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Estava com preguiça, mas não poderia negar um convite para tomar um
sol na piscina de Pérola. Esse era o melhor bônus de ter amiga rica.
Arrumei meu quarto, dei um jeito na minha cara, coloquei tudo que eu
precisaria dentro de uma mochila e saí. Passei pela sala e encontrei minha
avó em companhia de Tereza e Maria. Elas foram minhas professoras de
Inglês e Matemática, respectivamente. Agora eram senhoras aposentadas que
jogavam buraco e fingiam fazer novenas. Eu gostaria muito que minha avó
só tivesse essa preocupação na vida, além de dar em cima de um ou outro
padre ou algum senhor da igreja, mas ela ainda tinha que trabalhar como
professora particular para conseguir pagar as contas.
Eu planejava dar uma vida de rainha para ela, mas antes precisava
terminar a faculdade, arranjar um emprego melhor ou entrar no BBB. Depois
o sucesso, a fama e meu programa de TV viriam e minha avó seria aquelas
madames que passeiam no shopping às 3h da tarde.
— Estou indo na Pérola, minha gata. — Dei um beijo estralado em sua
bochecha.
— Se for dormir lá, avise.
— Pode deixar. — Pisquei e me afastei, olhando o jogo de Tereza. — E
essa canastra real aí, hein, Terezoca?
Vi a senhora apertar os olhos em minha direção, puta da vida. Abri meu
melhor sorriso e também beijei o rosto delas antes de sair. Odiavam quando
eu jogava com elas e odiavam mais ainda quando eu não jogava, porque o
jogo foi feito para ser jogado em duplas. Mas eu confiava na força de
vontade delas.
Peguei um Uber, porque já tinha aprendido que não adiantava ir para a
casa de Pérola de ônibus. Era um inferno. Eu morava em um pedacinho de
céu (e inferno!) localizado na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Jacarepaguá o
nome. Conhecido por sediar o PROJAC, onde planejo em breve estar
morando dentro da casa do Big Brother. Vez ou outra aparecia um jacaré em
alguma rua, coisa do dia a dia. Mas a principal fama do meu bairro é a
distância.
Estamos colados na Barra da Tijuca e ainda assim é longe. Logo, sem
chance de ir para a casa de Pérola de ônibus em um sábado. Não se eu quiser
chegar antes do Natal. E olha que estamos em junho.
Minutos depois, já estava olhando para as mansões do condomínio onde
minha amiga mora. Sempre fico chocada com o tamanho daquelas casas e
que existiam pessoas que realmente moram dentro delas. Nem sempre a
família Adler foi tão rica assim. Não que eles fossem pobres, só não eram
tão ricos. Foi depois que Gael começou a abrir franquias de seu restaurante
que eles ficaram bem ricos, tipo, bem ricos mesmo. Gael tinha restaurantes
em Miami, Orlando, até em Portugal. Eu achava o máximo.
Gostava mais ainda que a essência deles não tivesse mudado em nada.
Pérola ainda era a mesma garota que eu conheci em meu primeiro dia de
aula na escola nova. Ela me ofereceu suas canetas de gel de inúmeras cores,
eu aceitei. E éramos amigas desde então. Nós nunca brigamos, nunca
levantamos a voz uma para a outra, nunca nem passamos um dia sem nos
falarmos. Nem quando Pérola foi fazer o último ano do colegial nos Estados
Unidos nós nos afastamos.
Talvez viesse daí o medo de decepcioná-la com o assunto sobre Gael,
meus hormônios e umas vontades depravadas. Sempre que pensava em ser
direta com ele e falar minhas intenções, eu julgava que isso poderia me
afastar de Pérola. E então pensava na possibilidade de gostar de Gael de
verdade, não apenas pelo fogo no rabo. Depois de tantos anos tendo um
crush, diria até mesmo que vergonhoso por ele, eu acreditava ser possível.
— Dei o cu pro Tato!
Não foi boa tarde, seja bem-vinda ou quer uma água. Essa foi a
recepção que tive de Pérola assim que ela abriu aquela porta monstruosa de
uns cinco metros de altura. Ricos e suas riquices.
— Oi, Pérola! Tudo bom? — ironizei.
— Tá doendo.
Esfreguei o dedo em minha sobrancelha, bagunçando os fios.
— Como foi exatamente isso?
Pérola me puxou para dentro da casa e fomos para seu quarto, porque
ela me disse que seu pai e seu irmão estavam em casa hoje. Jogando tênis.
Na quadra deles. Dentro da casa deles.
Deus, como deve ser bom ser rica!
Fui bombardeada com uma explicação bem gráfica de como Tato e ela
foram parar em um banheiro da boate, eles transaram e ele pediu para comer
a bunda dela. Pérola achou que estaria sendo uma deusa do sexo pedindo
para ele enfiar tudo e agora estava arrombada e sem conseguir sentar direito.
Era difícil ver a cena na minha mente de minha amiga transando com o
homem que aparecia na minha televisão todos os sábados entrevistando
famosos, ajudando famílias a se reencontrarem, fazendo piadinhas que
faziam minha avó gargalhar. Para mim, Tato era um tiozinho, por mais que
fosse um pouco mais velho do que Gael.
Gael era gostoso para alguém velho.
Tato era... Bem, era o Tato.
— Podemos ir para a piscina? — pedi.
Não, eu implorei basicamente. Tudo para parar de ouvir Pérola falar
sobre aquela cena que nunca sairia da minha cabeça.
Coloquei meu biquíni. Juro que tentei ser comportada dessa vez. Já teve
vezes em que vim na maldade só para provocar Gael, mas dessa vez não foi
minha intenção. Só tinha o problema que eu não tinha um biquíni decente.
Eu precisava cair em mim que eu não era nem um pouco decente.
— Uau, uau! Olha essa bunda! — Pérola me deu um tapinha na bunda e
fez uma careta de dor. — Aí, gatilho. Vamos mudar de assunto.
Ri e me olhei pela última vez no espelho. Escolhi um modelo
cortininha, lilás, a parte da frente era supercomum, mas a parte de trás era
pequena. Bem pequena. Adorava como minha bunda ficava nele. Modéstia à
parte, minha bunda era espetacular. Redonda, durinha, graças a muito
esforço na academia e nas aulas de circo. Era meu orgulho.
Fomos para a piscina e tomamos sol por algum tempo. Pérola não
parava de mexer no celular, trocando mensagens com Tato e suspirando por
ele estar respondendo suas mensagens nos intervalos do programa que estava
ao vivo.
Eu via as palmeiras altas, que eles tinham no jardim, balançando com o
sopro suave do vento. Entediada, porém à beira de uma piscina fabulosa.
Foi então que eu vi Gael atravessando o jardim, voltando da quadra. Ele
estava sem camisa e eu agradeci às lentes de contato por me fazerem
enxergar a perfeição que era aquele abdômen trincadíssimo todo molhado
por suor. Gael seria o único homem neste planeta por qual eu lamberia todo
seu corpinho suado. E nem faria cara de nojo.
Ele passava as mãos pelos fios longos que com a luz do sol ficavam
ainda mais claros, quase dourado. Que espetáculo de homem!
Gael virou o rosto para falar algo a Bernardo, o insuportável irmão de
Pérola.
Eu amava minha amiga de paixão. O pai dela também... Um pouco
acima do esperado e moralmente certo. Agora de Bernardo, eu queria
distância.
Ele abriu um sorriso para algo que o pai falou e reparei que nem suado
ele estava. Mesmo depois de uma partida de tênis. O garoto vestia uma
camiseta larga do Jurassic Park. Eu não sabia se ele tinha uma coleção dessa
camiseta, porque para mim ele sempre estava vestido com ela desde que o
conheço. Ou uma de um tal de Star Trek que estava tão velha que não sei
como não tinha saído andando sozinha ainda.
Bernardo tinha dezenove anos, quase vinte. Eu sabia, porque Pérola e
ele faziam aniversário no mesmo dia, como gêmeos, só que com dois anos
de diferença. Todas as festas da minha amiga que fui também eram a festa de
Bernardo.
Estudei com ele por um ano, depois que reprovei o primeiro colegial.
Parecia o fim do mundo para a Pietra de quinze anos ter de dividir a sala
com Bernardo e não com Pérola. Mas a realidade é que não foi tão ruim,
para mim pelo menos. Bernardo era muito quieto, reservado, não falava com
ninguém e o garoto era simplesmente um gênio. Em uma aula de Física, a
professora pediu para nos juntarmos em dupla para fazer uma prova.
Bernardo ficou sozinho e eu como uma alma caridosa, neguei os convites
dos garotos gatos e das minhas novas colegas de sala para fazer com ele. E
sabe o que eu escutei desse metidinho?
Pode deixar que eu faço tudo, você não saberia fazer mesmo.
A audácia do filho da mãe!
Desde aquele dia nutro certa antipatia por ele. Passei três anos o
ignorando na escola depois disso. Eu falava com ele na casa de Pérola,
porque também era a casa dele e eu não queria ser mal-educada. Mas a
verdade era que ele nunca falava comigo. Na verdade, acho que ele nunca
falava com ninguém.
Bernardo não tinha amigos e eu só sabia que ele falava porque me
lembro muito bem de seu insulto à minha pessoa. Quando éramos mais
crianças ele tinha um amigo que vivia na casa, assim como eu. O garoto era
todo nerd que nem ele, eles viviam jogando videogame — e não deixavam
Pérola e eu assistirmos aos filmes da Barbie — e passavam horas colando
adesivos em um álbum de figurinhas. Cada hora era um tema diferente.
Enquanto Iago frequentava a casa, Bernardo parecia até mesmo um
garoto comum, que dá risada, brinca e faz piadas. Só que tudo mudou depois
que Iago faleceu aos catorze anos. Foi um infeliz acidente em um rio durante
uma viagem com seus pais, que tirou totalmente aquela personalidade mais
solta de Bernardo. Desde então, nunca mais o vi jogando Sonic — o
joguinho que me impedia de assistir o filme da Barbie —, nem colando
figurinhas.
Porém, essa história triste não mudava minha opinião sobre Bernardo.
Ele era insuportável e ponto final.
— Recuperada, Pietra? — Gael parou na frente de nossas
espreguiçadeiras, colocando um sorriso debochado no rosto.
Senti as bochechas esquentarem por me lembrar da forma que dancei
ontem, na frente dele. Bem, pelo menos tinha chamado sua atenção.
— Recuperada! Comi uma banana antes de dormir.
Vi Bernardo fazer uma careta e olhei em sua direção. O bonitinho era
especialista em me julgar, mas não conseguia nem me olhar nos olhos e
fazer isso em minha frente.
Gael, por outro lado, continuava sorrindo. Ele era muito risonho,
sempre foi. Eu também viveria sorrindo se tivesse sua aparência e seu corpo.
Mas o que eu gostava mais em Gael era que ele me escutava. Ele não era
como as outras pessoas que te escutam por dois segundos e começam a falar
sobre elas. Gael se interessa, ele te faz sentir importante.
— Isso ajuda mesmo? — ele perguntou.
— Minha avó fala que sim.
— Não faz sentido — Bernardo falou baixo. Ele sempre falava assim.
Cravei os olhos nele, já começando a me irritar. Ele sempre fazia isso!
Até quando ficava em silêncio eu sabia que estava me julgando. Bernardo
sempre fazia com que me sentisse uma mula perto dele. Aquele maldito
geniozinho!
— Banana é potássio! — falei um pouco alto demais, fazendo até
Pérola erguer os olhos do celular para me olhar.
Ele não disse nada, apenas saiu de perto. Gael deu um beijo na testa de
Pérola e disse que iria tomar banho e depois preparar algo para comermos.
Eu adorava quando ele cozinhava. Era a melhor comida!
— Gata, se liga no meu plano...
Pérola me deu um beliscão na coxa. Eu respondi com outro em seu
braço.
Nossa linguagem do amor era essa.
— O que foi?
— Vou para a casa do Tato agora.
— Fazer o que lá? Ele não está no programa?
— Esperar ele chegar, toda nua, em cima da mesa de jantar dele.
Eram nesses momentos que eu desejava não ter a habilidade de escutar
bobagens como essa.
— Mas sua bunda não tá doendo?
— Não vou usá-la, mesmo. — Deu de ombros, rolando para o lado da
espreguiçadeira para levantar.
Eu ainda seguia olhando para ela, descrente.
Fazia isso há mais de dez anos, na verdade.
— Seu pai vai cozinhar.
— Pode ficar aqui. Come, tira um cochilo, depois eu te levo em casa.
Vai ser bom para meu pai não desconfiar de nada.
— Não vou ficar aqui sem você. — Cruzei os braços, levantando atrás
dela.
— Pipes, quebra essa. Vou falar que vou à casa da Pri pegar algo para
terminamos o trabalho da faculdade.
Pensei em negar, mas me calei diante da oportunidade óbvia que tinha
em minhas mãos. Eu nunca ficava sozinha com Gael. Quando conseguia
conversar com ele a sós era em alguma festa ou em algum dia que estava
aqui, mas sempre com Pérola por perto. Aquele poderia ser um grande
momento em simples meu plano.
— Tudo bem!
Depois que Pérola saiu, eu recolhi todas as minhas coisas e entrei na
casa. Dane-se o sol e a piscina! Eu tinha outras prioridades.
Amarrei a canga no quadril, apenas para não ficar tão indecente assim.
Eu queria pegar Gael? Queria, sim. Mas não poderia me jogar em cima dele.
Eu queria conquistá-lo, fazê-lo enxergar que eu não era uma criança. Queria
que ele visse o quão interessante eu era e que ficasse louco por mim. Um
beijinho qualquer não me satisfaria.
— Que cheiro bom! — elogiei.
Eu me movi lentamente, percebendo que Gael tinha tomado banho e
agora cozinhava com uma camisa de linho azul-bebê de mangas longas
dobradas até o cotovelo. Suas pernas bronzeadas e com músculos muito bem
trabalhados de academia apareciam pelo short mais curto com estampa de
pequenos abacaxis. Homem mais gato que ele, estava para nascer.
— É um risoto de alho-poró. Coisa simples.
Para mim, coisa simples era arroz, feijão e ovo frito. Aquilo ali era o
paraíso.
— Precisa de ajuda? — Esgueirei-me para mais perto dele, lotada de
más intenções.
Gael me olhou por apenas um segundo, o suficiente para ver que eu
estava próxima demais. Seu olhar se prendeu por um milésimo em meu
decote do biquíni. Durou tão pouco, que foi quase imperceptível. Ele virou o
rosto para a panela novamente e começou a mexer a colher de madeira com
mais força.
— Não, eu dou conta sozinho. — Seu tom era controlado, educado,
nada abalado.
Sustentei uma revirada de olhos.
— Você não precisa ser sempre tão sozinho.
Posso ter calculado as palavras um pouco errado, porque vi o olhar
assustado dele para mim. Pisquei, percebendo que podia ter passado um
pouquinho dos limites e gelei ao pensar que ele poderia contar para Pérola.
Eu vivia entre a cruz e a espada. Querendo que ele me notasse a todo
custo, mas temendo ser muito direta e Pérola ficar sabendo.
Limpei a garganta, tentando me acalmar antes de falar:
— Você precisa de uma namorada, Gael.
Desde que percebi que nutria alguns sentimentos diferenciados por
Gael, eu parei de chamá-lo de Tio Gael. No começo ele estranhou, mas eu
segui, porque na minha cabeça eu fantasiava quando ele me pegasse de jeito
e eu soltasse sem querer um “tio”. Era errado e bem doentio, por isso,
continuei chamando-o por seu nome. Pelo bem da minha saúde mental. E do
réu primário dele também.
Ele riu, jogando o cabelo para trás, negando suavemente com a cabeça.
— Nem parece que conhece sua amiga.
Apoiei-me na bancada longa que cortava a cozinha e me sentei nela, um
pouco afastada do fogão de indução que ficava ali. Gael desviou os olhos da
panela para mim, vendo-me com a bunda em cima de sua bancada caríssima.
Esperava que fosse uma visão e tanto para ele.
— Você não pode ficar aqui sozinho para sempre, não é?
Eu já tinha tido essa conversa com Pérola muitas vezes. E nem era
porque eu queria pegar o pai dela, não. Era porque há anos eu via o quanto
Gael se esforçava para ser um bom pai, respeitava a vontade dos filhos, fazia
tudo o que podia para estar presente. Pérola iria embora daqui a pouco,
Bernardo também. E o que seria dele?
Era uma preocupação genuína e nada movida por meu fogo no rabo.
— Você sabe o que as crianças passaram depois que a Lana foi embora,
não sabe?
Assenti, sentindo-me péssima por termos entrado naquele assunto. Eu
sabia que era algo muito doloroso para minha amiga, imagino o quanto seria
para ele.
Gael continuou:
— Já tivemos a cota suficiente de drama nessa família por uma vida.
Não necessitamos de mais.
Espremi os lábios, sentindo o gosto do gloss de morango.
Ok, entendi!
Era um assunto delicado. Acho que sempre seria para todos os Adler.
— Você se divertiu ontem na boate? — Abri um sorriso, esperando que
ele também mudasse de assunto e me desculpasse pelas merdas sem noção
que eu falava.
— Não mais do que você, não é mesmo?
Seu olhar divertido, arqueando a sobrancelha direita, me deixou com
vergonha. Ele deveria saber muito bem tudo o que eu fiz ontem. E se não
soubesse, ele imaginava.
Encolhi os ombros, ciente de que aquele gesto unia meus peitos. Serviu
de nada, porque o arroz dele parecia muito mais interessante do que eu.
— Pode ter certeza disso.
— Pietra, Pietra... — Odiava quando seu tom era de censura, como se
fosse meu pai. O que ele não era e nunca estaria perto de ser. — Muito
cuidado com suas escolhas. Algumas delas podem ser definitivas.
Era o mesmo conselho que ele cansou de dar para Pérola, sobre sexo
seguro, garotos, gravidez e outras coisas.
— Gael, eu já sou uma garota bem crescida. — Mordi o lábio inferior,
segurando um sorriso ao vê-lo balançar a cabeça negativamente. — Me
ajuda a descer?
Estiquei os braços, trabalhando muito bem minha melhor cara de
inocente.
— Garota crescida... — ironizou, deixando a colher de lado para vir até
mim.
Suas mãos pegaram minha cintura com uma facilidade impressionante.
Seus dedos quentes tocaram minha pele e a sensação foi como o paraíso para
mim. Gael nunca tinha me tocado de uma forma tão íntima, ainda mais
comigo quase sem roupa como estava.
Ele me colocou no chão, mas eu continuei olhando embasbacada para
ele. Gael tentou se afastar, mas minha mão ainda estava em seu ombro e seus
olhos caíram em mim. Perto daquela forma, eu pude ver o quão intensos
eram seus olhos, em um tom azul-esverdeado, com pintinhas cinza por toda
a íris. Eu nunca estive tão próxima de Gael em toda minha vida e minha
respiração foi a primeira a me trair e demonstrar nosso nervosismo.
Foi quando escutei o baque seco da porta da geladeira. As mãos de Gael
se afastaram no mesmo instante em que eu virei meu rosto e vi Bernardo
saindo da cozinha com uma garrafa de água nas mãos.
— Tome um banho antes de o almoço ser servido. Ainda vou preparar o
peixe.
Assenti, mesmo que Gael já estivesse de costas para mim.
Saí desnorteada para o quarto de Pérola, ainda pensando que Gael
colocou as mãos em mim. Tipo, por bastante tempo! E ele me olhou, não de
uma forma qualquer, foi a primeira vez que parecia que ele não me viu como
uma criança boba.
O banho foi de grande ajuda para acalmar o fogo na passarinha, como
diz minha incrível vovó. Se Dona Dedé ao menos desconfiasse que a
passarinha em questão estivesse deveras interessada no Pica-Pau de Gael, ela
me mataria com requintes de crueldade.
Eu esperava que Gael gostasse de ter alguns segredos.
Porque eu estava pronta para ter alguns com ele.
Voltei mais tranquila à cozinha e ciente de que eu deveria ir com calma
com o homem. Este, que colocava o molho em cima do peixe com uma
precisão que deixava minha calcinha levemente umedecida.
— Precisa de ajuda? — Encostei ao batente da porta, cruzando a perna,
como se ele fosse sacar minha animação por ele.
— Pode colocar os pratos na mesa?
Confirmei, me movimentando rapidamente pela cozinha para pegar o
que precisaria para montar a mesa. Eu poderia fazer isso com os olhos
fechados, sabia onde ficava tudo na casa de Pérola. Era como se fosse minha
segunda casa e eu amava como eles me faziam com que me sentisse
realmente à vontade. Desde sempre foi assim.
Coloquei os souplasts, os três pratos e posicionei os talheres e as taças
de suco. Sabia muito bem que Pérola não apareceria tão cedo ali, então nem
me preocupei em colocar prato para ela, que voltaria da casa de Tato
muitíssimo bem servida.
— Pode chamar o Bernardo, por favor? ― Gael pediu assim que
colocou o risoto na mesa, jogando um pano de prato sobre o ombro.
Eu faria qualquer coisa que aquele homem quisesse.
E além do mais, eu estava temerosa com o que Bernardo pensou ter
visto ali na cozinha. Foi algo simples, mas eu não sabia o que ele pensaria.
Bernardo e Pérola não poderiam ser mais diferentes, mas eles eram muito
amigos. E sabiam tudo um do outro. Além de mim, Bernardo era o único que
sabia sobre Pérola e Tato. E quando eu não podia encobrir minha amiga, seu
álibi era o próprio irmão. Logo, eu tinha medo do que Bernardo poderia falar
para ela.
Subi a escada correndo e fui até a porta do quarto de Bernardo. Eu
nunca tinha entrado ali. Para ser 100% verdadeira, eu já tinha entrado
algumas vezes quando éramos crianças, junto de Pérola. Mas depois que
crescemos, eu nunca tinha entrado. Deus me livre ter de respirar o ar
arrogante que ficava condensado naquelas quatro paredes!
Reuni toda minha força de vontade para girar aquela maçaneta e abrir a
porta do quarto.
— Bernardo, vem comer...
Eu mal pude terminar de falar e observei o movimento brusco de
Bernardo fechando o notebook com tudo, o aparelho caiu da cama e eu
percebi um movimento esquisito debaixo daquele edredom. Fazia trinta
graus lá fora, por que ele estava coberto?
— Sai daqui!
O Albert Einstein gritou bem alto e eu até assustei, porque não fazia
ideia de que ele sabia falar dessa forma.
Ele estava...? Não, não é?
— Você estava tocando uma?
— Sai daqui, Pietra!
Seu rosto estava rosa, até as suas orelhas estavam injetadas de sangue.
Bernardo estava apavorado, mas não se movia da cama, porque
provavelmente estivesse pelado. Por mais embaraçosa que fosse a situação
eu estava adorando, porque mostrava que ele era um ser humano. Diferente
daquele robozinho que mostrou ser a vida inteira.
Foi por saber que ele nunca levantaria daquela cama, que eu me
aproximei, observando seus olhos escuros, muito mais parecidos com os de
Pérola do que com os de Gael. Imaginava que eles tivessem puxado muito da
mãe deles.
— Vamos ver o que você estava vendo.
Em um movimento brusco, eu peguei o notebook do chão.
Bernardo fez menção de me alcançar, mas acabou preso em sua própria
vergonha.
— Eu chuto uma daquelas putarias com desenho japonês? — Dei risada
e abri a tela, arregalando os olhos ao ver uma chamada de vídeo encerrada
com uma tal de “Professora Paola Sabin”.
Foi meu rosto que começou a queimar de vergonha agora. Fechei a tela
e coloquei em cima do colchão. Reuni toda minhas forças para virar e falar
para ele:
— O almoço está na mesa, seu pai pediu para você descer.
Dei as costas, arrependendo-me até o último fio de cabelo por ter
entrado naquele quarto e mais ainda por ter feito toda aquela cena só porque
me achei no direito de zoar com a cara do Galileu Galilei.
— Tudo bem, mamãe!
Puta que pariu!
Puta que pariu!
Puta que pariu!
Aquele metidinho me foderia bonito, eu tinha certeza. Ele contaria para
Pérola, nossa amizade acabaria, eu perderia minha melhor amiga sem nem
ter dado um beijo ou uma mísera chupadinha em Gael. Eu estava fodida!
Voltei totalmente apática à sala de jantar.
Em três minutos minha vida virou de cabeça para baixo.
Descobri que o irmão beato da minha melhor amiga estava batendo
uma punheta para a professora dele. E agora vou perder minha melhor
amiga.
Eu deveria ter ficado jogando tranca com minha avó e suas amigas,
seria muito melhor.
Inferno!
— O Bê vai descer? — Gael chegou com o peixe, enquanto eu estava
de pé e mais zonza do que tudo.
— Acho que sim.
— Posso te servir?
Precisei de um tempo para entender o que Gael falou, mas acabei só
balançando a cabeça. Sentei na cadeira e fiquei com os olhos colados na
mesa. Gael colocou o prato na minha frente e mesmo assim não consegui me
mover.
O que eu poderia falar para Pérola para convencê-la de que eu não
estava me agarrando com o pai dela na cozinha?
Estava dividida entre mentir com todas minhas forças. Afinal, eu nunca
tinha mentido para minha melhor amiga, ela provavelmente acreditaria em
mim. Ou então contar a verdade. Sim, quero dar para seu pai. Não, não
tenho planos de ser sua madrasta.
Péssima ideia!
Péssimo dia!
Eu sou uma péssima pessoa!
— Não gostou do robalo? — Gael perguntou.
Pisquei para deixar de fitar a mesa e olhar para o homem incrível que
tinha feito aquela comida deliciosa, servido-me e ainda me olhando com
aqueles olhos preocupados.
— Desculpa, estava pensando em algo! Está com uma cara muito boa.
Antes de eu enfiar a primeira garfada na boca, Bernardo entrou na sala,
os olhos grudados em mim. Eu não o conhecia tão bem assim, mas era nítido
que estava puto comigo.
Bernardo sentou na cadeira à minha frente e também recebeu um prato
cheio de comida de Gael. Por mais que o ódio fosse nítido, ele ainda estava
vermelho; o que demonstrava que eu estava bem certa em minhas suposições
do que ele estava fazendo no quarto.
Era algo natural e eu, sinceramente, estava pouco me lixando para o que
ele fazia. Por mais que fosse esquisito, porque eu via Bernardo como uma
criança.
Gael ainda tentou puxar papo conosco, mas não teve grandes
resultados. Logo, disse que precisaria ir para o restaurante, deixando-me na
pior situação de todas: dividir uma mesa com Bernardo.
Assim que terminou de comer, ele beijou o topo da cabeça do filho e
também a minha. Para meu desespero, depois de receber um olhar enviesado
do Thomas Edison.
Eu não tinha apetite após toda aquela sucessão de tragédias que me meti
nos últimos dez minutos. Eu poderia ser um pouquinho dramática, mas não
tinha como não me sentir terrível com aquele garoto me olhando daquela
forma.
Gael passou novamente pela sala já trocado, despedindo-se. Escutei o
barulho da porta batendo logo depois e larguei os talheres no prato. Eu não
conseguiria comer enquanto não resolvesse aquela situação.
Bernardo não era minha pessoa preferida no mundo, mas eu era boa de
lábia. Era ótima, na verdade. Poderia resolver tudo com ele.
— Queria me desculpar por ter entrado no seu quarto daquela forma e
te pegar com a boca na botija. A mão, na verdade.
Bernardo engasgou com o suco e colocou a taça de volta à mesa de
vidro, com um pouco de força demais.
— Qual é seu problema? — perguntou baixinho, soltando os talheres
também.
— Não precisa ficar nervoso, todo mundo faz essas coisas.
— Para de falar sobre isso! — Seu rosto estava tão vermelho, que
parecia estar tendo uma crise alérgica.
— Tudo bem! Tudo bem! — Ergui as mãos, rendendo-me. — Posso me
explicar sobre o que você pensou ter visto na cozinha?
Vi seu olhar mudar de profundamente envergonhado para
profundamente arrogante. Do mesmo jeito que me olhava quando ele tirava
dez na prova e eu dois. Isso que a professora era a minha avó.
Exibidinho!
— Não foi isso que você está pensando. — Apressei-me a falar.
Bernardo ajeitou seus óculos de armação quadrada com as ferragens
finas prateadas. Era o mesmo modelo desde que o conheço. Agora, com ele
mais crescido, parecia mais harmonioso em seu rosto. Antes aquela armação
parecia cobrir toda sua cara.
— Eu sei. — Escutei sua voz diante do silêncio daquela sala de jantar
moderna, com longa mesa preta e poltronas da mesma cor com detalhes em
dourado. — Você é só uma criança para meu pai.
Senti meu rosto endurecer ao escutar aquela verdade que me deixava
puta. Porque eu sabia que não era mais nenhuma criança.
— E você não é para sua professora? — Cruzei os braços, desfrutando
por dois segundos aquela cara de tacho do geniozinho.
— Vou voltar para meu quarto.
Bernardo afastou a cadeira, fazendo um barulho agonizante por
empurrar o ferro sob o porcelanato polido.
O desespero por irritá-lo e ele resolver contar para Pérola me tomou e
eu levantei correndo. Puxei a barra da camiseta — do Jurassic Park, que
novidade! — e quase trombei nas costas de Bernardo quando ele parou e me
olhou, assombrado. Se ele estivesse vendo a própria boneca Anabelle na
frente, acredito que o garoto estaria mais confortável.
Eu o soltei, assustada comigo mesma por puxá-lo daquela forma.
— Você vai contar para Pérola?
Nem precisei fazer uma cara de piedade, porque meu desespero era
evidente.
— Que você se preocupa mais em dar em cima do pai dela do que em
ser uma boa amiga para ela?
— Quando foi que você ficou tão debochado assim, garoto? —
Enfureci-me com suas suposições sobre a minha pessoa.
Se havia uma coisa que eu era para Pérola, era uma boa amiga. Odiei
ver Bernardo agindo como se eu fosse a pior pessoa do mundo por
simplesmente ter alguns sentimentos por um homem legal, bonito e que
sempre me tratou bem.
— Eu não vou contar. Ela vai acabar descobrindo sozinha e você vai
perder a amizade dela.
O garoto que se escondia embaixo de moletons e andava sempre de
cabeça baixa pelos corredores do colégio me olhou nos olhos para me falar
aquilo.
Cocei meu nariz com força, controlando-me para não ofendê-lo. Afinal,
eu não precisaria que ele ficasse mais irritado.
— Isso não é verdade. — Engoli o choro, porque bastava eu entrar em
uma discussão para abrir a comporta das lágrimas.
Antes que começasse a chorar ali, eu dei as costas e fui em direção à
sala de estar, afundando-me em um dos sofás macios. Fechei os olhos e
comecei a inspirar e expirar, tentando controlar meu nervosismo e o choro
que estava entalado na garganta.
Bernardo apareceu na sala algum tempo depois, escutei seus pés
fazerem barulho no piso e abri os olhos, vendo-o no outro sofá, sentado na
ponta, as costas eretas, as mãos cruzadas sendo estraladas.
— Você pode não contar para Pérola sobre o que aconteceu também?
Ela contaria para meu pai e seria... complicado.
Coloquei a franja atrás da minha orelha.
— Seu pai saber que você estava batendo uma no quarto? — Revirei os
olhos, satisfeita ao vê-lo corar novamente.
— Ele saber sobre a professora.
Agora eu entendi o porquê de ele não falar sobre o episódio da cozinha.
Ele devia tanto quanto eu.
— Cara, primeiramente você precisa lidar com as questões do seu corpo
de uma forma melhor — expressei minha opinião, cruzando minhas pernas e
assumindo o controle da situação novamente.
— Por favor... — implorou para eu parar.
— Em segundo, não tem motivo para se preocupar. Todo mundo já
gostou de um professor uma vez na vida.
Bernardo parecia que passaria mal a qualquer segundo. Ele faria vinte
anos, caramba! Já estava na hora de conseguir ter uma conversa com jovens
da sua idade sem ficar passando mal por escutar palavras como “punheta”.
— Ela é muito mais velha que eu.
— Bem-vindo ao clube, garotão!
Expandi meu sorriso ainda mais e o vi revirar os olhos de forma
mínima.
— Você não tem chances com meu pai.
— E por que não?
Cruzei os braços, sentindo meu sangue esquentar por termos retornando
àquele assunto.
— Você tem a idade dos filhos dele, além de que ele te viu crescer. Isso
seria bem doentio da parte dele. E meu pai não é assim.
Senti o desafio velado se tornar grandioso. Um prêmio dourado por trás
de uma cortina de veludo. Eu amava um bom desafio.
Gael me viu crescer? Viu. Mas eu não era mais criança e tinha muitos
atributos que poderiam diverti-lo por muitas e muitas horas. Eu poderia fazê-
lo se esquecer de qualquer diferença de idade em dois tempos, bastava ele
querer.
Obviamente não falaria isso para Bernardo.
— Tudo bem, então. — Dei de ombros, como se não me importasse.
Bernardo me olhou com atenção por alguns segundos, quase como se
soubesse que eu estava mentindo.
Ficamos em silêncio por algum tempo, ele olhando para as próprias
mãos e eu o encarando. Bernardo sempre esteve ali, mas depois de que
crescemos nunca nos falamos por tanto tempo quanto agora. Ele era o irmão
da minha melhor amiga, mas continuava como um estranho. Eu não sabia do
que ele gostava, suas vontades, quem eram seus amigos ou sua comida
favorita. Era estranho conhecer alguém por tanto tempo e nunca ter tido uma
conexão real.
A única vez que me senti mais próxima dele foi quando recebemos a
notícia de que Iago tinha morrido. Estávamos de férias em uma viagem na
Argentina. Foi a primeira viagem internacional que fiz com os Adler e me
lembro do choro alto quando ele soube que seu amigo tinha falecido.
Naquela noite Pérola, Bernardo e eu dormimos juntos na sala. Eles
dormiram abraçados, eu não conseguia nem falar com ele, mas estava ali ao
seu lado. Meses depois ele basicamente me chamou de burra naquela merda
de prova de Física.
— Você já ficou com ela?
Movida pelo sentimentalismo de ter passado anos da minha vida ao
lado de um desconhecido que agora carregava meu segredo, quis saber de
sua vida.
Eu não sabia se fiz uma simples pergunta ou se tinha perguntado qual o
tipo de lubrificante que ele preferia para comer o cu da tal professora diante
da vermelhidão de suas bochechas. Vi que ele ensaiou abrir a boca diversas
vezes, mas acabou continuando calado com os ombros caídos.
Eu nunca vi Bernardo com nenhuma garota. Nem em casa, muito
menos na escola. Ele era muito zoado durante os anos de colégio, muito
mesmo. Os meninos não pegavam nada leve com ele e eu via o quanto as
meninas o ignoravam. Não sei se na faculdade mudou algo para o lado dele,
mas diante de toda aquela vergonha por uma pergunta mínima, eu imagino
que não tenha mudado.
— Ela... Ela não sabe que eu... aprecio, quer dizer... que gosto dela.
Mordi o lábio inferior, achando um pouco de graça de seu embaraço.
— Ela é professora do quê?
— Termodinâmica.
Minha cara foi de puro desespero. O que era Termodinâmica? O Bill
Gates na minha frente parecia falar como se fosse algo comum para ele. O
que, provavelmente, deveria ser.
— É um ramo da Física que estuda energia. — Arrumou os óculos na
ponte do nariz com a ajuda do dedo indicador. — Troca de energias.
Eu também entendia muito de energias. Como a minha que,
definitivamente, não batia com a dele.
Bem, o casal do milênio esses dois. Felicidade aos geniozinhos!
— O que você estuda mesmo?
Era algo muito difícil de entender, tinha a ver com foguetes. Era tudo o
que minha memória tinha guardado.
— Engenharia Aeroespacial.
Bem, se eu fosse inteligente o bastante para fazer essa faculdade e me
dar bem no curso, eu também sairia chamando os outros de burros.
Como. Ele. Fez. Comigo.
Eu não guardo rancor, eu o cultivo. Infelizmente.
— Então, não rolou sexo ainda?
Bernardo engasgou e não foi algo leve, foi real. Ele começou até a ficar
roxo. Precisei me levantar e pegar seus pulsos, esticando seus braços para o
alto. Ele tentou se soltar, brigando comigo enquanto morria sufocado.
Eu odiava esse menino.
— Esticar o braço não me faz voltar a respirar. Não tem sentido isso.
Foi a primeira que ele falou assim que conseguiu. Não foi “Obrigado
por ter me salvado de uma morte patética”, foi algo para deslegitimar meus
métodos. Assim como a da banana curando ressaca. Assim como beber nove
goles de água para passar o soluço. Assim como qualquer coisa que eu fazia
e ele provava com suas leis da física não serem reais.
Garoto chato!
— Está explicado por que ela não transou com você.
Eu me joguei no sofá ao seu lado, vendo seu olhar me queimar. Se
Bernardo tivesse uma arma de raio laser, agora ele me cortaria ao meio.
Tenho certeza.
— Nem tudo é sobre sexo, Pietra.
— Tudo é sobre sexo, Bernardo.
Ficamos nos encarando, até eu perceber que estávamos no meio de uma
guerra. Eu não perderia essa batalha. Relaxei os músculos da face e
continuei a encará-lo. Se ele achava que eu iria piscar e perder, ele estava
louco.
Meus olhos já estavam lacrimejando, mas eu o venceria. Tinha certeza.
Bernardo se remexeu no sofá e bateu as mãos uma na outra, dando um
tapa em algo na sua frente. Eu me assustei e pisquei.
— Você perdeu!
Fiquei estática, sem entender o que tinha acontecido. Que cobra
peçonhenta esse garoto era!
— Você me assustou de propósito!
— Passou uma mosca na minha frente.
Neguei com a cabeça, irritando-me demais com ele para seguir
conversando como duas comadres naquele sofá. Bufei e me levantei.
— Estou indo embora.
— Tchau, mamãe.
Ergui o dedo do meio atrás da minha cabeça enquanto caminhava em
direção à escada. Eu preferia pegar um ônibus lotado de gente voltando da
praia no domingo do que continuar ali com aquela criança prodígio.
Anotei mentalmente na minha lista de coisas que nunca, sob hipótese
alguma, nem sob tortura, farei novamente: perder meu tempo com Bernardo
Adler.
Não era fácil presentear alguém como Pérola.
A garota tinha de tudo!
Mas eu odiava ser a pessoa que não se esforçava porque a amiga já tem
tudo. Se eu estivesse no lugar dela, não gostaria nada de escutar isso. Eu
ficaria feliz em ganhar até um pedaço de pão, se isso fosse de coração.
Logo, não era uma desculpa. Nunca foi, na verdade.
Pérola faria vinte e dois anos hoje. Normalmente passávamos a virada
do aniversário juntas, mas ela estava com Tato. Ela estava sempre com Tato
agora e isso me irritava um pouco.
Era nosso pacto MADM. Mais conhecido como “Migas antes dos
Machos”.
Entendo que ela estava apaixonadinha, mas quando começa a quebrar
tradições já muito bem definidas, começo a pensar se minha amiga está
passando por um episódio de SDPS. “Síndrome do Pinto Supremo” para os
leigos.
É uma doença muito comum em jovens garotas que se apaixonam por
objetos fálicos com muita rigidez, volume e espessura e perdem o rumo de
casa, as amizades e a si próprias. Estou examinando minha amiga com olhos
cuidadosos e a alertarei se vir qualquer sinal suspeito dessa síndrome tão
triste. Para as melhores amigas, no caso.
Era minha terceira volta pelo corredor do shopping e eu já começava a
pensar que não conseguiria achar nada para Pérola ali. Foi então que eu vi a
sandália que minha amiga tinha enviado em nossa conversa, falando que
estava esgotada, mas queria muito para ir à sua festa.
Era uma sandália meio doida, cheia de tiras e correntes, laranja
vibrante. Eu me aproximei da vitrine e olhei o preço. Parcelado em cinco
vezes, ficaria de boa para pagar. Além de que esse era o primeiro ano que eu
poderia dar um presente legal para Pérola. Recebi um aumento legalzinho
nos últimos meses. Minha amiga ausente merecia.
Entrei na loja e fui até a vendedora que não parecia muito interessada
em minha presença.
— Boa tarde! Quero a sandália laranja. — Apontei para a vitrine,
recebendo uma olhada de cima a baixo da vendedora.
Por que elas faziam isso, meu Jesus?
— Qual número, queridinha?
— Trinta e seis, queridona.
Forcei um sorriso, levando mais uma encarada da sem noção. Ela foi
digitar algo no computador e me informou que só existia mais um par da
sandália. E era justamente o que estava na vitrine. No exato tamanho de
Pérola.
Deus tem seus preferidos!
— Sandalinha esquisita, né? — Peguei a dita cuja, fazendo questão de
tirar da vitrine antes que eu a perdesse.
Pérola me amaria tanto! Irei para o céu com honras no quesito ser
melhor amiga. Eu arraso nesse papel, mesmo que o Elon Musk Adler me
diga o contrário.
— É feita à mão, está esgotada no Brasil inteiro. Não é esquisita, é uma
peça de design.
Era esquisita. Ponto final.
Coloquei a sandália na mesinha ao meu lado apenas para atender meu
celular que começou a tocar. Vi na tela que era minha avó.
Foi naquele momento que cometi um grande erro.
Desviei a atenção da sandália e disse apenas as simples palavras para
vovó:
— Estou aqui no corredor lilás.
Minha avó veio comigo ao shopping e foi comprar uma frigideira nova
enquanto eu procurava o presente de Pérola.
Foi só isso. Eu desliguei e vi a desgraça ocorrer bem na minha frente.
— Vou levar essa aqui, meu bem.
Uma dondoca, saída de uma novela do Manoel Carlos, pegou o par de
sandálias e entregou para a vendedora. A mulher simplesmente deu as costas
e levou a sandália para o caixa.
— Pode embrulhar para presente, por favor? — Escutei a dondoca falar.
— Não! Essa sandália é minha. Eu cheguei primeiro.
A mulher, parecendo estar se movimentando embalada pelos acordes de
Tom Jobim, me olhou com uma delicadeza e classe que nem em mil anos eu
conseguiria ter.
— Meu bem, é só pedir outra.
Ela era alta, cabelos ondulados em um tom glorioso de dourado. Parecia
uma sereia. Estou em uma mistura de querer socá-la ou perguntar se ela
queria ser minha sugar mommy.
— Não tem outra! — Esperneei como uma criança birrenta.
A made in Leblon me encarou de forma compreensiva, porém não disse
para a vendedora me devolver.
— Hoje é aniversário da minha melhor amiga. Ela queria muito essa
sandália. Minha amizade depende unicamente disso.
Decidi apelar para o emocional, afinal, ela era uma mulher adulta. Eu
ainda era jovem o suficiente para agir como criança como eu bem
entendesse.
— Posso te contar o porquê de eu necessitar tanto levar essa sandália?
Ela era tão educada que ficava difícil não aceitar.
Assenti, amuada.
— Preciso agradar uma garotinha que o que tem de geniosa, tem de
estilosa. Acho que ficaria perfeita nela.
— Minha amiga merece mais. — Cruzei os braços, debochada.
— Eu preciso agradá-la, porque ela é filha do homem que eu amo.
— A minha amiga também é filha do homem que eu... — Pigarreei,
percebendo a merda que eu falaria. — Gosto.
A loira uniu as sobrancelhas, em dúvida entre rir ou me esmagar como
uma formiga. Felizmente, ela deu uma risadinha.
— Cartão, senhora? — Escutei a vendedora falar. Que grande cobra!
— Cartão. — Estendeu um cartão preto para a vendedora. — Me
desculpe, querida! É matar ou morrer.
— Espero que ela continue te odiando.
Saí batendo o pé da loja, puta da vida.
Odiava o capitalismo.
Odiava as loiras altas bonitas com aparência de Charlize Teron.
Odiava essas marcas de sapatos cafonas e suas vendedoras blasés.
Cerrei os punhos no meio do corredor e olhei para os lados. Que diabos
eu daria para Pérola agora?
Diacho!
Depois de quase dar uma frigideira antiaderente para Pérola, igual a que
minha avó comprou e enumerou suas imensuráveis qualidades, eu decidi que
daria um colar para ela.
Um presente chato, mas de coração.
Entrei com a sacolinha na casa dos Adler, onde seria a festinha.
Festinha era eufemismo, porque tudo era grande. O tema era neon e fiquei
meio abobada quando passei pela sala e vi tudo muito diferente do dia a dia,
com luzes negras e balões gigantes no teto em cores vibrantes neon. Os
convidados estavam no jardim, ao redor da piscina, também tomada de
balões coloridos. Avistei Pérola conversando com um pessoal da faculdade e
corri em sua direção, tendo que segurar meu vestido curto para não mostrar a
bunda.
Pérola estava radiante com seu macacão verde folha cobrindo o corpo
com umas estampas psicodélicas em um tom mais claro. O decote era aberto
até seu umbigo por pequenos círculos presos por botões de cristais. Botas de
cano longo brancas davam o tom Pérola para o look, arrematado com um
chapéu de cowboy. Aquele look era a pura poesia de Pérola. Nenhum ser
humano vivo conseguiria segurá-lo sem ser ela. Talvez a Rihanna, mas acho
que não, né? Ela está aposentada já.
— Feliz aniversário, gatita!
Tentei tirá-la do chão com meu abraço de urso, mas eu não era
conhecida por minha força. Em uma escala de força em que 10 era o The
Rock e 0 a avó do Sid de Era do Gelo, eu estava ali por volta de 1.
— Estava te esperando para começar os trabalhos!
Levei um tapa na bunda e sorri, puxando o vestido mais uma vez para
baixo. Estava hoje em uma vibe Geisy Arruda, com meu vestidinho curto e
rosa, com recortes na cintura. O problema era que ele subia muito e eu não
contava com isso.
— Seu presente! Me desculpe por ser simples, uma madame roubou a
sandália da Alexa Negroni que eu queria te dar.
Pérola nunca falaria que não gostou do meu presente, porque ela era um
amor. Inclusive colocou no pescoço na hora, por mais que não tivesse nada a
ver com seu look.
Fui para o bar com minha amiga, admirando toda a mobília espelhada
do bar com todos aqueles drinks chiques. Os barmen eram uns gatos.
Inclusive achei um com quem eu já tinha ficado em uma festa da faculdade.
Eu tinha um fraco por barmen fazendo malabares com a bebida no ar.
Quando eles inventavam de cuspir fogo... Uau, era meu fim!
Comecei a falar com o pessoal da escola que estava por ali. Depois do
da faculdade. Os amigos do clube de Pérola. As meninas do ballet. Do
antigo trabalho no programa de Tato. Eu era amiga de todo mundo que
também era amigo de minha amiga. Se eles gostavam de Pérola, então já
tinham muitos pontos comigo.
Sou uma criatura sociável. Aprendi a ser, na verdade. Ou você se
mostra, ou o mundo te cobre. E come. E tritura. E mata.
Já tinha tomado uns quatro drinks, mais dois shots de vodca com
Pérola. Estava altinha quando encontrei Gael rodeado por dois amigos. Seu
sorriso foi a deixa para que eu me aproximasse.
— Coma antes de beber, hein?
Quase revirei os olhos por essa ser a primeira coisa que escutei dele.
Não foi um “Uau, que pernas lindas!”, “Está gostosa nesse vestidinho,
hein? Mal vejo a hora de tirá-lo lá no meu quarto”. Nada. Homem
extremamente tóxico.
— Pode deixar. — Forcei um sorrisinho e pisquei para seus amigos que
estavam ao seu lado. Esses, sim, estavam me despindo com o olhar. Esses
olhares deles eram nojentos, porque eles tinham idade para ser meu pai.
Bem... Gael também. Mas era diferente. Totalmente diferente.
Acenei para ele e voltei minha atenção para Gael.
— Dona Dedé não veio?
— Se você não usa uma batina e serve um coquetel de hóstias, então
você não é interessante para ela.
Gael riu para valer, bagunçando seus fios de cabelo. Que vontade de
embrenhar minhas mãos ali e não soltar nunca mais.
Hoje ele estava vestindo camisa branca com listras finas pretas, calça
jeans preta justinha em suas coxas e um coturno preto que combinava muito
com ele. Que homem gostoso e estiloso, Ave Maria!
— Errada ela não está. — Piscou, divertido. — Vá comer, Pietra! Tem
aquele escalope de salmão com maracujá que você ama.
Tinha um defeito? Não, não existia nenhum naquele homem.
Gostoso. Cozinheiro. Estiloso. Bonito. Articulado. Inteligente. Eu
poderia passar o resto da minha vida aqui declamando adjetivos para ele.
Decidi fazer o que meu mestre mandou e ir até o bufê servido com todo
requinte. Se a decoração era folhagens, romãs e prataria, eu sabia que o
negócio era de qualidade. Peguei um prato e estiquei a mão para alcançar o
pegador do salmão, que foi retirado da minha mão por outra.
Mão quente.
Mão que me deu um choque.
Mão pertencente à uma detestável pessoa.
— Eu estava pegando! — avisei, fazendo questão de tirar o pegador da
mão do Isaac Newton.
— É meu aniversário — Bernardo falou como se isso mudasse algo.
— Parabéns! — Dei de ombros. — Quer mais alguma coisa?
— A comida, mamãe.
Insuportável!
Segurei a revirada dos olhos porque hoje era seu aniversário. E eu não
acabaria com o aniversário de ninguém.
Espiei o look de Bernardo, que estava com uma triste camiseta cinza
com uma estampa escrita “Star Trek”. Não sabia que diacho de marca era
essa, mas não combinava em nada com a festa. Seus jeans eram surrados e
mais largos do que o normal, assim como seus All-Star que um dia foram
brancos.
Fiz questão de colocar aqueles escalopes com a maior lerdeza que eu
possuía, apenas para irritá-lo. Senti seu olhar em mim, mas não ergui os
olhos para ver para onde ele olhava.
Pincei o pegador com meus dois dedos, fazendo uma ceninha antes de
entregar a ele.
— Cresça, Pietra.
— Apareça, Bernardo.
Dei as costas para ele, mas esbarrei em duas mulheres que estavam
muito próximas de nós dois. Elas destoavam um pouco dos outros
convidados. Eu não era nenhuma expert em moda, mas acho que calça
social, terninho cinza e sapatilhas não são muito aceitos em eventos como
esse. Olhei para o rosto da mulher com cabelo curto, com a impressão de que
a conhecia de algum lugar.
— Feliz aniversário, Bernardo!
Escutei um barulho atrás de mim e precisei olhar para ver que Bernardo
tinha derrubado a comida do prato e quase virado a tigela de inox em cima
de nós dois.
Olhei novamente para as mulheres, forçando minha memória.
A professora!
A professora por quem ele estava batendo punheta!
Virei o rosto tão rápido que senti algo deslocar em minha coluna
cervical. Bernardo estava pálido, os lábios meio arroxeados. Sua mão direita
se esfregava continuamente na lateral da calça jeans, como se limpasse algo
da palma.
Ele estava travado.
— Oi! Eu sou Pietra. Você deve ser a Paola, certo?
Eu tinha memória de elefante.
Nunca me esquecia de nada. Nadinha. Daqui sessenta anos, eu ainda me
lembraria da foto do Skype de uma professora que estava sendo
dolorosamente homenageada por um moleque insuportável.
— Sim, muito prazer.
Recebi sua mão estendida e forcei um sorriso ao apertá-la. Ela era uma
mulher bonita, alta, ombros estreitos, rosto delicado com um nariz pontudo e
cabelo cortado curtinho, com a parte frontal maior e penteada para trás.
— Oi, prof... professora! — Bernardo voltou a agir que nem gente ali
atrás de mim. — Oi, professora! — Ele se dirigiu a outra mulher, ao lado da
tal Paola.
A outra era mais baixinha que eu e usava um vestido florido com um
bolero marrom. Ela era fofa, mais velha, tentando soar ainda profissional,
embora estivesse em uma festa cheia de dedo no cu e gritaria.
Da parte de Pérola, claro! Se Bernardo fosse escolher sua festa,
passaríamos todos jogando xadrez, tenho certeza.
— Fiquem à vontade, o pessoal está ali. — Apontou para um lugar
qualquer, sem ninguém. — Preciso ir ao banheiro.
Bernardo saiu apressado de perto de nós. Largou seu prato em cima da
mesa e simplesmente se mandou.
Se ele pensava que comeria aquela professora dessa forma, eu tinha
péssimas notícias para o Santos Dumont.
— Esses garotos! — Abanei a mão no ar, despretensiosa.
As duas me olharam e logo em seguida saíram de perto. Fui para o lado
do pessoal da escola, que estava reunido em um grupo perto da piscina.
Anos se passaram desde que saímos da San Marino, mas ainda assim aquele
pessoal parecia que não mudava. Os garotos falam sobre garotas, as garotas
falavam sobre garotos. A única diferença era que trocaram os narguilés por
aqueles pen drives de agora, que soltam fumaça. Se havia algo que eu
zelava, era por meu lindo pulmão. Meu fígado nem tanto, mas meu
pulmãozinho resistia bravamente às armadilhas do Satanás.
As brincadeiras continuavam as mesmas de sempre. Bem idiotas, por
sinal. Fiquei batendo papo com as meninas, até escutar Diego, um carinha
que estudou comigo por anos e que foi o primeiro a me ensinar os caminhos
dos países baixos ― se é que me entendem ―, começar a zoar Bernardo.
Espiei para onde Diego apontava e vi Bernardo em uma rodinha de
cinco pessoas, já contando as professoras. Aqueles deveriam ser seus únicos
convidados, provavelmente da faculdade. Por mais tímido que ele fosse, eu o
vi sorrir após alguém ter falado algo para ele. Todos seus amigos eram
parecidos, não combinavam muito com os amigos de Pérola.
— Esse garoto continua o mesmo imbecil de sempre. — Diego revirou
os olhos.
Nunca entendi por que Bernardo o irritava tanto. Perdi as contas de
quantas vezes Diego o ameaçou na escola. Na maioria das vezes Pérola e eu
o defendíamos. Algumas outras eram os professores e, infelizmente, muitas
vezes não tinha ninguém por perto.
— E você continua desempregado.
Um coro de gritos veio dos meus colegas, zoando com a cara de Diego
que ficou putinho. Como sempre.
Espiei novamente o grupo de Bernardo, certificando-me de que estava
tudo bem. Eles continuavam rindo, possivelmente de uma piada que
envolvia buracos de minhoca, NASA e essas coisas. Hoje era aniversário
dele, só queria que ele ficasse em paz. Afinal, seria o que Pérola iria querer.
Dali em diante me dediquei a beber. Beber que nem gente grande. Hoje
eu não estava nada a fim de ficar com ninguém, porque não conseguia tirar
os olhos de Gael. Ele estava tão lindo. Passei alguns minutos com o cotovelo
apoiado na bancada do bar, babando em todos seus trejeitos. A forma como
passava a pontinha da língua no canto da boca. O jeito carinhoso como
tocava nas pessoas, sempre mantendo contato visual. Eu amava aquilo.
— O homem já deve ter perdido pelo menos uns três quilos com você o
secando dessa forma.
Escutei uma voz atrás da bancada e virei o rosto, observando um dos
barmen enxugando uma coqueteleira, apoiando com a cintura no mesmo
balcão onde eu me instalei.
— Ele está fora da minha zona de atuação, infelizmente. — Dei de
ombros, virando o restinho do meu drink, lutando para conseguir pegar o
morango entre os cubos de gelo.
— Ninguém se coloca fora dessa zona com alguém como você.
Uau, essa foi eficaz! Soltei uma risada, percebendo que o homem era
muito bonito. Pele negra retinta, olhos grandes em um tom de mel, cabelos
raspados. Uou, uou, uou!
— Exceto alguém que ainda me vê como uma criança.
Apontei para o copinho de shot que estava ao seu lado. Ele,
majestosamente, encheu dois com tequila e empurrou em minha direção.
— Você não tem nada de uma criança.
Não tinha. Não tinha mesmo!
Eu era uma mulher gostosa, trabalhadora, quase terminando minha
faculdade. Tinha experiência no quesito sexo, além de que eu era uma ótima
pessoa, modéstia à parte.
Quem estava me perdendo era Gael.
Uma bela gostosa dessas!
— Sabe que você tem razão? — Balancei meu dedo indicador para o
barman, sentindo minhas entranhas arderem depois de mandar para dentro
as duas doses.
Eu até ignorei o limão, porque eu tinha prioridades.
Prioridades muito, muito, muito quentes.
Como em um milagre divino, onde os deuses me abençoam mostrando
que aquela era a decisão correta, Gael atravessou o jardim e entrou na casa.
Apressei minhas pernocas, lutando contra o peso da cachaça em minha
corrente sanguínea, que me deixava molenga demais.
Gael seguiu para o corredor depois da sala de estar, onde estava
montada uma pista de dança toda moderna com uma projeção mapeada com
figuras geométricas. Espiei e vi que entrou no banheiro no final do corredor.
Sentindo minha respiração falhar, eu caminhei até lá, prostrada diante
de uma porta, sentindo que minha vida poderia mudar a qualquer instante.
Tentei elaborar uma lista de prós e contras, mas estava bêbada demais
para isso. Não consegui.
Eu queria muito Gael.
E também queria minha amizade com Pérola.
Se existisse qualquer forma de ter as duas coisas, eu topava. Topava
demais. Mas, antes de tudo, Gael precisaria saber de meus sentimentos. Ele
precisava saber que eu não era mais uma criança.
Não tive muito tempo de bolar como seria, porque Gael abriu a porta
muito antes que eu estivesse preparada. Nossos olhos se encontram e ele deu
uma espiada em meu corpo, os olhos exalando preocupação.
Vi sua boca se abrir, provavelmente para perguntar se estava tudo bem
comigo e antes que escutasse mais um “a” dessa baboseira paterna, eu me
atirei em seu peito, nos jogando dentro do banheiro. Bati a porta com minha
bunda e vi o exato momento em que ele soube minhas intenções.
— Pietra... — Seu tom era uma advertência.
Gael ergueu as mãos na altura de seu peito, como se me pedisse calma.
Dentre todas as coisas que ele poderia fazer comigo dentro de um banheiro,
ele está me pedindo calma? Isso é sério?
— Eu preciso te falar uma coisa. — Encostei meu corpo na porta de
madeira, certificando-me de que ninguém pudesse entrar.
— Não. Você não precisa, Pietra.
Não entendia seu tom. Como se estivesse controlando uma fera.
Percebi, lamentavelmente, que Gael não era nada bom com iniciativas.
Ficamos em um silêncio assustador no banheiro, sentia meu peito subir e
descer muito rápido. De frente para ele, vendo sua altura e a forma como os
dois primeiros botões abertos da camisa deixavam seu peitoral com alguns
pelos dourados aparecerem, eu fiquei tonta.
E antes que eu me arrependesse, decidi agir. Descolei meu corpo da
porta e em apenas um movimento ágil eu me joguei em cima de Gael.
Agarrei suas bochechas com minhas duas mãos e o beijei.
Nos meus sonhos de adolescente, Gael agarraria minha nuca e me
prensaria contra uma parede, sua mão grande desceria por minha cintura, até
escapar para o meio de minhas pernas. Ele diria que sonhava com isso, eu
diria que eu também. O sexo seria bruto, daquele tipo que faz uma mulher
perder até o rumo. Eu só queria isso.
Só que a realidade foi diferente.
Gael não correspondeu ao meu beijo. Pelo contrário, ele segurou meu
queixo entre seu polegar e o indicador e me afastou gentilmente.
Eu já dei apertos de mão mais quentes do que aquele selinho.
— Você bebeu demais, Pietra. Vou pegar uma água para você.
Gael fez menção de sair dali e eu agarrei seu antebraço. Minha visão
estava um pouco turva, mas eu não poderia deixá-lo ir sem me explicar. Sem
falar sobre o que eu sentia. Sobre o que eu queria.
— Não estou bêbada. — Pisquei meus olhos, tentando fazer a minha
visão voltar ao foco. — Eu tenho sentimen...
— Não, não tem. — Gael me cortou rapidamente, fazendo meus olhos
se arregalarem por puro susto. Eles começaram a arder, anunciando que as
lágrimas chegariam em breve. — Você é uma criança para mim, Pipes. Isso
vai passar rapidinho, acredite.
Afastei-me de Gael, sentindo-me mortificada.
Ele tinha me rejeitado.
Ele realmente tinha me rejeitado.
Gael ainda me deu um afago na cabeça antes de abrir a porta do
banheiro e sair tão rápido quanto uma assombração. Ele realmente não me
quis, tanto que saiu correndo no primeiro segundo que conseguiu.
Comecei a hiperventilar, recuando meu corpo para a privada. Grudei a
cabeça nos joelhos, tentando respirar melhor. Essa posição acabou por me
dar enjoo e precisei sair rápido dali, antes que eu passasse mal.
E se Gael contasse para Pérola? Ela me odiaria, nunca mais iria querer
falar comigo.
Pérola era a única família que eu tinha além de minha avó. Se eu a
perdesse, eu perderia uma parte de mim.
Não tive tempo de chorar por Gael, porque eu precisava correr até
minha melhor amiga. Eu poderia me explicar, poderia até culpar a bebida,
embora não fosse culpa dela. Eu era uma covarde, no final das costas.
Criança... Gael disse que eu era uma criança! Eu posso enumerar tantas
e tantas formas de provar que eu não sou uma criança, mas dane-se! Isso não
vem ao caso agora. Preciso ver Pérola.
Achei Pérola mais rápido do que eu esperava. Ela sorria de uma forma
linda, mostrando todos seus dentes. Era seu sorriso genuíno. Quando real e
verdadeiramente estava feliz por algo.
Meu coração gelou quando vi Gael ao seu lado, tinha outra mulher
também, mas eu nem consegui pensar antes de sair correndo e me aproximar
de minha amiga. Vi o olhar de Gael cair sobre mim, mas eu não tive tempo
para ele, porque o que estava nas mãos de Pérola chamou minha atenção.
A tal sandália laranja.
Dada pela mulher alta que ganhou um abraço de Pérola. A Charlize
Teron do Leblon, em carne e osso.
Quase consegui sentir as engrenagens rodando em meu cérebro ao olhar
aquela cena. Era a mulher que tomou a sandália de mim na loja, sem
dúvidas.
Eu preciso agradá-la, porque ela é filha do homem que eu amo.
Abri minha boca, em choque, quando entendi tudo.
A Miss Leblon... e Gael... E Pérola!
Antes mesmo que eu conseguisse fazer qualquer coisa, meu corpo
ondulou e eu me arqueei, vomitando aos pés de Gael. E de sua namoradinha.
Pérola foi a primeira a me segurar, perguntando várias vezes se eu me
sentia bem. Gael apareceu com um copo de água e a loira-ladra-de-sandálias
ficou por perto, com seus olhos verdes compadecidos.
— Me desculpe! — Olhei para o estrago que eu tinha feito,
principalmente na calça de Gael.
— Se tem vômito, temos história. — Pérola me deu um empurrão com
o quadril e me abraçou pelos ombros. — Amiga, essa é Helena. Ela é
advogada do meu pai.
Helena! Óbvio que ela se chamaria Helena.
Eu conseguia imaginá-la passeando pelo calçadão da praia com o
instrumental de “Pela Luz dos Olhos Teus”, de Tom Jobim, o vento soprando
em seu cabelo enquanto ela pensava em seus problemas que se resumiam a
uma tosa errada em seu Lulu da Pomerânia.
A glória foi que ela também me reconheceu. Ela deixou de ser a Helena
gloriosa, para ser a Helena sofredora-em-Paris.
— Helena, uh? — Coloquei um sorriso na minha cara.
Gael me encarou, mas eu não olhei para ele. Tinha dúvidas se voltaria a
olhar algum dia, na verdade. Eu o beijei em um banheiro e depois vomitei
nele. Se fosse eu, também não olharia.
— Muito prazer, Helena de Alvarenga.
Precisei rir, porque ela era uma caricatura viva. E que estava sentando
no homem da minha vida! E enganando minha amiga!
Pérola não fazia ideia daquele relacionamento, porque se fizesse, ele já
teria acabado.
— Pietra Rossi.
Recebi dois beijos no meu rosto, seguidos de um “Por favor”
sussurrado ao meu ouvido. Levei em consideração que ela me beijou mesmo
depois de eu ter vomitado em seu sapato, muito bonito por sinal. Eu não
falaria para Pérola, até porque eu tinha um segredo bem pior sendo guardado
por alguém daquele pequeno e ilusório grupo.
Fomos salvos pelo gongo, na verdade, pelo bolo. Os garçons chegaram
com um bolo gigante, rodeado de estrelas rosa e prateadas; estas,
possivelmente para homenagear o Senhor dos Foguetes que apareceu logo
em seguida.
Dei um jeito de escapar de perto de Gael e de sua Helena perfeita. Não
deu certo, porque quando Gael se juntou aos filhos, ela ficou ao meu lado.
— Ele é o pai da melhor amiga que você gosta, então? — Escutei sua
voz educada.
Se eu tivesse aquele tom de voz, com certeza já estaria apresentando o
Jornal Nacional.
— Ela é a filha do homem que você ama que você precisa agradar,
então? — rebati a pergunta.
No chão, sim. Rendida, jamais.
— Coincidências da vida.
Não entendi por que ela parecia bem-humorada com todo aquele show
dos horrores. Agora, além de Bernardo e Gael saberem sobre toda essa
merda, ela também sabia. Eu estava enterrada na merda até o pescoço. E das
fedidas. Eu ainda poderia chantageá-los, mas isso não se parecia em nada
com coisas que eu faria.
Decidi focar nos parabéns e comecei a cantar e bater palmas com o
pessoal. Pérola estava radiante, ainda mais porque Tato tinha acabado de
chegar. Bernardo estava por ali, no seu canto, deixando Pérola ser a estrela
como sempre. Era sua especialidade.
Procurei seu grupinho de amigos por ali e os encontrei no cantinho. A
professora batia palmas, parecendo desconfortável com o ambiente.
Depois do cruel rechaço que levei de Gael naquele banheiro, eu me
tornei presidente do fã-clube de Bernardo e Paola, assim como o de Pérola e
Tato.
Os aniversariantes partiram o primeiro pedaço, mas antes mesmo que
qualquer um deles conseguisse entregar para quem gostariam, Diego se
aproximou rapidamente de Bernardo. Seus passos estavam trôpegos, como
uma criança aprendendo a andar. Eu vi a merda acontecendo antes mesmo
que ele tocasse em Bernardo.
Eu me lancei à frente, tentando me aproximar, mas muito antes do que
eu alcançasse Diego, ele alcançou Bernardo. Aquele filho da puta pegou a
parte de trás da cabeça do garoto e simplesmente empurrou na direção do
bolo.
Ao meu lado começou um burburinho, seguido de um “Ah” coletivo,
demonstrando a lamentação de todos.
Bernardo levantou do bolo com a cobertura espalhada por todo o rosto.
Alguns pedaços do bolo caíam no chão. Não dava para ver nem os olhos
dele e vi quando seu olhar foi na direção da professora.
Gael e Pérola avançaram em cima de Diego, mas esqueceram do
principal: Bernardo.
Esse que saiu correndo pelo meio dos convidados.
Engoli todos meus problemas diante da noite de merda que eu estava
tendo, porque existia alguém ali que estava tendo uma noite três vezes pior
do que a minha, e decidi seguir Bernardo.
Ele subiu a escada correndo e eu fui atrás. Não foi tão difícil achá-lo em
seu quarto, fechei a porta atrás de mim, escutando o barulho de água
corrente no banheiro.
A decoração de seu quarto era bacana. Não tinha me atentado na
primeira vez que fui ali, talvez porque me assustei com ele batendo uma
punheta à luz do dia. Bem... Não tinha hora, não é? Sem julgamentos. Em
cima de uma bancada tinha vários protótipos de foguetes, assim como um
pôster grande do Sistema Solar. Dava para ver de longe que ele era
organizado, porque seus livros estavam todos em uma estante divididos por
cores, além de seu escritório não ter nada fora do lugar. Apenas seu notebook
fechado e um pequeno pote com canetas todas iguais.
Caminhei até o banheiro e o observei limpar o rosto, esfregando com
força a pele para se livrar daquela gosma cor-de-rosa.
Eu não tinha irmãos, mas acho que meu sentimento por Bernardo fosse
parecido com isso. Eu o odiava, queria esfregar seu rostinho presunçoso no
chão às vezes, poderia facilmente brigar com ele até nós dois pararmos em
uma delegacia, mas eu não gostava nada quando alguém o sacaneava.
Principalmente porque ele não se defendia. Tipo, nunca.
— O bolo está bom, pelo menos?
Ele levou um choque. Vi seus ombros se encolherem à medida que
ergueu o rosto e me encontrou no reflexo do espelho, escorada ao batente de
sua porta.
— O que está fazendo aqui?
Bernardo pegou uma toalha, removendo os resquícios do bolo com ela.
— Vendo como você está, ué! — Dei de ombros, minimizando. — Ele
poderia ter te machucado.
— Com um bolo? — Ele parecia espantado.
— Com um palito de sustentação, gênio.
Os ombros dele relaxaram um pouco, mas continuou limpando o resto
do glacê. Tinha cobertura até em suas orelhas e eu me senti péssima por isso.
— Esse cara é um idiota.
— Ele não era seu namorado na escola?
— Não sou conhecida por fazer as melhores escolhas.
Eu ri para suavizar o clima, mas ele não. Senti-me um pouco
incomodada ali, como se estivesse ultrapassando um limite. Bernardo e eu
não éramos amigos, longe disso, aliás. Enquanto ele era zoado na escola
pouco tempo depois de ter perdido seu melhor amigo, eu estava aos beijos
com o babaca que o humilhava. Eu nunca apoiaria algo assim em minha
frente e até tentava controlar Diego, pedindo para ele pegar leve. Mas a
minha escolha foi clara e óbvia. E eu me envergonhava disso.
A adolescência é uma merda!
Senti meu estômago dar uma cambalhota quando vi Gael abrir a porta e
colocar a cabeça para dentro do quarto. A primeira pessoa que ele viu fui eu,
parada de pé no meio do caminho. Ele pareceu confuso, mas decidiu focar
no que importava: seu próprio filho.
Pérola apareceu logo depois e ela, sim, torceu o nariz ao me encarar.
— Está tudo bem? — minha amiga perguntou.
— Sim — respondi rápido. — Corri atrás dele para ver se tinha
machucado.
— Obrigado pela preocupação, Pietra.
Foi Gael quem falou e eu senti o gosto azedo subir novamente por
minha garganta. Eu tinha vomitado no homem depois de tentar agarrá-lo.
Meu Deus, eu era uma vergonha para a classe feminina.
Pérola ainda me encarou mais uns dois segundos antes de ir em direção
ao irmão. Eu saí do quarto, afinal, eu não era próxima de Bernardo, não tinha
motivo para continuar ali. Foi preocupação boba mesmo. E um pouco de
pena daquele babaca de Diego ter estragado o aniversário dele.
Fui até o banheiro social no final do corredor, fiz meu xixi e enquanto
enxaguava as mãos, eu me olhei no espelho. Meu rímel estava borrado,
escorrendo pelo canto externo, a pele das bochechas rosada, assim como
meu nariz, indicando que eu estava bêbada. Isso não era novidade, porque
tudo ao meu redor zunia.
Eu necessitava tomar um rumo na minha vida, parar de beber, de fazer
merda, cobiçar o pai e namorado às escondidas alheio. Precisava estudar e
me tornar uma grande gostosa dona de mim, com um trabalho incrível que
pagaria minhas férias de julho em Capri e me tornaria a tia que leva os
sobrinhos para a Disney. O plano já começava falho, porque eu era filha
única. Mas o espírito da mudança é esse!
Gostava de ser uma garota bem resolvida com meus sentimentos, que
não se importava de ficar sozinha, porque minha companhia é o que me
basta. E é assim até a página dois. É realmente uma delícia ser solteira, ter
amigos, ser uma jovem imprudente e que faz o que quer, até eu realmente
começar a pensar em meu futuro. Não dá para ser assim para o resto da vida.
Joguei água no rosto, arrumei a maquiagem e saí do banheiro. Fui em
direção à escada, mas algo na sala íntima que ficava antes dos quartos e que
eu costumava ver TV com Pérola quando éramos mais novas, chamou minha
atenção.
Aproximei-me para ver melhor e meus olhos quase viraram do avesso
ao revirá-los por ver o que Bernardo estava fazendo.
— Está jogando videogame, sério?
Eu me inclinei no encosto do sofá para ver o que ele estava jogando em
um tipo de videogame portátil ou algo do tipo.
Percebi que ele tomou um susto e me olhou com aqueles olhos grandes
dele bem arregalados.
— Você está me perseguindo?
— Quem sabe nos seus sonhos — brinquei, dando uma piscada.
Joguei-me pelo encosto, caindo ao lado de Bernardo. Ele se remexeu,
puxando o moletom que tinha colocado agora que ficou preso embaixo da
minha bunda.
Espiei o joguinho dele, era uma bonequinha lutando em um cenário de
montanhas.
— O que é isso? — Apontei para a tela.
— Um jogo.
— Jura? — ironizei.
— The Legend of Zelda.
— Como joga?
— Você não sabe jogar.
Olhei bem a cara presunçosa do Steve Jobs, tentando não partir para a
ignorância. Eu estava ali perdendo meu tempo com ele e o mal-agradecido
ainda me tratava assim.
— O que está fazendo aqui? — perguntei, tentando ignorar sua falta de
educação.
— Meu pai me mandou voltar para a festa.
— Isso não é a festa. — Apontei para o joguinho que ele tinha acabado
de desligar, depois de uma longa bufada e uma coçada nos olhos.
— É o meu tipo de festa.
— A professora está lá embaixo.
Bernardo deu de ombros e se inclinou para colocar o videogame na
mesinha de centro. Eu o observei com mais atenção, um pouco preocupada
com todo aquele baixo-astral em sua própria festa de aniversário.
— Você não vai conquistar ninguém daqui de cima, Bernardo.
— Como que se ela fosse querer algo comigo! — respondeu, irritado.
Diego tinha acabado com o clima da festa para ele, mesmo! Bernardo já
era chato, mas estava um porre agora.
— Se você continuar aqui, enquanto poderia estar lá xavecando quem
quer, óbvio que não vai acontecer.
Ele bufou e passou as mãos pelos cabelos, bagunçando tudo o que já
não estava muito arrumado. Bernardo tinha os cabelos um tom mais escuro
dos de Gael, os fios eram volumosos, mas lisos. O irmão de minha melhor
amiga não parecia ser um grande fã de escovas de cabelo, mas até que fazia
sentido com o visual meio Albert Einstein geek dele.
— Eu não sou interessante para ela, Pietra. Não dá.
— Então seja! — Irritei-me com aquele papinho dele. Que garoto
chato!
— E como eu vou ser?
— Puxe papo, converse, chame para dançar, mostre ser interessante,
disponível, mas não tanto. Ela tem de encontrar alguma resistência, algum
desafio.
— Foi isso que meu pai fez com você?
Sua pergunta repentina me deixou surpresa. Acho que era por isso que
eu não falava com Bernardo, ele era inconveniente e nada delicado. A
criança não sabia conversar com humanos, definitivamente.
— Dentre outras coisas.
— Você é muito burra quando quer, Pietra.
— Você me chamou de burra? — Abri a boca, ofendida.
Bernardo percebeu que falou merda e suas bochechas ficaram cor-de-
rosa, como um lorde inglês. Ninguém que morava no Rio de Janeiro corava
daquela forma, pelo amor de Deus!
— Chamei.
Suicida, só pode!
— E você é um covarde arrogante.
— Não faz sentido alguém ser covarde e...
— Cala a boca e volta para a festa, Bernardo! — cortei-o antes que
começasse a invalidar minhas ideias novamente. — Anda logo!
Eu o puxei pelo cotovelo, levantando-o do sofá quase a pontapés. Pelo
amor, moleque insuportável! Parece que faz de propósito essas cenas.
Descemos as escadas juntos, porque ele voltaria correndo para o quarto
se eu o deixasse ali. Observei a movimentação de pessoas dançando na
ampla sala, no palco um DJ comandava a festa e parecia bem animado, mas
sem qualquer sinal de Pérola. No mesmo cantinho de antes, estava o pessoal
da faculdade de Bernardo, incluindo a professora que olhou para nossa
direção.
Eu conhecia aquele olhar muito bem. Era de puro interesse. Aquele
olhar que damos quando nós nos fazemos de difícil para um cara que
aparece logo depois com uma garota. É a forma mais eficaz de chamar a
atenção de uma mulher.
— Ela está olhando para você. — Dei duas batidas no ombro de
Bernardo.
— Quem?
— A professora. — Apontei com o queixo na direção onde a mulher
estava. — Vai que é tua, garanhão!
Terminei de descer a escada e vi quando Bernardo seguiu na direção
contrária. Espero do fundo do meu bondoso coração que ele encontre sua
paz dentro da calcinha daquela professora e tenha um pouco de felicidade na
vida. Seria incrível encontrá-lo sem aquela cara azeda.
Fui para o bar e decidi recomeçar os trabalhos, porque Bernardo tinha
cortado a minha brisa. Tentei ainda procurar Pérola, mas não a achei. Muito
menos Gael, que deveria estar recitando Vinicius de Moraes para sua
Helena. Bleh, patético! Não o Vinicius de Moraes ― porque eu adoraria ter
alguém declamando o Soneto da Fidelidade ao meu ouvidinho, dizendo que
nosso amor seria eterno enquanto nosso sentimento durasse ―, sim, a
situação de Gael e a Miss Leblon juntos.
Sou. Muito. Mais. Eu.
Quatro caipirinhas de hibisco e amora depois eu já estava descendo até
o chão. Se havia algo que o álcool era bom, era em fazer tudo ser esquecido.
Eu nem lembrava mais quem era Gael a essa altura do campeonato. Beijei
um cara chamado Jamil, só porque ele me deu saudades do carnaval de
Salvador. O beijo dele não era tão bom quanto o carnaval, mas estava de
bom tamanho.
Encontrei Nadine, uma garota que fazia faculdade comigo e com Pérola
e ficamos dançando por ali até o momento em que eu senti um dedo
cutucando meu ombro duas vezes.
Ergui minha cabeça e virei para a pessoa, sendo surpreendida por
Bernardo bem na minha frente.
— Preciso da sua ajuda.
Eu não gostava de Pietra Rossi por inúmeros motivos.
Pelas merdas que ela falava.
Por minha irmã gostar tanto dela.
Por achar que minha irmã deixaria de me amar, porque Pietra era muito
mais interessante do que eu.
Pela forma como os professores gostavam dela na escola, mesmo que
ela fosse péssima estudante.
Por ela se safar de todas as merdas que aprontava, só porque era bonita
e tinha uma lábia infalível.
Por acreditar que aquelas receitas caseiras e simpatias mirabolantes
eram superiores à Ciência.
Por ser diferente das meninas populares. As outras eram más, ela era
simpática e engraçada, o que a tornava um monstro.
Por não gostar de ela ser meu perfeito oposto.
Por ser intrometida, curiosa, irritante na mesma quantidade que era
linda.
Por ser apaixonada pelo meu pai.
Por ela não ser uma boa garota.
E mais do que tudo isso, por eu precisar de sua ajuda.
— Minha ajuda?
Suas sobrancelhas grossas e bem-marcadas pela maquiagem se uniram,
fingindo surpresa. Ela deveria era estar adorando aquela situação.
Notei seu rosto avermelhado e suado, provavelmente pela bebida. Pietra
bebia demais e nem era força de expressão, era real. Para alguém que
começou a beber com uns treze anos, eu não sei como ainda conseguia.
Eu não gostava de beber, porque beber significava perder o controle.
Algo que não parecia ser problema algum para aquela garota. Seus olhos
eram estreitos e amendoados, o que combinava com o nariz curto com a
pontinha sempre de pé. O rosto de Pietra não combinava com o resto dela,
porque parecia sempre inocente demais. Algo que ela não era, nem um
pouco.
— Não sei o que fazer com a Paola. — Fui sincero.
Depois que a peguei naquela maldita cena na cozinha com meu pai, ela
se tornou a pessoa que mais sabia da minha vida atualmente. Eu não era um
cara de grandes amigos, na verdade o número girava em torno de zero e um,
depende do dia. Minha irmã era minha melhor amiga, mas era uma
fofoqueira. Meu pai era um homem bom, mas eu sinceramente não sabia
onde estava sua cabeça agora. Se no restaurante, em seus problemas ou em
pegar a melhor amiga de sua própria filha na cozinha de nossa casa.
— Sexo, ué! — Deu de ombros. — Sabe como é, né? Adultos sem
roupa, fricção, fluídos e tal?
Na teoria era óbvio que sabia. Na prática já era outra coisa.
— Eu falei algo que não devia.
Pietra apertou a ponte do nariz, olhando para o teto como se fosse um
martírio conversar comigo. Era para mim também, porque ela era a última
pessoa que eu gostaria de conversar.
— O que falou, gênio?
Segurei minha careta, porque não queria irritá-la. Ela já ficaria bem
irritada com a merda que eu tinha feito com seu nome.
— Que você era minha ex-namorada.
Pietra ficou parada olhando para meu rosto por tanto tempo que achei
que estivesse elaborando uma forma de me matar.
— Eu... Eu fiquei nervoso quando ela me perguntou o que eu estava
fazendo lá em cima com você — continuei com minha explicação, mas ela
nem se mexeu. — Ela ficou... Não sei, animada?
— Como se tivesse te visto com outros olhos?
Fiquei surpreso por ela ter saído de seu transe.
— É!
— Ela deveria te considerar um coitado virgem que não é capaz de
achar o buraco certo.
Foi a minha vez de ficar paralisado.
Ser virgem não significa não entender sobre os buracos corretos. Isso é
fisiologia básica.
— Não que os dois não sejam certos... — ela sussurrou.
— O quê? — Fingi não ter escutado, por puro reflexo.
— Nada, não.
— E agora? O que eu faço?
Eu cheguei ao fundo do poço de pedir conselhos para Pietra Rossi, tudo
isso por conta dessa muralha que ergui ao meu redor. Eu me enfiei lá e nunca
soube sair. Eis que tenho vinte anos e agora não faço ideia de como
conquistar uma mulher.
— Agora você aproveita a fama.
— Que fama? — Juntei meus ombros.
A música alta já tornava difícil o entendimento e Pietra ainda não falava
nada com nada para ajudar.
— De ter tido o prazer da minha companhia.
— Você não está brava? — Eu sabia que tinha feito merda. E das
grandes!
— Já inventaram coisas piores ao meu respeito.
Disso eu sabia bem.
Na sétima série inventaram que ela vendia foto dela pelada.
No primeiro colegial disseram que ela estava grávida e abortou durante
as férias.
No terceiro colegial alguém começou a falar que ela era prostituta e por
isso ia a tantas festas.
Senti uma onda de arrependimento por ter inventado isso e fazê-la
passar por esse constrangimento. Tudo bem que o pessoal da minha
faculdade não tinha contato nenhum com ela, nem com minha família.
Aquela história ficaria apenas no meu círculo de amigos.
— Todos acreditaram? — Pietra perguntou, esticando o pescoço para
olhar algo por cima do meu ombro.
— Acho que sim.
Não fazia ideia. Eu era péssimo em mentiras, ainda mais sobre garotas.
— Estão olhando para cá. — Colocou as mãos em meus ombros,
começando a gargalhar do nada, jogando a cabeça para trás.
— O que é isso?
— Fingimento. — Novamente ela jogou a cabeça para trás, forçando
uma gargalhada ainda mais alta. Era assustador para falar a verdade. —
Volta para lá e se prepara.
— Quê?
— Volta para lá. Vai!
Aquela maluca me empurrou na direção onde meus colegas estavam.
Eu ainda a observei por cima do meu ombro, mas Pietra já tinha seguido
para o bar. Aproximei-me da mesa onde Paola estava conversando com
Tony, meu professor de Ambiente Aeroespacial. Meus colegas de classe,
Cássio e Poliana estavam me olhando de uma forma esquisita. Enquanto
Fátima, minha professora de Álgebra Avançada, que já estava bem altinha de
bebida, dançava de uma forma esquisita ao redor de nós.
— Ela é a própria Teoria do Tudo, cara! — Cássio apertou meu ombro
assim que voltei para o meio dele e de Poliana.
Poli era a única garota em nossa sala de vinte e cinco homens. Ela foi a
primeira colega que fiz na faculdade e continuávamos próximos até hoje. Ela
era um gênio, nunca conheci pessoa tão perspicaz e inteligente em toda
minha vida. O único problema era que se eu era tímido, Poli era o triplo.
Ela ficou corada por escutar essa cantada ridícula de Cássio direcionada
para Pietra. Esse, que achava que todas as mulheres do planeta estavam
atraídas por ele. Eles eram bons colegas.
Escutei Paola e Tony conversarem sobre reatores nucleares, um assunto
que eu gostava muito de debater, principalmente sobre fusão nuclear, algo
que acredito estarmos muito perto de conseguir produzir. Será nossa maior
conquista como seres humanos. Eu me desviei do assunto quando vi Pietra
no bar, virando três copos de dose, um atrás do outro. Ela nem fez cara feia.
— Bernardo fez um excelente artigo para minha aula falando sobre
Entropia e Resíduos Nucleares.
Escutei Paola falar sobre meu artigo para Tony e me obriguei a desviar
o olhar de Pietra para meus professores. Paola apoiava o queixo na mão,
olhando-me com um sorriso incentivador. Eu gostaria muito que Tony
tivesse sido meu orientador ao invés de Paola, até ela sabia disso. Gostaria
muito de trabalhar com ele. Porém, faltava apenas um mês para me formar.
Meu objetivo agora era ele ler meu projeto de pesquisa para o phD, já que
era especialista no assunto.
Virei meu corpo para conversar apropriadamente com Tony, abri a boca
e antes que falasse qualquer coisa, senti alguém puxar meu moletom para
trás.
— Bebê, vem dançar comigo!
Virei meu pescoço, mortificado, ao reconhecer a voz melosa demais,
que nunca, nem por um segundo, nem em sonhos ou um alinhamento bizarro
de planetas, Pietra falaria comigo.
Certifiquei-me de que era comigo mesmo que ela falava e, sim, era.
— É a nossa música.
Pietra esticou a mão, esperando que eu a acompanhasse. Olhei para
meus professores e vi o brilho malicioso no olhar de Tony e o choque
refletido no rosto de Paola. Ela realmente estava surpresa.
Eu não estava muito diferente dela.
— Pietra... — sussurrei, tentando fazê-la entender que estava levando
aquilo longe demais.
— Vem, bebê! — Expandiu seu sorriso, passando a língua pelos dentes
extremamente brancos.
Tive a impressão de que tive algum apagão, porque quando dei por
mim, ela já segurava minha mão e me arrastava para alguns metros adiante.
Senti que minha circulação sanguínea foi interrompida, talvez por um AVC,
assim que Pietra deu um giro e grudou o corpo ao meu, ondulando o corpo
no ritmo da música.
— Para com isso! — implorei.
— Segunda-feira ela estará na sua cama. Aposta quanto?
Eu não queria Paola na minha cama. Não a esse preço, pelo menos.
Pietra era completamente louca.
Senti suas costas encostarem à minha barriga. Nunca estive tão colado
assim com uma mulher em toda minha vida. O perfume do cabelo dela me
nocauteou, era um cheiro doce, gostoso. Algo que eu também nunca tinha
sentido.
Foi então que ela começou a rebolar o quadril e sua bunda me tocou.
Fiquei paralisado, sentindo minhas pernas trêmulas ao vê-la rebolar em mim
daquela forma. E eu não só via, eu sentia.
Pietra escorregou a bunda por minhas pernas e foi aí que a desgraça
aconteceu. Eu comecei a ter uma ereção misturada com uma crise de
ansiedade. Foi o momento mais doloroso de toda minha existência.
Não satisfeita, ela voltou do chão e se jogou em meu pescoço,
mantendo nossos corpos colados enquanto a batida da música estava mais
suave.
— Agora você me pega pela mão e me arrasta em direção à escada.
Tremi ao escutá-la.
Ela queria que eu a levasse para meu quarto?
— Para eles, nós vamos ter uma noite louca de sexo. — Sua voz ao
meu ouvido era como enfiar a mão no fogo. Escaldante, dolorido, perigoso.
— A verdade é que você precisa me tirar daqui antes que eu vomite em
você. Estou passando mal.
Fiquei grato por ela falar aquilo, pois foi o primeiro sinal de que minha
ereção poderia ser controlada. Nós vamos sair daqui, ela vai dormir e nunca
mais tocar em mim, assim como sempre foi.
Só não sei se vou me esquecer da quentura de seu corpo em cima do
meu, a forma como sua bunda rebolou em torno do meu quadril.
Não! Não! Não!
Eu preciso de foco. Aquilo não era real. Era um pesadelo.
Decidi acabar de uma vez com aquilo e puxar Pietra pela mão, não
ousando nem olhar para os lados. Eu sabia muito bem que as pessoas
estavam olhando, não tinha como não olhar, na verdade.
Assim que atingimos o segundo pavimento, ela tirou a mão da minha e
saiu correndo pelo corredor. Eu a observei correr até o fim e entrar no quarto
onde ela dormia às vezes, quando não ficava no de Pérola. O da minha irmã
estava ocupado pela própria e Tato. Assim que passei por ali, contive a
careta de nojo, bloqueando todo e qualquer pensamento.
Dei uma batida à porta que Pietra tinha acabado de entrar. Ela não
respondeu, então girei a maçaneta, lembrando que ela disse que estava
passando mal. Espiei o ambiente genérico, com a cama arrumada com um
lençóis cinza. As paredes tinham um papel de parede com flores em tons de
azul e branco. Ela era a única que dormia naquele quarto, porque não
recebíamos visitas.
Escutei uma tosse vinda do banheiro e me senti intimidado a ir ver se
ela estava bem, por mais que houvesse uma pequena preocupação.
Eu não seria hipócrita de falar que estava desesperado em ajudá-la,
disposto a cuidar dela depois de uma noite de bebedeira, porque eu não tinha
uma relação assim com Pietra. Ela era a amiga da minha irmã, a garota que
estudou comigo, a minha crush de infância. E parava por aí.
Só que quando ela começou a demorar, eu fiquei com medo de ela ter
desmaiado. Dei três passos em direção ao banheiro e bem quando estava no
meio do quarto, ela saiu vestindo apenas calcinha e sutiã.
Minha boca começou a tremer, assim como minhas mãos, minhas
pernas. Seu olhar me encontrou ali e vi o seu franzir de testa, demonstrando
a estranheza da situação. Que, sim, era estranha.
— Era brincadeira a parte do sexo, tá?
Pisquei algumas vezes, tentando me livrar daquele embasbacamento ao
vê-la seminua na minha frente. Eu já tinha visto de biquíni, claro! Ela estava
em todas as nossas férias, enfiada lá como se fosse da família. Só era...
diferente. A forma como a calcinha tapava aquele minitriângulo no meio de
suas pernas e o sutiã rendado evidenciava seu busto.
Eu me obriguei a direcionar os olhos para o chão, porque existiam
quinhentos mil motivos pelo quais eu não deveria vê-la naqueles trajes. Ela
estar bêbada era o primeiro deles.
— Só vim ver se você está bem.
— Tudo girando, Stephan Hawking.
— O quê? — Obriguei-me a olhar para ela.
— Você é um gênio, não é?
Achei graça pela forma como falou, mas não demonstrei. Fui até a
cama e puxei o edredom, deixando no alto até ela pular no colchão e se
deitar.
Observei sua maquiagem toda borrada, os cabelos mais armados do que
nunca. Ela realmente tinha passado dos limites.
— Quer um pouco de água?
Apontei para nenhum lugar específico. A sorte foi que ela nem
percebeu e só negou.
Eu soltei o edredom nela e decidi deixá-la dormir em paz. Já tinha feito
minha parte em retribuição do que ela fez por mim.
Pietra continuou olhando para a minha direção. Eu nunca tinha bebido,
mas sabia os efeitos da bebida. Ela provavelmente estava vendo uns quatro
de mim ali.
— Eu beijei seu pai hoje.
Fazia muito tempo que não tínhamos um café da manhã tão silencioso.
Na verdade, estava mais para um brunch.
Meu pai e minha irmã eram festeiros e muito parecidos nesse quesito.
Minha irmã e eu vivemos rodeados de amigos do meu pai, sendo as únicas
crianças em meio aos adultos baladeiros. Provavelmente tenha sido isso que
me fez ser tão introspectivo. Eu odeio festas, odeio ter de ficar no meio de
multidões e buscar formas de me adequar à situação. Soube cedo demais,
ainda bem, que eu não me adequaria.
Aos seis anos descobri que preferia muito mais ficar lendo no meu
canto na escola, do que jogar futebol com os garotos. Eu nem gostava de
futebol, para falar a verdade. Aos dez anos eu fiz meu primeiro amigo
verdadeiro e nós passávamos muito tempo falando sobre dinossauros. Ele foi
a primeira criança que não riu de mim ou me bateu. Infelizmente meu amigo
morreu cedo demais e eu usei todo esse tempo para estudar e realizar meus
sonhos. Enquanto todos os garotos corriam atrás de garotas e iam a festas, eu
estava fissurado em aprender sobre foguetes.
Estar no meu mundo me fazia feliz. Festas, não.
Tentava não julgar meu pai por ser um senhor de idade e ainda estar
festejando por aí com Jader e Otto, seus amigos desde a época da escola. Ele
foi pai com dezoito anos. Eu tenho vinte e surtaria se algo assim acontecesse
comigo — mesmo sabendo muito bem que é impossível —, por isso, acho
meu pai o cara mais incrível que conheço por ter decidido ficar conosco. Ele
poderia muito bem ter fugido, assim como minha mãe, mas ele ficou.
Eu tinha sete meses quando minha mãe nos abandonou, depois de se
apaixonar por um gringo qualquer que cruzou seu caminho. Pérola tinha um
ano e meio, mal sabia andar. Meu pai trabalhava com meu avô, no
restaurante da família e se desdobrou em vinte para ser o melhor pai do
mundo, ser presente e expandir os negócios. Eu não sei até hoje como ele
deu conta, então se ele deseja festejar com seus amigos como se tivesse
dezoito anos, eu que não o criticaria. Agora, beijar garotas que têm a minha
idade, aí já passa dos limites!
Agora minha irmã... Bem, ela precisava de uma intervenção. Urgente.
Eram 2h da tarde e só agora tinha acordado e se juntado a nós à mesa.
Seu cabelo estava uma desordem e tinha remela seca acumulada no cantinho
de seus olhos, estes que malemá ficavam abertos.
— O requeijão... — Pérola apontou para o pote ao meu lado, parecendo
fazer um esforço absurdo para se mover.
Empurrei o pote para ela, minha irmã pegou e acabou desistindo pelo
meio do percurso, tombando a cabeça para a mesa.
— Aproveitando que estamos os três reunidos aqui, precisamos
conversar sobre nossas férias — Meu pai falou.
— Pietra dormiu aqui, não dormiu? — perguntei o que eu claramente
sabia, porque, sim, tinha dormido.
Eu mesmo fechei a porta do quarto depois que ela desmaiou de sono
depois de falar que beijou meu pai.
— Ela foi embora de manhã, mandou mensagem avisando — Pérola
murmurou, ainda com a testa colada na mesa.
Assenti, voltando a prestar atenção no meu pai que não parecia muito
abalado comigo falando sobre Pietra.
— Estou abrindo uma nova franquia em Miami e preciso passar o verão
lá.
Tudo bem, eu tinha planos para essas férias, mesmo. Precisava escrever
alguns artigos e ainda trabalhar em cima da minha tese. Precisava apenas
apresentar meu projeto para a conclusão de curso e estaria formado. Meu
próximo objetivo era o doutorado. Já tinha me candidatado em algumas
instituições, mas ainda não sabia para onde queria ir.
— Não vamos tirar férias juntos? — Pérola se recuperou em dois
segundos para discutir aquele tema.
Férias para ela eram sagradas. Viajávamos em todas nossas férias
escolares juntos. Eram meus momentos preferidos do ano.
— Vamos, porém em Miami.
— Miami de novo? — reclamou. — Não aguento mais Miami.
— Pérola... — meu pai advertiu.
Pérola se acostumou rápido demais à vida boa. Não fazia tantos anos
assim que podíamos viajar dessa forma, ter casa em outro país e uma vida
mais confortável do que boa parte da população. Meu pai trabalhou muito
para nos dar esse privilégio e sinto que minha irmã não dá o devido valor a
isso muitas e muitas vezes.
— Ok, não falo mais nada! — Rendeu-se com as mãos para o alto. —
Quando vamos? Preciso avisar a Pietra, ela tem que tirar férias do trabalho.
Parei com o pão de queijo na boca, olhando a reação de meu pai que
coçou o couro cabeludo e deixou o garfo em cima do prato.
— Vamos em família dessa vez.
Olhei para Pérola, acompanhando aquele embate dos dois como se
fosse um jogo de tênis. Ela se zangou e mais do que isso, ela se ofendeu.
— E Pietra não é da família? — Cruzou os braços, contrariada.
Acho que Pietra nunca esteve tão dentro da família assim da vida.
Minha irmã só não tinha ideia disso.
— Gostaria de fazer uma viagem com meus filhos, nós três curtindo
juntos e...
— Ela não tem isso, pai. — Pérola novamente o cortou. — Uma
viagem em família, algo legal e diferente do que ela vive. Nós somos a
família dela.
Não conseguia discordar, porque Pietra estava no caminho certo para
entrar oficialmente nesta família.
Eu não sabia com quem estava bravo naquela história. Com meu pai,
um adulto responsável. Ou com Pietra, que não tinha um pingo de juízo
naquela cabeça dela.
— Miami pode ser um saco para mim, mas não para ela. Eu só queria
dividir um pouco disso com minha melhor amiga.
Odiava o poder de persuasão de Pérola. Ela jogava com nosso
emocional como ninguém. Pietra poderia fazer nossa família ruir em um
piscar de olhos e ainda assim eu senti meu coração apertado por abandoná-
la. Ela realmente esteve conosco em todas as férias. Era um saco a gritaria
dela com Pérola, a forma como acordava sempre antes do sol raiar para
poder aproveitar o dia, fazia café da manhã e nos obrigava a levantar cedo
para não perdermos nada.
“Tempo é dinheiro e o dólar está caro”, era seu lema.
— Meu voto é não.
Meu pai deu início à votação que era nossa regra diante de um embate.
Tínhamos muito apreço pela democracia dentro daquela residência.
— Meu voto é sim.
Recebi os olhares assim que minha irmã deu seu voto. Sobrou para
mim.
Estava pronto para falar “não”, porque sabia que alguém tão teimosa
como Pietra não desistiria de ter o que queria, mas acabei me lembrando do
que ela fez por mim ontem. Eu não pedi para ela fazer tudo aquilo e ainda
assim ela entrou na minha mentira e fez com que, pela primeira vez na vida,
eu não saísse de cena como alguém invisível ou facilmente jogado para
escanteio. Fora que me lembrar dela chorando toda vez que via aquele
maldito Mickey era fofo. Ela gostava de verdade daquele rato.
— Eu voto sim.
Escutei o gritinho da vitória da minha irmã, seguido do sorriso não
muito animado do meu pai.
Seriam férias um pouco complicadas para ele.
Existiam duas coisas que eu mais amava na relação com meu pai.
A forma como ele nunca fez com que eu me sentisse inferior a ninguém
por conta das minhas limitações. E também a honestidade em nossa relação.
Essa última parte estava muito afetada depois daquele dia em que o vi
com Pietra na cozinha. Ele estava tocando suas costas enquanto a olhava de
uma forma esquisita. Ali eu já sabia que algo não estava certo. Depois de
ontem, foi a prova mais concreta de que talvez meu pai não fosse 100%
verdadeiro comigo.
Se Pietra não estivesse tão bêbada e me contasse sobre o beijo, eu
nunca saberia.
Durante nossa partida de tênis, eu descontei em meus forehands[1] com
muita força. Meu pai perdeu feio naquela partida, porque não dava para
acompanhar. Não peguei leve com ele, porque eu estava chateado. Era como
saber que ele estava passando Pérola e eu para trás.
— Excelente jogo, Bê!
Ele veio com a mão erguida para mim e tudo o que eu consegui fazer
foi dar um leve toque, concentrando-me em enxugar a testa com a toalha de
rosto. Meu pai arrancou a camisa, enxugando a barriga cheia de gomos com
sua toalha. Eu poderia passar o resto da minha vida treinando e tenho certeza
de que não chegaria aos pés do meu pai. Ele era forte, corpulento, mesmo
que não treinasse, ele ainda seria grande. Eu era alto, porém um pinguim
parecia menos desengonçado do que eu.
— Você está muito pensativo hoje.
Recebi uma toalhada na cara e o observei, percebendo seu olhar em
mim.
— Bê? — ele insistiu.
Respirei fundo e afastei o cabelo úmido da minha testa.
— Você tem alguma coisa com a Pietra?
Soltei de uma vez, porque eu queria ver sua reação. E não foi das
melhores que eu presenciei. Meu pai ficou pálido, nervoso, coçando várias e
várias vezes a barba antes de conseguir voltar a me olhar.
— Claro que não! Ela é uma criança, assim como você, assim como sua
irmã.
Esperei o momento em que ele me contasse a verdade, mas ele não
contou. Ele considerava que ela fosse criança, mas a beijou ontem, não? Que
situação horrível!
— Aquele dia na cozinha vocês estavam esquisitos.
— Filho, não existe nada entre nós dois, acredite.
Ele parecia verdadeiro e, bem... Pietra não era muito confiável. Garotas
bonitas não estão acostumadas a serem rejeitadas. Eu duvido que alguém já
tenha rejeitado ficar com ela. A ideia de conquistar alguém impossível para
ela deveria ser o que mais a motivava.
— Seria complicado com Pérola e tudo mais. Ela está na nossa família
faz muito tempo. Seria... catastrófico.
— Claro que sim! Nunca faria isso com Pérola.
Meu pai nunca mentiu para nós dois, acredito que não seria agora que
começaria a mentir. Pietra era realmente uma criança para ele, eu mesmo
perdi as contas de quantas vezes ele a tratou como filha. Eu conhecia meu
pai, foi o que disse para ela no dia em que me pegou naquela situação
constrangedora no meu quarto.
— Só não minta para nós, pai.
Vi seu pomo-de-adão subir e descer antes de abrir um sorriso,
exatamente da forma que eu mais amava. Ele veio para cima de mim,
passando o braço esquerdo pelo meu pescoço, puxando-me para um abraço.
Não existia pessoa nesse mundo que eu me sentisse mais protegido e amado
do que com meu pai. Eu não tinha medo de ser quem eu era ao seu lado.
— Nunca.
— Tudo está em seu mindset, você tem de ser a mudança que deseja
ver.
Revirei os olhos tão forte que fiquei com medo de desprender meu
globo ocular. Eu não aguentava mais essas pessoas falando a mesma coisa
todos os dias naquele podcast.
Desviei os olhos do nosso convidado e voltei a trabalhar no notebook,
cuidando dos posts da semana e vez ou outra ainda me certificando de que a
live do apresentador e do convidado estava funcionando corretamente. Eu
tinha tanto cargo acumulado dentro daquele emprego que se realmente me
pagassem por tudo o que eu fazia ali, eu estaria rica. Ou pelo menos não tão
na merda assim.
Terminei de organizar os posts minutos depois e levantei para ir até a
copa, para passar um café para mim e o pessoal que estava na gravação.
Cliquei na tela do celular para conferir as horas, eram 4h42, logo terminaria
a gravação. Hoje eu ainda tinha que ir para a faculdade para entregar um
trabalho de redação jornalística que elaborei falando sobre a degradação da
notícia depois da propagação das fake news.
Era chato, mas eu precisava da nota.
— Café? — Voltei ao estúdio oferecendo café para o pessoal da equipe
do Ultimater Coach, como aquele bocó gostava de ser chamado na Internet.
Ele vendia uma vida dos sonhos, mas eu o escutei falando com seu
amigo — e assessor e empresário e bajulador — que a mãe tinha brigado
com ele por ter chegado tarde. Depois de um ano e meio trabalhando aqui,
eu já tinha agarrado um ódio de quem vive uma vida dos sonhos na Internet
para motivar os outros a correr atrás de coisas que você mente para eles que
conquistou.
Meu mau humor era oriundo do meu final de semana conturbado. Eu
beijei Gael, porra! E ele me esnobou como se eu fosse um belo de um nada.
Começava a acreditar que eu era. E ele estava namorando aquela senhora.
Ela não tinha nada a ver com o estilo aventureiro de Gael. Duvido que um
dia ele se metesse no meio do mar para velejar com ele, como eu fiz. Ou
então se embrenhar em trilhas na Floresta da Tijuca, que adivinhe? Eu
também fiz. Nosso estilo de vida era compatível, éramos almas gêmeas, ele
só precisava perceber.
Eu tive a esperança de que ele me mandasse uma mensagem para falar
sobre o que aconteceu, mas nada veio. Dentro da nossa conversa só existia
ele perguntando se Pérola estava comigo, como sempre. E eu mandando
figurinhas engraçadas, como sempre também.
Resolvi focar no trabalho, porque este pelo menos me valorizava. Ou
não, eu nem sei mais.
Depois do fim da gravação, arrumei todo o estúdio e me despedi do
meu chefe com um aceno. Peguei o ônibus e parti para a faculdade, lendo
um pouco para passar o tempo presa no trânsito cotidiano. O grande
problema de ler livros eróticos em público é a constante síndrome de
perseguição em pensar que absolutamente todo ser humano está de olho no
rala e rola que está em minhas páginas quentes. Eu já leio coisas chatas o
suficiente na faculdade, não há mal algum em uma boa trama ardente para
esquentar o coração e outras coisas também.
Espiei pela décima oitava vez a senhora que estava ao meu lado, tendo
a absoluta certeza de que ela estava espiando minha leitura. Bem, eu não me
responsabilizava por qualquer “Diga o meu nome em voz alta” ou “Quero
toda a minha porra dentro de você” e derivados.
Que baixaria! Já se tornou meu livro preferido do mês.
Eu sou uma boa libriana, gente boa, mas confusa sobre absolutamente
tudo. Não tenho música preferida, nem filme, nem livro, porque não sei
escolher. Cor favorita? Hoje é lilás, ontem foi branco, teve uma época em
que era laranja; não como o cabelo da Effie, sim, como o pôr do sol. Sim, eu
assumo a personalidade dos personagens nos livros que leio, o que torna
minha vida ainda mais difícil. Eu poderia culpar meu signo, mas não
acredito nisso. Só quando é conveniente para mim, tipo quando minha avó
me culpa por ter tido muitos namorados. Ela chama de “namorados” o que
eu chamo de “qualquer pessoa que eu tive vontade de ficar na vida”. Ou
quando sou dramática, chorona, egoísta ou mimada.
Desci no ponto da faculdade junto de outros alunos e movida
unicamente pelo meu ódio em terminar logo aquele ano letivo, caminhei até
o edifício amplo, cercado por árvores e pátios enormes. Minha faculdade era
particular e eu dei meu suor, sangue e talvez minha alma para conseguir uma
bolsa ali.
Pérola disse ao longo da vida que seu sonho era estudar naquela
faculdade e o sonho dela, acabou se tornando meu. Para ela não houve
dificuldades em ingressar, já comigo o buraco foi bem mais embaixo.
Estudei que nem uma condenada para a prova da bolsa e mesmo passando,
ainda restava uma porcentagem que eu tinha de pagar. Eu, com dezessete
anos, desempregada e neta de uma professora aposentada.
Apenas dois meses depois que eu comecei, estava pronta para trancar o
curso, porque minha avó não aguentava mais pagar. Eis que Gael decidiu
pagar aquela porcentagem, eu continuei o curso e fiquei ainda mais iludida
por aquele homem.
Cheguei atrasada, para variar. Deixei meu trabalho na mesa do
professor que me encarou com compaixão. Eu adorava professores que não
julgavam atrasos de uma pobre estudante que precisa dar duro no trabalho.
Alguns não tinham a mesma empatia.
— Tudo bem por aí? — Pérola me perguntou.
Assenti, roubando a garrafa de água dela para aplacar a sede depois da
correria para chegar até ali.
— Tenho uma puta novidade para você!
Ela se empolgou e levou uma olhada de pura resignação de Naldo, o
nosso professor. Fez um gesto com os dedos indicando que falaria depois e
voltou a prestar atenção na aula.
Uma hora depois, fui convencida por Pérola que deveríamos encontrar
o pessoal do programa de Tato em um bar ali por perto. Eu não pude negar,
porque eu estava expandindo meu network, uma vez que era questão de
tempo para que eles me contratassem. Questão de tempo, minhas orações
todas as noites e minha avó fazendo o padre Fábio rezar todos os dias para
que eu consiga o emprego.
O bar era um podre de caro, óbvio. Quis xingar um pouco minha amiga,
mas só coloquei um sorriso no rosto e fui cumprimentar o pessoal. Tato
estava lá e não perdeu tempo em enfiar a língua na garganta da minha amiga.
O homem estava apaixonado por ela, dava para ver de longe. Pérola estava...
Como eu poderia dizer? Encantada? Não sei se era muito do feitio de Pérola
se apaixonar por alguém. Éramos muito parecidas nesse quesito.
— Cada dia mais linda, hein, Pietra?
Foi Alan, o diretor do programa, que me elogiou. Toda vez que eu saía
com eles, ele dava em cima de mim. Já teve até convite para esticar a noite
no apartamento dele. Porém, eu tinha princípios.
Onde se planeja ganhar o pão, não se come a carne. Vovó que me
ensinou.
— São oito da noite e já está vendo coisas, Alan? — brinquei.
Eu era só sorrisos com ele, sempre. Fazia bem para meu ego, óbvio.
Mas eu também queria que ele gostasse de mim por razões muito claras. Eu
queria um emprego no programa. Para ontem.
O produtor e a assistente de Tato também estavam por ali e eu dei um
beijo em cada um deles. Eles eram legais e muito engraçados. Não sei como
Pérola conseguiu ser demitida daquela equipe.
Começamos a beber enquanto Tato e Alan contavam uma história sobre
uma viagem que fizeram juntos a Nova York para uma gravação do
programa. Em certo momento, Pérola puxou a manga da minha blusa,
chamando minha atenção.
— Vamos para Miami nessas férias. Você precisa pedir seus dias na
produtora.
Quase ri, porque ela falava com uma naturalidade de quem me
convidava para comprar pão com ela.
— Eu vou junto? — perguntei só para ter certeza de que tinha escutado
direito.
— Sim. Você é da família, por que não iria? — Colocou uma mecha do
cabelo atrás da orelha antes de prosseguir: — Vamos na próxima sexta-feira,
estou só esperando meu pai confirmar o horário do voo.
Gael realmente me queria naquela viagem? Mesmo depois do beijo?
— Mas seu pai deixou que eu fosse? Ele falou que me queria lá?
Pérola franziu a testa enquanto bebia seu Sex on the beach no
canudinho.
— Sim, até o Bernardo concordou em você ir.
Tentei agir com naturalidade, mas precisei virar meu rosto para o lado
esquerdo para poder sorrir em paz. Acho que essa era a prova mais do que
concreta de que tudo não estava tão perdido para meu lado. Se Gael não
tivesse gostado do beijo ou não me quisesse por perto, ele não teria
concordado em me levar para suas férias. Fora o episódio de eu ter acordado
no domingo depois da festa e minha bebedeira com uma banana ao lado da
mesinha de cabeceira.
Tenho certeza de que foi ele que colocou lá, porque se preocupa
comigo.
Comecei a elaborar meu plano de ataque, minha cabeça girando como
uma complexa engrenagem. Eu poderia ter colocado tudo a perder naquele
dia no banheiro. Fui apressada, descuidada, não pensei direito. Mas agora eu
teria um plano! E a dança do acasalamento rolaria de forma suave, tão
precisa quanto os passos de uma bailarina.
Voltei a olhar para Pérola, observando a mão de Tato na coxa da minha
amiga. Desci um pouco o olhar e precisei conter uma careta ao ver a infernal
sandália laranja nos pés dela.
Aquela Miss Leblon...
Ela poderia ser um obstáculo e tanto no meu plano infalível. Eu
precisava elaborar com muito cuidado aquele plano, sem afobação, sem
beijos em banheiros estando bêbada, sem assustar Gael. Ele precisava passar
pelas fases com naturalidade. Eu poderia ser uma criança para ele até dias
atrás, mas mostraria durante nossas férias que eu poderia ser quem ele
precisava, necessitava e clamava com todo o seu ser.
Disse para o pessoal que iria ao banheiro e escapuli até lá. Esvaziei a
bexiga depois de tantas rodadas de cerveja e fui até a pia para lavar as mãos
e refrescar a nuca. Minha base estava derretendo por conta do combo calor +
bebida alcoólica, deixando aparecer as sardas amarronzadas que eu tinha no
alto da bochecha e no nariz. Eu odiava quando elas apareciam, mas
acontecia com frequência, porque eu tomava sol.
Lavei o rosto para controlar aquele caos e peguei na bolsa um gloss
para aplicar novamente. Quando me olhei no espelho, percebi uma pessoa
conhecida sair de uma das cabines. Olhei para a mulher com os cabelos
curtos tentando me recordar de onde a conhecia e não levei dois segundos
para lembrar quem era.
A professora que recebeu uma bela de uma homenagem de Bernardo.
— Oi! — Acenei para ela, percebendo seu olhar indo parar na faixa de
barriga descoberta que meu cropped não tapava.
Eu moro do Rio de Janeiro, não posso andar toda coberta. Qual é?
Estou muito bem-vestida, por sinal. Não precisa desse espanto todo. O
cropped combina com meus jeans largos e meu All-Star branco. Um
legítimo look de uma trabalhadora brasileira.
— Nós nos conhecemos?
Ela estava fazendo um jogo duro comigo. Óbvio que ela me conhecia.
Eu levei o aluno dela para uma noite louca de sexo, ao qual ela queria ter
com ele, mas se fazia de difícil e intocável. Eu já utilizei esse truque muitas
vezes.
— Sim, da festa do Bernardo.
— Ah, Bernardo... — Que atriz! — Sim, claro!
A professora se movimentou pelo banheiro, parando ao meu lado da pia
para lavar as mãos. Eu voltei a me olhar no espelho, passando o gloss e a
observando ao mesmo tempo.
Ela era alta e tinha um rosto marcante. Olhos bem redondos, nariz
arrebitado e sobrancelhas finas, que acabavam combinando com seu cabelo
curto. Ela era uma nerd, conseguia ver de longe. Dava para entender por que
Bernardo era tão a fim dela.
— Você é namorada dele, não é?
Ela não resistiu, claro que não resistiria a perguntar!
Movida pelo meu enorme altruísmo e também por ficar sabendo que
Bernardo concordou em me levar para Miami com eles, eu resolvi ajudá-lo
novamente.
— Não, mas já fomos. Ele terminou comigo.
Vi o olhar curioso de Paola, como se não acreditasse que Bernardo
terminaria comigo. Era bem difícil de acreditar enquanto meus peitos
estavam tão bonitos naquela blusa.
— Não parece algo que Bernardo faria.
— Ele não parece ser muitas coisas, mas é. — Movi os ombros para
cima. — Ele foi o melhor sexo de toda a minha existência. Nossa! —
Comecei a me abanar, vendo os olhos da mulher, que já eram grandes,
dobrarem de tamanho. — O que ele sabe fazer com a boca...
Soprei todo o ar para fora, percebendo que a professora ficou toda
interessada.
— E o pau dele? É gigante. Vou parar de falar antes que eu fique toda
molhada.
A professora começou a ficar vermelha e eu precisei respirar fundo,
antes que começasse a rir. Ou talvez chorar, de pavor. Eu estava falando do
pau de Bernardo Adler para outra mulher. Credo!
— E por que terminaram?
— Ele começou a gostar de outra pessoa e decidiu terminar. Ele é um
cara legal.
Essa parte pelo menos que eu imaginava Bernardo fazer. Ele era
bonzinho demais. Ultrapassava até o limite da bondade, parando na área dos
trouxas.
A professora ficou toda animadinha, deu para ver. Mas ela era uma
adulta e tratou de agir como uma, arrumou a coluna, colocou o cabelo para
trás e alisou sua camisa listrada branca e marrom, que não combinava muito
com a calça social rosa.
— Tenho de voltar, estou no meio de um encontro.
Sorri largamente e acenei para a professora, que saiu do banheiro
trombando com tudo na porta. Parece que Bernardo vai, muito em breve,
enfiar seu pintinho inteligente em sua crush. Uhuuuu!
Agora, tudo o que eu esperava dessas férias era que o pai dele também
quisesse fazer o mesmo comigo.
Minha avó era uma neurótica com organização.
Ela organizou meu guarda-roupa por anos em um sistema muito
complexo para minha cabeça. Envolvia paletas de cores, estações do ano e
recorrência de uso. Faz alguns anos que ela largou de mão e parou de entrar
no meu quarto. “O Chiqueiro”, como chamava de forma totalmente injusta.
Mas, infelizmente, essa organização ainda fazia parte do sistema de
malas de viagem. Ela dobrava tudo meticulosamente, encaixando como se
estivesse em uma partida de Tetris.
— Você não precisa de duas sandálias iguais, Pietra.
Minha sandália rasteira rosa foi barrada. Suspirei, derrotada.
— Muito menos de oito sutiãs. Você nem tem peito para tudo isso.
Cruzei os braços, aumentando o volume dos meus peitos para provar
que eu tinha, sim! E precisava de todos eles. Tinha o sutiã do dia-a-dia, o
sutiã tomara-que-caia, o sutiã para vestir debaixo do pijama enquanto estou
em áreas comuns, para não esfregar meus mamilos na cara dos Adler; por
mais que eu queira fazer isso em um deles. O sutiã para usar com roupas
depois que eu me queimar no sol e não aguentar vestir nada, fora os sutiãs do
abate. Esses, meus preferidos, com toda certeza. Delicadas peças em renda,
que não tapam nada do que deveriam tapar. Um mais obsceno que o outro.
Do jeito que eu gosto.
E que agora eram segurados pelos dedos de minha avó.
— Deus tenha misericórdia, Pietra!
— Heresia! — Apontei para ela, julgando-a.
— Você quis dizer blasfêmia, não é, querida?
A forma como vovó me insultava era diferente. Bem parecida com a de
Bernardo, na verdade.
Não era à toa que ela o havia educado por anos e anos na escola.
— Deixe alguns sutiãs, Pietra.
Concordei, porque eu não queria criar caso. Vai que ela começava a
implicar com minhas calcinhas. Principalmente as sete calcinhas de abate.
Lindíssimas, por sinal.
Retirei o tomara-que-caia e um dos sutiãs do abate.
— Tome cuidado lá, Pietra! Obedeça ao Gael...
Ela continuou falando, mas minha mente vagou para um lugar bem
quente, onde eu realmente fazia questão de obedecer a Gael como uma boa
garota.
— Não vá até o fundo no mar e não provoque Bernardo.
Minha mente ligou no momento em que ela falou de Bernardo. O
queridinho da vovó. Bleh!
Minha avó idolatrava Bernardo, porque ele era seu menino de ouro. Só
porque ele sabia contar a história da Mesopotâmia de trás para frente, além
de saber o nome de todos os presidentes do Brasil e toda aquela papagaiada
sobre Feudalismo, Absolutismo e Revolução Francesa.
Eu também sabia, mas com muito mais dificuldade do que ele.
Ele era excelente, eu me esforçava.
E minha avó o amava.
— Eu não o provoco, ele que implora por isso.
— Não seja cruel, Pietra. Ele ser diferente de você não o torna inferior.
Fiquei sem palavras para discutir, porque essa história me irritava.
Bernardo poderia falar o que quisesse para que eu me sentisse inferior, já eu,
não poderia abrir o bico.
— O que vai fazer durante as férias? — Sentei ao seu lado na cama,
aproveitando sua distração para enfiar o sutiã vermelho do abate em um
canto da mala.
— Tereza tem toda a coleção de filmes da Elizabeth Taylor,
combinamos de fazer sessões durante a semana. Vou ajudar o Padre Fábio a
organizar a festa junina da paróquia e darei algumas aulas para o Davi.
— Esse garoto ainda não aprendeu sobre Dom Pedro?
— Pietra, cada um tem suas dificuldades.
— Mas ele está nesse tema há seis meses! — protestei.
Davi era um garoto de dezesseis anos que tinha aulas particulares com
minha avó para o vestibular. Eu suspeitava de que ele só fingia que tinha
alguma dificuldade para continuar frequentando minha casa. Ele curtia
absolutamente todas as minhas fotos no Instagram, era o primeiro a ver
meus stories, meus vídeos no TikTok, até meu LinkedIn ele achou e passou a
curtir todas minhas publicações.
Bem, se minha avó estava sendo bem paga, então tudo bem.
— Vou sentir sua falta, minha gata! — Pisquei para ela.
— Eu também vou, minha princesa.
Eu me joguei em cima dela, espalhando beijos babados, do jeitinho que
ela fingia odiar, por todo seu rosto. Dona Dedé começou a rir e aquele era
meu som preferido da vida, vindo da minha pessoa preferida da vida. Ela e
eu nos encontramos na dor e criamos um mundo nosso.
O engraçado era que antes da minha mãe morrer, nós nunca fomos
próximas. Minha mãe engravidou aos dezessete anos, meu pai prometeu um
conto de fadas a ela. Minha mãe fugiu de casa para viver um grande amor e
tudo o que recebeu foi solidão. E essa solidão acabou a tirando de mim cedo
demais.
Eu tinha oito anos quando conheci minha avó. Foi depois do pior dia da
minha vida e também depois de eu ter ficado dois dias em uma casa cheia de
crianças. Na época eu não sabia, hoje eu sei que era uma casa de
acolhimento.
Meu pai não me quis.
Ela me quis.
E foi ali que começou a história de amor mais linda que já vivi.
— Pietra? — Ela me chamou enquanto eu fungava em seu pescoço.
Amava o cheio da minha avó. Ergui os olhos para ela. — Não volte grávida,
por favor!
Bufei e só para provocá-la, mostrei a língua e fiz questão de lamber seu
rosto, espalhando baba por toda sua bochecha. Levei um tapa na bunda e saí
de cima dela, rindo.
— Fica tranquila, vou voltar com uma mini Pietrinha para você. —
Passei a mão na minha barriga, fazendo aquela pose clássica de mulher
grávida.
Apanhei, óbvio, mas valeu a pena.
A vida do proletariado nunca era fácil, por isso, precisei sair do trabalho
direto para o aeroporto na sexta-feira. Pérola já tinha passado mais cedo em
casa para buscar minha e eu estava chegando com minha mochila nas costas,
sentindo-me a própria Dora Aventureira no meio do aeroporto tumultuado.
Fiz uma promessa de que, depois que voltasse de férias, eu procuraria
outro emprego. Hoje foi o pior dia trabalhando naquela produtora. Estava
certo para que eu tirasse folga para poder arrumar as coisas com mais
tranquilidade e logo de manhã, Rubinho, meu chefe, me acordou aos berros
dizendo que eu não poderia deixá-lo na mão. Daí em diante foi uma sucessão
de resmungos, gravações chatas e uma quantidade de trabalho absurda.
Tudo o que eu mais queria era sentar na poltrona do avião e falar: bora
pra Miami, motô.
Pérola estendeu os braços assim que me viu e eu corri até ela, sendo
agarrada pela cintura, como em uma cena de filme de romance. Por sobre o
ombro da minha amiga eu vi Gael olhando para nós por cima da tela do iPad.
Eu não diria que ele estava muito entusiasmado por me ver ali, não. Ao
perceber que eu olhava para ele, seu olhar caiu para a tela novamente.
Ainda assim, eu fui até ele e percebi o Leonardo da Vinci ao seu lado,
com a cabeça coberta pela touca do moletom e com fones de ouvidos.
— Oi, Gael! — Acenei para ele, ganhando um olhar e um meio-sorriso
em resposta. — Obrigada por me levar com vocês.
— Não tem férias em família sem você, Pietra.
Eu me derreti igual picolé no sol do meio-dia. Fiquei molinha.
Sorri para ele e antes de sair com Pérola para comprar um café, dei um
chute no pé de Bernardo, que ergueu os olhos, surpreso. Ergui meu polegar
para ele e virei as costas, seguindo com minha amiga.
— Tato vai me encontrar lá — Pérola confidenciou, tão animada que
ela literalmente quicava no chão.
Meu queixo caiu.
— Como?
— Ele vai tirar férias do programa.
— Mas, e o seu pai?
— Vai trabalhar todo o tempo, ele nem vai se ligar.
Essa não era uma boa notícia para mim. Como eu me aproximaria de
Gael e mostraria que eu era uma bela de uma gostosa se eu não teria tempo
hábil com ele?
— Você está proibida de me largar a Deus dará, entendeu? Essas são
nossas últimas férias antes de terminar a faculdade. Temos de fazer valer a
pena. MADM, lembra?
— Você vem sempre antes de qualquer homem desse mundo. Menos do
meu pai.
Ai, meu coração!
Foco! Foco! Foco!
O que os olhos não veem o coração não sente.
Eu sou uma péssima amiga, puta que pariu! Bernardo está certo. Ele
sempre está, afinal.
Brindamos com nosso copo de café, selando aquela promessa de fazer
daquelas férias as melhores de nossas vidas. Era o que eu mais queria,
porque não tinha certeza se no ano que vem tudo estaria igual.
A faculdade terminaria, Pérola tinha planos de fazer um curso de
Jornalismo de Moda em Nova York. Nossa amizade já tinha sobrevivido à
distância durante a escola, mas era complicado. Pérola era meu amor, minha
melhor amiga, não sabia como seria viver com ela tão distante.
Infelizmente, a promessa de algo bom, logo caiu por terra.
— Vocês não poderão embarcar — disse a atendente da companhia
aérea.
Vi o olhar resignado de Gael e Pérola, que tiveram seus passaportes
devolvidos pela gentil atendente.
Bernardo, pela primeira vez naquela noite, tirou o fone do ouvido e me
encarou.
— Mas o visto está aqui.
— Mas o passaporte novo não está, senhor Adler.
Mordi o lábio inferior, vendo as férias escorrerem por meus dedos.
Gael estava irritado, digitando enlouquecidamente no celular. Pelo que
entendi, o passaporte dele e de Pérola venceram, eles fizeram outro, mas o
visto estava no antigo. A secretária dele não colocou na pasta de documentos
o novo e agora eles não poderiam embarcar.
O meu e o de Bernardo ainda estava com ela, que digitava rapidamente
em seu teclado.
— A secretária não pode trazer aqui? — perguntei.
— Ela está na casa do noivo, em Petrópolis.
Longe pra caralho, entendi.
Pérola estava em silêncio, o que era uma surpresa. Ela sempre surtava
quando tudo saía do controle.
— Podemos embarcar no próximo voo? — Gael perguntou para a
atendente.
— O próximo voo é às seis da manhã, mas está lotado. O próximo com
dois assentos vagos será amanhã às cinco da tarde.
— Que inferno! — Pérola começou a reclamar, mostrando que estava
viva. Só depois que olhei para sua mão que percebi que ela estava
conversando com Tato.
Não era estranho um tiozinho de quarenta anos ter tanto tempo livre
para conversar por mensagens com uma menina de vinte e poucos?
— Está tudo certo com o deles? — Gael perguntou para a atendente.
— Sim, eles podem embarcar.
Mas nem por um caralho!
— Nós vamos amanhã com vocês, sem problemas. — Fiz um gesto
com a mão, para Gael não se importar.
— Não temos assentos livres para acomodar todos vocês. É início das
férias escolares, nossos voos estão lotados.
Vi Bernardo dar de ombros e encarei minha triste realidade.
Expectativa: convencer Gael a me pegar no banheiro do avião.
Realidade: pegar um voo com o Santos Dumont.
— Serão poucas horas, logo estaremos lá. Tudo bem? — Gael disse
para Bernardo, fazendo com que eu me sentisse como um grande fardo a ser
aturado por vinte e quatro horas.
— Tudo bem!
— Amiga, a gente se vê amanhã. Aproveite essas horinhas por mim. —
Pérola me abraçou com carinho e eu só assenti. Observei enquanto abraçava
o irmão e sussurrava algo ao ouvido dele.
— Um upgrade para a classe executiva deixaria esse casal mais feliz?
— perguntou a atendente sorridente atrás da proteção de acrílico.
— Nós não somos um casal! — A frase saiu tão rápida da minha boca,
na mesma velocidade que ela saiu da de Bernardo.
Nós nos olhamos, o nojo emanando por cada poro de nosso corpo.
Não mesmo! Nunca! Sob hipótese alguma!
— Mas ficaremos mais felizes na executiva, sim. — Arreganhei meus
dentes para a moça, porque eu não era trouxa.
De graça, até injeção na testa.
Nós nos despedimos de Pérola e Gael no portão de embarque, então
entramos. Na fila para o Raio-X percebi o quanto Bernardo era estranho,
metódico e um pouco neurótico. Ele organizou de uma forma irritante todos
seus aparelhos eletrônicos, retirando tudo com uma calma irritante da bolsa.
Ele até tirou as moedas da carteira, posicionando-as em uma linha perfeita.
Eu me irritei e joguei minha mala de mão na frente dele, enfiei minha
mochila em uma bandeja e passei pelo detector de metais. Até prendi a
respiração, com medo de estar portando alguma arma de fogo.
Pude passar e fiquei esperando minha mala sair pela esteira, só que não
saiu. Enquanto Bernardo arrumava de uma forma insuportável suas coisas
novamente na mochila, eu via minha mala sendo revirada.
Eu vou ser presa, tenho certeza. Alguém deve ter colocado algo na
minha mala. Eu me distraí um pouco com Pérola na Starbucks.
Eu vou parar no programa Área Restrita, vão me testar positivo para
cocaína. É o meu fim! A casa caiu muito para mim!
— Senhorita? — chamou o homem que revirava minha mala.
Eu virei lentamente meu pescoço, esperando o momento em que ele me
mostrasse os vinte e quatro quilos de cocaína que eu carregava ilegalmente.
Eu não entendo muito de drogas, mas isso deve fazer com que eu seja presa
por no mínimo cento e vinte anos?
— Tô limpinha, senhor! — Ergui meus braços, rendendo-me.
Quando virei para ver o que estava acontecendo, vi que ele estava com
meu perfume na mão. Se fosse só isso, estava ótimo. Do lado da pilha de
shorts que ele pôs para fora estava Gabe, meu sugador de clitóris. Achei que
fosse algo muito mais discreto de levar para uma viagem do que um vibrador
e agora Bernardo, já com sua maldita mochila nas costas, estava parado ali
apertando os lábios, evitando esboçar qualquer reação. O que já era uma
reação.
— Não são permitidos líquidos com mais de 100 ml.
— Pode jogar fora, moço.
E assim morre um body splash da Victoria’s Secret.
— Pode guardar tudo.
Nunca fiz uma mala tão rápido na minha vida, trêmula depois de quase
ter sido presa por tráfico de drogas, eu joguei minhas roupas de qualquer
jeito e, como miséria pouca é bobagem, o maldito sugador escorregou da
minha mão e rolou até o pé de Bernardo, parado como um dois de paus ao
meu lado.
Ele se abaixou para pegar o Gabe e eu quase gritei com ele, que pegou
aquilo com tanta naturalidade, como se pegasse um garfo do chão.
— Me dá isso aqui, garoto! — Arranquei da mão dele com força,
jogando na mala que foi fechada em dois segundos.
— O que era?
Coloquei a mala no chão e puxei a alça para cima.
— O que era o quê? — Acho que fui um pouco rude com ele, que me
seguiu pelo corredor em direção à Polícia Federal.
— O negócio rosa.
— Para de zoar com a minha cara, Bernardo — resmunguei e o deixei
falando sozinho ao sair em direção ao guichê.
Só fui respirar quando chegamos até as lojas do Duty Free, amava essa
parte. Já Bernardo, nem fez questão de ficar por ali. Não comprei nada,
porque não achei meu dinheiro em árvore, mas testei todos os tipos de
hidratantes faciais que tinham disponíveis para teste.
Depois, acompanhei o gênio até a sala VIP, que entrei de parasita dele.
Eu que não ficaria sozinha no aeroporto com o tanto de traficante de órgãos
à solta por aí.
Bernardo ficou com seu livro de Física Quântica em inglês. Só de ver a
capa já me deu sono. Já que era de graça, aproveitei para encher o bucho,
tomar duas taças de vinho e sentar ao lado do meu parceiro de viagem,
apreciando meu livro muito mais interessante que o dele.
Uma hora depois eu estava apertando minhas coxas depois de ler uma
sequência épica de um alien forte e gostoso que tinha um pau que se dividia
em dois. Sim, pois é.
— Vamos?
O susto que eu tomei ao escutar a voz de Bernardo foi o suficiente para
descolar minha bunda da poltrona. Desliguei o Kindle e recolhi minhas
coisas, seguindo atrás do gênio. Reparei que os ombros de Bernardo eram
bem largos para alguém magro como ele, mas combinava com sua altura.
Aproveitei que ele estava de costas para analisar sua bunda, que parecia ter
potencial. Igual a do meu alien...
Meu Deus, Bernardo é uma criança! Isso que dá ler pornô feérico. Olha
a merda que acontece!
Balancei a cabeça, espantando aqueles pensamentos terríveis da minha
mente e corri até ficar do lado dele.
Essas férias não começaram nada bem. Nada bem, mesmo.
Nós nem tínhamos ido para a pista de decolagem e Pietra já tinha
mexido em todos os botões que existiam ao seu alcance. Agora ela deitava a
poltrona e subia, parecendo se divertir muito com aquilo. Nunca vi uma
pessoa tão feliz com uma necessaire com itens de higiene.
Ela era um caos total. Barulhenta, espalhafatosa, falante demais. Pietra
deixava meu medo de voar ainda mais intenso, porque ela era muito agitada.
Tentei organizar minhas coisas para me distrair. Era um voo noturno, eu
planejava dormir por boa parte dele. Guardei meus sapatos no
compartimento da frente, tirei meus fones da mochila, conectei à tela, deixei
meu livro por perto e uma máscara de dormir. Por último, vesti meias mais
quentes que eu sempre usava em voos longos. Quando terminei todo meu
processo, percebi que Pietra estava sentada, ereta, com a poltrona na posição
correta para a decolagem, olhando-me de uma forma esquisita.
— Você é muito estranho — ela falou.
Como se eu já não soubesse disso!
Ignorei-a e busquei o remédio para ansiedade que deixei no bolso da
frente da mochila, porque eu sabia que precisaria.
— É para dormir? Me dá um?
Vi sua mão pequena estendida em minha direção.
— É para ansiedade.
— E você está ansioso? — ela rebateu.
— Tenho medo de voar.
— Ah, legal!
Foi essa nossa interação. Um terror, como todas as outras.
Eu não era bom em conversas, principalmente com garotas. Mais ainda
com garotas irritantes. Piora muito quando é a garota que eu gostava quando
era adolescente e que agora quer ser minha madrasta.
— Faz tempo que não cai nenhum avião, não é?
Apoiei minha língua na parte interna da bochecha, sem acreditar que ela
estava falando aquilo.
— Isso é sério? — perguntei pausadamente.
— É, para você ver como a aviação é confiável. Estamos seguros.
Novamente a ignorei, enfiando o comprimido na boca. Engoli no seco,
porque eu precisava apagar, recusava-me a ficar oito horas seguidas com
Pietra.
— Não vai me dar um?
A palma de sua mão entrou no meu campo de visão novamente e eu me
limitei a apertar o comprimido, tirando-o da cartela. Vi seu sorriso satisfeito
ao ganhar o embate e a assisti retirar da bandeja uma taça de champanhe que
a aeromoça servia como um drink de boas-vindas.
— Você surtou? — Tentei tirar o remédio da mão dela, mas ela já tinha
engolido com o champanhe.
— Que foi?
— Está tomando ansiolítico com álcool!
— Ah, fica tranquilo! Eu vivia tomando remédio para depressão com
álcool. Tô vivinha da Silva!
— É por isso que você é assim.
Ela me xingaria, mas acabou dando risada. Os motores do avião foram
acionados e eu usei esse tempo para afivelar o cinto, bem firme, sem folga.
Fechei os olhos, meu coração a mil. Consultei no meu relógio a minha
frequência cardíaca. Cento e trinta e dois batimentos por minuto.
Comecei a respirar curtinho, assim como me foi ensinado.
As luzes começaram a apagar.
O avião começou a se movimentar.
Cento e trinta e nove batimentos por minuto.
As comissárias de bordo começaram a fazer a demonstração sobre os
padrões de segurança.
Cento e quarenta e dois batimentos por minuto.
Minha perna começou a tremer e eu fechei os olhos, tentando pensar
em algo para me distrair. Eu normalmente viajava ao lado do meu pai, sentia
que estava seguro com ele. Nunca voei sem ser ao lado dele ou de Pérola.
O avião começou a fazer a curva para a pista e tudo o que conseguia
pensar era que eu morreria.
Foi quando meu relógio mostrava cento e quarenta e seis batimentos
por minuto que eu senti Pietra enfiar algo no meu ouvido e me assustei.
— Vamos escutar uma música relaxante.
Comecei a escutar uma música bem antiga, daquelas que só tocam
atualmente em rádios de música ambiente. Não combinava nada com Pietra
escutar Only Time.
— Desde quando você gosta de Enya?
— Minha avó é fã dela.
Isso fazia sentido. Tentei focar na música, que realmente era bem calma
e relaxante.
— Ela costumava deixar tocando por horas e horas lá em casa. Quando
eu tinha alguma crise de ansiedade ou me sentia muito triste, eu colocava no
fone e me lembrava da minha avó cozinhando enquanto eu estava na mesa
da cozinha fazendo meu dever da escola. Outros momentos eu só me
imaginava correndo por algum campo bem verde, vestida com um vestido
bonito cheio de florezinhas, sabe?
Grudei as mãos no descanso de braço quando o avião começou a ganhar
velocidade na pista e foi quando eu pensei que teria um ataque cardíaco, que
senti os braços de Pietra me agarrarem.
Seus braços eram pequenos e não conseguiam contornar meu corpo,
mas ela me apertou. Eu fiquei estático, duro como uma pedra, meus
antebraços para o alto, incapazes de se mexerem enquanto Pietra apertava
meus braços.
Seu cabelo novamente ficou perto do meu nariz e o cheiro doce que
lembrava bolo invadiu todo meu espaço. Engoli em seco, sentindo meu
coração bater em minha garganta.
— Estou aqui com você.
Nunca imaginei que Pietra teria uma atitude assim comigo. Como se ela
se importasse, como se eu fosse alguém que merecesse isso.
Fechei os olhos, incapaz de pensar em qualquer coisa que não fosse
aquele aperto quente e muito acolhedor. Foquei na música, conseguindo me
ver em um campo verde, bem aberto, onde o sol brilhava no céu sem nuvens.
Eu corria e conseguia sentir o vento batendo em meu rosto. Virei a cabeça
por alguns instantes e vi Pietra em seu vestido florido correndo ao meu lado.
Estiquei minha mão para tocar a sua e quando senti seu toque na minha
palma, abri os olhos com tudo.
Os braços de Pietra não estavam mais ao meu redor, mas sua cabeça
pendia sobre meu ombro. No fone, o que tocava era bem diferente de Enya,
até porque acho que a cantora nunca cantaria sobre cachaça, pinga e puta
em todos os refrões possíveis.
Eu tinha dormido? Virei o pescoço para ver como as pessoas estavam e
todos dormiam. Estiquei o braço para tocar a tela e ver no mapa onde
estávamos, foi ali que descobri que eu tinha dormido e bastante, porque
sobrevoávamos o estado de Goiás. Eu nem vi o avião decolar, que merda
tinha acontecido?
Acabei me mexendo e acordei Pietra sem querer. Ela esfregou os olhos
e saiu do meu ombro, olhando para os lados, confusa.
— Eita que esse seu remédio é do bom, hein?
Neguei com a cabeça, observando-a se acomodar na cadeira, mexendo
o pescoço para os lados, provavelmente com dor depois de ter dormido toda
torta.
— Eu não vi o avião decolar — comentei ainda incrédulo.
— Está se sentindo melhor?
Assenti, sem saber muito como continuar conversando com ela. Eu não
era bom nisso. Normalmente acabava sendo um babaca por não saber o que
falar.
Pietra guardou os fones, acabando com aquele sofrimento musical em
meus ouvidos. Depois começou a analisar o cardápio com as comidas que
tínhamos disponíveis a bordo.
— Por que você tomava remédio para depressão? — Puxei assunto,
talvez sobre o pior assunto para o momento.
Pietra olhou por cima do cardápio, estranhando a pergunta. Demorou
algum tempo até que ela soltasse o papel, recolhesse as pernas para a
poltrona e virasse o corpo em minha direção.
— Porque eu precisava.
— Você sempre foi tão... você.
Ela sorriu e eu repassei as palavras, pensando se falei algo ofensivo.
— Lembra quando vazaram aquele vídeo meu na escola?
Abaixei os olhos para minhas mãos no mesmo momento, porque eu
lembrava. Todo mundo ficou sabendo. Não vi o vídeo, mas pela forma como
Pérola ficou descontrolada e saiu batendo em quem fazia qualquer gracinha
sobre o assunto, imaginava que era bem pesado.
— Aquilo me quebrou. Eu tinha só quinze anos. Era minha primeira
vez, sabe?
A forma como sua voz quebrou fez com que eu me sentisse um idiota
por ter tocado naquele assunto.
— Desculpa!
Ela deu de ombros em resposta.
— Você viu?
Neguei prontamente, meu coração aos pulos por ela pensar que eu faria
isso.
— Você foi o único garoto naquela escola que não me sexualizou ou me
olhou como um pedaço de carne. Foi legal da sua parte.
Apertei os lábios, sem saber o que falar para ela. Eu era péssimo em
conversas, sabia muito bem disso.
— Sinto muito.
— Obrigada. — Pietra voltou a pegar o cardápio, batendo na palma de
sua mão algumas vezes. — Mas isso me fez a Pietra de hoje, sabe? Eu
aprendi a ser confiante, não abaixar a cabeça para ninguém, principalmente
para homem.
Ela, com toda certeza, era a garota mais confiante que já vi. E
obstinada. Muito decidida, também.
E era por saber disso que eu tinha medo de ela, no fim das contas,
acabar virando minha madrasta.
— É... Homens são péssimos!
— São, não são?
Ela riu, tombando a cabeça para o lado. Prestei atenção em como seus
dedos eram finos e nos anéis prateados que ela usava no dedo indicador e em
ambos os dedos do meio. Um deles era uma estrela.
— O que acha de uma boquinha?
— O quê? — Balancei a cabeça, assustado com o que ouvi.
— Comer um pouco.
— Ah, tá. Pode ser!
Pietra não foi uma companheira de viagem horrível. Comemos pra
caramba, aproveitando o menu da classe executiva até enjoar. Vimos um
filme, não juntos, mas ao mesmo tempo. Escolhi rever Donnie Darko,
aproveitando que tinha no catálogo do avião. Pietra viu o filme dos Minions.
Depois cochilamos e ainda sobrou tempo para ler. Eu queria terminar aquele
livro logo, mas perdi um pouco da atenção quando espiei o que Pietra estava
lendo.
Senti minhas bochechas esquentaram ao pescar algumas palavras do
texto; “viril”, “ereto”, “boceta”, “alienígena”. Ela estava lendo um livro
pornô! E fazia como se lesse uma coluna social.
Antes que espiasse mais do que ela lia, tapei meus olhos com a máscara
e me forcei a contar os números de PI até onde eu me lembrava. Um
exercício que eu fazia sempre que queria dormir.
E pela primeira vez não deu certo, porque a companhia da viciada em
pornô alien era mais legal do que meu sono.
— Posso fazer uma pergunta?
A curiosidade estava me corroendo, mas eu esperei que saíssemos do
aeroporto, alugássemos o carro na locadora para enfim perguntar para
Bernardo.
Ele não me olhou, porque estava com as mãos grudadas no volante e os
olhos na rodovia.
— Isso já é uma pergunta.
— Nossa, que engraçado! Ha! Ha! — Expandi meu sorriso, mesmo que
ele não fosse ver.
— Fala.
— Você vai trabalhar com foguetes, certo?
— Sim.
— Que voam?
— Normalmente eles voam, sim, Pietra.
Ele estava sendo irônico e aquele tempo que eu achei que ele fosse um
ser humano até que tolerável já estava acabando. Eu sentia.
— Qual o sentido de você querer trabalhar com foguetes e ter medo de
voar de avião?
Cruzei meus braços, satisfeita por finalmente falar. Passei oito horas
guardando isso dentro de mim. Foi terrível!
— Eu não sou astronauta para voar em um foguete. Vou construir o
foguete, são coisas bem diferentes.
— Tá bem, então, Elon Musk!
Eu escutei um risinho nasalado vindo dele, mas ignorei e prestei
atenção no caminho bonito, com o mar verdinho aparecendo. Eu já fui a
Miami duas vezes com a família de Pérola. Numa ficamos alguns dias, na
outra só passamos para pegar um cruzeiro ao Caribe, no aniversário de
dezesseis anos de Pérola. No ano passado, Gael comprou um apartamento na
cidade, mas eu não tive a oportunidade de conhecer. Estava ansiosa para ver
o lugar, passear e ficar na praia.
Fora as festas! Eu tinha tantos planos com Pérola para esse verão!
Prestei atenção no caminho por mais dois minutos, até uma dúvida me
assombrar.
— Mas e se você ganhasse um presente da empresa, como ir para o
espaço a bordo do foguete que você construiu?
Escutei a bufada que ele deu.
— Uma empresa não daria isso de presente.
— Você poderia ser o funcionário do mês.
— Ainda assim, ela não daria.
— Mas, e se você ganhasse? — insisti.
— Eu não iria.
— Não faz sentido.
Bernardo se calou, mas eu estava inquieta. Tinha dormido muito
durante o voo, estava ansiosa, empolgada. E quando ficava assim, eu não
conseguia parar de falar. Segurei-me por bastante tempo, mas quando já
estava quase sufocando, recomecei o falatório.
— Sabia que encontrei sua professora na semana passada?
O assunto o agradou, porque ele até desviou os olhos da estrada.
— Como?
— Em um bar que fui com Pérola.
— Um bar?
— Ela estava em um date.
— Um o quê?
— Encontro — respondi, revirando os olhos.
Bernardo não entendia coisas simples da vida, eu não conseguia
compreender aquele garoto.
— Vocês conversaram? ― Eu assenti. — Sobre o quê?
Ele estava sofrendo e eu gostei disso.
— Coisas.
— Que coisas?
Sofra, gênio! Sofra!
— Ela perguntou se eu era sua namorada — contei, mas neguei com a
cabeça.
Que ideia maluca!
— E você falou o quê?
— Que você terminou comigo e eu era sua ex. Te dei toda a moral,
hein?
Percebi um resquício de um sorriso repuxar seus lábios. Seu rosto
ganhou um tom avermelhado que eu fiz questão de observar.
— Obrigado.
— Falei também que você mandava bem no sexo e que seu pau é
gigante.
Gritei alto quando Bernardo perdeu o controle do carro. Nós
começamos a derrapar pela rodovia. Puxei o volante para o lado direito,
porque ele ia bater no carro da faixa ao lado. Ele ligou a seta, foi para o
acostamento e parou o carro.
— Você enlouqueceu, porra? — gritei com a mão no meu peito. Queria
agredir aquele garoto. — Quase nos matou!
— Eu... Eu me assustei.
Bernardo estava branco, toda a vermelhidão sumiu em questão de cinco
segundos.
— Porra, Bernardo! — Abaixei meu tronco até enfiar minha cabeça
entre os joelhos, tentando puxar o ar. — Caralho, eu só falei sobre um pau! E
nem é o seu, porque nunca vi essa sua miséria aí! Eu quase morri por causa
disso!
Eu falo muito quando estou ansiosa, o triplo quando estou nervosa. E
ele acabou de desbloquear essa nova fase de Uma Aventura com Pietra
Rossi.
— É que é muito... pessoal.
— Você não quer comer sua professora, porra?
Bernardo se calou, eu levantei minha cabeça e voltei a sentar
corretamente no banco.
— Sim... Eu acho que sim.
Ele acha que sim? Qual é o problema desse garoto?
— Tu é gay, Bernardo?
A vermelhidão se espalhou de forma três vezes pior pelo rosto do
garoto. Demorou um segundo a cair minha ficha. Meu Deus, eu tirei
Bernardo do armário a força!
— Me desculpa! Isso é muito pessoal, me perdoa! — Abaixei o tom de
voz, colocando até minha mão no antebraço dele para mostrar solidariedade.
Ele estava apavorado, tadinho! — Me desculpa mesmo! Não foi minha
intenção trazer isso à tona.
— Você não trouxe nada à tona. — Ele parecia estar com uma bola de
tênis presa na garganta pela forma como parecia sufocado.
— Eu sou uma grande aliada das causas LGBTQIA+. Eu nem sou
hétero também, então tá tudo bem. Estamos juntos nessa!
— Você não é? — Ele ficou muito interessado naquilo de repente, até
saiu a bola de tênis de sua garganta.
— O B não é de Beyoncé. — Dei de ombros.
— Ah, tá.
— Bem, não está mais aqui quem falou. Senta o pé e vamos para casa
logo.
Dei duas palmas para acabar com toda aquela situação constrangedora
que se formou entre uma simples conversa e uma quase morte.
— Eu não sou gay.
E voltamos para o papo constrangedor!
— Não precisa ter vergonha, se assume no seu tempo.
— Eu não sou gay, mesmo! Eu gosto de garotas.
Cruzei os braços, indignada. E ele quase me matou a troco de nada?
— Tem certeza?
— Tenho, Pietra! Tenho!
— Absoluta? — Franzi a testa.
— Eu não sou gay, eu só sou... — Ele parou de falar, prendendo os
lábios antes que falasse algo.
Ah, não! Agora ele ia falar.
— Bissexual?
Bernardo me olhou, indignado por eu ainda estar falando com ele.
— Não.
— Assexual? — sugeri, com um sorriso.
— Não.
— Queer?
— Eu só sou virgem, Pietra! Virgem!
Bernardo perdeu totalmente a paciência comigo e não foi bonito. Sua
voz se elevou, sua pele estava roxa, o garoto mal conseguia respirar.
Passei a língua pelos meus dentes superiores, sentindo a pontinha dos
caninos enquanto aquela declaração rodava na minha cabeça em looping.
— Ah, tá.
Ficamos em silêncio, escutando os carros passando em alta velocidade
por nós.
Que climão, meu Deus!
— Você pode dirigir, por favor? — ele pediu.
— Não tenho habilitação e nem sei dirigir.
Era verdade. Uma triste verdade.
— Por quê?
Ele franziu o cenho. Eu mesma, depois daquela inusitada revelação de
Bernardo, fiquei menos surpresa do que ele por descobrir que eu não sabia
dirigir.
— Sou pobre.
— Ah, tá.
E assim se encerrava a conversa mais insana de toda a minha
existência.
Pérola e Gael já estavam chegando? Porque eu não queria conversar
com Bernardo pelos próximos cinco anos.
Senti que minhas férias finalmente tinham começado quando fui com
Pérola para o shopping. Ela gastou o meu salário do ano em questão de duas
horas. Eu sou uma grande mão de vaca e só comprei um perfume. Na
verdade, o mesmo body splash que tive que jogar no aeroporto para não ser
presa por tráfico de drogas.
Pérola fazia a festa na Gucci quando eu vi um quiosque de capinhas
para celular. Deixei minha amiga provando seus sapatos caros e fui até lá,
perguntando se ainda existia película para o celular a.C ― sim, antes de
Cristo ― de Bernardo. Eu me recusava a ter uma partícula de vidro indo
parar no meu coração — se isso fosse verdade, o que segundo Bernardo, não
era.
Paguei cinco dólares em uma película que no Saara deveria ser dois
reais. Esse garoto só trazia prejuízos para a minha pessoa. Psicológicos,
emocionais e financeiros.
Almocei com minha amiga, feliz por estarmos compartilhando aquele
momento juntas. No final da tarde ainda vimos o pôr-do-sol juntas, sentadas
na praia. Toda hora Pérola olhava para o celular. Na realidade, minha amiga
estava bem desfocada de tudo nas últimas semanas.
— Acho que hoje vou jantar com o Tato.
Não consegui disfarçar minha cara de bunda e Pérola percebeu.
— O que foi?
Suspirei. Eu poderia mentir para minha amiga em alguns quesitos, mas
em outros eu era extremamente sincera com ela.
— Você está trocando tudo pelo Tato, não está sendo legal.
— Mas eu gosto de estar com ele.
— E nós também gostamos de estar com você. — Cruzei os braços,
disposta a falar tudo o que eu pensava. — Seu irmão, seu pai e eu nem temos
mais tempo com você.
Pérola bufou. E ela fazia isso porque sabia que eu estava certa.
Minha amiga tinha uma propensão a focar tanto em um cara, tornando-
se quase obcecada por ele e isso fazia com que tudo e todos ficassem de
lado. Pérola tinha um medo absurdo de ficar sozinha e isso a fazia cair em
cada cilada.
— Você está exagerando.
— Bernardo virou o mais próximo que eu tenho de um amigo nessas
últimas semanas. E isso é desesperador.
Agora ela riu alto, dando um tapinha no meu braço.
— Vocês devem estar bem no fundo do poço, então.
— Para você ver o que sua falta nos faz.
Minha amiga fez um biquinho, porque era assim que ela ganhava tudo.
Jogando com nossos sentimentos. E ela sempre conseguia.
Eu a abracei, depositando um beijo em seu ombro.
— Migas antes dos machos, lembra?
— Lembro — resmungou. — Sorry, baby. Vou tentar ser mais presente.
— Acho bom!
— É que você não tem o que ele tem.
— Ele pode ter uma picona, mas eu tenho amor, sabe?
Pérola me abraçou e eu continuei ali com ela, curtindo o final da tarde.
Quando voltamos ao prédio, cruzei com Bruno, que terminava seu turno. Ele
já estava até com outra roupa, o que deixava bem visível o quanto ele era
sarado. Seus bíceps deveriam ser do tamanho da minha coxa. E olha que
minhas coxas eram grandes!
— Opa! Opa! Aonde vamos com todo esse estilo? — brinquei com ele
que acenava para o outro porteiro.
Bruno logo colocou um sorriso no rosto e vi Pérola olhar da cabeça aos
pés para o homem. Ela era péssima em disfarçar seu julgamento.
— Para o melhor point de Miami.
Ele piscou para mim e observei a camisa florida combinando com uma
calça branca muito justa.
— Que é...? — sondei.
— Aqui... — Bruno entregou um folheto para Pérola, que olhou e fez
aquela cara que me fazia ter vontade de dar uma voadora nela.
— Ah, eu não frequento essa parte da cidade. — Pérola entregou o
folheto para mim. — Muito perigoso.
Revirei os olhos ao ver o anúncio de uma casa noturna na Calle Ocho.
Era uma rua conhecida de um bairro latino que já escutei muita gente falar
bem. Muita gente que não era minha amiga.
— Parece divertido! — Tentei contornar a situação.
— E é, porque eu levo as melhores pessoas para lá. — Seu sorriso
realmente era o melhor de todo o conjunto. E olha que o resto da obra
também era impecável. — Quando quiserem se divertir para valer, é só
aparecer lá.
— Eu acho que não. — Pérola o cortou e puxou minha mão, tirando-
nos dali rapidamente.
Em alguns momentos da vida eu queria dar uma voadora em Pérola,
esse era um desses. Eu achava divertido o jeitinho de patricinha mimada
dela, mas tinha hora que irritava um pouco, até porque eu não entendia de
onde vinha aquilo, porque Gael e Bernardo não eram assim. Parecia que ela
incorporava a Sharpay Evans, de High School Musical, por dois minutos e
depois voltava a ser a Pérola de sempre conosco. Pelos meus poderes
adquiridos no estudo do comportamento humano in natura na escola cheia
dos burgueses safados que estudei, aquela era uma forma de se proteger.
Se ela fosse arrogante, ninguém a faria sofrer. Era uma boa técnica de
autodefesa, quando não usado com alguém gente boa, como Bruno.
Quando entramos no apartamento, Bernardo estava assistindo a um
documentário sobre o espaço, na sala escura.
— Temos que ir jantar com pai lá no restaurante — Bernardo falou
assim que entramos.
— Por quê? — Pérola questionou.
Como poderia questionar comida de graça?
— Ele que pediu.
Pérola suspirou e não perguntou mais nada, apenas seguiu em direção
ao corredor, fechando a porta do quarto suavemente.
— E aí? — Joguei meu corpinho cansado no sofá.
— Como vai?
Achei graça da forma como ele falava, mas não falei nada, só tirei da
bolsa meu presente e coloquei em cima de sua perna.
— Presente pra você.
Bernardo olhou para mim de uma forma que parecia que eu tinha
acabado de dar uma Lamborghini banhada a ouro para ele.
— Para mim?
Assenti e o vi abrir a sacolinha e ficar confuso em pegar o envelope da
película.
— É para colocar no seu celular.
Bernardo riu baixinho e assentiu.
— Obrigado.
— Não quero detritos de tela indo parar na sua corrente sanguínea.
— Você está errada.
— Concordamos em discordar, então.
Levantei do sofá e decidi ir tomar um banho antes de sairmos. Esperei
Pérola sair do banheiro e tentei ser rápida, mas eu não levava jeito para isso.
Ainda mais por saber que eu encontraria Gael. Queria estar perfeita.
Demorei muito tempo para escolher meu look e quando Pérola passou
por mim, até deu uma arregalada nos olhos, provando que eu acertei na
escolha. A calça pantalona branca de cintura alta deixava minhas pernas
mais longas e combinava com o cropped prata com recortes na cintura e um
decote poderoso. Ela me deixava pronta para o crime. O crime de pegar o pai
da minha melhor amiga, eu espero.
Quando entrei no carro, Bernardo fez uma careta de susto, mas
disfarçou bem ao virar para frente e se concentrar em dirigir.
O Arraz era um evento. Ainda me lembro da primeira vez que entrei
nele, na primeira unidade, lá no Rio. Foi simplesmente o lugar mais chique
que já tinha entrado até então. E, sim, ainda era chique para mim. Agora
muito mais moderno, com seu ambiente amadeirado e com muitas folhas de
palmeira artificiais pendendo do teto. Era bonito demais!
O gerente foi quem nos recepcionou e levou até uma mesa no meio do
salão. O restaurante estava cheio, com quase todas as mesas ocupadas. E
ainda assim Gael acharia tempo para jantar com os filhos. Devia ser incrível
ter um pai que valoriza tanto tempo de qualidade com os filhos.
Infelizmente, não dei sorte nesse quesito.
Era a primeira vez que eu poderia beber legalmente nos Estados Unidos
e Pérola já começou pedindo vinho para nós duas, já que o Galileu Galilei
não bebia. Beber legalmente era algo muito forte, porque com vinte e um
anos eu já estava quase aposentando as chuteiras, depois de ter começado
minha carreira bem cedo. Não tem fígado que aguente uma adolescente
viciada na vida noturna.
Gael apareceu algum tempo depois, vestido aquela roupa de chef de
cozinha que ele me ensinou uma vez ter o nome de dólmã. O branco
contrastava com sua pele bronzeada, deixando seus cabelos mais dourados
ainda. Ele beijou a cabeça de Pérola e Bernardo e veio na minha direção,
abrindo um sorriso que deixou minha cabeça até zonza. Ele se abaixou para
dar um beijo na minha, eu não queria que ele me cumprimentasse da mesma
forma que cumprimentava os filhos dele e ergui a cabeça. Acabamos em
uma situação embaraçosa quando minha boca ficou próxima de seu queixo.
No final, acabei ficando sem beijinho.
Quando voltei a sentar direito na cadeira, Bernardo, na minha frente,
me julgava com aqueles olhos de cervo dele, balançando a cabeça
negativamente.
Pedimos de entrada um brie folhado com mel que era simplesmente a
melhor coisa que já comi em toda minha vida. Pérola não parava de falar
sobre o nosso dia para Gael, enquanto Bernardo e eu apenas observávamos
os dois.
Eu estava sentindo um clima bom ali, toda a tensão das últimas
semanas pareciam ter se dissipado. Acreditava que as coisas melhorariam
dali em diante.
E, obviamente, eu comemorei cedo demais.
— Olá!
Parei com a taça a meio caminho da boca ao ver a Miss Leblon em
pessoa na minha frente, em toda sua glória dourada, alta e magérrima. Olhei
para Gael no mesmo instante e vi que conteve um sorriso. Diferente de
Pérola, que abriu um sorriso enorme e cheio de dentes para aquela senhora.
— Helena, você está passando férias aqui também? — perguntou minha
amiga, animada.
Não entendia por que Pérola gostava tanto assim dela. O ciúme bateu
bem lá no fundinho do meu coração e pensei que eu poderia acabar com
aquela simpatia em dois segundos.
— Sim, cheguei hoje.
Mentirosa!
Gael convidou Helena para sentar conosco e eu percebi que tinha a
quantidade exata de cadeiras à mesa. Aquele jantar era a porra de uma
armadilha!
Virei o vinho com tudo, tomando em um só gole. Bernardo deu um
chute no meu tornozelo e eu o encarei, puta da vida.
— Que é?
“Está tudo bem?”, perguntou movendo a boca, sem som.
Dei de ombros e estiquei meu corpo para encher minha taça com mais
vinho.
— Olá, Pietra!
Repuxei um lado da boca, sendo o máximo de simpatia que consegui
entregar àquela zinha.
Depois ela foi para Bernardo, que assim como eu, era o único que não
parecia cair de amores por ela. Não que ele não fosse educado, ele só não
fazia festa como um Golden Retriever quando ganha uma bolinha de tênis.
Enquanto Helena e Pérola conversavam sobre o quanto gostavam de
Miami, eu encarei Gael, bem séria. Ele percebeu e retribuiu o olhar,
movendo a cabeça delicadamente para os lados, como se pedisse para eu não
criar uma cena.
Eu não criaria. E como poderia? Naquela mesa, todos tínhamos o rabo
preso. Presos em uma rede, em uma maldita rede de mentiras.
Gael mentia para os filhos. Pérola mentia para Gael. Eu mentia para
Pérola. Bernardo mentia para o pai. E ele e eu mentíamos para todo mundo.
— Seu marido não te acompanhou, Helena? — Pérola mais uma vez
puxou assunto com a mulher, assim que as entradas foram servidas.
Tudo o que eu conseguia fazer era comer aquele maldito brie e
empurrá-lo com o vinho.
Olhei para a cara da loira. Marido? Além de tudo era uma traidora? Que
ótimo! Quanta classe, Gael!
Helena engoliu em seco e vi quando Gael a olhou, certa preocupação
surgindo em seus olhos.
— Faz um ano que estou divorciada — ela falou baixinho, parecendo
incomodada.
Ah, ótimo! Gael tinha destruído um casamento. Partidão!
— Ah, eu não sabia. Sinto muito! — Pérola ficou sem graça.
— Estou melhor assim.
— Todo mundo fica melhor depois de uma separação. — Minha amiga
piscou, simpática. — É por isso que você está linda.
— Você que está, minha querida. — Ela tocou na mão da minha amiga,
da minha amiga, por cima da mesa. — E você, Bernardo? Seu pai contou
que você planeja visitar o centro espacial em Cabo Canaveral.
Bernardo assentiu e eu senti uma pontinha de orgulho por ele não fazer
festa para ela. Não dava nem para saber se ele gostava dela ou não, porque
só se limitava a não deixá-la falando sozinha. Algo que ele não fazia
comigo, a propósito. Porque ele falava — e muito! — comigo. Chupa essa,
Miss Leblon!
— Se precisar de companhia, posso ir contigo. Sei que seu pai e sua
irmã têm uma vida bem agitada.
— Eu vou com ele, não será necessário — o efeito do álcool falou por
mim e ganhei atenção de todos à mesa. Principalmente de Bernardo. — Amo
foguetes. Espaço sideral, satélites, tudo!
Vi Bernardo segurar os lábios, como se fosse muito educado para rir da
minha cara. Dane-se! Ela não vai tentar conquistar Bernardo e levá-lo para
seu lado. Ele é o único que resta do meu lado agora. Vou defendê-lo das
garras chiques dela a todo custo.
— É um assunto muito interessante — Helena se aquietou depois da
minha interferência.
— Demais — disse, entredentes.
Gael deu uma risada aleatória, que eu não compreendi o motivo muito
bem, porque já estava zonza. Pérola parecia ter abstraído do assunto e
voltado a focar no celular, tanto que nem escutou o que eu falei. Diferente de
Bernardo, que seguia me encarando como se eu fosse a porra de um enigma.
— Você estuda com a Pérola?
Por que a Miss Leblon resolveu focar em mim agora?
— Sim.
— Uma carreira lindíssima a que você pretende trilhar.
— Aham.
Com a graça de Deus o garçom chegou para pegar nossos pedidos. E a
ladra de família parou de falar para perguntar qual prato Gael indicava.
Voltei a olhar para Pérola e Bernardo, uma ainda focada no celular, outro
brincando com o sal, e me perguntei como eles não estavam percebendo
aquela putaria rolando bem na cara deles?
— Ei, Tato está indo lá para casa. Vou sair de fininho, tudo bem? —
Pérola sussurrou ao meu ouvido.
A essa altura eu já estava alterada pelas cinco taças de vinho e a
conversa adulta de Gael e Helena e só revirei meus olhos.
— Preciso voltar para casa, papi. Esqueci que tenho uma entrevista com
o pessoal do curso em Nova York.
Uma coisa eu tinha de admitir. Nós não éramos apenas mentirosos, sim,
os melhores mentirosos.
Pérola conseguiu o que queria e ainda deixou Gael todo bobo, porque
sua filha era uma garota muito esforçada.
Aham, tá bom!
Antes da sobremesa, eu fui ao banheiro, porque as seis taças de vinho
cobraram seu preço. E nem foi só pela bexiga cheia, mas também porque eu
precisava de ar. Estava tonta, enjoada e triste.
Saí da cabine reservada e tive a certeza de que aquela era realmente
uma noite traiçoeira e que a cruz só ficaria ainda mais pesada, quando vi
Helena retocando o batom no espelho do banheiro. Ela também me viu, mas
continuou em seu processo enquanto eu lavei minhas mãos.
Achei o cúmulo do absurdo que ela ― de calça jeans, camiseta branca e
tênis ― chamasse muito mais atenção de Gael do que eu vestida com meu
melhor look. Ela estava tão básica hoje que nem lembrava a madame ladra
de sandálias do shopping.
Olhei meu reflexo no espelho, arrumei meu cabelo e meus peitos no
decote do cropped.
— Obrigada por não contar nada para Pérola e Bernardo.
Olhei para nosso reflexo, vendo-a na mesma posição que eu.
— Não é assunto meu. — Dei de ombros e vi que assentiu, agradecida.
Umedeci os lábios e tamborilei as pontas dos dedos no mármore da bancada.
— Por que não contou para Gael sobre aquilo que você sabe?
— Porque também não é assunto meu.
Suprimi um sorriso, porque a situação era até que engraçada.
— Pietra, nós não somos inimigas. — Ela pousou a mão no meu
antebraço, fazendo com que eu olhasse alarmada para aquele gesto. — Já
tive a sua idade, sei como tudo é confuso.
Ela falou como uma verdadeira adulta agora. Que na verdade, era o que
ela realmente era. Senti um pouco de vergonha, porque ela deveria achar que
eu era uma criança iludida com um crush fofo em seu homem.
— Tentar se fazer de minha amiguinha não vai mudar toda a situação
— deixei bem claro.
— Não estou tentando mudar qualquer situação. Você tem todo o
direito de sentir o que quer que seja, por qualquer pessoa que seja. Eu
compreendo.
— Ótimo, porque não vou desistir!
Ela sorriu, mas não era irônico, maldoso, nem nada. Era até acolhedor.
Irritante demais.
— Estou feliz de ter uma concorrente à altura.
Helena piscou o olho direito e, antes de sair do banheiro, passou os
dedos na ponta do meu cabelo. Como em um afago muito do esquisito de
sua parte. Ela tocou no meu cabelo!
Na minha quebrada nós cortamos o cabelo de quem quer pegar nosso
homem, não faz carinho! Que louca!
Depois da sobremesa, Gael voltou ao trabalho, provavelmente para
fazer de Helena a sua sobremesa. Pensar nisso me irritou e eu tomei mais
duas taças de vinho antes de ser rebocada do restaurante por Bernardo. Nos
últimos tempos, não importava o que eu fizesse, no final éramos Bernardo e
eu apenas.
Inferno de gênio!
— O que está acontecendo com você hoje? — ele perguntou assim que
o manobrista entregou o carro.
Bufei e sentei de qualquer jeito no banco, tendo muita dificuldade em
encontrar o cinto. Escutei Bernardo respirar fundo e se inclinar na minha
direção. Tomei um susto quando o vi tão perto de mim. Poderia ser loucura
da minha cabeça bêbada, mas seu cabelo tinha um cheiro perfeito, algo
cítrico, aquele cheiro de homem saindo do banho que impregna em cada
parte do nosso sistema nervoso. Um cheiro que eu nunca esperei que
Bernardo tivesse.
Ele pegou o cinto e passou por meu corpo, seus dedos resvalaram no
colo e estremeci.
— Você me deu choque! — Alisei o lugar onde ele tinha tocado,
tentando dissipar a energia.
— É só um acúmulo de elétrons.
Eu deveria ter rido, mas olhei para ele com mais atenção.
Bernardo me prendeu ao cinto e se afastou um pouco, o suficiente para
olhar meu rosto. Ele era tão irritante, tão arrogante em toda sua pose de
gênio. Nunca tinha ficado tão próxima de Bernardo assim, na vida, e
observei a pintinha que ele tinha no alto da bochecha e o furinho no queixo,
algo muito discreto, que nunca tinha reparado. Ergui o olhar para sua boca,
não fazendo ideia do porquê de ter feito isso. E odiei como considerei sua
boca perfeita, o arco do cupido era muito bem delineado, a parte inferior,
volumosa. Bloqueei o pensamento antes mesmo de pensar, porque eu me
conhecia.
— Obrigada — murmurei, tentando qualquer coisa para dissipar
aqueles pensamentos.
Bernardo se afastou, pela graça do meu bom Deus, e colocou aquele
carro em movimento. Em menos de dez minutos já estávamos no elevador,
subindo para o apartamento. Fiquei afastada de Bernardo o máximo que
consegui, porque não queria dar margem para pensar que a boca dele era
interessante.
— Pérola saiu com Tato?
Neguei, mas apontei para o corredor, de onde vinha um barulho de
cama batendo na parede. Lamentável!
— Que nojo! — Bernardo fez um careta, franzindo todo o rosto. — Eu
vou, é... — parou de falar e também de me olhar, parecendo ter perdido a
capacidade de se comunicar.
— Tá bom, boa noite!
Bernardo saiu apressado pelo corredor e eu joguei o corpo no sofá,
sentindo minha vida girar. Não deveria ter bebido tanto, inferno! Agora
estava ali, sem quarto, sem roupas, sem banho, sem moral e sem qualquer
controle emocional pelas merdas que passavam em minha cabeça.
Chutei as sandálias para fora do meu pé e abracei as pernas, escutando
aquelas batidas na parede com dor no coração. Acho que eu odiava Tato.
Sim. Um pouco, ao menos.
Passei a próxima meia hora escutando aquele escroto macetar minha
amiga, com direito a tapas e muito xingamento. Esse era o pior dia da minha
existência nesse planeta fodido.
Quando o escutei falar — em um tom extremamente alto — para ela
“Abrir a boca para o papai” eu desisti e saí correndo para o corredor.
Abri a porta de Bernardo sem nem bater e o achei sentado na cama, já
com uma calça de flanela e camiseta branca, de banho tomado; a julgar por
seu cabelo molhado. Ele ergueu os olhos, as mãos paralisadas em cima do
teclado do notebook.
— Posso dormir com você, de novo?
O cheiro do cabelo de Bernardo estava por todo canto daquele banheiro.
No shampoo, no gel de banho, até no perfume que eu cheirei. Quem nunca?
Se qualquer humano me convida para seu banheiro, eu vou fuçar em todos
os armários só para conter a minha curiosidade.
Depois do banho, minha curiosidade não estava saciada. Peguei um
pouco do perfume e coloquei no meu pescoço, só porque era muito bom.
Extremamente bom. Nunca tinha sentido um cheiro tão bom.
A curiosidade não cessou e eu decidi pesquisar no Google o nome do
perfume, que também fazia conjunto com o shampoo e o gel de banho,
porque eu queria cheirar assim também. Quando carregou, eu quase deixei o
celular cair no chão.
Mil e setecentos reais em um perfume? Vindo do garoto que tinha um
iPhone caindo aos pedaços? O que vinha naquele perfume? Ouro?
Descobri um minuto depois que era uma mistura de tangerina e jasmim,
com notas de couro e todo aquele blá-blá-blá. Sangue de Jesus tem poder!
Bernardo me emprestou um short e uma camiseta para eu dormir,
porque Pérola trancou o quarto com minhas roupas lá dentro. E adivinhe? A
roupa também tinha o mesmo cheiro. Penteei meus cabelos com os dedos e
usei um pouco do enxaguante bucal para dar uma disfarçada, pelo menos.
Percebi que a camiseta que ele me emprestou era daquela marca “Star Trek”
que ele parecia gostar muito. Quanto custava essa brincadeira? Cinquenta
mil reais?
Tentei deixar tudo organizado no banheiro, assim como encontrei. Ele
era extremamente organizado. Ao sair, encontrei-o sentado na cama,
balançando tanto aquelas pernas que daqui a pouco esfolaria toda sua cama
de hotel.
— Que marca é essa que você tanto usa? Nunca ouvi falar. — Apontei
para a camiseta que eu usava.
Bernardo era bem alto e usava roupas mais largas. Logo, tudo dele
ficou enorme em mim. A camiseta parava no meio da coxa e o short só não
caía porque minha bunda era grande.
— Como assim?
— Essa Star Trek.
Ele ficou confuso e levou alguns segundos para entender sobre o quê eu
falava. Vi diversas reações passarem por seu rosto, vi até que começaria a
rir, mas parou.
— Você não conhece Star Trek?
— Eu deveria?
— É um dos melhores filmes de todos.
— Não é marca de roupa?
— Não.
— Ah, tá.
Que merda, hein? Existia algum momento da minha vida em que eu não
fosse uma completa tapada na frente de Bernardo? Acho que garotos
inteligentes me deixavam nervosa.
— Você quer ver? — ele perguntou, parecendo sem jeito.
Eu não tinha nada para fazer. Então, por que não?
— Quero. Manda ver!
Ignorei meu cafofo montado por ele no chão e subi na cama,
percebendo a surpresa de Bernardo ao me ver por ali. Ele precisava se
acostumar com a presença de alguém do sexo feminino, para ontem.
Ajeitei minhas costas nos travesseiros e o esperei colocar o filme,
enquanto o escutava contar a história meio por cima. Contou que tinham
treze filmes da franquia, divididos em três eras, às quais eu já comecei a
reclamar, falando que não veria. Mas nem fodendo! Bernardo colocou o
primeiro e eu gemi de desgosto ao ver a imagem toda granulada de um filme
lançado há mais de quarenta anos.
Ficamos quietos por algum tempo, porque estava difícil entender o
enredo. Era uma tripulação dentro de uma nave tentando defender a Terra de
um alien esquisito, e nada gostoso, como o do meu livro.
Bernardo era muito esquisito mesmo.
— Nunca imaginei que você estaria no meio das férias vendo Star Trek
comigo — Bernardo disse em voz baixa, soltando um risinho ao final.
Eu estava envolta de todos os travesseiros macios e precisei erguer um
pouco a cabeça para conseguir encará-lo.
— Culpe a sua irmã.
— Você é diferente quando está longe dela.
Bernardo ganhou minha atenção com aquela simples frase. Franzi a
testa, sem compreender.
— Como assim?
— Você assume a personalidade da Pérola quando está com ela.
Tentei não levar em consideração aquilo, mas eu sabia que era verdade.
Eu tentava ser parecida com Pérola, porque morria de medo de minha amiga
se cansar de mim. Pérola fazia amizade fácil, era uma superestrela. Eu não
tinha outra amizade verdadeira sem ser a dela. Só a minha avó, na verdade.
Fingi tanto ao longo da adolescência, que depois de um tempo se tornou real.
Eu me tornei alguém confiante, rodeada de pessoas, festeira e divertida,
mesmo quando eu não queria ser.
— E eu sempre tive pavor de você — Bernardo completou.
— Por quê?
— Porque eu ficava nervoso ao seu lado.
— E agora não fica mais?
— Só todo o tempo.
Meu rosto ficou mais sério à medida que eu senti uma energia esquisita
pairar entre Bernardo e eu. A mesma que surgiu hoje no carro. A mesma que
senti quando ele passou o protetor solar nas minhas costas e decidiu sair
correndo. Tentei buscar explicações e decidi culpar o tanto de vinho que
tomei. Vinho era um perigo para mim, porque me dava um fogo no rabo
além do comum e fazia com que eu acreditasse que qualquer ser humano
estava flertando comigo.
Primeiro que Bernardo nem sabia flertar, segundo que aquilo nunca
aconteceria. Por uma lista interminável de motivos.
— Como estão as conversas com a Paola?
Voltei para nosso campo seguro, tão seguro quanto um pasto com
ovelhas fofas pulando. Sem energia, sem elétrons.
— Ela perguntou se eu poderia ligar para ela.
Joguei uma almofada nele, animada.
— Isso, sim, é um avanço. Ela quer falar putaria contigo!
— Eu não sei falar putaria.
E pela forma como ele ficou pálido, deveria ser real.
Pedi seu celular e sorri ao ver que ele tinha trocado a película. Fui até a
conversa da professora e respondi com um “Só posso no sábado.” Meu
pupilo tinha de ser valorizado. Homens virgens têm de mostrar seu valor
nesse mercado competitivo.
— Não! Eu não sei o que falar!
— Treina comigo.
Senti que não deveria ter falado aquilo, mas agora já era. Levantei dos
travesseiros e o olhei.
— Não!
— Estou aqui para te ajudar.
— Mas isso... Isso não.
Bernardo estava aterrorizado e foi aí que tive uma ideia.
— Vou ao banheiro, só um minuto. — Saí da cama correndo e peguei
meu celular que deixei em cima da mesinha de cabeceira antes de entrar no
banheiro.
Tranquei a porta e fui sentar no chão. Cacei na minha agenda um
número que nunca pensei ligar, mas que agora era necessário. Escutei os três
toques, antes de ouvir a voz conhecida e confusa.
— Está tudo bem aí? — Bernardo perguntou do outro lado da linha.
— Olá, Dimitri. Fico feliz em falar com você. — Carreguei minha voz
com toda a sensualidade que consegui e só escutei o silêncio de Bernardo. —
Nosso encontro foi tão perfeito, que só de pensar nele me deixa com calor.
— Pietra, para com isso.
— Quem é Pietra? Eu sou a Nicole, já se esqueceu de mim? —
choraminguei, ofendida.
Cara, eu era ótima no teatro. Ganhei prêmio e tudo na escola.
— Pietra!
— Você está me ofendendo, Dimitri. Está sendo um garoto muito,
muito malvado. — Ok, passei dos limites. Tentei me recompor e não cair na
risada. — Estou me sentindo tão sozinha aqui na minha cama.
— Eu não vou falar com você — Bernardo grunhiu pelo telefone.
Não desisti, porque eu nunca desistia. Estava no meu sangue.
— Nem se eu contar que estou usando só uma calcinha preta? Daquele
jeito que você gosta?
Ele continuou em silêncio, mas ainda estava na linha, porque eu
conseguia escutar sua respiração baixa.
— E que quando fecho meus olhos só imagino sua mão segurando
minha cintura aquele dia, na boate? — Dei uma estremecida, afinal, o
banheiro de Bernardo era bem gelado. — A forma como os seus dedos
entraram por dentro da minha blusa...
Eu nunca tinha feito isso na minha vida, mas acho que eu tinha um
dom.
— Ainda está aí, Dimitri? — perguntei, apenas para me certificar.
— Sim.
— Fale o que você faria comigo se estivesse aqui, Dimitri. Onde você
me tocaria?
Fiquei ansiosa para ouvir alguma coisa, mas estava difícil tirar algo
desse Dimitri.
— Somos só você e eu aqui. Conte para mim, amor.
Mais silêncio. Estava gastando todo meu dom com alguém que deveria
estar com os olhos vidrados naquele cara com o cabelinho tigelinha e orelhas
pontudas do filme.
— Nas... Nas costas.
A voz era trêmula e muito tímida, mas fiquei surpresa por ele ter falado.
Novamente estremeci e dessa vez culpei uma corrente de ar que entrava pela
janela entreaberta.
— Queria tanto sentir seu toque novamente, Dimitri. — Eu quase gemi
ao telefone e percebi que precisava me controlar, antes que Bernardo
enfartasse. — Se eu estivesse aí, iria até você e sentaria no seu colo. E
sentiria a pressão que me aguarda.
Escutei uma tosse do outro lado, misturada com um engasgo.
— Vou me inclinar em direção ao seu rosto e te beijar. Você gosta
assim, Dimitri?
Eu sabia que ele não responderia, mas serviria para ele se manter vivo
quando a professora resolvesse ligar. Pelo menos ele estaria ali, não é?
— Gosto.
Precisei morder o lábio inferior para não sorrir ao escutar aquela única
palavrinha.
— Você quer me tocar? — Minha voz quebrou e meus braços ficaram
arrepiados.
Odiei a sensação de ter de aguardar tanto por uma maldita resposta.
— E-Eu... Sim.
— Pegue o que é seu, então.
Escutei um barulho, como se ele tivesse derrubado o celular. Meu
coração deu um pulo. Ai, meu Deus!
— Já chega, Pietra.
E então Bernardo desligou.
Precisei de uns dois minutos olhando para o armário cinza do banheiro
para tentar acalmar meu coração acelerado. Que merda eu tinha feito?
O garoto nunca teve qualquer interação com garotas, eu nem sabia se
Bernardo já tinha beijado na boca. E eu simplesmente falei as maiores
putarias para ele. Do nada!
Era um personagem, eu estava tentando ajudá-lo. Só isso.
Precisei repetir isso como um mantra umas setecentas vezes enquanto
lavava meu rosto e jogava uma água na minha nuca. Quando saí do
banheiro, senti meu rosto pegando fogo, o quarto estava escuro, assim como
quando saí dali. O filme congelado na televisão deixava os contornos de
Bernardo azulados.
Caminhei receosa para a cama, mas antes que eu pudesse voltar a deitar
para continuar a assistir o filme, ele levantou do colchão.
Ele estava com o rosto todo vermelho, os cabelos desgrenhados, como
se tivesse passado os últimos cinco minutos esfregando os fios
freneticamente. Bernardo abriu a boca, mas fechou no mesmo instante.
Eu nunca tive vergonha de qualquer homem, mas estava totalmente sem
jeito na frente daquele garoto.
— Você foi bem. — Tentei soar o mais controlada possível, mas a
verdade era que estava difícil até de respirar.
— Nunca mais faça isso.
Foi uma surpresa escutar a voz de Bernardo tão ameaçadora daquele
jeito. Porque, convenhamos, ele não era nada ameaçador.
— Você pelo menos não travou. Não vai fazer feio com a Pao...
— Eu não quero sua ajuda!
Bernardo estava irritado e eu não consegui entender por quê. Eu só
estava tentando ajudar, porque ele me pediu.
— Mas temos um combinado...
— Você acha mesmo que meu pai vai querer alguma coisa com você?
— Bernardo explodiu e só me restou arregalar os olhos. — Ele é a porra de
um adulto, Pietra. Muito diferente de você.
— Você surtou? — Tentei defender minha própria pessoa, mas a
verdade é que fiquei em choque.
— Você que surtou com toda essa história. Com essa ligação, com suas
ideias malucas, com essa obsessão em cima de alguém que só quer fazer o
papel de pai na sua vida. E sabe de uma coisa? Você só está querendo suprir
a ausência do seu pai, dando em cima do meu!
Dei dois passos para trás. Meus olhos arderam, mas os apertei com
força, recusando fazer o papel de menininha indefesa na frente daquele
escroto.
— Então é isso que você está fazendo com sua professora? Suprindo
com ela a ausência da sua mãe? — rebati a pergunta.
Deu para ver que Bernardo ficou desarmado. Como se eu tivesse dado
um tapa na cara dele.
— Espero que você morra virgem, seu babaca!
Saí do quarto fazendo questão de dar uma sonora batida na porta.
Esperava que servisse para aquele imbecil de Tato sair da porra do quarto da
minha amiga também.
Joguei meu corpo no sofá, usando a manta felpuda para me esconder do
mundo. O ódio estava borbulhando nas minhas veias. É nisso que dá dar
confiança para gente escrota. Ele me chamou de burra seis anos atrás, já
deveria ter visto as red flags. Ele que fosse com sua arrogância e seu
perfume caro para a puta que o pariu!
A única coisa que não entendi, foi porque eu comecei a chorar. Na
verdade, eu até entendia. Bernardo tinha mexido em um terreno muito
dolorido.
Meu pai era um babaca. Ele tinha vinte e seis anos quando começou a
sair com minha mãe, que tinha treze anos na época. Ela já estava com
dezessete quando engravidou e ele a convenceu de que eles formariam uma
família. Não era verdade, obviamente. Minha infância foi toda com eles
terminando e voltando. Um eterno vai-e-vem, regado a gritos, brigas e
abusos. Ele não era ruim para mim, só era indiferente. Não existia carinho,
nunca recebi um abraço do meu pai.
Quando minha mãe morreu, ele não estava no momento em que eu mais
precisei dele e deixou que eu passasse dois dias em um abrigo para menores.
E depois, nem hesitou em dar a guarda exclusiva para minha avó.
Sempre tentei ser superior a essa dor, mostrar a todos que eu sobrevivi
bem demais sem ele. Mas a realidade é que uma garota precisa de um pai, da
presença masculina para nos proteger, cuidar e nos orientar.
Eu não tive isso. E passei o resto da minha vida buscando validação
masculina para que eu me sentisse amada, protegida e feliz.
Gostava da atenção que os garotos sempre me deram.
Gostava de homens mais velhos me mimando, fazendo de tudo para ter
um pouco da minha atenção.
E eu gostava demais da minha relação com Gael. Porque ele estava lá
quando eu era uma criança gritando assustada pelos pesadelos que tinha. Ele
estava lá me dando conselhos sobre garotos, sobre sexo seguro e gravidez na
adolescência. Ele estava lá se preocupando quando tive minha primeira
decepção amorosa. Estava na minha formatura, nos meus porres, nas
conversas durante as trilhas, até quando enfrentou uma fila absurda para me
levar ao show do One Direction.
E ele fez tudo isso por mim, como um pai.
Joguei a manta longe quando comecei a sentir falta de ar, mas paralisei
ao escutar o barulho da porta do elevador abrir. Fechei os olhos, fingindo
que estava dormindo, porque odiaria olhar para Gael naquele momento.
Escutei os passos pesados de sua bota, o tilintar da chave do carro ao
ser colocada no aparador. Ele foi para a cozinha e ouvi o barulho do filtro de
água. Depois, os passos se aproximaram. Apertei os olhos com mais força e
abri a boca, deixando a respiração mais pesada.
Parei de respirar quando ele tocou a minha testa. Minha barriga gelou
por aquele toque, mas não no sentido sexual da coisa, eu estava pronta para
dar um pontapé nele caso se aproximasse demais.
Não sei nem porque pensei nisso. Gael não era assim e provou isso no
segundo seguinte, ao pegar a manta e jogar pelo meu corpo. Antes de ir
embora, ele ainda tirou uma mecha de cabelo que caía no meu rosto e
colocou meu celular em cima da mesa de centro.
Ao escutar a porta do quarto dele fechando, eu desabei.
Eu era uma pessoa horrível.
Fazia quatro dias que Pietra e eu não nós falávamos.
Isso não deveria ter importância, porque a gente nunca se falou direito,
mesmo. Mas eu ficava esquisito toda hora que recebia alguma mensagem de
Paola ou olhava para a tela do meu celular e não via nenhum trinco na
película.
Em um desses dias, decidi trabalhar com meu pai na parte da tarde,
porque o apartamento ficava silencioso demais sem Pérola, que estava em
algum canto com Tato, como sempre, e também sem Pietra. Não fazia ideia
do que ela fazia durante a tarde, mas descobri quando passei pelo lobby do
prédio. Pietra estava simplesmente sentada atrás do balcão da portaria,
conversando animadamente com o porteiro de quem ela parecia ser amiga.
Ela parou de falar assim que percebeu minha presença e virou o rosto.
Sabia que tinha falado algo horrível. E estava arrependido. Mas, não
sabia como falar isso para ela, acredito que ela nem quisesse essa desculpa.
Ela tentou me ajudar e acabou escutando algo horrível de mim.
Não sei o que aconteceu comigo naquele dia.
Bem, eu sei. Só não gosto de admitir.
Tudo começou com ela deitada na minha cama vendo um filme comigo
pela segunda vez, como se fosse algo normal na nossa dinâmica. E odiei
como pareceu normal. Ali ela não era a menina com quem todos os garotos
na escola queriam ficar. Não era a garota que me fazia ficar escondido no
quarto por anos só porque tinha vergonha de ela olhar para mim. Muito
menos a mulher que pediu que eu a ajudasse a conquistar meu pai.
E depois daquela ligação, ficou difícil demais aceitar isso.
Para mim, não foi a tal Nicole ao telefone, foi Pietra. Na minha cabeça,
tudo o que passou foi ela com a calcinha preta, ela me beijando, eu a
tocando.
Eu a magoei, porque não sabia lidar com a frustração de que aquilo
nunca seria real. Porque ela gostava de outro cara, do meu pai, no caso.
Pérola levou Tato para casa outras duas vezes. Fiquei apreensivo no
quarto, esperando o momento que Pietra fosse invadir o meu quarto
novamente. Mas não aconteceu.
Ela ficou na sala, mesmo depois do meu pai chegar.
Ontem ele perguntou se Pietra e Pérola tinham brigado, porque não
entendia ela dormir na sala vários dias. Também perguntou por que em um
desses dias Pietra estava dormindo com minha camiseta. Não consegui
explicar e vi um olhar desconfiado surgir em seu rosto, mas ele não me
pressionou, apenas mudou de assunto.
No domingo, ele tirou folga e intimou toda a família a velejar. Pérola
nem tinha dormido em casa e mandou uma mensagem pedindo para eu
mentir para nosso pai. O que fiz, pessimamente mal, a propósito. Inventando
que Pérola foi visitar Alicia, uma garota que estudou com ela e agora morava
em Miami.
— E por que você não foi, Pietra? — A atenção dele se voltou para ela,
que mexia no celular sentada nos bancos altos em frente à ilha gourmet.
Foi a primeira vez em todos aqueles dias que ela me olhou.
— Eu não era amiga da Alicia. — Sua voz era hesitante. — Ela é uma
vaca, na verdade.
Meu pai ficou convencido e nos deixou em paz. Busquei o olhar de
Pietra, mas ela já estava focada no celular.
A advogada do meu pai chegou um tempo depois, deixando-o meio
elétrico, abobado até. Pietra revirou os olhos e eu achei o clima um pouco
estranho, mas fiquei quieto.
Helena era legal, eu a conhecia fazia alguns anos, mas nunca tínhamos
conversado muito. Nos últimos tempos ela frequentava mais nossa casa.
Acho que por conta do divórcio. Todo mundo procurava os amigos quando
se separava. Ela parecia mais feliz sem o marido dela, pelo menos. Lembro
de uma vez, durante o lançamento de uma unidade do Arraz em São Paulo,
ele ter feito um escândalo por estar bêbado demais, vi quando segurou o
braço de Helena com força.
Fomos de carro só até o ancoradouro. Enquanto meu pai e eu
arrumávamos tudo para zarparmos, fiquei observando Pietra. Ela arrancou o
vestido logo que chegou, claro! Estranhamente o biquíni dela era mais
comportado do que costumava usar.
Ela continuou mexendo no celular e só agradeceu quando Helena a
serviu com uma taça de vinho. Fui até a proa checar o punho de amura, perto
de onde ela estava deitada tomando sol. Foi difícil não ficar por um tempo
vidrado naquela curva perfeita de sua bunda. Odiei olhar para ela daquela
forma, porque não era nada respeitoso. E me odiei quando virei e vi Helena
observando tudo aquilo.
Tropecei em algumas cordas e vi o rastro de um sorriso aparecer em seu
rosto.
Começamos a velejar. As ondas estavam um pouco agitadas, mas
quando saímos da baía, entrando em mar aberto, encontramos a calmaria de
um lago. Meu pai começou a fazer churrasco e eu fiquei no leme por algum
tempo, ligando depois o piloto automático para poder almoçar.
Sentei no banco ao lado de Pietra, que só continuou me ignorando, até
mesmo quando pedi para ela passar o sal. Ela e eu nunca fomos próximos,
não deveria ser uma novidade. Só que era esquisito estar assim com ela,
justo agora que parecia não me odiar tanto assim.
— Então vocês estudaram juntos na escola? — Helena perguntou, de
repente.
Pietra fez uma careta e encostou as costas na cadeira, relaxada.
— Eu repeti e fiquei estudando com as crianças.
Franzi a testa. Que crianças?
— Você não é nem um ano mais velha que eu.
Tentei defender minha maturidade e só recebi dela uma revirada de
olho.
— E vocês eram amigos durante a escola? — Helena insistiu em saber.
Um pouco intrusa demais, eu achei.
— Ele me chamou de burra durante uma prova. Então, não, não éramos
amigos.
Pietra guardava muito rancor dentro dela. Credo!
Helena começou a rir e vi o olhar curioso de meu pai para cima de mim.
Eu acredito que ele não sabia dessa informação.
— Você a chamou de burra? — Seu tom era de pura reprovação.
Foi a primeira vez que Pietra me olhou em muitos dias, em puro deleite
por ver a forma como meu pai estava falando comigo.
— Não foi bem assim...
— Foi assim, sim! — Pietra se zangou.
— Eu disse que poderia deixar comigo, porque você não sabia fazer.
Cruzei os braços, um gesto que ela imitou no mesmo segundo.
— Em um tom de puro desprezo.
— Você sabia algo sobre Lançamento Oblíquo, Pietra?
Ela abriu a boca, pronta para dar alguma resposta atravessada, mas
fechou logo em seguida.
— Eu não sei nem o que é isso — confessou.
— Só estava poupando seu tempo.
Quando olhei para meu pai, ele assistia nossa discussão boba com quem
acompanhasse uma partida de tênis e segurava um sorriso ao olhar para
Pietra. Engoli em seco ao vê-lo olhando daquela forma. Ele estava mudando
de ideia? Pietra finalmente o conquistou nesses dias que não faço a mínima
ideia do que ela fez?
— Não é a forma de falar com uma garota, Bê.
E agora ele estava me dando uma bronca!
— Mas eu só queria ajudar...
Eu não tinha o menor jeito com garotas, principalmente com Pietra. Eu
entrava em pânico quando ela se aproximava. Ainda entro, bem pouco, mas
entro. Ela realmente se ofendeu com aquilo?
— Deveria pedir desculpas para ela — Helena sugeriu.
— Seis anos depois? — perguntei, assustado.
— Seis anos depois, Bê. — O apelido veio com uma ironia tão grande
da parte de Pietra, que eu precisei respirar fundo para não ficar irritado.
— Desculpe por ter falado de forma tão rude com você, Pietra.
Até repuxei um sorriso para que ela ficasse feliz.
— É de coração?
— É.
— Tá, ok, então.
Meu pai e Helena continuaram rindo e logo depois Pietra pediu licença
para ir tomar sol. Fiquei a observá-la por algum tempo, enquanto ”os
adultos” conversavam. Logo, ele foi ajeitar uma das velas e eu ajudei Helena
a arrumar a mesa, jogando fora as sobras do lixo. Enquanto ela lavava a
louça na cozinha que tínhamos embaixo do veleiro, ao lado de dois pequenos
quartos e um banheiro, eu ia secando. Não conversamos quase nada, mas foi
agradável. Ela era uma pessoa animada e sorridente, sempre me olhava de
forma carinhosa, como se estivesse pronta para qualquer coisa que eu fosse
pedir.
Quando voltei ao convés, senti a garganta secar ao ver a forma como
Pietra estava próxima do meu pai. Eles estavam conversando na popa. Pietra
sentada na grade de proteção fazia meu pai dar uma sonora gargalhada por
algum motivo. Odiei ouvir aquele som. Odiei vê-los tão próximos. Preferia
muito mais ele querendo até que ela ficasse no Brasil do que os ver se
divertindo juntos.
Fui verificar a mazena, a vela mais próxima de onde eles estavam, mas
ainda assim não conseguia ouvir direito sobre o que falavam. Desfiz o nó da
corda e a segurei enquanto observava os dois. Pietra segurou, naquele exato
momento, o antebraço do meu pai e ele não se afastou do toque. Muito pelo
contrário! Ele se encostou à grade e olhou para ela, assentindo positivamente
sobre algo que ouvia.
Tem momentos em que nós sabemos que iremos fazer uma grande
merda, mesmo antes de a merda ser propriamente feita. Olhei a vela por um
segundo antes de decidir que ela poderia afastar Pietra do meu pai.
Afrouxei a corda no moitão e vi quando a vela movimentou com a força
do vento para a direita, encontrando Pietra pelo caminho.
Eu consegui afastar Pietra do meu pai. Só que eu a derrubei no mar
nessa tentativa.
Meu coração parou por um segundo, quando vi seu corpo tombar para o
lado de fora do veleiro. Larguei a corda e corri, sendo surpreendido por
Helena que corria quase ao meu lado.
Antes de chegar o guarda-corpo, vi meu pai pular do barco em um
movimento. Fui até o leme e desliguei o motor, sem conseguir raciocinar
sobre o que eu estava fazendo.
Quando voltei para perto da grade, vi meu pai segurando Pietra, que
tossia bem alto. Corri mais uma vez até a popa e abri o portão para descer a
escada até eles.
Antes mesmo que Pietra colocasse os dois pés na escada, eu a puxei,
colocando minhas mãos debaixo da sua axila, erguendo-a como um bebê. Eu
só não contava que não fosse aguentá-la e em menos de dois minutos,
tentasse matar Pietra novamente.
Eu tropecei em algumas cordas e a trouxe comigo para o chão. Pietra
caiu em cima de mim e seu joelho acertou bem o meio das minhas pernas.
Choraminguei, mas não muito, porque sabia que era o karma cobrando
seu preço.
— Você está bem? — ela perguntou, pingando em meu rosto.
Pisquei duas vezes, ainda atordoado pela dor em minha virilha e mais
ainda por ter Pietra ali tão próxima. Desviei os olhos para seus lábios, que
não deveria estar a cinco centímetros da minha boca. Sua respiração quente
batia exatamente ali.
— Es-Estou — gaguejei vergonhosamente.
Pietra riu e negou com a cabeça.
Meu pai apareceu e a puxou de cima de mim pela mão. Helena
apareceu com uma toalha listrada e colocou nos ombros de Pietra,
esfregando os braços da menina.
— O que aconteceu? — meu pai perguntou assim que Pietra e Helena
se afastaram.
Entrei em pânico.
— Eu... escapou, a corda, da minha mão.
Ele me olhou com seriedade.
— Você tem certeza? — insistiu.
— Sim — murmurei baixinho.
— Você poderia ter machucado Pietra, muito sério. — Seu maxilar
estava travado. Nunca vi meu pai sério daquela forma. — Vá pedir desculpas
para ela. Agora!
Abaixei a cabeça, assentindo para o chão.
— Bernardo? — chamou quando eu já tinha dado a volta para ir até
Pietra. Olhei para ele. — Nós podemos ser tudo nessa família, mas não
somos covardes.
Entrei em pânico, porque meu pai nunca tinha falado daquela forma
comigo. Eu não sabia o que falar para ele, porque estava nervoso, mas
entendi muito bem o que foi falado. Não sou um tapado.
Desci a escada do veleiro e passei pela cozinha, encontrando Helena
sentada no banco da mesa de jantar que tínhamos ali.
— Ela está bem? — perguntei, porque foi ela quem levou Pietra do
convés.
— Sim, está no banho.
Respirei aliviado. Fui um idiota com Pietra. Ela realmente poderia ter
se machucado ou não saber nadar, eu não fazia a menor ideia. Senti meus
olhos lacrimejarem ao olhar a porta do banheiro fechada.
— Eu vi o que você fez, Bernardo. — A voz calma de Helena fez meu
estômago dar um nó.
— Eu... Eu não queria machucá-la — balbuciei.
Helena bateu a mão na cadeira ao seu lado. Sem jeito, sentei ali e fitei
seus olhos verdes amendoados e bondosos.
— Quando sentimos coisas que não compreendemos, nós fazemos
coisas estúpidas.
Neguei veementemente.
— Eu não sinto nada por ela.
— Bernardo, meu querido, eu sei que você é o inteligente aqui, mas
com coisas do coração nós mulheres estamos a anos luz de vocês.
Helena deu um tapinha na minha mão, para meu total pavor.
— Ela sabe? — perguntei com horror.
Não, não e não! Se Pietra soubesse de qualquer coisa eu nunca mais
conseguiria olhar para a cara dela. Acho que nem ela na minha, na verdade.
— Há algo que ela precise saber?
Neguei rapidamente.
— Porque quando tiver, faça com que ela saiba primeiro. Pietra não tem
como adivinhar.
A forma como Helena falou “quando” e não “se” ativou um alarme
dentro de mim. Eu estava deixando a forma como eu a considerava bonita,
divertida, engraçada, boa companhia, boa amiga ― até boa conselheira ―,
explícita desse modo?
A porta do banheiro abriu e Pietra passou pelo corredor correndo com
uma toalha branca enrolada no corpo. Helena acariciou minha bochecha e
deu uma piscada antes de sair da cozinha, voltando ao convés.
Esperei mais alguns minutos, dando tempo para Pietra se trocar, então
fui até a porta e dei dois toques, escutando-a falar: “entra”.
— Posso entrar? — perguntei, só para ter certeza.
— Pode.
Entrei no quarto, mas travei ao ver que ela estava jogada na cama,
apenas com um biquíni. Agora um biquíni igual aos que ela costumava
vestir. Um minitriângulo laranja com uma alça tão fina que não sei como
permanecia no lugar. A calcinha era igualmente pequena e dava para ver
uma marca fina de bronzeado aparecer pelo formato diferente da anterior.
Mordi a ponta da língua, tentando concentrar na dor, que parecia melhor do
que olhar por mais tempo para aquela maldita marquinha.
— Quero pedir desculpas...
Fiquei parado de pé, sem nem conseguir olhar para o rosto de Pietra.
Não conseguia me reconhecer naquela atitude. Nunca fiz isso, muito
menos senti algo tão ruim quanto aquilo ao ver Pietra e meu pai rindo.
— Está tudo bem, foi um acidente.
Pietra levantou da cama e eu virei o rosto para não ver sua bunda. Além
de tudo o que eu já tinha feito hoje para ela, não dava para olhá-la dessa
forma. Foquei no chão, mas o reflexo de algo brilhante chamou minha
atenção e admirei com certo fascínio o piercing em seu umbigo. Era
pequeno, bem discreto, apenas um pontinho brilhante.
— Não foi...
Pietra abaixou quase na mesma altura que eu, com as mãos na cintura.
Desviei os olhos novamente para qualquer outra parte do quarto.
— Como assim, não foi?
Seu tom de voz não era nada bom. Nada bom, mesmo.
— Eu... Eu soltei a corda.
— Em cima de mim?
Assenti, envergonhado. Parecia absurdo demais confessar aquilo em
voz alta, então só admiti com gestos.
— Por quê? — Pietra endireitou a postura e cruzou os braços.
Ela parecia uns trinta centímetros mais alta naquela pose.
— Você estava dando em cima do meu pai.
Achei que ela fosse brigar comigo, gritar, até me dedurar para meu pai,
mas tudo o que ela fez foi rir. Alto. Bem alto.
— E aí você tenta me matar por isso?
— Desculpa!
Cruzei minhas mãos, repousando-as em minhas coxas. Não sabia muito
bem o que fazer com elas.
— Você acaba comigo em um dia, no outro me chama de burra e depois
tenta me matar. Que ótima relação!
— Eu não tentei te matar e nem te chamei de burr... — Parei de falar,
porque o olhar irado dela me assustou.
— Podemos entrar em um consenso de que você me chamou de burra?
— Não foi bem assim.
— Foi assim, sim!
— Eu já pedi desculpas! — exaltei a voz, tanto quanto ela.
Depois fiquei quieto, porque o olhar de Pietra só piorava para cima de
mim. Eu estava fodido.
Ficamos em silêncio por algum tempo. Pietra sentou na cama
novamente, perto o bastante para que eu acreditasse que ela estava bolando
alguma vingança.
— Não estava dando em cima do seu pai, Bernardo.
Sua voz estava cansada, os ombros até caíram um pouquinho.
— Não? — perguntei, curioso.
— Depois do que você falou aquele dia, eu parei para pensar um pouco.
E pode ser que você tenha um pouco de razão.
Arregalei os olhos, totalmente surpreso.
— É sério?
— Você ter falado que eu tenho daddy issues e por isso que eu queria
dar para seu pai? É, Bernardo, você fodeu minha cabeça, muito obrigada!
Agora fique feliz, o plano de ser sua madrasta está temporariamente
suspenso. Até eu voltar para a terapia, ao menos.
Eu não deveria rir, mas eu ri. E recebi uma cotovelada nas costelas
durante o processo. Pietra riu também e chegou até a limpar o cantinho dos
olhos com a ponta dos dedos.
Ela ficava muito bonita rindo daquela forma. Suas maçãs do rosto
ficavam mais altas e os olhos menores.
— Você seria uma péssima madrasta.
Pietra sustentou meu olhar de uma forma intensa. Algo que ela nunca
tinha feito. Parecia estudar cada parte do meu rosto, o que me deixou
acanhado. O que ela estaria pensando?
— Você ficou com ciúmes?
Sua pergunta fez algo se enrolar em minha garganta. Tive vontade de
tossir, mas segurei, porque se demonstrasse só a faria pisotear em cima de
mim.
— De você? — Fiz todo o esforço para parecer surpreso com aquela
pergunta.
— E de quem mais?
— Um pouco do meu pai, eu acho. Não quero vê-lo com nenhuma
mulher. Principalmente você.
Ela novamente se segurou para não me xingar, deu para ver. Mas
acabou balançando a cabeça negativamente, rindo de descrença.
— Você e sua irmã são dois egoístas. Ele faz, literalmente, de tudo para
vocês, que ficam aí surtando por qualquer namorada que ele arranja.
— Você não é namorada dele. — Saiu antes que eu tivesse qualquer
controle.
Pietra revirou os olhos, irritada.
— Nossa, mas você é insuportável, não é? — resmungou. — Estou
falando de qualquer outra, Pitágoras. Enquanto vocês constroem a vida de
vocês, ele fica mais sozinho a cada dia que passa. E, não, não estou falando
com qualquer interesse, até porque você arruinou tudo para meu lado.
E eu estava completamente satisfeito por isso.
Mas sabia que tinha razão com a outra parte. A grande verdade era que
eu não me importava com quem meu pai saía. Na realidade, até queria que
ele arranjasse alguém, porque Pérola sairia de casa logo, eu tinha planos de
mudar de país logo que acabasse a faculdade. Eu só não queria que fosse
Pietra.
— Você tem razão.
Achei que algo tivesse a picado ou mordido, porque Pietra deu um pulo
da cama, ficando de joelhos no colchão em um só movimento. Ela agarrou
meus ombros e começou a me chacoalhar para os lados.
— É o quê? — ela gritou. — Você disse que eu tenho o quê?
Ah, entendi.
— Razão, Pietra.
— É o fim dos tempos! — Ela continuou me balançando. — Parem as
máquinas! Bernardo Adler, falou que eu tenho razão! Hoje é o melhor dia da
minha vida!
— Por que você se importa tanto assim com o que eu falo sobre você?
Foi a primeira vez que eu vi Pietra sem palavras. Ela disfarçou voltando
a empurrar meus ombros, até que eu caí no colchão.
— Gosto de ganhar de você.
Permaneci imóvel assim que ela deitou ao meu lado. Seu braço tocou o
meu e tentei recuar, mas foi o exato momento em que ela virou de lado. Para
o meu lado, para ser mais específico. Entrei em desespero, porque não sabia
como agir, o que fazer, muito menos o que falar com ela.
— Ainda vai precisar da minha ajuda?
Não conseguia nem pensar sobre o que ela falava, porque tudo o que eu
conseguia era olhar para sua boca. Pietra estava com os lábios um pouco
queimados do sol, mais vermelhos do que o normal. Ela prendia de leve o
lábio inferior, deixando aparecer só um pouquinho de seu dente. Engoli a
bola de tênis que se alojou na minha garganta e desviei o olhar.
— Vou. — Não sei qual ajuda, mas eu precisaria.
— O Projeto Deflorando Bernardo ainda está de pé?
Comecei a rir ao entender sobre o que ela falava.
— Está.
Eu estava ignorando Paola desde que Pietra e eu brigamos,
simplesmente porque eu tinha mais coisas com o que me preocupar do que
responder para minha professora.
— Promete que não vai surtar novamente por causa de uma ligação?
Era uma cilada, eu sabia que era. Ela se divertiria e eu passaria nervoso,
assim como passei aquele dia no quarto.
— Prometo.
— Nem me jogar de um barco em movimento?
Mordi a parte interna da bochecha, tentando não rir.
— Nunca mais.
— E aceitar que banana tem o poder de curar ressaca?
— Nunca.
Recebi dela um beliscão, bem no momento em que meu coração
começou a bater de uma forma estupidamente rápida. Era só uma descarga
de adrenalina, nada de sentimentos. Nada. Nadinha.
— Eu não sei o que você sabe sobre mim, mas existem assuntos que
machucam. Tipo, muito... Falar sobre meus pais é um deles. — Pietra
sustentou o queixo com a mão.
— Desculpe, de verdade. Eu nunca mais vou fazer isso.
— Desculpe por falar sobre a sua mãe, também.
Ficamos alguns segundos em silêncio, apenas nos olhando. Até Pietra
respirar fundo e dar um puxão repentino nos pelinhos do meu braço.
— Ai! — reclamei, sem entender o porquê daquilo.
— Não superei que você tentou me matar afogada.
— Você sabe nadar.
— Tenho pavor de tubarão, achei que um fosse comer a minha bunda.
— Selachofobia?
— Fala que nem gente, Arquimedes.
Pietra deu um pulo para longe de mim e o vazio que senti quando ela se
foi me assustou para valer.
Aquilo não era bom, nada bom.
Odiei o quanto eu amei aquele domingo.
No quanto me esforcei para não considerar Helena legal.
Em como foi esquisito perceber que o carinho que Gael tinha comigo
não era nem um pouco romântico ou sexual.
E, principalmente, para não demonstrar para Bernardo o quanto gostava
de estar perto dele.
Sim, Bernardo. O nerd intragável. O gênio irritante. O garoto que,
literalmente, me atirou aos tubarões.
Queria que Pérola estivesse aqui, mas ela estava dando. Um motivo
plausível — ou não.
Fiquei animada por ter feito as pazes com Bernardo. Ele era meu único
companheiro dessas férias depois que minha amiga resolveu jogar o MADM
para os ares. Os machos estavam vindo muito antes das migas para ela.
Na verdade, seria injusto com Bruno se eu falasse que Bernardo era
minha única companhia. Passei bastante tempo conversando com ele na
portaria. Ele era um cara muito legal e amanhã vou com ele para a boate
onde é promoter.
Depois de perceber que posso estar confundindo meus sentimentos por
Gael com base em um distúrbio totalmente vergonhoso, um pouco de
carência e falta de vergonha na cara, decidi que vou aproveitar minhas férias
e pegar geral. Afinal, essa é a minha vida.
Bruno não é um dessa futura lista, porque percebi que embora ele seja
extremamente gato, temos a química daquela temporada de Gossip Girl
quando tentaram fazer o barro acontecer entre a Blair e o Dan. Ótimos
amigos, péssimos amantes. Já deu para sacar que Bruno e eu éramos assim.
Não poderia ser diferente do cara que me deu uma receita muito eficaz para
intestino preso, após em uma de nossas conversas eu reclamar desse
problema para ele.
Como disse, zero química.
Mas estava muito animada para sair com ele. Até demais.
No final da tarde voltamos para o apartamento e depois de um banho,
recebi a mensagem que Pérola estava em Orlando com Tato. Odiei minha
amiga naquele momento, porque ela nem foi capaz de me chamar para o
jogo da NBA que foi ver na cidade.
Gael foi para o restaurante no começo da noite. Bernardo estava
estudando. E eu, sozinha.
Terminei de ler meu livro do alien e fiquei com a boca seca pela cena
final épica deles transando em uma nave espacial. Que delícia, credo!
Depois assisti televisão, aproveitando que tinha um canal mexicano em
que passava Rubi. Sim, a novela mexicana. Lembro que era criança quando
vi pela primeira vez e fiquei encantada. Ser uma piranha inteligente sempre
foi meu caminho.
Lá pelas 8h da noite, eu já estava entediada demais. E eu não era de
reclamar muito da casa dos outros, mas o sofá de Gael era muito ruim para
dormir, como fiz nos últimos quatro dias. Na verdade, três. Teve um em que
fiquei com medo de ele desconfiar por eu estar dormindo tantos dias no sofá
e fui para a lavanderia até ele chegar. Acabei acordando de manhã sem nem
entender como fiz do esfregão meu travesseiro.
Resolvi fazer então o que eu queria fazer há horas: irritar Bernardo.
Fui cantarolando pelo corredor e abri a porta de surpresa. Já tinha
pegado ele fazendo coisas piores. Nada poderia me surpreender.
Bernardo estava na bancada, digitando freneticamente no notebook.
Ergueu a cabeça apenas para me ver entrar em seu quarto e logo voltou a
digitar.
Subi na cama dele, porque se ele tinha tentado me matar, isso fazia de
nós próximos o bastante para que eu subisse em sua cama. Deitei nos
travesseiros e estiquei as pernas, observando-o trabalhar em seu texto.
Os ombros de Bernardo eram bem largos e eu gostava da forma como
seu cabelo caía pela nuca, quase formando alguns cachos. Os óculos estavam
frouxos em seu rosto, fazendo com que ele de dez em dez segundos os
ajeitasse com o dedo indicador.
— Para de olhar — ele resmungou.
— Não estou olhando. — Virei de bruços, disfarçando.
Eu estava de vestido e vi quando seus olhos acompanharam minhas
pernas, parando por algum tempo em minha bunda. Por puro reflexo, puxei a
barra do vestido para não mostrar nada demais.
Considerava fofa a forma como Bernardo olhava para meu corpo quase
como se fosse algo proibido. Ele olhava e dois segundos depois focava em
outra coisa, como se o mundo fosse acabar por ter feito aquilo. Eu
normalmente achava ofensiva a forma como alguns homens olhavam para
mim, mas Bernardo não me ofendia, muito pelo contrário. No final, eu até
que ficava feliz por ele estar ficando mais confortável na presença de uma
garota.
Uma hora ou outra, ele precisaria enfrentar essa timidez dele.
— Vamos ver um filme? — sugeri.
— Pode esperar dez minutos para eu terminar esse parágrafo?
Assenti, animada por finalmente sair do tédio. Rolei na cama de
Bernardo e senti algo cutucar minha costela. Era o celular dele.
Não resisti em espiar suas mensagens com Paola. Fazia dois dias que
ele a ignorava. E quando não era eu que respondia, Bernardo era muito seco.
Um pouco rude, até. A professora deveria estar muito a fim para continuar
insistindo depois daquelas últimas mensagens em que ele só digitou “Sim”,
“Não”, “Ainda não”.
A última mensagem era de Paola perguntando se poderia ligar para ele.
Respondi rapidamente que sim e que estava livre agora.
Espiei por cima da tela e Bernardo continuava focado no notebook.
Tirei da conversa e passei o olho por cima de suas outras conversas. A
última, sem ser a de Paola, era de Pérola, dois dias atrás, pedindo para ele
abrir a porta para Tato. Antes dessa, só a de um outro professor. Como
alguém conseguia viver sem conversar com ninguém ou ter qualquer rede
social?
Bernardo estava revolucionando o gênero low profile, sem ter nenhum
contatinho em sua agenda.
— Está bisbilhotando meu celular?
Levei um susto quando a cama balançou. Ergui os olhos e ele estava
sentado um pouco afastado, mas tendo a visão perfeita de que, sim, eu estava
curiando seu celular.
— Respondi a Paola.
— Ah...
Bernardo não parecia muito feliz com isso, mas ignorei.
— Vem cá, você não tem nenhum contatinho? Tinder? Nada?
Deixei o celular de lado e sentei no colchão, ficando de frente para ele.
Bernardo negou com a cabeça.
— Por quê?
— Eu não consigo.
— Ficar com alguém? — Fiz um careta, sem entender.
— Ficar com alguém que eu não tenha uma conexão.
Uau, este garoto era estranho!
Eu basicamente me conectava a qualquer um que também queria se
conectar comigo.
— Posso perguntar uma coisa? — Até abaixei o tom da voz para não
assustá-lo.
— Pode.
— Você já beijou alguém?
Bernardo abaixou os olhos para suas próprias mãos e vi suas bochechas
ganharem aquele aspecto rosado.
— Mais ou menos — ele confessou.
Mais ou menos nunca era bom. Ou você beija ou você não beija.
— Conte mais sobre isso.
— Você vai contar para alguém?
Sua desconfiança ofendeu um pouco a parceria que tínhamos dentro
daquele recinto.
— Aham, junto do dia que falamos putaria no telefone e dormimos no
mesmo quarto. Vou espalhar para todo mundo — brinquei, reparando na
sombra de um sorriso que se formou no cantinho de seus lábios.
— Não falei putaria com você.
— Não mesmo. — Dei de ombros. — Conte sobre seu mais ou menos.
— Lembra da Rebeca?
— A Santiani?
Ele assentiu. Argh!
Odiava aquela garota da escola. Ela era perfeita. As melhores notas, as
melhores roupas, a porra de uma princesinha privilegiada. Rebeca tinha
horror à minha pessoa, porque eu era seu completo oposto. Ela era o bom
exemplo, eu era um terror. Ela era religiosa, eu tinha uma sex tape sendo
divulgada entre os alunos. Enfim, esse tipo de diferença.
— Fizemos um trabalho juntos uma vez.
— Você a chamou de burra também? — Cruzei os braços, rancorosa.
Bernardo negou com a cabeça, soltando um risinho nasalado. Ele
mandaria a minha pessoa tomar no cu daqui a pouco com essa encheção de
saco.
— Ela disse que o pai dela nunca a deixava se aproximar de qualquer
menino.
Meu peito começou a borbulhar de raiva daquela história.
— E aí?
— E que ela queria aprender a beijar.
Definitivamente era a pior história que já escutei na minha vida. Mosca
morta! Com certeza estava se aproveitando do bom coração de Bernardo.
— E você?
— Entrei em pânico, mas pensei que talvez fosse o momento, sabe? Ela
estava me olhando de uma forma esquisita.
— Imagino, com aqueles olhos de peixe morto dela.
— Pietra...
— Continua logo! — Meu humor estava péssimo com aquela história.
— Eu disse que também queria aprender.
Eu conseguia imaginar Bernardo quase caindo duro ao falar isso para
uma garota. A cena era clara na minha mente.
— Que safado! Adorei — brinquei, dando um beliscão na perna dele.
— Eu nem consegui me preparar e ela veio para cima de mim, quase
enfiou a língua na minha garganta. Eu não sabia o que fazer, onde colocar a
mão, nada. Foi muito ruim mesmo e não deve ter durado três segundos.
Fingi uma ânsia de vômito, recebendo um olhar enviesado dele.
— Depois ela se afastou e disse que foi péssimo. Que devia ter beijado
o Diego, porque ele deveria saber o que estava fazendo.
Minha mão coçou para pegar meu celular e mandar uma mensagem no
Instagram para aquela quenga. Só pelo prazer de tirá-la do sério.
— Quantos anos você tinha?
— Quinze.
Meu Senhor Jesus! A situação era caótica.
Como esse menino ia para um encontro com a professora experiente e
adulta com sua experiência de um beijo mais ou menos, mais parecido com
uma asfixia do que algo gostoso?
— Depois disso nunca beijou mais ninguém?
— Percebi que o que me fazia ter vontade de ficar com alguém era
sentir confiança na pessoa e eu nunca confiei em ninguém para explicar a
situação.
A forma como ele falou, como se aquilo fosse um problema, fez meu
coração ficar apertado. Eu cresci vendo todos meus amigos ignorarem
totalmente a presença de Bernardo. Até quando Pérola os convidava para
casa, ninguém o incluía em nada. Eu nunca o incluí em nada.
— Sabia que tem um nome para isso?
— Eu não sou gay, Pietra. Já fal...
— Não, gênio. Para isso de só querer se relacionar com quem confia e
tal. — Vi seu olhar curioso vir para cima de mim. — Acho que é
demissexual. No começo eu achei que era alguém que sentia atração pela
Demi Lovato, mas não é.
Bernardo gargalhou alto e eu também. Gostava dele por achar graças
das minhas piadas ruins.
— Não tem nada de errado com você. Cada um tem seu tempo. — Sorri
de lado, confortando-o. Algo que eu deveria ter feito muitos e muitos anos
atrás se eu não fosse tão egoísta e só olhasse para meu próprio umbigo. —
Na verdade, eu até queria ser mais parecida com você nesse quesito.
— Voc... Você... Deixa pra lá!
— Pode falar — insisti, falando com firmeza.
— Você tem muita... experiência?
Achei uma graça a forma como ele ainda tinha dúvidas de que eu era
uma piranha.
Neguei com a cabeça, incrédula comigo mesma ao ver um filme mental
com cenas muita gráficas de todas as merdas que já fiz ao longo da vida.
— Esse é o momento que eu repenso que merda eu fiz da minha vida.
— Você é uma alma livre.
— Eu preciso é dar um jeito na minha vida, Bernardo. — Cocei a
sobrancelha e baguncei os fios, adorando a sensação de mover os pelinhos
de um lado para o outro. — Mas posso falar uma coisa?
— Pode.
— Depois de tudo isso, cansa. Eu aproveitei muito, sabe? Vivi tudo
intensamente, não tem nada, sexualmente falando, que eu não tenha
experimentado.
— Acho que não quero escutar isso... — Bernardo me interrompeu,
tapando os ouvidos.
Dei uma cotovelada de leve em suas costelas.
— Nem a parte dos ménages?
— Não!
— As trocas de casais?
— Chega, Pietra!
Bernardo se jogou na cama e tapou o rosto com um travesseiro.
Comecei a rir e deitei ao seu lado, afundando a cabeça naquela nuvem
perfeita.
— Você não está errado em querer uma conexão real. No começo pode
até ser legal, mas depois, falta algo. Deve ser essa conexão com alguém que
você goste e tal — falei sério, tendo a certeza de que estava soando muito
adulta.
Bernardo assentiu, mas ficou parado olhando meu rosto com atenção.
Acho que não deveria ter falado sobre minha experiência com ele. Eu
poderia assustá-lo e ele nunca mais querer falar comigo por ser promíscua e
safada.
Mas talvez eu pudesse dar uma ajuda para ele também.
— Você quer me beijar?
Bernardo engasgou tão feio, que começou até a ficar roxo. Fiquei
desesperada e parti para cima dele, tentando abaná-lo e bater em suas costas,
tudo ao mesmo tempo.
Eu só quis ajudar, caramba!
Ele conseguiu levantar da cama e abriu uma porta do painel onde ficava
a televisão. Só aí percebi que ele tinha um frigobar no quarto. Bernardo
pegou uma garrafa de água e bebeu quase a metade, antes de respirar fundo e
voltar a me olhar.
— Você está louca?
Nossa, precisava ofender?
— Eu poderia te ajudar a melhorar sua performance antes da conexão
real chegar e rolar o vapo.
— Pietra, eu não entendo o que você fala.
— Só estava tentando ajudar, esquece!
Fiquei nervosa, porque aquela reação de Bernardo tinha gosto de
rejeição.
Não que eu ligasse ou me doesse por aquilo. Mas, poxa, foi com boa
intenção!
Minha bochecha começou a esquentar. Não sabia o que falar para
Bernardo, só falei a primeira coisa que passou na minha cabeça naquele
momento.
— Melhor a gente ir dormir, não é?
Esfreguei meu couro cabeludo, porque coçar não ajudaria no desespero.
— São nove da noite.
Joguei meu corpo para o colchão novamente, sem fazer ideia de como
aliviar a tensão daquela situação. Eu só dei a ideia de um beijo, não era
grande coisa.
Precisei de dois segundos para lembrar que talvez fosse. Por dois
pequenos motivos:
1 – Não fazia nem uma semana que eu queria ficar com o pai dele.
2 – Para Bernardo não era, nem nunca seria, só um beijo.
Fiquei obcecada em olhar meu celular para ver se ele apareceria on-
line, mas três minutos depois, nada aconteceu. Joguei o celular no chão com
minha bolsa e esfreguei meu rosto, bem forte, para ver se eu acordava para a
vida e parava de só fazer merda. Era uma sucessão de merda em cima de
merda. Uma torre de merda. O Burj Khalifa de merda desmoronando em
cima de mim.
A tela do celular acendeu e eu só olhei por cima, porque deveria ser
algo do Instagram. Mas, não era. Era Bernardo.
Peguei o celular tão rápido que ele caiu com a tela no chão.
Praguejei e o peguei de volta.
Simples e sucinto.
Pensando bem, eu não tinha estragado mesmo. Ele me beijou primeiro.
Eu só entrei na onda e tirei uma casquinha.
Continuei a olhar para a tela, vendo o aviso que ele estava digitando
aparecer dez vezes e sumir. Já estava desistindo de esperar uma resposta
quando vi sua mensagem pequena surgir.
Sentia o sangue pulsando em minha cabeça. Isso não era bom sinal,
era? Será que pessoas com vinte e um anos poderiam ter um derrame? Um
AVC? AVC e derrame era a mesma coisa? Só Bernardo poderia me
responder, droga!
Sorri que nem uma boba ao ler aquilo. Era sério que ele estava com
vergonha de ter sido ruim? E eu aqui surtando porque pensei ser ele quem
estivesse surtando por eu ter estragado um momento importante para ele.
Bernardo estava digitando rápido até ali, mas parou de responder logo
depois que mandei essa última mensagem. Esperava que ele tivesse
entendido o recado, mas só percebi que devo tê-lo assustado mais ainda,
porque nem on-line ele estava mais.
Bufei e encostei a cabeça na madeira, pensando que eu precisava sair
dali o quanto antes. Antes de Gael chegar ou passar pelo corredor ou então
de Pérola ver que eu estava implorando para entrar no quarto do irmão dela.
Bloqueei a tela do celular e tomei impulso para subir e seguir na direção do
quarto da minha amiga.
A porta do quarto se abriu e eu perdi meu apoio. O equilíbrio já não
estava muito bom pelas bebidas que tomei lá na boate e como miséria pouca
é bobagem e eu já não tinha me humilhado o suficiente nesta noite, eu caí
para trás, bem aos pés de Bernardo.
— Pietra! — Escutei sua voz alarmada, logo senti as mãos que uma
hora atrás estavam segurando minha cintura, agora segurando meus braços.
Bernardo me ajudou a ficar de pé e, quando olhei para ele, quem ficou
nervosa fui eu. Ele tinha passado essa doença para mim. Ótimo!
— Obrigada — murmurei de forma quase inaudível.
Bernardo coçou o braço, os olhos grudados em qualquer parte daquele
quarto que não fosse na minha pessoa. O silêncio que se formou entre nós
foi extremamente constrangedor, algo que eu nunca tinha presenciado. Eu
não calava a boca, era inédito alguém me deixar sem palavras.
— A lua safada é uma boa coisa, não é?
Ergui os olhos para ele, precisando morder a parte interna da bochecha
para não sorrir diante de sua pergunta. Bernardo já estava trocado e usava
uma calça de moletom cinza com uma camiseta folgada preta. Minha mente
perturbada começou a pensar no quanto nós gostávamos de calças de
moletom cinza. Era covardia.
Deus está de prova que eu vim até aqui pedir desculpas e aí o garoto
aparece com calça de moletom cinza.
— É uma coisa muito boa.
Ficamos nos olhando por dois segundos, até eu desistir de fazer a
política de boa vizinhança. Aproveitei que ainda estava de salto, o que
garantia uns bons centímetros a mais e me lancei contra Bernardo, puxando
sua nuca para mim.
Eu beijei Bernardo Adler novamente. E não me enganaria, falando que
não foi gostoso.
Bernardo empurrou a porta com a mão, ela bateu forte e eu descolei
meus lábios dos dele só para dar duas voltas de chave. Era a primeira vez
que ficávamos trancados naquele quarto. Seus olhos dobraram de tamanho,
mas ele tentou disfarçar bem.
Segurei o começo de sua nuca com as duas mãos e voltei para onde nós
estávamos. Não deveria estar tão confortável assim em beijar uma pessoa
que uns dias atrás era totalmente indiferente para mim. O nosso beijo
encaixava, a forma como ele tinha receio de tocar qualquer parte do meu
corpo fazia com que eu me sentisse especial, valorizada até.
Dei um selinho nele e o peguei pela mão, arrastando-o pelo quarto até a
cama. A mão de Bernardo estava gelada, com leves tremores. Sentei-o na
beira do colchão e fiquei de pé, olhando seu rosto ruborizado e aqueles olhos
brilhantes.
— Devemos conversar? — Apoiei minha mão em seus cabelos,
jogando-os para trás.
Eu acho que tinha uma nova obsessão.
Bernardo negou.
— Devemos continuar?
Bernardo assentiu.
— Bom garoto!
Não perdi tempo para montar em Bernardo, meu vestido subiu, mas não
fiz questão de esconder nada. A calça dele era maleável, minha calcinha era
apenas um pedaço de renda. Eu o senti duro embaixo de mim.
Eu fui atrás de cobre e achei ouro. Inshallah!
Movimentei meu quadril, porque não era trouxa. E estremeci ao
perceber que o negócio ali era promissor. Promissor até demais.
Bernardo tocou em minha bunda, graças a Deus! Mordi seu lábio
inferior e ele correspondeu, mordendo o meu também. Ele aprendia
rapidinho, deveria ser uma das facilidades em ter um QI de gênio..
— Pietra? — ele chamou enquanto eu me entretinha espalhando beijos
em seu maxilar e pescoço, o que percebi que o animou ainda mais.
— Oi?
— Isso não parece real.
Bernardo começou a rir baixinho e eu também ri. Ele tinha razão,
realmente não parecia real. Se alguém me falasse que nessas férias de verão
eu acabaria montada no colo de Bernardo Adler, eu diria para a pessoa ir se
tratar.
— Isso é real para você?
Beijei sua boca e voltei a olhá-lo, esperando minha resposta.
— É.
— E isso? — sussurrei ao seu ouvido, aproveitando para raspar com os
dentes no lóbulo.
— Também é. — Sua voz quebrou.
— Acho que você vai gostar disso, então. — Pisquei o olho direito e
peguei sua mão, guiando-a diretamente para meu peito. Bernardo paralisou,
o que achei bem fofo. — Já temos intimidade para isso ou você ainda não
confia tanto assim em mim? — provoquei.
A resposta que recebi fez aquela merda de arrepio na minha coluna
voltar. Bernardo segurou meu cabelo e me beijou de uma forma mais
urgente. Ele não só confiava, como queria aquilo. Dava para ver em cada
toque, na forma como me olhava. Eu só não queria passar dos limites com
ele.
Tudo era uma novidade, mas não queria que se arrependesse depois.
Seu beijo era algo surreal. Pelo menos para quem aprendeu a beijar uma
hora atrás. Eu vivia esperando por um cara que beijasse daquela forma, sem
pressa, realmente curtindo o momento e não querendo desesperadamente
arrancar minha roupa e partir para a próxima fase.
Seu polegar acariciou meu seio, contornando o bico. Esperei o
momento em que ele percebesse e segurei o riso quando percebeu e
paralisou o dedo em cima do piercing.
Já planejava meu próximo passo, mas o barulho irritante do celular de
Bernardo atrapalhou tudo.
Eu estava mais perto do telefone e estiquei o braço para pegar. Espiei a
tela e vi o nome de Paola ali. Senti como se jogassem um balde de água fria
no fogo que corria dentro de mim. Virei a tela para ele, que pareceu em
choque, envergonhado e sem saber o que fazer.
— Pode atender. — Fiz minha voz mais compreensiva de todas, mesmo
que eu estivesse sentada bem em cima de seu pau, esfregando aquela renda
por toda sua extensão.
Bernardo piscou duas vezes e eu só quis levantar dali e fingir que nada
aconteceu quando ele pegou o celular da minha mão. Ele realmente atenderia
a professora que ele muito provavelmente teria um relacionamento assim
que essas férias acab...
Bernardo jogou o celular longe. E quando digo longe, foi muito longe
mesmo. Ele não tinha capinha e nosso coração conhece o barulho quando
um celular parte para o reino dos eletrônicos.
Olhei abismada para ele, minha boca ficou meio aberta, porque não
esperei por aquilo. Nunca.
— Onde estávamos?
Apertei os ombros dele, tentando tirar aquela cara de bobó que eu sabia
que estava grudada no meu rosto.
Eu ia beijá-lo, mas decidi que depois daquilo, ele merecia algo melhor.
Afastei meu tronco dele, o suficiente para enganchar os dedos
indicadores na alça do vestido e tirá-lo dos meus ombros. O tecido caiu por
minha cintura e vi Bernardo prender tanto aquele maxilar, que
provavelmente precisaria de uma placa de bruxismo amanhã.
— Acho que estávamos por aqui, mais ou menos.
Ele ficou paralisado e precisei ter a iniciativa de beijá-lo e esfregar
meus peitos em seu peitoral, muito sutilmente, porque sou uma mocinha, já
dizia vovó.
Meu Deus, minha avó me mataria se soubesse o que estou fazendo com
seu aluno preferido nesse quarto.
— Eu... Eu gostei dos piercings.
— Gostou, é?
Beijei sua bochecha, sentindo um leve arranhar pela barba que
começava a apontar na pele.
— Combina com você.
— Você não precisa só olhar.
Desci os olhos para sua boca e senti um pulsar delicioso de algo bem
embaixo da minha calcinha. E que não veio de mim.
Bernardo me tocou com uma delicadeza e calma que não era comum
para alguém que supostamente nunca viu peitos ao vivo. Ou será que ele
esteve zoando com a minha cara todo esse tempo?
Ele apertou meu seio esquerdo de leve, testando os limites. Seus olhos,
que pareciam ainda mais pretos, subiram para meu rosto. Eu sorri, adorando
a forma como ele me olhava. Ele dessa vez apertou mais firme, encaixando
toda sua mão no volume. Eu não tinha um peito muito grande, era até um
pouco encucada com meus peitos, porque gostaria muito de colocar silicone
algum dia para deixá-los mais altos, mas nem me lembrei da minha
insegurança ao ver a forma que Bernardo fazia com que eu me sentisse uma
deusa.
— Ei? — chamei sua atenção e fiquei com peso da consciência por ver
seu rosto apavorado. — Eu estou gostando, viu?
Quis deixá-lo mais à vontade, porque eu sabia que não era nada legal
aquela tensão por ficar sem saber se está fazendo algo certo ou não.
Minha primeira vez foi uma bosta e o que veio depois foi lamentável.
Gostaria de ter feito tudo diferente, mas não era possível. Se eu pudesse
tornar aquelas primeiras experiências mais gostosas e tranquilas para
Bernardo, eu faria.
Deu para ver o alívio transpassar em seu rosto. Ele abaixou a cabeça
para beijar o meu pescoço, beijou também bem em cima do meu coração e
eu torci para que ele não conseguisse sentir o quanto estava acelerado,
porque seria uma vergonha para minha fama. Senti sua língua deixar um
rastro quente pelo vão entre meus seios. Os arrepios voltaram e inclinei a
cabeça para trás, deixando o caminho livre para ele fazer o que quisesse
comigo.
A respiração acelerada de Bernardo arrepiou o bico do meu peito, mas
ele seguiu em frente e circulou o mamilo com a pontinha da língua. Prendi a
respiração, sentindo todo meu interior vibrar e pulsar. Era uma sensação
sinistra.
Seus movimentos eram lentos, como se tivesse estudado tudo o que
precisava ser feito. Conhecendo aquela praga como eu conhecia, ele deveria
ter estudado mesmo.
Gemi ao sentir seus dentes rasparem de leve e estava prontíssima para
me jogar em cima de Bernardo e implorar para que ele me comesse.
Só não fiz, porque a maçaneta do quarto começou a fazer barulho e
Bernardo paralisou com a boca no meu peito.
— Bernardo?
Era Gael! Puta que pariu!
Levei um susto tão grande que caí das pernas de Bernardo, direto para o
chão.
Puta que pariu! Puta que pariu?
— Por que trancou a porta?
Nós nos olhamos, desesperados.
Gael não poderia me ver ali, nunca. A situação já era complicada
demais entre mim e Bernardo, colocar Gael naquela equação só me deixaria
louca.
E provavelmente me faria perder a amizade com Pérola.
— Eu vou me esconder. Tenta agir normalmente — sussurrei, batendo
em suas pernas para que ele levantasse logo.
— E se ele perceber? — ele sussurrou de volta.
— Não vai. — Olhei para os lados, pensando qual seria o melhor lugar
para me esconder. Percebi que a cama de Bernardo tinha espaço embaixo por
trás daquele tecido que tapava tudo. — Disfarça, seu pau está marcando.
Não deveria ter falado aquilo, porque ele ficou tão vermelho, que não
tinha como explicar para Gael o motivo. Não fiquei para ver a reação dele,
porque logo me enfiei embaixo da cama, parando de respirar ao escutar a
porta sendo destrancada.
— Está tudo bem? — Escutei Gael perguntar.
— Tu... Tudo.
— Aonde as meninas foram?
Que Bernardo conseguisse sair dessa sem desmaiar ou contar a verdade,
por favor! Por favor! Por favor!
— Foram para uma festa.
Gael ficou em silêncio e fiquei curiosa para saber o que estava fazendo.
Com certeza, julgando a cara desesperada de Bernardo.
— Por que o celular e a bolsa da Pietra estão jogados na sua porta?
Droga! Droga! Mil vezes droga!
Minha amiga nunca mais vai falar comigo, porque agora além de ter
tentado ficar com o pai dela, eu deixei o irmão dela lamber minha teta!
— Elas... Elas saíram correndo, deve ter esquecido.
— Tem certeza?
Ele já sabia, eu tinha certeza. Fodeu, amigos! Fodeu!
— Nem falei com elas hoje, estou com problemas no meu... É, hum...
Artigo.
Gael permaneceu em silêncio por algum tempo. Eu me escolhi debaixo
da cama, só para o caso de ele estar olhando para essa direção. Eu tenho
certeza de que não daria para ver, porque sabia que aquela cortina em volta
da cama encobria.
— Tudo bem. Já jantou?
— Já, sim. Obrigado.
— Boa noite, filho.
— Boa noite! — A voz acelerada de Bernardo era péssima. Se eu fosse
mãe, na hora já teria sacado que meu filho estava fazendo merda. — Vou
trancar a porta porque não quero a Pérola entrando bêbada no meu quarto.
Ela sempre faz isso quando volta de uma festa.
Gael riu e escutei seus passos pelo chão de madeira. Bernardo fechou a
porta e passou a chave novamente. Demorei algum tempo ainda para sair
debaixo da cama, porque eu tinha certeza de que Gael ainda estava pelo
corredor. Eu estaria, pelo menos.
“Porra”, falei sem emitir qualquer som para Bernardo.
Ele estava pálido, os cabelos bagunçados, a boca em um tom estranho
de roxo.
— Eu estou passando mal.
Corri até ele e o peguei pela cintura, levando-o de volta para a cama.
Sentei Bernardo da mesma forma que ele estava antes e curvei meu corpo
até ficar na altura de seu rosto.
— O que acha de voltar para nossa sessão de Jurassic World? — falei
de forma extremamente sensual e vi o aspecto de morte eminente sair do
rosto dele.
— Isso é algum código para...
— Putaria? — chutei, porque acho que ele era muito educado para falar.
— Sim.
— Não, a putaria acabou. — Pisquei e vi seu semblante mudar. — Por
hoje.
Bernardo riu baixinho e eu inclinei meu rosto e dei um selinho
demorado nele. Ele segurou meu queixo e eu adorei cada milésimo de
segundo daquele beijo bobo, sabendo muito bem que não deveria adorar
tanto assim.
— Gosto disso — Bernardo sussurrou ao meu ouvido assim que afastei
meu rosto.
— Também gosto muito disso, Bill Gates.
E quem diria que eu gostaria tanto daquele geniozinho debochado,
irônico e que sabia fazer cada parte do meu corpo se arrepiar. Maldito seja!
Eu beijei Pietra.
E eu não só beijei Pietra.
Pietra e eu nos agarramos em um nível que eu nunca tinha sequer
imaginado que poderia acontecer.
Eu vi seu corpo. Eu a toquei. Eu vi até seus piercings.
E dormimos juntos, depois de ver um filme em que adormecemos perto
do final. Ela dormiu em meu braço, com o seu repousando em cima de
minha barriga.
E quando abri meus olhos pela manhã, Pietra não estava mais lá. Fiquei
com o coração acelerado ao pensar que fiz alguma coisa de errado ou a
magoei. Ontem, na casa noturna, eu agi de uma forma que nunca agi em toda
minha vida, não sei de onde veio a coragem de beijar Pietra. Eu estaria
mentindo se dissesse que nunca passou por minha cabeça, porque sim, já
passou pelo menos quinhentas vezes. Eu só acreditava que Pietra nunca
retribuiria.
A parte de ela me procurar então, estava fora de cogitação.
Foi por isso que fiquei desesperado por não encontrá-la no quarto.
Escovei os dentes com pressa e saí do quarto sem nem pentear o cabelo.
Escutei o barulho de panelas na cozinha e acreditei que fosse Pietra, porque
ela amava acordar cedo para preparar café da manhã.
Só não esperava vê-la dar uma sonora gargalhada ao ver meu pai jogar
uma panqueca para o alto e capturar novamente com a frigideira. Meu
coração ficou apertado. Olhei para ela, seu cabelo preso em um rabo de
cavalo. Eu ainda tinha a sensação deles na ponta dos meus dedos, dormi
enrolando uma mecha, acreditando que aquilo era um sonho.
E era. A realidade era essa bem na minha frente.
Alguém como Pietra nunca escolheria alguém como eu. Caras como
meu pai eram e sempre seriam os escolhidos, enquanto caras como eu
assistiam e aplaudiam ao lado.
— Bom dia, dorminhoco! — Meu pai voltou a colocar a frigideira no
fogo.
Pietra ergueu os olhos e percebeu minha presença. Ela virou para pegar
algo na geladeira e acabou tropeçando no tapete. Foi meu pai quem a
segurou, pegando os dois braços dela com firmeza.
Meu coração acelerou ao vê-los daquela forma e sem dizer mais nada,
eu sentei à bancada, em frente aos pratos já postos e esperei a minha vez de
ganhar comida.
Eu era um grande idiota!
— Quais os planos para hoje?
Meu pai continuava sendo o único que falava no ambiente.
Pietra terminou de arrumar as panquecas em um prato e colocou na
minha frente, sem conseguir me olhar por um milésimo de segundo. Depois,
veio sentar ao meu lado.
Fazia menos de oito horas que ela estava no meu colo, beijando minha
boca, fazendo com que eu acreditasse na minha própria ilusão. O que tinha
mudado nesse curto espaço de tempo?
— Vou para a NASA — disse a primeira coisa que passou na minha
cabeça.
— Pietra e Pérola vão com você?
Pietra parou de colocar o xarope de bordo nas panquecas e me olhou.
— Eu... não sei. — Dei de ombros.
— Tem planos para hoje, Pietra?
Ela negou.
— Deveria acompanhar o Bê, o lugar é incrível. Ele amava visitar
quando era menor.
Era real. Eu ficava louco quando ia àquela base aeroespacial. Sempre
que visitava a Flórida fazia questão de ir e passar um tempo por lá. Eu não
precisava ir hoje, na verdade. Só dei qualquer desculpa para mostrar,
principalmente para Pietra, que não estava tão abalado quanto eu
verdadeiramente estava.
— Tá bom! — Pietra concordou, para minha total surpresa.
Meu pai continuou olhando para ela por alguns segundos e eu odiei ver
aquilo. Ele logo voltou a comer e Pietra seguiu em silêncio, comendo suas
panquecas. Eu não estava com fome, sentia meu estômago embrulhado, mas
obriguei meu corpo a aceitar três pedaços de panqueca.
— Vou me arrumar para ir ao restaurante, quero estar lá para receber o
fornecedor dos legumes. Ele não está mantendo a qualidade e preciso
conversar sobre isso.
— Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades — Pietra
brincou com ele, que só franziu a testa sem entender.
Eu precisei me obrigar a não rir.
— Tenham um ótimo dia, crianças!
Olhei para Pietra só para ter a certeza de que ela entendeu bem a parte
do crianças.
Ela estava com um sorriso no rosto agora, vendo meu pai se afastar pelo
corredor. Assim que ele sumiu, virou a cabeça para minha direção, ainda
sustentando o sorriso
— NASA, então?
Piscou o olho direito, parecendo a Pietra de sempre a meu ver. Aquela
tensão parecia ter se dissipado e eu não entendi.
— Eu vou. Você não precisa ir.
Seu sorriso perdeu a força.
— Eu não posso ir?
— Você pode, mas não precisa.
— Mas eu quero. — Sua voz era firme. — Qual seu problema,
Bernardo?
Pietra estava brava e eu nem sabia o motivo. Era óbvio que ela não
queria me acompanhar em algo longe para caramba depois de tudo o que
aconteceu ontem.
Responderia, mas Pérola apareceu na sala e a pessoa ao seu lado me fez
abrir a boca, totalmente em choque. Pietra também imitou minha reação, os
olhos arregalados no meio do rosto.
— Vocês não viram nada! — Minha irmã sussurrou ao mesmo tempo
em que empurrava Bruno, o nosso porteiro, pela sala.
— Bom dia, Pietra! Bom dia, Bernardo! — Bruno acenou para nós
dois.
Só Pietra conseguiu sair do choque para acenar para ele, mas também
não foi grande coisa, porque ela estava chocada.
Pérola apertou o botão do elevador, que abriu de imediato. Ela colocou
uma das mãos na porta, segurando para Bruno entrar. Ele veio até nós, pegou
uma panqueca do prato de Pietra e saiu correndo com ela na boca.
— Nós nos vemos mais tarde?
— Não. Nunca mais. Sai daqui! — Pérola respondeu, ríspida.
— Tudo bem, eu não desisto fácil.
— Some daqui!
Bruno entrou no elevador e ainda acenou para nós dois, antes de ir
embora com o sorriso mais glorioso que já vi alguém ter às 8h da manhã.
Minha irmã virou para nos olhar e suspirou.
— Não falamos do Bruno, não, não, não — Pérola cantarolou a música
da Disney.
— Não falaremos — Pietra sussurrou, prendendo a risada.
— Foi um erro e não irá se repetir.
— Ok, amiga.
— Preciso de dois Rivotril e mais doze horas de sono. Adeus!
Tão dramaticamente quanto entrou na sala, ela saiu. Fiquei paralisado,
sem entender nada do que tinha acontecido ali. Que noite foi aquela?
— Por favor, me leva com você!
Pietra segurou minha mão, levei um susto ao sentir seu toque repentino.
Ela estava desesperada.
— Saímos em vinte minutos.
Meu plano de dormir a tarde foi por água abaixo no momento em que
pisei no apartamento. Algo estranho tinha acontecido ali.
Gael estava jogado no sofá, com muitos pratos em cima dos móveis.
Helena também estava ali, saindo do corredor bem quando a porta do
elevador se abriu.
Busquei o olhar de Bernardo para ver se ele também achou algo
esquisito.
— Está tudo bem aqui? — ele perguntou.
Ótimo! Eu não estou louca.
Gael virou o rosto, os olhos se tornando mais esperançosos ao perceber
nossa presença.
— Sua irmã...
Meu coração parou.
— O que aconteceu? — Passei na frente de Bernardo, tropeçando em
uma almofada jogada no chão.
— Ela está em uma crise desde ontem. Já chorou, já quebrou o quarto
todo, nós não sabemos mais o que fazer com ela.
Como assim? Pérola não chorava quase nunca. E quebrar o quarto? Isso
não parecia com algo que a minha amiga faria.
— Ela não fala o que aconteceu?
Helena negou, porque Gael não conseguia falar direito. Dava para ver a
sua preocupação de quilômetros de distância.
— Vou falar com ela.
Aquilo era estranho, porque não parecia Pérola, a minha amiga, de
quem eles falavam. Minha amiga só sabia sorrir, ser alegre, correr atrás de
cada cara gato desse planeta. Bati à porta e nem esperei ela falar algo, abri e
dei de encontro com um supermercado após um apocalipse zumbi. Tudo
estava revirado, de pernas para o ar ou quebrado. A cama estava sem lençol,
algo que nem em sonhos minha amiga deixaria acontecer se ela não estivesse
realmente mal, porque se tinha algo que ela dava valor, era por uma cama
bem-arrumada.
Foi difícil achar Pérola embaixo dos escombros, mas eu consegui, no
banheiro. Dentro da banheira seca, enrolada em um edredom.
— Amiga? — Seus olhos estavam fechados e precisei ir com cuidado,
focando por tempo demais no abdômen dela para ter certeza de que estava
respirando.
— Ah, você voltou...
Engoli em seco o gosto ruim que subiu por pela garganta. Enquanto
minha amiga estava nesse estado precisando de mim, eu a estava enganando,
ficando com seu irmão.
— Desculpa não estar aqui com você. — Segurei sua mão gelada e tive
como resposta um balançar de ombros. — Posso entrar aí contigo?
Ela assentiu.
Chutei os tênis e passei uma perna de cada vez pela banheira. Sentei e
estiquei as pernas nas laterais de Pérola, analisando o estado de minha
amiga. Seu cabelo estava cheio de nós e em seu braço direito tinha uma
pulseirinha de hospital.
— Quer contar o que aconteceu?
Segurei seu dedo indicador, a única coisa que estava mais próxima de
mim.
Pérola desvencilhou a mão e passou a procurar algo embaixo de sua
bunda. Uma lágrima rolou por seu rosto pálido. Sua boca estava ressecada,
indicando desidratação. Pensei em sair dali para pegar água e forçá-la a
beber, mas parei, olhando assustada para minha amiga que esticou um
termômetro branco para mim.
— O que é isso?
Peguei mesmo receosa, afinal ela havia acabado de tirar aquilo de um
lugar suspeito.
As lágrimas de Pérola se intensificaram e eu peguei aquele negócio de
uma vez. Vendo no pequeno mostrador duas linhas cor-de-rosa.
Não era um termômetro.
Infelizmente não era um termômetro.
— Pérola... — o nome saiu em um sussurro.
Não podia ser real.
— Eu me odeio!
Sua voz era tão dolorida, que tudo o que eu consegui fazer foi inclinar
meu corpo sobre ela, apertando-a contra mim. A abracei enquanto seu choro
se tornava mais intenso e ruidoso. Prometi que tudo ficaria bem, que
daríamos um jeito, que eu estava ali com ela.
Bernardo entrou no banheiro e sua cara de desespero ao nos ver ali foi
de cortar o coração. Ele sentou no chão, ao lado da banheira e também
abraçou Pérola. Vê-lo ter aquela reação, sem nem saber o motivo, fez com
que eu gostasse mais dele.
Pérola escondeu o rosto no pescoço do irmão, que me olhou, perdido,
buscando alguma explicação.
Levantei o teste de gravidez para ele, que arregalou os olhos, levando
um segundo para entender o que estava acontecendo com sua irmã.
Ficamos os três ali, abraçados, sem saber o que falar. Aquele teste
pesando duas toneladas em cima de minha perna.
— É do Tato? — perguntei, arrasada.
Pérola soltou Bernardo e voltou a se encostar ao mármore branco,
assentindo uma única vez.
— Ele sabe? — Foi a vez de Bernardo falar.
Ela também assentiu.
Merda! Que merda!
— No dia do luau eu apaguei na casa do Bruno. Ele me levou para o
hospital, porque eu demorei a acordar. Descobriram lá.
Pérola não tinha mandado uma mensagem para mim nesses dois dias, o
que indicava que ela realmente estava mal. E eu não estive ali. Minha amiga
esteve ao meu lado em todas as vezes que precisei e quando ela precisou, eu
estava mais preocupada em dar para o irmão dela do que com qualquer outra
coisa.
— O que Tato disse? — Bernardo apoiou o queixo na pontinha da
banheira.
— Eu entrei em choque, fiquei ontem boa parte do dia na casa do
Bruno, sem falar uma palavra. Depois ele me levou na casa do Tato e... —
Pérola parou de falar para rir, um riso cheio de descrença, o riso mais triste
que já vi alguém dar. — Ele disse que era impossível ser dele, porque ele se
prevenia. Mas ele não se prevenia. Sempre tirava no final.
Pisquei depois de muito tempo sem conseguir mover qualquer parte do
corpo, eu não sabia nem se ainda estava respirando.
— E que ele sabia que eu era uma vagabunda, muito gostosa para uma
adolescente, mas que não conseguiria dar esse golpe nele.
Pérola estremeceu e eu tornei a abraçá-la. Filho da puta! Desgraçado!
Eu quebraria a cara daquele otário. Falar aquilo foi errado de tantas formas,
que eu não sabia o que era pior.
— Eu sinto muito, amiga.
— Bruno o apagou com um soco.
Eu nunca erro em escolher meus amigos. Nunca. Minha vontade era
descer até a portaria e dizer que eu seria uma eterna serva para aquele
homem que defendeu minha amiga.
— O que você quer fazer, Pérola? — Bernardo acariciou o cabelo dela,
uma preocupação verdadeira.
Minha amiga deu de ombros.
— Eu não sei...
— Você tem todo direito sobre seu próprio corpo, sabe disso, não é? —
Bernardo segurou o queixo dela, obrigando-a a olhar seus olhos.
Minha bochecha se moveu involuntariamente ao escutar o que
Bernardo falava. Um cara com vinte anos de idade conseguiu ter mais
respeito por uma mulher do que um babaca com mais do que o dobro de sua
idade.
— Só não quero fazer nada que eu me arrependa depois.
— Não precisa pensar sobre nada agora — eu me apressei em falar,
porque queria deixá-la confortável.
Deitei do ladinho dela, abraçando sua cintura. Eu deveria dar parabéns?
Porque se fosse comigo, eu surtaria. Achei melhor não falar nada para
Pérola, mas disfarçadamente, eu fiz um toquinho em sua barriga, porque se
ela decidisse me fazer ser tia, eu queria mostrar que estaria ali para todos os
momentos. Com ela e com o baby. Para sempre.
Continuamos ali com Pérola por bastante tempo e foi Bernardo quem
deu a ideia de arrumar o quarto, para ela ficar mais confortável. Avisei que
faria um lanche para nós e o deixei recolhendo os cacos de um abajur,
enquanto Pérola tirava um cochilo na banheira.
Ao chegar à cozinha, Gael cortava pepinos de uma forma habilidosa.
Não sei se ele daria uma festa e serviria só pepinos ou estava se distraindo.
Ao ver que entrei na cozinha, ele soltou a faca e enxugou as mãos.
— Ela está bem? — Seus olhos eram pura preocupação.
— Está dormindo.
— O que aconteceu?
Ah, mas eu não falaria aquilo nem que me obrigassem. Pode colocar na
lista interminável de mentiras que já contei para os Adler. Uma a mais, uma
a menos, não faria diferença.
— Um cara deu um fora nela.
Era isso que ele precisava saber, até que Pérola resolvesse contar. Gael
abriu a boca para perguntar algo, mas acabou franzindo a testa e ficando
calado.
Fui tomar água e comecei a preparar um sanduíche para minha amiga.
— Como foi em Cape May?
Merda! Merda! Merda!
— Você me odeia? — Fiz um bico.
Odiava decepcionar Gael. E juro que não tinha mais nada a ver com
aquele suposto crush que eu tinha por ele.
— Eu só conseguiria te odiar por um motivo, Pietra.
Ele enfiou três rodelas de pepino em meu sanduíche.
Ergui os olhos, temendo o que eu poderia fazer de tão errado para que
ele me odiasse.
— E qual seria o motivo?
— Se quebrar o coração do Bernardo.
Comecei a tossir ruidosamente.
Engasguei feio e tive que erguer os braços desesperadamente, temendo
morrer sufocada. Gael deu dois tapinhas em minhas costas, que não serviram
de nada. Só fui melhorar depois de tomar água. E ainda assim, meus olhos
lacrimejavam loucamente.
— Eu não tenho nada com ele. Só... Só fomos atrás da mãe dele e...
— Pietra, respira primeiro. — Seu olhar de censura era terrível. Gael
voltou a pegar a faca e destroçar um pepino inocente. Aquilo era uma
ameaça? — Eu só quero que entenda que não se pode brincar com a vida das
pessoas, certo? Bernardo gosta de você e ele não é bom com joguinhos. Não
é como os outros garotos que você já conheceu.
Eu sei que ele estava fazendo o papel de pai bondoso, mas porra! Era a
segunda pessoa que me falava que eu não prestava para Bernardo em menos
de duas horas. Fora Pérola, que já tinha deixado bem claro que eu era uma
bomba-atômica ao lado de um cristal.
— Ele não gosta de mim.
Tentei virar o jogo, porque tudo seria mais fácil se ninguém
desconfiasse. Para mim seria ao menos, porque ficar escutando que eu não
era adequada, que era má, que não me importava, era terrível.
— Não gosta? — Arqueou a sobrancelha cheia e castanha. — E por que
passaria todos os momentos em que está comigo tentando provar que você é
uma criança? Ou dizendo que nunca me perdoaria se eu olhasse torto para
você?
Gael deu risada, mas eu só consegui ficar paralisada.
Bernardo tinha feito realmente isso? Deveria ficar puta com ele, mas só
consegui sorrir e esfregar a ponta do dedo entre minhas sobrancelhas.
— Podemos não entrar nesse assunto, pelo amor de Jesus?
Ele assentiu, parecendo achar graça da minha cara. Olhei Gael com
mais atenção, pensando o que tinha mudado nele. Ele continuava muito
bonito, até demais. Mas, só naquele dia, olhando seriamente para Gael que
eu percebi que ele era realmente um adulto. Suas marcas de expressão do
lado dos olhos sempre estiveram ali, os cabelos grisalhos começaram a
aparecer em sua testa, mas que acabavam por se mesclar com os fios claros.
Ele era bonito, mas não parecia mais o Gael por quem eu tive um crush
fodido nesses últimos tempos.
Foi ali que percebi que eu estava curada.
Ele era apenas o pai da minha melhor amiga. O pai de Bernardo, o
meu... amigo?
Ele era o homem que eu admirava, que cuidou de mim como um
verdadeiro pai, mesmo que não tivesse qualquer obrigação.
— Podemos.
— Obrigada! — Sorri agradecida e levemente emocionada.
Empurrei-o com meu quadril e ele devolveu a provocação jogando um
pepino em mim.
Helena apareceu na sala pelo elevador, rodeada de balões coloridos.
Eram muitos. Dezenas. Cor-de-rosa, em formato de coração, com confetes
dentro, tinha até um daquele emoji de cocô.
— Será que Pérola gosta de balões? Isso a deixaria feliz?
Sorri pelo desespero da Miss Leblon e gostei muito de ver o olhar que
Gael deu para ela, agradecido, aliviado por ter alguém para dividir aquele
fardo com ele.
No fim das contas, eles até eram bem bonitinhos juntos para dois
velhos.
Eu era uma fugitiva. Como a Taylor Swift em Getaway Car.
Conseguia escutar as sirenes ao longe, mas na verdade, era só meu
coração batendo rápido.
Eu sabia que era errado o que fazia, mas como eu poderia dizer não?
Com Pérola demandando tanta atenção nessa última semana, nossos
encontros em seu quarto ficaram só na vontade mesmo. Sentia falta até de
ver aquele filme velho do Star Trek com ele. Mas isso não quer dizer que
não dormíamos juntos, porque uns três dias na semana nós dormimos com
Pérola. Outro dia tentamos fugir do quarto dela e ir dormir no dele, mas Gael
chegou bem no momento e nos fez ficar vendo filme na sala com ele. Ele
deveria estar fazendo de propósito com a nossa cara, porque não era possível
um homem querer ver Procurando Nemo, o filme mais infantil que ele achou
no catálogo, depois de um longo dia de trabalho. Peguei trauma da Dory
depois disso.
Agora a putaria, bem... Isso estava em falta mesmo. Eu já tinha chegado
ao nível de implorar para Bernardo falar putaria comigo por mensagens. Eu
até enviei um nude para ele, mas ainda não tinha desbloqueado essa fase em
suas habilidades. Ainda.
Foi por isso que tivemos uma ideia brilhante.
Eu disse para Pérola que sairia para correr. Bernardo falou que teria
uma reunião com o Professor Flores. Gael estava no restaurante, Pérola ficou
vendo filme. Era perfeito.
Vesti um casaco mais longo, por mais que fizesse trinta e quatro graus
lá fora. Eu queria impressionar. Por sorte, Pérola estava na cozinha e não me
viu sair com um casaco que não tinha nada a ver com roupa de corrida.
Cheguei ao nosso ponto de encontro um minuto atrasada. Bernardo já
estava no local previamente acordado. Bati no vidro e ele destravou o carro.
— Boa tarde. — falei, seriamente.
Ele mordeu o lábio inferior, tentando não rir.
— Boa tarde.
— Qual a senha?
— Banana cura.
Ele odiou cada milésimo de segundo em que falou aquilo, dava para ver
em sua cara.
— Muito bem.
Abri o casaco com tudo, apreciando muito o choque em seu rosto ao ver
que eu estava nua. A forma como Bernardo me olhava, fazia com que eu me
sentisse como a mulher mais sexy do planeta.
Ele abriu a boca para falar algo, mas eu não tinha tempo a perder, fui
para cima dele e o beijei. Bernardo correspondeu, usando as mãos para
segurar meu pescoço e me deixar parada em cima de seu colo.
— Na aula de hoje vamos aprender a como comer uma pessoa com
vontade e saudades, está bem?
Bernardo assentiu, concentrado. Amo um aluno estudioso!
— Vale falar baixaria, vale bater e deixar marcas, que ficarei muito feliz
em ter como recordação.
— Não vou te bater.
— Ah, vai, sim. — Segurei sua bochecha entre meu polegar e o
indicador, depositando um selinho de leve. — Mas trouxe um negócio aqui
para você antes.
Estiquei o corpo para pegar o casaco, enfiei a mão no bolso e retirei os
pacotes de lá. Jogando em cima de Bernardo como se ele fosse uma stripper
e eu um velho assistindo ao seu show.
— Eu tenho preservativo no carro. — Bernardo retirou um pacotinho
que caiu dentro de sua camiseta.
— Para usar com quem?
Saiu antes mesmo que eu processasse. A voz esganiçada e meio raivosa
também não fazia parte do pacote, mas veio.
— Com você? — Ele testou.
— É, comigo. — Apertei os olhos, vendo seu olhar apavorado. — Só
comigo.
O tesão mexia com a nossa cabeça, sempre dizia isso.
— Tudo bem, só com você, então.
— Foi bom aquele dia sem, mas depois da Pérola, acho melhor a gente
não bobear.
Mudei de assunto, porque a forma como falei com Bernardo me
assustou. Eu fiquei com ciúmes? Era assim que se sentia ciúme de alguém?
— Seriam crianças demais na família.
Bernardo começou a beijar meu pescoço, mordiscou a pele e deixou um
rastro de fogo por onde passava. Ele tocou meus seios, enchendo a mão,
deixando um sorriso malicioso aparecer. Nunca tinha visto aquele sorriso em
seu rosto. E eu amei.
— Muitas crianças.
Tentei continuar o assunto, mas a realidade era que me distrai quando a
língua começou a tocar bem de leve em meu mamilo. Seria tão ruim assim
ter crianças na família? Porque com aquele movimento, ele poderia
facilmente me convencer que não seria nada ruim.
— Eu estava com saudades de te sentir — sussurrou ao meu ouvido,
deixando um beijo na parte de trás da orelha. O que foi meu colapso.
— E eu com saudades de você me foder.
Ele me deu intimidade, agora que arcasse com as consequências.
Puxei Bernardo para o banco de trás. Por sorte o carro era um SUV
espaçoso, não ficaríamos apertados como duas sardinhas em uma lata.
Desci minha mão por dentro de sua calça, começando a masturbá-lo.
Inclinei a cabeça para o seu ouvido e disse:
— Me conte a forma como você quer me comer hoje.
O sangue se acumulou em suas bochechas e achei que ele fosse sair
correndo daquele carro. Mas ele ficou, porque era um safado em formação.
Abriu a boca e falou algo tão baixo, que nem eu consegui escutar.
— O quê? — Aumentei a velocidade da minha mão, subindo e
descendo por ele.
— Quatro...
Ele infartaria daqui a pouco, era uma certeza. Seu rosto passou de rosa
para roxo. Eu nunca vi alguém ficar vermelho até na testa.
— Você quer me comer de quatro?
Seus lábios tremeram e eu o beijei, tentando deixar tudo menos terrível
para seu lado.
— Quero.
— Então, fala — provoquei-o.
Bernardo fechou os olhos, provavelmente dividido em me dar o que eu
queria ou chutar minha bunda daquele carro.
— Pietra?
— Oi?
— Fique de joelhos no banco, eu quero te comer de quatro.
Abri a boca, surpresa por Bernardo ter falado aquilo. Eu adorei! Dei um
selinho nele e saí de cima de suas pernas.
— Ok, mestre!
Caprichei na forma como empinei minha bunda para ele, porque queria
que ele gostasse do que via. Bernardo acariciou minhas costas, espalhando
um arrepio por todas as extremidades. Seus dedos apertaram a carne da
minha bunda, descendo até encontrar meu clitóris.
Eu queria tanto aquilo, estava realmente sentindo falta, não do sexo em
si, mas de estar com ele. Acredito que ele estivesse na mesma situação,
porque não demorou a colocar a camisinha e segurar minha bunda com as
duas mãos, não deixando com que eu movesse o corpo.
Quis chutar Bernardo quando ele enfiou tudo de uma vez. Mesmo
excitada, aquilo ardeu como fogo. Suas mãos apertaram ainda mais minha
bunda, guiando os meus movimentos.
Deixei que se divertisse, porque a hora em que eu resolvesse fazer o
que queria... Ele veria o que era bom para tosse.
— Sabe a parte de me bater? — Joguei o cabelo por minhas costas,
empinando o queixo para olhá-lo. — É a sua deixa.
— Pietra...
— Eu estou pedindo. — Bati os cílios, angelicamente.
A respiração de Bernardo foi ruidosa, mas por fim, ele acabou
segurando meu cabelo, enfiando os fios entre seus dedos até chegar ao couro
cabeludo. Ele segurava direitinho, o que indicava que estudou sobre o
assunto. Nenhum homem sabia puxar um cabelo direito sem que uma mulher
ensinasse ou que fosse atrás de saber como era o certo.
O primeiro tapa que ele deu foi tão fraco, que foi como se tirasse pó da
pele. Grudei meus peitos no banco de couro e empinei ainda mais a bunda,
recebendo outro tapa, dessa vez mais forte. A velocidade como ele entrava e
saía, fez com que eu começasse a gemer, cada vez mais entregue, cada vez
querendo mais dele.
Bernardo se empolgou com os tapas e minutos depois, aquilo já estava
uma baixaria. Minha bunda ardia, ainda mais depois que ele descobriu que
apertões fortes me excitavam ainda mais.
Trocamos de posição, porque minha coluna não estava mais
aguentando. Ele sentou e eu fui por cima, de costas para ele. Comecei a
cavalgar, decidida a fazer aquele garoto sofrer como ele me fazia até trinta
segundos atrás.
Fiquei surpresa quando Bernardo passou uma das mãos por meu
pescoço, prendendo-me no lugar. Seus dedos apertaram a pele sensível e abri
a boca, tentando respirar melhor e ele apertou ainda mais. Ergui os olhos
para o espelho retrovisor e a cena que vi foi espetacular. Meu rosto
vermelho, a boca aberta, os dedos longos de Bernardo apertando meu
pescoço forte, os nossos corpos suados, a forma como sua cabeça estava
jogada para trás.
Eu sabia que era bonita. Sabia o poder que tinha e que usava muito bem
minha sensualidade para meu próprio prazer, mas aquilo ali no espelho, fez
com que eu me sentisse poderosa em um nível extremo. Era a porra da
imagem mais excitante que já vi.
E eu gozei, sem piscar, aproveitando até o último momento daquilo.
Bernardo ficou ainda mais duro e também gozou, afrouxando o aperto em
meu pescoço assim que seus músculos relaxaram.
Ficamos em silêncio, ainda na mesma posição, a respiração em uma
desordem total. Passei a mão pelo pescoço, ainda extasiada.
— Eu te machuquei?
Virei o rosto para olhá-lo.
— Você fez o contrário de machucar.
Bernardo puxou minha cintura e o que ele faria, eu nunca ficaria
sabendo, porque a batida no vidro do motorista, fez com que a alma saísse de
meu corpo.
Nós nos olhamos, chocados.
— Recebemos reclamações por barulho excessivo.
Era a voz de Bruno.
Puta que pariu! Levantei do colo de Bernardo para pegar meu casaco.
— Eu sei que é você, Pietra.
Bernardo me puxou para o banco novamente, usando sua camiseta para
esconder meu corpo.
— Façam menos barulho, por favor! Ou alguém vai reclamar com seu
pai, Bernardo.
Houve um momento de pânico, mas conseguimos nos vestir e eu fui a
primeira a sair do carro, percebendo o sorrisinho presunçoso no rosto de
Bruno assim que nos viu ali fora.
— Uma palavra sobre isso e você morre. — Passei o dedo pelo
pescoço, indicando o que faria se ele abrisse o bico.
Bruno ergueu as mãos, rendendo-se.
— Só parem de usar a garagem como motel. Dá para ver tudo pelas
câmeras.
Precisei de muito esforço para não cair dura no chão, de vergonha. Já
Bernardo não teve a mesma força, a julgar pela forma como apertou minha
mão.
— Então seja um bom amigo e tire Pérola de casa.
Forcei um sorriso e vi seus olhos se acenderem.
— Vocês acreditam que ela gostaria de me ver?
— Você ainda quer ver minha irmã? — Foi a primeira coisa que
Bernardo conseguiu falar.
Era exatamente o que passava por minha cabeça.
— E por que não iria querer?
Gostei mais ainda de Bruno depois de ouvir a forma despretensiosa
como falou aquilo.
— E se jantarmos juntos hoje à noite? — propus.
A ideia de minha amiga sair daquele quarto e se distrair — deixando o
caminho do quarto de Bernardo livre para mim — era fabulosa. Brincadeiras
a parte, eu achei que seria uma boa ideia, porque ela estava precisando.
— Conheço um restaurante ótimo. — Bruno era uma bomba de
animação depois do meu convite.
Eu tinha quase certeza de que Pérola surtaria por ter de ir a um
restaurante que Bruno conhecia, mas quando contei que sairíamos com ele,
ela só deu de ombros.
Sem perguntas.
Sem se importar se teria ou não carta de vinhos. Ou guardanapos de
tecido.
Horas mais tarde estávamos sentados em um food truck de comida
mexicana, comendo burritos e tacos. Bruno tentava entender sobre a
faculdade de Bernardo e o fato de que ele tinha vinte anos e estava
terminando um curso longo daqueles. Eu adorava vê-lo explicar, como se ele
não fosse um gênio que entrou em uma das faculdades mais difíceis do país
com dezesseis anos, enquanto nós, adolescentes normais, tínhamos
dificuldade em decorar a fórmula de cosseno.
Pérola escutava a história, mas dava para ver que sua cabeça estava
longe. Mordendo um burrito vez ou outra, rindo de algo engraçado que
Bruno comentava.
— Ei? — Cutuquei sua cintura. — Eu te amo.
Pérola se aconchegou em meu ombro e nós ficamos ali, juntinhas,
escutando a conversa dos meninos.
Aquele foi um dos meus dias preferidos das férias e fiquei me
perguntando há quantos anos eu não me sentia tão feliz assim. E ficou difícil
de acreditar que toda aquela felicidade era por minha melhor amiga estar
grávida e pelo bom humor contagiante de Bruno.
Depois fomos andar pela praia, brincando de jogar areia um no outro.
Pérola ficou brava quando Bernardo jogou nela e foi até o mar lavar o rosto.
Eu fiquei sentada ao seu lado, na escada da casinha do salva-vidas.
Bernardo apoiava o queixo na mão, olhando a irmã e Bruno à beira do
mar, conversando. Eu o admirei, sua sobrancelha cheia, os cílios espessos, a
mandíbula quadrada, aquele cabelo que eu adorava. O desespero tomou meu
coração por perceber o óbvio.
Eu gostava da forma como ele me tratava. Gostava que ele não
estivesse nem aí em fingir desinteresse para parecer mais interessante igual a
todos os outros caras com quem estive saindo nesses últimos tempos, como
se seguissem uma cartilha de como ser um grande de um babaca para
conquistar uma mulher.
Gostava como Bernardo não escondia quem era, seus gostos, suas
manias. Gostava como me incluía em sua vida. Eu gostava dele, de seu rosto
bonito, do cabelo ondulado, seu corpo, sua voz, a forma como me fazia rir,
como me fazia gozar, como confiava em mim e até a forma como fazia com
que eu sentisse ciúmes. Bernardo me deu um gostinho de como seriam os
dias, as semanas, os meses e por que não, alguns anos ao seu lado?
Beijei seu ombro, o coração batendo tão rápido quanto o de um
passarinho. Eu não sabia falar o que eu sentia, tampouco sabia se algum dia
conseguiria falar sobre. Mas eu estaria ali, até quando durasse.
Recebi um beijo na testa seguido de um sorriso que acabou com
qualquer resistência. Fiquei molinha, boba, como uma garotinha.
E depois Pérola chegou perto, o rosto iluminado, mais animado.
Amava vê-la melhor, mas fiquei triste quando Bernardo se afastou de
mim.
— Vocês acham esquisito que eu vá dormir na casa do Bruno?
Balanceei os prós e contras e demorei um segundo a responder:
— E por que seria?
— Grávida. — Apontou para a própria barriga. — De outro cara.
— Se você gosta dele e ele de você, não vejo mal algum.
E eu poderia ficar com Bernardo em casa, em nossa paz!
— Eu não gosto dele.
Pérola jogou o cabelo para trás, assumindo sua pose de rainha má e
inacessível de volta. Ficava muito difícil de acreditar nisso depois da forma
como seu rosto mudou, só por sair com Bruno.
— Só tenha certeza do que está fazendo e não o machuque.
Senti que fui 1% vingada por falar aquilo para ela. Todo mundo
esperava o momento em que eu fosse destroçar o coração de Bernardo e ele
estava ali, ao meu lado, todo sorridente, com o coração 100% intacto.
— E tenha certeza do que quer para o... — Bernardo apontou para a
barriga da irmã.
Ainda estávamos receosos do que Pérola faria com a gravidez. Nos dias
que conseguimos conversar com ela sobre o assunto, percebemos que ela
estava perdida. Dois dias atrás, Bernardo e eu pesquisamos sobre clínicas
que poderiam interromper a gestação e quando fomos falar para Pérola, ela
simplesmente surtou e começou a chorar, falando que não faria nada daquilo,
sendo que vinte minutos antes, ela mesma nos disse para ajudá-la.
— O bebê? — Pérola sorriu. — Acho que vamos ficar bem juntos.
Bernardo e eu nos olhamos, receosos. Era aquilo mesmo?
— Então... Teremos um bebê? — Fui cautelosa.
— Teremos.
Gritei e pulei em cima da minha amiga, que ria e tentava me acalmar.
Bernardo também levantou e nos abraçou.
— Estamos juntos nessa — Bernardo falou para Pérola, mas piscou
para mim, porque era a nossa frase.
— Obrigada! Eu amo vocês!
Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas ela não chorou. Pelo
contrário, colocou um sorriso no rosto e arrumou a camiseta e o moletom
que usava — o que demonstrava o estado de espírito caótico no qual minha
amiga se encontrava — e disse que iria com Bruno então.
Bernardo e eu voltamos para o apartamento a pé, de mãozinhas dadas,
conversando sobre as mensagens que Ryle começou a mandar para ele,
ontem. Bernardo tentava se fazer de indiferente, mas eu sabia que seu
coração estava balançado por seu irmão mais novo. Algo que faria Pérola
surtar se imaginasse.
No apartamento, entramos no corredor e hesitamos em frente da porta
de nossos quartos. Estava pronta para implorar para Bernardo me deixar
dormir com ele, quando sua mão puxou meu braço na direção da porta que
ele tinha acabado de abrir.
Um dia feliz, eu disse.
O melhor deles.
Passei dias ocupado com o artigo que eu entregaria para Tony, era sobre
fusão nuclear. Um tema que eu gostaria de continuar estudando no
doutorado. Se eu passasse, claro! O professor Flores estava convencido a me
levar para trabalhar com sua equipe de desenvolvimento assim que eu
entregasse minha pesquisa e concluísse o curso, mas minha grande vontade
ainda era ir para a Stanford, na Califórnia, trabalhar um tempo com pesquisa
antes de ingressar em uma empresa.
Não sei como tudo ficaria agora que Paola não era mais minha
orientadora. Esperava que isso não atrasasse a minha formatura.
Eu estava com muita coisa na cabeça nesses últimos dias. A faculdade,
minha pesquisa, a gravidez de Pérola e tudo o que estava acontecendo com
Pietra. Durante tanto tempo eu esperei por isso que tenho hoje e agora que
era uma realidade, todo o tempo que passo longe dela parecia uma tortura.
Pérola estava demandando muita atenção, mesmo depois de ter
começado a sair com Bruno, o que fazia com que eu e Pietra não tivéssemos
tanto tempo juntos.
Quando não era Pérola, era o meu pai que atrapalhava qualquer
momento que eu estivesse com Pietra. Ele simplesmente não nos deixava
sozinhos. E perdi a conta de quantos filmes infantis ele nos fez ver nesses
últimos dias.
Em um final de semana, fomos para Orlando, visitar os parques da
Disney. Eu gostava de ir lá, mas gostava ainda mais por ver a animação de
Pietra. Ela fazia valer o preço do ingresso até o último centavo. Perseguia os
personagens, tirava foto em cada canto do parque, andava por lá com as
orelhinhas da Minnie e só ia embora quando via os últimos fogos de
artifício.
E mesmo que ela dormisse com Pérola a maioria dos dias, nós sempre
dávamos um jeito de se encontrar na calada da noite, depois que meu pai
chegava do restaurante. Eu amava aqueles momentos. E nem era só pelo
sexo, o que passamos a fazer muito, em qualquer momento que
conseguíamos um pouco de privacidade. Eu amava estar com Pietra, de
dormir com ela em meus braços, da forma como ela sempre beijava a ponta
do meu nariz antes de fechar os olhos e se entregar ao sono. Amava estar
com ela. Eu amava tudo naquela mulher.
E era difícil demais guardar isso para mim. Mas o que eu poderia fazer?
Pietra já tinha deixado bem claro que não queria um relacionamento e que
aquilo que vivíamos tinha prazo de validade. E eu até achava justo, porque
sabia que estragaria tudo com ela.
Fechei o notebook, encerrando o dia de hoje. Era uma sexta-feira, tudo
o que eu mais queria era ficar com Pietra, mas sabia que Pérola estava em
casa.
Não aguentava mais isso.
Logo as férias acabariam, Pietra nunca mais olharia na minha cara, eu
teria de mudar de país e tudo isso ficaria na minha lembrança.
Fui atrás dela e a encontrei na sala, jogada no sofá, conversando com
Pérola.
— Ele encheu de balões? — Pietra perguntou, sua voz era animada e
um pouco surpresa.
— Sim. Todo o quarto.
— Isso foi adoravelmente brega.
Sentei no sofá, perto de Pietra, mas não perto o suficiente para que
minha irmã surtasse e fizesse com que eu prometesse mais quinhentas coisas
impossíveis.
— O que é adoravelmente brega? — perguntei.
— Bruno fez um jantar ontem na casa dele para mim. Decorou tudo
com flores e balões no teto, acredita?
Tentei não demonstrar tanta surpresa assim, mas era algo que eu não
imaginava ver minha irmã gostar.
— Eu achei lindo. — Pietra apoiou a cabeça na mão. — É brega, mas
no fundinho toda garota quer ter algo assim um dia.
Ela continuou falando mais, mas meu cérebro desligou. Ela gostava de
jantares e flores e balões? Eu nunca pensei em fazer algo assim para ela.
— Foi fofo, mesmo — Pérola rendeu-se. — Ele me pediu em namoro.
Foi totalmente sem querer, mas Pietra e eu fizemos a mesma cara ao
escutar aquela novidade. Incrédulos além da conta.
— É sério? — Pietra deu um gritinho animado.
— Sério.
Minha irmã balançou a cabeça para os lados. Ela tentava disfarçar, mas
eu sabia que gostava de Bruno. Se não gostasse, já teria dado um pé na
bunda dele há muito tempo. Eles se viam quase todos os dias, mesmo que
fosse para tomar um sorvete. Ele tinha toda a paciência do mundo com ela,
era até irritante de se ver.
— Vocês estão namorando? — perguntei.
— Não, eu não aceitei.
Pietra partiu para a agressão e deu uma almofadada na cara de minha
irmã.
— Você é burra, Pérola? — Sua indignação era muito engraçada.
— Como eu posso aceitar? Olha tudo o que está acontecendo na minha
vida. Não tenho cabeça para pensar nisso agora.
Pietra revirou os olhos e eu quis fazer o mesmo, mas sabia que minha
irmã iria comprar briga comigo.
— E daí? Ele te faz bem e a trata como uma princesa. Qualquer um já
teria corrido se estivesse nessa situação e ele escolheu ficar, porque gosta de
você.
Dava para ver que Pietra era uma defensora ferrenha de Bruno. Eu
também era, admito. Não era fácil aturar minha irmã e ele fazia isso
perfeitamente e a fazia feliz.
— Eu tenho outras preocupações agora. — Seus ombros caíram.
Parecia que Pérola lutava para acreditar em suas próprias palavras. — Contar
para o papai sobre o que está rolando, é a primeira delas.
Ao mesmo tempo em que queria defender minha irmã e estar com ela
nesse momento, eu também queria estar do outro lado do mundo quando ela
contasse para meu pai que estava grávida de um dos melhores amigos dele e
que agora queria se livrar de qualquer responsabilidade por seus atos.
Deus que nos protegesse quando Pérola resolvesse falar e eu sabia que
deveria ser logo, porque ela mais vomitava do que respirava. Se meu pai não
ficasse tanto no restaurante, ele já teria sacado em dois tempos.
Pietra continuou a atazaná-la para que desse valor a Bruno. Eu fiquei
pensativo, olhando para ela. Eu queria conquistar Pietra, mas até agora, tudo
o que tinha feito era oferecer minha cama para ela, ver filmes e transar.
Éramos bons fazendo todas essas coisas, mas pela forma como ela ficou
animada com a história de Pérola, senti que estava deixando passar algo.
E decidi ali, que a faria se sentir mais do que especial. Amada, cuidada,
uma princesa. Porque era o que ela era para mim.
A ideia do que eu gostaria de fazer veio um segundo depois. Levantei
do sofá em um pulo e voltei para o quarto para começar a planejar.
A parte mais difícil seria falar com meu pai, porque eu sabia que ele
estava bem de olho em mim. E em Pietra. E em qualquer interação que
tenhamos que não seja comentar sobre o quanto não aguentamos mais
assistir Procurando Nemo.
Só que se eu falasse a verdade, nunca mais teríamos paz. Foi por isso
que tomei a decisão mais inteligente: roubei a chave do veleiro.
Ele estava trabalhando demais no restaurante e muito ocupado com
Helena, nem daria falta.
Fiquei todo resto da sexta-feira na Target fazendo compras com o que
eu precisaria. No sábado pela manhã, fui arrumar tudo. Passei o dia todo
deixando tudo perfeito para Pietra.
Mandei uma mensagem para ela, pedindo para que ficasse pronta,
porque eu tinha uma surpresa para ela.
Tomei banho e me arrumei no veleiro, deixando tudo pronto para
quando voltasse com Pietra. Durante o caminho, percebi o quanto estava
nervoso, sem fazer a mínima ideia de que aquilo seria o bastante para ela.
Pietra merecia tudo, merecia coisas grandiosas. Queria que ficasse feliz e
soubesse o quanto era importante para mim. Queria que não me visse apenas
como uma diversão para suas férias de verão.
— Banana cura?
Ela arqueou o corpo no vidro do carona quando parei em frente ao
prédio.
Neguei com a cabeça, segurando a risada.
Ela estava linda, com um vestido branco rodado, a cintura marcada e
alças fininhas que se cruzavam nas costas. Seus cabelos ondulados, ao
natural. Eu amava quando ela deixava assim.
Pietra beijou minha boca e mal sentou e já perguntou:
— Para onde vamos?
— Tenho uma surpresa para você.
Seus olhos brilharam de uma forma adorável e estranhei quando ela não
fez mais nenhuma pergunta. Só começou a tocar sua playlist e foi em
silêncio por todo caminho. Algo não muito comum vindo de Pietra.
O píer não ficava tão longe de casa e logo estava estacionando o carro.
Pietra olhou para os lados, provavelmente sabendo onde estávamos.
— Posso tapar os seus olhos?
Pietra abriu a boca para falar algo, mas acabou desistindo e só assentiu.
Usei minha mão para tapar seus olhos e a guiei, segurando sua cintura
até o píer. Precisei puxá-la para meu colo para que entrássemos no veleiro
sem que ela caísse no vão entre o barco e a passarela. Ela cruzou as pernas
em minha cintura, os braços cercando meu pescoço.
Só fui tirar a mão de seus olhos quando estávamos no meio do barco.
Os olhos de Pietra refletiram o amarelado das luzes de Natal que coloquei
ali. Seu corpo ficou tenso em meu colo, o olhar caiu para o chão, cercado das
pequenas velas eletrônicas que comprei para deixar tudo o mais romântico
possível. Gostaria que fossem velas de verdade, mas meu pai me mataria se
eu colocasse fogo em seu barco.
— Você fez tudo isso?
Sua voz era baixa, levemente falhada.
— Fiz.
— Para mim?
— É.
Pietra desceu do meu colo e passou a caminhar pelo convés, olhando
tudo com incredulidade. Eu não conseguia distinguir se ela tinha adorado ou
odiado. Comecei a ficar nervoso e a pensar que coloquei tudo a perder.
— Isso é... um jantar? — Apontou para a mesa que montei na popa,
cercado por todas aquelas luzes e velas.
— Você disse que nunca teve essa experiência, lembra?
Pietra tocou na toalha branca que coloquei ali, embaixo dos pratos e das
taças. Ela estava esquisita, comecei a ter certeza de que tinha odiado.
— Com velas, rosas e tudo.
Assenti, nervoso.
— Você odiou? — Precisei perguntar, porque meu coração estava
saindo pela boca.
— Eu amei, Bê! Eu nunca... Ninguém nunca fez isso por mim.
— É brega...
— Mas toda garota quer algo assim algum dia — completou, com um
sorriso meigo.
Ela sabia o porquê de eu ter feito aquilo. E ainda assim, Pietra pulou em
cima de mim, voltando para meu colo. Sua mão tocou uma mecha do meu
cabelo, torcendo entre o dedo.
— Obrigada — sussurrou no meu ouvido. — Obrigada por ser o
melhor.
Ela me beijou e eu não pude nem ficar surpreso pelo que ouvi. Eu
nunca quis tanto confessar algo, quanto falar sobre meus sentimentos por
Pietra quanto naquele momento. Eu queria que ela soubesse, queria que
pensasse em nós como uma possibilidade, não apenas uma diversão.
Eu queria muito falar, só que não tinha coragem. Porque eu a conhecia.
Pietra pulou do meu colo logo depois e eu contei que tinha preparado o
jantar para nós dois, além de explicar que não poderíamos navegar, porque
eu não tinha habilitação para isso.
— Seu pai sabe que estamos aqui?
Neguei.
— Você não pediu?
Neguei novamente.
— Bernardo, você roubou um barco?
Assenti.
Pietra passou a língua pelo lábio superior e me puxou para seus braços
novamente.
— Você é uma caixinha de surpresas, Bernardo Adler!
Olhando para ela daquela forma, seu sorriso sincero, a maneira como
seus olhos brilhavam, a forma como me tocava, eu jurei que Pietra sentia o
mesmo que eu.
Disse que deveríamos comer, antes que acabasse falando merda. Desci
para a cozinha, tirando do forno o macarrão com molho de camarão que
preparei para ela. Era simples, mas eu sabia que ela gostava de camarão.
Comemos juntos, eu a acompanhei no vinho, até discutimos sobre a
playlist escolhida para o momento. Pietra colocou um funk para tocar, eu
mudei para uma música romântica. Ficamos nessa guerra até ela desistir e
colocar uma música de sua playlist de sexo. Fiquei chocado por ela ter um
playlist toda para isso.
Terminamos de comer e Pietra foi rodopiando até a proa, onde arrumei
alguns cobertores e almofadas, igual ao cantinho que fiz para ela das
primeiras vezes que dormiu no meu quarto.
Deixei nossas taças e o vinho no chão, observei Pietra mover os quadris
no ritmo da música. Ela abaixou para desfazer o nó da sandália que se
trançava em seu tornozelo. Os olhos fixaram nos meus e precisei beber mais
vinho para não deixar transparecer o quanto aquele gesto me excitava.
— Your body language speakes to me[2]... — Pietra cantou o refrão da
música que tocava naquele momento, apontando para mim.
Ela se aproximou, passando as pernas por meu corpo. Inclinei a cabeça
para olhar, Pietra continuou rebolando no ritmo da música. Naquela posição,
eu conseguia ver que não usava nada debaixo daquele vestido.
Passei as mãos por suas panturrilhas e subi para as coxas. Ela era tão
macia, quente, aveludada. Não conseguia agir com normalidade por poder
tocá-la e saber que gostava disso.
Puxei Pietra para mim e aproveitei que ela estava de pé e a altura era
perfeita para chupá-la naquela posição. Segurei a parte posterior de suas
coxas, afastando as pernas para enfiar minha cabeça ali. Toquei com a ponta
da língua, sentindo-a estremecer com esse primeiro toque. Depois de tantas
escapadas pelas madrugadas, rapidinhas em meu banheiro e uma pegação
intensa sempre que tínhamos aqueles encontros na garagem, eu já sabia que
ela gostava demais de quando eu a chupava lentamente, como se a beijasse.
Pietra perdia o controle e seus gemidos eram a melhor música de todas.
Não tinha playlist de sexo que fosse melhor do que aquilo.
Ela começou a investir contra minha língua e eu diminuí nossa
distância, forçando seu quadril com um apertão forte. Era outra coisa que eu
aprendi sobre Pietra. Ela gostava de algo intenso e eu descobri que também
gostava.
Ainda tinha medo de machucá-la? Obviamente. Mas ver a forma como
gemia e sorria a cada apertão ou palmada, acaba com qualquer resistência
que eu ainda tivesse.
Seu corpo convulsionou em minha boca e fiz questão de enfiar a língua
no canal, sentindo seu gosto.
Ela despencou nos cobertores e eu acariciei sua bochecha avermelhada.
Alguns fios de cabelo grudavam na testa e eu os afastei, dando tempo para
ela se recompor.
Pietra, dez segundos depois, arrancou o vestido. Ela também não usava
sutiã e a visão de seu corpo nu fez meu pau pulsar dentro da calça.
— Quer ir para o quarto? — perguntei.
— Não. — Seu sorriso malicioso se tornou o meu favorito de todos. —
Quero que você me foda bem aqui.
Estávamos no píer e mesmo que o barco fosse alto, alguém poderia
passar por ali. Pietra pareceu adivinhar o que eu pensava e segurou meu
rosto entre sua mão, mordeu o lóbulo de minha orelha e sussurrou:
— E se alguém vir, quero que saibam o quanto você me deixa louca.
Aquela deveria ser a coisa mais excitante que já escutei. Não levei mais
do que um segundo para aceitar a proposta.
Se alguém nos flagrasse ali, saberia que eu era o maior sortudo do
mundo.
Arranquei a camiseta e Pietra ajudou a abrir o zíper e retirar a calça
com a cueca. Ela passou a mão por meu pênis, mas não demorou em sentar
em meu quadril, sua boceta molhada deslizando deliciosamente.
Ergui a cabeça e vi a forma como mordia os lábios, como se esperasse
minha reação, antes de começar de fato algo. Dane-se, eu não me importava
nem um pouco de fodê-la sem o preservativo. Já tinha acontecido outras
vezes, quando a vontade falava mais alto do que o trauma que Pérola nos
causou.
Passei a me movimentar e ela também seguiu o mesmo ritmo. Usei as
mãos para subir e descer seu quadril, seu corpo inclinando em meu peitoral.
Mordisquei um mamilo, prendendo um dos piercings. Pietra gemeu e o
movimento de sua rebolada se tornou mais intensa.
Eu sabia que não duraria muito mais tempo se ela continuasse
rebolando daquela forma, por isso, passei uma das mãos na cintura dela e
troquei de posição. Deitei sobre ela e recomecei as estocadas, dessa vez um
pouco mais lento.
Foi então que algo estranho aconteceu.
Nossos olhares se cruzaram e algo pareceu entrar em sintonia. O
movimento de nossos corpos seguia o ritmo da música, seu coração batia tão
rápido quanto o meu.
— Eu adoro cada parte sua — Pietra sussurrou com as mãos em meu
cabelo, sua boca na minha.
— Eu adoro tudo em você... — Beijei seus lábios inchados e vermelhos
pelo sangue acumulado. Usei a mão direita para segurar sua nuca, deixando
a cabeça parada. — Sabe por quê?
Ela negou com a cabeça e um gemido baixinho, ao pé do ouvido, me
deixou perto do paraíso. Mantive a mesma velocidade dos movimentos,
sentindo-a contrair em torno de mim cada vez forte.
— Porque eu amo você.
Pietra arregalou os olhos e eu cobri sua boca com a minha, sem dar
tempo de ela processar o que falei. Na verdade, nem eu tinha processado.
Aumentei a velocidade e seus gemidos se intensificaram. Pietra começou a
investir mais contra mim e enquanto apertava sua cintura, estocando o mais
fundo que conseguia, a senti amolecer em meus braços.
Aquele orgasmo foi o mais forte que tive até então e o mais devastador
de todos. Ficamos ali quietos, as respirações tentando voltar à normalidade,
meu coração estourando dentro do peito.
Eu tinha feito merda. Sabia disso muito bem.
Saí de dentro de Pietra, observando a forma como meu gozo escorreu
por sua perna. Precisei de muito esforço para não avançar nela novamente e
implorar por um segundo round.
— Quer que eu busque água para você? — perguntei.
Pietra não respondeu, tampouco olhou para meu rosto. Ela se sentou e
colocou o vestido em um movimento rápido.
— Eu comprei cheesecake de morango, sei que é seu preferido. Quer
comer agora?
Pensei que se eu agisse com normalidade, ela ignoraria o que falei e
seguiríamos em frente. Pietra poderia pensar que foi só coisa do momento,
pela excitação.
Arrisquei olhar para ela e vi que estava de cabeça baixa, os olhos
focados na estampa do cobertor.
— Que porra de história é essa?
Seu tom de voz cheio de raiva, fez com que meu coração acelerasse.
— O quê?
— Você falou que me ama, Bernardo?
Neguei, totalmente na defensiva.
Pietra grunhiu e esfregou o rosto, bagunçando os cabelos em seguida.
Ela não parecia nada feliz.
Droga! Droga! Droga! Por que eu tive de falar aquilo?
— Eu... Eu... só...
Pietra levantou do cobertor e eu levantei atrás dela, tentando tocar sua
mão.
— Foi a única coisa que eu pedi para que não acontecesse, Bernardo.
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e eu fiquei desesperado por ver
um muro invisível se formando ali. A conexão de um minuto atrás, não
existia mais.
— Eu estava brincando.
— Não estava! — Pietra gritou. Eu dei dois passos para trás, acuado. —
Olha para isso agora...
Apontou em minha direção com a palma da mão aberta.
Meus olhos arderam, porque a forma como ela falava tinha um gosto
horrível de rejeição.
— Pietra, desculpa, eu... Eu não queria te deixar triste.
Ela começou a rir. E eu não conseguia entender mais suas reações.
— Eu não estou triste, eu estou puta! — Puxou os cabelos com as duas
mãos, parecendo fazer uma força sobrenatural para não gritar comigo. —
Sabe por quê? Porque eu avisei! Eu avisei que eu não sou assim, eu não
consigo retribuir algo assim.
— Ei, você não precisa retribuir nada. Está tudo bem, eu não estou
pedindo nada — falei, apressado.
Pietra negou com a cabeça, inconformada.
— Não tem nada em mim que você deveria amar. Nada. Absolutamente
nada.
— Tudo em você merece ser amado.
Dessa vez consegui segurar sua mão sem que ela evitasse o contato.
Pietra ergueu o queixo, mirando meus olhos.
— Todo mundo avisou que eu quebraria seu coração, Bernardo. Porque
é isso que eu faço. É assim que eu sou no final das contas.
— Eu não me importo. — Minha sinceridade até me assustou. — Eu...
Eu sei que você tem medo, eu também tenho, Pietra. Eu demorei anos para
conseguir falar com você, para demonstrar um pouco do que sempre senti. E
sabe de uma coisa? Não era mentira o que falei, é a maior verdade que tenho
atualmente, na verdade. E sei que você está com medo e o seu sentimento é
válido. Sei como pode assustar, eu vivi anos acuado, com medo de sentir
qualquer coisa, até que tudo isso aconteceu. Só... Só não desiste disso, não
desiste de mim.
Nunca fui tão sincero. Meu coração batia descontroladamente dentro do
peito. Mais ainda quando vi Pietra limpar uma lágrima no rosto vermelho.
Sua mão ainda estava na minha e senti um toque mínimo sobre minha
pele, um carinho, algo a que me agarrei perdidamente.
— Eu não vou te quebrar. — Sua voz era um sussurro. — Não, você.
Pietra acariciou meu rosto com a mão que não segurava a minha. Seus
olhos estavam transbordando lágrimas e dava para ver a forma como ela
segurava o choro.
— Podemos voltar ao nosso normal? — implorei.
Seus lábios tremularam e eu vi o exato momento em que eu soube que
não teria volta.
Pietra negou com a cabeça.
— Desculpe.
Ela se afastou e eu ainda tentei segurá-la novamente, mas Pietra correu.
Vi, com total impotência, ela pegar sua bolsa e sair correndo do veleiro.
Pietra não olhou para trás por um segundo.
E eu soube naquele momento o som de um coração partido.
Eu sentia falta de ser criança. Principalmente daquela habilidade que
temos em demonstrar nossos sentimentos. Chorando quando frustrados e não
há vergonha de fazer isso na frente de ninguém. Nós sentimos com todo o
coração, mas não entendemos sobre sentimentos. Talvez fosse isso que
mudasse com a maturidade. A ignorância, muitas vezes, pode ser uma
dádiva.
Eu não queria saber sobre os sentimentos de Bernardo. Tudo o que eu
mais queria era que ele nunca tivesse falado aquilo, porque aí ainda
estaríamos juntos no nosso mundinho perfeito.
E eu gostava tanto daquele mundinho perfeito.
Só que ele tornou tudo real com aquele “Porque eu amo você”. Não
dava para fingir que era uma mentira ou apenas uma brincadeira, porque eu
sabia que era verdade, eu sentia a verdade daquilo cada vez que ele estava
perto de mim, quando me tocava, ou só olhava para mim como se eu fosse
algo precioso.
Eu só não queria saber.
Porque eu colocaria tudo a perder e aquela forma linda como ele olhava
para mim, acabaria. Eu acabaria com tudo.
Esfreguei meu nariz entupido pelo choro, porque era isso o que adultos
faziam. Escondiam-se em uma piscina para poder chorar em paz, porque
demonstrar significava falhar e falar significava mostrar que todos estavam
certos sobre mim.
Eu não queria que Bernardo se apaixonasse por mim, tampouco que
sofresse por isso. E acreditei que poderia protegê-lo e não ser a bruxa
malvada que destruiria seu mundo cor-de-rosa. Queria ser a princesa que era
resgatada, a criatura doce e adorável merecedora do amor de um príncipe. Só
que eu não era, nem nunca poderia ser.
Passei horas chorando naquela espreguiçadeira da piscina do prédio,
não entendia o porquê de estar tão mal assim, sendo que eu mesma criei toda
a situação. Queria poder desabafar com minha melhor amiga sobre isso, mas
além de ter que falar que eu tinha quebrado o coração de seu irmão, ainda
ficaria sem melhor amiga por ser uma mentirosa patética.
Demorou muito até que eu criasse coragem e subisse para o
apartamento. A porta de Bernardo estava fechada e meu coração doeu por
perceber que a única coisa que eu queria era ficar lá com ele.
Fiquei o resto da noite encolhida na cama de Pérola, sentindo-me
miseravelmente triste, ainda mais porque ela estava na casa de Bruno. Eram
4h da manhã quando percebi que tudo o que mais queria era dormir com
Bernardo.
Sempre fui muito rígida comigo. Eu era amiga de todo mundo, tratava a
todos com carinho, mas nunca soube ser minha amiga. Forcei sempre um
sorriso, mesmo quando queria chorar. A ir enquanto queria ficar. A fazer um
esforço sobre-humano para me encaixar, para ser aceita, para ser querida.
E com Bernardo eu não precisei fazer nada disso. Ele viu meus piores
momentos. Estava lá quando a escola toda riu de algo que me feriu, ele não
julgou nada do meu passado, na verdade, ele nunca sequer perguntou sobre.
Ele me aceitou, cuidou de mim, riu das minhas piadas ruins. Bernardo
escolheu ficar, mesmo me conhecendo muito bem.
E mais do que isso, ele decidiu me amar. A coisa mais corajosa que já
vi alguém fazer por mim.
Saí correndo do quarto de Pérola e atravessei o corredor, abrindo a
porta de seu quarto. A cama de Bernardo estava feita, com o vestido que usei
pela tarde, da mesma forma que deixei. A porta do banheiro estava aberta e a
luz desligada. Bernardo não tinha voltado para casa.
Joguei meu corpo em sua cama, abraçando o travesseiro que ele dormia
e que estava impregnado com o meu cheiro preferido dos últimos tempos: o
dele.
Pensei em ligar para Bernardo, mas fiquei com vergonha depois de toda
a cena que fiz no barco. Ele quis fazer uma surpresa linda e eu o tratei
daquela forma. O único garoto que realmente fez algo para me ver feliz, sem
segundas intenções, apenas porque gostava de mim e queria fazer algo
romântico.
Eu era mesmo uma péssima pessoa.
Peguei na mesinha de cabeceira o remédio de ansiedade que Bernardo
tomou aquele dia no avião, ciente de que eu não dormiria hoje se não fosse
tomando isso. Peguei seus fones de ouvido, deitei embaixo da coberta
geladinha e coloquei Only Time para tocar, focando em normalizar as batidas
do meu coração, antes que eu tivesse uma crise de ansiedade.
Nosso jantar foi perfeito, mas confesso que a parte que eu mais gostei
foi o pós-jantar. Pietra me chupou durante toda a volta até o apartamento,
não sei nem como chegamos vivos àquela garagem.
— Não, vamos subir... — Desvencilhei-me de seu beijo assim que
estacionei na vaga. — Bruno não aguenta ver esses sex tapes na garagem.
Pietra resmungou, mas acabou saindo de cima de mim.
— Sabe que não cumprimos nada daquele contrato, não é? — Seu olhar
era vago e pensativo. — Nós nos apaixonamos, fingimos que camisinha não
existe, gravamos umas vinte sex tapes só nessa garagem. Foi uma catástrofe!
— Pelo menos ninguém sabe — ponderei.
— Eu contei para a Helena hoje. — Deu de ombros. — Bem, seu pai
ainda é proibido para mim.
— É, não é? — Fuzilei-a com o olhar, escutando sua gargalhada alta. —
Continue assim, para todo o sempre.
— Totalmente proibido. Não sei nem quem é ele.
Tirei seu pés do chão, escutando os gritinhos assim que a joguei nos
ombros e dei um sonoro tapa em sua bunda.
— Pelo menos a cláusula sobre a sua bunda está intacta. Ainda.
Pietra tentou levantar, mas eu dei um beliscão bem ali.
— Tem vinho em casa, não tem?
Mordi o lábio e entrei no elevador ainda com ela no colo. Grudei seu
corpo na parede metálica e escorreguei a mão por debaixo de seu vestido,
introduzindo dois dedos de uma vez. Pietra estava molhada, quente e
receptiva. Esfreguei seu clitóris com o polegar, sem muita delicadeza. Ela
gemeu em meu ouvido e a língua percorreu o caminho de minha mandíbula
até o queixo, onde deixou uma mordida.
Eu queria a foder ali naquele elevador, mas infelizmente ele era rápido
demais. E em segundos já estávamos no andar do apartamento.
Soltei Pietra no chão, escutando alguns resmungos inaudíveis dela.
Passamos pela sala rapidamente, mas ela parou em frente ao quarto de
Pérola, fazendo uma careta.
— Está ouvindo?
Tentei me concentrar no barulho e quase ri ao perceber que mesmo
sendo muitíssimo menos depravado do que ela fazia com Tato ali semanas
atrás, ainda era aterrorizante.
— Me tire daqui se ainda tiver qualquer plano de transar comigo.
Precisei tapar a boca para não gargalhar com o desespero de Pietra em
me empurrar para dentro do quarto.
Fiquei feliz por ter ela ali novamente. Pietra combinava com meu
quarto. Combinava comigo.
— Quer tomar um banho comigo? — ofereceu, cheia de segundas
intenções.
— Quero. Quero muito. Demais.
Ela riu e saiu correndo para o banheiro. Dessa vez, ligou a torneira da
banheira e enquanto esperava, foi se desfazendo de suas roupas. Admirei seu
corpo, a forma como mesmo fazendo coisas absolutamente comuns, ela
parecia a personificação de uma deusa. Nunca tinha visto alguém tão bonita
quando Pietra. Não existia nada nela que não fosse absolutamente perfeito.
Ela ergueu os olhos, sabendo muito bem que eu a admirava.
— Me dê um pouco de felicidade e arranque essa roupinha.
Mesmo envergonhado, eu fiz o que ela mandou. A cada peça que tirava,
jogava em Pietra só para descontrair. E ela comemorava como se eu fosse
uma stripper. Joguei, por fim, a cueca no rosto dela, que rodopiou no dedo.
Aproveitei para escovar os dentes antes de entrar na banheira.
— Já falei que sua bunda é uma delicinha? — Pietra resolveu que era
prudente me dar um tapa na bunda.
— Obrigaru — resmunguei com a boca cheia de espuma.
Ela desviou a atenção de mim só para ver o celular que tinha recebido
uma mensagem. Enxaguei a boca e peguei o copinho para fazer o bochecho
com o enxaguante bucal.
— Bernardo, que porra é essa?
Pietra gritou. Ela não só gritou. Ela berrou. Algo que não fazíamos ali,
porque era um segredo tudo o que acontecia no quarto. Mas ela pareceu se
esquecer desse detalhe e vir para cima de mim, estapeando o copinho na
minha mão.
— O que foi? — Cuspi tudo na pia, sem entender nada.
— O que você está fazendo? — perguntou, os olhos quase saltando de
seu rosto.
— Fazendo um bochecho.
— Com o meu coletor menstrual?
Paralisei, sem conseguir entender.
— O que é um coletor... — Parei de falar, porque o nome já era bem
explicativo. — O copinho?
Apontei para o objeto que descansava na pia.
— Há quanto tempo você está usando isso?
— Umas duas semanas, eu acho. Desde que você colocou tudo aqui.
Pietra começou a rir alto, tão alto que até se dobrou sobre os joelhos.
Eu realmente tinha usado aquilo por semanas, duas vezes ao dia.
— Bernardo, pelo amor de Deus! — Lágrimas escorriam por seus
olhos. Ela estava até sem fôlego. — Você pode construir foguetes e não sabe
o que é isso?
Eu estava dividido entre rir com ela ou escovar meus dentes novamente.
Ou duas. Ou sete vezes.
— Eu achei que era um copinho reutilizável, para salvar golfinhos,
tartarugas ou sei lá.
Pietra me abraçou, o corpo ainda tremendo pelas risadas.
— Oh, lindo... — A forma como me chamou, fez até com que me
esquecesse do que tinha feito. — Acho que você caiu na maior amarração de
amor da história.
Ela continuou abraçada comigo, acariciando minhas costas para me
consolar.
— Tudo bem, não deve ser tão ruim assim ficar o resto da vida com
você.
Aquele olhar que Pietra me deu, nem em mil anos eu esqueceria. Foi o
momento em que ela soube que aquilo entre nós poderia ser mais do que
real, poderia ser algo duradouro. Algo ao qual fizesse sentido lutar.
Beijei o topo de sua cabeça e, para não criar um clima estranho entre
nós, a segurei pela cintura e entrei com ela na banheira. Sentei e estiquei
minhas pernas, a água quente fazendo milagres por meus músculos doloridos
após uma noite em claro repensando que eu tinha perdido a garota que
amava, que agora estava ali, engatinhando na água até ficar na minha frente.
Eu conhecia aquele olhar malicioso. Sabia o que viria a seguir.
Só não esperava que fosse um alarme insuportável, soando tão alto que
Pietra se afastou em um pulo, tapando os ouvidos com as mãos.
— É o alarme de incêndio — falei, em alerta.
Ergui meu corpo da banheira e puxei Pietra comigo.
— Puta que pariu!
Peguei a toalha e enrolei em seu corpo, puxando outra para enrolar em
minha cintura. Pietra estava trêmula e eu precisei pegar sua mão e a primeira
camiseta que estava mais próxima no closet.
Pensei em pedir para ela se vestir, mas o alarme ficou ainda mais alto e
eu concluí que deveríamos sair dali antes que fosse tarde demais.
Abri a porta com tudo e puxei Pietra comigo e foi ali que vi quatro
pares de olhos no corredor. Pérola e Bruno estavam na porta do quarto da
minha irmã. Ele estava de cueca, Pérola de lingerie. Eles eram observados
pelos olhos arregalados de meu pai, de mãos dadas com Helena, que vestia
uma camisola preta.
Olhei para Pietra e seu rosto estava pálido, seu corpo molhado e a
toalha sendo segurada pela mão que não estava entrelaçada à minha.
Existiam coisas que eram impossíveis de serem explicadas. Nós todos
naquele corredor, era uma delas.
Mentiras eram coisinhas engraçadas.
Nós as contávamos todo momento e sabíamos o quão prejudicial
podiam ser, mas acreditávamos que tínhamos o poder de comandar nossas
vidas e ir caminhando pela corda-bamba.
Até um incêndio no décimo quinto andar fazer com que tudo fosse
pelos ares.
— O meu irmão? Isso é sério? — Pérola gritou na escada de
emergência.
Eu estava sem ar. Fazia um mês que não pisava em uma academia,
quanto mais descer lances e mais lances de escada com fumaça tóxica e
desespero no peito. Era irracional ter mais medo da minha amiga do que de
um incêndio?
— Pérola, continua descendo e poupa seu oxigênio — Bernardo a
cortou.
Precisava falar que ele era muito corajoso por estar nos guiando e ainda
segurando minha mão. Eu já teria corrido para longe se não fosse ele. Estava
com medo da cara de Pérola e a de Gael também era péssima.
— E você, hein? Que grande falsa, Helena! — Pérola não se aguentava
quieta.
— Pérola, continua descendo. Vamos conversar lá embaixo.
Decidi não abrir a boca nunca mais, porque Gael estava sério de uma
forma que nunca vi.
Encontramos com outras famílias que também evacuavam o prédio e
em ordem, com a ajuda dos bombeiros, fomos até a rua.
Respirar ar puro foi um acalento para meu corpo trêmulo.
— Está tudo bem?
Bernardo segurou meu ombro e eu assenti prontamente. Alguns
paramédicos estavam a postos, mas não foi necessário. Fiquei ao lado de
Bernardo, que era o único que não me assustava naquele momento. Porém,
não demorou até que Gael e Helena se aproximassem, trazendo Pérola e um
envergonhado Bruno com eles.
— Ok, podemos falar sobre isso? — Pérola falou alto, apontando para
nossa rodinha.
A situação era caótica. Bernardo e eu estávamos de toalha. Helena
estava com a camisola mais indecente que já vi alguém usar. Gael era o mais
vestido de todos nós. E Pérola que também não estava em condições de
julgar, era a que mais surtava.
— O que você estava fazendo com nosso porteiro no quarto, Pérola? —
Gael apontou para Bruno, que tentava tapar o volume da cueca fazia dez
minutos.
— E o que você está fazendo com sua advogada no quarto, pai? — ela
falou três vezes mais alto.
Bernardo respirou fundo e puxou minha mão novamente para a dele.
Algo que não passou despercebido para Pérola.
— Essa é a maior traição que já vi na minha vida. — Seus olhos eram
pura decepção para nós.
— Amiga, eu...
— Não fala comigo! Você prometeu para mim que não ficaria com ele!
— Você a fez prometer isso também? — Bernardo deu um passo para
frente, falando sério com a irmã. Nunca o vi falar assim com Pérola.
— Ela... Ela também te fez prometer? — perguntei.
Ele assentiu.
— Qual é o seu problema, Pérola? — Agora eu fiquei brava.
Dei dois passos e senti a mão de Helena segurar meu ombro.
— Vocês não se suportam. O que você iria querer com meu irmão,
Pietra? Você troca de cara como quem troca de calcinha, ele é a porra de um
virgem bobo!
Eu juro que senti vontade de avançar em Pérola e esfregar seu rosto no
chão, mas lembrei que ela estava grávida e eu não poderia fazer isso. Mas
era só esse motivo que me segurava mesmo.
— Será que você consegue ter um pouco mais de respeito com sua
amiga? Ou ela só é interessante para você enquanto lambe o chão em que
você pisa? — Bernardo estava perdendo a paciência.
Eu via a forma como suas costas estavam vermelhas. Ele parecia pronto
para viver um Hulk, só que vermelho.
— Vamos ver então se você vai continuar a defendendo depois que ela
acabar com você, brincar com seu coração e te deixar no chão.
— Pérola, se acalma. Não é para tanto. — Bruno segurou a cintura de
Pérola, afastando-a de Bernardo. Eles estavam prontos para se
engalfinharem. — E eles se gostam, sim.
— Você sabia disso? — Os olhos irados de Pérola agora foram
direcionados para Bruno.
— Sabia. E antes Bernardo, do que o seu pai.
Eu quis cavar um buraco com minha própria testa naquele momento.
Quis que começassem a revolução das máquinas e os robôs
dominassem o mundo.
Quis que a porra de um meteoro caísse bem no meio do meu rabo
daquele exato momento.
— O que você fez com meu pai, Pietra?
Ninguém conseguiu segurá-la a tempo e, quando vi, Pérola já me
chacoalhava para todos os lados.
— Pérola, calma! Você não pode ficar nervosa. — Tentei segurá-la, mas
não conseguia, porque ou era minha toalha ou ela.
— O que você fez com a minha amiga?
Agora seu ódio era voltado para Gael.
— Nada! Eu não fiz nada! — O coitado estava desesperado.
— Você consegue ser sincera uma vez na sua vida? — Pérola voltou
sua atenção para mim.
— Eu... Eu... beijei o seu pai. Uma vez. Juro! — Precisei confessar com
os olhos fechados, porque estava com muita vergonha. De Gael, da minha
amiga, dos vizinhos que escutavam toda aquela discussão e principalmente
por Bernardo escutar aquilo. — Ele não fez realmente nada. Eu que confundi
tudo... porque eu... — comecei a gaguejar. — Eu gostava dele.
Consegui deixar Pérola quieta por mais que dez segundos. Foi uma
vitória.
Busquei o olhar de Bernardo, que estava fixo no chão. Sua mão ainda
continuava entrelaçada à minha, mas eu me senti péssima por falar aquilo.
— Como assim, gostava? Você não disse que só estava bêbada? —
Gael perguntou.
Queria chorar. Tipo, muito. Rios de lágrimas. Encher uma piscina.
— Eu fiz um combinado com Bernardo. Eu o ajudaria a conquistar uma
professora que ele gostava e ele me ajudaria a ficar com você — confessei,
meu coração apertado.
Será que estava tendo um infarto?
Gael abriu a boca e depois fechou. E quando resolveu falar, seu olhar
era direcionado para Bernardo.
— Bernardo, isso é sério demais. Ela está brincando com você.
Neguei com a cabeça, sem conseguir segurar a lágrima que fazia meu
olho arder. Eu poderia ouvir qualquer coisa, menos que brinquei com
Bernardo. Porque não fiz. Nunca fiz. Ele sabia de tudo desde o começo, foi a
única pessoa que não menti uma vez. Em absolutamente nada.
— Eu não menti para ele. — Meu choro se intensificou.
E a única pessoa que me ofereceu colo naquele momento, foi Helena.
Ela puxou meus ombros e beijou minha têmpora.
— Todo mundo mentiu para todo mundo aqui. Culpar Pietra por todas
essas mentiras é cruel — Helena me defendeu com calma na voz, habilidade
adquirida provavelmente em sua profissão.
Eu teria medo de desafiá-la em uma corte.
— Ah, mas faça o favor! — Pérola começou a rir, exaltada. — Não
entendeu que ela queria pegar seu homem, não?
— Pietra me falou desde o primeiro momento sobre o que sentia, assim
como depois também falou sobre como esse sentimento não era real.
Funguei e me senti protegida em seus braços. Arrisquei olhar para
Bernardo e ele estava desolado. Eu imagino que não deva ser nada fácil
escutar aquelas coisas sobre a garota da qual gostava.
— Você sabia disso? — Gael perguntou.
— Sabia. Ela é uma boa garota, Gael. Só estava confusa.
— Uma boa garota? Ela tentou pegar meu pai e depois que não
conseguiu foi dar para meu irmão. Isso é coisa de vagabunda!
Toda a raiva que eu sentia de Pérola cinco minutos atrás, virou
decepção. Segurei o braço de Helena que repousava em meu peito, temendo
que eu caísse no chão.
Pérola era a pessoa que eu mais amava. Ela era uma irmã, era a pessoa
que eu confiava. Daria tudo que tinha para fazê-la feliz. E no primeiro erro
que cometi, não tive o mínimo de afeto ou compreensão.
— Sabe o que é coisa de vagabunda, Pérola? Enganar o próprio pai
dando durante meses para o melhor amigo dele. — Bernardo nunca elevava
o tom da voz e vê-lo fazer isso me deixou em choque. — Coisa de
vagabunda é engravidar desse homem e agora usar um cara legal como
prêmio de consolação, já que você nem queria sair com ele, porque ele é
pobre, não era?
Bernardo foi longe demais. Além de todos os limites. Ele viu o limite e
o chutou para Marte.
Pérola perdeu todo seu entusiasmo de arranjar briga comigo e começou
a chorar.
O abraço de Helena se tornou frio, Bruno estava claramente
decepcionado.
— Que amigo? — Foi tudo o que Gael perguntou.
Pérola negou com a cabeça.
— Que amigo? — repetiu entredentes, ele estava a um pingo de surtar.
Pérola tapou o rosto com as mãos, chorando alto.
— Que amigo, Pérola? — Gael berrou.
Éramos a atração da rua. Ninguém mais dava a mínima para o fogo que
consumia o apartamento lá em cima. A novela brasileira aqui era bem mais
interessante, mesmo que não entendessem uma palavra.
Sem bem que, pelos olhares, a maioria estava entendendo sim.
— Tato... — A voz de Pérola era um miado.
— Você está grávida dele?
A forma como Pérola caiu na calçada, abraçando as pernas e chorando
com total descontrole, confirmou tudo o que ele precisava saber.
Gael perdeu qualquer controle e começou a chutar uma árvore. Uma.
Duas. Três. Incontáveis vezes, até desabar no chão. Bernardo foi o primeiro
a ir ajudá-lo, porque Helena e eu estávamos paralisadas.
Bruno tentou tirar Pérola do chão, mas ela recusou qualquer contato
com ele. Respirei fundo, guardando a mágoa e aquela decepção absurda que
sentia de Pérola, para ir até ela. Ela podia não me amar mais, mas eu a
amava. E sempre amaria.
Ajoelhei na sua frente e toquei no braço direito. Pérola recuou com o
toque, mas ergueu a cabeça. Vi seus olhos vermelhos e inchados, o rosto
lavado pelas lágrimas.
— Sai de perto de mim.
— Não — fui firme. — Você pode me odiar agora, está tudo bem. Só
não pode querer que eu te deixe sozinha nesse momento.
— Sabe o que eu mais amava em você, Pietra? — Pérola inspirou o ar,
mas acabou só fazendo um barulho alto com o nariz entupido. — Sua
sinceridade.
— Eu não quis te magoar, amiga.
— Não somos mais amigas. Estou falando muito sério com você. —
Sua mão tocou a minha para me empurrar, repelindo o toque. — Você mexeu
com as duas pessoas que eu mais amo na minha vida. A única coisa que pedi
para que não fizesse.
— Eu estou apaixonada pelo Bernardo.
Comecei a chorar, meu peito ardendo pela angústia.
Eu tinha mentido, tudo bem. Mas porque diabos eu não poderia ter o
direito de gostar de Bernardo? Por que ele era superior? Mais inteligente?
Mais rico? Se ele me aceitou do jeito que eu era, com todo meu passado, por
que os outros também não conseguiam ver isso?
— A única pessoa por quem você é apaixonada é por você mesma,
Pietra. — Ela soltou um risinho de puro escárnio. — Porque se tivesse o
mínimo de respeito pelo meu irmão, saberia o quão doente está sendo de
expô-lo nessa situação, depois de tudo o que fez com meu pai.
— Foi só um beijo, Pérola.
— Faz um favor para mim?
O tom de voz calmo de Pérola encheu meu coração de esperanças.
— Sim, claro!
— Não fala mais comigo. Por favor, pega as suas coisas e vai embora
da minha casa.
Tombei para o asfalto, como se Pérola tivesse me dado uma bofetada.
Talvez se ela tivesse dado fosse melhor do que isso.
Não sei o que Bernardo falou para Gael, mas agora ele parecia ainda
mais descontrolado. Ele se aproximou e pegou Pérola pela mão, obrigando-a
a levantar do chão.
Helena tocou meus ombros, desviando minha atenção do chão. As luzes
avermelhadas do carro de bombeiros era a única coisa que eu conseguia
focar. Era a única coisa que parecia indicar que ele aquele momento era real.
— Posso te levar para a minha casa?
Neguei com a cabeça.
— Querida, acho melhor você deixá-los sozinhos um pouco. Vem
comigo, vem.
Helena me ajudou a levantar do chão, arrumando o nó da toalha para
que ninguém visse nada a mais ali. Seu braço sustentou minha cintura para a
calçada.
— Pietra?
Ergui os olhos ao escutar meu nome, cheia de esperanças. Era Bruno.
— Oi.
— Você não fez nada de errado, viu? — Tocou meu braço, fazendo um
carinho de leve ali. Entrei em pânico que Pérola visse aquilo, ou Bernardo,
ou Gael, ou qualquer um que pudesse ver e julgar que estava fazendo algo de
errado. — Não é vergonha nenhuma se apaixonar por alguém.
Bruno deu um beijo em minha testa, para depois se despedir com um
aceno. Helena continuou me abraçando até que conseguiu um táxi.
Espiei Bernardo, vendo que conversava dessa vez em um tom mais
controlado com Pérola e Gael, que parecia um pouco menos próximo de um
AVC. Helena abriu a porta de trás do carro, oferecendo espaço para que eu
entrasse.
Bernardo ergueu os olhos e deixou o pai e a irmã de lado para correr até
onde eu estava.
— Onde está indo?
Tinha uma preocupação genuína em seus olhos, que fez com que eu
tivesse vontade de chorar mais uma vez.
— Para a casa da Helena.
— Mas...
— Fica com sua família hoje, eles precisam de você. — Toquei em uma
mecha de seu cabelo.
— A gente se vê amanhã? — Bernardo esperou minha confirmação,
que não consegui dar.
Ele se aproximou do meu rosto e depositou um beijo de leve. Doeu
beijá-lo, porque eu sentia como se tivesse o machucando a cada segundo que
deixava ficar perto de mim.
Acariciei sua bochecha e me afastei. Seus olhos estavam vermelhos,
talvez não tanto quanto os meus, mas era algo significativo. Fomos do
paraíso ao inferno naquela noite. Eu descobri que sentia coisas por ele que
nunca senti e que não tinha problema algum admitir isso; desde que aquilo
me desse mais filmes de dinossauros, risadas na madrugada, uma conexão
verdadeira e muitos mais dias ao lado de Bernardo. E agora estava eu ali,
olhando para ele como se fosse a última vez que o veria.
Entrei de uma vez e recusei me torturar ao olhar o carro se afastar de
Bernardo. Tudo o que ouvi hoje já foi mais do que o suficiente para acabar
comigo.
Helena não soltou a minha mão até que entrássemos em seu
apartamento. Não ficava tão longe do de Gael, nem era tão grande quanto.
Mas era bonito, bem decorado, com móveis requintados e cores claras.
Ela mostrou o quarto extra onde eu poderia dormir. Emprestou-me um
pijama e disse que amanhã, se quisesse, ela poderia buscar minhas coisas e
eu ficaria ali até que pudesse voltar para casa.
Até Helena já tinha entendido que Pérola me expulsou de sua vida, mas
eu ainda tinha a esperança de que ela só estivesse com raiva de mim e que
amanhã tudo melhoraria.
Pedi para ligar para minha avó, porque era a única pessoa com quem eu
poderia contar. Helena me deixou com o telefone sem fio da sala e antes de
ir dormir, beijou minha testa e sussurrou:
— Você não é nada daquilo do que ela falou. Seu coração é lindo,
Pietra. E ele pode amar quem ele bem entender.
Esfreguei os olhos assim que ela fechou a porta. Eu não parava de
chorar e aquilo era frustrante, porque nunca fui assim.
Demorei um pouco a conseguir fazer a ligação internacional e enquanto
escutava os toques da chamada, pensei se não era muito tarde para
incomodar minha avó, mas ela atendeu depois de quatro toques.
— Oi, vó.
— O que aconteceu, meu amor?
Ela precisou de um segundo para perceber que algo estava acontecendo.
E então eu decidi não esconder nada. Eu nunca mais queria esconder nada de
ninguém.
— Vó, eu estraguei tudo.
Contei sobre absolutamente tudo. Sobre Gael, sobre o beijo, meu
combinado com Bernardo. A forma como me diverti com ele nessas férias,
como se tornou o meu garoto preferido e a forma grandiosa como me
ensinou a sentir. Sem medo, sem barreiras, de coração aberto.
Contei sobre a noite desastrosa, sobre o que Pérola me falou e a forma
como me expulsou de sua vida. Sobre como eu sentia que não tinha mais
chão debaixo de meus pés.
— Venha para casa, Pipi. Você nunca estará sozinha enquanto eu
existir nesse mundo.
Solucei, meu peito tremendo por puro desespero. Estava a um passo de
uma crise de ansiedade.
Eu queria demais ir para casa, mas ainda tinha mais uma semana até
meu voo. Algum tempo depois, eu desliguei, agradecendo por minha avó
aturar todo meu choro e desespero. Fui até o quarto de Helena, bati à porta e
entrei assim que ela autorizou.
— Você me ajuda a trocar minha passagem? Quero ir para casa.
Helena assentiu e bateu no colchão ao lado dela, para que eu sentasse.
Meu celular ficou no apartamento, então não conseguimos achar o código
localizador da passagem para que mudássemos, mas Helena acabou
comprando outra para mim. Agradeci várias e várias vezes para ela, jurando
que eu a pagaria assim que pudesse.
Helena me acalmou, conversou comigo, contou muito sobre sua vida,
até confidenciou que não podia ser mãe e isso a deixava muito mal e foi um
dos motivos por qual seu ex-marido a torturava psicologicamente.
Ela nunca poderia ser mãe, mas naquela noite, foi mais mãe do que
minha mãe em todos os anos que convivi com ela.
Dormi na cama dela, recebendo cafuné e sendo mimada. Acho que nós
duas precisávamos disso depois da noite de hoje.
Amanhã seria um dia melhor. Eu acreditava.
Aquela foi a pior noite da minha existência.
Ter falado que a noite que passei no veleiro, depois de Pietra ter me
deixado sozinho, foi péssima tinha sido um completo erro.
Meu pai estava totalmente surtado por conta da gravidez de Pérola e
assim que o prédio foi liberado pelos bombeiros, ele fez com que
vestíssemos uma roupa e nos jogou dentro do carro.
Fomos até a casa de Tato.
E eu jurei que meu pai fosse matá-lo de tanto que bateu nele. Minha
irmã chorava, eu tentava acalmá-la, ao mesmo tempo em que tentava separar
os dois. Tomei um soco de Tato no processo e quase desmaiei.
Nunca tinha visto meu pai tão furioso, ele parecia um animal selvagem.
O rosto de Tato ficou irreconhecível.
Foi triste ver a forma como ele tratou minha irmã. Como se ela fosse
uma grande oportunista que se aproveitou dele para engravidar. Não uma
garota com muito menos que a metade da idade dele. Quem sairia mais
prejudicada nessa história sempre seria Pérola. Sua vida nunca mais seria a
mesma.
Quando retornamos ao apartamento, já no começo da madrugada,
Pérola correu para o quarto, desolada. Ela só chorava e eu não sabia bem o
que meu pai queria que ela fizesse naquela situação. Eles mal se falavam.
— Bernardo?
Meus ombros ficaram tensos ao escutá-lo me chamar naquele tom sério.
Estava na metade do corredor e retornei à sala.
— Sim?
— Senta aqui.
Resolvi que não era um bom dia para desafiá-lo e fiz o que pediu.
Sentei na poltrona ao lado do sofá onde ele estava.
— Onde está a Pietra?
— Na casa da Helena.
Ele assentiu, pensativo.
— Imaginei que você gostasse da Pietra, eu só não imaginei em que pé
estava a relação de vocês. E eu estou preocupado, porque quem vai sair
perdendo é você, filho.
Eu ri, lutando para controlar a raiva que sentia.
— Vocês me consideram tão patético assim? Como se fosse um coitado
que nunca será amado? Alguém que não merece ter uma relação verdadeira?
Eu não sou uma criança, pai.
Ele endireitou os ombros, esfregando a nuca diversas vezes antes de
erguer os olhos.
— Pietra é muito esperta, ela dobra qualquer um. Ela me convenceu a
acreditar no que ela queria, só com uma carinha inocente. E me preocupa o
que ela faria com você.
— O que ela faria comigo? — debochei. — Desde o começo de tudo,
ela foi sincera comigo. Ela contou sobre o que sentia por você, sobre seu
passado, sobre suas limitações emocionais. Eu entrei nessa com os olhos
bem abertos e, ainda assim, nós nos apaixonamos.
— Filho, garotas como Pietra se apaixonam e desapaixonam em um
piscar de olhos.
— Garotas como Pietra? — Perdi a paciência e comecei a subir de tom.
— Porque vocês falam como se ser livre, fazer o que quer e ser feliz consigo
mesma fosse uma coisa ruim?
— Porque eu também já me apaixonei por uma garota assim e não
terminou bem. Sabe quem paga por isso? Você e sua irmã, porque essa
garota é a mãe de vocês.
Eu odiei meu pai naquele momento. Quis gritar para que ele retirasse o
que disse. Pietra não era igual a minha mãe. Ela era caridosa, pensava mais
no outro do que em si. Pietra era esforçada, trabalhava demais para ser
alguém na vida. Ela não tinha nada a ver com a minha mãe.
— Não é verdade.
— Você tem um futuro brilhante pela frente, não deixe que ela roube
isso de você. E eu só falo isso, porque eu também já estive no seu lugar. Eu
também me apaixonei pela garota mais linda, que fazia com que eu me
sentisse nos céus. Mas isso acaba no momento que o interesse delas tem fim.
E a realidade depois, é dura, cruel e muito dolorosa.
Levantei do sofá e atravessei o corredor como um raio. Bati a porta tão
forte que as janelas até tremeram dentro do quarto.
Joguei meu corpo na cama e apertei as laterais da minha cabeça até que
aquela pressão aliviasse. Choraminguei naquela cama por minutos,
perguntando o que Pietra e eu tínhamos feito de tão errado para todos.
Peguei o pijama de cetim dela, o cheiro era daquele perfume de coco,
doce, igual a ela.
Pietra não era como a minha mãe. Era impossível que fosse.
— Bê?
Ergui a cabeça e encontrei minha irmã parada à porta.
— Posso dormir com você?
Ela caiu no choro. O estado de Pérola estava assustador. Nunca a vi tão
mal assim, nem mesmo quando descobriu que estava grávida. Seu rosto
estava tão inchado pelo choro que nem parecia com ela.
Estava chateado com ela, pela forma como tratou Pietra, mas eu
também lhe fiz algo horrível. Por isso, assenti. Pérola deitou embaixo do
cobertor, virou o corpo de lado e tocou no pijama de Pietra, que eu ainda
segurava.
— Você mesmo gosta dela?
— Eu a amo, Pérola.
Ela ficou em silêncio, mordendo o cantinho do polegar.
— Bem, que pena para você. O sofrimento é certo.
— O papai falou que Pietra é igual a nossa mãe.
Limpei uma lágrima que escapou pela bochecha.
Pérola colocou as duas mãos debaixo do rosto e suspirou, lamentosa.
— Não, aí também já é exagero.
Fiquei aliviado por saber que ela concordava. E lembrei que precisava
falar algo para minha irmã.
— Eu fui a Cape May com Pietra. E conheci a nossa mãe.
Seus olhos dobraram de tamanho e a decepção mais uma vez
transpassou seu semblante.
— Vocês são viciados em mentiras.
— Sei que você também foi lá — cortei-a. — E nunca me contou.
Pérola engoliu em seco, provando de seu próprio veneno.
— Como foi?
— Conheci nossos irmãos. Estou falando quase todos os dias com Ryle,
o menorzinho. — Suprimi um sorriso, porque não queria deixá-la ainda pior.
— Ele é muito fofo e se parece tanto comigo.
— Parece mesmo, eu vejo as fotos pelo Instagram dela.
Sempre desconfiei que Pérola não fosse tão desinteressada por nossa
mãe quanto demonstrava. Era sua técnica de autodefesa, com toda certeza.
— Ela não é a megera que pintei na minha cabeça. E acho que vocês
deveriam conversar novamente. A vida dela mudou muito desde o dia em
que você foi lá. Na verdade, tudo mudou depois que você apareceu. Você
transformou a vida dela.
— Eu? — perguntou com a voz falhada.
— Sim. Ela se separou depois disso, focou em ver o quanto tinha errado
conosco. Falando dessa forma, parece que eu a estou defendendo, mas juro
que não. Ela, no fim das contas, é só uma pessoa normal. Que erra tanto
quanto eu, você... ou Pietra — completei, com muito cuidado.
Pérola choramingou.
— Ela traiu minha confiança, Bê. Pietra é a minha melhor amiga, eu
daria minha vida por ela e...
— Mas não soube dar nem a chance de se explicar — interrompi seu
desabafo, porque não conseguia aceitar toda aquela situação.
— Pietra tinha todo um plano para conquistar nosso pai, Bernardo. E
depois que não conseguiu, ela te usou como estepe.
— Ela não me usou como estepe. Por que vocês não conseguem
entender que o que a gente tem é real?
Perdi a paciência mais uma vez, inconformado com a forma que eles
julgavam Pietra sem nem se importar. Ela estava em nossa família há anos e
ninguém se importou com isso antes de a tratarem daquela forma horrorosa.
— Você está encantado por ela, Bê. Não vai enxergar. — Pérola retirou
o pijama de Pietra das minhas mãos. Tentei pegar de volta, mas ela só o
jogou no chão. — Se nosso pai tivesse dado a mínima chance para ela, você
acha que a Pietra teria ficado com você?
Fechei a mão, apertando até que a unha machucasse a palma.
Eu não tinha uma resposta para isso, porque era bem óbvio.
Pérola deu um beijo na minha bochecha e dormiu abraçada comigo,
enquanto aquela maldita perguntava ia e voltava na minha mente.
Ela teria?
Não fazia ideia de quantas horas eu dormi, só sei que foram muitas.
Tantas que quando acordei não tinha mais sinal de Pérola e só havia um
barulho no meu banheiro, de vidro batendo na pia.
Pietra!
Saí correndo da cama, tropeçando na ponta do tapete. Mal tinha
acordado e estava mais tonto do que tudo, mas eu precisava vê-la.
Imagine qual foi minha surpresa por ver Helena em meu banheiro,
recolhendo o perfume, os cremes e as maquiagens de Pietra.
— O que você está fazendo?
Helena deu um pulinho pelo susto e deixou cair um batom de Pietra.
Ela estava com ele no dia em que nos beijamos a primeira vez. Nunca mais
esqueceria o quanto eu gostava daquele batom melequento e brilhoso.
Peguei do chão e não devolvi para Helena.
— Pietra vai embora hoje, estou pegando as coisinhas dela.
— Como ela vai embora?
— É... De avião? — Helena torceu o nariz, confusa.
— Eu sei, Helena. Eu só queria saber o motivo.
— O motivo é bem óbvio, não? — Ergueu o queixo, indicando algo
além do meu banheiro.
Precisei de dois segundos para saber que ela se referia a Pérola e ao
meu pai.
— Onde ela está?
— No aeroporto.
— Eu vou com você.
Levei dois minutos para me arrumar. Foi o tempo só de escovar os
dentes e trocar a camiseta branca pela minha do Jurassic Park. Calcei o All-
Star preto e saí correndo atrás de Helena.
— Onde está indo com essa mala? — Ouvi meu pai perguntar a ela.
— É da Pietra. Ela está indo embora hoje.
Pérola estava no sofá e olhou para a mala com um resquício de tristeza
no, ainda assim, ela não se moveu.
Não dei explicações para nenhum dos dois e segui Helena, ainda
agarrado àquele batom. Entrei em seu carro, uma BMW branca muito bonita,
e fiquei receoso em conversar com ela. Permaneci por um bom tempo com
meus olhos grudados no chão, brincando com a embalagem do batom nas
mãos.
— Desculpe por ter mentido para você.
Desviei os olhos para a figura bonita da namorada — ou o que fosse —
do meu pai. Eu a conhecia há muitos anos, Helena costumava frequentar
meus aniversários de criança. Ela e meu pai tinham uma relação de amizade
de anos e bem, eles até que combinavam como casal.
— Tudo bem, sei que foi por um bom motivo.
— Nenhum motivo é suficiente quando se causa dor.
Helena era muito calma, o tipo de pessoa que parecia não ter apreço
nenhum em perturbar a vida de outra pessoa. Imaginava que depois de tanta
coisa que passou em seu casamento, ela não quisesse um relacionamento
conturbado e ainda assim, ali estava ela no meio da loucura que era a vida do
meu pai, com Pérola, Pietra e eu.
— Pérola vai aprender a lidar com o relacionamento de vocês.
Dei de ombros. Ah, ela iria... Até porque teria mais coisas para pensar
nos próximos meses.
— E você está bem com tudo isso?
— Sim. Você é legal.
Um sorriso apareceu no rosto bonito dela, largo o suficiente para que
pequenas ruguinhas aparecessem na lateral de seus olhos.
— Pietra realmente gosta de você, Bernardo. Tenho 100% de certeza
disso. Sei que deve ter escutado muitas coisas ontem, mas deixe seu coração
te guiar, tudo bem?
Novamente pensei no que Pérola falou e que estava martelando em
minha cabeça desde ontem. Pensei em pedir a opinião de Helena, mas
chegamos ao aeroporto e eu decidi que tinha prioridades maiores do que
aquilo.
Foi um tormento esperar Helena estacionar, mas fui um cavalheiro,
andando em passos de formiga para acompanhá-la. Quis correr por aquelas
malditas esteiras rolantes, mas permaneci ali, fingindo serenidade ao
empurrar a mala de Pietra.
Eu a vi muito antes de Helena. Sentada nas cadeiras do aeroporto, as
pernas dobradas no assento, contando algo nos dedos das mãos. Olhei para
Helena e encarei o seu aceno como minha liberdade. Saí correndo pelo
saguão, quase deixando a mala de Pietra pelo caminho.
Parei na frente dela e vi seu olhar subir dos meus sapatos até meu rosto.
— Já falei o quanto eu gosto dessa sua camiseta do Jurassic Park?
Pietra sorria e ver aquilo, aliviou meu coração. Ontem ela estava
destruída, lutando contra a própria tristeza para tentar explicar algo para
Pérola que nem tinha explicação, porque eram suas escolhas e sua vida.
— Obrigado.
— Me tira uma dúvida? — Pietra abaixou os dedos, desistindo de sua
contagem. Acenei, consentindo. — Você tem uma coleção dessa camiseta ou
usa a mesma toda hora?
— Acha que sou um porco? — Deixei a mala na sua frente e sentei na
cadeira do lado. Pietra cutucou minhas costelas com o cotovelo. — Tenho
várias.
— Você nunca me decepciona, gênio.
Fiquei triste por escutar aquilo, porque eu sentia que ontem eu a
decepcionei. Poderia tê-la defendido de inúmeras outras formas contra tudo
o que ouviu de Pérola.
— Não vai embora, Pietra.
Um mínimo sorriso apareceu em seu rosto e o corpo virou um
pouquinho em minha direção. O braço apoiado no encosto da cadeira para
suportar a cabeça.
— Vai morrer de saudades?
Ela parecia brincar, mas nos seus olhos dava para ver as lágrimas
brilhando.
— Um pouco. Bem de leve.
Pietra sorriu e o mundo parou. Éramos nos dois, naquela sensação
confortável que aparecia sempre que estávamos juntos.
— Eu preciso voltar para minha realidade, Hawking. E você também
precisa voltar para a sua.
Fechei os olhos, tentando bolar uma estratégia boa para convencê-la de
que poderia dar certo, mas Pietra nem me deixou falar e continuou:
— Além de que, sua família precisa de você agora. Pérola precisa de
você mais do que nunca. E você é um bom irmão e vai se sair ainda melhor
no papel de tio.
— Aquilo que ela te falou...
— Ela estava nervosa, Bê. Eu entendo. Na situação dela, eu também
reagiria do mesmo modo.
— Não reagiria. — Não mesmo! Porque pensava nos outros antes de
pensar em si própria. — Por favor, fica mais um tempo.
Ela recusou com um balanço de cabeça.
— Eu não posso.
— Então vou voltar com você.
Dane-se as propostas para o doutorado ou o emprego da NASA. Eu
poderia facilmente aceitar ir para qualquer lugar onde estivesse com Pietra.
Poderia terminar minha graduação no mês que vem, arrumar um emprego
legal e entrar em um programa de doutorado no Brasil. Imaginei que ela
tivesse percebido isso pela forma desesperada como falei.
— Não. Não vai.
— Nós podemos ficar junt...
— Não vamos, Bernardo.
Sua voz era firme e muito segura. Não tinha hesitação. E a sensação foi
como uma brasa afogueando todo o corpo, precisamente meu coração.
— Por que não? — Minha voz quebrou.
— Porque algum dia isso será uma lembrança incrível para nós. Mas se
insistirmos em ficarmos juntos agora, tudo o que existirá ao final serão
mágoas e decepções. Você precisa estar com a sua família agora, precisa
focar na sua carreira. E eu... Eu acho que preciso ficar sozinha.
— Mas eu gosto de você, eu quero ficar com você.
Pietra tocou delicadamente na minha bochecha, afagando a região.
— Eu também gosto de você, gênio. E é por isso que nunca vou quebrar
seu coração. Nunca, nunquinha.
— Então por que sinto tudo quebrado aqui dentro?
— Porque o sentimento é verdadeiro. — Uma lágrima desceu por sua
bochecha, que logo a limpei. — Meu coração também está em cacos, mas eu
sei que é o certo.
Eu não entendia. Não aceitava. E não queria ficar longe de Pietra.
— Posso perguntar uma coisa?
— Claro.
— Se meu pai tivesse te dado alguma chance, você ainda teria olhado
para mim?
O semblante de Pietra ficou sério e ela fez uma careta, depois coçou a
nuca, pensativa demais.
— Foi a Pérola que falou isso para você, não foi?
— Foi.
Ela suspirou com um misto de cansaço com tristeza. Eu odiava saber
que estavam brigadas, porque sabia que a conexão que elas tinham era
verdadeira, elas eram irmãs e se amavam. Não queria que tudo tivesse
chegado a este ponto.
— Bem, são inúmeras possibilidades. Mas, supondo que seu pai não
tivesse me afastado no seu aniversário, acho que agora eu estaria muito pior
do que estou. Porque teria percebido sozinha, depois de ter feito uma grande
merda, que eu só estava tentando preencher um vazio em minha vida, assim
como faço com cada homem que conheço. E aí seria irreversível.
Eu não sei que tipo de resposta eu esperava que Pietra me desse, mas
essa foi uma surpresa, porque foi a coisa mais sincera que ela disse. Sim, ela
provavelmente teria ficado com meu pai e se arrependido disso depois, mas
em nenhum momento ela negou que teria feito.
— É, séria péssimo... — Tentei falar qualquer coisa para mascarar a
tristeza.
— E sabe o que seria péssimo de verdade? Que se eu não tivesse ficado
obcecada pelo seu pai, eu nunca teria conhecido um garoto que conseguiu
preencher cada lacuna da minha vida. Ele foi meu inimigo, meu parceiro,
meu amigo, ele me deu seu melhor, mesmo quando eu não merecia. E ele fez
com que eu me apaixonasse por cada mínimo detalhe. Um cabelo
bagunçado, uma cama macia, todo seu arsenal de filmes de nerd, até mesmo
por uma camiseta velha. Então, Bernardo, eu não me arrependo por ter
pensado que gostava do seu pai, porque isso me trouxe você. E você pode
não ter sido meu primeiro amor, mas foi o amor que tornou todos os outros
irrelevantes.
Comecei a rir, a engasgar, a quase chorar. Tudo ao mesmo tempo. Puxei
Pietra para mim, beijando sua boca várias e várias vezes, desejando que cada
beijo a deixasse mais próxima de mim. Que a fizesse desistir daquela ideia
maluca de ir embora.
— Namora comigo, por favor. Por favor! Por favor!
E a cada “por favor”, eu lhe dava um beijo. Pietra começou a rir e
limpou uma lágrima do cantinho dos olhos.
— Me promete uma coisa?
— O quê? — indaguei, desesperado, agarrando qualquer coisa que me
fizesse ficar com ela.
— Que um dia você vai repetir isso para mim, só que em uma situação
bem diferente dessa aqui.
— Pietra... — Voltei a implorar, porque sabia que ela não desistiria.
— Eu não quero namorar você se for para te tomar coisas, para ser um
fardo. Eu quero que você conheça mais garotas e tenha outras experiências,
que seja meu Stephen Hawking, meu Leonardo da Vinci, Beyoncé ou
qualquer outro gênio que você gostar. E, principalmente, que volte a
acreditar que sua irmã e seu pai sempre vão querer o seu melhor. E se depois
de tudo isso, você ainda pensar em mim, a gente conversa.
— Eu não quero nada disso...
— Você é o meu garoto preferido de todos. Nunca se esqueça disso, Bê.
Pietra me beijou e daquela vez foi diferente. Porque eu sabia que tinha a
perdido, logo no momento em que estive mais perto de tê-la. Nossos narizes
se encostaram e ela fez um movimento mínimo, um carinho delicado e que
aqueceu meu coração.
— Até qualquer dia, Bernardo Adler.
Dei um selinho nela, recusando a ideia de deixá-la ir. Mas seu sorriso e
a forma como me olhava, acabou por acalmar meu coração.
Pietra queria o melhor para mim. Eu queria o melhor para ela.
E talvez ela tivesse razão que aquele não fosse o melhor momento para
nós dois.
— Até qualquer dia, Pietra Rossi.
Dois meses depois
Três meses depois eu não tinha mais agenda nem para tomar um café da
tarde com a minha avó. Mentira, para isso eu tinha.
Mas a minha agenda estava realmente uma loucura. E hoje eu tinha a
vida que um dia foi um sonho para mim.
Eu tinha meu próprio podcast agora. Quatro milhões de seguidores.
Dinheiro para fazer minha avó não precisar mais dar aulas particulares e,
principalmente, eu fazia o que me fazia feliz. Descobri que gostava de falar
sobre amor. Histórias engraçadas, tristes, amores impossíveis. Até comecei a
escrever um livro. Fui a vários programas na TV Globo e até pedi ao vivo,
para o Boninho me colocar no BBB.
Acho que ele não me quis, porque já estávamos chegando ao final do
ano e nada do meu convite.
Formei na faculdade, saí da produtora para trabalhar para mim, com as
minhas ideias. Eu tinha até uma assistente agora! Que também era minha
editora, minha fotógrafa e tudo mais, mas eu juro que pagava pelo acúmulo
de funções — e ainda jogava na cara do Rubinho, porque ele não fez tal
coisa comigo.
Eu estava bem cansada fisicamente, mas feliz. E ainda mais feliz de
estar tão cansada, que não tinha tempo para pensar em nada que fosse meu
trabalho. Até meu projeto fitness ficou em segundo plano.
Eu ainda sentia falta de Bernardo todos os dias. De Pérola também. Mas
Bernardo ainda estava na minha mente ao acordar, enquanto gravava algum
vídeo, quando via algum filme que sabia que ele ia gostar. Sentia muita falta
de estar com ele.
Eu pensava em Bernardo em todos os momentos do meu dia. Nos
felizes, nos tristes, até quando eu estava comendo, como agora.
Estava com Iasmin e uma influencer com quem acabei fazendo
amizade, comendo em um restaurante que estava em alta por ter sido
inaugurado há pouco tempo, no Recreio. Os drinks da casa eram inspirados
em filmes famosos. O meu era de Star Trek e foi inevitável me lembrar de
Bernardo.
— Não, mas ele é um gato. O único problema é que mora com a mãe —
Isadora, minha nova amiga, comentou sobre Bento, o assunto do momento
em nossa mesa.
Bento era DJ e agora estava começando a bombar na Internet.
— É só gemer baixinho, para de ser boba. — Iasmin brincou e nos fez
rir.
Eu ri, apenas para não ser a chata do rolê. Mas a realidade era que não
tinha interesse nenhum na conversa. Queria ir para casa, deitar e recomeçar
amanhã mais um dia de trabalho.
— Se fosse com aquele ali, eu não me importaria de ter mãe, pai, filho,
papagaio e periquito em casa. — Isa apontou para algo atrás de mim.
As meninas olharam e começaram a comentar sobre o quão gostoso era
o homem.
Não fiz questão de olhar, porque tinha certeza de que não agregaria
nada para mim. E também, não era como se eu tivesse algum interesse,
porque o único cara que fui tentar ficar depois de tudo o que aconteceu com
Bernardo, acabou ficando sozinho em um date. Eu simplesmente levantei da
mesa e fui embora para casa, dormir depois de um beijo péssimo, em que
não senti absolutamente nada que não fosse culpa.
— Pietra?
A voz conhecida fez meus pelos do braço se arrepiaram.
Isadora derrubou o drink nela mesma.
Iasmin entrou em pânico.
Ah, era dele então que elas falavam...
Virei o corpo para trás e não foi surpresa ver Gael ali. Seu sorriso
estava estampado no rosto, muito diferente da última vez em que o vi. Ele
ainda era um monumento dourado, com braços fortes e ruguinhas charmosas
nas laterais dos olhos.
— Gael! Tudo bem?
Levantei da cadeira e fiquei um pouco sem jeito de como cumprimentá-
lo, mas foi ele que se aproximou e me deu um abraço.
Sentia saudades de Gael e de nossas conversas. Das corridas. Até dos
puxões de orelha.
— Ele é o pai? — Escutei Isadora perguntar para Iasmin.
— Dá para entender a confusão.
Sorri sem jeito para Gael e quis bater em minhas amigas. Olhei para as
duas, fazendo uma careta da fusão de “Vou esquartejar vocês com essa
faquinha de pão” com “Tenham piedade, eu agarrei esse homem em um
banheiro escuro e depois estava dando para o filho dele”.
— Podemos conversar um pouquinho? — Gael pediu e eu assenti.
Peguei minha bolsa e, fuzilando as duas garotas, me afastei da mesa.
O restaurante ficava no alto de uma pedra com vista para o mar. De dia
era mais bonito do que de noite, ainda assim era um clima gostoso. O tempo
estava abafado, como em todo final de dezembro.
Encostei ao vidro que limitava o deck e Gael encostou ao meu lado.
— Não imaginava que te veria aqui. A última vez em que falei com
Helena, ela contou que você estava de mudança.
Considerei melhor começar com algo seguro e inofensivo.
— Sim, eu já me mudei, mas vim resolver algumas coisas do
restaurante aqui e em São Paulo.
Assenti, levemente envergonhada.
— Então você se tornou um sucesso aqui? — Seu sorriso era amplo,
quase orgulhoso.
Ri, envergonhada.
Sim, Gael. Sou um sucesso e ganhei seguidores e dinheiro expondo a
sua vida e do seu filho. Que felicidade! Uhuuuu!
— Loucura, não é?
— Nunca duvidei que você brilharia, Pietra. Estou orgulhoso de você.
— Sério? — questionei, surpresa.
— Sim. Falei com a sua avó esses dias e ela me contou sobre o livro, os
seguidores e os contratos.
— Gael, é... Só para deixar claro, o livro não é sobre vocês, nem nada.
É sobre histórias de amor, sobre tudo que venho escutando nesses últimos
meses.
Gael riu e coçou o arco da boca, seu semblante era muito relaxado, não
parecia bravo ou irritado comigo. Por bastante tempo fiquei com medo de
que eles estivessem bravos comigo além de tudo o que já tinha feito, ainda
tinha, na realidade.
— Tem histórias que realmente precisam ser contadas. A sua com
Bernardo é uma delas.
Ouvir o nome de Bernardo doeu e fez meu coração gelar. Que porra de
saudade azucrinante que eu sentia daquele gênio!
Senti vontade de chorar na hora, mas segurei e perguntei:
— Como ele está?
— Brilhando também, do jeitinho Bernardo de ser. Está morando em
Palo Alto, fica perto da NASA e de Stanford. Pérola está comigo em Los
Angeles, é um pouquinho longe, mas sempre nos vemos aos finais de
semana.
— Ela está bem?
— Está, mas não vou entrar em detalhes, porque vocês têm de voltar a
conversar.
Meu olho encheu de água e fiz uma força sobre-humana para não
chorar na frente de Gael.
— Eu não quero incomodá-la.
— Pietra, eu fui muito duro com você meses atrás. — Gael segurou
minha mão esquerda, olhando para mim de uma forma que parecia ver
através da minha alma. — Achei que estava brincando com Bernardo e que o
faria sofrer. Eu subestimei meu próprio filho com toda essa história,
subestimei a história que vocês construíram.
— Não, está tudo bem! Eu fui realmente uma vaca. — Tentei aliviar o
clima estranho.
— Não foi, nem perto disso. Se tivesse sido, não falaria da sua história
com ele com tanto amor e respeito. Ouvi seus podcasts, sei que você gosta
verdadeiramente dele e respeito a forma como se retirou de campo, porque
não queria ser um problema ou uma questão a mais para ele lidar. Mas,
Pietra, para de se torturar. Nós estamos bem, Pérola está bem. Vá ser feliz!
— Mas... Mas... — gaguejei, pensando que tinha perdido para sempre a
habilidade de me comunicar. — Já passou muito tempo, ele deve ter
preocupações maiores agora.
— Pietra, ele te ama. E do mesmo jeito que você pensa isso dele, ele
está lá pensando que você não quer falar com ele, que essa história já teve
um fim. Não importa o quanto eu converse, não consigo convencê-lo de que
deve te procurar.
— É sério? — Minha voz ficou tão animada, que percebi que gritei no
ouvido dele.
— Sim.
— Eu sinto a falta dele todos os dias — confessei.
— Eu sei. — Seu sorriso se ampliou.
— Você ainda me odeia?
Gael negou com a cabeça e puxou meus ombros com seu braço direito.
Gael era enorme e eu me senti como uma criancinha. Não foi estranho como
pensei que seria. Não teve absolutamente nenhum sentimento a mais dentro
do meu coração que não fosse carinho por ele.
— Como eu poderia odiar a minha companheira de corridas? Elas
ficaram bem chatas depois que você se afastou.
Sorri e também abracei Gael, passando os braços por sua cintura
estreita.
— Gael? — chamei e recebi sua atenção. — Obrigada por ter sido um
pai como o meu nunca foi. Sei que pisei na bola e deixei tudo estranho entre
nós, mas só queria falar que sou grata por tudo que fez por mim. Desde
sempre.
— Você não estragou nada, Pietra. — Beijou minha testa em um gesto
cheio de carinho. — Só vai estragar se continuar fugindo do que sente.
Vocês merecem ficar juntos.
— Mas... Não seria estranho? — Até me afastei do abraço, porque era
uma preocupação legítima. — Sabe, nos Natais, aniversários e tal?
— Pietra, você acabou de agradecer por eu ter sido um pai para você.
Esqueça essa história.
— Mas eu tenho vergonha! — choraminguei. — Eu estava um pouco
perturbada naquela época, tinha saído da terapia.
Gael gargalhou na minha cara e nem consegui ficar brava, porque eu
merecia.
Fiz um bico e continuei falando:
— E olhando agora, nem faz sentido. Você é realmente bem velho, não
é?
— Pietra, não estrague o momento.
Gael voltou a me puxar pelos ombros, depositando um beijo em meus
cabelos.
— Você morreria bem rápido e eu ficar...
Fui interrompida por Gael tapando a minha boca.
— Procure Bernardo e acabe com esse tormento de uma vez por todas.
Meu coração ficou em paz, mas não 100% em paz. Porque ainda faltava
Pérola. Eu sabia que a tinha magoado.
Gael me deixou em casa e naquela noite eu decidi que procuraria
Bernardo, mas antes, eu tinha outro assunto a resolver.
E assim que deitei na cama, de banho tomado e metida num pijama
limpo, entrei no meu e-mail e digitei o nome da minha melhor amiga.
Olá, Pérola...
Era sábado. Dia 21 de dezembro. Conseguia sentir o cheirinho do Natal
se aproximando.
Precisava passar no shopping para comprar biquínis, porque levaria
vovó para viajar no Natal e no Ano Novo. Faríamos um cruzeiro pela
América do Sul, algo que era seu sonho e que finalmente eu tive como pagar.
Pensei por dois segundos na minha noite de ontem, com Gael falando
aquelas coisas bonitas. Estava feliz por ter feito as pazes com ele. Mais ainda
por saber que Bernardo continuava lá, que também pensava em mim tanto
quanto eu pensava nele.
Meu plano era ligar para ele no Natal, utilizando aquela desculpa
manjada para tentar uma reaproximação. Não dava para simplesmente
chegar no garoto e implorar para me aceitar de volta.
Por mais que eu quisesse.
Fui escovar os dentes no banheiro que dividia com vovó e estranhei seu
silêncio. Ela sempre escutava rádio pelas manhãs, era uma estação religiosa
cujo apresentador tinha tesão em acordar todos os brasileiros com um grito.
Teve uma vez em que tive paralisia do sono com a voz dele. Foi traumático.
Voltei ao quarto com o celular na mão, lendo uma mensagem de Iasmin
com as coisas que teríamos de gravar antes que eu saísse de férias. Pensei
em enrolar mais um tiquinho antes de ir viver a vida, mas fui impossibilitada
ao levar o maior susto de toda a minha existência.
— Você voltou a usar chapinha? Há três anos não chegamos ao
consenso de que você ficava mais gata com o cabelo ondulado?
Dei um grito tão alto ao ver Pérola sentada na minha cama, que ela até
assustou. Imediatamente colocou as mãos na barriga estufada e me
repreendeu com o olhar.
— É assim que vai tratar a sua sobrinha? Gritando no ouvido dela?
Saí correndo e pulei na cama, levando Pérola comigo. Eu a abracei,
beijei todo seu rosto, chacoalhei-a para todos os lados. Pérola ria, mas ao
final, acabou me abraçando.
— Eu senti tanto a sua falta!
Foi ali que comecei a chorar e não parei mais.
— Eu sei. Você disse no e-mail gigante que me mandou ontem —
brincou.
— Porque eu sinto mesmo.
Joguei minha cabeça para seu ombro, fungando.
— Então quer dizer que agora você é famosa?
— Não, mas eu ganho comida de graça e muita roupa. — Esfreguei os
olhos e repousei a mão em sua barriga durinha. Era uma sensação estranha.
— Você disse sobrinha? É uma menina?
— É uma menina. — Seu sorriso era amplo. Pérola parecia feliz,
relaxada. Bem diferente da última vez em que a vi. — O nome é uma
homenagem para a pessoa mais importante da minha vida.
— Ela vai saber escrever Gucci?
Nós rimos juntas e levei um tapa na coxa.
— É Ana Pietra Adler.
Comecei a chorar e não foi bonito. Agarrei Pérola novamente, sem
acreditar que aquilo estava acontecendo. Eu tinha minha amiga de volta.
Tinha uma sobrinha. Tinha um milhão de razões para acreditar que eu era a
pessoa mais sortuda do mundo.
— Se puxar a tia, ela será a maior gostosa.
Pérola gargalhou alto e agarrou minha cintura em um aperto gostoso,
seguido de um beijo no rosto.
— Me desculpa, Pipe.
— Eu que tenho de pedir desculpas. Eu menti, eu te traí, fiz um monte
de merda. Nunca quis te magoar, só não queria te perder por conta de tudo
isso. Desonrei o MADM, não é?
— Não vou te enganar sobre a forma como fiquei chateada contigo,
porque na minha cabeça nós éramos uma família, sabe? Papai e filhinhos. Eu
nunca imaginaria nada daquilo — disse, seriamente. — E aí do nada
descubro que você desvirginou meu irmão depois de ter tentado pegar meu
pai.
— É... Eu estava bem lelé da cabeça. — Apoiei a mão no queixo,
debruçando em minhas pernas. — A parte do seu pai, porque a do Bernardo
eu não me arrependo. Sinto muito! E tem a parte também que se não tivesse
acontecido toda a questão com seu pai, eu nunca teria me aproximado do
Bernardo. Então, eu sei que você pode ficar brava novamente comigo e
mudar o nome da sua filha para Ana Gucci, mas eu preciso falar que não me
arrependo. Porque tudo isso contribuiu para conhecer verdadeiramente o
melhor cara que poderia ter cruzado a minha vida.
Foi ótimo abrir meu coração para Pérola e fiquei feliz por ela não ter
levantado e me mandado tomar no rabo.
— Eu atrasei demais o lado de vocês, não é? Com aquelas promessas e
tudo.
— Um pouquinho. — Fiz um bico.
— Era medo de perder qualquer um de vocês. Até perceber que eu que
fodi tudo. Meu irmão está infeliz sem você e você longe de mim. No final
das contas, eu perdi os dois quando decidi ser uma mimada chata. E eu
estava errada, Pi.
— Eu também estava. Me desculpe por não ter sido sincera.
— Tudo bem, eu teria quebrado sua cara se dissesse que estava a fim do
meu pai.
— Podemos não falar mais disso? Ontem já foi estranho o suficiente
com ele.
Nós nos abraçamos e nunca senti um alívio tão grande por saber que eu
a tinha de volta. Pérola fazia os meus dias mais coloridos, era a minha irmã,
minha felicidade constante.
— Ok, pronta para correr atrás do seu virgem preferido? — Levantou
da cama, batendo palminhas.
— Vou telefonar para ele no Natal. — Mordi a ponta do polegar,
nervosa. — E respeito com meu ex-virgem preferido.
— Vai o caralho! Vamos entrar no avião em seis horas, minha querida.
Arregalei os olhos. Como assim, em seis horas?
— Não, eu viajo amanhã com a minha avó.
— Ela já concordou em mudar o roteiro.
Comecei a tremer, senti até minha pressão arterial despencar. Eu... Eu
veria Bernardo? Ao vivo? Para valer?
— Eu magoei o Bernardo.
— Você fez algo muito altruísta quando não quis ficar com ele para que
nós ficássemos bem, Pipe. Mas sabe o que está quebrando o coração dele?
— questionou, com o olhar em mim. — Ficar longe de você. E eu preciso
resolver isso, porque sinto que caguei com tudo.
— Cagou mesmo — confirmei e vi seu olhar alarmado. — Não queria
sinceridade? — debochei.
— Ainda não consigo acreditar que vocês se gostam. E que se pegam. E
que transam.
— E bem forte, tá? Não tem nada de soca fofo.
— Pietra, também vai com calma, porra! É o meu irmão.
Segurei o rosto de Pérola e tasquei um beijo em sua bochecha. Depois
saí do quarto para ver se minha avó estava de acordo com aquela loucura. E,
sim, ela estava. Em êxtase para utilizar pela primeira vez seu passaporte e
seu visto novinhos.
Mais tarde, realmente estávamos em um avião. Com destino a San
Francisco. Onde eu veria Bernardo e poderia falar que o amava com todas as
letras, de todas as formas. Que acreditava que tínhamos um futuro, que estar
com ele era tudo o que eu mais quis nesses últimos meses. Que quis tanto,
que chegava até a doer.
O voo foi longo, mas fui conversando bastante com Pérola que contou
que Gael obrigou Tato a assumir as responsabilidades como pai ou então
exporia na mídia toda aquela merda. Eles não tinham contato, mas Tato
registraria o bebê e tentaria ser o mais presente que conseguisse, o que já
estava claro que não seria nada. Ela também contou que passou quinze dias
com Lana em Cape May. Conheceu os irmãos, até Bernardo foi passar
alguns dias antes de começar a trabalhar. A relação com Lana estava
melhorando e ela até queria vir quando Ana nascesse.
Surpresa mesmo foi Pérola ter revelado que ela e Bruno estavam juntos.
E por essa eu nunca esperaria. Ela contou que demorou algum tempo, mas
que o procurou para se desculpar. Eles voltaram a conversar e passaram
alguns meses se relacionando virtualmente, porque Bruno estava em Miami
e ela em Los Angeles, até decidirem que queriam ficar juntos para valer.
Fazia só vinte dias que estavam dividindo um apartamento, mas dava
para ver o quanto minha amiga estava feliz enquanto contava. Bruno lhe
dava apoio, tinha o maior carinho com a bebê e por mais que Ana tivesse um
pai já, Pérola contou que Bruno realmente tinha vontade de desempenhar
esse papel e que ele era perfeito para elas.
— E aí, Gael, está gostando do genrinho? — Bati no ombro dele,
aproveitando que estava na poltrona da frente, junto da minha avó.
Ele resmungou, mas deu para ver o contorno de um sorrisinho.
— Eles estão trabalhando juntos no novo restaurante — contou Pérola.
A viagem foi tranquila, mas foi colocar o pé no aeroporto de San
Francisco, que eu entrei em pânico.
E se Bernardo não me quisesse mais?
E se eu tivesse deixado muito tempo passar?
Ele poderia ter achado alguém que gostasse nesse tempo, alguém que
não tivesse um passado tão complicado e principalmente alguém que não
tornasse a sua vida tão difícil.
Foi então que me lembrei daquelas noites em Miami. Suas bochechas
vermelhas, seu olhar tímido, a forma como me olhava como se eu fosse a
criatura mais perfeita desse Universo. Lembrei-me de nossas brigas sem
sentido, da forma como aprendemos a ser grandes amigos, do quanto eu
gostava de sua presença. Bernardo era uma explosão de cores em uma tela
em branco. Na mesma forma que eu fui sua primeira, ele também foi o meu
primeiro em inúmeras coisas.
A primeira vez que me senti amada por um homem.
A primeira vez que fui eu mesma, sem qualquer artifício para ser
interessante.
A primeira vez que fui valorizada.
A primeira vez que alguém me desafiou e me forçou a ser alguém
melhor, a evoluir.
A primeira vez que me apaixonei loucamente por alguém.
— Gael, eu preciso passar em um lugar antes, tá? — Afoita, meti a
cabeça entre os bancos, atormentando mais uma vez Gael que conversava
com Helena, avisando que tinha acabado de chegar.
Pérola ao meu lado resmungava ao ouvir a conversa, pelo visto Helena
ainda era um assunto delicado para ela.
— Que lugar, Pietra?
Deu ruim.
Mas deu bom.
Mas, talvez, dê ruim.
Foi a minha conclusão depois de ver aquela coisa na minha frente.
Fui colocar uma roupa, porque precisava achar Bernardo na casa. Ele
tinha acabado de voltar de uma palestra em Nova York. Fazia uma semana
que eu não o via, o que, para meus padrões de carência extrema, era muito.
Desci a escada para a sala. Fazia apenas seis meses que estávamos
morando naquela casa, em Marina District, ao norte de San Francisco.
Depois que Bernardo concluiu o doutorado, começou a trabalhar em um
cargo bem alto no laboratório de propulsores a jato para a missão em —
Pasmem! — Marte e nós resolvemos que precisávamos de mais conforto em
uma casa grande. Enquanto ele não nos levava para Marte.
Não. Infelizmente eu não era uma madame que ia para o pilates às 3h
da tarde. Na verdade, eu até ia, mas era porque meu horário era flexível, não
por Bernardo.
Eu fazia meu trabalho de casa. Tinha dois livros best-sellers, um deles
virou uma série da Netflix. Era sobre mulheres, amores e conexões. Algo
que eu amava e sempre amaria falar. Além dos livros, eu ainda continuava
trabalhando com redes sociais e escrevia semanalmente uma crônica para o
maior jornal de San Francisco. Eu tinha vinte e seis anos, quase vinte e sete,
e a vida profissional que era o meu sonho quando tinha dezesseis. Parecia
mesmo um sonho.
— Bernardo, a casa caiu!
Desci correndo a escada de madeira, encontrando-o sentado em uma
poltrona, lendo em seu Kindle. Certeza que não era pornô de fada. Bernardo
tinha um péssimo gosto literário.
— O gesso do banheiro de novo?
Ele se levantou, bravo, prontíssimo para ligar para o corretor que nos
vendeu a casa e descer os cachorros em cima dele.
Dei uma engasgada ao vê-lo com aquela calça xadrez em tons de
vermelho e preto que caía muito bem em seu quadril. Meu neném, não era
mais neném! Ficava sempre dividida entre ficar triste porque Bernardo tinha
perdido aquela carinha de garoto fofo e inocente, mas felicíssima por sentar
livremente naquele homem que, desculpe o palavreado, puta que pariu! Era
uma dádiva, uma obra prima, forjado nos reinos dos céus.
Ele começou a fazer academia pouco tempo depois que começamos a
namorar. Acho que ficou com inveja do meu tanquinho depois daquela fase
meio Gracyanne Barbosa que tive. A minha durou pouco, mas a dele
continuou. Bernardo agora tinha ombros tão largos que tinha até dificuldade
de encontrar aventais para o laboratório. Ele ainda continua magro, mas seus
músculos eram marcados. Olha, sinceramente, eu passaria horas e mais
horas lambendo cada músculo dele. Não que eu não fizesse.
Mas ainda era Bernardo. Com seus óculos caindo pelo nariz, um sorriso
tímido quando escutava algo que o envergonhava, com os cabelos
bagunçados e a forma maravilhosa como me tratava. Cinco anos depois e eu
ainda o queria mais de quando nos declaramos em frente do laboratório da
NASA. Eu sou chamada até hoje de Rex pelos colegas de trabalho dele.
Fazer o quê se sou popular?
— Calma, está tudo bem lá. — Ergui os braços, rendendo-me.
— O que aconteceu?
— Aconteceu algo.
— Percebi no momento em que chegou correndo e gritando.
Ele ainda era metido a espertinho. Dava para ver.
— O quanto você quer ir para Marte?
Cruzei as mãos em frente do queixo, percebendo sua nítida confusão.
Bernardo largou o Kindle na poltrona e ajeitou os óculos no nariz.
— Quem quer enfiar o nome como voluntária é você. Eu não vou.
— Então, porque não vamos mais.
— Mas eu nunca falei que ia.
— Você tem um sério problema de comodismo, Bernardo. Precisa ir
para a terapia ver esse seu medo do novo.
— Eu não tenho medo do novo.
— Porque vai precisar agora, mais do que nunca.
— Não tenho medo do novo — ele continuou insistindo.
E ainda tinha hiperfoco. Vou marcar uma consulta para Bernardo
amanhã.
Bufei, percebendo que eu era quem estava hiperfocada em Bernardo.
Tirei o bastão de plástico do cós da calça de pijama e estiquei na direção
dele.
— É por esse motivo que não vamos para Marte.
Fiz um gracejo para um Bernardo mais pálido do que nunca. Ele
derrubou o teste de gravidez no chão, abaixou para pegar, bateu na mesinha
de centro, derrubou o pratinho de cerâmica que Ana fez para nós em sua aula
de arte. Por sorte não quebrou.
— Você está grávida?
Por que Bernardo não estava feliz? Por que Bernardo estava em pânico?
Ele tinha um trabalho bom. Eu também. Tínhamos uma casa bonita.
Uma rede de apoio. Dinheiro para contratar babá, pagar um plano de saúde,
talvez uma escola particular se o bebê fosse um gênio que nem ele. Meu
Deus, e se o bebê puxasse o meu QI de peixe dourado? Era por isso o pânico
de Bernardo?
Comecei a hiperventilar. Estava passando mal.
Vou morrer.
Vou morrer sozinha, grávida e triste.
Ele deu as costas para mim e atravessou a sala, subindo a escada
rapidamente.
Ele faria as malas. Iria embora. Deveria ter conhecido a gênia da
Astrofísica que nunca o obrigaria a ir para Marte, porque já estava fora de
moda. Eles colonizariam Plutão. Pequeno, algo intimista, nem era planeta
mais, o que daria privacidade. Eles plantariam mandioca, viveriam de
clorofila. Teriam bebês plutoneses ou plutonenses? Quem nascia em Plutão
era o quê, merda?
Vou ficar sozinha. Era isso. Aceitei meu destino.
Poderia voltar para Los Angeles e morar com Pérola, Bruno e Ana.
Bem, talvez não fosse uma boa ideia. Muito sexo. Vou virar celibatária.
Será que Gael e Helena transavam bastante? Podia ir morar com eles,
não é? O bebê ainda seria neto dele, mesmo que Bernardo fugisse para
Plutão. Eles tinham cara que transavam muito, aquela coisa calma, olho no
olho.
NÃO! Gael transando, não! Pelo amor de Deus!
Lana? Que tal, Lana? Ela também era avó, não é? Cape May era legal,
pacata. Boa para criar uma criança. Connor já foi para a faculdade, Ryle
daqui a pouco iria. Ela vai ficar sozinha. Podemos criar patos que nem o
doido da pousada.
Fiquei com saudades da minha avó. Ainda estava puta com ela por ter
me largado nesse mundo sozinha com pessoas que transavam demais e um
namorado que me largaria para ir morar em Plutão. Nunca, mas nunca
mesmo, perdoaria Dedé por ter feito isso comigo.
Tivemos anos maravilhosos? Sim, tivemos. Inclusive quando ela veio
morar aqui comigo. Foram poucos meses, mas meses incríveis. Até que ela,
em uma noite, resolveu me deixar. Já tem três anos, mas eu ainda sentia sua
falta todos os dias. Ainda mais agora, que precisaria dela para criar uma
criança.
— Pietra?
Olhei para Bernardo, ainda um pouco atordoada por pensar em minha
avó. Ele não estava com malas ao redor.
Será que ele me expulsaria?
Não aceitaria outra mulher morando na casa que quase custou meu
nervo ciático! Você tem ideia do que é fazer uma mudança em uma casa de
San Francisco? É só escada e ladeira nessa merda! Não aceito, não vou
aceitar.
Entraria em uma briga com Bernardo. Era isso.
Peguei a almofada que estava mais próxima de mim e taquei nele. Voou
longe, porque ele estava ajoelhado.
Que porra era essa?
— Eu não vou embora daqui. Eu esvaziei a última caixa da mudança
semana passada e não vou deixar tudo fácil assim para a sua gêni... Ah!
Parei de falar e só soltei um suspiro de entendimento.
Bernardo estava de joelhos. Com uma aliança esticada em minha
direção. Uma aliança bem bonita, um diamante que deveria custar um
absurdo. Nós éramos ricos? Espera... Ele estava me pedindo em...
— Você quer se casar comigo?
Eita, gente!
Acho que coloquei a carroça em frente dos bois.
Abri um sorriso, nervosa, chocada, em pânico.
— Você está me pedindo em casamento porque eu estou grávida?
— Você está grávida porque eu quero te pedir em casamento.
Apertei as sobrancelhas.
— O quê? Não faz sentido.
— É, não faz. — Ele deu de ombros, arrumando os óculos pela
milésima vez, o que indicava que estava nervoso. — Eu quero fazer isso faz
tempo, a aliança está guardada há dois anos. Só achei que você não iria
querer, porque somos novos. Mas, tudo o que eu mais quero é casar com
você e ter a nossa família.
— Sem filhos em Plutão? — Meus olhos arderam pelas lágrimas.
— O quê?
Ajoelhei junto de Bernardo em cima de nosso tapete fofo e todo cinza,
que foi um inferno para achar. Eu, com certeza, não deixaria aquele tapete
para aquela gênia sem noção.
— Você está me pedindo em casamento! — gritei, exasperada ao olhar
para aquele diamante.
— Nós vamos ter um bebê!
Joguei em cima dele, selando nossos lábios. Ele caiu no tapete e eu caí
por cima. Meu coração estava acelerado e tudo o que consegui fazer foi
sussurrar dezenas de “Sim” para ele.
Bernardo e eu éramos o acaso do destino mais perfeito de todos. Nós
éramos perfeitos um para o outro. Desde sempre, porém no tempo certo. Da
maneira certa. Algo precioso em meio à multidão.
— Pronta para mais uma primeira vez? — questionou o meu futuro
marido, que acabava de escorregar a aliança por meu dedo anelar.
Segurei o colarinho de sua camisa social, vendo naqueles olhos
brilhantes meu bom garoto, meu gênio arrogante, meu namorado perfeito e o
homem que seria meu marido e o pai do meu filho. Antes de beijá-lo,
sussurrei:
— Juntos e sempre.
Esse aqui é meu décimo livro.
Dois anos atrás, ter essa quantidade de livros parecia algo impossível. E
durante esses meses, eu me joguei de cabeça em histórias que o meu eu
leitora gostaria muito de ler.
“Uma Boa Garota” foi a história mais fácil de escrever, algo que em
nenhum momento pareceu trabalho. Pietra se tornou minha melhor amiga,
passamos madrugadas e mais madrugadas nos divertindo horrores. Meu
coração após aquele “FIM” ali em cima está leve, porque eu contei a história
de uma garota assim como eu, como nossas amigas, como você que está
lendo isso aqui.
A Pietra sou eu. A Pietra tem um pouco de cada mulher que passou por
minha vida. A Pietra é a razão pela qual eu escrevo livros para mulheres.
E é por isso que esse livro é totalmente dedicado a você, minha leitora,
que me conheceu por esse livro ou que já me conhece de outros. Não tenha
medo de sentir, de mudar, de se reinventar, de se jogar de cabeça em algo, de
ser amiga e de viver.
Eu espero que a sua vida também seja repleta de primeiras, segundas e
terceiras vezes.
Obrigada por ter chegado até aqui!
Com amor,
Nathalia Oliveira.
Saga Velocidade: Você – Livro 1
Saga Velocidade: Nós – Livro 2
Saga Velocidade: Eles – Livro 3
- Os Bergmans: Um conto de Natal da Saga Velocidade
LUNY: Contos de Amor na Universidade
Quando nos Perdemos
Depois de Vegas
A Assassina do CEO
Cape May
O Gêmeo Errado
Não esqueça de deixar sua avaliação aqui na Amazon, isso ajuda muito
outras pessoas a conhecerem meus livros.
[1]
Forehand: Jogada do tênis em que se usa a raquete com a mão virada para a frente.
[2]
Em tradução: A sua linguagem corporal fala comigo.
Trecho da música Under The Influence – Chris Brown.
Table of Contents
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
OUTRAS OBRAS