O que acha de me levar com você?
Posso dizer para Ethan que me esqueci que iríamos sair.
— Amiga, da última vez que te levei para um protesto você quase foi
presa por discutir com um policial. Acho que se for para te buscar na
delegacia, prefiro que seja por tentar, de maneira mal sucedida, matar o
Inominável em praça pública, do que por desacato à autoridade. — Ela se
vira em minha direção. — E, se me lembro bem, foi você quem sugeriu essa
aproximação. Lide com isso, garota!
Bufo, frustrada, entretanto, acabo caindo na gargalhada junto com ela
recordando do dia em questão. Até hoje não acredito que por essa garota
fiquei seis horas acorrentada a uma árvore. Mas se quer saber, morro de
orgulho todas as vezes que passo pela amendoeira gigantesca na Lincoln
Square e sei que ela não foi derrubada porque nós estávamos lá.
— Como vão as coisas na NYU? Ainda está saindo com aquele
alternativo do curso de música? Por favor, me encha de atualizações sobre
sua vida amorosa, faltam quarenta minutos e eu estou nervosa pra caralho —
peço, desesperada, assim que termino de me vestir e me maquiar, pegando o
secador de cabelo e a escova.
Um silêncio parcial se faz presente enquanto eu escovo os fios do
meu cabelo. Noto, pelo reflexo dela no espelho, que o semblante de Lily se
torna um tanto envergonhado, como o de uma criança que é pega no flagra.
Giro sobre os calcanhares e apoio uma das mãos na cintura, a que está
segurando a escova. Estendo o secador já desligado em sua direção como
uma arma.
— Okay, desembucha, agora.
Ela se joga sobre a cama tapando os olhos com as mãos e é nesse
momento que eu me posiciono diante dela, fuzilando-a com os olhos
enquanto o jato quente bate contra meus fios.
— Lilian Monroe Stanford, na garganta de quem você anda enfiando
essa língua? — Ela bufa, nervosa, e aperta ainda mais forte os dedos contra
os olhos. — Não me diga que você voltou com a… — inicio, mas sou
interrompida.
— Annelise! — diz rápido, me deixando em choque.
O silêncio que recai sobre o quarto só não é maior do que o espaço
que separa meus lábios, porque minha expressão realmente está escancarada.
— Annelise, tipo, Annelise? Mansen? Annelise Mansen? Irmã do
Tyler, cunhada da Megan, Annelise? — pergunto esbaforida me lançando em
sua direção na cama.
— Essa aí mesmo.
Lily ainda está com as mãos sobre o rosto. Tento tirá-las para encará-
la, mas não obtenho sucesso.
— Como? Quando? Porque não me contou antes, sua bobona? — A
série de perguntas que faço é interrompida pelo estalo em minha mente.
Quase solto um chiado alegre quando me lembro de tê-las apresentado na
festa da Tory. — Ai, meu Deus! Eu fui a cupida de vocês! Me conte tudo, eu
tenho o direito de saber!
Ela puxa o ar com força e eu me sento do seu lado, encarando-a com
expectativa. Meu coração parece prestes a sair do peito tamanha a euforia.
— Talvez eu tenha ficado um tanto obcecada por ela depois daquela
festa que fomos com a Meg. Talvez nós tenhamos nos beijado naquela noite
depois dela me contar que é lésbica e, só talvez, eu tenha passado o fim de
semana com ela em Boston — confessa de uma vez, abrindo um espaço entre
os dedos para analisar minha reação.
Puta. Que. Pariu.
Um grito fino escapa da minha garganta enquanto dou alguns pulinhos
animados sobre o colchão.
— Meu Deus, vocês já estão tãaaaaao namoradinhas! — Dou risada
enquanto afundo o dedo em suas costelas, fazendo cócegas que lhe arrancam
gritos altos.
— Cala a boca! — esbraveja antes de jogar um travesseiro em meu
rosto. — Não é nada disso!
— É sim! Lily vai namoraaaaarrr! — cantarolo, rindo, antes de saltar
para fora da cama para terminar de arrumar meu cabelo.
— Não vou namorar, sua emocionada. Annelise faz o tipo livre, não
curte relacionamentos. — Seu tom de voz agora é pesaroso.
— E como você se sente sobre isso?
— Eu estou f-o-d-i-d-a! Aquela mulher é a porra de um sonho! — A
falsa voz de choro me faz gargalhar profundamente. — Ela é voluntária no
verão num projeto para tartarugas, amiga, além de linda, simpática, ela
também ama o meio ambiente! Sinceramente, eu estou muito triste que essa
garota não vai ser a minha namorada, eu juro.
A crise de riso que me toma faz com que meu corpo trema e eu quase
perca o ar, apoio o braço na parede sentindo os meus olhos lacrimejando.
Quando, enfim, recupero o fôlego, aponto em sua direção.
— Lily, você é linda, gostosa, inteligente, futura historiadora, vegana,
engajada em pautas importantes, faz um doce de frutas vermelhas de comer
rezando, além de ser uma das pessoas mais legais que habita nessa Terra, e
não vou nem citar que é uma cheerleader incrível, porque isso, a NYU
inteira sabe — digo, firme. — Annelise não é louca de perder alguém como
você, vai entrar naquele coração. Confio no seu potencial.
— CÉUS! Você é uma gênia! — grita pulando da cama.
— É claro que sou.
— Vou ganhar aquela garota pelo estômago, o doce de frutas
vermelhas nunca falha.
Caímos na risada pela vigésima vez, e enquanto termino de me
arrumar, escuto atenciosamente um monólogo sobre o quanto Annelise
Mansen é incrível.
Lily é uma romântica incurável.
Exatamente às três e meia da tarde meu celular vibra e as notificações
do aplicativo de mensagens piscam na tela.
Problema de Estimação: Tô aqui embaixo, pode descer.
Problema de Estimação: Vim com o carro do Tyler, acho que as
motos não são muito a sua praia :)
É inevitável sentir o nervosismo se alastrando por cada uma das
células do meu corpo. É a primeira vez que sairemos juntos e sozinhos
unicamente para nos divertirmos e nos conhecermos, e por algum motivo,
isso é grandioso para mim. Sem amigos nos observando munidos de
expectativas, sem uma obrigatoriedade implícita de mantermos aparências.
Apenas duas pessoas que já fazem parte da vida um do outro, tentando
construir algo concreto.
É um grande passo, estou curiosa, não vou negar.
“Quando eu vejo você sorrir
Eu posso enfrentar o mundo
Você sabe que eu posso fazer qualquer coisa
Quando eu vejo você sorrir”
WHEN I SEE YOU SMILE | Bad English

17 de Agosto de 2021

A tarde ensolarada que se estende por Nova Iorque não é o suficiente


para tornar o dia menos frio. O outono está dando seus primeiros sinais e as
roupas mais quentes pouco a pouco vão saindo dos armários e tomando
espaço, bem como a programação das pessoas vai se alterando.
Passo os dedos entre os fios do meu cabelo, jogando-o para trás
enquanto, do lado de fora do carro do Tyler, vejo a mensagem brilhando no
visor do meu celular.
Coelhinha: Já estou descendo, um segundo.
Respondo com um emoji de “joinha” e guardo o celular no bolso da
calça chino que estou vestindo. Cruzo os braços sobre o peito e apoio as
costas na porta do carro enquanto encaro a entrada da Chisholm House. Um
grupo de meninas passa por mim fitando-me com curiosidade, como se se
perguntassem o que faço aqui, arrumado, encostado em um carro na frente da
moradia universitária feminina.
As pessoas na Irving sabem poucas coisas sobre mim. Jogar basquete,
morar fora do campus, dirigir uma moto e fugir de relacionamentos são
basicamente as únicas informações que precisam para se sentirem reais
fiscais da minha vida e eu, definitivamente, não almejava nada disso quando
entrei para o time. Foi uma terrível consequência que até hoje me dá nos
nervos.
Ofereço um sorriso político para as garotas e, internamente, rezo para
que Amelie se apresse e me livre disso.
Como se fosse capaz de ouvir meus pensamentos, a porta do prédio
diante de mim se abre e assisto quando minha companhia pelo resto do dia
desfila em passos firmes em minha direção. Ao lado dela, uma garota que
reconheço de algumas festas e da cafeteria joga um beijo no ar, se
despedindo antes de seguir para a escada lateral que se estende em direção
ao jardim do campus.
Quando os olhos de Amelie, enfim, se erguem em minha direção,
aceno com a mão.
Ela ajeita a bolsa sobre o ombro com uma das mãos e com a outra
segura firme um blazer escuro. Analiso-a por alguns segundos enquanto
caminha até mim.
Está usando um vestido preto de alças finas que se agarra ao seu
corpo, destacando cada maldita curva e eu quase sinto vontade de sair
correndo e me esconder, porque porra, esse deveria ser um encontro de
amigos e agora minha mente traíra só consegue focar no quão bonita ela está.
Os olhos amendoados finos estão destacados por alguma maquiagem
que ela passou nos cílios. Um colar com um pequeno brilhante solitário
pende em seu pescoço e os cabelos estão soltos, caindo sobre seus ombros.
Agradeço aos céus por ter investido em uma roupa mais arrumada, porque eu
ficaria extremamente destoante ao lado dela se estivesse usando jeans e
moletom.
— Estou completamente surpresa com sua pontualidade e lisonjeada
pelo cavalheirismo de não me fazer subir de novo naquela moto. — O tom
divertido de sua voz quando ela se aproxima faz meu nervosismo inicial se
esvair e me arranca um sorriso largo.
— Oi para você também, Coelhinha — provoco, ainda sorrindo, antes
de abrir a porta para que ela entre.
Estendo a mão em sua direção para ajudá-la a subir no carro, mas ela
dispensa com um tapinha e se acomoda no banco do carona ajeitando os fios
de cabelo, que hoje estão alisados, colocando-os para trás. Fecho a porta e
dou a volta ao redor do veículo para entrar, me posicionar atrás do volante e
passar o cinto de segurança pelo corpo.
— Pronta? — questiono antes de dar a partida.
— Me surpreenda, Ethan Harris.
A piscadinha desafiadora, somada à sua fala, me faz ter ainda mais
orgulho do destino que escolhi para nossa tarde. Ficou acordado entre nós
que, a cada semana, um dos dois vai escolher um programa que ache que
agradaria ao outro. Fica mais fácil depois dos dois primeiros porque você já
conhece melhor a pessoa, e só porque Amelie pensa que sou um otário, ela
me desafiou a organizar o primeiro dos nossos encontros.
Acontece que, se tem uma coisa em que sou bom, é em observar as
pessoas, e Amelie ficaria surpresa se soubesse a quantidade de coisas que
ela consegue revelar sem querer.
— Como foi a sua semana? — pergunto olhando-a de soslaio. Ela está
entretida tentando descobrir como mexer no rádio. Puxo meu celular do
bolso e o desbloqueio pela digital, abrindo o aplicativo de música antes de
colocá-lo sobre seu colo. Meus ouvidos permanecem atentos para sua
resposta.
— “Agitada” definiria bem. — Ela não entra em detalhes, está
concentrada na tela do aparelho.
— Ainda saindo com o Maddox?
— Já combinamos que minha vida amorosa não é da sua conta, pare de
ser intrometido.
Solto uma risadinha, porque ela está quase chiando no final.
— Fala sério, Coelhinha, aquele cara é tão interessante quanto uma
pedra, não consigo acreditar que você ‘tá flertando com um sapatênis
ambulante! — Meu tom sôfrego é teatral, e no instante em que paro o carro
no sinal, algo completamente inesperado acontece.
Amelie dá risada e eu pareço ter entrado em estado de choque.
Se não fosse pelo som agudo reverberando pelo ambiente, eu não teria
uma prova de que isso realmente aconteceu, porque no instante em que
busco-a com os olhos, ela vira o rosto na direção contrária e está tentando
sufocar o riso com uma das mãos.
— Qual é, não faz isso, por favor — peço, um pouco mais sério,
antes de levar a mão até seu pulso e puxá-lo devagar até que esteja sobre o
banco.
— Isso, o quê? — Seu rosto está ruborizado. A gargalhada cessou e
ela parece um tanto confusa quando me encara.
— Você nunca sorriu para mim — explico, fitando seus olhos escuros.
— Quê? — A pergunta sai baixa e a respiração ofegante vai se
normalizando aos poucos.
— Você nunca sorriu para mim — reafirmo. — Está sempre
escondendo o rosto, apertando os lábios para afastá-lo. Eu só não tenho
ideia da razão, e eu sei que você ri bastante porque já te vi sorrindo para
outras pessoas, mas nunca para mim. Se vamos ser amigos, eu queria muito
entender por que você fazia isso, e por que diabos continua fazendo. Tipo, o
que tem de errado comigo?
Amelie parece ter sido pega de surpresa, porque seus olhos
arregalados se fixam aos meus enquanto um vinco se afunda em sua testa.
Sua boca se abre algumas vezes, entretanto, nada sai. As palavras parecem
ter escapado de sua mente como num grande apagão. Mantenho o olhar firme
em sua direção, deixando claro a expectativa por uma explicação.
Sinto-me mergulhado em uma enorme bolha, porque, em segundos, o
mundo não parece mais estar acontecendo do lado de fora. Somos só eu, ela
e seu perfume doce que está impregnado no ar dentro do veículo.
De maneira brusca, uma buzina alta, vinda do carro de trás, chega até
meus ouvidos e me puxa de volta para a realidade. Volto as mãos para o
volante, afastando-as de seu pulso, e dou a partida novamente balançando a
cabeça numa tentativa de ordenar meus pensamentos. O veículo avança pelas
ruas da cidade e, de uma hora para outra, me sinto sufocado pelo silêncio.
Aperto a borracha do volante com força, tentando afastar a batalha
interna que se inicia em minha mente. Cogito se devo insistir no assunto com
Amelie ou não, porque, honestamente, é algo que me magoa. Embora pareça
bobo, isso sempre me deixa um tanto atordoado.
Já estou distante do campus quando a voz da garota ao meu lado
rompe a tensão silenciosa que se instaurou entre nós.
— Desculpa, de verdade, é involuntário. Não sabia que você
reparava. — O tom baixo é um sinal de arrependimento claro.
— Reparo em muitas coisas em você, Coelhinha.
— Muitas coisas, é? — provoca e, dessa vez, quando viro a cabeça
para olhar para ela, o sorrisinho tímido ainda está lá, bem visível.
— Muitas coisas.
— Certo, Sr. Muitas Coisas, o que quer ouvir?
— Pode escolher, eu já escolhi o lugar — falo antes de dar a seta e
dobrar a esquerda em uma avenida.
— Para onde vamos, afinal?
— Você me disse para surpreendê-la, Coelhinha, isso meio que inclui
o fato do destino ser uma surpresa — repreendo. — Escolhe uma música aí.
Amelie balança a cabeça em afirmação, a contragosto, e leva poucos
segundos para que “Just The Way You Are” do Bruno Mars, comece a ecoar
pelas caixas de som no interior do carro.
Vejo-a balançando a cabeça de um lado para o outro no ritmo da
canção. Quando a música chega em uma parte específica cantarolo baixo,
acompanhando.
“And when you smile, the whole world stops and stares for a while,
cause girl, you're amazing, just the way you are.”
“E quando você sorri, o mundo inteiro para e olha por um tempo,
porque garota, você é incrível, do jeito que você é.”
Estamos próximos da Quinta Avenida quando meu celular apita em
uma notificação de mensagem. Ignoro e continuo com o olhar focado no
trânsito, entretanto, quando o som se repete, minha curiosidade me vence.
— Olha pra mim quem é, por favor? — Peço, esticando o polegar na
direção de Amelie sem olhar para o lado. Ela aproxima o celular do meu
dedo para desbloqueá-lo.
— Charles, está perguntando se você quer sair para beber mais tarde.
— Diz que eu não posso porque vou estar ocupado, e manda um emoji
de coelho — falo, prendendo o riso, e olhando-a de canto a tempo de ver o
bico se formando em seus lábios.
— Não vou mandar o emoji, seu babaca.
— Sempre tão amorosa. — Solto um suspiro teatral.
Ela está entretida digitando e não percebe quando estaciono o carro
junto ao meio fio. Aperto o botão que desliga o carro e pego a chave no
suporte, me virando em sua direção para acompanhar a reação.
— Chegamos — anuncio.
Analiso-a com a expectativa exalando pelos poros e tenho receio que
ela note o quão apreensivo eu estou para saber se ela vai realmente gostar.
Embora eu esteja completamente seguro da minha escolha, Amelie é uma
caixinha de surpresas, e é também alguém com um gosto apurado, além de
não ser exatamente a minha maior fã, o que faz a insegurança existente em
meu interior se aguçar. Quero que ela goste, quero ter feito a coisa certa.
Acompanho quando seus olhos se erguem da tela e ela os direciona
para a fachada do prédio do outro lado da rua. A reação é instantânea, e é
exatamente quando seus olhos arregalados e sua boca aberta em surpresa se
voltam em minha direção, que eu percebo o quanto eu quero ser amigo dessa
garota.
Ela provavelmente já esteve aqui outras vezes, e provavelmente
conhece de cor cada andar desse prédio, mas ainda assim, um sorriso largo e
genuíno preenche todo o seu rosto e percebo a empolgação a tomando.
— Mentira! Ethan, mentira! — Sinto vontade de rir vendo ela quase
pulando no banco.
— Gostou?
— É o MoMA! É claro que eu gostei, eu amo esse lugar!
O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque é, com certeza, um dos
maiores e mais importantes do mundo. O acervo de mais de 150 mil obras
referentes às artes plásticas somado aos mais de 305 mil livros da sua
biblioteca garantem ao MoMA posição de destaque no cenário mundial da
arte, abrigando obras de Paul Cézanne, Van Gogh, Picasso, Gauguin, Tarsila
do Amaral e tantos outros nomes notáveis do mundo artístico.
Este lugar é a cara da Amelie.
Descemos do carro e atravessamos a rua lado a lado, apresento os
bilhetes, que garanti antecipadamente, logo que passamos pela porta
giratória. Seguimos pelo longo corredor do hall de entrada até chegarmos à
parte onde as obras se encontram. O movimento de pessoas não é tão caótico
como nas sextas feiras quando a entrada é gratuita, mas ainda assim há um
número considerável de visitantes.
Subimos a longa escada que leva até o local das exposições em
completa sincronia, e quando chegamos, vamos preguiçosamente de obra em
obra.
— Quando você começou com o lance da arte? — Pergunto não só por
curiosidade, mas também para quebrar o silêncio.
— Não teve exatamente um momento, acho que desde que me entendo
por gente isso foi parte da minha vida. Minha mãe era pianista antes de eu
nascer, se apresentou em grandes shows, e meu pai sempre teve um traço
bom para desenhar. Ganhei meu primeiro kit de pintura antes mesmo de
saber andar. — Estamos parados diante de um quadro enorme laranja com
uma bola verde dentro. Amelie o encara como se fosse algo extremamente
complexo e eu me sinto um pouco burro.
— Minha mãe pintava também — Falo sem perceber.
— Jura? — Questiona virando o rosto para me olhar, e faço que sim
com a cabeça.
— Na casa do meu pai, no Queens, tem uma infinidade de telas que ela
pintava para passar o tempo. Te mando foto qualquer dia.
— Mande sim, e que incrível! Ela trabalhava com o que? — Pergunta
antes de caminharmos mais adiante.
Ah, puta merda. Esse assunto.
— Era investigadora federal. — Retorço o nariz em uma careta e
engulo seco, focando na escultura de um busto exótico diante de nós.
— Caramba! Isso é…
— Uma merda, acredite.
Amelie parece notar a mudança drástica no meu humor, porque
desanda a falar sobre os artistas a quem cada obra pertence. Me forço a
deixar de lado os pensamentos ruins, porque realmente quero que seja uma
tarde agradável. Ouço tudo que ela diz com atenção e dou risada da sua
didática.
Quando estamos diante de um dos quadros da Frida Kahlo, Amelie
assume um ar sorrateiro e desce o tom de voz enquanto me conta sobre o
triângulo amoroso entre a pintora, Diego Rivera (seu marido) e Trótski
(intelectual marxista). Sinto vontade de rir porque ela fala baixinho, como se
estivéssemos diante da própria Frida.
— Você explica arte como se estivesse contando uma fofoca, talvez eu
fosse muito mais ligado nessas coisas se meus professores tivessem sido
assim — falo, rindo, e ela parece se lembrar de algo.
— Falando em fofoca… — O tom de quem está prestes a revelar algo
importante chama a minha atenção.
— Conta!
— Se lembra da minha amiga que estava com a gente na festa da Tory?
Como esquecer daquela noite.
— A que estuda na NYU? Que usa tranças e me odeia por sua causa?
— questiono e Amelie assente, dando risada. — Lembro, por quê?
— Ela e Annelise estão tendo um lancezinho — revela.
— Mentira! — exclamo totalmente chocado.
— Verdade, descobri um pouco antes de você chegar.
— Meu Deus, Annelise não me contou nada, que absurdo. — Amelie ri
e eu desvio o olhar da escultura para visualizar seu sorriso. É bom demais
poder finalmente fazer isso. — Nossa, elas formam um casal bonito pra
cacete.
Me recordo das duas juntas na festa e a forma com que passaram a
noite coladas uma na outra.
— Eu sei disso! Acho que nosso destino é juntar casais sem querer.
— E morrer solteiros — comento e prendemos o riso ao
mesmo tempo.
— Alguém tem que ter uma vida amorosa falida, faz parte. — Ela
caminha para o lado e fixa o olhar no quadro abstrato.
— Minha vida “amorosa” é incrível, você que tem dedo podre.
— Se você considerar ter uma pessoa diferente na sua cama toda
semana algo “incrível”, claro. — O tom debochado me faz encará-la de
perfil.
— Qual o problema com isso? Sexo casual não é um crime.
— Não é, mas você não acha um tanto solitário? Estar sempre com
alguém só pelo sexo, sem envolvimento algum? — Seus olhos estão focados
em uma outra escultura.
Penso um pouco sobre a resposta, e sim, é um tanto solitário, mas só
de pensar em ter alguém controlando a minha vida de novo meu estômago
embrulha.
— Não sinto falta de relacionamentos — digo, dando de ombros. — E
não sabia que você fazia o tipo romântica, Coelhinha.
Ela solta uma risada de escárnio e se vira para me olhar de frente.
— Não é nada disso. Eu só, sei lá, não consigo ter essa vida agitada
que você e metade da faculdade levam. Gosto de receber atenção.
— Ah, linda, eu dou bastante atenção para as garotas com quem eu
transo, se quer saber. — Ela enruga a testa em uma careta que me faz querer
rir.
— Eu era mais feliz segundos atrás, antes dessa informação. O meu
ponto é o seguinte, qual a cor favorita da última garota com quem dormiu?
— Sei lá, porra, quem pergunta isso? — Amelie ergue a sobrancelha
como quem acaba de comprovar uma teoria. Ah, entendi. — Okay, faz
sentido, você curte atenção de verdade.
— Exatamente, querido. — Ela toca meu nariz com o indicador antes
de se virar. — Vamos, quero ver a “Noite Estrelada”.
Amelie sai caminhando por entre as galerias, parando vez ou outra
para observar algumas obras. Deixo que ela vá na frente e caminho um
pouco mais atrás, contemplando seu interesse e paixão genuína pela arte
moderna.
Em algum momento do passeio, ela vestiu o blazer que carregava e
colocou os cabelos para trás da orelha, o que, de alguma forma, a deixou
com um ar intelectual. Não consigo evitar de pensar em como ela ficará bem
usando roupas sociais em suas futuras reportagens. A mulher, sem dúvidas,
tem toda a pose de jornalista renomada.

Depois de algumas horas, e de passarmos pela “Noite Estrelada” de


Van Gogh, “Autorretrato com Cabelo Cortado” da Frida Kahlo e “Os
Amantes” de René Magritte, paramos em uma parte destinada a obras
digitais onde os quadros são expostos na parede com projetores. Em
seguida, entramos em uma seção só de esculturas, já próximo ao corredor de
saída onde um segurança gigante nos encara feito um gavião.
Ficamos diante de uma réplica feita em mármore da “Vênus de Milo",
estátua da Grécia Antiga, parte do acervo do Museu do Louvre, em Paris.
— Essa estátua me lembrou de uma coisa. Quantas tatuagens você tem?
— pergunta curiosa.
— Seis. A Vênus no braço, o anjo na costela, uma margarida na batata
da perna, a assinatura da minha mãe no braço também, mas essa você já viu.
— Solto uma risada amarga pelo contexto em questão. — Tem essa aqui
também.
Levo dois dedos até meu lábio inferior e o puxo para baixo, deixando
sua parte interna à mostra. Amelie se aproxima para ler e prende o riso
quando entende.
— Não acredito que tatuou “FUCK” dentro da boca.
— É uma longa história — digo rindo.
— Tenho até medo. Mas espera, até agora foram cinco, qual é a sexta?
Solto uma risada sacana e levo uma das mãos até seu queixo,
erguendo seu rosto para que me encare de baixo.
— A sexta fica na minha bunda, e você só vai descobrir se, um dia, o
mundo virar do avesso e a gente for parar em uma cama. — Abro um meio
sorriso após deixar a sentença flutuar da minha boca em um sussurro. Vejo
um lampejo de curiosidade passar pelos olhos escuros da garota, devagar o
suficiente para ser notado.
— Infelizmente vou ter que morrer com essa curiosidade. — O
deboche escorre por sua voz e ela me afasta, me dando um empurrão no
ombro um tanto inesperado.
Por estar despreparado, sinto meu coração acelerar quando me
embolo em minhas próprias pernas e acabo perdendo o equilíbrio entre os
dois pés. Por instinto, agarro as duas únicas coisas próximas de mim, a
garota e a estátua ao nosso lado. Se não fosse a mão de Amelie me agarrando
com força, me segurando, tanto eu quanto a Vênus Réplica iríamos beijar a
porra do chão no próximo segundo.
— Ei! Vocês dois aí! — Ouço uma voz grossa ecoando pela sala.
Recupero o equilíbrio e empertigo a coluna quando vejo, por cima do
ombro da garota, o segurança brutamontes caminhando em nossa direção.
— Não olhe para trás, mas acho que nosso passeio acaba de se
encerrar — digo, baixo, e ela me olha confusa. — Segurança muito puto se
aproximando.
Encaro Amelie, que está com os olhos arregalados, e uma crise de
riso nervosa nos toma. Tenho exatos cinco segundos para pensar em algo
antes que o guarda nos alcance. Envolvo seu pulso com uma das mãos e a
puxo em direção à saída, caminhando depressa entre as galerias.
Gargalhamos alto enquanto damos uma de fugitivos e isso atrai alguns
olhares. Quando conseguimos, enfim, alcançar as portas giratórias e sair do
museu, as nossas respirações estão ofegantes e parar de rir exige um esforço
gigante.
— Puta que pariu! Fugimos da porra de um museu, Ethan Harris! — A
frase sai uma mistura de riso com bronca enquanto atravessamos a rua em
direção ao carro.
— Estava faltando uma emoção nesse encontro.
Dou risada tentando me justificar. Destravo o carro pelo botão da
chave e abro a porta do carona para Amelie entrar. Dessa vez não lhe
estendo a mão para não levar outro tapa, mas ela ainda parece enfraquecida
pela crise de riso, porque sem dizer nada, apoia a mão no meu ombro para
subir e se sentar no banco.
Quando me sento atrás do volante, já entrego meu celular
desbloqueado em suas mãos para que escolha a trilha sonora.
— Com fome? — Questiono enquanto manobro para sair da vaga.
— Bastante.
— Gosta de sushi? — pergunto, e ela assente com a cabeça. — Quer
pedir em casa ou ir ao restaurante?
Ela me fita desconfiada e vejo, de canto de olho, quando rodeia os
dedos sobre a tela do celular como se estivesse pensando.
— Tyler e Annelise estão fora hoje, mas se preferir, podemos ir até o
restaurante, você escolhe. — Faço pouco caso para que ela entenda que não
estou forçando a barra, porque realmente não estou. O que ela decidir, eu
topo.
— Acho que prefiro o restaurante. Um passo de cada vez, se importa?
Ela pergunta com um meio sorriso e eu nego com a cabeça,
assegurando-a, logo em seguida, de que a deixarei em casa assim que
terminarmos de comer.
“Você e eu e mais ninguém
Sentindo coisas que eu nunca senti
O jeito que você me colocou sob o seu encanto”
TOUCH | Little Mix

17 de Agosto de 2021

Ethan está se esforçando de verdade.


Nunca, em mil anos, eu imaginei que um dia teria vivido tudo que vivi
nas últimas horas, e certamente eu não tenho do que reclamar. Tive uma das
tardes mais agradáveis da minha vida, e há tempos eu não me divertia tanto.
O MoMA é um dos meus lugares favoritos dessa cidade. Já passei
incontáveis horas me aventurando sozinha pelos seus corredores, e sempre é
tão admirável como da primeira vez. Hoje, no entanto, estar acompanhada
elevou a experiência.
Eu poderia passar incontáveis horas falando sobre história da arte. É
um assunto que, além de dominar, tenho paixão por conhecer, e pela forma
como os olhos castanhos iluminados do garoto me encaravam, sei que ele
poderia me escutar por horas falando sobre isso também.
Essa é mais uma da infinidade de coisas que tenho descoberto sobre o
que é ser amiga de Ethan Harris: ele sabe fazer com que você sinta que suas
paixões valem a pena.
Algo raro num mundo onde as pessoas estão cada dia mais desatentas
ao outro.
E por falar em desatenção, estou longe de ser uma adepta. Por isso,
vez ou outra, enquanto o observava caminhar pelo museu observando com
amabilidade cada uma das obras, minha mente inquieta fez questão de me
chamar atenção para o desconforto presente no tom de voz de Ethan ao falar
sobre o emprego da própria mãe.
Uma parte de mim se pergunta se há alguma relação entre a morte dela
e o seu ofício, e outra parte reza internamente para que não. Seria doloroso
demais.
— Tenham um bom apetite! — Sou desperta dos meus pensamentos
quando a voz do garçom chega aos meus ouvidos.
Lhe ofereço um sorriso simpático e agradeço com um meneio de
cabeça quando ele termina de colocar as travessas recheadas de peças da
culinária nipônica.
No exato instante em que coloco a borrachinha que une os hashis,
Ethan volta de sua ida ao banheiro e se senta novamente na cadeira diante de
mim.
— Ah, não! — A risada curta me faz olhá-lo. — Você não vai comer
sushi com essa porra na minha frente, Coelhinha! Aprender a comer essas
coisas não é tipo um item básico do manual das crianças ricas?
Encaro-o com uma careta de recriminação.
— Minha família é metade mexicana, Harris, eu aprendi a comer
pimenta sem lacrimejar, e não a usar hashis. Essa tara por comida japonesa
americanizada é coisa de gente branca. Você sabia que lá no Japão eles não
comem metade dessas coisas?
— Tá bom, Miss México, você pode até estar certa, mas…
— Yo tengo razón[7] — interrompo-o em espanhol e prendo o riso.
— Hablo español con fluidez y eres insoportable, si me preguntas.[8]
— Vejo-o revirar os olhos e não consigo conter a risada
— Tá legal, eu me rendo. — Ergo os braços ainda rindo.
— Como eu ia dizendo, se vai ser minha amiga, precisa saber que eu
simplesmente vivo à base de sushi, então provavelmente vamos comer isso
muitas vezes e eu não admito que minha futura melhor amiga não saiba usar
hashis.
— Futura melhor amiga, hein, que responsabilidade — debocho antes
de tentar pescar um uramaki da bandeja.
Minha mão, no entanto, fica parada no ar quando uma mão gigante do
garoto envolve meu pulso e a outra tira a borrachinha dos palitos.
— Ei! — reclamo, olhando-o de cara feia.
— Para você não dizer que nunca aprendeu nada comigo, é o seguinte,
o segredo está nesses três dedos aqui.
Sinto um tremor estranho no estômago quando Ethan posiciona os
hashis da forma correta nas minhas mãos. Sua mão se entrelaça à minha
enquanto ele me instrui sobre a mecânica toda dos movimentos, e minha
mente se divide entre prestar atenção no que está dizendo e ficar
completamente aterrorizada com o impacto de um simples toque.
Quando ele me pergunta se entendi, balanço a cabeça em afirmação e
ele me incentiva a tentar pegar o uramaki sozinha. Não preciso citar o belo
desastre que se desenrolou. Ethan assistiu, pacientemente, minhas seguidas
tentativas, e só quando, enfim, consegui levar uma peça da travessa até a
boca sem deixar cair, é que nós comemos em meio a conversas triviais sobre
a faculdade.
Acho que, no fim das contas, a ideia de ser amiga do meu ex-inimigo
não é tão ruim assim. Posso viver feliz com isso, porém, tenho medo do que
pode se tornar, e principalmente, tenho medo de que se torne algo
importante.
As pessoas raramente chegam na minha vida para ficar.
“Tenho estado confuso ultimamente (sim)
Vendo minha juventude escapar (sim)
Você é como o Sol, você me acorda”
SOFTCORE | The Neighbourhood

21 de Agosto de 2021

Assim que estaciono próximo ao jardim principal do prédio de


Jornalismo, desço da moto sentindo cada maldito músculo doendo feito o
inferno. Solto um resmungo irritado enquanto guardo o capacete em um dos
compartimentos traseiros da Harley Davidson.
Coloco meus fones e, enquanto caminho em passos lentos e
despreocupados pela trilha de pedras, minha playlist de rock clássico
reverbera em alto e bom som em meus ouvidos. No entanto, pauso a música
quando, a poucos metros, vejo a figura corpulenta de Elói Pierre encostado
em um corolla prata.
Ele dá um último trago no cigarro eletrônico e o guarda no bolso da
jaqueta de couro antes de passar os dedos entre os fios de cabelo.
— Não são nem dez da manhã e você já está parecendo a porra de uma
chaminé, cara. — Dou risada assim que me aproximo dele e abano o ar com
as mãos espalhando a fumaça. — Você já tomou café da manhã?
Elói revira os olhos e empertiga a coluna, ajeitando a bolsa de couro
preta que está transpassada por seu corpo.
— Torradas, ovos, bacon, vitamina de banana com aveia e café. —
Ele ergue um dedo para cada item e me lança um sorriso debochado. —
Exatamente como manda o plano alimentar, mamãe.
Meu amigo passa por mim e me ponho a caminhar junto dele.
— Larga de ser idiota, você sabe que é o meu dever cuidar dessas
merdas. — Deixo um soco fraco em seu braço.
— Eu sei, acredite, você é um bom capitão.
O tom de Elói se torna minimamente sombrio, isso acontece com uma
frequência expressiva. O cara não é de falar muito, mas se solta um pouco
quando está entre amigos. Charles Brooks diz que isso é a frieza francesa
que é intrínseca em sua personalidade, mas eu acho que ele faz exatamente o
que eu e Brooks deveríamos: dizer somente o necessário para evitar falar
merda.
Sei que sua experiência no time de basquete de sua antiga
universidade, na França, não foi exatamente boa, ele já me contou algumas
histórias sobre os caras serem completos otários. Foi uma curta passagem,
no entanto, porque ele entrou para o programa de intercâmbio logo no
segundo semestre, mas ainda assim, o desprezo sempre que fala sobre o
antigo time é evidente.
Subimos a enorme escadaria do prédio de Jornalismo lado a lado.
Alguns caras passam por nós parabenizando pela vitória no jogo do fim de
semana, e assim que entramos no corredor lotado, boa parte dos olhares dos
universitários se grudam em nossos rostos.
— Aquela ali não é a sua garota? — Elói pergunta, apontando com o
queixo um pouco mais adiante.
Curioso, sigo o movimento e meus olhos encontram Amelie encostada
em um canto na parede. Ela está vestida num suéter branco com uma saia
justa xadrez amarela, um all star preto cano alto veste os pés, e sua atenção
está focada no celular em suas mãos.
— É a Castillo, e ela não é a “minha garota”.— Cesso meus passos e o
encaro.
— Passe livre, então? — questiona com um sorriso diabólico.
— Passe livre para quê?
— Ah, qual é, Harris, não se faça de besta. — Ele gargalha e joga os
fios longos e loiros para trás. O filho da puta tem uma beleza dionisíaca dos
infernos. — Ela é gata e divertida, gosto das divertidas.
Solto uma risada incrédula e balanço a cabeça em negação.
Definitivamente, não acredito que meu melhor amigo galinha está cogitando
dar em cima de Amelie.
— Mas nem fodendo! — esbravejo. — Pode tirar o cavalinho da
chuva, francês do caralho, ela não.
— Isso por acaso é… CIÚME? Ethan Harris está com ciúmes de uma
garota? — provoca, colocando uma mão em concha ao redor da orelha. — O
que vai acontecer agora? Cair dinheiro do céu?
Reviro os olhos sem a menor paciência para suas gracinhas.
— Não é ciúme, seu babaca. Se quer saber, ela não é do tipo que curte
lances casuais, e eu duvido que você saberia segurar esse pau dentro da
calça por mais do que dois dias — pontuo, e ele parece ofendido. — E tem
mais, ela é tipo a minha Beverly agora, portanto, se pretende deixar aquela
garota triste, você vai se ver comigo, e não me refiro ao Ethan que é seu
amigo.
A cartada parece funcionar, porque Elói ergue os braços em rendição.
Existem algumas regras implícitas dentro do time que jamais foram
conversadas de fato, mas todos os jogadores seguem religiosamente.
A maior delas é a de que o time vem primeiro que tudo, não de uma
forma esnobe, e sim, num conceito de que somos tão importantes uns para os
outros quanto uma família. É essa regra que garante nossa conexão em
quadra, somos sinceros uns com os outros e somos os nossos melhores
amigos.
A única brecha que existe se aplica às namoradas e às melhores
amigas. Qualquer um que pisar na bola com a garota que ocupe um desses
cargos vai sofrer as consequências independente da nossa irmandade. Não
ficamos com as melhores amigas uns dos outros por esse mesmo motivo,
para evitar confusão.
Eu nunca precisei aplicar essa regra porque a única melhor amiga que
tive foi Annelise, e ela é lésbica. Mas agora, mediante o questionamento de
Elói, percebo que se um dos caras fizesse Amelie sofrer, o mínimo que seja,
em hipótese alguma eu deixaria de defendê-la, assim como meu amigo não
hesitaria em se indispor com um de nós por Beverly Ford.
Continuamos a caminhar, e quando estamos quase próximos de
Amelie, seus olhos se erguem em minha direção como se fossem atraídos por
magnetismo. Nem que eu me empenhasse muito, me dedicasse intensamente,
jamais conseguiria esconder a satisfação que me toma quando um sorriso
gentil se abre em seus lábios.
É o que mais gosto da nossa amizade.
— Bonjour, ma belle! — Elói a cumprimenta quando paramos diante
dela. Observo atento quando ele pega em sua mão e deixa um beijo inocente
no dorso.
— Bom dia! — Ela tomba a cabeça de lado e sorri encantada pelo
gesto.
— Bom dia, Coelhinha — cumprimento antes de levar a mão até seu
cabelo, onde um fio tenta escapar da tiara branca. Ajeito-o com o dedo de
forma automática, e percebo os olhares da garota e do meu amigo me
encarando. — O que foi?
Elói me lança um olhar zombeteiro antes de unir as mãos em uma
palma.
— Bom, foi um enorme prazer estar com vocês, mas eu tenho uma
extracurricular de História da Comunicação em três minutos, então preciso
correr. Até mais, pombinhos. — Ele ri antes de se afastar e eu o olho feio
pelo “pombinhos”.
Assim que meu amigo se afasta, Amelie ajeita a bolsa em seu ombro
e ergue o rosto em minha direção. As íris escuras e brilhosas me encaram
com um misto de hesitação e expectativa. Percebo quando ela morde o
interior da bochecha antes de me oferecer um sorrisinho.
— Como foi o jogo do fim de semana? — ela pergunta baixinho, como
se estivesse processando a ideia de que esses somos nós agora.
Conversamos cordialmente no corredor da faculdade como bons
amigos.
— Vencemos — sintetizo, sentindo meu estômago se remoer.
Foi o meu pior jogo em tempos.
Definitivamente, não sei o que deu em mim no sábado. Perdi passes
bobos, errei cestas inacreditáveis e estava lento pra caralho sem nenhum
motivo evidente. E não se iluda, eu sei perfeitamente que esses dias
acontecem, dias em que simplesmente saímos da cama com o pé esquerdo e
nada parece no lugar. Só que, porra, estou na minha melhor forma, isso não
devia ter acontecido.
Amelie não se convence. Sei porque ela semicerra os olhos e dá um
passo em minha direção como quem tenta desvendar todos os meus segredos.
— Okay, vou reformular minha pergunta. — Ela alterna o peso entre as
duas pernas e escaneia meu rosto. — Como você jogou no fim de semana?
Merda, sou tão transparente ao ponto dela saber exatamente o que
sinto? Fecho os olhos e solto o ar devagar. Algo me diz que Megan já a
contou sobre o meu fiasco, então não vejo por que não falar.
— Muito mal, Coelhinha. E ainda estou processando, se quer saber. —
Estou encarando o chão agora, no entanto, sinto sua proximidade quando sua
mão pequena vem de encontro ao meu rosto com certo embaraço.
— Ei… — chama minha atenção.
A garota ergue meu queixo com o indicador me fazendo encará-la
novamente. Um sorriso apaziguador e tímido se arqueia em seu rosto, ela
tomba a cabeça de lado e fica tão ridiculamente fofa que sou obrigado a
sorrir.
— Foi só um dia ruim, capitão, vai rir disso na próxima semana
quando estiver comemorando a próxima vitória e tiver botado pra foder em
quadra.
Assinto e não consigo impedir quando uma gargalhada divertida me
toma, porque ouvir Amelie Castillo me chamar de “capitão” num bom
sentido e dizer “botar pra foder” em uma mesma frase é uma das coisas que
eu jamais pensei que estaria vivo para escutar.
— Você é uma excelente amiga, Coelhinha — falo, rindo e passando
o braço sobre seus ombros, puxando-a para caminhar junto comigo. —
Obrigado.
— Disponha. Sabe que podemos conversar sobre isso, se quiser, não
sabe? — Ela me olha de baixo. As sobrancelhas escuras estão arqueadas e
seu olhar desvia por milésimos de segundo para o meu braço contornando-a.
— Sei. Mas relaxe, é só preocupação de veterano. É meu penúltimo
ano jogando e meu último ano como capitão, porque os formandos não
podem assumir o posto. Então queria que fosse perfeito — assumo e não
consigo deixar de notar os olhares curiosos queimando sobre nós enquanto
desfilamos pelo corredor.
Eu sempre noto.
Sempre sei quando estão olhando para mim e falando sobre mim, e
Deus sabe como detesto isso.
Rezo internamente para que Amelie não esteja percebendo, porque sei
que se afastaria num instante. Sei que tem pavor de que pensem que é mais
uma na minha “lista”, que sente repulsa por essa atenção esquisita que
recebo, e que odiaria todas as pessoas que acompanhavam nossas brigas
como uma maldita novela, insinuando qualquer coisa diferente do fato de
termos nos tornado amigos.
Mas, droga, essa ideia de termos uma amizade normal e sem ressalvas
o suficiente para andarmos juntos pela faculdade é tão fodidamente
confortável.
Quando percebo que ela me estuda com curiosidade e, em seguida,
observa as pessoas ao nosso redor, afrouxo o aperto do meu braço em seus
ombros lhe dando espaço para que saia, se assim desejar. Estou quase certo
de que o fará, no entanto, é o que tenho aprendido: Amelie é uma caixinha de
surpresas.
Sinto quando seu braço envolve meu tronco e seus dedos se enrolam
no tecido do meu casaco. Olho para ela satisfeito, voltando a firmar meu
abraço sobre seus ombros, e ela me oferece um meio sorriso, onde consigo
notar um misto antagônico de medo e determinação em suas orbes.
— Sua temporada vai ser incrível, não vou ficar enchendo sua moral,
porque, bom… Embora eu não saiba nada sobre basquete, você — melhor
do que ninguém — sabe que é o melhor jogador que os Lions tem, não
precisa que eu diga isso. — Ela soa tão confiante que, mesmo que sua
afirmação seja um fato, eu sinto que acredito mais um pouco só porque ela
disse.
— Coelhinha, quem te escuta dizer isso nem imagina que semanas
atrás você passaria com um trator por cima de mim sem titubear — provoco,
rindo.
— Experimente me estressar para ver se não volto a ser aquela Amelie
em dois segundos, Harris. — O falso tom ameaçador me faz dar uma última
risada, porque no instante seguinte estamos diante da entrada do auditório
para a aula de Ética e Legislação em Comunicação. — Quer tomar um café
depois da aula? Tenho um turno na Letras e Grãos hoje.
— Eu adoraria, mas tenho um compromisso importante — digo, sem
entrar em detalhes. — Marcamos para amanhã, sim?
Amelie sorri e assente com a cabeça. Dou um aperto singelo ao redor
dos seus ombros e sinto quando ela tomba a cabeça de lado sobre o meu
peito. É o princípio de um abraço desajustado de despedida, o que me diz
que ela está conseguindo, mesmo que aos poucos, se abrir para mim. Um dia
chegaremos lá.
Nos afastamos e seguimos nossos respectivos caminhos. Enquanto eu
tenho o costume um tanto metódico de sempre me sentar nas primeiras
fileiras, Amelie escolhe sempre o meio para assistir às aulas. Uma das
poucas coisas que simplesmente não mudaram em três anos estudando juntos.

O cemitério TownHill é, quase sempre, um lugar vazio.


Foram poucas as vezes em que estive aqui e presenciei pouco mais do
que cinco pessoas. Na maioria das vezes o barulho das árvores e o canto dos
pássaros são os únicos sons que predominam no ambiente.
Hoje, no entanto, assim que passo pelos portões de aço do local,
percebo que há uma movimentação anormal de pessoas. Não demora muito
para que eu entenda que se deve por conta de um enterro, que se realiza a
poucos metros do túmulo de mármore branco carrara em que o nome da
minha mãe está gravado.
Caminho devagar, observando enquanto pessoas desconhecidas se
despedem de um ente querido. Algumas delas, vestidas em roupas escuras,
choram copiosamente, outras são silenciosas e mal permitem que as lágrimas
tímidas escorram por suas faces. Entretanto, não há como fugir ou negar, a
dor profunda da perda está estampada em seus olhares tristes.
Aperto com menos gentileza o buquê de margaridas brancas em
minhas mãos, porque as memórias do dia em que minha mãe foi enterrada se
apoderam com toda força da minha mente. Me lembro de mal conseguir
chegar perto do caixão, de não conseguir aceitar que a mulher que eu mais
amava no mundo não estaria mais nele, vivendo comigo.
Lembro de segurar Angeline, ainda bebê, com força em meus braços,
temendo que ela também fosse tirada de mim. A sensação de estar perdido
era tão avassaladora que até hoje não sei como fui capaz de suportar. O
Ethan de hoje daria tudo para dar um abraço naquele adolescente de quinze
anos.
Sacudo a cabeça com força ao notar que estou parado encarando o
enterro, prestes a sucumbir em minhas próprias memórias. Vejo, um pouco
mais adiante, uma garota loira sentada em um dos bancos, observando o
pequeno aglomerado de pessoas em luto.
Seus olhos cinzentos estão avermelhados pelas lágrimas e nublados
por pura dor. Ela abraça o próprio corpo e nega com a cabeça repetidas
vezes como se estivesse travando uma guerra interna.
Com cautela, me aproximo em passos firmes e me sento ao seu lado,
tomando uma distância segura para não invadir seu espaço pessoal. Puxo
uma das margaridas do buquê e estendo em sua direção, encarando-a de
forma receptiva.
— O primeiro dia é sempre o pior — digo, e seus olhos perdidos se
voltam para mim.
Levam alguns segundos até que ela pegue a margarida. Sinto uma
pontada forte no peito ao perceber que seu olhar transmite exatamente os
mesmos sentimentos caóticos que senti um dia. Ela parece ter no máximo
dezesseis anos e consigo me ver tanto em sua dor que meu coração aperta.
— Obrigada, mesmo. — A menina encara a flor em suas mãos e passa
o dedo pelas pétalas. O cenho franzido e o rosto enrubescendo são os
indicadores de que está prendendo o choro. — Essa dor… Essa maldita dor
que me faz querer vomitar tudo em meu corpo, vai embora algum dia?
Contenho a risada amarga que tenta escapar dos meus lábios porque,
porra, como posso dizer para alguém que acabou de perder uma pessoa que
essa dor simplesmente não desaparece nunca? Não é justo. No entanto, é um
fato: todos os dias, há sete anos, em algum momento entre a hora que eu
acordo e a hora em que me deito, eu sempre sinto meu peito doer.
Sempre dói.
— Não, não vai — falo baixo e um tanto frustrado. — Mas faz menos
estrago, dia após dia. Não vai embora, mas diminui.
— Quem veio visitar? — Ela ergue o olhar para mim, esperando uma
resposta.
— Minha mãe. E você?
— Minha irmã mais nova, seis anos. Perdeu a luta contra o câncer. —
A voz embargada faz com que eu sinta meu coração despencar do peito,
completamente mortificado.
Quando estou prestes a lhe dizer um “sinto muito”, a poucos metros
de nós uma mulher alta e loira, com a fisionomia abatida e traços idênticos
aos da garota sentada ao meu lado, acena em nossa direção.
— Juniper, vamos embora! — grita.
A garota, que agora sei que se chama Juniper, se levanta e vira em
minha direção.
— Obrigada pela flor, e sinto muito pela sua perda. Não vou dizer que
foi um prazer conhecer você, porque acho que nenhum de nós dois queria
estar aqui. — Ela diz, baixo, e eu dou uma risada fraca, assentindo com a
cabeça.
— Sinto muito pela sua irmãzinha, espero que você fique bem.
Dito isso, me levanto e sigo em direção à lápide da minha mãe, ainda
com a mente inquieta e presa nos olhos dolorosos da adolescente. Assim que
me aproximo, consigo ver uma figura masculina agachada diante do jazigo,
por alguns segundos penso que seja meu pai, mas quando chego ainda mais
perto, noto o distintivo dourado do FBI preso ao paletó preto e o rosto
inconfundível que me acompanhou por anos.
— Jeffrey? — Um vinco de confusão se afunda em minha testa e o
homem à minha frente tem um sobressalto assustado.
Seus olhos castanhos me esquadrinham quando ele fica de pé. Posso
jurar ter visto um lampejo de pavor tomar suas íris que estão fixas em mim.
— Por Deus, garoto, como você cresceu! Quanto tempo! — Ele sorri
de forma forçada e me estende a mão, que aperto de prontidão.
— É, você parou de nos visitar, perdeu um bocado de coisas — falo,
rindo sem humor.
Jeffrey Dunaway é investigador federal e amigo da família. Mais
precisamente, o ex-parceiro da minha mãe e uma das últimas pessoas a vê-la
com vida na fatídica noite que me mudou para sempre.
Mamãe e Jeff sempre foram bons amigos. Ele frequentava nossa casa
nos fins de semana e até ajudou meu pai a me ensinar andar de bicicleta, mas
depois que ela morreu ele simplesmente foi se afastando gradualmente até
sumir de vez.
No fundo, eu entendo. Deve ser doloroso olhar para a família de uma
amiga querida que se foi, e não o julgo por ter se afastado.
— Eu sei, me desculpe por isso. Como Patrick está? E a menininha?
— Todos bem, Angeline está enorme. Devia ir até o Queens quando
tiver um tempo, meu pai vai adorar recebê-lo.
— Vou me organizar para ir, pode deixar. E você? Já terminou a
escola, não é? — Dou risada porque sinto como se estivesse reencontrando
um tio no natal.
— Terminei, estou fazendo faculdade na Irving, curso de jornalismo.
— Engraçado… — ele fala, alternando o olhar entre mim e a lápide.
— Ela sempre dizia que você seria um grande jornalista, acho que está no
caminho certo.
— Mamãe sabia das coisas. — Encaro o buquê de rosas repousando
ao lado do mármore claro. — Ei, você costuma vir aqui? Como nunca nos
encontramos?
— Não… Não gosto muito de cemitérios. Estou aqui hoje porque
aquela menininha — fala, apontando para o local onde a irmã de Juniper
estava sendo sepultada — era a minha enteada.
— Sinto muito. — Minha voz sai baixa e ele agradece com a cabeça
antes de me dar um tapinha no ombro.
— Foi bom ver você, garoto. Se cuide, e nunca se esqueça de que sua
mãe foi uma grande mulher e uma grande policial, mesmo.
Assinto com a cabeça e ele se afasta, enfim, me deixando a sós com a
minha mãe. Desabo meu corpo sobre a grama úmida pelo frio e me encosto
no mármore gélido, apoiando o buquê de margaridas junto ao de rosas, e
então desando a falar.
Conto sobre o meu dia, sobre o jogo do fim de semana e o medo que
senti de Butler, enfim, perceber que não sou tão bom quanto acho que sou.
Falo sobre como vão as coisas em casa, na faculdade e até menciono minha
aproximação com Amelie. Me pego sorrindo ao narrar nosso dia no museu, e
desabafo sobre o quanto fiquei feliz quando a garota, depois de anos, sorriu
para mim.
Sei que mesmo de longe, minha mãe está feliz por eu estar cercado de
pessoas tão boas e vivendo a vida de um jovem saudável, apesar de todas as
coisas.
— Eu queria tanto que você pudesse estar aqui, vivendo tudo isso
junto comigo.
“No nosso retrato de família, parecemos bem felizes
Parecemos bem normais, vamos voltar a isso
No nosso retrato de família, parecemos bem felizes
Vamos fingir, agir como se fosse natural”
FAMILY PORTRAIT | P!nk

21 de Agosto de 2021

Me debruço sobre o volante do carro, pousando minha testa em meu


braço e respirando fundo assim que estaciono em minha vaga na lateral da
Chisholm House. Sinto como se tivesse vivido o dia inteiro de forma
automática e só agora meu corpo estivesse processando o cansaço que se
estende por meus músculos em forma de tensão e dores.
Fecho os olhos e me mantenho naquela posição por tempo suficiente
para conseguir me sentir apta a sair do carro e seguir para o meu dormitório.
Quando o cheiro de café torrado exalando dos meus fios de cabelo está
começando a me enjoar, puxo minha bolsa e abro a porta do veículo,
saltando para fora.
Travo-o pelo botão da chave e caminho em passos longos até a
escadaria principal do alojamento. É segunda-feira, mas o movimento de
pessoas entrando e saindo excede a normalidade.
Ouço o barulho da TV ligada assim que passo pela porta do
dormitório. O cheiro forte de café e suor em meu corpo está me deixando
nauseada e minha pele clama por liberdade, por isso, disparo em direção ao
banheiro do meu quarto antes mesmo de cumprimentar Megan, porque estou
louca para me livrar do vestidinho apertado do meu uniforme.
O banho quente não é demorado, apenas o suficiente para que eu
consiga lavar meu cabelo e me sentir um pouco mais relaxada. Visto uma
blusa cinza de alças finas, uma calça xadrez vermelha e envolvo meus fios
molhados com a toalha.
— O que isso está fazendo aí? — questiono assim que ponho os pés na
sala e meu olhar captura a pasta vermelha grossa sobre a mesa de centro.
Minha amiga se vira em minha direção. Está segurando um pote de
sorvete e faz um sinal com a cabeça para que eu me junte a ela.
— Encontrei enquanto dava faxina. Não é meu, então só pode ser seu
— explicou assim que me aconcheguei ao seu lado no sofá.
Estendo a mão e puxo a pasta para o meu colo. É uma das poucas
coisas que trouxe de casa quando vim morar na faculdade, faz tanto tempo
que não mexo em seu conteúdo que não me lembro exatamente o que me
espera. Abro o fecho e as centenas de fotografias, algumas envelhecidas pelo
tempo, estão ali intocadas há um longo período.
Seguro um pequeno montinho de fotos, suspirando profundamente
enquanto as observo. Logo entre as primeiras, uma foto que, se me lembro
bem, é da renovação dos votos dos meus pais, se apresenta diante dos meus
olhos e me chama atenção.
No instante congelado no papel, minha mãe usa um vestido longo e
vermelho que faz um contraste bonito com sua pele preta retinta. Ela abraça
meu pai de lado e beija sua bochecha. Esteban, por sua vez, está com um
sorriso brilhante, os braços, embalados pelo terno caro, me seguram de
frente para a câmera. Eu ainda era uma bebezinha. Consigo reparar os
cachinhos escuros que começavam a crescer e uma careta zangada tomava
conta do meu rosto.
— Você é brava desde pequenininha, que fofura! — Megan fala, rindo
e apoiando o queixo em meu ombro para ver a foto.
Solto uma gargalhada alta e ela se junta a mim. Quando me recupero,
passo longos minutos em completo silêncio, acaricio a foto com a ponta do
dedo sentindo cada microscópico pedaço do meu coração se contrair em dor.
— Éramos uma família tão bonita… — Minha voz sai embargada sem
que eu tenha tempo de controlá-la. — Eles pareciam se amar tanto, Megan.
Se eu forçar bem a memória, eu juro para você que consigo me lembrar do
olhar apaixonado do meu pai enquanto assistia mamãe tocando piano para
nós dois em nossa sala.
Encaro a fotografia sentindo meus olhos umedecendo e, de soslaio,
vejo minha amiga apoiar o sorvete na mesinha de centro. Sua mão me puxa
para que eu me deite em seu colo, e assim que estou aconchegada sobre suas
pernas, abraçada na foto, deixo as lágrimas rolarem por meu rosto.
— Como eles deixaram que tudo terminasse assim? Como permitiram
que as coisas se descontrolassem ao ponto de, hoje em dia, nossa família se
resumir a dor? — Minha voz sai baixa, sufocada pelos soluços fortes de
choro. — É difícil respirar o mesmo ar que o meu pai, e é impossível olhar
para a minha mãe vendo ela se destruir dia após dia. É doloroso.
Tento buscar ar para respirar e, em meio a soluços altos, sinto Megan
puxar a toalha da minha cabeça, soltando meus cabelos. Ela passa o tecido
úmido e gelado por minha testa e seca as lágrimas que escorrem em meu
rosto. Minha amiga me instrui, de forma doce, para que minha respiração
possa se acalmar, ao passo que seus dedos fazem um carinho sutil em minha
cabeça.
— Às vezes, as pessoas que mais amamos conseguem nos machucar da
forma mais profunda. Você e sua mãe foram vítimas desse amor que não
soube a hora de se retirar. Seu pai errou feio com vocês duas. Não teve
responsabilidade afetiva ao prolongar o divórcio, e não te deu a atenção que
você, como filha dele, merecia, mas ele não tinha como prever o rumo que
tudo ia tomar. Assim como a sua mãe não tem culpa por ter caído em um
vício. — Ela fala com calma, totalmente segura de cada palavra. — Não
tenho dúvidas de que eles se amavam, mas em algum momento esse amor se
esgotou e eles passaram a ser ruins um para o outro, porque ao contrário do
que nos convencem, o amor não é para sempre em todos os casos.
— Você acha que eles ainda me amam, Megan? — pergunto, me
virando para cima para encará-la, porque essa dúvida cruel me assombra
todos os dias.
Minha amiga me encara de maneira profunda. Consigo enxergar medo
e aflição em suas íris esmeralda. Levam poucos segundos até que um meio
sorriso empático se repuxe em sua boca.
— De um jeito torto, mas sim, eu acho. — A sentença segura me faz
soltar um ar que eu não fazia ideia de que prendia. — E não estou dizendo
que é o suficiente, ou que deveria se contentar com esse “jeito torto”, porque
você merece ser amada da forma mais bonita que eles conseguirem. Mas não
dá para negar que o elo entre vocês está desgastado. É necessário força de
vontade, conversa, tempo e muita compreensão para que cheguem em algum
lugar, amiga.
Eu assinto em concordância, tentando assimilar tudo que me foi dito e
pensar no que estou disposta a fazer por ora.
— Megan… — chamo, ainda incerta, erguendo o corpo para me sentar
ao seu lado.
— Sim?
Sinto meu estômago dar cambalhotas nervosas e quase me arrependo
no mesmo instante do que tem passado por minha mente. Pensar e falar sobre
os meus pais é algo que ainda me faz pisar em ovos, tanto com os outros
quanto comigo mesma. É inevitável sentir as memórias dolorosas da minha
infância retornando com tudo sempre que isso acontece.
— Você, como futura médica, acha que um dia vou conseguir ter a
minha mãe de novo? Acha que… Se eu tentar me aproximar, eu posso ajudar
ela? — pergunto ainda incerta, porque para ser sincera, não sei se estou
mesmo pronta para mergulhar nisso novamente.
Fui firme naquela noite em que disse que seria a última vez e não sei
se pretendo voltar atrás. Contudo, quanto mais essa situação se estende, mais
machucada eu fico e, consequentemente, mais cansada. Estou cansada de
lutar uma batalha diferente todos os dias, cansada de ter que reagir ou de me
mostrar indiferente, porque caramba, a última coisa que estou ao longo de
todos esses anos, é indiferente.
Eu sofro e sangro por esse exato motivo há tantos anos que, sendo
bastante honesta, não me recordo mais de onde surgiu tamanha revolta,
parece algo inato dentro do meu coração. É como se minha mente estivesse
se acostumando com a raiva, e quando sinto que estou próxima de me livrar
dela, o acidente, as idas ao hospital, o abandono, tudo volta à minha
memória para não me deixar superar isso.
Ethan se engana se pensa que me ensinou somente como usar hashis,
porque quanto mais o tenho por perto, e vejo a dor da perda nublar seus
olhos, sempre tão alegres, em pura tristeza densa e profunda, mais receio eu
tenho de estar cometendo um erro gigantesco ao abandonar a única pessoa
que sofreu tanto quanto eu nessa história.
Minha mãe merece um destino que não seja a própria ruína, sozinha e
triste. Merece ser feliz, saudável, amar novamente e desfrutar de um amor
responsável, um amor que a eleve e que, ainda que acabe, saiba entrar e sair
de sua vida com honra.
E em meu interior, aquela partezinha esperançosa e conservada, eu
quero poder ajudá-la. Quero que tenha uma chance de recomeçar, assim
como eu tive ao entrar na faculdade, ao conhecer Megan e Lily, ao me abrir
para uma nova amizade com Ethan.
Mamãe merece experimentar o sentimento de que nem tudo está
perdido, sei que sim.
— O que ela de fato tem, e o que eu posso fazer? — questiono,
determinada desta vez.
Megan parece pensar enquanto pega uma colherada de sorvete e leva
até a boca. Ela tem um brilho de esperança nos olhos que me faz lembrar das
tantas vezes que a própria tentou ter essa conversa comigo e eu me neguei.
Minha amiga sempre quis que eu a escutasse quanto a esse assunto e eu
nunca consegui lhe dar abertura.
— Bom, em primeiro lugar é preciso que você tenha em mente que sua
mãe é uma dependente química, a dependência química não é algo que se
escolha. Não sou eu quem estou dizendo isso, é a Organização Mundial da
Saúde que, inclusive, reconhece a DQ como uma doença.
— Certo. — Assinto com a cabeça para que saiba que estou
entendendo.
— Sendo uma dependente química, isso significa que o organismo da
sua mãe depende e não consegue controlar a necessidade da ingestão do
álcool. O corpo dela pede por aquilo, entende? — Faço que sim com a
cabeça. — Existe uma pesquisa[9] importante sobre o alcoolismo que
classifica os dependentes em certos nichos. Um deles é o que eu creio se
encaixar mais com a sua mãe, que é o “alcoólatra funcional”.
— E o que seria isso?
— O próprio nome já diz, mas são, geralmente, adultos de meia idade
que aliam o vício ao cotidiano. Eles conseguem trabalhar, desempenhar suas
funções em sociedade, no entanto, não deixam de ser dependentes. Alguns
deles apresentam taxas moderadas de depressão e não costumam abusar de
outras drogas, no máximo cigarros. Você me disse uma vez que sua mãe vive
em eventos da alta sociedade, não é? Então, ela consegue desempenhar as
funções dela mesmo estando doente.
Enquanto Megan fala, consigo enxergar Virgínia Morgan tão
claramente que algo dentro de mim se parte, talvez o meu coração. É como
se, pela primeira vez, eu estivesse conseguindo visualizar a situação de
maneira centrada, sem a película turva de mágoa que existe em mim, e isso
me traz um misto estranho de apreensão e tristeza.
— E qual o tratamento para esse tipo de caso? — pergunto após
engolir o choro.
— Eu não posso dar uma resposta exata para isso porque ela não é
minha paciente, então não conheço a fundo as implicações da dependência
no organismo dela. Porém, para não se frustrar você tem que estar ciente de
que ela tem que querer parar. A luta contra o alcoolismo não se faz sozinha,
e é crucial que o paciente esteja disposto a isso. — O tom de voz de Megan
se torna sério e quase me sinto em um consultório, não tenho a menor dúvida
de que minha amiga será uma médica brilhante. — Depois de iniciado, o
tratamento tem uma infinidade de caminhos a serem seguidos:
desintoxicação, tratamento terapêutico, e claro, uma avaliação mais
especializada para identificar quais os impactos gerados no organismo.
Normalmente, é aconselhado também grupos de apoio e terapias
ocupacionais, elas auxiliam no processo todo.
Assimilo tudo com cuidado e meu cérebro começa a montar cenários
hipotéticos onde consigo convencer minha mãe a começar o tratamento.
Megan parece reparar, porque antes que eu tenha a oportunidade de lhe
agradecer, sua voz ecoa pela sala mais uma vez em tom de alerta.
— Amy, só não se esqueça que você também tem traumas profundos
com relação aos seus pais, e de nada vai adiantar tentar salvar sua mãe se
você não estiver bem, porque acredite, o processo de reabilitação de um
dependente químico pode ser tão doloroso quanto a própria fase do vício, e
você pode não estar pronta para lidar com isso.
— O que sugere, então? — questiono, abraçando minhas pernas contra
o corpo.
Megan se levanta e vai até o aparador que temos próximo ao
corredor. Vejo ela vasculhar uma das caixas e tirar um papel de lá. Ajeito a
coluna quando minha amiga caminha de volta para o sofá e me estende um
cartão azul claro.
— O Instituto de Psicologia da Irving, em parceria com a Faculdade
de Medicina, tem um grupo de apoio cem por cento gratuito para os
estudantes. Fica na parte leste do campus, no prédio da Psicologia e funciona
toda quarta-feira. — Vejo quando um sorriso brilhante e esperançoso se abre
em seus lábios. — Eu acho que você deveria ir, se quiser. Vai te fazer bem e
você não tem ideia do quanto esperei por uma oportunidade para te dizer
isso, mas eu tenho certeza de que você vai conseguir vencer todos os
monstros que se escondem debaixo da sua cama, Amelie. Só precisa erguer
o lençol e encará-los de frente.
Balanço a cabeça em afirmação enquanto pego o cartão de sua mão,
sentindo o impacto enorme de suas palavras. Sinto como se Megan estivesse
esperando por essa conversa há tanto tempo que se preparou de todas as
formas para garantir que eu me sentisse bem. Eu nunca vou ser capaz de
retribuir tanto carinho.
— Eu te amo, muito mesmo — digo, trêmula, antes de me atirar em
seus braços. — Obrigada por ser a minha família.
As mãos de Megan acariciam meus cabelos e é tão confortável saber
que não estou sozinha no mundo que o choro que me escapa agora é do mais
puro e genuíno alívio.
— Eu também te amo, e saiba que você nunca estará sozinha, tá bom?
Não respondo, apenas fecho os olhos com força e me entrego à
sensação de preenchimento crescente em meu peito enquanto nos abraçamos.
E assim como uma chuva de verão consegue, de uma hora para outra,
transformar dia em noite, minha tranquilidade se esvai no exato segundo em
que o toque do meu celular toma o ambiente.
Barulhento e urgente, como todo anúncio de caos tende a ser.
Sinto um arrepio incômodo se alastrar por minha espinha assim que me
afasto de Megan e meus olhos encontram o nome estampado no visor do
aparelho que repousa sobre a mesa de centro. Só pode ser brincadeira.
“E eu juro que não sabia
Que coisas como essa poderiam acontecer a uma garota de 17 anos
E eu amarrei todos esses medos por dentro
E eu reprimi toda essa dor”
FATHER’S SON | 3 Doors Down

21 de Agosto de 2021

Troco um olhar confuso com Megan antes de apanhar o meu celular,


que ainda toca em alto e bom som, em cima da mesa de centro.
Leio o nome no identificador de chamada brilhando na tela e, nesse
momento, a incredulidade e a confusão se misturam em minha mente. São
oito da noite de uma segunda-feira aparentemente comum, o que significa que
não existe razão para que meu pai esteja me ligando, ao menos não por livre
e espontânea vontade.
Penso em rejeitar a chamada, todavia, a rara lembrança do quanto
Esteban fica furioso ao ser ignorado me faz retesar. Não por medo, porque
ele ladra, mas não morde, e sim para evitar estresse. Por isso, levo o
aparelho até o ouvido. Sem ao menos titubear, a voz do meu pai escapa dos
alto falantes.
— Por que não tem respondido meus e-mails? — A voz calma
mascara a impaciência.
— Boa noite, papai. Estou bem, e você? — pergunto, ignorando sua
falta de tato.
Ouço-o limpar a garganta e soltar um suspiro baixo.
— Boa noite, hija. Estou bem também, me desculpe. — Assinto em
satisfação mesmo que ele não possa ver.
— Estou enrolada com algumas coisas da faculdade, o que tinha de tão
importante nos e-mails?
— Seu velho pai querendo falar com você não é o suficiente? — ele
pergunta, rindo.
— Meu velho pai não conhece o advento da mensagem de texto?
— Me dê um desconto, sou da década de sessenta!
— Certo, desconto concedido. O que aconteceu? — questiono, ainda
desconfiada de seu contato.
As coisas não ficaram exatamente tranquilas entre nós depois que nos
encontramos pela última vez, e eu definitivamente não esperava por essa
ligação.
— Eu queria tomar café da manhã com você, está disponível amanhã?
Um vinco afunda-se ainda mais em minha testa, o que faz com que
Megan sibile um “o que foi?” para mim. Sacudo a cabeça em negação como
um “nada demais” em resposta. Estou tão focada em minha conversa ao
telefone que mal notei que minha amiga permanece parada em minha frente.
— Como eu disse, estou ocupada e… — pretendo recusar e encerrar a
ligação. No entanto, meu pai me interpela.
— Hija, precisamos conversar. As coisas não andam muito bem entre
nós ultimamente.
Controlo a risada amarga que se anuncia em minha garganta e mordo
minha língua, levemente, para me impedir de dizê-lo que isso aconteceu há
uns bons anos. Mas em vez disso, opto por baixar a guarda. Não
completamente, porque ainda sinto uma nuvem de desconfiança pairando
sobre a minha cabeça. Ela só não é maior do que a minha perplexidade ao
perceber que Esteban Castillo reconheceu um erro.
— Eu não tenho muita escolha, não é? — pergunto, sôfrega, e ouço sua
risada grave do outro lado da linha. Eu gostava tanto de ouvi-la, e agora ela
me causa arrepios.
— Você sabe como funciona a teimosia dos Castillo. — É, sei bem. —
Vejo você às oito no Lotte Palace?
Levo poucos segundos ponderando. Mesmo desconfiada, tento me
convencer de que talvez ele esteja mesmo tentando consertar as coisas. E, de
qualquer forma, acho que ele não me deixará em paz até que eu aceite.
Talvez o olhar mordaz, a facilidade com os desenhos e a terrível
obsessão por controle não sejam as únicas características que herdei dele,
afinal. Ao pensar nisso, é inevitável sentir o estômago embrulhar. Sempre
que constato o quanto somos parecidos uma parte de mim quebra.
— Estarei lá. — Minha voz sai firme. Ouço quando ele confirma e
desligo o aparelho antes que meu pai tenha a oportunidade de dizimar minha
paz.

O Lotte Palace é um dos hotéis mais caros e luxuosos do distrito de


Manhattan. Sua estrutura é composta por uma mansão do século XIX e uma
torre grandiosa de cinquenta e cinco andares. Além da alta procura, o que o
torna conhecido é o fato de que sua fachada é inconfundível a qualquer
pessoa nascida próxima dos anos 2000, por ter sido cenário para a série de
TV “Gossip Girl”.
É uma pena que estou longe de ser Blair Waldorf neste momento,
porque ela com certeza não se pareceria com a pilha mista de mau humor e
roupa de ginástica que estou enquanto caminho até a recepção.
Basta que eu diga meu nome e quem procuro para que, em segundos, a
funcionária emburrada estampe um enorme sorriso em seu rosto e me
conduza pelos corredores com papéis de parede repletos de arabescos até o
restaurante do lugar.
Assim que ela abre a porta para que eu passe, varro o ambiente com os
olhos e vejo meu pai sentado em uma mesa para duas pessoas. Ele está
próximo a janela e seus olhos estão focados na paisagem das ruas
movimentadas que se apresenta através do vidro.
Respiro fundo reunindo força e coragem para mais uma das nossas
estranhas interações, repetindo mentalmente o conselho que Megan me deu
antes de sair de casa — evitar a todo custo iniciar mais uma guerra em minha
vida. Eu não aguento mais acumular problemas, e se meu pai quer mesmo se
redimir, espero que ele não crie um.
Aperto os nós dos dedos com os polegares enquanto caminho devagar
até seu encontro. Ele parece não notar minha presença, porque não se vira
em minha direção até o último segundo.
— Bom dia — cumprimento assim que me aproximo.
O olhar do meu genitor sobe até mim e ele me oferece um sorriso
contido, que imagino que seja por eu não ter usado o espanhol. Eu
honestamente estou ficando de saco cheio de sustentar a farsa que é a nossa
relação, por isso, não me incomodo mais em respeitar suas pequenas regras.
— Mi hija, bom dia! Você está tão bonita! — Agradeço com um aceno
de cabeça e me sento diante dele, forçando-me a manter minhas expressões
neutras.
Meu coração aperta quando ele me estende sua mão, porque sei
exatamente o que vai fazer. Cubro sua palma com a minha, sentindo a textura
aveludada que ele cultiva com boas doses de hidratante ao longo do dia.
Meu pai leva o dorso da minha mão até a lateral de sua bochecha e
inclina o rosto ao toque com um meio sorriso em seus lábios. O gesto tão
simples, que a vida inteira me trouxe a sensação familiar de infância, hoje
faz com que eu sinta um azedume terrível alastrando-se por minha boca.
Deus sabe o quanto eu quero conseguir esquecer tudo e simplesmente
amar o meu pai, admirá-lo e tê-lo como o super herói da minha infância.
Infelizmente, todos nós, seres humanos, carregamos bagagens recheadas de
memórias, e memórias, no meu caso, precedem o rancor.
— Tenho treino em menos de uma hora, não posso demorar muito —
aviso.
Meu pai ergue as sobrancelhas de forma expressiva.
— Treino?
— Box — respondo fazendo pouco caso e pesco o cardápio de cima
da mesa logo em seguida.
— Voltou a treinar com os Lang?
— Nunca deixei de treinar. — De certa forma, ele parece estar
surpreso.
A verdade é que, depois que entrei na faculdade e enfim me livrei das
visitas mensais determinadas pela guarda compartilhada, fiz de tudo para me
desfazer de todos os velhos hábitos que eu mantinha enquanto estava com
Esteban. Parei de ir ao cinema que frequentávamos, parei de comer os
donuts da padaria que ele faz compras para a sua casa e mais uma série de
coisas que, embora triviais, faziam eu me sentir um pouquinho mais distante
dele.
Menos o box, jamais o box. Foi ele quem me levou para a minha
primeira aula, mas foi o tatame, as luvas e os sacos de pancadas que me
fizeram uma verdadeira amante do esporte. Isso não foi um mérito dele.
— Fico feliz. É um esporte excelente, faz bem para a saúde do seu
corpo e da sua mente — ele diz enquanto lê o cardápio e eu preciso fazer um
esforço extracorpóreo para não soltar um chiado.
Minha mente seria mil vezes mais saudável se você tivesse feito
terapia, penso.
— Sim, com certeza — digo com a voz controlada e aperto o botão
sobre a mesa para fazer o pedido.
— Bem, mande meus cumprimentos para Simon e Joe. Faz tempo que
não os vejo.
Assinto com a cabeça e assim que o garçom se posta ao nosso lado,
peço um suco verde, ovos com bacon e um café expresso sem açúcar. Meu
pai pede para que ele duplique o pedido e me acompanha em minha escolha.
Quando estamos novamente a sós, fixo meu olhar no broche prateado
e cravejado de brilhantes preso em sua gravata. O adereço que reproduz a
insígnia da empresa certamente custa muito mais do que eu poderia pensar
em ganhar trabalhando para o Sr.Green.
É um lobo cinzento e brilhoso. Os olhos representados por duas safiras
azuis parecem me escrutinar.
Até hoje acho que o fato do brasão da empresa ser um lobo só pode
ter sido a porra de uma grande piada de mau gosto. A grande maioria dos
lobos vivem em comunidade, junto dos seus, e o trabalho do meu pai é
justamente o que afastou ele de absolutamente todos ao seu redor.
— Como estão as coisas na faculdade? — pergunta, me arrancando do
meu devaneio.
— Bem... Agitadas, para ser bem exata. Provas, trabalhos,
extracurriculares, você sabe como é. — Ele assente satisfeito.
— E o estágio, já conseguiu se livrar do garoto que poderia lhe trazer
problemas?
— Estou quase lá.
Se ele soubesse…
Uma voz maldosa sopra em minha mente. Mordo a parede interna da
minha bochecha prendendo o riso, porque como eu poderia explicar que “me
livrar” é a última coisa que tenho feito com Ethan Harris?
Meu pai certamente me diria meia centena de baboseiras sobre o quão
estúpida estou sendo por estar “confraternizando com o inimigo” e depois
apontaria para si próprio dizendo “eu não conquistei tudo que conquistei
fazendo amigos e bla bla bla”.
Grande coisa, não é como se ser como ele seja exatamente a minha
meta de vida.
Volto a pensar sobre Ethan e minha mente divaga me levando até a
manhã anterior. A lembrança do seu braço firme sobre meus ombros por
algum motivo faz com que algo em meu estômago se agite. É no mínimo
cômico imaginar que um mês atrás eu mal suportava a ideia de respirar o
mesmo ar que o cara, e agora me sinto confortável em caminhar pelos
corredores da universidade sob seu toque. Se eu me concentrar bem, quase
consigo sentir seu perfume almiscarado impregnando minhas narinas.
E ok, talvez isso seja estranho.
No fim, aceitá-lo como meu amigo tem sido mais fácil do que pensei
que seria. Harris consegue ser uma ótima pessoa quando não está disposto a
atentar contra a minha paciência.
Quando, enfim, nossos pedidos chegam, eu e meu pai comemos em
completo silêncio. Salvo algumas perguntas corriqueiras sobre o que tenho
feito ou estudado, ele não diz mais nada. Isso aumenta a apreensão em meu
peito, porque eu estava mesmo esperando que ele tivesse me chamado até
aqui para me soltar uma de suas bombas.
— Certo, sejamos sinceros. Por que motivo estamos aqui? —
Questiono sustentando o olhar em sua direção assim que dou o último gole
em meu café.
Observo quando ele relaxa o corpo e encosta na cadeira cruzando os
braços sobre o peito. O terno Oxford se agarra aos seus membros fortes,
delineando-os e, de uma hora para outra, sua postura desmonta. Um longo
suspiro precede sua fala, e se eu não conhecesse o grande Esteban Castillo,
poderia jurar que ele ficou magoado.
— Eu deixei claro que queria ver você, o que quer que eu diga, hija?
Esse é o meu motivo, mesmo que você não acredite. — Sua voz não se
exalta, mas ele parece irritado, no entanto. Talvez por minha desconfiança.
Meus olhos se mantêm fixos nos seus. Tento ler através de suas íris
escuras como as minhas, mas é como se não tivéssemos uma conexão grande
o suficiente para isso. Meu pai não é exatamente transparente em suas
emoções, e a única coisa que vejo em seus olhos é uma camada densa,
recheada de impassibilidade.
Solto um suspiro longo e passo os dedos por entre os fios do topo da
minha cabeça, que estão esticados em um rabo de cavalo, enquanto tento
formular uma sentença coerente. Engulo meu orgulho, sentindo-o espremer-
se em minha garganta.
— Me desculpe, eu não quis ofender — digo com a voz baixa.
— Está tudo bem. Viu o jogo sexta? Os Islanders foram ótimos.
Minto dizendo que sim, embora eu não tenha a menor ideia de em que
pé está a liga profissional de hóquei, apenas para tornar o clima o menos
pesado possível. Eu e meu pai entramos em uma longa conversa sobre o
desempenho de seu time do coração na temporada, que só não foi mais
tediosa por falta de tempo. Eu detesto hóquei, porque falar de hóquei me
lembra de Daniel e lembrar de Daniel me faz querer vomitar.
Assim que o relógio marca nove horas, me despeço do meu pai e
dirijo até a academia onde Simon me aguarda para o nosso treino. A
sensação de ter o mundo tirado de cima dos meus ombros após o café da
manhã terminar sem um desastre é quase tangível. Ainda que a pulga atrás da
minha orelha ainda não tenha sumido, pelo menos sei que meu pai não está
armando mais uma das suas situações desconfortáveis que me tiram do sério.
O suor banha meu corpo quando me deito com as costas contra o
tatame. Sinto os músculos do meu braço ardendo e o sangue, que corre em
minhas veias, parece ebulir. Puxo o ar pela boca de maneira forte e um tanto
descontrolada. Noto quando Simon se aproxima e me entrega uma garrafinha
d’água.
Estico o braço em sua direção para alcançá-la e dreno o líquido da
garrafa com avidez.
— Dia difícil ou semana difícil? — Meu amigo se deita ao meu lado e,
de soslaio, vejo que está de barriga para cima, encarando o teto como eu.
Dou risada de sua pergunta, ainda que já esteja acostumada com ela.
É sempre engraçado o fato dele relacionar meus treinos mais intensos a
problemas.
— Dessa vez, nenhum dos dois. Encontrei com Esteban antes de vir
para cá, mas por incrível que pareça, não aconteceu nada demais.
— Jura? — Ele parece surpreso, o que me faz acertar um soco em seu
braço antes de gargalhar. — Deveria avisar isso para o coitado do saco de
pancadas.
Passo a mão por meu rosto e aperto meus olhos com o indicador e o
polegar, franzindo o nariz ao reorganizar os pensamentos confusos em minha
mente.
— Tá legal, você me pegou. Estou um pouco angustiada, para ser
sincera. Tenho pensado bastante na minha mãe nos últimos dias — assumo.
Simon suspira e nos viramos um de frente para o outro em sincronia.
O suor que cobre sua pele negra retinta, de alguma forma, o deixa ainda mais
bonito, e embora possua músculos fortes pelo boxe, as tatuagens que
adornam seu corpo são o que realmente chamam atenção, assim como seu
sorriso perfeitamente branco e alinhado.
O cara é bonito sem fazer o mínimo esforço.
Me lembro de quando éramos adolescentes e compartilhávamos nossas
inseguranças — frutos de uma baixa autoestima que nos foi imposta logo
cedo —, dúvidas e receios, aqui mesmo nesse tatame.
Na época, eu e Simon fazíamos terapia no mesmo consultório. Ele
fazia sessões de rotina, para lidar com as próprias emoções da melhor forma
possível, e eu… Bom, eu fui obrigada pelo meu pai a realizar
acompanhamento psicológico depois do acidente, porque ele temia que eu
odiasse a minha mãe ou ficasse traumatizada de certa forma (é nessa hora
que entram os efeitos sonoros de gargalhadas).
E como o boxe sempre teve um efeito terapêutico para mim e para o
meu amigo, inevitavelmente acabávamos estendendo o assunto das nossas
sessões para a academia.
Olhar para nós dois agora, vê-lo fazendo o que gosta, sendo realmente
bom nisso, sabendo que estou no caminho para me tornar uma grande
profissional e que estou travando batalhas internas gigantescas para me
melhorar como pessoa, faz com que o sentimento de orgulho tome meu peito.
— Imagino que esteja sendo difícil. — Sua voz grossa me arranca dos
meus devaneios.
— Você não faz ideia do quanto — solto um suspiro agoniado. — É
horrível saber que ela está acabando com a própria saúde e que eu não tenho
como ajudá-la de forma significativa.
— Já conversou com a sua colega de quarto sobre isso? Ela é médica,
não é?
— Estudante de medicina. E sim, conversamos sobre isso, ela me
instruiu a tentar ajudar Virgínia a entender que precisa de ajuda.
Basicamente, é o que está ao meu alcance.
— E você vai tentar? — Sua sobrancelha cheia se arqueia, Simon me
encara com cautela.
— Vou. Sinto que preciso fazer isso por nós para ter meu coração em
paz, sabe? — pergunto, encarando-o, e sua compreensão é visível. — Desde
ontem eu não paro de pensar nisso e acho que finalmente estou conseguindo
compreender o lado dela. Dói pensar em todas as vezes que a culpei por
algo que ela não tinha culpa. Não vou conseguir viver sabendo que não a
ajudei.
— Entendo, mas não fique remoendo suas angústias quanto a isso por
muito tempo, ‘tá bom? Foque nos seus objetivos sem se martirizar pelo
passado. Isso não faz bem para você.
Assinto com a cabeça, fechando os olhos devagar conforme ele
massageia meu rosto com as pontas dos dedos, calejadas pelas luvas de
boxe. Simon tem a melhor massagem do mundo, e eu daria tudo para voltar
no tempo em que ele me usava de cobaia quando estudava Massagem
Esportiva para a faculdade.
— Megan Lewis acha que preciso voltar para a terapia — deixo
escapar sem perceber.
— Eu concordo. Minha opinião não é tão válida como a de uma futura
médica, mas concordo. — Ouço ele dizer e abro os olhos novamente. — O
boxe é uma fuga muito boa e nós sabemos disso, Amy, mas existem conflitos
no seu emocional que somente um profissional pode te ajudar.
— Eu sei. — Exalo com pesar antes de morder meu lábio superior
com um pouco de força. — Eu vou começar a frequentar o grupo de apoio da
faculdade em breve. Mas, se quer saber, no geral, está tudo bem, na medida
do possível. A minha vida nem sempre é só tragédia, sabia? — Simon ri
antes de me abraçar de forma desajeitada.
— Eu sei que não. E eu fico realmente feliz que esteja buscando ficar
bem.
— Você é, para sempre, o meu irmão mais velho, Simon Lang. —
Deixo um beijo em sua careca e faço uma careta de nojinho quando percebo
o quanto ela está suada. Ele ri ainda mais forte.
— Você também será para sempre a minha irmãzinha. Agora trate de ir
tomar um banho, a senhorita está fedida e quase atrasada para sua aula.
Ficamos de pé e ele me empurra pelos ombros para que eu vá para o
vestiário. O cômodo está vazio. Caminho até a minha mochila antes de entrar
na ducha e checo meu celular. Sorrio de maneira contida ao constatar que há
uma mensagem de Ethan me esperando.
Temos trocado uma quantidade considerável delas nos últimos dias, na
maioria damos risada pelo incidente no MoMa. Em outras, sou obrigada a
aturar suas cantadas idiotas que terminam com nós dois quase chorando de
tanto rir mediante minha versatilidade em lhe dar foras certeiros. Confesso
que, em alguns momentos, me pego esperando por algumas de suas piadinhas
sem noção que acabam me distraindo do caos do dia a dia.
Problema de Estimação: Bom dia “Quase-Melhor-Amiga”, por onde
você tá? ‘Tô indo tomar um café com Charles, Elói e uma amiga dele, quer
ir?
Meu sorriso se alarga, ainda que eu esteja prestes a negar seu
convite, porque é notável a facilidade com que o garoto me inseriu em sua
vida sem ao menos relutar.
Ethan Harris é um cara prático, lida com as coisas sem pensar muito
sobre elas, apenas buscando uma solução. A forma com que ele faz tudo
parecer tão ridiculamente simples tem me ensinado demais a encarar a vida
com uma maior leveza, embora eu tenha dificuldade para admitir.
Sem pensar direito, abro a câmera frontal e envio uma foto que pega
do meu nariz para baixo, passando pelo colo coberto por uma fina camada
de suor que encharca meu top preto e indo até a minha cintura, mostrando o
vestiário ao fundo. Escrevo na legenda “já tomei café, vou ter que recusar” e
coloco uma carinha triste.
No mesmo instante, Ethan fica online e passa longos segundos
digitando. Me arrependo imediatamente da imagem, já imaginando qual das
suas piadinhas provocativas infames ele está redigindo. Sua resposta, no
entanto, me surpreende.
Problema de Estimação: Já falaram para você que o ossinho da sua
mandíbula saltado é um verdadeiro charme?
Meus olhos quase pulam do meu rosto, e preciso ler a mensagem mais
de uma vez para raciocinar-la. Desde que nos aproximamos, descobri
algumas coisas um tanto curiosas sobre Ethan, a primeira é que, embora seja
um dos atletas mais populares da faculdade e viva cercado de gente, o garoto
detesta barulhos e confusões. É comum vê-lo torcendo o nariz diante de
lugares cheios e fazendo caretas quando muitas pessoas começam a falar ao
mesmo tempo.
A segunda coisa é que Ethan Harris é um cara bem observador tal qual
todo jornalista deveria ser. Às vezes sinto que ele me encara tentando me
desvendar, e quase sempre, sinto que consegue perceber coisas além das que
digo. Em suas próprias palavras: ele repara em “muitas coisas” em mim.
Confesso que essa informação me aterroriza um pouco, porque temo que ele
encontre coisas que o façam se arrepender de ter se aproximado.
Eu: Acho que ninguém nunca prestou atenção nisso.
Problema de Estimação: Eu me sinto lisonjeado de ser o primeiro,
então. Como você está? Além de visivelmente suada, claro.
Eu: Mal-humorada e quase atrasada.
Problema de Estimação: Okay, essa é a hora que te deixo em paz
para que você não arranque as minhas bolas, certo?
Eu: CORRETO!!!!
Problema de Estimação: O.K
Problema de Estimação: Mas se quiser uma dica, depois do esporte,
meu mau humor se resolve com cerveja gelada e sexo. Testa aí, pode
funcionar.
Solto uma risada baixa mediante sua mente pervertida dando as caras
antes mesmo das dez da manhã.
Eu: Deveria me preocupar com essa sugestão mascarar o fato de
que está se candidatando para a segunda opção?
Envio somente para provocá-lo e dou risada quando vejo-o digitar e
apagar por longos segundos antes do aparelho em minhas mãos começar a
tocar.
— Era só uma brincadeirinha, Capitão, não precisava ficar nervoso —
implico no instante em que atendo a chamada.
— Muito engraçado, Coelhinha. — O tom entediado me arranca mais
uma risada. — Eu não estava me candidatando, mas…
— Não termine a frase ou eu juro que arranco suas bolas na primeira
oportunidade — ameaço, e ele ri.
— Calma, linda, só ia dizer que se você pedir com jeitinho, eu posso
pensar no assunto. Sei maneiras bem eficientes de te deixar felizinha.
Quase consigo ver o sorriso cretino estampado em seu rosto. Mordo
o lábio, praguejando por sua frase instigar minha mente, me deixando
curiosa. Eu pagaria um preço alto para que Ethan Harris fosse feio e
desinteressante, mesmo, porque talvez assim fosse mais fácil lidar com suas
investidas despretensiosas.
— Pode esquecer. Te vejo na aula.
— Até mais, querida — Ethan sempre relembra esse apelido, que usei
com ele quando estava bêbada no Grove’s, quando quer implicar comigo. É
um idiota.
— Tchau, querido.
A chamada se encerra e eu percebo que tenho menos de uma hora
para estar na universidade. Me enfio debaixo da ducha gelada e tento
colocar meus pensamentos em ordem, afastando-os do combo “Ethan + sexo
+ sexo com Ethan” porque o fato disso ao menos me causar curiosidade é um
indício de que estou pirando.
Pelo amor de Deus! Esse cara está deixando minha cabeça biruta
igual à dele!
— Deixa eu ver se entendi direito, então depois daquele encontro
vocês simplesmente passaram uma borracha no passado e agora são amigos
de verdade? Tipo, amigos mesmo? Nadinha de ódio?
A pergunta vem de Lily. Ela parece uma aluna do ensino médio que
acabou de descobrir que o coelho da páscoa é uma invenção capitalista, e
não um coelhinho bacana que distribui chocolates por aí.
Acompanho a garota que caminha de um lado para o outro, me
ajudando a colocar os muffins fresquinhos na estufa do balcão, e sua mente
parece ter explodido com as informações.
Acabei de resumi-la tudo que aconteceu nas últimas duas semanas
entre mim e Ethan Harris, ocultando as partes que envolvem as cantadas
idiotas e o fato de que bati em sua porta às quatro da manhã, claro. Lily
parece estar chocada com o fato da nossa tentativa de nos conhecermos
melhor ter se transformado em uma amizade verdadeira.
— Não “passamos uma borracha no passado” exatamente, porque não
tem como apagar mais de dois anos de comentários malcriados e ofensas
desnecessárias. Foi exatamente isso que tentamos fazer da primeira vez e
deu muito errado, mas sim, somos amigos agora, e é pra valer de ambas as
partes.
Explico, antes de separar um dos muffins de red velvet dos demais.
Pretendo levá-lo para Megan mais tarde.
— E como você se sente sobre isso? — Lily tem uma característica
muito marcante de esconder terrivelmente mal suas emoções. Ela está
tentando ser delicada, mas é nítido que está desconfiada.
Eu realmente consegui fazê-la enxergar a versão que eu detestava de
Ethan.
— Me sinto bem. Embora eu ainda tenha dificuldade para admitir, ele
é um cara legal e eu meio que gosto da ideia de passar algum tempo junto
dele. Temos nos divertido nesse processo de conhecermos de verdade um ao
outro, se quer saber. Arrisco dizer que, se não fôssemos dois cabeças-duras
natos, teríamos sido uma dupla e tanto nos dois primeiros anos da faculdade
— respondo com sinceridade.
Minha amiga apenas assente, mas permanece pensativa e quando
paramos uma de frente para a outra, para encaixarmos as bandejas no
transportador que as leva para a cozinha nos fundos da cafeteria, ela enfim
deixa que as palavras corram de seu cérebro para seus lábios.
— Se você está bem, é o que importa para mim.
Sorrio de forma contida, mas meu coração está dando pulinhos
alegres porque, honestamente, eu posso não ter sido muito sortuda no quesito
família, mas quando o assunto é amizade, eu tenho as melhores pessoas do
mundo comigo.
— Obrigada, mesmo. Fico muito feliz de ouvir isso — digo, pousando
minhas mãos em seus ombros. Suas íris escuras, que são contornadas por
uma faixa âmbar, brilham para mim com um carinho fraterno que aquece meu
coração.
— Você é, sem dúvidas, a minha melhor amiga, Amy. Eu sempre vou
apoiar suas decisões, mesmo que elas incluam ter que passar mais tempo
com jogadores de basquete — Lily faz careta e eu solto uma risada baixa.
— Ah, não finja que é como se fosse uma tortura para você! Não pense
que me esqueci do fato de que a senhora vai ser a minha segunda amiga a
entrar para a família Mansen — eu provoco, e a pele negra clara de suas
bochechas cora de imediato.
— Você é ridícula! — Lily resmunga antes de me puxar para um
abraço.
— E você me ama — sussurro apertando-a contra mim e sentindo seu
perfume marcante de limão com baunilha antes de nos separarmos.
— Amo mesmo, mas me diga, qual a chance disso entre você e o
Harris terminar com vocês dois se pegando, hein?
Quase engasgo com a minha própria saliva no instante em que ela
termina a frase. Isso definitivamente está fora de cogitação.
— Nenhuma! Tipo, zero, nadinha! — saliento. — Que pergunta é essa?
Ainda estamos falando de Ethan Harris, Lily!
— É só para saber, não precisava ficar nervosa… — ela diz, rindo,
antes de ajustar a tiara em sua cabeça, colocando seus cachos para trás. Lily
tirou as tranças essa semana e está agraciando o mundo com a beleza dos
seus fios naturais.
— Não estou nervosa, você é quem está falando besteiras — falo
quando voltamos para o caixa.
Apoio os cotovelos no balcão e encosto meu corpo. São quatro da
tarde. A cafeteria está vazia por enquanto, mas em uma hora começa o
horário de pico e o local vai ficar cheio de universitários desesperados por
cafeína e um pouco de paz.
— Não é besteira. Vocês dois são jovens e gostosos, uns beijinhos sem
compromisso não fazem mal a ninguém... — Lily insinua e eu estou certa de
que estou fazendo uma careta.
— Em primeiro lugar, não sou exatamente fã de “beijinhos sem
compromisso”, você sabe. — Ergo o indicador pontuando. — Em segundo
lugar, não tenho a menor ideia do porquê estamos prolongando essa
conversa, é o Ethan, pelo amor de Deus! Beijar ele não é, nem de longe, uma
possibilidade.
— Então, você não pretende beijar ele? — ela pergunta e algo em sua
expressão muda, como se estivesse prendendo o riso.
— Não.
— Quem você não pretende beijar? — Uma terceira voz diz bem atrás
de mim e eu sinto como se cada um dos meus músculos tivesse congelado.
Ah, não.
Aprumo o corpo e sinto minhas bochechas queimarem, antes de
começar a me virar lentamente em direção a voz, sibilo um “eu odeio você”
para minha amiga traíra que está prestes a explodir de tanto segurar o riso.
Ethan está parado diante do balcão com os braços cruzados e um
sorriso brincalhão nos lábios. Está vestindo um moletom verde menta que
sobrepõe uma camisa social branca, deixando que a gola escape. Uma calça
chino creme e um tênis branco completam o visual. Uma correntinha
prateada pende em seu pescoço.
Os fios de cabelo úmidos estão bagunçados e caem perfeitamente ao
lado do seu rosto, e ok, preciso confessar, ele está bonito. Até demais para o
meu próprio bem.
— E aí? Quem é seu pretendente da vez, Coelhinha? — ele pergunta
com um sorriso debochado, levantando e abaixando as sobrancelhas
freneticamente, e eu contenho um xingamento.
— Isso não é da sua conta, e não tem “pretendente” nenhum.
— Se você diz… — O sorriso debochado em sua boca me dá nos
nervos.
— Não me provoque! Estou trabalhando. Aliás, o que vai querer?
— O de sempre, um Cold Brew…
— De baunilha com adoçante e sem cuspe — interrompo, já abrindo
uma nota de pedido na tela do caixa. — Você só bebe isso? Não quer
experimentar outro? Nosso cardápio de cafés é tipo, gigante.
Eu entrego a ele a folha repleta de opções. Ethan alterna o olhar entre
mim e o cardápio e parece ponderar por alguns instantes. Não demora muito
até que ele se renda e apoie os braços sobre o balcão, se inclinando em
minha direção.
— O que você me sugere? — Questiona, erguendo a sobrancelha
direita em desafio.
Aperto o indicador contra meu lábio inferior enquanto penso,
reunindo todos os meus conhecimentos sobre cafés adquiridos nos últimos
anos.
— Se você gosta do Cold Brew de Baunilha, provavelmente vai gostar
das opções mais doces, que tal um… — Me inclino em sua direção e aponto
para um dos itens do cardápio. — Macchiato Caramelo? Leite fresco fervido
com xarope de baunilha, café expresso e fios de caramelo cobrindo a
espuma.
— Parece bom, pode ser. E vou querer um muffin de chocolate
também.
— Okaaaay — cantarolo enquanto seleciono o pedido na tela e ele
paga logo em seguida. — Pode se sentar onde quiser, eu levo lá para você.
Ethan assente e cumprimenta Lily com um abraço desajeitado por
cima do balcão antes de se afastar em direção a uma das mesas perto das
estantes. Minha amiga não tem tempo de fazer mais nenhum comentário
porque um casal com moletons da NYU para na frente do seu caixa.
Ajeito o pedido do garoto sobre a bandeja e caminho até ele,
organizando sobre a mesa a caneca transparente de vidro, o prato com o
muffin, e um copinho pequeno com água com gás que acompanha todas as
bebidas cafeinadas quentes. Paro ao seu lado segurando a bandeja contra o
peito e espero até que ele prove a bebida.
Ethan faz um suspense, adotando um ar de crítico gastronômico. O
garoto leva a caneca até a boca e fica longos segundos sem esboçar reação
alguma, me deixando apreensiva. Sua indiferença, no entanto, se desmancha
e ele rola os olhos tomando mais um gole generoso.
— Porra, isso aqui é muito bom! — solta entre suspiros e eu sorrio
convencida.
— Eu sei, eu tenho bom gosto — me gabo, jogando os cabelos para
trás.
— Aham… Espero que tenha mesmo, o nosso encontro dessa semana é
por sua conta, espero que não tenha esquecido.
Merda.
Eu realmente não me lembrava disso. Hoje é terça-feira, e nós
combinamos que sairemos na quinta ou na sexta, o que significa que eu tenho
pouco mais de vinte e quatro horas para planejar um encontro completo e
que ele vá gostar.
E tem que ser tão bom quanto uma ida ao museu com direito a
jantar em um restaurante japonês, minha mente me lembra.
Estou perdida.
— É claro que não esqueci — minto.
— Posso saber o que está planejando? — Ele parece interessado e, no
mínimo, curioso.
E eu não tenho nada planejado.
— É uma surpresa, mas garanto que você vai gostar. Fique de olho no
seu celular, vou enviar algumas instruções — minto outra vez. Quer dizer, em
partes. O que quer que eu planeje, vou me esforçar para que ele goste, isso é
fato.
— Hmm, vou estar esperando… Já adianto que, se quiser me levar
para um motel, precisa pagar um jantar antes. — Ethan dá risada e eu reviro
os olhos pelo que julgo ser a milésima vez desde que nos aproximamos. Ele
é impossível.
— Sem chance, aproveite o lanche — digo mal humorada antes de
voltar para o caixa.
Enquanto caminho, minha mente parece estar entrando em parafuso.
Eu tenho vinte e quatro horas para planejar algo incrível que não fique
parecendo que foi pensado de última hora. E não tenho a menor ideia de por
onde começar.
“Se eu pudesse explicar
Meu sorriso em te ver me amar
Daria pra escrever poemas daqueles que vale até foto postar
E se a situação piorar
Se a tristeza vier e quiser ficar
A gente ri de uma piada que só faz sentido pra nós”
CATARINA | Manu Gavassi

23 de Agosto de 2021

— Tithan, vai mais devagar, eu vou cair! — minha irmãzinha grita,


entre gargalhadas.
— Eu nunca deixaria você cair, Anjinha — falo, também rindo, e
segurando seus joelhos firmemente junto ao meu quadril.
Angeline está agarrada nas minhas costas feito um bicho preguiça, e
eu estou correndo com ela pelo apartamento do meu pai, fingindo que somos
espiões em fuga. A pirralha tem energia para dar e vender, e eu estou um
verdadeiro trapo depois de ter passado o dia inteiro estudando e a tarde toda
revendo as partidas da pré-temporada junto com o time e debatendo nossas
principais falhas.
Foi a nossa última reunião antes do nosso recesso de três semanas até
a volta dos nossos treinos para a temporada regular, e como era de se
esperar, foi exaustivo pra cacete. Por isso, não pensei duas vezes antes de
subir na moto e dirigir até o Queens para me abastecer de boas doses da
minha fórmula secreta para a felicidade: a risada fina de Angeline e seus
abraços com cheirinho de colônia de jasmim e amoras.
— O que quer fazer agora? — pergunto, colocando-a no chão com
cuidado e me ajoelhando para conversarmos de igual para igual.
— A gente pode ver um pouquinho de desenho? Ou você vai ter que ir
embora? — ela me questiona com seus olhinhos grandes castanho-claro
brilhando em expectativa.
Finjo pensar e contenho uma risada, porque minha irmã mal pisca
esperando a minha resposta.
— Nós podemos ver desenho sim, mas só se tiver…
— PIPOCA! — ela grita animada e bate palminhas que, puta merda,
desmancham meu coração todo.
— Exatamente, vai ajeitando a sala pra gente ver desenho que eu vou
fazer pipoca, tá bom?
Ela assente, e antes de me deixar levantar para ir para a cozinha, seus
bracinhos envolvem meu pescoço e ela me abraça com força.
— Tava com saudade de comer a sua pipoca, a do papai não é tão boa.
Te amo — ela fala baixinho, e eu me seguro para não rir.
Deixo um beijo em sua bochecha antes de me levantar. Angeline vai
correndo buscar cobertores para arrumar o sofá e eu caminho para a cozinha,
onde meu pai está sentado em um dos bancos de frente para o balcão,
concentrado em seu notebook.
Assim que percebe minha presença no cômodo, os olhos de Patrick
Harris escorregam até mim e ele sorri. Me aproximo abraçando seus ombros
e deixo um beijo em sua cabeça. Meu pai esfrega sua mão em meu braço
devagar, em um carinho, enquanto eu tento entender a planilha exposta na tela
do seu computador.
— Tudo certo por aí? — pergunto.
— Sim, o movimento na mercearia foi bom esse mês. Vou conseguir
pagar as contas e comprar umas roupas novas para a sua irmã. Ela está
crescendo a cada piscada, já reparou?
— Se você, que a vê todos os dias, pensa isso, experimente vê-la uma
vez por semana, é assustador — digo, e ele solta uma risada rouca.
— É, estamos ficando velhos, nossa princesinha está crescendo — ele
comenta quando já estou colocando o milho na panela para estourar com um
pouco de manteiga e sal temperado. — Está precisando de alguma coisa?
Para a faculdade, ou algo assim?
— Não, está tudo certinho. Guarde o dinheiro para você e para
comprar as coisas para Angeline. Eu e Tia Suzy nos viramos bem — garanto,
ouvindo os primeiros estouros da pipoca.
— Sabe que o que precisar, é só me pedir que damos um jeito, não
sabe?
— Claro que sei, pai. Mas eu estou bem, sério mesmo.
Acabamos por engatar em outros assuntos. Meu pai me atualiza das
novidades da família Harris, dou risada quando ele me conta que um parente
distante vai se casar na Flórida e não convidou ninguém da família, e que
minha tia chegou aqui semana passada indignada por isso.
Quando a pipoca fica pronta, deixo meu pai terminando de trabalhar e
me aconchego no sofá com Angeline deitada em meu colo e assistimos uma
sequência de episódios de Backyardigans que faz o meu cérebro pifar. Sério,
alguém já descobriu qual animal a Uniqua é?
Lá pelas nove Angeline já está caindo de sono, então tenho a
satisfação de colocá-la para dormir antes de voltar para o meu apartamento.
Enquanto dirijo de volta para Manhattanville, sinto meu peito preenchido de
puro amor.
Estar em casa é como visitar o paraíso.
Assim que destranco a porta do apartamento, estranho o fato de que
Bruce não vem me cheirar como de costume, mas escuto as risadas vindas da
sala ecoando pelo corredor. Caminho até lá e não me surpreendo em
encontrar Tyler, Lily e Annelise reunidos ao redor da mesinha de centro
jogando Imagem & Ação.
Annelise e Lily estão realmente tendo um lance sério, e a garota tem
passado bastante tempo aqui no apartamento, o que tem ajudado um pouco a
derrubar as barreiras que tinha contra mim pela época em que Amelie e eu
vivíamos em pé de guerra.
Minha presença ainda não foi notada, por isso me encosto no batente
da porta para assisti-los jogar. O cronômetro está correndo enquanto Lily
anda de um lado para o outro com Bruce no colo como se ele fosse um
pequeno chihuahua, e não um bulldogue imenso e pesado. Ela faz caras e
bocas enquanto os irmãos Mansen a encaram confusos, sem saber o que
chutar.
A categoria é “pessoa ou personagem”, e eu não sei como, mas Lily
Stanford faz uma encenação impecável do desfilar de uma personagem em
específico. Só por isso eu arrisco o chute:
— Sharpay Evans, High School Musical — falo, chamando a atenção
deles para mim.
Lily solta uma gargalhada alta e me garante que acertei, o que faz
Annelise chiar.
— Como raios você sabia essa? — minha colega de apartamento
questiona.
— Efeito Castillo. Experimente conviver com uma garota obcecada
por esse filme, não aguento mais ver a cara da Ashley Tisdale — resmungo,
me juntando a eles e sentando ao lado do Tyler.
— Acredite, é daí para pior. Megan me fez usar fotos de perfil de
Greys Anatomy no Twitter combinando — Tyler fala num tom sôfrego, dando
tapinhas nas minhas costas.
— E é por isso, meu amigo, que eu não namoro. — Pisco em sua
direção, antes de tomar um gole da sua cerveja.
— Eu acho que você e a Amy formariam um casal fofo — Annelise
fala, dando de ombros, e Tyler solta uma gargalhada.
— Vou te colocar no grupo do bolão dos caras do time — meu amigo
fala, ainda rindo.
— Que bolão? — Lily se interessa.
— De quanto tempo vai levar pra ele e a Miss Jornal estarem se
pegando.
Meus amigos quase choram de tanto rir e eu reviro os olhos com
força. Desde que eu e Amelie nos aproximamos as piadinhas jamais
cessaram, um inferno.
— Vocês são os piores amigos do mundo, é sério.
Eles ainda passam um longo tempo rindo e fazendo piadas que me
fazem ter vontade de me enfiar em um buraco. Quando se recuperam, nós
finalmente começamos ao jogo e, na medida em que o álcool vai entrando, as
mímicas vão ficando cada vez mais esquisitas e engraçadas, o que fez a noite
se resumir a cerveja, risadas escandalosas e encenações tenebrosas que se
estendem até a madrugada.
Estar em casa com a minha família é incrível, mas a liberdade de
morar com os amigos tem lá suas vantagens. Noites assim são as minhas
favoritas.
“Podemos, fazer
Fazer companhia um pro outro?
Oh, talvez possamos ser
Ser a companhia um do outro”
COMPANY | Justin Bieber

23 de Agosto de 2021

Abro a porta da geladeira e pesco duas long necks de Bud Light do


congelador, segurando pela parte de cima com as pontas dos dedos. O vidro
está com uma camada fina de gelo cristalizando e minha pele arde um pouco
pelo contato enquanto caminho até a sala do meu dormitório.
Me afundo no sofá, ao lado de Megan, e disponho as garrafas na
mesinha de centro, onde Meg tira as tampas com seu abridor de garrafas do
AC/DC. Brindamos encostando os gargalos e bebemos em silêncio, cada
uma focada em seu próprio notebook.
Enquanto minha amiga está mergulhada em uma centena de termos
médicos, montando seu relatório mensal da sua rotina de interna salvando
vidas, eu estou queimando meia dúzia de neurônios pesquisando listas como
“5 lugares mais legais de Nova Iorque para levar seu amigo” e,
honestamente, me sinto frustrada.
Nada nessas listas me parece realmente bom. Nova Iorque é incrível e
tem uma porção de atrações, mas eu quero achar algo que grite “Ethan
Harris” da mesma forma que ele conseguiu quando escolheu me levar ao
MoMa.
O intuito desses encontros é justamente mostrar o que estamos
aprendendo sobre o outro, e mesmo considerando que já sei uma quantidade
considerável de informações, ainda não parece o suficiente.
Sei que ele gosta de livros, de História, Sociologia e Filosofia, que
odeia lugares cheios, mas gosta de boas festas, é estranhamente viciado em
comida japonesa e Cold Brew de Baunilha, curte filmes de romance antigos
e já leu boa parte dos livros de romance policial existentes.
Mas todas essas informações são um tanto desconexas, e tudo que
consigo pensar é em levá-lo à um drive-in ou em uma biblioteca. E por
algum motivo, isso não me parece exatamente empolgante. Baladas também
estão fora de cogitação, não vamos conseguir nos conhecer se estivermos
bêbados e ele estiver enfiando a língua na garganta de uma fila de garotas.
Involuntariamente, reviro os olhos imaginando a cena.
— Estou fodida… — murmuro, consternada, antes de tomar mais um
gole de cerveja e abrir outra aba no meu notebook.
— O que houve? — Megan pergunta sem tirar os olhos das suas
anotações.
— Preciso organizar alguma coisa para fazer com Ethan amanhã ou
sexta, mas simplesmente não encontro nada…
— Ainda naquele lance dos encontros?
— Sim, me salve, por favor! Para onde você e o Tyler costumam sair
nessa cidade? — pergunto já beirando o desespero, Megan gargalha alto.
— Bom, eu não tenho ideia de como te ajudar. Tyler e Ethan tem um
gosto bem diferente para lugares, seria meio inútil você se guiar por isso,
mas se quer uma dica, marque para sexta.
— Por quê? — questiono encarando-a.
— Amanhã tem jogo dos Knicks, o time de basquete que Ethan e Elói
torcem, os meninos devem ir assistir — ela explica.
— Onde vai ser esse jogo? — pergunto, curiosa.
— A partida vai ser aqui na cidade, no Madison Square Garden, mas
os garotos vão ver no Grove 's mesmo.
— Entendi… — digo baixo, encarando um ponto fixo no chão
enquanto as engrenagens do meu cérebro trabalham a todo vapor.
Leva menos de um minuto para que eu desperte soltando um gritinho
animado, um estalo atravessa minha mente e eu me pergunto por que não
pensei nisso desde o início. Ethan é um atleta, ele pode gostar de muitas
coisas, e talvez eu tenha tentado fugir do óbvio, mas a real é que aquele cara
é fissurado por basquete. E mesmo sendo totalmente leiga, eu sei que assistir
uma partida da NBA na arena é, certamente, um ápice para qualquer
torcedor.
— Puta merda, Meg! É isso! Te amo, você é uma gênia! — grito antes
de me levantar e correr até o meu quarto para pegar o meu cartão.
— Você não vai fazer o que eu estou pensando não, né? — ouço-a
perguntar da sala.
— Ah, eu vou sim! — grito rindo quando, enfim, encontro o cartão de
crédito dentro da minha bolsa.
Quando me sento novamente diante do computador, já tenho tudo
quase que minuciosamente planejado em minha cabeça, e estou certa de que
Ethan vai ficar louco. E só porque vê-lo se descabelando me traz um tantinho
de prazer, lhe envio a seguinte mensagem para fazer um suspense:
Eu: Te busco no seu apartamento amanhã às sete da noite, esteja
pronto para perder o título de melhor encontro.
Nem meio segundo depois, meu celular vibra e eu solto uma risada
alta quando leio sua resposta.
Problema de Estimação: Que não seja um cativeiro, por favor!
Noite de quinta-feira

A ansiedade e o nervosismo se fundem num misto excêntrico dentro do


meu estômago quando dou uma última olhada no meu reflexo no espelho. Um
moletom amarelo gigante que encontrei no armário da Megan cobre todo o
meu corpo até um pouco acima dos joelhos, escondendo a roupa que estou
vestindo, deixando que a única coisa a ser vista seja a própria peça e o tênis
branco que estou usando nos pés.
Acomodo meus fios de cabelo dentro do capuz e puxo-o sobre o boné
preto que estou usando na cabeça. Pego a caixa de papel que descansa sobre
a minha cama, a chave do carro e uma mini-mochila onde coloquei meu
celular, documentos e dinheiro.
Vou até a sala, me despeço de Megan com um beijo no rosto e bagunço
os cabelos de Tyler, que está jogado no nosso sofá feito uma manta humana,
destruído depois de, segundo ele, fazer a “prova mais fodida de Direito
Penal da história”. Grito que os amo quando passo pela porta e caminho
apressada até o estacionamento, colocando a caixa no banco traseiro e me
sentando atrás do volante logo em seguida.
O trânsito até Manhattanville é um tanto congestionado, e eu não
consigo pensar em nada além do fato de que o universo está testando o quão
controlada eu consigo ser com a minha ansiedade, que por sinal está nas
alturas. Estaciono na frente do prédio de tijolos terracota, dando uma
buzinada leve, e vejo o garoto caminhando em direção ao carro com um
sorrisinho maroto no rosto.
Ethan está com uma calça jeans preta, tênis branco e uma camisa de
botão de linho, igualmente preta. A corrente fina prateada que ele sempre
tem usado está acomodada do lado de fora da camiseta, passando por baixo
da linha de bordo da gola.
Destravo as portas para que ele entre, e como num passe de mágica,
meu carro fica tomado por seu perfume. O cheiro almiscarado se funde ao
aroma cítrico que exala do seu cabelo, um xampu de laranja talvez, criando
uma atmosfera olfativa capaz de me deixar inebriada. O abraço de forma
inábil quando ele se inclina em minha direção e sinto o carinho suave que
ele deixa em minhas costas.
— Estamos indo fazer cosplay de Teletubbies? Porque não me avisou
antes? Eu tenho um macacão azul que ficaria incrível — ele fala, rindo,
quando se afasta e analisa meu moletom.
— Cara, pelo amor de Deus, não me estressa! — resmungo revirando
os olhos e dando um tapinha em seu ombro. Ele, por outro lado, cai na
gargalhada.
— Foi mal, Coelhinha — ele se desculpa e vira para puxar o cinto de
segurança. É engraçado vê-lo todo gigante sentado num carro tão pequeno.
— Vai me contar para onde vamos?
— Não só não vou contar, como também tenho uma surpresinha —
digo, rindo, e ele retesa.
— Linda, eu vou ser sincero, estou com um pouco de medo do que
você está planejando...
Um sorriso malicioso se alarga em meu semblante deixando-o
confuso, no entanto, quando tiro uma das minhas bandanas de dentro do
bolso do moletom, os olhos de Ethan se arregalam em surpresa. Chamo-o
com os dedos para que se aproxime e o garoto obedece, ainda me encarando
um tanto nervoso. Cubro seus olhos com a bandana branca e dou um nó firme
atrás da sua cabeça.
Achei que vendá-lo deixaria a surpresa mais interessante, afinal,
estou prestes a levá-lo para a arena sede do seu time de basquete favorito.
Ethan reconheceria o caminho muito facilmente e estragaria todo o lance que
planejei.
— Coelhinha, você sabe que eu estava brincando naquele dia no meu
apê, quando eu falei que acharia legal ir para um cativeiro onde você usaria
e abusaria do meu corpinho, né? Porque, assim, está meio difícil acreditar
que você não está me levando para um motel no meio do nada. — O tom de
voz preocupado me deixa dividida entre revirar os olhos e gargalhar com
vontade.
— Pode ficar tranquilo, não vamos fazer cosplay de Teletubbies e
muito menos transar loucamente usando cordas. Seu corpo e sua reputação
estão à salvo comigo — tranquilizo-o antes de dar a partida no carro.
— O que me garante que debaixo desse moletom aí você não está só
com uma lingerie, hein? Eu só acredito vendo — ele provoca, rindo, e eu
tiro uma das mãos do volante para empurrar sua cabeça.
— Pare de ser um idiota! Não mexa nessa venda e cale essa matraca!
É sério.
Dito isso, um meio silêncio recai pelo ambiente enquanto dirijo,
salvo a playlist que toca nas caixas de som. Ethan não diz sequer uma
palavra pelos próximos segundos, mas não demora muito para que sua voz
torne a ecoar pelo carro.
— Vai demorar muito para chegar? — ele pergunta, e eu preciso de
muito esforço para não soltar um grito irritado.
Ethan sabe ser irritante em níveis extremos, e em situações como
essa, eu me pergunto por que raios estou deixando esse cara virar meu
amigo.
Assim que estaciono a poucos metros do Madison Square Garden, ele
se remexe no banco parecendo ansioso. Observo-o rapidamente e vejo-o
morder o lábio inferior, ele deve estar se segurando para fazer a exata
pergunta que repetiu nos últimos três sinais em que precisei parar. Por isso,
alivio seu sofrimento.
— Nós chegamos — digo antes de desligar o motor e me virar de
frente para ele. — Mas não tire a venda ainda. Só quando eu deixar, okay?
— eu questiono e ele assente, tamborilando os dedos sobre suas coxas.
— Coelhinha, eu estou realmente com medo agora.
Solto uma risada fraca antes de me esticar para pegar a caixa de
papel no banco de trás, ela está leve, o que facilita o trabalho. Coloco a
caixa sobre o colo do garoto e então, puxo o nó da bandana, permitindo que
ele consiga voltar a enxergar.
Eu estacionei duas ruas antes da arena, por isso, quando Ethan olha
através do vidro do carro, o ar confuso ainda toma conta do seu rosto.
— Onde nós… — ele começa, ainda olhando ao redor, mas eu o
interrompo.
— Abra a caixa — instigo, apontando com o queixo para o embrulho
em seu colo.
Só então Ethan parece tomar ciência da embalagem. Ele alterna o
olhar entre a caixa branca e o meu rosto parecendo desconfiado. Me viro
completamente de lado, apoiando o braço na parte de cima do volante para
observá-lo. Quando o garoto enfim retira a tampa e vê o que tem dentro, é
como se sua ficha começasse a cair.
— Por que você está com a minha camisa? E eu sei que é a minha
porque está autografada pelo RJ Barrett — ele pergunta puxando a regata de
basquete de dentro da caixa.
— Eu pedi para o Tyler pegar para mim sem que você visse, porque eu
conheço você o suficiente para saber que você ficaria bem emburrado se eu
te trouxesse para isso — sorrio e puxo o par de ingressos do bolso do
moletom e estendo em sua direção — , sem um traje adequado. E aí, pronto
para o nosso encontro?
“Encarando diretamente dentro dos meus olhos, eu, eu
E às vezes
Eu penso em você até tarde da noite
Eu não sei porque”
BEAUTIFUL EYES | Taylor Swift

24 de Agosto de 2021

Eu estou perplexo.
Quando Amelie me enviou uma mensagem noite passada marcando
nosso “encontro” para hoje, eu pensei em pelo menos três mil lugares
diferentes que ela escolheria para essa noite, e torci para que eles fossem
incríveis o suficiente para que eu me esquecesse do fato de que dei um bolo
nos meus amigos na sagrada noite da NBA no Grove’s.
Mas nunca, em nenhuma das hipóteses, eu pensei que ela me traria ao
Madison Square Garden para ver os Knicks ao vivo.
— Diz pra mim que isso não é uma pegadinha — suplico, segurando a
camiseta em minha mão e com os olhos vidrados nos ingressos. — Sério,
Coelhinha, se for uma pegadinha eu vou chorar por uns três dias!
— Ah, pode apostar que não é, minha conta bancária que o diga! —
Sua risada alta preenche o carro, e ela me entrega um dos ingressos. —
Vamos, troque a blusa, vou esperar você lá fora.
Sem dizer mais nada, Amelie salta para fora do carro e fecha a porta,
encostando-se nela logo em seguida.
Não consigo controlar o sorriso enorme que se estende em meu rosto
enquanto desabotoo minha camisa. Em primeiro lugar, porque fazia um bom
tempo que eu não assistia um jogo da liga profissional na arena e em segundo
lugar, porque porra, Amelie definitivamente não é uma fã dos esportes, mas
está fazendo isso por mim.
Conhecendo-a hoje, como conheço, é quase que absurdo pensar na
imagem que eu tinha dela há um tempo atrás. Honestamente, ela é uma das
pessoas que eu conheço que mais se dedica às outras pessoas, e isso é
admirável demais.
Assim que passo a blusa do New York Knicks pela cabeça, pego o
ingresso de cima do banco e saio do carro usando o vidro como espelho
para ajeitar o caos do meu cabelo.
Dou a volta no veículo parando de frente para Amelie. O moletom
amarelo que ela está usando é enorme, vai até um pouco acima dos joelhos.
As mangas cobrem suas mãos e a peça quase faz com que seu corpo suma
dentro dela.
Quando vê que estou pronto, a garota puxa para baixo o zíper que
estava fechado até a gola, arrancando o moletom de si e o joga dentro do
carro, revelando um visual que, ao mesmo tempo que me tira o fôlego, me
faz soltar uma risada forte.
Alguém realmente se dedicou.
— Eu não acredito! — digo, balançando a cabeça em negação com um
sorriso frouxo nos lábios.
— Gostou? — ela pergunta, esticando os braços e dando uma voltinha
para que eu possa conferir.
Amelie está vestida com um cropped preto da coleção feminina dos
Knicks, uma mini saia justa de cetim em um tom de vermelho escuro que
deixa à mostra suas pernas torneadas pelo boxe, um tênis branco nos pés e
um mix de colares prateados adorna seu pescoço. A cabeça está coberta com
um boné também preto. Os cabelos longos cacheados estão soltos e caem em
cascata sobre seus ombros.
No carro estava escuro e passei boa parte do tempo vendado, mas
agora, a luz do poste permite que eu veja os brilhinhos dourados que ela
passou nas pálpebras, a pele negra clara está maquiada de forma natural,
deixando que toda a atenção vá para os seus lábios, cobertos por um batom
vermelho intenso.
E, puta que pariu, que me perdoem os Deuses da amizade, mas ela está
desgraçadamente linda e muito, muito gostosa. Ser amigo de Amelie está me
colocando numa das situações mais fodidas do planeta: estar muito próximo
de uma mulher com quem eu não posso ter envolvimento algum além da
amizade.
E isso ainda vai desgraçar a minha cabeça.
— Você tá muito bonita. Uma Maria Cestinha de respeito, eu diria. —
Sorrio antes de puxá-la para perto e passar meu braço sobre seus ombros.
Simplesmente virou um hábito andarmos assim.
— Eu me empenhei bastante, fico feliz que meu esforço tenha sido
reconhecido — ela diz, rindo, e caminhamos até a arena em um silêncio
confortável.

O Madison Square Garden poderia ser considerado um templo do


basquete em Nova Iorque. Há boatos correndo pelos vestiários da liga
universitária, inclusive, de que a Liga Ivy pretende realizar daqui três anos a
abertura da conferência que comemora seu septuagenário aqui mesmo, nesta
arena.
Além da estrutura imponente que já sediou shows, competições de
hóquei, jogos da NBA e mais uma série de eventos, a arena é também a casa
dos New York Knickerbockers, ou Knicks, como é mais conhecido o time
para qual eu e meu pai torcemos desde que eu era um bebê de colo.
Assim que passamos da primeira entrada da arena, eu e Amelie
seguimos em direção à segunda entrada que dá na arquibancada comum,
porém, tenho um sobressalto quando a garota agarra minha mão e me puxa
em direção à uma fila reservada para as pessoas com credencial. Com a
facilidade de quem compra uma garrafa d’água, a garota diz o próprio nome
e, em questão de segundos, estamos com crachás vip no pescoço e
caminhando em direção às primeiras fileiras.
— Se eu disser que estou chocado pra caralho e me sentindo muito
pobre, você promete não rir de mim? — pergunto assim que nos
acomodamos em nossos assentos, e a garota solta uma gargalhada. — Eu sei
que você tem grana e tal, mas como conseguiu isso? Não é necessário ter
tipo, um zilhão de contatos?
— Descobri que a empresa do meu padrinho era uma das
patrocinadoras da noite. Fazia um bom tempo que não nos falávamos, não
somos próximos, mas eu pensei: “por que não tentar?” e deu certo! — ela
explica, apontando para a logo da rede de fast food gravada no crachá. — E
só corrigindo: eu não tenho grana, o meu pai tem grana.
— E isso não é exatamente a mesma coisa? — pergunto como se fosse
óbvio.
A garota encara a quadra, que ainda está vazia, e se mexe
desconfortável na poltrona antes de me encarar novamente com seus olhos
escuros e tomados de determinação.
— Não é, eu não uso o dinheiro do meu pai. A única quantia que
recebo dele é toda usada para pagar meus gastos com os meus estudos, e não
abro mão disso porque é o mínimo, ele me deve isso. Mas de resto, é tudo
pago com o salário do meu trabalho na cafeteria — ela explica, e nesse
momento já não sei se estou tão confortável de estar onde estamos.
— Não precisava ter gasto seu dinheiro comigo, os ingressos dos
jogos da liga profissional são caros e… — tento contrariar, mas ela me
interrompe com um “shhh”.
— Eu gastei porque quis, está bem? — Sua voz é firme, mas um
sorriso enorme rasga seu rosto. — Você é meu amigo, e eu quis trazer o meu
amigo para se divertir comigo, não tem nada de mal nisso. Acredite, eu
economizo bastante grana para trocar de carro, não quero me sentir mal por
usar o que sobra do meu dinheiro como bem entendo. — Assinto ainda um
tanto contrariado, mas não faço mais nenhuma objeção. Não quero deixá-la
desconfortável e, certamente, não quero que fique chateada.
— Obrigado por isso, mesmo — digo um tempo depois. — Sei que vir
a um jogo de basquete não é bem a sua praia, mas se serve de consolo, eu
estou bem feliz de estar aqui e assumo que perdi o posto do melhor encontro
— falo baixo e ela sorri com mais um de seus sorrisos gigantes e sinceros.
— É o que importa. E eu sabia que ia gostar. É demais, não é? A
quadra está tão perto que sinto que posso ser acertada pela bola! — ela
comenta, apontando para a distância minúscula que nos separa de onde irá
acontecer o jogo.
Observo com atenção, e é realmente surreal o quão perto nós
estamos. Todas as vezes em que assisti os jogos eu fiquei na arquibancada
suspensa, mas a experiência de onde estamos deve ser quase como estar
sentado no banco de reservas vendo meus ídolos jogarem.
— É a primeira vez que assisto um jogo tão de perto — comento.
— Quantas vezes você já veio aqui?
— Quatro. Duas vezes com o meu pai, ele também é torcedor fanático
dos Knicks, uma com a minha tia Suzy, e assisti uma final com Tyler e o pai
dele há uns dois anos — enumero erguendo os dedos.
— E agora são cinco. Já pode dizer que assistiu um jogo na minha
ilustre companhia — ela joga os cabelos para trás, se gabando, e eu não
consigo controlar o riso. — Achei que vocês, jogadores, tivessem uma tara
por assistir jogos ao vivo, mas cinco vezes é um número bem ok, na verdade.
Amelie me encara e eu me sinto um tanto sem jeito para explicá-la. A
verdade é que a grande maioria esmagadora dos estudantes Irving tem
condições financeiras pra lá de boas, até porque se não tivessem, não
estariam lá, não quando a anuidade pode chegar a sessenta mil dólares. Em
consequência disso, existe uma ideia geral de que ser rico é pré-requisito
para estar estudando na universidade, o que não é bem verdade.
— Eu gostaria de vir mais vezes, mas eu ainda dependo
financeiramente do meu pai e bom… É complicado.
Eu digo de forma breve, mas Amelie vira o corpo na minha direção
como quem diz “sou toda ouvidos”, e bom, não vejo porque esconder algo
dela.
— Quando minha mãe era viva, nossa família era bem estável no que
diz respeito a finanças. Acredite, o salário de um agente federal é muito
bom, e mamãe era uma das melhores. Acontece que depois que ela morreu,
meu pai se afundou num luto paralisante que deixou ele pouco mais de um
ano afastado do trabalho e o que sustentou nós três , — eu, ele e a minha
irmã — foi o dinheiro da indenização que recebemos do FBI. Depois que se
recuperou, ele usou o que sobrou para montar a mercearia onde ele trabalha
até hoje, e você deve imaginar que a renda não é lá essas coisas.
— Entendo, faz sentido e deve ser mesmo complicado. — Ela me
oferece um sorriso afetuoso que torna o ato de falar sobre algo relacionado a
minha mãe um pouco menos doloroso. — Mas como você faz para se manter
na faculdade? Você não trabalha, certo?
— Não, e nem conseguiria com a rotina dos treinos e dos estudos. Eu
entrei na Irving pela bolsa de esportes, eu não pago a faculdade contanto que
eu mantenha boas notas e um bom desempenho em quadra. Tyler, Annelise e
eu fomos criados como irmãos, então quando entrei na faculdade, morar com
eles foi simplesmente parte do processo, os pais deles bancam nós três no
apartamento sem distinção, sabe? — Amelie assente, mesmo sendo uma
pergunta retórica. — O resto, que inclui o gasto com materiais, a gasolina e
os reparos da moto, o dinheiro que uso no dia a dia para comprar as minhas
coisas, é a minha tia quem banca. Ela é uma fodona do jornalismo de moda e
eu sou quase como seu filho.
— Você tem pessoas boas te cercando, isso é excelente — ela diz com
um misto de felicidade e tristeza.
— Felizmente sim. Mas eu sinto, cada vez mais, que preciso da minha
independência financeira. Poder aliviar quem tanto já fez por mim e não me
sentir constantemente como um peso…
— Entendo perfeitamente, não vejo a hora de ter o meu carro que não
vai me dar dor de cabeça e, quem sabe, morar fora do campus no próximo
ano, já que Megan vai se formar, sabendo que foi tudo pago com o meu
dinheiro.
A real é que eu e Amelie temos mais coisas em comum do que
opostas.
— Não vejo a hora de ganhar aquele estágio! — Dizemos em uníssono
e caímos na gargalhada logo em seguida.
Embalamos em uma conversa trivial sobre como foi a nossa semana.
Amelie se diverte quando conto que Bruce, meu bulldog, está simplesmente
viciado em maçãs ao ponto de ficar agitado quando escuta o barulho de
frutas sendo cortadas.
Ela me conta sobre um de seus treinos de boxe e eu a faço prometer
que um dia vai me deixar vê-la no tatame descendo umas boas porradas em
alguém que não seja eu. Explico também sobre o recesso que o time vai
entrar com o fim da pré-temporada e a preparação para a temporada regular.
O papo flui com uma maestria que impressionaria quem nos conhece
há anos. Quando nos damos conta, a abertura da partida se inicia e logo os
jogadores dos Knicks e do Toronto Raptors estão voando pela quadra nos
presenteando com um verdadeiro show em forma de jogo.
Amelie me pergunta sobre algumas jogadas e qual o grau de
dificuldade delas. Tento explicar de uma forma que seja clara para ela e fico
satisfeito ao notar ela entendendo absolutamente tudo e até xingando os
adversários quando se aproximam da nossa cesta. Se alguém dissesse ao
Ethan de meses atrás que ele estaria com Amelie Castillo uniformizada
assistindo uma partida de basquete eu daria muita, muita risada desse
absurdo.

O jogo já caminha para o quarto período quando o intervalo é


anunciado, o Knicks estão na frente, liderando com uma vantagem de sete
pontos no mínimo perigosa.
Enquanto os times se concentram em seus respectivos bancos para
repassarem suas instruções, checo meu celular e vejo que não há
notificações de mensagens.
Me distraio fechando os aplicativos, mas sinto quando Amelie cutuca
meu braço chamando a minha atenção.
— Hm… Ethan… Acho que precisa ver isso — sua voz está nervosa e
quando olho em sua direção, sua feição denuncia o mesmo sentimento.
— O quê? — eu pergunto, e Amelie não me responde, apenas aponta
com o dedo para o telão que desce do teto bem no meio da quadra.
Sinto meu estômago embrulhar em puro nervosismo quando a situação
mais improvável do mundo se desenrola bem na minha frente. Na tela, eu e
Amelie estamos sendo gravados ao vivo e estamos envoltos por um coração
rosa brilhante que faz com que todos os olhares da arena caiam sobre nós.
Sim, de todos os casais que a porra da câmera do beijo poderia
escolher nessa arena lotada, ela está justamente em nós dois. Um casal que
não é um casal.
As pessoas atrás de nós começam a puxar um coro de “beija, beija,
beija” que faz com que minhas bochechas esquentem e, cacete, estou nervoso
porque isso não estava nos meus planos.
Puta que pariu. Puta. Que. Pariu.
Olho para Amelie novamente, ela sibila um “e agora?” e eu ergo os
ombros deixando claro que não tenho ideia do que fazer. Assumindo as
rédeas da situação, a garota segura meu rosto e se aproxima. Sinto minha
pulsação acelerar e fecho os olhos porque tenho quase certeza de que ela vai
me beijar e, bom, eu não tenho ideia do que pensar sobre isso.
No entanto, me surpreendo quando sinto seus lábios tocando a pele da
minha bochecha em um beijo carinhoso e demorado. As pessoas ao nosso
redor gritam num misto de comemoração e decepção quando percebem que
não os oferecemos o beijo cinematográfico que esperavam.
Amelie se afasta o suficiente para me encarar. São necessários poucos
segundos olhando em seus olhos para que nós dois comecemos a rir
desesperadamente da situação.
— Acha que eles ficaram bravos? — ela pergunta rindo.
— Talvez, mas eles superam. Tenho certeza de que foi o melhor beijo
na bochecha entre pessoas gatas que eles já viram — digo enquanto abano
meu rosto, tentando conseguir fôlego.
— Já te disse o quanto sua autoestima é interessante? — ela comenta,
debochada.
— Na verdade, você sempre a detestou — pontuo. — Mas é bom
saber que me acha interessante, Coelhinha.
Eu lhe lanço uma piscadinha e Amelie, como sempre, revira os olhos
e me estende os dedos médios murmurando um “vai se foder”.
Quando o jogo acaba e os Knicks levam a melhor com uma diferença
exorbitante, eu e Amelie caminhamos até o estacionamento em uma conversa
animada. O trajeto de volta até a minha casa passa tão rápido enquanto
falamos sem parar que ela estaciona na frente do meu prédio e passamos
mais uns vinte minutos dentro do carro só repassando o quanto nos
divertimos.
Eu nunca pensei que assistiria um dos jogos mais legais da minha
vida com ela, mas é verdade. Foi uma noite e tanto.
No fim, acredito que a amizade que estamos construindo seja
exatamente sobre isso, cada um cedendo um pouquinho e se adaptando às
coisas que fazem o outro feliz, sem nos anular ou deixar de lado nossas
preferências, apenas aprendendo a apreciar e respeitar as vontades um do
outro.
“E eu não me defendo
Eu sou ansiosa, e nada pode ajudar
E eu queria ter feito isso antes
E eu queria que as pessoas gostassem mais de mim”
BRUTAL | Olivia Rodrigo

10 de Setembro de 2021

O refeitório da Irving é, quase sempre, a minha última opção para


almoçar. A comida é toda proveniente daqueles saquinhos de refeições
prontas com ziplock e, na minha humilde opinião, todas as comidas tem
exatamente o mesmo gosto e as folhas da salada tem tanto sabor quanto papel
A4.
Até mesmo Megan, que é uma verdadeira sommelier de comidas
congeladas, diz que comer no refeitório é como degustar uma infinidade de
tampas de potes plásticos. Tendo em vista que o gosto da minha amiga para
alimentos está longe de ser refinado, é possível entender o quão crítica é a
situação.
Por esse motivo, eu, minha melhor amiga e seu namorado, estamos
sentados em uma mesa próxima da janela de uma das unidades do KFC que
fica a dois quarteirões do campus. Megan está com os olhos grudados na tela
do seu iPad. Enquanto eu e Tyler esperamos nosso balde de frango frito
batendo papo, ela está revisando alguma matéria super importante para a sua
prova de residência que vai acontecer em alguns meses.
Encaro o garoto na minha frente. Os olhos castanhos tem o formato
amendoado fino, a pele pálida é viçosa e não esconde o tanto de produtos
que Megan o obriga a usar no rosto para conseguir o aspecto impecável de
porcelana. Tyler Mansen é um cara muito bonito. O cabelo castanho escuro
tem um corte social que combina muito com ele, e é inacreditável o quanto
ele e Megan parecem ter sido feitos um para o outro. Tenho certeza absoluta
de que ainda os verei dar grandes passos juntos.
— Como estão os treinos? Ethan me explicou que vocês estariam em
recesso por um tempo, quais as expectativas para a temporada oficial? —
pergunto apoiando os cotovelos sobre a mesa e sustentando o rosto nas
mãos.
Tyler sorri, talvez por notar que ando um tanto inteirada sobre
basquete. Os traços finos do garoto se esticam e ele parece transparecer a
felicidade com todo o rosto.
— Estão fluindo bem, na medida do possível. Estamos testando usar
um dos calouros no time principal. Ethan está ralando para conseguir
adequá-lo a nossa sintonia em quadra. — Eu faço uma careta dolorida e o
garoto ri. — Mas vai dar tudo certo, Ethan é um bom capitão e Cory Covey é
um moleque perspicaz.
— Ah, menos mal — comento e Tyler assente antes de desviar o olhar
para seu celular e soltar uma risada.
— Puta merda, vocês precisam ver isso, garotas! — Ele gargalha
quando estica o aparelho em nossa direção.
Na tela, há uma selfie onde Annelise está sentada no banco do
motorista de seu carro segurando o celular com uma mão e com o dedo
médio erguido na outra. Ela está vestida com o casaco roxo da NYU, e ao
seu lado, Ethan está sentado com Bruce no colo.
Acontece que tanto o garoto quanto o bulldog estão vestidos com o
moletom azul marinho da Irving. O cachorro encara a câmera e a boca aberta
dá a impressão de que ele está sorrindo, o que torna tudo ainda melhor. Não
me contenho e solto uma risada esganiçada. Megan faz o mesmo e obriga o
namorado a enviá-la a foto para postar em seu Twitter.
— Eu não fazia ideia de que existiam moletons da faculdade para
cachorros — digo, ainda rindo.
— Não existem. Foi uma cortesia de Charles Brooks, ele mandou fazer
para a festa que rolou lá em casa depois do final da temporada do ano
passado — Tyler explica.
Rio ainda mais e não me surpreende que a atitude de uniformizar o
cão tenha vindo de Charles. Não somos exatamente amigos, mas arrisco
dizer que, nos últimos dias em que tenho andado mais próxima dos meninos
do basquete, ele e Elói Pierre são os caras que mais tem se aproximado. Por
isso, pelo pouco que conheço de Brooks, sei que é um cara excêntrico e
completamente imprevisível.
Quando as piadas e comentários sobre a foto se esgotam, Megan volta
a se concentrar em seu iPad e Tyler me enche de perguntas sobre o que eu
tenho estudado, provavelmente para se distrair.
— Merda, acho que qualquer coisa nessa maldita universidade é anos
luz melhor do que estudar o código penal — ele resmunga e espalma a mão
direita na testa logo depois de eu lhe explicar um dos trabalhos de
multimídia que estou desenvolvendo em aula.
Franzo o cenho, confusa. Acho que não conversei com Tyler vezes o
suficiente para notar o que, agora, vendo sua feição de irritação, me parece
claro como água: ele definitivamente não gosta do próprio curso.
— E por que você estuda o código penal, então? — questiono-o.
— Porque é o que os pais dele querem — Megan se pronuncia ao meu
lado, e há um resquício de indignação no seu tom de voz.
Os olhos de Tyler se tornam tristes quando ele encara a namorada.
Meg se mantém focada em seus estudos sem nem ao menos ousar erguer o
olhar para nós. Sinto uma certa tensão no ar e desejo internamente conseguir
evaporar daqui só com a força do pensamento.
Minha amiga se mantém calada e eu, por minha vez, coço a garganta,
chamando a atenção de Mansen para mim.
— Por que você não troca de curso? A transferência interna na Irving é
um processo bem simples. Nate, um garoto que estuda comigo, se transferiu
de Literatura Clássica para Jornalismo e disse que o processo todo levou
três dias.
Explico honestamente disposta a ajudá-lo, mas Tyler ri frustrado ao
apoiar o rosto sobre o punho cerrado.
— Quem me dera fosse tão simples, Miss Jornal, quem me dera — ele
diz, sôfrego. — Se eu ousasse trocar de curso, acho que meus pais
cancelavam minha matrícula na faculdade no mesmo instante. E se eu perder
a faculdade, eu perco o basquete, e essa é provavelmente a segunda coisa no
mundo que eu não suportaria perder… — a frase morre no ar, mas eu sei
exatamente o que ele quis dizer.
A primeira coisa, ou pessoa, que Tyler Mansen não suportaria perder
é Megan Lewis, e isso é tão óbvio quanto um mais dois são três. O cara é
perdidamente apaixonado pela minha melhor amiga, vê-los juntos é como
testemunhar o amor em sua forma pura. Chega a ser um sinal de esperança
gritando bem na minha cara que o mal não venceu e que as pessoas ainda
conseguem construir coisas boas.
E mesmo sabendo essa resposta tão óbvia, tento desfazer o início de
tensão que sinto ter se criado segundos atrás, perguntando:
— E qual seria a primeira coisa?
Tyler ri, porque minha tentativa de ser uma fada madrinha de namoro
provavelmente ficou escancarada nos meus olhos que insistem em sorrir
sozinhos.
— Sua amiga, mas isso não é segredo para ninguém — ele diz,
encarando-a com uma carinha de bobo apaixonado que me faz sorrir.
Megan se rende e guarda suas coisas em sua bolsa antes de dar a
volta ao redor da mesa e sentar-se ao lado do namorado. Ela o abraça de
lado, mas não menos forte, e deixa um beijo em sua têmpora.
— Eu amo você, sim? Só me deixa brava não poder fazer nada para
que você consiga ir atrás dos seus sonhos. Eu sou quase médica, resolver
problemas é o que eu faço, e me frustra não poder resolver os de quem eu
amo — ela alterna o olhar entre nós dois na última frase e eu entendo que o
recado também serve para mim.
— E qual o verdadeiro curso dos seus sonhos, afinal? — pergunto,
interessada.
Tyler engole seco e parece me estudar, acho que pensa que vou rir de
qualquer que seja a sua profissão almejada.
— Ele quer jogar basquete. Profissionalmente, NBA e tudo mais,
sabe? — Meg se adianta na resposta e eu entreabro a boca, surpresa.
Encaro o garoto envolto pelos braços da minha amiga e vejo quando
ele assente. Examino-o com atenção e tento imaginá-lo entrando e saindo de
tribunais vestido em ternos caros como os do meu pai, e bom, me parece
terrível.
Mas então me lembro do jogo que assisti com Ethan duas semanas
atrás e daqueles jogadores gigantescos entrando em quadra exibindo todo
seu talento e glória, disputando com raça e determinação cada precioso
ponto. E sendo sincera, aquilo se parece muito mais com um futuro ideal
para Tyler Mansen.
— Você definitivamente precisa dar um jeito de seguir o seu sonho —
decreto após sair da bolha em que me enfiei imaginando o garoto sendo
reconhecido mundialmente como a estrela da franquia mais relevante do
esporte.
— Infelizmente não é tão simples, meus pais sempre trabalharam com
a ideia de que um dos filhos seria advogado e herdaria os escritórios da
família, bem como sua cartela de clientes. E você conhece Annelise, um
talento daqueles simplesmente não merece ser sufocado por seis anos de
merda estudando igual a um filho da puta.
É verdade. Annelise Mansen tem a voz mais bonita que já ouvi e toca
piano tão belamente que só havia escutado antes pelas mãos da minha mãe.
— Está sacrificando seu futuro por sua irmã. — Não é uma pergunta, é
uma constatação
— Eu faria qualquer coisa por ela — Tyler responde resoluto.
— Ainda assim, é uma situação injusta — confronto, e ele ri.
— Se tem alguma coisa que aprendi nesses últimos cinco anos
infernais estudando casos jurídicos, Miss Jornal, é que a vida é a porra de
um banquete farto de injustiças, e tem para todos os gostos — ele ri sem
humor. Meg o abraça ainda mais forte e eu deixo um carinho de consolo
sobre a sua mão.
Que droga.
Nosso pedido finalmente chega e nós comemos em silêncio. Na hora
de voltarmos para nossas respectivas atividades acadêmicas, nos
acomodamos no Kia Soul preto estacionado na porta do restaurante. Tyler
deixa Megan no Wallch Campus e, logo em seguida, me leva até o prédio de
Jornalismo, no Coleman, onde estudamos.
Me despeço do garoto bagunçando seus cabelos e salto para fora do
SUV. Caminho pelo imenso gramado onde alguns estudantes estão deitados
lendo, comendo, conversando ou só matando tempo. Me permito observar
minha tão amada universidade-lar com mais atenção, sentindo a mesma
devoção de sempre preencher meu peito.
Meu momento de apreciação, no entanto, é interrompido assim que
sinto meu celular vibrando no bolso do meu jeans. Puxo o aparelho e, depois
de duas semanas, as sensações de confusão e temor retornam ao meu corpo
e, dessa vez, potencializadas.
O que diabos ele quer? Me pergunto instantes antes de aceitar a
ligação e deixar que o próprio retire minha dúvida.
— O que aconteceu? — pergunto de imediato, antes mesmo de
cumprimentá-lo.
— Em primeiro lugar, boa tarde. — Ah, agora usamos as
formalidades, papai?
— Boa tarde, tenho cinco minutos, estou prestes a entrar em uma aula
— informo, ainda que esteja caminhando mais devagar do que o normal.
— Certo, serei breve. Tenho um convite para lhe fazer…
— Inclui mais um café da manhã? — pergunto, porque essa é
tecnicamente a única reunião entre nós com a qual eu me comprometi a não
faltar.
— Não, hija, eu…
— Sendo assim, a resposta é “não”. Foi ótimo falar com você, papai,
agora preciso mesmo ir — interrompo-o, e me repreendo mentalmente por
soar tão desesperada para me livrar dele.
Ele ainda financia seus estudos, sua burra! Meu lado racional grita
em alerta.
— Não ouse desligar este telefone! — Ele ordena com a voz firme. A
altura é controlada, mas o tom autoritário faz com que esse fator não seja
uma grande diferença.
Esteban Castillo e suas malditas técnicas passivo-agressivas.
— Estou cheia de obrigações acadêmicas até o pescoço, seja lá qual
for o seu convite da vez, eu preciso negar, a menos que seja caso de vida ou
morte — explico com um pouco mais da minha (inexistente) paciência.
— Uma transação de meio bilhão é um caso de vida ou morte para
você, hija? — o tom crapuloso me faz chiar baixinho. Puta merda.
O silêncio recai entre nós e eu freio meus passos pensando no que
fazer. Levo minha mão livre até a testa, sibilando mais um “puta merda”. E
depois outro, e mais outros. Eu já imagino o que ele vai me pedir, e já sei
quais armas vai jogar contra mim e, previamente, já não quero entrar nessa
batalha.
Puxo o ar devagar, tentando me controlar, e só então volto a falar.
— Na verdade, uma transação de meio bilhão me parece cem por
cento problema seu — retruco ironicamente. — O que espera que eu diga?
— Amelie, eu não tenho tempo para suas gracinhas, essa é uma
conversa para adultos, se porte como uma! — Esteban brada. Meu queixo
cai diante da sua fala, e sinto vontade de mandá-lo a merda pelo que julgo
ser a milionésima vez em meus vinte e dois anos de vida.
Não sou infantil por dizer o óbvio, e não vou entrar nessa discussão
com ele, porque isso sim seria infantil e seria dar de bandeja munição para
me infernizar. Ele quer uma adulta, ele tem uma adulta.
— Quais são as minhas alternativas? — pergunto já temendo o que
está por vir.
— Não tem alternativas. Haverá um baile beneficente na sexta, aberto
à imprensa, para comemorar as mais recentes conquistas da empresa e para
leiloar algumas jóias. O dinheiro arrecadado vai para o abrigo de refugiados
do Harlem. Tudo que você precisa fazer é…
— Sorrir e acenar para garantir sua boa impressão de empresário forte
e bem sucedido. É, eu sei bem como funciona o gerenciamento de imagens,
se não se lembra, eu estudo isso na faculdade. Mas a minha resposta ainda é
não, não vou ser uma palhaça fazendo parte do seu circo — defino com um
sorriso vitorioso no rosto e torno a caminhar.
— Sim, você vai, até porque você estuda isso na faculdade que eu
pago, não se esqueça.
E aí está o Esteban Castillo das brigas que assolavam a minha antiga
casa.
É uma ameaça clara. Seu tom de voz não permite que eu me engane e,
pela primeira vez, a raiva que brota em minhas veias não consegue superar o
medo que se alastra em minha coluna como uma corrente de tensão. Eu não
posso perder a única coisa que vai permitir que eu me livre dele.
Desgraçado.
— Okay, eu… Eu… — inicio, mas tomo mais um tempo para respirar
e colocar minha cabeça no lugar. — Eu posso pensar? — pergunto, sentindo
o último fiapo de dignidade sair do meu corpo. A minha ideia é ganhar
tempo para pensar em um jeito de não comparecer ao evento.
— Claro que pode, pense com bastante atenção, inclusive — quase
consigo visualizar seu sorriso nojento e sinto vontade de gritar.
Deus, por que raios o senhor me fez espermatozóide de um filho da
puta? Me questiono encarando o céu enquanto subo a escadaria do prédio
onde terei aula.
— Espere meu contato — digo, firme, antes de desligar o aparelho e
atirá-lo com força dentro da minha bolsa.
Seco as lágrimas que ameaçam sair dos meus olhos e visto minha
melhor armadura: indiferença misturada com raiva e um plus de deixar o
cérebro funcionando no automático. Abro a porta do auditório e entro num
rompante. A aula ainda não começou e os alunos estão apenas jogando
conversa fora enquanto aguardam.
Meus olhos escaneiam as primeiras fileiras, as quais eu jamais me
sento, e não demora muito para que eu encontre quem procuro. Ele está
sozinho com os olhos fixos no celular e o assento ao seu lado está vago.
Marcho em sua direção e me acomodo na cadeira à sua esquerda. Sem
dizer uma só palavra eu puxo meu bloco de anotações junto com uma caneta
e posiciono ao lado do seu notebook, que está em cima da sua mesa. Na
minha, deixo apenas o meu bloco de desenhos e a minha lapiseira.
— Alguém aí não está de bom humor hoje, eu presumo — ele diz,
soltando uma risadinha, e argh! Inferno! Isso acalma um pouco da raiva
dentro de mim.
— Não estou e preciso do meu amigo — digo finalmente olhando em
seus olhos com um pedido silencioso por ajuda.
— Só dizer! Do que precisa? Eu só não bato em ninguém, mas
dependendo de quem for ou do que fez para você, talvez eu bata — ele diz,
sério, mas eu sinto vontade de rir porque ele não tem a menor ideia de que
estamos falando do meu pai.
— Não quero que bata em ninguém, só não estou em condições de
assistir a essa aula. Pode anotar os pontos mais importantes nesse bloco, por
favor? — peço, apontando para o objeto em questão. — Eu me viro depois
para conseguir o resto, não tem problema, eu só não posso ficar sem nada e
minha mente está uma confusão.
Ethan alterna o olhar entre o bloco e o meu rosto parecendo ponderar,
e honestamente, isso me deixa um pouco nervosa. Estou certa de que ele vai
negar e me dizer aquilo que nós dois sabemos: que estamos competindo por
uma vaga de estágio e que ajudar o outro a estudar é quase um suicídio
competitivo.
Mas ao invés disso, Harris guarda meu bloco de volta em minha
bolsa e em seguida, vasculha sua mochila com uma das mãos tirando de lá
uma mini-barra de chocolate. Pela embalagem laminada eu sei que é o
chocolate que fizemos juntos em nosso último “encontro”.
Choveu canivetes em Nova Iorque no dia, e a minha ideia era levá-lo
para uma confeitaria da cidade que dá umas aulas básicas de mini doces por
trinta dólares a diária. De última hora a confeitaria cancelou, então adaptei o
encontro para o meu alojamento comprando os ingredientes e usando o
Youtube.
Transformamos minha cozinha numa verdadeira fábrica de chocolates.
Foi tão divertido quanto todos os outros encontros e eu ainda pude fazer tudo
de pijama, o que me deixou ainda mais feliz.
Subo o olhar de volta para o rosto de Ethan, tentando entender porque
está me dando isso. Ele me entrega o doce e me lança um sorriso
compreensivo que, dentre muitas coisas, me diz que não estou sozinha.
Simples assim, ele me faz querer chorar de novo.
— Eu envio a cópia das minhas anotações para o seu e-mail, tome o
tempo que precisar.
Okay, posso fingir que a lágrima que está quase escorrendo dos meus
olhos é fruto de um cisco. Posso fazer isso.
“Antes de você me conhecer, eu estava bem
Mas as coisas estavam meio pesadas
Você me trouxe à vida”
TEENAGE DREAM | Katy Perry

10 de Setembro de 2021

Amelie está estranha. E eu, estou preocupado.


O que era para ser apenas “fazer umas anotações”, na verdade,
perdurou pelo restante das outras duas aulas que tivemos esta tarde.
Transitamos entre auditórios caminhando juntos pelos corredores e ela se
manteve ao meu lado em todas as classes, com os olhos focados em seus
desenhos e munida de um silêncio sepulcral. A garota não disse uma só
palavra após dizer que “precisava do seu amigo” e isso está me deixando
tenso.
Eu estou totalmente ciente de que o mais falante entre nós dois, sem
dúvidas, sou eu. Mas Amelie não perde com tanta diferença, e é por isso que
vê-la magoada descontando o que está sentindo em um papel está me dando
nos nervos, porque eu quero ajudar, mas preciso que ela me diga o que
aconteceu.
Minha língua quase coça para questioná-la. Mantenho-me em
silêncio, no entanto. Afinal, já faz quase um mês que Amelie Castillo se
tornou parte da minha vida e, sendo seu amigo, tenho descoberto uma
infinidade de coisas sobre a garota que, consequentemente, me fizeram
descobrir coisas que eu devo ou não fazer para essa amizade funcionar.
Confrontá-la em momentos assim definitivamente não dá certo, ela
fica ainda mais atordoada. Ao passo que somos extremamente parecidos, eu
e Amelie também somos muito diferentes e, aos poucos, tenho aprendido a
entender seus momentos e respeitar o espaço que ela precisa quando não está
bem.
Às vezes eu erro em cheio e lhe lanço cantadas infames em horas
extremamente erradas? Sim! Mas nós dois sabemos que eu me esforço
bastante, então não demoramos muito para nos resolver.
Não é como se o último mês tenha sido somente um mar de rosas,
estamos aprendendo aos poucos como lidar um com o outro, e confesso que
temos nos divertido bastante no processo.
Conhecer melhor o outro, descobrir coisinhas mínimas que o fazem
bem, saber ler a pessoa e detectar a hora de oferecer um doce ou um
conselho… Devagar, unindo tudo isso, temos construído uma amizade que,
ainda que eu seja suspeito de opinar, é bem bonita.
Nossa última aula chega ao fim juntamente com a notificação de
mensagem que aparece em meu celular. Envio a última parte das anotações
para o e-mail da garota ao meu lado e então desbloqueio a tela do aparelho,
vendo que se trata de uma mensagem da Megan.
“Queridos amigos, estou convocando esse jantar de última hora por
motivos de: preciso de álcool e comida gostosa antes que eu morra de
tanto estudar! Aguardo vocês hoje à noite na Chisholm House. Tragam
vinho! Beijinhos, Meg!”
Leio baixo para que Amelie escute e ela, que está guardando suas
coisas em sua bolsa, desvia o olhar para mim pela primeira vez.
— Ela criou um grupo — explico, e a garota respira fundo parecendo
cansada.
— Com quem? Eu vou matar Megan Eleonor por acabar com os meus
planos de dormir cedo — resmunga angustiada.
— Eu, Tyler, Annelise e Lily. O que posso fazer para te convencer de
fugirmos dessa furada que vai ser passar a noite com dois casais melosos?
— Faço beicinho numa tentativa falha de adiantar o processo de
convencimento, e ela revira os olhos. Bufamos juntos, e nos levantamos,
prontos para irmos embora. — Tyler disse que vai levar as bebidas, e está
rolando uma campanha para que você faça a macarronada. Não sabia que
possuía dotes culinários, Coelhinha.
— Ah, eu sou cheeeeia de mistérios, não sabia? — diz, irônica,
completamente vencida pelo cansaço enquanto caminhamos juntos para fora
do auditório. — Não acredito que vão me fazer cozinhar.

Já passa das nove e estamos todos espalhados pela pequena sala do


dormitório das meninas completamente exaustos de tanto comer. Devo dizer
que compreendo totalmente a insistência de Megan para que a melhor amiga
fizesse a tal macarronada, sério, foi uma das coisas mais gostosas que já
comi na minha vida.
Diferentemente do que imaginei, o mau humor de Amelie foi pelos ares
assim que pisamos em seu alojamento, é estranho, mas parece que estar entre
amigos a revigorou e eu me sinto aliviado por isso.
Varro o olhar atento pelo ambiente, que se preenche por risadas altas e
músicas do Jack Johnson como pano de fundo. Megan está sentada no chão e
Tyler está deitado com a cabeça apoiada em seu colo, ele discute com Lily e
Annelise, que estão acomodadas no sofá junto com Amelie, sobre quantos
shots de tequila cada um consegue suportar antes de caírem bêbados.
Enquanto isso, eu e as anfitriãs nos divertimos com os números pra lá
de mentirosos que eles estão dizendo.
Vai por mim, Tyler fica louco como o Batman com quatro shots, e não
com nove como está tentando convencer a irmã e a futura cunhada.
— Miss Jornal, quantos shots você aguenta? — Tyler pergunta, e
Amelie parece pensar para responder.
— Na minha calourada, meus veteranos me fizeram virar treze shots.
Eu não morri, mas no dia seguinte eu parecia uma alma penada — ela
responde, rindo, antes de virar mais um gole de vinho.
— Puta merda, eu lembro desse dia. Você e Nate cantaram Empire
State of Mind aos berros no pula-pula — comento, já gargalhando, e todos
os outros me acompanham, porque imaginar Amelie bêbada a esse ponto é
incrivelmente cômico.
— Rasparam sua cabeça e te fizeram correr bêbado, pelado e
vendado. Eu não fui a única que paguei mico — ela acusa, e é a vez de Tyler
e Annelise gargalharem. Porra, já sei o que vem em seguida.
Os irmãos Mansen se remexem até encontrarem suas respectivas
carteiras de onde tiram, cada um, uma foto 3x4 minha dessa época e fazem
questão de mostrá-las para Lily e Megan. As garotas gargalham e eu explodo
Amelie Castillo mentalmente por relembrar o acontecimento.
— Isso ficou terrível — Lily comenta, segurando o riso.
— Você parecia um pênis ambulante — Megan, ao contrário de Lily,
fala entre risos, e até eu me rendo a gargalhada após sua comparação.
Obviamente, depois de aberta, a pauta “calourada” se estendeu por
um bom tempo. Amelie e eu nos dividimos relembrando da nossa e todos os
outros compartilham suas histórias inusitadas desse que é o marco da entrada
do universitário no ambiente acadêmico.
Quando Tyler está servindo mais uma rodada de vinho nas taças, a
bebida acaba antes das duas últimas serem preenchidas, por isso, Amelie se
levanta e vai até a cozinha em busca da nossa última garrafa. Ouvimos o
barulho dela abrindo e fechando gavetas e, instantes depois, um grito
estridente ecoa pelo apartamento, fazendo com que eu me levante de abrupto.
Corro até a cozinha para checar se está tudo bem e avanço na direção
da garota tentando entender o que aconteceu.
Meus pés se fincam no chão, no entanto, quando Amelie se vira e eu
consigo ver o pano encharcado que ela usa para estancar o sangue que
escorre em seu dedo de maneira desenfreada. Ela diz algo que não consigo
entender porque minha mente está uma confusão e meus olhos estão fixos no
líquido escarlate que mancha o tecido.
— Ai, caralho… — digo, nervoso, sentindo minhas pernas
amolecendo. — Caralho, caralho, caralho! Megan, vem aqui! — grito.
Minha pressão despenca junto com o meu estômago, que parece ter se
partido em um abismo. A única coisa que consigo sentir com clareza é a bile
subindo pela minha garganta queimando tudo no trajeto enquanto minha visão
se torna um tanto turva.
Em segundos, a cozinha vira um verdadeiro caos, e a única certeza
que eu tenho é a de que Tyler está segurando meu pulso e Lily está falando
comigo. A garota segura meu rosto e meu amigo nos direciona para a sala, eu
sinto minha mente caminhando em uma corda bamba entre a inconsciência e
a lucidez.
— Ei, olha pra mim, grandão! Mantenha os olhos em mim, está certo?
— Lily pede e eu assinto, ainda letárgico. Sua imagem é turva em minha
visão e sua voz parece distante demais para quem está segurando meu rosto.
— O que fazemos com ele?
— Deitem ele no sofá, levantem as pernas dele e deem água! — Ouço
a voz de Megan, mas parece longe demais para ser real.
Afundo o corpo no sofá de qualquer jeito e estou prestes a fechar os
olhos, porque estar tão zonzo está me dando ânsia de vômito. Lily segura
meu rosto e segue pedindo para que eu olhe para ela enquanto leva um copo
d’água até a minha boca. Sinto minhas pernas sendo erguidas enquanto dreno
o líquido e, aos poucos, minha mente vai voltando ao mundo real.
Fecho os olhos avisando que estou bem, e talvez o processo tenha
demorado mais do que o normal, porque quando finalmente os abro
enxergando com precisão, todos já estão de volta para a sala e eu estou
deitado no colo de Annelise.
— O que eu perdi? — pergunto, meio sôfrego, enquanto me sento no
sofá e todos explodem em risadas altas.
— Miss Jornal não achou o abridor de garrafas e tentou abrir o vinho
com uma faca — Tyler explica, apontando para o curativo na mão da garota.
— Garoto, eu achei que você ia morrer comigo segurando a sua cara.
Você é doido de me dar um susto desses? — Lily chia e me encara com um
semblante raivoso.
Ela está sentada no chão ao lado de Amelie. As duas estão de frente
para mim, então eu escorrego para fora do sofá e vou até elas.
— Ficou preocupada comigo, Stanford? Quem diria! — provoco,
rindo e me sentando ao seu lado, puxando-a para um abraço. A garota só
perdia para Amelie no quesito me odiar, então desde que eu e sua amiga nos
aproximamos, implicar com ela tem sido meu novo hobby.
— Você é um babaca, jogador — ela murmura em um tom bravo, mas
me abraça de volta. Lily é uma das pessoas mais carinhosas que já conheci e
tem um abraço de urso muito confortável.
— Deixe de ser insuportável com a minha garota, manézão — Lise me
chama atenção em meio às risadas, mas todos nós acabamos focando
exclusivamente no uso do termo “minha” e a provocamos por isso.
— Quando isso começou? — É Amelie quem pergunta, depois de um
tempo. — O lance com sangue e tal…
— Segundo o meu pai, eu sempre fui assim. Quando eu tinha seis anos,
meu primeiro dente de leite caiu e eu vomitei assim que vi a quantidade de
sangue que escorreu da minha boca. Meus pais contaram para o meu pediatra
e ele sinalizou uma possível hematofobia. Eu fui crescendo e isso
simplesmente não passou, consigo lidar com quantidades pequenas e
machucados leves, mas quando a coisa aumenta, eu acabo tendo esse tipo de
mal estar.
— Deve ser uma merda ter isso quando se é atleta — Megan comenta.
— É, sim. Mas a galera do time já se acostumou, quando alguém se
machuca eu sempre sou o que se oferece para ir buscar qualquer coisa —
explico, e Tyler cantarola um “medroso” só para levar um soco da namorada
logo em seguida, que o repreende dando uma mini-palestra sobre “porque
todas as fobias são válidas”.
Inclusive a minha pra lá de vergonhosa.

Annelise está recolhendo as taças de todos nós para levar para a


cozinha enquanto Lily está mexendo na TV, escolhendo outro álbum para
escutarmos antes de darmos nossa noite por encerrada. Vejo quando ela pára
no “Empty Space” de uma banda chamada Diamond Static[10] e assim que a
primeira música soa pela sala, Lise volta correndo da cozinha aos berros.
— Cara, eu amo essa banda! — O sorriso enorme em seu rosto
confirma sua sentença.
— Annelise, quem do cenário pop-rock você não ama? — Tyler
provoca a irmã, e ela mostra a língua para ele fazendo careta.
— Acho que já ouvi falar deles. Eles lançaram esse álbum no Canadá,
não foi? — É Amelie quem pergunta.
— Sim! Eles são incríveis, sério. São uma banda da Califórnia, todos
ex-alunos da UCLA. O vocalista só não é xará do meu irmão por uma letra.
— O nome dele é Tyle? — pergunto, já meio bêbado, e todos reviram
os olhos soltando resmungos de “ah não” que me fazem rir.
— É Tayler, com “a”. Mas o meu favorito é o Austin, ele e a namorada
são uns fofos. — Lise explica e nos mostra fotos dos integrantes junto com
seus amigos.
Lily comenta que o baterista, que descobri que se chama Sam, é o seu
favorito, e Megan confessa já ter tido uma paixão platônica pelo tal do
Tayler Callahan, o que, pela semelhança com o nome do seu namorado, gera
provocações sem fim da nossa parte.
A verdade é que, apesar do cansaço, estar com essas pessoas é a
melhor parte da soma de desastres que é existir.
Nessa sala eu percebo o quanto estar rodeado das pessoas certas pode
ser um suspiro de paz em meio ao caos, rindo das palhaçadas do Tyler,
zoando a Megan, ouvindo as histórias de tiete da Annelise, comentando o
gosto duvidoso para séries da Lily e competindo com Amelie sobre quem
está menos bêbado. É aqui que mora a cumplicidade, e eu percebo que, aos
poucos, estamos formando uma grande e unida família.
“Quando estou longe de você
Fico mais feliz do que nunca
Gostaria de poder explicar melhor
Queria que não fosse verdade”
HAPPIER THAN EVER | Billie Eilish

11 de Setembro de 2021

Passa das sete quando desisto oficialmente de tentar compreender um


dos textos mais difíceis com que já lidei em toda a minha vida acadêmica.
Está anoitecendo e eu sou uma das poucas alunas que ainda está
ocupando a biblioteca, afundada em um pufe confortável e completamente
perdida em meio a tantos termos técnicos que estou estudando para a minha
avaliação de Educação Ambiental, a eletiva que escolhi para receber
créditos estudantis durante esse ano.
Todas as vezes em que me pego fritando neurônios com bioquímica e
didática, sempre me pergunto porque raios eu não fiz como Ethan e escolhi a
eletiva de Direitos Humanos, que é quase que uma aula de história versão
universitária.
Guardo meu caderno de anotações em minha bolsa, juntamente com o
meu notebook, e caminho despreocupadamente para fora da biblioteca,
sentindo o frescor da noite alcançando minha pele assim que passo pela
porta. O campus está mais movimentado do que o normal hoje e eu me
aproveito disso para fazer o meu trajeto até o alojamento de forma mais
relaxada.
Pego meu celular no bolso do moletom e coloco meus fones, Happier
Than Ever, da Billie Eilish, é a primeira música a tocar na ordem aleatória.
Cantarolo a canção e encaro rapidamente o curativo em meu dedo feito por
Megan. Solto uma risada baixa ao me lembrar da noite passada e sobre como
foi bom estar com os meus amigos por um tempo sem pensar em mais nada.
Ali, naquele alojamento, com aquelas pessoas, foi como me esconder
dentro de uma bolha de proteção onde nenhum dos problemas e aflições do
mundo externo conseguiriam me atingir. Cada segundo que passei com eles
me senti mais viva e mais eu, foi como receber a dose de energia que faltava
para encarar minha rotina exaustiva e um tanto conturbada.
Acontece que mesmo que seja possível deletar da própria mente, por
um tempo, os problemas da vida real, no dia seguinte eles te engolem feito
uma tsunami. Desde que acordei eu não consegui parar de pensar na ligação
que tive com o meu pai na tarde anterior, no seu tom de ameaça ao
praticamente me obrigar a comparecer a mais um de seus eventos para servir
de troféu em exposição em sua sala, tom esse tão diferente do que teve
comigo semanas atrás em nosso encontro.
Duas semanas foram o suficiente para que ele mudasse da água para o
vinho, para que suas palavras doces e seu raro carinho se transformassem em
ordens ácidas que beiravam o descontrole.
É um pouco triste perceber que vivemos nesse looping de momentos
aceitáveis e momentos péssimos, e que talvez nossa relação jamais seja algo
além disso. Aos poucos, ano após ano, a ficha de que eu sou um mero
adereço para a imagem do meu pai vai caindo bem diante dos meus olhos, e
isso dói. Dói porque, ainda assim, eu prefiro ter isso do que não ter nada.
“Você me fez odiar esta cidade
E eu não falo merda sobre você na internet
Nunca disse nada de ruim a ninguém”
É Billie quem está cantando em meus fones, mas é o meu coração que
está se retorcendo em dor. Como se cada palavra pronunciada pela cantora
acertasse em cheio meu peito enquanto me direciono às escadas que dão
acesso a Chisholm House.
Caminho pelos corredores contendo a súbita vontade de chorar. Assim
que abro a porta do alojamento e constato que ele está vazio, sinto um
pequeno alívio percorrendo meu corpo.
Não gosto de chorar ou demonstrar tristeza com frequência na frente de
Megan, porque sei o quanto isso a deixa preocupada, o quanto eu a deixo
preocupada, e eu detesto sentir minha amiga inquieta por minha causa. Fecho
a porta trancando-a e me sento no chão, encostando na madeira atrás de mim.
Tiro os fones e encaro o apartamento escuro tentando decidir o que fazer.
Fiquei de dar uma resposta para o meu pai sobre minha ida ao seu
evento e, honestamente, não tenho um pingo de força de vontade em meu
peito para me submeter a esse tipo de coisa, mas o tom ameaçador com que
falou comigo foi um recado bem claro.
“Você estuda isso na faculdade que eu pago, não se esqueça disso.”
Gosto de pensar que ele jamais faria algo do tipo, porque por mais
repugnante que Esteban já tenha se mostrado ser, eu ainda sou a sua primeira
e única filha. Pensar que ele jamais faria algo tão ruim comigo é uma forma
de ainda ver humanidade nele.
O problema é a dor incômoda que sempre se apodera do meu
estômago quando penso sobre o assunto, é ela quem me diz: “você jamais
deveria colocar sua mão no fogo por alguém como ele”.
E é verdade.
Puxo o ar com força, me levanto ligando as luzes do corredor e dou de
cara com o post-it azul colado do lado destinado aos recados da Megan em
nosso quadro de avisos.
“Tenho plantão noturno hoje, vou chegar tarde. Espero que tenha
tido um bom dia de estudos, amei nossa noite ontem. Comprei sua torta
favorita pra você comer enrolada no edredom vendo filme. Beijinhos, Meg
:)
PS: chegou uma caixa para você, deixei na sua cama.”
Sorrio dobrando o bilhete e o colocando na caixinha de madeira que
tenho sobre o aparador da sala, onde guardo todos os recadinhos que Megan
me deixa que possuem algum significado especial. Ela também tem uma, e
combinamos que um dia ainda vamos mostrar esses bilhetes para os nossos
filhos.
Caminho até o meu quarto, estranhando o fato de ter chegado uma
caixa para mim, porque não estou esperando nenhuma encomenda, mas assim
que acendo o interruptor e vejo a caixa vermelha com um enorme laço
dourado e um bilhete em cima, tudo fica claro como água e eu sinto uma
corrente de desespero passando por minhas veias ao passo que um arrepio
toma minha coluna.
Ordinário.
Não é possível.
Me aproximo da minha cama com a cautela de quem está prestes a
desarmar uma bomba. Capturo o cartão, também dourado, com as mãos e
vejo a logo da Cartier em alto relevo no brasão que fecha o envelope.
Rasgo-o com cuidado e puxo o papel de dentro, as palavras contidas nele
fazem todo o meu corpo arder em raiva.
“Este é o colar que será leiloado no evento de sexta-feira, ele
precisa estar no meu salão de bailes pontualmente às oito. Esteja pronta
às sete, mandarei um carro para buscá-la. E se quiser um incentivo ainda
maior para estar presente no evento exibindo todo o seu carisma, Russel
Lambrock está entre os convidados confirmados, acho que com uma
pesquisa rápida você vai saber do que se trata. Até lá.
- Esteban Castillo”
— Filho da puta! — grito irritada antes de rasgar o cartão ao meio.
A raiva borbulha em meu peito e eu sinto que poderia furar um saco
de pancadas somente com a força de um soco, ou quem sabe gritar até que
minhas cordas vocais explodam em minha garganta, tamanha a intensidade
dos sentimentos que se apoderam do meu coração.
Eu não preciso de uma pesquisa para saber quem é Russel Lambrock,
não preciso porque eu tenho as suas principais matérias salvas em meu
computador, porque a logo do seu jornal está colada no mural em cima da
minha escrivaninha e porque ele é a porra da minha maior inspiração.
Russel Lambrock é o dono e redator chefe do The Politician, o jornal
no qual estou concorrendo ao estágio da minha vida. Meu pai, além de estar
me chantageando, está tentando me comprar e eu sinto que atingi o meu limite
ao constatar que poucas vezes na vida eu fui tão ofendida.
Meus dedos tremem enquanto puxo o laço dourado e desembrulho a
carteira vermelha de couro com a logo da joalheria, empurro o fecho com o
polegar e sinto o ar tornando-se rarefeito quando meus olhos ficam diante de
um colar de enormes diamantes brilhantes.
Engulo com dificuldade a bile que tenta subir por minha garganta e
sinto minha pressão oscilando quando vejo a pequena etiqueta presa à jóia,
que certamente fora deixada ali propositalmente, para que eu soubesse a
responsabilidade que tenho, literalmente, em minhas mãos.
Quinhentos mil dólares.
Tem quinhentos mil dólares dentro do meu alojamento, cujo sistema de
câmeras funciona tão bem quanto o motor do meu carro.
Eu acho que vou desmaiar.
As lágrimas nervosas inundam meu rosto quando a terceira tentativa
de ligação cai na caixa postal e a voz enjoativa do meu pai soa pelo alto
falante me dizendo para deixar o “meu recado”.
Maltrato a carne do meu lábio inferior, mordendo-o até sentir o gosto
metálico de sangue derramando-se sobre minha língua. Pressiono meus
dedos em minha testa com força e sinto minhas unhas incomodando a pele do
meu rosto, estou tão agoniada que sinto-me à beira de um colapso nervoso.
Eu nunca senti tanta vontade de gritar com alguém em toda a minha
vida, mas eu jamais deixarei que meu pai saiba de seu efeito sobre mim. Eu
estou cansada de me submeter aos seus caprichos, cansada de sua
incapacidade de receber um “não”. Ele nem ao menos me deu o direito de
pensar sobre o assunto, merda!
Esteban apenas me encurralou em um beco sem saída para que a minha
única opção seja acatar suas ordens, e eu o odeio profundamente por isso. Se
ele pensa que ainda sou a garota ingênua de dois anos atrás que fazia de tudo
para agradá-lo, ele está muito enganado.
Meu pai não faz a menor ideia de com quem ele está mexendo.
— Sempre soube que, no fundo, você era detestável, mas não fazia
ideia de que conseguiria ser tão baixo. Eu juro que você vai se arrepender
amargamente disso, Esteban Castillo. Nos vemos na sexta. — Com o tom de
voz controlado, deixo o aviso na secretária eletrônica sabendo que ele, em
toda a sua arrogância, achará graça da minha ousadia em confrontá-lo.
Acontece que o meu carisma é a última coisa que ele verá nessa festa,
e o preço por ter escolhido ser tão ordinário vai ser bem alto.
Escondo a embalagem com o colar debaixo do meu colchão, vou até a
gaveta da minha escrivaninha e puxo lá do fundo o cartão nunca utilizado em
tom de cinza escuro, quase preto, com o meu nome de registro “Amelie
Morgan-Castillo” gravado em letras prateadas e a palavra “ILIMITADO”
escrita em caixa alta na parte superior.
Se meu pai quer sua filha desfilando por aquele baile como uma
bonequinha de luxo, ele vai ter, mas vai arcar com os custos dessa
palhaçada.
Coloco o cartão na parte com zíper da minha carteira e a devolvo para
a minha bolsa antes de enviar uma mensagem para Lily.
Eu: Encontre comigo amanhã às duas no portão do campus da
Irving. Nós vamos às compras.
“Eu sinto sua falta
Eu sinto falta do seu sorriso
E eu ainda derramo lágrimas
De vez em quando
E mesmo que agora seja diferente
Você ainda está aqui de alguma forma
Meu coração não vai deixar você ir”
I MISS YOU | Miley Cyrus

12 de Setembro de 2021

Highway To Hell do AC/DC está repercutindo em meus fones de


ouvido enquanto eu sinto o suor escorrendo deliberadamente pelas minhas
costas. Minhas panturrilhas queimam pelo esforço e a sensação viciante da
endorfina se espalhando pelo meu corpo é como combustível para que eu
empregue ainda mais força enquanto corro pela quadra quicando a bola no
chão.
Acordei me sentindo uma bomba relógio e quase me ajoelhei para
agradecer aos céus quando recebi a notificação de que a minha aula de
Mídias Digitais foi cancelada porque nossa professora está fora da cidade
para um congresso.
Fazia um bom tempo desde que dias como esse aconteciam, dias em
que abrir os olhos e ter que sair da cama parece impossível. Dias em que o
simples fato de estar vivo se torna um peso enorme e lidar com o mundo é,
no mínimo, aterrorizante e exaustivo. Tudo isso porque ela não está aqui.
Há quem acredite que a pior parte de se encarar a perda de alguém
querido é o próprio dia em que essa pessoa nos deixa. Como alguém que
lida com uma perda desde os quinze anos, eu digo que o pior dia do luto não
é o dia da perda, ou o enterro, nem o primeiro ano de ausência.
O pior dia do luto é um dia normal, em que você está andando pelas
ruas, sente um cheiro ou escuta uma música, e suas mãos vão de imediato até
o seu telefone. Você quer ligar para aquela pessoa e dizer que se lembrou
dela, saber como ela está, contar do seu dia, ou até mesmo marcar um café
para a manhã seguinte, e é nesse momento em que a dor insana da realidade
abraça seu coração e você se sente minúsculo.
É quando você percebe que, ainda que você disque o número certo,
ninguém vai estar do outro lado da linha.
Esses dias são uma grande merda.
Eu era bem pequeno quando a minha mãe entrou para a academia de
cadetes. As vinte e uma semanas de treinamento intensivo na sede do FBI, na
Virgínia, foi o máximo de tempo que passei longe dela. Entre uma viagem e
outra à trabalho, Anastasia sempre fazia questão de tirar um tempo para ficar
comigo, tínhamos o nosso próprio mundo.
Me lembro das palavras de Jeffrey no cemitério, sobre minha mãe
anunciar aos quatro cantos que eu seria um futuro jornalista, e meu peito se
contrai em dor por saber que, no ano que vem, quando eu subir naquele
palco do Teatro da Irving para receber o meu diploma, ela não vai estar
sentada na plateia gritando o quanto me ama. Mais tempo. Eu daria tudo por
mais tempo.
A realidade, às vezes, consegue ser pior do que o que se imagina
sobre o inferno.
Ajeito a xuxinha que prende meu cabelo para trás antes de disparar
com a bola em direção à área do garrafão, quicando-a com força. Já passa
das dez da manhã e a quadra de basquete da Arena John Jay está vazia.
Ainda faltam uns bons minutos para o treino do time, e pela forma com que
estou me sentindo, sabia que este seria o único lugar do mundo onde eu
encontraria algum conforto.
Enterro a bola na cesta com um salto, prendo a respiração sentindo
todo o meu organismo indo até o seu ápice de adrenalina e agarro o aro, me
pendurando nele por alguns segundos antes de soltá-lo. Permito que meu
corpo despenque e meus pés toquem o chão, exalando com força.
Puxo o ar de volta pelas narinas e conforme meus pulmões se enchem
de oxigênio novamente, o latejar em minha cabeça diminui. Estou um tanto
ofegante enquanto caminho até o banco onde minha garrafa d’água está
apoiada e dreno o líquido gelado dela até que não reste sequer uma gota.
Me sento no chão, encostando o corpo no banco e puxo meu celular de
dentro do bolso de fora da minha mala de treino. Desbloqueio a tela para
conferir as notificações e vejo que chegaram algumas mensagens enviadas
por Tia Suzy. Sorrio encarando o aparelho, porque é impressionante como
ela sempre parece saber que não estou bem. Desde que a minha mãe se foi,
minha tia parece ter acionado um sexto sentido materno infalível diretamente
ligado a mim.
Tia Suzy: Bom dia, Bonitão!
Tia Suzy: Como você está? Tenho um convite irrecusável.
Eu: Bom dia, tia! Estou mais ou menos, dia da saudade, sabe como
é…
Eu: Mas vai ficar tudo bem, me conte sobre esse tal convite aí.
Levam poucos segundos até que eu receba uma mensagem sua de áudio
que me faz rir feito louco.
“Ah querido, sinto muito, vai passar, certo? Bom, eu queria te
chamar para devorar uns sushis comigo e com a Esther amanhã à noite, o
que acha? Busco você depois do seu… AH SEU FILHO DA PUTA, VAI
BUZINAR NO OUVIDO DA SUA MÃE! Me desculpe, querido, foi só um
babaca aqui no trânsito, eu busco você depois do treino, está bem?”
Eu: KKKKKKK combinado, tia! Dirija com cuidado. Nos vemos
amanhã.
É com essa simples troca de mensagens que sinto meu peito relaxar
novamente e as coisas parecem voltar a fazer um pouco de sentido. Às vezes,
em dias onde a dor da perda parece nos cegar, tudo que nós precisamos é de
algo que nos lembre de agradecer pelo que ainda temos.
Passo longos minutos encarando a quadra vazia enquanto Hey There
Delilah toca nos fones, essa é uma música que sempre consegue me fazer
ficar mais calmo e por algum motivo, a reprodução automática do Spotify
parece saber disso.
Uma série de pensamentos nebulosos preenche minha mente enquanto
encaro o assoalho encerado. O jogo de duas semanas atrás foi o último da
pré-temporada, desde então temos mantido uma rotina intensa de treinos e eu
tenho perdido umas boas doses de sanidade tentando adaptar Cory Covey, o
calouro, no time titular.
O garoto é bom de bola e tem um futuro brilhante no esporte, entrou na
faculdade direto pelo programa esportivo porque era o mvp da liga do
ensino médio, mas é um filho da puta exibido dos infernos.
E, obviamente, Bradley Butler viu nele a oportunidade perfeita de se
vingar do pequeno demônio que eu era dois anos atrás, por isso, me deu a
missão de colocar o moleque na linha, que é a cópia fiel do Ethan Harris do
primeiro ano. Cacete, eu não sei como nunca tomei uma surra quando era
novato, porque eu juro, daria tudo por três minutos com Cory sem perder a
amizade.
Coisas que não te contam sobre ser capitão de um time: você vira um
pai. E isso inclui precisar ter paciência, zelo e muita, muita calma.
De qualquer forma, o fim da pré-temporada, consequentemente,
significa que meu último ano como capitão do time oficialmente começou e
eu não aceito menos do que a taça geral do torneio para consagrar minha
despedida. Então, se transformar Cory Covey em um titular for um meio para
isso, eu vou dar tudo de mim para conseguir.
O nosso time merece isso, não só os jogadores como toda a comissão
técnica que tem trabalhado arduamente para nos manter como os melhores da
liga, nós merecemos isso. E eu espero conseguir oferecer a ajuda necessária
para que essa vitória se concretize.
Sou sugado para fora da minha própria mente quando ouço o barulho
abafado da porta de acesso à quadra sendo aberta. Charles, Elói e Tyler
passam juntos por ela, os dois primeiros vêm em minha direção enquanto
gargalham de alguma besteira dita por Brooks. Tyler, por outro lado, para no
centro da quadra, entretido na conversa que está tendo ao telefone. Seu cenho
está franzido e ele parece preocupado.
— Ah cara, que bom que você tá aí! — Elói fala aliviado quando para
diante de mim. — Preciso do nosso capitão agora.
— O que tá pegando? — Ergo o olhar em sua direção e Charles, que
está ao seu lado, revira os olhos.
— O seu amigo aqui resolveu que, depois dos vinte e dois anos, ele
quer honrar as origens californianas dele e aprender a andar de skate. Na
porra da semana de véspera da abertura da temporada! Et j’en ai ras le bol!
[11]

Solto uma gargalhada alta quando meu amigo mistura o francês e o


inglês. Ele sempre faz isso quando estou por perto porque sou o único fluente
do nosso quarteto, funciona como uma piada interna. Charles bufa por ter
sido delatado. Esses dois parecem um casal de idosos que, depois de meio
século casados, resolvem ficar se alfinetando.
É engraçado demais.
— Brooks, você sabe que eu, mais do que ninguém, sou o maior fã de
você seguir todos os seus sonhos, mas se você quebrar algum osso e precisar
ficar fora dos jogos, Butler vai chutar sua bunda e eu não vou me opor. —
Dou risada enquanto me levanto.
— Confesso que o fato de nenhum de vocês acreditar que vou
conseguir aprender sem me quebrar está me deixando um pouco ofendido —
ele choraminga, pousando uma das mãos sobre o peito.
— São estatísticas, projeto de Tony Hawk — Elói fala rindo enquanto
se senta no banco e coloca seus tênis de treino.
— Como seu capitão e seu melhor amigo, preciso dizer que as chances
de você se estrepar são altas, e não podemos perder um dos nossos melhores
alas.
Charles grunhe descontente antes de se sentar ao lado de Elói.
— Tá bom, seus estraga prazeres, vou deixar meu skate novo
interditado por enquanto. Mas quando eu estiver botando pra foder nas
pistas, não quero nenhum de vocês dizendo que “sempre me apoiou” — ele
esbraveja enquanto digita algo no telefone. A capa de proteção preta com a
logo dos Lakers dourada em alto relevo reluz em minha direção.
Reviro os olhos por sua fala e me junto aos meus amigos no banco.
Puxo Brooks para um abraço, esmagando-o em meus bíceps por pura
implicância.
— Espere termos a taça da liga em mãos. Depois disso, se você quiser
pular de bungee jump eu até vou com você, cara. Se você pagar, é lógico.
Charles murmura um “vou cobrar” quando se livra do meu aperto e
volta toda sua atenção para a tela do seu celular. Vejo Tyler se aproximando
de nós ainda falando ao telefone, consigo ouvir o fim da conversa e uma
ponta de curiosidade me atinge.
— … Não, tá beleza. Isso, isso, me mantém informado que eu vejo o
que posso resolver pra você. Certo, pode deixar. Se cuida, Miss Jornal, até
mais — Tyler se despede antes de desligar o telefone e colocá-lo no bolso.
Em seguida meu amigo se junta a nós com um sorriso abatido no rosto. — E
aí, cara. Chegou mais cedo hoje, achei que ia aproveitar o tempo vago para
descansar, mas acho que você fez exatamente o contrário.
— Precisava correr atrás do prejuízo depois do desastre da última
partida. — Omito o fato de que, na verdade, eu estava prestes a explodir
quando entrei nessa arena.
— Não se cobre tanto, você é o melhor armador da liga, sabe disso —
ele fala como quem dá um sermão.
Tyler é três anos mais velho do que eu. Embora muitas das vezes esse
fato passe despercebido por conta da nossa convivência não ser algo
recente, ele é o lado centrado dessa nossa relação de irmandade. Sempre
está munido de conselhos sábios e tranquilizantes, acho que por isso eu e o
restante do time nos sentimos infinitamente mais seguros com ele por perto.
— É… Eu sei — faço uma pausa tentando reorganizar minha linha de
pensamento quando a pontada de curiosidade que me invadiu há pouco
retorna. — Estava com Amelie no telefone?
Meu amigo apenas assente, mas parece notar a confusão em meu
semblante, porque sua explicação vem em seguida:
— Ela precisava de alguns esclarecimentos jurídicos, um lance dela e
pediu para que eu não contasse para ninguém. — Franzo o cenho me
perguntando o que de tão importante poderia ser. — Ela deve te contar, de
qualquer forma, vocês não se desgrudam mais.
A deixa para a provocação foi lançada e eu mal consigo conter meu
revirar de olhos quando as risadas sufocadas dos dois palhaços ao nosso
lado irrompem no ar.
— Podemos falar sobre o fato de que em cada troca de olhar desses
dois eu perco trinta por cento da minha pureza? — Elói zoa.
— Okay, Máquina de Sexo Importada, isso definitivamente não é muito
difícil. Se você entrasse em uma igreja para se confessar, o coitado do padre
ia ficar horrorizado e a última coisa que você tem é pureza. Seu pulmão que
o diga — rebato, lhe lançando uma piscadinha.
— Pelo menos eu não estou me enganando fingindo que não quero dar
uns amassos na minha “melhor amiga”. — Ele faz aspas com os dedos, mas
sua escolha de resposta foi a pior possível.
Eu, Tyler e Charles o encaramos com um olhar recriminatório,
porque… Bom, todo mundo sabe que é exatamente isso que ele faz com
Beverly, sua melhor amiga.
— Ah, vão se foder! — murmura, revirando os orbes azuis, e nós
explodimos em gargalhadas.
— Beleza, que vocês três são um bando de pau mandado de mulher, eu
já sei tem tempo. Agora o que eu quero mesmo saber é: vocês fizeram a
inscrição pro Draft? — Charles pergunta.
O “Draft da NBA” é, certamente, o evento mais aguardado do basquete
universitário. Ele acontece logo depois da temporada regular e é quando nós,
jogadores, temos a chance de sermos elevados para a liga profissional. E, se
formos fodidos de sortudos como Matt Jenner, o cara que foi capitão do time
antes de mim, temos a chance de assinarmos um contrato com as grandes
franquias do basquete.
Matt foi draftado pelo Golden State Warriors no ano retrasado, o cara
era uma máquina de desempenho e agora, em pouco mais de um ano, se
tornou também uma máquina de fazer dinheiro. É um dos jogadores mais bem
pagos da liga e um dos draftados mais relevantes da Irving na última década.
Embora o treinador Butler tente fazer a minha cabeça há tempos para
eu me inscrever porque, segundo ele, eu certamente superaria Jenner, eu não
possuo o menor interesse em seguir para a liga profissional. Eu amo o
basquete, amo estar em quadra com os meus amigos, mas é só isso. Quem
detém mesmo o meu fascínio e meu interesse para tê-lo como profissão é o
jornalismo, e isso nunca mudou.
Nem todo hobby precisa se tornar uma obrigação, e quanto mais
rápido as pessoas entenderem isso, menos frustrações elas terão. É óbvio
que é bom trabalhar com o que você ama, mas às vezes nós precisamos ter
um escape, algo que fazemos única e exclusivamente por amor. E o basquete
é isso para mim.
— Não vou me inscrever, e nem posso, na verdade. Não concluí os
quatro anos de graduação ainda — explico.
— Meu intercâmbio termina no final do ano que vem, e não estou
elegível de qualquer forma. Estou no país há dois anos e a liga exige, no ato
da inscrição, pelo menos três para jogadores internacionais. — É a vez de
Elói responder. — E eu estou feliz com a ideia de ser professor, achei que ia
odiar meu estágio, mas a verdade é que os pirralhos me conquistaram.
Eu queria ter filmado isso para voltar no tempo, seis meses atrás,
quando ele estava xingando aos quatro cantos por ter de cumprir estágio
obrigatório lecionando em escolas de ensino fundamental. Elói Pierre é o
único que não percebe o quanto ele é uma manteiga derretida por trás da
capa de frieza que se reveste.
— E você, Mansen? Vai se inscrever? Você já está no quarto ano,
cumpre todos os requisitos… — Charles deixa a informação solta no ar e
vejo Tyler engolir seco.
Meu melhor amigo se mantém calado ao meu lado e seus olhos se
fixam em seus próprios pés como se fossem a coisa mais interessante do
planeta. Há algo estranho na forma com que sua expressão vai se
modificando até que o franzir de sua testa reflita pura dor. Arrasto a palma
da minha mão por suas costas numa tentativa de tranquilizá-lo, mas é inútil,
porque ele solta uma bufada alta.
— Eu não posso me inscrever pro draft — diz por fim.
— Por quê não? — Charles questiona.
Tyler aperta a ponte do nariz comprimindo os olhos quando joga a
cabeça para trás frustrado. Instintivamente me sinto culpado, porque não
havia reparado no conflito interno que ele parece estar vivendo, o que é no
mínimo inaceitável quando ele é o meu melhor amigo e moramos sob o
mesmo teto.
— Por causa do Direito… — A voz de Tyler corta o silêncio e nós o
encaramos. — Por causa da droga do curso de Direito. Porque eu não tenho
a mínima coragem de olhar na cara da maior advogada civil de Nova Iorque,
que por acaso é a minha mãe, e dizer que eu odeio essa merda. Não tenho
coragem de dizer que só faço essa faculdade para agradar à ela e ao meu pai,
e principalmente, que eu passo cada maldito segundo dentro daqueles
auditórios morrendo por dentro porque eu odeio tudo aquilo.
Ah, isso.
Eu sempre soube que esse momento chegaria e acho que, se Deus
existe, ele sabe o quanto não estou preparado para ter essa conversa a sós
com o meu amigo, por isso esse assunto surgiu agora. Eu sabia que uma hora
Tyler se arrependeria amargamente de deixar que seus pais influenciassem
em sua vida acadêmica, eu só não sabia como dizer isso para ele.
Amo Tia Joscelyn e Tio Ted com todo o meu coração, mas na época
em que Tyler aplicou para a faculdade, ainda sem saber qual curso queria,
foi nítido o quanto ele simplesmente não tinha escolha. Ou era o Direito ou
era o Direito. E bom, não tinha como ser diferente: depois dos dois anos de
bacharelado em Administração e mais dois anos na Escola de Direito,
faltando um ano para se formar, meu amigo odeia o próprio curso.
— E se você se inscrever e não contar para eles? — pergunto.
— Para correr o risco de ser draftado e ter que dizer não para uma
grande franquia? — Meu melhor amigo me questiona com um olhar
desesperançoso, e eu me vejo assumindo o papel de centrado da amizade.
— Honestamente, você já vai estar com vinte e seis anos. Com todo
respeito mas, foda-se o que os seus pais vão achar. É o seu futuro, e se você
quer jogar basquete, você deveria jogar basquete. Além do mais, eu tenho
certeza de que vai ser escolhido, tem pelo menos uns oito times da NBA
necessitados de um bom ala e você é o que há de melhor no estado. Se
duvidar, até mesmo no país — digo sem vacilar, e é como se a confiança
começasse a crescer dentro dele. — Se for draftado e tiver que deixar a pós
graduação, e isso vai rolar, vai ser o seu futuro e, consequentemente, o seu
dinheiro em jogo. Eles não podem interferir nisso.
— Harris está certo — Charles diz. — Se tem alguém nesse time com
grandes chances de arrumar um contrato profissional, você é o cara, Mansen.
— E se eu me arrepender no futuro? — ele pergunta, receoso, já
parecendo esgotado de remoer esse assunto em sua mente.
— Você só vai descobrir se tentar. Mas se cada vez que pisa em uma
quadra você se sente completo, sente que quer fazer isso para o resto da vida
e sente que simplesmente nasceu para fazer o que faz, meu irmão, sinto em te
dizer que você não vai se arrepender nunca — respondo dando risada e
deixo uns tapinhas em suas costas tentando animá-lo.
— É o que eu sinto — responde baixo.
— Tá esperando o que, então? — É a vez do Elói dar seu
empurrãozinho.
— Beleza, acho que vou pensar sobre a inscrição. Valeu mesmo, caras.
— Um meio sorriso surge em seu rosto.
Não tenho dúvidas de que vai dar certo. Há coisas que simplesmente
existem para que aconteçam. Tyler e o basquete são esse exemplo, é para
ser.
“A dor passa quando você simplesmente não pensa
Quando você simplesmente não pensa nela, não
A dor passa quando você simplesmente não pensa”
PAIN | Josh A

12 de Setembro de 2021

É a quarta loja que eu e Lily entramos e eu detestei todo e qualquer


vestido que foi colocado na minha frente. A raiva que estou sentindo diante
da audácia de Esteban ao tentar, mais uma vez, me manipular ainda queima
em minhas veias feito lava e eu daria tudo para aparecer em seu amado
escritório e gritar umas boas verdades em sua cara.
Ao invés disso, estou no shopping com a minha amiga em busca do
mais bonito e mais caro vestido que eu conseguir encontrar. As inúmeras
sacolas nos meus braços e nos braços de Lily foram só o começo. Se meu
pai só consegue me enxergar quando estou torrando sua grana, farei isso até
que eu seja a única coisa que ele vê.
Para ser sincera, me corrói adotar essa postura vingativa e baixa, me
corrói porque isso não tem absolutamente nada a ver comigo. Mas
infelizmente isso tem tudo a ver com o meu pai e se eu quero lhe dar uma
lição, preciso jogar o seu jogo.
Esteban precisa, de uma vez por todas, entender que não sou sua filha
apenas quando lhe é conveniente e, principalmente, que não sou uma de suas
funcionárias, disponível vinte e quatro horas para acatar suas ordens e lhe
servir.
Acontece que eu não faço ideia do quanto eu estar me submetendo a
isso, estar entrando, ainda que superficialmente, em seu jogo sujo que usa o
dinheiro como ferramenta de convencimento, me torna exatamente igual a
ele. Uma onda de repulsa sobe por minha garganta quando esse pensamento
me vem à mente, porque eu prefiro morrer do que correr o risco de me
parecer com aquele cara.
Sou arrancada do caos criado em minha própria mente quando ouço
minha amiga falando ao meu lado.
— Eu não me sinto pronta para deixar de ser solteira, mas ao mesmo
tempo eu simplesmente não me importo com nenhuma outra pessoa além dela
e isso é algo que só faz sentido na minha cabeça, porque tecnicamente eu já
não estou vivendo a vida de solteira, entende? — Lily pergunta angustiada
enquanto caminhamos pelo shopping.
Tem mais ou menos uns vinte minutos que ela está tentando me
explicar seu lance com Annelise e, honestamente, eu não entendo como duas
pessoas que se gostam não podem simplesmente facilitar tudo e só ficarem
juntas.
— O que eu entendi é que você está apegada a ideia de que estar
solteira é estar livre, quando na verdade, estar com Annelise jamais
diminuiu uma gota sequer da sua liberdade. Fala sério, amiga, vocês tem
ficado desde aquela festa, por acaso você se sente menos livre por isso? —
questiono.
— Hm, pensando bem… Não — ela admite.
— Exato, porque uma coisa não tem nada a ver com a outra.
— Acha que eu deveria só relaxar e me jogar de cabeça, então? — ela
pergunta ainda com uma sombra de incerteza por trás da sua voz.
— É exatamente o que eu acho — reafirmo, e ela parece pensar.
— Tem mais uma coisa… Annelise quer que eu conheça os pais dela e
eu não sei se estou pronta para isso.
— Ethan fala com bastante carinho sobre eles, parecem ser pessoas
legais — presumo.
— Não sei se pais que fazem o filho estudar algo que odeia, por puro
capricho, são realmente legais — ela está se referindo ao Tyler e novamente
aquela pontadinha de dor me pega. Queria conseguir ajudá-lo.
— Isso é verdade, mas toda família tem problemas. Você pode tentar
pegar algumas dicas com a Megan — sugiro.
— Eu já pensei nisso, mas nossas posições são bem mais distantes do
que parecem. Megan é quase médica, parece uma barbie, é a nora perfeita,
namorada do filho perfeito. E eu… Bom, eu não sei se uma futura
historiadora com inclinações revolucionárias se encaixa exatamente no que
os papais Mansen sonharam para sua princesinha. Qual é, sou eu, sabe? —
Lily aponta para si e eu capto nas entrelinhas o que ela quer dizer.
Lily Stanford é uma das pessoas mais seguras de si que eu conheço,
mas ela está com medo. Visivelmente, a chegada de um sentimento forte
como o amor está fazendo com que ela recue como forma de se proteger.
Minha amiga é uma mulher gigante, que carrega consigo bandeiras
importantes, tão gigantes quanto ela, e agora, olhando em seus olhos, vejo
que ela teme que sua grandeza não seja vista com bons olhos pela família da
garota por quem ela está apaixonada.
Freio meus passos e Lily cessa os dela também, virando-se para mim.
De imediato a puxo para um abraço, pouco me importando que estamos no
meio de um shopping.
— No instante em que os pais de Annelise olharem nos olhos da
própria filha e avistarem aquele brilho lindo que os toma quando ela olha
para você, eles vão te amar muito, porque esse é o super poder do amor, ele
contagia. E não existe ninguém mais amável nesse mundo do que você, Lilian
— digo em seu ouvido, sorrindo, e ela se afasta apenas para que eu veja seus
olhos marejados.
— Você sabe que eu não seria nadica de nada sem você, não sabe? —
Lily faz um bico fofo, e nós voltamos a caminhar lado a lado.
— É óbvio que eu sei! — Dou risada enquanto a encaro, mas a fita
adesiva para dor muscular, que escapa pela gola e manga de sua camiseta,
chama a minha atenção. — O que aconteceu com o seu ombro?
Minha amiga se volta para mim com uma expressão confusa, mas logo
segue meu olhar e entende minha pergunta.
— Oh, isso. Ganhei de brinde no treino de ontem, dois dos bases
vacilaram durante a recepção de um basket e eu tentei segurar sozinha a
flyer. Foi um desastre, o pé dela foi direto no meu músculo deltóide, urrei de
dor na hora.
— Por Deus, não faço a menor ideia do que quis dizer, mas parece
péssimo!
— Nem fala, com o campeonato regional se aproximando, nossos
treinos estão se tornando um caos. Nossa técnica se inspirou na rotina
campeã dos nacionais de 2018, do Chicago Falcons, para criar a nossa. — O
tom de voz cansado me garante que isso não é exatamente algo maravilhoso.
— Tem algum problema com a coreografia?
— Não com ela em específico, mas os Falcons[12] estão em um nível
extremamente superior ao da NYU. Enquanto eles são os reis invictos de
Daytona, o máximo que conseguimos foi um sétimo lugar. Eles são tipo a
maior referência dentro do cheer universitário e executar uma rotina no
mesmo grau de dificuldade da deles tem me dado uma dor de cabeça dos
infernos.
— Sinto muito, amiga, — digo, deixando um carinho em sua bochecha.
— Mas fique tranquila, vocês vão conseguir fazer dar certo, sim?
— Sei que vamos. Raelynn Williams é a minha guia e nada me faltará!
— Ela fala unindo as mãos como em uma prece e eu dou risada.
— Quem?
— Essa mulher aqui — Lily tecla algumas coisas no celular e o
estende em minha direção. — Essa garota é a maior lenda que o
cheerleading universitário já viu, ela se formou no ano passado e estou certa
de que dificilmente alguém vai conseguir superá-la, ela é grandiosa.
Analiso a imagem por alguns segundos. A mulher está posando
encostada em uma parede, o vestido branco justo de gola alta destaca seu
corpo definido e sua pele negra clara ganha um dourado pela luz solar de fim
de tarde que a cobre. Ela me parece estranhamente familiar, mas é só quando
Lily passa para outra foto, dela com o uniforme vermelho e preto da sua
faculdade, que um estalo atravessa minha mente.
— Eu a conheço! — exclamo com um sorriso enorme quando a
memória da vez que eu e Megan fomos junto com a torcida dos Lions para
Chicago, assistir um jogo no meu primeiro ano, retorna à minha mente.
Naquela época Meg ainda conseguia me arrastar para essas loucuras.
— Mentira! — Minha amiga está com o queixo caído.
— Juro! Nossa, ela é mesmo impecável.
Enquanto caminhamos pelo shopping eu narro para minha amiga sobre
o evento em questão. Lily fica com os olhinhos brilhando quando fala sobre
como gostaria de um dia poder conversar pessoalmente com a mulher que é
uma das suas maiores referências dentro do esporte.
Passamos mais um bom tempo entrando e saindo de lojas até que a
vitrine de uma grife italiana nos chama atenção. Lily e eu entramos e minha
amiga instrui uma das vendedoras sobre o estilo de roupa que procuramos. A
mulher, que está vestida em um terninho vermelho com um broche da loja,
nos indica o setor dos provadores onde aguardo pacientemente até que ela
traga as opções.
Enquanto espero, minha mente divaga para a conversa que tive mais
cedo com Tyler. Minha ida a este baile de amanhã será como um “último
ato”. Pretendo entregar a droga do colar e deixar claro para Esteban que ele
não pode mais fazer esse tipo de coisa quando bem entender. E sobretudo, eu
queria me assegurar de que essa fosse, definitivamente, a última vez em que
eu cedia aos caprichos do meu pai, por isso, depois de muitos anos reabri a
pasta com a cópia dos documentos da separação dos meus pais que me
incluíam de alguma forma.
Fotografei tudo e enviei para Tyler, pedindo que ele me explicasse
cada parte daqueles registros, quase gritei de alegria ao descobrir que
Esteban, anos atrás, assinou um acordo onde ele se compromete a custear
meus estudos durante toda a minha estadia na universidade e me oferecer
uma ajuda de custo equivalente à dois mil e quinhentos dólares mensais, que
é o que já recebo dele.
Tyler também me explicou que esse acordo só pode ser dissolvido
caso a outra parte não cumpra com as suas obrigações definidas por este
mesmo documento. Sendo assim, o acordo se desfaz se, por algum motivo, eu
trancar a minha matrícula ou apresentar um rendimento anual inferior a 50%
de aproveitamento, o que, no meu caso, não chega nem perto de ser uma
possibilidade.
O namorado da minha melhor amiga, além de estudante de Direito, é
filho de uma das maiores advogadas civis da cidade. Tyler me assegurou de
que caso meu pai ao menos ameace deixar de cumprir com o acordo em
questão, ele fará sua mãe entrar na jogada e ela me representará de forma
gratuita caso um embate judicial se fizer necessário.
Nunca me senti tão grata em toda a minha vida.
Meus pensamentos são interrompidos pelo som do toque do meu
celular. Pesco o aparelho na bolsa e vejo o apelido que coloquei como
contato de Ethan piscando no visor. Não nos falamos e nem nos vimos em
aulas desde a reunião com nossos amigos, o que é estranho, se considerar
que quase todo o tempo livre que tivemos no último mês foi preenchido por
infinitas trocas de mensagens, mas algo me disse que o garoto apenas
precisava de tempo.
De imediato, penso ser um engano porque é uma chamada de vídeo,
mas quando o toque persiste, eu atendo e o que preenche a tela me deixa um
tanto desconcertada.
Ethan Harris apenas de bermuda em toda a sua glória. Ele está de
frente para um espelho, que julgo ser do seu banheiro, e está penteando seus
fios de cabelo sem notar que já atendi sua ligação.
Eu tento me conter, juro que tento, mas meus olhos cedem à maldita
tentação de se demorarem por tempo demais nos músculos do seu abdômen.
O desgraçado é bonito, e gostoso, é impossível negar. E eu confesso que
venho pensando sobre isso mais vezes do que deveria, mas é inevitável.
Coço a garganta para chamar sua atenção e confiro na tela se não estou
segurando o celular em um ângulo ruim. Ethan sorri quando toma ciência de
que estou na chamada e se aproxima, pegando o celular e caminhando para o
que parece ser o seu quarto.
— Coelhinha, como você está? Atrapalho? — ele pergunta antes de se
deitar em sua cama.
— Estou bem, e não atrapalha não. Aconteceu alguma coisa?
— Na verdade, eu liguei porque queria saber se você se importa de
cancelarmos nosso encontro de amanhã. Minha tia me convidou para jantar
com a namorada dela e eu não pude recusar, sabe… É importante pra mim —
ele se explica com um tom que aparenta estar receoso, como se temesse
minha reação.
— Por mim tudo bem. Eu meio que tenho um compromisso familiar
também, ia te mandar mensagem mais tarde — digo calmamente.
Ethan me encara por alguns segundos, parecendo tentar me desvendar.
Só depois de um tempo em silêncio, pergunta:
— Desculpa parecer invasivo, mas você está bem com esse
“compromisso familiar”? — O tom manso tem um fundo de tensão, o que me
diz que ele está preocupado.
Ethan não sabe exatamente tudo que rola, mas sabe que estou longe de
ser a maior fã de eventos em família.
— Mais ou menos — minto. — Mas pelo menos estarei bem bonita.
Estou fazendo compras com Lily e vamos escolher um vestido de matar —
digo, rindo, mostrando que estou em um provador, tentando desviar o
assunto. Ethan percebe, mas entra na onda.
— Tenho certeza de que vão, inclusive, se quiser apoiar o telefone em
algum lugar aí e ficar em chamada enquanto se troca… Eu não vou me opor.
Reviro os olhos quando o sorrisinho sacana toma seu rosto e tento
conter o riso de forma frustrada.
— Não vou fazer um striptease para você em um provador, Harris,
pode tirar o cavalinho da chuva.
— Isso significa que fora do provador você faria? — ele pergunta
empolgado e eu me limito a erguer meu dedo médio para a câmera. —
Temos que rever os termos dessa amizade, linda, você me xinga três vezes
por dia, já me bateu, e eu não ganho nem um strip? Não sei se gosto disso. —
Ele mantém o semblante sério e eu gargalho porque, pelo amor de Deus, ele
é impossível.
— Vai se foder, Harris!
— Só se você vier junto — responde com um tom sedutor, tão
previsível que me faz rir mais uma vez, e ele me acompanha.
— Adeus! Tenho vestidos para provar! — digo prestes a desligar a
chamada, mas Ethan faz sinal para que eu espere.
— Antes de desligar, preciso que me confirme uma coisa…
— Não vou transar com você, se é o que quer saber — falo, divertida.
— Não é isso... Só me diga que sabe que sou seu amigo e que pode
contar comigo se precisar de alguma coisa — Seu rosto ainda parece
preocupado, mas quando eu assinto e digo “eu sei”, sua expressão suaviza.
— Certo, boas compras, então!
Depois de experimentar quase metade da loja, eu enfim encontrei o
vestido perfeito, ou pelo menos me esforcei muito para acreditar que ele era
perfeito, porque eu simplesmente não aguentava mais.
O sorriso de satisfação que me tomou quando a compra de três mil
dólares foi aprovada só não era maior do que o da vendedora que, depois de
passar uma hora e alguns bocados aguentando minha indecisão e os olhares
reprovadores de Lily para as peças mais esquisitas, provavelmente
receberia uma comissão considerável pela venda do vestido.
Passo pela entrada do campus quando já está anoitecendo, depois de
deixar Lily em seu apartamento no SoHo. Passei o trajeto inteiro
tamborilando o volante do carro enquanto uma única coisa martelava em
minha cabeça.
Me pergunto sobre o que irá acontecer amanhã naquele baile. Na
melhor das hipóteses, meu pai estará furioso comigo por ter feito a festa no
cartão que me deu e provavelmente vai fazer o inferno em minha cabeça com
suas ofensas passivo-agressivas. Na pior… Bem, eu não quero nem pensar
no pior que pode acontecer.
Estaciono meu carro quando entro na parte reservada para ele logo em
frente a Chisholm House, e meus olhos quase saltam para fora quando me
dou conta de quem está dentro do jeep azul estacionado ao meu lado.
— Merda, merda, merda! — chio baixo.
Me encolho no banco quando vejo Adam Maddox sentado atrás do
volante, mexendo em seu celular, e xingo mentalmente por ainda não terem
inventado uma capa da invisibilidade como a dos livros que Megan é
viciada.
Desde que transamos eu tenho fugido dos seus milhares de convites
porque eles passaram a se resumir a encontros sexuais e isso acabou me
broxando um pouco de seguir com o nosso lance.
A verdade é que eu não tenho a mínima pretensão de seguir indo para
cama com ele só por ir, mas ainda não consegui dispensá-lo. Foi uma transa
legal, mas foi só isso, e eu sinto que o que rolou entre nós nunca daria em
nada. Isso provavelmente me torna uma egoísta hipócrita, porque confesso
que ainda não deixei tudo às claras pelo fato de que Adam é como uma
segurança em meio ao meu turbilhão de incerteza.
Saber que ele sempre está ali, disponível, me traz um certo conforto e,
merda, isso é muito injusto.
Maddox é um cara legal, e sua companhia é agradável na maior parte
do tempo. Acontece que enquanto Adam precisa de alguém que saiba tudo
sobre ele, eu gosto de dar atenção na mesma medida em que recebo e essa
reciprocidade simplesmente não rolou com a gente.
Enquanto eu poderia escrever uma biografia do cara, ele
provavelmente mal se recorda do meu sobrenome. Isso pode funcionar com
algumas pessoas, mas não é o suficiente para mim.
Passo mais alguns segundos encolhida encarando o teto do carro
tentando pensar no que fazer. Se eu sair por essa porta vou dar de cara com
ele, se eu ligar o carro de novo para estacionar em outro lugar ele
provavelmente vai me ver e… Okay, todas as alternativas culminam em uma
conversa.
— Pelo amor de Deus, o que eu faço?
No mesmo instante em que me faço a pergunta, ouço uma voz feminina
vinda da parte de fora e, em seguida, escuto o som do motor do jeep sendo
ligado. Ergo a cabeça o suficiente para enxergar o que está acontecendo e
vejo quando uma morena alta abre a porta do carro e entra, cumprimentando
Adam com um selinho rápido.
Sabe todo aquele papo de estar me sentindo culpada? Esqueça isso.
Nunca havia notado o quanto Lily estava certa em dizer que eu precisava,
com urgência, entender a dinâmica da solteirice do século vinte e um até o
presente momento.
Espero até o caminho estar limpo para sair de dentro do meu carro
com a minha pilha de sacolas e vou em passos despreocupados até o prédio
do meu alojamento. Faço uma nota mental de enviar uma mensagem
dispensando Maddox mais tarde, tarde o suficiente para não atrapalhar seu
encontro. Não que ele realmente vá se importar.
Pelas próximas vinte e quatro horas minha única preocupação é
acalmar todos os meu nervos ansiosos por um acerto de contas entre pai e
filha.
Ou pelo menos tentar.
“Acordei no chão
Oh, esta cama de plástico não infla mais (oh)
Neste lar destruído
Todos se tornam previsíveis”
TALES OF DOMINICA | Lil Nas X

13 de Setembro de 2021

Existe um conceito na tragédia grega chamado “hybris” que, em


suma, tem a ver com um sentimento de prepotência do herói perante os
Deuses. Em diversos mitos gregos e até mesmo em epopeias, é fácil
encontrar heróis sendo castigados pelas divindades por ousarem contaminar-
se pela soberba ao ponto de acreditarem estar à altura dos seres divinos.
No início da minha graduação, quando estudei a cultura grega, me
chamou atenção que em Édipo Rei, a glória de Édipo se faz por ele ser um
homem inteligente. No entanto, ao passo que o personagem tem ciência de
sua inteligência e passa a crer que é um dos mais sábios, sua hybris se faz
justamente pelo motivo de sua glória.
Na época, eu não entendia porque gostava tanto daquele livro, e por
que a forma como ele apresenta esse conceito me encantava tanto. Mas hoje,
especialmente, eu percebo que é extremamente fácil fazer uma analogia entre
a hybris de Édipo e o meu pai.
Esteban, dentro de toda a sua arrogância, conseguiu absolutamente
tudo o que quis, sempre, mas eu tenho certeza de que é essa mesma
arrogância que um dia vai fazê-lo ruir, parte por parte.
Até que ele perceba que, embora ele se sinta como um deus, está longe
de ser um. E que castelos altos, quando construídos sem bases fortes,
desmoronam com um simples soprar de ventos.
Sete anos atrás...
A tinta ainda estava fresca sobre a tela quando me afastei do
cavalete, observando o quadro que havia pintado em completa adoração. Era
fim de tarde e os raios solares entravam pelas grandes janelas da minha
biblioteca/atelier, trazendo um colorido sem igual para o ambiente.
Limpei meus dedos sujos de tinta em um pano úmido, que deixava
sempre por perto, e tirei a tela do cavalete, pronta para mostrá-la aos meus
pais. Era um domingo atípico em que eles estavam em casa, descansando em
nossa sala de leitura, e ao menos naquela semana, nenhuma briga havia
atormentado nossa tranquilidade.
Para mim, aquilo era sinônimo de vitória.
Abri a porta do atelier e caminhei pelo imenso corredor, escondendo a
tela atrás do meu corpo com cuidado para não borrar a pintura. Me esforcei
ao máximo para ser silenciosa porque queria fazer uma surpresa.
Em meu quadro, eu, mamãe e papai estávamos em um jardim de tulipas
e eles me abraçavam de um jeito que, honestamente, eu não me lembrava de
receber há um bom tempo. Na minha cabeça eles ficariam felizes com a
pintura e talvez até a pendurassem em seu quarto.
Me lembro de frear meus passos, no entanto, quando, já próxima da
porta entreaberta, pude ouvir sem querer sua conversa e percebi que eu era o
assunto. “Recebi um e-mail da escola dela, haverá uma feira de ciências no
próximo mês. Separe o dia em sua agenda, por favor” minha mãe pediu. “Vou
ver se consigo” meu pai respondeu. “É a sua filha, Esteban, faça ao menos
um esforço” a voz dela subiu alguns tons. “Eu disse que vou tentar, você
pode representar nós dois caso seja necessário. Afinal, não é como se ela
fosse ganhar a feira, Virgínia. Amelie prefere ficar brincando de pintar, não
gosta de ciências”.
E aquilo doeu.
Eu não sabia ao certo se doía mais o fato dele desacreditar do meu
potencial, ou de reduzir a minha expressão artística a uma brincadeira. Veja
bem, eu levava sim a arte como um hobby, mas o tom de desdém que meu pai
utilizara dava a entender que eu era uma fracassada por preferir as tintas às
fórmulas e equações, aquilo me machucava.
Muito.
A lágrima quente que escorreu do meu rosto ao escutar aquelas
palavras só não fervia mais do que o sangue que borbulhava a indignação
crescente em meu peito.
Agora…
— Como se sente? — Megan pergunta do outro lado da tela.
— Bom, tem quinhentos mil dólares no meu pescoço, três mil no meu
corpo e estou usando Louboutins. Eu não poderia estar melhor, não é
mesmo? — respondo com uma risada completamente sem humor, e minha
amiga me encara com um olhar triste que me faz soltar um longo suspiro. —
Foi mal, Meg. É só que… Eu estou pirando.
— Olha pelo lado bom, pelo menos você tá gostosa — Lily pontua,
tentando amenizar, e Annelise concorda. A voz ofegante da minha amiga
denuncia seu cansaço pós treino e, mesmo longe do telefone, consigo ver o
gramado da NYU ao fundo.
Falta menos de uma hora para o horário que meu pai me notificou que
meu carro chegaria, e eu estou sozinha no meu dormitório tentando não pirar
enquanto converso com as minhas amigas por chamada de vídeo. Lily e
Annelise estão na faculdade e Megan está na estrada com Tyler. Os dois vão
passar o fim de semana na casa do lago da família Mansen com os pais dele.
— Miss Jornal... — Tyler me chama, e Megan vira a câmera em sua
direção. — Sabe que se acontecer qualquer coisa e você precisar de alguma
assistência jurídica é só me ligar, não sabe? Minha mãe tem bons contatos na
cidade, eles cuidam de tudo até voltarmos — ele me assegura.
Tive que explicar por alto minha relação perturbadora com meus pais
para o namorado da minha melhor amiga depois que enviei para ele analisar
os documentos do divórcio. De imediato, Mansen ficou uma fera por meu pai
ter me ameaçado usando meus estudos como moeda de troca. A revolta em
seus olhos se misturava com preocupação.
Exatamente naquele momento, entendi que Tyler era verdadeiramente
meu amigo, porque sua postura me dizia que ele compraria uma briga das
feias para me defender se fosse preciso.
— Pode deixar — digo um tanto sem confiança porque, sendo sincera,
espero de coração que nada disso seja necessário.
Nos falamos por mais um tempo até que eu desligue a chamada para
me apressar. Termino de ajeitar os cachos do meu cabelo em frente ao
espelho e cubro meus lábios com uma camada fina de gloss. Meus olhos
estão com um delineado preto fino e o rímel, passado em diversas camadas,
deixa meu olhar ainda mais expressivo.
O vestido preto é um show à parte. O decote em formato de coração é
profundo e justo, deixando meus seios em evidência. As alças finas trazem
um ar delicado para o meu colo e a saia de seda desce até meus pés se
moldando nas curvas do meu quadril, onde uma fenda poderosa se abre um
pouco acima da minha coxa.
É uma visão e tanto, e eu faço uma anotação mental de cogitar um
modelo parecido para a minha formatura, mas o colar de diamantes
brilhando em meu pescoço é um lembrete claro de que, embora eu esteja
confortável com a imagem que vejo no espelho, nem de longe eu estou
confortável com a situação em que fui colocada.
Assim que termino de calçar meus saltos, pego meu celular e tiro, ao
menos, meia centena de fotos na frente do espelho, escolhendo, por fim, a
que me saí melhor.
Na fotografia, estou com a mão livre espalmada sobre meu colo, a
fenda do vestido deixa minha perna quase toda à mostra e os fios do meu
cabelo caem entre meu ombro. É uma foto que, sendo zero modesta, exala
poder e sensualidade, e é exatamente por isso que a escolho para enviar para
Ethan.
Estou na esperança de que seus comentários me distraiam e me
impeçam de explodir de nervosismo.
Hoje cedo, quando nos falamos por mensagem e ele revelou estar
curioso sobre o meu “vestido de matar”, eu disse que poderia mostrá-lo se
ele “se comportasse”, e bom, o que dizer sobre o cara? Ele me levou café na
aula!
Eu: foto
Eu: Como você foi um bom garoto… Promessa é dívida, modelito
aprovado?
Fecho os olhos sentindo meu coração acelerar porque sei que, depois
de enviar essa mensagem, mesmo sem intenção, estarei entrando de vez no
joguinho perigoso que o deixei jogar sozinho por tanto tempo.
Mordo a parte interna da minha boca e clico no botão de enviar. Como
sempre, levam segundos para que ele fique online e comece a digitar.
Problema de Estimação: PUTA Q PARIU!!!!! APROVADO P
CARALHO!!!
Problema de Estimação: Avisem ao MoMa que tem uma obra de arte
moderna à solta pelas ruas da cidade!!!
Problema de Estimação: Já te disseram que você é gostosa hoje? Se
não disseram, Amelie Castillo, você é uma gostosa! Vai matar todo mundo
do coração nesse compromisso de família!
Leio as mensagens gargalhando tão alto quanto consigo porque,
droga, Ethan Harris é o melhor amigo do mundo e ele realmente consegue
fazer qualquer situação parecer minimamente divertida.
Eu: Matei você do coração?
Problema de Estimação: Sim, é a alma dele que tá digitando aqui,
linda. Inclusive, o falecido gostaria de saber se você está solteira…
Encaro a tela do celular por mais de um minuto com os olhos
arregalados e o estômago dando cambalhotas nervosas. Estou alucinando ou,
dessa vez, Ethan Harris está definitivamente me jogando uma cantada real?
Puxo o ar com força para me recompor e enquanto rodeio meus dedos
trêmulos sobre a tela, tento pensar em uma resposta boa, decidindo embarcar
em seu joguinho.
Uma insensatez a mais, outra a menos, não faz a menor diferença no
dia de hoje.
Eu: Avise que estou sim ;) Mas tem uma fila enorme de caras
esperando uma chance.
Problema de Estimação: Eu acho justo que melhores amigos tenham
prioridade, você não acha?
Engulo seco constatando que, sim, nós dois estamos flertando
descaradamente pelo telefone, de verdade dessa vez, e talvez eu esteja
gostando da ideia.
Não é como se a possibilidade nunca tivesse passado pela minha
cabeça, porque já passou, e tem passado com frequência desde que nos
aproximamos. Ethan é um cara gato, e não é necessário um grande esforço
para reconhecer essa qualidade. Admito que já me peguei pensando algumas
vezes em como seria beijá-lo, pensamentos esses, guardados bem lá no
fundo da minha mente.
Seria loucura.
Uma loucura que eu facilmente cometeria, infelizmente.
Eu: Eu acho que posso pensar sobre o assunto. Preciso ir, nos
falamos mais tarde.
Problema de Estimação: Tenha uma excelente noite, Coelhinha. Me
avise quando “pensar sobre o assunto”.
Reviro os olhos e me questiono internamente onde estou com a
cabeça para decidir corresponder aos flertes desse cara.
Foco, Amelie! Uma coisa de cada vez!, minha mente grita, me pondo
de volta em meu lugar.

O utilitário preto está estacionado na frente do meu alojamento


pontualmente às sete da noite. Agradeço aos céus pela ausência de pessoas
circulando pelo prédio enquanto eu desfilo pelos corredores vestida em um
conjunto que vale mais de uma casa.
Já no carro, um motorista e dois seguranças dividem espaço comigo,
um deles me auxilia para que eu me acomode no banco traseiro, onde me
sento com a carteira que abrigava o colar em meu pescoço e a minha bolsa
sobre o meu colo.
O trajeto até Greenwich Village é lento e vai me torturando a cada
segundo. Encaro a paisagem através do vidro em silêncio, desejando acabar
de vez com tudo isso. O aperto em meu peito se intensifica quanto mais
próximos estamos da mansão gloriosa de Esteban Castillo, e tudo que eu
quero é poder voltar para casa.
Assim que paramos no sinal, meu celular toca em minha mão e eu
atendo, mantendo os olhos distraídos na cidade e sem checar o identificador
de chamadas.
— Alô? — Observo a avenida do lado de fora e do outro lado da linha
ouço apenas uma respiração pesada. — Amelie falando, tudo bem?
— Fi-f- Amelie! Sou eu, me desculpe ligar assim de repente, estou
atrapalhando, não estou? — Eu gelo.
Afasto o aparelho do ouvido e checo o nome escrito na tela me
sentindo completamente surpresa e confusa. Porém, embora sua voz seja tão
vaga em minha cabeça, o identificador de chamadas não deixa dúvidas:
Virgínia Morgan.
— Aconteceu alguma coisa? A senhora está bem? — pergunto
rapidamente, já sentindo a pontada de preocupação espetando minha espinha.
— Oh, não! Está tudo bem, querida. Na verdade, eu… Eu liguei para
saber como você está. — Okay, isso é novidade.
— Estou bem, estudando bastante e essas coisas.
— Eu liguei também para agradecer pelo jardim, sei que já tem um
tempo, queria ter ligado antes, mas confesso que não sabia se você iria
querer me ouvir. — A voz dela está embargada e a dor em meu peito é quase
insuportável. — Madelyn me contou que esteve aqui com um amigo para
plantá-las, que fez tudo com muito carinho, e me convenceu a tentar, muito
obrigada mi niña.
“Mi Niña”, uma expressão carinhosa em espanhol que significa
“minha menina”. Ela só me chamava dessa forma quando eu era criança.
Dizia que, ainda que eu crescesse e ganhasse o mundo, eu sempre seria a sua
menina.
Sua “niña”.
Sinto tanta falta dela. Da mãe que um dia eu já tive.
Empurro o dedo indicador sobre minha pálpebra, expulsando a
lágrima intrusa que tenta se formar. Faço isso numa tentativa inútil de não
demonstrar o quanto estou abalada. É em vão, sei que sim, porque o
segurança sentado ao meu lado me estende um lenço de papel e me oferece
um meio sorriso.
— Você gostou do novo jardim? — pergunto, e minha voz falha um
pouco no começo.
— Gostei, gostei muito. Mais uma vez, obrigada, querida. — Assinto
com a cabeça mesmo que ela não possa ver e comprimo os lábios para
conter o choro que se embola em minha garganta. — Você deve estar
ocupada, vou te deixar em paz, está bem? Espero que possamos conversar
mais vezes.
— Certo, eu estou na rua indo para um compromisso — omito o nome
de Esteban porque não quero deixá-la triste. Me lembro dos conselhos que
Megan me deu e sobre como o incentivo à práticas saudáveis pode ser um
pequeno passo importante. — Mãe?
— Sim?
— Me promete que não vai deixar o jardim morrer? Promete que vai
cuidar dele com carinho? — peço com cautela porque não quero pressioná-
la ou que ela se sinta intimada. Eu não a conheço mais, não sei até que ponto
algo pode ofendê-la.
Há mais uma pausa e seu longo suspiro passa por meu ouvido.
— Eu já estou cuidando, querida. Fique tranquila.
Isso de alguma forma me dá esperanças. Nos despedimos de forma
desajeitada, sem saber ao certo quais palavras usar e eu quase consigo sorrir
quando ela me diz que me ligará mais vezes se assim eu desejar. Eu aceito.
Reparei que ao longo da nossa conversa ela não me chamou de filha
uma única vez. Lembro claramente de, num momento de raiva, exigir que ela
só voltasse a me chamar dessa forma quando soubesse ser a minha mãe, e eu
espero de todo coração que esse momento seja em breve.
A verdade é que existe um caminho muito difícil até que fique tudo
bem e que ela não seja mais uma estranha para mim, mas é como Ethan me
disse: eu ainda posso ter pequenas iniciativas em busca de me libertar.
Essa é uma das batalhas que estou disposta a enfrentar.
E eu quero começá-la ainda hoje. Penso, e logo em seguida levo
minhas mãos até o fecho do colar em meu pescoço. Abro-o e seguro diante
de mim encarando os diamantes enormes.
Meu pai quer a minha presença, mas não vai me obrigar a usar este
maldito colar que poderia facilmente garantir a casa própria de pelo menos
cinco famílias, não mesmo.
Não vou desfilar por aquele salão como um cachorrinho com uma
coleira cara.
Guardo o acessório em sua caixa e encaro meu reflexo confiante no
vidro do carro. Eu sou muito mais do que tudo isso, sei que sou.

Esteban não brincou quando disse que seria um grande evento. O salão
de bailes da sua mansão está decorado em tons de preto e dourado, tudo
extremamente luxuoso e esbanjando o quão rico e poderoso ele é. Magnatas,
políticos e pessoas do alto escalão da sociedade desfilam pelo majestoso
espaço com suas roupas de grife e suas taças repletas de champanhe.
Todas fingindo, muito porcamente, estarem aqui por interesse em
angariar fundos para o novo centro de refugiados latino-americano do
Harlem, como se não fosse justamente a mão de obra dessas mesmas pessoas
que muitos deles exploram sem parar em suas empresas. É tudo tão patético
que me faz querer vomitar.
Caminho pelo espaço enquanto meus olhos atentos buscam algum rosto
familiar de confiança. Esperava ver Simon aqui, já que nossos pais se
conhecem, mas não vejo sinal dos Lang em lugar algum. Sinto quando uma
mão envolve meu pulso de maneira brusca e engulo o chiado que quase
escapa da minha boca ao ver que se trata do meu pai.
Seus dedos estão segurando minha pele com uma pressão acima do
normal, e isso me incomoda em níveis absurdos.
Esteban está vestido em um terno Hugo Boss verde escuro. Seu
cabelo está milimetricamente penteado e o sorriso falso que estampa seu
rosto provoca uma fúria crescente em meu peito.
— Onde está o colar? — É o que ele me pergunta no mesmo instante.
— Com a curadoria do leilão, não sou um mostruário — digo, como se
fosse óbvio, e ele ergue a sobrancelha como quem se sente desafiado.
— Certo. Que bom que decidiu vir, foi uma decisão inteligente.
Inacreditável. É realmente inacreditável como ele consegue ser um
completo ordinário. Encaro-o completamente irada por sua cara de pau, e
nesse meio tempo, alguns fotógrafos se aproximam de nós para fazer alguns
retratos.
Esteban me abraça de lado sem muito contato e, em segundos, diversos
flashes quase me cegam.
— Eu não decidi, eu fui forçada — corrijo entredentes enquanto
ofereço um sorriso gigante para as câmeras.
— Não me lembro de ter mandado um de meus homens buscá-la à
força, hija.
— Claro que não, você jamais faria isso. Vai contra o seu manual de
joguinho psicológico dos infernos, não é, papai? — rosno, sustentando o
sorriso.
— Já foi falar com Lambrock? Ele está interessado em conhecê-la
previamente, antes da entrevista para o estágio — disse, também entredentes
enquanto posava ao meu lado.
— Pois eu espero que ele não tenha vindo até aqui só para isso, não
tenho a menor intenção de conhecê-lo antes dos meus colegas. Eu não jogo
sujo. — Levo uma das mãos até o rosto, massageando minhas bochechas
quando os fotógrafos se vão.
— Não é o que a movimentação da sua conta bancária me disse nos
últimos dias. — Ele me direciona um sorriso ardiloso.
— Você me obrigou a vir neste baile, e amanhã minha cara vai estar
em trezentas revistas contra a minha vontade, nada mais justo do que gastar
alguns dólares nisso, é o mínimo. Você não acha?
— Acho que deveria me avisar quando decidir fazer a festa no
shopping às minhas custas — responde, sério.
— Achei que era inteligente o suficiente para saber que eu não gastaria
um centavo do meu trabalho na sua baboseira. De qualquer forma, saiba que
é a última vez que me arrasta para esse tipo de coisa — declaro, firme,
tirando coragem de onde eu nem mesmo sabia que conseguia.
Ele me encara buscando a veracidade em minha fala e eu devolvo seu
olhar com a coluna ereta e o rosto erguido, demonstrando confiança em
minhas próprias palavras.
Essa foi a última vez.
— Bom, se está dizendo. Eu já lhe provei que posso beneficiá-la caso
me obedeça. Lambrock está bem ali, se quiser sair daqui mais tarde de mãos
abanando, é um problema seu, mi hija — ele diz, o semblante é tão sério
quanto o meu. — Cuidado para não se arrepender no futuro.
É mais uma ameaça. E ele também está insinuando que eu vou perder
o estágio.
Meu pai não acha que tenho capacidade para fazer isso sozinha, que
não consigo vencer sem que ele pague por isso. Se ele visse quantas coisas
já conquistei sem que ele ao menos soubesse.
— Não vou me arrepender de ser justa com os meus colegas de curso,
obrigada — encerro a discussão no instante em que Tiffany, sua esposa, se
aproxima de nós e o leva para longe. Sem me cumprimentar, claro.
A verdade é que eu estou totalmente ciente de que Russel Lambrock
está sentado a alguns metros de onde estou, e como uma verdadeira fã do seu
trabalho, estou me corroendo de vontade de ir até lá e passar horas ouvindo
ele falar sobre jornalismo e imprensa. Mas toda vez que penso em tentar uma
aproximação, sei que ele vai me perguntar o meu nome, sei que vai ligar os
pontos, e sei que vai ter um olhar diferente para mim por conta do meu pai.
E toda vez em que eu penso na ínfima possibilidade de ganhar aquele
estágio porque Esteban o entregou de bandeja para mim, eu me sinto
péssima. Além disso, eu penso nos que estão competindo comigo e,
inevitavelmente, penso em Ethan. Penso no quanto odiaria ver a decepção
em seus olhos e no quanto odiaria que ele parasse de me ver como sua
amiga, que ele tanto faz questão de enfatizar que sou.
Por isso, passo a noite indo sempre na direção contrária do homem
que, em breve, terá meu destino nas mãos.

Meu pai já está em cima do palco discursando sobre o excelente


desempenho de suas empresas há alguns bons minutos quando eu me levanto
e vou até o bar, em um canto do salão, em busca de uma garrafa d'água.
Me sento em uma das banquetas e faço o meu pedido, encarando
fixamente o arranjo de frutas do outro lado do balcão.
— Esse cara é um boçal. Alguém precisa avisá-lo que é extremamente
desagradável ficar quase uma hora se vangloriando como um maldito Luís
XIV! As pessoas estão aqui pelo leilão — uma mulher resmunga ao meu lado
antes de pedir um Cosmopolitan.
Ela está com um vestido longo rosa bebê que cai perfeitamente em
seu corpo e segura uma bolsa Prada com uma das mãos. A pele negra clara é
repleta de tatuagens, ela está usando twists no cabelo e eles estão presos em
um coque alto. A maquiagem é sutil e o sorriso que ela dá quando o garçom
entrega seu drink me faz pensar que estou diante da mulher mais bonita que
já vi.
Suas bochechas fazem os olhos ficarem pequenininhos, e por alguns
segundos ela vai de mulherão à menina, e retorna à primeira na mesma
rapidez.
— Acredite, ele acha que todos estão aqui porque crê firmemente que
o sol orbita ao redor do seu umbigo. — Solto um riso irônico e ela gargalha.
— Gostei de você! — exclama, sorrindo, e se vira de frente para mim.
Pego minha garrafa d’água e faço o mesmo. — Sabe, você é visivelmente um
pouco mais nova do que eu, mas se posso te dar uma dica, nesse nosso
mundo dos negócios, o papel de mulheres como nós é, além de fazer muito
dinheiro, incinerar o ego de caras como ele. A propósito, me chamo
Samantha Benner, e você é a… — Ela me estende a mão e eu aperto de
imediato.
— Amelie — digo um tanto incerta. — Amelie Castillo. E eu não sou
empresária, sou estudante de jornalismo, penúltimo ano da Irving e filha do
boçal lá no palco.
— Oh! — Samantha leva as mãos até a boca ao perceber de quem
estava falando e com quem. — Me desculpe…
— Ah! Não se desculpe! Ignore o que dizem nas manchetes, eu e meu
pai estamos longe de sermos próximos e, honestamente, eu adoraria vê-la
incinerando o ego dele — Lanço-lhe um sorriso cúmplice e ela solta uma
risada forte.
— Okay, eu gostei mesmo de você!
— O que eu perdi? — A pergunta vem de um cara que abraça
Samantha de lado, passando a mão por sua cintura.
O homem é alto e está na casa dos vinte e sete anos, com certeza. Está
vestido num terno totalmente preto e consigo ver algumas tatuagens nas
partes em que sua pele branca fica descoberta. Os cabelos loiros estão
raspados bem baixinho e os olhos têm o tom de azul mais absurdo que já vi,
como se houvessem duas bolas de gude enfiadas em suas córneas.
Não é preciso muito para saber que são um casal. Pela forma com
que a postura de Samantha se derrete em seus braços e ele sorri quando a
percebe aninhando a cabeça em seu peito, sei que os dois são terrivelmente
apaixonados um pelo outro.
O anel de noivado no anelar da mulher também não deixa dúvidas, e eu
tenho certeza de que estou os encarando em adoração por seu pequeno
momento.
— Amor, esta é Amelie, ela faz jornalismo na Irving, onde fiz
administração, e é a única Castillo nesse ambiente que nós não detestamos
— ela fala, rindo, para o homem ao seu lado e ele parece corar de vergonha.
— Amelie, este é Conor Howard, meu noivo e, provavelmente, o único
bilionário decente nesse baile.
— Ninguém fica bilionário sendo uma pessoa decente, querida, mas eu
agradeço o elogio — Conor comenta com humor e aperta minha mão em um
cumprimento.
— Viu? É por isso que eu amo esse cara! — Samantha cochicha,
escondendo o rosto entre as mãos, como se o noivo não estivesse ouvindo, e
eu dou risada dos dois.
— Se vocês tivessem aparecido em todos os eventos horríveis que eu
tive que comparecer, eu certamente teria gostado mais deles — confesso
com sinceridade e eles sorriem.
Nós três embarcamos em uma conversa longa sobre eventos da alta
sociedade. Falo um pouco da minha faculdade e Samantha me conta da sua
experiência na Irving quando estudou administração empresarial lá. Eles
falam sobre suas empresas, mas o assunto em que nos estendemos mesmo é
arte. Samantha e Conor[13], além de empresários, são bailarinos, e eu achava
que não tinha mais como morrer de amores pelo casal.
Certamente o ponto alto daquele evento.
Em um determinado momento da noite, logo após o leilão da primeira
jóia — que ainda não era o maldito colar que eu trouxe —, todos os
convidados se posicionaram de pé perante o palco para ouvir o que meu pai
disse ser o seu grande anúncio. Eu confesso que estava esperando que ele
dissesse que patrocinaria algum evento ou qualquer outra coisa que,
honestamente, eu não dou a mínima.
Mas não.
Ali, diante de todas aquelas pessoas, ele inicia um discurso atípico e
completamente sentimental que me faz jurar que Tiffany está grávida. E eu
posso sentir o desespero contaminando cada célula do meu corpo a cada
palavra.
Existem coisas que eu não desejo nem para o meu pior inimigo, ser
filha de Esteban Castillo é uma delas. Ninguém merece passar por esse
inferno de manipulações e falta de afeto.
— … Tiffany Scherer é tão excelente como empresária tal qual é como
esposa, e posso lhes dizer que somos melhores juntos do que imaginava. E
os frutos disso uma hora ou outra chegariam para nós, por isso, eu gostaria
de aproveitar esta noite para homenagear e recepcionar mais um integrante
em nossa grande família e em nossa empresa que é a Dunamis
Investimentos…
Que não seja um bebê. Que não seja um bebê. Repito mentalmente
sentindo-me agoniada.
— Mavie Scherer, a sobrinha da minha esposa e a nossa mais nova
diretora de operações!
Solto um suspiro profundo quando vejo uma garota loira de mais ou
menos vinte e cinco anos subindo no palco. Ela está usando um vestido azul
marinho que combina com o da tia, minha madrasta, e eu provavelmente não
me importaria nem um pouco com esse anúncio, se não fosse o que veio em
seguida.
Assisto de camarote quando a garota caminha até o meu pai, que está
com um sorriso enorme, e eles se abraçam com um carinho que faz com que
meu coração se parta. Os olhos dele brilham ao entregar, em uma caixa de
veludo, a placa dourada que ficará em sua porta na empresa, e Mavie parece
idolatrá-lo.
— Você sabe que é como uma filha para mim, e que eu tenho muito
orgulho de você. Espero que seja feliz em seu novo cargo.
O mundo parece ter parado por alguns instantes. Tudo parece
congelado ao meu redor e algo está zunindo dentro dos meus ouvidos, creio
que seja este o som de um cérebro entrando em parafuso. Assisto
boquiaberta o desenrolar de uma das cenas mais perturbadoras que já
presenciei. Ele disse mesmo que sente orgulho dela?
Isso.
Isso me acerta em cheio e dilacera o meu coração por completo. Suas
palavras e ações são sua jogada final e meu coração declara xeque-mate, ele
venceu. Se a intenção do meu pai ao exigir que eu viesse a esse baile era que
eu fosse a ruína de múltiplas formas, preciso felicitá-lo, porque fez isso com
maestria.
Se antes meu coração já estava em frangalhos pelas inúmeras atitudes
que tive que foram totalmente contra tudo que acredito, agora, a humilhação
que sinto expandindo-se em meu corpo parece ser a cereja do bolo. Ele
sempre consegue me machucar.
Nem ao menos me dou ao trabalho de esconder as lágrimas que rolam
desenfreadas por meu rosto. Não escondo a inveja, a mágoa e muito menos a
raiva que corre por minhas veias de forma veloz e sobem pelo meu pescoço
fazendo tudo queimar.
Não escondo o quanto estou furiosa e destruída quando abro caminho
entre as pessoas, esbarrando de forma nem um pouco gentil em diversos
corpos e quando já estou no jardim, não sei ao certo se é a adrenalina agindo
em meu cérebro, mas tenho certeza de que gritei “SAIAM DA MINHA
FRENTE” para as pessoas lá dentro.
Respiro com dificuldade, tentando arduamente prender o choro,
quando o ar frio da noite me abraça, tal qual a solidão que sempre senti que
caminhava ao meu lado. Eu quero conseguir gritar, quero bater em alguma
coisa, espernear, atear fogo em tudo, qualquer coisa que faça com que a dor
desgraçada em meu peito ganhe alívio.
Qualquer coisa.
No entanto, me limito a tentar sufocar minhas lágrimas e apertar a
lateral da minha bolsa até que meus dedos doam pela força empregada.
— Pode me explicar que show foi aquele? — A voz furiosa do meu
pai me alcança e eu me viro em sua direção, sentindo a raiva queimando em
mim.
— Você não acha triste que consiga sentir coisas mais bonitas por uma
funcionária do que pela sua filha? — pergunto com sinceridade e acho que
estou gritando.
— Do que você está falando? De onde tirou isso?
— De onde tirei isso? É sério mesmo que você não percebe? —
brado, irritada.
— Isso por acaso é ciúme porque dei para a sobrinha de Tiffany um
cargo alto na empresa? Porque, se for, saiba que ela trabalhou duro para
chegar onde chegou e…
— Pelo amor de Deus! — interrompo-o com um chiado. — Você está
se escutando? Eu estou pouco me lixando para aquela garota, pouco me
lixando para quem você dá cargos em sua empresa, eu não me importo com
nada disso! Eu não quero nada disso, nunca quis!
— Amelie, desça já este tom ou eu... — ele tenta me chamar a atenção,
mas eu não permito que prossiga, não agora.
— CALE A BOCA! — grito ainda mais alto. Grito porque não me
importo que todos aqui saibam quem ele realmente é, grito porque estou
cansada de passar tanto tempo em silêncio recebendo ordens como um
filhotinho de estimação. — Eu guardei essa merda toda por muitos anos,
agora você vai me ouvir! Entendeu? Eu nunca quis, e não quero, um cargo em
sua maldita empresa, não quero me tornar a herdeira perfeita do seu império,
não quero ser como você, eu só queria que você fosse a droga do meu pai!
Ele não rebate. Pelo contrário, me olha com as íris injetadas de raiva
e provavelmente está querendo me punir por causar um escândalo em seu
baile de aparências, justo quando ele está querendo passar a imagem de
homem “família”.
— Eu queria que você, ao menos uma vez, me dissesse que se orgulha
de mim, queria que apoiasse os meus sonhos e assim, quem sabe, os muitos
quadros que já pintei para você estivessem pendurados na parede dessa sua
linda casa e não no seu porão — digo, baixo, e com a voz falha pelo choro
que se libertou. — Eu queria que, ao invés de ameaçar deixar de pagar os
meus estudos, que já é o mínimo que você faz, você se orgulhasse do fato de
que a sua filha estuda em uma das melhores universidades do mundo com
uma bolsa que é totalmente mérito dela. Eu queria que você me apoiasse, me
respeitasse, que prestasse atenção em mim pelo menos um pouquinho…
O choro que me toma é forte. Minha respiração engasga por conta dos
soluços altos e eu preciso me concentrar para conseguir continuar falando. E
dessa vez, a raiva se sobressai.
— Mas ao invés disso você simplesmente escolheu me ignorar.
Escolheu tomar um café da manhã por mês comigo, me dar uma quantia de
dinheiro e achar que isso é ser um pai. Eu tenho uma coisa para te contar:
isso não é ser a porra de um pai, e nunca vai ser! — cuspo as palavras
enquanto me aproximo dele e sinto meu corpo tremendo.
— Você não sabe o que está dizendo, não sabe o que eu já fiz para
proteger a nossa família! — ele finalmente perde o controle e grita.
— Que família? — devolvo em plenos pulmões e sinto minha garganta
ardendo. — Aquela que você abandonou quando se cansou? Aquela que
você traiu a sua mulher e fodeu com a vida dela até que ela se tornasse
dependente química? — solto a informação sobre a minha mãe antes mesmo
que consiga me segurar. Esteban não parece surpreso, e isso me deixa ainda
mais destruída. — Que família, pai? Aquela em que você fez a sua filha de
onze anos acreditar que ela era uma inútil? Ou a que você faz a sua mesma
filha, anos depois, sentir que é uma fracassada por não seguir os seus
passos? Me diga, qual a droga da família você protegeu?
Minha respiração está ofegante. Nós estamos cara a cara e eu o
enfrento de queixo erguido, porque não, eu não sinto medo dele. Eu não
tenho que sentir medo dele, eu não me pareço com ele e eu sou muito, muito
mais forte do que ele um dia ousou pensar em ser.
— Você está sendo injusta e ingrata! Eu te dei tudo! — Ele aponta o
dedo para o meu rosto, e isso me mata por dentro.
— E EU SÓ QUERIA O SEU AMOR! — falo, alto, afundando o meu
indicador em seu peito, empurrando-o um pouco para trás. — Você poderia
ter colocado o mundo aos meus pés e eu continuaria querendo apenas que
você me amasse. Eu passei anos da minha vida te dando todo amor que eu
conseguia sentir! Tudo isso só para te ouvir dizer que me amava e que sentia
orgulho de mim, da pessoa que eu era, da sua filha! Droga, você ao menos se
lembra de que eu sou a sua única filha?
Ele não me responde, mas o seu silêncio diz muito para mim.
— Antes, você queria falar de trabalho duro, e eu posso te dizer
exatamente o que é trabalhar duro. Ou você não acha que eu trabalhei duro
depois de ouvir escondida você dizer para a minha mãe que eu não
conseguiria ser a primeira da classe na feira de ciências da sétima série? Eu
odiava ciências, mas eu fiquei tão brava porque você simplesmente achou
que eu não era capaz, que eu virei noites desenvolvendo o meu projeto, e no
fim das contas, quem diria, eu ganhei! — Solto uma risada sarcástica e vejo
sua mandíbula travar.
Sinto o gosto salgado das lágrimas entrando em minha boca e luto
para não vomitar, tamanha a exaustão que dizer tudo isso está me causando.
— Sabe o que também é trabalhar duro? Conciliar faculdade, trabalho
e ainda socorrer a minha mãe em diversos hospitais porque você, seu
desgraçado, egoísta dos infernos, ferrou com a mente dela, e não contente,
está ferrando com a minha. Mas se quer saber, eu tenho conquistado coisas
pra caramba sem você, e eu sinto muito que você não possuiu o mínimo
interesse em me conhecer por todo esse tempo, porque agora eu cansei de
tentar! — Me afasto dele sem lhe virar as costas e o encaro fixamente. — Eu
cansei.
— Amelie, volte aqui agora! Isso é uma ordem! — ele grita ao
perceber o quão sério estou falando.
— Eu. Não. Obedeço. Mais. Às. Suas. Ordens!
Devolvo em alto e bom som, abrindo os braços ao lado do meu corpo.
— Não ouse chegar perto de mim ou da minha mãe novamente e não
ouse tentar atrapalhar nossas vidas, muito menos os meus estudos. Porque se
eu tiver que vê-lo de novo, Esteban Castillo, será num tribunal, e não vai ser
nada bom.
Dito isso, eu enfim lhe dou as costas, e caminho para longe, rumo à
saída da casa, com a certeza de que esvaziei completamente o meu coração e
que disse tudo que estava entalado em minha garganta por todo esse tempo.
Acredite, isso não é menos aterrorizante de forma alguma.
É nesse instante, enquanto eu me afasto de um dos maiores traumas da
minha vida, que eu entendo o que o deixa tão furioso comigo, o que faz com
que ele perca a cabeça diversas vezes quando está na minha presença.
O problema do meu pai é que a única coisa que eu realmente quero
dele, em meio a todos os presentes caros para compensar a ausência, é o seu
amor. E isso, ele jamais pensou em me oferecer.
E eu duvido muito que um dia consiga.
Esteban me rejeita justamente por perceber que eu não tenho o
mínimo interesse no empresário que ele tanto se orgulha de ser, mas eu
sempre quis, com todas as forças, ter a versão dele que ele jamais conseguiu
exercer com a mesma maestria que os negócios. Eu queria o meu pai.
Eu sou seu lembrete diário de que ele não consegue dar amor. E por
mais que você tente esconder ou sufocar, é algo intrínseco da personalidade
humana: nós nos frustramos quando percebemos que não sabemos amar.
Quando a minha ficha cai, me sento na calçada, do lado de fora da
enorme mansão, e me permito desabar sozinha na rua escura. Chorar e pôr
para fora toda a dor lancinante que atravessa meu peito e me faz sentir que
estou prestes a morrer asfixiada. O pânico toma meu corpo aos poucos e a
agonia que sinto faz minhas mãos tremerem.
Abro minha bolsa sentindo um nó se apertando na minha garganta.
Pego meu celular, desesperada para sair desse lugar, e enquanto rolo minha
lista de contatos em busca da única pessoa que pode me ajudar, rezo
internamente para que suas promessas sejam.
Para que ele também não me deixe sozinha.
“Quando você sente que simplesmente não pertence
Eu estarei lá para te dizer que você está errado
Eu sempre estarei lá em sua defesa
Tudo o que realmente importa no final é você, você e eu”
ALWAYS | James Arthur

13 de Setembro de 2021

Esther e Tia Suzy são o casal mais bonito do planeta, e eu digo isso
com a maior tranquilidade do mundo.
Estamos há algumas horas sentados no restaurante japonês favorito da
minha tia. Ela já bebeu sakês o suficiente para estar soltando gafes terríveis
do meu pai na adolescência, ao passo que eu e Esther estamos quase
passando mal de tanto rir. As duas estão sentadas lado a lado na minha frente
e a namorada da minha tia passou a noite inteira deixando carinhos e beijos
em suas bochechas, algo que, por algum motivo, derrete meu coração.
Esther Gauthier tem trinta e oito anos. É dois anos mais velha que Tia
Suzy, mas as duas partilham do mesmíssimo espírito jovem — as calças
jeans, camisetas e coturnos não me deixam mentir. Ela é formada em moda e
jornalismo, trabalha na revista com a minha tia e, ao que tudo indica, está
prestes a se tornar representante de mídias de uma grife australiana, o que
deixará o caminho livre para que elas consigam, enfim, oficializar sua
relação sem temer uma represália.
A mulher é uma mistura perfeita de Amirah Vann com Kerry
Washington, tendo uma similaridade maior com a primeira. A pele negra
clara tem algumas sardas, os olhos são bem redondos e ela usa tranças
bonitas pra cacete, que formam desenhos geométricos no topo da sua cabeça.
Além disso, a personalidade irônica e bem humorada faz com que seja
impossível estar ao lado dela sem soltar boas risadas.
— Paris é linda, Ethan, mas não se engane. Ratatouille não é apenas
um filme, os ratos estão por todo canto naquela cidade — Esther está rindo
depois de contar sobre sua experiência em terras francesas.
— Eu imagino, meu professor de francês destruiu meu encanto logo no
primeiro ano de curso — digo antes de tomar um gole de soda italiana.
— Estamos nos organizando para levar sua irmã para a Disneylândia.
E para não dizer que sou uma tia ruim que só dá viagens para um dos
sobrinhos, no próximo ano podemos levar você conosco para a Semana de
Moda. O que acha, querido? — Tia Suzy pergunta, e eu quase me engasgo
com a minha bebida.
— Semana de Moda, tipo de Paris? A Semana de Moda? Porra, é
claro que eu topo! — Dou risada, ainda um tanto embasbacado pelo convite.
— Olha o palavrão, querido! — Minha tia me dá bronca. — Enfim,
você já vai estar no seu último ano. Posso te levar como meu estagiário, vai
receber crachá de imprensa e tudo!
— Tia, isso seria fod — me interrompo quando ela me fuzila com o
olhar. — Seria supimpa! — provoco, rindo.
— Você tem o mesmo senso de humor horrível do seu pai — murmura,
revirando os olhos.
— Na verdade, essa parte ele puxou de você, Su — Esther comenta
baixinho, e eu não consigo conter a risada.
Batemos nossas mãos em um high five e minha tia bufa, virando mais
um gole do seu sakê. A conversa segue animada e eu acabo me perdendo nas
horas, até sentir meu celular vibrando em meu bolso e seu toque ecoar pelo
ambiente.
Puxo o aparelho e mal consigo esconder minha surpresa ao ver o
contato de Amelie brilhando na tela. A garota não costuma me ligar, prefere
as mensagens. Por isso, atendo de imediato.
Ela só me ligaria se fosse importante.
Quando colo o aparelho em meu ouvido, ouço um soluço estrangulado
atravessar os auto-falantes e, de uma hora para outra, meu corpo inteiro entra
em sinal de alerta.
— Coelhinha? — chamo-a, e ouço-a chorar baixo do outro lado.
— Ethan… — ela fala embolado. Sua voz está trêmula e eu não
consigo entender direito.
— Linda, preciso que respire e que me diga o que está acontecendo
para eu poder te ajudar, sim? — digo com calma, na intenção de passar a
mesma sensação.
— Eu… Eu estou na casa do meu pai, a gente brigou — ela faz uma
pequena pausa e sei que está tentando puxar ar para respirar. — D-Desculpa
atrapalhar sua noite, mas eu não tenho ninguém. Por favor, me ajuda — ela
pede, entre soluços, e eu sinto minha garganta fechar só de ouvir sua voz
daquele jeito.
— Me envia sua localização, chego aí o mais rápido que eu conseguir,
eu prometo. — Ela murmura um “okay” em resposta. — Amelie… Ele
machucou você?
— Não. Eu estou segura, só… Vem rápido? — a voz triste acerta meu
peito e eu me levanto num pulo.
— Eu chego aí já já, fica calma — asseguro, antes de desligar a
chamada e fechar os olhos, respirando fundo para organizar minha cabeça.
Esther e Tia Suzy me encaram confusas, e é só aí que eu me recordo
em que situação estou.
— Preciso ajudar uma amiga, rápido. Alguma de vocês duas pode me
emprestar um carro? — pergunto tenso.
— Nós vamos com você, querido. Quem é ela? O que aconteceu? —
Minha tia se levanta desesperada.
— Não precisa, eu vou sozinho. Não dá tempo de explicar muita coisa,
ela só tem que ir pra casa e eu preciso de um carro — digo, um tanto quanto
agoniado.
Tia Suzy abre sua bolsa e puxa de lá a chave da sua BMW e um
cartão de débito. Ela coloca os dois na minha mão e me dá um beijo na
bochecha. Esther se despede de mim e eu saio do restaurante quase
correndo. Enquanto checo as coordenadas que Amelie me enviou no celular,
duas mensagens da minha tia chegam.
Tia Suzy: A senha do cartão é a sua data de nascimento, use para
abastecer, se precisar, e se sua amiga quiser qualquer coisa, compre com
ele também.
Tia Suzy: Eu tenho muito orgulho do rapaz que você é, te amo! Me
dê notícias.

O caminho de Manhattan até Greenwich Village está


descongestionado e eu aproveito para enterrar o pé no acelerador, rezando
para que eu não tenha infringido nenhum radar. A voz entrecortada de Amelie
ao telefone fica ecoando em minha cabeça, me deixando atordoado pra
caralho enquanto dirijo. Eu com certeza devo estar no ápice de adrenalina e
nervosismo.
Nem mesmo a porra de uma final lotada contra Princeton conseguiu
me deixar tão tenso quanto ouvir os soluços da garota, que se tornou minha
melhor amiga, escaparem do telefone.
Minha melhor amiga.
Que está provavelmente chorando em uma rua fria e se sentindo
sozinha.
— Caralho. Cacete. Merda — bufo, puto da vida, assim que o sinal
mais a frente abre e os carros demoram para se movimentar.
Enquanto o carro desliza pelas avenidas, mesmo sem saber o que
aconteceu, amaldiçoo cada maldita célula desgraçada do pai de Amelie,
odiando-o por deixá-la dessa forma. Minha mente maldosa me pune, me
lembrando da nossa última briga, e sinto vontade de explodir por um dia ter
cogitado que sua vida familiar era “fácil” simplesmente porque vinha de uma
família rica.
Certamente uma boa família não te faz chorar de soluçar.
Assim que dobro a esquina escura do bairro de luxo, avisto Amelie a
poucos metros sentada na calçada, em frente a uma casa majestosa com
muros de hastes de aço. A única coisa que a destaca na quase penumbra é a
luz fraca de um poste. Ela está com a cabeça baixa e com o rosto enterrado
nas mãos, e não preciso chegar perto para saber que está chorando; seu
corpo treme de forma evidente.
Meu coração se quebra nesse exato instante.
Estaciono o carro do lado oposto ao que ela está. Faço isso da forma
mais desleixada possível, pouco me importando com qualquer coisa senão a
garota chorando a poucos metros de mim. Pulo para fora do veículo e, assim
que me vê, Amelie se levanta e corre em minha direção.
No momento em que nossos corpos colidem, envolvo-a em meus
braços, apertando-a com força contra o meu peito, e ela chora copiosamente
agarrada em meu tronco. Abraço seu corpo de forma firme, me curvando
para oferecê-la a sensação protetora de um casulo.
Quando meu nariz se aproxima de sua cabeça, inspiro profundamente o
ar, sentindo seu cheiro doce e acalmando o nervosismo em meu peito. Meus
dedos se afundam em seus cabelos e eu acaricio-os, tentando tranquilizá-la.
— Ei, linda, calma… Sou eu, okay? Eu estou aqui. Vai ficar tudo bem,
eu vou te levar embora daqui — digo baixinho com o queixo apoiado no
topo da sua cabeça.
— Eu odeio tanto ele, Ethan, tanto! — seu grito sai abafado, mas a dor
escorre de suas palavras de forma que preciso me lembrar de ser firme para
apoiá-la.
Amelie agarra o tecido da minha camisa entre os dedos, puxando-me
para si, como se a mínima ideia de me ter longe fosse desesperadora para
ela.
— Eu sei, linda, eu sei. Mas a gente vai embora daqui agora e eu vou
cuidar de você, pode ser assim? — Sinto ela assentindo e, ainda sem soltá-
la, me afasto um pouco para ver seu rosto.
Amelie apoia o queixo em meu peito e me olha de baixo. Os olhos
inundados de lágrimas estão com um brilho magoado, refletindo todo o caos
que sei que está cercando sua mente. Ela está desesperada.
— Primeiro, precisa se acalmar, tudo bem? Acha que consegue
respirar um pouquinho mais devagar? — Ela assente, tentando puxar o ar,
mas um soluço a corta.
Enquanto um dos meus braços a mantém firme perto do meu corpo,
levo minha mão livre para o seu rosto, afastando as lágrimas dos seus olhos
e fazendo um carinho em sua têmpora.
— Vamos tentar de novo, linda. Puxa o ar sentindo o cheirinho do
ambiente e guarda ele um pouquinho aí dentro. Consegue fazer isso? —
Amelie faz que “sim” com a cabeça e, em seguida, enche os pulmões de ar.
— Um… Dois… Três… Isso, agora solta bem devagarzinho.
Ela me obedece, e faz o exercício repetidamente por quase um minuto
completo.
— Bom trabalho, Coelhinha — falo, sorrindo enquanto acaricio seu
rosto com cuidado. Amelie fecha os olhos, parecendo se acalmar, e inclina
seu rosto na direção do meu carinho. Ficamos assim mais um tempo.
Permaneço atento ao redor e quando percebo que ela está melhor, volto a
falar. — Seguinte, vou levar você até o carro e nós vamos sair daqui, eu
garanto que você estará segura. Tá bem?
— Tudo bem — ela anui, e caminhamos juntos até o outro lado da rua.
O veículo é um modelo SUV alto da BMW, por isso, ajudo a garota a
subir e se acomodar no banco, correndo logo depois para me posicionar
atrás do volante. Passo o cinto de segurança pelo seu corpo e vasculho o
porta-luvas da minha tia, tirando de lá um pacote de lenços umedecidos que
entrego para a garota.
Quando enfim paro para analisá-la sem o nervosismo me corroendo,
seu rosto está uma verdadeira bagunça. Os olhos estão inchados pelo choro e
borrados de maquiagem, deixando ela parecendo um ursinho panda fofo —
um pandinha fofo e triste, diga-se de passagem — , e o que um dia foi seu
batom já não passa de borrados próximos aos seus lábios.
— Vai ficar tudo bem, eu prometo.
É a última coisa que eu digo antes de dar a partida e dirigir para bem
longe. Deixo minha mão descansando sobre sua perna por todo o trajeto. Li
em algum lugar que o contato físico pode ajudar quando estamos lidando
com alguém que está nervoso. Faço isso para mostrá-la que estou com ela e
que ela pode se sentir segura.
Amelie passa um bom tempo em silêncio e encolhida no banco como
uma criança assustada. Seus olhos não desviam do meu rosto nem por um
segundo e eu tento não deixar transparecer o quanto estou preocupado. Me
mantendo firme para que ela se acalme.
Sinto, no entanto, quando ela entrelaça seu dedo mínimo ao meu, que
está sobre sua coxa. O gesto repentino chama a minha atenção e olho-a de
relance, recebendo um meio sorriso recheado de dor que machuca meu
coração. Movo meu polegar sobre sua pele, deixando um carinho em sua
perna, e engulo seco, me questionando se vou soar invasivo caso pergunte o
que aconteceu.
Acho melhor não.
— Quer ir para o alojamento? — pergunto, mantendo os olhos atentos
na estrada.
— Não… — ouço-a dizer baixinho.
— Quer ficar sozinha ou prefere que eu te faça companhia? Posso ligar
para Lily, se você preferir. Ela já deve ter chegado da faculdade.
Tagarelo nervoso, porque porra, não sei como reagir ao fato de que ela
está me confiando mais um momento de vulnerabilidade. E embora minha
vontade seja ficar ao seu lado até que esteja bem, eu não quero incomodá-la.
— S-Se não se importar… Você é a companhia que eu quero — ela
sussurra, como se contasse um segredo. Assinto, tentando conter a expressão
de satisfação.
Desvio os olhos em sua direção quando paramos no sinal e observo-a
com atenção e cautela. Amelie já limpou os borrões de maquiagem em seu
rosto, seus olhos ainda estão inchados e seu nariz está avermelhado. Estico a
mão que estava sobre o volante e uso-a para passar um cacho para trás de
sua orelha. A garota examina cada parte do meu gesto completamente atenta.
— Não vai ser incômodo nenhum cuidar de você, Coelhinha — afirmo
com um sorriso gentil, e seus olhos se enchem de água novamente.
— Obrigada por não me deixar sozinha.
— Eu te disse que podia contar comigo, não disse? Melhores amigos
servem para isso — solto a última parte sem pensar muito.
— Melhores amigos servem para isso — ela concorda, e eu não
consigo deixar de sorrir.

Fazem pouco mais de cinco minutos que estamos em completo


silêncio com o carro parado e completamente apagado. Estamos no Hudson
River Park, uma área às margens do famoso Rio Hudson. O céu está
carregado de estrelas, e a única coisa que nos ilumina dentro do carro, além
das luzes da cidade, é o clarão do luar que entra pelo teto solar.
Amelie não queria voltar para o alojamento e, talvez, levá-la para o
meu apartamento não fosse exatamente deixá-la tranquila. Por isso, resolvi
trazê-la para o meu segundo lugar favorito para pensar — o primeiro é ao
lado da minha mãe, mas acho que seria meio mórbido e talvez ela me ache
pirado — na esperança de que ela tenha seu próprio tempo para se acalmar.
— Quando eu tinha oito anos, nós viajamos para Paris — Amelie diz,
baixo, cortando o silêncio. Me viro de lado no banco para olhar em seus
olhos. — Minha mãe é pianista clássica, mas deixou a profissão em segundo
plano depois que nasci. Ela foi convidada por um grande conservatório para
dar um intensivo de três dias de aulas de piano para os alunos. Foi um
momento e tanto para ela. Imagine, uma mulher negra afro-americana
lecionando em um grande conservatório de música na Europa. Ela estava em
êxtase.
O sorriso em seus lábios tem resquícios de dor e seus olhos estão
marejados novamente. Quero perguntar por que está me contando isso, mas
apenas deixo que ela prossiga.
— Eu e meu pai fomos acompanhá-la, afinal, a conquista dela era
uma conquista da família toda. Durante aqueles três dias na capital francesa,
enquanto minha mãe dava aulas, meu pai me levou para conhecer a cidade. E
eu me lembro até hoje, mesmo sendo só uma criança na época, de ficar
maravilhada com as pinturas que vi no Louvre. Tanto que se você me pedir
para descrever o que senti, eu não saberia responder. Foi forte, intenso, e foi
assustador sentir meu peito transbordar tanto sendo tão nova.
— Eu nem sei o que dizer — falo timidamente, porque sua relação
com a arte é algo que sempre me deixa um tanto impressionado.
— Naquele dia, eu chorei dentro do museu. Eu não conseguia
verbalizar o que sentia, então só repetia para o meu pai que aquele lugar era
muito bonito.
— E o que ele fez? — pergunto já temendo sua resposta.
— Ele me abraçou — a garota sorri e, enfim, suas lágrimas voltam a
escorrer por suas bochechas. — Meu pai se ajoelhou, no meio do museu do
Louvre, me abraçou muito forte e somente me acalentou, esperando passar.
Como um pai deveria fazer. Pode parecer aleatório eu estar contando isso
pra você, mas acontece que naquela viagem eu ainda idolatrava os meus
pais, e certamente aconteceram outros momentos bons entre nós depois
disso, mas esse é o único que eu me lembro de verdade. Eu recebi tanto, mas
tanto amor deles naqueles dias. Foi uma viagem muito boa.
Amelie faz uma pausa e fecha os olhos, respirando fundo. O silêncio
recai sobre nós por um instante, e eu rezo para que ela não esteja escutando
meu coração se quebrando em pedacinhos.
— Oito anos. É a idade que eu tinha na minha última memória de afeto
com os meus pais. Não consigo me lembrar de mais nada depois disso. A
psicóloga que tive na adolescência me disse que é normal, que eu me lembro
da viagem por ter sido um evento específico, e que talvez não me lembre do
resto porque eu simplesmente não sabia que determinado gesto de amor seria
o último, sabe? Mas, ainda assim, não consigo negar que dói.
— Eu sinto muito — digo, mas minha voz sai tão falhada que não tenho
certeza de que ela escutou até sentir sua mão pousar na minha, que ainda está
sobre sua perna.
— Dói tanto, Ethan, tanto. É como se eu tivesse uma adaga atravessada
no peito e eles só girassem, girassem, e girassem. Sempre um pouquinho
mais, sempre para fazer sangrar. — Ela franze as sobrancelhas e engole
dolorosamente antes de limpar a lágrima grossa que escorre em seu rosto. —
Eu sinto que hoje meu pai olha para mim e não reconhece mais o papel que
tenho na vida dele, sabe? O dinheiro, a ganância, tudo isso foi envenenando
ele. Ele ameaçou deixar de pagar os meus estudos caso eu não aparecesse
nesse baile maldito hoje.
As lágrimas acabam por perder o controle ao escaparem dos seus
olhos e eu preciso de muito esforço para não invadir seu espaço pessoal e
secá-las eu mesmo.
— Ele me coagiu. Enviou um colar de milhares de dólares, parte do
acervo do leilão do baile, para o meu alojamento para mexer com o meu
psicológico. Fez tudo isso para me deixar com medo e encurralada. Meu
próprio pai! Quem diabos é tão doente ao ponto de fazer isso com a própria
filha?
Deixo que ela chore e extravase tudo que está guardado em seu peito
da forma que desejar. Aperto sua mão com mais firmeza, mostrando-a que
ela não está sozinha.
— Não consigo imaginar como você se sentiu, mas quero que saiba
que estou aqui com você, mesmo — reafirmo baixo.
Amelie assente e encara nossas mãos por longos segundos.
— Eu me agarro nessa memória porque, pra mim, ela é a prova de que
um dia eu recebi amor, sabe?
“Depois disso, tudo que eu me lembro se resume à dor. Quando fiz dez
anos, meu pai já passava mais tempo no trabalho do que em casa. Aos doze
começaram as brigas e eu tinha que ouvir minha mãe se humilhar por
migalhas de afeto. Foi nessa época que meu pai pareceu perder a paciência
pra mim, começou a detestar tudo que me fazia feliz. Aos quinze, foi a vez da
minha mãe passar a me ignorar. Ela me deixou de lado para tentar salvar seu
casamento e no fim, acho que acabou perdendo os dois.”
A cada fala, a dor transborda mais em sua voz, e mais triste e culpado
eu vou me sentindo. Puta merda, nem de longe ela merecia isso.
— Quando fiz dezesseis anos, meu pai já não morava mais conosco e
minha mãe… Bom, eu já não a conhecia mais. Meu parabéns foi sentada no
chão do meu quarto com a governanta da casa e o motorista da família.
Madelyn e Alfred se juntaram para me dar um bracelete que tenho guardado
até hoje, e foi deles que recebi os abraços carinhosos de aniversário.
Ela fala com a voz sôfrega e o meio sorriso em seus lábios parece
anteceder algo que vai me matar por dentro.
— Eu sei o que você pensou sobre mim quando entrou naquela casa
enorme, sei o que pensou ao longo desses anos em que me via pela faculdade
desfilando com o sobrenome que carrego. Mas acredite quando digo que a
única vez em que agradeço por ele, é porque caso eu não tivesse tudo que
tenho, eu talvez teria passado aquele aniversário sozinha.
Suas íris castanhas escuras estão brilhando pelas lágrimas quando ela
me encara. A dor em seus olhos é tão profunda e intensa que à essa altura
estou fazendo um esforço gigante pra não chorar também.
Amelie Castillo, a caixinha de surpresas mais intrigante e
fodidamente forte que já conheci.
— Aos dezessete os dias eram um inferno, foi quando minha mãe
começou a beber. Aos dezoito eu contava os dias para entrar na faculdade e
poder sair de casa, especialmente depois de Virgínia achar que seria uma
boa ideia misturar álcool e direção comigo dentro do carro. Sofremos um
acidente que foi a virada de chave. Por muito tempo eu achei que a odiava
por ter posto minha vida em risco, mas a verdade é que sinto muito mais
mágoa do que raiva — ela dispara informações de forma acelerada,
metralhando meu cérebro, e eu tento assimilar tudo. Sem impedir seu
raciocínio, porque não é o momento. — Dos meus vinte anos em diante, não
tem um mês sequer que eu não tenha ido até um hospital ou um bar buscar
minha mãe quase destruída de tão bêbada. Some isso a um pai narcisista e
manipulador que usa os meus estudos como moeda de chantagem para ceder
aos seus caprichos, temos uma combinação e tanto, não acha?
Seu tom divertido não é nada fiel à expressão dolorida em seu rosto.
Novamente permanecemos em silêncio e eu passo longos segundos
tendo seu rosto sob o meu escrutínio. Observo a mudança em sua face até
que ela se mantenha séria, me encarando em expectativa como se precisasse
que eu dissesse algo. E porra, não é uma tarefa fácil, não depois de ouvir
tudo que eu ouvi.
— Me perdoa — peço com sinceridade, pouco me importando que ela
já tenha me proibido de fazer isso. — Me perdoa por já ter dito as coisas
que disse pra você, por ter tratado você como já tratei, mesmo. Se você
soubesse o quanto eu me arrependo, o quanto eu queria que você não tivesse
passado por nada disso, eu…
— Shhh! Tá tudo bem — ela me interrompe, tapando minha boca com
a palma da mão. — Não estou te contando nada disso na intenção de te fazer
sentir pena de mim ou mal consigo mesmo. Estou te contando porque essa é a
minha vida, é quem eu sou, e eu confio em você para conhecer até mesmo as
partes que eu odeio muito — admite, e sua mão escorrega para minha
bochecha, permanecendo lá num carinho quase imperceptível.
— Isso não é quem você é, linda — digo com convicção. — Você
pode ter passado por isso, mas de forma alguma isso define a pessoa que
você se tornou e está se tornando. Não mesmo.
— Como não? — pergunta baixinho, me encarando num misto de
curiosidade e confusão.
— Porque tudo que você me contou é terrível, extremamente doloroso
e, caralho, se eu pudesse te enfiar numa bolha de arco-íris, telas, tintas e
tulipas, eu faria. Mas já que não posso, preste atenção no que vou te dizer, e
lembre-se sempre disso: você não é terrível, você não é dor e,
especialmente, você não é ruim. Pelo contrário, eu te acho extraordinária —
falo num tom firme, mas mantendo um largo sorriso no rosto. — Você é
extraordinária, Amelie Castillo, e eu te admiro pra caralho, não só porque
você é a minha melhor amiga, mas porque você é uma pessoa foda que
merece o melhor. Sempre.
— Ethan, eu… — ela começa, mas perde a fala e se limita a me
encarar como se eu tivesse dito algo grandioso.
É o básico sobre ela, e me deixa triste que a própria não perceba.
— Você é inteligente, perspicaz, engraçada mesmo sem querer,
divertida, além de ser talentosa pra cacete em absolutamente qualquer coisa
que você faz. Se os seus pais não perceberam nada disso, não é você quem
tem que sentir muito, são eles. Perderam a oportunidade de conviver com um
ser humano incrível, e porra, você não tem ideia de como me sinto um puta
de um sortudo por não cometer esse mesmo erro — digo com toda a
sinceridade que tenho, e ela desvia o olhar para baixo parecendo
envergonhada.
— Obrigada.
— Não precisa agradecer, isso é o que você é. É o que você fez com o
monte de merda que teve que enfrentar, se transformou em uma pessoa
extraordinária. E eu sinto muito que tenha precisado passar por tanta coisa,
que teve a necessidade de transformar tanto caos em luz. Mas se quer saber,
você conseguiu.
O sorriso iluminado em seu rosto é impagável, e no instante em que
seu olhar volta a se encontrar com o meu, não sei por qual motivo, mas
confesso que fico um tanto hipnotizado com a beleza da garota, ainda que ela
não esteja num dos seus melhores dias.
Estou confuso pra cacete, mas tenho certeza de que gosto demais de
vê-la sorrindo, principalmente quando é pra mim, porque isso me faz sentir
que não existe uma única pessoa no mundo vendo algo tão bonito quanto o
que eu vejo. Tenho pensado em cometer uma loucura desde aquele dia que
me levou ao jogo, não vou mentir.
Não sei se são os cachos caindo ao lado do seu rosto, se é o sorriso
tão brilhante quanto as estrelas que pontilham o céu ou se são seus olhos tão
escuros e tão dolorosamente lindos, mas algo na forma com que ela
transborda doçura no simples ato de acariciar meu rosto faz com que seja
inaceitável estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe.
Eu quero muito beijar essa garota.
Amelie parece ler minha mente através dos meus olhos, porque suas
orbes escorregam por meu rosto e se fixam em meus lábios. Sinto uma ponta
de nervosismo e, de repente, a temperatura dentro do carro parece aquecer,
ou talvez seja o meu corpo que está em chamas. Arrasto minha língua sobre
meu lábio inferior, umedecendo-o num movimento inocente que parece
mexer com a garota.
O carinho que Amelie faz em minha bochecha cessa, e agora ela está
segurando meu rosto sem parecer preocupada com o que isso significa. Seu
olhar se alterna entre minha boca e os meus olhos, e eu me inclino em sua
direção devagar, dando tempo para que ela recue, caso eu tenha entendido
errado o que está acontecendo aqui.
Nossos narizes se tocam, ponta com ponta, num carinho que faz minha
mente dar um giro, e o ar parece escapar dos meus pulmões de forma
violenta. Seus dedos escorregam para a minha nuca e a minha mão sobe até a
sua cintura, estou tão perto, mas tão perto...
Até que, como um balde de água fria vindo direto do Alasca, no
instante em que meus lábios estão a milímetros dos seus, o toque do meu
celular preenche o ambiente e interrompe nosso momento. Amelie afasta a
mão de mim, atordoada, e eu preciso balançar a cabeça para recobrar meus
sentidos.
— Puta que pariu, não é possível — resmungo antes de pegar o
aparelho no console e atendê-lo, tentando controlar meu tom de voz. — Alô?
— Oooooooi, cara! Onde você tá? — a voz bem humorada do outro
lado da linha me faz soltar centenas de palavrões mentalmente.
Puta merda, Charles Brooks.
— Espero que tenha um motivo excelente para ter me ligado.
— Ihhh, interrompi alguma coisa? Diga “sim”, caso seja algo
importante, e diga “sim pra caralho” caso seja uma foda — ele fala, rindo, e
minha vontade é lhe dar um soco. Amo Brooks, mas porra. — E não mente
pra mim, eu sei quando você mente.
— Vai se foder, cara — rosno. Charles jogou verde para colher
maduro, eu não sou sonso.
— Em primeiro lugar, você já foi mais carinhoso comigo, em segundo
lugar…
— Tá bom, tá bom, o que você quer? — interrompo-o já impaciente.
— Ok, se liga, eu e o parisiense de meia tigela… — Ouço Elói
gritando “eu sou de Cannes, seu filho da puta” ao fundo. — Ah, que seja, e
eu sou da Califórnia! Enfim, capitão, tá rolando uma festa na fraternidade
das Vixens, tô indo com Elói, a galera do time também vai. Se você e a sua
companhia estiverem de bobeira, encontrem com a gente lá.
— Hm, foi mal, acho que vai ter que ficar pra próxima… — Sinto uma
cutucada em meu braço. Olho para Amelie, e ela está com a testa franzida e
sibilando “o quê?”. — Festa nas Vixens com o time, Brooks e Elói estão nos
chamando — cochicho para ela.
Amelie ergue o polegar para mim e balança a cabeça como quem
pede para que eu aceite. Por isso, mesmo confuso, eu digo:
— Mudança de planos, cara, a gente encontra vocês lá. Tô levando a
Amelie. — Meu amigo solta uma risada alta que me arranca um resmungo.
— Eu sabia! — Reviro os olhos porque já sei que ele está pensando
besteira. — Ah, porra, espera, eu não interrompi um beijo não, né? Harris,
pelo amor de Deus, eu tô apostando uma grana alta com o francesinho,
retorne de onde parou, imediatamente!
— Cala essa boca. Vejo vocês em dez minutos — digo, sério, e
Charles se despede. Desligo a chamada encarando a garota ao meu lado sem
entender ao certo o que está acontecendo. — Deixa eu ver se entendi direito,
acabou mesmo de aceitar ir para uma festa de fraternidade com os caras do
basquete? Achei que ia preferir algo mais tranquilo, tem certeza de que tá
bem pra ir?
Amelie suspira e revira os olhos como se eu fosse um chato, então
abre sua bolsa sacando de lá uma embalagem que julgo ser um batom.
— Não vou passar a noite no meu quarto me lamentando, fiz isso por
mais de dez anos. É como você disse, a culpa não é minha, então eu não vou
mais agir como se fosse — ela faz uma pausa para encarar seu reflexo no
retrovisor e passar o bastão vermelho sobre os lábios. — Nós vamos para
essa festa, vamos nos divertir e eu vou me permitir curtir essa noite como
uma universitária normal. E é isso.
Ela me olha como se dissesse algo óbvio e é aí que percebo como,
mesmo sendo bem parecidos, somos muito diferentes.
Eu provavelmente lidaria com a situação me trancando no meu quarto
por uns bons dias. Enquanto isso, Amelie simplesmente passa um batom
vermelho, limpa o choro e dá a volta por cima. Fácil assim.
— Seu desejo é uma ordem, linda. Mas que fique claro, você é
estranha e sua maquiagem dos olhos ainda tá um pouco borrada — implico,
rindo, antes de ligar o carro para sair da vaga.
— Na verdade, eu sou extraordinária e estou gostosa. — Olho pra ela
com uma careta, me segurando para não rir da sua explosão de autoestima.
— Palavras suas, querido.
— Vai ficar se achando pra sempre por isso, não vai? — bufo,
fingindo estar bravo.
— Você sabe que sim.
Que seja. É tudo verdade mesmo.
“Estou tão afim de você
Que eu mal posso respirar
E tudo que eu quero fazer
É me jogar com tudo ”
INTO YOU | Ariana Grande

13 de Setembro de 2021

Ele ia me beijar. E eu ia beijá-lo de volta.


Ai, meu santo Deus! Eu ia mesmo beijar Ethan Harris.
Eu devo ter enlouquecido de vez.
De soslaio, encaro o garoto sentado ao meu lado. Seus olhos estão
atentos na estrada e as mãos grandes estão firmes no volante. Ethan está
usando uma camisa social preta, as mangas estão dobradas na altura do
cotovelo, e uma calça jeans no mesmo tom, que conta com alguns rasgos no
joelho.
É ridículo que a simples visão dele concentrado na estrada esteja
fazendo meu estômago se revirar. É ridículo que a mera sensação de ter seus
lábios próximos dos meus esteja me deixando nervosa e, droga, é ridículo
demais que eu esteja desejando sua mão de volta em minha perna.
Ugh! Maldito seja Ethan Harris, seu olhar compreensivo, suas palavras
acolhedoras, a porra desses cabelos desgrenhados e sua boca extremamente
sexy.
Quando você odeia alguém, ignorar a beleza externa é bem fácil, mas
eu não odeio mais Ethan. Gosto de sua companhia e gosto da pessoa que
tenho descoberto que ele é.
E acha ele gostoso, uma voz maldosa sopra em minha cabeça.
Droga, estou perdida.
Saio da confusão de pensamentos que eu mesma criei quando noto que
o carro não está mais em movimento. Olho ao redor e percebo que já
estamos nas proximidades do campus. A casa enorme de paredes claras está
cheia de universitários transitando de um lado para o outro, bebendo,
fumando e se pegando. Nada de novo no universo das festas de fraternidade.
Vejo quando Ethan desce do carro e dá a volta, com uma corridinha
engraçada, para abrir a porta para mim. Pulo para fora do veículo com
cuidado, por conta dos sapatos de salto, e ajeito o tecido do meu vestido
com as mãos.
Outra coisa que não calculei: estou num traje de gala, prestes a entrar
numa festa da faculdade.
— Vão me achar ridícula com essa roupa — comento enquanto arrumo
meus cachos, encarando meu reflexo pelo vidro do carro.
— Acredite, vão te achar muitas coisas, mas “ridícula” está bem pro
final da lista — Ethan fala com um sorrisinho maroto nos lábios. Seus olhos
me examinam da cabeça aos pés de uma forma que me faz engolir seco. —
Vamos? Os caras estão perto da mesa de beerpong.
Eu assinto e caminhamos lado a lado em direção a casa. A bandeira
das Vixens está hasteada na porta. Nela há uma raposa vermelha mostrando
seus dentes afiados e vestindo o casaco da faculdade.
Assim que entramos, sou engolida pela atmosfera festiva que varre
para longe os últimos resquícios de incômodo causados pela briga que tive
com Esteban. Honestamente, essa é a última coisa da qual quero me lembrar.
Portanto, fecho um compromisso comigo mesma de aproveitar ao máximo a
noite de hoje, sem ficar pensando demais.
Quando estamos nos aproximando do local onde Ethan disse que o
time estaria, já consigo ver a meia dúzia de caras extremamente altos rindo e
conversando descontraídos. Quando seus olhos caem em Ethan, ao meu lado,
eles parecem sorrir ainda mais e a recepção é calorosa. Todos simplesmente
param o que estão fazendo para cumprimentá-lo.
É quando percebo que os boatos nunca mentiram. Ethan é um capitão
excelente, o time simplesmente o adora.
Recebo os abraços apertados de Elói Pierre e Charles Brooks. Eles
me agradecem por ter “dobrado” seu capitão para trazê-lo à festa, e percebo
que Brooks está me encarando como se soubesse todos os meus segredos, o
que é estranho e engraçado ao mesmo tempo.
Ethan me acompanha para cumprimentar restante do time, que
comprova minha teoria de que caras altos e de aparência intimidadora, na
verdade, são todos bravos de fachada, porque sou tratada com um carinho e
gentileza fora de série.
— Vodca com suco de cranberry ou cerveja? — um deles me
pergunta, segurando um copo vermelho em uma mão e uma garrafa na outra.
O garoto é alto, como Ethan, está vestido com uma camiseta preta
larga, calça cargo e um Vans daqueles modelos old school, além de um boné
panel na cabeça, cobrindo os fios grossos e pretos. Reparo que ele tem
algumas tatuagens pequenas cobrindo a pele clara, e quando subo o olhar
novamente para o seu rosto, vejo que ele tem traços de ascendência leste-
asiática e os olhos angulados me escaneiam esperando uma resposta.
Eu encaro as opções, ponderando, e embora eu goste mais de cerveja,
estou tentada a beber algo mais forte hoje. Um copo só.
— Vodca, obrigada. Você é, provavelmente, um anjo na minha noite —
digo, rindo antes de pegar o copo da sua mão. — Não estou flertando com
você, se isso por acaso passar na sua mente.
Meu tom é de brincadeira, e o garoto solta uma risada gostosa que me
obriga a acompanhá-lo.
— Primeiro, meu nome é Cory Covey, e eu definitivamente não vim
aqui te encher o saco, você parece ter tido uma noite e tanto. Não quero
aborrecer.
— O que te garante isso? — pergunto desconfiada. Será que ainda
estou com muita cara de choro?
— Convenhamos, está vestindo um longo de grife numa festa de
fraternidade. Ou você teve uma noite de merda e veio parar aqui, ou você
não é muito boa com dresscode.
Finjo estar ofendida, mas nós dois apenas damos risada. O que posso
dizer? A percepção do garoto é boa.
— E por que está aqui conversando com uma desconhecida que teve
uma noite de merda e não está tocando o terror nessa festa como um bom
atleta, Cory Covey?
Ele dá risada e se aproxima de mim como se fosse contar um segredo.
— Sou calouro no time. Seu amigo é o meu capitão e ele vive
querendo chutar a minha bunda, então estou te agradando pra tentar ganhar
uns pontinhos com ele. É o que dizem por aí… Garota feliz, cara feliz.
— Isso geralmente se aplica para casais — retruco rindo.
— Eu sei, mas aparentemente o capitão não se importa muito com
outras garotas além de você e da irmã do Mansen. Preciso jogar com as
armas que tenho.
— Não sei se está certo, mas se significa que vou ganhar alguém para
me trazer bebida, eu aceito.
— Acredite em mim, gata, eu nunca erro — diz firme, e se não tivesse
me tratado tão bem até agora, diria que soou um pouco prepotente.
— Gata? — Ergo a sobrancelha recriminando-o.
— Desculpa, força do hábito. Delete isso da sua mente e não conte
para Ethan, por favor — ele pede, unindo as mãos como se estivesse
implorando.
Solto uma gargalhada alta porque:
1- Adorei ele.
2- Esse garoto é ingênuo demais para achar que vai ganhar pontos com
Ethan me agradando.
— Seu problema se resolveria pagando uma rodada de cerveja e sushi
pra ele, sério — falo, rindo. — São as coisas favoritas dele.
— Ugh, não sei como ele gosta daquele troço. Os sushis que vocês
comem aqui são terríveis — fala, fazendo cara de nojo. — Sério, os da
minha mãe são muito melhores.
Embalamos em uma conversa. Cory me explica que é filho de mãe
japonesa e pai sul-coreano, ambos imigrantes que se conheceram num show
da Tina Turner e ficaram extremamente apaixonados. O garoto nasceu em
Nova Iorque e tem uma irmã que também estuda na Irving, ela é um ano mais
velha.
Enquanto conversamos, Ethan dá algumas olhadas em nossa direção,
sempre me perguntando de longe se estou bem e recebendo meu aceno de
volta. Em um dado momento da festa, ele me chama para formarmos uma
dupla no beerpong contra Elói e Charles, o que acaba fazendo com que o
restante dos garotos escolha o nosso lado para torcer.
Meses atrás, se me dissessem que eu estaria me divertindo em uma
festa com os caras do basquete eu teria dado boas risadas. Hoje, percebo
que esse é um lugar que eu pretendo estar muitas vezes ainda.
“Minhas emoções estão à mostra,
elas estão me deixando louca
Neste momento, eu não tenho vergonha
Gritando a plenos pulmões por você
Não tenho medo de enfrentar isso
Eu preciso de você mais do que queria ”
SHAMELESS | Camila Cabello

13 de Setembro de 2021

Fico parado ao lado da mesa envolvendo suas pernas, por segurança,


enquanto uma Amelie pra lá de animada dança, rindo e tentando extravasar
tudo o que sente.
Assisto enquanto ela, usando seu vestido preto de gala, e Cory Covey
dançam juntos de um jeito desengonçado sobre o móvel de madeira que fica
em um canto da sala das Vixens. Meu semblante dói de tanto sorrir porque
sinto que cumpri a minha missão de animá-la depois de uma noite terrível.
Acho que, no fim, é isso que se espera de um amigo.
Preciso confessar, é muito bom vê-la desse jeito, porque só eu sei
como doeu vê-la chorando desesperada no portão daquela casa. Como
machucou olhar para ela e ver em seus olhos uma menininha perdida e triste
enquanto ela me narrava as situações fodidas que viveu ao longo de sua
infância e adolescência.
Ainda me espanta que ela tenha confiado em mim em um momento de
fragilidade tão grande, porque foram raras as vezes em que se permitiu tomar
esta posição perante a mim. Amelie é uma garota dura na queda, mas que
também tem seus momentos, como qualquer pessoa. Me conforta saber que
nossa amizade vem progredindo ao ponto dela se sentir segura em dividi-los
comigo.
Sou puxado bruscamente para fora dos meus devaneios porque suas
mãos pequenas pousam em meus ombros, interrompendo meu raciocínio.
Olho para cima e encontro seu par de olhos castanhos me encarando junto de
um sorriso divertido que rasga seu rosto.
— Quero descer!
Tenho poucos segundos para me preparar antes que seus braços
escorreguem, envolvam meu pescoço e seu corpo venha de encontro ao meu.
Solto uma risada baixa na altura de seu ouvido, segurando-a firme pela
cintura e a colocando de pé. Sinto ela envolver meu pescoço de maneira
mais consistente, mesmo já estando no chão. Afasto a cabeça para encará-la
de frente e o que encontro me faz não querer soltar sua cintura sob
circunstância alguma.
Simplesmente não consigo.
Ela não está bêbada. Um copo de vodca com suco fora o suficiente
para que se soltasse. Mas algo na forma com que está agindo simplesmente
está me colocando em uma corda bamba, porque se a culpa de seu
comportamento mais “solto” não é o álcool, isso significa que nós dois
estamos afim da mesma coisa.
E isso seria loucura.
Transfiro meu foco inteiramente para ela. Os olhos escuros de Amelie
brilham de um jeito inexplicável, se considerarmos que estamos em uma sala
escura e lotada.
Mesmo com a ausência de luz, eu vejo perfeitamente suas íris
iluminadas. As pupilas estão levemente dilatadas e as bochechas coradas
por conta da pouca dose de álcool misturada com a sua agitação. Seus
cabelos estão desalinhados, os cachos bagunçados estão trazendo mais
volume do que o normal.
A maquiagem restante dos olhos derreteu, e ainda que ela tenha tentado
consertar no carro, agora parece que está borrada e seus lábios desenhados
estão avermelhados pelo resquício de batom. É um conjunto que parece, no
mínimo, catastrófico, mas não é.
Puxo-a pelo pulso, com cuidado, levando-a em direção à um corredor
da casa mais afastado do pessoal do time e de todo o falatório da festa.
Paramos um de frente para o outro, e ela volta a enlaçar meu pescoço com
seus braços.
E puta que pariu, ela está bonita, muito bonita.
E também está perto demais.
— Obrigada, mais uma vez, por ter ficado comigo. Eu estou bem
melhor — diz, sorrindo. Sua voz divide minha atenção com os arrepios que
se espalham por minha nuca cada vez que Amelie a arranha com as unhas.
Assinto, amigável, tentando esconder o quão transtornado estou, e
afundo meus dedos em seu quadril para lhe firmar junto a mim.
— Sempre à disposição, Coelhinha — respondo com um meio sorriso.
Amelie espalma uma mão contra o meu peito e balança a cabeça de
um lado para o outro em negação.
— Desgraçado! Você não pode fazer isso perto de mim, okay? — Seu
tom de voz é falsamente hostil e ela está se segurando para não gargalhar.
— Fazer o quê?
— Esse sorrisinho aí — explica com um meneio de cabeça. — É
sério, Harris, pra isso aqui funcionar, você não pode fazer essa coisa
estando tão perto de mim.
Uma gargalhada forte escapa de minha garganta e o meu corpo todo
treme em conjunto.
— Você está perto de mim porque quer… — provoco.
Entretanto, meu riso se desmancha. Minha fala aparentemente é o
empurrão final para que suas mãos deslizem até a base do meu cabelo, me
forçando a encará-la a poucos centímetros de distância.
— Na verdade, suas mãos estão me segurando. Não tenho como sair
— ela diz num tom indefeso teatral. Nós dois sabemos que não é só por isso
que estamos colados.
— Posso soltar, se é o que você quer — respondo, firme.
— O que eu quero…
— Você quer que eu me afaste?
Ela não responde.
Em vez disso, suas unhas arranham minha nuca de forma mais intensa,
me deixando nervoso. Minhas costas estão curvadas, sua respiração quente
ricocheteia em meu rosto e seu hálito tem cheiro de cereja por conta da
bebida que ela havia experimentado há pouco. “Arcade” começa a estalar
nas caixas de som na sala, e conforme a música começa, involuntariamente a
puxo mais para perto.
Como se fosse possível.
— Ethan… — Seus olhos estão me encarando de um jeito que só tive
o vislumbre nesse instante. Estão banhados por uma nuvem de luxúria, e a
constatação faz todo o meu corpo arder, me lembrando do momento que
tivemos no carro mais cedo.
— Tô aqui… — Minha voz sai tão rouca e afetada que mal me
reconheço. Estamos os dois de olhos fechados agora. Tudo ao nosso redor
parece ter sumido. Só consigo ouvir a música e sentir a temperatura subindo
em nosso entorno de maneira acelerada. A ponta do nariz dela está tocando a
ponta do meu e nossas testas estão coladas. Não consigo dizer como me sinto
sobre isso. — O que está acontecendo com a gente?
— E-Eu… Eu não sei. — A voz dela treme. O aperto dos seus dedos
nos meus fios de cabelo se intensifica, e sinto que estou à beira de perder o
controle. Quando o refrão da música explode no ar, ouço-a arquejar. — Tudo
que eu sei, é que tentar fugir disso é um jogo perdido.
Respiro fundo sentindo seu cheiro impregnando minhas vias
respiratórias até atingir minha mente que, de maneira desajustada, tenta
entender onde ela quer chegar ao dizer que não consegue mais fugir disso,
que é um jogo perdido.
Preciso saber se ela tem pensado em cometer as mesmas loucuras que
eu, se tem sentido a mesma vontade absurda martelando em sua mente a todo
instante.
— Amelie… Por que ainda não nos afastamos?
A pergunta quase some no ar, de tão falha a minha voz. No instante em
que ela começa a roçar o nariz no meu, em uma carícia provocante demais
para o meu próprio bem, sinto minha pulsação acelerar de maneira
significativa. Quando abro os olhos e encontro novamente os seus, eles estão
me encarando embebidos de desejo.
— Porque eu quero muito beijar você, Ethan.
“Sim, vou te deixar ditar o ritmo
Pois não estou pensando direito
Minha cabeça está girando,
não consigo mais ver com clareza
O que está esperando?”
LOVE ME LIKE YOU DO | Ellie Goulding

13 de Setembro de 2021

Eu estou em queda livre.


Caindo lentamente e indo de encontro ao turbilhão confuso e
desastroso de desejo que tenho escondido em meu peito. Caminhamos juntos
até a beira do precipício e sem ao menos olhar para o lado para ter a certeza
de que seria acompanhada, eu me atirei.
É o que sinto quando, após minha confissão, Ethan sobe uma de suas
mãos que repousava em minha cintura e a afunda nos fios de cabelo em
minha nuca, segurando-me com precisão e forçando-me a encará-lo de
cabeça erguida.
Nossas bocas estão tão próximas que qualquer outro movimento
proporcionaria a nós dois o encontro que tanto anseio.
Eu quero beijá-lo.
Quero tanto que todo o meu corpo está prestes a explodir em
ansiedade pelo que virá em seguida. Quero sentir seu gosto e acabar de vez
com a sensação torturante de estar sempre reprimindo essa vontade que só
cresce mais e mais. Chega de esconder, chega de fingir que cada ínfimo
toque da sua pele sobre a minha não traz um caos de proporções gigantescas
para o meu corpo, chega.
— Você tem exatos cinco segundos para me dizer que isso é uma
brincadeira, porque se ficar quieta, eu não vou me segurar mais. — Seu
olhar intenso me devora antes mesmo que ele o faça. Sua voz soa rouca e
autoritária, fazendo com que a ansiedade dentro de mim se intensifique. —
Entendeu?
Engulo saliva com força e assinto com a cabeça. Firmo mais o enlaçar
dos meus braços em seu pescoço e sustento o olhar que ele me lança,
respirando devagar enquanto conto mentalmente até cinco. Eu não vou voltar
atrás.
Um sorriso lascivo toma meus lábios enquanto o encaro e a contagem
corre em minha mente. Cinco segundos jamais demoraram tanto para passar,
e eu sinto que vou perder a cabeça a qualquer momento.
Quando termino de contar, Ethan elimina toda e qualquer distância
existente entre nossas bocas e toma a minha de forma urgente, provando a
sintonia que há entre nós. Seus lábios macios enfim se colam aos meus, e
sinto minhas pernas amolecendo, bem como minha mente parece ficar fora de
órbita.
Estamos nos beijando.
Puta. Merda. Eu estou beijando Ethan Harris.
Eu cedo assim que o sinto pedir passagem em minha boca. Sua língua
encontra a minha e provo do seu gosto açucarado por conta do refrigerante
que ele bebia.
Beijo Ethan como se minha vida estivesse por um triz e, enquanto
minha língua desbrava sua boca, eu ergo minha mão, que escorregou por seu
peitoral, até afundar meus dedos em seus cabelos, apertando-os no mesmo
momento em que um som gutural escapa de sua garganta.
Ethan deixa um aperto em minha cintura por cima do vestido que me
faz ficar ainda mais na ponta dos pés. Instintivamente, aperto minhas coxas
uma contra a outra.
As respirações entrecortadas que escapam de nós se fundem e suas
mãos passeiam por meu corpo, deixando carícias e apertos nos lugares
certos. Agora, sentindo tudo tão à flor da pele, não posso deixar de admitir:
Ethan Harris faz juz à toda a porra de sua fama, beijar esse cara é um
evento.
A sensação de queda livre só cresce, se espalhando por todo o meu
corpo como uma injeção cavalar de morfina. Entretanto, diferentemente de
instantes atrás, agora uma certeza pisca em minha mente, me fazendo cair de
maneira mais lenta: eu não me atirei sozinha.
Sei disso porque o cara que está aqui, me beijando como se esse fosse
seu último ato, também se atirou do alto daquele abismo comigo. A sensação
de queda livre é também originária da constatação de que a última muralha
que ergui para me separar do desejo que tenho sentido por ele secretamente
está em ruínas.
E consoante a tudo que sempre ouvimos, agora, sentindo seus lábios
me devorando, sei que todo o ódio que sentia virou atração.
Conforme a euforia inicial se dissipa, o beijo se torna lento, mas não
menos quente. A ciência de sua mão direita em meus cabelos, segurando
firmemente minha cabeça de maneira dominante enquanto a outra se encaixa
em meu pescoço, faz com que meu corpo fique febril e eu me sinta entrando
em combustão.
Seu polegar roça sobre a pele acima da minha garganta, lenta e
despreocupadamente, aplicando a dose certa de pressão, e eu sinto minha
calcinha ficando encharcada. Cacete, ele está me deixando louca com um
único beijo.
Solto um resmungo quando Ethan se afasta deixando um selinho rápido
em meus lábios somente para, segundos depois, puxar, com um misto de
gentileza e brutalidade, minha cabeça para trás. Sua boca trabalha com
destreza em meu pescoço, me fazendo soltar um suspiro extasiado.
Não sei se pelo efeito do álcool correndo em minhas veias, ou se pelo
talento natural de Ethan Harris no que está fazendo, mas estou certa de que, a
partir de hoje, eu estou fodida para superar isso.
Simples assim. Estou fodida.
Seus dentes resvalam pela carne do meu rosto na região da mandíbula,
e ele deixa uma mordida leve por lá. A lembrança da sua mensagem
elogiando exatamente aquele mesmo ponto retorna em minha cabeça, fazendo
com que uma pulsação desesperada se faça entre as minhas pernas. Só
quando sinto que ele está novamente diante de mim, abro os olhos devagar,
alcançando os seus tomados por um brilho de excitação vívido.
— Por que mesmo nós não fizemos isso antes? — Ele pergunta,
ofegante, colando nossas testas e deixando um aperto forte na minha bunda,
me arrancando uma risada alta.
Descarado.
— Isso foi… — Puxo o ar com força, tentando pensar em alguma
palavra para definir. — Uau.
Um sorriso cafajeste se curva em sua boca, e sei que ele está prestes a
soltar algum comentário convencido só pela forma que seu lábio treme.
— Eu sempre te disse que eu bancava minha fama, Coelhinha, e estava
falando de todas elas. — Reviro os olhos, rindo fraco, e ele se aproxima do
meu ouvido. — Mas ouso dizer que você é quem merecia uma fama, porque
isso foi gostoso pra caralho.
Todo o meu rosto ruboriza com a sentença. A gargalhada que explode
em minha garganta me faz tombar a cabeça para trás, e Ethan se aproveita
disso para deixar mais beijos em meu pescoço, junto de mordidas leves que
fazem meu riso cessar e todo o calor retornar para meu corpo.
— Hmm, faça isso a noite toda, por favor. — Temo que esteja soando
desesperada, mas ele não parece se importar, porque segue distribuindo seus
pecados em forma de lábios por toda a minha pele exposta.
— Ah, linda, eu vou fazer. Você nem precisava pedir.
Ugh! Adoro essa atenção. Adoro mesmo e, curiosamente, adoro que
esteja vindo dele.
Dali em diante, a festa passa como um borrão que consiste em uma
mistura de toques certeiros, beijos quentes e muito riso frouxo.
Como falei, se me dissessem meses atrás que eu estaria extravasando
minha dor bebendo e dançando em uma festa de fraternidade após viver uma
das situações mais dolorosas da minha relação com o meu pai, usando um
vestido de alta costura, envolta pelos braços do cara que um dia jurei odiar e
dando risada das palhaçadas dos seus companheiros de time, eu mandaria
essa pessoa buscar terapia.
A verdade é que Megan e Tyler terem começado a se relacionar fez
com que minha rotina virasse do avesso para nunca mais voltar. Quando
topei dar uma chance para Ethan eu não imaginava que estaria indo de
encontro a uma das pessoas mais leais e prestativas que já conheci em toda a
minha vida.
Não o chamei hoje esperando nada disso. Chamei porque confiava
nele, porque de alguma forma, eu sabia que não me deixaria sozinha. Mas
desde o primeiro momento, a forma com que ele me acolheu fez com que eu
percebesse que Ethan faz parte da minha vida agora.
Com todos os muros que construí ao longo dos anos, jamais imaginei
que Ethan Harris seria o tipo de amigo que larga tudo para ir te resgatar, que
te oferece o ombro para chorar, e que quando você precisa espairecer, ele se
torna o parceiro para dançar, o motorista da rodada e tudo mais que for
preciso.
Não imaginava um dia dizer isso, mas ele é um bom amigo. Por sorte e
trabalho incansável do destino, fico feliz por saber que ele é o meu amigo.
— Ainda somos amigos, certo? — pergunto, cortando o silêncio
confortável que paira sobre o carro enquanto ele dirige, concentrado, pelo
trajeto até meu alojamento.
Um sorriso ladino se curva em sua boca, e ele leva uma das mãos até
meu joelho em uma carícia gostosa.
— É claro que somos, Coelhinha, amigos também podem se beijar.
Ouso dizer que essa é a melhor parte — Ele me olha sugestivo.
E caramba, fiz a festa nesse cara. Os primeiros quatro botões de sua
camisa estão abertos, os cabelos estão desgrenhados, e há alguns borrados
de batom em seu pescoço.
Marcas leves de mordidas também, mas esse é o tipo de coisa que
prefiro fingir que não fiz.
— Amigos que se beijam, então, huh? É uma boa evolução para duas
pessoas que até ontem quase se matavam quando eram obrigados a conviver
— provoco, e ele dá risada.
— Eu, particularmente, gosto pra cacete dessa nova configuração de
amizade. Qual a graça de ter uma amiga gostosa e não poder beijar ela? — O
sorriso cafajeste que se aloja em sua boca me faz dar um tapinha em seu
braço e dizê-lo, mais uma vez, o quanto ele é um babaca pervertido.
Me julgue se for capaz, mas estou gostando, e gostando muito, dessas
primeiras horas da nossa nova configuração. Principalmente da forma com
que ele está se sentindo livre para dizer certas coisas.
Um fato sobre mim: adoro receber elogios, mesmo, e adoro a forma
com que ele diz com facilidade o quanto sou inteligente, mas caramba, adoro
também ouvi-lo me chamar de gostosa. E não me importo se isso soe fútil ou
carente, eu simplesmente gosto.
— Tudo bem para você? Se for assim? — ele me pergunta.
Encaro a avenida passando diante de mim e rapidamente peso os prós
e os contras de entrar nesse lance que considero um tanto arriscado. Já vi
esse filme acontecendo várias vezes e sei que a tendência é sempre a
decepção e corações partidos.
Entretanto, sei que Ethan não tem como objetivo encarar um
relacionamento, ele sempre deixou isso bem claro. E eu, igualmente, não
possuo o menor interesse em ser a namorada do capitão.
Seria como unir o útil ao agradável. Ele não quer compromisso, mas
quer a diversão, assim como eu. O fato de que ele me conhece cada vez mais
é algo que torna a proposta cinco vezes mais sedutora.
Eu detesto pegações vazias e impessoais.
Penso no estrago que pode acontecer nas nossas amizades caso algo dê
errado e quase abro a boca para desistir.
Paro quando minha mente traidora, que parece estar completamente no
Time Ethan, dispara flashes de memória dos beijos viciantes que recebi
durante a noite. E ok, me julguem novamente, mas eu com certeza não estou
disposta a deixar de sentir aquilo.
E é por isso que, assim que Ethan para no estacionamento da Chisholm
House e me encara com um brilho de expectativa no olhar, a única coisa que
faço é seguir a minha intuição.
— Amigos que beijam me parece uma denominação que combina
bastante com a gente — digo, rindo.
— Eu não tenho dúvida alguma disso — sua voz sai com um tom rouco
e sensual que faz meu corpo gritar para estar colado ao dele de novo.
— Só… Acho que precisamos de regras — sugiro, tentando ao
máximo não cortar o clima.
— Nós sempre precisamos de regras, Coelhinha — ele ri e desafivela
nossos cintos, virando-se de frente para mim. — O que sugere?
Penso um pouco, listando mentalmente coisas que podem me deixar
chateada ou me magoar, e também coisas que podem fazer esse lance dar
totalmente errado.
— Sem mentiras, mas isso já é algo que já conversamos — falo,
erguendo um dedo por item. — Nossa amizade vem em primeiro lugar, então
se isso começar a nos prejudicar, vamos parar.
— Concordo.
— Vamos manter isso em segredo, por enquanto. Mas se alguém
precisar saber, só Tyler e Megan, porque é impossível omitir algo deles.
Certo?
— Aham.
— Podemos ficar com outras pessoas — digo, receosa. — Eu não vou,
porque não consigo, mas não vou cobrar isso de você, só me conte se
acontecer, tudo bem? Prometo não ficar chateada.
— Não vai acontecer — ele diz, simplesmente.
— Você não tem como prever.
— Eu não sou o maior fã dos compromissos, mas também não sou um
filho da puta, Coelhinha. Não vou sair pegando metade da faculdade se
estivermos em um lance, seria desconfortável pra caralho — ele explica, e
eu balanço a cabeça em negação enquanto rio fraco.
— Okay, mas caso aconteça, me conte.
— Beleza. E agora, o principal. No instante em que um dos dois achar
que está rolando sentimento, a gente cai fora. Eu topo cem por cento esse
lance da amizade colorida, mas eu não namoro. Isso é inegociável, ainda que
você seja adorável e diabolicamente gostosa, Coelhinha — ele me lança uma
piscadinha e eu faço uma careta enojada.
— Ew, não namoraria com você nem se quisesse muito.
É inacreditável como somos dois melhores amigos implicantes até
mesmo na hora de definirmos as condições para uma pegação.
— Perfeito. Regras esclarecidas, parte chata chegou ao fim, agora vem
cá, vem.
Ethan empurra seu banco para trás e me puxa para o seu colo. Solto um
gritinho pelo ato inesperado e ajeito meu vestido para ter uma maior
mobilidade. Apoio meus joelhos um de cada lado do seu corpo e sinto
quando suas mãos seguram firme minha bunda, me levando para perto.
Seguro seu rosto com as duas mãos e o encaro de perto por alguns
segundos. Ethan tem algumas pequenas sardas na região do nariz, creio que
por conta do sol, e seus olhos são castanhos e escuros. Não tão escuros
quanto os meus, mas escuros. Sua boca está entreaberta e ele está me
analisando do mesmo modo que faço com ele. Eu só espero que meus olhos
não estejam entregando tanto desejo quanto os seus estão.
É uma visão e tanto, confesso.
Sorrio antes de colar meus lábios nos seus num beijo gostoso e
faminto. Ethan me corresponde com tanta vontade que não parece que
estávamos fazendo exatamente isso minutos atrás.
Sua língua ataca a minha de forma torturante e desesperada, e suas
mãos percorrem minha cintura e costas em apertos e arranhões. Desço uma
trilha de beijos molhados em seu pescoço e arranho seu peito exposto pela
camisa, marcando-o com minhas unhas sem o menor pudor.
Ouço seu arfar rouco no meu ouvido e sinto um arrepio descer por
minha coluna até minha calcinha encharcar de forma quase vergonhosa.
Desgraçado.
Volto a beijá-lo, sentindo um certo desespero para ter sua boca na
minha novamente, beijar esse cara é viciante pra caramba. Mordo seu lábio
inferior, puxando-o no mesmo segundo em que ele passeia uma de suas mãos
por minha coxa, alcançando a parte exposta pela fenda.
O contato pele com pele me faz gemer baixo e, inconscientemente,
rebolo em seu colo bem devagar. Sua mão grande e áspera se arrasta sobre a
minha coxa e ele aperta a carne com uma pressão enlouquecedora.
Intensifico o movimento dos meus quadris, desesperada por mais, e sinto
uma ereção começando a se formar bem abaixo de onde estou sentada.
— É melhor a gente parar por aqui — diz, ofegante, afastando o rosto
do meu com um sorriso bobo de quem claramente acabou de dar uns amassos
e gostou muito.
— Problemas nos países baixos? — pergunto, rindo, e mordisco seu
lábio.
— Coelhinha, meu pau não sabe diferenciar uma “amizade colorida
dia 1” de uma de longa data, essa sua rebolada tá deixando ele bem confuso.
Sério.
— Sinto muito, Ethan Júnior, hoje não é seu dia de sorte — Olho para
baixo e ouço sua gargalhada rouca fazendo cosquinha no meu cérebro.
— Não acredito que disse isso. Não acredito que falou com o meu pau
— ele ri ainda mais e estou certa de que esse lance vai ser bem divertido e
inusitado. — Boa noite, Coelhinha, durma bem e fique bem.
Sua mão sobe e desce, fazendo um carinho gostoso e inocente nas
minhas costas nuas pelo vestido. Gosto de como Ethan me trata nessa “nova
configuração”, das mãos firmes que exploram meu corpo sem rodeios. E
também do toque carinhoso que respeita o corpo da pessoa com quem está se
envolvendo. É bom, e me deixa confortável em me arriscar no terreno das
relações casuais.
— Boa noite, Ethan — sussurro contra a sua boca.
Ele sorri sob os meus lábios e então me beija. Há uma intensidade que
jamais experimentei em um beijo de despedida num fim de noite, uma que faz
meu corpo clamar para não me separar do seu. Nesse momento, eu não julgo
as garotas da faculdade que só faltam babar quando ele passa. O cara sabe
como fazer suas conquistas se sentirem especiais.
O destino deve estar rindo da minha cara bebendo champanhe. Quem
diria, Amelie Castillo é o mais novo nome ilustrando a lista gloriosa do
capitão do time de basquete da faculdade.
Se um dia jurei de pé junto que jamais faria isso, eu realmente não me
lembro mais.
Viva a hipocrisia.
“Sim, você poderia dizer que sente falta de tudo o que tínhamos
Mas eu realmente não me importo com o quanto dói
Quando você me quebrou primeiro”
YOU BROKE ME FIRST | Tate Mcrae

17 de Setembro de 2021

Ele está me evitando.


É o que concluo assim que entro no auditório da minha segunda aula.
Corro o olhar repetidamente por todas as fileiras, desejando ao máximo dar
de cara com o par de olhos castanhos que tanto me acostumei a ver.
Nada. Nem um mísero sinal.
Um embrulho se faz em meu estômago enquanto caminho até o meu
assento, um embrulho amargo demais para suportar. As vozes maldosas que
habitam em minha cabeça ganham vida e eu sinto como se estivesse em ponto
de bala para ter uma crise de choro.
Hoje completam-se quatro dias desde que vi Ethan pela última vez, e
eu estou tentando obstinadamente não parecer uma desesperada.
Quando acordei no sábado de manhã, as marcas dos seus toques ainda
estavam presentes em meu corpo. Seu perfume parecia grudado nos meus
fios de cabelo e eu ainda conseguia sentir a sensação dos seus lábios
tocando os meus, e todo o desejo que senti após isso.
Eu ainda estava remoendo minha briga com o meu pai em meu
coração, mas minha mente estava longe o bastante para que eu só
conseguisse pensar em como queria Ethan Harris e seus beijos viciantes
perto de mim novamente. Ainda meio sem saber ao certo como proceder em
uma “amizade colorida”, resolvi enviar uma mensagem:
[Sábado] Eu: Hey! Bom dia, tudo bem?
[Sábado] Eu: Megan e Tyler ainda não voltaram do fim de semana
na casa dos Mansen, fiquei pensando se não quer vir pra cá, podemos
pedir comida... Sei lá, só passar um tempo juntos, topa?
[Sábado] Eu: Acho que quero um pouquinho mais de companhia :)
Diferentemente das outras diversas vezes em que trocamos
mensagens, desta vez, Ethan não ficou online em segundos. Pelo contrário,
passei o dia inteiro ansiosa, esperando por uma resposta engraçadinha.
Cheguei a me arrumar pensando que, talvez, ele pudesse ter lido a mensagem
muito tempo depois e decidido ir direto ao meu alojamento. Me senti uma
verdadeira tola por isso.
Dormi aquela noite com uma sensação tenebrosa passeando por
minhas células. Senti o peso enorme da tensão se alojando em meus ombros
em cada maldita hora que eu não obtinha uma resposta.
No domingo, nada havia mudado. Arrisquei uma ligação, pensei que
talvez fosse um mal entendido, ou quem sabe ele estivesse sem acesso a
internet, qualquer coisa do tipo. A chamada tocou por muitos e muitos
segundos até entrar na caixa postal. Dessa vez fiquei um tantinho brava. E
então, tentei outra mensagem.
[Domingo] Eu: Você está bem? Precisa de alguma coisa?
[Domingo] Eu: Desculpa estar te enchendo, e me desculpa se estiver
precisando de espaço e eu estiver sendo invasiva. Não quero incomodar,
mesmo. Me ligue quando quiser, sim?
[Domingo] Eu: Obrigada, mais uma vez, por sexta e me desculpa
qualquer coisa. Vejo você na aula amanhã :)
Na segunda, eu estava certa de que entraria no auditório e Ethan
sorriria em minha direção contando que teve problemas com seu celular. No
entanto, ele não apareceu em nenhuma das aulas da manhã e também não deu
as caras no período da tarde.
Se algo grave tivesse acontecido, sei que Tyler, Megan ou Annelise
me diriam. Portanto, a única opção que eu julgava possível era também a que
mais me doía: Ethan está me evitando. Não quis encher nossos amigos
perguntando sobre ele. Estou evitando ao máximo passar mais do que dois
segundos na presença de Megan porque sei que, com ela, eu vou acabar me
abrindo e, talvez, me sentir ainda pior.
Foi necessário um autocontrole sobre-humano para não entrar em meu
maldito carro, dirigir até seu apartamento e acabar de vez com essa tortura.
Dizê-lo que não precisava me evitar daquela forma por um beijo, que não
precisávamos ficar novamente se ele não quisesse, e reivindicar o fato de
que combinamos que nossa amizade viria em primeiro lugar.
E isso é o que mais está me deixando magoada. O fato de que ele nem
ao menos teve consideração por nossa amizade, mesmo depois de eu deixar
claro que ele havia se tornado o meu melhor amigo.
Mesmo depois de eu ter confiado nele, lhe mostrado a parte mais
vulnerável que há em mim, depois dele ter me dito que eu sou a sua melhor
amiga. Depois disso tudo, ele ainda teve a coragem de me evitar por um
beijo.
Isso me machuca.
Limpo a lágrima que escorre em meu rosto e desbloqueio a tela do
meu telefone sem que a Sra. Prescot veja.
Eu: Eu fiz alguma coisa?
Eu: Se sim, me desculpa, vem pra aula e vamos conversar sobre isso,
como temos feito. Por favor.
Eu: Você perdeu aulas importantes, tô anotando tudo e vou mandar
pro seu e-mail, tá bom?
Eu: Ethan
Eu: Fala comigo, por favor.
Encaro as mensagens sendo enviadas, no entanto, nenhuma delas é
recebida. Isso me faz ficar ainda mais confusa e angustiada.
Me levanto, de abrupto, reunindo todos os meus materiais em minha
bolsa, e desço a escadaria do auditório sem sequer olhar para trás. Caminho
apressadamente pelos corredores do prédio de jornalismo, e quando alcanço
o banheiro feminino, entro e me tranco em uma das cabines, me permitindo
chorar pela primeira vez.
O misto de sentimentos torna tudo ainda mais caótico, isso porque a
indignação está tão visceralmente misturada à tristeza que é difícil conseguir
separá-las. Estou brava, chateada, magoada, puta da vida, de verdade. Ao
passo que também me sinto rejeitada, diminuída e terrivelmente ignorada.
Eu sabia que me aproximar de Ethan Harris seria um erro. Só não
sabia que sua rejeição me machucaria tanto. Não imaginei que, ao
compartilhar minha dor com ele, e permiti-lo tentar tornar tudo menos pior,
eu estaria deixando que ele se tornasse importante pra mim.
E foi exatamente isso o que aconteceu.
Ethan agora é o meu melhor amigo, é alguém importante, e está doendo
pra caramba perceber que talvez eu não seja exatamente o mesmo para ele.
Puxo o ar com força, tentando me acalmar, do mesmo jeito que fizemos
quando ele me buscou na casa do meu pai. Pego o celular em minha bolsa e
disco seu número. Espero pacientemente a ligação chamar, chamar, chamar e,
por fim, entrar na caixa de recados. Quando o sinal soa, reúno toda a minha
força para firmar minha voz.
— Olha só, eu não sei que merda você pensa que está fazendo, mas
por favor, fale comigo, seu estúpido! E volte para a faculdade. Qual é, Ethan,
é o estágio das nossas vidas em jogo, você não pode perder aulas assim, mas
que inferno! — digo, muito menos brava do que gostaria. Estou chorando de
novo. — Volte para as aulas e converse comigo, eu vou entender o seu lado,
eu prometo. Podemos até discutir, como nos velhos tempos, só pare, pelo
amor de Deus, de me castigar com a porra do seu silêncio! Eu sei que não
mereço isso.
Encerro a chamada sentindo meu coração apertado. Passo as mãos
pelo rosto tentando me livrar das lágrimas e repito mentalmente exercícios
de respiração para me acalmar. Odeio me sentir ansiosa dessa forma, odeio
muito estar desse jeito por conta dele e odeio demais aquele beijo. Sem ele
eu provavelmente ainda teria o meu melhor amigo.
Saio da cabine e vou até a pia, jogo uma quantidade generosa de água
em meu rosto e seco com papel. Prendo meus cabelos em um coque e checo
o relógio, constatando que tenho uma hora e meia até o meu turno na
cafeteria. Decido passá-la escondida na biblioteca.

O cheiro de café não consegue me acalmar.


Lily desistiu de me questionar sobre o motivo da minha desatenção e
da minha completa ausência de humor no instante em que percebeu que eu
preciso de espaço. Não quero falar sobre o que aconteceu, até porque
desabafar com minha amiga sobre como estou me sentindo implicaria em
contar a ela sobre o beijo. E eu não quero que ninguém saiba disso.
— Merda — resmungo quando deixo um pouco de café expresso
entornar no meu avental.
Mal tenho tempo de ir até a pia apoiar o copo e lavar minhas mãos
quando sinto o nó do tecido que fica em minha cintura sendo desfeito e o
recipiente com café sendo tomado de mim.
— Vinte minutos de descanso. Agora. — O tom de voz de Lily é
objetivo e irredutível. Me viro em sua direção prestes a protestar, mas ela
me lança um olhar mortal. — Estou falando sério, Amelie. Não quer me
contar o que houve, e eu respeito isso. Mas não vou deixar que se queime ou
faça qualquer outra merda porque está trabalhando quando visivelmente
devia estar descansando.
— Lily, eu… — começo, mas ela ergue a palma em que segura o
avental.
— Vá, e não volte até o tempo acabar. Aproveite que não estamos com
movimento e sente em uma das mesas, vou levar um chá para você.
Pelo seu olhar, sei que negar não é uma opção. Por isso, caminho até
uma das mesas ao fundo da loja e me acomodo no sofá confortável. Encaro
minhas mãos sobre a mesa e faço um esforço tremendo para não chorar. As
últimas horas desde que enviei aquele recado de voz tem sido uma tortura.
No instante em que minha amiga coloca a xícara com o líquido
fumegante em minha frente, o sino da porta soa roubando minha atenção. Meu
olhar vai de encontro ao casal de irmãos, que eu reconheceria de longe,
passando pela porta e eu sinto meu coração doendo ainda mais.
Tyler e Annelise vasculham a cafeteria com os olhos e Lily faz sinal
para eles, indicando onde estamos, fazendo-os caminhar até nós.
Os irmãos Mansen estão com aparências terríveis, e isso me lembra
que também não os vejo desde sexta-feira, quando nos falamos por vídeo.
Annelise está com os cabelos curtos desalinhados e os olhos claros não
parecem ter o mesmo brilho de sempre.
Tyler é quem parece pior. Tudo nele, desde a postura, o conjunto de
moletom surrado e o cabelo bagunçado, exala caos. Ambos estão com
olheiras profundas colorindo a pele branca da região abaixo dos olhos em
um roxo esverdeado. Eu e Lily ficamos igualmente estáticas analisando as
feições dos dois. Quando eles se aproximam, Annelise beija o rosto da
minha amiga e a envolve num abraço apertado de quem busca consolo.
— Oi, Miss Jornal — Tyler me cumprimenta, desanimado, e planta um
beijo em minha cabeça antes de sentar na cadeira na minha frente.
Annelise faz o mesmo, e Lily fica de pé ao lado da nossa mesa com
seu bloco em mãos.
— O que vão querer?
— Expresso! — os irmãos respondem em uníssono.
— Duplo, sem açúcar e o maior copo que tiver — Tyler completa,
apoiando o rosto no dorso da mão.
— Nosso maior copo tem setecentos ml — Lily diz meio assustada.
— Então vou beber setecentos ml de expresso — Tyler confirma, mas
não num tom irônico, apenas uma constatação.
— O mesmo pra mim, princesa. Só que com açúcar — Lise fala antes
de pegar a mão da minha amiga e deixar um beijinho carinhoso.
— Certo, já trago tudo.
Quando estou a sós com os dois, beberico meu chá em silêncio,
contendo o impulso de questionar que tipo de caminhão passou por cima
deles. Tyler alterna o olhar entre mim e a irmã, e então, bufa consternado,
passando os dedos por entre os fios de cabelo.
— Tem falado com Ethan? — ele pergunta, e Annelise arregala os
olhos, lançando-lhe uma repreensão silenciosa que me deixa arredia.
— Não o vejo desde sexta, por quê? Não sabem onde ele está? —
questiono preocupada e meu coração se aperta.
Annelise ri, completamente sem humor.
— Ah, esquece o que prometemos, conta logo. Ele nitidamente não
falou com ela — a garota diz para o irmão antes de passar os dedos sobre as
pálpebras como quem dissipa tensão.
— Falar o que? O que aconteceu? — Minha mente se torna uma
mistura conturbada de pensamentos e eu estou prestes a me levantar.
Tyler parece pensar por alguns segundos antes de segurar minhas
mãos com firmeza.
— Seguinte, rolou uma parada no fim de semana, uma parada séria que
não cabe a mim te contar, e nem posso, mas que deixou ele bem mal. Ethan
está trancado no quarto desde então. Annelise e eu estamos nos revezando
para verificar se ele está bem, mas ele foi bem direto e objetivo quando
disse que não queria ver ninguém — Tyler explica. A voz cansada me
garante que não está falando de algo banal, com isso, minha preocupação vai
nas alturas. — Não estou dizendo que vai funcionar, mas acho que ele não
recusaria caso você tentasse… Sabe, ir lá vê-lo. Vocês andam próximos, e
talvez ele se sinta confortável com você.
Minha mente cria um milhão de cenários terríveis que possam ter
deixado ele desse jeito e, ainda um tanto desorientada, me levanto
imediatamente, indo atrás da chave do meu carro.
Mal ouço Lily protestar ao me ver entrando na área do caixa, apenas
murmuro um pedido para que ela me cubra no restante do turno. Também não
penso direito quando Annelise me entrega um molho de chaves com um
chaveirinho de um bulldog pendurado e eu exijo que eles não me sigam.
A única coisa que consigo pensar é: preciso me acalmar para dirigir,
e preciso chegar em Manhattanville o mais rápido possível.
Rezando para que meu carro não me deixe na mão, dou a partida e
piso fundo no acelerador, cortando caminho por todos os atalhos possíveis
que consigo me lembrar. Se durante o dia inteiro eu tentei me conter, agora é
um fato consumado, estou desesperada.
Ethan não se trancaria em seu quarto por dias se não fosse importante.
Annelise e Tyler não estariam destruídos se não fosse importante, muito
menos fariam tanta cerimônia para me explicar o que estava acontecendo.
Meu Deus, agora tudo faz sentido. Tem dias que não ouço Megan dizer que
vai sair com o namorado, ou que Tyler aparece em nosso alojamento, é por
isso.
Foi algo grave, não tenho dúvidas.
Estou tão aérea que só me dou conta de que cheguei quando o carro já
está estacionado em uma vaga. Salto para fora do veículo e subo as escadas
do prédio completamente angustiada. Cumprimento o porteiro e digo que vim
pegar algo para Annelise, mostrando o molho de chaves. Ele me deixa subir,
parecendo notar a fragilidade estampada no meu semblante.
Quando as portas do elevador se abrem, vou direto para o
apartamento dos meus amigos e testo algumas chaves até encontrar a certa.
Bruce, o bulldog, está em um cercadinho na sala e se agita quando me vê.
Faço uma promessa mental de lhe dar atenção depois.
Dou duas batidas na única porta do corredor que está fechada e
aguardo até ouvir um grunhido do outro lado.
— Não quero comer, Annelise, vai embora! — a voz sôfrega faz com
que eu engula seco.
— Não vou a lugar algum até que você abra essa porta — digo num
tom firme, e um silêncio mortal abraça o ambiente.
Levam cerca de dois minutos completos até que eu ouça o barulho do
trinco. A porta se abre e o que vejo faz o meu coração se partir em milhões
de pedacinhos.
“Jogando com o inimigo
Apostando a minha alma
É tão difícil dizer não
Quando se está dançando com o diabo”
DANCING WITH THE DEVIL | Demi Lovato

17 de Setembro de 2021

ANTES
Sorrio feito um bobo enquanto observo Amelie subindo as escadas da
Chisholm House.
Seu gosto ainda está na minha boca e quanto mais ela se afasta, mais
eu me arrependo de ter tentado ser um cavalheiro. Meu corpo está
incendiado pra caralho, e Deus sabe que, se eu não tivesse protestado,
terminaríamos essa noite na sua cama, sem dúvidas.
Diabolicamente linda, terrivelmente sensual e extremamente doce.
Amelie Castillo e seus beijos, tão intensos quanto o castanho dos seus
olhos, ainda vão me deixar doido. Já me sinto viciado naqueles lábios, e não
só neles, porque seu corpo por completo é tentador demais.
O lance casual pode não ser a zona de conforto da garota, mas é a
minha, e eu estou mais do que disposto a mostrá-la que ela pode receber
toda a atenção que tanto gosta sem precisar, necessariamente, de um
relacionamento. É uma questão de adaptação, pelo menos pra mim. Se sei
das necessidades dela para que isso flua e posso atendê-las, não vejo porque
não fazer esse “esforço”.
Assim como na nossa amizade, esse lance vai ser sobre ceder. Ela
está se rendendo à casualidade, e eu, me rendendo a fazer isso do jeito dela.
Podemos fazer dar certo.
Dou a partida no carro quando percebo que a garota já entrou na
moradia universitária. Assim que saio do domínio do campus, pego meu
celular no console do painel para digitar uma mensagem para minha tia e
descobrir o que devo fazer com o seu carro.
No instante em que desbloqueio a tela, o aparelho em minha mão
vibra e consigo ler o nome do meu pai brilhando no visor.
São duas da manhã, exatamente nada de bom pode ter acontecido.
— Alô? Pai? — atendo, confuso. Minha mente já dispara pensando
que algo ruim pode ter acontecido com Angeline.
— Filho, onde você está? — a voz dele está embargada. Sinto minha
garganta fechar. — Preciso que me encontre na Delegacia de Crimes
Federais, agora.
— Pai? O que aconteceu? O senhor está bem? — pergunto, nervoso.
Pisco algumas vezes para focar minha vista no trânsito.
— Estou, venha logo, é urgente. É sobre a sua mãe.
Puta que pariu.

AGORA
Preciso de muitos segundos, talvez mais do que isso, para ter certeza
de que não estou alucinando.
No instante em que ouvi sua voz do outro lado da porta, meu corpo
inteiro tremeu e eu pensei ter ficado louco. Pensei que a dor havia nublado
meus sentidos de forma tamanha, que cheguei ao ponto de confundir a voz de
Annelise com a de Amelie.
Mas não.
É mesmo ela, em carne, osso, leves traços de inquietação e uma
tristeza sem precedentes estampada nos olhos. Meu peito se aperta um
pouquinho mais.
— Senti saudade, Coelhinha — digo, baixinho. Meus ombros caem e
eu sinto vontade de chorar de novo.
Amelie não hesita nem por um segundo. Seus braços finos envolvem
meu pescoço e ela me abraça forte. Rodeio sua cintura, trazendo-a ainda
mais para perto, e encaixo meu rosto na curva do seu pescoço, me
acomodando ali como um passarinho em seu ninho. Inspiro o cheiro de
baunilha que exala da sua pele. O aroma impregna cada milímetro das
minhas vias respiratórias, e eu percebo que é o primeiro abraço que me
permito receber depois de tudo.
O primeiro abraço, o primeiro carinho nos cabelos, o primeiro
aconchego. Sem julgamentos, sem ressentimentos, só cuidado e a certeza de
que posso me sentir seguro.
Ela me diz tudo isso sem proferir sequer uma palavra, e agora entendo
um pouquinho por que seus olhos brilhavam tanto dias atrás. Sentir que
alguém está com você quando tudo parece perdido traz esperança.
— Achei que você estava me evitando — ela cochicha no meu ouvido.
Pelo tom, sei que está chorando.
Puta merda. Que dia é hoje?
— Me desculpa, não quis te deixar assim — digo, fechando os olhos
com força e a abraçando com ainda mais determinação.
— Shhhh! Isso não importa agora — ela garante. Sinto o beijo terno
que deixa no meu ombro. Cacete, senti muita falta dela. — O que aconteceu
com você, Ethan? Por que sumiu todos esses dias?
— É uma história meio longa.
Engulo seco e me afasto dela consideravelmente. Seguro sua mão,
puxando-a para dentro do meu quarto, tão bagunçado quanto a minha vida, e
fecho a porta. Conduzo-a até a minha cama, e aponto para que ela se
acomode. Me sento na minha cadeira de estudos de frente para ela e faço
sinal com a cabeça para a caixa ao seu lado.
Amelie pesca uma das milhares de fotos lá de dentro e encosta na
cabeceira. A minha caixa de memórias com a minha mãe está ao seu lado. A
garota analisa a fotografia com um meio sorriso, e só pela data atrás do
papel, sei que se trata da minha foto com Anastasia assoprando minha vela
de onze anos. Amo essa foto com cada mínima célula que existe em mim.
— Descobriram por que mataram a minha mãe — falo, completamente
apático, encarando o chão. — E também quem matou.
É como se eu estivesse anestesiado, não sei explicar.
— Quê? Como assim, “mataram”? — Amelie quase engasga,
escandalizada.
Sigo encarando o carpete, porque sei que se eu ousar erguer meu
olhar para a garota, simplesmente vou começar a chorar. De novo. Foi o
mesmo com Annelise e Tyler, e eu já não aguento mais me acabar em
lágrimas. Estou cansado, exausto para ser sincero.
Não durmo, não como direito, mal tenho noção do tempo desde que
me tranquei nesse quarto, me isolando do mundo e encarando a solidão como
companhia. Tudo que consigo sentir com clareza é o quanto dói, o quanto
meu peito está dilacerado e o quanto eu sinto que essa dor está me matando
aos poucos.
Como um veneno que se alastra vagarosamente por minhas veias e
vai acabando com tudo de bom e vital que existe no meu corpo. É essa a
intensidade da dor que eu sinto, e é o quão perdido eu estou.
Sentir que não existe luz no fim do túnel e que você está preso em um
labirinto de caos é angustiante pra caralho.
— Ninguém do meu círculo de amizade, além de Tyler e Annelise,
sabe ao certo o que aconteceu com a minha mãe. E diferentemente do que
todo mundo pensa, Anastasia não teve um fim comum, sabe? Doença,
acidente, essas coisas, ela… — Engulo a saliva, sentindo minha garganta
queimar e a dor lancinante volta a se alojar no meu peito. — Não sei como
dizer isso de uma forma menos impactante para as outras pessoas, mas minha
mãe foi assassinada.
Ergo a cabeça devagar para avaliar sua reação. Amelie franze o
cenho como se algo estivesse a machucando, e uma lágrima solitária escorre
do canto do seu olho. Ela não se contém e puxa a cadeira de rodinhas em que
estou para perto de si, batendo com a palma da mão sobre a cama, me
chamando para me sentar com ela.
Subo no colchão em silêncio e a garota abre os braços para me
receber em seu colo. Estou tão quebrado que o simples gesto me faz querer
tirá-la daqui, afastá-la da minha tristeza sem fim. Mas não faço, não faço
porque, nesse momento, sou o desgraçado mais medroso do planeta. Seu
colo me parece um lugar seguro, e agora estou sendo corroído pelo medo da
cabeça aos pés.
Medo de entrar em um abismo de dor do qual não vou conseguir me
livrar, medo do meu pai voltar a se afundar em luto, medo de Angeline
perder suas maiores fortalezas, medo do que vou encontrar quando decidir
ligar meu telefone e procurar a minha família.
Desde que a minha mãe se foi, eu tenho sido uma base forte e
exemplar para que nada desmorone. Tenho me mantido firme pelo meu pai,
pela minha irmã, e até mesmo pela minha mãe. Mas, porra, estou exausto.
Exausto de fingir força quando tudo que eu queria era sentar e chorar por
horas, exausto de mascarar meus sentimentos, exausto de servir de apoio
quando minha mente e meu emocional estão em ruínas.
Para ser forte para os outros, eu internalizei um sentimento que não
deveria ter ficado escondido por tantos anos, e agora parece que estou
sofrendo o triplo. É como se meu eu de quinze anos finalmente estivesse
conseguindo sentir a própria dor.
Me aconchego no corpo de Amelie, tomando cuidado para não
machucá-la com meu peso. Ela é pequena e eu sou um gigante, mas ainda
assim, seu colo me acolhe como se eu fosse minúsculo.
Me sinto minúsculo de qualquer forma. É estranho como o medo nos
faz sentir pequenos, faz sentir que seremos engolidos por uma onda
gigantesca que vai destruir tudo de forma brutal. Me sinto assim mais uma
vez.
Deito a lateral do meu rosto em seu peito, e ela descansa o queixo em
minha cabeça. Minha pele se arrepia quando a mão delicada de Amelie vai
direto para minha bochecha. Ela faz o mesmo carinho gostoso que fez na
última vez em que nos vimos, e isso me distrai da dor que enervante que
contamina cada uma das minhas células.
— Minha mãe foi uma investigadora, dentre os três, e mais quatro
policiais do FBI, mortos em uma operação anos atrás. Eu tinha quinze anos
na época. Todos os outros policiais morreram em confronto, menos ela.
Mamãe foi pega em uma emboscada, um tiro certeiro no peito, dois na
cabeça… — falo a última parte quase sem voz. Agradeço a posição que
Amelie escolheu, porque não preciso olhar em seus olhos para dizer isso. —
Ela morreu na hora. O exame de balística identificou que as balas
pertenciam a uma arma não registrada. Não tinha digital, gravações de
câmeras de segurança, nenhum rastro, nada. Absolutamente nada.
Arquivaram o caso por falta de provas.
— Sinto muito… — Ela suspira pesadamente. — Droga, isso é tão
injusto, você era só um menino. Não imagino o inferno que foi lidar com
isso, ainda mais com a bebêzinha, sinto muito mesmo — ela me abraça mais
e faz um carinho no meu cabelo.
— Acontece que sexta à noite, depois de oito anos, meu pai recebeu
uma ligação dizendo que o caso foi reaberto por conta da chegada de novas
informações — explico, sentindo a raiva reacender e me controlando para
suprimi-la.
— Que tipo de informações?
— A morte da minha mãe foi premeditada e encomendada. Um dos
chefões do narcotráfico seria preso naquela noite, ela estava na cola do filho
da puta. Ele pagou para contar com ajuda de dentro do FBI.
— Meu Deus…
— Fica pior — falo e apoio meus cotovelos na cama para me erguer
um pouco, tomando coragem para encará-la. — O investigador que foi
responsável pelo tráfico de informações se entregou ontem, a morte da
enteada dele mexeu com a cabeça do cara e ele decidiu contar a verdade. E
adivinha… O cara que entregou minha mãe para morrer foi o mesmo cara
que me ensinou a andar de bicicleta. O parceiro dela.
A expressão de Amelie se torna um misto de choque e indignação.
Tenho certeza de que ela quer soltar meia dúzia de palavrões.
Já expliquei isso para tantas pessoas desde sexta-feira que estou me
acostumando com a pontada desgraçada em meu peito. Meu pai não quis
entrar no escritório do chefe de departamento. Ele estava desesperado, então
fui eu quem ouviu cada mísero detalhe. Fui eu quem contei a ele, e para Tia
Suzy, para Tyler, Annelise, para os pais deles.
Me senti de novo com quinze anos tendo que explicar aos outros que
a minha mãe tinha morrido. Foi doentio reviver o passado de forma tão
intensa, e estou confuso feito o inferno, porque não sei se me sinto aliviado
por saber que o homem responsável pela morte da minha mãe vai apodrecer
na cadeia, ou se me sinto enfurecido por ter demorado tanto.
Honestamente, minha mente está transtornada.
Eu sempre lutei e tive como objetivo que a justiça fosse feita, mas
não me parece justo. O atirador morreu pouco tempo depois dela, o
mandante está preso e Jeffrey vai apodrecer na cadeia. Isso não muda o fato
que minha mãe foi morta por esses desgraçados, não muda o fato de que
Angeline não se lembra da voz dela, nem do cheiro, muito menos do toque.
Não muda nada. E é frustrante.
— Às vezes eu me pergunto como consegui continuar. Me pergunto
como consigo acordar todo santo dia, e às vezes, bem às vezes, eu cogito
simplesmente desistir — digo, minha voz embarga. — Minha mãe morreu a
troco de absolutamente porra nenhuma, e ninguém fez nada para evitar isso.
Aí agora, depois de oito anos, aquele maldito se entrega e eu deveria me
sentir aliviado? Porque porra, não me sinto, eu estou fervendo de ódio.
Minha mãe não merecia isso, ninguém merece. Eu, definitivamente, não
merecia ter crescido sem seu abraço por conta de, sei lá, alguns dólares?
Cacete! Isso não chega aos pés de uma vida. Porra, era a vida da minha mãe!
Só percebo que estou tremendo e chorando quando Amelie me puxa
de volta para o seu colo e me abraça com força. Enfio a cabeça na curva do
seu pescoço e choro copiosamente.
Sinto os múltiplos carinhos que ela me faz, tentando me acalmar, mas
os soluços que me escapam são fortes demais. Respirar parece uma tarefa
tão fodida nesse momento que eu apenas me concentro em puxar o máximo
do seu cheiro para dentro de mim.
— Minha mãe não merecia isso, Amelie, não mesmo. A pessoa que
deveria trabalhar junto com ela, proteger ela, foi justamente quem a colocou
numa emboscada! Minha mãe já entrou na frente de armas por esse cara. Ele
frequentava a nossa casa, ele sabia que Angeline era um bebê! — Minha voz
é tão baixa que temo que ela não consiga me ouvir. Estou de olhos fechados,
me concentrando em não morrer sem ar.
— Não sei o que te dizer. Não consigo mesmo chegar perto de
imaginar como se sente e, acredite, se eu pudesse, eu te colocaria em uma
bolha de arco-íris, basquete, sushi, cerveja e roupas para bulldog em
promoção — ela fala, fazendo referência ao que eu lhe disse dias atrás. —
As únicas coisas que posso afirmar é que eu sinto muito, que a sua dor é
válida demais e que esse momento pode parecer horrível, mas você foi forte
o suficiente para sobreviver à perda da pessoa mais importante da sua vida.
Não é um merdinha sem caráter que vai te fazer ruir de novo, não mesmo, eu
me nego a deixar que isso aconteça. Você tem a mim, todos os seus amigos, o
seu time, o seu pai, a sua tia, tem sua irmã, que é a pessoa mais preciosa do
mundo para você, que eu sei. E nenhum de nós vai te deixar sozinho.
“Você ainda precisa ver o Tyler entrar pra um time foda, Annelise
fazendo um grande show, ver sua irmã entrando na faculdade. Nós dois
precisamos pegar nossos diplomas, você precisa ser um jornalista incrível,
ganhar prêmios ao redor do mundo, orgulhar pra caramba a mulher que está
te olhando de onde quer que esteja.
“Você ainda precisa amar e receber muito amor da sua família,
encontrar alguém por quem vai se apaixonar e não vai conseguir imaginar
uma vida sem. E, se você quiser, construir uma família com ela, ver sua irmã
se tornar tia e ver seu bebê crescendo saudável e protegido.
“Cacete, Ethan Harris, você tem tantas coisas incríveis ainda para
viver, e a sua vida vai ser tão, tão feliz apesar disso tudo. E toda vez que eu
ligar a minha televisão e der de cara com você sendo o jornalista
excepcional que eu sei que você será, eu vou sentir tanto, mas tanto orgulho
do meu melhor amigo, porque sim, essa amizade vai durar o suficiente para
isso. Caramba! Nós ainda temos que fazer discursos terríveis nos
casamentos um do outro!
“Então não, a sua vida não vai desmoronar agora. Você não tá sozinho,
e eu não vou mesmo deixar que esse cara roube ainda mais de você do que já
roubou. Você vai viver seu momento de dor agora, mas vai dar a volta por
cima, e você vai ser feliz. Isso é uma promessa.”
É o que ela diz antes de me abraçar tão forte que poderia jurar que ela
estava tentando juntar todos os caquinhos do meu coração. Tão, mas tão
forte, que eu sei que, mesmo que da porta desse quarto para fora eu sinta
muito medo, aqui, nos braços dela, eu tenho uma fortaleza me protegendo.
Isso me acalma.
Eu tenho Amelie, minha melhor amiga, a pessoa mais forte e
extraordinária que eu conheço, minha Coelhinha. Minha fortaleza.
— Obrigado, por tudo. Por não me deixar sozinho — digo com o rosto
ainda enterrado em sua pele.
— Você não está sozinho, eu estou aqui com você, querido. Somos
melhores amigos.
— Somos melhores amigos.
— Agora, fique tranquilo, sim? Vai ficar tudo bem, eu prometo — sua
voz suave e baixa sopra perto do meu ouvido, e seus dedos percorrem meus
cabelos. — Estou aqui e vou cuidar de você, Ethan.
Depois de quase três dias sem pregar o olho, eu relaxo. Adormeço
em seus braços e meus sonhos não me amedrontam. Sonho com Angeline
sorrindo, brincando na areia da praia e pegando conchinhas para decorar seu
quarto.
Diferente dos últimos dias, dessa vez, meus sonhos não me deixam
assustado. Me dão esperança.
“Eu prometo que estarei do seu lado
Te protegerei, te manterei vivo
No momento, está tudo muito louco”
NEVER BE ALONE | Shawn Mendes
(TRADUÇÃO ADAPTADA)

17 de Setembro de 2021

Coloco a torta de frango improvisada que fiz no forno para assar, e


enquanto lavo a louça, Bruce está deitado ao lado do meu pé, me fazendo
companhia. Já passa das oito da noite. Eu ainda estou tentando processar
tudo que aconteceu nas últimas horas e a quantidade estrondosa de
informações que foram despejadas em minha cabeça.
A mãe de Ethan foi assassinada.
Repetir isso, ainda que mentalmente, me causa uma agonia sem fim.
Pensar que ele viveu a loucura de, aos quinze anos, ver sua mãe sair pela
porta e nunca mais voltar, e ainda por cima anos depois descobrir que a
pessoa mais importante da sua vida morreu por mero jogo de interesse…
Saber disso me mata um pouquinho por dentro. Ninguém merece passar por
algo assim, ele definitivamente não merece.
Ver como o garoto está tão consumido pela dor e pela tristeza me traz a
sensação de ter uma faca entrando em meu peito. Nossa, eu daria tudo para
que me dissessem como aliviar o que ele está sentindo.
Depois que Ethan adormeceu, fiquei ainda um tempo deixando-o
descansar em meu peito, esperando até que ele alcançasse um sono profundo
que me possibilitasse sair de baixo do seu corpo e ajeitá-lo na cama sem
acordá-lo.
Feito isso, finalmente liguei para Tyler e Annelise, pedindo detalhes
do estado do garoto nos últimos dias. Eles me contaram que Ethan saiu do
quarto poucas vezes, apenas para tomar banho, e que tem comido pouco.
Disseram que ele pediu para que não contassem para ninguém, nem mesmo
para mim ou para Megan, e que eles respeitaram isso.
Vendo o quanto os dois estavam exaustos, eu disse que podiam
aproveitar o resto do dia com suas respectivas namoradas, e que eu
assumiria o posto de companhia do garoto nessa noite. Ambos só faltavam
chorar em agradecimento, não por não quererem ajudar, mas porque estavam
cansados.
Não consigo imaginar como deve ser difícil para eles ver o amigo,
que é quase um irmão, nesse estado.
Prometi atualizá-los de tudo, e Tyler me instruiu a pegar no armário
dele algumas das roupas de Megan para me trocar. Annelise deixou seu
quarto e suas coisas à minha disposição e me orientou a não deixar Ethan
passar mais tempo sem comer, porque isso pode prejudicar o organismo
dele, que está acostumado com sua alimentação regrada de atleta.
Depois de dar uma geral silenciosa no quarto do garoto, ajeitar a sala
e servir a comida do Bruce, tomei um longo banho quente e comecei a
cozinhar uma janta com o que fui achando na geladeira e nos armários.
A verdade é que, embora eu esteja tentando assumir as rédeas da
situação, estou atordoada e um tanto perdida, temendo não conseguir ajudar
Ethan como deveria. Quando termino de lavar a louça, me sento com Bruce
no sofá e assisto alguns episódios de Brooklyn Nine-Nine enquanto aguardo
o forno apitar.
O bulldogue fica todo esparramado no meu colo se deliciando com os
carinhos que faço em suas dobrinhas. Hoje ele está com uma roupinha de
jacaré que faz meu coração se derreter toda vez que ponho meus olhos nele,
como um pontinho de paz no meio do caos que está nos cercando.
Assim que a torta fica pronta, sirvo um pedaço modesto num pratinho e
pego um garfo, determinada a fazer com que Ethan coma ao menos a metade.
Entro no quarto com cuidado, me sentando na borda da cama e apoiando as
coisas em uma parte segura do colchão.
Acendo o abajur que fica na mesinha de cabeceira, fazendo com que
apenas a baixa claridade da luz amarelada ilumine o quarto. Passo as pontas
dos dedos sobre o rosto de Ethan, com delicadeza para não assustá-lo, e
beijo sua bochecha suavemente.
O gesto lhe faz despertar aos poucos, um tanto zonzo pelo sono, e
quando me reconhece, Ethan passa um de seus braços por minha cintura, me
puxando pra perto.
— Você ainda tá aí… — fala baixo.
— Uhum, vou passar a noite aqui com você, se importa? — Levo
minha mão até sua bochecha, fazendo um carinho nela, e ele se inclina para o
meu toque.
— Não mesmo. Mas sabe que pode ir pra casa se quiser, certo?
— Eu sei, mas ficaria em casa preocupada, então prefiro ficar aqui e
me certificar de como você está com os meus próprios olhos — assumo, e
ele dá um meio sorriso murcho.
— Obrigado, Coelhinha.
— Não precisa agradecer. Agora senta aí, eu trouxe sua janta —
ordeno, e ele resmunga. — Nem adianta fazer pirraça, querido. Ao menos
quatro garfadas, bora! Você precisa se alimentar.
A contragosto, Ethan se senta e eu coloco o prato em seu colo. Ele
esfrega os olhos demoradamente, e eu sei que está tentando me enrolar. Pego
o garfo, tirando um pedacinho da torta, e estendo em sua direção. Ele me
olha como quem diz “isso é sério?” e eu me mantenho firme, ignorando sua
birra.
Ethan apenas pega o pedaço com a boca e mastiga lentamente enquanto
preparo mais uma garfada.
— Tá gostoso… — comenta, a contragosto, como se não quisesse dar
o braço a torcer.
— É claro que está, fui eu que fiz. — Pisco em sua direção, tentando
quebrar um pouco do clima triste e pesado. Ethan revira os olhos, o que, pra
mim, é um bom sinal.
Em retribuição à minha dedicação no preparo da comida, ele come o
pedaço de torta inteiro que coloquei no prato, me deixando com a sensação
de dever cumprido. Faço-o tomar banho enquanto eu janto na cozinha, e
quando terminamos, começo a ajeitar a cama de Annelise para deitar.
Quando estou prestes a puxar a colcha, sinto dois braços me
envolvendo e Ethan me abraçando por trás, apoiando o queixo no meu
ombro.
— Dorme comigo, por favor — ele pede, baixinho, ao pé do meu
ouvido.
O tom manso faz um arrepio descer por minha coluna, e droga, eu não
devia estar sentindo isso. Não agora.
— Tem certeza? — pergunto, olhando para o nosso reflexo no espelho
a alguns metros.
— Uhum.
Estou vestida com um short de pijama de corações e um blusão da
Irving que encontrei na parte da Megan no armário do Tyler. Meus cabelos
estão soltos, os cachos úmidos estão divididos ao meio. Ethan está usando
somente uma calça de moletom cinza, a coluna está curvada para frente e
seus braços estão cruzados na minha barriga. Nossa diferença de altura é
gritante.
Algo nessa imagem me traz conforto, eu só não sei dizer exatamente o
que. Mas gosto de saber que estou aqui, tentando ajudá-lo a ficar bem.
Vamos juntos para o seu quarto e nos enfiamos debaixo das suas
cobertas grossas e quentinhas. Ethan parece não saber o que fazer, porque
muda de posição repetidas vezes. Ajeito os travesseiros debaixo da minha
cabeça, e seguro-o pelo braço.
— Vem, deita aqui — falo, puxando-o para o meu peito.
Está parcialmente claro, porque a luz dos postes da rua entra pela
janela. Por isso, vejo quando ele me dá um meio sorriso antes de se
acomodar com o rosto em meu peito e usar o braço para envolver o meu
corpo.
— Boa noite, Coelhinha. Obrigado mesmo, por tudo que está fazendo.
Espero que a próxima vez que se deitar em minha cama não seja num
momento triste pra caralho, e sim, para fazermos coisas bem interessantes, se
é que me entende.
Não consigo controlar a risadinha que me escapa. Cara, esse garoto
está mesmo fazendo uma piada sexual num momento desse?
— Você é impossível, juro.
— Faz parte do meu charme — ele responde, se aninhando em meu
peito como se fosse o lugar mais confortável do mundo para ele.
— Boa noite, Ethan.
“Gritando para o céu
Gritando para o mundo
Querida, por que você foi embora?
Eu ainda sou seu garoto”
DANCING WITH YOUR GHOST | Sasha Sloan
(TRADUÇÃO ADAPTADA)

20 de Setembro de 2021

Encaro com desgosto a vitamina bege que Annelise coloca na minha


frente, me perguntando quantas frutas a garota colocou dentro daquele
liquidificador para formar um líquido tão grosso. Pequenas bolhas de ar
estouram na bebida, e eu levo o copo até a boca, ainda que contrariado.
— Ei! Por que eu não ganho vitamina também? — Tyler reclama, do
outro lado da nossa bancada.
Vejo sua irmã lhe direcionar um olhar mortal, típico do humor matinal
de merda da Mansen mais nova.
Porque a sua mãe não está morta, penso em responder por ela.
— Acredite, você está sendo poupado — digo, baixo. Menos de meio
segundo depois, sinto uma bola de guardanapo sendo atirada na minha cara.
— Ai, porra!
— Eu ouvi isso, seu mané — Annelise resmunga antes de colocar um
canudinho em seu copo e começar a beber o que sobrou da vitamina do
liquidificador. — Pronto para se livrar do seu exílio?
— Não muito, mas faz parte. O meu coordenador foi bem específico
ao dizer que, caso eu não esteja nas aulas na segunda-feira, minha bolsa vai
ser cortada — conto, vendo Tyler arregalar os olhos.
— Que merda, cara. Mas vai dar tudo certo, você já parece bem mais
disposto — meu amigo tenta me tranquilizar.
A verdade é que os últimos dias têm sido um pouco agonizantes. No
entanto, tenho feito algum progresso. Na quarta-feira, depois de ter dormido
aqui, Amelie fez um acordo comigo de que viria me ver todas as noites para
me ajudar a colocar minhas matérias em dia. Em troca, eu precisaria ter
dado algum passo importante para colocar minha vida nos eixos.
Ela entendeu que eu ainda não conseguia ir para a faculdade, mas me
lembrou que eu não podia ficar para sempre dentro do quarto ignorando
minhas responsabilidades, e bom... Ela está certa.
Um fato sobre ser adulto: é uma porra.
Na quarta-feira, logo pela manhã, quando firmamos o acordo e a
garota saiu para a aula, eu entrei em contato com o departamento da
faculdade que administra as bolsas esportivas e expliquei minha situação
para o coordenador. Existe uma espécie de vantagem em ser o capitão de um
time com o desempenho dos Lions, as pessoas naquela faculdade facilitam
absolutamente tudo pra mim.
Uma semana de faltas. É o tempo que o departamento conseguiria me
manter fora do radar do setor financeiro da Irving. A partir disso, caso eu
não volte a frequentar as aulas e os treinos, eu terei minha bolsa de estudos
retirada.
Também passei boas horas fora do meu quarto naquele dia, o que foi
uma vitória e tanto.
Na quinta-feira, eu fiz todas as minhas refeições por conta própria, e
se era um esforço doloroso para mim realizar uma atividade tão básica, para
Annelise, Tyler e Amelie foi como um grande alívio me ver reagir. No fim
das contas, vê-los contentes tornou todos os outros sentimentos em meu peito
quase que irrisórios.
Quase. Porque ainda dói feito o inferno.
Ainda na quinta, telefonei para o meu pai e para a minha tia.
Passamos um bom tempo em ligação conversando sobre o meu estado e,
claro, sobre o desfecho do caso. Pelo que entendi, o processo correrá em
segredo de justiça, e não há exatamente algo de relevante que possamos
fazer.
O fato de Jeffrey ser um agente faz com que o FBI assuma o caso para
si, ou seja, é a instituição quem está o processando. Corrupção ativa, tráfico
de informações confidenciais, tráfico de influência, homicídio qualificado
por motivo torpe + emboscada… São apenas uma pequena parte da chuva de
crimes cometidos naquela noite. Jeffrey não vai se safar dessa.
Pensar nisso é o que tem me acalentado.
Ele não vai se safar dessa.
De volta ao momento presente, termino a vitamina esquisita de
Annelise e me despeço dos meus amigos, seguindo vagarosamente até a
garagem do prédio onde minha moto está estacionada. É estranho estar
prestes a sair depois de dias fazendo da minha casa minha própria fortaleza.
Eu, meu pai e Tia Suzy combinamos de nos encontrar no cemitério
Townhill, para prestar uma singela homenagem para mamãe depois de tudo
que descobrimos. Lembrar de Jeffrey tempos atrás deixando flores no túmulo
dela, mesmo tendo sido ele o responsável pela sua morte, me deixa
indignado.
Ele nem merecia pôr os pés naquele lugar.

Por algum motivo, Nova Iorque inteira está com um tempo de merda,
exceto o Townhill. Retiro meu capacete e puxo do bagageiro o buquê enorme
de margaridas que comprei no caminho.
Encaro o portão de ferro do lugar, repetindo mentalmente o meu mantra
dos últimos dias “você consegue, você consegue, você consegue”.
Enquanto caminho pela passagem de terra do cemitério, sinto os raios
de sol do fim da manhã alcançando meu corpo e esquentando minha pele.
Nunca fui uma pessoa de muita fé, mas nem que eu quisesse conseguiria
explicar o fato do único lugar da cidade com o tempo aberto ser exatamente
este.
Tia Suzy sempre me dizia, depois de escutar meus inúmeros
desabafos inconformados pela negligência com que tratavam o caso da
minha mãe, que o dia que tudo viesse à tona nós deveríamos nos preencher
de paz. Isso porque, segundo ela, mamãe com certeza se sentiria mal nos
vendo chorar a sua perda uma segunda vez.
É um trabalho difícil, mas desde que saí de casa estou tentando
afastar aos máximo os sentimentos de raiva e mágoa. Quero conseguir
encarar isso como um ponto final para a nossa angústia, mesmo, e estou me
esforçando de verdade, ao menos hoje.
Meu peito se contrai quando vejo meu pai e minha tia de pé, um ao
lado do outro, encarando a lápide de mármore que já ouviu tantos dos meus
sentimentos.
Os dois estão vestidos com roupas claras, exigência da minha tia,
para que nós não mergulhássemos novamente no clima fúnebre. Me limitei a
uma camiseta branca e uma calça cáqui, não sou ligado nessas superstições,
mas também não sinto a mínima vontade de recriar o enterro da minha mãe
depois de anos.
Abraço Tia Suzy de primeira, que me oferece palavras de consolo e
me faz pensar que talvez eu realmente consiga fazer isso sem desabar. No
entanto, quando estou diante do meu pai, que me envolve com seus braços
por um longo tempo, repetindo incessantemente o quanto me ama, meu peito
dá sinais de que, bom… Talvez eu desabe sim.
Me afasto dele já sentindo o choro subindo para o meu rosto, mas faço
o possível para reprimi-lo. Minha tia faz uma breve oração pedindo para
que, onde estiver, mamãe esteja bem e cuidando de todos nós como sempre
fez. Patrick faz um discurso singelo, tentando não se entregar às lágrimas
enquanto relembra da grande mulher que ele tanto amou e com quem sonhou
construir sua família. Quando os dois olham para mim, eu concluo que vou
precisar dizer alguma coisa.
Puta merda.
Você consegue, repito em minha cabeça.
— Certo, eu… Bom, eu confesso que não tinha me preparado para
esse momento, e nem sei se um dia estarei preparado para falar sobre a
mulher fora de série que foi a minha mãe. Anastasia foi, a vida inteira, o meu
maior exemplo de força, coragem, resiliência, bondade e dedicação. Mamãe
se importava tanto com o bem-estar dos outros, ao ponto de arriscar sua
própria vida todos os dias para proteger aqueles que estivessem em perigo.
Fazer o bem lhe custou muito, mas eu tenho certeza de que, se fosse preciso,
ela faria tudo de novo — minha voz sai embargada, e eu abraço minha tia
como um porto seguro.
“Nunca, em mil anos, eu conseguiria traduzir em palavras tudo que a
minha mãe significou para mim, tudo que ela me ensinou, e todo o amor que
eu recebi dela. Anastasia era a minha melhor amiga, era quem me levava
café da manhã especial em todos os meus aniversários, quem deitava comigo
em minha cama quando eu tinha pesadelos.
“Minha mãe era a minha super-heroína da vida real, e até hoje
nenhum remédio no mundo foi tão eficaz contra a dor quanto os seus beijos
em meus machucados e seus abraços acolhedores. Deus sabe quantas vezes
eu acordei no meio da noite desesperado para sentir seu cheiro, ouvir sua
voz, sua risada… Você faz muita falta, mãe. Muita falta.
“E eu preciso dizer isso diretamente pra você, porque meu coração
parece que está sangrando pura dor dentro de mim, e se eu não disser em voz
alta o quanto eu te amo e o quanto eu sinto saudades, ele vai explodir.
“Então, Anastasia Harris, onde quer que você esteja no plano
espiritual, eu quero muito que você saiba que eu te amo com cada parte do
meu coração, e que não tem um dia na minha vida que eu não me lembre da
mãe incrível que eu tenho. Sinto muito que nosso tempo tenha sido tão curto,
sinto muito não ter dito mais vezes que te amava, sinto muito não ter tido
mais pesadelos só para poder dormir com você mais um pouquinho. Eu sinto
muito mesmo.
“Saiba que se um dia eu tiver uma filha, ela vai ter o seu nome.
Porque Angeline já tem os seus olhos, e ela é linda, mãe. Nossa princesa é a
menininha mais linda e doce que eu já conheci, e eu queria muito que vocês
tivessem mais tempo.”
Termino de falar com os olhos fechados e encharcados de lágrimas,
sentindo quando os braços das pessoas mais importantes da minha vida
envolvem meu corpo. Há quem diga que uma pessoa se torna inesquecível
quando faz da própria vida uma obra de arte. Mamãe foi, certamente, o filme
mais bonito que já rodou nas telas da vida.
E eu fico feliz de ter vivido ao menos quinze anos experienciando
100% do seu amor de mãe que, pra mim, é o maior do mundo.

Assim que estaciono na frente da Arena John Jay, cada um dos meus
músculos parece doer. Uma dor que excede o emocional e se arrasta para o
físico, contaminando tudo por onde passa.
Depois de passar um tempo considerável com a minha família, me
despedindo da minha mãe pela segunda vez, confesso que minha vontade era
simplesmente dirigir de volta para casa e me enfiar debaixo das cobertas.
Mas, infelizmente, ainda havia uma coisa que eu precisava fazer.
O nosso primeiro treino para a temporada regular já está no final
quando eu entro no ginásio, e assim que a porta se fecha em um baque surdo,
todos os olhos dos meus companheiros de time e da nossa equipe técnica
pousam sobre mim. Me sinto nervoso, pela primeira vez, em lidar com essas
pessoas.
Esse time, esses caras, essa faculdade, tudo isso tem sido a minha
vida nos últimos três anos. Toda a minha dedicação tem sido em prol de ser
um bom aluno, um bom jogador, um bom capitão, porque porra, eu amo fazer
isso. Amo mesmo.
E é exatamente por amar, que estou prestes a tomar uma das decisões
mais difíceis da minha vida. E sendo bem sincero, não sei como vou
conseguir, a ideia de abrir mão de algo pelo qual lutei tão arduamente me
deixa angustiado.
Me aproximo do portãozinho que separa a arquibancada da quadra, e
quando passo por ele, Bradley Butler caminha em minha direção, me
encarando com suas íris azuladas e parecendo prever que há um motivo
grave por trás da minha ausência.
— Harris — Butler me cumprimenta, escaneando-me da cabeça aos
pés.
— Treinador — falo, antes do homem me acolher em seu abraço
paternal.
— Como você está? A coordenação me disse que teve uma questão de
família para resolver, está tudo bem? — ele questiona ao se afastar.
— Eu… Hm… Podemos nos juntar aos outros? Preciso conversar com
vocês — peço, apontando para a roda onde o time está reunido sentado ao
redor de Emilly e Dave.
Bradley apenas assente e faz sinal para que eu o acompanhe.
Caminhamos juntos até o banco, onde todos os jogadores ofegam e falam
sobre o treino. Quando paro diante deles, um silêncio absoluto se estabelece,
e todos me olham em expectativa.
— Oi, gente — digo, passando com cuidado entre os jogadores
sentados no chão e me acomodando sobre o banco de madeira. — Eu
confesso que não pretendia pisar nessa quadra hoje, mas eu sei que alguns de
vocês ficaram preocupados comigo nos últimos dias e eu sinto que devo isso
ao time — começo, incerto.
Meu olhar passeia por cada rosto dos caras que se tornaram a minha
família. Chega a ser louco, mas eu sinto que os conheço com a palma da
minha mão, cada um. Sei das dificuldades que enfrentam enquanto atletas,
seus pontos fortes e fracos, sei dos medos que cada um tem ao pisar na
quadra, e sei o quanto se doam por esse grupo.
Cada um deles, sem exceção, já recebeu minha ajuda em algum
momento, seja para acertar seus arremessos, para melhorar a troca de
passes, ou só para uma conversa motivacional antes de um jogo. Eu já cuidei
de todos, ao menos um pouco.
— Eu sei que evito dividir muito da minha vida pessoal com a maioria
de vocês, e pode ser que quase ninguém saiba do que eu vou contar, mas eu
prometo não me estender muito…
Emilly, nossa fisioterapeuta, está sentada ao meu lado e passa seu
braço pelo meu ombro. O gesto me arranca um meio sorriso.
— Minha mãe faleceu quando eu tinha quinze anos. Ela era policial
federal e foi morta no exercício da profissão. — Estou me sentindo
vulnerável como nunca. — Foi um assassinato brutal que, por anos, ficou
sem solução. Mas no último fim de semana o caso foi reaberto com a
chegada de novas provas... E bom, como vocês devem imaginar, foi um
choque muito grande pra mim e pra minha família, e reviver tudo isso me
deixou muito mal. Além da morte dela ser um trauma ainda em processo de
superação pra mim, gerir todas as emoções, prestar depoimentos, toda essa
loucura burocrática acabou me destruindo bastante. — Puxo o ar com força,
contendo a vontade de chorar.
— Nós sentimos muito — Butler fala baixo, ele está de pé a alguns
passos de mim.
— Sei que sim, e agradeço por isso. Mas o ponto chave disso tudo, é
que eu passei os últimos dias trancado no meu quarto e eu repensei muitas
coisas da minha vida, inclusive o basquete. Eu amo cada segundo que
passamos nessa quadra, estar com todos vocês me traz a mesma sensação de
estar em casa, meu coração é completamente dos Lions, sempre será… —
falo, já com a voz trêmula, olhando cada companheiro de time nos olhos. —
Mas, eu não estou bem emocionalmente, e preciso cuidar de mim. Eu
definitivamente amo ser capitão, amo ter essa responsabilidade, amo cuidar
e auxiliar cada um de vocês, amo muito, mas eu sinto que não posso fazer
isso, não mais.
— Quê? — Cory Covey sopra, desacreditado.
— Vocês merecem alguém que esteja cem por cento focado nesse time,
e por ora, sinto que não sou mais esse cara. Por isso, eu vim aqui com o
coração em pedaços para entregar a braçadeira que eu tive a honra de usar
por mais de um ano e pedir para que vocês escolham o que é melhor para o
time.
Tiro o pequeno tecido do bolso e estendo na direção do nosso
treinador, já não conseguindo mais conter as lágrimas tímidas escorrendo
por meu rosto quando o objeto é retirado da minha mão. O silêncio volta a
imperar no ambiente e Butler, que sempre tem respostas afiadas na ponta da
língua, apenas encara a braçadeira em sua mão, parecendo devastado.
— Eu… — meu treinador começa, mas solta uma risada amarga. —
Que merda, Harris. Eu vou ter de ser honesto: não sei o que fazer com isso.
Não tinha em mente escolher um outro capitão, não tão cedo. — O treinador
assume, desmontando sua postura impassível pela primeira vez diante de
nós.
— Tem que ter alguém… — digo, mas sou interrompido quando Elói
se levanta num rompante.
— Porra, mas é óbvio que não tem! Ninguém, nessa maldita quadra,
merece tanto esse posto quanto Ethan, o time inteiro sabe disso! — Meu
amigo fala, e todos os olhares se focam nele. — Cara, botar uma xuxinha
com um “C” no braço de qualquer um de nós não nos faz um bom capitão.
Esse cargo não é sobre um mero título, não é sobre a glória, não é só sobre
estar à frente do time dentro das linhas de uma quadra, e você sabe disso.
— Eu sei. Mas é algo que está acima da minha capacidade, cara —
tento rebater. — Acha que eu queria estar fazendo isso? Porra, eu não queria,
mas eu estou sem opções aqui! Não posso me afundar e levar vocês comigo,
temos grandes chances de vencermos a liga, não podemos desperdiçar.
— Então não nos afunde! Não é difícil, você sabe o quanto tem se
doado por nós nos últimos anos, sabe o quanto se preocupa e o quanto cuida
de cada um, sabe o que fazer para nos deixar mais confiantes, sabe
reconhecer os pontos fortes e trabalhar os fracos em cada um de nós,
singularmente.
Meu amigo faz uma pausa para tomar fôlego e ele parece prestes a
chorar, o que me deixa tenso pra cacete. Elói Pierre não chora, é um fato
inegável, e isso prova o quanto a situação toda o afetou.
— Você conhece cada um dos seus jogadores, Ethan Harris, conhece
pra caralho, e confia em nós, acredita no nosso potencial. E é disso que nós
precisamos. Você não está bem agora? Eu sinto muito, muito mesmo, porque
você é um dos meus melhores amigos e eu posso não dizer com frequência,
mas eu te amo pra cacete. A questão é: você cuidou e escolheu o que era
melhor para esse time por esse tempo todo. Nós podemos segurar essa barra
junto com você, podemos dar conta de tudo por um tempo até que fique bem,
mas por favor, não faça a besteira de entregar a braçadeira.
Elói me encara firme. As íris azuis, quase prateadas, praticamente
imploram por uma reação minha.
— O que querem que eu faça? Não vou poder me entregar da mesma
forma que venho fazendo — explico.
— E não precisa. — É Brooks quem se levanta agora. — Qual é, cara,
o parisiense tá certo…
— Pela milésima vez, eu sou de Cannes, que inferno — Elói resmunga
e o time solta algumas risadas, quebrando o clima tenso.
— Que seja, isso não vem ao caso agora. Mas, como eu ia dizendo,
Elói está certo. Não estamos exigindo que siga fazendo o que já faz mesmo
não estando bem para isso. A única coisa que estamos pedindo é que, quando
entrarmos em quadra em algumas semanas, seja você vestindo a braçadeira,
que é sua por direito, e nos guiando para a vitória — fala, calmamente. — E
tem mais, eu não jogo se o capitão não for você.
Encaro meu amigo, completamente boquiaberto. Só pode ser um
blefe.
— Não pode estar falando sério… — sussurro.
— É claro que ele não está! Pare de pressionar o moleque, Charles. E
não se atreva a me trazer dores de cabeça, porque eu prometo que vou chutar
esse seu traseiro com tanta força, que aí sim, você vai ter um motivo para
não jogar — Butler se pronuncia, já impaciente, como sempre.
— Me desculpe, treinador, mas eu tô com o Brooks, eu também não
jogo — Elói diz, firme.
— Eu também não — Tyler ergue o braço e diz.
— Nem eu — Cory fala, me olhando com um sorriso fraterno. — Foi
mal, cara, mas até eu que acabei de chegar sei que não há ninguém como
você. Lide com isso.
O restante do time inteiro concorda, e eu sinto que meu treinador
pode morrer do coração a qualquer segundo. Definitivamente, uma revolta
dos jogadores era a última coisa que Butler pensou que teria que se
preocupar nesse início de temporada.
Fito os olhos de cada um dos caras do time e eles parecem convictos
em seu posicionamento. Assisto, quase em câmera lenta, quando Elói rouba a
braçadeira da mão do nosso técnico, — meu amigo parece ter perdido o
medo de morrer — e estende de volta para mim.
— Ninguém aqui vai entrar em quadra se isso não estiver no seu
braço. Você é o nosso capitão, Ethan, e parece que chegou a vez de
retribuirmos o tanto que já fez por nós.
Elói pisca para mim e eu me levanto, ficando diante dele. Olho para o
tecido da sua mão por alguns segundos, percebendo que não tenho para onde
fugir.
Meu coração pertence a esse time, e enquanto eu ainda puder honrá-la,
essa braçadeira pertence a mim.
Pego-a de volta e envolvo meu amigo em um abraço apertado, sentindo
os outros jogadores se juntando a nós. Meu peito aquece de forma tão intensa
que é quase impossível descrever como me sinto. Bradley Butler me ensinou
muito sobre basquete, mas a principal coisa foi que “para reconhecer um
bom capitão, basta analisar como ele é tratado pelo seu time. Se seus
homens o consideram indispensável, esse cara é excelente no que faz”.
Nesse instante, ao lembrar dessa frase, meus amigos me fazem ter a
sensação de dever cumprido. Fazem com que cada vez que me doei de corpo
e alma para defender as cores desta universidade, em quadra, tenha valido a
pena.
Se os Lions são um corpo, o abraço dos meus amigos faz com que eu
me sinta o coração. E isso reconstrói uma parte quebrada dentro do meu
peito que eles jamais poderiam imaginar.
Esse time é algo sagrado para mim. E eu nunca os deixaria, nunca.
— Somos uma família. Jogue por nós e nós jogaremos por você,
sempre foi assim — Brooks fala, com a cara enterrada em minha omoplata.
— A gente te ama pra caralho, e você sempre será o nosso capitão.
Nesse milésimo de segundo, enquanto estou esmagado pelo abraço
coletivo dos dez caras a quem eu confiaria minha vida se fosse preciso, eu
me sinto verdadeiramente feliz. O basquete me deu muito mais do que noites
de adrenalina, válvulas de escape e glória social, esse esporte me deu uma
família. Uma que, tanto quanto a sanguínea, faria de tudo por mim.
— Okay, vocês venceram. Agora, como seu capitão, ordeno que me
soltem porque vocês estão suados e fedendo pra caralho — falo, rindo, e os
caras comemoram.
Aparentemente, se existe um lugar para Ethan Harris no mundo, esse
lugar é nas quadras, à frente desta equipe.
E eu acho que posso fazer isso. Não posso?
“Para intervir entre mim e esse monstro
E me salvar de mim mesmo e de todo este conflito
Porque as coisas que eu mais amo estão me matando
E eu não posso conquistá-las”
THE MONSTER | Rihanna ft. Eminem

25 de Setembro de 2021

Meu coração está prestes a sair pela boca.


Tento controlar meu nervosismo, mas é quase impossível estando há
poucos minutos da sessão de terapia em grupo começar. Eu e Ethan estamos
sentados em um banco, do lado de fora da sala onde acontece uma sessão
anterior à nossa, e ambos estamos um tanto quanto inquietos.
Na segunda-feira, quando ele retornou às aulas, consegui convencê-lo
a vir até aqui comigo. Disse para ele que seria uma boa para nós dois falar
um pouco sobre nossos sentimentos em um ambiente seguro e monitorado por
um profissional, principalmente depois das turbulências que ambos vivemos
e, por incrível que pareça, ele concordou.
Me apressei em entrar em contato com o departamento da psicologia
que organiza os grupos de apoio e agendar nosso horário, conforme Megan
me orientou. Aproveitamos para estudar um pouco na biblioteca para matar
tempo depois da aula, e agora, faltando menos de cinco minutos para a
sessão começar, me sinto angustiada e nervosa por estar prestes a lidar com
minhas emoções.
Ethan está com a cabeça apoiada em meu ombro e as pontas dos seus
dedos brincam com o tecido do seu casaco, que está abrigando meu corpo.
Saí do alojamento hoje com o céu limpo e um sol forte pairando sobre a
minha cabeça, no meio da tarde, no entanto, o tempo virou bruscamente e a
chuva me pegou desprevenida. Embora eu tenha tentado veementemente
recusar, o garoto insistiu para me emprestar a peça quando me viu batendo
queixo em nossa aula de Cultura das Mídias.
Então cá estou eu, desfilando pela Irving com um casaco do time de
basquete que tem “HARRIS” gravado nas costas junto com um “03”, o
número da sua camisa de jogo.
Mais um “check” na lista de coisas que eu jurei que jamais faria.
Erguemos nossos olhares quando a porta ao nosso lado se abre e um
grupo de pessoas sai conversando animadamente de dentro da sala, dentre
eles, Elói Pierre, que se despede de um casal de meninas que reconheço dos
corredores da faculdade. O francês não nos vê, por estar indo na direção
contrária, e Ethan apenas o encara um tanto surpreso.
— É o seu amigo, não vai falar com ele? — questiono, discretamente.
— Acredite, Coelhinha. Conheço Elói bem o suficiente para saber que
ele teria um derrame se soubesse que vimos ele saindo desta sala. O cara é
reservado em níveis absurdos — ele explica perto do meu ouvido, e eu
assinto.
— Como se sente? — pergunto, me virando de frente para ele.
Ethan me olha nos olhos, analisando-me com precisão.
— Um pouco melhor, mas ainda dói — diz, sincero.
— Vai passar, eu prometo — reafirmo o que tenho dito desde a semana
passada, me agarrando na ideia de que isso realmente vai acontecer.
— Sei que vai. Nós vamos ficar bem, linda.
O garoto fala baixo, mas com segurança e se aproxima com cautela,
deixando um beijo carinhoso em minha testa. Fecho os olhos, aproveitando
cada segundo do momento afetuoso e me perguntando como, no meio desse
caos, ele ainda consegue me oferecer apoio. Sinto quando Ethan me abraça
com delicadeza, eu deito o rosto em seu ombro, ouvindo-o repetir que vamos
ficar bem.
E acredito.

O grupo de apoio é, coincidentemente, monitorado pela professora


Lisandra Melbroke. Uma das professoras que tivemos no segundo ano, que
coordenava nossa disciplina de Ética. Lisandra nos explica que a dinâmica é
uma extensão do seu projeto de doutorado em Psicologia Educacional, e que
o grupo de apoio da Irving é um dos cinco que ela toma conta.
Antes da sessão começar, ela nos deixa livres para pegarmos uma
xícara de chá e escolhermos um assento que nos deixe confortáveis. A sala
em que estamos possui paredes, piso e decoração em tons de branco, salvo
alguns objetos em azul claro. Há cerca de vinte poltronas acolchoadas
dispostas em círculo, e algumas almofadas no chão, para os que preferirem.
Ethan e eu nos sentamos lado a lado, ocupando duas poltronas. Estou
bebendo um pouco de chá e observando os outros alunos se acomodando.
Me pego pensando que fazer isso sozinha seria três vezes pior, e que é
reconfortante estar aqui com um amigo.
— Boa noite, pessoal. Sejam muito bem vindos para mais uma sessão
do nosso grupo de apoio. Temos colegas novos hoje conosco, então preciso
relembrar algumas das nossas regras, certo? — Lisandra fala pausadamente
e num tom de voz angelical. Todos nós assentimos. — Okay, em primeiro
lugar, tudo que conversamos aqui é sigiloso, então nada que for dito nessa
roda sai dessa roda. Vocês podem e devem falar quando sentirem vontade, e
qualquer desconforto que nosso debate venha a gerar em alguém, deve ser
sinalizado imediatamente, tudo bem?
Nós assentimos mais uma vez, e ela pega seu bloco de anotações.
— Agora, repitam comigo: este é um lugar seguro, eu sou livre para
sentir.
— Este é um lugar seguro, eu sou livre para sentir! — respondemos
em coro.
— Muito bom! E aí? Quem vai querer começar hoje?
Uma menina chamada Riley levanta a mão e a professora Melbroke
lhe faz perguntas sobre sua semana. Pelo que entendi, a menina convive com
transtorno de ansiedade em nível mediano, e constantemente tem
pensamentos sabotadores. Ela conta que sentiu que progrediu desde o último
encontro e que teve uma semana menos inconstante de humor. Logo depois
dela, um garoto chamado Peter faz um desabafo forte sobre estar se sentindo
sem propósito e ter pensamentos ruins rondando sua mente.
É inevitável sentir um gosto amargo quando ele cita alguns
comportamentos narcisistas da sua mãe, que acabam contribuindo para que
ele se sinta pior, porque é como se alguém estivesse descrevendo o meu pai
bem na minha frente. Quando enfim chega a minha vez, meu estômago se
contrai em puro nervosismo.
— Hm, oi, gente! Meu nome é Amelie, e eu sou nova nesse lance de
terapia em grupo — digo, meio desconcertada, e recebendo os cumprimentos
das pessoas na roda.
— Você já fez terapia alguma vez, Amelie? — Melbroke pergunta.
— Já, quando eu era mais nova. Mas depois que tive alta, nunca mais
cogitei a ideia — assumo.
— Certo — ela diz, anotando algo em seu bloquinho. Alguém sabe o
que os teraputas tanto anotam? — Nos diga, como foram os seus últimos
dias?
— Quer uma resposta sincera?
— Sempre — ela afirma.
Respiro fundo, tentando organizar as coisas em uma ordem que faça
sentido na minha cabeça.
— Honestamente, foram uma baita de uma droga — desabafo. Uma
garota da roda me oferece um sorrisinho. — Uma pessoa próxima de mim
está sofrendo, e eu sinto que não posso fazer nada para mudar isso. Essa
sensação de impotência está me matando, porque eu descobri que odeio
muito ver essa pessoa triste e me odeio muito mais por não conseguir ajudá-
lo da melhor maneira. Às vezes, eu penso que queria sentir as coisas de uma
maneira normal, menos intensa. Mas eu não consigo, é tudo sempre tão brutal
e devastador que me deixa um pouco perdida… Dói.
Eu concluo fazendo uma careta, como se a dor a qual me refiro
estivesse atingindo-me fisicamente, feito uma adaga fria.
— Ser intensa não é problema algum, Amelie — Melbroke diz, calma.
— O ponto é, você pode se questionar até onde essa intensidade é saudável,
e até que ponto ela te adoece. É preciso achar um equilíbrio, entende?
— Sim, eu… — Expiro, um pouco exausta. — É meio difícil
controlar. Quando vejo já estou entrando em uma erupção de sentimentos
como um vulcão ativo.
— Vamos trabalhar isso aos poucos, sim? — ela pergunta, e eu
assinto. — Essa é só a sua primeira sessão. Todos aqui estão aprendendo
aos pouquinhos, vai ser assim com você também. Tem mais alguma coisa que
gostaria de dividir conosco?
Penso sobre tudo que aconteceu entre mim e Esteban. Parece tão
surreal dividir isso numa roda com pessoas desconhecidas que, de início, me
sinto meramente intimidada. Sinto quando a mão de Ethan envolve a minha e
ele deixa um aperto encorajador, e o gesto não passa despercebido pela
professora.
— Eu… Eu tenho — começo, com a voz baixa. — Recentemente, eu
cortei de uma vez por todas a minha relação com o meu pai. Era algo
completamente abusivo, e eu sinto que ele conseguia sugar cada gota de
bondade que eu tinha. Em partes, eu me sinto bem por ter conseguido me
livrar disso, depois de tantos anos envolvida por esse ciclo vicioso e
doentio. Mas por outro lado, eu me sinto péssima — faço uma pausa,
resgatando o fôlego e prendendo o choro.
— Tome o tempo que precisar — Lisandra me garante.
— Eu consigo fazer isso — digo, mais para mim do que para o
restante dos presentes. — Eu nunca pensei que um dia precisaria fazer o que
fiz, que precisaria me afastar dessa forma porque não suportaria nenhum
segundo a mais abaixando minha cabeça diante dele. Nunca pensei que
erguer meu queixo e encará-lo de frente seria tão libertador e, ao mesmo
tempo, tão doloroso. Nunca pensei que a mágoa me envenenaria ao ponto de
eu precisar me afastar porque… — Me interrompo quando sinto uma lágrima
quente escorrer por minha bochecha. — Porque continuar acatando suas
ordens como um bichinho me deixaria doente. Eu estava a ponto de ficar
cega de tanta raiva, e isso não sou eu…
“Durante todo esse tempo, eu lutei muito para não me perder da minha
essência, para não deixar que o “Castillo” me fizesse esquecer da “Amelie”,
lutei muito para não cair no maldito erro de me igualar a ele. Essa é a única
coisa da qual eu me orgulho sem hesitar: eu sei exatamente quem eu sou, e
ele nunca conseguiu tirar isso de mim, mesmo tentando muito.
“E se eu continuasse tendo-o na minha vida, eu não duvido que, em
algum momento, eu me cansaria, falharia, e ele conseguiria me manipular
com uma maestria exemplar. Como se já não bastassem os anos que passei
me questionando o que eu tinha feito para merecer que eu fosse tratada como
um ser desprezível, alguém que não é digna de amor, eu não merecia me
perder de mim mesma também. Tenho certeza absoluta disso.
“A partir de agora, meu único foco é melhorar, crescer pessoalmente, e
conseguir resgatar a minha relação com a minha mãe. Ela sim precisa de
mim, da minha ajuda, e ela sim, merece a minha atenção e os meus esforços.
E é pra isso que eu estou aqui, quero ser uma pessoa boa, quero ajudar ela a
se livrar do seu alcoolismo e quero conseguir perdoá-la. O resto,
honestamente, pra mim, é resto.”
Minhas mãos estão trêmulas e minha voz está embargada. Toda a roda
fica em silêncio quando termino de falar, e Lisandra me encara de forma
aparentemente neutra, mas consigo ver um fundo de compaixão em suas íris.
Ethan espalma sua mão com delicadeza em minha coluna e faz um afago,
tentando me acalmar.
— Você é tão forte que mal percebe o tamanho da sua grandeza — é
Peter quem fala, baixinho, me olhando com admiração. Temos histórias
parecidas, e sinto que ter contado que me livrei de um pai narcisista está lhe
dando esperanças. — Amelie, você teve a coragem que eu venho lutando a
anos para ter, de cortar o mau pela raiz, isso é simplesmente uma vitória
gigantesca.
— Obrigada — agradeço com a voz falha. — Você vai conseguir,
acredito muito nisso.
É nessa hora que eu entendo o efeito da terapia em grupo. Pessoas
com problemas diferentes, em estágios diferentes, podem ser mais parecidas
do que pensam. Falar sobre nós, além de aliviar nosso próprio coração,
pode acalentar o do outro.
— Peter está certo. Ter conseguido sair de uma situação tão complexa
e delicada, ter reunido forças o suficiente para conseguir pôr um basta em
algo que lhe feria, isso demanda uma evolução e coragem muito grandes,
Amelie — Lisandra diz, doce. — Tenho certeza de que vai conseguir tudo
que almeja, essa determinação é um ponto de início crucial.
Eu apenas assinto, sentindo meu coração consolado por ora. E então,
quando me recomponho, chega a vez de Ethan falar e eu já me preparo para
apoiá-lo, caso precise de mim.
— Bom… Oi, eu sou o Ethan, essa também é a minha primeira vez
aqui, e eu não sei bem como começar isso — ele fala, sem graça.
— Que tal começar nos contando sobre a sua última semana? — a
professora sugere e Ethan ri amargamente. Sei, pela forma como ele se
remexe na cadeira, que está cansado de falar sobre os acontecimentos do fim
de semana.
— Posso dar um breve resumo? Não sei se consigo repetir tudo mais
uma vez, fiz muito isso nos últimos dias — assume.
— Como quiser.
— Descobri coisas sobre a morte da minha mãe, que aconteceu anos
atrás, e isso me deixou abalado. A dor do luto nunca me deixou, de fato, mas
agora ela está mais intensa, e está exigindo um esforço muito grande para me
manter firme e forte — Seu tom oscila entre a tristeza e uma pitada de
indignação. — E eu tô exausto pra caralho de fingir que tá tudo bem, muito
exausto.
— Meus pêsames — Melbroke diz baixo, ignorando o palavrão. —
Ethan, se me permite dizer, você não precisa se manter firme e forte o tempo
inteiro, não precisa esconder o que está sentindo e se blindar em sua própria
dor. Está tudo bem desabar às vezes, está tudo bem ter momentos de
vulnerabilidade, faz parte de ser humano. Você só não pode deixar que essa
dor te afunde para sempre.
— E-Eu… Eu sei, só é complicado — Ethan responde, envergonhado.
— Vamos fazer um combinado? Se permita viver o seu luto, tire o
tempo que achar que precisa, mas aproveite esse tempo também para se
fortificar, o que acha? — ela questiona, oferecendo um acordo.
— Acho bom — concorda. — Eu realmente preciso de um tempo. Mas
honestamente, não quero e nem pretendo ficar para sempre sentindo essa dor
horrível. Quero continuar me lembrando da minha mãe de uma forma boa.
Temo que mergulhar nesse luto acabe contaminando minhas memórias sobre
ela. Enfim, estou lutando para melhorar.
— Focar nos momentos bons que sua mãe viveu pode ser um bom jeito
de começar — uma garota com piercing na sobrancelha sugere.
— É… Acho que sim.
— Como eu disse, é tudo uma questão de equilíbrio, e vamos
encontrar ele juntos, tudo bem? — Lisandra pergunta, e ele assente.
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Lisandra não passa a vez
para ninguém, apenas observa Ethan com um olhar atento.
— O que mais está te incomodando, Ethan Harris? — questiona, com
seus olhos de águia sobre ele.
O garoto sobe seu olhar na direção dela, parecendo confuso, mas algo
na troca de olhares entre os dois o faz murchar.
— Eu não sei se deveria, ou poderia, dizer isso aqui — confessa.
— Este é um lugar seguro, pode dizer o que quiser — a professora
rebate.
Por alguns instantes, fico confusa, mas quando as íris castanhas do
garoto encontram as minhas, eu sei que não é mais sobre a mãe dele que
estamos falando.
— Acho que odiei ouvir uma das pessoas mais incríveis que já
conheci dizer que já se sentiu um “ser desprezível” — ele diz, olhando
diretamente nos meus olhos. — Queria que ela soubesse o quanto eu a
admiro por ser tão forte, e o quanto ela é importante pra mim. Ela tem sido
tão leal, tão parceira e tão carinhosa comigo num momento tão ruim, uma
verdadeira força, e é aterrorizante que ela não se veja com o mesmo carinho
que eu a vejo.
Cada palavra penetra em meu peito com tamanha profundidade, que
preciso respirar fundo para controlar o impulso de apenas chorar feito uma
criança. Demonstrações de afeto sempre têm um efeito muito grande sobre
mim.
— Ethan… — falo, sentindo meu coração apertar. De repente, tudo ao
nosso redor parece ter sumido.
— Não sei se cheguei a te dizer isso, mas eu tenho muito orgulho da
sua atitude de lutar pelo seu próprio bem. E não é que você não mereça o
amor dos seus pais, a verdade é que você merece muito mais do que
recebeu. Muito mais, e você ainda vai ter isso, tenho certeza.
De soslaio, vejo Lisandra nos encarando um pouco surpresa, talvez
por ainda se lembrar das nossas desavenças de tempos atrás, já que já fomos
seus alunos. As pessoas ao nosso redor sorriem fracamente, e sei que,
mesmo não sabendo o tanto que Ethan sabe, elas concordam com ele.
— Obrigada — sibilo, antes de abraçá-lo de lado, secando a lágrima
solitária que desce em meu rosto.
Ele é o melhor amigo do mundo, e eu queria muito ter descoberto isso
antes.
A sessão segue até o final recheada de confissões, desabafos e
histórias tão complicadas, até mais do que as nossas. De fato, falar sobre
nossas dores com pessoas que também estão passando por algum tipo de
tormenta acaba tornando o ambiente mais empático. Me solidarizei com cada
história que ouvi ali, e recebi a mesma empatia de cada um deles. Foi como
receber um enorme abraço, e entender que não estou sozinha.
Senti que eu, Ethan e todas aquelas pessoas ainda temos muito para
aprender e crescer juntos, e isso me faz pensar que talvez encontrar a paz
não esteja tão distante assim, embora o caminho seja longo.
“Este peso é demais sozinho
Há dias em que não consigo carregá-lo de jeito nenhum
Você o pega por mim
Quando amanhã for demais
Vou carregá-lo por completo
Tenho você”
I GOT YOU | Jack Johnson

25 de Setembro de 2021

Amelie e eu saímos da sessão de terapia completamente absortos em


nossos próprios pensamentos. O silêncio absoluto que paira entre nós é
confortável e ambos estamos assimilando algumas coisas em nossas cabeças
enquanto rumamos para fora do instituto de psicologia. Quando chegamos ao
estacionamento do prédio, no entanto, não sei se já quero me despedir.
— Com fome? — pergunto. Amelie cessa seus passos quando estamos
diante do seu carro.
— Muita. Seria capaz de devorar um banquete sozinha, eu juro — ela
fala, parecendo desesperada, e eu solto uma risada.
— Passa a chave. — Estendo minha palma aberta em sua direção. —
Sei de um lugar que você vai gostar.
— E a sua moto?
— Prefere ir nela? Eu definitivamente não iria me incomodar —
sugiro.
— Sem chance! — Amelie chia e coloca a chave do seu carro na
minha mão.
— Foi o que eu imaginei. Eu a busco quando vier te deixar em casa —
explico enquanto destravo a porta do carona para a garota entrar.
— Sempre um cavalheiro — ela suspira, debochada, antes de entrar no
veículo.
— Com você? Sempre mesmo, nunca se sabe quando vou tomar um
nocaute — rebato, rindo, antes de dar a volta e me sentar atrás do volante.
— Eu não testo a paciência de boxeadoras, Coelhinha, tenho amor à minha
vida.
— Jura? Não parece! — Ela finge estar emburrada, mas logo sua cara
feia se desmancha num sorrisinho.
Puta merda, adoro vê-la sorrir.
Amelie coloca uma playlist calminha para tocar enquanto eu dirijo
com atenção. O vento gelado pós chuva entra pelos vidros abertos,
bagunçando nossos cabelos e, vez ou outra, quando paramos no sinal, eu
desvio o olhar para vê-la usando meu moletom para se aquecer. A peça fica
ridícula de tão gigante nela, e as mangas escondem suas mãos, deixando-a
fofa pra cacete.
Queria que a Amelie e o Ethan de meses atrás pudessem nos ver
agora, de inimigos declarados para melhores amigos, seria uma cena e tanto.
Principalmente porque a Amelie do passado teria um colapso se vendo
caminhando pelo campus com um moletom que carrega o meu nome.
Por esse plot twist ninguém esperava, isso é fato.
“I Got You”, de Jack Johnson, está tocando no carro. É uma música
gostosa e eu ouço a garota cantarolar baixinho.
— This weight's too much alone, some days I can't hold it at all, you
take it on for me, when tomorrow's too much, I'll carry it all, I've got you...
“Este peso é demais sozinho
Há dias em que não consigo carregá-lo de jeito nenhum
Você o pega por mim
Quando amanhã for demais
Vou carregá-lo por completo
Tenho você”
Ela sorri envergonhada quando percebe que estou a encarando. Volto
a dirigir apreciando o clima leve que alcançamos depois de externar nossas
dores. Assim que vejo o letreiro vermelho do restaurante, paro na primeira
vaga que encontro e nós descemos do carro. Caminhamos juntos até o Los
Tacos, o melhor restaurante mexicano da cidade segundo… Bom, segundo eu
mesmo.
— Trazer uma descendente mexicana num restaurante mexicano —
debocha assim que entramos. — Eu poderia detestar comida mexicana,
sabia?
— Você não detesta, linda — falo, rindo, enquanto caminhamos até
uma mesa vaga perto da janela.
— Como você tem tanta certeza? — Amelie está implicando comigo
de propósito, e eu acho, no mínimo, engraçado.
— Okay, vamos lá — bufo, enquanto nos sentamos. — Amelie
Castillo, você detesta comida mexicana?
Ela me encara com os olhos semicerrados, os cotovelos apoiados na
mesa e um bico para se fazer séria, mas que me faz querer rir. Os cachos
estão bagunçados pelo vento e ela está quase sumindo no meu casaco.
— Não detesto — assume, frustrada.
— E eu sabia disso, sua chatinha. Já te vi comendo nachos no almoço
e você só falta colocar tempero no seu matcha. Estereótipos são uma merda,
mas você tem alguns traços culturais no seu dia a dia — explico. — E tem
mais, eu não te traria num lugar que não tivesse certeza de que você gostaria.
Pisco para ela, e seus olhos se reviram em automático. Quem eu
quero enganar? Simplesmente adoro esses momentos.
Deixo nas mãos dela a escolha dos pratos, mas a garota fica tão
indecisa diante das mil opções que, diga-se de passagem, ela ama, que no
fim acabamos pedindo uma porção de nachos e uma de tacos.
Enquanto esperamos, nós dois engatamos em um debate sobre o que
achamos da sessão de terapia, chegando num consenso de que aquilo
certamente nos fez bem e pode nos ajudar. Amelie tinha me convidado
apenas para experimentar, deixando que a decisão dela de seguir com os
encontros não tivesse relação com a minha escolha.
No fim, decidimos que continuaremos frequentando juntos, assim
podemos lembrar um ao outro do objetivo que temos de melhorar, e nos
apoiarmos quando um de nós dois pensar em desistir.
— Posso perguntar uma coisa? — questiono, cortando o silêncio que
se instaurou enquanto comemos.
— Claro! O que houve?
— Como conseguiu fazer aquilo? Digo, falar sobre como se sentiu na
frente de tantas pessoas. Você é… Sei lá, bastante fechada.
— Ah, aquilo? Eu já fiz terapia antes, aos dezoito. É meio
desconfortável pra mim falar dessas coisas, ainda mais com tanta gente
desconhecida, mas eu sei que o tratamento só funciona quando nos abrimos
de verdade. Um sacrifício em prol de algo maior — explica.
— Acho que vou precisar me acostumar com isso ainda — encaro
minhas mãos, descansando sobre a mesa.
— Eu vou ajudar você — ela diz, doce, cobrindo o dorso das minhas
mãos com a sua palma. — Estamos juntos nessa.
Poucas vezes na minha vida me deparei com pessoas tão leais e
determinadas como Amelie Castillo, essas são qualidades que ela exala e
que eu admiro verdadeiramente. É bom saber que a tenho por perto, e melhor
ainda saber que fomos nós quem construímos, com respeito e resiliência,
cada pedacinho dessa amizade que, hoje, eu não me vejo mais sem.
“Nos sentindo paralisados onde estamos
Com medo de ver o que nos tornamos
Você é as palavras na minha língua
para a minha canção favorita”
MOVIE MY MIND | Saint Raymond

23 de Outubro de 2021
O último mês acabou sendo uma mistura insana de caótico com
sereno.
Depois da minha briga com o meu pai, de colocá-lo em seu devido
lugar, por incrível que pareça, Esteban Castillo resolveu que chegou a hora
de me dar um sossego. Não vou mentir, seu silêncio ainda é um pouco
perturbador, mas a satisfação de estar quase um mês inteiro sem notícias
suas é muito superior.
Sem suas constantes ameaças e tendo a certeza de que estou
respaldada pela lei, focar minhas atenções na faculdade se tornou uma tarefa
muito mais tranquila e empolgante. O que significa que minhas notas estão lá
no alto e eu mal posso esperar para que a disputa pelo estágio comece a se
acirrar.
Além disso, tenho mantido uma rotina de ligações constantes com
Virgínia. Ao menos uma vez por semana, nós passamos cerca de trinta
minutos apenas jogando papo fora. Eu a conto sobre a faculdade, ela me
conta sobre suas viagens e eventos da alta sociedade, e assim, aos poucos, o
carinho vai se sobressaindo à mágoa, conquistando seu espaço.
Ainda temos muitas coisas para acertar e uma conversa séria para
colocar em pratos limpos, mas estamos usando esse primeiro momento para
nos reaproximarmos e, de fato, nos conhecermos. Sei que ela teve outras
duas recaídas fortes no último mês, mas não me chamou para ajudá-la,
apenas me contou por ligação, sendo franca comigo como pedi que fosse.
Ainda assim, estou confiante que, em pouco tempo, vou conseguir
convencê-la a buscar ajuda. Esse é o meu foco a partir de agora.
Assim como eu, Ethan também está muito focado nos estudos, fazendo
um malabarismo impecável entre as aulas e os jogos dos Lions, tendo um
bom aproveitamento nos dois. Acabou que, depois de passado o choque
inicial das descobertas sobre o caso de sua mãe, aos poucos, o garoto tem se
reconstruído, e seu alto astral costumeiro tem lhe acompanhado com uma
quase regularidade.
É inegável o quanto receber o suporte do time o ajudou,
principalmente depois de todos os jogadores terem lhe provado sua lealdade
e admiração, se negando a entrar em quadra sem que ele fosse o capitão. Mal
consegui controlar minha felicidade quando ele me contou sobre isso. Nós
também seguimos frequentando juntos o grupo de apoio com a Melbroke, e
eu sinto que a cada sessão as coisas parecem muito melhor organizadas em
seu peito e em sua mente.
Num modo geral, posso considerar que, enfim, uma calmaria está
perto de chegar para ficar. Embora estudar feito louca e trabalhar na
cafeteria me deixe um pouco cansada, nada de muito terrível tem acontecido,
e eu me limito a agradecer. Cantar vitória antes da hora não faz o meu feitio.
Devo pontuar também que Ethan e eu temos passado um bom tempo
juntos, e que, a cada dia que passa, sinto que temos nos tornado
indispensáveis na vida um do outro. Seja nas horas estudando na biblioteca,
nas comemorações pós jogos no nosso bar favorito, nas sessões de terapia e
até mesmo nas muitas noites em que acabei passando deitada em seu sofá,
aquecida pelo seu corpo e com Bruce ressonando no meu pé.
Nenhum de nós dois nunca chegou a relembrar a “amizade colorida”
que havíamos acordado na noite em que nos beijamos. O assunto se tornou
quase que velado entre nós, e embora estejamos seguindo como se nada
tivesse acontecido, sempre que estamos juntos, nossos toques um no outro e
nossas piadinhas acabam cruzando a linha da amizade.
Sempre que isso acontece, um clima denso paira no ar e um dos dois
recua. Eu sempre acabo desviando o assunto e me afastando. Ethan, por
outro lado, faz alguma piada ainda mais sugestiva para nos causar
gargalhadas até que consigamos esquecer a agitação em nossas veias.
É agoniante não saber como proceder, parecemos estar testando
terreno antes de nos aventurarmos. Como se, depois de tudo que aconteceu,
ambos precisássemos colocar a cabeça no lugar e rever nossas decisões. Eu,
pessoalmente, me sinto em uma corda bamba entre aceitar o fato de que
gostei de ficar com ele, e que repetiria isso, com o fato de que, se dermos
continuidade, seria um lance casual, e eu não sou muito boa com esse tipo de
coisa.
Acontece que eu não consigo parar de pensar em como nosso beijo
foi bom. É inevitável e acontece com frequência. Quando menos espero, as
lembranças dos seus lábios atacando os meus, e suas mãos passeando pelo
meu corpo com avidez, metralham minha cabeça e meu corpo se torna febril.
Uma merda. Uma grande merda.
Dormir em sua casa mais de uma vez por semana não tem ajudado
muito a amenizar esse estrago, confesso. O apartamento que ele divide com
Annelise e Tyler acabou se tornando um ponto de encontro dos nossos
amigos, e estamos lá o tempo inteiro. Às vezes me pergunto como o garoto
tem conseguido manter sua vida sexual ativa, já que passamos a maior parte
do tempo juntos, mas, honestamente, não me permito pensar sobre isso por
muito mais do que alguns segundos.
A mínima menção a ele se deitando nos braços de outra garota como
se deita nos meus me deixa incomodada, mesmo que eu não deva. Não é
como se eu estivesse com ciúmes, porque seria patético, já que não temos
nada, mas é um pouco frustrante pensar tanto em alguém e saber que essa
pessoa provavelmente está com a língua na garganta de outra pessoa.
Por isso que eu detesto a casualidade, penso.
Meus devaneios são interrompidos quando o dispenser de café apita,
informando que terminou de despejar o capuccino de Charles Brooks no
copo de papel. Tampo o recipiente e o coloco sobre a bandeja, com o
restante dos pedidos feitos pela mesa dos meus amigos.
Convoquei uma reunião de emergência e estamos há mais de uma
hora combinando a festa surpresa de aniversário de Ethan. Estamos no final
de outubro, e o dia 27 ser num sábado praticamente me obrigou a organizar
algo legal para o meu melhor amigo. Embora ele tenha dito que não queria
nada demais, fiz questão de pensar em algo que ele se lembrará por um
tempo.
Depois de tudo que rolou, quero que seu aniversário seja um dia para
celebrar a sua vida, e que ele veja o quanto ela pode ser bonita, apesar da
dor. Ouvi-lo dizer que sentia vontade de desistir me doeu mais do que o
normal e eu não quero que esse pensamento volte para sua mente nunca mais.
Distribuo os copos com os cafés e chás para Megan, Tyler, Charles,
Elói, Annelise e Lily, que não está em turno hoje. Minha amiga e a Mansen
mais nova estão finalmente namorando e as alianças de compromisso
prateadas brilham nas mãos das duas quando pegam suas bebidas.
— Certo, todo mundo entendeu tudo, então? — pergunto, e eles
assentem. — Ótimo, só repassem rapidamente suas funções para eu ter
certeza. Ele deve estar chegando já já.
A única forma de nos reunirmos sem levantar suspeitas do garoto foi,
justamente, marcar um encontro de todos, incluindo ele. E passá-lo o horário
errado. Por isso, Ethan acha que todo o pessoal está chegando agora, quando
na verdade estão aqui há um bom tempo.
— Eu e Megan vamos cuidar da decoração — Lily diz.
— Eu vou atrás de um dj — Annelise ergue a mão.
— Eu vou fechar o aluguel do Grove’s —Tyler avisa.
— O bolo é por minha conta — Charles fala, rindo, e eu já não tenho
certeza de que é uma boa ideia.
— E eu, vou transportar o aniversariante — Elói conclui.
— Perfeito! Vou supervisionar tudo e arrumar o bar no dia da festa —
digo, empolgada. — Ele vai adorar!
— Claro que vai, a ideia foi sua — Charles provoca, e eu lhe faço
uma careta. — Falando no cachorrinho...
A frase morre no ar quando o sino da cafeteria soa e Ethan passa pela
porta num look que descobri ser o meu paraíso particular. Calça de moletom
cinza clara, camiseta branca lisa e tênis. É um visual casual comum, mas
algo na forma com que o garoto desfila pela cafeteria em sua postura
arrogantemente ereta, me faz querer agarrá-lo e…
Droga, está acontecendo de novo. Quero beijá-lo.
Engulo seco quando ele se aproxima da mesa, eu sou a única de pé.
Ao invés de se sentar com os outros, Ethan cumprimenta todos de uma vez
só, se desculpando pelo “atraso”, antes de passar o braço por meu ombro e
me deixar um beijo estalado na bochecha.
— Oi, linda — fala, perto do meu ouvido, fazendo uma carícia
discreta no meu pescoço.
Argh! Desgraçado.
— Oi, já sabe o que vai querer? — respondo, baixo, tentando soar o
menos afetada possível.
— Você quem manda, qualquer coisa bem doce, por favor. Acordei
puto com a dieta hoje. — Ter voltado para a rotina de jogos e dieta rigorosa
está destruindo o bom humor dele e dos garotos.
— Vocês podem, pelo amor de Deus, esperar para se comer com os
olhos dentro de um quarto? — Charles fala, e a mesa toda ri, com exceção
de nós dois.
— Nem começa, cara — Ethan o recrimina, se afastando de mim e se
sentando ao lado do garoto.
Vou até o balcão e preparo um frappuccino de caramelo caprichado e
com bastante chantilly para Ethan, além de um matcha latte com cobertura de
chantilly pra mim. Aviso para minha dupla de turno que vou tirar meu
intervalo e me junto ao restante da galera na mesa nos fundos da cafeteria.
“Conheço você há meses, ainda me deixa nervoso
O que está me segurando? Não tenho nada a perder
Bem, espero que você não me olhe como um amigo
Mas eu adoro quando você me olha assim
Já posso te beijar?”
CAN I KISS YOU | Dahl

23 de Outubro de 2021

Tem alguma coisa errada acontecendo.


Noto isso no instante em que Amelie desvia da cadeira vaga ao meu
lado e se senta no sofá, de frente para mim, espremida entre Elói Pierre e
Tyler. Ela está se esforçando ao máximo para agir naturalmente, mas a essa
altura do campeonato, eu a conheço o suficiente para saber quando está
escondendo algo.
Só não sei exatamente o que.
Passamos o último mês inteiro parecendo gêmeos siameses. Sério,
foram raros os dias em que eu não estava grudado na garota, e por isso sinto
que já decorei boa parte das suas expressões e reações. Amelie é uma
pessoa fácil de ler, extremamente expressiva, e isso facilita um pouco, já que
ela não fala muito sobre como se sente.
Desde que o assassinato da minha mãe veio à tona, tenho lutado
arduamente para conseguir seguir normalmente com a minha vida. A terapia
e o basquete tem sido peça chave nesse caminho, e eu não poderia ser mais
grato por ter os companheiros de time que tenho. Os Lions têm honrado
fielmente a sua promessa de estarem ao meu lado durante essa fase estranha.
É como se, pouco a pouco, o Ethan de antes estivesse voltando em
uma versão melhorada. Eu definitivamente amo a terapia, e se antes falar
sobre meus sentimentos era complicado, agora, eu conto as horas para estar
naquela sala pondo para fora tudo que sinto. Isso tem me ajudado a vencer
dores que me acompanham desde muito antes de Jeffrey ter se entregado.
Meus pensamentos se interrompem quando meu celular vibra no
bolso da minha calça. Meus amigos estão rindo e conversando animadamente
sobre algo que eu não faço ideia do que seja.
Coelhinha: você está distraído, tudo bem?
Sorrio e ergo o olhar, o suficiente para checá-la. Amelie está
escondendo o aparelho debaixo da mesa enquanto finge participar da
conversa.
Eu: Poderia dizer o mesmo sobre você. Por que não se sentou
comigo?
Coelhinha: Está com saudades de mim, Harris? Sei que sou incrível,
não precisa ficar carente.
Eu: Ah, linda, estou carente de muitas coisas relacionadas a você,
mas vou deixar que descubra sozinha.
Envio a última mensagem antes de bloquear o aparelho e colocá-lo no
bolso. Encaro Amelie que está com o olhar preso no telefone, digitando
freneticamente. Deixo que suas mensagens cheguem, mas não me atrevo a
olhá-las. Quando suas íris encontram as minhas de novo, eu sei que consegui
desconcentrá-la.
Um fato sobre mim: eu começo a perder a vergonha na cara e a
paciência quando algo que eu quero muito demora para acontecer. E nas
últimas semanas, eu quero muito beijar essa garota de novo, só que
aparentemente nosso lance foi abandonado no passado e Amelie não me dá
um maldito sinal para avançar.
Sem brincadeira, a minha situação está beirando o desespero, e isso é
vergonhoso. Toda vez que estamos juntos, o que significa sempre, eu não
consigo parar de lembrar da sua boca deliciosa na minha, dos meus dedos
segurando seus fios de cabelo e dos seus suspiros em meus lábios. Beijar
Amelie é como chegar ao paraíso descendo ao inferno, quente e convidativo
demais para querer deixar de lado.
Preciso beijá-la de novo, talvez mais do que isso, mais do que uma
vez. E preciso logo, ou corro sérias chances de ter um colapso.
E o pior de tudo, é que parece que ela fez alguma coisa com a minha
cabeça — tanto a de baixo quanto a de cima — que eu simplesmente não
consigo superá-la. Tem que ser ela. Sério, estou sem transar desde que nos
beijamos, o que é tempo pra caralho na minha rotina, mas eu não consigo
simplesmente seguir em frente. Ao invés disso, venho tentando ser paciente e
esperando a hora certa para agir, o que é difícil quando convivo com a minha
maior tentação quase vinte e quatro horas por dia.
— Terra chamando Ethan Harris — Lily fala, sacudindo sua mão na
frente do meu rosto e me puxando de volta para a roda de conversa.
— Foi mal gente, viajei — digo, rindo. — Do que vocês estão
falando?
— Eu acabei de perguntar o que você quer de aniversário — Charles
explica e eu bufo.
— Já falei que não quero nada. Vamos só, sei lá, sair pra encher a cara
e cantar parabéns num muffin, tá ótimo. E não quero presentes — aviso,
porque é a cara de Charles me mandar um bolo com uma stripper dentro.
— Puta merda, vou ter que cancelar as strippers — ele finge frustração
e eu gargalho, mas sei que está brincando. Ou não, nunca se sabe.
No mesmo instante, Amelie parece engasgar com a sua bebida,
atraindo a atenção de todos da roda. Lily e Megan soltam risadas altas pela
chantilly do matcha da garota que voa sobre a mesa, e Charles sibila
“ciúmes?” na minha direção, me fazendo revirar os olhos.
— Certo, sem strippers, sem bolo, sem presentes. Porra, que ideia de
aniversário chata hein, cara. Tá fazendo 23 ou 50? — Elói comenta, e nós
rimos.
— Eu só me importo com que vocês estejam comigo, galera.
Independente do lugar ou das coisas.
— Awn, como você é fofo! Nem parece que detesta quando uso sua
escova de cabelo — Megan provoca.
— Claro, você deixa a porra de uma peruca loira de brinde toda vez
que usa! — reclamo, com uma careta enojada.
— Qual o seu problema com loiros, hein? — Elói brinca.
— Longe da minha escova de cabelo? Amo todos.
— Fresco! — Amelie e Tyler fingem tossir.
— Esqueçam o que eu disse, não quero ver a cara de nenhum de vocês
no meu aniversário — resmungo, fingindo estar bravo.
Acabamos engatando em uma conversa pra lá de aleatória sobre as
coisas das quais temos “nojinho”. Lily não perde tempo em relembrar o dia
em que quase desmaiei no dormitório das meninas, o que faz Charles e Elói
quase rolarem de rir.
Perco a noção de quanto tempo passamos lá falando besteiras e rindo
sem parar. O intervalo de Amelie acaba, e a garota volta ao trabalho,
atendendo os clientes no caixa. Um por um, nossos amigos vão embora, até
que reste apenas Tyler, Megan e eu.
— Amor, precisamos ir — Meg fala baixo para o namorado, ganhando
minha atenção.
— Cara, vou levar ela para o plantão. Amelie tá sem carro, eu ia dar
carona, mas você se importa de deixá-la em casa? Assim não preciso fazer
duas viagens — ele explica, e eu aceito de imediato.
— De boa, vai lá! — confirmo, me despedindo do casal.
Espero pacientemente a garota terminar seu turno e se trocar. Quando
sai da sala de descanso dos funcionários, Amelie está vestida num
macaquinho florido e passa meu moletom, que está com ela há semanas, pela
cabeça. Seus olhos miram meu rosto assim que o tecido passa por eles, e sua
expressão ao notar que foi pega no flagra é impagável.
— Eu sabia que você ainda usava ele escondido — provoco-a, rindo,
quando me aproximo dela.
— E-Eu… Eu ia te devolver, juro que ia, mas pensei que já tivesse ido
embora. — Ela parece envergonhada enquanto caminhamos para fora da
cafeteria, e seu rosto fica vermelho. — Onde estão Tyler e Megan?
— Tyler precisou levar Meg pro plantão, eu vou te levar para casa —
explico, e então seus olhos se fixam na minha moto parada rente ao meio-fio.
— De jeito nenhum eu subo nessa coisa de novo, desiste! Vou pedir um
Uber — avisa, abrindo sua mochila para pegar seu celular.
Seguro seu pulso com uma das mãos, sem machucá-la, e fecho o zíper
da bolsa com a outra. Amelie ergue o rosto em minha direção, uma careta
indignada a toma e eu preciso me esforçar para não dar risada. Puxo-a para
perto, colando seu corpo ao meu e a encaro com um sorriso maroto.
— Subiu na minha moto quando ainda me odiava, qual a dificuldade
agora, hum? — pergunto, movendo meu polegar inocentemente pela pele do
seu pulso.
As íris escuras da garota saltam por todo o meu rosto, nervosas, e
noto quando ela engole seco ao se demorar um pouquinho mais encarando
minha boca. Merda, se ela soubesse o quanto eu tenho pensado em sentir
seus lábios nos meus mais uma vez…
— Eu ainda não gosto de andar de moto, eu tenho medo de cair —
confessa, quase perdendo a voz.
Sorrio, levando a mão que não está segurando seu pulso para a lateral
do seu rosto e faço carinho em sua bochecha.
— Você confia em mim? — pergunto, manso. Amelie assente
freneticamente. — Então, você confia quando digo que eu jamais faria algo
imprudente e que colocasse sua vida em risco?
Ela hesita, movendo o seu foco para a moto atrás de mim. Seguro seu
queixo com delicadeza, fazendo com que a garota me encare.
— Linda, eu te prometo que vamos bem devagar, você vai estar segura
e sem nenhum arranhão quando chegarmos no alojamento. Sim? — falo com
firmeza.
— Não pode prometer isso — ela rebate.
— Assim como estar dentro do seu carro não te isenta de um acidente.
Inclusive, convenhamos, aquele troço vai mais ao mecânico do que você vai
ao médico. A probabilidade dele te deixar na mão é anos luz maior do que a
da minha moto — eu dou risada e Amelie acerta um soco no meu braço
enquanto prende uma gargalhada.
— Filho da mãe, tocou em um ponto sensível — resmunga.
— Foi mal, em breve você vai comprar o seu carro novo e esse
pesadelo acaba. Agora, vamos? — pergunto, me afastando para abrir o
bagageiro e pegar os capacetes.
— Quais as minhas opções?
— Nenhuma. Não vou deixar você pegar um Uber sozinha, já está
ficando tarde. Se acontecer alguma coisa com a minha melhor amiga, vou ser
obrigado a matar o cara e você sabe, sou pacifista — argumento, e ela passa
as mãos pelo rosto, se dando por vencida.
Coloco o capacete em sua cabeça e aperto, de leve, a pontinha do seu
nariz, porque ela fica fofa pra caralho quando é contrariada. Subo na moto,
colocando a proteção em mim, e a ajudo a subir e se acomodar. Sinto quando
seus braços envolvem minha cintura com força e ela deita sua cabeça nas
minhas costas.
— Pronta? — pergunto, girando a chave na ignição.
— Odeio você, seu projetinho de bad boy dos infernos!
— Você também é linda, Coelhinha — retruco, sentindo um beliscão
na minha barriga.
Acelero apenas o suficiente para ganhar as ruas do Midtown East,
mantendo a velocidade baixa que prometi. Enquanto as rodas da moto
deslizam sobre o asfalto, Amelie me abraça com força e sinto que ela está
exalando tensão.
Tomo o cuidado de me manter a uma distância grande dos outros
veículos e de permanecer na fileira junto aos carros, sem passar pelo
corredor. Reduzo a velocidade devagar, quando o sinal a alguns metros se
fecha, e assim que paro completamente, levo uma das minhas mãos até meu
abdômen, deixando um aperto em seus dedos.
— Tudo bem por aí? — pergunto rindo.
— Sim! — a garota responde, brava.
A cafeteria onde Amelie trabalha fica a alguns quarteirões do
campus, então não demora muito para estarmos diante da escadaria da
Chisholm House. No mesmo instante em que estaciono, ela salta para fora da
moto, fazendo um sinal como se agradecesse aos céus.
Dramática, como sempre.
— De nada, pela carona — provoco, antes de desprender o fecho do
capacete e puxá-lo da sua cabeça. Faço o mesmo com o meu logo em
seguida.
— Odiei cada segundo.
— Que mentira! Você adora ficar abraçadinha em mim! — Dou risada
do seu semblante emburrado.
— Vai sonhando.
Amelie fica parada na minha frente, com um bico do tamanho do
mundo, enquanto uso a ponta dos dedos para realinhar seus cachos castanhos
que ficaram uma bagunça por conta do capacete. A garota apenas me observa
em silêncio, e quando percebo seus fios em ordem, escorrego minha mão
para sua bochecha, me perdendo na visão hipnotizante dos seus lábios tão
perto.
“Por que nós não continuamos?” Me pergunto, escaneando seu rosto
e me corroendo por dentro pela vontade de tomar sua boca novamente.
— O quê? — Amelie parece ter sido puxada de um devaneio.
Pisco repetidas vezes, me sentindo um pouco desconcertado ao
perceber que, puta merda, pensei em alto e bom som. Abro a boca, prestes a
formular alguma sentença que, possivelmente, entregaria meu desespero, mas
a fecho, apenas sacudindo a cabeça num gesto de “deixa pra lá” e lhe
direciono um sorriso.
— Boa noite, Coelhinha. Até amanhã — me despeço, antes de deixar
um beijo em sua bochecha.
— Boa noite, Ethan. A gente se vê.
Amelie parece pensativa quando se vira e sobe a escada do prédio
com rapidez, mas antes mesmo que eu tenha a oportunidade de perguntá-la se
está tudo bem, a garota passa pela porta de vidro, me deixando com a visão
dela se afastando vestida no meu casaco.
Cacete, Amelie Castillo e seus beijos infernais estão deixando minha
cabeça uma bagunça.
“E toda noite minha mente se volta para ela
O trovão está ficando mais e mais alto
Amor, você é como um raio em uma garrafa
Eu não posso deixar você ir agora que eu a tenho”
ELETRIC LOVE | BORNS

27 de Outubro de 2021

Desde que entrei na faculdade minha vida social foi de zero a cem
numa velocidade um tanto assustadora. Se no ensino médio eu era só mais
um cara no time de basquete e, às vezes, dava alguma sorte com as garotas, a
vida universitária me fez alcançar o mais alto nível da escala social.
Como consequência, meus dois últimos aniversários foram
comemorados em festas pra lá de extravagantes na casa da fraternidade da
qual Elói é membro. E não é como se eu tivesse detestado, pelo contrário,
foram festas fodas, que rodaram por semanas nos assuntos do campus.
Esse ano, no entanto, sinto que uma parte de mim não quer mais saber
de toda essa atenção. Se tem uma coisa que a terapia vem deixando bastante
límpida em minha mente é o fato de que, pra mim, nada se compara a estar
com os meus amigos e a minha família. E ter eles comigo é a única coisa que
realmente pode tornar esse dia especial.
Já passa das quatro da tarde, o sol está se pondo no horizonte enquanto
eu, meu pai, Tia Suzy, Esther e Angeline comemos, cada um, uma fatia
generosa de torta holandesa.
Acordei na manhã do meu aniversário sendo esmagado por Tyler,
Annelise e Bruce. Cantamos parabéns em um donut de caramelo que meus
amigos compraram na padaria da esquina, e depois disso, Tyler e Lise foram
se encontrar com suas namoradas enquanto eu vim passar o dia com a minha
família, fazendo um piquenique no parque às margens do rio Hudson.
Minha irmã está sentada no meu colo e estamos dividindo uma fatia da
torta. Pego um pedacinho pequeno com a colher e levo até a boca de
Angeline, que está soltando um “hmmmm” a cada mastigada. Sem
brincadeira, acho que eu e a torta holandesa competimos em igualdade pelo
amor da garotinha.
— Thitan, você deveria fazer aniversário todos os dias! — fala,
empolgada.
— Só para você se empanturrar de torta, né? — implico, fazendo
cosquinha nela. — Mas pense só, se todos os dias fossem meu aniversário,
você não ia ter o seu dia e nem a sua torta gigante — eu a lembro. Tia Suzy
faz o doce três vezes maior para o aniversário dela.
— É verdade. E você já ia estar bem velho, não ia conseguir correr
comigo pelo parque — pontua, cogitando que talvez meus aniversários
infinitos não sejam uma boa ideia.
— Eu sempre vou correr com você no parque, Anjinha, mesmo quando
eu estiver bem velhinho e minha corrida estiver mais para uma caminhada.
— Eu já vou ser adulta quando você estiver velhinho, Thitan, não vou
querer correr no parque. — Angeline empina o nariz e joga os fios das suas
duas maria-chiquinhas para trás.
— Você vai ser uma adulta chatiiiiiinha, hein — meu pai implica,
fazendo minha irmã fechar a cara.
Nós todos caímos na gargalhada. Angeline, no entanto, se mantém
impassível. É engraçado como ela tem um gênio forte igualzinho ao da
mamãe e pensar nisso faz meu peito se apertar em saudade. Hoje, porém, não
permito que essa saudade seja recheada de melancolia. Hoje é um dia feliz e
sei que Anastasia gostaria que eu o aproveitasse.
— Você vai ser uma adulta muito incrível, Anjinha. Não ligue para ele
— sussurro em seu ouvido e ela sorri para mim com os olhinhos brilhando,
pegando o prato com a torta da minha mão e comendo mais um pedaço.
— Estou vendo vocês confabulando aí, crianças — Patrick ri e eu
abraço Angeline antes dela se deitar sobre a toalha de piquenique.
— E aí, querido, já tem planos para mais tarde? — é minha tia quem
pergunta.
— Mais ou menos, estou decidindo ainda com a galera o que vamos
fazer.
— E “a galera” seria…?
— Tyler, Annelise, as namoradas deles, uma amiga e os caras do time
— respondo, sob o olhar investigador de Suzy. — Estava sem saco para
organizar uma festa.
— Entendi… — minha tia fala, sem deixar de me encarar.
— O que tá acontecendo, hein? — questiono, confuso. Só então Esther
se intromete.
— Suzan, pare de ser fofoqueira, deixe o garoto em paz — ela adverte,
dando risada. Franzo o cenho, ainda mais intrigado. — Sua tia ainda está
curiosa para saber quem é a garota que te fez sair correndo do nosso jantar
— Esther explica, e eu levo alguns segundos até juntar os pontos.
Ah, que ótimo, esse assunto. Desde a fatídica noite em que abandonei
nossa comilança de sushis para ajudar Amelie, minha tia acha que estou
escondendo um namoro e está pegando no meu pé sempre que consegue.
Segundo ela, eu sou um excelente amigo, mas eu parecia nervoso até demais
para quem precisava apenas ajudar uma amiga em apuros.
Essa merda nem faz sentido.
— Já falei que ela é só uma amiga, tia, pare de pensar besteiras —
resmungo.
— Amiga nova? Por que eu não a conheço? — Agora é o meu pai se
intrometendo.
— É exatamente o que eu venho me perguntando — Tia Suzy retruca, e
eu agradeço aos céus pelo fato de que Angeline está entretida demais
mexendo no celular da Esther.
— Porque, como eu disse, ela é uma amiga. Não teria sentido eu
marcar um evento para apresentá-la. Vocês vão conhecê-la naturalmente —
falo, como se fosse óbvio.
— Você por acaso já beijou ela? — Às vezes, eu odeio pra caralho ter
tanta intimidade com a minha tia.
— Não vou discutir isso com você, Suzan Harris, não mesmo — Digo,
sério, antes de tomar um gole do suco em meu copo.
— Você é um péssimo sobrinho — ela resmunga.
— E vocês duas são um casal lindo. — Aponto para ela e para Esther,
mudando de assunto com maestria. — Como foi a repercussão da mudança
no status de relacionamento?
Depois de quase um ano se escondendo, Esther finalmente foi
efetivada em seu novo emprego e as duas puderam, enfim, gritar aos quatro
cantos do mundo o quanto se amam. Engatamos em uma conversa animada
sobre o quão bem acolhidas elas foram por todos ao seu redor, e em como o
Instagram de Tia Suzy está parecendo um fã clube para a namorada.
O restante da nossa tarde é agradável. Brinco com Angeline na
grama, abro os presentes do meu pai, da minha tia e de Esther. Fofocamos
sobre alguns acontecimentos recentes da família Harris e assistimos o sol se
pôr no rio, ao som dos clássicos do John Mayer. Fazia tempo que eu não
passava um momento tão feliz e tão gostoso com essas pessoas que tanto
amo, e fazer isso ao comemorar mais um ano de vida me deixa realmente
feliz.

De volta ao meu apartamento, o relógio em minha mesa de cabeceira


marca sete da noite quando entro em meu quarto apenas com uma toalha
presa na cintura e outra sobre o ombro, que estou usando para secar o
cabelo.
Elói Pierre me enviou uma mensagem uma hora mais cedo, ordenando
que eu me arrumasse porque ele encontrou, segundo ele, o lugar perfeito para
irmos beber, e mesmo que eu tenha relutado, ele insistiu em vir me buscar.
Visto uma combinação de calça jeans preta, camiseta da mesma cor e
tênis branco. Penteio meu cabelo com os dedos, deixando-o no aspecto
“bagunçado sem querer” de sempre, que Amelie vive reclamando.
Pensar nisso também me faz perceber que ainda não nos falamos hoje
e, por um segundo, me questiono se ela se esqueceu do meu aniversário ou se
apenas escolheu me parabenizar quando nos virmos mais tarde.
No instante em que dou a última borrifada de perfume em meu
pescoço, meu celular vibra e eu vejo a mensagem de Elói avisando que já
chegou. Guardo minha carteira, celular e chaves no bolso, antes de me
despedir de Bruce e checar seus potinhos de comida e água. O elevador está
vazio e assim que chego no hall de entrada do prédio, avisto o Cadillac XT4
marrom de Charles estacionado na porta.
— Feliz aniversário, cara — Elói me parabeniza, sorridente, assim
que me sento no banco do carona. — Tá cheiroso, hein. Querendo
impressionar alguém?
O olhar sugestivo me faz grunhir antes de fechar a porta ao meu lado.
— Obrigado, e não, não quero impressionar ninguém. Isso — aponto
para mim — , meu amigo, é o milagre que faz um bom banho e o não-uso de
nicotina. Devia tentar.
Elói ri, sacudindo a cabeça de um lado para o outro em negação.
Antes de dar a partida, ele puxa uma tragada do cigarro eletrônico preso
entre seus dedos e solta a fumaça, deixando o carro inteiro com um cheiro
enjoativo de menta. Ele tem sorte de Charles ser tão fumante quanto ele,
porque se fosse o meu carro, eu o mataria.
— Pra onde estamos indo, afinal? — pergunto antes de clicar sobre a
tela do painel e avançar as músicas. — E cadê o Brooks?
— Bom, sobre isso, cara…
— Ah, não. Que merda você arrumou dessa vez?
— Nenhuma, eu juro! Só meio que não achamos um lugar legal, então
vai ter que se contentar com o Grove 's — ele fala, com um sorrisinho de
criança que foi pega fazendo merda.
Não é de todo mal, afinal, é o meu bar favorito. Elói passa o caminho
inteiro quieto, com os olhos fixos na direção, e eu aproveito o tempo para
responder as dezenas de mensagens de aniversário do meu Instagram.
O trajeto do meu apartamento para o bar no centro de Manhattan é
relativamente rápido, por isso, não demora muito até que meu amigo
estacione o carro de Brooks em uma vaga na lateral do Grove 's. Salto para
fora do Cadillac ainda distraído com o celular enquanto caminho, ao lado de
Elói, até a porta do estabelecimento.
Estranho o silêncio vindo de dentro do lugar, algo raro em um sábado
à noite, mas nada se compara ao completo choque em que fico ao passar
pelo batente e encontrar um completo breu, que rapidamente é substituído
quando as luzes se acendem e todos os meus amigos gritam em coro:
— SURPRESAAAAAA!
Ca. Ra. Lho.
Olho ao redor completamente incrédulo. O bar inteiro está decorado
como uma boate e predominantemente com as cores da Irving. Tecidos azuis
foram colocados nas paredes, bolas de basquete estão por todo canto,
fazendo parte da decoração. Há também uma cesta móvel em um canto que
simula uma quadra, e atrás da mesa do bolo, minha tão amada camisa três
está enquadrada e centralizada na parede.
Está tudo impecável e eu mal consigo piscar, tamanha a minha
surpresa. Corro o olhar pelo ambiente identificando apenas rostos
conhecidos, além dos membros do nosso grupo mais fechado, os caras do
time, alguns integrantes da associação atlética da faculdade e alguns
estudantes do meu curso com quem tenho mais contato também estão
marcando presença.
Elói pousa as mãos nos meus ombros e me empurra até a mesa
recheada de guloseimas onde consigo ver um bolo alto, redondo e azul com
“GOSTOSO HÁ 23 ANOS” escrito em letras garrafais brancas no topo dele.
— Por que será que eu tenho quase certeza de que isso é obra de
Charles Brooks? — pergunto, rindo.
— Porque é, eu não mandei ele fazer isso — a voz de Amelie chega
aos meus ouvidos e eu me viro em sua direção.
Magicamente, o mundo ao meu redor gira mais devagar, e eu me sinto
completamente hipnotizado por ela.
A garota está com um vestido amarelo justo que vai até o meio das
suas coxas. O decote reto e profundo deixa seus seios evidentes e valoriza
seu colo. As alças finas estão parcialmente cobertas pelos seus cachos que
caem perfeitamente em seus ombros, e a maquiagem simples realça toda a
beleza que ela já tem.
Fodidamente linda.
Sinto seu perfume de baunilha tomando toda a atmosfera ao meu redor
quando ela passa seus braços pelos meus ombros e me abraça apertado. Me
curvo um pouco para enfiar meu rosto na curva do seu pescoço e envolvo
sua cintura, puxando-a para perto.
— Parabéns! Muitas felicidades, muitos anos de vida, muita saúde,
você sabe o quanto se tornou importante pra mim — ela fala, empolgada,
dando beijinhos na minha bochecha. — Desculpa não ter ligado mais cedo,
estava ocupada cuidando para que sua noite fosse incrível.
Me afasto sorrindo, apenas o suficiente para visualizar seu rosto e
seus olhos brilhando em expectativa.
— Planejou tudo isso sozinha? — pergunto, sem acreditar.
— Em tese, sim. A ideia foi minha, mas todo mundo ajudou — ela
explica, com um sorriso orgulhoso.
— E que bela mandona você arrumou pra gente, hein, cara — Brooks
fala, dando risada, ao se aproximar de nós. — Feliz vinte e três anos, você é
foda!
Depois de abraçá-lo, faço menção de ir até o restante do pessoal, no
entanto, Amelie me segura pelo pulso. Olho para ela e, imediatamente,
reparo no embrulho em sua outra mão, que não estava lá quando nos
cumprimentamos.
— Seu presente de aniversário. Espero que goste, fiz com carinho —
ela diz, ao me entregar.
Pego o presente com um sorriso radiante nos lábios já em
antecipação. Puxo o lacre do papel laminado decorado e noto que é uma tela.
Antes mesmo de puxá-la da embalagem, subo meu olhar para a garota, que
me encara exalando expectativa para a minha reação, e murmuro um “não
acredito”, me sentindo completamente honrado de ganhar mais uma das suas
artes.
E dessa vez por livre e espontânea vontade.
Tiro a pintura do saquinho e a seguro diante dos meus olhos, a tela em
branco foi colorida por um belo jardim, um céu azul vívido com nuvens
fofinhas como algodão, um gramado verdinho cheio de detalhes repleto de
tulipas e margaridas.
Nossas flores preferidas.
Depois de toda a reviravolta que minha vida sofreu, acabei revelando
para Amelie sobre a minha relação com as flores que, um dia, foram as
preferidas da minha mãe. Foi engraçado ver seu queixo quase ir ao chão
quando percebeu a coincidência que cometeu ao desenhar pequenas
margaridas no meu tênis, mas é melhor ainda perceber que ela entendeu o
significado desse símbolo pra mim.
É o quadro mais lindo que já vi, sem dúvidas.
— Muito obrigada por isso, Coelhinha. De verdade, eu amei! — falo,
sorrindo, e lhe dando um abraço desajeitado. — É a primeira vez que
alguém, que não é a minha mãe, pinta um quadro para mim. Me sinto
especial.
— Você é especial — ela gesticula enquanto fala, apontando ao redor.
— Veja quantas pessoas que se importam com você vieram até aqui te
prestigiar!
É verdade. Mas, ainda assim, o quadro desperta esse sentimento em
mim, muito mais do que a festa.
Cumprimento um por um dos convidados da festa agradecendo pela
presença e desejando que se divirtam. Quando termino de falar com a última
pessoa, Tyler e Megan me puxam pelas mãos até o bar onde meus amigos
estão reunidos ao redor de oito copinhos de tequila. Brindamos juntos e eu
entorno o líquido na minha boca sentindo-o queimar minha garganta.
E como diria Tyler Mansen em sua época de solteiro: depois do
primeiro shot entrego a noite nas mãos de Deus, porque se deixar nas
minhas, eu vou fazer besteira.
E põe besteira nisso.
“Diga-me porque você tem que olhar para mim desse jeito
Você sabe o que isso faz comigo
Então, amor, o que você está tentando dizer?
Ultimamente, tudo que eu quero é você em cima de mim”
GOODNIGHT N GO | Ariana Grande

27 de Outubro de 2021

“Dangerous Woman”, da Ariana Grande, dá suas primeiras batidas


nas caixas de som quando meu olhar encontra o dele. Ethan está próximo da
pista de dança, numa roda de conversa com os meninos do time, mas sua
atenção é inteiramente minha e isso, instintivamente, faz com que uma chama
se acenda em meu corpo.
As luzes roxas do teto colaboram com o clima lascivo, e eu tenho
medo de estar babando enquanto escorrego meu olhar pelo garoto. Ele está
de pé, com os braços cruzados, vestido todo de preto e com os cabelos
quase desgrenhados. A manga da camiseta está esticada pelos músculos
contraídos, permitindo a visão de uma parte da tatuagem de vênus em seu
braço.
Ele está ridículo de tão bonito, e eu simplesmente não consigo olhar
para outra direção.
Passar a semana inteira evitando-o o máximo que eu conseguia para
planejar os detalhes dessa festa foi o suficiente para que eu sentisse falta do
seu toque e, consequentemente, me fez pensar no seu beijo mais vezes do que
o normal. Não estou exagerando quando digo que estou ficando louca, eu
realmente estou.
Poucos metros nos separam, mas o seu olhar queima ao escorregar do
meu rosto e descer por todo o meu corpo. A música tem uma batida sensual e
eu me aproveito dela para dançar mexendo meus quadris com lentidão e
luxúria.
Subo minhas mãos pelo meu pescoço, jogando meus cachos para trás,
e entreabro a boca, soltando o ar devagar. Encaro Ethan firmemente, como se
meus olhos fossem capazes de gritar por mim o quanto eu o quero por perto,
e ele parece entender o recado, porque levam segundos para que ele esteja
pedindo licença para os amigos e caminhando na minha direção.
Sorrio satisfeita quando ele para na minha frente e suas mãos pousam
direto na minha cintura. Com um único movimento rápido, Ethan me gira,
colando minhas costas ao seu peito.
Um arrepio desce por minha espinha quando ele afasta o cabelo do
meu ombro direito e encaixa seu queixo ali, sinto sua boca próxima ao meu
ouvido e sua respiração batendo em meu rosto. Danço lentamente contra ele,
fechando os olhos com força para afastar a erupção de sensações correndo
por minhas veias.
— Isso está me lembrando da última festa em que fomos juntos — fala
baixo, e pela forma com que aperta minha cintura, sei que as lembranças do
nosso beijo são bem vívidas para ele também.
— Sente falta dessa festa? — pergunto, e minha voz sai mais afetada
do que o esperado.
— Da festa em si, eu não me lembro de quase nada. Minha atenção
tinha dona naquela noite.
— E hoje? — Viro-me de frente para ele e passo meus braços pelo seu
pescoço.
— Hoje, eu mal consigo me lembrar que é meu aniversário porque eu
só consigo olhar pra você e me perguntar se esse vestidinho é algum tipo de
técnica de tortura — ele fala baixo, no meu ouvido, e eu sinto quando sua
mão escorrega até a minha bunda deixando um aperto discreto.
— Desgraçado — rosno.
— Gostosa.
Ele fala rindo e mordendo a linha da minha mandíbula.
Afasto-me um pouco, o suficiente para olhá-lo nos olhos e, caramba,
acho que nunca antes alguém me olhou desse jeito. Ethan parece me devorar
em sua mente.
— Podemos ser práticos? Já estou cansada dessa enrolação — falo,
antes de puxá-lo pela mão em direção à saída dos fundos do bar.
Meu corpo está pegando fogo e minhas pernas estão trêmulas,
tamanha a ansiedade que estou para dar um fim nessa angústia. Assim que
passamos pela porta, empurro seus ombros contra a madeira e fixo o olhar
em suas íris escuras. Ethan me encara com divertimento e ergue os braços
em sinal de rendição, como se me desse passe livre para fazer o que eu
quiser.
— Se sairmos daqui e fingir de novo que isso nunca aconteceu, eu juro
que mato você, entendeu? — pergunto, e ele assente, se deleitando com o
meu desespero. — Que bom. Senti saudades.
Sorrio antes de avançar em sua direção e grudar minha boca na sua
com uma certa dose de urgência. Ethan me puxa com força, colando nossos
corpos, e eu quase gemo de satisfação quando sua língua mergulha em minha
boca e se choca com a minha.
Eu já disse que beijar esse cara é um evento?
Beijo-o sentindo toda a intensidade que, depois de anos, só fui
encontrar nos lábios dele. Ethan me experimenta devagar, explorando cada
parte da minha boca com possessividade, e deixando claro que eu,
definitivamente, não fui a única sentindo falta de cometer loucuras.
Minhas mãos inquietas passeiam por seus braços apertando seus
músculos fortes e, sendo um pouquinho mais ousada, infiltro-as por baixo da
sua camisa, arranhando os gomos definidos do seu abdômen, sentindo-o arfar
em meus lábios.
Pelo amor de Deus, como esse cara é gostoso, meu cérebro berra,
enlouquecido.
Sinto que estou à beira de um colapso quando Ethan enfia os dedos
entre os fios do meu cabelo, prendendo-os em sua mão, e os puxa com a
força exata para me fazer suspirar alto. Adoro como ele me toca, a
selvageria de quem está à beira do descontrole faz meu ego inflar. Sinto
meus pelos se eriçarem quando ele desce uma trilha de beijos molhados e
chupões pelo meu pescoço, até chegar em meu colo.
Me derreto sob o carinho que sua mão livre faz ao subir pelo meu
braço, indo de encontro a uma das alças do vestido. Ele enrosca o dedo nela,
puxando-a para baixo, distribuindo beijos e lambidas em toda a minha pele
exposta e seguindo para o meu decote.
Entretanto, num segundo de lucidez, seguro seu pulso com força, o que
o faz se afastar.
— Desculpa. Passei do limite? Você está bem? — pergunta,
preocupado, fazendo carinho na minha bochecha, e eu preciso conter o
sorriso bobo.
Ugh! Ethan Harris, desgraça de homem!
— Estou ótima. Só que… — Penso em como dizer isso da maneira
mais sucinta possível. — Eu quero isso, tudo. Então, se vai começar a tirar
minha roupa, quero que faça quando puder ir até o final, porque é o que eu
quero. Ir até o final.
Imagine um sorriso grande. Agora multiplique por mil. É o tamanho
do arco que se forma no rosto do garoto ao processar minhas palavras.
— Você tá de carro? — questiona, e eu assinto. — E cadê a chave?
— Lá dentro na minha bol… Espera! Não vou transar com você no
meu carro! Você mal cabe dentro daquela coisa! — chio, e Ethan gargalha.
— É claro que não, linda. Eu jamais iria sugerir isso, vou foder você
na minha cama — ele diz, antes de me dar um selinho rápido. — Vamos
embora, vai buscar a chave que eu te encontro no estacionamento. Certo?
Esse cara é louco.
— Vai embora no meio da sua festa de aniversário? — brigo.
— Sim? É uma questão de prioridades, uma questão beeeeem fácil,
por sinal. Você planejou uma festa incrível, mas, porra! Já se olhou no
espelho hoje? — Ele aponta para mim como se fosse uma escolha óbvia. —
Vamos, te vejo em um minuto.
Ethan me dá outro beijo antes de sair em direção ao estacionamento e
eu volto para dentro do bar, de fininho, pegando minha bolsa e o presente
que dei para o garoto de cima da cadeira. Quando estou prestes a retornar
para a saída, no entanto, Megan aparece na minha frente com um olhar
investigador.
— Meg, preciso ir. Nos vemos amanhã, okay? — sibilo, nervosa,
tentando controlar minha ansiedade.
— Onde você vai? — Minha amiga ergue a sobrancelha com
desconfiança, e ali, eu sei que estou perdida.
— Imprevisto de última hora, preciso mesmo ir.
Tento passar por ela, mas Meg segura o meu braço e me lança um
olhar mortal.
— Não minta pra mim, Amelie Castillo, eu sou a sua melhor amiga
e…
— Minha mãe do céu — bufo. — Eu estou indo transaaaaaar —
sussurro, nervosa, e ela forma um “o” com a boca. — Pode me dar licença,
Melhor Amiga Mais Linda do Mundo Inteiro?
Megan solta uma risada alta e afasta a mão do meu braço antes de
soltar um “vai lá e arrasa, garota!”. Me despeço dela com um beijo na
bochecha e caminho em direção à porta, mas não sem antes ouvi-la chamar
meu nome mais uma vez.
— O que foi?
— Cadê o Ethan? — pergunta, inocente, e eu sinto vontade de rir.
Lanço um sorriso sacana e levo o indicador aos lábios pedindo que
guarde segredo. As sobrancelhas loiras de Megan quase vão ao teto e seu
queixo cai em completa descrença quando entende o que quis dizer.
Mando um beijinho no ar para a minha amiga, deixando para trás sua
imagem boquiaberta e corro, com uma empolgação acima do normal, até o
estacionamento, onde Ethan me espera apoiado no meu carro com um
sorrisinho de canto capaz de molhar calcinhas. A minha, primeiramente.
Pelo amor de tudo que é mais sagrado, como raios nós viemos parar
aqui?
“Mostre-me como você gosta
Você é toda minha
Eu vou fazer você se sentir como se fosse única
Tire suas roupas
Me dê sua confiança
Olhe-me nos olhos e confesse sua luxúria”
DO IT FOR ME | Rosenfeld

27 de Outubro de 2021

Minha mente é uma mistura caótica de tudo que envolve seu corpo no
instante em que passamos pelo batente da porta do meu apartamento, nos
atracando em beijos e mordidas nem um pouco comportadas. O cheiro
adocicado dela instiga completamente meus sentidos e sinto como se eu
pudesse explodir, definitivamente.
Estou ciente de que Tyler e Annelise podem resolver vir pra casa a
qualquer momento, no entanto, isso se torna completamente irrelevante ao
passo que os dedos finos, recheados de anéis, de Amelie deslizam por entre
meus fios de cabelo e os apertam com força.
Prendo seu corpo contra a parede, levando uma das mãos até o seu
pescoço, e uso meu polegar para acariciar sua pele e apertá-la na medida
exata para tirá-la do sério enquanto devoro seus lábios de maneira faminta.
Nossas línguas parecem travar uma batalha em nossas bocas e eu sinto meu
fôlego sumindo aos poucos. Puxo o lábio inferior de Amelie entre os dentes
e o chupo, ouvindo-a gemer manhosa, bem baixinho, fazendo meu pau
acordar.
Grunho nervoso antes de me abaixar e escorregar as mãos por suas
coxas, até a parte interna de seus joelhos e puxá-la para o meu colo. Amelie
ri baixo, envolve meu quadril com as pernas e meus ombros com os braços,
enterrando o rosto na curva do meu pescoço. Minha pele se arrepia quando
sinto ela espalhando uma sequência de beijos que são como o próprio
inferno tocando minha derme.
Enquanto sigo até o meu quarto, a situação dentro das minhas calças se
torna completamente calamitosa. Pode ser que eu esteja me deixando levar
pelo calor do momento, mas acho que nunca ansiei tanto por uma transa na
minha vida.
Passo pela porta e fecho-a com o pé, tomando cuidado para não fazer
muito barulho e atiçar Bruce. Assim que ouço o som do trinco, me afasto em
direção à cama.
Curvo-me sobre o colchão, deixando Amelie deitada sobre o lençol, e
quando nossos olhares enfim se reencontram, sei que essa mulher ainda vai
foder com a minha cabeça de uma tal forma, que nem muitos anos de terapia
vão conseguir curar, porque eu poderia gozar só com o vislumbre dela
exatamente como está.
Com os cabelos desgrenhados, os lábios inchados, o vestido amarelo
justo suspenso até o limite do quadril e um olhar intenso que promete a
melhor noite que já tive.
— Jesus Cristo, você é linda pra caralho — sopro, analisando cada
detalhe do paraíso que é tê-la deitada na minha cama para o melhor dos fins
possíveis.
Essa mulher…
Eu não preciso estar dentro dela para saber que, possivelmente, vou
ficar viciado em tê-la só pra mim dessa forma. Puta. Merda. Ainda não
acredito que isso está mesmo acontecendo.
Sou desperto da minha constatação do quão fodido estou quando
Amelie leva as mãos até a barra do vestido, dando a entender que vai tirá-lo.
— Nem pense nisso! — exclamo antes de arrancar a camiseta que
estou vestindo e lançá-la para trás, avançando em sua direção logo em
seguida. — Não vai me privar da melhor parte, Coelhinha.
Estou por cima, cobrindo seu corpo com o meu. Seu rosto está tão
próximo que sua respiração aquece a pele das minhas bochechas. Amelie
ergue o queixo, me olha nos olhos com determinação e noto o sorriso
devasso que se alarga em sua boca.
— Passei a noite inteira querendo agarrar você e te encher de beijos
— confessa, rindo. — Você não tem ideia da vontade que me fez passar,
Ethan Harris.
— Acredite, linda, eu vi nos seus olhos — me gabo, antes de deixar
um beijo rápido em sua boca.
As unhas da garota começaram a arranhar o meu peitoral, seguindo o
caminho pecaminoso até a barra da minha calça, e eu sinto meu pau quase
rasgar o tecido da minha roupa no mesmo segundo em que ela o apalpa.
— Só para ter certeza, não vai foder comigo e depois me deixar um
mês inteiro com dor no saco te implorando para voltar para a minha cama
não, né? Sério, Coelhinha, aquilo foi tortura — pergunto, encarando-a.
— Isso depende de você. Vai me fazer querer mais?
A sua sobrancelha se ergue em desafio e sinto cada uma das minhas
células fervendo em resposta. É fodido demais lidar com o que ela causa em
mim quando me olha desse jeito e eu, definitivamente, não acredito que ela
ainda continua me provocando, mesmo estando a alguns segundos de me ter
no meio das suas pernas.
— Vou te fazer descobrir a resposta sozinha — falo em seu ouvido,
antes de puxá-la para o meu colo.
Amelie sorri e me fita com expectativa. Afundo as mãos sob o tecido
da sua roupa, começando pela barra e subindo ansioso por suas costas até
encontrar o fecho do sutiã, que desfaço com destreza antes de puxar a peça
para fora do vestido. Amelie está com a testa colada na minha, e embora
tente disfarçar, sinto a leve tensão que a percorre quando meu movimento
experiente se faz.
A reação exala uma dose de insegurança que eu trato de afastar o
mais rápido possível. Embora seja alguém tão experiente quanto eu, e
completamente bem resolvida, sei que Amelie está com um pé atrás em
relação ao quanto estou disposto a me envolver nisso tudo. Sei que é uma
experiência diferente para ela e, mesmo sendo algo casual, sei que ela
valoriza que haja uma conexão verdadeira entre nós. E existe.
E como existe. Poucas coisas no mundo são verdades irrefutáveis, a
nossa química é uma delas.
— Eu estou pensando somente em você, linda. — Deixo um beijo
carinhoso em seu ombro quente. — Só você, agora e antes também. E se me
permitir, enquanto estivermos aqui dentro, eu sou só seu.
Subo a trilha de beijos pelo seu pescoço e deixo um demorado na sua
bochecha. Amelie é a minha melhor amiga, e eu odiaria se esse momento não
fosse bom para ela como está sendo para mim.
Levam poucos segundos para que ela segure meu rosto com a duas
mãos e leve-o de encontro ao seu, unindo nossas bocas em um beijo ardente
que, além de me dizer muitas coisas, é o estopim para me levar à loucura,
reacendendo todo o tesão impregnado em meu corpo.
Afasto as mãos dela apenas para puxar seu vestido por sua cabeça.
Amelie senta sobre o colchão e leva os dedos nervosos para o botão da
minha calça, abrindo-a desesperada. Ergo o corpo para me livrar do jeans e
da cueca, mas não antes de puxar o pacote laminado do bolso traseiro e
largá-lo sobre o lençol.
Amelie se deita de costas para o colchão. Os fios cacheados se
espalham por meus travesseiros e noto suas bochechas ruborizando enquanto
ela leva as mãos até o quadril para arrancar a calcinha branca rendada.
— Cacete — sussurro, completamente arrebatado pela visão do seu
corpo nu.
Tudo nela é deliciosamente perfeito, e eu com certeza colocaria uma
foto dela pelada na parede do meu quarto, só para passar dias tendo a visão
que tenho agora. Os seios pequenos arrebitados, a pele negra clara
bronzeada pelo sol, as coxas grossas unidas tentando conter seu desejo, o
quadril largo que me faz acreditar que Deus existe, porque algo tão lindo não
poderia ser obra de mais ninguém.
Amelie Castillo é a porra da mulher mais sexy do mundo inteiro.
E está deitada na minha cama. No meu aniversário.
O conceito de sorte acaba de ser redefinido na minha cabeça.
— Por favor, faz alguma coisa. Eu estou ficando nervosa — ela fala
baixinho.
Dou risada antes de engatinhar até ela e cobrir seu corpo. Amelie
solta o início de uma risada que cessa no momento em que uno seus pulsos e
os seguro acima da sua cabeça.
Inclino o rosto na direção do seu e, com a mão que não está
aprisionando seus pulsos, capturo seu seio, enchendo minha palma com ele.
Sinto o mamilo endurecido e o circulo com o polegar, deixando uma carícia
que faz com que ela arqueie o corpo, jogando a cabeça para trás no instante
em que o aperto.
O gemido contido e falhado que escapa de sua garganta me atinge em
cheio, quase que em sincronia ao instante em que libero uma das suas mãos.
Logo em seguida sinto os dedos da garota envolvendo meu membro latejante
que está desesperado por atenção.
Mordo a carne que cobre o osso de sua mandíbula, soltando um
grunhido angustiado quando ela começa um vai e vem lento com a mão,
masturbando meu pau de um jeito gostoso.
— Mais força — balbucio, brincando com o lóbulo da sua orelha entre
os dentes.
— O quê?
— Segura ele com mais força, linda — ordeno, agora com a voz firme.
Amelie pressiona ainda mais seu aperto ao meu redor e eu gemo
enlouquecido em seu ouvido.
— Assim? — ouço-a perguntar.
— Sim — assinto também com a cabeça. Ela aperta um pouco mais
forte e a pressão me faz ver estrelas. — Puta merda, assim mesmo.
Fecho os olhos para aproveitar a sensação e tentando me concentrar
em não gozar, mas temo não durar muito, porque porra, passei o último mês
inteiro fantasiando com esse momento.
Estou tão inebriado que quase resmungo quando sua mão se afasta.
Engulo a reclamação no instante em que ela me empurra para o lado, me
fazendo deitar de costas para o colchão, e se senta no meu colo, arrastando o
quadril em minha direção, esfregando sua intimidade molhada e quente
contra o meu membro duro.
— Caralho, você tá pingando — falo, ofegante, levando uma das mãos
até o seu pescoço e segurando firme.
Amelie abaixa o olhar rapidamente para ver onde estou segurando e
sorri, gostosa feito o inferno, apoiando-se no meu peito e me torturando
enquanto rebola com a boceta encharcada sobre mim.
— Vou te dar o melhor presente de aniversário que já recebeu na vida,
Harris — ela fala, rouca, antes de aproximar o rosto do meu.
Nosso beijo é quente, molhado e faz com que eu me sinta à beira de um
precipício. A fricção das nossas intimidades faz minha mente girar num
looping eterno de “caralho, eu preciso entrar nessa garota”. Nossas
respirações se tornam ofegantes e se fundem no ar aos gemidos curtos que
deixamos escapar.
Escorrego minhas mãos até sua bunda e a aperto com força,
aumentando o contato entre nós e sentindo meu pau ficando encharcado
enquanto desliza entre as dobras meladas pela excitação da garota.
Quando sinto que estou prestes a perder de vez a cabeça e me enterrar
dentro dela, um alerta se acende em minha mente como um outdoor luminoso.
— Camisinha — digo baixo.
— Pode pegar pra mim, por favor? — responde, ofegante.
Pesco o preservativo debaixo do travesseiro, sem ter ideia de como
foi parar lá.
Amelie rasga a embalagem da camisinha e a desliza por toda a minha
extensão endurecida, me fazendo arfar. Inverto nossas posições, a deixando
por baixo, deitada de costas para o colchão, e me encaixo entre as suas
pernas com um sorriso presunçoso. A garota semicerra os olhos em minha
direção, parecendo entender porque estou me vangloriando.
Nós dois somos obcecados por controle, não me espanta que
estejamos brigando por isso na cama também.
Entrelaço nossos dedos, erguendo suas mãos novamente, deixando-as
ao lado da sua cabeça dessa vez. Encaro suas íris escuras brilhando em
minha direção, ansiosas, encantadas e felizes. Prolongo o momento porque
quero ter o prazer de vê-la implorar, e foda-se se isso soa narcisista, eu
estou completamente louco pelo fato dessa mulher me querer.
Não demora muito para que ela perca a paciência e diga com todas as
letras:
— Se você não me comer agora, eu juro por tudo que vou ficar muito
estressada, Ethan Harris.
Sorrio por sua bronca, mandona como sempre. Do jeitinho que eu
gosto.
— A última coisa que você vai ficar, depois que eu te foder bem
gostoso, vai ser estressada, linda.
— Prove.
E essa é a deixa para que eu me afunde nela. Suas mãos apertam as
minhas com força e ela solta um arfar alto assim que nossos quadris se
encontram. Fico um tempo parado, esperando até que ela se acostume, e
quando sinto-a erguendo a cintura, me buscando, começo a me movimentar
com cadência.
Seus gemidos soam como música para os meus ouvidos, e a cada
investida profunda que lhe ofereço, suas pernas agarram minha cintura e sua
intimidade aperta meu pau com força, me provocando um prazer
inexplicável.
O conjunto todo parece me embriagar, seu cheiro penetra minhas
narinas deixando tudo ainda mais sensorial. O estalar dos nossos corpos se
unindo, os sons de seus gritos desesperados chamando o meu nome, o suor
cobrindo nossas peles. Eu não sei dizer o que raios Amelie tem de diferente
que está me deixando tão entorpecido, mas eu sinto que poderia foder com
ela, dessa exata forma, por muito tempo.
Solto suas mãos e apoio meus antebraços ao lado da sua cabeça para
me firmar sobre ela sem machucá-la. Meu pau entra e sai da sua boceta com
velocidade e eu grunho quando a dor prazerosa das suas unhas cravando em
minhas costas me atinge.
Colo meus lábios nos seus, engolindo o princípio de um xingamento
que estava prestes a escapar da sua boca. Chupo sua língua arrancando um
gemido gostoso da sua garganta. Amelie escorrega as mãos até a minha
cintura, arranhando minha lombar e descendo até a pele da minha bunda onde
ela arranha e segura firme, me puxando para entrar ainda mais fundo nela.
Sei que estou prestes a perder o controle quando o barulho das nossas
peles se encontrando se torna alto demais.
— Se quer me dar meu segundo presente de aniversário, a hora é
agora, Coelhinha. Não vou durar muito — aviso, diminuindo as estocadas.
Ela sorri, e sem sair de dentro dela, giramos na cama. Amelie começa
a cavalgar em mim com as mãos apoiadas nos meus ombros. Agarro suas
coxas e ergo a coluna o suficiente para abocanhar seu mamilo entumescido,
chupando-o e brincando com ele com a língua.
A garota usa uma das mãos para pressionar meu rosto contra o seu
peito, apertando meus cabelos e parecendo gostar do que estou fazendo.
Tanto, que mal escuto quando sua voz falhada implora pela última coisa que
achei que uma garota tão certinha gostaria na cama.
Estou sorrindo feito um bobo contra sua pele no instante em que
estalo um tapa forte em sua bunda, atendendo ao seu pedido, e ela geme com
vontade, tombando a cabeça para trás e me instigando a repetir. A cada tapa,
um gemido manhoso ecoa pelo quarto em resposta.
Eu acho que morri e esse é o paraíso.
Puta que pariu, foder com essa garota acaba de se tornar o top 1 das
minhas coisas favoritas da vida.
Conforme sua respiração se torna ainda mais irregular, preciso manter
um controle excepcional para não me deixar levar. Levanto o rosto em sua
direção, deixando beijos e mordidas em seu pescoço.
Amelie gruda o corpo no meu, me abraçando, parando de cavalgar e
começando a esfregar a boceta contra mim desesperadamente, comigo
enterrado nela. Sei que está prestes a gozar, e por isso, levo uma das minhas
mãos ao ponto que nos une e esfrego o seu clitóris inchado.
Puxo o ar com toda a força que tenho, sinto minhas narinas dilatadas,
os seus sons se tornam cada vez mais altos. Ela se esfrega em mim com mais
força, usando uma das mãos para tocar seu seio, e eu preciso apoiar minha
cabeça em seu ombro para me manter são. Amelie está chegando lá. E eu
também.
— Quero ver você, Ethan, olhe para mim. — A voz falhada me
alcança fazendo com que eu a encare, hipnotizado pra caralho. Os fios do
meu cabelo grudam na minha testa molhada, mas não são o suficiente para
me desviar do meu foco.
Ela.
Amelie goza primeiro olhando dentro dos meus olhos e chamando meu
nome, e eu a sigo, instantes depois. O suor pingando, a falta de fôlego, o
tremor de suas pernas sobre o meu corpo, o olhar caído e nublado pelo
tesão, a boca inchada… É tudo tão erótico e tão perfeito que nem com a
melhor das criatividades eu seria capaz de pensar em algo tão bom.
Passamos um longo tempo abraçados, nos derretendo no corpo um do
outro, até que nossas respirações voltem à regularidade. Quando Amelie sai
do meu colo, logo depois de deixar um beijo demorado em meu rosto, já
estou contando os segundos para estar dentro dela de novo.
Me levanto ainda meio desnorteado, descarto o preservativo na lixeira
perto da minha escrivaninha e volto para a cama, me deitando ao lado dela e
puxando-a para o meu peito. Amelie se deita sobre mim e apoia a cabeça em
um dos braços, me encarando com atenção antes de levar uma das mãos para
o meu rosto, contornando cada traço até chegar em minha bochecha, onde ela
deixa um carinho gostoso.
— Feliz aniversário, Capitão. Espero que tenha gostado do presente
— fala, baixo, antes de se esticar para me dar um selinho.
— Melhor aniversário da minha vida. — Dou risada antes de morder
sua bochecha e abraçá-la.
Se eu já havia achado insano o tanto que fiquei obcecado pelos seus
beijos, estou seriamente preocupado em como vou conseguir viver a minha
vida, acordar todos os dias, cumprir todas as minhas atividades e me deitar
no fim do dia sem estar dentro dela.
Juro por tudo que é mais sagrado. Amelie tem uma foda insuperável.
“Tem uma parte de mim que não posso recuperar
Uma garotinha cresceu rápido demais
Bastou uma vez, nunca mais serei a mesma
Agora estou recuperando minha vida”
WARRIOR | Demi Lovato

29 de Outubro de 2021
Ethan tem uma chama tatuada na bunda.
Bem pequena, na lateral da nádega direita. Exatamente ao lado de
onde, agora, há uma marca avermelhada de um arranhão nada delicado que
deixei com as minhas unhas.
A noite do seu aniversário foi, sem sombra de dúvidas, a mais insana
de toda a minha vida. E embora eu quisesse dizer que foi por conta da festa
incrível, que organizei com muita dedicação, todo o crédito vai para o
jogador de basquete arrogante e seu sexo suado, selvagem e pra lá de
gostoso.
Já tive transas boas antes, muito boas por sinal, mas absolutamente
nada se compara ao que fizemos naquele quarto. Ou ao que viemos fazendo
nos últimos dois dias. A nossa conexão na cama simplesmente conseguiu
transcender o conceito de “sexo bom”, e desde então nós dois parecemos
dois coelhos, completamente viciados um no outro.
Sem exageros, tivemos que entrar em um acordo de que hoje seria
nosso dia de descanso da maratona sexual em que emendamos desde que o
fizemos pela primeira vez. O problema é que isso parece quase impossível.
Fazem menos de vinte e quatro horas que o garoto esteve dentro de mim pela
última vez, e eu estou apertando meus dedos com força no volante do carro
para afastar a tentação de lhe enviar uma mensagem.
Infelizmente, Ethan Harris e suas habilidades para me presentear com
orgasmos arrebatadores vão ter que ficar para outra hora. Agora, minha
tensão e ansiedade estão nas alturas por outro motivo: o almoço que estou
prestes a ter com a minha mãe.
Embora tenha sido eu quem realizou o convite, como forma de dar
mais um passo em nossa relação, não consigo evitar de sentir um nervosismo
incômodo subindo dos pés à cabeça no instante em que estaciono em frente
ao Marea.
Saio do carro checando minha aparência no vidro. Meus cabelos
estão presos em um rabo de cavalo alto e estou vestindo um suéter colete
azul claro, com uma saia rodada branca e mocassins no mesmo tom nos pés.
Seguro firme na alça da minha ecobag enquanto caminho até a entrada do
restaurante. Meu coração pulsa em um ritmo frenético em meu peito e eu
tenho quase certeza de que minha pressão está nas alturas.
— Reserva no nome de Amelie Castillo — aviso para o recepcionista
assim que me aproximo do balcão, e o homem esquadrinha a tela do
computador com atenção.
— Certo… Oh, aqui está! Sua acompanhante já chegou. Aguarde só um
instante, um dos nossos atendentes vai levá-la até lá.
Assinto, aguardando perto da porta e aproveitando para checar meu
celular.
Problema de Estimação: Espero que dê tudo certo no seu almoço.
Estou torcendo por você.
Problema de Estimação: Qualquer coisa me liga, vou estar no
treino, mas chego em segundos para te resgatar :)
Sorrio encarando as mensagens, mesmo sabendo que eu jamais faria
Ethan abandonar um treino só para me acalmar caso eu discuta com a minha
mãe. Mas só de saber que ele o faria, se eu pedisse, faz com que meu
coração aqueça involuntariamente.
Eu: Estou esperando para entrar no restaurante.
Eu: Nervosa pra caramba, mas feliz. Bom treino, se fizer muitas
cestas podemos comemorar mais tarde ;)
Envio a última parte já rindo, e em segundos a resposta empolgada
chega.
Problema de Estimação: #MelhorIncentivoDoMundo
#NuncaFuiTriste
Problema de Estimação: Obrigada deuses do sexo, há três dias
minha vida é dez vezes mais feliz.
Eu: KKKKKKKK bobo! Preciso ir, falo com você mais tarde, bjs!
Problema de Estimação: Bjs! Vou pro seu alojamento depois do
treino, pode ser?
Eu: Combinado! Meg vai estar lá para abrir para você. Vou para a
academia depois daqui, e então vou para casa.
E lá se foi o nosso dia de “descanso”. Mas quem se importa, não é
mesmo?
Observo atentamente cada detalhe do restaurante enquanto sou
conduzida por uma funcionária baixinha até a minha mesa. Sinto uma pontada
de receio quando noto as garrafas de diferentes bebidas alcoólicas expostas
em um dos muitos aparadores de madeira, rezando internamente para que
Virgínia não repare.
Ao nos aproximarmos da mesa reservada, meus olhos caem sobre a
mulher e eu sinto uma pequena vontade de chorar. É a primeira vez que nos
vemos em um bom tempo, e consequentemente, a primeira vez em que não
estamos em um hospital.
Considero isso um momento simplesmente gigantesco em nossa
trajetória.
Estendo a mão em sua direção para cumprimentá-la, um abraço seria
forçar uma barra que ainda não consigo. Ela faz o mesmo, me oferecendo um
sorriso que entrega o fato de que ela está tão nervosa quanto eu.
Virgínia está usando uma blusa de seda branca com uma saia plissada
verde esmeralda. O cabelo crespo está escovado e preso em um coque
simples, e pele negra retinta do rosto está limpa, livre de maquiagem.
— Oi, mãe — minha voz sai doce, e sua postura tensa parece relaxar
um pouco.
— Olá, querida. Como você está? Pegou muito trânsito? — pergunta,
enquanto o garçom coloca um cardápio na frente de cada uma de nós.
— Quase nada, Nova Iorque e seu tráfego caótico resolveram me
ajudar hoje. Enfim, estou bem, e a senhora?
— Bem também — ela responde, tranquila, e eu a encaro por alguns
longos segundos. — Não tive nenhuma outra recaída, se é o que esperava
ouvir — seu tom envergonhado machuca meu peito.
— Eu… Eu não… Não era nada disso — bufo, frustrada por deixá-la
desconfortável. Não sei muito bem como esperava lidar com a situação. —
É só que… Você está diferente. Está muito bonita, radiante, na verdade. Faz
um bom tempo que não a vejo assim.
Ela sorri pelo elogio, mas eu sei que é um sorriso doloroso, porque
nós duas sabemos que há mais de um ano eu só a vejo em hospitais.
— Muito obrigada, Niña. Você também está linda, parece feliz. Como
estão as coisas na faculdade?
— Ótimas.Vou ter uma reunião depois da Ação de Graças para
anunciarem quem continuará na disputa pelo estágio. Aquele que te falei, se
lembra?
— Claro, no jornal do Lambrock, não é? Estive com a esposa dele,
Vivienne, na semana passada. Ela me disse que ele está muito confiante com
a vaga que ofereceu para a sua universidade.
— Mamãe, por favor, me diga que não citou o meu nome ao conversar
com ela. Já não basta Esteban tentando comprar a vaga, eu… — tento
continuar, mas sou interrompida.
— Ei, querida! Eu não falei nada, está bem? Eu tenho visto o quanto
você é batalhadora e estudiosa. Se tiver que ganhar essa vaga, sei que vai
ganhar sozinha — ela diz, sorrindo. — Esteban é mesmo um tolo se pensou
que você aceitaria qualquer coisa diferente disso.
Encaro Virgínia completamente boquiaberta. “Quem é você, e o que
você fez com a mulher que não se importa comigo?” penso em dizer, mas me
mantenho calada enquanto processo sua fala.
— Você tem visto ele? As coisas entre vocês chegaram a melhorar? —
ela pergunta, me puxando de um transe para outro. É a primeira vez que
falamos diretamente sobre ele desde que nos aproximamos.
— Nós não… Não nos falamos mais. Definitivamente. — Engulo seco,
tentando disfarçar o nó em minha garganta.
— Amelie… — Ela me olha com tristeza. — Ele é o seu pai.
— Não é. Ele pode ter uma participação na minha formação genética e
no sobrenome nos meus documentos, mas nem de longe aquele homem é o
meu pai — falo, friamente, antes de chamar o garçom e fazermos nossos
pedidos.
Quando o atendente deixa a mesa, volto a encarar minha mãe e seu
rosto está tomado por algo parecido com culpa e medo.
— Mãe, eu sinto muito se isso ainda magoa a senhora, mas eu nunca
vou conseguir esquecer o que ele fez com nós duas, nunca. Eu juro que tentei,
mas cada vez que eu recebo uma ligação de Madelyn para ir buscá-la em
uma emergência, cada vez que eu percebo o quanto nós nos perdemos uma da
outra, cada vez que ele me coagia e me manipulava…
— Espera! Ele o quê? — a voz de Virgínia sobe uma oitava, e eu vejo
a raiva queimar em suas íris negras. — Niña, como assim? O que ele fez
com você?
Solto uma risada nervosa. Ela está falando sério? Não é possível que
ela nunca tenha percebido. Mas também, como perceberia? Nós mal
trocávamos duas palavras.
Mamãe errou comigo, errou feio ao depositar sobre uma adolescente a
responsabilidade de guardar o segredo de que ela estava se afundando no
alcoolismo, mas ela está doente. E agora, vendo seu rosto refletindo revolta,
sei que, embora ela aceitasse as piores coisas vindas do meu pai quando
direcionadas a ela, Virgínia jamais admitiria a forma com que ele me tratou
nos últimos anos.
E se não fosse o seu maldito vício, percebo que eu teria sido protegida
com unhas e dentes pela mulher diante de mim. Por sua versão sóbria, aquela
que ainda se lembra um pouco de como ser a minha mãe.
Eu definitivamente odeio Esteban Castillo. Odeio ele por ter feito
Virgínia se perder de si mesma ao ponto de mergulhar em uma doença que a
tirou de mim e me tirou a oportunidade de ter crescido sem a minha
infinidade de traumas.
— Você não sabe mesmo? — pergunto, ainda incrédula.
— Eu não faço a menor ideia do que aconteceu — admite, frustrada.
— Pelo contrário, passei noites em claro vendo as fotos de vocês em
grandes eventos da empresa e me culpando por não ser forte o suficiente
para ainda estar na sua vida como ele estava. Amelie, pelo amor de Deus,
você precisa me explicar isso, agora.
Sua revelação me deixa um pouco perplexa. Levo alguns segundos até
conseguir alinhar meus pensamentos e então começo a contar tudo. Desde as
ameaças sobre deixar de pagar meus estudos, os presentes e joguinhos
mentais, as chantagens, até todo o desenrolar da fatídica noite do baile onde
tivemos nossa pior briga. Essa, eu a narrei com detalhes, e me desculpei por
ter deixado escapar sua condição.
Minha mãe ouviu tudo com atenção, segurando minha mão nos
momentos em que eu me sentia prestes a desabar em lágrimas, e eu acho que
esse foi um dos momentos mais especiais que vivi com ela em anos.
— Querida… Eu não tinha a mínima noção de nada disso. Eu juro! Ele
sempre fez parecer que você era a coisa mais importante da vida dele, eu…
Céus, eu nem ao menos imaginava! — Ela parece atordoada.
— Acredite, a coisa mais importante da vida dele é a conta bancária.
Nós fomos meros acessórios, sempre. E a Tiffany também é. Nunca mais se
permita sentir inferior a ela, você não é, mãe. Ele é um desgraçado — digo
firme. Odeio o estrago que aquele homem fez na autoestima dela. — Esteban
só se importa com ele mesmo, com a empresa dele e o dinheiro dele. Todo o
resto é acessório e descartável.
— Eu sinto muito por isso, sinto muito mesmo — diz, com a voz
trêmula.
Quando nossa comida chega, os olhos de Virgínia estão marejados e
nenhuma de nós está exatamente com o maior dos apetites.
Comemos em silêncio no que parece ser uma eternidade. Na hora de
pagar a conta, minha mãe me olha feio quando puxo a carteira da bolsa e se
antecipa em entregar seu cartão de crédito para o pagamento. Quero
reclamar, afinal fui eu quem a convidei, mas entendo que ela precisa sentir
que estava fazendo algo.
Quando caminhamos até o meu carro, meu coração está apertado e eu
sinto que precisaria de muito mais tempo no tatame para conseguir gerir
minhas emoções com clareza. Essa ainda não foi a conversa que eu
precisava ter com a minha mãe, mas é um caminho para chegar até lá.
— Tenho treino de boxe agora, mas posso atrasar. Precisa que eu te
leve para casa? — questiono, abraçando meu próprio corpo.
— Não, querida, pode ir resolver suas coisas. Alfred vem me buscar
— explica.
— Certo. Então… Foi bom estar com você hoje, de verdade. Apesar
de tudo, gosto de vê-la sendo quem realmente é — falo, e ela assente,
captando a mensagem. — Nos vemos…?
— Em breve, eu espero — ela diz, sorrindo. — Na Ação de Graças,
caso você se sinta confortável. Adoraria que passasse o feriado comigo, em
casa — completa, tímida.
Meu coração vai na boca, e eu não sei se choro ou explodo num misto
de felicidade e nervosismo. Temo estar me precipitando, colocando
expectativas demais em algo para, em seguida, cair com a cara no chão.
Mas, honestamente, pouco importa.
A única coisa em que o meu bobo coração consegue focar é que,
depois de mais de quatro anos, eu tenho a chance de finalmente passar uma
Ação de Graças com a minha mãe.
Mesmo que eu deteste aquela casa, mesmo que, no fundo, eu esteja
morrendo de medo dela decidir beber e perder o controle, mesmo com tudo
isso, sentir que minha mãe realmente quer a minha presença numa data
destinada a família e a gratidão, me faz querer soltar gritinhos de felicidade.
Isso finalmente está acontecendo.
— Nos vemos na Ação de Graças — Sorrio, e ela parece feliz com a
minha resposta. — Preciso levar alguma coisa?
— Nada. Apenas a sua presença — fala, empolgada, e eu assinto.
Nos despedimos com um cumprimento desajeitado e eu entro no carro
já acendendo a tela do meu celular para contar para Megan que esse ano ela
vai perder sua companhia para temperar o peru com a sua avó. Minha cabeça
vai a milhão enquanto dirijo até a academia, e minha amiga solta uma
comemoração feliz ao receber a notícia, além de me parabenizar pelo meu
avanço.
Esse almoço foi, certamente, um grande passo. Eu mal posso esperar
para o momento em que verei Virgínia completamente livre do vício e
recomeçando uma nova vida. Mal posso esperar para vencermos isso juntas.

Assim que passo pela porta do meu dormitório, vejo que a única luz
acesa é a do meu quarto, e que Megan não está em casa. Tiro meus sapatos e
vou até a máquina de lavar, jogar a minha roupa suada do treino. Penduro
minha bolsa no gancho do corredor e ando na pontinha dos pés até o meu
quarto, onde Ethan me espera, agradecendo por já ter tomado banho na
academia.
Enlouqueceria se não pudesse me atirar em seus braços logo de cara.
Abro a porta com cuidado, e encontro ele distraído, observando as
colagens no mural da minha escrivaninha. Ele está com uma camiseta cinza e
uma bermuda de moletom preta que deixa sua bunda fantástica.
— Não sabia que era tão fã assim do The Politician — ele comenta,
sem se virar, me assustando por perceber que minha presença já foi notada.
Ele está encarando a infinidade de recortes de matérias e as múltiplas
logos do veículo ao qual estamos concorrendo ao estágio.
— É o meu jornal favorito. Desde sempre. Assim que entrei na
faculdade eu já sabia que queria trabalhar nele — falo, baixinho, antes de
abraçá-lo por trás e plantar um beijo na sua omoplata.
Ethan se vira, ficando de frente para mim e envolvendo minha cintura.
Fecho os olhos quando ele se aproxima para deixar um selinho demorado na
minha boca e solto um grunhido de satisfação. Adoro beijá-lo. Poderia fazer
isso o dia inteiro.
— Por que Jornalismo? — ele pergunta ao se afastar, me encarando
com seus olhos castanhos tão, tão lindos. — Você é fissurada por arte, nunca
pensou em cursar?
Sorrio pelas perguntas. Já as ouvi muitas vezes e amo respondê-las.
— Jornalismo é arte — falo, levando a mão até o seu rosto e
acariciando sua bochecha. — E eu não sei dizer exatamente o que me faz ser
tão completamente apaixonada, mas existe alguma coisa tão poderosa na arte
de comunicar que faz com que eu sinta que não há outro lugar para mim
senão fazendo isso. Temos nas nossas mãos um poder que muitos ainda
desconhecem, outros fingem não reconhecer. Podemos criar revoluções,
confrontar presidentes, mover opiniões. Informação é poder, e eu quero ser
alguém que distribui esse poder até o meu último suspiro.
Seus olhos me esquadrinham com admiração, e eu sei que
compartilhamos desse mesmo amor louco e desenfreado pela comunicação.
Ethan e eu podemos ser opostos em muitas coisas, mas amamos nossa futura
profissão com o mesmíssimo afinco.
— E você? Por que Jornalismo? — pergunto.
Ele ri e sacode a cabeça.
— A pergunta certa seria “desde quando Jornalismo?''. Porque eu não
me lembro de um momento na minha vida em que eu não soubesse que nasci
para fazer isso. Sempre fui fascinado por tudo que envolve levar informação
até as pessoas — responde. — Só não me decidi até hoje se quero a área
investigativa ou esportiva. Sempre pensei que trabalhar com jornalismo
investigativo seria como uma reparação para o fato de que a imprensa foi
negligente pra caralho com o caso da minha mãe. Mas depois de tudo, já não
sei se realmente quero trabalhar nesse meio.
— É compreensível, já pensou na ESPN? — pergunto, pensativa. Ele
assente. — Eu sou cem por cento da área política, é a que mais me encanta.
— Eu percebi — ele fala, rindo. — Mas vai ter que esperar um
pouquinho por ela, porque o estágio do fim do terceiro ano é meu.
— Pode tirar o cavalinho da chuva. Nós dois sabemos que eu vou te
massacrar — Gargalho, e começo a empurrá-lo para a minha cama.
Ethan cai de costas para o colchão e eu o escalo, montando em seu
colo. Suas mãos sobem por minhas coxas, infiltrando-se por baixo da minha
saia, onde ele encontra seu playground particular.
Colo nossas bocas num beijo quente, esquecendo-me do restante do
mundo lá fora e me concentrando unicamente na língua dele deslizando pela
minha da forma mais gostosa possível. Mordo seu lábio inferior no momento
em que ele deixa apertos fortes na minha bunda que, instintivamente, me
fazem rebolar em seu colo de forma lenta, já sentindo sua ereção por baixo
do short.
Pelo amor de Deus, Ethan Harris.
— Já disse que adoro quando você usa saia? — pergunta, me
segurando com força contra a sua virilha e me fazendo gemer baixo. —
Porque eu adoro.
— Nunca — respondo, entre um beijo e outro. — Na verdade, você
detestava minhas roupas, mas vou me lembrar de usar mais vezes.
Volto a me concentrar no beijo, mas Ethan se afasta e me encara
confuso.
— Quem te disse que eu odiava suas roupas? — pergunta, ofendido.
— Você, nas milhares de vezes em que as chamou de “roupas de
princesa”, como se eu fosse uma garotinha mimada — explico, fazendo
aspas com os dedos.
Ethan me encara por alguns segundos antes de cair na gargalhada.
Sim, gargalhada. O desgraçado está quase tremendo de tanto rir enquanto se
senta e me envolve em seus braços.
— Linda, eu sempre achei o seu estilo o máximo — ele fala, deixando
uma mordida na minha bochecha e eu o olho feio. — Nunca disse isso na
intenção de debochar de você. Elas só, de fato, parecem roupas que
princesas usariam no mundo moderno, isso não é ruim.
Isso é sério?
— M-Mas… Ugh! Então por que você sempre disse isso de um jeito
que fez com que eu me sentisse mal por me vestir dessa forma? Qual o seu
problema? — Dou um tapinha em seu ombro, e ele pega minha mão,
beijando as pontas dos meus dedos.
— A culpa não é minha se você interpretou errado — diz, cínico, antes
de levar minha mão até seu rosto e acomodá-la em sua bochecha. — Era
minha forma, desajustada, de dizer que você ficava gostosa.
— Não era mais fácil só falar?
— Você chutaria meu saco, Coelhinha — provoca.
— Ainda posso fazer isso, não me provoque.
— Ah, não pode não — fala, dando risada, antes de me derrubar na
cama e me cobrir com seu corpo. — Aposto que você não se atreveria a
machucar o Ethan Júnior depois de descobrir o que ele pode fazer.
Solto uma gargalhada alta porque, por Deus, estou transando com um
cara que chama o pau pelo nome.
— Odeio você — sopro, antes dele se inclinar e unir minha boca à
sua.
— Continue falando, quem sabe assim você passe a acreditar —
retruca, antes de me dar outro beijo.
— Odeio muito você — repito enquanto ele tira meu suéter e desfaz o
fecho do meu sutiã. — Muito mesmo.
— Uhum, e o que mais? — pergunta, enquanto desce uma trilha de
beijos até o vale dos meus seios.
— Odeio tanto que… — minha fala se interrompe quando ele
abocanha meu mamilo e eu engasgo em um gemido. — Ah inferno, isso eu
adoro!
Ethan sorri contra a minha pele, como o belo safado que é. E
independentemente de quantas vezes eu diga que não o suporto, nós dois
sabemos que essa é a maior mentira que já contei.
E é em meio a sorrisos, gargalhadas, mentiras e verdades que eu
passo mais uma noite me desfazendo em seus braços e experimentando cada
vez mais a sensação inebriante de tê-lo sob os meus lençóis. Eu não tenho
ideia de quando ou como nossas vidas viraram do avesso para que isso
acontecesse, mas às vezes é preciso que a gente seja bagunçado para
conseguir pôr as coisas no lugar.
E, no momento, por mais insano que isso possa soar, eu sinto que
tudo, enfim, parece certo. Ou algo bem próximo disso.
“Me deixa te tocar onde você gosta
Me deixa fazer isso por você
Te dar toda a minha atenção”
SWEAT | Zayn

06 de Novembro de 2021

É a quinta vez que a pego espiando.


— Sabe que não vai poder colar de mim durante a prova, não sabe?
— pergunto, rindo, e ela me encara com os olhos arregalados. — Peguei
você.
Amelie solta um resmungo irritado e apoia os cotovelos na mesa,
enfiando os dedos nos cabelos.
— Tem alguma coisa dando errado e eu não consigo chegar na
resposta final mesmo sabendo qual é — ela choraminga, e eu largo minha
caneta sobre o papel para dar uma olhada no seu exercício.
Tem uma hora e meia que estamos na biblioteca estudando juntos para
a nossa prova de Planejamento de Cobertura, uma matéria que eu tenho mais
facilidade do que ela, e hoje, especialmente, o cérebro de Amelie parece
estar fritando porque ela está com uma dificuldade absurda para se
concentrar devido ao cansaço depois de um expediente insano na cafeteria.
Leio as suas anotações no canto da folha, soltando uma risadinha,
porque ela cometeu um erro bobo que, em condições normais, ela teria
identificado de imediato. Juan Xavier, nosso professor dessa matéria, é um
adepto definitivo de provas envolvendo a prática da coisa, então seus
exercícios basicamente giram em torno de situações hipotéticas em que nós
devemos analisar os erros e acertos do profissional em determinada
situação.
Pode parecer bobo, mas acredite, uma cobertura mal planejada
consegue arruinar carreiras de jornalistas iniciantes.
— Você só esqueceu de pontuar que ele não conferiu se havia uma
agência cobrindo o evento, linda, de resto tá tudo certinho, olha! — Aponto
para a formulação da pergunta e Amelie relê com atenção.
— Verdade — ela sorri, sem graça, se encolhendo entre seus ombros.
Eu nego com a cabeça antes de lhe entregar a folha e deixar um beijo em sua
têmpora.
— Quer encerrar por hoje? Podemos continuar amanhã com você
mais descansada — sugiro e ela encara pensativa a pilha de livros sobre a
nossa mesa. — Estudar desse jeito não vai te fazer render nada. Vamos, eu te
deixo no alojamento.
Me levanto e estendo minha mão para ela.
— É a nossa última bateria de provas antes da primeira fase do
estágio — pontua receosa.
— Mais um motivo para você descansar. Está começando a delirar se
acha que não é uma das dez que vão passar para a entrevista.
Vejo quando seus ombros caem e ela se rende, segurando minha mão
e se levantando. Juntamos nossas coisas e caminhamos devagar até a saída.
Amelie estala o pescoço algumas vezes e pela sua careta, sei que tem algo a
incomodando. Freio meus passos, obrigando-a a fazer o mesmo e me coloco
diante dela.
— O que foi, hein? — pergunto, passando uma mecha cacheada para
trás da sua orelha e erguendo seu rosto com o indicador. — Que carinha é
essa?
— Não sei, eu só… Estou estressada, tudo está me incomodando.
Acho que preciso relaxar, tomar um longo banho, ver um filme… Sei lá.
Amelie suspira, desviando o olhar de mim para o chão. De esguelha,
noto que o corredor ao nosso lado está vazio. Abro um sorriso sacana e ela
franze o cenho em confusão, até que seu semblante se desmancha quando
nota a mesma coisa que eu.
— Aqui? — ela chia num sussurro.
Assinto, e sem pensar duas vezes, eu pego em sua mão e puxo-a para o
espaço, prensando seu corpo entre mim e a estante repleta de livros.
— O que voc…
— Shhhh! — interrompo sua bronca e levo minha mão até os fios de
cabelo em sua nuca. — Só relaxa.
Amelie me encara num misto de receio e ansiedade, e eu sorrio antes
de aproximar meu rosto do seu e passar minha língua devagar sobre os seus
lábios, provando-a sem pressa. Ela parece entender onde quero chegar,
porque fica na ponta dos pés, envolve meus ombros e afunda seus dedos na
lateral da minha cabeça, me puxando para si.
Grudo meus lábios nos seus com força e a beijo em um ritmo lento,
saboreado cada cantinho da sua boca sem hesitar. Um fato sobre a garota
estressadinha diante de mim: o segredo para drenar seu mau humor é ir
devagar. Nos beijos, no sexo, não importa, a chave é a lentidão.
Conforme o beijo vai se tornando mais quente, mais inquieta ela fica.
Suas mãos passeiam pela minha nuca, arranhando-a, e me puxando ainda
mais para perto, como se quisesse se fundir a mim.
Puxo seus cabelos para trás e desço uma trilha de beijos molhados
pelo seu pescoço, lambendo a pele enquanto tapo sua boca com a minha mão
livre. Amelie tem uma tendência a fazer barulho que me deixa louco, mas
não podemos ser descobertos aqui.
Sugo de leve o ponto onde sua pulsação está acelerada e ela morde a
palma da minha mão em resposta. Ergo o olhar para o seu rosto e o brilho de
volúpia em suas íris me faz pensar que, talvez, não tenha sido uma boa ideia
brincar com ela em um lugar onde não podemos foder sem tomar uma
suspensão.
— Promete ficar quietinha? — pergunto, baixo, e ela assente
balançando a cabeça freneticamente.
Tiro a mão da sua boca e escorrego ela por seu pescoço até chegar
em seu colo, onde uso-a para beliscar seus mamilos por cima do tecido.
Enquanto isso, a outra se infiltra por baixo da barra do seu vestido, seguindo
até o meio das suas pernas, indo de encontro a sua calcinha. Afasto-a para o
lado e deslizo meus dedos devagar por sua intimidade úmida, massageando
seu clitóris em movimentos circulares. Ela ofega baixinho, apertando meus
ombros com força.
— Já disse o quanto você fica linda quando tá com tesão? —
pergunto no pé do seu ouvido.
— Não me lembro, mas pode dizer ago… — ela engole o restante da
frase no instante em que penetro dois dedos em sua boceta.
— Você fica linda com tesão, Coelhinha — falo, rindo, apreciando
cada segundo das suas reações.
Amelie joga a cabeça para trás e morde o lábio inferior enquanto
projeta o quadril na minha direção. Inicio movimentos de vai e vem
preguiçosos, estocando meus dedos nela fundo e forte, como sei que ela
gosta, e aos poucos ela se entrega para a sensação, parecendo esquecer tudo
ao nosso redor.
Aumento o ritmo conforme sua boceta vai ficando mais molhada e uso
o polegar para tocá-la enquanto a penetro com os dedos. Beijo seus lábios,
dessa vez com um pouco mais de selvageria, quando percebo que ela não vai
conseguir controlar os gemidos e abafo cada um deles com a minha boca.
Nossas línguas parecem duelar e eu sinto uma ereção crescer dentro da
minha calça quando ela aperta os fios do meu cabelo com força, tentando
descontar um pouco do seu desespero.
Merda, agora sou eu quem estou ficando com tesão.
Sei que está chegando lá quando ela recua do beijo e abraça meu
pescoço, me levando para perto, e começa a movimentar o quadril indo de
encontro a minha mão. Amelie está fodendo meus dedos desesperada, linda
pra caralho, e eu mal posso esperar para que esteja fazendo isso no meu pau.
— Estou perto, muito perto — avisa, ofegante, colando a testa na
minha.
— Goza pra mim, então, linda — falo baixinho contra os seus lábios.
A frase parece ser o golpe final. Afundo meus dedos nela ainda mais
rápido e com mais força, sentindo meu punho doer, mas não paro até que ela
enterre a cabeça em meu peito e agarre o tecido da minha camiseta com os
dentes para abafar seus gritos enquanto se desfaz, literalmente, na minha
mão.
Suas pernas tremem e seu corpo fica pesado. Seguro-a pela cintura e
tiro os dedos molhados de dentro dela, esfregando-os em seu ponto sensível
que pulsa no meio das suas pernas. Amelie me abraça, tentando puxar o ar de
volta para dentro dos seus pulmões, e eu ajeito sua calcinha antes de tirar a
mão da sua intimidade.
Abraço-a de volta com força e sorrio antes de deixar um beijo no
topo da sua cabeça.
— Melhor agora? — questiono, quando ela finalmente consegue
forças para me encarar.
— Muito melhor.
Amelie me oferece um sorriso satisfeito e, porra, adoro muito ver
essa carinha que ela faz quando se derrete pra mim. É uma das muitas coisas
que tenho descoberto que gosto pra cacete desde que engatamos de vez nesse
lance. De alguma forma, estar me esforçando para ser mais atencioso com
ela tem me feito perceber coisas que eu nunca tinha dado tanta importância
com as outras garotas com quem transei.
Esse sorrisinho pós orgasmo é uma dessas coisas, e nossa, eu sou
fissurado por ele.
— Quer dormir comigo hoje? — ela pergunta, me tirando do transe.
Inclino meu rosto em sua direção para beijar sua boca de maneira
suave antes de responder.
— Eu sempre quero. — Sorrio, e ela comemora balançando o corpo
em uma dancinha.
Caminhamos juntos para fora do prédio de Jornalismo e eu sigo seu
carro com a minha moto até o estacionamento da Chisholm House. A real é
que, além de ter um sexo incrível, Amelie Castillo é, sem sombra de
dúvidas, a melhor companhia que alguém poderia ter.
Nunca tem sido só sexo, e é quase ridículo me fazer escolher entre
dormir sozinho, de pijama, na minha cama, ou passar a noite com ela,
pelado, rindo, falando besteiras e, claro, tendo nossas transas gostosas e
atrapalhadas que sempre terminam comigo na conchinha menor e ela
contornando com o dedo cada linha das minhas costas até eu cair no sono.
As noites são muito melhores com ela, e eu nem precisei de muito
tempo para chegar nessa conclusão.
“Ooh, você é minha musa, me sinto tão imprudente
Oh, você está me fazendo, me fazendo, me fazendo ceder
Oh baby, eu posso sentir a adrenalina
Eu não tenho medo de pular se você quiser”
FALLIN | Why Don’t We

08 de Novembro de 2021

Eu: Acabei de sair da aula, onde vc tá?


Eu: No treino ainda?
Encaro as duas mensagens que enviei para Ethan. A primeira foi há
uns quinze minutos, ambas seguem sem resposta e eu já não aguento mais
esperar. Nós combinamos de irmos juntos na inauguração de uma galeria de
arte no Soho mais tarde e marcamos de nos encontrarmos depois do seu
treino, porque ele queria passar em casa antes para se arrumar. Acontece que
o garoto simplesmente sumiu do mapa.
Dou uma última puxada no canudinho do meu matcha, drenando os
resquícios de líquido em meu copo, e me levanto do refeitório do Coleman
Campus, caminhando em direção a saída que desemboca na Arena John Jay.
O estacionamento está quase vazio, e não vejo sinal da moto do garoto
enquanto sigo até a entrada do ginásio. Xingo Ethan mentalmente, já
imaginando que ele tenha me dado um bolo, mas quando enfim passo pela
porta que dá acesso a quadra, meus olhos o encontram e, dessa vez, eu o
xingo por ser tão… Ele.
Além de mim, Ethan é o único aqui dentro. Está sozinho treinando
alguns arremessos em direção a cesta enquanto o suor escorre por seu
abdômen. Ele está sem camisa, usando apenas uma bermuda preta e tênis. A
parte de cima do cabelo está presa num coque pequenininho para não
atrapalhar sua visão, e consigo notar o motivo da sua distração: os pequenos
fones em seu ouvido.
Paro com o quadril encostado no portão que separa a arquibancada da
quadra e cruzo os braços, observando-o quicar a bola no chão e correr em
direção a cesta para fazer uma enterrada. Sorrio involuntariamente, me
sentindo uma tonta, porque estou fazendo exatamente a mesma coisa que
todas as garotas que já julguei nessa faculdade.
Estou babando por Ethan Harris jogando basquete.
A forma como os bíceps se contraem quando ele se prepara para fazer
um arremesso, o brilho molhado sobre sua barriga e a forma como ele
destaca a cor das suas tatuagens, o cabelo preso… É um conjunto e tanto, e
por Deus, já sinto falta de estar por baixo dele na minha cama.
Percebo que o garoto não notará minha presença tão cedo, por estar
concentrado demais em seu próprio mundinho, por isso, deixo minha bolsa
sobre a mureta e caminho devagar em sua direção. Atraio seu olhar quando,
assim que desce pela cesta, a bola quica em minha direção e eu a pego no ar.
Ethan me encara com os olhos arregalados, perecendo ter sido pego de
surpresa.
— Coelhinha — sopra ofegante enquanto tira os fones. — Foi mal, tô
atrasado, né? Dei umas vaciladas nos arremessos hoje e quis ficar mais um
pouco para me redimir. Acabei perdendo a noção do tempo, me desculpa.
Caminho até ele com uma falsa expressão irritada, segurando a bola
contra o peito. Ethan me analisa por inteiro, medindo cada um dos meus
passos com uma expressão desconfiada. Quando paro na sua frente, fico na
ponta dos pés para deixar um selinho rápido em seus lábios e ele parece
ainda mais confuso.
— Não tem problema — falo, oferecendo-lhe um sorrisinho. — Temos
tempo sobrando.
— Tem certeza de que não tá chateada?
— Eu preferia que você tivesse respondido minhas mensagens? Sim.
Mas prefiro ainda mais que você se saia bem nos seus jogos, então tá tudo
bem. — Ele sorri e parece genuinamente contente com a resposta.
Brinco com a bola em minhas mãos e, por um segundo, uma ideia um
tantinho inusitada passa pela minha cabeça.
— Me ensina a fazer uma cesta?
Ethan solta uma risada engraçada e me olha incrédulo.
— Amelie Castillo, a maior hater que já tive na vida, quer aprender a
jogar basquete? Eu ouvi certo?
— Tipo isso, mas não conte para ninguém, preciso manter a minha
pose. E aí, você me ensina?
Ethan ri, sacudindo a cabeça em negação. Com as mãos em meus
ombros, ele me direciona até estarmos de frente para a cesta e pede que eu
tente acertar uma vez para ele ter alguma noção do que eu sei fazer. Meu
arremesso acaba sendo uma vergonha e mal alcança o aro, o que arranca uma
risadinha contida do garoto enquanto ele recupera a bola.
— Vou te ensinar um truque — ele fala, parando atrás de mim e me
entregando a bola. — Está vendo aquele quadradinho desenhado ali na
tabela?
Assinto com a cabeça e sinto quando ele apoia o queixo no meu ombro
direito.
— Basicamente, se você acertar nele, ela entra.
— Mentira! — Exclamo, surpresa, movendo o rosto para o lado para
olhá-lo.
— É sério, mas tipo, você não pode acertar a bola de frente e com
força, senão ela volta na sua direção, logicamente. Mas se você faz um
arremesso de baixo para cima, mirando nesse quadrado, as chances de
acertar a cesta são grandes — explica.
— Certo, como eu faço isso?
— Desse jeito — diz, antes de posicionar meus braços da forma
correta e segurar a bola por cima das minhas mãos, entrelaçando nossos
dedos. — Afasta um pouco as pernas e quando eu disser “já”, você agacha
um pouquinho e então nós arremessamos, tudo bem?
— Okay! — respondo, empolgada, e sigo suas instruções.
Quando Ethan dá o sinal, fazemos os movimentos juntos e a bola entra
na cesta perfeitamente, como previsto. Depois disso, repetimos juntos mais
alguns arremessos, e quando já estou pegando a manha da coisa, ele me pede
para tentar sozinha.
Encaro a cesta por alguns segundos antes de tomar uma respiração
profunda, e então faço meu arremesso, que bate dentro do tal quadradinho na
tabela e entra no aro. Solto um gritinho animado e corro para Ethan, pulando
em seu colo e o envolvendo com meus braços.
— Eu consegui! Você viu isso? Eu fiz uma cesta sozinha! — falo,
animada, e sinto quando ele sustenta minhas coxas com as mãos para que eu
me prenda em seu colo.
— Você conseguiu — responde rindo, antes de me dar um beijo
gostoso. — Bom trabalho, Coelhinha.
— Obrigada, Capitão. Sinto muito que esteja sentindo sua carreira
ameaçada depois de presenciar o início do meu estrelato no basquete —
zombo, e ele solta uma gargalhada alta antes de me colocar no chão.
— Quer tentar uma enterrada? — questiona enquanto eu pego a bola
do outro lado da quadra.
— Desculpa, mas você já viu o meu tamanho? Eu sou uma nanica e
essa cesta é enorme! — Não precisa ser nenhum gênio da física para
perceber isso, convenhamos.
— Só vem correndo que eu te ajudo! — ele grita, parando perto da
cesta.
Ainda receosa, quico a bola no chão, um pouco desajeitada, e dou uma
corridinha em sua direção. Quando estou próxima o suficiente de Ethan, salto
segurando a bola, e ele me pega no ar pela cintura, me erguendo até a altura
da tabela, onde eu faço uma enterrada que seria linda se não fosse
completamente fake.
Quando meus pés tocam o chão novamente, faço uma dancinha ridícula
de comemoração e ele abre um sorriso bobo, me abraçando e distribuindo
beijos por todo o meu rosto. Nossos lábios, enfim, se tocam em um beijo
doce, e eu percebo o quanto gosto desses momentos que passamos juntos.
Ethan é um dos caras mais legais que eu já conheci e é surreal o quanto me
sinto bem em sua companhia.
Ele faz com que eu me sinta livre para ser como sou, e algo que
sempre odiei quando me relacionava com outros caras era ter que me podar
para não atrapalhar todo o joguinho de conquista, com Ethan isso não
acontece. Posso ser a Amelie que faz dancinhas ou a Amelie mal-humorada,
a que chora por livros e até mesmo a que cria teorias malucas sobre términos
de celebridades. Ele nunca me faz sentir mal por nenhuma dessas coisas.
Pelo contrário, embarca em todas as minhas besteiras como se fossem
sagradas para ele. Como se eu fosse. Nosso lance transcendeu a conexão
carnal, que já é boa por si só, e atingiu um ponto em que me sinto
extremamente confortável com a sua presença.
E isso me faz tão bem.
“Eu só liguei para dizer eu amo você
E eu quero dizer isto do fundo do meu coração
Do meu coração, do meu coração”
I JUST CALLED TO SAY I LOVE YOU | Stevie Wonder

26 de Novembro de 2021

— Okay, como eu estou? — indago, nervosa, saindo do meu quarto e


encarando o olhar impaciente do namorado da minha melhor amiga.
Megan está na cozinha, terminando de preparar a torta que vai levar
para a casa da mãe. Enquanto isso, Mansen está sendo obrigado a me ajudar
na escolha da minha roupa para o jantar com Virgínia.
— Bonita, Miss Jornal, exatamente como treze roupas atrás — Tyler
responde, se levantando do sofá e caminhando até mim. — É só um feriado,
relaxe.
Meus ombros caem enquanto solto uma lufada de ar. Me sinto
frustrada por não conseguir controlar a agitação em meu peito.
— Estou nervosa. É a primeira vez em muitos anos que vou passar um
momento em família com a minha mãe, não sei exatamente como reagir —
confesso, olhando para os meus pés, e Tyler me puxa para um abraço.
Circulo seu tronco, apoiando o rosto em seu peito e tento engolir a
vontade crescente de chorar. Estou uma pilha de nervos ambulante e,
certamente, insuportável.
— Não tenho o abraço musculoso e quentinho do meu melhor amigo,
mas espero que sirva para te ajudar — provoca, rindo, e eu me afasto
rapidamente para encará-lo com a testa franzida em uma interrogação.
Vejo, ao fundo, Megan chegando na sala com o semblante de quem foi
pega no flagra.
— Sua traidora! — resmungo, antes de me jogar no sofá e cobrir meu
rosto com uma almofada.
Sinto o enchimento do móvel afundar dos meus dois lados. Quando
Megan puxa a almofada das minhas mãos, eu a fuzilo com os olhos.
— Em minha defesa, eu não tive escolha, ele descobriu sozinho —
Meg explica.
— E você não negou — acuso.
— Não mentimos um para o outro, regra básica dos namoros, Miss
Jornal — Tyler chama minha atenção. — E, fala sério, acreditou mesmo que
ia conseguir esconder de mim que está transando com o meu melhor amigo?
— Como descobriu? — questiono, honestamente curiosa.
— Tirando o fato de que ele anda como o melhor humor do mundo, e
que isso só rola por muito tempo quando tem sexo envolvido — ele ri, e eu
sinto que vou morrer de vergonha. — Semana passada Megan esqueceu o
jaleco e eu vim buscar, vocês não me ouviram porque estavam, como posso
dizer… Ocupados. Mas eu vi a mochila dele no sofá.
Tyler e Megan estão prendendo o riso. Em contrapartida, eu quero
abrir uma cratera no chão e me enfiar lá dentro para nunca mais sair.
O namorado da minha melhor amiga me ouviu transando.
Com Ethan Harris. Tyler Mansen, o cara com quem eu tomo café da
manhã quase todos os dias, me ouviu transando e, possivelmente, falando
sacanagens para o seu amigo. Droga, isso vai alugar um espaço na minha
cabeça por muito, muito tempo.
Maldita hora em que revelamos para ele o esconderijo da chave
reserva.
— Não que precisasse de tudo isso, vocês são bem óbvios até — ele
murmura, soltando um risinho. Eu recupero a almofada de Megan e a acerto
na cabeça do garoto. — Mas se quer uma dica de alguém com uma certa
experiência com esse dormitório, façam menos barulho, dá pra ouvir do
corredor, as paredes são bem fi…
— Chega, pelo amor de Deus! — chio, completamente envergonhada,
tapando os ouvidos com as mãos.
— Miss Jornal, não é nada demais, é só uma dica de amigo — se
defende.
— Nunca mais falaremos sobre isso, é sério — encerro o assunto
antes que ele diga mais alguma coisa que vá me fazer querer pular da janela.
Me levanto do sofá num rompante, voltando para o meu quarto para
terminar de me arrumar enquanto ouço minha amiga dando um sermão no
namorado por tê-la delatado.
No fim, acabo escolhendo um vestido verde menta simples de cetim.
Seu comprimento se estende até o meio das minhas canelas, as alças são
finas e ele tem fendas laterais que começam na altura dos meus joelhos.
Deixo meu cabelo solto, os cachos definidos caindo nas minhas costas, e
coloco uma jaqueta de couro preta para completar o visual.
Nos acessórios, me limito aos meus anéis e um cordão simples com
um ponto de luz no pingente. Encaro meu reflexo no espelho e sorrio,
gostando realmente do que vejo e me sentindo confiante de que terei uma
noite excelente.

Mando um beijo no ar para Tyler e Megan quando eles me deixam no


portão da mansão. Recebemos um alerta de nevasca para o fim do dia, por
isso, meus amigos insistiram em me trazer até Hoboken antes de irem para
Providence. Porque, segundo Tyler, “de jeito nenhum” eu poderia enfrentar
uma nevasca com o meu carro de motor duvidoso.
Meus dedos se apertam um pouco mais incisivos ao redor do papel
pardo que envolve o buquê que estou carregando, e o nervosismo cobre toda
a minha pele como uma manta. O perfume das tulipas bem abaixo do meu
nariz me traz sensações distintas. Por um lado, me sinto confortada, por
outro, sinto uma espécie de nostalgia encruada em seu cheiro.
Ouço o destravar do portão algum tempo depois de tocar a
campainha, empurro o metal gelado e passo por ele, seguindo pelo caminho
de pedras. Dou uma boa olhada ao passar pelo jardim e me surpreendo com
a mistura de cores e tamanhos das flores nele plantadas. Virgínia disse que
cuidaria dele, fico feliz que tenha cumprido.
Logo que me aproximo da porta, puxo o ar com força e empurro a
maçaneta. O hall de entrada está iluminado e decorado em tons de laranja e
amarelo. A casa onde passei a minha vida é construída num estilo de
arquitetura clássica, as colunas de mármore estão por toda parte e o chão de
madeira está polido e brilhando como nunca.
— Mãe? — chamo-a, adentrando a casa pela sala de estar.
— Aqui na cozinha, querida! Estou com comida no fogo! — ela grita.
Meu coração acelera ao constatar que seremos, de fato, só nós duas.
Por algum motivo, pensei que encontraria Madelyn aqui, mas fico feliz que a
governanta esteja passando o feriado em casa, com sua família.
Caminho em passos tranquilos, e conforme me aproximo do interior
da casa, sou guiada até a cozinha pelo cheiro inconfundível de camarões
sendo fritos com alho. A cena toda que encontro é bastante emocionante.
Mamãe está com os cabelos cacheados presos no alto com um turbante
amarelo e um vestido branco soltinho, no estilo camisetão. Seus pulsos estão
adornados com pulseirinhas douradas que tilintam conforme ela mexe com
vigor os camarões na panela, e ela está cantarolando Whitney Houston, que
escapa dos alto-falantes do seu celular.
Sorrio, me permitindo assistir o momento que há anos não vivo. Mal
consigo me lembrar do sabor da sua comida, ou da última vez em que a
comi, mas ao varrer o olhar pelos ingredientes organizados pela bancada,
meu coração se preenche de maneira surreal. Ela está preparando um pouco
de tudo que eu amo.
— Cheguei — aviso, baixinho, e ela se vira em minha direção com um
sorriso. Escondo as flores atrás do corpo para fazer surpresa.
— Oh, meu deus! Não ouvi você chegando — ela solta uma gargalhada
e eu fico feliz de perceber o clima leve entre nós. É tão bom estar assim com
ela. — Venha até aqui.
Deixo minha jaqueta pendurada em uma das banquetas dispostas em
frente ao balcão de refeições e vou até ela, segurando o buquê de tulipas
brancas. Paro ao seu lado e vislumbro o sorriso gigantesco que se forma em
seu rosto ao vê-las.
— São para você — digo, lhe entregando, e ela desliga o fogão antes
de pegá-las da minha mão. — Feliz Ação de Graças, mãe.
— Oh, Niña, não precisava! Muito obrigada — ela agradece,
visivelmente emocionada, e seus olhos brilham lindamente. — Feliz Ação de
Graças, querida.
Observo com atenção o momento em que ela pega o cartão que deixei
em meio às flores, e capto exatamente o instante em que seus olhos se
enchem de água ao ler o bilhete singelo que escrevi.
“Estou feliz por estar aqui hoje. Essas flores significam o que
estamos construindo, você entende melhor do que eu sobre elas.
Com carinho, Niña.”
Uma lágrima solitária escapa do seu olho e, junto com ela, uma das
muitas barreiras dentro de mim cai também.
— Obrigada, mesmo. Não tem ideia do quanto eu esperei por isso —
ela diz, com a voz embargada e inclinando-se para cheirar as flores.
Meu coração parece queimar em meu peito e, sem pensar muito bem,
deixo um beijo carinhoso em sua têmpora. O gesto parece funcionar como
um religamento, e assim que me afasto, sinto como se nós duas pudéssemos
vencer qualquer coisa. E vamos.
Mamãe funga e abana o rosto com a mão livre, tentando se recuperar.
Quase dou risada quando ela se vira para esconder o choro, fingindo
procurar um vaso de cristal para colocar as flores. Temos exatamente a
mesma dificuldade de lidar com nossas vulnerabilidades, eu um pouco
menos, graças à terapia, que tem me feito entender que é exatamente ao me
colocar dessa forma que eu reafirmo a minha humanidade.
Ouvi da professora Melbroke, na semana passada, que para nós,
mulheres negras, nos mostrarmos vulneráveis perante um mundo que nos
internaliza dor e nos põe como fortes de uma forma tão violenta é não só um
ato de autocuidado, como também de revolução. Essa fala me marcou tanto,
e me fez repensar tantas atitudes, que encarar meus sentimentos de maneira
mais sensível se tornou um exercício diário.
— Aqui está! — exclama, colocando o vaso de cristal na pia para
enchê-lo. Seu rosto já está livre dos resquícios molhados das lágrimas. —
Agora vamos voltar para a comida. Eu sou péssima com as comidas de Ação
de Graças, você sabe. Então só decidi cozinhar…
— Os meus pratos favoritos — completo, e ela pisca para mim,
cúmplice.
Observo-a colocar o vaso com as flores sobre a bancada, o cartão ao
lado, e então retornar para o fogão. Virgínia pega uma abóbora que está
aberta no topo, sem o conteúdo de dentro, e derrama uma espécie de molho
de abóbora com queijo de uma das panelas, antes de jogar os camarões fritos
por cima.
Eu ofereço ajuda e ela me instrui a cobrir tudo com queijo para
gratinar. Quando termino, colocamos a abóbora no forno e começamos a
preparar juntas um excelentíssimo pozole mexicano[14].
Na cultura mexicana, tudo que envolve o ato de cozinhar inspira afeto
e ancestralidade, é através da comida que se propiciam encontros e
formações de laços. E é por causa da comida que famílias se reúnem ao
redor da mesa para partilharem momentos que, posteriormente, se agregam à
história daquelas pessoas.
Embora Virgínia não seja descendente mexicana, foi ela quem me
apresentou a muitas das tradicionalidades que compõem a cultura da qual eu
descendo. Ela e Esteban chegaram a morar um tempo em Guadalajara,
mamãe sempre pareceu guardar boas lembranças desse tempo.
Desde que eu era bem pequena, ela sempre tentou introduzir no meu
dia a dia as comidas, a história dos povos nativos, a música, a dança, e
também sempre fez questão de que eu fosse familiarizada com a língua. Sou
extremamente grata à ela por isso, afinal, uma pessoa que não sabe de onde
vem jamais saberá para onde vai.
Entender os aspectos culturais e sociais que constituem quem eu sou e
como a sociedade me enxerga foram fundamentais para que eu conseguisse
me reafirmar, sempre que foi necessário, como uma mulher afro-latino-
americana. E certamente Virgínia tem participação nisso.

Quando todos os pratos estão dispostos sobre a mesa em travessas de


cristal e o cheiro de tempero impregna o ar, fazendo com que meu estômago
produza barulhos assustadores na minha barriga, eu e minha mãe nos
sentamos de frente uma para a outra na enorme mesa de jantar que
arrumamos juntas.
A jarra imensa de suco de amora bem gelado no meio da mesa causa
um alívio indescritível em meu peito, não consigo evitar.
Nos servimos em silêncio, apenas com as notas baixas de Für Elise,
do Beethoven, tocando ao fundo. Minha boca enche d'água quando aproximo
o prato com o creme de abóbora com camarões do rosto e inspiro
profundamente. Mamãe termina de colocar o pozole em sua tigela e estende
sua mão em minha direção.
Hora de dar graças.
— Deus, obrigada por cada refeição que o Senhor coloca em nossas
mesas. Obrigada por nos dar um teto e lares seguros para nos abrigarmos e
para repousar os nossos corpos cansados, e obrigada pela nossa saúde… —
ela respira fundo, e eu, que ainda me lembro vagamente da oração, completo.
— Pelo nosso amor e união — falo baixo, segurando sua mão com
firmeza. — Obrigada, Deus, por estar sempre presente em nossas vidas,
olhando e rogando por nós, nos guiando e nos protegendo. Quem assim seja,
hoje e sempre.
— Que assim seja — mamãe repete, e mesmo sem abrir os olhos, sei
que está sorrindo.
Comemos ouvindo música, e a cada garfada eu solto um ganido
extasiado. Se ela soubesse quantas vezes, desde que eu deixei esta casa, eu
simplesmente desejei que todos os nossos problemas simplesmente
desaparecessem apenas para eu poder comer novamente a sua comida.
Virgínia é simplesmente espetacular na cozinha, suas comidas são
sempre tão saborosas e suculentas que é impossível comer sem repetir.
Mamãe me assiste devorar cada prato com um olhar encantado, e é somente
ao repará-lo que eu me dou conta de como eu senti falta desses momentos
com ela. Como senti falta de ter a minha mãe.
— Estou tão feliz que esteja aqui, Niña. Acho que, em anos, não tive
um dia tão feliz como esse — comenta, alegre, quando termino minha tigela
de pozole.
— Eu também estou feliz de estar aqui mamãe. — Sorrio, afastando a
tigela da minha frente e me levantando. — E estou satisfeita também. Vem
comigo?
Dou a volta na mesa e estendo minha mão em sua direção,
conduzindo-nos para o que, até onde me lembro, era nossa sala de leitura.
Encontrei a brecha perfeita para uma conversa que sinto que não pode ser
mais adiada, e enquanto caminho de mãos dadas com a minha mãe pelos
corredores da casa. Sinto que meu coração está prestes a explodir de
nervosismo.
Penso em todos os conselhos que Megan me deu sobre como
introduzir essa conversa de forma carinhosa, nos muitos planos que venho
fazendo para me certificar de que minha mãe superará essa fase com
maestria, nas sessões de terapia, e também nas muitas conversas que tive
com Ethan nos últimos dias.
O garoto vem trabalhando duro na missão de me encorajar e me
manter confiante a respeito de convencê-la a começar a reabilitação.
Mesmo.
E com isso, não posso deixar de dizer como meu coração pareceu
grande demais para caber no meu peito no dia em que ele, simplesmente,
chegou no meu alojamento com uma pasta cheia de estudos sobre o
alcoolismo funcional e os melhores centros de tratamento para essa variação
da doença em Nova Iorque.
Eu já vinha montando meu próprio inventário de informações sozinha
desde que conversei com Megan pela primeira vez sobre a situação de
Virgínia, mas ver o seu empenho em me ajudar em algo tão importante pra
mim… Isso aqueceu meu coração sem que eu ao menos pudesse controlar.
Assim que abro a porta com maçaneta dourada, encontro o ambiente
amplo repleto de prateleiras com os mais diversos livros. As estantes de
carvalho ainda são as mesmas de quando eu era adolescente, bem como os
sofás confortáveis em tom de creme que ficam de frente para a lareira.
Basta um único olhar para Virgínia para que ela entenda que tenho
coisas para dizer. Minha mão se solta da sua quando caminho para me
aconchegar no sofá. Ela abre um dos armários suspensos na parede e pega
uma colcha, se acomodando ao meu lado e nos cobrindo.
Observo-a puxar o ar, numa respiração demorada, e exalar devagar.
Seus olhos, pretos como a noite, me escrutinam minuciosamente, e eu vejo o
nervosismo cintilar em suas retinas atentas.
— Senti muito sua falta nos últimos anos, muito mesmo. Senti falta de
estarmos juntas dessa forma, de uma forma leve, onde você é você e eu sou
só a sua filha. E eu queria muito que pudesse ser assim mais vezes, que você
pudesse ser a minha mãe, e eu, a sua filha que saiu de casa pra fazer a
faculdade dos sonhos — eu falo devagar, e ela vai assentindo. Meus olhos já
estão ardendo, e eu não sei quanto tempo vou aguentar sem chorar.
Pego suas mãos, entrelaçando meus dedos aos seus e beijando os
dorsos, para mostrar que tudo que estou dizendo é porque quero o seu bem.
— Eu não quero mais brigar, mãe. Mas também não quero mais ser a
pessoa que vai buscá-la em hospitais, que mente, que vê você se destruindo
e não faz nada. Eu realmente não quero mais isso. Não quero, porque cada
vez que eu recebo uma ligação me chamando para ir até um hospital ver
você, cada maldita vez que meu celular toca por isso, uma parte de mim
simplesmente morre, e eu tenho aprendido a amar muito estar viva — sinto
as lágrimas salgadas escorrerem dos meus olhos até a minha boca.
Virgínia me fita com uma dor cruel gritando silenciosamente em seus
olhos. Ela ainda está conseguindo se manter firme, mas sei que não vai
demorar muito para que desabe comigo.
— Sendo muito sincera, eu já cogitei simplesmente parar de ir até
você, já cogitei mudar de número e simplesmente não avisar. Mas não dá, na
única vez em que não fui correndo atrás de você eu me martirizei por dias,
porque você é a minha mãe, e eu não consigo não fazer nada. Acontece que
de um jeito ou de outro eu me machuco, e eu tô muito cansada. E eu queria
muito que você conversasse comigo sobre isso, quero ajudar você. Pode ter
certeza de que lutaremos juntas.
Honestamente, não sei dizer qual reação exatamente eu estava
esperando dela. Meu nervosismo era tamanho que eu só me concentrei em
não falar nenhuma besteira ou soar rude. Mas de todas as possibilidades que
eu ousei cogitar, nem de longe eu estava preparada para ouvir isso:
— Estou limpa há um mês e meio — ela fala, baixinho, num tom
envergonhado, e meu queixo despenca.
— Você o quê? — indago, apenas para ter certeza de que não ouvi
errado.
— Um mês e meio. Faz um mês e meio desde que não coloco uma
gota de álcool na boca.
— M-m-as, como? Por que não me contou? Meu Deus, mãe, isso é
ótimo! — Minhas lágrimas se misturam ao riso criando um tom de voz único.
Caramba, essa foi a melhor notícia que já recebi. — Está fazendo
tratamento? Como isso aconteceu?
Virgínia parece murchar um pouco mediante a minha pergunta, e eu
me sinto um pouco tensa pelo que está por vir.
— Eu… Bom, desde que nós começamos com as ligações eu decidi
que queria acabar com isso de vez e ser uma mãe melhor para você. Depois
daquela última crise que contei pelo telefone, resolvi dar um basta em todo
aquele caos, então tomei algumas atitudes — explica.
— Quais?
— Mandei Alfred e Madelyn levarem embora tudo de alcoólico da
casa. Tenho pessoas trabalhando aqui para garantirem que eu não saia à noite
e contratei uma enfermeira para passar os dias comigo e me auxiliar nas
crises de abstinência — ela fala e ergue um dedo para cada item. —
Também tenho dois seguranças, eles me acompanham quando saio, me
vigiam o tempo todo.
Me sinto completamente em choque, e bastante horrorizada, ouvindo-
a explicar.
— Então quando nós estávamos no restaurante… — questiono,
incrédula.
— Oh, não. Nesse dia não, eu sabia que não faria nada na sua frente,
não teria coragem — confessa.
Encaro-a ainda um pouco anestesiada pelo que me foi dito e tento
buscar palavras para me expressar numa linha de pensamentos coerente.
— Mãe, isso é…
— Sei o que vai dizer — ela me interrompe. — Sei que vai falar que
eu não posso resolver isso dessa forma, sei que vai dizer que devo buscar
um médico, fazer reabilitação, acredite, eu sei de tudo isso. Mas eu não
posso, Amelie, não vou suportar ser tratada como uma doente.
— Mas você está doente, mãe! O alcoolismo é uma doença! — falo,
subindo um pouco a voz, e me arrependo. — Essa ideia de tratamento
mirabolante pode funcionar a curto prazo e, acredite, estou mesmo feliz pelo
seu progresso. Mas você precisa de mais! Precisa de um psicólogo para te
ajudar com os traumas que a relação com aquele desgraçado do meu pai te
deixou, para te ajudar a superar os sintomas psicológicos e garantir que você
não venha a desenvolver esse vício de novo.
— Amelie…
— Não, mãe, é sério! Isso é muito sério! Não pode simplesmente
começar um tratamento tão radical sem o mínimo de conhecimento médico,
isso pode gerar uma crise de abstinência ainda maior. Você precisa procurar
um médico, um que se encarregue da sua desintoxicação e da sua
recuperação física e mental. Não é somente sair contratando pessoas e
esconder todas as garrafas de uísque da casa, não é assim que funciona.
Tento me manter calma, sem esboçar qualquer tipo de sentimento que a
gere desconforto, apenas demonstrando minha mais pura e genuína
preocupação. Eu estudei sobre o alcoolismo funcional, sei o quanto ele pode
fazer com que você sinta que está no controle só porque consegue realizar
suas tarefas.
Virgínia precisa se consultar com um médico especializado, precisa do
auxílio da terapia e de tantas outras partes da reabilitação. Só assim ela
conseguirá um tratamento completo e realmente eficaz.
— Eu sei de tudo isso, Niña, mas eu não posso me arriscar. A alta
sociedade de Nova Iorque é um antro de fofocas, se eu cair nas mãos do
médico errado e a mídia descobrir… Vai ser um caos, e o seu pai…
— Ah meu Deus! É isso? — interrompo-a, me levantando. — Está
preocupada com a imprensa, e com o que ela dirá sobre Esteban, enquanto
discutimos uma questão que pode custar a sua vida?
— Não é tão simples assim.
— Por tudo que é mais sagrado, mãe — digo, me ajoelhando diante
dela e segurando suas mãos. — Pela primeira vez na vida, pense em você, e
somente em você. Meu pai não pode fazer nada contra nós, e se ele, ou algum
médico, ao menos ousar mencionar o seu nome em público, eu o processo.
Processaremos todos eles. Eu juro. Esteban não vai acabar conosco pela
segunda vez. Estamos unidas agora e eu vou proteger você, confie em mim
— eu estou implorando.
Literalmente. Estou de joelhos implorando para que ela faça algo por
si mesma ao menos uma vez.
— Eu pesquisei, consegui recomendações de boas clínicas e de bons
profissionais, tenho tudo planejado, só me deixe ajudar — peço.
— Eu… Posso pensar a respeito? Me preparar? E podemos ter uma
Ação de Graças normal entre mãe e filha? É a primeira vez, depois de anos,
que tenho você comigo. Será que eu posso aproveitar isso sem precisar falar
sobre hospitais? — seu tom denuncia que ela está prestes a chorar.
É só por isso que eu me levanto e me sento novamente ao seu lado,
sem dizer mais nada, embora minha cabeça esteja fervilhando em busca de
uma solução.
Tem de haver um jeito de convencê-la.
“Você olha para mim do jeito que só você olha
E então eu sei
Eu só quero, eu só quero
Eu tenho tenho que, tenho que estar com você”
BE WITH YOU | The Vamps

1 de Dezembro de 2021
Harris <3: Como vc tá se sentindo?
Harris <3: Eu acho que vou ter um derrame nervoso.
Meu celular vibra, repetidamente, em meu colo e eu não preciso
desbloquear a tela para saber de quem as mensagens vem. Ethan está do
outro lado da sala, escondendo o aparelho debaixo da mesa e com os olhos
concentrados. Desbloqueio a tela rapidamente, e sem que eu possa esconder,
suas mensagens me arrancam um sorriso.
Nós dois estamos pirando.
Eu: Sinto que meu coração vai sair pela boca.
Eu: Tô nervosa demais, acho que meu cérebro vai pifar.
Ergo o olhar novamente em sua direção e ele esboça um meio
sorrisinho antes de começar a digitar.
Harris <3: Só dez de nós continuam na disputa.
Harris <3: Vc não precisa se preocupar, sabe disso, né?
Harris <3: É, literalmente, a pessoa mais inteligente dentro dessa
sala, sua vaga tá garantida.
Eu: Não sei, estou tensa.
Eu: E por favor, não fale como se estivesse em alguma desvantagem,
nós dois sabemos que vc é o melhor.
Eu: Se um de nós estiver dentro, os dois vão passar. E no final, eu
vou acabar com você sozinha :)
Harris <3: Era pra eu ter ficado com tesão? Pq funcionou!
Controlo uma risada, e antes que eu consiga digitar mais uma
mensagem, a Sra. Prescot entra na sala feito um furacão, cheia de papéis nas
mãos e pedindo desculpas pelo atraso.
Em segundos, todos os trinta e cinco pares de olhos presentes na sala
se fixam na mulher. Ela larga parte dos seus pertences sobre uma mesa e se
dirige até o meio do círculo formado com nossas cadeiras. Estamos
ocupando a sala de reuniões dos comitês, um espaço de andar único, amplo e
com janelas enormes que dão vista para o campus.
Estamos reunidos aqui para recebermos o resultado da primeira fase
da disputa pelo estágio no The Politician. Ontem os resultados das
avaliações do último mês foram computadas no sistema, e hoje só dez de nós
sairemos daqui com algum resquício de esperança.
A partir de agora, nossas notas param de valer como critério para
avaliação, e todas as nossas energias vão precisar se focar em impressionar
a equipe de redação do jornal que irá nos entrevistar nas próximas semanas.
Honestamente, me sinto mais confortável estudando feito uma louca para as
provas do que ensaiando bons diálogos. Conversas forçadas me deixam
tensa e eu me atrapalho com facilidade por me sentir pressionada.
O silêncio sepulcral que se instala na sala possibilita que eu consiga
escutar a respiração nervosa de cada um dos meus colegas, o que me deixa
ainda mais angustiada. Subitamente, meu corpo dói pelo simples fato de
Ethan estar do outro lado do ambiente e eu não poder apenas agarrar o tecido
do seu moletom e descontar meu nervosismo lá.
Mesmo que à distância, o garoto me encara fixamente, e me oferece um
sorriso apaziguador que faz com que eu quase o escute sussurrar em meu
ouvido que tudo vai ficar bem. Sibilo um “obrigada” para ele, recebendo
uma piscadinha em resposta e respiro fundo, tentando restabelecer a calma
em minha mente.
— Bom dia, queridos! Como vocês sabem, estamos aqui hoje para
definirmos quem de vocês segue para a fase de entrevistas com o jornal The
Politician em busca da tão sonhada vaga de estágio para o último ano —
nossa professora fala com empolgação. — Desde já, quero deixar claro aos
que não passarem que, de forma alguma, isso é uma derrota e que outras
oportunidades virão. Aos que entrarem, continuem perseguindo esse sonho
com o mesmo gás. A recompensa no final vale muito a pena.
Dito isso, ao invés de começar a ler uma imensa lista, a Sra. Prescot
apenas distribui para cada um de nós os envelopes em sua mão,
silenciosamente. Um arrepio nervoso desce por minha coluna quando ela
pousa o envelope amarelo em minha mesa, e eu preciso fazer um esforço
sobre humano para não abri-lo no instante em que ela me dá as costas.
— Todos vocês parecem estar uma pilha de nervos, exatamente como
pensei que estariam, por isso, tomei a liberdade de escolher não dar a lista
de aprovados em voz alta. Acreditem, eu sei que o meu papel é preparar
vocês para o mercado de trabalho, mas eu imagino o desespero que deve
estar na cabeça de cada um. Então, dentro dos envelopes há uma carta
indicando se você foi aprovado ou não. Sintam-se livres para abrirem aqui,
ou em casa, ou até mesmo ali fora no corredor. Os que passarem receberão
maiores instruções por e-mail — ela fala de maneira calma, parecendo
querer nos tranquilizar. — Boa sorte a todos, estão dispensados e eu estarei
aqui pelos próximos minutos para sanar qualquer dúvida.
Puxo o ar com força, e sem pensar duas vezes, me levanto depressa.
Grudo o envelope ao peito e pego minha bolsa, encarando Ethan e apontando
com a cabeça em direção à porta. Ele entende o recado, passando a alça da
mochila pelo braço, e nós dois caminhamos juntos para fora da sala.
— Onde quer ir? — questiona, assim que chegamos ao corredor.
Olho ao redor, pensando num lugar onde posso ter qualquer que seja
a reação para o que estiver dentro do envelope sem ser incomodada. Penso
na biblioteca, mas Diana nos mataria caso eu fizesse barulho em seu templo
do silêncio, por isso sugiro o meu carro.
O estacionamento está parcialmente vazio quando chegamos. Ethan e
eu afastamos os bancos da frente, colando-os ao painel, e nos sentamos na
parte traseira, fechando as portas e criando nossa própria bolha.
— Pronta? — questiona, virando-se de frente para mim.
— Pronta.
Em sintonia, abrimos nossos envelopes e puxamos de dentro os
papéis que podem determinar uma etapa importante da nossa vida
acadêmica. Um meio segundo de silêncio se estabelece antes que um
“cacete” alto e esganiçado escape da boca do garoto juntamente com um
gritinho fino meu.
Meu coração bate acelerado e eu sinto como se o mundo ao meu
redor ganhasse vida no instante em que leio as palavras “VOCÊ FOI
APROVADA” em negrito, na parte inferior do documento. Poucas vezes na
minha vida eu experimentei uma felicidade tão genuína.
— Eu… Eu passei — Ethan fala, lentamente, parecendo anestesiado.
— Eu também! — grito, antes de me atirar em sua direção.
Sinto seus braços me envolverem pela cintura, me puxando para
perto, e ele enterra o rosto em meu pescoço. Passo uma das minhas pernas
sobre as suas, deixo ela descansando em seu colo e o abraço com força
enquanto repito, sem parar, que “nós conseguimos”.
É engraçado pensar que meses atrás eu jamais me imaginaria
comemorando esse momento justamente com ele, mas agora eu simplesmente
não consigo imaginar nenhuma outra pessoa com quem eu gostaria de dividir
essa conquista. Nós dois queremos tanto isso que eu sinto que Ethan é a
única pessoa capaz de entender a felicidade que estou sentindo.
Cada dia que passa, se torna mais difícil enxergá-lo como um
adversário.
— Meu Deus, nós realmente conseguimos… — sopro, me afastando
para olhar em seus olhos.
— Bom trabalho, Coelhinha — diz, baixo, antes de aproximar o rosto
do meu e, ugh, sua boca já parece me chamar.
— Bom trabalho, Capitão.
Sorrio antes de eximir a distância que nos separa e deixo um beijo
demorado em seus lábios, saboreando devagarzinho o gosto da felicidade em
sua língua. Solto o papel que estou segurando e levo minhas duas mãos até
seus fios de cabelo, entrelaçando meus dedos uns nos outros em sua nuca.
Estou usando um vestido rodado que vai até o meio das coxas, o que
facilita o acesso para as mãos calejadas do garoto se infiltrarem por baixo
da minha roupa. Exalo com força sobre seus lábios quando ele acaricia a
minha pele e deixa apertos carinhosos.
— Gosto disso — falo, ofegante, em meio ao beijo.
— Eu sei, linda.
Solto uma gargalhada em razão da sua presunção e ele desce uma
trilha de beijos gostosos até o meu ombro, onde deita sua testa e inspira
lentamente. Abraço-o forte e Ethan faz o mesmo, me deixando sentir que
podemos nos fundir a qualquer momento.
— Tô feliz pra caralho — fala, rindo e sacudindo a cabeça de um
lado para o outro.
— Eu também, e adoraria ficar aqui recebendo beijos de recompensa,
mas preciso trabalhar.
Ele bufa baixinho, frustrado por eu ter que ir embora, e em seguida
beija cada canto do meu rosto até chegar em minha boca. Por algum motivo,
meu corpo adora quando ele faz isso. E não demora muito para que meu
estômago esteja dando cambalhotas alegres.
— Tenho treino agora, mas quero te ver de novo ainda hoje, tenho um
assunto urgente para resolvermos. Acha que consegue ir pro meu apê depois
do trabalho? — Ethan pergunta, distraído enquanto passa os lábios pela
minha pele.
— Que assunto urgente? — questiono, unindo as sobrancelhas e
segurando seu rosto para que ele me encare.
— Vai descobrir mais tarde. Annelise vai estar em casa para abrir a
porta, eu devo chegar logo depois de você, tudo bem?
Confirmo com a cabeça, ainda o fuzilando com os olhos e com a
mente à mil.
— Pode ao menos me dizer se é algo bom ou ruim? Vou ficar a tarde
toda nervosa por conta disso — confesso.
— É bom, e não precisa ficar nervosa, sério — Sua voz é doce e ele
passa um cacho meu para trás da minha orelha. — Te vejo mais tarde,
Coelhinha.
Levamos um tempo nos despedindo, o suficiente para estarmos
atrasados, mas enquanto eu dirijo até o trabalho não consigo me arrepender
nem um pouquinho.
Faz mais de meia hora que estou ouvindo Megan falar
ininterruptamente. E eu estou começando a ficar agoniada.
Minha amiga entrou pela porta da cafeteria tão assustadoramente
feliz, e ao mesmo tempo desesperada, que eu quase pensei que a Rihanna
havia assumido a presidência ou algo inesperado do tipo.
No entanto, felizmente sua euforia não tinha como razão o fato de uma
das maiores divas do pop estar morando na Casa Branca, e sim, o fato de
que seu talentoso namorado resolveu, enfim, ir em busca do próprio sonho.
Tyler se inscreveu no draft.
E, segundo Megan, ele está determinado a largar de vez o curso de
direito na Irving, caso seja escolhido por um time. Nós duas comemoramos
com uma dancinha da vitória e eu cometo o terrível erro de oferecer um café
grande de cortesia para a minha amiga. Meg tem um problema sério com
cafeína, qualquer extradose faz com que ela atinja um pico de energia pra lá
de esquisito, e agora, eu estou sendo obrigada a ouvir seu imenso monólogo
sobre seu amor por Tyler Mansen.
— Sabe uma coisa que eu estava pensando? O que vão fazer caso ele
seja escolhido por um time, sei lá, da costa leste? Vão encarar o
relacionamento à distância? — questiono, enquanto aspiro as estantes de
livros da parte de livraria da Letras e Grãos.
— Estamos pensando sobre isso ainda. Tyler não quer fazer muitos
planos porque está com medo de se frustrar — Meg responde, enquanto
segura alguns livros para que eu possa limpar a prateleira.
— Hm… E por que eu sinto que você já planejou tudo, hein?
— Porque eu planejei, duh! Você sabe, eu não vivo sem planos e não
começo o ano sem pelo menos dois meses preenchidos na minha agenda.
Tyler que me desculpe, mas eu não ia me aguentar! — ela exclama. Meg fala
rápido e embolado, o que me faz soltar uma gargalhada.
— E qual é o plano, afinal, Megan Eleonor Lewis?
— É bem simples na verdade, vou prestar prova de residência para a
cidade que ele for. Nosso plano já era pegar um apê só pra nós dois no ano
que vem, caso ele ficasse em Nova Iorque, então não acho que faça muita
diferença — explica, dando de ombros, e embora eu já esperasse, me sinto
surpresa.
— Está mesmo disposta a deixar tudo para ir atrás dele? Tipo, sua
vida em Nova Iorque, sua mãe e sua avó em Providence, vai mesmo deixar
tudo?
— Não sou uma apaixonada tola, se é o que está pensando, Amy…
— Ei! Eu não disse isso! — corto-a.
— Tudo bem, eu sei que pode parecer loucura, mas nós dois
construímos uma relação sólida, sabe? Eu tenho vinte e cinco anos, já sou
adulta, vou me formar em alguns meses, e amo aquele cara com cada batida
do meu coração. É com ele que eu quero me casar, conhecer o mundo, formar
uma família… Tyler é uma certeza na minha vida, uma das únicas, e eu nunca
deixaria de acompanhá-lo nesse sonho, entende? Nós… Eu… — ela gagueja,
e eu noto seus olhos enchendo d’água. Ela sempre acaba se emocionando
quando fala dele, o que eu acho fofo.
Tomo os livros das suas mãos e os apoio na prateleira junto com o
mini aspirador. Escolho um ângulo onde não podemos ser vistas e puxo-a
para se sentar no chão, junto comigo.
— Tyler é um jogador fantástico, e pelas estatísticas dele, é quase
certo de que será draftado. Eu posso ser médica em absolutamente qualquer
lugar do mundo, minha mãe me criou para isso, mas é com ele que eu me
sinto transbordando a melhor versão de mim. Eu acompanhei cada passo
dele em busca desse sonho, o esforço para se destacar nos jogos, o medo de
decepcionar os pais, a angústia de estar estudando algo que ele detesta… Eu
estive lá, vendo cada parte da construção dessa possível conquista, e eu
quero estar lá quando for real. Então, mesmo que isso signifique ir para o
outro lado do país, eu vou sem pensar duas vezes. Acho que o amor também
é sobre isso às vezes.
Okay, talvez eu esteja um pouco emocionada.
— Já disse o quanto eu admiro você? — pergunto, antes de segurar
suas mãos. — Essa foi uma das coisas mais bonitas que eu já ouvi, e o amor
de vocês dois é simplesmente… Não sei, é como todo amor deveria ser. Não
tenho dúvidas de que você é a maior fã daquele cara, e nossa, ele também é
o seu maior fã. Então se isso vai te fazer feliz e completa, saiba que além do
meu apoio, e de um super presente para a casa nova, vocês dois vão ter
sempre todo o meu amor.
— Amiga… — ela choraminga, sorrindo feito uma boba.
— O mundo é todo seu, Megan. E onde quer que esteja, contanto que
se sinta feliz e continue salvando vidas, eu sei que você vai estar bem. Mal
posso esperar para ver você toda chique sentada na primeira fila dos jogos
da NBA num dia, e com olheiras enormes pós plantão no outro — falo,
rindo, e ela me acompanha.
— Estou contando os minutos. Mas até lá, quero aproveitar cada
segundo que tenho morando com você e aturando seu mau humor terrível. —
Ela ri, e eu faço careta. — Amo você, Amelie. Como uma irmã.
— Eu também amo você, Megan. Como uma irmã.
Puxo minha amiga para os meus braços e faço carinho em seus fios
loiros enquanto sinto ela subir e descer a palma por minha coluna. Megan foi
a primeira pessoa a me fazer acreditar que eu mereço cuidado, foi quem me
ensinou sobre ser família, sobre lealdade e fraternidade. E mesmo que ela
mude para a outra ponta do mapa, eu jamais serei capaz de esquecer todo o
amor e ensinamento que essa garota me deu.
Há quem diga que as amizades duram pelo tempo que precisam durar,
eu tenho certeza de que o nosso tempo é o sempre.
“Só o que eu quero é ficar com você, ficar com você
Não há nada que possamos fazer,
só quero ficar com você, só você.
Não importa onde a vida nos leve,
nada pode nos separar.”
I JUST WANNA BE WITH YOU | Trilha Sonora High School Musical 3

1 de Dezembro de 2021

Assim que abro a porta do apartamento, sou recepcionado por Bruce


cheirando cada milímetro das minhas pernas como se eu fosse a porra de um
bife. Me agacho para cumprimentá-lo e largo a bolsa de treino no gancho que
fica na entrada. Tyler saiu do treino e foi direto buscar Megan para jantar,
meu amigo finalmente decidiu se inscrever para o draft e acho que vão
comemorar.
Avanço em direção à cozinha, varrendo todo o ambiente com os olhos,
me perguntando se Amelie já chegou, já que não recebi nenhuma mensagem
sua.
— No seu quarto, mané — Annelise diz, do balcão da cozinha, com
um sorriso malicioso nos lábios.
Odeio isso. Me dá a sensação de que estou sendo pego no flagra.
No fim, todos os nossos amigos acabaram descobrindo meu lance
com Amelie. Tyler diz que somos óbvios demais, mas eu acho que eles é que
são um monte de fofoqueiros.
Deixo um beijo estalado na bochecha da minha amiga, que se
despede, me avisando que vai encontrar com a namorada e que não sabe se
volta hoje, e então sigo para o meu quarto.
Caminho pelo corredor sem fazer muito barulho e abro a porta com
cuidado. Em segundos, a visão que meus olhos alcançam é arrebatadora para
a quantidade de hormônios se agitando em meu corpo. Como se já não
bastasse a adrenalina pós treino, sou tomado por ondas de calor que viajam
por toda a minha corrente sanguínea, me reduzindo a um amontoado de puro
caos.
Amelie está deitada de bruços em minha cama, aninhada entre os
travesseiros, lendo um de seus livros, chuto que seja um de poesia que ela
anda obcecada. A garota está tão entretida que parece não notar minha
presença. O top amarelo florido frisado que ela veste contrasta com o short
jeans curto, que deixa sua bunda perfeitamente redonda ainda mais bonita.
Me rendo à tentação e então, sorrateiramente, me aproximo da cama
perto o suficiente para deixar um tapa forte no lugar que tanto gosto.
— Gostosa! — Ela tem um sobressalto e resmunga, manhosa, me
encarando feio por cima do ombro. — Desculpa, Coelhinha, foi mais forte
que eu.
Acaricio a pele que começa a ficar avermelhada, fazendo um
biquinho, buscando redenção, e observo enquanto ela se levanta e fica de pé
no colchão. Amelie caminha até a borda e para de frente para mim
envolvendo seus braços finos e malhados em meu pescoço.
Dessa forma, ela ganha alguns centímetros de altura de vantagem em
relação a mim. Entretanto, sou eu quem saio ganhando, porque seus peitos
estão na minha cara e eu não poderia pedir coisa melhor. Deus, já falei o
quanto sou completamente devoto desse corpo?
Apoio o queixo no vão entre suas costelas e a encaro de baixo com o
ar mais inocente que consigo encenar.
— Quem o senhor pensa que é, hein? — Ela tenta se manter séria, mas
sei que deseja rir.
Pouso minhas mãos em suas nádegas e as aperto antes de responder
com o argumento que tenho na ponta da língua.
— O cara que te dá vários orgasmos por semana? Talvez? — Ela solta
uma gargalhada alta, e sei que acertei em cheio. — E o dono do quarto
também, é importante frisar, sua folgada.
Tombo o corpo para frente derrubando-a no colchão e distribuo
cócegas por toda a pele exposta que encontro. Amelie ri com vontade e o
som entra pelos meus ouvidos, vibrando em meu cérebro, o que me faz
acompanhá-la.
— Disse para esperá-lo no apartamento, mas não disse que o quarto
era proibido, e eu estava ficando nervosa com o jeito que Annelise estava se
segurando para não soltar uma piadinha. Afinal, qual assunto urgente quer
resolver?
Solto uma lufada de ar, descrente do que estou prestes a dizer, rolo
para sair de cima dela e sustento meu rosto com uma mão. A outra, uso para
acariciar a pele do seu abdômen.
— Seguinte, Coelhinha, por completa e absoluta culpa sua, eu fui
descobrir por conta própria como Troy e Gabriella se formaram e tudo mais.
E eu fiquei muito puto, logo nos três primeiros minutos de filme, porque…
Entenda, eu odeio a Sharpay, mas aquela víbora novata tá com cara de que
não é boa gente… Enfim, eu te chamei aqui porque quero-terminar-de-
assistir-High-School-Musical-3.
O final sai embolado e a careta no semblante da garota entrega pura
descrença.
— Você o quê?
Respiro fundo e, puta merda, me xingo mentalmente pela bilionésima
vez por dizer isso em voz alta.
— Eu quero terminar High School Musical 3 — cuspo as palavras,
rapidamente, e Amelie parece chocada.
Então, segundos depois, uma risada esganiçada e alta lhe escapa.
— Espera, isso é sério? — pergunta, incrédula. — Está me dizendo
que me chamou até aqui para assistir High School Musical?
— Sério pra cacete.
Eu não sei explicar exatamente o porquê, mas ela parece feliz ao dar
um gritinho animado e encher meu rosto de beijos. Falando sério, eu
realmente queria ver o filme, em partes, porque estou mesmo empenhado em
entender o “mundinho Amelie” da mesma forma com que ela vem se
dedicando a entender o meu, e também porque, sejamos honestos, é uma
produção razoável que me prendeu.
Mas, nossa, ver o sorriso alegre estampando o rosto lindo de Amelie
quando voltei para o quarto com um balde de pipoca, e ela colocava o filme
na TV, foi tão… Não sei como definir. Sou estranhamente obcecado por ver
essa garota feliz.
— Você nem reparou na decoração nova do meu quarto — falo,
fingindo estar ofendido quando me acomodo ao seu lado na cama e deixo as
coisas sobre a mesinha de cabeceira.
— Ah, eu vi que mudou os móveis de lugar, ficou ótimo assim — diz,
com os olhos fixos no catálogo da TV.
— Tem certeza de que só reparou nisso? — pergunto, esticando o
braço em sua direção e usando o indicador para tocar seu queixo.
Amelie me escrutina confusa, e assisto-a correr o olhar minucioso pelo
ambiente até que ele se fixe no seu quadro, preso na parede acima da minha
escrivaninha. Sua boca se abre num “o” perfeito, e acho que nem o melhor
dos poemas seria capaz de traduzir em palavras a sensação de observar sua
expressão moldando-se até formar mais um sorriso radiante.
Eu já disse que sou obcecado por ele?
— Eu não acredito — sua voz sai baixinha, e um brilho molhado pinta
seus olhos.
— Ficou lindo, né?
— Ethan, você é…
— O melhor amigo e foda fixa mais legal do mundo? — palpito, rindo.
— A única pessoa que já pendurou um quadro meu além da Megan —
ela responde baixo, e eu consigo sentir o peso das suas palavras. — Isso é
muito importante pra mim, mesmo. Obrigada.
— Tá brincando? Eu que agradeço pela honra de ganhar um quadro
seu. Você é uma artista, Coelhinha, merece que o mundo veja o seu talento, e
se eu não fosse egocêntrico o suficiente para monopolizá-lo no meu quarto e
vê-lo o tempo inteiro, ele estaria exposto no corredor — sou sincero, e
Amelie me olha como se eu estivesse lhe dando o mundo.
E arrisco dizer que eu o daria para ela só para que me olhasse assim
de novo.
— Ugh! Odeio quando você é fofo desse jeito, me faz esquecer
completamente do porquê eu já te odiei um dia — ela finge estar brava e eu
não contenho a risada.
— Posso saber por que razão você faria questão de lembrar disso?
Não obtenho resposta. Ao invés disso, Amelie engatinha na cama e se
aninha ao meu corpo, deixando beijinhos rápidos no meu rosto e no meu
pescoço. Não sei ao certo qual a sensação de borboletas no estômago, mas
sinto que posso estar bem próximo de sentir isso quando ela segura meu
rosto e acaricia minha bochecha.
Seus olhos castanhos parecem estabelecer um elo inquebrável com os
meus, como se ousar desviar o olhar fosse o maior dos crimes a ser
cometido nessa circunstância. Pouso minha mão na sua cintura, segurando-a
firme e reparando, pela milésima vez, o quanto cada parte do seu corpo
parece se encaixar com o meu.
Já fugi de muitos lances casuais em que eu tive algum envolvimento à
parte com a garota, seja uma amizade ou uma mesma aula, porque isso
sempre me pareceu a receita mais catastrófica do universo. Entretanto, com
Amelie é diferente, é justamente esse "a mais" que torna tudo tão bom e que
me deixa louco.
Adoro transar com essa garota, tanto que poderia passar muitos dias
trancado em um quarto simplesmente fodendo dia e noite com ela, sem
objeção alguma. Adoro quando ela me faz perder a razão, adoro os sons que
ela faz quando estou dentro dela, adoro sua selvageria e o quão
desesperadamente linda ela é pelada. Mas, porra, o que vem depois
consegue ser sempre tão bom quanto.
Sim, senhoras e senhores, eu estou admitindo que gosto pra caralho de
dormir agarradinho, conversar aleatoriedades, preparar um lanche juntos
enquanto ela veste a minha camisa e, principalmente, adoro não passar pelo
constrangimento fodido de ir embora depois que tudo acaba.
E também adoro receber carinho, puta merda, essa é a melhor parte.
Amelie é viciada em fazê-los, e eu aproveito 100% disso para receber
os melhores cafunés do planeta. No fim, nosso lance funciona bem
exatamente como é, e eu gosto bastante dele desse jeito. Não mudaria
absolutamente nada.
Ficamos um bom tempo nos beijando até finalmente nos afastarmos e
nos concentrarmos no filme.
Ao final, devo admitir, Troy e Gabriella até que são bem legais. O
jogador um pouco menos, porque meus tímpanos quase explodiram pelo grito
que Amelie Castillo deu quando ele joga o cabelo para trás na hora de
apresentar “Just Wanna Be With You”. Tirando isso, assumo, é uma boa
trilogia.
Embora eu jamais ouse admitir isso em voz alta.
“Porque nós nunca saímos de moda
Nós nunca saímos de moda
Você tem aquele cabelo comprido,
penteado para trás, camiseta branca
E eu tenho aquela fé de boa garota,
e uma saia pequena e apertada”
STYLE | Taylor Swift

10 de Dezembro de 2021

Eu realmente preciso de cerveja.


É a única coisa em que consigo pensar quando termino de enviar meu
último relatório de aula da semana.
O clima está inexplicavelmente ameno em Nova Iorque para um fim
de tarde de inverno, e o céu alaranjado faz com que a janela do meu quarto
pareça uma tela aquarelada. Fecho a aba do meu e-mail e lanço meu corpo
para trás, me desmontando sobre o encosto da cadeira e soltando o coque
apertado em que prendi meus fios de cabelo. Estou mentalmente exausta,
daria tudo por um pouquinho de diversão.
— Cacete, você tá linda.
A voz de Ethan vibra pelos auto-falantes do meu celular e, por um
segundo, quase me esqueci de que estávamos em chamada de vídeo.
O garoto está se aprontando para uma partida em casa contra a
Cornell, e eu precisava de ajuda com o meu relatório porque faltei a nossa
última aula de Cultura das Mídias para visitar algumas clínicas de
reabilitação para dependentes químicos. Minha mãe ainda não concordou
com a internação e sua estratégia maluca vem funcionando, mas quero estar
pronta quando conseguir convencê-la a tentar o tratamento tradicional.
Encaro minha imagem minimizada na tela do meu celular, e sendo
bem honesta, desconfio que Ethan precise de um óculos. Minha aparência
está longe das melhores e meu cabelo, que não vê uma hidratação há
semanas, está com um volume frizzado incomum e amassado pelo elástico.
Definitivamente, estou acabada.
— Preciso beber ou vou ter um burnout, é sério — falo, pegando o
celular de cima da escrivaninha e caminhando até a minha cama.
— Eu gostaria muito de poder acompanhar você nessa, Coelhinha,
mas o dever me chama — diz, rindo e mostrando a braçadeira de capitão
antes de guardá-la em sua bolsa.
Sorrir é quase instintivo. Ver Ethan feliz e se preparando para mais
um jogo liderando o time, depois de vê-lo quase abrir mão de estar à frente
dos Lions, é algo que sempre provoca em mim uma estranha sensação de
paz. Gosto muito de vê-lo assim, de vê-lo bem.
— Façam o urso daqueles caras virar janta de leão. — Rio do meu
próprio trocadilho envolvendo os mascotes das universidades e Ethan
apenas sacode a cabeça de um lado para o outro.
— Já agradeceu hoje pelo seu sonho ser o jornalismo e não o
humorismo? — provoca, e eu lhe estendo o dedo do meio. — Ei! Você podia
ir ao jogo, os caras querem fazer o pós no Grove’s, vai se distrair um pouco
e, de quebra, matar sua vontade de álcool.
— Espera… Quê? — questiono, apenas para verificar se entendi
bem. Ethan nunca mais me convidou para um jogo desde a partida em
Princeton.
— É, eu sei que não é a sua praia, sei que prefere rolar de biquíni na
neve do campus à assistir um jogo de basquete, e por isso nunca mais tentei
te convencer a ir em um, maaaaas… Pode ser legal — sua voz sai um tanto
incerta, mas logo se firma para completar: — E eu gostaria de ter você lá.
Pela sua expressão, sei que ele está tentando fingir que não se importa
tanto assim com a minha decisão, mas conheço Ethan o suficiente para saber
que, muito provavelmente, ele ficaria bem feliz caso eu frequentasse alguns
dos seus jogos. Eu só não havia percebido, até agora, que ele não tinha ideia
de como me dizer isso.
Encaro seus olhos castanhos pela tela do celular, eles brilham em
expectativa ao passearem por todo o meu rosto. Ao passo que um sorriso
tímido se molda em minha face, sinto meu coração acelerar de forma
perigosa pelo simples fato de compreender que ele me quer por perto em
algo tão importante para ele quanto o basquete.
— Será que o mundo vai se desconfigurar caso eu entre naquela arena
para torcer por você? — pergunto rindo, já entregando minha resposta.
Ethan sorri com uma intensidade tão singular que faz as batidas em
meu peito tropeçarem e acende um alerta em minha mente que, por hoje,
prefiro ignorar.
— Nah, acho que, no fundo, todo mundo já sabia que você era um
protótipo de maria cestinha — ele brinca, e eu o xingo baixinho.
Nos despedimos logo, e eu pulo da cama rezando para conseguir me
arrumar e dar um jeito na minha cara derrotada nos menos de quarenta
minutos que tenho para estar à caminho da Arena John Jay, a casa dos Lions.
Para torcer por Ethan Harris.
Pelo amor de Deus.

As arquibancadas da arena estão lotadas.


Me esgueiro pelos corredores com dificuldade tentando, de maneira
inábil, manter a cerveja que comprei dentro do meu copo. Os lugares para a
partida de hoje são marcados e a bilheteria estava um verdadeiro caos
quando cheguei, o que me leva ao pensamento de que poucas vezes na vida
agradeci tanto por Megan fazer parte da torcida da nossa atlética.
Minha amiga está em mais um dos seus plantões e vai nos encontrar
apenas depois do jogo, no entanto, ela deu um jeito de liberar minha entrada
como parte da torcida, o que me garantiu um lugar excelente bem na mureta
da arquibancada. Não sem antes, claro, me encher de mensagens terríveis
sobre como ela tem certeza de que Ethan e eu ainda seremos o casal vinte da
Irving.
Tentei avisá-la de que ela vai morrer sem ver isso acontecer, mas não
funcionou. Megan descobriu seu maior hobbie nas últimas semanas: atentar
contra a minha paciência.
Confirmo a numeração da cadeira no papel em minha mão e me
acomodo, já sentindo a emoção pré-jogo se instalando em meu corpo. Posso
não ser a maior fã do esporte, mas sou competitiva ao extremo, o que
significa que aceitar uma derrota está fora de cogitação.
Abro a câmera do meu celular apenas para checar minha aparência.
Meus cabelos estão parcialmente soltos já que prendi a parte de cima em
duas maria chiquinhas com fitas brancas. Fiz uma maquiagem leve e
desenhei um pequeno coração azul do lado esquerdo acima da maçã do
rosto.
Estou usando uma saia de pregas azul-marinha, uma camiseta preta
com o emblema da faculdade sobrepõe uma segunda pele branca, e um all
star branco de cano alto completa o visual. Sinto que me empolguei um
pouco na produção, mas é o que dizem: se está na chuva, é para se molhar.

O apito estridente corta o ar e o clima na arena está pegando fogo. Se


eu pudesse completar, diria que o ambiente pouco a pouco está se tornando
hostil.
Estamos no fim do segundo período, e pelo pouco que sei, haverá um
intervalo de quinze minutos para os próximos dois períodos. A Cornell está
com 14 pontos de vantagem sobre a Irving e o clima na quadra está tão tenso
quanto nas arquibancadas. Os ânimos dos garotos estão exaltados, e as faltas
estão acontecendo aos montes.
Pelos resmungos que ouço de torcedores indignados ao meu redor,
esse jogo deveria ser um jogo fácil, o que significa que algo de errado está
acontecendo com os nossos jogadores e eles precisam reverter isso na
segunda metade da partida, com urgência.
O time titular é, até onde eu sei, o melhor que nós temos. Elói,
Charles, Ethan, Tyler e Cory estão dando o sangue em cada jogada, e embora
o placar diga que não, é perceptível que eles estão dando o seu melhor.
Assisto com atenção o momento em que Ethan caminha até seu
treinador parecendo contestá-lo sobre alguma decisão tomada. O garoto está
ofegante e visivelmente estressado, e a pressão vindo da torcida não parece
estar ajudando. Imagino que nesses momentos sua aversão à barulhos o deixe
terrivelmente transtornado.
Tudo acontece rápido demais, num segundo, ele e Bradley Butler
estão dialogando, no outro, o treinador está apontando para a saída que leva
aos vestiários e berrando algumas palavras que eu não entendo. Uma
movimentação nervosa se estabelece na torcida, e uma garota ao meu lado
sobe em sua cadeira e grita impaciente:
— Laurent! Que porra está acontecendo?
Corro meu olhar na direção que ela encara, e vejo Elói Pierre fazer
um sinal com as mãos indicando que Butler fez Ethan passar o restante do
intervalo no vestiário. A garota bate com a mão na testa e desce do assento,
voltando a se sentar sobre ele.
Ela está com uma legging preta e moletom da faculdade. Os fios de
cabelo são alisados e longos, e a pele negra num tom claro está avermelhada
pela agitação.
— O que aconteceu? — questiono-a, assim que ela se senta.
— Ah, aquilo? — fala, apontando para a quadra. — Uma mania do
treinador deles, Butler às vezes deixa os estressadinhos “de castigo” nos
intervalos. Parece que é a vez do nosso capitão.
— Ele pode fazer isso? Mandar um jogador para o vestiário no meio
da partida?
— Tecnicamente, não. Mas ele é bastante conhecido pelos árbitros da
liga, alguns simplesmente fazem vista grossa nesses casos — explica, antes
de sugar o canudo da sua Coca Diet.
Encaro a quadra novamente e vejo Ethan sumindo em direção aos
vestiários abaixo de nós. Ele já me contou uma vez que detesta “jogos
quentes”, que embora torne a partida emocionante, muitos jogadores acabam
machucados e as coisas sempre acabam beirando o descontrole. Olho ao
redor pensando no que fazer, e é quando uma ideia se acende na minha
cabeça.
— Acha que consigo vê-lo? — pergunto para a garota que me olha
desconfiada. — Ethan é meu amigo, acho que consigo acalmá-lo.
A menina, cujo nome ainda desconheço, varre a arena com os olhos e
então aponta para uma das saídas bem ao nosso lado.
— Vai descer por aquelas escadas e entrar à esquerda, acho muito
pouco provável que tenham seguranças lá agora. A terceira porta no fim do
corredor é a do vestiário deles — ela explica e me oferece uma piscadinha
cúmplice.
— Obrigada… — Deixo que ela se apresente.
— Beverly! Beverly Ford, é um prazer — me cumprimenta e, de
imediato, me lembro das vezes em que ouvi Elói falando sobre sua melhor
amiga.
— É um prazer também, sou Amelie Castillo. Ou só Amy, você
escolhe — falo, rindo, antes de me despedir e seguir o caminho que ela me
indicou.
Realmente não há seguranças nos corredores por onde passo. Ainda
assim, ando rapidamente e tomando o máximo de cuidado para não ser pega.
O som da arena é quase totalmente abafado aqui embaixo, o que faz com que
a sensação de perigo se torne um pouco maior cada vez que ouço a sola do
meu tênis se chocando com o piso de linóleo.
Cubro a maçaneta da porta do vestiário com a mão e a abaixo
devagar, evitando fazer barulho, e assim que passo por ela, vejo Ethan
sentado em um dos bancos. Ele está de olhos fechados, com a cabeça
encostada na parede e respirando profundamente. Noto que se livrou da
camiseta e seu abdômen glorioso está exposto, coberto por uma fina camada
de suor que faz a pele branca brilhar e destaca o preto das poucas tatuagens.
— Não acredito que me produzi toda para ver você perder, Capitão
— chamo sua atenção, cruzando o vestiário e parando diante dele. Ethan tem
um sobressalto e me encara completamente chocado.
— Mas que porr… — Ele perde a voz no instante em que apoio um
dos joelhos no banco, ao lado da sua perna. — Linda, pelo amor de Deus, se
acharem você aqui eu tô fodido…
— Shhhhh! — sussurro perto da sua orelha, antes de arranhar as
unhas por seu peito. — Você parecia bem irritado lá na quadra… Pensei que
eu pudesse ajudar com isso. Você tem doze minutos, Harris. Quer mesmo que
eu vá embora?
Me afasto dele apenas o bastante para fitar sua face, ainda sem
acreditar que as últimas frases em tom sedutor saíram da minha boca. Existe
alguma coisa nesse lance entre Ethan e eu que faz com que eu me sinta
corajosa.
Há algo na forma como ele me olha, como se eu fosse a garota mais
sexy que ele já conheceu, e em como ele parece amar minha “postura
mandona”, como ele mesmo diz, que faz com que eu me sinta poderosa.
Meu olhar está preso ao seu quando a luxúria cintila em suas pupilas e
aquele maldito sorriso torto se curva em sua boca. Definitivamente, qualquer
ressalva que o garoto possuía acabou de se esvair, e sinto que estamos
falando a mesma língua quando ele sopra:
— Doze minutos, hein? Acho que damos conta.
Sem pensar duas vezes, eu envolvo seu pescoço com os braços e me
sento em seu colo, grudando meu corpo ao seu o máximo que consigo. Ethan
dispensa a delicadeza quando segura minha bunda por baixo da saia e me
pressiona contra sua virilha, atacando meus lábios em um beijo feroz logo
em seguida.
Nossas línguas se enroscam e eu sinto minha cabeça girar pela
sensação maravilhosa que é sentir seu gosto em minha boca. Eu passaria
horas beijando-o exatamente desse jeito, é algo surreal. Minhas unhas
descem por seu pescoço e eu as cravo em seus ombros no instante em que
Ethan aperta minhas coxas.
Sinto seu membro se pressionando contra mim, o tecido fino do short
de basquete faz com que o contato seja ainda maior e eu não resisto à
tentação de rebolar contra ele. A fricção me provoca um prelúdio de prazer
e eu sinto minha calcinha encharcar quando Ethan grunhe baixo em meus
lábios.
A ardência gostosa que se espalha em minha pele quando a mão do
garoto se choca contra a minha nádega direita faz com que um princípio de
um gemido escape da minha boca, um que Ethan trata de silenciar com mais
um de seus beijos de tirar o fôlego.
Existe algo sedutor na sensação de que podemos ser pegos a qualquer
minuto que faz com que a adrenalina em meu sangue esteja nas alturas.
Estarmos numa corrida contra o tempo também colabora, por isso, quando
me afasto do garoto para conferir o relógio, tento tomar de volta as rédeas da
situação.
— Temos nove minutos — aviso, me levantando e fazendo menção de
me ajoelhar na sua frente.
Não obtenho sucesso, no entanto, porque Ethan segura meu pulso e
alterna o olhar entre mim e o restante do vestiário. Engulo um grito surpreso
quando ele me pega no colo e me coloca sentada sobre a borda de uma das
macas de fisioterapia.
— Deita e abre as pernas — ordena, antes de deixar um selinho nos
meus lábios.
— A ideia era fazer você relaxar — retruco.
— Ah, linda, acredite, eu vou relaxar pra caralho quando você
esfregar essa sua boceta gostosa na minha cara.
Suas palavras me arrebatam, fazendo com que minha intimidade se
contraia em expectativa e eu sinto o rubor cobrir minhas bochechas. Me vejo
completamente incapaz de dizer qualquer coisa, por isso, apenas me apoio
sobre os cotovelos e deixo que ele beije meu pescoço, seguindo em direção
à minha barriga.
Assisto Ethan levantar minha saia e afastar minha calcinha molhada
para o lado. Ele mantém os olhos em mim enquanto morde as partes internas
das minhas coxas. Preciso fazer um grande esforço para não morrer de
vergonha quando sua boca está próxima da minha boceta e eu sinto minha
lubrificação escorrer.
— Prometo que mais tarde vou te foder direito e você vai poder gritar
o quanto quiser, linda, mas agora vai ter que ficar quietinha, tudo bem?
Assinto, e tapo a minha boca com a palma da minha mão quando sua
língua quente se arrasta pela minha intimidade encharcada e Ethan me devora
com fome. Meus seios pesam e minha vista vai ficando embaçada conforme
ele vai me guiando em direção ao prazer.
Ethan parece se divertir com a minha agonia, porque quanto mais
irregular minha respiração se torna, mais lentas são suas lambidas. Ele está
me provocando, e eu estou à beira do descontrole.
Tombo a cabeça para trás e choramingo quando ele suga meu clitóris
com força, provocando um som estalado, antes de massageá-lo com a ponta
da língua, fazendo movimentos circulares ao redor do ponto sensível e
inchado. Ergo o quadril buscando mais contato, me esfregando contra o seu
rosto, e ele para de tentar me manter quieta. Volto a focar minha visão em
seus olhos e o brilho de divertimento presente neles me confirma que ele não
estava mentindo.
Ethan está amando me ver desesperada por ele.
Levo uma das mãos até sua nuca, apertando seus fios de cabelo com
força, direcionando sua cabeça e mantendo sua boca pressionada contra
mim. Minhas pernas tremem enquanto ele me chupa olhando nos meus olhos,
e eu me esfrego repetidamente em sua língua, sentindo-a se arrastando por
minhas dobras.
Maltrato o estofado da maca com a mão livre e sinto o gosto metálico
de sangue enquanto mordo a parte de dentro da minha bochecha para conter
meus gemidos. Ethan, por outro lado, assiste meu desespero como quem
aprecia uma obra de arte, completamente encantado.
— P-Preciso de mais — suplico, baixo, já sentindo o alívio se
aproximando.
Sei que a probabilidade de eu alcançar um orgasmo é mínima, mas
sinto que vou conseguir, ao menos, me divertir. Ethan, por outro lado, não
parece querer me deixar ir embora na vontade. Porque segundos depois, o
garoto leva dois dedos até minha entrada e os afunda em mim, estocando
rápido e forte, enquanto continua sugando e lambendo cada parte da minha
boceta.
Prendo com os dentes meu lábio inferior para conter o grito que se
forma em minha garganta, deixando que o único som no ambiente seja o dos
seus dedos entrando e saindo de mim. O vai e vem rápido faz com que
minhas paredes internas se contraiam ao redor deles, tornando insustentável
frear as ondas de prazer que se alastram por todo o meu corpo.
— Não vai sair daqui sem gozar, Castillo. Eu atraso essa porra desse
jogo, mas você vai gozar pra mim, entendeu?
O tom autoritário da sua voz me deixa louca e o brilho intenso em seu
olhar sério faz com que eu me sinta atingindo o meu extremo. Eu daria tudo
para estar em um quarto agora, sentindo a ardência gostosa das suas mãos se
chocando contra a minha pele em todas as posições possíveis. Esse cara é a
droga da minha ruína. E honrando seu título, Ethan me conduz com maestria
até a beira do abismo.
Como um tsunami devastador, o orgasmo me toma e eu me desfaço,
caindo com as costas sobre a maca. Aperto os olhos com uma certa pressão
e me esforço ao máximo para controlar minha respiração.
Ethan deixa um último beijo entre as minhas pernas, assoprando fraco
a área sensível e fazendo meu corpo se contorcer antes de tirar seus dedos
de mim, deixando um vazio que já estou contando as horas para ser
novamente preenchido.
Abro os olhos a tempo de vê-lo se levantar, levar os dedos melados
até a boca e chupá-los de forma sexy. Ele sempre faz isso, e eu sempre adoro
assistir.
É como se eu fosse a melhor coisa que sua língua já provou.
Ergo o corpo, ainda trêmulo, me sentando na maca, ajeitando minha
calcinha e a saia. Ethan se posiciona entre as minhas pernas, levando uma
das mãos até o meu pescoço e deixando um beijo suave em minha boca,
permitindo que eu prove meu gosto em sua língua.
Quando seus braços me envolvem num abraço apertado, eu solto um
risinho baixo e ele morde o lóbulo da minha orelha.
— Eu nunca transei nem chupei ninguém no vestiário, muito menos no
meio de um jogo. Isso foi insano pra caralho e você é maluca — fala rindo,
erguendo o rosto para me fitar.
— Aposto que você me achava chata o suficiente para nunca imaginar
que eu invadiria um vestiário para isso — provoco.
— Bem, antes de te conhecer melhor? Talvez. Agora? Honestamente,
eu nunca sei o que esperar de você.
Ethan planta um beijo suave na ponta do meu nariz.
— Relaxado? — pergunto, olhando em seus olhos e acariciando seu
rosto.
— Pode ter certeza. Ninguém naquela quadra consegue tirar a minha
paz depois de você gozar na minha boca, Coelhinha.
Ele ri e me dá outro beijo, na boca dessa vez. Quando estou prestes a
pular para fora da maca, no entanto, a porta do vestiário se abre num
estrondo que faz meu corpo inteiro paralisar.
— Harris! O jogo vai recomeçar e eu acho bom você… POR QUE
DIABOS TEM UMA GAROTA NO MEU VESTIÁRIO? — O treinador do
time berra, furioso, fuzilando Ethan com os olhos.
— Senhor, foi um mal entendido, eu posso explicar! Eu… — Tento
amenizar a situação, mas sou interrompida.
— Eu não quero ouvir! Querem saber de uma coisa? Eu vou voltar
para a quadra, e vou fingir que isso não aconteceu. Você — ele fala,
apontando para mim. — Vá já para a arquibancada, e você, moleque, eu
espero que ganhem esse jogo, porque caso contrário, eu vou cortar o seu
pinto fora e jogar golfe com as suas bolas. Entendeu?
Ethan assente, e engole seco quando Bradley Butler sai batendo a porta
e resmungando pelos corredores.
— Certo… Eu preciso ir — ele diz, se afastando para buscar sua
camiseta e parecendo transtornado.
Salto da maca e vou até ele. Espero até que tenha se vestido e seguro
seu rosto, tomando sua atenção.
— Mantenha a calma e faça o que sabe fazer de melhor, vencer —
digo, firme, olhando em seus olhos. — Vou estar torcendo por você. Boa
sorte, Capitão.
Ele sorri, parecendo relaxar novamente. Ethan se inclina em minha
direção e sela meus lábios.
— Obrigado, Coelhinha. Te vejo daqui a pouco — ele fala baixinho e
pisca para mim.
— Para comemorar, por favor.
Volto para a arquibancada e ele entra em quadra a tempo de estar em
sua posição quando o árbitro reinicia o jogo.
No fim das contas, os meninos da Irving acabam se recuperando e
vencemos a Cornell por 96 à 89 em uma virada pra lá de emocionante.
Para não perder um costume que nem ao menos havia sido criado,
Ethan faz questão de me dedicar a última cesta da partida, bem como a
vitória, relembrando seu gesto do jogo contra Princeton, simulando uma
ligação com o tênis e dizendo “foi pra você” enquanto sorri entorpecido de
felicidade.
Como da última vez, me curvo em uma reverência ao estilo imperial e
lhe retribuo o sorriso.
Acontece que, diferentemente daquele dia, agora há borboletas voando
desesperadas em meu estômago. Milhares delas. Agitadas e difíceis de
ignorar.
Uma prévia do caos que assumi o risco de viver, sem pensar nas
consequências, e que agora me parecem grandes o suficiente para temer.
“Levante e olhe para o céu, meu amor
Juntos, nós podemos ir além
Oh, juntos, nós podemos ir além”
TOGETHER | Sia

13 de Dezembro de 2021

Acho que já me olhei no espelho umas vinte vezes.


Mesmo assim, checo outra vez meu reflexo no vidro do carro do
Tyler quando já estou do lado de fora.
Hoje é, certamente, um dos dias mais importantes de toda a minha
vida, depois do nascimento da minha irmã, e eu estou bastante empenhado
em causar uma boa impressão. Está no fim da tarde. A tão aguardada
entrevista para o estágio no The Politician está somente a alguns minutos de
acontecer e eu sinto que poucas vezes estive tão nervoso.
Caminho até o prédio enorme que abriga toda a redação e os estúdios
do jornal político mais importante de Nova Iorque com a sensação de ter
meu coração batendo em minhas mãos. Apresento minha carteirinha da Irving
na recepção e, assim que sou liberado, entro no elevador vazio e pressiono o
botão que leva ao décimo quinto andar.
A caixa metálica, por coincidência, é completamente espelhada, o
que me garante mais algum tempo examinando minha aparência e conferindo
se tudo está em ordem. Já falei que estou nervoso pra caralho?
Tia Suzy e eu passamos a última noite inteira decidindo a roupa que
eu usaria e ela me testou para a entrevista, me fazendo algumas perguntas que
ela achava que poderiam me fazer. No fim, acabei escolhendo uma calça
social preta com cinto, uma camisa de mangas compridas e gola rolê
igualmente preta, e um blazer, que não preciso nem dizer que também é
preto, certo?
Regatas estavam fora de cogitação, informais demais, e a maioria das
minhas camisetas deixam minhas tatuagens do braço à mostra. Tia Suzy foi
perspicaz ao relembrar que, embora os tempos tenham mudado, o jornalismo
ainda é uma área bastante conservadora, portanto, é melhor prevenir do que
remediar.
Além disso, meio que faz parte do “senso comum” das entrevistas de
emprego a escolha de um dresscode mais social, e embora essa entrevista
seja parte de um processo seletivo universitário, o que está em jogo ainda é
um trabalho.
As portas do elevador se abrem, revelando um andar amplo,
recheado de salas com paredes de vidro. Corro o olhar pelo ambiente e
rapidamente identifico o grupo de alunos espalhados em grandes sofás mais
ao fundo do andar. Aparentemente fui o último a chegar, o que me faz pensar
que talvez eu não esteja nervoso sozinho.
Aproximo-me de onde meus colegas estão, e sem que eu possa
controlar, meu olhar se fixa na silhueta da minha maior adversária. Amelie
está de pé, observando a paisagem pela janela, e nem ao menos nota minha
chegada. Eu, por outro lado, dificilmente conseguiria ignorar sua presença.
Ela está usando uma calça social preta que faz suas pernas parecerem
incrivelmente longas, uma camisa segunda pele branca e um sobretudo preto.
Os saltos de tira única pretos ajudam a dar a impressão de que ela é mais
alta, e Jesus Cristo, odeio admitir, mas sua beleza superlativa é o suficiente
para me distrair do fato de que ela está prestes a roubar meu emprego.
Não faço ideia de onde estava com a cabeça quando pensei que daria
conta de separar as coisas. Aqui, nesta sala, ela é a minha maior rival, senão
a única, e eu só consigo pensar em como ela está linda e no quanto eu queria
me trancar com ela em algum lugar só para beijá-la até perder os sentidos.
Balanço a cabeça, tentando afastar minha mente dos pensamentos
errados para o momento.
— Preparada para perder? — sussurro em seu ouvido, parando
exatamente atrás dela.
Amelie se vira devagar em minha direção. O sorriso debochado em
seus lábios é implacável e eu sinto meu corpo tensionar quando ela me
esquadrinha dos pés a cabeça.
— Você está um desgraçado de um gostoso nessas roupas, Capitão,
mas a fantasia de coelhão que vai usar quando essa vaga for minha vai ser
inesquecível — ela fala, baixinho, fingindo ajeitar a gola da minha camisa, e
sorri.
Um sorriso lindo, sexy e… Por Deus! Sua boca é a coisa mais
gostosa do mundo.
— Acho que você é o karma da minha vida — Escorrego os olhos
para os seus lábios rapidamente, antes de voltar a encará-la.
— Sabe que eu penso a mesma coisa há quase três anos? — ela fala,
rindo e se afastando para se sentar em um dos sofás com outras duas
candidatas.
Me acomodo em outro assento, de frente para ela, e enquanto
aguardamos pacientemente as entrevistas começarem e nossos nomes serem
chamados, estabelecemos um contato visual incessante que só é quebrado
quando uma secretária baixinha e carrancuda vem até nós e faz a pergunta
que me desestabiliza por completo:
— Quem de vocês é Ethan Harris?

Apostaria muito caro que absolutamente ninguém vai acreditar quando


eu contar que acabei de fazer Russel Lambrock e seus dois assistentes de
entrevista gargalharem.
Ao ser questionado por que estou desperdiçando meu inegável dom
para os esportes sentado em uma sala, exibindo meu boletim impecável,
tentando convencer um dos maiores jornalistas da cidade a me contratar,
quando podia simplesmente estar me preparando para a NBA, minha
resposta foi: “Não me entendam mal, eu realmente amo o jornalismo, mas se
querem saber o real motivo, vocês tem um Starbucks no primeiro andar, eu
amo o café deles.”
Eu não tenho a menor ideia de em que momento meu cérebro nervoso
achou que seria uma boa ideia ativar o modo piadista, mas
inexplicavelmente, parece estar dando certo.
— Essa foi muito boa, garoto — Lambrock fala, entre risadas. — Você
tem uma desenvoltura invejável.
— Obrigado, senhor, é uma honra ouvir isso — digo, anestesiado pelo
elogio.
— Agora me diga, Ethan, qual a sua maior crítica ao nosso jornal? —
Franzo o cenho com a pergunta, sem entender direito. Isso é um teste?
— Me desculpe, senhor, acho que não entendi…
— É simples. Eu não adiciono em minha equipe profissionais que não
estejam comprometidos com o crescimento do The Politician. Então, caso eu
o contratasse, há alguma mudança que ache que eu deva fazer em meu jornal?
— ele questiona, me encarando firme em um claro desafio.
Este é o momento decisivo dessa entrevista, concluo. Cada uma das
dezenas de perguntas feitas antes eram só um aquecimento, é agora que eu
preciso marcar a maior cesta da minha vida.
Por sorte, ou puro preparo, tenho a resposta na ponta da língua.
— Honestamente, senhor? O The Politician é lendário. Vocês são a
maior referência em jornalismo político na cidade e no país. As pessoas
assistem vocês na TV, confiam no seu profissionalismo, elas leem a versão
física e acho que não é segredo pra ninguém que o jornal impresso está com
os dias contados, mas por algum motivo, o The Politician vende, e vende
muito, mas…
— Mas? — Ele parece genuinamente curioso.
— Mas… A presença digital de vocês é bem fraca — digo, na lata,
testando o terreno. Russel Lambrock me encara com atenção. — Os tempos
são outros e a comunicação precisa acompanhar essa evolução digital.
Existe um motivo para que os cidadãos de Nova Iorque compartilhem no
Instagram mais reportagens do Washington Post do que do The Politician, e
esse motivo não tem a ver com os três prêmios Pulitzer que eles têm a mais,
e sim, com o fato de que eles se adequaram ao digital.
Não sei dizer se o agradei com a minha resposta ou se o deixei
furioso, mas assim que me calo, o homem à minha frente troca olhares
significativos com sua equipe.
— E qual a sua sugestão para resolver isso, Sr. Harris?
— Creio que contratar um bom social media, montar uma equipe
somente para as reportagens digitais e, claro, fazer melhorias no aplicativo.
Ele funciona bem nos celulares, mas perde a qualidade de formatação nos
iPads. E é o que dizem, os iPads são os novos jornais impressos — elaboro,
sentindo que estou chegando em um bom lugar.
Russel me encara por longos segundos enquanto tamborila os dedos
sobre o tampo de sua mesa e eu posso jurar que tem uma gota de suor
escorrendo pela minha coluna. Observo atento quando ele volta seu olhar
para a minha ficha acadêmica, disposta na sua frente e solta um longo
suspiro.
Caralho, acho que estou prestes a morrer aqui.
— Isso foi excelente, Ethan — ele diz, se levantando e eu o imito. —
Já obtive todas as respostas que precisava e gostei muito delas, foi um
prazer enorme conversar com você.
Ele me estende a mão e eu a aperto. O seu semblante satisfeito me
deixa bastante aliviado. Acho que fiz um bom trabalho.
— Eu que agradeço, estar aqui já é uma honra. Espero ter alguma
chance — digo, sincero.
— Tenha certeza de que tem. Eu facilmente encerraria esse processo
seletivo agora — ele fala, rindo, enquanto caminhamos até a porta.
— Oh, não faça isso, tem uma garota lá fora com o cérebro mais
brilhante que já conheci, ela vai te deixar com uma dúvida cruel — falo,
compartilhando do seu tom descontraído. — Mas, que fique claro, estou
torcendo para que me escolha.
Ele ri, mais uma vez, e eu sinto o peso de um elefante saindo das
minhas costas. Nos despedimos com um aperto de mãos e eu caminho de
volta para a área onde estão os outros candidatos. A secretária chama um
outro garoto para entrar e eu vou até Amelie, que encara o chão tentando
disfarçar sua vontade de me encher de perguntas.
Às vezes, eu me assusto com o quão bem a conheço. Sério.
— Vai tirar essa entrevista de letra, acredite — digo, assim que paro
na sua frente. Amelie ergue o rosto na minha direção.
— Como foi lá?
— Tenso, mas bom. Estou realmente confiante — assumo.
— Que bom, para você — ela faz pouco caso, e eu sei que está feliz
por mim, mas também está nervosa por si.
— Uhum. Combinei de ver o meu pai agora, mas podemos sair para
beber mais tarde para comemorar, o que acha? — pergunto, tentando distraí-
la, mas ela apenas assente, sem me olhar nos olhos.
Me agacho em sua frente, segurando seu queixo e a encaro com
firmeza. O cintilar da insegurança em seus olhos me deixa angustiado.
— Sei que combinamos que levaríamos essa competição a sério,
Coelhinha, mas acredite quando digo que não sou seu inimigo. Vai entrar
naquela sala, botar pra foder com essa sua mente genial, e encantar aqueles
caras com a sua inteligência, ouviu? — Ela assente de novo, me encarando
dessa vez, e eu me aproximo da lateral do seu rosto para sussurrar: —
Depois, vamos comemorar e eu vou desfazer essa sua carinha de brava na
cama.
— Babaca — xinga baixinho, e eu dou risada, piscando em sua
direção.
— Já falei que você fica linda quando está irritadinha? — provoco,
antes de me levantar e ajeitar meu blazer. — Te vejo mais tarde, me ligue
quando terminar aqui.
— Não vou ligar — retruca, mas vejo que está prendendo o riso.
— Até mais, linda.
Dou risada enquanto caminho até o elevador, torcendo mentalmente
para que ela se saia perfeitamente bem. Por mais contraditório que isso
possa parecer.
Assim que coloco os pés dentro do apartamento do meu pai, Angeline
vem correndo na minha direção com os cabelos despenteados e uma cara de
pouquíssimos amigos. Me abaixo para ficar na sua altura e, sem dizer uma
única palavra, ela afunda o rosto em meu peito e me abraça. As fungadas
baixas denunciam seu choro e tudo parece ainda mais esquisito.
— Ei, Anjinha, o que aconteceu com você? — pergunto, baixo,
enquanto acaricio suas costas.
— O papai me colocou de castigo, mas eu não fiz nada errado,
Thitan, eu juro! — minha irmãzinha fala irritada, enquanto coça os olhos já
avermelhados.
Quando estou prestes a questioná-la sobre o motivo de estar de
castigo, meu pai aparece no corredor ofegante e vestido com roupas sociais.
— Ah, graças a Deus! Preciso que tome conta dela hoje para mim,
sua tia está presa numa reunião e não vai chegar a tempo — Patrick parece
aliviado em me ver. — Pode fazer isso?
— Claro, onde você vai?
— Ele vai num encontro com a nova vizinha — Angeline denuncia,
ainda mal humorada.
Quase engasgo na minha própria saliva, porque porra, eu ouvi
direito? Meu pai vai a um encontro?
— Não é um encon… Ah! Escutem só vocês dois, não é um encontro,
Roselyn e eu vamos só jantar. Um jantar de amigos, amigos jantam juntos
sem segundas intenções, entendem?
Amigos transam também, papai, experiência própria.
Penso em dizer, mas ainda estou chocado pra caralho que meu pai vai
sair para jantar com uma mulher que não é a minha tia. Desde que a mamãe
se foi eu nunca mais o vi se envolver com alguém. Nos primeiros quatro
anos eu entendia perfeitamente, mas depois, passei a não achar saudável a
forma com que ele se fechou para o mundo.
Patrick Harris é um dos homens mais íntegros, dedicados e
batalhadores que já conheci, e também o cara mais amoroso do mundo. Além
disso, é um quarentão bonito pra cacete, o que garante que sua inatividade
nas relações amorosas se deu por escolha própria. Agora, no entanto, acho
que algo mudou, e estou genuinamente feliz por ele.
— Tudo bem, espero que se divirta lá no seu “jantar de amigos” —
falo, fazendo aspas com as mãos, e me levantando para ajeitar sua gravata.
— Eu tomo conta da Anjinha.
— Obrigado, filho. Volto antes das onze e não deixe ela comer o
sorvete que está na geladeira, ela está de castigo — ele lembra, e eu ouço
minha irmã bufar atrás de mim.
— Ah, tem isso. Por que colocou ela de castigo?
— Ela ganhou uma suspensão na escolinha — meu pai explica, e eu
solto um chiado incrédulo.
— O que raios você fez? — Volto-me para uma Angeline enfurecida.
— Mordi o braço de um menino da minha turma, o Clarence, e
coloquei o sapo morto da aula de ciências na mochila dele — ela assume, e
eu estou simplesmente boquiaberto. — Mas ele mereceu, Thitan! Até o papai
sabe disso!
— Certo… O que o Clarence fez para te deixar tão brava? —
questiono, realmente espantado. Angeline não é uma criança violenta, pelo
contrário, criamos ela para abominar atos desse tipo.
— Ele riu de mim quando eu falei que a minha tia namora uma menina
— explica, fazendo uma pausa para fungar e secar as próprias lágrimas. — E
também disse que a nossa família é estranha, que não é normal eu só ter um
pai, um irmão e duas tias.
Okay, isso doeu pra caralho.
Acho que nunca odiei tanto uma pessoa como agora, e preciso fazer um
grande esforço para me lembrar de que estamos falando de um moleque de
oito anos.
Nunca ouvi piadas sobre a morte da nossa mãe, e acho que tê-la
perdido no início do ensino médio ajudou bastante, as pessoas já eram
menos otárias naquela fase. Por isso, não tenho ideia de como Angeline se
sentiu. Nós sempre explicamos para ela porque nossa família é “diferente”
da dos coleguinhas dela, mas para minha irmã, que mal conheceu Anastásia,
a morte não é algo doloroso como é para mim.
Ainda assim, sei que isso a magoou, e também sei como deve ter
doído ouvir o que o pestinha falou sobre Tia Suzy. Me lembro das muitas
vezes em que eu e Tyler tivemos que apavorar uns garotos que implicavam
com Annelise no ensino médio, e também lembro de como ela chorava nos
meus braços odiando ouvir tanta merda só por amar meninas.
É uma merda ver alguém debochar de quem amamos na nossa cara e
não poder reagir.
— Sabe que ela tá certa, não sabe? — pergunto, olhando para o meu
pai enquanto pego minha irmã no colo. — Okay, meio certa, você não pode
morder as pessoas sempre que elas forem babacas — falo para minha irmã.
— Ela não está de castigo por ter defendido a família, está de castigo
porque deixou o braço do menino sangrando e roubou o sapo da escola. Eu
conversei com ela, e ela entendeu que não pode resolver as coisas desse
jeito. Não é, filha?
— Sim, desculpa, não vou mais machucar as pessoas — Angeline diz
a contragosto e afunda o rosto em meu pescoço.
Me despeço do meu pai com ela ainda em meu colo, e ele me faz
prometer que não vou atrapalhar seu método educacional dando sorvete para
minha irmã. Acho que está nítido na minha cara que estou um tiquinho
orgulhoso por ela ter colocado Clarence em seu devido lugar.
Assim que meu pai sai pela porta, coloco Angeline para tomar banho
e vou para o seu quarto separar a roupa que ela me pediu para vestir,
deixando meu blazer pendurado na maçaneta da porta. Enquanto vasculho
seu armário, meu celular toca em meu bolso, me fazendo abandonar
momentaneamente minha caçada ao vestidinho de laços.
Assim que vejo a foto e nome de contato de Amelie brilhando na tela,
xingo baixo, me lembrando que marcamos de beber quando ela saísse da
entrevista.
— Coelhinha! Como foi com Lambrock? Ele adorou você, né? —
pergunto, assim que atendo.
— Oi… Acho que fui muito mal.
— Quê? Por que?
— Não sei dizer, eu estava nervosa, acho que tagarelei demais e
agora o meu ídolo dentro da profissão deve me achar uma insuportável.
Enfim, não quero falar sobre isso, onde vamos nos encontrar? Eu realmente
preciso beber.
— Então, sobre isso… Temos um problema — falo, fechando os
olhos e nervoso por decepcioná-la.
— O que houve?
— Meu pai foi para um encontro e minha tia, que ia cuidar da minha
irmãzinha, está trabalhando. Vou ficar de babá hoje.
— Ah — ela sopra, baixinho. Não sei identificar o que significa, mas
espero que não fique chateada. Me lembro de como Claire, minha ex, odiava
quando eu cancelava as coisas assim, de última hora.
— Eu sinto muito mesmo, prometo que podemos fazer alguma coisa
depois. Eu posso passar no seu alojamento mais tarde ou… — sou
interrompido por um “Shhhh!”.
— Ei! Relaxa, tá tudo bem, okay? — sua voz doce faz cócegas no
meu cérebro. — Podemos fazer alguma coisa amanhã. A menos que…
— Que…
— Nada, esquece, é uma ideia boba. Nos falamos depois — ela tenta
desconversar com uma risada.
— Não ouse desligar esse celular, Coelhinha. Me diga, o que pensou?
— Não é nada, eu só… Pensei que poderia ajudar você a tomar conta
da sua irmã… Brincar com ela e essas coisas, sabe? Você me disse uma vez
que ela gosta de pintar, aí eu pensei… Quer saber? Esquece, foi uma ideia
estúpida. Família é algo pessoal e não estamos nesse pé, desculpa se pareci
invasiva — ela fala atropelando as palavras, parecendo nervosa, e eu quero
me socar porque estou sorrindo como um palhaço.
Penso rapidamente sobre o assunto. Sei das regras que eu mesmo
criei, mas Amelie é minha amiga antes de tudo, e também sei que Angeline
vai adorá-la, por isso, digo:
— Coelhinha?
— Sim?
— Espero que goste de ver filmes de princesas. Te passo a
localização por mensagem.
“Segredos que tenho mantido em meu coração
São mais difíceis de esconder do que pensei
Talvez eu só queira ser seu
Eu quero ser seu”
I WANNA BE YOURS | Artic Monkeys

13 de Dezembro de 2021

ANTES
Minhas mãos estão suando conforme caminho até a sala de entrevistas.
Giro a maçaneta com cuidado, e engulo em seco quando pouso meus olhos
sobre Russel e sua equipe, que me encaram com atenção e sorrisos abertos.
Vou até sua mesa em passos determinados, sentindo meu coração acelerado
em meu peito.
— Senhorita… — Russel me estende sua mão e checa a lista diante
dele. — Amelie Castillo! Boa tarde, é um prazer, sente-se.
— Boa tarde — cumprimento-o com um sorriso. — O prazer é todo
meu. É uma honra estar aqui, sou uma grande fã do seu trabalho.
— Ah, que isso, muito obrigada. A honra é toda minha de entrevistar
a próxima geração dos grandes jornalistas da Irving. Sabia que eu me formei
lá?
— Sabia, graduação em jornalismo na Irving, pós-graduação em
cobertura e edição jornalística também na Irving e doutorado em jornalismo
político em Harvard — recito devagar seu currículo acadêmico que também
é o dos meus sonhos.
— Essa é realmente fã — Camille Strauss, a revisora chefe do The
Politician, comenta ao seu lado.
Russel ri e me analisa por longos segundos antes de voltar seu olhar
para uma pasta que parece conter a minha ficha.
— Engraçado — Russel fala, subindo seu olhar para o meu rosto. —
Eu conheço esse sobrenome… É parente de Esteban Castillo?
Como se ele tivesse tocado em um assunto proibido, sinto meu corpo
gelar.
— Eu… Eu… Sou, sou sim. Esteban é o meu pai — afirmo,
engolindo o bolo de saliva em minha garganta.
— Ah, então é você a famosa herdeira do império Dunamis.
Deveríamos ter nos conhecido há um tempo, se não me engano.
Merda, merda, merda. Mantenho meu olhar firme no seu, sem deixar
que ele capte meu desconforto e nervosismo perante o assunto. Bons
jornalistas precisam conseguir ser impassíveis, e é exatamente o que estou
tentando fazer neste momento.
— Sim, meu pai queria nos apresentar, mas eu não julguei como
correto usar desse tipo de artifício para obter alguma vantagem sobre os
meus colegas. Vai contra a minha ética e eu prezo muito por ela — explico,
séria, gastando as melhores palavras do meu vocabulário. — Se me escolher
para este cargo, quero merecê-lo.
Um meio sorriso toma o rosto do homem que, se tudo der certo, será
o meu futuro chefe.
— Eu jamais a escolheria se não merecesse, mas admiro sua atitude.
Mostrou ser uma pessoa de honra, e isso é raro no nosso meio.
— Obrigada. — Solto um longo suspiro e empertigo a coluna.
— Senhorita Amelie Castillo, vamos lá… Aqui diz que você vem de
uma escola preparatória em Hoboken, que se formou com méritos no ensino
médio, campeã do concurso de redação da escola por três anos seguidos,
representou a Angola na simulação da ONU em Harvard e ganhou um prêmio
de destaque do evento. Ingressou no curso de jornalismo na Irving com bolsa
de oitenta por cento, é fluente em espanhol e italiano, tem francês
intermediário… E notas excelentes. Nossa, já tirou menos do que oito
alguma vez na vida?
— Nunca — asseguro, sentindo-me confiante. Meu histórico
acadêmico é impecável, e disso eu não tenho dúvidas.
— Isso é impressionante. Em qual área pretende seguir carreira
depois de terminar esse estágio?
Sorrio, porque estava ansiosa por essa pergunta.
— Honestamente, Sr.Lambrock, meu plano é fazer um excelente
trabalho durante esse estágio, porque pretendo ser efetivada — digo, e ele
ergue a sobrancelha, surpreso. — Trabalhar no The Politician sempre foi o
meu sonho, e foi a meta que estipulei para alcançar no dia em que pus os pés
na Irving. Não estou sendo uma bajuladora quando digo que sou uma grande
fã, eu realmente acredito que o que vocês fazem aqui muda o mundo de
alguma forma, e seria uma honra para mim aprender diretamente com quem
me fez entender o porquê de eu amar essa profissão.
— Que seria?
— Uma vez, o senhor deu uma palestra na NYU, e disse que “o
jornalismo é um ofício para pessoas que conseguem gritar até mesmo no
silêncio. Pessoas que estão dispostas a viver pelo bem comum, dedicar até
seu último suspiro pela liberdade, e que essa liberdade só se conquista pela
informação”. Esse é, basicamente, o meu propósito. Amo a imprensa, mais
do que já amei qualquer outra coisa, justamente pelo seu papel social, e
acredito que não há lugar melhor para exercê-lo do que aqui.
Não preciso me ver no espelho para saber que meus olhos estão
brilhando. Amo tanto falar sobre jornalismo que às vezes sinto que me torno
prolixa, porque acabo me empolgando e falando demais.
Russel não diz nada, apenas anota algumas coisas e segue fazendo
diversas perguntas.
— Para finalizar, qual a sua maior crítica ao nosso jornal?
Eu já estava preparada para essa pergunta. Uma das candidatas
entrevistada antes de mim saiu da entrevista aos prantos porque essa parte a
desestabilizou e ela ficou sem respostas. Por sorte, estudei cada mínimo
detalhe sobre esse jornal, e sei exatamente o que dizer.
— No meu ver, a parte digital do The Politician merecia mais
atenção — digo, segura do que estudei, e ele me encara com atenção. —
Vocês são excelentes com a TV e o jornal impresso, foram um dos primeiros
veículos de mídia da cidade a aderirem a lousas eletrônicas de ponta… Mas
o aplicativo de vocês carece de um desenvolvedor melhor.
— E o que mais?
— Formar uma equipe só para cuidar desse nicho e, certamente,
investir em programadores, designers, publicitários. O aplicativo é mal
formatado para telas grandes como as de iPads as notificações são mal
resumidas, uma configuração e um redator específico para elas resolveria
isso. E, se me permite sugerir algo…
— Vá em frente.
— Acho que seria bom integrar notificações climáticas ao aplicativo.
Alertas de nevascas, temporais e essas coisas. Pouparia tempo dos redatores
de escrever uma matéria inteira para informar sobre o clima. As pessoas se
importam cada vez menos com textos longos, e essas informações curtas não
exigem um espaço tão grande, no meu ponto de vista, claro.
O homem diante de mim fecha a pasta em sua mesa e apoia um
cotovelo sobre ela, sustentando o rosto em sua mão e me escaneando com os
olhos semicerrados.
— Sem mais perguntas. Foi um prazer conhecê-la, Senhorita Castillo
— diz, estendendo a mão livre para me cumprimentar.
Minha boca se abre num perfeito “o”, porque pensei que levaria mais
tempo.
— J-Já acabou? Eu posso falar sobre alguns artigos que já publiquei
se quiser, eu…
— Já tenho o suficiente, muito obrigado.
Ainda um pouco entorpecida, aperto sua mão e me levanto,
caminhando um tanto incerta para fora da sala. Algo me diz que essa
entrevista foi um fiasco.

AGORA
Já fazem longos segundos que estou parada na frente da porta do
apartamento antigo em que o pai e a irmã de Ethan moram, tomando coragem
para tocar a campainha. Detesto quando ajo por impulsividade, porque isso
sempre acaba me colocando em situações embaraçosas, mas agora não tenho
como voltar atrás.
Embora Ethan seja a pessoa que mais confio no mundo, depois da
Megan, sinto que o tópico “família” é algo pessoal demais para ambos. Por
isso, estar aqui significa muito pra mim e, apesar do nervosismo, eu fico
feliz que esteja acontecendo.
Pressiono a campainha, que soa como um sino do outro lado da porta,
e logo em seguida ouço Ethan gritar que a porta está aberta e que posso
entrar.
Giro a maçaneta sentindo meu coração acelerar em ansiedade, e
enquanto caminho timidamente corredor adentro, ouço um “segunda porta à
esquerda depois da sala”. Faço o caminho um pouco mais rápido, deixando
para observar os detalhes do lugar onde ele cresceu depois.
Assim que o encontro, meu coração parece derreter feito manteiga
com a cena com que me deparo. Acho que vou ter um colapso de fofura
quando meus olhos capturam Ethan Harris sentado em uma cama, cheia de
almofadas de princesas, fazendo trancinhas no cabelo da irmã enquanto ela
abraça um urso de pelúcia.
— Quem é ela, Thitan? — a garotinha pergunta, me observando com
curiosidade.
Ethan não responde, apenas sorri para mim e faz sinal para que eu me
aproxime. Caminho até os dois e me ajoelho para conversar com a pequena
que parece um tanto desconfiada.
— Oi, princesa! Eu sou a Amelie, sou amiga do seu irmão. Você pode
me chamar de Amy, se quiser — falo sorrindo, e estendo a mão para
cumprimentá-la.
A garotinha alterna o olhar entre o meu rosto e a minha mão. Não
deixo de reparar no quanto ela é bonita, uma das crianças mais lindas que já
vi, e em como ela se parece com o irmão. Os olhos castanhos são bem
redondos, os cabelos num tom de mel são longos e lisos, a pele branca tem
sardinhas rosadas no nariz e ela exala um perfume docinho de amora.
— Oi, Tia Amy — ela fala sorrindo e apertando minha palma com
sua mãozinha pequena e macia. — Meu nome é Angeline, o meu irmão me
chama de Anjinha. Você pode me chamar assim também, se quiser. Você
parece uma princesa, sabia?
Solto uma risada, abismada com a simpatia da menina e feliz pelo
elogio.
— Você acha?
— Acho! O Thitan também acha, não é? — ela pergunta para o irmão,
olhando-o de soslaio, e eu sinto vontade de rir pela forma com que ela
praticamente exige que ele concorde.
Ethan finge me examinar e eu reviro os olhos.
— Você está certa, ela parece mesmo uma princesa, precisa ver
quando ela usa os vestidos dela. Na verdade, vocês duas parecem princesas,
Anjinha — ele diz, com um sorriso patético nos lábios, e meu coração
aquece. — E suas tranças reais estão prontas.
Observo enquanto ele ajeita com cuidado os fios de cabelo dela,
passando gel no topo para deixar tudo no lugar antes de passar as duas maria
chiquinhas trançadas por cima dos ombros dela, deixando-as para frente. Eu
já imaginava que o garoto levasse jeito cuidando de crianças por ter criado
uma, mas o carinho e zelo que ele tem com Angeline é visível em cada
mínimo toque.
Ethan é enorme e bruto, mas cuida dela com a delicadeza de uma flor,
e eu sinto que estou parecendo uma bobona olhando os dois juntos.
— Certo, o que quer fazer agora, bebê? — ele pergunta, colocando
ela de pé na cama e se levantando.
— Nós podemos brincar de pintar? O papai comprou tintas novas pra
mim.
— Você acabou de tomar banho, vai se sujar toda, que tal outra
coisa? — Ethan sugere.
— Por favor, Thitan! Eu uso avental, eu prometo que não vou me
sujar — ela faz beicinho e eu vejo Ethan desmontar.
— O quê? — questiono, quando ele me olha pedindo ajuda. — São
tintas novas, ninguém pode dizer “não” para tintas novas. Nem mesmo você,
Thitan — provoco, ele revira os olhos em resposta.
Angeline comemora com gritinhos animados, me surpreendendo ao
pular da cama direto para o meu lado e me puxar pela mão até sua cômoda,
onde estão guardados seus materiais de pintura. Ajudo a pequena a tirar os
pincéis, as tintas e as telinhas 20x20 em branco da gaveta. Enquanto isso,
Ethan forra o chão do quarto e pega o avental de plástico que ela vai usar.
Tiro meu salto, Ethan seu tênis e nós três nos sentamos sobre um
tecido preto que tem diversos respingos de tinta secos. Angeline distribui
uma telinha para cada um de nós e sugere que os três pintem uma parte de
cada uma das telas. Segundo ela, assim todos teremos como guardá-las e
lembrar desse dia.
Mal sabe ela que eu jamais vou me esquecer disso.
Enquanto pintamos, Ethan coloca música no celular, “If We Have
Each Other” de Alec Benjamin está tocando baixo, e o simples ato de
deslizar um pincel sobre uma tela parece me relaxar da tensão que ainda me
resta após a entrevista desastrosa.
Sinto que posso ter jogado fora a oportunidade da minha vida, tudo
isso por não saber controlar minha boca quando estou nervosa e empolgada.
Senti que Russel enxergava minha alma enquanto eu falava, e isso me deixou
um pouco aterrorizada. Perder esse estágio, além de ser triste o suficiente
por ser a vaga dos meus sonhos, vai ser a prova de que meu pai não estava
tão errado assim de desconfiar da minha capacidade. E eu odiaria dar razão
a ele.
Me distraio do meu dilema quando vejo que Ethan e Angeline
abandonaram seus desenhos por ora e estão pintando juntos uma mesma tela.
Eles estão desenhando cada um um lado de um coração, e eu me limito a
assistir fascinada a cena linda do garoto concentrado enquanto desenha com
a irmã.
Eu facilmente pintaria um quadro com essa imagem.
A música chega em um determinado verso enquanto os observo que
me faz pensar que foi escrito para eles:
“I'm 23 and my folks are getting old / I know they don't have forever
and I'm scared to be alone / So I'm thankful for my sister, even though
sometimes we fight / When high school wasn't easy, she's the reason I
survived”[15]. Como se sentisse o mesmo, Ethan desvia o olhar por alguns
segundos para o rosto da garotinha e dá um sorriso bobo enquanto olha para
ela.
Seria um eufemismo dizer que meu coração, mais uma vez, se aqueceu.
A verdade é que ele está queimando em meu peito, e eu sinto que vir até
aqui, conhecer mais esse lado de Ethan e essa garotinha adorável, é como
acender o letreiro luminoso enorme de “PERIGO” em minha mente.
E eu não sei por quanto tempo vou conseguir ignorar.
Terminamos de pintar os quadros um bom tempo depois, e enquanto
eu ajudo Angeline com um outro banho, Ethan vai fazer pipoca para
assistirmos um filme. Barbie e o Castelo de Diamante está nos primeiros
vinte minutos quando uma Angeline sonolenta se aninha em meu colo e dá um
longo suspiro antes de se entregar aos braços de Morfeu.
Esperamos por um tempo até que ela pegue em um sono profundo.
Então a acomodo em sua cama com todo o cuidado do mundo, enquanto
Ethan liga o abajur e o ventilador. Saímos do quarto na ponta dos pés,
tomando cuidado para não fazermos barulho, e nos deitamos no sofá,
completamente exaustos.
— Ela tem a energia de cinco crianças em uma só — comento, rindo,
e me aconchegando no corpo de Ethan.
— Nem fala… Obrigado pela ajuda, de verdade. Angeline amou
você.
— Eu também amei conhecê-la. Acho que vou ter que levar sua irmã
pro meu alojamento, a risada dela me deu cinco anos de vida — brinco, e
ele ri.
— Eu sei, esse é tipo o meu segredinho. Toda vez que tudo parece
terrível, eu venho até aqui, faço cócegas nela e a risada daquela criança
renova a minha alma.
— A cumplicidade de vocês é uma das coisas mais bonitas que já vi,
de verdade — falo, erguendo o rosto para encarar seus olhos.
— Ela é a coisa mais importante da minha vida. Sério, eu faria de
tudo por essa menininha — ele fala suspirando.
— Sua tatuagem de anjo na costela é para ela, não é? — pergunto,
ligando o símbolo ao apelido.
— Sim… À propósito, você é a primeira pessoa da faculdade, que
não é Annelise ou Tyler, a conhecer a minha irmã. Acho que até hoje ela
jurava que eu não tinha outros amigos.
— Como assim? Ninguém mais conhece ela pessoalmente? —
questiono, franzindo o cenho.
— Não. Os caras do time são doidos por esse momento, só nunca
conseguimos realmente marcar, e de resto, você deve presumir que não trago
garotas pra casa do meu pai — ele explica, rindo.
— Nem a Claire? — pergunto, mencionando sua ex namorada.
— Nossa, muito menos a Claire. Sempre tive pra mim que Angeline
só conheceria uma namorada que eu tivesse certeza de que era amor, alguém
que eu soubesse que ficaria na minha vida e que seria parte da vida da minha
irmã também, sabe? Não quero que Angeline se apegue em alguém e sofra.
Pode parecer superproteção, e talvez seja isso mesmo.
— Não, eu entendo, de verdade. Ela era um neném quando perdeu
alguém crucial, é compreensível que você tente protegê-la disso. Eu só não
entendi direito uma coisa — falo, me apoiando em seu peito e ficando
deitada por cima dele.
— Qual?
— Com a Claire… Não foi amor? Tipo, vocês namoraram e tal…
Ethan suspira e fixa o olhar em mim. Sua mão faz uma carícia leve no
meu rosto que me faz inclinar o pescoço na direção do seu toque.
— Acho que foi tudo menos amor — ele fala com pesar. — Meu
relacionamento com Claire foi o tipo de momento que serviu de aprendizado,
mas que eu preferia ter ficado burro. Foi uma relação que me fez mal e que
me fez ter aversão a relacionamentos.
— Se importa se eu perguntar o que aconteceu? Não precisa dizer, se
não quiser.
— É simples, na verdade. Claire queria uma pessoa de estimação
enquanto eu queria uma namorada. Ela não respeitava o fato de que eu tenho
amigos que não são os dela, que eu tenho uma família com quem gosto de
passar o tempo, que eu já tinha toda uma vida antes dela, entende? Ela queria
me controlar para ser a versão de mim que ela queria. Isso foi me
desgastando e me rendeu uns traumas também, mas acho que já os superei.
— Sinto muito — é a única coisa que consigo falar.
— Teve uma vez que Annelise tomou um fora de uma namorada e
passou a noite no meu quarto chorando, enquanto eu a consolava nós
acabamos dormindo na minha cama. Nossa, para quê? Na manhã seguinte,
Claire chegou enquanto ainda dormíamos, ela fez um escândalo tão grande
que Lise chegou a passar mal de nervoso, foi horrível.
— Meu deus, que horror! Você e Annelise são praticamente irmãos! E
ela é lésbica! — chio, indignada.
— Tudo sobre esse dia é detestável. Claire conseguiu manipular tanto
a situação, fazendo parecer que uma outra garota dormir na minha cama era
considerado traição, mesmo que essa garota seja uma irmã pra mim e goste
de meninas, que no final eu acabei pedindo desculpas. E essa merda nem faz
sentido. Terminei com ela no instante em que me dei conta do quão absurda
era a situação a qual eu estava me submetendo.
— Eu não acredito nisso, não consigo imaginar o quanto isso
machucou você — sopro, ainda incrédula. — Foi uma relação bastante
abusiva.
— Obrigado — ele diz, fechando os olhos, e pelo modo com franze
as sobrancelhas, acho que quer chorar.
— Pelo quê?
— Por me dizer isso com todas as letras. Eu nunca tive coragem de
dizer que foi uma relação abusiva porque sempre achei o termo pesado, mas
no fim das contas, é o que é. Obrigado por dizer isso — ele fala, e quem
sente vontade de chorar sou eu.
Apoio meu corpo em meus braços, me erguendo e deixando um beijo
em sua testa.
— Sinto muito — digo, antes de dar outro beijo, agora em sua
bochecha. — Sinto muito mesmo que tenha passado por isso. — Beijo a
outra bochecha. — E sinto muito que tenham estragado o amor romântico pra
você.
Dessa vez, beijo a pontinha do seu nariz, e ele me abraça com força.
— Obrigado, mesmo, Coelhinha. Você não tem ideia de como me
sinto confortável em dividir isso com você, de saber que não vai me julgar.
— Ouço ele dizer contra a pele do meu pescoço.
— Não precisa agradecer. Eu passei por algo parecido com Daniel
quando ele me… Você sabe, quando ele me traiu — falo baixo e Ethan se
afasta, me encarando surpreso.
— Espera, o quê? Então o motivo do término de vocês foi esse? Ele
traiu você? — ele questiona e seu semblante muda drasticamente. Agora ele
parece irritado.
— Sim, com uma menina do corredor do lado na Chisholm House —
falo, sentindo uma pontinha de vergonha.
— Meu deus, eu vou matar aquele desgraçado do Clifford — ele
rosna, e eu o abraço com força. — Coelhinha, isso é sério, aquele filho da
puta conta pra todo mundo que vocês terminaram porque você era uma
maníaca ciumenta! Eu não acredito que nunca desmentiram aquele merda.
— Fruta podre cai sozinha. Ele vai ter o que merece, tenho certeza —
tranquilizo, não sei se a mim ou a ele. — A diferença é que Daniel fingia me
amar e me manipulava para eu pensar que a culpa era minha por ele ter me
traído. Mas ao invés de criar aversão aos relacionamentos, eu os quis,
concretos e seguros. Pareceu o caminho mais fácil.
— É um bom jeito de lidar, inteligente eu diria. Mas também acho
que deveríamos falar mais sobre isso na terapia, pode ajudar — ele sugere,
e eu concordo com a cabeça.
Passamos um tempo em silêncio e eu volto a erguer o corpo,
contornando seu rosto com a ponta dos meus dedos e encarando cada
detalhezinho. Adoro tudo sobre ele, as sardinhas fracas sobre o nariz, as
covinhas quando sorri, os lábios rosados, as sobrancelhas cheias… Ethan
Harris é lindo pra caramba, e eu não me canso de admirá-lo.
— Ethan?
— Sim?
— Eu realmente gostei de conhecer sua irmã — digo, sentindo meu
coração acelerar. — O que te fez sentir seguro para me deixar vir?
— Não sei… — diz baixo, encarando o teto por alguns segundos. —
Você é minha amiga, e eu sei que mesmo que não tenhamos nada, você é
alguém que eu fico feliz que conheça Angeline.
É uma frase simples e curta, mas algo dentro de mim se parte. Acho
que o meu coração.
“...mesmo que não tenhamos nada”.
Antes mesmo que eu consiga dizer qualquer coisa, a porta do
apartamento se abre e eu me afasto de Ethan o máximo que consigo. Não só
por não querer ser pega em seus braços, mas porque há uma dor lancinante
atravessando meu peito, de tal forma que a mínima proximidade faz parecer
que minha pele queima quando em contato com a sua.
Dói, e dói muito.
Me levanto num pulo, calçando meus saltos e pegando minhas chaves
e celular no móvel da sala. Engulo seco quando um homem quase grisalho,
na casa dos quarenta, bem vestido e sorridente, vem até o cômodo.
— Filho, cheguei, sua irmã se comportou ou… Opa, eu conheço
você? — o homem pergunta assim que me vê, e eu só consigo pensar em
como realmente preciso sair daqui.
— Sou Amelie Castillo, é um prazer, Sr. Harris. Sinto muito que não
possamos conversar melhor, eu… Já estava de saída, está tarde e eu preciso
ir — falo, tentando soar o menos agoniada possível.
— Espera, eu levo você até a portaria… — Ethan começa, mas eu o
interrompo.
— Não precisa! Eu sei o caminho, obrigada. — Disparo pelo
corredor, tentando segurar o choro entalado em minha garganta. Quando já
estou prestes a sair, Ethan se aproxima.
— Calma! O que tá acontecendo? É o meu pai? Fica tranquila, ele
não vai ficar bravo por estar aqui nem nada do tipo.
Ele não faz ideia.
— Está tarde, eu preciso ir para casa. Mande um beijo para sua irmã,
nos vemos depois — digo rápido, antes de correr até o elevador e deixá-lo
plantado na porta do apartamento com uma interrogação enorme estampada
na testa.
É tudo tão automático.
Dirigir até o campus. Correr pelo gramado. Subir as escadas. Entrar
no meu apartamento. Perceber que estou sozinha. Desabar.
“...mesmo que não tenhamos nada”.
Não era para estar doendo, não deveria estar doendo.
Mas dói. Dói perceber a facilidade com que ele disse, sem o menor
peso na consciência, de que tudo que vivemos juntos nos últimos meses pode
ser definido como “nada”. Dói perceber que ele só me deixou ir até a casa
da sua família porque não somos nada, não significamos nada. Dói porque,
nos últimos meses, sua companhia tem sido absolutamente tudo para mim.
Tudo. Ethan tem sido tudo.
Ele foi o meu amigo, meu confidente, o colo onde chorei, os braços
para onde corri quando tudo pareceu terrível. Eu me entreguei sem nem ao
menos perceber o quanto. E só agora consigo cair na real de que,
diferentemente do que ele me prometeu quando transamos pela primeira vez,
eu não fui dele somente dentro daquele quarto.
Tenho sido todos os dias depois daquilo também.
E é por isso que o nosso lance está fadado ao fracasso. Ethan estava
disposto a ser meu por uma noite, e eu cometi o terrível equívoco de
acreditar que não seria sua a cada maldito segundo. Como se uma bomba
tivesse acabado de explodir bem no meu colo, concretizo, de uma vez por
todas, que cometi o maior erro de toda a minha vida.
Eu me apaixonei por Ethan Harris.
“Alguém está escutando?
Será que tem alguém em volta para ver
Que eu estou fazendo tudo isso por você
Eu estou fazendo tudo por você”
ALL FOR YOU | Imagine Dragons

14 de Dezembro de 2021
Acordo me sentindo uma tola.
A frase de Ethan ainda repercute em minha mente quando me arrasto
para fora da cama em busca de uma boa caneca de café e uma aspirina para
curar a dor de cabeça dos infernos que estou sentindo por ter ido dormir
chorando.
“...mesmo que não tenhamos nada”.
Pelo amor de deus, como alguém consegue ser tão insensível?
Ou melhor, como eu fui tão idiota ao ponto de ter entendido tudo tão
errado? Ethan sempre deixou claro que éramos somente amigos e uma foda
fixa um do outro, sempre deixou claro que não havia sentimento. Até porque,
se houvesse, ele mesmo já teria dado um fim nisso tudo. Então por que eu fui
tão burra? Por que não percebi que estava sentindo coisas que jamais seriam
correspondidas?
— Você está com uma cara péssima. Dormiu no chão do quarto
ontem, te coloquei na cama quando cheguei.
A voz de Megan chega aos meus ouvidos, me fazendo esquecer por
alguns segundos minha missão de encontrar o analgésico na cômoda da sala.
Viro a cabeça lentamente em sua direção e minha amiga me escrutina com
uma careta. Basta uma única troca de olhares para que ela perceba que há
algo de errado.
Meg se aproxima abrindo seus braços acolhedores e eu sinto que vou
desmontar no instante em que apoio meu rosto em seu peito e enlaço sua
cintura. Sem conseguir dizer uma mísera palavra, eu choro copiosamente nos
seus braços até meu corpo estar tremendo e ela me pedir para que eu me
sente no sofá.
Megan me explica um exercício de respiração, e enquanto eu o faço,
ela vai até a cozinha, voltando minutos depois com uma caneca cheia de chá
fervente e um comprimido para dor de cabeça. Engulo o comprimido com um
gole do chá, e sigo bebericando a caneca até quase o meio.
— Quer me contar o que aconteceu? — ela pergunta, se sentando ao
meu lado e eu mal consigo olhar para o seu rosto. Eu sou incapaz de mentir
para ela sem fracassar.
Tomo uma respiração profunda, tentando organizar as coisas na minha
cabeça sem deixar que meu emocional fale alto o suficiente para me entregar.
— De forma hipotética, se Tyler e você não namorassem e ele apenas
quisesse você por perto, mas não estivesse disposto a gostar de você de uma
forma mais… Concreta. O que você faria?
Viro-me em sua direção, buscando algum tipo de consolo e implorando
para que ela me agracie com suas palavras que sempre parecem resolver
tudo.
— Bom, já que estamos falando de situações hipotéticas… Se o que
ele estivesse disposto a me oferecer fosse o suficiente para mim, eu
continuaria, nem tudo se resume a uma relação e todas as suas convenções.
Agora, caso não fosse o suficiente, eu jamais me diminuiria para caber em
espaços que não foram feitos para mim, muito menos corações — Megan
fala num tom doce, mas eu compreendo o peso das suas palavras. — É algo
com Ethan? Quer falar sobre o que está sentindo?
— Não! Eu só… Esquece, foi só um devaneio, desculpa por te deixar
preocupada. Ethan e eu estamos bem, eu só preciso muito dormir um pouco
mais. Minha entrevista ontem não foi muito boa e isso me deixou abalada —
falo, me levantando. Nem tudo é exatamente mentira. — Obrigada pelo chá,
amo você Megan.
— Eu também amo você. E não se esqueça que mais tarde temos a
festa de aniversário do Brooks. Tyler vai passar aqui para nos buscar às
oito! — ela grita, e eu grunho em concordância. Quase me esqueci desse
detalhe.
No instante em que passo pela porta do meu quarto, sei que o dia de
hoje vai ser extremamente longo. Ignoro as múltiplas mensagens de Ethan me
perguntando o que aconteceu, suas dezenas de ligações perdidas e digito o
número da minha mãe. Talvez visitá-la seja uma boa forma de não passar
uma manhã de sábado inteira afundada em autopiedade.
Três caixas postais depois desisto da ideia. Presumo que ela esteja
ocupada ou em mais uma de suas viagens. Não me preocupo porque caso
algo estivesse errado, Madelyn teria me ligado.
Mamãe estava menos resistente à internação na última vez em que nos
encontramos, na semana passada, para fazermos as unhas juntas. Seu método
inusitado de desintoxicação vem funcionando, mas felizmente consegui
colocar na cabeça dura de Virgínia Morgan que se livrar do alcoolismo não
é simplesmente contratar dezenas de pessoas para cercear sua liberdade.
Existe um tratamento sério, feito por profissionais, e esse tratamento
exige etapas. Graças a minha insistência implacável, eu consegui fazer com
que ela entendesse que, até finalizar essas etapas, nunca poderemos
assegurar uma boa qualidade de vida para ela.
Acabo pegando no sono enquanto troco mensagens com Lily sobre a
roupa que vamos usar mais tarde. A última coisa que desejo fazer hoje é ir
para uma festa, mas não é como se fosse negociável. Charles está fazendo
aniversário e foi pessoalmente ao prédio de jornalismo me fazer o convite.
Faltar está fora de questão.

Existe um fato sobre mim, que demorei um tempo para notar, mas que
está enraizado nos meus hábitos: eu desconto meu mau humor nas minhas
roupas.
É inevitável. Basta que uma mísera coisinha me tire do eixo para que
os vestidos floridos, as blusas com mangas bufantes e saias coloridas cedam
seu espaço para roupas sóbrias e minimalistas. É como se,
involuntariamente, eu me negasse a aceitar que a Amelie triste ou irritada
fosse associada à verdadeira Amelie.
Espero que a psicologia tenha uma explicação para isso, eu não
tenho.
Verifico meu reflexo no espelho assim que ouço Megan me chamar.
Meus cabelos estão presos em um rabo de cavalo firme no topo da cabeça, a
maquiagem leve serve apenas para camuflar minha aparência abatida, a
combinação de camiseta preta lisa e calça wide igualmente preta são, como
já disse, um puro reflexo do meu humor.
Jogo tudo que preciso dentro da minha bolsa e saio do quarto. Megan
está me esperando perto da porta, e solto um assobio ao reparar em como ela
está linda com seu vestido tubinho preto, botas e jaqueta de couro. E embora
eu deteste o olhar de compaixão que ela me lança, passo meu braço pelo seu
ombro enquanto caminhamos juntas até o hall do prédio.
O Kia Soul do Tyler está parado rente a calçada, com os faróis
acesos, e assim que abro a porta traseira, meu coração tropeça malditamente
me fazendo querer correr de volta para a minha cama.
Ethan não olha na minha direção quando me sento ao seu lado, muito
menos quando responde o meu “boa noite”, ou quando Tyler faz a curva para
sair do campus e nossos joelhos se esbarram. Nem uma maldita vez. Eu, no
entanto, não consigo tirar meus olhos dele.
Não sei se pela forma com que a luz do seu celular ilumina seu rosto
sério, marcando os traços e seus cabelos caem em camadas pelas laterais
dele, ou se é o fato de que ele está lindo com a jaqueta da faculdade e um
jeans rasgado, mas tudo nele está me chamando atenção.
E tudo me lembra do quão intensamente esse cara conseguiu
conquistar meu coração.
Desgraçado.
— Alguém aí sabe como chegar no local da festa? Porque eu não faço
ideia — Tyler pergunta, nos encarando pelo retrovisor.
— Eu acho que é uma casa próxima à rodovia — respondo baixo,
porque não tenho certeza.
— É um condomínio de casas, três quilômetros antes da entrada para a
rota 495, no caminho para Long Island — Ethan corrige. Seu tom de voz é
áspero e me faz engolir seco.
— Isso! Desculpa, Ty, eu não sabia — digo, sentindo o choro entalado
na garganta.
Ethan não fala mais nada, Tyler responde com um “relaxa” carinhoso e
me oferece um sorriso pelo retrovisor. Megan, por outro lado, começa a me
encher de mensagens, as quais eu não respondo, e consigo ver pelo seu
reflexo no vidro que ela está brava.
Meu Deus, eu só quero a minha cama.
Cinco minutos se passam. O único som que nos impede de
mergulharmos em um silêncio sepulcral é o dos alto-falantes do carro que
reverberam All For You do Imagine Dragons. Estou com a cabeça apoiada
no encosto do banco e mantendo as pálpebras cerradas. Dessa forma o
caminho parece passar mais rápido, porém, mesmo com os olhos fechados, a
presença de Ethan é captada por todos os meus outros sentidos.
Cada vez que puxo o ar, e seu perfume viaja por minhas vias
respiratórias. É como um golpe doloroso no meu coração, e até chegarmos a
festa eu não ouso dizer sequer uma palavra.
Assim que passamos pela porta da casa enorme que Brooks alugou, o
cheiro enjoativo de vodca, energético e cigarro mentolado rouba o espaço
nos meus pulmões sem que eu possa lutar contra. Mal dou o primeiro passo
dentro do ambiente e Elói Pierre aparece na minha frente com uma garrafa de
vodca de melancia e um olhar de desafio.
— Shot ou dez segundos, chérie? — questiona com a sobrancelha
loira erguida.
Penso em negar, porque realmente não estou no clima para beber, mas
desisto quando decido que não quero passar a noite remoendo meu coração
partido.
— Dez segundos — digo, jogando a cabeça para trás, abrindo a boca e
colocando a língua para fora.
Elói solta um “boa” antes de derramar o líquido em minha boca
enquanto conta até dez em voz alta. A vodca desce queimando por minha
garganta, provocando-me uma sensação de reação, resgatando um pouquinho
do meu ânimo e aquecendo meu estômago.
Quando a última gota toca a minha língua e eu volto a encarar o
francês, ele me dá um abraço de “boas-vindas” e me instrui onde pegar
bebidas e onde o pessoal do time está ficando. Sem nem ao menos olhar para
trás para me certificar de que estou sendo seguida, vou até o balcão e encho
um copo com gin, gelo e xarope de frutas vermelhas.
Se essa noite vai ser um inferno, preciso estar bêbada o suficiente para
suportá-la.
“Você entrou no meu mundo louco
Como um frescor limpo e gratificante
Antes de eu saber o que me atingiu, amor
Você estava fluindo entre minhas veias”
ADDICTED TO YOU | Avicii

14 de Dezembro de 2021

Amelie está no seu quarto copo de gin e eu acho que vou ter uma
síncope.
Por algum motivo, que eu ainda não descobri, a garota está me dando a
porra de um tratamento de silêncio desde que saiu do apartamento do meu
pai ontem a noite e eu só queria entender que merda está acontecendo.
Amelie nunca se fecha à toa, se ela não quer falar comigo é porque fiz
algo de errado. O problema é que eu não sei o que eu fiz, e isso está me
deixando transtornado, de verdade. Odeio brigar com ela, mas odeio mais
ainda seu silêncio. Prefiro que me xingue, que grite o quanto me acha um
completo babaca, mas nunca se feche. Porque isso significa que ela está
magoada, e a mínima possibilidade de tê-la magoado simplesmente me mata.
Bebo mais um gole do líquido já purgante em meu copo. Estou tão
aéreo que nem consigo pensar em terminar minha primeira cerveja, e encaro
a cena ridícula da garota dançando com os braços ao redor do pescoço de
Elói. Meu amigo percebeu o clima estranho entre a gente no instante em que
pisamos nessa festa e me assegurou que ficaria por perto dela para mantê-la
segura.
Mesmo sabendo de tudo isso, ainda sinto vontade de gritar vendo os
dois dançando juntos porque, porra, se tudo estivesse bem, eu é quem
deveria estar lá, ouvindo suas gargalhadas, sentindo seu cheiro e vendo seu
rosto tão de perto. Nós beberíamos juntos, mas não demais, porque quando
chegássemos em casa teríamos mais uma das nossas transas de tirar o fôlego
e no fim da noite, dormiríamos abraçados, como tem sido há quase dois
meses.
Detesto a forma com que Amelie me transformou em um cara que
quase tem um derrame vendo sua garota nos braços de outro, mas é
inevitável. Imaginar alguém tendo-a entregue em seus braços como ela fica
nos meus me deixa desesperado pra caralho.
Minha garota.
Nunca mais fiquei com ninguém depois dela, e nem quero. Amelie
deixou claro, quando começamos o nosso lance, que eu podia me relacionar
com outras pessoas contanto que a avisasse. Neguei na mesma hora, porque
sabia que embora estivesse se fazendo de desapegada, ela ficaria magoada
caso eu realmente levasse a ideia adiante.
Mas a verdade é que, quanto mais nós fomos nos envolvendo, mais
dela eu quis. Pouco me importo com as outras garotas, e ao longo desse
tempo venho rejeitando convites de uma porção delas, porque esse lance de
trepar com metade do campus já não faz o mínimo de sentido pra mim.
Sério, eu não faço ideia de em que momento assistir musicais
adolescentes abraçado debaixo do edredom numa sexta à noite, ouvir sobre
as leituras de uma outra pessoa e ter alguém para dedicar minhas cestas se
tornou o ápice da minha felicidade, mas eu gosto pra caralho da vida que
venho vivendo, e não quero perdê-la assim, sem mais nem menos.
Saio do meu devaneio quando sinto alguém esbarrar o ombro com o
meu e, surpreendentemente, me deparo com Ava Christie parada ao meu
lado.
— Acho que alguém aí não tá num bom dia… Isso é xarope ou
cerveja?
— Rainha do Vôlei, quanto tempo — falo, sendo simpático. Ela sorri,
mas não é um sorriso malicioso como o de sempre.
— Você sumiu, achei que estivesse ocupado — comenta, encarando
meus olhos com diversão.
— É, eu ando meio atarefado… Mas, e aí, como você tá?
— Bem! Viajo no próximo mês para uma campanha em Londres, os
trabalhos como modelo não param de chegar!
A empolgação em sua voz me arranca um sorriso. Ava já tinha me
contado que é modelo midsize e acho que já me disse uma vez sobre preferir
estar sob as lentes das câmeras do que projetar casas. O curso de arquitetura
é, na verdade, um plano b caso a modelagem não desse certo.
— Fico feliz por você, leva jeito para a coisa, seu instagram que o
diga. E porra, as marcas seriam loucas de disperdiçarem sua beleza. —
Estou genuinamente feliz por ela. Ava é uma garota incrível, e merece tudo
de melhor nesse mundo. — Sei que nos afastamos, mas mande notícias, torço
de verdade pela sua felicidade.
— Eu sei disso, eu só… Preferi ficar no meu canto nesses últimos
tempos, saber a hora de sair de cena é uma das minhas maiores qualidades
— ela pisca pra mim e aponta com a cabeça na direção da pista de dança e
eu noto que está falando de Amelie.
— C-Como sabia?
— Nossa, a faculdade inteira já canta essa pedra há séculos. Rolou um
boato de que vocês tem se pegado desde uma festa nas Vixens, algo do tipo.
— A galera nessa faculdade adora uma fofoca… — torço o nariz em
descontentamento.
— É… Eles acham que é só uma pegação com data de validade, eu
discordo — ela solta, e eu ergo a sobrancelha desconfiado. — Desculpa,
mas eu estou a festa inteira te vendo aqui sentado olhando pra ela. Se
ninguém te contou, eu fico feliz em trazer a notícia de que você, jogador, é
louco por aquela garota ali.
Não tenho tempo de retrucá-la, porque no instante seguinte uma menina
pra lá de bêbada enlaça seu pescoço e a arrasta para longe. E antes mesmo
que eu tenha tempo de pensar sobre suas palavras, a cena pavorosa de
Charles Brooks trêbado segurando um shot de tequila entre os dentes e se
preparando para virá-lo na boca de Amelie faz o meu cérebro entrar em
parafuso. Chega dessa merda.
Em segundos, estou diante dos dois, arrancando o copinho de shot da
boca do meu amigo e entornando-o em minha garganta. O líquido desce
rasgando e eu faço uma careta. Amelie chia e quando eu a encaro, seu rosto
transmite fúria.
— Já chega de álcool por hoje, né? Vai vomitar até suas tripas nesse
ritmo — falo, sem paciência.
— Me desculpa, mas que é você para controlar o quanto eu bebo,
Ethan Harris? — ela manda na lata, com a voz meio mole e espalmando a
mão em meu peito.
Seguro seu pulso e conduzo-a para fora da casa, ignorando seus
protestos, e quando encontro um local menos barulhento e cheio, paro de
frente para ela.
— Tá legal, dá pra me explicar que porra tá acontecendo? Por que
diabos você tá me ignorando e falando comigo desse jeito? — Ela gargalha,
me deixando puto, e eu cruzo os braços sobre o meu peito.
— Isso é algum tipo de piada? De que jeito acha que estou falando
com você?
— Está na defensiva, e nem adianta negar. Ignorou minhas mensagens,
minhas ligações…
— Já parou para pensar que talvez eu não queira falar com você?
Nunca mais? — Seu tom se eleva e eu fico ainda mais perdido.
— Por quê?
— Porque eu não quero! Pode respeitar isso?
— Mas é claro que não, porra! Amelie, o que eu fiz? Estávamos bem
até ontem, que merda tá acontecendo? Me fala para eu poder consertar!
— Não quero que conserte nada, só… Curte a droga da festa com as
suas garotas e me deixa em paz, pode ser?
Okay, agora eu realmente não tô entendendo porra nenhuma.
— Pelo amor de Deus, você ouviu o que acabou de dizer? Eu não
quero curtir festa com garota nenhuma, pirou? Eu só quero que você fale
comigo e pare de ser teimosa! Me diz o que eu fiz que te deixou assim, por
favor!
— Por que você se importa, hein? — questiona, subindo ainda mais o
tom da sua voz.
— O quê?
É a primeira vez que ela me olha nos olhos, eles estão queimando em
raiva e dor. E eu sinto meu coração apertar. Só pode ser um pesadelo.
— Por que se importa? Nós não temos nada, não precisa ficar
bancando o babá comigo e nem fingindo que está cuidando de mim, chega —
diz, fria, e eu franzo a testa, porque algo dentro de mim dói feito o inferno.
Nós não temos nada.
— Do que você está falando? — pergunto baixo.
— Me poupe, Ethan. Não aja como se não tivesse dito exatamente a
mesma coisa menos de 24 horas atrás. Já é ruim o suficiente sem você se
fazendo de sonso. Não torne pior.
Encaro-a por alguns segundos até que um estalo atravessa minha
mente. Amelie se levantou correndo na noite passada logo depois que a
respondi o porquê de eu ter confiado nela para conhecer a minha irmã.
“Você é minha amiga, e eu sei que mesmo que não tenhamos nada,
você é alguém que eu fico feliz que conheça Angeline.”
Mesmo que não tenhamos nada.
Meu Deus, eu sou burro pra caralho.
— Linda… Eu não… Eu não quis dizer aquilo — falo, nervoso,
esticando o braço para tocá-la, mas ela se esquiva e o meu coração se parte.
— Foi da boca pra fora, eu nem pensei direito antes de falar, me desculpa.
— Mas você disse, Ethan, com todas as letras. — Amelie solta uma
risada amarga e só pelo modular da sua voz eu sei que está prendendo o
choro. Puta que pariu. — E não me chame mais de “linda”, por favor. Se
você me considera alguma coisa na sua vida, não quebre o que sobrou do
meu coração, eu estou pedindo com sinceridade. Combinamos que quando
começasse a rolar sentimento, nós íamos parar. Eu fui tonta por não perceber
o que estava bem na minha cara mais cedo, mas é isso. Estou sentindo algo,
então eu acho que acabou.
Suas palavras me acertam em cheio e eu tenho a resposta na ponta da
minha língua, mas não consigo falar. Quando ela está prestes a me dar as
costas, no entanto, eu seguro sua mão de forma firme e puxo-a para mim,
porque nem fodendo vou deixá-la escapar fácil desse jeito. Porra, não
mesmo.
— O combinado perde a validade se eu também estiver sentindo algo?
— questiono, e ela ri, desacreditada.
— Não precisa fazer isso, não precisa fingir um sentimento. Eu já lidei
com um coração partido antes e você, mais do que ninguém, sabe que eu
posso me virar sozinha. Não preciso da sua pena, Ethan Harris.
Agora sou eu quem está rindo.
— Tá brincando? Acha que o que eu sinto por você é pena? Acha
mesmo? — Ela não me responde, apenas me encara com os olhos marejados.
— Coelhinha, a última coisa que eu sinto por você é pena, a última, tá me
ouvindo? E, definitivamente, é impossível dizer que não sinto nada, cacete,
você… Você é uma das pessoas mais importantes da minha vida, eu lutaria
contra a porra do mundo inteiro pra te ver feliz! Não é possível que não
tenha percebido, não é possível que ache que eu me entregaria dessa forma
para outra pessoa, que eu me empenharia em decifrar cada detalhezinho de
outra pessoa, que eu contaria as coisas que já te contei para outra pessoa.
Porra, acha mesmo que eu já beijei alguém do jeito que eu beijo você? Que
já toquei alguém do jeito que eu te toco? É tudo diferente, Amelie, tudo!
Porque o que eu sinto por você é diferente. E eu não tô mentindo, muito
menos falando por pena.
Encaro-a sentindo meu corpo tremer de medo, porque, por Deus, não
posso perdê-la. Capturo o instante em que seu olhar se torna vago e a cor
parece sumir do seu rosto.
— Ethan, eu… Acho que vou vomitar. — Num movimento rápido, ela
apoia a mão nos meus ombros e vira a cabeça para o lado, inclinando-a.
Merda.
Fecho os olhos e seguro firme sua cintura para mantê-la de pé, ouvindo
o som do vômito bater contra o chão e sentindo o cheiro azedo da bile
misturada com álcool. Quando ouço sua primeira tossida, abro os olhos
novamente e ajudo-a a se apoiar em seus joelhos, lhe dando sustentação com
as mãos em seus quadris. Seus cabelos estão presos em um rabo de cavalo,
então só me certifico de mantê-lo para trás.
Quando ela finalmente termina, limpo sua boca com o tecido da minha
camisa e seguro seu rosto com uma das mãos, forçando-a a me encarar.
— Pode me odiar amanhã, mas hoje, eu vou te levar pra casa e cuidar
de você, tá bom? — Meu tom é sério, e ela apenas assente antes de envolver
meu pescoço com os braços e subir no meu colo.
Saio com Amelie pelos fundos para não chamar atenção e peço um táxi
para nos levar para o campus. A garota passa o trajeto inteiro aninhada em
meu peito cochilando como um bebê, e quando enfim entramos em seu
dormitório, ela desperta completamente pirracenta.
Levo-a para o banheiro e, com calma e muita paciência, convenço-a de
tomar banho.
— Vira pra lá — resmunga, segurando a barra da camiseta. — Não
vou tirar a roupa na sua frente.
— Isso é sério? — pergunto, rindo, ela se mantém com uma carranca
fechada. — Dois dias atrás você estava pelada na minha cama, não sei se se
recorda disso.
— Vira. Agora.
Ela manda, sem paciência, e eu ergo os braços em rendição me
virando de frente para a porta. Quando ouço o vidro do box se fechar,
recolho suas roupas do chão e coloco-as no cesto de roupa suja. Espero até
que ela saia do banho enrolada na toalha e a deixo sentada no sofá,
monitorando-a enquanto monto um prato com uma fatia de pão e uma maçã.
Encho uma garrafinha d’água e pego dois comprimidos, um para enjoo
e um para ressaca, uno tudo em uma bandeja e volto para a sala, oferecendo
meu braço para ela se apoiar enquanto caminhamos até o seu quarto.
— Eu não vou comer isso — anuncia, antes de se jogar em sua cama.
— Ah, vai sim. Senta, por favor.
Apoio a bandeja em sua escrivaninha e vou até o seu armário. Pego
uma das minhas camisetas e uma calcinha larga com estampa de pandas,
Amelie tem uma infinidade dessas com ilustrações diferenciadas para usar
na TPM, quando ela fica com pavor de coisas apertadas.
Tá vendo? Até os tipos de calcinha dela eu conheço! Estou muito
fodido.
Entrego a muda de roupas para ela, que veste a parte de baixo de um
jeito desengonçado, e acompanho quando ela torce o nariz para a minha
blusa.
— Quero outra camiseta.
— Coloca essa logo — bufo, impaciente com a sua teimosia, voltando
minha atenção para pegar as coisas para ela comer.
Quando me viro, no entanto, vejo Amelie limpar discretamente uma
lágrima com a mão e dar uma fungada. Vou até ela no mesmo segundo,
apoiando a garrafa e o prato no chão, e me ajoelhando diante dela.
— O que foi, linda? Ficou enjoada de novo? — Ela nega com a
cabeça, soltando um choramingo baixo ao pousar as mãos em meus ombros.
— Essa blusa tem o seu cheiro. Eu vou acordar chorando amanhã
lembrando de você, eu não quero usar ela. — A sua voz de choro devia me
comover, mas por algum motivo, eu sinto uma vontade ridícula de rir.
— Vamos fazer um combinado? Amanhã, quando você acordar, ao
invés de chorar você vai me ligar, tá bom? Nós vamos nos encontrar em
algum lugar e vamos conversar, mais calmos e sem álcool no sangue, pode
ser? — Amelie assente e veste a blusa, levando o tecido até o nariz e
puxando o ar como se eu não estivesse bem diante dela.
O simples ato faz meu coração doer, porque porra, queria não tê-la
magoado, assim, ao invés de cheirar minha camisa, Amelie estaria com o
rosto enterrado em meu pescoço e aninhada em meus braços. Exatamente do
jeito que faz com que meu mundo pareça em paz.
No fim, convenço-a a comer e tomar os remédios. Ela já está sonolenta
quando a acomodo em sua cama e deixo um beijo delicado na ponta do seu
nariz.
“Queria conseguir te explicar melhor o que eu sinto, mas eu ainda
não descobri.”
É o que eu sussurro em seu ouvido quando percebo que ela caiu no
sono.
Espero até que Tyler e Megan cheguem da festa e então vou para casa,
depois de hoje eu realmente preciso pensar.
E é o que eu faço pelo restante da madrugada ao invés de dormir.
Penso.
“Porque eu estou sentindo coisas
Que eu nunca senti antes
Doces sensações
E antecipações
Chamando comoção
Para minhas emoções”
AM I READY FOR LOVE? | Taylor Swift

15 de Dezembro de 2021

O teto do meu quarto gira quando eu abro os olhos e a primeira coisa


que meus sentidos captam é o cheiro dele. Passo a mão pelo colchão na
esperança de encontrar o seu corpo e meu peito murcha quando percebo que
estou sozinha e seu cheiro vem unicamente da camisa que estou vestindo.
Os flashes da noite passada disparam em minha cabeça enquanto eu me
sento na cama. Me lembro dos copos de gin, dos inúmeros shots de tequila,
de dançar com Elói e também de ser levada para fora da casa. Me lembro de
cada palavra que eu disse, e sinto vergonha de ter sido tão sincera, mas
também me lembro do que ouvi. Lembro de cada parte do que Ethan me
confessou, e tanto minha cabeça quanto meus sentimentos parecem um caos.
Vasculho meu quarto atrás do meu celular, encontrando-o sobre a
mesinha de cabeceira. Checo o horário e me assusto quando vejo que são
duas da tarde, acabei dormindo mais do que imaginei. Disco o número de
Ethan e bastam poucos toques para que sua voz chegue aos meus ouvidos.
— Diga pra mim que não está chorando — ele pede com a voz suave,
e eu sinto vontade de gritar, porque quero sorrir.
— Não estou.
— Ótimo, já é um começo e tanto. A gente pode conversar?
— Por telefone? — pergunto num tom sôfrego. Quero vê-lo. Na
verdade, preciso.
— Lógico que não, passo aí para te buscar em quinze minutos. Você já
comeu?
— Ainda não.
— Okay, eu compro comida e nós vamos para algum lugar calmo, pode
ser?
— Tudo bem. Mas leve uns vinte minutos, preciso lavar meu cabelo.
Acho que babei nele durante a noite — confesso baixinho, e ele solta uma
risada alta que amolece meu coração.
— Vinte minutos então, senhorita cabelo babado, até já.
Me despeço e corro em direção ao banheiro para me aprontar. Em
exatos vinte minutos, estou descendo a escadaria da Chisholm House usando
legging e uma camiseta sua do ACDC. Vejo Ethan atrás do volante da BMW
branca que, se não me engano, pertence a sua tia, e caminho até ela, me
acomodando no banco do carona.
— Boa tarde, dorminhoca, seu café da manhã — fala animado, me
entregando a sacola do Starbucks e apontando para o copo enorme de matcha
latte no console.
— Boa tarde, obrigada.
Passo o trajeto inteiro em silêncio, concentrada em devorar a mini
torta de maçã e os waffles que ele me trouxe. Reconheço o lugar que está me
levando no segundo em que ele entra na orla do Rio Hudson. É o mesmo
lugar onde quase nos beijamos pela primeira vez, e onde lhe contei sobre os
maiores demônios da minha vida.
Termino de comer no instante em que ele estaciona e me sento de lado
no banco, ficando virada para o garoto. Fito seus olhos tentando decidir se
começo a falar ou deixo que ele diga o que precisa. O segundo vence, de
qualquer forma, porque ele coça a garganta antes de perguntar:
— Você se lembra de alguma parte do que eu disse ontem?
— Eu me lembro de tudo — asseguro, e seu semblante parece se
aliviar.
— Certo, isso é bom. Em primeiro lugar, eu quero que saiba que tudo
aquilo que ouviu foi verdade, e quero pedir para que me desculpe, por favor.
Eu sei que eu falei a maior merda do mundo, e eu sinto muito por ter
machucado você. Acredite, eu nunca quis dar a entender que você significa
menos do que um mundo inteiro pra mim. Porque é esse o tamanho do seu
espaço dentro meu peito, é tão gigante que extrapola. Sério, Amelie, eu não
sei nem como explicar o que eu sinto, mas eu não posso te perder assim,
porque eu sei que você sente algo por mim também, e a gente merece viver
isso do jeito certo.
Sinto meu coração vacilar e meus olhos ardem um pouquinho ouvindo-
o dizer com todas as letras o que sente estando totalmente sóbria.
— Eu gosto de você, Ethan, muito, tanto que às vezes é difícil respirar
porque não é só o meu coração que sente isso — assumo de uma vez. —
Cada maldita parte do meu corpo gosta de você, e é como se você estivesse
gravado em mim, isso não parece que vai sumir tão cedo… Simplesmente
não vai. É o que eu sinto. — Correção: eu amo você.
— Não vai. Eu sei porque tá acontecendo comigo também, e isso não
vai sumir, não é o tipo de sentimento do qual você se livra facilmente. Eu
sou um terror lidando com sentimentos, mas eu sei que esse não vai passar,
porque o que eu sinto por você é forte pra caralho, linda, de um jeito que eu
nunca senti na vida e que eu não consigo controlar.
Um meio segundo de silêncio recai sobre o ambiente e eu rezo para
que ele não consiga ouvir a festa em meu peito mediante suas palavras.
— Forte o suficiente para abrir mão das suas regras? — pergunto,
porque eu me lembro muito bem dele dizendo com todas as letras que não
namora.
— Forte o suficiente para eu nem ter reparado que abri mão delas há
muito tempo — ele sorri e pega a minha mão, levando-a até o próprio peito.
Seu coração está batendo acelerado. — Você é a única que consegue fazer
isso, e não é de hoje, sabe disso. Não é uma amizade colorida ou só sexo há
muito tempo. E se você estiver disposta a ter só um pouquinho de paciência,
eu queria muito entender esse sentimento junto com você, Coelhinha. Por
favor.
Sinto como se eu estivesse prestes a explodir de tanto amor, e quem eu
quero enganar? Não há barreira nenhuma me impedindo de me render ao seu
coração. Como eu disse, não houve um único dia que eu não fosse sua, e eu
amo esse cara com cada parte de mim, mesmo que eu ainda não consiga
dizer isso pra ele.
— Acho que podemos fazer isso juntos — me rendo, subindo a mão do
seu peito até a sua nuca e me inclinando em sua direção.
— Acha? — provoca, rindo, com o rosto colado ao meu.
— Cale a boca, por favor — resmungo, antes de selar nossos lábios
em um beijo com gostinho de saudade.
Sem brincadeira, passei um dia e meio sem beijá-lo e quase entrei em
abstinência, quando nossas línguas se encontram eu gemo alto de satisfação e
ergo o corpo para me sentar em seu colo. Ethan me ajuda, puxando minha
cintura e afastando o banco para trás. Encaixo meu corpo no seu, sentindo
falta de estar exatamente assim, e arranho seu pescoço, beijando-o com
intensidade, tentando traduzir o que tanto quero dizer.
Quero que ele saiba que cada vez que o toco eu estou lhe oferecendo
amor. Porque o que ele me disse ontem não parou de repercutir em minha
mente “Porra, acha mesmo que eu já beijei alguém do jeito que eu beijo
você? Que já toquei alguém do jeito que eu te toco? É tudo diferente,
Amelie, tudo! Porque o que eu sinto por você é diferente.”
Da minha parte é tudo diferente também, sempre foi, desde o dia em
que me abri com ele de uma forma que nunca tinha feito antes. Ethan entrou
primeiro em cada um dos meus outros quatro sentidos, em minha mente, para
só então deixar suas marcas por minha pele.
Já era amor antes mesmo de ser, e eu não tenho dúvida alguma disso.
Entretanto, como uma piada de mau gosto do destino, no momento em
que sinto que estou prestes a implorar para voltarmos para casa e eu poder
descansar em seus braços, meu celular começa a tocar em cima do banco.
Como um balde de água fria desabando em cima da minha cabeça.
Me afasto de Ethan para pegar o aparelho, encaro a tela e, como num
pressentimento nem um pouco atrativo, meu estômago se dobra ao meio em
minha barriga ao ler o nome de Madelyn. Por poucos segundos, eu quero
acreditar que essa é uma ligação casual, e que nada de ruim acontecerá no
instante em que eu deslizar o botão para atendê-la.
Mas basta levar o aparelho até meu ouvido para que uma bomba
relógio seja jogada no meu colo em plena tarde de domingo.
“Desmaiada”.
“Corte”.
“Sangue”.
“Ambulância”.
“Hospital Geral de Manhattan”.
São as únicas cinco palavras que consigo assimilar do amontoado de
informações que Madelyn despeja em meus ouvidos enquanto eu estou
completamente atônita. É como se minha alma houvesse escapado do meu
corpo por milissegundos, e a única coisa que sou capaz de dizer antes de
encerrar a ligação é “eu estou indo”.
Fecho os olhos, inalando uma boa quantidade de ar, tentando me
acalmar antes de tomar alguma atitude. É só quando os abro novamente que
percebo que Ethan me encara preocupado.
— M-Minha mãe precisa de mim.

Álcool, éter e produtos de limpeza.


É como cheiram todos os hospitais que venho frequentando há anos, e
é como cheira o Hospital Geral de Manhattan. Faz cerca de uma hora que
Ethan e eu estamos sentados na sala de espera anexa à recepção, esperando
notícias de Virgínia que nunca chegam, e a cada segundo que passa, sei que
estou prestes a desabar em lágrimas.
Tudo que me foi dito quando cheguei foi que minha mãe deu entrada
na emergência, minutos antes, em estado de inconsciência devido ao abuso
de álcool e com um corte profundo no supercílio, que os enfermeiros
acreditam ter sido causado por um tombo.
Ela foi levada para a sala de sutura e, logo em seguida, seria
transferida para a sala vermelha onde receberia o restante dos cuidados.
Checo o horário no meu celular pela terceira vez, vendo que já passa
das quatro, quando Ethan se levanta e atravessa a recepção para encher dois
copos de café. Ele se manteve calado desde que chegamos, falando comigo
apenas para me perguntar se eu precisava de algo e me dando o espaço que
sabe que necessito nesses momentos.
Não é preciso ser um gênio para saber que minha mente está fritando
de preocupação, mas ao invés de me encher de perguntas, sugestões ou
palavras de consolo, ele apenas fica em silêncio e faz o possível para me
manter confortável. Como o leal amigo que é, acima de tudo.
Quando retorna, Ethan me entrega um dos copos de café e bebe o
outro, se sentando novamente na poltrona ao lado da minha. O líquido
fumegante me provoca arrepios ao descer por minha garganta. A temperatura
do hospital está baixa demais e eu estou apenas com uma camiseta que deixa
parte dos meus braços arrepiados expostos. Assim que termino de beber,
descarto o copo e me sento novamente, encarando um ponto fixo no chão.
Poucos segundos depois, meus ombros são cobertos pela jaqueta
macia que Ethan usa. Ele me envolve em um abraço e eu me encolho sob a
peça sentindo vontade de chorar.
Estou triste por Virgínia e severamente preocupada com o rumo que
tudo vai tomar. É como se todo o conto de fadas que venho vivendo nos
últimos dois meses tivesse desmoronado, se reconstruído e então do nada,
desmoronado de novo.
Não me surpreenderia se meu pai ressurgisse das trevas agora, é sério.
— Quem de vocês é o parente de Virgínia Morgan? — uma voz
feminina soa pela sala de espera, fazendo com que eu e Ethan nos
levantemos num pulo.
A médica caminha até nós, conferindo algumas informações em sua
prancheta, e um leve tremor se espalha pelo meu corpo. Estou nervosa e com
medo.
— Olá, eu sou a doutora Sarisha Chopra — ela se apresenta,
apertando nossas mãos em um cumprimento que nós respondemos dizendo
nossos nomes. — Os dois são parentes da paciente?
— Não, eu sou — digo, passando meus braços pelas mangas da
jaqueta. — Ela é a minha mãe, como ela está?
— Bom, desde já, adianto que o quadro dela está estável e que
poderá vê-la em breve, estamos só providenciando a transferência para o
quarto — Sarisha fala, apaziguando um pouco da minha agitação. — Sua
mãe sofreu um corte profundo no supercílio, nós fizemos uma sutura
intradérmica que deve deixar uma cicatriz discreta e realizamos exames
básicos, mas não foi constatado nenhum trauma mais grave. O recomendado
é que ela consulte um oftalmologista posteriormente para um exame mais
complexo caso haja necessidade.
— Certo — digo, atenta a todas as informações. — E sobre o
restante?
— Vamos lá, ela chegou aqui desacordada e apresentando um quadro
de inconsciência devido ao abuso de substâncias alcoólicas, então também
foi feita hidratação e reposição de eletrólitos e glicose por via intravenosa.
O quadro dela foi estabilizado, ela já está acordada e, como eu disse, ela
será transferida para um quarto para poder descansar e ser monitorada até a
alta.
— Entendi, muito obrigada, doutora — falo, cumprimentando-a e me
virando para buscar na poltrona minha bolsa e os papéis que a recepcionista
me entregou.
— Ah, Srta.Castillo, tem mais uma coisa…
— Sim?
— A paciente me pediu para solicitar a você a papelada para a
internação, eu irei assinar o encaminhamento e ela a documentação. Ela me
disse que você é quem tem os dados da clínica — Sarisha fala, sorrindo
discretamente, parecendo notar a perplexidade em meu rosto, antes de se
afastar e começar a falar com uma outra família.
Minha mãe aceitou ser internada.
Depois de longos anos travando batalhas destruidoras contra o
alcoolismo, depois de ver nossa relação ruir, depois de anos de dor,
sofrimento e muitas macas de hospital, ela finalmente aceitou.
Esse é, de longe, o dia mais triste e feliz da minha vida.
Acho que preciso de um tempo para assimilar.
— Você conseguiu. Vão finalmente vencer isso.
É o que ouço Ethan dizer, próximo ao meu ouvido, ao me envolver em
seus braços. E como num passe de mágica, eu desabo sobre o seu peito e
sinto meus olhos transbordarem em lágrimas.
Choro baixinho, encolhida dentro do abraço, sentindo a mão de Ethan
descer e subir em minha lombar em um carinho que acalma até os mais
agitados nervos em meu corpo. Choro lágrimas de alívio, de emoção e
felicidade, um choro que está entalado em mim há anos, e que esteve
pacientemente esperando a hora em que poderia se libertar.
Eu vou ter a minha mãe de volta.

O restante da tarde se resumiu em providenciar papelada, ligar para a


clínica e acertar todos os detalhes para a internação. Não consegui conversar
muito bem com Virgínia, porque quando, enfim, consegui ir até seu quarto,
ela já estava sonolenta de novo, por conta da medicação utilizada para tratar
os sintomas decorrentes do abuso de bebidas.
O pouco que tive, foi o suficiente para lhe dar um abraço carinhoso e
tranquilizá-la, dizendo que eu estava tomando conta de tudo. Minha mãe me
direcionou um olhar emocionado ao me agradecer por não sair do seu lado, e
foi ali que eu me mantive até que ela adormecesse.
Combinei com a doutora Sarisha que Virginia passaria a noite no
hospital, sendo cuidada e observada de perto, e que eu retornaria no dia
seguinte para buscá-la e levá-la para a clínica de reabilitação em Montclair,
Nova Jersey.
Já passa das dez da noite quando finalmente me acomodo no banco do
carona do carro e observo Ethan dirigir até o campus. O garoto passou a
tarde e o início da noite inteira me ajudando em absolutamente tudo, desde
fazer ligações até calcular despesas, e eu não pude deixar de notar o quanto
ele parecia feliz, apesar do cansaço.
Em algum momento do trajeto do hospital até o campus meu corpo
simplesmente cede ao sono, me levando a despertar somente quando sinto
braços fortes me envolvendo e me carregando escada acima.
Não preciso abrir os olhos para saber que é Ethan. Por isso, ainda
grogue de sono, envolvo seu pescoço e enterro meu rosto nele, sentindo seu
perfume impregnado em minhas narinas e me trazendo conforto.
Leva menos de dois minutos para que eu sinta meu corpo sendo
colocado com cuidado sobre o colchão macio, e subitamente, sinto falta do
seu calor ao meu redor. Estou cansada demais para contestar, no entanto. Por
isso, aceito de bom grado quando ele afofa meus travesseiros e cobre meu
corpo com o edredom.
O toque dos seus lábios sobre a minha testa é delicado, tão suave que
me faz pensar que já estou sonhando, e quando ele se afasta, meu coração
inteiro parece nutrido de amor.
Aconchego-me de lado, me enrolando no edredom e sentindo seu
cheiro exalando da sua jaqueta. Abro meus olhos apenas o suficiente para
confirmar se ele já se foi e vejo Ethan parado diante da minha escrivaninha.
Ele mexe em alguma coisa e, logo em seguida, vai em direção à porta.
— Ethan… — chamo-o, sem saber ao certo o que dizer.
— Sim?
— Eu acho que você roubou o meu coração e esqueceu de me
devolver — solto, sem pensar muito, sentindo o sono prestes a me arrebatar.
— Tá tudo bem, você também roubou o meu — ele responde, um
tempo depois, quando o tecido entre o real e o fantasioso já é fino demais.
— Durma bem, linda, foi um dia e tanto…
Adormeço em seguida, sem ouvir o que ele termina de dizer. Sua voz
já está longe demais e eu, exausta demais para me manter atenta.
Foi um dia e tanto.
“Nossas mãos ainda encaixam certo
Peço um anjo que me acompanhe
Em tudo eu via a voz de minha mãe
Em tudo eu via nóis
A sós nesse mundo incerto”
MÃE | Emicida

16 de Dezembro de 2021

Ainda estou zonza quando o despertador me faz rolar para fora da


cama e cair pateticamente sobre o chão, assustada com a possibilidade de ter
perdido a primeira aula. Me levanto num impulso rápido, no entanto, quando
me lembro do compromisso importante que tenho, corro para desligar o
alarme barulhento vindo do meu celular.
Ele está em cima da minha escrivaninha. Pego-o confirmando as
horas, são oito e meia, preciso estar no hospital em uma hora. Encaro a tela
por mais alguns instantes, deslizando o dedo para desativar o alarme, quando
a anotação dizendo “feliz primeiro passo” me faz lembrar que não fui eu
quem o programou.
Foi Ethan.
Examino minha escrivaninha com atenção quando o flash dele parado
aqui na noite passada atinge minha mente. Tirando meu celular, minha bolsa
e meu notebook, nada aqui parece fora do lugar… Exceto pelo livro de
poesias que eu estava lendo há um tempo atrás. Ele estava na minha estante,
mas agora repousa sobre a mesa com um marcador saindo na parte de cima.
É um exemplar de “Outros Jeitos de Usar a Boca”, da Rupi Kaur. Eu
estava completamente viciada nesse livro e fiz Ethan me ouvir declamar boa
parte desses poemas enquanto ele me assistia ler.
Abro o livro na página marcada e vejo um post-it amarelo colado
logo abaixo de um dos meus poemas preferidos:
“você me tocou
sem nem precisar
me tocar”
Eu me lembro de fazer um monólogo sobre esse fragmento deitada em
seu colo. De dizer como eu o achava inspirador e como deveria ser incrível
estabelecer uma relação com alguém que chega primeiro ao seu coração, e
só depois na sua pele. Lembro perfeitamente do sorriso que ele me ofereceu
antes de concordar e me dizer como eu ficava linda falando sobre coisas
“profundas”.
Trago o livro mais para perto, observando o bilhete escrito no post-it e
sentindo centenas de borboletas voando desesperadas no meu estômago. A
caligrafia redondinha, em letra de forma, que só Ethan Harris tem, conseguiu
formar a frase que fez meu peito explodir:
“Quero que saiba que eu atravessaria o oceano por você. Sem
pensar duas vezes, e pelos motivos ditos acima.
— Ethan <3”
Passo o dedo sobre o post-it, sentindo a textura áspera do papel e o
relevo de onde a caneta se afundou. Tento pensar no que estava passando por
sua mente e seu coração no instante em que escolheu exatamente essas
palavras e sorrio. Sorrio feito boba e não espero nem mais um segundo para
vasculhar minha lista de contatos e clicar sobre o seu nome. Dessa vez, dois
toques são o suficiente.
— Bom dia, linda — a voz rouca de sono soa como música para os
meus ouvidos. Já sinto falta de acordar ao seu lado. — Acho que perdi a
primeira aula, que horas são?
— Oi, bom dia — falo baixo, temendo que meu sorriso fique
perceptível em minha voz. — São oito e trinta e cinco.
— Ah, merda — resmunga e parece estar se levantando. — Dormiu
bem? — ele pergunta e eu sinto vontade de me bater, porque meu coração
está acelerado.
— Uhum. Eu só liguei porque queria dizer que li o post-it, e que me
deixou feliz, desculpa por te acordar.
Ele solta uma risada gostosa, a sua rouquidão matinal é certamente
uma das minhas coisas favoritas.
— Não tem problema. Eu fico feliz de saber que te deixei feliz. Foi a
forma que achei de reafirmar que eu sinto, Coelhinha, muito. E não quero
parar de sentir.
— Porque você me tocou sem nem precisar me tocar — sopro,
baixinho.
— E assim como aqueles personagens bobos dos livros, eu
atravessaria o oceano por você — ele completa, me fazendo lembrar de um
diálogo que tivemos há muito tempo.
— Como se lembrou disso? — pergunto, rindo.
— Quantas vezes vou precisar repetir que eu sempre presto atenção
em você? — ele pergunta, fingindo um tom ultrajado, e eu dou risada. —
Falando sério, acabamos não conseguindo conversar um pouco mais ontem,
mas você tem certeza de que quer continuar com isso? Entender melhor o que
sentimos?
Eu não preciso entender melhor. Eu já sei. Penso em dizer, mas não
quero assustá-lo. Sei do histórico de Ethan quanto aos relacionamentos e
tudo que envolve sentimentos, e sei que ele vai precisar de um pouquinho
mais de tempo para se acostumar. Posso lidar com isso.
— Quero.
— Fico honestamente aliviado. Porque meu plano para te fazer aceitar,
caso decidisse mudar de ideia, envolvia mais tulipas do que meu cartão me
permite pagar — ele fala, e eu reviro os olhos.
Odeio demais o humor desse cara.
— Eu ainda aceito as tulipas — provoco.
— Acho que consigo providenciar algumas. Agora, vou desligar,
porque você precisa se arrumar. Espero que dê tudo certo. Me mande
notícias e se precisar de qualquer coisa, você sabe que nunca vou te deixar
sozinha, certo? — ele pergunta, e sua preocupação aquece meu peito.
— Eu sei. Obrigada por isso — agradeço, limpando uma lágrima
solitária que escorre do meu olho.
— Tenha um excelente dia, Coelhinha.
— Tenha um excelente dia, Capitão.

O Centro de Recuperação Felicity Garden é uma das maiores


referências da cidade na recuperação de dependentes químicos com
especialidade em pessoas que possuem dependência ao álcool. A
propriedade fica alguns quilômetros afastada da do centro, possuindo uma
área verde bem cuidada que, segundo o site, também é incluída em diversas
atividades relacionadas ao tratamento.
Assim que cheguei para buscar minha mãe no hospital, Madelyn já
estava lá com Alfred para deixar as bagagens com roupas e utensílios de
higiene pessoal. Virgínia e eu fizemos todo o trajeto do hospital até a clínica
em silêncio, mas enquanto eu dirigia, podia sentir que ela queria me dizer
alguma coisa, só não conseguia.
No momento em que estaciono meu carro diante da enorme
construção vitoriana em cor de creme, duas mulheres de jaleco e um homem
de terno já nos aguardam nos pés da escadaria. Mamãe e eu saímos do carro,
e enquanto eu dou a volta ao redor do veículo, vejo que ela examina tudo
com bastante atenção.
— Senhorita Castillo e Senhora Morgan, sejam bem vindas — o
homem de terno fala, me estendendo a mão para um cumprimento. — Eu sou
o Doutor Isaac Forehan, psiquiatra e responsável pelo Felicity Garden.
Permitam-me apresentar as doutoras Catherine Powell e Victoria Guliver.
São elas quem coordenam todos os profissionais que irão cuidar da senhora
Virgínia Morgan.
— Olá, muito prazer — eu e mamãe falamos em conjunto, antes de
cumprimentar as médicas.
Olhando de soslaio, percebo que Virgínia está tensa. Não consigo
nem ao menos imaginar o turbilhão que deve estar passando em sua mente,
por isso, me limito a pegar em sua mão e entrelaçar nossos dedos. Quero que
ela saiba que estou com ela, sempre.
— Como todo o tratamento já foi explicado pelo telefone, nós
podemos fazer um tour para que conheçam nossas instalações e, logo em
seguida, iremos acomodar a senhora Morgan — Issac explica ,e nós duas
concordamos.
O Felicity Garden possui quartos unitários que lembram suítes de
hotel. Todos os quartos são constantemente revistados para garantir que não
haja entrada de substâncias proibidas e cada um dos pacientes recebe dois
enfermeiros que ficam 24 horas à disposição.
A internação da minha mãe vai durar um mês e meio, onde ela vai
passar pela desintoxicação, exames constantes e aprender a fortalecer a
mente. Durante esse período, eu posso visitá-la três vezes na semana e
também podemos conversar por telefone cerca de uma hora por dia.
Toda a equipe de médicos e terapeutas seguirá acompanhando Virgínia
após o período de internação, quando, por um ano, ela deverá continuar
frequentando o local para as terapias em grupo e individuais. O Dr. Isaac nos
informa que um cardápio personalizado será montado de acordo com os
gostos dela para que mamãe continue comendo o que gosta, o que me faz
ficar ainda mais confiante.
Saber que ela será tratada com carinho durante um processo tão difícil
me deixa mais tranquila.
Quando chegamos ao final do tour, os três médicos relembram todas as
regras do centro de reabilitação, e então nos deixam à sós no jardim para
que possamos nos despedir. Mamãe e eu nos sentamos em um dos bancos de
madeira, embaixo de uma amendoeira, e passamos longos segundos nos
olhando de mãos dadas.
— Obrigada por nunca ter desistido de mim — ela começa, e o tom
embargado da sua voz faz com que meu coração doa. — Eu sei que fui uma
mãe horrível para você, Amelie, que fui negligente e que não te dei todo o
amor e cuidado que você sempre mereceu. Mas eu prometo que isso vai
mudar, prometo que eu vou mudar.
— Mãe…
— Eu me arrependo de muitas coisas da minha vida, me arrependo
mesmo, mas nada se compara ao tanto que eu me arrependo de não ter sido a
sua mãe por tantos anos. Me arrependo de estar focada demais no meu
casamento falido para não te ver crescer, me arrependo das vezes em que os
gritos daquela casa foram a sua companhia para dormir, me arrependo de
não ter tocado mais piano para você, ter feitos as comidas que você gosta,
ter trançado seus cabelos… Meu Deus! Eu não consigo me lembrar da última
vez em que arrumei seus cachos, ou de quando você passou a fazer isso
sozinha… E isso dói tanto.
À essa altura, as lágrimas já descem pelo meu rosto desenfreadas, e eu
começo a sentir dificuldade para respirar.
— Eu passei os últimos anos me martirizando por todas as vezes em
que eu acordava em um hospital e via você sentada naquelas poltronas, eu
me odiei tanto por fazer você sofrer e por não enxergar um caminho em que
tudo fosse diferente. Me odiei por não ser forte o suficiente para lutar ou
pedir ajuda. Eu sinto muito, Amelie, sinto muito mesmo por ter feito você
sofrer. Espero que um dia você me perdoe.
Encaro seus olhos escuros, eles refletem tanta dor e verdade que fazem
com que uma gama de sentimentos abrasadores queimem em meu peito.
Minha mãe pode não ter ideia, mas eu a perdoei desde o momento em que fiz
aquela ligação, no dia em que rompi minhas relações com o meu pai.
Eu a perdoo não só por ela ser tão vítima quanto eu, mas também
porque sei que não houve um segundo, desde que tudo começou, em que eu
não estivesse apenas esperando para perdoá-la. O que eu sempre quis foi tê-
la de volta, completa e bem. E eu jamais deixaria isso escapar agora.
— Eu sempre pensei que você não se importava comigo… — falo
baixo, soltando um soluço de choro. — Achava que me via como um erro,
que não me queria por perto, eu… Eu pensei que não me achava boa o
suficiente para me amar.
— Por Deus, não! Pelo contrário. Olhe bem para mim e escute uma
coisa, Amelie — ela inicia, segurando meu rosto com as duas mãos e me
mantendo com os olhos nos seus. — Ainda que do jeito mais errado do
mundo, eu sempre me importei com você. Me importei com você nos dias em
que eu estava fraca demais para sair da cama e pedia para Madelyn preparar
a sua com seus cobertores favoritos. Me importei com você quando chorei
de felicidade sozinha naquela casa no dia em que você foi para a faculdade
dos seus sonhos. Me importei quando briguei pela sua guarda na justiça,
mesmo sem forças, porque eu sabia que seu pai mandaria você para um
internato bem longe, e eu também sabia que você queria fazer a sua
faculdade…
— Eu não… Não sabia sobre a guarda — solto, surpresa.
— Ninguém sabe, mas aconteceu. Eu sabia que o melhor para você
seria ficar longe de mim, mas eu não podia aceitar que ele te enviasse para o
outro lado do mundo. Não podia deixar que ele impedisse você de
conquistar os seus sonhos, porque você sempre foi capaz de alcançá-los.
Ela fala sorrindo, também em meio às lágrimas, e eu sinto que não há
mais nenhum muro de pé dentro de mim. Com o coração aliviado e com a
certeza de que estou vivendo o maior recomeço da minha vida, envolvo
Virgínia em um abraço apertado e choro em seu ombro por um longo tempo.
— Eu amo você, mamãe — digo, entre soluços. — Amo muito você, e
eu sinto muito por não ter tentado ajudar antes. Mas eu prometo, você nunca
mais vai ficar sozinha, nunca mais. Eu amo você e quero que não tenha
dúvidas disso. Onde você estiver, eu estarei contigo.
— Querida…
— Filha — corrijo-a, abraçando-a ainda mais forte. — Sou sua filha e
você sempre pode me chamar assim.
Ouço-a soluçar enquanto assente freneticamente. Mamãe passa seus
dedos trêmulos por meus cabelos e eu sinto vontade de nunca mais sair desse
abraço. Sinto como se ele estivesse reconstruindo partes quebradas que eu
fiz de tudo para esconder.
— Eu amo você, minha filha. E eu prometo que vou correr atrás do
tempo perdido. Você pode ter certeza, depois que eu sair daqui, você nunca
mais vai precisar estar sozinha. A mamãe vai estar com você, certo?
Seremos nós duas contra o mundo, para sempre. É uma promessa.
— Nós duas contra o mundo, para sempre — repito, me afastando e
beijando suas mãos.
Passamos um longo tempo apenas abraçadas no jardim, ambas em
silêncio, e se quer saber, não acho que há nada mais a ser dito. Nós duas
sabemos do amor profundo que existe e pulsa em nossos corações há tantos
anos, apenas esperando a oportunidade para transbordar, e agora, enquanto
sinto esse amor derramar-se para fora do meu peito, eu não poderia me
sentir mais em paz.
Me despeço de Virgínia com o coração tranquilo e certa de que
estamos iniciando um caminho concreto em busca da felicidade. Aquela que
é nossa por direito e que tanto esperamos para viver.
Finalmente.

O escritório de advocacia da família Mansen é enorme, e por uma


infeliz coincidência do destino, fica no mesmo prédio que a Dunamis
Investimentos, a empresa do meu pai.
Assim que deixei o Felicity Garden, vim direto encontrar Joscelyn
Mansen para entregar a papelada que autoriza a venda da casa que, por
sorte, consegui fazer com que minha mãe assinasse. Minha ideia é usar o
dinheiro para custear seu tratamento e comprar um apartamento em
Manhattan onde ela possa viver confortável e mais perto de mim.
O que sobrar, mamãe ainda não sabe, mas irei montar um negócio para
ela. Virgínia comentou, em nossas últimas conversas, que sentia vontade de
voltar a trabalhar com regularidade, mas que não se via mais fazendo isso na
carreira musical. Depois de muito refletir sobre os rumos que daria à fortuna
adquirida após a venda da mansão, tive uma ideia que, certamente, vai
deixá-la feliz.
Além disso, há algum tempo conversei com Joscelyn sobre a
possibilidade de pedir uma ordem de restrição contra Esteban, visando a
minha proteção e a da minha mãe, porque sei que ele não ficou nem um
pouco contente com meu escândalo em seu baile e o fato de eu ter bloqueado
seu número. Ele não ter ido me procurar na faculdade é tranquilizante. O que
está me incomodando, no entanto, é o fato de que meu pai ainda não deu uma
única cartada, e segundo Joscelyn, à essa altura Esteban já foi notificado.
Algo definitivamente está errado.
— Minha equipe já havia deixado algumas imobiliárias da cidade de
sobreaviso, portanto, fico feliz em dizer que, em breve, estaremos efetuando
a venda com sucesso — a mãe de Tyler fala, sorrindo, enquanto digita algo
em seu notebook.
— Muito obrigada mesmo, Sra. Mansen, eu não sei como agradecer —
digo, endireitando minha postura.
— Não é nada, querida! Tyler me contou coisas incríveis sobre você,
sobre o quanto é esforçada, dedicada aos estudos e sobre a amiga
maravilhosa que é para ele, Megan, Lily, Ethan e para Annelise. E qualquer
pessoa que ame minhas cinco preciosidades é importante para mim também.
Seu sorriso é tão bonito que eu me vejo na obrigação de acompanhá-
la. Ethan já havia me contado que os pais de Tyler são do tipo que se tornam
pais postiços dos amigos dos filhos, mas ver Joscelyn falando com tanto
carinho de Megan e Lily me faz morrer de amores.
— Muito obrigada. Mas saiba que assim que o dinheiro da venda da
casa sair, eu faço questão de pagar pelos seus serviços. A senhora tem sido
um anjo na minha vida, e é o mínimo que posso fazer — digo firme.
— Acredite, querida, o mínimo que pode fazer por mim é ser feliz com
a sua mãe. Eu sei muito bem quem é Esteban Castillo por trás dos holofotes,
e livrá-las dele é o tipo de trabalho que eu faço por puro prazer. — Joscelyn
gargalha e eu faço o mesmo. — Agora, espere aqui um momento, por favor,
preciso que assine mais um documento e depois está liberada.
Assinto e, assim que ela deixa a sala, pego meu celular para checar
meus e-mails, algo que não faço há uns bons dias.
Existe uma coisa sobre os dias em que a paz parece reinar e o dia
amanhece com o céu límpido e com o sol brilhando forte: na maioria das
vezes, esses dias terminam em tempestades fortes e cinzentas. E assim como
a paz chegou, arrebatadora e visceral, o caos também se fez no instante em
que li do que se tratava o meu e-mail mais recente:

SECRETARIA IRVING: Notificação de Inadimplência.


Cara Srta. Castillo, a secretaria de alunos da Universidade Irving
de Nova Iorque vem, por meio deste comunicado, informar que, após ser
notificada pelo Departamento de Finanças, foi averiguada a ausência de
pagamento das últimas duas mensalidades referentes aos meses de
NOVEMBRO e DEZEMBRO da aluna Amelie Castillo do curso
BACHARELADO EM JORNALISMO E COMUNICAÇÃO SOCIAL.
Favor entrar em contato com o departamento financeiro para
legalizar a situação da aluna o mais rápido possível. É importante
lembrar que o descumprimento pode tornar a mesma sujeita a multa e/ou
encerramento da sua matrícula universitária.
Atenciosamente, Secretaria da Universidade Irving.
“Afirme o óbvio
Eu não consegui minha fantasia perfeita
Eu percebi que você ama a si mesmo
Mais do que jamais poderia me amar”
PICTURE TO BURN | Taylor Swift

16 de Dezembro de 2021

Eu estou fervendo de raiva.


Meu corpo parece prestes a explodir enquanto caminho junto de
Joscelyn até o elevador, e eu daria tudo por um saco de pancadas e duas
luvas de boxe neste exato momento. Dois meses. Há dois malditos meses
meu pai não direciona um mísero centavo aos meus estudos e de todas as
sujeiras que ele já fez contra mim, essa certamente foi a mais imunda.
E eu não consigo sentir dor. Apenas raiva.
Pura, genuína e desmedida.
No mesmo segundo em que mostrei o e-mail para a mãe do meu amigo
ela reuniu sua equipe e nós decidimos ir até Esteban confrontá-lo
pessoalmente. Estou uma pilha de nervos ambulante, me sentindo sufocada
dentro do elevador fechado, mas me esforço para repassar as instruções que
me foram dadas. Nossa conversa será gravada e eu não posso, sob hipótese
alguma, me exceder em minhas falas.
Assim que o elevador se abre novamente, estamos dentro do império
particular de Esteban, no qual eu faço questão de andar de cabeça erguida.
No meu primeiro passo para dentro, uma secretária surge em minha frente me
perguntando com quem eu desejo falar e se tenho hora marcada.
Solto uma risada de escárnio antes de dizer o nome repugnante do meu
pai e preciso me controlar quando ouço:
— O senhor Castillo está em uma reunião particular, ele não pode
atender agora — a mulher fala, detendo meus passos ao se colocar na minha
frente.
— Ah, mas eu tenho certeza absoluta de que ele vai me atender! Pode,
por favor, avisar ao seu chefe que a infeliz que carrega o sobrenome maldito
dele está aqui? — digo, em um tom definitivamente mais alto do que o
normal.
— Eu posso saber o que raios está acontecendo aqui? — a voz
irritante de Tiffany, minha madrasta, chega aos meus ouvidos.
— Ah, que ótimo, você está aí. Tenho que falar com Esteban, agora —
exijo.
A mulher loira caminha até mim com um sorriso debochado nos lábios
e eu estou certa de que em sua mente ela está gargalhando por me achar uma
criança malcriada.
— É muita cara de pau da sua parte vir até aqui depois de abrir um
processo contra o seu próprio pai, sua fedelha — cospe, me fazendo respirar
fundo para controlar meus impulsos. — Esteban está em reunião e não deseja
ser incomodado. Ser filha dele não te dá passe livre na minha empresa.
Sua uma ova!, penso.
— Se ele não queria ser incomodado, pensasse melhor antes de ferrar
com a minha paciência! Saia da minha frente! — quase grito, atraindo os
olhares dos muitos funcionários presentes no andar.
— Escuta aqui, sua garotinha mimada…
— Dobre a sua língua antes de me chamar de qualquer coisa! Eu estou
falando muito sério! — retruco, impedindo-a de continuar. — É o seguinte,
Tiffany, eu aturei você e sua cara desgraçada em eventos nos últimos anos
por pura obrigação, eu nunca dirigi a palavra a você porque, se existe algo
insignificante para mim, é a sua existência. Então, por favor, ignore a minha
presença exatamente como fez durante todos esses anos e me poupe do seu
discursinho barato de esposa leal — falo antes de passar direto por ela e
ouvir o barulho dos saltos de Joscelyn atrás de mim.
— Um pouco mais de calma a partir daqui, querida, por favor — a
advogada solta, baixo.
Quando já estou quase diante da porta da sala de Esteban, no entanto,
ela se abre. Um homem branco, grisalho e bem vestido, na casa dos
cinquenta, sai de dentro da sala e eu posso jurar já tê-lo visto em algum
lugar.
— Senador Thompson — Joscelyn o cumprimenta, e pelo seu
semblante, vejo que não são exatamente amigos.
— Doutora Mansen — o homem responde, engolindo seco.
Estranho a presença de um senador no escritório de Esteban, porém,
suas relações com pessoas influentes e poderosas não são exatamente uma
novidade. Passamos por Thompson sem nos demorarmos, e então, finalmente
entro na sala onde meu pai está sentado de forma relaxada, em sua cadeira.
— Ah, vejam só quem resolveu aparecer! — sua voz grave sai num
tom amigável que beira o doentio. — Como vai, hija? Pensei ter ouvido
você dizer que só nos veríamos em um tribunal. Acho que as coisas
mudaram, certo?
Solto uma risada incrédula, avançando em direção a sua mesa e
largando sobre ela uma pilha de papéis. Apoio minhas duas mãos sobre o
tampo de madeira e me inclino em sua direção, soando o mais firme que
consigo. Por sorte, a raiva em meu peito é tamanha, que não tenho tempo
para sentir medo.
— Eu já recebi uma notificação, não precisava ter me trazido uma
cópia.
Filho da puta.
— Isso não é a cópia de uma notificação, é o seu refresco para a
memória, papai — falo, sorrindo. — Esta é cópia autenticada do acordo que
fez com a minha mãe, em que você se compromete a arcar com os meus
estudos.
A confusão em seu olhar é impagável.
— Eu não assinei isso! — ele chia, e eu folheio o documento até a
parte em que sua assinatura está gravada.
— Você assinou sim. E ao longo de todos esses anos eu jamais
descumpri com esse acordo, o que significa que, ao deixar de pagar dois
meses da minha faculdade, você não só ameaçou a droga da manutenção da
minha bolsa de estudos, como violou este documento. Inclusive, acho que
não deveria ter proposto uma multa tão alta. O feitiço sempre pode se virar
contra o feiticeiro no final.
Sei que minha fala o atingiu quando ele se levanta e a cólera toma
conta dos seus olhos.
— Você é mesmo uma criança ingrata, não é, Amelie? Teve a
coragem de me processar e ainda quer exigir que eu pague as coisas para
você? Você só pode estar ficando louca! Vou mandar meus advogados
revisarem esse seu papelzinho, e pode ter certeza de que vai se arrepender
de ter pensado que tinha condições de me enfrentar, eu vou…
— Continue ameaçando a minha cliente na minha frente e nós vamos
terminar essa conversa na delegacia — Joscelyn interfere.
— Me poupe! Quem é você para definir como eu ponho limites na
minha filha? — ele grita, e eu vejo o semblante de Joscelyn se transformar
em pura raiva.
— Doutora Joscelyn Mansen, advogada da senhorita Amelie Castillo
que, por acaso, é uma jovem adulta que não precisa dos seus “limites”,
apenas que cumpra com as suas funções de pai — ela responde, seca.
— Contratou uma advogada? É isso que está fazendo com o meu
dinheiro? Eu vou ligar agora para a sua mãe, isso é um absurdo! Você perdeu
completamente a noção do ridículo, criança!
Solto um grito irritado quando ele está prestes a alcançar o celular.
— Chega! Eu estou farta dessa merda! Estou farta de você, farta de
cada palavra asquerosa que sai dessa sua boca nojenta. Não ouse nem ao
menos tocar no nome da minha mãe. Nos deixe em paz, mas que inferno! —
grunho, irritada, dando a volta em sua mesa para ficar frente a frente com
ele. — Pagar pelos meus estudos é o mínimo que você faz, o mínimo para
suprir o fato de que você é um pai de merda! Eu odeio você, odeio cada
maldita célula do meu DNA que me faz ligada a você, odeio que tenha
tornado minha vida um martírio sem fim e, principalmente, eu odeio ter me
submetido a você por tantos anos, mas agora chega!
Cuspo as palavras em sua direção enquanto luto arduamente para me
manter firme e não chorar de ódio.
— Você nunca foi o meu pai, nunca fez absolutamente nada por mim
que não fosse te beneficiar, mas enquanto eu for obrigada a carregar sua
genética infeliz, você vai cumprir com a porra das suas funções nem que eu
precise te levar a cada maldito tribunal desse país! Você está me ouvindo?
— Tente — ele ralha.
— O quê?
— Tente! Me processe! Você não passa de uma universitária, e nem
isso seria se não fosse pelo meu dinheiro e o meu sobrenome. Você, filhinha,
não é nada sem mim. Então, vamos lá, tente! Vamos ver quem vence no
tribunal — ele fala, rindo, antes de se virar e pegar a papelada sobre a mesa.
— Posso conseguir os melhores advogados do mundo, e você sabe disso.
Acha que essa daí me intimida?
Esteban coloca os papéis em um triturador, posicionado na lateral da
sua mesa.
— Você não tem uma única prova ao seu favor. Já eu? Tenho inúmeras
fotos suas sorrindo em revistas e entrevistas falando sobre como você sente
orgulho do seu papai. Vai ser, no mínimo, inspirador te ver tentar convencer
algum juiz, hija. Eu avisei que era melhor ter me obedecido — ele rosna, e
eu sinto vontade de lhe acertar um soco.
Nunca odiei tanto uma pessoa em toda a minha vida.
— Vamos embora, Amelie. Já temos o suficiente — Joscelyn fala,
furando a bolha de tensão em que mergulhei.
Me afasto rapidamente do homem que, agora, nos encara confuso.
Joscelyn e eu caminhamos até a porta e, quando estou prestes a sair, ouço-o
indignado:
— Do que estão falando? Volte aqui agora, menina!
Me limito a girar a maçaneta e deixar que a mãe do Tyler passe, antes
de olhá-lo por cima do ombro. Se Deus existe, eu espero que me perdoe,
porque tudo que eu mais quero é ver Esteban Castillo queimar no inferno.
— Obrigada por me entregar a vitória de bandeja. Vejo você no
tribunal, papai.
Meu pé bate de forma ritmada contra o piso do corredor enquanto eu
espero a porta ser aberta. Não faço ideia de como vim parar aqui, mas estou
certa de que não há outro lugar onde eu possa estar depois do dia insano que
tive.
Ouço o barulho do trinco sendo desfeito, vejo a maçaneta girar e em
segundos, sua silhueta enorme entra no meu campo de visão. Não penso duas
vezes antes de me atirar nos seus braços. O calor do seu corpo me engloba e
ele me leva para dentro, circundando minha cintura e fechando a porta atrás
de mim.
Fecho os olhos com força, colando meu rosto ao seu peito nu, e
inspiro o cheiro almiscarado gostoso do perfume que exala da sua pele. Meu
coração está batendo freneticamente e eu sinto vontade de chorar pela forma
com que seu abraço me faz sentir em casa.
Em casa. É como Ethan faz eu me sentir.
— Ei, amor, como você está? — ele pergunta, baixinho, no pé do meu
ouvido.
Amor. Meu peito se derrete com a forma que o apelido carinhoso soa
em sua voz.
— E-Eu… Eu estou bem?
Me afasto para encará-lo e ele gargalha pelo meu cenho confuso.
— Isso foi uma pergunta? — questiona, rindo.
— Não… É só que… Hoje foi um dia louco. Eu disse para minha
mãe que eu a amo, pela primeira vez em anos, nós nos perdoamos e, nossa,
foi lindo pra caramba. Aí, logo em seguida, eu descobri que o meu pai
atrasou dois meses da minha faculdade…
— Filho da puta — ele murmura, fazendo uma careta ao perceber que
pensou alto. — Desculpa.
— Ah, relaxa, eu já o xinguei disso para baixo hoje — conto,
causando-lhe uma risada alta. — Enfim, eu e Tia Joscelyn fomos até lá e não
deixamos barato. Meu Deus, você precisava ver a cara dele quando
percebeu que eu não estava ali para perder, foi incrível. Ao que tudo indica,
a ordem de restrição vai entrar em vigor, e ele nunca mais vai poder chegar
perto de mim, faz ideia de como eu estou feliz? Porque eu estou, muito
mesmo!
Falo tudo numa empolgação alucinante e Ethan escuta cada palavra
com um sorriso imenso no rosto. Céus, ele é tão, tão lindo quando sorri.
— Estou feliz por você, Coelhinha. Muito feliz. E orgulhoso também
— ele diz, aproximando seu rosto do meu e roçando seu nariz sobre a minha
pele.
— Dirigi até aqui no automático — confesso, baixo.
— E isso significa…
— Significa que você é a primeira pessoa em que eu penso quando
algo bom acontece — digo, torcendo para que ele entenda cada uma das
camadas dessa frase.
— Que bom, porque eu pretendo continuar sendo, por muito tempo.
— Muito tempo, é? — provoco.
Com os lábios a poucos centímetros dos meus, Ethan sorri e leva uma
das minhas mãos até o seu peito, exatamente como fez ontem. A pele do seu
torso nu se arrepia quando minha mão encosta sobre ela. Seu coração está
disparado e eu consigo sentir seu pulsar sob meus dedos. Mais uma vez.
— Eu estou sentindo, linda, e isso não vai passar tão cedo.
Sem dizer mais nada, colo nossos lábios e beijo-o como se minha
vida estivesse prestes a acabar. Me derreto em seus braços quando sua
língua mergulha em minha boca e me explora com um novo tipo de
curiosidade. É um beijo semelhante ao primeiro; ávido, exploratório e
intenso, como todo beijo após a descoberta de um sentimento deve ser.
Afundo meus dedos nos cabelos do garoto, puxando-o ainda mais
para perto, como se fosse possível, e aperto seus fios com a dose certa de
força que sei que ele adora. Seu grunhido de satisfação me faz sorrir e eu
mal consigo acreditar que tudo, enfim, está entrando nos eixos.
Tão certo e tão bom.
Como há muito tempo não era, e como eu espero que sempre seja.
“Nós estamos nos apaixonando
E eu não tenho medo de dizer essas palavras
Com você eu estou seguro
Nós estamos caindo como as estrelas”
FALLING LIKE THE STARS | James Arthur

2 de Janeiro de 2022

ANTES
O fim do verão fazia Nova Iorque ferver naquela manhã. Me lembro de
descer do carro do Tyler e sentir o bafo quente abraçar meu corpo, me
deixando terrivelmente angustiado enquanto eu subia as escadarias
majestosas da universidade dos meus sonhos pela primeira vez. Eu já estava
nervoso o suficiente, não queria começar a suar de calor também, seria um
desastre.
Me lembro que, enquanto galgava degrau por degrau, passei as
palmas das mãos sobre o tecido da calça jeans tentando dissipar o
nervosismo. Eu já tinha lido e relido as instruções para o primeiro dia pelo
menos uma centena de vezes. Eu deveria seguir para o auditório 102 para a
recepção dos calouros e logo depois seguiria para o meu cronograma normal
de aulas.
Podia sentir meu coração prestes a sair pela boca tamanha expectativa
que corria por meu corpo quando passei pela porta principal do prédio.
Assim como os demais alunos que entravam, fui recebido pelo mascote da
universidade, o Leão Eros, que vestia uma camiseta com o brasão da Irving e
entregava alguns panfletos informativos e até mesmo o mapa daquele
edifício.
Seguindo o pequeno mapa, caminhei rapidamente pelos corredores e
senti um certo alívio quando avistei a porta com o número “102” colado e
logo abaixo um “Calouros de Jornalismo 2019”. Me lembro vagamente de
ouvir alguns passos se aproximando enquanto eu girava a maçaneta, por isso,
abri a porta e me posicionei encostado ao batente, dando passagem para que
a pessoa entrasse.
No instante em que passou por mim, seu cheiro doce e inconfundível
me chamou atenção, e por algum motivo, até hoje sinto que ela percebeu
isso.
— Obrigada! — A voz, tão doce quanto o perfume, veio acompanhada
de um meio sorriso tímido que, por alguns segundos, deixou o meu eu de
dezenove anos paralisado. — Você é calouro também?
— Eu… — Meus olhos pulavam entre o corredor vazio, que levava
até as escadas para a arquibancada do auditório, e os seus olhos castanhos
grandes que me encaravam num misto de empolgação e timidez. — Sou! Sou
sim, Ethan Harris, prazer!
Sequei mais uma vez a palma da mão sobre o jeans antes de esticá-la
em sua direção. O contato da sua pele quente com a minha, misturado ao
metal gelado dos seus anéis, me fez sorrir por algum motivo que até hoje
desconheço.
— Amelie Castillo — a garota se apresentou, sorrindo, e consegui
notar um resquício de sotaque mexicano na pronúncia do seu sobrenome. —
Acho que seremos colegas de turma.
Me lembro de caminharmos juntos, falando sobre o quanto estávamos
nervosos pelo primeiro dia, até as escadas onde nos separamos porque eu
preferia sentar na frente, e ela, nas fileiras do meio.

AGORA

Até hoje penso como teria sido se eu e Amelie tivéssemos levado


adiante o clima amistoso e nos tornado grandes amigos. Me pergunto se
teríamos passado horas intermináveis juntos na biblioteca, se nos
juntaríamos em todos os trabalhos em dupla e deixaríamos nossos colegas
impressionados com a combinação pra lá de excelente que resultaria com
nossos cérebros trabalhando juntos.
Talvez eu a acompanharia em suas caminhadas até o trabalho, a
assistiria pintando alguns quadros, e talvez, ela até deixasse um pouco de
lado o fato de que detesta basquete e assistiria alguns dos meus treinos. E
nós provavelmente tomaríamos café juntos depois deles.
Provavelmente, ela me arrastaria para festas lotadas, e eu a faria me
acompanhar em shows de bandas de pop rock no Central Park, e certamente
nós terminaríamos a noite com canecas de cerveja no Grove 's.
Se tivéssemos sido amigos logo de cara, eu com certeza teria movido
o mundo para que essa garota jamais sentisse que não merece toda a
felicidade que existe. Eu a teria protegido com tanto afinco, e sei que ela
faria exatamente o mesmo por mim, que nós dois juntos seríamos como uma
fortaleza.
E no fim, eu me apaixonaria. Me apaixonaria completa e
perdidamente, porque independente de qual realidade estamos falando, da
real ou da hipotética, no fim, o meu coração é sempre pertencente a ela.
E agora, nesse instante, na realidade onde tivemos que cair e nos
machucar tantas vezes até entendermos como podemos ser bons juntos,
enquanto eu checo meu reflexo no espelho pela milésima vez, sentindo meu
coração prestes a explodir, eu só tenho uma certeza: a garota para quem, no
primeiro dia de aula, eu abri a porta, só não era mais apaixonante do que a
garota para quem eu quero abrir o meu coração.
Eu sempre gosto mais dela a cada nova versão.
Saio do meu antigo quarto dando de cara com o meu pai. Patrick está
sentado no sofá da sala, segurando um porta-retrato em suas mãos e perdido
nos próprios pensamentos. Dormi aqui na noite passada para passar um
tempo em família. Hoje cedo minha tia veio buscar Angeline para passear e
meu pai saiu para resolver algumas coisas. Mas já está de volta e muito
reflexivo.
Me sento ao seu lado e vejo que a foto que ele segura é uma de quando
eu era bebê. Na fotografia, tirada por uma câmera analógica, mamãe e eu
estamos no mar, ela está me segurando no colo e eu estou sorrindo
largamente. É uma das minhas favoritas.
— Você era fissurado pelo colo dela. — Ele solta uma risada fraca.
— Era o melhor lugar do mundo.
— Eu sei…
Há uma longa pausa em que nós apenas ficamos lado a lado,
encarando a fotografia e com a mente presa em uma bolha de felicidade
chamada Anastasia Harris e sua linda existência.
— Pai? — chamo-o, quebrando o silêncio.
— Sim?
— Quando você soube que a amava? — eu pergunto, e ele ri.
— Eu soube desde que a vi pela primeira vez. Ela estava…
— Suja de ketchup na lanchonete da vovó, eu lembro — completo. Já
ouvi essa história centenas de vezes.
— É. Foi nesse dia. Por quê?
— Acho que amo uma garota — confesso.
Patrick passa um dos braços pelos meus ombros e me puxa para
perto.
— E posso saber o que te levou a achar isso?
— Eu não sei, eu só… O mundo parece melhor com ela, tudo parece.
É como se as coisas só fizessem sentido quando ela está nos meus braços e
sorri pra mim… Sou patético por sentir isso?
Meu pai me encara com um sorriso cintilante no rosto e nega com a
cabeça.
— É ela, não é? A menina que estava aqui outro dia, e a garota que
sua tia estava te infernizando para conhecer.
— É. Como sabe? — pergunto, confuso.
— Você olha para ela como se ela tivesse seu coração nas mãos —
ele me provoca e dá risada.
— Sendo sincero? Ela tem, eu só não tinha percebido ainda.
— Já disse isso para ela?
— Estou tomando coragem — confesso, rindo.
— Vá, imediatamente. Não se perde tempo quando se ama, filho.
Guarde esse conselho pro resto da sua vida.
Eu sei exatamente o peso das suas palavras, sei o quanto ele sente por
não ter tido mais tempo para amar a minha mãe. E é por isso que eu me
despeço dele com um abraço apertado e me levanto, correndo até a porta
para seguir o meu coração.

Minha Coelhinha <3: Onde você está?


Minha Coelhinha <3: Acho que precisamos conversar.
As duas mensagens de texto chegam no exato minuto em que estou
subindo os degraus da Chisholm House. Tenho vontade de rir pela sincronia,
mas o tom da mensagem deixa meu coração um pouco apertado. Alguma
coisa está acontecendo.
Eu: Tô no seu prédio.
Eu: Me espera na porta, precisamos mesmo conversar.
Termino de subir as escadas e sigo direto para o elevador. Quando ele
se abre no andar do dormitório das Blair e Serena da Universidade Irving já
consigo avistar a porta se abrindo e uma Amelie de moletom e short parada
no batente. Me aproximo dela e deixo um beijo suave em sua testa antes de
passar pelo pórtico.
Caminhamos em silêncio até o seu quarto e quando ela se senta frente a
frente comigo na cama, eu sinto que estou começando a hiperventilar. Estou
nervoso pra caralho e seu silêncio não ajuda muito.
Fazem duas semanas que Amelie e eu chegamos a conclusão de que
nosso lance havia ido por água abaixo. Não porque deu errado, mas sim
porque deu certo até demais, e de um jeito que nós não esperávamos. O
combinado era: ao menor sinal de sentimento, caímos fora.
Acontece que, quando nos demos conta, tudo já era sobre sentimentos
e sobre como somos perdidamente rendidos um pelo outro. Eu só não tinha
muita ideia do que fazer com tantas novas sensações. E pior, fiquei com
medo de cair nos mesmos erros do passado.
Mas depois de refletir muito, e avaliar os últimos meses em que
Amelie e eu estivemos juntos, percebi o quão irreal seria acreditar que com
ela seria como foi com Claire. Nunca será. Amelie sempre respeitou
profundamente os meus espaços, admirou minha singularidade ainda que, por
muitas vezes, eu seja o seu extremo oposto. Ela olhou para mim e enxergou o
cara que eu realmente sou, jamais tentou mudar isso, pelo contrário.
Toda a nossa confusa e repentina relação se estabeleceu com nós dois
tentando entender um pouquinho mais sobre o mundo um do outro. Não num
sentido de tomar conta de tudo, e sim como forma de partilhar ainda mais
momentos felizes.
A verdade é que durante esses últimos meses, eu quis fugir de
relacionamentos exatamente enquanto vivia um.
Um saudável, que me fez crescer e aprender muito. Eu só desconhecia
ainda essa forma de se relacionar, e agora entendo isso.
— Sobre o que queria conversar? — questiono, indo direto ao ponto.
— Sobre o que você queria conversar?
— Eu perguntei primeiro — falo, rindo, mas ela não me acompanha.
Pelo amor de Deus, alguém me explica o que está acontecendo?
— Queria falar sobre nós — ela começa, baixo. — Eu sei que duas
semanas é muito pouco para decidir alguma coisa, mas eu só preciso muito
saber se realmente está nessa. Porque eu estou. A cada dia que passa o que
eu sinto vem ficando mais forte, e eu estou com medo de assustar você
quando eu conseguir finalmente dizer o que sinto.
Ah, isso. Amelie está prestes a se afastar, como sempre faz quando as
coisas parecem intensas demais nas últimas semanas. Seguro sua mão com
firmeza, atraindo seu olhar pra mim.
— Por favor, não faz isso — peço, puxando-a para perto. — Eu já
estava lá embaixo quando você me chamou para vir até aqui por um motivo.
Vim até aqui porque eu tinha algo importante para dizer.
— Que era?
— Okay, eu tinha falas muito bem ensaiadas, mas agora você me pegou
desprevenido pra cacete, porque eu tomei um susto achando que estava
tentando me dar um fora — falo, nervoso, e ela ri. — Escuta, eu sei o que
você está sentindo e sei o que pensa. Sei que quer um romance meloso e
viver os sentimentos intensos que vê nos filmes. Sei que quer algo seguro
para se jogar de cabeça sabendo que será pega antes de tocar o chão, e
acredite, você não tem ideia de como eu quero te dar tudo isso…
— Ethan…
— Eu não terminei. Você quer que seu seja só seu, não é? Quer a
certeza, o seguro, algo que te dê estabilidade e não que te encha de dúvidas
— eu falo com a voz trêmula.
— Sim, mas não precisa ficar assim — ela diz, angustiada ao notar
meu nervosismo. Mal sabe ela. — Eu entendo se precisar de mais tempo, só
preciso que me diga em que pé estamos.
— Esse é o ponto. Eu não preciso de mais tempo, eu sei exatamente
em que pé estamos e eu não vou fugir dele. Não mais. A vida é rápida
demais pra isso. Então quer andar de mãos dadas, me apresentar pra sua
mãe, conhecer a minha família, passar o feriado junto? Eu topo, topo pra
caralho, porque eu também quero isso. Podemos fazer planos pro futuro, usar
alianças e jamais pensar em um fim. Eu prometo te encher de flores e te
lembrar todos os dias da mulher incrível que você é. Só, por favor, não me
deixa — quase imploro, encarando-a profundamente. — Posso ser o Troy da
sua Gabriella, embora a nossa relação seja bem mais parecida com a do
Chad e da Taylor. Posso mover o mundo para te fazer feliz, posso te beijar
até esquecer cada um dos meus defeitos, cantar “I Can Have This Dance” de
pijama em cima do sofá só para você rir. Posso, e quero, gritar para essa
faculdade inteira que só você tem a chave do meu coração. A única coisa
que eu, definitivamente, não posso, é ficar sem você, Coelhinha.
— E-Eu…
— Eu disse que só voltaria a assumir um compromisso com alguém
quando eu tivesse a certeza de que era verdadeiro, de que era amor, e eu não
tenho dúvida alguma de que isso que nós temos é real. Eu amo você, Amelie
Castillo, amo tanto que mal cabe dentro de mim. Então, por favor, ao invés
de achar que não estou 100% nisso, pode me deixar amar você perdidamente
feito um bobo? Aprendi com você que estar junto não é estar preso, e eu
nunca me senti tão livre quanto nos últimos meses. Não tenho medo de gostar
de você, nem um pouco.
Fixo meu olhar em suas íris castanhas, elas estão marejadas e, pelo seu
semblante, eu não sei dizer exatamente o que está sentindo. Amelie parece
um tanto atônita, e é fofo ver suas mudanças de expressão conforme ela vai
processando o que acabei de dizer.
Eu a amo, com cada batida do meu coração, e espero muito que ela
não tenha dúvidas disso.
— Você disse a palavra com “a” — sopra, perplexa.
— Sim, eu disse. — Dou risada e levo minha mão até sua nuca.
— Disse que me ama — repete, ainda em choque.
— Uhum. Posso dizer de novo, se quiser. Eu te…
— Para! — ela me interrompe, olhando em meus olhos com uma
expressão de pavor.
— Amor, não estou entendendo qual o seu ponto aqui. Eu falei algo de
errado? — questiono, confuso.
— Não! É só que… Ah meu Deus! Você realmente disse que me ama,
eu não estava… Droga, Ethan, eu não me preparei! Estava ensaiando para
dizer isso há dias, não acredito que disse antes de mim — ela resmunga,
confusa, e eu não consigo segurar a risada.
— Acabei de dizer que amo você, que moveria o mundo para te fazer
feliz, e você quer mesmo brigar comigo? — Estou quase sem fôlego de tanto
rir.
Cacete, ela é inacreditável.
— Não! É porque… Ugh! Me desculpa, eu queria que minha reação
tivesse sido melhor, uma bonitinha sabe? Sinto que estraguei o clima todo —
ela fala, frustrada, e faz beicinho.
Fofa demais, argh!
Capturo seu lábio inferior com os dentes e me aproximo, arrastando a
língua por ele logo em seguida. Experimento cada partezinha devagar,
mordendo, lambendo, beijando de leve. E quando estou prestes a tomar sua
boca para mim, seu indicador pousa sobre os meus lábios e ela afasta
minimamente o rosto.
— Antes que eu me esqueça, quero que saiba que mesmo no museu de
arte mais incrível do planeta, meu olhar ainda será completamente seu. As
melhores notícias, para mim, sempre vão ser as que saírem da sua boca. E eu
me enfiaria em centenas de arenas terrivelmente lotadas só para torcer por
você e te ver feliz. Esse é o meu jeito um pouco torto de dizer que te amo —
ela diz, baixinho, e meu peito queima. É como se ela estivesse me
oferecendo o mundo. — Eu amo você, Ethan Harris.
E então, afasta o dedo de mim, levando suas mãos para a minha nuca.
Sendo honesto, é bom ouvir as três palavrinhas saindo da sua boca,
mas ainda que ela não as dissesse, os olhos de Amelie não mentem. Tem
amor neles quando estão apontados para mim, muito amor.
— É a declaração mais bonita que já me fizeram, eu não mudaria nem
uma única palavra — sussurro, beijando seus lábios rapidamente. — E eu
amo você, Coelhinha
— Eu também amo você, Capitão — ela cochicha de volta e sorri.
Aquele sorriso aberto e lindo que ela me negou por tanto tempo e pelo
qual eu reivindiquei no instante em que nos aproximamos. Não me arrependo
de nada que nos trouxe até aqui, e de agora em diante, fazer essa mulher feliz
se tornou minha mais nova missão.
Tomo seus lábios de maneira urgente e, durante aquela tarde, dentro
daquele quarto, fizemos amor em todos os sentidos da palavra. Cada beijo,
cada toque, cada som, não havia um mísero detalhe sobre nós que não
exalasse o amor em sua forma mais verdadeira.
E se alguém um dia me perguntar quando foi que eu me apaixonei por
Amelie Castillo, vou ter o prazer de dizer que eu não me lembro de um único
dia em que eu não fosse dela.
Desde o momento em que abri aquela porta, no primeiro dia de aula,
meu coração já estava nas suas mãos.
— E agora, o que nós somos? — ela pergunta, apoiando o rosto em
sua mão e deitando-se de frente para mim. É difícil me concentrar porque,
bom, ela está pelada e o seu rosto ainda grita “sexo”, mas eu me esforço.
— O que quer ser? — questiono. — Podemos ir com calma até
definirmos um rótulo, ou você pode abrir o ebay agora e me comprar uma
camiseta escrito “namoradão da Coelhinha" e eu prometo usá-la todos os
dias por aí. Você escolhe.
Ela ri e sua gargalhada gostosa me deixa feliz pra caralho. Deixo um
aperto na curva da sua cintura e puxo-a para perto, beijando sua testa.
— Acho melhor irmos com calma — sugere.
— Com calma, então — anuo. — Mas, para que não fiquem dúvidas,
sou seu, cem por cento, e isso é inegociável.
— Meu… — ela fala baixinho. — Meu Ethan… Acho que gosto
disso!
Sério, quando eu achei que ela não podia ficar ainda mais linda.
Amelie Castillo dizendo “Meu Ethan” é o meu mais novo som favorito.
— Nossa, fale isso quando eu estiver dentro de você, estou
implorando — provoco, arrancando mais risadas suas.
— Você é um babaca. — Ela revira os olhos e eu mordo a ponta do
seu nariz.
— Seu babaca, importante lembrar — pontuo, só para vê-la se
estressar.
— Cale a boca, mal começamos e você já está me fazendo querer
terminar — resmunga.
— Não diga isso nem de brincadeira. — Puxo-a para se deitar em meu
peito e ela me encara com o semblante emburrado. — Você fica tão linda
toda bravinha.
— Amo você — ela se rende, deixando um carinho bom no meu rosto.
— Eu também amo você. Minha Coelhinha.
“Eu sempre gostei de brincar com fogo
Brincar com fogo, brincar com fogo
Fogo, fogo
Eu sempre gostei de brincar com fogo”
PLAY WITH FIRE | Sam Tinnesz

7 de Janeiro de 2022

Se tem uma coisa que as fraternidades da Irving sabem fazer, essa


coisa é uma boa festa.
A tradicional festa à fantasia dos Wolves, fraternidade masculina da
universidade, está acontecendo hoje, marcando oficialmente o começo do
ano, e sem brincadeira alguma, toda a comunidade de alunos parece estar
agrupada na enorme sala da casa.
Os caras do time estão na pista de dança. Vejo quando Elói desabotoa
a parte de cima do macacão vermelho da sua fantasia de La Casa De Papel e
faz um nó com as mangas na cintura deixando o abdômen à mostra. Meus
amigos soltam gritos enlouquecidos e algumas garotas batem palmas
animadas. Pelo amor de Deus.
Enquanto isso, eu estou encostado no balcão do bar, bebendo meu
segundo drink e ansiando pelo momento em que a minha garota vai passar
pela porta e, finalmente, me deixar ver sua fantasia. Amelie está fazendo
suspense há dias sobre qual roupa usaria hoje e eu confesso que estou
ficando maluco, porque sei que vai ser algo que vai acabar comigo.
Minha fantasia, por outro lado, é simples e foi escolhida por ela.
Estou com uma camisa social preta, calça preta, tênis e uma máscara do
Batman. Nada muito elaborado, porque não tenho paciência e muito menos
talento para maquiagens artísticas e tudo mais.
Está quente feito o inferno aqui dentro, e eu não sei se pelas luzes
roxas, ou o clima libidinoso que paira sobre essas festas, mas tudo nesse
ambiente grita tensão.
Varro o olhar pela sala, e como se estivesse escutando meus
pensamentos, a porta se abre, e o que ela revela faz com que eu sinta que o
mundo parou só para que eu possa assisti-la desfilar.
Puta. Que. Pariu.
Não são necessários nem dois segundos para que seu olhar me
encontre. O sorriso malicioso de quem sabe que está prestes a destruir cada
pedacinho da minha sanidade estampa seu rosto, e ela caminha em passos
decididos até mim.
Cacete, Amelie Castillo.
Sinto que estou anestesiado. No instante em que ela para na minha
frente, com as mãos na cintura e o desafio implícito em seu olhar, sei que seu
objetivo, desde o princípio, era realmente acabar comigo.
Amelie está vestida com um corset meia taça preto de renda, uma saia
pareô preta, minúscula o suficiente para que eu veja a fita rodeando suas
coxas — do que eu imagino que seja uma cinta liga —, saltos, e na cabeça, a
porra de um arquinho de coelhinha rendado igualmente preto.
Seus cabelos estão soltos, os cachos que tanto amo estão definidos e
brilhosos, a maquiagem é simples, mas a deixa estonteante. Os cílios estão
cheios, um delineado preto se repuxa em seus olhos e há apenas hidratante
nos lábios que já são naturalmente avermelhados.
Ela está perfeita. Na verdade, ela é perfeita.
E está fodendo comigo, mas não do jeito que eu quero.
— Gostou? — pergunta, com a sombra de um sorriso diabólico nos
lábios.
Encaixo minha mão na curva da sua cintura e puxo-a para mim. Seu
peito se cola ao meu e sua respiração bate contra o meu rosto. Molho os
lábios com a língua e os aproximo do seu ouvido, sentindo o perfume doce
que exala da sua pele.
— Está tão gostosa quanto da primeira vez — minha voz sai rouca, e
eu mordo o lóbulo da sua orelha, sentindo quando ela crava suas unhas no
meu braço. — E eu quero foder com você tanto quanto antes, até mais.
Espero que finalmente tenha entendido o porquê do apelido, amor, essa porra
desse arco me deixa maluco há anos.
Me afasto a tempo de ver o choque cintilar em seus olhos. Amelie nega
com a cabeça e eu sinto meu pau começar a se animar dentro da minha calça
quando ela segura meu rosto com firmeza, me fazendo encará-la.
— Eu devia fazer greve de sexo para cada vez que você me confessa
que me deixava louca de raiva porque me achava gostosa — fala com um
tom ameaçador, mas sela os lábios nos meus de forma suave e provocante
logo em seguida.
— Ou você pode descontar toda a sua irritação me obrigando a foder
você bem gostoso até seu estresse passar — sugiro, rindo, e puxando seu
lábio inferior com os dentes.
Se ela não sair de perto de mim eu não vou conseguir parar de tocá-la.
— Assim não teria graça. Você faz gostoso todas as vezes, não preciso
te obrigar — resmunga baixinho antes de tomar um gole da minha bebida.
Tombo a cabeça para trás em uma gargalhada e escorrego minha mão
da sua cintura até a sua bunda, deixando um aperto firme, e volto a observá-
la enquanto ela suga o canudinho do drink e examina o ambiente.
Tenho total ciência do meu bom desempenho na cama, e sei que minha
garota está muito bem servida no quesito sexo. Mas ouvi-la dizer esse tipo
de coisa infla meu ego em níveis extremos.
— Quero dançar — diz, apontando para a pista de dança cheia.
— Se eu for com você vou ficar duro no meio de metade da faculdade
— falo, rindo, mas é a mais pura verdade.
— Devo procurar alguém para dançar comigo, então?
Ela pergunta me lançando um olhar inocente, que é completamente
teatral, e se eu não soubesse exatamente o que está tentando fazer, meu rosto
se fecharia em uma carranca. Solto um longo suspiro, negando com a cabeça
antes de pousar minhas duas mãos em seu quadril e deixar que ela me
conduza até a pista.
Assim que paramos em um lugar, Church, do Chase Atlantic, começa a
ecoar pela sala e todas as luzes se apagam exceto as roxas. Amelie me puxa
pela gola da camisa, enlaçando meu pescoço com um dos braços, e erguendo
minha máscara com a mão livre, para conseguir ver o meu rosto.
A batida inicial é do tipo que faz sua mente girar, principalmente num
ambiente como o que estamos. Meus braços estão mantendo a garota próxima
a mim, e ela mexe os quadris de um lado para o outro de forma lenta e
sensual, sem tirar os olhos dos meus.
A música começa, e Amelie canta para mim, afundando o dedo em meu
peito no final da primeira estrofe.
“Stay on the ground until your knees hurt
No more praying, baby, I'ma be your preacher”
“Fique no chão até seus joelhos doerem
Sem mais orações, querida, eu vou ser seu pregador”
A canção continua em uma batida forte. Colo minha testa na sua,
fazendo contato visual o tempo inteiro enquanto nos mexemos de um lado
para o outro em sincronia e eu sinto meu corpo ardendo em chamas.
Caralho, eu preciso estar dentro dela o mais rápido possível.
Amelie parece entender pelo meu olhar o quanto a quero, e só para
me provocar, ela desce suas unhas pelo meu pescoço até o meu peito,
arranhando a pele e se desfazendo de alguns botões da minha camisa. O
refrão explode nas caixas de som e eu o canto baixo, quase o recitando para
ela.
“I'm about to take you back to Church
(Back to Church, baby)
Well, tell me your confessions, baby, what's the worst?
(Yeah, what's the worst)”
“Eu vou te levar de volta para a Igreja
(De volta para a Igreja, amor)
Bem, faça suas confissões, querida, qual é a pior?
(Sim, qual é a pior)”
Lentamente, ela se vira, colando as costas em meu peito e
acompanhando a batida lenta com os quadris enquanto rebola em minha
virilha. Engulo seco, sentindo a excitação me tomando em proporções que
logo logo serão impossíveis de controlar.
— Amor… Não faz isso — falo, nervoso, perto do seu ouvido.
Ela apenas leva a mão até a minha nuca e me puxa para frente,
movendo o rosto para o lado e me dando um beijo gostoso que faz tudo em
mim ascender.
Maldita seja Amelie Castillo, puta que pariu.
Sua língua desliza em minha boca devagar, passeando por ela sem
pressa, enquanto rebola em mim. Solto um grunhido agoniado e seguro os
dois lados da sua cintura com um pouco mais de força, mantendo-a parada.
Mordo seu lábio inferior, puxando-o enquanto afasto meu rosto do seu e
soltando-o antes de deixar um selinho rápido.
— Isso é tortura — murmuro contra sua boca.
— E você está adorando.
Ela sorri, pervertida, mas logo seu semblante se desmancha quando
viro-a novamente de frente para mim e levo minha mão ao seu pescoço,
descendo e subindo o polegar com a exata pressão que sei que ela gosta.
— Estou deixando você se divertir, por enquanto, mas se continuar me
provocando, vou ser obrigado a entrar nesse jogo, linda. E eu não entro em
jogos para perder, você sabe disso — falo sério, encarando seus lábios e
sentindo, sob minhas digitais, ela engolir com dificuldade.
Amelie segura o tecido da minha camisa e suas íris escuras, repletas
de desejo, fazem o trajeto torturante dos meus lábios até os meus olhos. Seus
dedos tremem quando ela leva uma das mãos até a minha nuca e os afunda
em meu cabelo, apertando os fios com força, me fazendo descontar a pressão
na pele da sua cintura.
— Se eu não parar… — inicia, esticando o rosto em minha direção
para falar no pé do meu ouvido. — O que você vai fazer, Capitão?
Solto uma risada fraca, me afastando e, com uma mão, tiro a máscara
da minha cabeça e solto-a em direção ao chão, bem próxima ao seu pé.
Amelie me olha com desconfiança, e eu lhe ofereço um último olhar antes de
me abaixar para pegar o adereço.
Me aproveito da posição para tocar seu tornozelo, e conforme me
levanto, arrasto meus dedos por toda a parte interna da sua perna até
alcançar a parte que está coberta pela saia.
A pista de dança está lotada e as pessoas estão bêbadas demais para
prestarem atenção em nós. Ainda assim, Amelie me encara desconcertada,
unindo as coxas em volta dos meus dedos enquanto agarra meus ombros com
força.
— Ethan, as pessoas…
— Você não queria brincar, amor?
Sinto a renda da sua calcinha em meu polegar. O tecido está levemente
úmido, me provando que esse joguinho de provocações está mexendo tanto
com ela quanto comigo. Arrasto meu dedo pela sua intimidade por cima da
renda, meus olhos estão fixos em seu rosto, me permitindo capturar o exato
instante em que ela morde o próprio lábio para conter um gemido.
— Canalha — ralha, com a voz trêmula.
— Tenho meus momentos — falo, rindo, antes de beijar sua testa e
pressionar meu dedo nela mais uma vez.
Amelie ofega baixinho, tombando a cabeça em meu peito e movendo
discretamente o quadril em direção ao meu toque. Afasto a mão das suas
pernas no mesmo instante, voltando a segurar sua cintura, e ela ergue o rosto
para mim com uma expressão confusa e irritada.
— Não vou te dar o que quer no meio dessa gente toda. Gosto que os
sons deliciosos que você faz pra mim sejam só meus. — Sorrio presunçoso e
ela bufa, frustrada.
— Preciso ir ao banheiro — avisa, se desvencilhando do meu corpo e
me lançando um olhar que eu conheço muito bem.
É hora do show.
Observo Amelie atravessar o mar de pessoas e subir as escadas,
seguindo em direção ao segundo andar, onde ficam os banheiros. Conto
sessenta segundos em minha cabeça, e então, refaço seus passos chegando ao
corredor que, por um milagre, está extremamente vazio.
Dou dois toques na porta e quando ela abre, passo por ela,
empurrando-o contra a madeira e girando o trinco. Pressiono meu corpo
contra o seu, encurralando-a entre mim e a parede. Levo minha mão até o seu
pescoço ouvindo-a gemer baixinho quando emprego um pouco de pressão
sobre a pele.
Quando nossos lábios enfim se chocam, uma onda de calor me
percorre e eu sinto como se estivesse prestes a entrar em combustão. O beijo
é selvagem e bruto. Amelie ataca minha boca com ferocidade e nossas
línguas travam uma batalha por poder e satisfação. Percorro cada curva do
seu corpo com a minha mão livre, deixo apertos e carícias que a fazem
ofegar e encaixo minha perna entre as suas, sentindo a garota se esfregar em
minha coxa.
Meu pau já lateja dentro das minhas calças quando eu selo os lábios
de Amelie e me afasto, descendo uma trilha de beijos e chupões pelo seu
pescoço. Arrasto a língua sobre a parte exata onde sua pulsação está
acelerada e mordo o lóbulo da sua orelha, gemendo contra ela no momento
em que sinto sua mão me apalpando sobre a calça.
Ela intensifica os movimentos de vai e vem em minha coxa, e eu tomo
distância apenas para encará-la alucinada se esfregando em mim e se
contorcendo de prazer. Seu semblante agoniado buscando satisfação é mais
bonito do que qualquer porra de obra de arte que exista.
Ela é toda perfeita.
No entanto, quando sua respiração começa a se desregular e ela fecha
os olhos, recolho a perna porque, porra, de jeito nenhum ela vai gozar sem
que eu esteja dentro dela. Ignoro seu olhar mortal por cortar seu barato pela
segunda vez seguida, e então, cambaleio para trás, abrindo o botão da minha
calça.
Seu semblante logo se transforma em um sorriso atrevido, e quando
estou prestes a abaixar meu zíper e pegar o preservativo em meu bolso,
Amelie segura meus pulsos e os deixa ao lado do meu corpo.
— Quero você na minha boca primeiro — diz, caindo de joelhos
diante de mim.
Ai, caralho, meu momento favorito.
Apoio minhas mãos na bancada da pia e assisto ela deslizar o zíper da
minha calça para baixo e puxá-la junto com a cueca. Meu membro salta para
fora, enrijecido, e os olhos da garota brilham como se estivesse diante do
seu doce favorito.
Amelie segura a base com firmeza e eu sinto meus batimentos
cardíacos acelerarem quando ela coloca a língua para fora e contorna a
glande com movimentos lentos, lambendo o pouco de lubrificação que já
está ali. Ela passa um tempo me provocando com sua língua dos infernos,
fazendo movimentos circulares e arranhando meu abdômen com as unhas
afiadas, mas quando sinto que estou prestes a enlouquecer, ela me toma de
uma só vez.
Jogo a cabeça para trás e solto um grunhido extasiado sentindo o
contato do meu pau com o interior úmido e quente da sua boca. Amelie
comprime as bochechas, me apertando, e eu sinto o tesão queimar em meu
corpo feito lava.
Eu amo como ela me conhece e amo como sabe exatamente o que fazer
para me levar ao extremo.
Volto a encará-la quando ela começa a se movimentar, chupando meu
pau até o máximo que consegue e me masturbando com a mão onde não
alcança com a boca. Seguro a lateral do seu rosto ajudando-a a estabelecer
um ritmo que faz minha mente se transformar em pura névoa, e o mundo ao
meu redor para de existir.
A única coisa em que consigo focar é na visão dos seus lábios cheios e
avermelhados ao redor do meu pau. É uma das minhas imagens favoritas.
Amelie escorrega uma das mãos — a que não está me tocando — por
baixo da sua saia e pelos seus movimentos, vejo que ela está se
masturbando. Saber que me ter em sua boca a deixa excitada a esse ponto me
deixa louco, por isso, acelero os movimentos dos meus quadris, e quando
seu gemido vibra contra a cabeça do meu pau, eu perco o resquício de
controle que ainda tinha e fodo sua boca com vontade.
Quando sinto que estou chegando quase lá, aviso com a voz rouca:
— Amor, não vou conseguir segurar por muito tempo e quero a sua
boceta.
O estalo alto ecoa pelo banheiro quando ela me chupa pela última vez
antes de se levantar. Pego a mão que ela usava para se tocar e ergo os dedos
molhados, lambendo-os e sentindo o seu gosto, enquanto encaro seus olhos
que parecem aprisionar fogo dentro deles.
Inverto nossas posições, prensando-a contra a pia, de frente para o
espelho e de costas para mim. Tiro preservativo do bolso e visto-o, antes de
me posicionar atrás dela e pousar minhas mãos em seus ombros.
Afasto seus fios de cabelo para o lado, encontrando o laço que mantém
firme seu corset e o desfaço, abaixando as alças finas logo em seguida e
libertando seus peitos. Observo pelo reflexo do espelho os mamilos rígidos
despontando no ar, eu sorrio satisfeito quando ela morde o próprio lábio e
empina a bunda em minha direção, completamente desesperada.
Apoio o queixo em seu ombro e encho minhas mãos com seus seios,
massageando os mamilos entumescidos e provocando-a, assistindo cada uma
das suas reações enquanto a pele do seu colo vai ruborizando e ela vai
ficando ainda mais excitada.
— E- Ethan, por favor, eu preciso de mais — choraminga, tombando a
cabeça para trás, apoiando-a em meu peito.
— Quem é Ethan? — pergunto rindo, para provocá-la e ela grunhe
ansiosa.
— Amor, por favor!
É um pedido, mas soa muito mais como uma ordem, e como eu não
ignoro suas ordens e já não aguento mais um segundo sem estar dentro dela,
eu obedeço.
Ergo sua saia apreciando a visão da sua bunda e Amelie apoia os
braços na pia, se empinando para mim, gostosa pra caralho. Afasto sua
calcinha molhada para o lado e massageio um pouco seu clitóris que está
inchado e pulsante, preparando-a para me receber.
Seguro meu membro e me posiciono na sua entrada, pincelando-a para
cima e para baixo, escorregando a cabeça por entre os lábios molhados,
ouvindo Amelie gemer enquanto aperta as coxas involuntariamente.
— Afaste as pernas, Coelhinha, quero sentir você.
Amelie me obedece, e então, finalmente me enterro nela. Começo com
estocadas lentas e profundas, alcançando uma certa cadência e arrancando
gemidos manhosos da garota, mas quando ela pede por mais, com a voz
carregada de tesão, eu não consigo resistir e começo a foder sua boceta com
força. Amelie está tão excitada que meu membro desliza por ela com
facilidade.
O som dos nossos quadris se chocando é como música para os meus
ouvidos, e funciona como incentivo para que eu vá em sua direção mais forte
e mais depressa.
Uno seus cabelos e os enrolo em meu punho, usando-os para puxar seu
tronco para mim. As costas suadas da garota tocam meu peito e ela aperta as
pálpebras, gritando meu nome enquanto eu me movimento dentro dela.
— Não feche os olhos, quero que veja como você é linda quando goza
pra mim.
Ela os abre, e ao invés de observar seu próprio reflexo, estabelece um
contato visual comigo através do espelho. Toda a imagem é enlouquecedora,
os peitos pulando conforme entro e saio dela, o olhar devasso que me devora
ao nos assistir, a porra do arco de coelho em sua cabeça e seus cabelos
enrolados em meu punho.
Já havia imaginado essa cena milhares de vezes, mas nenhuma tão boa
quanto a versão real, tenho certeza de que ainda vou sonhar com isso por
muitas noites.
O ritmo das estocadas alcança o descontrole e eu preciso me segurar
para não gozar antes dela porque, porra, estou muito perto. Amelie parece
perceber minha expressão nervosa, e por isso, ela começa a estimular seu
clitóris e me pede com a voz por um fio:
— Me bate do jeito que eu gosto.
Sem nem pensar duas vezes, deixo que ela se incline para frente, o
suficiente para não quebrar nossa troca de olhares, e então estalo um tapa
forte em sua nádega direita. Ela choraminga e pede por mais, e eu lhe dou.
— Gosta disso, amor? — pergunto com a voz grave, assistindo-a
maltratar seu lábio inferior com os dentes.
— Gosto. Faz mais forte, por favor.
Essa mulher quer me matar.
Um, dois, três, quatro tapas, até que ela geme alto e sua boceta me
aperta.
Amelie goza se assistindo pelo espelho. Suas pernas tremem e eu
seguro firme sua cintura para mantê-la de pé. Algumas investidas depois, eu
a sigo em um orgasmo destruidor, me desmanchando dentro dela e sentindo
minha visão embaçar.
É brutal, como uma descarga de adrenalina, e bom pra caralho.
Ainda desnorteado, envolvo seu corpo em meu braço para segurá-la e
uso o outro para me amparar na bancada da pia. Apoio minha testa em seu
ombro e beijo sua omoplata antes de puxar o ar com força.
Passamos algum tempo assim, nos recompondo, e quando finalmente
conseguimos regular nossas respirações, saio de dentro dela devagar e
descarto o preservativo na lixeira.
Amelie se limita a encostar-se na pia e ajustar o corset. Ela parece
destruída e seus movimentos são letárgicos, mas ainda assim ela me lança
um sorriso satisfeito de quem teve o que queria.
Sorrisinho pós orgasmo. Meu favorito.
Visto minha calça e pego um pouco de papel, umedecendo-o na
torneira antes de me ajoelhar diante da garota. Limpo entre as suas pernas
com delicadeza, deslizando o papel com cuidado sobre a sua pele. Ajeito
sua calcinha e a cinta liga antes de puxar a saia para baixo e arremesso o
chumaço na lixeira.
Conforme me levanto, deixo um beijo em cada um dos seus joelhos,
depois outros sobre as suas coxas, nos dois lados da sua bacia sobre a saia e
no centro da sua barriga por cima da renda.
Amelie assiste o ato com adoração. Descobri que demonstro melhor o
amor através do toque, e não há nada no mundo que me faça mais feliz do
que ver o quão especial ela se sente quando cuido dela dessa forma. Da
forma que ela merece ser cuidada.
Continuo minha trilha de beijos pelo seu pescoço e, por fim, chego em
sua boca, deixando um selar suave sobre seus lábios. Levo minha mão até o
seu rosto e acaricio a pele da sua bochecha com o polegar, encarando-a com
devoção.
Ela é a mulher mais linda do mundo, e eu ainda não consigo acreditar
que me escolheu.
— Eu amo você — digo, baixinho, antes de roçar meu nariz no seu.
— Eu também amo você, muito mesmo — responde, me abraçando e
fazendo meu coração transbordar.
Passamos mais um tempo na festa, dançamos e curtimos com os nossos
amigos, mas não demoramos muito para pedir um táxi e irmos para o seu
alojamento. E se tem uma coisa que eu amo na nossa relação, é que Amelie é
tão viciada em mim quanto sou nela.
Pensei que chegaríamos em casa exaustos demais para qualquer coisa
além de dormir. Mas o que rolou foi bem diferente, enquanto tomávamos
banho juntos Amelie me presenteou com o segundo boquete da noite, e
caralho, nada abala a felicidade de um homem depois de dois boquetes.
Quando enfim conseguimos chegar na cama, eu a fiz gozar em minha boca e
encerramos a noite fodendo de lado, lento e gostoso, debaixo das cobertas.
Melhor noite da minha vida, sem dúvidas.
“De todo o amor que eu tenho
Metade foi tu que me deu
Salvando minh’alma da vida
Sorrindo e fazendo o meu eu”
DONA CILA | Maria Gadú

28 de Janeiro de 2022
A vida, enfim, parece boa.
Há exatos um mês e meio eu tenho vivido os dias mais incríveis e
felizes ao lado das pessoas que eu amo. Com a possibilidade de Megan não
estar mais na cidade no próximo semestre, temos aproveitado cada mísero
tempo juntas quando ela não está em aula ou estudando para a prova de
residência.
Tyler tem se preparado para o draft e estamos todos muito confiantes
de que será escolhido por algum time. Além disso, passada a entrevista do
estágio eu pude relaxar um pouco mais e tenho aproveitado para ajudá-lo
com suas provas de direito.
Annelise e Lily seguem apaixonadas como nunca e estão programando
sua primeira viagem como casal. O destino escolhido foi Playa Del Carmen,
no México, o que me gerou duas horas por semana ensinando truques básicos
de espanhol para as duas.
Ethan e eu estamos bem, cada vez mais seguros sobre os nossos
sentimentos e descobrindo uma porção de outros novos. É engraçado como
às vezes nos pegamos agindo feito dois adolescentes um com o outro, e se eu
já amava cada detalhe sobre o garoto, sua versão apaixonada conseguiu
derreter de vez o meu coração.
É um pouco doido pensar em tudo que precisou acontecer em nossas
vidas para que pudéssemos nos encontrar e construir algo tão bonito e
sincero. Por diversas vezes me encontro admirando seu rosto sereno
enquanto ele dorme nos meus braços e percebo que não há nada que eu tenha
sentido antes que se compare com o que sinto por ele. É real, intenso,
perfeito, mesmo que recheado de imperfeições, e é nosso.
Um amor com cara de Amelie Castillo e Ethan Harris.
Além disso, hoje é o dia em que minha mãe receberá alta da
internação. Depois de um mês de tratamento intensivo e recheado de altos e
baixos, Virgínia finalmente vai poder retornar à cidade e restabelecer aos
poucos sua nova rotina.
Eu estaria mentindo se dissesse que foi um início de tratamento fácil.
Houve vezes em que eu chegava para visitá-la e ela se sentia arrasada, com
medo de não ser forte o suficiente e de não dar conta do recado. Foram
nesses dias em que senti que nosso amor era posto à prova. Era ao ouvir
dela sua vontade de desistir que eu mais a amava, porque de certo modo era
a única coisa ao meu alcance.
Dar amor, oferecer suporte e incentivá-la.
Mesmo com os contratempos, mamãe se manteve firme e eu assisti
orgulhosa ela passar pelo processo de desintoxicação e evoluir em suas
terapias. Por sorte, os danos físicos gerados pelos anos de dependência não
foram tão graves e são facilmente tratáveis.
Enquanto Virginia estava fora, consegui finalizar a venda da mansão
em Hoboken e usei o dinheiro para comprar uma lojinha linda, onde irá
funcionar seu mais novo empreendimento, e também um apartamento
charmoso e espaçoso para ela em Chelsea, um bairro residencial tranquilo
em Manhattan.
É nele que estou agora, terminando de desembalar e posicionar os
últimos objetos de decoração que comprei para o lugar enquanto Alfred foi
buscá-la.
Quando ouço a campainha tocar, sinto meu coração pular em um misto
de ansiedade e alegria. Dou uma última checada no ambiente enquanto vou
até a porta, verificando se tudo está em seu devido lugar, e assim que giro a
maçaneta, um sorriso gigante estampa meu rosto.
— Seja bem vinda à sua nova casa — falo, empolgada.
Mamãe sorri ao me puxar para um abraço carinhoso e eu preciso fazer
um esforço enorme para não chorar de felicidade por estar vivendo algo que
sempre achei que morreria na minha imaginação. Estamos finalmente bem.
— Querida, eu estava com tanta saudade!
Nós nos afastamos e eu deixo um beijo estalado em sua bochecha,
abrindo espaço para que ela entre logo em seguida. Mamãe examina tudo
com bastante atenção e eu vejo um brilho molhado cobrir seus olhos ao
perceber que está diante de um recomeço.
A sala ampla do apartamento é clara e arejada. Um janelão de vidro
toma conta de uma parede inteira e a luz do sol traz vida ao ambiente. A
decoração no estilo boho chic mistura tons de bege e detalhes em madeira
que dão um charme único. O sofá é grande e espaçoso, a mesinha de centro
de madeira abriga alguns cristais e um arranjo de pequenos galhos secos.
Há um enorme vaso no canto da sala com ramos de trigo, e um tapete
bege escuro decora o chão onde está seu belo piano branco.
Uma bancada de mármore carrara divide a sala da cozinha super
equipada e que montei para que ela possa cozinhar suas delícias sem perder
a interação com as suas visitas. Faço um mini tour mostrando para ela os
dois quartos de hóspedes, a sua suíte, o banheiro geral e a área de serviço.
Mamãe reage maravilhada a cada espacinho, e é bonito ver como ela
realmente gosta de tudo que escolhi para deixá-la o mais aconchegada
possível. Algumas fotos nossas de quando eu era criança e outras suas em
seus concertos estão espalhadas pelos móveis em porta-retratos dourados,
alguns estão sem fotos, no entanto, para que ela os preencha com seus futuros
registros de sua nova fase.
— Está tudo tão lindo, Niña! — ela diz, suspirando, quando
retornamos à sala.
— Você gostou? Escolhi tudo com muito carinho.
— Eu amei, você tem um excelente gosto — elogia, enquanto nos
sentamos no sofá.
— É, eu até que dou para o gasto. — Dou risada, me encostando no
estofado. — O doutor Isaac me disse que você terá uma enfermeira aqui
vinte e quatro horas para acompanhar seus três primeiros meses. Ela chega
mais tarde.
— Sim. Isabel é uma menina de ouro, foi quem me acompanhou na
reabilitação também. Você vai gostar dela — explica, e eu assinto.
— Como se sente, mãe? — pergunto, encarando-a com um sorriso
bobo.
— Feliz. Céus, estou realmente feliz, como não era há anos! Tenho
minha filha, minha casa nova, uma nova vida… Eu não poderia estar melhor.
Sei que ainda tenho um longo caminho para percorrer e que essa foi só a
primeira etapa, mas se tem algo que eu aprendi com tudo isso, querida, é que
não existe sentido em encarar a felicidade como uma meta para ser atingida,
um ponto final. Momentos felizes vem e vão, o que nos cabe é celebrá-los, e
hoje eu estou muito feliz.
O sorriso iluminado em seu rosto enquanto ela fala é cheio de vida,
sonhos e expectativas pelo que está por vir. Eu sempre ansiei em ver minha
mãe voltar a ser a mulher radiante da minha infância, mas vendo-a hoje,
realizada por vencer mais uma batalha, percebo que essa é a versão dela que
mais brilha. Uma que finalmente tem tudo, exatamente por entender que
“tudo” é sobre bem estar, e não coisas ou pessoas.
— Ouvir isso é a melhor coisa do mundo — falo, antes de me esticar
para pegar uma caixinha na mesinha de centro. — Tenho um presente para
você.
Mamãe parece surpresa e emocionada. Assisto contente enquanto ela
puxa o laço dourado da caixinha e retira a tampa. Ela ergue o colar de prata
de dentro da embalagem e segura o pingente de coração para ler o que está
gravado nele.
De um lado, há um “V” e do outro está escrito “onde você estiver…”.
Ela me olha com os olhos marejados e eu puxo o meu cordão de dentro da
minha blusa, mostrando-o para ela. No meu pingente, há um “A” e na parte
de trás “... estarei contigo.” Foi a frase que lhe disse quando nos despedimos
no dia da sua internação.
— É tão lindo, filha! Muito obrigada! — a voz já embargada aquece
meu peito.
Ajudo-a a colocar o colar e lhe dou um abraço apertado.
— Tem mais uma coisa aí dentro — falo ao apontar para a caixa. — É
um fundo falso, é só puxar.
Mamãe segue minha instrução com um olhar desconfiado e eu quase
solto uma gargalhada ao visualizar seu semblante confuso quando puxa uma
chave solitária de dentro do embrulho.
— O que é isso?
— Isso, Virgínia Morgan, é a chave de uma loja linda que está em obra
na rua de trás onde, em breve, será a sua mais nova floricultura — anuncio
com orgulho.
— Oh, meu Deus! Isso é sério? — ela quase grita, exalando
empolgação.
— Sim! Há um tempo você vem dizendo que gostaria de voltar a
trabalhar e que gostaria de se aventurar com as flores. A venda da casa
rendeu uma boa grana então eu pensei: porquê não? E decidi arriscar! É um
espaço bem versátil, então caso decida mudar de ramo, pode montar o que
quiser lá e…
— Vai ser uma floricultura. É perfeito!
— Fico feliz que tenha gostado.
— Qual vai ser o nome?
— Não sei, me diz você, Senhora Empresária — provoco e ela dá
risada.
Mamãe passa alguns segundos pensativa e então sorri como quem teve
uma brilhante ideia.
— Fleur d'avril — fala, e eu reconheço o sotaque francês.
— O que significa?
— Flor de Abril — explica. — É o mês em que as tulipas florescem
nos Estados Unidos e, não coincidentemente, é também…
— O mês do meu aniversário — completo, emocionada.
— Exatamente. Assim como as tulipas, você também é uma flor de
abril, Amelie, e o dia mais feliz da minha vida, com certeza, foi o dia em que
você floresceu para o mundo — ela fala, e eu sinto uma lágrima escapar do
meu olho. — O três de abril da primavera que mudou minha vida para
sempre.
— Eu amo você, mamãe — digo, antes de me deitar em seu colo e
deixá-la mexer nos meus fios de cabelo.
Passamos o restante do dia inteiro juntas. Ajudo-a a desarrumar suas
malas e colocar suas roupas nos armários. Cozinhamos juntas uma
macarronada que está simplesmente absurda de boa. À tarde assistimos
Aladdin, nosso filme favorito de quando eu era pequena, com direito a um
dueto desafinado de “Um Mundo Ideal” que cantamos em plenos pulmões de
pé no sofá.
É um dia perfeito, um dos muitos que estão por vir.
Até o momento em que meu celular vibra e múltiplas mensagens
chegam ao mesmo tempo:
Capitão <3: Amor, você está bem?
Meg: Amiga, onde você tá? Está tudo bem com você?
Tyler M: Miss Jornal, tá tudo bem? Precisa de alguma coisa?
Lily: Por favor, me diz que você está bem! Annelise acabou de me
mostrar, estamos preocupadas!
Mas que diabos está acontecendo?, penso, e só então a mensagem que
me deixa ainda mais preocupada aparece na tela.
Joscelyn Mansen: Eu já dei uma olhada no caso.
Joscelyn Mansen: Você e sua mãe não foram citadas em momento
algum, estão seguras, e eu vou entrar com o pedido para que sua
faculdade seja quitada com o dinheiro que não for confiscado, pode ficar
tranquila.
Ao ler as mensagens, uma interrogação do tamanho do mundo se forma
bem no centro da minha testa.
Eu: Do que está falando?
Joscelyn Mansen: Já assistiu aos jornais hoje?
Eu: Não?!
Joscelyn Mansen: Liga no canal 7, agora.
Sem pedir mais nenhuma explicação, pego o controle da televisão e
ligo no canal indicado no exato instante em que o repórter, parado na frente
de um portão que eu conheço muito bem, parece repassar as informações da
reportagem.
— Para você, que está chegando agora, foi preso na manhã deste
domingo, em sua casa, num condomínio de luxo em Greenwich Village, o
empresário do ramo de investimentos Esteban Castillo. Esteban é um dos
nomes apontados na operação Night Fury, que investiga uma organização
criminosa e fraudulenta formada por empresários e políticos, que tinha
como objetivo privilegiar empresas no fechamento de contratos e
licitações em diversos estados do país…
— Meu Deus — balbucio, em choque, e desvio o olhar da tela apenas
para olhar para Virgínia. Minha mãe encara a TV completamente apática.
— … o Ministério Público emitiu mandados de busca e apreensão
na mansão do empresário, na sede da sua empresa, a Dunamis
Investimentos e na casa de mais quatro acionistas. Mandados de prisão
também foram emitidos para mais outros quinze empresários da cidade,
três ex-senadores e para o senador republicano Benjamin Thompson,
acusado de ser o chefe do esquema…
Não tenho a oportunidade de ouvir o restante, porque minha mãe toma
o controle da minha mão e desliga a TV. Encaro-a ainda em absoluto choque,
porque caramba! Eu sempre soube que Esteban é uma pessoa ruim, mas
crimes do colarinho branco? Por essa eu não esperava. E o mais estranho, no
meio disso tudo, é que embora eu esteja chocada, não me sinto comovida.
Não sei o que isso faz de mim, mas não consigo sentir empatia por ele.
Acredito que colhemos o que plantamos. Se chegou a hora de sua colheita e
estes foram os frutos, não há nada que eu possa fazer a não ser rezar para que
a justiça seja feita. Esteban passou tantos anos brincando de ser deus que se
esqueceu da única verdade irrefutável de sua vida: ele é apenas um homem.
E assim como em Édipo Rei, sua hybris se deu justamente por
acreditar que sua inteligência o fazia superior aos demais. Que ela o fazia
um ser divino, e esse foi um dos maiores, dos muitos erros que meu pai já
cometeu, ele acreditou que era inatingível. E não é.
Nenhum homem é.
Nem mesmo os mais poderosos.
— Ele não faz mais parte das nossas vidas — mamãe finalmente diz.
— Nunca fez — tranquilizo-a com um sorriso e me aninho em seus
braços.
Minha mãe é a minha família, e é por ela que eu vou lutar até o fim dos
meus dias. Por ela, pela sua saúde, pela nossa felicidade e pela nossa
independência.
O resto, é apenas resto.
Enquanto estivermos seguras, enquanto tivermos uma a outra, eu sei
que estarei bem.
“Porque quando você me desdobra e diz que me ama
E olha nos meus olhos
Você é a perfeição, minha única direção
É fogo em chamas”
FIRE ON FIRE | Sam Smith

21 de Janeiro de 2022

Eu acho que vou vomitar de nervosismo a qualquer momento.


É noite de quinta feira. Eu estou usando uma lingerie nova, que custou
mais caro do que o normal, por baixo de um vestido branco de seda que cai
com perfeição sobre o meu corpo e saltos dourados que há muito tempo não
saíam do meu armário. Tudo isso porque faltam pouquíssimos minutos para o
meu primeiro encontro oficial com Ethan desde que decidimos ser um casal.
Existe algum peso nisso, por algum motivo, porque diferente das
milhares de outras vezes em que saímos juntos, dessa vez eu estou quase
desmaiando tamanha a minha ansiedade. Termino de ajeitar meu cabelo de
frente para o espelho, as mechas cacheadas caem soltas até um pouco abaixo
dos meus ombros. Borrifo um pouco de perfume nos pulsos e no pescoço.
Não vou ser nem um pouco modesta, preciso dizer que estou
deslumbrante, porque passei horas me dedicando na finalização dos meus
cachos e na minha maquiagem. Seria um erro não reconhecer o bom
resultado. Assim que alcanço minha bolsa e desligo a luz do meu quarto, meu
celular vibra e, consequentemente, meu coração acelera.
Capitão <3: Cheguei, amor.
É uma simples mensagem, mas eu sorrio feito uma pateta enquanto
caminho até o elevador da Chisholm House. Desço a escadaria devagar,
embora minha ansiedade esteja nas alturas, tomando cuidado para não me
desequilibrar nos saltos, e sigo até carro preto estacionado rente ao meio fio.
Tyler deve odiar perder seu carro sempre que vamos sair.
Assim que me aproximo, Ethan sai e contorna o veículo parando de
frente para mim. Perco o fôlego ao vê-lo e, internamente, já estou contando
os segundos para estarmos na cama. Ele está usando um conjunto de calça e
camisa social pretas com cinto. As mangas estão dobradas até os cotovelos,
deixando seus antebraços expostos. As veias saltadas descem até seus
punhos e, nossa, como ele é lindo!
— Você é a mulher mais bonita do mundo, uau — sopra, baixinho,
antes de pegar na minha mão e me fazer dar uma rodadinha.
— Você também não está nada mal, Capitão — comento quando ele
cola meu corpo ao seu. — Você é sempre lindo, mas hoje… Está acima do
normal.
— Ah, sabe como é, quis ficar bonito para a minha garota — diz,
antes de deixar um beijo casto em meus lábios.
Eu sorrio antes de levar as mãos até o seu rosto e puxá-lo para mais
um beijo. Mal posso acreditar que estamos fazendo isso na frente da entrada
de uma das maiores moradias universitárias do campus, é tão bom não
precisar esconder mais nada.
— Se continuar me beijando assim, vou desistir de sair — ele avisa,
se afastando e abrindo a porta para que eu entre no carro.
Me acomodo em meu banco. Ethan se senta atrás do volante e, assim
que o carro entra em movimento, eu me encosto e me viro em sua direção.
Não demora muito para que ele perceba que está sendo observado e um
sorrisinho sacana chegue aos seus lábios.
— Apreciando a vista?
Rolo os olhos e solto uma risada. Faço ambas as coisas com
frequência quando estou com ele.
— Não é todo dia que vejo meu camisa três em roupas sociais,
preciso aproveitar — faço graça e ele pega minha mão, levando-a até os
lábios para beijar o dorso.
— Posso usar mais vezes, se você quiser.
— Não precisa, eu amo quando usa moletom da faculdade também.
Ethan gargalha, deixando outro beijo em minha mão e focando o olhar
no trajeto. Um silêncio confortável se instala e eu não o pergunto sobre o
nosso destino, porque estou feliz com a ideia de ser surpreendida. Minhas
únicas pistas foram “se vista como uma princesa e não se alimente antes de
sair”, e confesso que estou empolgada com o que quer que ele esteja
aprontando.
Não demora muito até que estejamos estacionando na frente de um
edifício espelhado próximo ao rio Hudson. Ethan salta do carro e abre a
minha porta, estendendo a mão para me ajudar, e nós caminhamos juntos,
com os dedos entrelaçados, até a recepção onde uma moça elegante verifica
nossos nomes e nos conduz até o elevador.
— Estou nervosa — falo no pé do seu ouvido. Ethan sorri, beijando
minha testa.
— Espero que você goste — sussurra de volta.
No mesmo segundo, o elevador abre no último andar e meu queixo
vai ao chão. Estamos em um restaurante rooftop em um prédio de sessenta
andares. É noite, mas as luzes da cidade fazem com que Nova Iorque pareça
um verdadeiro céu estrelado bem debaixo dos nossos pés.
Um garçom nos conduz até a nossa mesa, que fica ao lado de uma
parede de vidro na área aberta. Através dela é possível ver a ponte do
Brooklyn, o rio Hudson e toda a mistura de cores e luzes de Manhattan.
— Meu Deus, aqui é tão lindo… — minha voz sai suave e
completamente maravilhada.
— Eu sabia que você ia gostar — Ethan diz, puxando a cadeira para
que eu me sente, e eu agradeço com um meneio de cabeça.
Ao invés de se sentar de frente para mim, como estão dispostas as
cadeiras, Ethan coloca a sua ao meu lado e deixa um beijo estalado em
minha bochecha logo que se acomoda.
O garçom nos traz algumas opções de vinho para escolhermos. Ethan
deixa a decisão por minha conta e eu acabo optando por um vinho branco
seco, para combinar com o especial do chef da noite, que é um risoto
vulcano com filé mignon.
O vinho é servido primeiro em uma pequena quantidade na taça de
Ethan, para que ele experimente. Só então será servido o restante e, em
sequência, a minha taça.
É uma regra de etiqueta boba que existe, nela se diz que o homem da
mesa deve ser servido primeiro quando ele está em casal. A regra é bastante
seguida em restaurantes refinados como este e nos eventos da alta sociedade
que tanto frequentei.
— Você foi quem escolheu — Ethan fala, sorrindo, ao me entregar a
taça, e eu mal consigo disfarçar o sorriso bobo.
Balanço-a levemente deixando que o aroma da bebida suba, aproximo
a taça do rosto e sorvo um pouco do ar. O cheiro é delicioso e eu quase
gemo de felicidade quando provo o vinho. O sabor é tão bom quanto o
cheiro. Faço sinal para que o garçom termine de nos servir e, antes que ele
se vá, fazemos o nosso pedido de comida.
Ethan e eu brindamos a nós e ao resultado do estágio que sai amanhã
de manhã, e enquanto bebemos, sinto sua mão pousar sobre a minha coxa,
deixando carícias leves que fazem meus pelos se eriçarem.
— Como está se sentindo? — pergunta, olhando nos meus olhos.
— Com relação ao estágio? — Ele anui, e eu reflito por alguns
segundos. — Estou mais confiante, mas ainda não sei dizer se minha
entrevista foi boa o suficiente para impressioná-los — assumo. — E você?
— Bom, minha única certeza é que, independente do resultado, eu vou
estar feliz. Porque eu sei que a única chance que eu tenho de perder é caso
você ganhe, e se você ganhar eu vou comemorar do mesmo jeito.
Meu coração dá pulinhos de alegria pela sua resposta. Sempre que eu
sinto que não poderia amá-lo mais, ele me surpreende e me mostra que ainda
cabe muito amor dentro do meu peito.
— Eu também vou ficar muito feliz caso você ganhe, mesmo —
confesso. — Inclusive, o que você respondeu quando pediram para fazer
uma crítica ao jornal? Nunca cheguei a te perguntar sobre isso.
Ethan pensa por alguns segundos e então tomba a cabeça para trás,
soltando uma risada divertida.
— Eu praticamente disse que o Instagram dos caras é mal organizado e
que o aplicativo é uma merda. Russel Lambrock deve me odiar.
— Como isso é possível? — questiono, chocada.
— O quê? Alguém me odiar? Eu também não sei. Você quem deveria
saber, fez isso por anos — provoca, e eu reviro os olhos.
— Na verdade, é bem fácil, você é chato pra caramba. Mas não estou
falando disso, é porque eu critiquei a mesmíssima coisa que você na
entrevista — explico, e ele não parece surpreso.
— Convenhamos, amor, só um despreparado não repararia em algo tão
óbvio. Qualquer um que estudou o The Politician de forma aprofundada
perceberia que os caras são uns dinossauros quando o assunto é jornalismo
digital.
Dou risada, porque é verdade. Nesse quesito eles são péssimos.
— Ou você pode interpretar que pensamos a mesma coisa porque
fomos feitos um para o outro — ele finge um suspiro apaixonado e eu lhe
mostro a língua em uma careta.
— Nós, definitivamente, não fomos feitos um para o outro — falo com
convicção.
— Essa doeu…
— Eu não terminei — interrompo-o e levo uma mão até a sua
bochecha para segurar seu rosto. — Não fomos feitos um para o outro, mas
isso não quer dizer que nosso amor é menos especial. Caramba, já parou
para pensar que nós construímos juntos esse sentimento, tijolinho por
tijolinho? Que nos preparamos, nos permitimos nos conhecer de novo…
Nossa, Ethan, ter aprendido a amar você foi tão mais bonito do que
simplesmente ter nascido destinada a isso.
Passamos um longo tempo nos encarando e eu sei que ele conseguiu
entender o que quis dizer. Vejo no brilho dos seus olhos que nosso amor, do
nosso jeitinho, faz muito mais sentido para ele quando visto desse modo.
— Já falei que amo você hoje? — pergunta, antes de tomar um gole da
taça.
— Disse de manhã na aula, mas eu sempre gosto de ouvir — brinco, e
ele aperta os dedos que estão segurando minha coxa.
— Eu amo você.
Ficamos um bom tempo jogando conversa fora, e quando nossa comida
chega, os únicos sons que saem das nossas bocas são os de satisfação. Pense
na melhor comida do mundo, multiplique por mil, não chegará aos pés
daquele risoto. Quando terminamos de atacar nossos pratos, dividimos um
sorvete de morango que também está divino, e enquanto terminamos de beber
o vinho em nossas taças, If I Ain't Got You, da Alicia Keys, começa a tocar
nas caixas de som.
Ethan e eu possivelmente tivemos o mesmo pensamento, porque nos
levantamos em sincronia. Ignorando todos os outros clientes do restaurante
ao nosso redor, eu o abraço e nós dançamos aquela música juntos sob o céu
estrelado de Nova Iorque e com a cidade que tanto amamos brilhando e
pulsando debaixo dos nossos pés.
Há quem viva pela fortuna, pela fama, pelo poder. Há quem queira
jóias caras, carros importados, mansões, mas assim como Alicia Keys, eu
sinto que tudo isso não significa nada se eu não puder estar nos braços desse
cara.
Já ouvi dizer que amar é para os fortes, eu penso que amar é para os
que têm coragem. É preciso muita para se permitir estar numa posição de
vulnerabilidade e permitir que o outro ame você mesmo nos seus piores
momentos. Ethan e eu somos pessoas fortes que eventualmente
enfraqueceremos em diversos momentos, mas eu tenho certeza de que
enquanto houver coragem, nosso amor estará seguro.
E felizmente, isso nós temos de sobra.
— Existe uma palavra que tem origem do latim, "apricity". Significa
"o calor do sol no inverno". Sabe aquela sensação gostosa de se sentir
aquecido pelos raios do sol no frio rigoroso? — falo, afastando o rosto do
seu peito quando a música vai chegando em seus toques finais.
Ethan assente, parecendo não entender direito onde quero chegar.
— Você, pra mim, é como "apricity". Você aquece meu coração,
Ethan.
Ele sorri com os olhos brilhando e me beija, no meio da varanda de
um restaurante, sem nem pensar duas vezes.
E é nesse instante que eu tenho ainda mais certeza de que encontrei o
amor da minha vida. Encontrar alguém que te ame e não tenha medo de
mostrar para o mundo é o tipo de coisa que só acontece uma vez, uma única
chance, e eu fico feliz de estar aproveitando a minha.
“Eu não sei o que é, mas eu tenho essa sensação
Acordar nessa cama junto com você, falar besteira
Sim, curtir muito
Se nós deitarmos, vamos passar o dia juntos
Eu posso começar a falar demais
Eu talvez tenha que te contar uma coisa
Droga
Eu gosto mais de mim quando estou com você”
I LIKE ME BETTER | Lauv

22 de Janeiro de 2022

Acordo antes do despertador.


Tenho feito isso com uma certa frequência, e eu poderia simplesmente
dizer que o motivo de hoje é o fato de que o desenrolar das próximas horas
será decisivo na minha vida, mas a verdade é que eu não estou pensando em
nada disso. Não agora.
Consigo ouvir os passarinhos cantando do lado de fora quando os
primeiros raios da manhã passam pelas frestas da cortina e iluminam
pequenos pontos do quarto. Estou deitado de lado, com o rosto apoiado em
minha mão, enquanto observo cada detalhe do rosto tranquilo de uma Amelie
que ainda dorme profundamente.
Eu nunca vou saber descrever exatamente quando ou como esse
sentimento cresceu dentro de mim ao ponto de eu não saber mais discernir
em que momento eu já estava ou não apaixonado por ela. O que eu sei é que,
enquanto ela me permitir, eu sempre vou querer fazê-la feliz. Talvez até
depois disso, mas eu rezo todos os dias para que não exista um depois.
Eu nunca senti isso por ninguém, essa vontade incessante de cuidar de
alguém, de fazê-la sorrir e de colecionar um infinito inimaginável de
memórias que sejam só nossas. Amelie Castillo é como um evento de
grandes proporções que não entra na vida de alguém, ela acontece. Tão
intensa e profundamente que é impossível não ser tocado pela sua existência
tão singular, e que sorte a minha tê-la acontecendo todos os dias bem
pertinho de mim.
Sorte… Nunca me considerei uma pessoa que tenha muita, talvez
porque o caos tenha chegado cedo demais e me feito enxergar as coisas de
uma forma pessimista. Mas hoje, enquanto assisto a mulher que tem meu
coração para si dormir tranquilamente, e somente essa imagem já me
desperta sentimentos tão poderosos, é impossível não pensar que, se a sorte
existe, ela se viu obrigada a me abençoar.
E, nossa, quanta sorte.
Uma menina disse no grupo de terapia uma vez uma frase que me
impactou o suficiente para que eu não esqueça. Ela disse que só depois que
você lida com perdas que te marcam pelo resto da vida, é que você entende
que o real valor está em quem nós temos e não no que nós temos.
Ela disse também que, um dia, as pessoas vão entender que a graça de
existir está justamente em perceber que quando se ama, se ganha na loteria
da vida, e essa tem um prêmio muito mais valioso do que dinheiro.
A verdade é que, quando você desacelera e passa a viver um dia após
o outro, traçando objetivos para o futuro sem esquecer de viver o presente,
você entende que a felicidade é um estado inconstante, não uma linha de
chegada pela qual estamos competindo para alcançar.
Aprendi que a real felicidade é aquela que mora nas pequenas e mais
singelas coisas — ou pessoas. Isso de certo modo fez com que muitas das
minhas concepções se modificassem.
Minha bolha reflexiva de pensamentos é estourada quando Amelie
começa a se mexer de maneira letárgica. Acompanho cada modular das suas
expressões até que ela franza o cenho e abra os olhos bem devagar. Ao
encontrar os meus, suas íris castanhas ganham um brilho que está sempre
presente quando olha para mim, e eu gosto de pensar que seus olhos me
juram amor em silêncio.
— Que coisas terríveis estava pensando a meu respeito enquanto eu
dormia? — pergunta, com a voz rouca pelo sono, antes de me puxar para um
abraço.
— Estava pensando em como você é um absurdo de tão bonita e que,
talvez, eu deva cortar o cabelo ou fazer qualquer coisa para ficar à sua altura
— brinco, e nós dois explodimos em gargalhadas.
— Você é lindo, pare de falar besteiras — ela diz, antes de selar
nossos lábios em um selinho demorado. — Bom dia.
— Bom dia, amor.
Escovo seus cachos com os dedos, passando-os para trás do seu
ombro, e distribuo uma trilha de beijos pela pele exposta. Amelie segura
minha nuca, apertando meu cabelo em ansiedade. Conforme vou chegando
perto do seu pescoço, puxo seus fios para trás para deixá-la mais entregue a
mim e continuo o que estou fazendo.
Beijo, mordo e sugo a pele até que ela esteja ofegando e fazendo os
sons mais deliciosos do mundo que enviam ondas de calor diretamente para
o meu pau. Sorrio sobre a derme avermelhada e passo meu nariz de leve,
aspirando seu cheiro gostoso e docinho que tanto amo.
— Hora ruim para lembrar que temos um resultado de estágio para
conferir?— digo, me afastando e encontrando seu semblante frustrado.
— Não acredito que me deixou com tesão e não vai terminar o
trabalho — ralha, apoiando a cabeça em meu peito. — Podemos transar
primeiro?
Solto uma risada esganiçada pela forma como a sua voz sai abafada,
antes de beijar seus cabelos. Estou, definitivamente, criando um monstrinho.
— Transamos a noite toda, amor. Além do mais, não vou perder a
oportunidade de um sexo de comemoração. Anda, pega o celular, não aceito
reclamações — digo, deixando um aperto em sua nádega direita e me
afastando para pegar meu telefone.
Amelie e eu nos sentamos um de frente para o outro, e assim que abro
minha caixa de e-mail, já avisto o que é endereçado aos alunos concorrendo
pela vaga. Meu coração acelera em nervosismo. Antes de clicar sobre ele,
subo o olhar para Amelie, que já me encara.
— No três? — pergunta e eu assinto. — Um…
— Dois… — prossigo.
— TRÊS! — dizemos em uníssono.
Clico sobre o e-mail, esperando ansiosamente a página carregar, e
quando carrega, leio com atenção o conteúdo.

PROCESSO SELETIVO - ESTÁGIO (JORNALISMO 2021)


Caro Sr. Harris, venho através desse e-mail notificar sua NÃO
APROVAÇÃO no processo seletivo para a vaga de estágio no The
Politician News of New York. Contudo, quero que saiba que sua entrevista
foi uma das melhores que fiz naquela manhã, e que um único fator o
distanciou da pessoa que levou esta vaga. Esse fator foi a paixão. Não me
interprete mal, não estou dizendo que não ama a célebre arte de
comunicar, mas sim que vejo um potencial imenso para o senhor em uma
outra área que não a do jornalismo político.
Talentos como o seu não merecem ser desperdiçados, por isso, estou
escrevendo pessoalmente esse e-mail para dizê-lo que estive em contato
com colegas meus da TNT Sports e, caso seja da sua vontade, eles
adorariam encontrá-lo para uma entrevista. Seria uma perda imensa para
o jornalismo esportivo não tê-lo atuando nele, rapaz. Pense sobre isso.
Aguardo respostas suas.
Atenciosamente,
Russel Lambrock - Editor Chefe.

Caralho?
Há um misto de confusão e felicidade vibrando por cada uma das
minhas células quando termino de ler a mensagem que me sinto anestesiado.
Eu não fui aceito. Mas Russel Lambrock, pessoalmente, me indicou para um
estágio em uma das maiores emissoras de esportes do país. Eu só posso
estar sonhando.
É só quando a ficha cai que me recordo de onde e com quem estou.
Quando meus olhos enfim se desgrudam da tela, Amelie está estática,
encarando a tela do seu celular completamente boquiaberta e sem mover um
músculo.
— Amor? — chamo-a. — O que aconte…
— Eu entrei! — ela grita, terrivelmente chocada. — Ethan, eu entrei!
O estágio é meu! Eu consegui! Vou trabalhar no jornal dos meus sonhos!
Não sei dizer ao certo quem começou a chorar primeiro, mas quando
me dei conta, eu já a abraçava e nós dois berrávamos juntos feito duas
gralhas e com os olhos molhados pelas lágrimas.
— Você conseguiu! — comemoro, abraçando-a tão forte quanto
consigo.
— Eu consegui! — repete, ainda sem acreditar.
— Você conseguiu — digo, me afastando para lhe dar um longo beijo.
— Estou tão orgulhoso de você, Coelhinha! Você merece.
— Eu… Eu… Espera. Porque você não está triste? — ela questiona,
desconfiada.
— Minha garota é a mais nova estagiária no emprego dos seus
sonhos. Por que diabos eu estaria triste, mulher? — chio, secando as
lágrimas que escorrem dos seus olhos.
— Você… Não está mesmo triste pela vaga? — questiona, e eu nego
com a cabeça. — Ugh! Ethan Harris, por que você tem que ser assim? Eu
amo você, sabia?
— Eu também amo você, e estou morrendo de orgulho da sua
conquista. Lambrock é uma lenda do jornalismo político. Sabe muito bem
que, se existe alguém capaz de confrontar deputados, senadores e até mesmo
o presidente, esse alguém certamente é você, Coelhinha — digo, deixando
um beijo em sua bochecha que está contraída pelo sorriso que ela dá.
— E agora? O que vai fazer?
— Bom, agora, eu vou deitar você nessa cama, beijar cada partezinha
desse seu corpo gostoso até você estar pingando para mim, e foder com você
bem devagar, do jeitinho que você gosta, para comemorar — falo, mordendo
o lóbulo da sua orelha e passando a mão pela parte interna da sua coxa. — E
talvez, em breve, eu me torne o novo estagiário de esportes da TNT, graças à
indicação do Lambrock.
— Mentira! — Amelie ofega, surpresa, e eu me limito a assentir antes
de dar início aos meus planos de fazê-la gemer até acordar todo mundo nesse
prédio.
O sexo se torna o melhor de toda a minha vida. Sua pele desliza
contra a minha em uma sintonia arrebatadora e nossas vozes se misturam no
ar em uma sinfonia gostosa e completamente erótica. A conexão inquebrável
entre os nossos olhos permite que ela entenda todas as milhares de coisas
que quero dizer enquanto me afundo entre as suas pernas. Tem paixão,
alegria, verdade, tesão e muito, muito amor.
No instante em que me desfaço dentro dela e Amelie me abraça forte,
eu sei que, ainda que não tenhamos sido feitos um para o outro, meu coração
não seria de mais ninguém senão dela.

— Não acredito que vai mesmo fazer isso — ela fala, me examinando
dos pés à cabeça.
— Passou o semestre inteiro me infernizando com essa merda e agora
quer desistir? — chio.
— Não, é só que… Não precisa fazer isso se não quiser — ela fala, e
eu reviro os olhos.
— Vai ser divertido — tento tranquilizá-la, mas falo mais para mim
do que para ela.
Hoje é um dia atípico na Irving, nosso time chegou à final da liga e
nós vamos receber nossos adversários em casa em poucas horas, o que fez
com que o reitor Barnard cancelasse as aulas do dia e transformasse o
campus central da faculdade em uma verdadeira concentração pré-jogo.
Amelie e eu estamos no estacionamento, e daqui já é possível escutar
os alunos ensaiando os gritos da torcida. O campus está mais lotado do que o
normal visto que, aparentemente, toda a comunidade acadêmica está
concentrada em um só lugar. Pensar nisso faz com que meu estômago se
revire um pouco em nervosismo, mas ele não é tão importante agora.
Mais cedo, Amelie descobriu que havia ganhado sua vaga de estágio,
e eu, como bom perdedor que sou, depois de umas boas rodadas de sexo
matinal e café da manhã reforçado, estou prestes a desfilar pela faculdade
numa fantasia quase erótica de coelhão.
Amelie não se lembrou de, de fato, mandar fazer o macacão como me
ameaçou diversas vezes nos últimos meses, então eu precisei ser criativo.
Estou com seu arco rendado de coelho, sem camisa e com uma sainha de tule
ridícula que mal cobre a minha bunda. Tem glitter no meu abdômen inteiro e
a garota desenhou um nariz vermelho e bigodes na minha cara.
É engraçado, mas estou parecendo um modelo de anúncio de sex
shop.
— Vamos acabar logo com isso — anuncio, antes de pegá-la pelas
pernas e levantá-la feito um troféu.
— Mas que porra você está fazendo?
— Amor, nem fodendo que você achou que eu passaria por essa
sozinho — solto uma risada e caminho até a escadaria principal do prédio.
— Filho da mãe! Você vai ver só, vou destruir você.
— Se for na cama eu não me oponho.
Assim que passamos pela porta de entrada, todos os olhares do
corredor grudam em mim e risadas ecoam alto ao meu redor. Alguns caras
assobiam, outros soltam uns “que merda é essa?” e algumas garotas dão
gritos histéricos. Amelie envolve os braços no meu pescoço para se firmar, e
eu paro quando estou exatamente no meio da multidão de alunos.
— ETHAN HARRIS! — o berro do reitor Barnard chega aos meus
ouvidos e, como uma assombração, ele surge na minha frente. — O que
diabos você pensa que está fazendo?
— Ai, galera! Bom dia! Peço um minutinho da atenção de vocês aqui,
por favor — falo alto, e todos param o que estão fazendo para me escutar. —
Essa garota aqui, reitor, foi contratada hoje para estagiar no jornal dos
sonhos dela, e eu, assim como todos os meus colegas, estou muito feliz por
ela. Não é mesmo, Lions?
Um coro de “sim” e “uhul” reverbera pelo corredor, e alguns caras da
bateria da torcida até se empolgam. Nosso reitor parece prestes a ter um
colapso, Amelie está roxa de vergonha e eu preciso me esforçar muito para
não cair na gargalhada.
— Parabéns, Srta. Castillo. Ficamos todos muito felizes por você,
mas por favor, desça já daí e, Sr. Harris, coloque uma roupa imediatamente,
antes que eu chame o professor Butler — ordena.
— Como quiser, senhor — anuo, colocando Amelie no chão.
No momento em que ele se afasta, Tyler, Megan, Charles e Elói vem
até nós batendo palmas e rindo desesperadamente da minha cara.
— Não acredito que você realmente o convenceu — Tyler diz para
Amelie. O filho da puta está lacrimejando de tanto rir.
— Nem foi tão difícil.
— Eu acredito — Charles rebate, antes de apontar o celular para mim
e tirar uma foto.
— Essa imagem com certeza será proibida em uns quinze países —
Megan fala, rindo, e Elói imita o barulho de latidos.
— A coleira pode ter glitter? — pergunta, feliz pra caralho.
— Eu odeio muito todos vocês.
— É uma pena, porque a gente te ama — Charles lamenta antes de
erguer o braço e captar uma selfie comigo no fundo com uma cara de merda.
Eu e meus amigos passamos ainda um bom tempo conversando sobre
as expectativas para o jogo. Perco a conta da quantidade de pessoas que
passam assobiando para mim ou rindo da minha cara, e tenho certeza de que
minha alma sai do corpo quando meu treinador me liga perguntando por que
raios o capitão dele está seminu no corredor da faculdade no dia da grande
final.
Eu queria fazer a garota que vou pedir em namoro feliz, penso em
responder, mas ele me xingaria aos berros, então me limito a tomar uma
ducha no vestiário e colocar minha roupa de treino.
Bradley Butler já não é um cara calmo, em dias de finais eu sinto que
ele realmente considera perder seu réu primário conosco.
Meus ouvidos estão zunindo e eu sinto que já transpirei toda água do
meu corpo quando altero o olhar entre o marcador e o meu treinador. Jogar
uma final contra Princeton e seu trio do inferno já é algo que eu considero
eletrizante, fazer isso na nossa arena, com a torcida dos Lions em peso
cantando sem parar e fazendo o chão sob os meus pés tremer foi como elevar
a sensação a milhão.
No placar, tudo igual, 104 x 104.
No cronômetro, 16 segundos.
Dezesseis dolorosos segundos, é tudo o que nos separa da taça geral
da liga, da medalha de primeiro lugar e do fim do meu mandato como
capitão do time que se tornou a minha família.
Troy Bolton, eu te entendo pra caralho. Dezesseis segundos nunca
me pareceram tão desesperadores.
E para piorar tudo, além das duas maiores e mais apaixonadas
torcidas do basquete universitário, as arquibancadas também estão cheias de
olheiros dos times profissionais. Uma infinidade absurda deles, por todo
canto. Cada segundo aqui dentro é também uma oportunidade que pode
mudar a vida de vários desses caras dentro de quadra. Uma pressão do
caralho, que eu estou sentindo esmagar meus ombros sem a menor piedade.
— É o seguinte, prestem atenção aqui, porra! — Butler grita, atraindo
a atenção de todos os jogadores para a sua prancheta. — Quando aquele
maldito apito soar, vocês vão ter um único foco: ganhar tempo e abrir o
caminho para a cesta. Harris, eu quero que você enterre a bola tão forte
naquele aro que aquele Tigre desgraçado vai sair daqui sem conseguir andar,
você me entendeu?
— Sim — sopro, engolindo seco.
— Me desculpe, eu não ouvi direito. Você me entendeu?
— Sim, senhor! — digo, firme, controlando minha respiração e
tentando não ter um AVC antes mesmo de voltar para a quadra.
— Ótimo, porque eu não admito que aqueles filhos da puta
comemorem uma vitória sequer dentro da nossa casa. Nenhum deles merece
tanto esse título como vocês, nenhum! Então não permitam que tirem de nós a
coisa pela qual trabalhamos tão duro. Vocês foram o melhor elenco da
história da Irving, lembrem-se disso quando estiverem naquela quadra:
ninguém nunca chegou aos pés desse time, e não são uns gatinhos de rinha
que vão tirar o título que é de vocês por direito. Fui claro?
— Sim, senhor — gritamos, em uníssono.
— Certo, agora vão lá, se divirtam, mas mostrem para eles porque o
Eros usa a porra de uma coroa.
Nós nos abraçamos, e eu e os caras vamos para perto da mureta da
arquibancada, onde a bateria da torcida está posicionada. Formamos uma
meia lua para que a torcida possa fazer o grito de guerra junto conosco.
Todos estão atentos ao meu sinal, e ao longe consigo ver Amelie vestida com
uma das minhas camisetas de jogo. Ela, Megan, Annelise e Lily estão
abraçadas e gritam feito loucas.
— No três, como ensaiamos! — grito. — Um… Dois… Três!
— A IRVING É FODA! A IRVING É FODA! DIS-PO-SI-ÇÃO, VEM
COM A TORCIDA DO LEÃO! — berramos tão alto que o chão treme.
A bateria retumba e a torcida vai à loucura. É completamente insano
e, coincidentemente, enquanto caminho até a minha posição, compreendo o
que Lambrock disse em seu e-mail mais cedo. Eu amo o jornalismo, e é a
profissão que eu quero seguir, mas ela só vai fazer sentido por completo se o
basquete estiver junto.
Não tem escapatória, eu amo pra caralho esse esporte.
Quando o apito soa, minha cabeça está completamente vazia e meu
coração pulsa freneticamente. Charles e Elói trocam passes menos
arriscados, Cory bloqueia os marcadores e quando a bola chega nas minhas
mãos, somos eu, Tyler Mansen e a cesta.
Corremos juntos e a bola alterna entre nós, quico-a por meio segundo,
conferindo o marcador que já está quase no limite. Estou cara a cara com a
cesta, prestes a marcar o ponto que pode consagrar nossa vitória e a minha
trajetória como capitão quando vejo, de soslaio, que Tyler está ao meu lado
e sem marcação. Tudo acontece num piscar de olhos.
— É sua — aviso, antes de arremessar a bola para o alto.
Por sorte, Tyler pensa rápido e pula, fazendo uma enterrada linda um
segundo antes do marcador zerar.
Vencemos.
Seus pés mal tocam o chão e eu já estou envolvendo meu melhor
amigo em um abraço apertado enquanto ouço a torcida ir à loucura.
— Você ficou maluco? — meu amigo grita no meu ouvido. A voz
embargada denuncia que está prestes a chorar.
— Eu não, mas os olheiros da NBA com certeza sim. Prepare seu
terno mais bonito para o draft, irmão — falo, rindo, e ele se afasta para me
encarar.
Ele sabe o que eu fiz. Nós dois sabemos. Eu teria feito a cesta se
quisesse, mas Tyler me conhece bem o suficiente para saber que não almejo
a glória pela glória. A minha maior vitória, como capitão e como melhor
amigo, é vê-lo conquistar seus sonhos. E eu espero ter conseguido ajudar,
nem que seja um pouco.
— Você não existe, cara. É sério, eu te amo pra cacete.
Não tenho tempo de responder porque somos esmagados pelos outros
jogadores e pelo nosso treinador, que nos abraçam e nos enchem de tapas
enquanto o grito de “É CAMPEÃO” toma a arena.
— Gente, é agora ou nunca — aviso aos meus companheiros de time
quando a euforia inicial começa a passar.
Nós nos afastamos e, enquanto eu seco o suor que pinga do meu rosto
com uma toalha, Charles e Elói convencem o mestre de cerimônias da liga a
me ceder o microfone para uma questão de vida ou morte. O restante do time
organiza a torcida para abrir um corredor na arquibancada que leve até
Amelie, e quando estou sozinho no centro da quadra, com o microfone em
mãos, a arena John Jay inteira para por um minuto para me ouvir.
— Boa tarde… Eu não tenho ideia de como introduzir essa conversa.
Esse é facilmente um dos dias mais felizes da minha vida, e eu queria
agradecer a toda a torcida, à nossa equipe técnica, companheiros e irmãos de
time. Bradley Butler, você é o cara mais foda dessa universidade, obrigado
por acreditar em mim e por me confiar essa braçadeira… Enfim, hoje é um
dia feliz pra caralho, a Irving está em festa, mas tem uma pessoa específica,
nessa arquibancada, que meses atrás se vocês me dissessem que ela estaria
aqui hoje, eu diria que é mentira…
Puxo uma longa respiração e caminho até a mureta que nos separa da
torcida. Sigo com os olhos o caminho que foi aberto e vejo que Amelie já
está chorando enquanto balança freneticamente a cabeça em negação.
— Mas, para a minha felicidade, não é mentira. Ela está mesmo aqui,
por mim. Ela detesta basquete, mas está aqui e está usando uma das minhas
camisas, gritou o meu nome o jogo inteiro e sei que está feliz com essa
vitória. A real, Amelie Castillo, é que a sensação de vitória que eu sinto
cada vez que você diz que me ama, faz essa taça parecer um copinho. Então,
para não perder o costume… — Sorrio antes de arrancar um pé do meu tênis
que ela pintou.
Levo o calçado até a orelha e, entregue às lágrimas, ela faz um sinal
de telefone com as mãos. Megan segura um microfone na sua frente, e em
alguns segundos, sua voz de choro ecoa por toda a arena:
— Alô?
— Foi pra você, essa e todas as outras vitórias que vierem na minha
vida. Eu prometo. E sabendo disso, Amelie Castillo, você me daria a honra
de aceitar ser a minha namorada? — falo, com a voz trêmula, e não há uma
pessoa na arquibancada que não esteja gritando.
Amelie desce correndo até a mureta e, com a ajuda dos jogadores do
time, ela pula para dentro da quadra e corre na minha direção, se atirando
nos meus braços.
— Aceito.
Uma palavra. Seis letras.
Não há mais nada que me impeça de beijá-la, e é isso que eu faço.
Tomo seus lábios com paixão e sede enquanto ouço a torcida ao nosso redor
gritar e aplaudir. Minha língua saboreia a sua com delicadeza e eu sinto que
atingi o ápice da minha felicidade.
Nada no mundo vai conseguir superar isso.
Eu me apaixonei por Amelie Castillo, seus vestidos floridos, seu mau
humor inerente e seu gosto quase questionável por High School Musical. Me
apaixonei pela garota que é forte para segurar as mais pesadas barras que a
vida traz, mas que também é sensível e busca abrigo nos meus braços quando
se sente vulnerável demais para lidar com o mundo.
Me apaixonei pela garota que pintou margaridas no meu tênis, colore
quadros lindos que enfeitam o meu quarto e que já é, certamente, uma das
maiores jornalistas que esse país vai ver. Me apaixonei por ela por
completo, e sei que ainda vou me apaixonar tantas outras vezes por cada
parte nova dela que aparecer.
E, sinceramente, não consigo imaginar como não me apaixonar por
Amelie Castillo. Ela é um acontecimento.
E que sorte a minha.
“Porque tudo em mim
Ama tudo em você
Ama suas curvas e todos os seus limites
Todas as suas perfeitas imperfeições
Dê tudo de você para mim
Eu te darei meu tudo
Você é o meu fim e meu começo”
ALL OF ME | John Legend

02 de Abril de 2022

Eu me lembro de uma época, por volta dos meus quatorze anos, em


que o meu passatempo predileto era contemplar o amor dos meus pais.
Parece bobo, mas eu adorava ficar sentado no corredor, observando-os na
sala quando o papai conversava com a barriga da mamãe contando sobre o
seu dia para uma Angeline que ainda se preparava para vir ao mundo.
Acho que por ter crescido vendo como Patrick amava Anastasia
principalmente nos pequenos gestos, acabei adquirindo essa característica
de prestar atenção aos mínimos detalhes das pessoas que eu amo. Papai
sempre disse que “para amar, é necessário ter olhos de ver e ouvidos de
escutar”, que são esses infinitos pormenores que fazem toda a diferença, e eu
nunca me esqueci disso.
Ao longo do tempo, eu fui me esquecendo de muitas coisas sobre a
minha mãe, do som da sua voz, do seu cheiro, da maciez do seu toque, do
tom da sua risada, e esquecer dessas coisas foi como tomar um enorme soco
na boca do estômago. Mas se tem uma coisa sobre ela que eu nunca me
esqueci, é do brilho nos seus olhos toda vez que falava sobre o papai, era
mágico.
E foi esse o tipo de amor que por muito tempo eu almejei. Sempre
pensei que o dia que eu encontrasse alguém, eu gostaria de viver um amor
como o dos meus pais, um que nem mesmo a morte foi capaz de apagar. O
que eu não fazia ideia é que viver esse sentimento conseguia superar de
todas as formas a sensação de só admirá-lo.
Mãe, agora eu entendo o brilho nos seus olhos, amar é bom pra
caralho.
— Estou nervosa — Amelie confessa, baixinho, ao meu lado.
Beijo sua têmpora e firmo o aperto dos meus dedos em sua mão,
tranquilizando-a. Hoje é a véspera do seu aniversário e também o dia da
inauguração da Fleur d'avril, a floricultura que ela montou para sua mãe. No
entanto, o que está mesmo deixando-a inquieta é o fato de que estamos de pé,
parados na frente da concessionária, esperando chegarem com o seu mais
novo carro, seu primeiro bem adquirido cem por cento com o suor do seu
trabalho.
Há um bom tempo Amelie já juntava dinheiro para esta finalidade, e
com os primeiros salários do estágio entrando em sua conta, ela enfim
conseguiu grana o suficiente para comprar um carro zero do jeitinho que ela
sempre quis. Cor, modelo, tamanho… Tudo ao seu gosto. E eu não poderia
estar mais orgulhoso.
Não só por ela ter se livrado daquela lata velha vermelha terrível,
que lhe rendia mais chateações e gastos do que qualquer outra coisa, mas
também porque sei o peso que isso tem para ela, sua independência
financeira e sua liberdade de não depender mais do desgraçado do seu pai.
Desde que Esteban Castillo foi preso, vi Amelie alcançar um grau de
tranquilidade completamente inédito. Saber que suas noites de sono são cada
vez mais tranquilas, por ter a certeza de que não vai acordar no dia seguinte
tendo que lidar com mais uma das manipulações do cara, fez com que o peso
de cem elefantes tenha saído dos meus ombros.
De verdade, vê-la bem e segura é uma das minhas maiores felicidades.
Saio da minha bolha pessoal de exaltação à minha namorada quando
ouço o som do motor se aproximando e vejo a Range Rover Evoque branca
dobrar a esquina e estacionar bem diante de nós. É um carro bonito pra
cacete, robusto e alto, do jeitinho que ela idealizou. Amelie me contou que
seu plano inicial era comprar a Range Rover Velar, o carro que por muito
tempo ela sonhou em ter, mas que até isso seu pai conseguiu estragar,
comprando o mesmo modelo.
E se tem algo que a “nova Amelie” definitivamente não quer, é
qualquer coisa minimamente parecida com o pai. Nem mesmo o sobrenome,
parte que ela retirou logo após o anúncio da sua condenação.
— Sua chave e seus documentos, Senhorita Morgan — o atendente da
concessionária fala, entregando uma pasta e o controle que destranca o
carro. — Desejamos que seja muito feliz com a sua compra, e qualquer
problema, não hesite em entrar em contato conosco.
— Muito obrigada! — ela agradece eufórica, pegando os artigos com
os olhinhos brilhando em empolgação.
Fofa pra cacete.
Caminhamos juntos até o veículo e eu assisto, ligeiramente
emocionado, enquanto ela passa as pontas dos dedos pela lataria e encara
sua nova aquisição com adoração. Solto uma risada alta quando ela se
debruça sobre o capô, abraçando o carro e dizendo que eles “ainda vão
viver coisas incríveis juntos”. É bonito demais ver a sua felicidade, e eu me
sinto verdadeiramente honrado de poder presenciar sua conquista. Amelie
merece isso e muito mais.
— Não é linda? — ela pergunta, falando da Range Rover, quando
ainda estou perdido na beleza do seu rosto exalando alegria.
— Muito linda. — Não estou falando do carro, mas ela não parece
notar porque está entretida demais.
Vou em sua direção e a envolvo em um abraço, deixando um longo
beijo em sua cabeça.
— Parabéns, Coelhinha, estou muito orgulhoso.
Ela apoia o queixo em meu peito e me encara com um sorriso do
tamanho do mundo.
— Não faz ideia de como eu estou feliz de estarmos vivendo isso
juntos.
Ah, amor, eu faço sim.
— Tenho uma coisa pra você — digo, tateando meu bolso e puxando
um pequeno saquinho de veludo. — Meu presente para o seu carro novo.
Coloco o saquinho sobre a sua palma e incentivo-a a abrir. Amelie me
olha desconfiada, mas puxa o laço e derrama o conteúdo do embrulho sobre
a mão, soltando um gritinho feliz ao encarar o pequeno chaveiro prateado.
— “Dirija com cuidado, eu preciso de você comigo.” — Ela lê em
voz alta os dizeres do chaveiro e me olha com amor.
— Gostou?
— Eu adorei. Você, Ethan Harris, é a droga do namorado mais fofo da
face da Terra — ela fala com uma voz engraçada, apertando minhas
bochechas e me fazendo rir.
— Por você, eu me esforço — brinco e ela fica na ponta dos pés para
me dar um beijo suave.
— Obrigada por isso, é muito importante para mim — sopra contra os
meus lábios.
— Você é importante para mim, Amelie Morgan. Nunca se esqueça
disso.
— Não vou — ela me assegura, e nós nos encaramos pelo que julgo
ser uma pequena eternidade. — Agora, vamos? Mamãe vai nos matar se nos
atrasarmos para a inauguração. Está animado para ser o primeiro passageiro
do meu carro novo?
— Com certeza!
Abro a porta do motorista para que ela entre, fazendo uma reverência
exagerada que lhe arranca uma gargalhada, antes de me sentar ao seu lado,
no banco do carona. O cheiro de estofado novo não demora muito para ceder
espaço para perfume de baunilha inconfundível da garota, e enquanto eu a
observo dirigir, penso que, enfim, estou vivendo o amor que tanto gostava de
apreciar, e nossa, é muito bom.
A floricultura charmosa foi reformada numa estética parisiense e fica
na rua de trás do apartamento onde minha sogra vive em Chelsea, um bairro
extremamente tranquilo e residencial. Fomos os últimos a chegar, e depois
de exibir seu novo brinquedinho para sua mãe, Amelie, Virgínia e eu
caminhamos para a porta do estabelecimento, onde nossos amigos e família
estão reunidos.
Meu pai e a mãe de Amelie foram apresentados em um jantar alguns
dias depois de assumirmos nosso namoro diante de uma Arena John Jay
lotada. Por uma enorme felicidade do destino, Patrick e Virgínia se deram
incrivelmente bem, e hoje em dia cultivam uma amizade pra lá de especial.
Inclusive, papai foi quem a ajudou com a parte administrativa da
floricultura, encontrar fornecedores, organizar orçamento, contratar
funcionários e todo esse lance que envolve ter uma pequena empresa.
Vejo pelo semblante de Amelie o quão feliz ela está de ter tantas
pessoas queridas reunidas num momento tão especial. Tyler, Megan,
Annelise, Lily, Elói, Charles, Tia Suzy, Esther, Angeline e até mesmo os
caras do time de basquete, estão todos aqui para prestigiar ela e Virgínia
nesse novo passo. Há também duas amigas de Virgínia, uma das médicas que
cuidou dela em sua reabilitação, Alfred e Madelyn, os ex-funcionários da
família, e a enfermeira que acompanha seu tratamento.
— Bom, eu acho que antes de entrarmos, a dona da loja tem que fazer
um discurso — minha namorada instiga, entregando a tesoura para a mãe
cortar a fita rosa que está na porta.
Virgínia ri, envergonhada, parando no centro da meia lua que
formamos na calçada.
— Bom, em primeiro lugar, boa tarde! — ela cumprimenta, e nós
respondemos em coro. — Hoje é um dia muito especial para mim, o começo
de uma nova fase que esperei muito para viver, e eu não poderia estar mais
feliz. Eu gostaria de agradecer, primeiro de tudo, à minha filha, minha flor de
abril que amanhã completa vinte e três anos. Amelie, a mamãe não seria
nada sem você. Sabe disso, não sabe?
Amelie, ao meu lado, assente freneticamente com a cabeça e sibila um
“eu te amo” mandando um beijinho no ar para a mãe. Abraço-a de lado e ela
tomba a cabeça em meu peito, respirando fundo.
— Em segundo lugar, quero agradecer aos meus médicos,
representados hoje pela doutora Powell, por cuidarem para que o meu
tratamento fosse o mais confortável possível para mim. Gostaria de
agradecer também à esse bonitão aqui — fala apontando para mim, e eu
sorrio, tímido. — Você é um menino de ouro, querido. Minha filha tem muita
sorte de ter alguém como você por perto, e eu espero que você tenha ciência
de que tem uma preciosidade em seus braços.
— Eu sei disso. — Sorrio gentilmente. — E eu é quem agradeço, é
uma honra ser parte da família de vocês.
Minha resposta vem acompanhada de gritos e assobios dos meus
amigos, e eu me encolho, sentindo Amelie me abraçar com força.
— Por último, mas não menos importante, quero agradecer a presença
de todos vocês. É muito bom saber o quanto minha filha é querida e amada, e
o quanto vocês fazem de tudo para vê-la feliz, não tem nada mais especial
para uma mãe do que isso. Enfim, sejam muito bem vindos à Fleur d'avril,
sintam-se à vontade!
Virgínia corta a fita e abre a porta, recebendo aplausos de todos os
presentes. Observo feliz quando Amelie se afasta, e juntas, elas dão as mãos
e entram com o pé direito no lugar que simboliza, dentre muitas coisas, a
reconstrução de uma relação que passou por altos e baixos até se estabelecer
dentro dos limites do amor.
Preciso fazer um esforço gigantesco para não chorar, porque porra, sou
o cara mais feliz do mundo vendo a minha garota conquistar tudo que sempre
sonhou, e sou sortudo pra caralho por ela ter me escolhido para compartilhar
essas conquistas.
No fim das contas, sinto que a vida foi a nossa melhor amiga ao nos
colocar em tempo integral nas rotinas um do outro. Aprender sobre quem é
a Amelie que eu via todos os dias, mas mal conhecia, fez com que eu
entendesse um pouco melhor sobre quem eu sou e sobre quem eu queria ser
para as pessoas ao meu redor.
Não é como se ela tivesse me mudado, mas como já disse, Amelie é
um acontecimento, ela não só passa meramente pela sua vida, ela vibra,
movimenta, e te faz ver tudo sob novos ângulos. É o tipo de pessoa que te
divide em antes e depois, porque é impossível continuar o mesmo após ser
impactado pela sua forma tão singular de encarar a vida.
Foi com ela que eu aprendi a me permitir ser protegido. Depois de
tanto tempo servindo apenas de abrigo, foi ela quem me mostrou o quão bom
e libertador é poder sentir sem medo, e é com ela que eu aprendo, dia após
dia, sobre a mágica beleza de se construir uma vida em par.
Ela me fez ter vontade de compartilhar o amor que aprendi com os
meus pais.
E se ela pudesse ler meus pensamentos agora, gostaria que soubesse
que: todas as histórias de amor me lembram dela, mas nenhuma chega aos
pés de exemplificar o efeito que ela causou ao tocar meu coração.
Ele já pertencia a ela antes mesmo dela conquistar todo o resto.
E essa é só uma das milhares de coisinhas que me fazem amá-la ainda
mais.
“Eu ainda sinto, amor, e sei que nunca vou parar de sentir” é o que
eu sopro baixinho em seu ouvido naquele mesmo dia, quando ela descansa
nos meus braços e eu acompanho o relógio bater meia noite, anunciando a
chegada do seu aniversário.
O primeiro de muitos que ainda passaremos juntos.
— Sabe dizer quando se apaixonou?
Amelie pergunta aleatoriamente.
— Você se lembra de quando nos conhecemos? — pergunto, mesmo
que já imaginando a resposta.
— Foi junto com o restante da turma, não foi? Naquela apresentação
que fizeram no primeiro dia de aula? — questiona, incerta, suas
sobrancelhas estão unidas e ela parece um tanto confusa.
Solto uma risada fraca porque é tão cômico perceber que eu guardo em
minha mente todos os mínimos detalhes sobre ela há tanto tempo e, ainda
assim, demorei muito para assumir para mim mesmo o que sentia.
— Na verdade, não. Foi no primeiro dia de aula, nisso você está certa,
mas foi antes da apresentação da turma. Você chegou junto comigo na
faculdade naquele dia. Fui eu quem abri a porta do auditório para você, se
lembra?
A garota fecha os olhos e murmura algumas coisas que não entendo,
parece estar refazendo seus passos daquele dia, e como num estalo, seus
olhos se abrem arregalados e ela me encara boquiaberta.
— Meu Deus! É verdade! Nós caminhamos juntos até a arquibancada,
eu me lembro disso!
— Sim — digo, balançando a cabeça em afirmação. — E eu acho que
gosto de você desde aquele dia… — confesso, baixinho, o suficiente para
que ela escute.
— Okay, isso é fofo, mas não tem como ser exatamente verdade. —
Amelie passa os dedos pelo meu rosto e pousa em minhas bochechas.
Inconscientemente me inclino para o seu toque.
— Estou falando sério. Enquanto passamos por aquele corredor e você
me dizia o quanto estava ansiosa pelos próximos anos da graduação, seus
olhos brilhavam tanto e refletiam tanto amor que eu podia jurar que todos os
sonhos do mundo estavam aprisionados neles. Eu só tinha dezenove anos, e
sentir tanto afeto por uma desconhecida me pareceu tão inusitado que fiquei
assustado — digo com franqueza. — Mas ainda assim, eu passei aquela
semana inteira entrando e saindo de auditórios rezando para que fizéssemos
a maioria das aulas juntos.
Eu jurei que jamais confessaria isso em voz alta, mas quem se
importa?
— E eu sempre gostei de sentar na frente porque me ajuda na
concentração, você sabe disso, mas tinha dias que eu sentava atrás só pra
poder olhar um pouco mais para você e, porra, eu acho que fico te olhando
com essa cara besta de devoção desde sempre…
— Ethan… — ela me interrompe, e é só então que percebo as
lágrimas se acumulando no canto dos seus olhos. Limpo-as com o polegar e
prossigo, libertando tudo que ainda tenho preso no meu coração.
— Depois de um tempo, a gente foi seguindo rumos opostos, e eu me
lembro de quando tudo desandou também. Foi numa prova de Estatística, que
foi difícil feito o inferno, você foi um pouco mal e eu gabaritei, me lembro
de você ter me perguntado como eu tinha conseguido e eu, tonto e imaturo,
fui querer te impressionar dizendo que nem tinha estudado tanto. O que era
uma puta mentira, porque eu virei noites fazendo exercícios, sou péssimo em
exatas…
— Nossa, eu fiquei furiosa naquele dia. Achei um absurdo — ela
comenta, rindo.
— Corrigindo, amor, você ficou furiosa pra sempre.
— Ei! Não é verdade! — Ela ri e empurra meu ombro.
— É sim! Dali em diante você me evitou e engatamos naquela
competição idiota que, aos poucos, foi me fazendo esquecer daquele
sentimento das primeiras semanas de aula. E foi por esquecer dele que foi
tão fácil detestar você. Era cômodo para mim, e muito melhor do que aceitar
o fato de que a garota por quem fiquei vidrado não queria nada comigo. —
Solto um suspiro cansado e deixo um beijo em seu rosto. — Mas a verdade é
que hoje eu sinto que a raiva que eu dizia sentir por você era, na verdade,
frustração, porque eu sempre reconheci a mulher que você é, e eu queria que
você estivesse comigo. Então, respondendo à sua pergunta: como eu me
apaixonei por você? Honestamente, eu não sei se teve algum dia, desde que
nos conhecemos, que eu não fosse mil por cento rendido, bobo e
irrevogavelmente apaixonado por você. Eu só aprendi a te amar, porque o
nosso amor foi construído por nós dois bem devagarzinho, mas a paixão
existe há um bom tempo.
Meu coração está batendo feito louco, como sempre acontece quando
tento lhe dizer o que sinto, e eu acho que facilmente posso morrer de tanto
amá-la.
Amelie é uma das partes mais preciosas da minha vida, e eu sei que
sou o filho da puta mais sortudo do planeta por, mesmo com tantas burradas,
conseguir ter o amor dessa garota. Amar alguém da forma que eu a amo e ser
correspondido é como ganhar na loteria da vida. Você simplesmente
conquista a coisa mais importante do mundo.
— Eu amo nós dois — ela diz, roçando seu nariz no meu e acariciando
meu pescoço.
— Eu amo nós dois, e amo você o suficiente para passar por tudo de
novo, se fosse preciso. Se estivermos juntos no final, eu faço sem pensar
duas vezes.
“E o tempo todo eu acreditei que encontraria você
O tempo trouxe o seu coração para mim
Eu te amei por mil anos
Eu te amarei por mais mil”
A THOUSAND YEARS | Christina Perri

28 de Julho de 2022
— Essa foi a última — aviso, soltando um suspiro cansado.
Desço a escada de metal, apoiando minhas mãos na lateral, e quando
meus pés tocam o chão, dou alguns passos para trás para apreciar meu feito.
— Bom trabalho, amor — Ethan fala no meu ouvido, beijando a pele
da minha nuca que está exposta pelo meu cabelo preso.
Viro-me de frente para ele e sorrio, pegando uma das taças da sua
mão e deixando um beijo rápido em seus lábios.
— Ao nosso novo lar — diz, erguendo a sua taça.
— E a todas as memórias que vamos construir aqui — completo,
brindando.
Tomamos um gole em silêncio, nos encarando por cima da borda de
vidro, mas quando ele afasta a taça da boca e eu vejo seus lábios
avermelhados pela bebida, não resisto à tentação de me aninhar em seus
braços.
Ethan e eu estamos namorando há exatos seis meses e seis dias, e
hoje, depois de tudo que nos trouxe até aqui, estamos prestes a passar nossa
primeira noite no nosso primeiro apartamento.
Tyler e Megan se mudaram para Chicago na semana passada, e estão
morando com Bruce, o bulldogue, em um loft lindo que Ted e Joscelyn
alugaram para eles. Nossos amigos até tentaram negar a oferta, mas no fim,
chegaram ao consenso dos pais de Tyler arcarem com os custos pelos
primeiros meses, até que eles se estabilizem com seus empregos e consigam
se manter sozinhos.
Mansen começa a treinar com a equipe no próximo mês e sua
contratação já é uma das notícias mais comentadas do mundinho do basquete.
Megan conseguiu passar na prova de residência para cirurgia geral em um
hospital grande de Chicago, e já vai começar a trabalhar em alguns dias.
Com a ida da minha amiga somada ao fato de eu estar recebendo bem
no estágio do The Politician, achei que não fazia mais sentido continuar no
alojamento da faculdade e ter que dividi-lo com uma desconhecida. Por isso,
comecei a procurar um lugar para morar.
E foi nesse meio tempo que a oportunidade perfeita surgiu.
Depois da ida ao México, Annelise e Lily resolveram tirar um
semestre sabático e juntaram todas as suas economias para passarem os
próximos meses viajando. As duas pousam amanhã na Austrália, onde irão
iniciar sua aventura, e com isso, Ethan ficaria sozinho no apartamento que
ele e os irmãos Mansen dividiam.
Acabamos juntando o útil ao agradável, tendo em vista que meu
namorado já planejava morar sozinho depois da ida de Tyler. Em duas
semanas conseguimos encontrar um apê charmoso perto da faculdade e dos
nossos respectivos estágios, e hoje finalmente concretizamos nossa mudança.
Ainda precisamos comprar algumas coisas, mas a cortina da sala, que
por acaso acabei de instalar, e a cama de casal do nosso quarto, já estão
prontinhas para serem usadas. Mamãe nos presenteou com um sofá e um rack
para a sala, que chegam na próxima semana. Patrick e Suzy nos deram um
armário para o nosso quarto e uma área de trabalho para o escritório que
pretendemos montar no outro quarto do apartamento.
Nossa cozinha ainda se resume a um cooler cheio de garrafas d'água,
vinho e cerveja, e o nosso fogão, no momento, é uma torradeira. Pelos
próximos dias, vamos nos alimentar de delivery, até recebermos nossos
salários e começarmos a ajeitar tudo. E assim, pouco a pouco, esse lugar vai
se tornando o nosso lar.
Confesso que ainda é louco pensar que estamos mesmo no nosso
apartamento, no lugar onde vou dormir e acordar todos os dias nos braços do
cara que eu amo, onde vamos construir nossas memórias, aprender novas
receitas, decorar do nosso jeitinho, receber as pessoas que amamos e fazer
mais uma infinidade de coisas que ainda vamos descobrir.
Eu queria muito saber o que a Amelie do passado diria se soubesse
que, anos depois, estaria morando sob o mesmo teto que Ethan Harris por
livre e espontânea vontade. É sempre engraçado pensar nisso.
Mas de uma coisa eu tenho certeza, a Amelie de agora está muito,
muito feliz.
— De qual planeta vou precisar resgatar seus pensamentos? — Ethan
pergunta, doce, colocando nossas taças sobre a escada de metal e me
puxando em direção ao balcão que separa a sala da cozinha.
— Estava pensando que ainda não acredito que é a nossa primeira
noite morando juntos — confesso, me sentando sobre o mármore gelado da
bancada e envolvendo sua cintura com as pernas.
— Pensando em desistir? — Ele ergue a sobrancelha, e eu reviro os
olhos.
Levo minhas mãos até sua nuca e puxo seu rosto de encontro ao meu,
ficando a poucos centímetros da sua boca.
— Nunca — sussurro contra os seus lábios.
— Que bom, porque eu já sei por onde vamos começar a batizar cada
cômodo desse lugar.
— Sabe, é? — Arranho a pele do seu peito, descendo sem destino.
Ethan está sem camisa, me dando acesso total ao seu abdômen.
E não sei que espécie de magia esse cara tem, mas eu juro que
qualquer partícula de cansaço pós-mudança existente no meu corpo evapora
no instante em que ele menciona suas pretensões de inaugurar nosso
apartamento em grande estilo.
— Acho essa bancada uma ideia excelente, e você? — Ele me oferece
um sorriso safado, e se inclina sobre mim, forçando-me a apoiar meu peso
em meus cotovelos.
Encaro, de soslaio, o mármore brilhando, e minha mente é metralhada
por uma enxurrada de coisas completamente pervertidas que Ethan pode
fazer comigo sobre ele. Quando miro novamente seu rosto, seu olhar já está
dominado por aquele brilho que conheço bem: o de que está me imaginando
sem roupa.
— Não sei não, eu estava ansiosa para estrear a banheira, acho que
você vai ter que me convencer de que vale à pena — provoco, esticando o
pescoço para capturar seu lábio com os dentes.
— Eu já estava contando com isso.
Ethan ri e me empurra de leve, para que eu me deite sobre o balcão,
mas assim que minhas costas tocam o mármore frio, o barulho estridente de
vidro se espatifando no chão soa bem atrás de mim. Ergo o corpo assustada,
e vejo que a vítima foi um copo, que provavelmente estava perto da beirada.
— Merda, o chão estava limpinho, dei a minha vida esfregando —
Ethan choraminga e me abraça, enterrando o rosto em meu peito. — Era o
nosso único copo de vidro, agora só temos nossas canecas da faculdade e
copos de festa.
Solto uma gargalhada alta porque, sinceramente, nada é tão Amelie e
Ethan quanto isso.
— Pare de rir, agora nossa cozinha está cheia de caquinhos de vidro
assassinos!
Eu juro que tento, mas não consigo. Meu corpo treme conforme as
risadas irrompem em minha garganta e eu abraço Ethan com carinho,
falhando miseravelmente na missão de consolá-lo por sua faxina impecável
não ter durado nem meia hora.
— Eu limpo pra você, amor. Vai tirar essa roupa e me espera na
banheira, sim? — falo, pulando para fora da bancada.
Pego uma das vassouras e, no mesmo instante em que começo a varrer,
Ethan faz o mesmo.
— Varremos juntos e depois vamos para a banheira, que tal? —
sugere, parando ao meu lado, ainda com o olhar concentrado nos pedacinhos
de vidro espalhados pelo chão.
— Acho sua ideia excelente. — Sorrio e deixo um beijo estalado em
sua bochecha. — Eu amo você.
— Eu também amo você, Coelhinha — diz, voltando a prestar
atenção em meu rosto e me oferecendo um sorriso iluminado.
Preciso admitir, aprendi a amar esse apelido. Amar mesmo.
— Feliz primeira noite na casa nova, Capitão — falo baixinho antes
de deixar um selinho em seus lábios.
— Feliz primeira noite na casa nova.
FIM.
“Você me deu asas e me fez voar
Você tocou minha mão, eu pude tocar o céu
Eu perdi minha fé, você devolveu-a pra mim
Você disse que estrela nenhuma estava fora de alcance”
BECAUSE YOU LOVED ME | Celine Dion

01 de Julho de 2022 - Nova Iorque

Meu coração parece prestes a explodir.


O Barclays Center, ginásio do time de basquete Brooklyn Nets, está
lotado, e enquanto eu e Ethan tentamos encontrar nossos assentos, preciso
fazer um esforço gigantesco para não começar a chorar de emoção.
Faltam poucos minutos para a cerimônia do draft da NBA começar, o
evento que pode ser a virada da vida de Tyler, e todos os nossos amigos
estão aqui para torcer por ele e prestigiá-lo.
Eu estou usando um vestido longo preto com uma manga longa
unicamente no braço direito e escarpins igualmente pretos nos pés. Meu
cabelo está dividido ao meio e preso em um coque baixo. Ethan, ao meu
lado, está vestindo um terno todo preto, sem gravata e um tênis branco.
Seus cabelos caem em sua testa todas as vezes em que ele abaixa a
cabeça para conferir nossos assentos em seu celular, e ainda que eu seja
suspeita para falar, não posso deixar de pontuar como ele está lindo.
Ele é lindo. E a felicidade estampada em seu semblante o deixa ainda
melhor.
Avisto Megan, a duas mesas de distância, balançando o braço para
chamar nossa atenção. Caminhamos até lá, e depois de cumprimentar todos
os nossos amigos, meu namorado e eu nos sentamos nos lugares marcados
para nós.
Sinto quando ele se inclina em minha direção e deixa um beijo
demorado em minha bochecha, antes de puxar o ar devagar, inalando um
pouco do meu perfume. Ele está nervoso, todos nós estamos, e segundo o
próprio, meu cheiro o acalma. Afasto a cabeça e olho em seus olhos,
sorrindo, e tentando tranquilizá-lo através do olhar enquanto entrelaço
nossos dedos.
— Vai dar tudo certo, meu amor — digo, confiante.
— Sei que vai, só estou tenso — fala, sorrindo, antes de me dar um
beijo casto e, em seguida, levar os lábios até o meu ouvido. — Você é a
mulher mais linda nesse lugar. Que sorte a minha.
Me afasto ainda com um sorriso bobo tomando meu rosto e levo os
dedos até seus fios de cabelo, passando-os para trás e segurando a lateral do
seu rosto antes de dizer:
— Que sorte a nossa, então. Porque você também é o cara mais lindo
desse lugar.
— Vocês aí — Charles Brooks nos chama, interrompendo nosso
momento. — Parem agora de ser um casal tão bonito, está me deixando triste
por ser solteiro.
A mesa inteira gargalha, incluindo Joscelyn e Ted Mansen. Os pais de
Tyler e Annelise também estão na nossa mesa. O único que não está é o
próprio Tyler, que está sentado na mesa reservada para os jogadores
elegíveis da Irving junto com outros dois veteranos e a comissão técnica.
— Qual time vocês acham que pega ele? — Annelise pergunta,
parecendo ansiosa.
— Eu chutaria o Pacers, Indiana está necessitado de um bom ala e já
estão de olho no Tyler tem tempos — Elói responde.
— O Orlando Magic está atrás de um também, a defesa deles na
conferência passada era uma merda — Ethan diz. — Tinha um olheiro deles
na nossa final.
— Para qual time ele torce? — pergunto.
— Chicago Bulls — Meg dispara. — Acho que ele até infarta se é
escolhido pelo time do coração.
— Seria incrível — Lily e eu falamos ao mesmo tempo.
Passamos um tempo conversando e dividindo sobre o quanto estamos
ansiosos, os pais do Tyler compartilham sobre o quanto ficaram apreensivos
a princípio quando o filho decidiu que iria abdicar do curso de direito
faltando um ano para se formar, mas que agora tudo que eles desejam é que
Tyler alcance todos os seus sonhos e seja feliz fazendo o que ama.
Desde que conheci Joscelyn e ela me ajudou com as questões
envolvendo os meus pais, eu tive a certeza de que ela era uma mãezona. A
paixão avassaladora com que fala dos filhos e o orgulho que brilha em seus
olhos me fizeram ter a certeza de que, independentemente do caminho que
Tyler e Annelise escolham, tanto ela quanto Ted vão apoiá-los e ampará-los
para que conquistem tudo que querem.
Meu coração dispara quando o apresentador da cerimônia aparece no
palco e começa a explicar como funcionará todo o processo. Ethan explicou
por alto que o draft funciona em duas rodadas de trinta escolhas cada,
somando ao final da noite sessenta atletas escolhidos, e a ordem dos times é
determinada do que teve o pior até o melhor desempenho na última
temporada.
Essa noite, o primeiro time a escolher é o Oklahoma City, o jogador
draftado por eles é da Universidade do Texas. Todos nós aplaudimos quando
ele sobe ao palco, e nesse ritmo todas as trinta escolhas da primeira rodada
se passam.
Ethan já mexeu no cabelo milhares de vezes, Annelise já roeu todas
as unhas, e eu posso jurar que estou vendo lágrimas começando a se
acumular nos olhos de Megan. Fecho os olhos e respiro fundo, tentando
acalmar meu próprio nervosismo. No entanto, abro-os rapidamente quando o
Chicago Bulls é anunciado como a primeira escolha da segunda rodada.
Uma assistente de palco caminha até o púlpito onde o apresentador
está, e lhe entrega um envelope com a logo vermelha do time de Illinois. São
poucos segundos, que de repente parecem horas, enquanto o homem abre o
envelope e puxa o papel de dentro com o nome do escolhido.
Meu estômago se revira e eu sinto que estou prestes a colapsar
quando ele se aproxima do microfone e diz:
— Tyler Mansen, Universidade Irving de Nova Iorque.
Tudo parece um borrão.
Em um momento, estou sentada olhando para o palco, no outro, estou
de pé, abraçada com Megan e Ethan, gritando em plenos pulmões e
comemorando algo que já era um fato anunciado.
Tyler Mansen vai para a NBA.
Nos afastamos apenas para assisti-lo subir ao palco. Tyler está em
um terno Alexander McQueen branco que deve custar o preço do meu carro,
e seus olhos estão cheios de lágrimas quando o presidente do Bulls coloca o
boné do time em sua cabeça e lhe dá um abraço. Eles posam juntos para uma
foto, e nosso amigo se dirige ao púlpito, onde poderá dizer algumas
palavras.
— Boa noite a todos… Nossa! Que loucura! Eu confesso que estou
em choque — fala ofegante, e o ginásio inteiro ri. — Ser escolhido nesse
draft é uma honra, ser escolhido pelo time que torci por uma vida inteira é
ainda mais emocionante. Eu só tenho a agradecer! Agradeço aos meus pais
por estarem aqui hoje, à minha irmã Annelise por sempre me apoiar em tudo,
aos meus amigos Ethan, Charles e Elói por não me deixarem desistir disso, à
Lilian e Amelie, por serem namoradas incríveis para os meus irmãos e por
me amarem e me apoiarem.
Ele dá um sorriso e acena em direção a nossa mesa.
— Agradeço também ao meu treinador, Bradley Butler, vou levar seus
ensinamentos para o resto da vida. À toda a equipe técnica da Irving por me
ajudarem na conquista desse sonho. E por último, mas de forma alguma
menos importante, quero agradecer à Megan Eleonor Lewis, o grande amor
da minha vida, por não ter me deixado parar de sonhar. Sem você isso não
seria possível. Eu te amo com cada parte do meu corpo e da minha alma,
para sempre.
Aplausos ecoam por toda a arena e eu vejo minha amiga se
desmanchar em lágrimas enquanto Lily a ampara. Tyler desce do palco e
vem direto em nossa direção. Ele abraça os pais e a irmã, que parecem ainda
em choque, e eu vejo quando, discretamente, Ethan o entrega uma caixinha de
veludo vermelha que tirou do bolso.
Meu Deus do céu.
Mal tenho tempo de processar o que vi, porque no instante seguinte,
Tyler segura a mão da minha melhor amiga e se ajoelha diante dela,
segurando a caixinha que meu namorado deu para ele.
Puta que pariu. Isso está mesmo acontecendo.
— Eu ensaiei umas mil vezes tudo que eu queria te dizer agora, mas
confesso que não me lembro de mais nada, e eu acho que estava mais
nervoso para este momento do que para o draft em si — Tyler fala, rindo,
tomando uma longa respiração antes de prosseguir. — Megan Eleonor
Lewis, ao longo desse último ano você foi a melhor e mais incrível parceira
para mim. Nós dividimos a cama, os medos, as alegrias, cuidamos um do
outro e apoiamos nossos sonhos com afinco. Para mim seria uma grande
honra continuar dividindo todo o resto da minha vida com você… Por isso,
eu preciso perguntar…
Tyler finalmente abre a caixinha, revelando um anel de noivado com
um diamante brilhante em cima que me deixa com os olhos arregalados.
— Megan Lewis, você aceita se casar comigo?
Todos nós ofegamos juntos diante da cena. Meg mal consegue falar, as
lágrimas inundaram seu rosto e ela apenas assente com a cabeça antes de se
jogar nos braços de Tyler.
— Posso entender isso também como um sim para a mudança para
Chicago? — Mansen pergunta quando eles afastam o rosto para se olharem.
— É claro que sim! — ela fala com a voz embargada. — Para
Chicago e para qualquer outro lugar do mundo! Eu posso ser médica onde
quer que eu esteja, mas não posso ser plenamente feliz sem você.
Todos nós batemos palmas e assistimos minha amiga encher seu
namorado, agora noivo, de beijos e repetir o quanto o ama.
Ethan e eu nos entreolhamos. Ambos estamos com os olhos marejados,
felizes por nossos amigos e, certamente, com um filme se passando em
nossas mentes.
Há pouco mais de um ano, esses dois olhavam em nossos olhos e
confessavam estar apaixonados. Há um ano Tyler e Megan são Tyler e
Megan, há um ano Ethan e Amelie sofreram a maior reviravolta das suas
vidas.
É louco pensar como em um ano o amor desses dois gerou frutos e
culminou em outros amores. Ethan e eu só nos permitimos entrar na vida um
do outro por conta deles, Lily e Annelise só se conheceram por conta deles,
nosso grupo de amigos só é o que é, por conta deles.
Por conta de um amor, tantos outros passaram a existir, e para mim,
não há nada que represente mais a força desse sentimento do que a nossa
história. Amar é um ato de coragem, e diante de mim, eu vejo as duas
pessoas mais corajosas que já conheci.
Tyler Mansen e Megan Lewis.
Das quadras da Irving para uma vida inteira juntos.
Como todo amor deveria ser.
“Por que você me joga no caminho errado?
Por que você diz as coisas que diz?
Às vezes eu me pergunto como chegamos a esse ponto”
TRUE LOVE | Pink

15 de Fevereiro de 2019, Chicago - Illinois

As vaias ecoam pelo ginásio no instante em que a bola desce pela


cesta.
Miro o capitão do time adversário e sibilo um “cortesia dos
visitantes”. A fúria cintila em seus olhos e eu sorrio, percebendo que meu
plano está funcionando. Mike Davis, o capitão dos Bears, time de basquete
da Universidade Easton de Chicago, está prestes a ter um colapso de raiva e
eu não poderia estar mais feliz.
Jogar na arena dos adversários é sempre um verdadeiro tormento,
estar a 1.271km de casa só piora tudo. Estamos em menor número na torcida,
no placar, e nosso time é quase inteiramente composto por calouros, com
exceção do nosso capitão, Matt Jenner, e meu amigo, Tyler Mansen, que são
os únicos veteranos em quadra.
Ou seja, não existe um único fator para abalar a confiança do time
rival.
Por isso, invisto no que sei fazer de melhor: tirar as pessoas do
sério.
Não demora muito para que o árbitro indique que o primeiro tempo
chegou ao fim, fazendo com que eu e meus companheiros de time
caminhemos até o nosso banco. Assisto Butler passar algumas informações
para os caras enquanto viro a garrafa d’água em minha boca e molho um
pouco o meu rosto. Está um calor dos infernos dentro da arena.
Me distancio um pouco de onde o time descansa e apenas quico a
bola contra o chão repetidas vezes. É uma mania do ensino médio que ainda
não consegui largar, os jogos da liga escolar tem um tempo menor do que os
da liga universitária, e eu ainda estou me acostumando a aguentar o tranco.
Me manter em movimento ajuda.
Tenho um sobressalto, no entanto, quando a bola bate na ponta do meu
tênis e, ao invés de quicar para cima, ela avança para a frente. Ergo olhar e
vejo o exato momento que um homem a segura com uma mão só, antes que
ela tenha tempo de acertar seu rosto.
Merda.
— Tem sorte que meus reflexos estão em dia — fala, sério,
arremessando-a de volta para mim.
— Porra, foi mal aí, tio! — deixo escapar e aperto os lábios no
mesmo segundo, pois suas sobrancelhas se franzem em incômodo e percebo
que chamá-lo de "tio" não foi uma boa ideia. — Quer dizer... Foi mal aí...
Qual é o seu nome mesmo? — Coço a nuca e o vejo revirando os olhos.
— Ethan Roberts.
Meus olhos se arregalam e abro um sorriso gigante.
— Não acredito, cara! Que maneiro! Também me chamo Ethan! — Me
aproximo e estendo a mão. Ele a olha por uma fração de segundo e não
parece disposto a apertá-la. — Nossa…
Continuo com a mão estendida. Ele se rende, soltando um resmungo e,
por fim, me cumprimentando.
— Você não deveria estar com o seu time? — questiona, alternando o
olhar entre mim e restante dos Lions.
— Na verdade, não. Eles não estão falando nada demais e… Espera, o
que faz aqui na quadra? Só os membros da comissão técnica podem entrar!
Ethan rola os olhos mais uma vez, como se falar comigo estivesse
matando cada um dos seus neurônios.
— Sou da comissão técnica, mas os meus atletas são eles — explica,
apontando com o queixo na direção do grupo de cheerleaders de uniforme
vermelho e preto.
Ergo as sobrancelhas, surpreso, e então, me recordo de já tê-lo visto
na televisão.
— Acho o esporte de vocês muito foda, sério mesmo. Se eu tentar dar
uma cambalhota eu corro o risco de quebrar o pescoço e morrer — comento,
rindo, e ele ensaia uma risada, mas não chega a concluí-la. — Vem cá, você
não curte muito o lance da interação humana não, né?
Agora ele ri.
— Vocês, adolescentes, é que falam sem parar. É impossível
acompanhar — retruca, ainda rindo e, cacete, que cara bonito da porra.
— Adolescente não, cara, eu tenho dezenove — chio e ele me lança
um olhar como quem diz “dá no mesmo”. — Fala sério, não é como se você
fosse um velhote, tem o quê? Vinte e nove?
— Trinta e dois — corrige e eu solto um assobio.
— Caralho, tá inteiraço!
— Tá me chamando de velho? — Ergue a sobrancelha, me olhando
feio.
— Eu? Jamais! Tô elogiando sua beleza! — Brinco, dando batidinhas
no seu braço.
Ele ri e não precisa falar nada para que eu saiba que está me achando
pirado.
Desvio o olhar por alguns segundos para o outro lado da quadra de
onde Mike e uma líder de torcida nos encaram. Sorrio, porque ele me fuzila
com os olhos. Ainda está pilhado e, só por isso, faço um coração com as
mãos e lhe lanço uma piscada debochada.
Vejo-o bufar, e então, noto que a garota ao seu lado troca olhares com
alguém. Sigo sua mira até cair em Ethan Roberts, ao meu lado. Como quem
vai da água para o vinho, ele está com os braços cruzados e uma carranca
mal humorada enquanto observa a atleta ao lado de Mike.
— Acho que estou entendendo o que está rolando aqui, hein… — Ergo
as sobrancelhas, encarando-o.
Ethan me lança um olhar recriminatório, mas não tem tempo de dizer
nada, porque quando está prestes a abrir a boca, uma voz feminina estridente
corta o ar da arena. E ela vem direto da arquibancada dos Lions.
— Harris, seu ridículo, pare de provocar o outro time e comece a
fazer pontos! Suas brincadeiras não vão ganhar esse jogo, babaca!
Sempre tão doce.
Mando um beijo na direção da garota e vejo ela grunhir irritada,
fechando as mãos em punho ao lado do corpo. Sorrio diante da sua irritação
e balanço a cabeça de um lado para o outro antes de voltar a prestar atenção
no homem ao meu lado. Roberts me encara com um sorrisinho zombeteiro e
não perde tempo antes de perguntar:
— É a sua namorada?
— Quê? Não! Deus me livre! — Minha negativa não o convence,
porque ele ainda sorri de um jeito estranho. — Ela é uma caloura de
jornalismo, como eu, mas é uma patricinha metida a besta com excesso de
raiva.
— As esquentadas são as mais perigosas — ele solta, dando dois
tapinhas no meu ombro. — Foi bom conhecer você, pirralho. Agora preciso
falar com os meus atletas.
— Certo, foi bom conhecer você também, velhote — provoco, e ele ri.
— Se um dia estiver por Nova Iorque, a Irving joga em casa nos fins de
semana.
— Espero que quando eu for assistir vocês ganhem, porque hoje não
vai rolar, pelo visto.
Faço beicinho, fingindo tristeza, e nos despedimos com um
cumprimento másculo.
No fim das contas, Ethan estava certo. Nós acabamos levando a pior.

“Te passo as respostas da prova de segunda-feira ".


Foi a moeda de troca que Amelie usou comigo para que eu me
controlasse nas provocações no fim do jogo. Passei a última semana
alternando entre os treinos e a fisioterapia para o meu punho, que está se
recuperando de uma lesão, e mal tive tempo de estudar antes de viajarmos
para Chicago.
Longe de mim querer elogiá-la, mas ela é uma das mais inteligentes
da nossa turma, e não pensou duas vezes antes de usar essa cartada contra
mim. Na tentativa de salvar minha nota, reduzi as provocações com Mike
Davis e, como se já não fosse o bastante, me deixei ser arrastado para a festa
de comemoração da vitória dos nossos rivais.
Aparentemente, Amelie fez amizade com a garota que estava sentada
ao lado do capitão e agora estamos entrando na fraternidade do cara. Uma
casa imensa, anos luz mais luxuosa do que as da Irving, diga-se de passagem.
Bando de playboy filho da puta, penso, assim que passamos pela
porta.
— Vocês vieram!
A fala empolgada vem de uma garota alta, de pele negra, olhos
expressivos e um sorriso bêbado para lá de feliz, que reconheço como a
cheerleader que vi no jogo.
— Claro que sim! — Amelie responde, igualmente empolgada. —
Amiga, que mansão é essa? Caralho, eu nunca vi uma fraternidade desse
tamanho!
A atleta ri alto, puxando Amelie para um abraço antes de pousar seus
olhos sobre mim e os outros jogadores.
— Não vai me apresentar aos perdedores? — questiona com um
sorriso zombeteiro.
— Não somos perdedores — resmungo.
— Hoje vocês são, sim, nervosinho. — Ela se aproxima e deixa um
tapinha leve no meu ombro. — Se te consola, vocês fizeram um placar
surpreendente. É realmente difícil fazer pontos contra os Bears.
Rolo os olhos, soltando uma bufada estressada. Ter concordado em
estar aqui não significa que eu não esteja irritado pela derrota, porque eu
estou, pra caralho.
— Onde está o capitão? — Amelie pergunta, interessada, olhando ao
redor buscando por Mike Davis.
Não é possível.
— Além de tudo, você ainda quer se deitar com o inimigo, Castillo?
— reclamo, puto da vida.
— Cala a sua boca, babaca. Só quero parabenizá-lo por acabar com
você.
— Fazendo chacota do time da própria universidade por birra. Típico.
— Okaaaay! — a garota, que agora sei que se chama Raelynn porque
um cara passou a cumprimentando, bate palmas, encerrando o assunto. —
Vamos seguindo para o bar, pessoal!
Ela nos empurra para onde quer nos levar e enquanto caminhamos, eu
não me contenho.
— Entre confraternizar com o inimigo e ficar em casa, era melhor não
ter vindo — ralho, baixinho, para que só Amelie escute.
Ela solta uma risada sarcástica e me olha irritada.
— Acredite, eu não queria estar aqui. Prefería testar ácido sulfúrico
nos meus olhos do que passar doze horas na porra de um ônibus com você do
meu lado. Da próxima vez, convença a minha amiga a não me arrastar para
essa droga — murmura.
— Com o maior prazer — rebato.
— Ótimo, então!
— Incrível.
Nossa troca de farpas é interrompida quando chegamos na cozinha e
Raelynn nos instrui onde pegar as bebidas. Viro um Jelly Shot com Tyler
antes de encher um copo com vodca e suco de maracujá. Eu e o restante dos
caras fomos para a parte externa da casa, onde se concentra a maior
quantidade de pessoas.
Num determinado momento da festa, já tem mais álcool no meu
cérebro do que neurônios trabalhando. Ou pelo menos essa é a desculpa que
dou para o fato de que estou encarando Amelie Castillo dançando por longos
minutos.
Ela está com um vestidinho branco tubinho que deixa as curvas do seu
quadril marcadas e evidentes enquanto ela os mexe de maneira quase
hipnotizante, e eu preciso fazer um esforço colossal para me lembrar dos
inúmeros motivos pelos quais eu a detesto.
Irritante pra caralho, penso.
Gostosa na mesma medida, meu cérebro rebate.
Não sei quanto tempo passo nessa guerra mental, mas quando dou por
mim, Amelie está caminhando na minha direção com uma carranca nada
amigável. Olho para baixo quando ela se aproxima, porque nossa diferença
de altura é gritante.
— Pode parar com isso? — briga, irritada.
— O que eu fiz?
— Fica me olhando com essa cara…
— É a única cara que eu tenho, gata.
— É sério, você sabe do que eu estou falando — bufa.
— Na verdade — falo, cruzando os braços e encostando meu corpo na
pilastra atrás de mim. — Não sei, não. Pode me explicar, por favor?
— Olha só, eu não sei por que raios está me olhando desse jeito, mas
pare, agora.
Solto uma risada involuntária e molho os lábios com a língua antes de
levar a mão até o seu queixo, erguendo-o para que me olhe nos olhos.
— Para alguém que é conhecida por ser tão inteligente, você até que
demora para sacar as coisas, Castillo. — Alterno o olhar entre sua boca e
suas íris castanhas. — Quem sabe, um dia você descubra.
Digamos que ela descobriu.
Okay, isso realmente está acontecendo e eu não sei nem por onde
começar;
Se você chegou até aqui, quero que saiba que o meu primeiro
“obrigada” é para você, querido leitor. Cada um de vocês que está lendo
essa linha, que acompanhou a história de Ethan e Amelie, cada um de vocês
que acreditou no meu trabalho e que hoje tornam possível meu sonho de ter o
meu primeiro livro publicado, obrigada.
Eu comecei a compartilhar histórias com o mundo escrevendo fanfics,
e sinto que se não fosse por esse fator, eu nunca chegaria até o dia de hoje
quando entrego meu primeiro trabalho para o mundo. Eu ainda me lembro de
quando ouvi de uma das minhas ídolas o quanto ela se sentia “orgulhosa e
inspirada” por eu e meus amigos da época estarmos fazendo o que
amávamos, aquilo me motivou tanto. Então não posso deixar de agradecer a
Any Gabrielly Soares, obrigada por encantar o mundo com a sua voz. E
obrigada por ter seguido o seu sonho, ele me fez seguir o meu.
Um obrigada mais do que sincero para as minhas betas, por terem
topado a louca missão de fazer a leitura final desse livro em nove dias, e a
todas as outras pessoas que trabalharam nesse projeto comigo, vocês foram
essenciais para mim.
Larissa Chagas, obrigada por essa capa linda e pela paciência com os
meus surtos de indecisão. Eduarda Oliveira, obrigada por, através da sua
arte, tornar Amelie e Ethan um pouquinho mais reais.
Quero agradecer aos meus leitores do Wattpad por tanto apoio
enquanto esse livro, ainda em sua primeira versão, era algo completamente
cru e necessitado de infinitos reparos. Obrigada por amarem essa história
desde o princípio, e obrigada por não me deixarem desistir.
Um obrigada especial para Marcella M, Maria Clara Siqueira,
Amanda Goes e Caroline Kimura.
Marcella, esse livro não teria saído sem você.
Você foi a pessoa que, através da sua escrita, me fez resgatar o amor
que eu tinha por escrever. Sem a sua amizade, seus conselhos, sua parceria e
lealdade eu jamais teria chegado até aqui. Sempre que posso, eu digo o
quanto amo você e o quanto sou grata, e aqui não seria diferente.
Obrigada por tudo. Pelas risadas, por ter me ajudado a tornar esse
livro muito melhor do que ele era, pelas noites em que você me ouviu chorar
e duvidar que eu realmente ia conseguir, e por ter me dito as mais bonitas e
sinceras palavras quando isso acontecia. Amelie diz que Megan foi a pessoa
que mostrou que carregar o peso do mundo se torna mais fácil quando temos
alguém para segurá-lo conosco. De certa forma, você foi a minha Megan nos
últimos quase dois anos. Ou melhor, a Raelynn da minha Amelie. E eu
espero que cada pessoa que tocar nesse livro saiba o quanto eu sou grata a
você. Te amo mundos.
Carol, Maria, Amanda, esse livro não seria, nem de longe, a mesma
coisa sem vocês. Obrigada por aturarem meus surtos, epifanias, crises de
choro e picos de animação. Obrigada por me estenderem a mão em meus
bloqueios criativos e caminharem junto comigo. Amelie e Ethan não
existiriam sem vocês e eu não teria evoluído tanto, como pessoa e como
escritora.
Karina Wizel, Maria Eduarda Duarte e Iara Lopes, minha tão amada
“Firma”, obrigada pelo empenho em divulgar minhas palavras para o mundo,
obrigada pelo amor, parceria e confiança. Obrigada por existirem pra mim,
tudo começou com vocês e ainda viveremos coisas grandiosas juntas.
Sara, Maria Luiza, Camila, Maria Vitória, Taíse, Emilly, Laura, Ana
Beatriz, Camilly, Amanda, Heloiza, Iara. Meu amado “adof najas”, eu amo
vocês. Obrigada.
Agradeço aos Orixás, essas forças sagradas que tanto me
impulsionam, que me mantiveram firme e que me sustentaram quando eu
ousei pensar que a escrita não era para mim. Obrigada por soprarem em
meus ouvidos “isso é só o começo, continue”.
Adupè.
Como nada nasce do nada e nenhum sonho se constrói sozinho, queria
usar esse espaço para agradecer aos professores que passaram por minha
vida. A educação muda o mundo, e nada mais justo do que homenagear quem
tanto me incentivou a seguir os meus sonhos. Embora, possivelmente, vocês
não estejam lendo isso, obrigada. Rodrigo Gomes, Gabriella Jardim, Izabel
Moraes, Pedro Tardelli, Sandro Henrique, Patricia Peters, vocês são os
meus super heróis da vida real.
Queria agradecer, do fundo do meu coração, a Tay Ferreira e L.S
Englantine, por terem me estendido a mão quando eu, super ingênua, ainda
estava entrando nesse universo da escrita independente.
Tine, por todo o seu apoio, confiança, dicas e mensagens de
encorajamento. Tay por todo o carinho, acolhimento, palavras de incentivo e
por, sempre que pôde, ter me dado “as dicas que você gostaria de ter
recebido”. Vocês são duas potências e desejo que o mundo inteiro um dia
seja tocado pelas palavras e pela bondade de vocês.
Obrigada a todos aqueles que encontram, na escrita e na leitura, a
cura para suas dores, assim como eu. Enna Souza, Brooke Mars, Maria Clara
Lube, Nicole Casagrande, Anna Gabriele, Luiza Carvalho e Mariana Lima,
obrigada pelo carinho que tiveram comigo nas vésperas desse livro sair.
Meu outro “obrigada” vai para Ana Carolina Almeida, a melhor amiga
que alguém poderia ter. Obrigada pelos anos de amizade, por acreditar nos
meus sonhos, me incentivar a ser melhor e me acolher em seus braços
sempre que precisei de abrigo. Você e sua família moram no meu coração.
Viviane Dionisio e Igor Jardim, eu talvez nunca vá conseguir colocar
em palavras o quanto amo vocês. Obrigada pela paciência, pela
compreensão quando estive ausente da nossa convivência para me trancar no
quarto e escrever, por sempre falarem com tanto orgulho que a filha/irmã de
vocês “é escritora”, agora tem até livro pra provar quando duvidarem
hahahaha!
Fabio Brito e Iva Brito, a culpa disso aqui é de vocês, por me
criarem uma apaixonada por palavras, viciada em livrarias, leitora voraz e
escritora no tempo vago. Obrigada por priorizarem a literatura em minha
vida, por terem valorizado tanto que eu crescesse rodeada por cultura, arte e
poesia. Papai e Vovó, eu amo vocês. Tia Elaine, não me esqueci de você,
não. Obrigada por sempre acreditar no meu potencial para conquistar tudo
que eu quiser, eu amo você.
Vovó Norma, obrigada por me ensinar a admirar a leveza da vida.
Espero que aí do céu a senhora esteja se gabando e anunciando aos quatro
cantos que sua neta é escritora, do jeitinho que sei que faria se estivesse
aqui. Nunca vou me esquecer de você.
Pra fechar, se alguém ainda está lendo até aqui, obrigada por
apoiarem a literatura nacional independente, obrigada por estarem
sonhando meu sonho comigo.
Ubuntu. Eu sou, porque nós somos.
Vejo vocês em um próximo livro, o maryverso está só começando!
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[1]
Washington Irving foi um escritor, biógrafo, ensaísta, historiador e diplomata dos Estados Unidos, do
início do século XIX. Viveu de 1783 à 1859.
[2]
Wallch Campus é o campus da Universidade Irving destinado aos prédios dos cursos das ciências
biológicas e ciências da natureza. Abriga também o hospital e os laboratórios da instituição.
[3]
Personagem da série Criminal Minds, interpretado por Matthew Gray Gubler. Reid é um gênio com
um QI de 187 e pode ler 20.000 palavras por minuto com uma memória eidética.
[4]
Toni Morrison (1931 - 2019), nascida Chloe Ardelia Wofford, foi uma escritora, editora e professora
estadunidense. Seu livro de estreia, O olho mais azul, é um estudo sobre raça, gênero e beleza — temas
recorrentes em seus últimos romances. Despertou a atenção da crítica internacional com Song of
Solomon.
[5]
Benjamin Harrison foi um advogado e político estadunidense que serviu como o vigésimo-terceiro
presidente dos Estados Unidos, de 1889 a 1893. Era neto do também ex-presidente William Henry
Harrison e bisneto do pai-fundador Benjamin Harrison V, um dos homens que assinou a Declaração da
Independência do país.
[6]
“meu querido” em francês.
[7]
“Eu estou certa”
[8]
“Eu sou fluente em espanhol, e você é insuportável, se quer saber”
[9]
5 Types of Alcoholics (pesquisa): National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism (NIAAA),
National Institute of Health (NIH) e National Epidemiological Survey on Alcohol and Related Conditions
(NESARC).
[10]
Banda fictícia pertencente ao universo do livro Wrong One, de autoria de “imwritingmari”.
[11]
Numa tradução literal, seria algo como “Ter a tigela cheia disso”. Porém, essa expressão francesa
significa que você já “está por aqui disso”, já está cheio disso, já não aguenta mais isso.
[12]
Time fictício de cheerleading pertencente ao universo do livro “Cheering Beside You” de autoria da
Marcella M.
[13]
Personagens principais de Don’t Challenge Me, obra de minha autoria, inicialmente postada no
Wattpad e arquivada para reescrita.
[14]
Esse prato é basicamente uma sopa ou guisado feito de milho que leva também carne de porco ou
de galinha.
[15]
Eu tenho 23 anos e meus pais estão envelhecendo
Eu sei que eles não são eternos e estou com medo de ficar sozinho
Então, eu sou grato pela minha irmã, embora às vezes nós briguemos
Quando o ensino médio não estava fácil, ela foi a razão pela qual eu sobrevivi.

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