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Copyright © 2024 Nathalia Oliveira

Acordo com o Acaso


1ª Edição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser reproduzida ou transmitida
por qualquer forma, meios eletrônicos ou mecânico sem consentimento e autorização por escrito
do autor/editor.

Capa: @designerttenorio
Leitura Beta: Luanna Vieira; Quety Emerim; Viviane Assunção
Revisão: Halice FRS

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos
da imaginação da autora. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência. Nenhuma
parte desse livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes – tangíveis ou
intangíveis – sem prévia autorização da autora. A violação dos direitos autorais é crime
estabelecido na lei nº 9.610/98, punido pelo artigo 184 do código penal.
PRÓLOGO
CAPÍTULO 01
CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03
CAPÍTULO 04
CAPÍTULO 05
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07
CAPÍTULO 08
CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
EPÍLOGO
AGRADECIMENTOS
Para quem acredita no poder das segundas chances.
Isso não é sobre o seu ex. Ele continua sendo um babaca.
Um telefonema tem o poder de alterar todo o rumo de uma vida.
Eu não acreditava nisso, até receber um desses.
Não tem forma de se preparar para algo assim. Vem naquele dia em que a cólica está
quase comendo nosso útero vivo, que derrubamos a pasta de dente na camiseta preta ou que
recebemos um elogio do nosso colega de trabalho — Marcus, analista sênior de marketing, grau
3 no meu índice de pretendentes em potencial —, que comemos uma burrata simplesmente
fabulosa no horário do almoço e que aquele vídeo que demos suor e lágrimas para produzir não
passou de mil visualizações.
O telefone toca no momento em que você está vendo uma de suas comédias românticas
preferidas — 10 coisas que eu odeio em você —, bem na sua parte preferida, quando o Heath
Ledger canta Can’t Take My Eyes Of You na arquibancada. Por um momento eu penso que pedi
algo no aplicativo de entrega, mas a chamada não vem do interfone, vem do meu celular.
Pensando bem, seria ótimo pedir algo para comer, já que estou jantando aquela última fatia
detestável do pão de forma com o resto de requeijão e um tomate que achei perdido na geladeira.
É o máximo de comida boa que saiu lá de dentro após eu ter decidido só ir ao mercado quando
meu salário cair e ter torrado o restante do vale refeição naquela burrata deliciosa.
Com certeza é da companhia telefônica querendo vender algum plano.
E eu gostaria tanto, mas tanto, que fosse. Ficaria feliz em receber chamadas e mais
chamadas de números desconhecidos perguntando sobre meu interesse de fazer planos de celular
pelo resto da minha vida. Qualquer tortura seria melhor do que aquilo.
— Antônia Milani?
Era uma voz grave. Muito diferente do chiado e ruídos de um call-center. O tipo de voz
que a gente nunca quer ouvir.
— Sim.
— Você conhece Vitória Milani Albizia?
O resto do pão de forma caiu no chão e levantei do sofá em um pulo. Tudo dentro de
mim começou a tremer desenfreadamente.
Minha irmã.
Essa semana ela foi viajar com o marido e as crianças. Onde era o lugar mesmo?
Simplesmente apagou da minha memória, mas ela mandou as fotos da cabana, dos dois tomando
vinho, das crianças se divertindo na cidade.
— Ela é a minha irmã.
Silêncio do outro lado da linha.
Conseguia sentir os batimentos cardíacos reverberando por minha garganta.
— Houve um acidente...
— Eles estão bem?
— Infelizmente sua irmã e seu cunhado não sobreviveram. Eu sinto muito, senhorita
Milani.
O luto é uma coisa engraçada.
Tão triste, que se torna engraçado.
Certos momentos, durante no velório de Vitória e Gregório, eu me pegava rindo ao lado
dos caixões de um mogno brilhante e polido onde as pessoas que eu chamava de família
descansavam eternamente.
Minha irmã estava morta.
E era tão irreal, tão desolador e desesperador que me fazia rir.
O que eu faria da minha vida sem Vitória?
E o que faria com os filhos que Vitória e Gregório deixaram nesse mundo?
Eu não conseguia nem pensar nisso ainda, porque o foco era que a minha irmã, o amor
da minha existência, minha pessoa favorita que já pisou neste planeta, não estava mais aqui.
Era uma viagem em família, uma viagem para um lugar frio, que Gregório tanto amava.
Minha irmã vivia falando que sentia falta dos momentos a dois com o marido, possivelmente foi
dela a ideia de ir até a cidade ter um jantar à luz de velas, com um bom vinho e comida de
qualidade. As crianças ficaram com a babá, o que apertava meu coração ainda mais. E se eles
estivessem dentro do carro? Eu não teria absolutamente ninguém no mundo.
Foi uma fatalidade. Foi isso que me disseram quando cheguei para o IML de uma
microcidade do interior de São Paulo. Flávio, meu ex-namorado e que também era meu vizinho,
foi quem me levou até lá, após minhas batidas, gritos e choro à sua porta depois de receber a
notícia.
Não havia culpados, apenas vítimas. Talvez o vinho? Um animal que fez o carro desviar
e descer uma ribanceira, dando de encontro com uma árvore? O destino?
Há quarenta e oito horas eu tentava achar culpados para o fato de que perdi minha pessoa
preferida de todas.
E isso parecia nunca ter fim. Não importava o quanto eu amasse uma pessoa, ou ela
sumia, ou ela morria.
Foi assim com minha mãe.
Foi assim com Vitória.
Seria assim para sempre.
— Você precisa de um café.
Estava focada por tempo demais na ponta do New Balance que eu usava. Ele era azul-
bebê, foi de Vitória um dia, mas estava todo manchado de terra, porque fui parar no local do
acidente. Eu não conseguia parar de olhar para aquela maldita mancha marrom.
Ergui os olhos para a voz conhecida. A única que tentava falar comigo nesse dia infernal.
“Falar” era algo muito forte, porque Dante e eu nunca trocamos muitas palavras — a maioria
sempre foram resmungos e xingamentos sussurrados entre jantares, aniversários e outras
festividades aleatórias —, mas ele era a pessoa que me entendia mais do que todos dentro
daquela sala.
Eu tinha perdido uma irmã.
Ele tinha perdido um irmão.
No mesmo dia, na mesma hora, no mesmo lugar.
— Você percebeu que não tem ninguém da nossa família aqui?
Dante desmoronou no banco onde eu estava, mantendo uma distância segura, porque ele
sempre se mantinha afastado. Estava em seus genes. Fiquei arrependida por ter falado nossa,
como se ele e eu dividíssemos algo, o que não acontecia, por mais que fosse comum.
Ele não era minha família, mas estava por lá. Isso quando ele queria se fazer presente.
Dante e Gregório eram metade argentinos, metade brasileiros. Cresceram em uma região
cheia de vinhedos lá e a família deles era dona de um. Fui uma única vez, porque a ideia de me
enfiar em um lugar cheio de mato, sem civilização por perto e sem grandes atrativos nunca me
atraiu, por mais álcool que tivesse envolvido no meio.
Vitória falava que a relação dos dois com o pai sempre foi complicada, mas nunca achei
que fosse ao nível de um pai não aparecer no velório do próprio filho.
— Amigos são a família que escolhemos, não é? — Ele tinha sotaque quando falava
português, o que tornava sua voz ainda mais arrastada.
Olhei em volta, para todas as pessoas que se acumulavam nos quatro cantos da sala.
Amigos de trabalho de Vitória e Gregório, de faculdade, vizinhos, meus ex-namorados. Minha
irmã era aquele tipo de pessoa que tinha luz própria, que encantava as pessoas, quase como se
usasse um magnetismo para atraí-las. Gregório tinha lábia, poderia facilmente se candidatar a um
cargo público. Ele convenceria qualquer pessoa do inimaginável.
Dante e eu não poderíamos ser mais diferentes de nossos irmãos.
E agora estávamos ali...
A única família ao lado deles até o último momento. A única família que Cecília e Milo
tinham agora.
Pensar nisso fez com que o desespero que me vi mergulhada nas últimas quarenta e oito
horas voltasse. Joguei o tronco para frente e tapei o rosto com as mãos, recomeçando aquele
ciclo sem fim de choro.
— Vamos tomar aquele café. Viene.
Fui rebocada por Dante, sentindo sua mão calejada e áspera ao redor de meu pulso. Ele
me levou até a copa e colocou um copo de plástico lotado de café preto e sem açúcar. Eu odiava
café assim, mas odiava muito mais estar em um mundo sem a minha irmã.
Tomei o líquido fumegante em três goles, desejando demais que aquilo fosse uma bebida
com muito álcool.
Dante estava pairando ali. Ele não tinha chorado em nem um momento desde que
chegou. Fui eu quem ligou para contar o que tinha acontecido. Eu estive do lado dele desde que
chegou da Argentina, apenas seis horas depois da minha ligação. E ele não derramou uma
lágrima.
Dante cuidou de todos os detalhes da cerimônia, cuidou das crianças antes de deixá-las
com a babá, falou com cada pessoa que apareceu no velório, mesmo que não soubesse quem era.
Tudo isso enquanto eu chorava e me rastejava pelos cantos.
Não comi. Não dormi. Não respirei.
E ele não tinha chorado.
Nem deveria me assustar com algo assim vindo dele, porque aquele homem era a própria
personificação do controle emocional, frieza e insensibilidade.
Dante Albizia não era a minha pessoa preferida no mundo, mas era a de Gregório. E
também de Vitória.
— Como você consegue se manter assim? — Esfreguei os olhos, tentando limpar as
lágrimas que não paravam de cair.
Meus olhos estavam esfolados de tanto chorar e esfregá-los.
— Assim como? — A indiferença em sua voz foi um aviso de que, por mais que
estivéssemos passando pela mesma situação, não éramos nada um do outro.
— Forte.
A palavra já saiu morta de meus lábios, porque sabia que deveria ter ficado quieta. Cada
pessoa é uma. Cada um vive o luto à sua maneira.
Quando minha mãe morreu, Vitória fazia escândalos a cada dois minutos. Já eu, estava
focada em acalmar minha irmã e grata por minha mãe finalmente ter descansado após o período
de puro sofrimento depois que o câncer se agravou.
— Porque alguém aqui tem que ser, Antônia. Você pode se dar ao direito de derramar
quantas lágrimas forem necessárias no ombro de seus amigos e todos os seus ex-namorados, mas
eu preciso ficar firme para o que vem depois, que é muito pior do que ver meu irmão e a minha
cunhada naquele caixão.
Dante nunca mediu palavras. Estava em seu gene ser um grande babaca. Sincero, mas
babaca.
— O que é pior do que isso?
Ele riu sem qualquer traço de humor.
— Saber que aquelas duas crianças crescerão sem os pais que sonharam com elas. E que
tudo o que sobrou para elas foram os cacos de nós dois.
Dante simplesmente virou as costas e me deixou sozinha ali, olhando para o copo de
plástico vazio.
Eu tinha pensado nas crianças, óbvio. Perdi minha mãe aos vinte e dois anos e já foi
terrível, nem imagino como seria para Ceci e Milo. Eles, possivelmente, nem teriam lembrança
dos pais. Eu só não tinha pensado no que aconteceria com eles dali em diante.
Dante estava certo.
Éramos padrinhos e os únicos tios daquelas crianças. Não tinha mais uma família a quem
eles pudessem recorrer. Exceto o pai de Dante e Gregório e a família distante que Vitória e eu
tínhamos em Portugal. Uma prima e uma tia que vimos pela última vez há mais de dez anos e
que mandaram suas condolências por mensagem.
Toda a responsabilidade sob aquelas crianças foi jogada em cima de nós dois.
E eu acabei de perceber o quão sério era isso.
E desesperador, afinal, eu realmente era um caco.
Não tem nada de bonito em ver sua irmã e seu cunhado serem cremados. O desespero em
saber que nunca mais os verei, que nunca mais terei as noites vendo filmes de romance com
minha irmã ou vendo a animação contagiante de Gregório com seu churrasco de todos os
domingos.
Eles ficaram juntos até o fim, honrando o que Gregório prometeu para minha irmã nos
votos de casamento. Lembro que fiquei encantada com as palavras dos dois, mas também puta da
vida, porque nunca me lembro do final dos votos do meu cunhado, porque comecei a chorar e
Dante, que era o meu par, cutucou minhas costelas e inclinou a cabeça em minha direção,
sussurrando:
— Poderia ser você, uh?
Naquela época eu tinha bem mais paciência com ele — e contato também, por conta dos
preparativos do casamento — do que atualmente e só o empurrei com meu cotovelo. Mas a
interrupção foi o suficiente para me fazer perder o final dos votos.
— Coma mais um pouco de sopa...
Pisquei, voltando à realidade com Flávio em minha frente, insistindo para que eu
comesse mais um pouco da sopa que Mônica fez para mim.
Minha garganta parecia estar trancada, por mais que eu quisesse, não conseguia comer
nada.
— Juro que como depois que tomar banho, mas agora, não.
— Anto...
— Obrigada, mas eu só quero um banho e a minha cama, por favor... — Segurei o
antebraço de Flávio e olhou para o lado, onde Mônica, a ficante do mês dele, estava.
Eles foram incríveis comigo nesses dois dias, não me deixaram sozinha desde que recebi
aquele telefonema. O que era até engraçado, porque Flávio e eu vivíamos em um ciclo sem fim
de estarmos juntos, depois não estar e depois ficarmos juntos novamente. Ele não parava com
ninguém e eu tinha dificuldade em dizer não.
Não era como se eu me importasse, porque já era comum, mas enfim... Era a minha vida.
— Ok. Estamos aqui do lado. Você sabe, não é?
— Obrigada. Obrigada mesmo. — Estiquei a mão para tocar a mão de Mônica, que me
ofereceu um sorriso singelo e delicado.
Vi os dois saindo da minha sala, fechando a porta da frente atrás deles.
Sozinha. Como sempre e para sempre.
Menti para Flávio que iria tomar banho. Eu não tinha forças para isso. Deitei naquele
piso vinílico amadeirado e fiquei olhando o teto por minutos? Horas? Dias?
Nada fazia mais sentido depois que atendi àquela maldita ligação.
Pensar em ligação fez com que lembrasse que deveria ligar para a babá das crianças, ver
como estavam, mas eu também não conseguia, porque tudo neles me lembrava a perca dos meus
melhores amigos.
Vinte e oito anos ao lado de Vitória e nove anos ao lado de Gregório não foram
suficientes para mim. Ela e eu não fizemos o curso de cerâmica que sempre quisemos, não fomos
viajar para o Havaí ou levamos as crianças para a Disney. Gregório e eu não fomos ao show do
U2 naquela esfera de Las Vegas, ou ao menu degustação de um restaurante japonês que vivíamos
vendo vídeos e mandando um para o outro.
A vida deles ficou incompleta, milhares de momentos, descobertas e sensações que
ficaram pelo caminho.
E eu não sabia como lidar com isso, porque eu também ficaria incompleta para o resto da
minha vida.
Depois de muito tempo, consegui levantar do chão para pegar uma garrafa de vinho no
armário. Tive sérios problemas em tirar a rolha, mas consegui e retornei à sala bebendo do
gargalo.
Nessa altura do campeonato, beber parecia uma dádiva dos céus, acalentando aquela dor
filha da puta dentro de mim.
Eu era um caco. Minha irmã, cinzas.
Estremeci ao escutar o interfone e pensei seriamente em ignorá-lo até qualquer pessoa
que estivesse lá embaixo desistisse e fosse embora. Eu não queria receber visitas, condolências e
explicar sobre o acidente. Só queria beber o suficiente para apagar nesse sofá.
Só que o interfone não parou.
Bufei alto e fui com a garrafa de vinho até lá.
— Antônia.
A voz arrastada e carregada pelo sotaque fez o vinho querer voltar.
— O que você quer?
— Pintar as unhas e ver televisão.
Mordi a parte interna da bochecha, tentando não reagir àquele deboche de Dante. Apertei
o botão para liberá-lo e destranquei a porta antes de voltar ao sofá, de onde planejava não sair.
Não demorou para a presença de Dante ocupar cada canto da minha casa. Ele nunca
tinha entrado ali e vi seus olhos percorreram cada canto com curiosidade e certo julgamento.
— Você é acumuladora?
Fechei os olhos e mandei mais vinho para dentro. Se eu ficasse em silêncio, talvez ele
fosse embora como aqueles animais perigosos que farejam o medo.
É só não me mexer, é só ficar quieta.
— O que você quer? — repeti, como um mantra.
— As crianças dormiram, a babá quis ficar com eles e a casa... — Dante parou de falar,
parecendo meio perdido.
Seu rosto chamou minha atenção, porque era a primeira vez que o via dessa forma. Dante
Albizia poderia ser tudo, mas não era perdido. Ele parecia ser o tipo de pessoa que sabe
perfeitamente quantos passos dará por dia, o exato horário que seus olhos se abrirão, quantas
gramas de proteína precisa ingerir no dia para sustentar aquele corpo elaborado dele.
— A casa parece estar te sufocando — presumi.
Ele assentiu e desistiu de analisar cada canto da minha casa e veio para o sofá. Dante não
combinava com o meu apartamento. Ele era muito grande, ombros largos demais, nariz
empinado, roupas que sempre caíam perfeitamente bem em seu corpo. Devo ter visto Dante duas
vezes com roupas que não fossem camisas xadrez, no casamento da minha irmã e hoje, com
aquela camisa preta. Ele é aquele tipo de cara que parece que saiu do banho mesmo já no final da
noite. O cabelo está sempre penteado para trás, impecável, as roupas alinhadas, os sapatos
limpos. Ele seria uma figura impressionante, se não fosse um babaca arrogante.
O que Gregório tinha de gente boa, Dante tinha de altivo, diria até mesmo que
prepotente.
— Vinho? — ofereci, porque era um dia difícil para nós dois.
Seus olhos verdes caíram para a garrafa, mais precisamente para o rótulo.
— Você comprou esse vinho?
Respirei fundo, porque era impressionante o fato do irmão dele ter morrido em um
trágico acidente junto da minha irmã, estarmos sozinhos com duas crianças nesse mundo e ele
ainda achar forças para ser arrogante com o meu vinho.
— Sim, comprei. — Fiz questão de tomar mais uma boa quantidade no gargalo.
— Qual o seu critério para comprar vinhos?
— Custar menos do que trinta reais.
Dante abriu a boca para responder, mas acabou desistindo pelo caminho. Não era dia
para isso, até ele sabia.
— Justo.
Ergui os olhos, sentindo-me satisfeita por ganhar na justificativa. Dante esticou o braço,
movimentando os dedos para dar a entender que queria o vinho. Um homem de poucas palavras,
eu disse.
Foi estranho vê-lo sentado em meu sofá verde-esmeralda, tomando no gargalo meu vinho
de mercado. Era como estar em um multiverso muito esquisito em que nós dois tolerávamos um
ao outro e nossos irmãos não fossem os personagens principais de nossa vida.
Eu estava feliz sendo a irmã coadjuvante, engraçadinha, com uma péssima vida amorosa.
Eu gerava entretenimento de qualidade para a vida da minha irmã mais velha, essa, sim, a
protagonista. Vitória nasceu para ser protagonista. Era linda desde pequena, não teve nem aquela
fase estranha com nariz inchado da adolescência. Eu estava lá sempre dando bons conselhos e
tornando a vida dela mais divertida. Meu papel nessa história era ser um alívio cômico, um
pequeno plot twist na história incrível dela com Gregório.
Dante também era o coadjuvante na vida de Gregório. Aquele irmão que, por mais gato
que seja, não é o escolhido. Ele fica em seu canto, sendo misterioso, bonito e intocável. E só.
Essa história não era nossa, nunca teve a menor chance de ser.
E ali estávamos nós, presos à mercê do acaso.
— Por que você ainda não foi ver as crianças? — Sua pergunta certeira veio logo depois
que ele tomou o restante do vinho em poucos segundos, o que foi impressionante; e um pouco
assustador.
Levantei do tapete onde estava sentada com as costas apoiadas no sofá. Precisei levantar
de uma forma nada graciosa para ir até a cozinha pegar mais vinho. Dessa vez, dei a garrafa e o
saca-rolha para ele, mas percebi que seu olhar de julgamento sempre poderia piorar para cima de
mim quando ele percebeu que a garrafa era de rosca, sem rolha.
Fingi que nada estava acontecendo e voltei a sentar, esperando pacientemente que ele
entregasse a garrafa e eu pudesse voltar a beber.
— Não fuja da minha pergunta.
E tinha como?
— Não tive tempo.
Ele sabia. É claro que ele sabia.
Soltei a respiração com força e joguei a cabeça para o sofá.
— Eles precisam de você, Antônia. Depois dos pais, você é a presença mais constante
que eles têm. Eu sou quase um estranho para eles.
— Eu só... Ceci é igual a Vitória, Milo tem os mesmos olhos do Gregório. Eu não
consigo ainda.
Ele não falou nada, só retirou a garrafa da minha mão. Fiquei arrasada por falar aquilo
em voz alta, porque eram meus sobrinhos, meus afilhados, eu os amava mais do que tudo, mas
era coisa demais. Eles eram Vitória e Gregório todinhos. Os sorrisos, o jeito de correr, o olhar
doce.
— Eu sei, eu entendo.
Fiquei assustada por vê-lo ser compreensível comigo, mas continuei calada.
— O que vamos fazer com eles?
A mudança em sua postura foi visível. Ele estava destruído, tanto quanto eu. Aquele
também era o pior dia de sua vida, mas ele ainda conseguia parar e pensar nas crianças. O que
era admirável para mim, que não conseguia focar em outra coisa que não fosse meu sofrimento.
— O advogado do Gregório marcou uma reunião amanhã para falarmos sobre a tutela
das crianças, foi por isso que vim aqui, quero saber o que você tem em mente.
Esfreguei as mãos no rosto.
Eu tinha vinte e oito anos e nunca pensei em ter uma criança, porque nunca cheguei nem
no patamar de ter um relacionamento que evoluísse de um namoro de alguns meses. Nenhum
deles durava o suficiente para dar o próximo passo. Amo meus sobrinhos, daria a vida por eles,
mas nunca pensei na possibilidade de ter de ser totalmente responsável por eles, até porque
nunca foi preciso, porque eles tinham... pais.
Senti o arrepio percorrer minha coluna vertebral.
— O que você tem em mente? — rebati a pergunta.
— Quero cuidar deles, devo isso ao meu irmão. Tenho uma vida estabilizada, posso
suprir todas as necessidades existentes.
Naquele fim de mundo onde ele mora.
Muito longe. Longe o suficiente para que eu me tornasse a tia que é vista duas ou três
vezes no ano.
Fora isso, a parte da vida estabilizada me deu arrepios. Não que ele não tivesse, porque
eu sabia que tinha. A família de Gregório tinha grana, a vinícola deles era muito grande, Vitória
falava que os negócios para o marido e o cunhado iam de vento em popa. O grande problema
nisso era que Dante não era como o irmão. Ele era sério, quase nunca sorria, vivia para o
trabalho. Ele podia amar os sobrinhos e eu sabia que amava, mas ele nunca seria capaz de
acolhê-los, dar aconchego e aquele tipo de amor que eles tinham dos pais.
— E você que cuidaria deles? — sondei.
Dante bebeu mais vinho.
— Tenho funcionários que podem auxiliar. E também uma namorada. Eles se sentirão
mais confortáveis com uma presença feminina por lá.
Chegamos ao ponto que eu queria.
— Você tem uma namorada? — Meu tom era descrente.
Peguei o vinho das mãos dele e foi minha vez de mandar para dentro.
Eu amava as fofocas que Vitória contava sobre a vida amorosa de Dante. Em primeiro
lugar, porque eu amava fofoca e, em segundo, gostava de saber da vida de Dante Albizia porque
era a prova de que ele era não era um robô metódico. Ela sempre falava que ele destruía corações
lá na cidade, nunca queria saber de relacionamento sério e que mesmo as garotas fazendo de tudo
por sua atenção, ele só dava atenção para quem ele queria, na hora que queria. E o pior, ele não
era do tipo pegador para destruir corações dessa forma, ele era mais do tipo do que ignora e
some. O tipo de homem que eu odeio.
Um grande babaca, como disse.
— Por que o tom surpreso?
— Porque você está aqui sozinho. — Apontei para uma parede aleatória. — Onde ela
está no pior dia da sua vida?
— Nem todo mundo tem a disponibilidade de todos aqueles seus ex-namorados que se
acumularam no velório.
Semicerrei os olhos, tentada, pelo nível de álcool que corria livremente em minha
corrente sanguínea e também pelo desprezo que sentia por aquele cara, a mandar que ele se
fodesse.
Do mesmo jeito que Vitória fofocava a vida dele para mim, eu sabia que ela fofocava
sobre a minha vida para ele.
— Agora você conhece os meus ex-namorados?
— Você posta todos eles no seu Facebook. Nem dá tempo de curtir a publicação de
Antônia Milani está em um relacionamento e você já publica que terminou o relacionamento.
— Por que você me tem no Facebook? — Franzi a testa.
— Por que não é isso que as pessoas fazem?
— Ninguém mais usa Facebook.
— Eu uso.
— Combina com seu estilo.
Vi o músculo de seu maxilar ficar rígido, ele entendeu direitinho a ofensa, mas escolheu
não rebater. Agradeci por isso, porque ele era ótimo em rebater.
— Carina é comissária de bordo, teve um voo com um pernoite longo em Paris.
Fiquei surpresa pela tal namorada ser alguém interessante, porque a vida de Dante
parecia ser um marasmo sem fim. Quis perguntar como eles se conheceram, porque pareciam
dois mundos opostos. Alguém que viajava o mundo e um obcecado por uvas. Não fazia muito
sentido, mas não era como se me importasse também.
— Ela mora em Mendoza?
— Sim.
— E tem aeroporto lá? — Minha língua definitivamente era maior do que a boca, ainda
mais depois de tanto vinho ingerido.
— Vou fingir que não entendi a sua ironia, Antônia.
Apertei os lábios, tentando não esboçar qualquer reação.
— Você quer levar as crianças, então?
Voltei ao ponto principal daquela conversa esquisita. Ergui os olhos do chão e encontrei
o olhar intimidador de Dante. Ele me encarou por tempo demais, o que foi extremamente
constrangedor.
— Você poderia suprir todas as necessidades deles?
Seu olhar saiu de meu rosto para a minha casa. Ele sabia a realidade, porque eu sabia que
Vitória era uma fofoqueira de mão cheia. Esse apartamento era alugado e eu estava devendo dois
meses de aluguel. Como poderia não dever com o salário que ganhava na agência? Nunca
consegui permanecer em um trabalho tempo demais para criar raízes e evoluir profissionalmente,
porque nunca me senti no lugar certo, fora as dívidas que se acumulavam todos os meses em uma
montanha sem fim de boletos vencidos.
Minhas amigas já estavam em cargos altos, casadas e com filhos. Eu ainda não sabia nem
se queria ser o que era.
Comecei Gastronomia e larguei.
Comecei Veterinária e larguei.
Fiz cursos de astrologia, tarô, até de pintura.
Já trabalhei como animadora de festas, recepcionista, professora de inglês para crianças.
Teve uma época que trabalhei até no cinema.
A única faculdade que aguentei fazer até o final e que o trabalho não se tornou tão
insuportável — ainda — foi na área de marketing. Eu gostava de ser criativa, mas odiava o
salário e a monotonia.
Eu queria ser tantas coisas na vida, mas nenhuma delas envolvia ser um tipo de mãe para
meus sobrinhos.
E não era por falta de amor, era por não saber como criá-los, como ser suficiente, porque
eu não era suficiente nem para mim mesma.
Dante sabia disso.
— Foi o que imaginei.
Não falei um “a” e aquele babaca já estava com aquele arzinho soberbo dele.
— E o que você sabe sobre criar crianças, cara? — Cruzei os braços, tentando intimidá-
lo.
— Sei que precisam de um lar seguro, confiável e amoroso.
— Você é o oposto de alguém amoroso.
Precisei apertar os lábios novamente depois de ter deixado escapar essa. Seu olhar me
queimou mais uma vez, quase senti dor, sem brincadeira. Olhos verdes eram tão marcantes e
misteriosos, mas no caso de Dante, só eram olhos verdes assustadores, frios e julgadores.
— E o que você sabe sobre mim, Antônia?
Abri a boca duas vezes, temendo qualquer coisa que eu pudesse falar. Ele estava
adorando aquela situação, aquele babaca.
— Que você não é o tipo de homem que ofereceria acolhimento, amor e gargalhadas
para meus sobrinhos. Você não é o seu irmão.
Fiquei arrependida assim que saiu, mas não existia mais nada que eu pudesse fazer sobre
isso. Vi Dante arregalar os olhos, de leve, surpreso com minha resposta mal-educada.
— Tenho a impressão de que já ouvi isso. Seria um déjà vu?
Ficamos em um silêncio cortante dentro daquela sala. Os barulhos dos carros passando
na avenida lá embaixo era o único som que entrava ali.
Ele não estava falando o que eu achava que estava, certo?
— Você ainda não superou isso? — Quis ser engraçada, mas quando ele deixou a garrafa
em cima da mesa de centro, acabei assustada com o barulho.
— Você também não é a sua irmã. E por mais que tente, nunca será metade do que ela é.
Do que ela foi.
Precisei fazer uma força sobrenatural para não começar a chorar na frente de Dante, não
que eu já não tivesse feito isso o dia todo. Só não queria que ele achasse que eu me abalaria pelas
merdas que ele decidia falar por seu ego masculino eternamente ferido.
Eu sabia que nunca seria a metade do que Vitória foi, não era grande novidade. Minha
irmã era a criatura mais incrível de todas. Já eu estava discutindo com o cunhado dela horas
depois de vê-la ser cremada, enquanto existiam duas crianças órfãs e sem fazer ideia do que
estava acontecendo.
Aquele dia era o pior de todos e Dante se achava no direito de me atormentar? O cara
não chorava pelo próprio irmão, queria levar meus sobrinhos para a Argentina para serem
criados por uma namorada aleatória que nem parava em casa e ainda queria me atormentar justo
hoje?
— Foi exatamente por essa sua personalidade detestável que eu escolhi o seu irmão em
vez de você.
Esse era o pior que eu poderia oferecer a ele, sabia muito bem disso.
Dante ficou parado, encarando como se eu fosse um fantasma. Seu polegar subiu até a
barba cerrada, deslizando sobre o maxilar antes do sorriso mais cretino de todos surgir em seu
rosto.
— Não fale como se você fosse grande coisa, Milani.
Fiquei apática em cima daquele tapete, vendo Dante levantar do sofá e seguir em direção
à porta. Antes de sair, ele virou aquelas costas gigantes e cravou os olhos em mim pela última
vez.
— E as crianças ficam comigo. Ponto final.
Eu devia ter sido umas das primeiras pessoas a ter baixado o Tinder no Brasil, quase dez
anos atrás.
Estava com dezoito anos na época e doida para arranjar um namorado. Achava
impressionante que todos à minha volta já namorassem, menos eu. E quando arranjava alguém
minimamente legal, em questão de dias descobria que nem o minimamente funcionava. Eram
todos uns grandes idiotas, imaturos e mentirosos.
Então, a possibilidade de escolher homens como um catálogo, conhecer alguém por um
aplicativo, conversar, marcar encontros casuais e, quem sabe, achar minha alma gêmea, me
atraiu muito.
Uma semana depois eu já estava desanimada com os produtos oferecidos pelo
aplicativo. Foi então que em uma quinta-feira qualquer, eu estava deslizando fotos de possíveis
felizardos quando vi uma foto de um cara de tirar o fôlego. Olhos verdes, camisa xadrez preta e
vermelha, sorriso tímido em uma mesa qualquer atrás de uma grande taça de vinho.
Dante Albizia.
O nome era tão bonito quanto o homem.
Vinte e dois anos. Argentino. Gosta de vinhos. Enólogo.
Tive de pesquisar o que era um enólogo até, porque na época não sabia. Fiquei muito
interessada com o homem, tanto que fiquei nervosa e tasquei um superlike nele. O match veio no
mesmo segundo e vibrei internamente, tomando cuidado para não expressar muitas emoções,
porque estava trabalhando na recepção de uma clínica odontológica.
Fui eu quem mandou a primeira mensagem. Dante respondeu alguns minutos depois.
Começamos a conversar e fiquei surpresa em saber que ele realmente morava na Argentina e só
estava em São Paulo a trabalho, mas que iria embora naquela noite.
Ele era muito interessante, um cara legal, daqueles que faz valer a pena as horas de sono
perdidas em conversas divertidíssimas. Dias depois já estamos conversando fora do Tinder,
lembro que sempre sentia uma onda genuína de felicidade quando via que ele me mandou
alguma mensagem. A vida de Dante era bem atribulada, trabalhava em uma vinícola, cuidava das
degustações, vivia no meio do mato. Com o passar do tempo soube mais da sua família, do seu
irmão, do pai que não era tão presente ou carinhoso, da mãe que morreu em um acidente de carro
quando ele tinha só seis anos.
Eu nunca o tinha visto ao vivo e já estava caidinha pelo cara. Quando Dante falou que
retornaria a São Paulo para uma reunião e que poderíamos marcar um encontro, foi o dia de
maior glória na minha curta e pacata vida. Estava tão feliz que Vitória me levou para fazer unhas,
depilação, cabelo. Ela até comprou um vestido lindo para mim, sendo a irmã incrível que sempre
foi. Ela trabalhava como vendedora em uma loja de roupas para madames, nem poderia se dar ao
luxo de gastar tanto, mas quis me ver feliz, porque eu estava totalmente apaixonada pelo cara.
Cheguei ao hotel em um bairro chique da Zona Sul de São Paulo me sentindo uma
legítima gostosa dentro daquele vestido preto rodado que valorizava meus peitos. Minha
autoestima era uma lástima, nunca gostava do que via no espelho, tinha sempre a impressão de
ser grande demais, pouco feminina perto das outras garotas magríssimas e graciosas. Mas
naquela noite... Ah! Naquela noite eu estava sentindo que poderia dominar o mundo e encantar o
cara por quem estava totalmente encantada.
O restaurante era um daqueles chiques com a luz bem baixa, velas na mesa e um
cardápio minimalista com o preço maximalista. Pensei em dar meia-volta e voltar para casa,
porque Dante era perfeito demais para ser real. Ele era o combo completo: bonito, trabalhador,
charmoso, gostoso, bem-sucedido.
Eu era... Eu.
— Antônia?
A voz grossa cheia de sotaque chamou meu nome de uma forma que fez tudo entrar em
colapso dentro de mim. Meu nome era Antônia mesmo? Quem eu era? Não fazia ideia. O que
comi hoje? Não lembrava.
Virei o pescoço e dei de cara com o homem das fotos que apareciam vez ou outra em
meu celular. Dante era do tipo tímido, não mandava tantas fotos do que fazia, do que comia, de
onde estava. Eu já era do tipo carente por atenção e adorava compartilhar as particularidades do
meu dia a dia sem muitos atrativos. Ele recebia foto do metrô que eu pegava lotado, ele me
mandava uma parreira de uva. E quando ele mandava algo dele, algo revirava dentro de mim,
exatamente da forma como estava sentindo naquele momento.
Ele era igualzinho às fotos, o que era uma preocupação a menos. Agora só restava a
preocupação de ele ser um serial-killer, psicopata, chefe da máfia de tráfico humano ou daquele
tipo blasé que não gosta de animais, crianças e comédias românticas.
E se tinha algo que gostei em Dante era que ele era gato. Daquele tipo gato. Ele poderia
facilmente sair daqui para um comercial de perfume da Dior. Seu rosto era perfeito, nariz reto,
cabelos claros penteados para trás, olhos verdes que brilhavam mesmo na escuridão do
restaurante, maxilar quadrado. O combo ficava completo com a forma como a camisa social
branca envolvia o tronco atlético, as mangas até estavam mais justas na parte dos bíceps, o que
deu um calorzinho em minha nuca.
Ele tinha de ter algum defeito e com toda certeza deveria ser um psicopata, porque não
fazia nenhum sentido eu ter tirado aquela sorte grande. Homens assim passam reto por garotas
como eu.
— Nossa! Oi!
Apertei os lábios, sabendo que eu era uma completa tapada que não sabia formular uma
primeira frase legal para o cara com quem esteve conversando ao longo de todos esses meses.
Dante parecia confuso, levemente perturbado. Fiquei péssima por pensar que aquela sua
primeira reação foi por ver quem eu era verdadeiramente.
— Como você fez aquilo com seus olhos?
Perdi totalmente a pose. Desconcertada, cocei a nuca.
— Como assim?
Fiz a sonsa, porque era o que tinha em mãos nesse momento.
Alguns chamam de catfish, eu chamo de aprimoramento.
Confesso que mexi um pouco com meu talento no Photoshop em minhas fotos. Olhos
azuis aqui, um corpo magro ali, um nariz mais fino acolá. Não tinha a pretensão de ter me
tornado tão próxima assim de um cara qualquer do Tinder e quando percebi, já era tarde demais
para desmentir tudo.
Torci, ao longo de todos esses dias de espera para esse encontro, para que eu fosse
suficiente para Dante. Porque queria muito ser.
— Não importa. — Dante sussurrou e puxou o encosto da cadeira ao seu lado.
Ele puxou a cadeira para mim.
Uau, isso que era um homem!
— Como foi a viagem? — Decidi seguir em frente, sendo eu mesma, que afinal de
contas, era o que prendia aquele homem a mim ao longo desses últimos meses.
— Buena.
Algo explodiu em meu interior ao escutá-lo falar espanhol. Tornava tudo ainda melhor.
A cereja do bolo. A cervejinha gelada em uma sexta-feira depois do trabalho.
Assenti, contendo um sorriso animado e afetado por estar de frente a Dante. Caramba, eu
achei que isso nunca aconteceria.
O garçom se aproximou para deixar o cardápio e a carta de vinhos. Dante perguntou qual
vinho ele indicava e acabou em uma conversa extremamente técnica sobre tipos de uva, safras e
notas. Eu não entendia porra nenhuma de vinhos, mas achei sexy vê-lo daquela forma.
Deixei também que ele escolhesse uma entrada, porque não entendia sobre as comidas
refinadas. Quando o garçom se afastou, eu estava animada para conversar com ele pessoalmente,
escutar sua voz ao vivo, testar se aquela nossa conexão também funcionava cara a cara.
E nada do que eu queria saiu como o planejado.
A única atitude de Dante que parecia com o Dante que conheci por mensagens, foi ele
deslizar uma embalagem dourada pela mesa.
— Para ti.
Peguei a embalagem na mão e sorri genuinamente ao ver o que era.
Muitos anos atrás fui com minha mãe e Vitória para Buenos Aires. Foi a única viagem
internacional que fizemos e lembro dos dias incríveis que passei lá. E de um alfajor também,
cujo gosto nunca mais saiu da minha mente. Contei isso para Dante em uma de nossas conversas
e ele prometeu que no dia que nos víssemos, traria um alfajor do Capitán del Espacio.
— Eu não acredito que você conseguiu! Obrigada! Obrigada mesmo!
Eu poderia quicar de felicidade, mas Dante só assentiu.
E não falou mais nada.
E não estou exagerando, ele realmente não falou mais nada. Eu tentei tirar leite de pedra,
mas o homem não parecia nada a fim de estar ali. Desconfio de que se estivesse enfrentando uma
tempestade de gafanhotos em suas videiras estaria muito mais feliz do que ali comigo.
E como poderia julgá-lo? Eu o enganei. Com aquele rosto e corpo, seus padrões
deveriam ser elevados em níveis estratosféricos e eu estava ali por volta do núcleo interno da
Terra.
Foi então que tudo mudou. E todas as nossas vidas foram transformadas a partir do
momento em que Gregório, o irmão de Dante, apareceu naquele restaurante.
— Então, você é a famosa Antônia?
Gregório era uma figura bem diferente de Dante. De parecidos, apenas os olhos verdes.
Gregório era despojado, tinha cabelos escuros desalinhados, usava um moletom esportivo e
exibia o maior sorriso que já vi em um rosto. Ele era o oposto de Dante. Um pouco menos bonito
também.
Dante estava com o queixo apoiado na mão, vendo a festa que seu irmão fazia ao me
conhecer. Eu queria esse mesmo entusiasmo de quem sabia tudo sobre meus pensamentos e
minha vida. Falei coisas tão pessoais para Dante e agora parecia que eu era mais próxima de seu
irmão do que dele. Até o garçom olhava de forma mais íntima para mim do que aquele argentino.
— É um prazer te conhecer, Gregório.
— Nossa! Você é realmente muito bonita.
Seu sorriso era fácil. Aquele tipo de pessoa que não precisava de muito para acabarmos
gostando, aquele que só de estar perto já deixa o ambiente mais ameno. E, nossa! Estávamos
precisando de um ambiente ameno ali.
— Obrigada. — Eu estava corada, com toda certeza.
— Vou pedir um sanduíche e tomar algo ali no balcão. Se divirtam.
Gregório tinha menos sotaque do que Dante, provavelmente pelo quanto viajava. Dante
disse que seu irmão cuidava da parte comercial da empresa e que viajava muito.
— Pode sentar conosco.
Virei o pescoço de uma forma nada elegante ao escutar o que Dante tinha acabado de
falar. Ele chamou o irmão para sentar conosco em nosso primeiro encontro? Era isso mesmo?
Gregório abriu a boca algumas vezes, seu rosto era um misto de indecisão e dúvida.
O meu deveria estar igual.
— Não, eu vou... — Gregório apontou para o bar ao fundo.
— Será um prazer, Gregório. — Aumentei o sorriso e apontei para a poltrona ao meu
lado.
Deu para ver que ele tentou se comunicar telepaticamente com o irmão, eu sabia, porque
fazia aquela mesma cara com Vitória. “Que porra você está fazendo?” “Está maluco?”. Uma
linguagem universal de irmãos que não foi respondida por Dante, que preferiu focar os olhos na
taça de vinho.
Eu estava ali há meia hora com ele e tudo o que consegui escutar de sua voz foram
algumas palavras. Ele não me olhava, não fazia questão de conversar e mesmo quando eu estava
falando com ele, seus olhos nunca estavam nos meus. E não tinha nada que me irritava mais na
vida do que pessoas que não olham nos olhos.
— Então, como vai o encontro? — Gregório sondou.
— Ótimo.
— Formidável.
Ironia pura, de ambas as partes.
Comecei a ficar triste, porque Dante foi uma companhia incrível em meus dias chatos.
Ele preencheu um lugar que eu sentia um vazio absoluto e realmente gostava de conversar com
ele. Meu coração foi ficando apertado por entender que eu mesmo tinha provocado isso quando
decidi mentir sobre minha aparência. Ninguém gostava de ser enganado, eu mesma ficaria muito
chateada. Mas no fundo, só conseguia pensar que mesmo com a mentira, ainda era eu e ele nem
tentou ver isso.
Gregório salvou aquele jantar de ser um total colapso. Ele era muito comunicativo, o que
não parecia ser de família. Dante estava lá, parado feito um dois de Paus, escutando nossa
conversa sem falar nada. Vez ou outra o pegava olhando para mim, mas logo seu olhar ia parar
em qualquer parte do salão que não fosse eu.
Acabei tomando mais vinho do que estava acostumada e, ao final do jantar, não
recordava se algum dia comi uma comida tão boa. Gregório contava sobre suas últimas férias em
Ibiza, onde estava bêbado e acordou em um barco em Mallorca, sem lembrar absolutamente nada
do que fez. Eu estava mais relaxada e rindo. Se o encontro foi por água abaixo, pelo menos
aproveitaria a comida boa e a companhia agradável de Gregório.
— Preciso me retirar. — Dante anunciou, já colocando o guardanapo de linho em cima
da mesa. — Obrigado por ter vindo.
Ele era inacreditável.
Como eu pensei em ter algum relacionamento com aquele cara? Ou pior, que existisse
uma conexão real entre nós dois? Eu era muito otária mesmo.
— Obrigada por nada. — Acenei com uma das mãos, o álcool já falando por mim.
Gregório arregalou os olhos e tentou esconder o rosto atrás da taça.
Dante umedeceu os lábios rosados com a ponta da língua, o que provocou um arrepio
esquisito em minha nuca. E depois seus olhos caíram nos meus. Tive a impressão de que aquela
foi a primeira vez na noite que ele realmente me olhou e a experiência não foi boa. Seus olhos,
embora brilhantes, eram frios como o inverno do Alasca. Existia algo ali que me intrigava, mas
também assustava.
— Espero que se divirta com o meu irmão.
Dante deveria ter um transtorno bipolar ou algo do tipo, porque só isso justificaria suas
ações naquela noite.
Ele me ignorou a noite inteira e agora estava sendo irônico?
— Pode apostar que vou.
Rejeição significava redirecionamento em minha vida. E estava para nascer o homem
que cresceria para cima de mim.
Eu o vi assentir e dar as costas logo em seguida. Era só mais um babaca, não era grande
coisa. Dali a um mês eu nem me lembraria da existência dele.
— Isso foi intenso. — Gregório disse com a boca cheia de comida.
— Seu irmão sempre foi meio babaca assim?
— Geralmente ele fica, quando está na frente de garotas bonitas.
Tive a impressão de que Gregório estivesse dando em cima de mim, mas achei que era
paranoia da minha cabeça.
— Achei que hoje seria muito diferente do que foi — comentei, desiludida.
Desilusão era uma coisa engraçada, porque ela só vinha daquilo que não tínhamos o
menor controle: o outro.
— O que você esperava?
— Não sei... — Dei de ombros. — Mas até comprei algo novo. — Puxei o tecido do
vestido, sentindo-me uma idiota.
— É um vestido lindo.
— É, ele é.
Continuamos conversando sobre nossas vidas. A de Gregório era muito mais legal do
que a minha, mas ele era um bom ouvinte e estava entretido por minha indecisão em escolher
uma faculdade e uma carreira a seguir. Continuamos bebendo até que estávamos bêbados o
suficiente para achar uma boa ideia esticarmos a noite em uma boate que ficava na mesma rua do
hotel. Gregório ainda ligou para Dante para perguntar se ele queria ir conosco, mas ele já estava
dormindo.
O cara me largou com o irmão dele para ir dormir.
Tenho certeza de que esse encontro foi Deus me dando um livramento.
Foi movida por esse pensamento que cheguei àquela boate querendo fazer um estrago. E
eu fiz.
Peguei os limites e chutei para a Sibéria.
E depois de muita cachaça na cabeça, gargalhadas e uma amizade ter surgido entre mim
e Gregório, acabei fazendo a maior insanidade de toda a minha existência e peguei o irmão do
cara por quem eu estava caidinha.
Quando penso naquela noite que passei com Gregório, a sensação de morte é eminente.
No dia não foi nada ruim, mas com o desenrolar dos fatos, a situação ficou esquisita demais. Eu
estava com raiva de Dante e talvez — só talvez! — essa raiva pudesse ter sido combustível para
ter acordado no dia seguinte na cama de seu irmão, descabelada, com a dignidade jogada
embaixo do tapete.
Gregório era demais, aquele tipo de pessoa que irradia luz, que acorda sorrindo e deixa
mais suave até a maior das situações constrangedoras. Ainda tomamos café da manhã juntos,
comentando sobre a bizarrice que resolvemos fazer. O sexo foi legal, mas ainda fazia com que eu
me sentisse meio esquisita, porque aquele vestido era para ter sido tirado pelo outro irmão.
Jurei que nunca mais falaria com nenhum dos dois, na volta para casa. Até bloqueei
Dante de tudo para não sucumbir ao bom papo — digital, é claro — daquele argentino irritante.
Só que ao final daquela mesma noite, Gregório me mandou uma mensagem, perguntando se eu
queria ir ao cinema com ele.
Era fácil gostar de Gregório, porque ele era uma pessoa incrível. Sabia conversar sobre
tudo, era engraçado, tinha aquele brilho especial de quem se importava com o outro. Que ser
humano espetacular ele se mostrou ser durante aqueles dias em que saímos. Em um desses dias,
ele contou que Dante não gostou nada de saber que estávamos saindo, mas que teve de falar com
o irmão, pois achava que era o certo a se fazer.
Preferi não comentar nada, mas no íntimo, adorei saber que consegui deixar Dante
irritado. Fazia valer por toda a expectativa que coloquei em cima dele e sua atitude babaca
colocou tudo a perder naquele encontro.
Foi em uma tarde de domingo que aprendi que quem ri por último, ri melhor. E que
Dante passaria o resto da vida gargalhando às minhas custas.
Levei Gregório para minha casa, porque aos domingos, minha mãe, Vitória e eu
fazíamos churrasco. E Gregório amava churrascos e estava sozinho na cidade pelo trabalho. Na
semana seguinte ele retornaria a Mendoza e voltaria para São Paulo apenas no próximo mês. O
churrasco era uma desculpa para apresentá-lo à minha irmã e mãe, que estavam ansiosas para
saber quem era o homem com quem eu estava passando tanto tempo.
Foi então que aconteceu.
O karma se provou ser uma vadia.
E eu até que mereci, para falar a verdade.
Posso jurar que fogos de artifícios explodiram quando Gregório e Vitória se viram pela
primeira vez. Foi quase como um comercial brega de Dia dos Namorados. Eles ficaram parados,
olhos vidrados um no outro, bocas abertas, mas incapazes de proferir palavras.
Naquela tarde de domingo, Gregório incorporou o espírito de Dante e não conseguiu
falar absolutamente nada. Minha mãe e Vitória não conseguiram ver o cara engraçado, feliz e
carinhoso que ele era, porque ele fez exatamente a mesma coisa que Dante fez comigo, ficando
lá parado com uma cara assustada para minha irmã.
Antes que domingo terminasse, nós já tínhamos conversado sobre pararmos de ficar.
O amor acontecia das formas mais inusitadas possíveis, foi o que concluí de toda essa
história. E precisou que eu me encantasse por um cara, ficasse com o irmão dele, para que a
minha irmã encontrasse sua alma gêmea.
E foi assim que Dante ganhou o direto vitalício de rir da minha cara.
Ainda demorou uns seis meses, muito choro da parte de Vitória e até uma briga séria
entre nós duas após descobrir que ela estava escondendo de mim — logo de mim! — que estava
saindo com Gregório. Eles queriam me poupar, como se eu quisesse ser poupada. Dante encarou
a situação de boa quando foi com ele, por que eu criaria caso? E, bem, era nítido há quilômetros
de distância de Vitória e Gregório eram almas gêmeas.
Dante e eu fomos o caminho para que eles ficassem juntos.
E, agora, todos nós estaríamos eternamente interligados.
O escritório do Dr. Lopes ficava bem longe de casa, por isso, o deslocamento foi caótico.
Ele foi o advogado que cuidou do inventário da minha mãe, o que era engraçado, porque eu já o
conhecia, mas nunca perguntei seu primeiro nome. Estava abalada demais para perguntar na
época. E agora mais ainda.
Eu tinha perdido, em um intervalo de cinco anos, as duas pessoas que mais amava na
minha vida. E o Dr. Lopes parecia o portador das péssimas notícias.
Quando entrei em seu escritório chique, com máquina de café a vontade ― por sinal, o
melhor café que já tomei ―, secretárias de nariz em pé e saltos finíssimos e amplos janelões com
vista para a cidade, fui direcionada para a sala principal. Eu esperava nunca mais ver o Dr. Lopes
na vida, talvez no caso de um divórcio, chutando bem alto. Se bem que eu nunca conseguiria
pagar pelos serviços desse advogado se resolvesse me separar de meu hipotético marido. Mas, ali
estava eu novamente. Quebrada, destruída, com a cara arrebentada pelo choro incessante da
madrugada.
Dante estava sentado na cadeira em frente ao Dr. Lopes, ambos com xícaras de café na
mão, o silêncio reinando no ambiente.
— Senhorita Milani. — Dr. Lopes levantou prontamente, quando me viu.
Ele era um senhor de baixa estatura, cabelos brancos sempre penteados para trás e que
usava ternos que possivelmente valeriam o preço de um carro popular.
— Dr. Lopes. — Assenti com a cabeça e fui apertar sua mão. — Ontem me esqueci de
agradecer ao senhor por ter comparecido ao velório.
— Lamento demais sua perda. Gregório e Vitória eram pessoas especiais.
Precisei morder a ponta da língua para sentir algo mais forte do que aquela dor. E não
consegui. Assenti duas ou três vezes mais antes de desmoronar na cadeira ao lado de Dante.
Ele espiou de canto de olho meu estado, mas não falou nada. Também, como poderia
depois daquela cena lamentável de ontem? Eu não deveria ter falado daquela forma com ele, não
depois do dia de merda que tivemos, não depois que as duas pessoas que mais amávamos no
mundo nos deixaram.
Fiquei assustada por perceber que Dante e eu estávamos sozinhos no mundo. Não
tínhamos mais família, sem serem as crianças. Bem, ele ainda tinha o pai e a tal namorada, mas
acho complicado chamar de família alguém que não aparece no momento em que você mais
precisa.
Olhei de canto de olho para ele também, observando sua postura extremamente reta, o
queixo empinado em direção à janela, como se fosse um desafio mental que fazia consigo para
não olhar para mim.
Babaca.
Ainda mais vestindo aquela camisa xadrez vermelha e preta. O São João já passou há um
bom tempo, alguém deveria avisar para ele.
— Vocês podem imaginar o motivo de ter chamado os dois aqui. — Dr. Lopes começou
a falar, movimentando sua caneta chique entre os dedos.
Baixei os olhos para uma placa dourada que chamou minha atenção: Dr. Sebastião
Lopes. Aquela placa sempre esteve lá? O nome do Dr. Lopes era Sebastião? Não combinava com
sua pessoa requintada.
— Sobre as crianças, certo? — Dante perguntou.
Dr. Lopes, Sebastião, assentiu. Pensar no nome do advogado fez com que eu sentisse o
coração apertar ao me lembrar de Ceci. Ela amava aquele caranguejo de A Pequena Sereia.
— Ninguém pensa que tragédias podem ocorrer a qualquer segundo, é totalmente
natural, mas Gregório e Vitória não se precaveram com essa questão. Não há nenhum tutor
nomeado para ficar com a guarda das crianças e, como advogado e amigo de Gregório, sei que a
família Albizia e Milani se resume a vocês.
Precisei morder o lábio para não começar a chorar ali. Minhas mãos tremeram.
Sozinha. Para sempre.
Vi quando o copo de água diante de Dante se moveu pela mesa de carvalho polida até a
minha frente por dois dedos longos.
Meu soluço deve ter escapado para tamanho ato de cuidado da parte dele.
— Vocês são padrinhos das crianças e as pessoas que, fora os pais, são mais próximos
deles. Precisamos acertar os detalhes sobre a guarda e também sobre a herança, que fica sob
responsabilidade do guardião legal até as crianças atingirem a maioridade. Vocês chegaram a
conversar sobre essa situação?
Busquei o olhar de Dante, mas ele seguiu sem me olhar.
Eu pensei bastante ontem a noite, depois da discussão idiota que tivemos na sala de casa.
Obviamente a minha maior preocupação era a forma como meus sobrinhos seriam criados. Dante
não estava nada preparado para criar duas crianças com afeto, respeito e amor. Eu já o vi, com
meus próprios olhos, passando por um filhote de cachorrinho sem nem ter a coragem de
murmurar um simples “Awn” sequer enquanto eu, Gregório e Ceci já estávamos rolando no chão
com aquela bola de pelos que Vitória comprou de presente para a filha.
Eu, tampouco, sabia o que estava fazendo da minha vida. Eu os amava mais do que tudo,
mas sabia que nem só de amor consiste a criação de crianças. Eles precisavam de estudos, uma
alimentação saudável, roupas, saúde, brinquedos, viagens. E tudo isso custa muito dinheiro. Rios
de dinheiro. E a única pessoa que tinha preparo para isso, era Dante.
— Conversamos ontem, mas não chegamos a um consenso.
Encarei Dante debochadamente. Conversamos? Tudo o que ele fez ontem foi falar que
levaria meus sobrinhos embora e depois saiu batendo o pé de casa.
— Você gostaria de ficar com as crianças, senhorita Milani?
— Eu... — Perdi a voz e a coragem de falar, porque pela primeira vez no dia, Dante
resolveu colocar os olhos em mim. E foi intenso. — Eu amo os meus sobrinhos.
— Há outras opções também. Guarda compartilhada, talvez? — sugeriu Dr. Lopes.
Cocei meu couro cabeludo.
— A minha vida não é boa o suficiente para crianças. Eu não sou boa o suficiente para
eles — sussurrei a última parte, porque passei a noite toda concluindo isso. Só era vergonhoso
admitir. — Tenho algumas preocupações com relação à forma como o Dante vai cuidar e educar
as crianças, mas... ele é a melhor escolha para elas.
Eu caí no choro e não foi bonito. Até Dante esticou o braço para depositar a mão em meu
ombro. Dr. Lopes esticou seu lenço de tecido em minha direção, que aceitei de bom grado.
Não sei se isso era o que Vitória iria querer de mim. E a sensação de fracassar com a
minha irmã era horrível, porque ela nunca fracassou comigo. Nunca mesmo.
— Senhorita Milani, podemos marcar outra reunião depois. É visível o quanto a
senhorita está abalada.
— Eu só quero que eles sejam amados — falei com Dante, que estava ali, mais próximo
do que achei que estaria. — Não seja um estranho para eles.
Dante assentiu, mas não falou nada.
— Temos uma decisão? — Dr. Lopes pressionou.
Senti o desespero brotar em meu coração. Afogando em culpa. Abarrotada pela dor.
Será que escolhendo isso estaria decepcionando Vitória? Ela esperava isso de mim?
Cuidar de seus filhos? Privá-los de uma vida com tudo do bom e do melhor? Ela cuidou de mim
mais do que uma irmã mais velha teria responsabilidade de cuidar e eu não faria o mesmo por
seus filhos.
Pisquei, sentindo duas lágrimas rolarem pela pele fria de minhas bochechas.
— Precisamos conversar sobre mais alguns detalhes. Podemos remarcar para amanhã?
— Dante perguntou, mas seu corpo já estava longe da cadeira e sua mão grande e áspera, em
meu cotovelo.
Ele queria que eu levantasse? É isso?
— Tudo bem.
Ainda estava levemente atônita ao vê-lo me arrastar para fora daquele escritório,
passando pelo corredor cheio de prêmios do Dr. Lopes e a máquina de café que eu nem tive o
prazer de usufruir. Só voltei a respirar quando estávamos, Dante e eu, sozinhos dentro do
elevador.
— Já pode tirar as mãos de mim.
Ainda era um mistério o real motivo pelo qual eu sentia a necessidade de ser
extremamente grosseira com Dante. Meu chute seria que foi a rejeição e a súbita quebra da
conexão que criamos enquanto conversávamos por mensagens. Não lido nada bem com rejeição.
E a de Dante foi uma das mais doídas. Para resolver isso eu teria de dedicar muito tempo a ele na
terapia e... Sinceramente? Com a consulta custando duzentos reais, uma mãe falecida e agora
uma irmã e um cunhado também, ser assistente de um cara de vinte e um anos, estar quase
chegando aos trinta sem nenhuma estabilidade financeira e emocional, sem namorado, marido ou
possibilidade de um dia ter uma família, Dante está na posição 10.540 da minha lista de
problemas.
— Com todo prazer.
Tremi de raiva ao escutar aquilo, mas fiquei firme, porque eu que tinha começado.
O elevador era muito rápido e atingiu o -3 antes que pudesse organizar meus
pensamentos e sentimentos. Dante saiu na frente, pedindo o carro ao motorista.
— Aonde vamos?
— Conversar.
— Podemos conversar aqui.
— Sim, mas eu preciso de ar. Você não?
Não discordei, porque não tinha como. Eu só queria voltar a respirar como fazia antes
daquele maldito telefonema. Mas, assim que o carro branco chegou, soube que nunca mais
conseguiria fazer isso.
Era um simples carro, mas foi o suficiente para fazer com que eu desabasse mais uma
vez.
Dante estava com o carro de Vitória. O carro que ela ganhou de presente de seis anos de
casada. Um SUV da Mercedes que a fazia, nas palavras dela, “parecer a mãe gostosa que vai ao
pilates e toma smoothie de frutas vermelhas e cranberry”. Ela era esse tipo de pessoa, que zoava
de tudo, até de sua própria vida, porque, sim, ela era a mãe do pilates cheia da grana, mas ela
também era muitas outras coisas. Era dona de uma loja de roupas, a figura mais bem-vestida que
já vi no planeta, era uma ótima amiga, daquele tipo que fala as verdades em um tom maternal,
que te faz sentir acolhida. Ela era a pessoa que tinha sempre dinheiro trocado para dar a quem
pedia na rua, porque se sentia grata por ter tanto e poder ajudar quem precisa.
Vitória era tudo para mim e agora eu só tinha lembranças de quem ela foi.
— Era o único carro na casa.
O tom de Dante era de justificativa. Normalmente eu o culparia por tudo, mas nisso ele
não tinha culpa alguma. Deveria ser só um carro.
— Eu preciso muito daquele ar agora.
Funguei alto, usando as costas da mão para limpar o nariz.
— Vou dar um jeito nisso.
Dante começou a dirigir pelas ruas tumultuadas enquanto eu tentava controlar o choro e
minha respiração. Vez ou outra olhava de esguelha para a figura enorme que era Dante ali. Seu
corpo era volumoso, sim, mas a presença dele tomava conta de cada átomo daquele ambiente.
Era como tê-lo impregnado em minha pele.
O que levou a pensar que, enquanto eu me debulhava em lágrimas, ele se mantinha sério.
Será que já tinha chorado? Será que seu luto era pior do que o meu, mas ele só sabia sentir
quanto estava só? Era a cara dele algo do tipo. Demonstrar fraqueza não era algo que Dante
Albizia fazia.
Não demorou para Dante entregar o carro para um manobrista em frente a uma daquelas
padarias orgânicas e chiques com o preço inflacionado. O lugar estava bem tranquilo, apenas
com uma mesa ocupada. Eu o segui até a parte externa, onde as mesas ficavam embaixo de uma
jabuticabeira. A brisa suave daquela manhã ensolarada foi o acalento que precisava após os
últimos acontecimentos.
Pedimos avocado toast para comer. Suco de laranja para mim. Café preto e sem açúcar
para ele. Típico.
— Você quer ficar com as crianças? Dessa vez precisamos conversar sério, como
adultos. Sem ofensas, cara fea e tudo mas.
Cruzei os braços, sentindo minha sobrancelha tomar vida própria para demonstrar minha
profunda aversão àquele papinho.
— Não fui eu quem começou.
Dante respirou fundo, tapando o rosto com as mãos.
— Tudo bem, tudo bem — continuei, as mãos para o alto. — Eu só quero o melhor para
eles, Dante.
— Eu também.
— E quero que minha irmã fique feliz com essa escolha.
— Você não acha que ela ficaria feliz quando me visse com as crianças?
— Eu acho que ela ficaria preocupada. — Fui explicitamente sincera e tentei explicar. —
Você vê um problema e quer resolvê-lo. Seu irmão morreu, você estava organizando o velório,
as papeladas e tudo mais. Seus sobrinhos estão órfãos, você já pensou em tudo, quem cuidará
deles, onde irão morar. Tenho certeza de que já ligou para alguém pintar o quarto deles, comprar
cortinas e brinquedos.
Dante remexeu o corpo na cadeira e cruzou os braços, parecendo incomodado em ser
descoberto.
— Tem algo de errado nisso?
— Você não se permite sentir. E Vitória achava isso. Excelente coração, mas robótico.
— Você está dizendo que minha cunhada não gosta de mim?
— Estou dizendo que ela quer sentimentos reais perto das crianças. Não uma namorada
qualquer, não funcionários que são pagos para obedecer. — Eu sabia que ele explodiria em
questão de segundos, dava para ver o transtorno em seus olhos, uma tormenta verde-folha. — Se
você garantir que eles terão amor, acolhimento e proteção, não apenas segurança e dinheiro, eu
estou do seu lado. Você só precisa tentar.
A garçonete chegou com nossos pedidos, terminando por deixar o clima ainda pior.
Dante estava parado, o semblante mais sério do que nunca. Eu basicamente o chamei de monstro
sem sentimentos, mas só queria que ele entendesse.
Depois de deixar tudo na mesa, a garota de cabelos azuis deu as costas, deixando-nos
naquele clima terrível.
— Como guardiã legal deles, você teria acesso ao dinheiro, sabe disso? Não teria
problemas para sustentá-los.
Sim, eu entendi o que o Dr. Lopes tinha falado. O dinheiro ajudaria demais, mas existia
outra questão bem maior que isso.
— Eu sei.
— Então, qual o motivo para não estarmos brigando pela guarda deles?
Seus olhos cravaram nos meus e fiquei com a torrada parada na altura da boca. Se eu
falasse em voz alta, daria poder a Dante. Mais do que isso... Estaria exposta de uma forma que
jurei naquele restaurante chique, nove anos atrás, nunca mais me submeter. Eu abri toda a minha
vida, meus sonhos, meus desejos para ele, que acabou por me tratar daquela forma horrorosa.
E mesmo sabendo disso, eu ainda quis falar.
— Porque eu estou quebrada demais para fazer alguém feliz.
Dante abaixou os olhos, anuindo com a cabeça em um movimento mínimo. Esperei que
fosse falar algo, mas ele começou a tirar os tomates de cima da torrada, deixando-os na lateral do
prato. Qual era o problema com esse homem? Não sabe conversar e ainda não gosta de tomate.
— A felicidade está no ato de se reinventar.
— Fez curso de coach?
— O quê? — Seus olhos ficaram menores e com algumas linhas à medida que sua falta
de compreensão com o meu humor ficava mais nítida.
— Você se sente presa, mas ainda dá tempo de mudar.
— E de onde você tirou isso?
— Você está no mesmo lugar de quando te conheci, nove anos atrás.
Aquela bordoada doeu, porque foi verdadeira. Dante sabia sobre o que falava. O que era
irritante demais. Tomei um longo gole do suco pelo canudo de vidro e tamborilei os dedos na
mesa.
— Você nem se deu ao trabalho de me conhecer. — Soltei um risinho nasalado e
balancei a cabeça, descrente com aquela conversa. — Eu estou quebrada porque em cinco anos
perdi minha mãe e minha irmã. E isso...
— Muda tudo.
— É.
Entramos em um silêncio profundo, porque ambos sabíamos que o ponto principal da
conversa estava se perdendo. Por isso era mais fácil não nos falarmos ou minimizar nossas
interações para simples cumprimentos cordiais em encontros inevitáveis em família.
— Você... — Limpei a garganta ao perceber o quanto minha voz estava abalada. —
Acha que pode se reinventar? Ser a pessoa que Vitória gostaria de ver criando seus filhos?
Eu tinha minhas dúvidas, mas também eram seus sobrinhos e sabia o quanto Dante os
amava. Mesmo com aquele trabalho louco dele, a administração da vinícola, a árdua tarefa de
colecionar camisas xadrez e corações partidos pelo caminho, ele sempre achava tempo para as
crianças. Fosse por chamada de vídeo, enviando presentes ou só enchendo o saco da minha irmã
e Gregório para viajarem para Mendoza.
— A felicidade está no ato de se reinventar — repetiu ele.
— Você é tão cansativo. — Fingi um bocejo, apenas porque ele merecia saber que me
causava tédio.
Dante rolou os olhos, uma atitude humana, que às vezes eu duvidava que ele fosse capaz
de ter. Ficamos em silêncio por mais alguns minutos enquanto eu finalizava a minha torrada e ele
o café.
— Você conseguiria me ajudar?
Por um momento achei que ele estivesse falando sobre o café, a torrada que ele não
comeu até o fim, talvez até os tomates que foram ignorados, até perceber que ele não falava
sobre o que estava acontecendo ali, sim, sobre o que aconteceria.
— Em quê?
— Com as crianças. Por um tempo. Até eles se sentirem confortáveis comigo. — A
forma embolada como falou, denunciava o desagrado oculto em ter de me pedir ajuda.
Eu preferia descer ao inferno a ter de pedir algo a Dante.
— De que forma?
— Talvez... — Ele nem precisou falar para que eu soubesse que odiaria o que viria a
seguir. — Passando um tempo conosco.
— Em Mendoza? — Minha voz aguda era a comprovação de meu desespero.
— Sim. Quinze, vinte dias. Um mês, no máximo.
— Um mês naquele fim de mundo... com você. — Apontei o indicador para ele, que só
semicerrou os olhos, prontíssimo para rebater.
— Com seus sobrinhos, para a adaptação deles. Achei que fosse de comum acordo que o
bem-estar deles é a prioridade.
— E é. Mas o meu bem-estar que será extinto com isso.
— Você já é uma mulher adulta. Aja como tal.
Senti vontade de levantar daquela cadeira e deixar Dante falando sozinho, mas continuei
com a bunda bem grudada naquele couro acolchoado, porque, sim, eu era uma adulta. E uma
adulta preocupada com o bem-estar dos meus sobrinhos sem os pais, em outro país, sendo
criados por funcionários e uma namorada que nem deve parar em casa. Estando por perto, eu
poderia ver se poderiam ser felizes com Dante, se ele podia realmente se reinventar e ser melhor
para aquelas crianças que perderam tudo e não faziam a menor ideia disso.
Eu via verdade em Dante, mas só queria ter a certeza de que ele seria capaz disso, porque
já era doloroso saber que eu não era quem eles precisavam nesse momento. E nem quem Vitória
confiou que eu fosse.
— Eu topo.
— Ótimo.
— Precisamos fazer com que isso dê certo, por eles e por nossos irmãos.
O nó na garganta voltou a se alojar entre minha traqueia e o esôfago.
— Vamos dar um jeito.
Quando vi aqueles dedos compridos esticados em minha direção, precisei de muita força
de vontade para não agir como uma criança mimada. Era um momentâneo acordo de paz,
firmado pelo mais profundo desespero e dor diante daquela situação sem saída em que caímos.
Apertei sua mão, sentindo a aspereza de uma pele que trabalha pesado. Todos os caras
com quem saí ao longo da vida não tinham mãos como as dele. Por que diabos sentir calos na
mão de um homem o torna visualmente mais interessante?
— Vamos dar um jeito.
Se isso seria verdade, eu não fazia ideia, mas eu tinha certeza de que tentaríamos
qualquer coisa pelo bem daquelas duas criaturas que agora eram a única família que tínhamos.
O que, inevitavelmente, também nos fazia família.
Tudo o que já estava difícil piorou quando entramos na casa de Vitória e Gregório após
aquela manhã tumultuada que Dante e eu vivemos.
Eu passaria uma temporada em Mendoza.
Meus sobrinhos morariam com Dante.
Minha irmã e meu cunhado continuavam mortos.
Nada disso parecia fazer muito sentido, mas foi quando entrei na casa luxuosa e rodeada
por todas as partes daquela família que repentinamente teve todo o seu futuro alterado.
Gregório era maluco por fotos e metido a fotógrafo. A sala era decorada por inúmeros de
seus cliques. Uma parede lotada de quadros com o mesmo tamanho, contando toda sua história
com Vitória e as crianças. A minha preferida era uma que foi tirada nem um ano atrás, no
nascimento de Milo, não era um clique de Gregório, mas os quatro estavam juntos no quarto.
Vitória segurando no colo aquele pacote azul-bebê, Gregório ao seu lado e Cecília no meio dos
pais, os bracinhos curtos em seus pescoços, aproximando-os.
Tudo dentro daquela casa costumava ser um arco-íris, uma explosão de cores, risos e
felicidade. E agora era o mais profundo e triste tom de azul.
— Não! Má garota!
A voz de Dante ecoou pela ampla sala e virei o pescoço tão rápido ao escutar o tom
repreensivo. Ele não falaria assim como uma criança, certo?
Quando meus olhos focalizaram onde ele estava e com quem ele estava, percebi que o
buraco era muito mais embaixo do que esperava.
— Ela só está pedindo carinho, seu ogro.
Atravessei a sala em dois segundos, abaixando para pegar Rocambole, a chihuahua de
Cecília. Na verdade, era de Vitória, mas foi assim que minha irmã convenceu Gregório a
comprá-la, falando que era importantíssimo para o crescimento de uma criança ter um animal de
estimação. Era uma bela desculpa para a sua vontade de ter um cachorro. A nossa, na verdade.
Fomos crianças que nunca puderam ter um bichinho, porque o trabalho e nossa mãe exigiam
sempre que estivéssemos nos mudando e sua justificativa era que um animal não poderia nos
acompanhar.
— Esse inseto é dependente demais.
— Esse inseto vai para sua casa também. — Cocei atrás das orelhas de Rocambole,
observando seus olhos saltados fecharem instantaneamente com o carinho.
— Nunca.
— Boa sorte ao falar isso para Cecília.
— Eu sou alérgico.
— Você é alérgico a tudo que seja positivo, feliz ou interessante. Não é novidade.
Dante deu as costas e saiu pisando duro pelo piso de madeira. Observei por mais algum
tempo a sala, vendo Vitória em cada canto dali; arrumando a longa mesa de jantar para receber
convidados no jantar, lendo seus livros de romance de época no divã ao lado da porta-balcão,
jogada com os pés em cima do sofá tremendamente branco e escutando os resmungos de
Gregório que era fã de peças de design e considerava aquele sofá o Santo Graal do design de
interior, mas sendo incapaz de brigar seriamente com ela. Ele nunca conseguia, era até
engraçado.
Vitória e Gregório eram minha meta de casal. Almas gêmeas, pessoas que em qualquer
situação, em qualquer multiverso e probabilidade, terminariam juntas, porque se completavam.
E agora eles estavam juntos.
Foi cruel, mas um pouco consolador pensar que mesmo diante dessa tragédia, eles
estavam juntos e continuariam juntos para sempre.
E nós agora orbitávamos sem rumo naquele templo de amor deles.
Subi as escadas após procurar as crianças no jardim vazio. Cecília não estava em seu
quarto, então continuei até a brinquedoteca ao final do corredor. Escutar sua voz fina e doce foi
um baque grandioso em meu coração.
Eu falhei com ela. Eu falhei demais com a minha menina.
Fiquei imersa em minha dor absurda e a deixei de lado. Ao me aproximar do batente da
porta e espiar o que acontecia lá dentro, senti meu coração que já estava em pedaços, trincar em
milhares de pedaços ainda menores. Cecília estava sentada em uma mesinha baixa, servindo chá
para todos os seus ursos favoritos e para Vera, a babá.
— Senhor Buzz Lightyear, com açúcar ou adoçante?
Ela era tão pequena, tão delicada, tão incrível. Cecília tinha todas as qualidades de
Vitória e Gregório reunidas em um coração lindo, bondoso e tão gentil. Minha irmã dizia sempre
que eu só via as coisas boas de minha sobrinha, porque não ficava tempo o suficiente para ver
que ela também tinha herdado muito dos defeitos dos pais. Em minha defesa e de Ceci, nós
passávamos tempo o suficiente juntas para saber que minha irmã não sabia o que estava falando.
— Puro? Como o papai? Uau, você é gente grande.
Não sei em mais quantos pedaços meu coração era capaz de se quebrar, mas escutar Ceci
falando sobre o pai, fez com o que doía, doesse ao quadrado.
Órfã. Minha sobrinha era órfã. Aos quatro anos. Deus sabe o que a mente dela será capaz
de guardar sobre os pais, todos aqueles momentos especiais, únicos e singelos aos quais eles
dedicaram aos filhos. Será que se lembraria da voz de Vitória contando a história da Pequena
Sereia?
Acabei fungando alto demais e chamei a atenção de Vera, que fez Cecília também
perceber uma movimentação diferenciada.
— Titi!
Fui recebida com euforia, como sempre. Mãos pegajosas e açucaradas tocaram meus
braços, tentando tomar impulso para subir em meu colo. Tinha algo de muito poderoso em ser
uma das pessoas favoritas de uma criança e mais ainda em saber o quanto ela se decepcionaria
comigo quando entendesse o que fiz hoje. O que fiz ao longo desses últimos dias.
— Formiguita, senti saudades.
Peguei a garotinha em meu colo, sentindo o suave cheirinho de colônia e talco. Cecília
puxou os olhos verdes da família de Gregório, grandes, curiosos e extremamente amorosos. Os
cabelos eram escuros, assim como os de Vitória, caindo pelos ombros com cachos nas pontas.
Ceci vestia uma de suas roupas usuais, macacão vermelho daquele desenho PJ Masks,
que ela tanto adorava e uma coroa de brilhos prateados e uma foto da Elsa, de Frozen, bem na
frente. Minha sobrinha tinha opiniões fortes sobre moda e dificilmente alguém conseguia
convencê-la de que suas escolhas estavam erradas. Enquanto a observava, sempre fiquei chocada
de como alguém tão pequena conseguia ter opiniões tão fortes.
— Titi, eu também. Você quer chá?
Uma xícara de plástico com estampa de pequenas abelhas foi colocada em minha mão.
Eu sabia o que precisava fazer agora.
Acomodei a minha bunda que não tinha o tamanho adequado para aquela cadeirinha rosa
há pelo menos uns quinze anos, recebendo o olhar desolado de Vera. Senti sua mão em meu
ombro, um gesto silencioso de apoio e carinho diante daquela situação terrível.
— Será um prazer — falei, formalmente. — Como está, Sr. Lightyear? — Brindei no ar
com minha xícara, observando o boneco de pelúcia com cílios desenhado nos olhos por
canetinha hidrográfica; obra de Cecília.
Eu amava minha sobrinha, mas sentia arrepios quando via seus rabiscos pelas paredes,
bonecos, roupa de cama e todos os cantos da casa. Vitória e Gregório falavam que ela estava se
expressando artisticamente. Se fosse comigo, anos atrás, eu teria de me expressar com o cinto da
minha mãe, caso resolvesse pintar toda a casa com minhas mãos.
Deveria ser por isso que eu estava há anos na terapia.
— Vou dar uma olhada em Milo, tudo bem? — Vera levantou da minicadeira com o
encosto de nuvem.
Assenti, voltando a focar em Cecília e evitando pensar no que aconteceria daqui para
frente. Vera acompanharia as crianças na mudança? Ela cuidava de Cecília desde quando era um
bebê, tinha tanto contato com elas quanto os pais. E agora eles poderiam perder tudo o que era
familiar.
— Titi? — A voz doce chamou, fazendo com que eu voltasse a focar no agora. — Onde
está minha mamãe?
Derrubei a xícara de brinquedo na mesa, sentindo o coração ir parar na boca.
Dante não tinha contado nada para Cecília e eu nem poderia julgá-lo, porque ninguém
quer passar por uma situação como essa. Sabia que precisava falar a verdade para ela, porque não
há como mentir para uma criança, dizendo que seus pais irão voltar em breve, porque não vão.
Ela nunca mais veria a mamãe e o papai dela. Mas, como explicar isso? Como fazer que esse
momento não molde todo o resto de sua vida?
Meus olhos começaram a lacrimejar e precisei de uma respiração profunda e uma boa
olhada para o teto para segurar as lágrimas.
Eu era adulta.
Eu precisava ser forte.
Cecília e Milo precisam de mim.
— Formiguita... — Segurei sua mãozinha com ternura. — Preciso te contar algo
importante.
Aquelas duas esmeraldas brilharam de curiosidade, ansiosas, cheias de expectativas.
— Seus papais... — Limpei a garganta, sentindo o choro acumulado bem ali. — Eles se
foram.
— Viajar?
Sua testa estava franzida, mais confusa do que antes.
Fechei os olhos. Aquilo não era para mim, eu não deveria estar aqui, não deveríamos
todos nós estarmos passando por aquela situação.
— Não, eles foram para um lugar especial, aonde não podemos ir.
Cecília colocou em cima da mesa a xícara e o estetoscópio rosa que usava para auscultar
o coração de Rocambole. Um dedo foi parar na boca, enquanto o silêncio reinava no quarto.
— Por quê?
Minha respiração estava entrecortada, pesada, quase dolorosa. A forma como estava
confusa acabava comigo.
— Porque eles se tornaram anjos.
Não segurei as lágrimas mais tempo do que isso. Funguei, limpando o rosto com as
costas da mão. Cecília piscou algumas vezes, lutando para compreender o que eu estava falando.
— No céu? — Eu assenti. — Eles foram para o céu? Com a vovó?
— Sim, formiguita. Eles moram lá agora. E estão cuidando de nós lá de cima.
Os dedinhos de Cecília coçaram o queixo, enquanto os olhos estavam grudados no teto.
Após um suspiro, perguntou com sua mais profunda inocência:
— Eles vão voltar algum dia?
Mordi os lábios, lutando contra a vontade de sair correndo, de me esconder do mundo,
fingir que nada disso estava acontecendo. Sempre que tinha um problema, costumava ser isso o
que eu fazia. E Vitória era quem me fazia voltar à realidade, mostrando que nenhum problema
era imbatível para nós duas.
Ela só não me preparou para o maior problema de todos: viver sem ela.
— Não, Ceci. Eu sinto muito.
Foi difícil ver o momento em que Cecília entendeu o que estava acontecendo. Ela era um
bebê, mas até as criaturas mais inocentes e pequenas do mundo entendiam quando as pessoas que
mais amávamos na vida nos deixavam. E ela não merecia passar por isso aos quatro anos.
— Milo também vai embora para o céu?
Neguei prontamente, sentindo aquela dor no peito piorar um milhão de vezes ao pensar
naquela probabilidade.
— Não, vocês ficarão juntinhos.
— E você, titi?
— Eu estou aqui com você. E sempre vou estar.
Percebi, tarde demais, que não devia ter falado isso. Eu estaria aqui momentaneamente,
por vinte dias, um mês, no máximo. Era esse o tempo que Dante me pediu que ajudasse com a
adaptação. Depois disso, eu quebraria essa promessa que acabei de fazer para minha sobrinha.
— E o tio Dan?
— Ele não vai para lugar nenhum — assegurei. — Estaremos aqui, amando e protegendo
vocês, enquanto seus papais também fazem isso lá de cima.
— O que eu faço, quando sentir saudades deles?
Eu não sabia responder essa pergunta, porque não teve um minuto nesses dias em que
não senti uma dor dilacerante de saudades. Pelo que vivemos, por coisas que não tivemos a
chance de viver, por coisas que deixamos de viver. Eu não sabia se isso algum dia melhoraria.
E novamente aquele medo de ver Vitória e Gregório serem esquecidos pela memória
infantil da filha me pegou de jeito. Eles sonharam tanto com aquelas crianças e o destino foi
cruel em tirá-los tão cedo deles. Eu não tinha recordação alguma do que vivia aos quatro anos. O
que significava que, possivelmente, Ceci também não teria. E não podia deixar que isso
acontecesse. Não com minha irmã. Não com Gregório.
— Que tal você pedir que eu conte uma história sobre eles? Para que eles sempre estejam
no seu coração.
Ela balançou a cabeça, os olhos cheios de lágrimas. Não sabia nada sobre crianças, seus
sentimentos e entendimentos. Não sabia se ela deveria chorar, se era melhor assim, se o luto
funcionava da mesma forma para eles, mesmo que não entendessem.
Eu não sabia mais nada da vida.
— Eu te amo, formiguita. Nunca se esqueça disso e de que você e Milo são tudo para
mim.
— Eu também amo você, titi.
Puxei Ceci para um abraço, precisando dele muito mais do que ela precisava. Ela se
aconchegou em meus braços, o topo de sua cabeça roçando meu nariz.
— Eu já estou com saudades deles. Preciso de uma história.
Assenti, agarrando ainda mais a garota em meus braços, as lágrimas rolando
desenfreadamente por minhas bochechas. Eu não queria que Ceci me visse chorar, mas não era
como se conseguisse controlar aquela sensação assustadora do luto.
Todos falavam que com o tempo a dor ficava mais suportável, mas o que descobri depois
de ter perdido minha mãe, era que sua vida apenas seguia em frente. O trabalho acumulava, o
metrô continuava lotado, seus amigos te chamavam vez ou outra para tomar uma cerveja e, com
isso, você acabava focando os pensamentos em outra coisa. Até aquele momento, um milésimo
de segundo em que muda tudo; alguém com o mesmo tom de risada, uma roupa igual ou a
música preferida da pessoa tocando em uma cafeteria. Lá estava a dor novamente, dilacerando o
peito. Não havia como superar a falta de quem nos movia.
— Você sabia que sua mãe, quando tinha sua idade, fazia comerciais para a televisão?
Cecília negou, os olhos refletindo o deslumbramento com a informação.
— Ela aparecia na televisão?
— Aparecia, às vezes. Ela fez um comercial de sapatos e cobrou autógrafos de cada
amiguinho que estudava com ela.
— A mamãe era doidinha. — Ela riu, com o dedo indicador na boca.
— Vou revirar o mundo atrás desses vídeos para você ver. Ela era tão linda quanto você,
esse mesmo sorriso, o mesmo cabelo. — Toquei em uma mecha do cabelo macio, lutando contra
o choro acumulado na garganta.
— Titi? — chamou. — O que faço se sentir saudades do papai?
Acariciei suas costas, acalentando-a.
— O tio Dante também pode compartilhar suas histórias preferidas com o seu papai.
— Está bem.
— Está bem, Ceci.
Vinte segundos depois, Cecília voltou a conversar com o Buzz Lightyear, perguntando se
os biscoitos amanteigados estavam frios. Desviei os olhos da garota para a porta, pensando ter
visto algo e não estava errada. Dante, encostado ao batente, parecia visualmente perturbado.
Quando percebeu que eu o encarava, deu as costas e saiu do quarto em silêncio.
Eu poderia julgar Dante sobre inúmeros e variados motivos, mas nunca sobre o
desespero refletido em seu rosto. O meu, possivelmente, carregava um muito pior. Algo do tipo:
estou pronta para deixar meus sobrinhos serem criados por um homem incapaz de dar um sorriso
― irônico não vale ― em um fim de mundo, porque sou mentalmente instável depois de ter
perdido minha mãe, minha irmã, meu cunhado e a mim mesma ao longo da vida.
Continuei com Ceci por mais algum tempo, até Vera levá-la à cozinha, para almoçar.
Caminhei pelo corredor acarpetado até onde ficava o quarto de Milo. A porta estava encostada e
as persianas abaixadas, indicando que ele estava em sua soneca. Eu não entendia muito sobre
bebês, mas sabia que uma coisa sagrada eram suas sonecas, então entrei pé ante pé, temendo
respirar mais forte e acordar a criança.
Milo estava no berço, vestindo um pijaminha com dinossauros estampados. Ele era um
bebê gigante para seus nove meses de idade, com bochechas gordinhas, sempre rosadas e um
sorriso fácil. Mesmo dormindo, sua expressão era serena, o que também me deixava mais calma.
Apoiei as mãos no berço, observando o movimento contínuo de respiração em sua barriga, os
bracinhos jogados para o alto.
— Aquilo no quarto da Ceci...
Precisei morder a mão para não berrar ali e acordar a criança. Virei o pescoço para trás,
percebendo Dante sentado na poltrona que Vitória costumava usar para amamentar.
— Porra! — praguejei. — Custava avisar que estava aqui?
— Não é difícil ver alguém de um metro de noventa em um ambiente.
Dei de ombros, tentando não me abalar com essa informação irrelevante.
— Sua postura é péssima, tira um pouco da presença.
Fiquei arrependida logo que terminei de falar, porque não era o momento para essas
bobagens.
— Engraçado escutar isso vindo de você, Quasimodo.
Abri a boca, ofendida. E nem poderia rebater, porque fui eu que comecei. Só dei um
sorrisinho forçado para ele e depois de uma revirada de olhos, voltei a olhar para Milo.
— Você acha que eles vão ficar bem? — questionei, preocupada. — Crescer sem os
pais...
Não consegui completar, porque o medo me paralisou.
— Eu era um pouco mais velho do que Cecília quando perdi minha mãe. O pior que
temos a oferecer para eles, já é melhor do que qualquer coisa que meu pai ofereceu. E estou aqui
vivo. Eles ficarão bem.
Tudo o que eu sabia sobre o pai de Dante e Gregório era por conta do meu cunhado, que
também não gostava de falar muito do pai. Nos meses em que conversei com Dante, ele também
fugia do assunto e tudo o que me falou foi que não tinha contato com o pai. Tudo o que sabia
dele era que sempre foi um homem ambicioso, que ainda tinha uma parte considerável na
vinícola e que perdeu a cabeça após a morte da esposa.
Seria confiança demais acreditar que Dante era sua melhor versão apesar dos percalços
da vida. Não que ele fosse uma péssima pessoa, ele tinha qualidades, claro, assim como todos
nós. Mas o fato de ser uma geladeira sem sentimentos, emoções e felicidade genuína era uma
grande prova que sobreviver não era a mesma coisa que viver.
Eu não queria que Ceci e Milo sobrevivessem, eu queria que eles vivessem.
— Você promete que nunca deixaremos que eles esqueçam quem foram os pais deles?
Dante desviou o olhar de Milo para mim. Eu também o olhava. E foi esquisito estar ali
tão próxima daquele mar verde em seus olhos. Preferia cem mil vezes que ele não me olhasse, a
ter de receber sua atenção.
— Cada mínimo detalhe será lembrado. Eu prometo.
Eu gostaria de falar que aquele foi o momento em que firmamos um pacto de amizade e
companheirismo em prol dos nossos sobrinhos, abandonamos as brigas e mágoas do passado e
focamos em sermos pessoas melhores para as crianças e pela memória de nossos irmãos.
Mas não foi nada disso.
Foi um acordo silencioso com o acaso. Ou com o destino.
Tanto faz, você escolhe.
Consegui respirar fundo pela primeira vez em quatro dias apenas quando cheguei a
minha casa.
O meu lugar no mundo.
O único lugar onde a vida parecia menos uma tortura e mais algo tolerável.
Alguns consideravam a solidão um tormento, eu via como um presente. Momentos
únicos em que estava conectado comigo mesmo, com meus pensamentos e desejos. Nunca me
dei bem com pessoas e sempre fui grato por ter Gregório ao meu lado para lidar com essa parte.
Ele era um sol. Lidava bem e encantava todos por onde passava, tornando minha vida muito mais
fácil. Tudo o que eu não era bom, ele compensava. Tudo o que ele não era bom, eu estava lá para
compensar.
Ele cuidava do comercial da Albi, eu cuidava de todas as burocracias. Ele criava
problemas, eu os solucionava.
Sempre fomos uma dupla perfeita. A engrenagem afiada de um mecanismo que sempre
funcionou perfeitamente. Até ele me deixar.
Eu nunca consegui ser 100% sozinho com Gregório por perto. Até quando ele não estava
presencialmente, ele se fazia presente. Gregório era do tipo preocupado, acolhedor, ele já era um
pai muito antes de ser. Mesmo sendo apenas três anos mais velho do que eu, ele cuidava,
protegia e amava melhor do que meu próprio pai.
E agora, mesmo estando em meu refúgio na Terra, eu não estava feliz, porque mesmo
gostando de ser sozinho, eu nunca precisei ser, porque meu irmão estava ali para todas as horas.
Até não estar mais.
— Oi, chefe.
Roma foi a primeira pessoa que apareceu naqueles poucos minutos dentro de casa.
Minha funcionária não era conhecida por seus padrões estéticos comuns, mas especialmente hoje
estava mais inusitada do que seu comum.
O cabelo azul estava preso em um rabo de cavalo frouxo, a franja uma desordem na
testa. Não havia resquício de maquiagem no rosto, talvez apenas por um borrão do que parecia
ser um delineado de dias atrás. E as roupas eram as mais sóbrias que já vi Roma usar desde que a
conheço.
— Você está doente?
— Não. Só com toda a minha energia sugada por vampiros bebedores de sangue.
Quando falo vampiros, entenda seus funcionários incompetentes e, sangue, o vinho que eles
deveriam produzir, mas são preguiçosos demais para tanto.
Deixei toda a responsabilidade da Albi nas mãos de uma garota de dezenove anos que
acha que e-mails são coisas de velho e que conversas podem ser facilmente resolvidas com
emojis e imagens de uma criança coreana.
— A produção do Syrah atrasou?
Pela revirada de olhos que deu, eu já tinha minha resposta.
— Sinto muito por seu irmão, chefe. Ele era o meu chefe preferido.
Roma ainda era adolescente demais para conter a língua. E, talvez, eu ainda a mantivesse
trabalhando comigo por isso. Na mesma medida que ela era irritante e preguiçosa como a
maioria dos jovens de sua idade, ela era sincera. E era a única assistente pessoal que durou mais
de um ano nesse cargo.
A avó de Roma trabalhava na produção e era uma grande amiga de Felicita, a cozinheira
da casa. Foi ela quem disse que a neta de uma amiga estava precisando de emprego e era ideal
para a vaga que tinha acabado de ser aberta novamente, depois que a última assistente se demitiu,
após uma crise de choro, falando que eu era “o maior babaca que ela já teve o desprazer de
conhecer”. Em minha defesa, eu só fiquei um pouco estressado quando a mulher repassou uma
informação errada e tivemos um atraso gigante de uma remessa para a República Dominicana.
Fiquei reticente quando aquela minipessoa com cabelos roxos apareceu em meu
escritório, vestindo uma meia-calça amarela, saia xadrez e suéter pink. Quem se vestia assim?
Fora que ela era um feto. Eu a demiti no primeiro dia, mas Roma continuou vindo nos próximos
dias, não importava quantas vezes eu a demitisse, lá estava ela à sua mesa, recebendo-me com
seu usual “E aí, chefe?”
Essa sua insistência acabou sendo benéfica para o trabalho, porque além de não ficar
pelos cantos chorando porque sou rude, ela era ótima em atazanar as pessoas. O que garantia
prazos cumpridos no tempo certo.
Saímos todos vencendo, no final das contas.
— Recebeu o e-mail falando sobre a chegada dos meus sobrinhos?
— E-mails são para gente velha e que perdeu a vontade de viver — debochou, com os
olhos em suas unhas amarelas com desenhos de abelhas. — Combina com você.
— Se esses quatro dias em uma posição de poder te fizeram esquecer que o verdadeiro
chefe sou eu, posso te lembrar agora mesmo. Soube que o bar do German está precisando de uma
garçonete.
Ela estremeceu.
— Desculpa, chefe. É o sono atrasado.
— Desculpas? Uau! Aprendemos rápido.
— Prefiro isso a trabalhar em um lugar cheio de homens assistindo futebol. O inferno,
com certeza, tem essa imagem.
Cruzei os braços, sem paciência para sua tagarelice.
— Você leu o e-mail ou não?
— Sim, inclusive já pedi que Iza e Felicita organizassem os quartos e tudo o que crianças
precisarem. Vou comprar alguns brinquedos pela internet, estarão aqui antes que eles cheguem.
— Preciso de um quarto para Antônia também.
Roma ergueu a cabeça, aqueles olhos enormes em seu rosto pequeno cheio de
curiosidade.
— A tia deles?
— Isso.
— A irmã de Vitória?
— Sim, Roma. Essa mesma. Você quer mais alguma certeza?
— Não. — Deu de ombros. — Ela vai morar com você?
— Não, passar alguns dias e ajudar na adaptação das crianças.
— Algo de especial para a tia?
— O quarto com o colchão mais desconfortável e roupas de camas mais ásperas que
você encontrar. Obrigado, você já pode ir — cortei o assunto, desejando absurdamente que a
menina desse o fora dali.
— Ok! Vou providenciar. — Com o dedo indicador erguido e um sorrisinho irritante no
rosto, ela deu as costas. Estava quase respirando, aliviado, quando ela deu meia-volta. — Posso
tirar o dia de folga hoje?
— Não.
— Mas eu trabalhei durante todo o final de semana.
— Lamento por meu irmão e cunhada terem escolhido morrer durante o seu merecido
descanso, Roma. Agora volte ao seu trabalho se não quiser passar o dia todo assistindo futebol
atrás de um balcão empoeirado.
Ela ficou sem palavras, porque eu utilizei o trunfo do luto. Ninguém discutia contra esse
trunfo. A morte assustava as pessoas. A morte sempre me assustou.
Era por ela que minha mãe não estava mais aqui. Era por ela que agora não olharia o meu
celular e veria uma mensagem de Gregório com uma foto de Cecília. Era por ela que Vitória
nunca mais me presentearia em todos os Natais com artigos de cerâmica que ela mesma fazia e
falaria que eu precisava encontrar uma mulher que fosse para a vida, não para a próxima estação.
Caminhei pelo escritório até a ampla janela com vista para as videiras que percorriam
quilômetros adentro do terreno. A visão era a minha preferida de todas. Não existia nada como
estar em casa. Já viajei muito pelo mundo para ter a certeza de que aqui é o meu lugar, o meu
pedaço de paraíso, o lugar onde cresci, onde minha mãe escolheu viver, onde aprendi tudo o que
sei sobre a vida. O lugar onde eu mais tinha lembranças com Gregório.
O celular vibrou no bolso, retirei-o e li a notificação da mensagem de Carina.
Chego hoje para ficar contigo.
Coloquei o celular em cima da mesa do escritório, grato por ter uma companhia hoje. Eu
tinha coisas demais para falar com Carina sobre todas as mudanças que aconteceriam em nossa
vida daqui em diante, não sabia nem por onde começar, mas se tem uma coisa que aprendi com
meu pai, quiçá a única coisa que aprendi com ele ao longo de todos esses anos, foi a começar as
coisas pelo começo. Sem rodeios, sem voltas, sem enfeitar.
E para fazer começar, eu deveria fazer tudo certo.

Recebi Carina com um Bonarda de 2008, um dos meus vinhos preferidos da minha mãe.
Felicita fez asado de Tomahawk dry aged com purê de cenoura para comermos. A mesa de jantar
estava impecável e eu até tentei me arrumar um pouco melhor. Fiz a barba já acumulada por
tantos dias sem conseguir pensar em nada que não fosse a morte, o velório e as crianças. Vesti
uma camisa xadrez por cima da camiseta preta e até desfiz toda a mala. Durante aquela tarde
descobri que, quanto mais ativo eu me mantivesse, menos pensava em Gregório e em Vitória.
Quando a vi atravessar a sala de estar, quase soltei um suspiro aliviado.
Nunca fui um homem movido por paixões. Não as amorosas. Meu foco, desde muito
novo, sempre foi o trabalho. E antes do trabalho, eu queria conhecer o mundo. O problema em
não se apaixonar era que as mulheres farejavam um homem assim e, teimosas do jeito que eram,
queriam testar para ver se elas não tinham o poder de mudar tudo. E mesmo com todos os avisos
e explicações, alguém saía chorando e alguém saía com a fama de babaca. No meu caso, não era
necessário pensar muito em qual era minha fama.
O que Vitória falava sobre as estações era realidade. Eu nunca ficava com alguém tempo
o suficiente para ver a próxima estação. Uma safra, então, era irreal. Não acreditava que
houvesse uma pessoa certa para mim por aí e que não tivesse a encontrado ainda. Acreditava que
a vida era feita de momentos. Em muitos deles, eu escolhi ser sozinho. Hoje, eu escolhi estar
com alguém.
Se o que sentia por Carina fosse amor, só o tempo diria. Gostava do som de sua voz, de
seu modo independente, de como era direta e da forma como seus peitos ficam nos decotes. E,
sinceramente, considerava que ela pudesse ser a escolha certa para a mulher que devia ocupar
minha vida.
Ainda mais nessa fase, que precisava de uma presença feminina para estar perto das
crianças.
— Eu sinto tanto por não ter estado com você esses dias.
Carina enterrou o rosto em meu pescoço. Ela estava com o uniforme da companhia aérea
e os saltos altos, deixavam-na quase da minha altura.
— Tudo bem. Eu entendo.
— Como foi lá? — perguntou, afastando-se um pouco para olhar em meus olhos. —
Digo, sei que foi triste, mas, não sei... Tem algo que eu possa fazer?
Cocei o queixo, observando Carina se afastar para disfarçar o embaraço com sua falta de
habilidade em lidar com o luto. Pouquíssimas pessoas conseguiam transitar por esse tema sem
criar assuntos constrangedores. Carina não era uma dessas. E eu compreendia. Ninguém nascia
preparado para lidar com coisas assim.
— Eu vou ficar bem.
Algum dia. Eu espero. Foi o que minha cabeça gritou, mas não falaria isso para Carina.
Ela não me conhecia tão bem assim para lidar com isso.
Fazia cinco meses que estava com ela. Nós nos conhecemos no aeroporto. Ela estava
embarcando para trabalhar, eu indo para viagem na Califórnia, onde fui conhecer alguns
vinhedos especialistas em Zinfandel. Foi impossível meus olhos não irem parar na figura
estonteante de uma comissária de bordo alta, loira e inacreditavelmente bonita, vestida naquele
uniforme vermelho que valorizava cada curva de seu corpo.
Sentamos lado a lado nas cadeiras, aguardando o embarque. Ela puxou o assunto,
perguntando se eu pegaria o voo para Miami. Dali para estar com o telefone dela em meu celular,
não levou quinze minutos. Seguimos o caminho e quando voltei para casa, entrei em contato com
ela.
Carina tinha aquela áurea de mulher poderosa, inabalável. E o sexo era impecável. Não
foi difícil termos o segundo, o terceiro, o quarto encontro, até estarmos em um relacionamento.
Nunca houve qualquer pedido de nenhuma das partes, mas era assim que funcionavam
relacionamentos da vida adulta, certo? Quando encontrávamos alguém minimamente agradável,
com um mínimo de caráter e o mínimo de lealdade dentro de si, era bom agarrar com unhas e
dentes, porque pessoas assim estavam em falta.
— Vou tomar um banho antes do jantar, tudo bem?
Assenti, ciente de que ela estava cansada após as longas horas de voo. Eu nem conseguia
imaginar quão louca era a vida de uma comissária de bordo, sempre no céu, com escalas
malucas, sem rotina, pulando entre hotéis e longe da família. Nunca tinha perguntado quais eram
os planos de Carina para os próximos anos, mas imaginava que ninguém quisesse viver nessa
loucura para sempre.
Já estava sentado em minha cadeira usual, à ponta da mesa longa de madeira com
dezoito lugares. Era algo que permaneceu da época da minha mãe, quando recebia seus amigos e
nossa família com jantares regados a muita carne e vinho. No verão, se lembrava de uma mesa
ser montada no jardim, onde comíamos sob a luz das estrelas. Os boleros de Carlos Gardel
embalavam esses momentos, assim como Tom Jobim, o cantor favorito de mamãe. Ela era filha
de mãe brasileira e pai argentino, nascida no Rio de Janeiro, onde morou até os quinze anos antes
de se mudar e se apaixonar por Mendoza, onde o pai, o meu avô, já tinha o vinhedo.
Gostaria de lembrar mais da minha mãe, mas tudo o que tinha na memória eram flashes
de seu sorriso, das danças pelos cômodos da casa e da luz amarelada que a contornava. Ela era
feliz, nós éramos felizes, a casa era embalada por essa energia. Até tudo acabar.
Desviei os olhos da taça de vinho para observar Carina entrar no cômodo. O vestido
bordô era no exato tom do líquido em minha taça e valorizava seu busto e a cintura estreita. Os
cabelos, antes presos no coque alinhado habitual, agora estavam derramados por seus ombros,
em suaves ondas.
— O Bonarda especial? — estranhou.
— Precisamos ter uma conversa difícil. Ele irá ajudar.
Bati a mão no assento da cadeira ao meu lado, percebendo o sorriso de Carina diminuir
consideravelmente. Sabia que ela estava cansada da viagem e do trabalho, talvez não fosse o
momento para isso, mas o que eu poderia fazer? Daqui a uma semana eu estaria debaixo do
mesmo teto de duas crianças e Antônia.
— Você está me deixando preocupada...
Abri a boca para começar a falar, mas uma funcionária da cozinha entrou com nossas
entradas e uma cesta de pães e azeite. Carina ignorou a comida e voltou seus olhos aflitos para
mim.
— Você sabe que minha vida nunca mais será a mesma depois do que aconteceu com
Gregório e Vitória.
— Sim, e eu sinto muito, Dante. Gostaria de ter estado lá contigo.
Sua mão buscou a minha por cima da mesa, algo que acabou por ser estranho, porque
não éramos um casal com demonstrações de afeto ou muito toque físico. O toque físico que
tínhamos era na cama. Parecia inadequada ou forçada demais essa proximidade.
— Estamos juntos há um tempo considerável e acredito que seja o momento certo de
propor isso.
— Propor? — Carina questionou, perdida.
— Gostaria que se mudasse para minha casa para ficar mais próxima das crianças.
— Que crianças?
— Meus sobrinhos, Cecília e Milo. Eles irão morar comigo agora.
Carina arregalou os olhos, uma reação que eu já esperava, porque não era uma situação
fácil. Eu só não esperava que ela ficasse tanto tempo parada, como se estivesse em choque ou
algo do tipo.
— Você quer... — Seu dedo indicador foi erguido, mas abaixado logo em seguida. —
Que eu cuide dos seus sobrinhos?
— Seja uma presença feminina.
— Na sua casa?
— Como minha futura esposa.
Carina ficou de pé em um milésimo de segundo, arrastando a cadeira pelo piso
amadeirado, produzindo o som que arrepiou minha nuca. Eu a vi dar algumas voltas em torno de
si mesma, até parar ao meu lado.
— Você está me pedindo em casamento?
— Não. Não agora. Mas no futuro, sim.
— Você quer se casar comigo mesmo? Ou só quer que eu seja uma nova mãe para seus
sobrinhos?
— Eles têm mãe, sempre terão — eu a interrompi, porque essa situação nunca seria
diferente. Minha cunhada seria a mãe deles para sempre. — Você pode ser mais uma... amiga?
— Dante, desculpe, eu não estou entendendo muito bem. — Ela voltou a se sentar na
cadeira, sua postura já não era mais a elegante de sempre e nunca vi Carina tão exaltada assim.
— O que você quer de mim?
— Sei que quer um marido, você já deu a entender muitas e muitas vezes. Uma vida boa,
sem tantas preocupações e viagens. Todo mundo pode sair ganhando.
— Eu quero um casamento com amor, Dante. Não um porque você precisa de uma
mulher para criar seus sobrinhos.
— Mas nós nos gostamos, não?
Carina abriu e fechou a boca tantas vezes, as palavras faltando de forma inédita. Fiquei
confuso com a situação como um todo. Porque eu tinha certeza de que nos gostávamos. De uma
forma adulta, centrada, sem grandes comoções e sentimentos exagerados. Não era assim que
deveria ser um relacionamento saudável e estável?
Ela precisava de algo que eu poderia dar. Eu precisava de algo que ela podia dar. No
final das contas, tudo sempre seria uma troca de interesses.
— Eu não sei o que responder.
— Você pode pensar. As crianças chegam aqui no começo da semana, junto da tia deles.
Caso concorde, você pode trazer suas coisas para cá. Sei o quanto você queria começar a morar
comigo, talvez esse seja o momento certo para isso.
— A tia deles vai morar aqui também?
— Não, só passar alguns dias. Preciso da sua ajuda para convencê-la de que faremos um
bom trabalho com as crianças.
Um brilho de esperança cruzou os olhos de Carina.
— Por que não deixa as crianças com ela?
— Porque minha sobrinha de quatro anos tem mais maturidade do que aquela tia dela.
O que era uma grande verdade.
Antônia só sabia causar caos em nossas vidas. Bem, na minha nem tanto, porque não
tínhamos contato. O tempo que ela teve para fazer esse caos comigo, ela fez. E muito bem-feito.
Desde então decidi me manter o mais afastado que conseguisse da espiral de loucuras, problemas
e excessos de Antônia. Vitória e Gregório não tiveram a mesma sorte e estavam sempre
envolvidos em suas confusões. A garota era a síntese de problema, era quase como ter um neon
com setas indicando “Cuidado: problema!” bem em sua testa.
Seus relacionamentos eram tão voláteis, que muitas vezes eu nem conseguia acompanhar
a velocidade como começavam e terminavam. Não sabia qual o problema dela de ficar sozinha,
mas aparentemente, não era algo que curtia muito. Também tinha a questão de não parar em
nenhum emprego ou trocar de carreira como quem troca de roupa.
Fora a questão do que se sucedeu com Gregório. Quem fazia aquilo com alguém? Estar
em um encontro com um irmão e terminar a noite com outro?
Vitória sempre falava que Antônia e eu deveríamos dar mais uma chance para a história
esquisita, rápida e traumatizante que ― não ― tivemos. O que era impossível, porque eu queria
distância dessa encrenca.
O ponto principal e motivo para não querer Antônia criando meus sobrinhos era
justamente esse. Ela não era uma pessoa confiável. E até mesmo ela parecia saber disso.
— Acho melhor eu ir para minha casa. — Carina levantou mais uma vez da cadeira,
naquele sobe e desce infernal que ela fazia desde que começamos a conversar. — Preciso pensar
com calma em tudo isso.
— Tudo bem. Você sabe onde me encontrar.
Ela ficou parada, apenas os olhos piscando vez ou outra. Achei que fosse se aproximar
para dar um beijo de despedida, mas só voltou para perto da mesa para tomar todo o conteúdo
restante de sua taça de vinho, antes de virar as costas e ir embora.
Ela voltaria.
E se tinha algo que sabia, era que eu nunca errava.
Verde-claro.
Verde-escuro.
Verde-musgo.
Verde-Dante.
Ah, tem roxo. Nas parreiras.
Quanto mais o carro percorria a estrada de terra, mais distante do meu sinal de telefone
eu ficava.
Não sentia mais minhas pernas, minhas mãos, meus braços, nem sabia se meus olhos
seguiam abertos. Como alguém conseguia sobreviver a uma viagem com duas crianças? Isso
porque a viagem durou apenas quatro horas.
Cecília não parou quieta durante um segundo do voo. Milo chorou durante três horas e
cinquenta e nove minutos das quatro horas. O único minuto que não chorou foi quando derrubou
o café em cima da minha blusa e riu da minha cara. Rocambole não parou de latir um só segundo
e sinto que perdi cinco anos de vida pelas maldições que os passageiros devem ter me rogado.
Não julgaria, porque na situação deles, eu também rogaria.
Por que tanto verde assim? Como alguém conseguia se sentir feliz nesse meio do nada?
A última civilização que vi ficou para trás há uns trinta minutos.
Agora tudo o que via era verde, verde, verde e pequenos pontos roxos.
As crianças dormiam como anjinhos, tornando difícil comprovar a minha experiência
traumática com eles durante a viagem. Na verdade, durante toda a última semana.
Claro que já passei muito tempo com meus sobrinhos, mas nunca fiquei sozinha com eles
tanto assim. Precisei tomar a responsabilidade de cuidar de tudo o que era relacionado a eles,
depois que Vera pegou alguns dias de folga, após ter trabalhado tantos dias sem parar, após o
acidente. A bomba veio alguns dias depois, quando Vera decidiu que não nos acompanharia para
Mendoza, o que já era uma possibilidade, porque tinha família no Brasil. Eu também não estaria
aqui se não fosse extremamente necessário.
Então, éramos apenas Ceci, Milo e eu sozinhos naquela casa, organizando toda a
pequena vida deles dentro de malas e caixas. Pedi alguns dias de folga e combinei que
trabalharia home office nos dias que estivesse viajando. A rotina ficou tão intensa com os
preparativos da mudança, da viagem e da organização, que senti como se o período de luto
tivesse ficado paralisado, em stand-by, esperando só o momento que eu pudesse respirar fundo
para passar por cima de mim como uma bola de demolição.
Agora estávamos ali, atravessando a propriedade da família Albizia. Não recordava que
fosse tão grande assim, mas da última vez que estive ali, eu estava mais focada no casamento de
Vitória do que em qualquer outra coisa. Eles se casaram ali, uma cerimônia linda ao entardecer,
com poucas, mas especiais, pessoas. Foi um dos dias mais especiais da minha vida.
Quando achei que aquela estrada não teria mais fim, finalmente o motorista passou por
um longo caminho cercado de ciprestes tão altos que meu campo de visão, limitado pela janela
do carro, os perdia. A coloração alaranjada tornava a paisagem ainda mais impactante sob a luz
dourada do entardecer.
Paramos em frente a uma casa estilo colonial espanhola, um tesouro escondido em meio
àquele fim de mundo. A construção imponente tinha paredes em tijolinhos terracota, arcos
serpenteavam a ampla varanda que tomava conta de todas suas laterais. Uma escada dupla ficava
em frente à propriedade e ali estava o maior tormento em forma de homem que já conheci.
A primeira coisa que fiz ao pisar fora do carro foi inspirar o aroma adocicado das uvas,
misturado à vegetação. A luz do sol naquele final de tarde entrava dentre os ciprestes, quase
como uma pintura viva. A casa era tão bonita quanto eu me lembrava e todo o lugar tinha uma
vibe de uma tarde na Toscana. Não que eu já tivesse passado uma tarde na Toscana, mas
imaginava que fosse lindo dessa forma.
— Eles estão dormindo?
Foi a primeira coisa que Dante falou, esticando o pescoço para dentro do carro, onde,
sim, as crianças dormiam; serenas após o caos.
— Bom te rever também, Dante.
Ele me ignorou, o que era esperado, e começou a ajudar o motorista com as malas.
Várias caixas já tinham sido enviadas dois dias atrás de São Paulo para cá, com roupas e
pertences das crianças, demoraria mais alguns dias para tudo chegar e eles estarem instalados.
Minhas roupas estavam em uma mala pequena, mais do que suficiente para aqueles dias que
viveria debaixo do teto desse grosseirão.
Dante tirou Cecília da cadeirinha, aninhando a criança ainda adormecida em seus
ombros. Peguei Milo no colo e segui o dono da casa. O ambiente interno estava diferente da
forma como lembrava, agora em tons sóbrios de bege, marrom e branco. Alguns diriam que
minimalista, eu diria sem vida, assim como o dono.
Duas mulheres estavam na lateral da ampla sala de estar com longos e robustos sofás de
couro marrom. Uma, a mais velha, sustentava um sorriso maternal e amável, a outra, a mais nova
e com cabelos azuis ― não um tom qualquer de azul, sim, variações muito bem elaboradas do
que me pareciam três ou quatro tons, do mais claro ao mais escuro ―, tinha os olhos brilhantes e
curiosos em minha direção.
— Felicita, essa é Antônia, irmã da Vitória. Antônia, essa é Felicita, nossa cozinheira. Se
precisar de algo, procure por ela.
Ergui o queixo em direção à senhora, não tendo tempo de maiores apresentações, já que
Dante deu as costas e começou a subir a escada com Ceci. Segui atrás dele com Milo em meu
colo, alcançando o segundo pavimento da casa em poucos degraus. O corredor longo tinha várias
portas duplas, de madeira polida, e diante de uma das últimas foi que Dante parou.
Fui recebida por um mundo colorido e acolhedor assim que entrei no quarto. O ambiente
era mágico, lúdico e aconchegante. O quarto era amplo e tinha um formato diferente, tendo como
ambiente principal uma sala com os mais variados tipos de brinquedos, tantos que eu não sabia
se as crianças conseguiriam brincar com todos antes dos vinte anos de idade. Em pontas opostas
ficava a cama com detalhes cor-de-rosa e um dossel lindo caindo do teto, na outra extremidade
estava o berço de Milo.
— Pensei em deixar os dois juntos por um tempo, acho que se sentiriam mais seguros
dormindo juntos.
Assenti, observando o cuidado com o qual ele depositava Ceci na caminha, afastando um
unicórnio de pelúcia que estava em cima do travesseiro.
— Sim, com certeza.
Dormi com Vitória até o dia em que ela saiu de casa para casar. No nosso caso não era
por segurança ou vontade, era por falta de espaço mesmo, mas eram minhas melhores
lembranças da infância e adolescência nossas conversas tarde da noite, mesmo correndo o risco
de tomar uma comida de rabo da nossa mãe por ainda estarmos acordadas tão tarde.
Fui a criança que tinha medo de tudo. Era a adulta que ainda tinha medo de muitas
coisas. Viver me assustava, ser feliz sem me sabotar pelo caminho era algo que tirava meu sono
e ficar sozinha talvez não fosse mais um pesadelo, sim, a minha realidade. Mas enquanto dividia
o quarto com minha irmã, rindo por qualquer besteira, segurando sua mão nas noites de
tempestades, sonhando com um futuro distante e irreal, eu não sentia medo.
E desejo isso para meus sobrinhos. Esse conforto, esse carinho, esse sentimento de
proteção.
Afastei os cabelos escuros da testa de Milo. Nunca vi uma criança tão calorenta na vida.
Suas bochechas estavam sempre rosadas pelo calor, mesmo que estivesse um tempo agradável lá
fora. Sorri ao vê-lo se aconchegar no travesseiro e abrir a boca, dopado pelo sono.
— Fez uma boa viagem?
Cruzei os braços, observando o brilho de divertimento em seu olhar. Não precisava ser
um gênio para saber que foi uma tortura.
— Com duas crianças, um cachorro, quinhentas malas e uma companhia aérea regulando
água e oferecendo um alfajor durante todo o tempo de voo, não poderia ser mais perfeito.
— Que pena, Antônia!
Sua tentativa falha de ser empático foi um terror. E terminei só revirando os olhos.
— Cadê a namorada? — perguntei assim que retornamos à sala dos brinquedos.
Dante apertou o maxilar e enfiou as mãos nos bolsos da calça preta que usava. Calça que,
por final, apertava suas pernas nos pontos certos. Dante estava de parabéns por seus quadríceps,
esse metido!
— Na casa dela.
Precisei morder a língua para evitar a pergunta que estava na ponta dela, mas a garota de
cabelos azuis entrou no quarto em um rompante. Dante deu exagerados dois passos para o lado,
como se estivéssemos fazendo grande coisa, quando, na verdade, ele nem estava perto de mim.
Esquisitão.
— Chefinho, o diretor da importadora já está chegando ao escritório.
O jeito descontraído da garota era o completo oposto do de Dante. Ele aprumou a postura
e pressionou a ponte do nariz com o polegar e o indicador.
— Preciso das planilhas, pedi isso ontem, Roma.
Sua falta de paciência era notória e fiquei me perguntando sobre o tormento que devia
ser trabalhar com esse homem. Quanto mais convivia com Dante, mais me perguntava como eu
achei que tivéssemos algo em comum e que eu estivesse nutrindo sentimentos por ele. O cara era
tudo o que eu mais detestava em um homem. Polido, certinho demais, do tipo que tem toda a
vida controlada e cronometrada, que pensava que tudo girava em torno dele. A forma sem
paciência como tratava sua funcionária deixava isso bem claro.
— Está na mão, chefinho.
Ela passou um tablet para ele, exibindo um sorriso grande demais para ser real.
Dante pegou o aparelho de suas mãos e começou a andar em direção à porta, mas antes
de sair do cômodo, segurou a maçaneta e virou o corpo para nos olhar.
— Mostre o quarto para Antônia, por favor. Certifique-se de que ela ficará bem
acomodada.
Sem mais delongas ele foi embora, fechando a porta com um baque suave. Cruzei os
braços e virei o rosto para a garota com sapatos de verniz vermelho e bico redondo, como os de
uma boneca.
— Ele é sempre insuportável assim ou tem dias bons? — questionei.
A garota prendeu um sorriso.
— Têm dias bons, eu só nunca vi. — Soltei uma gargalhada com a espontaneidade. —
Sou Roma, é um prazer te conhecer, Antônia.
— Roma é um nome muito bonito.
— Obrigada, minha mãe que escolheu. Minha irmã mais nova se chama Siena, minha
irmã mais velha Veneza.
— Ela é italiana?
— Não. Nunca nem saiu dessa cidade para falar a verdade, mas esperava que nós
conhecêssemos o mundo por ela.
— E você já foi para Roma?
— Sou alérgica a glúten, não tem motivos para pisar na Itália. Tenho medo de pombos
também, Roma é lotada deles. Estou bem por aqui.
Ela falava tão rápido, que ficava difícil entender. Meu espanhol não era grandes coisas,
então precisava me esforçar em dobro. Acabei rindo novamente e a seguindo para fora do quarto
das crianças.
— Dante pediu que eu providenciasse o pior quarto da casa para você, mas como eu me
recuso a dar voz ao patriarcado, pedi para que arrumassem o quarto de visitas mais espaçoso,
com vista para as videiras e fiz questão de comprar um jogo de cama novo, com setecentos fios
que não faço ideia do que signifique, mas que foi bem caro e saiu do cartão dele. Roubei dois
travesseiros do quarto dele também, ele é viciado em travesseiros fofos e caros.
Eu queria dar um abraço naquela garota e fazer dela a minha melhor amiga. Se alguém
conseguia aturar Dante Albizia e ainda tirar com a cara dele dessa forma elegante, eu precisava
ter ao meu lado.
— Você é a minha heroína.
Ela abriu a porta do quarto que espaçoso era apelido. Era do tamanho do meu
apartamento e a cama parecia uma obra de arte, com trilhões de almofadas, edredons e firulas. A
vista para as videiras era impactante e se perdia além do horizonte atrás das amplas portas balcão
que ficavam na parede principal.
— O que você fez para conquistar tamanha antipatia desse homem?
Bem, a lista era grande.
Menti sobre minha aparência.
Fiquei com o irmão dele no dia de nosso primeiro encontro.
Fingi que nunca tive uma história prévia com Dante.
E o ignorei durante cada evento que tivemos desde então.
Ele não era um homem fácil, mas eu também tinha uma grande parcela de culpa na
forma como nossa relação evoluiu.
— Só não somos os melhores amigos do mundo.
— Tem um boato que corre entre os funcionários de que você o largou para ficar com o
irmão dele. E depois Gregório te largou para ficar com sua irmã.
Ouvindo assim, parecia horrível toda essa história.
— Eu não me odeio o suficiente para ficar com ele — menti.
Bem, não menti, porque eu realmente nunca fiquei com ele. Eu queria antes, mas não
fiquei.
Porque ele não quis.
Se ele não comentava sobre o assunto, não seria eu a pessoa a fazer.
— E a namorada dele? Onde está? — insisti no assunto, porque queria conhecer a
mulher que também seria responsável pelas crianças.
— Carina não aparece desde a semana passada e, julgando o mau humor quinze vezes
pior que ele está, começo a desconfiar de que ela não vai retornar. — A informação repassada em
sussurros fez com que eu gostasse ainda mais de Roma. — Já era de se esperar, ele espanta todas
elas.
— É, ele espanta.
Ganhei a atenção de Roma pelo tom rancoroso que deixei escapar, mas disfarcei,
voltando a olhar para a paisagem. Roma disse que precisava ir trabalhar e que contasse com ela
para o que precisasse durante a estadia, depois foi embora, deixando o quarto silencioso.
Apoiei a testa no vidro da porta, fazendo uma prece silenciosa para que aqueles dias
passassem rápido. Estar no mundo de Dante Albizia era sufocante. E eu precisava dar o fora o
quanto antes.
Eu tenho um lance com os homens.
Vitória e eu apelidamos de “A Maldição Milani”, mas nunca achei que esse nome
combinasse, porque o problema estava em mim, não nas outras Milanis. Bem, na minha mãe
talvez, já que meu pai encontrou um casamento tão bem-sucedido depois que abandonou
qualquer dever com a nossa família como pai e homem, mas tão bem-sucedido que nunca mais
voltou para nos ver. A questão era que mamãe não teve números significativos em sua pesquisa
quantitativa, já que depois de sua história com meu pai, ela desistiu do amor e focou na nossa
criação e em seu trabalho.
Eu não desisti do amor. Eu acreditava nele. Eu almejava e sonhava com o dia em que
finalmente fosse real e duradouro.
Foi por isso que descobri sobre a maldição. Foi quando vi, ex-namorado por ex-
namorado, todos eles, encontrando suas almas gêmeas depois de ter terminado comigo. Posso
estar exagerando em falar que são almas gêmeas, mas eles realmente encontraram a pessoa certa
depois do fim do relacionamento comigo. Alguns casaram, alguns namoram, outros continuavam
sendo idiotas e perderam o grande amor de suas vidas. Mas todos encontraram.
Já fui feita de palhaça, claro. Quem nunca? Mas a questão era que eu ainda gostava de
todos os meus ex-namorados, porque sentia que cada um deles contribuiu para ser quem eu era
hoje.
Lucas foi meu primeiro namorado, aprendi a lutar jiu-jítsu com ele.
Miguel fez com que eu me apaixonasse por risoto.
Olavo a não aceitar relacionamentos abertos.
Vitor ajudou demais no meu autoconhecimento.
Gregório a não pegar ninguém da família e/ou conhecidos.
Flávio Augusto a gostar de sexo. Não para agradar aos homens, sim, porque era bom.
Dante — não que ele tenha sido um namorado — foi um dos maiores ensinamentos da
minha vida: não se apaixone à primeira vista, seja cautelosa com seu coração, não deixe que um
homem entre tanto assim na sua vida. E... Ah! Fique longe dos babacas, eles, muitas vezes, vêm
acompanhados de 1,90 de altura, olhos verdes e conversas interessantes.
Sem aqueles caras, eu não seria a Antônia de hoje. E sendo bem realista, seria uma
Antônia muito chata. Por isso que era próxima deles até hoje. Não de Dante, por motivos óbvios.
Ele nem deixou que eu mostrasse que podia ser uma ex-namorada supimpa e ainda garantir um
passe para encontrar sua alma gêmea após o término.
Era por isso que, sentada na cama grande e acolhedora com aqueles lençóis caros à custa
de Dante, eu sorria verdadeiramente, algo que nos últimos tempos estava difícil de acontecer. A
tela do celular estava com o grupo “Para todos que já me chutaram”; ideia de Olavo, claro. Nem
todos me chutaram, em minha defesa. Eu terminei com Lucas, Olavo e Miguel.
Olavo Queiroz: Ele é brocha, tenho certeza.
Lucas Azevedo: Você tem uma fixação por órgãos genitais masculinos o que me cheira
a compensação, Olavo.
Lucas era psicólogo, o que explicava sua zoação com argumentos científicos. O meu tipo
preferido de zoeira.
Miguel Lavian: Ton, como assim, sua irmã morreu?
Suspirei, não conseguindo nem ficar triste com essa recordação, porque Miguel estava
sempre perdido. Respondia as mensagens três dias depois, falava sobre assuntos que já tinham
passado. Ele era pai de duas crianças de três e quatro anos, veterinário e com a esposa tinha uma
ONG para ajudar bichinhos. Ele estava sempre no mundo da lua. E era compreensível.
Olavo Queiroz: Ela mora com o argentino agora. Aquele por quem ela sempre foi
obcecada.
Antônia Milani: Não sou obcecada por ele.
Antônia Milani: E, sim, Mig. Ela e Gregório faleceram. Foi um acidente horrível.
Olavo Queiroz: Três horas em nosso primeiro encontro você passou falando sobre o
quanto ele foi um babaca com você.
Vitor Lima: Ela fez isso com você também?
Lucas Azevedo: Comigo também! Mas acontece sempre quando as garotas descobrem
que sou psicólogo. Recomendei um exercício de respiração para ela superar.
Revirei os olhos, desejando não ter sido curiosa o suficiente para abrir aquele grupo hoje.
Eles me irritavam tanto.
Antônia Milani: Preciso ir jantar. Boa noite.
Lucas Azevedo: Fugir dos problemas também é uma patologia característica dela.
Miguel Lavian: Sua irmã casou?
Estava para nascer alguém mais perdido do que Miguel nessa vida, mas infelizmente não
tinha tempo ― nem paciência ― para explicações. Deixei o celular em cima da cama e olhei
para a minha imagem no espelho pela última vez antes de sair do quarto. Odiava o fato de me
sentir tão insuficiente quando era obrigada a conviver com Dante.
Ele era daqueles homens que preenchiam todos os espaços ― não que eu conhecesse
todos os que ele é capaz de preencher ―, e fazia com que eu sempre me sentisse pequena e
inadequada, quase como se relembrasse a sensação de insuficiência naquela primeira noite, no
restaurante. E eu queria sempre compensar toda essa sensação ruim, ficando impecável. Nessa
fase de luto o melhor que tinha a oferecer era uma calça jeans, um cardigã estampado com
abacaxis e um cabelo limpo, sem nós e oleosidade suficiente para fritar um ovo no couro
cabeludo.
Odiava me sentir assim perto de Dante.
Odiava ter de conviver com Dante.
Odiava o quanto toda essa história sempre deixaria minha cabeça fodida.
E odiava ainda mais que Lucas estivesse certo.
Ver Dante na sala de jantar foi, talvez, o que poderia chamar de um acalento na alma. Ele
estava muito longe de ser o homem sério e equilibrado que eu esperava encontrar ali. Sua
aparência ainda era milimetricamente perfeita, os cabelos penteados para trás, um cheiro
insuportável de colônia cara e masculina, uma camisa xadrez escura, diferente da que usava
horas antes. Mas a sua cara... Era incrível.
Milo jogava todos os palitos de cenoura que foram colocados diante dele. Até eu, que
não tinha muito entendimento sobre crianças, sabia que não era uma boa ideia colocar uma com
menos de um ano sentada em uma cadeira, esperando que ela agisse como um adulto.
— Preciso da sua ajuda.
Os olhos de Dante transpareciam desespero. O mais puro e real. Precisei morder os
lábios para não sorrir na frente dele ao vê-lo tentar controlar Milo com um braço e a taça de vidro
que Cecília fazia questão de morder.
Decidi salvar Ceci primeiro. Com um galo na cabeça e algumas cenouras abatidas
conseguiríamos lidar, agora uma boca cortada com vidro, não.
— Não é assim que usamos o copo, Ceci. — Tirei de sua mão o objeto, pensando no
segundo depois em minha irmã.
Vitória tinha um método de criação que consistia em explicar o motivo pelo qual o
“Não” estava sendo falado, nunca usar a palavra em si, só por usar, por ser mais fácil. Eu achava
uma baita perda de tempo, mas ela jurava que traria menos danos às crianças. Não sabia se
minha mãe tivesse me dito menos “Não” teria mudado algo em minha vida ou me feito
economizar na terapia, só que não era boa naquilo de criar uma criança, moldar sua
personalidade e transformá-la em um adulto decente.
Eu só queria um adulto que não tivesse a língua cortada por vidro.
— Mas eu quero, titi. Já sou uma menina grande.
— Meninas grandes só tomam a bebida do copo, não tentam mastigar ele junto.
Ela fez um bico, muito parecido ao que Vitória fazia, o que apertou meu coração.
Amoleci e aproximei a taça novamente dela.
— Sem morder, tudo bem?
Ela assentiu e voltou a segurar a taça, tomando cuidado para não virar o suco. Não era
tão difícil assim lidar com uma criança, no final das contas.
Sentei na cadeira ao lado de Cecília e observei a confusão em minha frente. Dante
segurava o prato de porcelana, que estava para ser jogado no chão por um Milo irritado. Suas
bochechas gordinhas de bebê estavam injetadas de sangue e os resmungos estavam cada vez
mais altos à medida que entendia que Dante não o deixaria livre para jogar cenouras como bem
entendesse.
— Não! Assim, não, Milo! — repreendeu o tio.
Bem, não era apenas eu que era ótima em dizer não aos meus sobrinhos. O que acabou
sendo acolhedor, porque ambos não fazíamos ideia do que estávamos fazendo.
Resolvi ajudar Dante, porque não demoraria para Milo começar a chorar e eu estava
faminta. Aquele bife em meu prato parecia delicioso demais para não ser degustado com paz e
calmaria.
— Abra seu cinto. — Esperei com a palma aberta em frente ao homem.
Ele ficou em silêncio e não entendi a demora. Ao olhar para seu rosto, vi a confusão
refletida naquela imensidão verde de seus olhos.
— Tira o cinto e me dá aqui. — Balancei os dedos, tentando fazê-lo se apressar.
A carne estava esfriando...
— Você enlouqueceu?
— Faz o que estou falando ou eu serei obrigada a ir tirar.
Dei um passo na direção de Dante e ele deu dois para trás. Quase ri dessa reação, porque
era como se ele tivesse medo de mim. Logo de mim, uma coitada, enquanto ele era o
Abominável Homem da Neve. Das videiras, na verdade.
O Abominável Homem das Videiras. Bem mais adequado.
Ainda receoso, Dante tirou o cinto, como se eu tivesse pedindo que o tirasse para
chicotear minha bunda na frente das crianças. Peguei a tira de couro e sem paciência para seu
receio, fui até a cadeira de Milo, prendendo seu corpo pequeno demais aquela cadeira gigante,
assim ele pelo menos não cairia de cabeça no chão e não seríamos presos por maus-tratos
infantil.
Quando percebeu minha real intenção, Dante respirou fundo, quase que aliviado.
— Ele precisa de uma cadeira de alimentação. O garoto não sabe nem falar ainda. —
Prendi meu olhar em Dante, que ainda parecia profundamente perturbado com minha presença.
Aproximei o prato novamente de Milo e entreguei a colher para Dante, antes de
finalmente poder voltar para minha cadeira e salivar pelo bife apetitoso. Eu tinha minhas
questões com a Argentina, principalmente esse pedacinho de fim de mundo onde vim parar, mas
nunca poderia falar sobre a qualidade da comida. Nunca provei carnes com tanta qualidade.
Uma funcionária entrou na sala de jantar com uma garrafa de vinho e me perguntei
quantos funcionários mais Dante tinha. Era esquisito ser servida por alguém, mas ele parecia
habituado. Irritantemente habituado.
— Obrigada — agradeci com delicadeza assim que colocou o vinho em minha taça.
Ela assentiu e seguiu para o lado de Dante, que foi acertado por um pedaço de cenoura.
Se nós tínhamos algo do que não poderíamos reclamar era a mira de Milo. Ele era um prodígio.
— O que eles costumam comer? — Seus olhos estavam aflitos ao ver a bagunça que a
criança continuava fazendo.
Ao meu lado, Cecília mandava ver no purê de batatas e ignorava todos os outros vegetais
e a carne que estavam à sua disposição.
— Leite? — sugeri.
— Ceci, o que vocês costumam comer em casa? — Dante ignorou minha gracinha e
focou na sobrinha. — Posso pedir que preparem aqui também.
— Batata frita e macarrão com queijo, tio. Sorvete de chocolate também.
Semicerrei os olhos, percebendo que aquela garota era mais inteligente que Dante e eu,
juntos.
— Sua mãe não deixaria você comer isso todos os dias, espertinha.
Sempre doeria qualquer menção ao nome de Vitória? Porque eu realmente sentia o
coração dilacerar cada vez que ela era mencionada e percebia que não estaria mais aqui fazendo
a comida natural dos filhos, sabendo suas preferências alimentícias, sendo a melhor mãe do
mundo...
— Quando ela vem me buscar? — Cecília perguntou com toda sua inocência e aquilo foi
o suficiente para acabar com qualquer apetite meu.
Busquei os olhos de Dante, porque ele sentia o que eu sentia. Se havia alguém que sabia
exatamente o tipo de dor que eu sentia, era ele.
— Ceci... — Fiz menção de começar a minha explicação que já estava se tornando um
padrão durante esses últimos dias em que cuidava deles.
Cecília era pequena demais para entender sobre morte. A ideia de que os pais voltariam a
qualquer momento, ainda era algo recorrente em sua cabeça. O céu era perto o suficiente para ir
de avião, segundo ela. Os pais voltariam logo.
E escutar aquilo era como cair naquele buraco sem fundo novamente. A sensação de
esperança era quase palpável, até a realidade me atingir no instante seguinte. Eles estavam
mortos. Minha irmã e meu cunhado. Para sempre.
E tudo o que restou foi isso aqui...
— Atrapalho?
A voz feminina chamou minha atenção e virei o pescoço para o arco de entrada. Se a
Victoria’s Secret ainda não tinha uma angel argentina, estava perdendo tempo com essa aqui.
Pisquei, embasbacada, conforme a loira entrava na sala, seguindo em direção a Dante.
A namorada!
Enquanto via Dante levantar, meio atrapalhado, segurando um pedaço da maldita
cenoura de Milo, pensei que nunca tinha visto um casal tão bonito na vida. Nem era por Dante,
porque ele não era grandes coisas... Ok! Nem eu acreditei nessa mentira.
— Quem é essa? — Cecília perguntou.
— Namorada do seu tio.
Analisei cada parte da mulher bem-arrumada, daquele tipo que nunca sai de casa
desarrumada ou com um fio do cabelo fora do lugar. Precisei até passar a mão por minha franja
algumas vezes, temendo estar esculhambada demais na frente daquela deusa.
Daquela deusa que foi cumprimentada com um aperto de mão pelo próprio namorado.
Que porra era aquela?
Vê-los juntos era esquisito, constrangedor em um nível que poucas vezes presenciei. E
nem era por culpa dela, era de Dante mesmo.
Ele era esquisito com todas as mulheres desse mundo?
Um aperto de mão, sério? Se ele era incapaz de beijar a boca da própria namorada, eu
estava era grata por não ter caído em seu papinho. O sexo seria péssimo e, se acaso evoluísse
para um relacionamento, ele me comeria quantas vezes no ano? Duas?
Precisei balançar a cabeça para afastar a cena de Dante e eu juntos em uma cama. Aquele
frígido. Credo! Credo! Credo!
— Carina, esses são meus sobrinhos, Cecília e Milo. — Apontou para as crianças. —
Essa é a tia deles, Antônia.
Abri um sorriso largo para a mulher, sentindo a necessidade de ser simpática e fazer com
que ela goste de mim. E de meus sobrinhos. Principalmente deles.
— Muito prazer! Dante fala muito sobre você.
Levantei da cadeira e dei um abraço da mulher, querendo mostrar para Dante que era
assim que se cumprimentava uma pessoa. Ele não teve qualquer reação, apenas voltou a se
sentar.
Já Carina pareceu confusa, como se tivesse escutado a maior sandice de todas.
— Aposto que fala.
Não entendi muito bem o tom usado, mas preferi sorrir amarelo e voltar para meu lugar.
Carina ainda ficou de pé por mais alguns segundos, receosa, parecendo não saber muito bem o
que fazer. Logo mais um lugar na mesa foi posto e ela sentou ao lado de Milo. Seu olhar para as
crianças era enigmático. Mil coisas pareciam passar em sua cabeça, mas nenhuma ação era
tomada. Carina não parecia nem saber o que fazer na presença das crianças.
— Achei que estivesse voando hoje — Dante falou após limpar a garganta.
— Mudei minha escala. Achei que você fosse precisar de mim.
A forma como se olharam foi desconfortável. Já tinha perdido o apetite minutos atrás,
agora então, tudo o que eu mais queria era voltar ao quarto e encerrar a noite.
Tomei um pouco de vinho, surpresa pelo sabor intenso. Descia suave pela garganta,
como veludo, deixando um rastro de chocolate pela boca. Como isso era possível?
— Meu sonho de criança era ser aeromoça. — Tentei puxar assunto.
— Comissária de bordo.
Mordi o lábio, sentindo uma intensa vontade de revirar os olhos, mas que foi controlada
por minha ignorância de não saber se existia realmente uma diferença ou se usei um termo
ofensivo para a classe dela.
— Mas não tinha a altura. — Dei de ombros. — Qual lugar mais legal você já foi?
Dante fez uma careta, como se fosse um suplício ver a minha tentativa de ser agradável.
Vindo do cara que apertava a mão da namorada, isso não me abalava nem um pouco.
— Japão, eu acho.
Uma mulher de poucas palavras. Entendi. Deve ser por isso que se tornou namorada de
Dante. Eles são idênticos nesse aspecto.
— O avião está pronto para pousar... — Dante começou a falar com sua voz levemente
afetada, que ele geralmente usava com as crianças.
Era um pouco assustador, confessava.
Um garfo foi colocado perto do rosto de Milo, com uma quantidade de carne que seus
dois dentes nunca seriam capazes de triturar. Mesmo sabendo que precisava dar um espaço para
Dante e não ser tão invasiva, acabei intervindo antes que ele matasse o nosso sobrinho,
engasgado.
— Use a colher, você vai furar a garganta da criança. E corte em pedaços pequenos.
Seu olhar gélido foi um aviso que eu já o estava irritando.
— Você gostaria de dar o jantar para ele, Antônia? — Seu tom polido, não era nada do
que parecia ser. Sabia muito bem que só estava falando comigo com calma, por conta de Carina.
— Claro, Dante. Será uma honra.
Usei o mesmo tom que ele, forçando um sorriso apenas para provocá-lo. Trocamos de
lugar à mesa e passei a cortar pequenos pedaços de carne, utilizando a colher para dar na boca de
Milo. Na casa da minha irmã, eu o via comendo vez ou outra com as mãos, um método que
Vitória utilizava para dar mais independência à criança, mas eu não fazia ideia do que fazer,
então o tradicional era o que eu tinha em mãos para oferecer.
Fiquei orgulhosa ao ver Milo começando a comer, sem birras, choros ou gritos. Espiei
Dante por cima do ombro, apenas para mostrar que eu poderia não saber o que estava fazendo da
vida, mas ainda ganhava dele. Ele tomava vinho, escutando Carina falar sobre a tal troca de voos.
Ela rejeitou um para o Uruguai e semana que vem pegaria um para Nova York.
Por um segundo me distrai com o pensamento de ser tão livre assim. Tudo bem, eu era
livre, mas era perdida. E não tinha dinheiro também, o que atrapalhava o plano de liberdade.
Carina era sortuda demais por ter encontrado sua vocação e essa ainda lhe proporcionar
momentos tão incríveis em sua vida.
Estava pronta para perguntar se eu era muito velha para tentar ser comissária de bordo
quando escutei a puxada de respiração que dá início ao maior desespero de todos: ver uma
criança engasgar.
Milo ficou arroxeado em menos de cinco segundos. Eu cortei um pedaço muito maior do
que ele conseguia mastigar e enquanto pensava na vida incrível de Carina, dei para ele. Pulei da
cadeira, pegando o bebê pelas axilas. Senti a movimentação de Dante às minhas costas e comecei
a me desesperar ainda mais. Era por minha culpa que Milo estava assim.
— Me dá ele aqui — Dante tirou Milo de meus braços, colocando o menino de barriga
para baixo sobre seu antebraço.
— Você vai machucá-lo! — Tentei pegar o menino de novo, mas fui barrada pelo outro
braço de Dante.
— Eu sei o que estou fazendo.
— Ele não está respirando! — Carina resolveu se pronunciar com as piores palavras de
todas.
Eu não aguentaria perder mais alguém da minha família. Aquelas crianças eram tudo o
que me restaram.
Voltei a olhar para Dante, que pressionava as costas de Milo, os braços e perninhas do
bebê balançavam de uma forma horrenda, sem resposta ou qualquer controle da parte dele.
Peguei o celular no bolso traseiro da calça, pronta para ligar para a emergência, até perceber que
eu nem sabia o número.
— Qual o número da emergência? — gritei para Carina.
— Eu... Eu não sei. — Sua voz trêmula mostrava o profundo despreparo dela para lidar
com a situação.
Porra! Porra! Porra!
— É 107! Digita 107! — Dante respondeu ao meu lado.
Eu tinha acabado de terminar de digitar o 7 quando escutei o som de uma tossida forte,
seguida por aquele maldito pedaço de carne voando diretamente no rosto de Carina. Ela se
assustou e olhou com profundo nojo para a carne babada e mordiscada que deslizou para dentro
de seu decote.
— Foi um susto. Já passou, já passou... — acalmei Milo, que agora chorava alto e forte,
o que era um alívio após aqueles segundos de profundo desespero.
Olhei para cima, vendo o mesmo alívio refletido no rosto sério de Dante.
— Obrigada. Obrigada, mesmo.
Poderia passar o resto da vida o agradecendo por salvar Milo. Eu tinha muitas questões
com Dante, mas a forma como protegia a família, sempre seria motivo para que desse o braço a
torcer. Ainda que estivesse tão desesperado quanto eu, ele estava preparado para lidar com a
situação.
Diferente de mim. E mais ainda de Carina.
Se ela fosse quem seria responsável por cuidar das crianças junto de Dante, precisaria
urgentemente melhorar. Eu não era grandes coisas cuidando de crianças, mas em alguns dias
estaria de volta ao Brasil. Ela ficaria aqui com eles, ela precisava estar preparada para tudo de
pior que pudesse acontecer àquelas crianças. Assim como Vitória e Gregório estavam.
A sensação de paz durou aproximadamente cinco segundos, apenas o tempo de
respirarmos fundo de um susto, para sermos jogados em outra espiral de emoções patrocinado
por aquelas duas crianças.
— Cecília, não!
Meu grito desesperado não adiantou de nada. Enquanto corria em volta da mesa para
tentar conter os danos, eu via a minha sobrinha de quatro anos de idade, virando a taça de vinho
de Dante, sorvendo os goles com uma habilidade impressionante para muitos adultos.
Dante correu comigo ao perceber o que estava acontecendo, mas chegamos tarde demais
para impedir que aquela minipessoa, além de tomar vinho, derrubasse todo o conteúdo da taça
em seu rosto.
Atônita, piquei ao ver a mancha bordô se espalhar pelo tapete que parecia muito
elaborado, caro e claro demais para estar em uma sala com duas crianças incontroláveis. O rosto
de Cecília escorria vinho, suas roupas estavam manchadas e a cereja do bolo da ruína daquele
jantar era a pequena língua explorando os cantos da boca, tomando o que escorria por ali.
Nós não éramos apenas péssimas pessoas cuidando de crianças, éramos criminosos.
— Você deixou sua taça de vinho do lado da dela? — acusei Dante.
Ele abriu a boca algumas vezes, no final das contas, sem saber como responder.
— Eu estava salvando Milo!
— Porra, Dante! — peguei Cecília no colo, limpando o rosto dela com o punho de minha
blusa. — O que fazemos agora?
Busquei o olhar do casal à minha frente, mas eles estavam tão perdidos quanto eu.
— Quanto você tomou da bebida do copo do tio, Ceci? — Dante se abaixou na altura de
Cecília.
— Um pouquinho... — A forma adorável como demonstrou seu pouquinho com os
dedos quase me fez esquecer que o que tinha de fofa, tinha de terrível. — Seu suco é mais
gostoso que o meu, tio.
Minha irmã nunca me perdoaria por ter transformado sua preciosa filha em uma
alcoólatra. Eu nunca me perdoaria por isso, tampouco.
— Vamos para o hospital — decretei.
— Não acho que seja necessário — Carina falou com uma calma que não combinava
para o momento que vivíamos. — Estão sendo exagerados. É só um pouquinho de vinho.
— Ela tem quatro anos!
— Ela vai agradecer a vocês pela resistência quando for mais velha.
Senti o sangue ferver ao ouvir Carina fazer piada de algo seriíssimo. Ela não estava nem
aí para a gravidade da situação. Antes que criasse uma cena, apertei Cecília em meus braços e dei
às costas para eles, saindo pelo corredor em direção às escadas.
— Titi, aquela estátua é engraçada, não é? — disse uma Cecília risonha em meus braços
ao passarmos do lado de uma escultura de algo que parecia um cavalo disforme.
Minha sobrinha estava bêbada. E eu era um monstro.
— É, sim, formiguita. — Tentei ser delicada, mas a grande verdade era que queria ir para
meu quarto chorar.
Em um espaço de dez minutos, Dante e eu quase matamos nossos sobrinhos. Era para ser
um simples jantar, não tinha dificuldade alguma nisso e, ainda assim, falhamos solenemente.
Entrei no quarto deles e fui direto para o banheiro. Tirei as roupas manchadas de Ceci e a
coloquei dentro da banheira, ligando a ducha para livrá-la daquele cheiro de uva e álcool. Ela ria
de tudo, da água em seu rosto, do pato de borracha, até de sua própria mão.
Estava enrolando-a na toalha, quando Dante entrou no banheiro após dar duas batidas
suaves à porta.
— Ela está bem?
A risada deliciosa de Cecília foi o indicativo de que tínhamos feito merda. E das grandes.
— Eu não consigo acreditar que deixamos uma criança de quatro anos de idade bêbada
de vinho.
— Porque estávamos salvando outra de um engasgamento...
Olhamos um para o outro e, mesmo que ainda quisesse chorar, comecei a rir. E ele
também riu. Era desespero puro, mas foi contagiante.
Dante se prontificou a trocar Cecília, enquanto eu voltei ao quarto para tentar fazer Milo
dormir. Sentei com ele em uma poltrona, coloquei a chupeta que percebi nesses últimos dias ser
uma grande aliada e o abracei contra meu peito.
Dante voltou ao quarto com Cecília já trocada com um pijama felpudo com estampa de
unicórnios. Dante a fez beber uma quantidade considerável de água antes de colocá-la na cama,
talvez não fosse a melhor coisa dar água antes de uma criança dormir, mas era o que um adulto
precisava fazer depois de uma noite de bebedeira.
— Tio, por que o seu teto gira?
— Fecha os olhos que passa rapidinho, princesa.
Cecília o obedeceu e vi Dante sentar no chão, ao lado da cama da garota. Seus olhos
procuraram os meus logo em seguida.
— Você acha que ela vai ficar bem? — Dante perguntou; o medo escondido em sua voz.
— Eu espero que sim. Nunca me perdoaria se algo acontecesse com ela.
— Procurei na internet e parece que é mais comum do que imaginamos. Falaram que
com muita hidratação e algumas horas de sono, tudo volta ao normal.
A respiração de Milo se tornou mais pesada e percebi que ele tinha caído no sono
profundo. Minha experiência adquirida nos últimos dias me alertou a esperar mais alguns
minutos antes de colocá-lo no berço. Tão rápido ele dormia, tão rápido ele era capaz de
despertar.
— Não deveria ser normal. Eles nunca fariam isso.
Eu não queria criticar Dante, até porque eu fui culpada por Milo ter engasgado, mas...
Caramba! Ele deixou a taça de vinho do lado da menina. Era básico da convivência com crianças
deixar tudo com álcool longe do alcance delas.
— Nós não somos eles, Antônia. Não sabemos cuidar de uma criança e erros vão
acontecer.
— Errar é uma coisa, colocar a vida deles em risco é outra. — Meus olhos arderam ao
ver o rosto sereno de Milo e me lembrar de seu corpo sem fôlego pouco tempo antes. — Eu não
sei o que fazer, você também não. A sua namorada, menos ainda.
— O que quer dizer com isso? — Seu tom se tornou mais grave, defensivo.
— Que nenhum de nós é boa opção para eles e que estou preocupada com o que
acontecerá depois que eu for embora.
O rosto de Dante endureceu. Consegui ver os músculos de seu maxilar ondulando à
medida que apertava os dentes. Ele não me suportava, era claro como o mar cristalino do Caribe.
Ele só precisava entender que o que eu falava era a mais profunda realidade.
— Eu sou a melhor opção para eles.
Prepotente e arrogante. Um clássico.
— Será que é mesmo?
Seus olhos claros brilharam do mais profundo ódio e percebi que escolheu me ignorar.
Continuei ali com Milo até ter confiança de que ele estava no sono profundo. Coloquei-o no
berço e decidi ficar observando Cecília por mais algum tempo, com medo de que ela vomitasse e
acabasse engasgada.
Era engraçado como qualquer coisa me dava medo em relação às crianças. Antes de todo
esse pesadelo se abater em minha vida, meus medos eram básicos. De aranhas, solidão, desmaiar
no banheiro e aqueles robôs que colocam em festas, que são altos e iluminados. Comparados ao
medo de machucar Cecília e Milo agora, pareciam a coisa mais besta do universo. Eu sentia que
seria capaz de enfrentar um exército de aranhas para que eles ficassem bem e seguros.
Já era quase madrugada quando Dante saiu do quarto após nossa vigília sobre Cecília.
Ela estava dormindo há algumas horas e seu sono era tranquilo. Talvez a quantidade de vinho
ingerido não tivesse sido a quantidade que imaginávamos. Ainda quis esperar mais alguns
minutos para me certificar de que estava tudo bem antes de finalmente poder ir para meu quarto.
Tudo o que eu mais queria era um bom banho e uma noite de sono relaxante depois
daquele dia caótico e que parecia nunca ter fim.
Rocambole estava no quarto, dormindo aninhada nos travesseiros. Tomei meu banho, fiz
a skincare que era rotina em meu dia e fui para a cama, sentindo o toque mais macio que já senti
em um lençol. Queria morar naquela cama e agradecer o resto da vida por Roma odiar tanto seu
chefe.
A felicidade durou dois segundos. O tempo de virar o rosto e ser arrebatada pelo cheiro
intenso da pessoa mais detestável do mundo. As intenções de Roma poderiam ser nobres, mas os
travesseiros chiques e fofos de Dante logo se tornaram a pior ideia do mundo, quando seu
perfume invadiu cada átomo de meu corpo.
Tentei parar de respirar, porque parecia mais fácil do que jogar longe o travesseiro
confortável e perfeito. Mas nada era tão fácil na minha vida. Prova disso foi o momento que um
tec, tec, tec começou a ecoar pela parede.
Olhei para o teto, mas não vinha dali. Demorei dois segundos para entender que aquele
barulho era muito característico para vir do além.
Meus sentimentos por Dante já não eram os mais nobres, mas a raiva que senti
chamuscando no fundo de minhas entranhas ao perceber que era uma espectadora de sua transa
triste e decadente fez com que meu mais profundo desprezo por ele se tornasse gritante.
Quando escutei a voz abafada de Carina gritando inúmeras vezes algo que me parecia
“isso”, foi inevitável pensar que ela parecia o Chaves transando.
Catei um travesseiro e sufoquei meu rosto nele, tentando parar de escutar aquele
tormento. O que não adiantou de nada, porque o cheiro de Dante impregnado naquela merda de
travesseiro e as constantes batidas na minha parede fizeram surgir imagens muito gráficas e
realistas dele usando aqueles dedos imensos dele para segurar Carina de quatro em sua cama
rodeada daquele maldito perfume. Seu rosto não parecia mais tão rabugento em minha
imaginação e precisei espremer as coxas uma na outra para controlar aquela pressão indesejada.
Por sorte, Dante ainda era aquele cara que dava aperto de mão na namorada. Não deveria
durar nada na cama. Ele tinha cara de ser do tipo duas sanfonadas e acabava o forró. Logo esse
tormento acabaria e eu estaria livre para poder dormir em paz. Sem crianças em perigo, sem
jantares constrangedores, sem imagens pornográficas do cara mais detestável que conheço na
minha mente.
Como sempre nada era fácil na minha vida, cinquenta minutos depois e aquele barulho
persistia. Ora mais suave, ora tão forte que parecia que eles estavam transando em cima da minha
cama. Quem levava tudo isso de tempo em uma foda? Dante estava achando que estava numa
maratona? Carina tinha boceta de aço? Quem conseguia transar dessa forma depois do
engasgamento de um bebê e uma menina de quatro anos embriagada?
Precisei de duas melatoninas, fones de ouvido e uma playlist de ruído branco para acabar
com aquele dia terrível.
— Você me ama, Dante?
Não importava quantas vezes eu tentasse me distrair com o trabalho, aquela frase de
Carina voltava a rondar minha mente.
Era a maior das sacanagens perguntar, no meio de uma foda, sobre amar alguém. E não
acreditava que tinha caído nessa como um pato. O que era a prova que homem só pensava com a
cabeça de baixo mesmo.
E eu não era desses caras, ou pelo menos, tentava não ser. Preferia ter a fama de babaca,
do que a de mentiroso. Desde muito cedo percebi que eu gostava muito da minha própria
companhia. O terror de minha adolescência era ver meus amigos de escola começarem a namorar
e perderem toda sua identidade para virar uma mitose com a outra pessoa. Eu gostava demais da
minha independência e mais ainda de me manter fiel aos meus princípios.
O que não fiz na noite de ontem.
Gostar da companhia de Carina, planejar um futuro com ela, era uma coisa. Agora, amá-
la era outra completamente diferente. Mas, naquele momento de excitação, eu falei que “Sim”,
de forma simples e sucinta. Falei sim por medo de sua reação, por temor de acabar sozinho com
Cecília e Milo. Eu precisava de ajuda, depois do jantar de ontem, eu precisava de forma
desesperada de ajuda. Eu, que sempre adorei ser sozinho, temia acabar sem uma companhia no
momento que mais precisava de uma.
Eu poderia ter meus temores e receios com o amor romântico, mas sabia que seria capaz
de dar a vida por meus sobrinhos, assim como daria se meu irmão e minha mãe ainda estivessem
por aqui.
— Chefinho?
A voz de Roma foi o indicativo de que tinha perdido tempo demais pensando nesse
assunto. Já tinham se passado dois dias desde o ocorrido e eu não parava de retomar aquele tema
em minha cabeça desde então.
Girei a cadeira do escritório, desviando os olhos da campina para os cabelos azuis de
minha funcionária. O motivo de Roma estar com uma calça de listras roxas e pretas em uma
tarde qualquer, eu nunca saberia. Eu não conseguia entender nada sobre aquela garota.
— Sim, Roma?
— A babá chegou.
Precisava voltar em mim o mais rápido possível, porque o motivo era importante.
Antônia e eu decidimos contratar uma babá para as crianças. Falando assim, parecia que
conversamos como dois adultos sobre o assunto, mas não. Depois do ocorrido no jantar, ficou
claro que não sabíamos o que estávamos fazendo e ontem, durante o café da manhã, informei que
contrataria uma babá. Ela deu de ombros e resmungou um “Tanto faz”, para depois sair da sala e
sumir de minhas vistas durante todo o dia.
Roma selecionou as candidatas e agora tínhamos algumas entrevistas para fazer.
— Chame Antônia, por favor.
— Pode deixar. — Roma saltitou parada no lugar e eu precisei levantar os olhos para
entender por que ela ainda não tinha saído do escritório.
— O que foi?
— Ela é bonita, não é?
— Quem? A babá?
Aquela garota estava bêbada em horário de trabalho? Quantas vezes eu já tinha falado
sobre degustar vinhos ser expressamente proibido durante o expediente? Teimosa do jeito que
era, não duvidava que o horário de almoço dela tivesse sido dentro de um tonel de vinho.
— A sua cunhada.
Parecia inocente ― sua voz tinha um tom inocente ―, mas eu sabia que aquela garota
poderia ser tão perigosa quanto um hipopótamo africano. Pensando bem, ela até tinha a sutileza
de um.
— Se está interessada, fale diretamente com ela. Não tenho vocação para cupido.
— Eu namoro Miranda, chefe. Você sabe.
Eu não sabia e nem tinha pretensão de saber. Aliás, quem era Miranda?
— Posso saber o motivo de você estar falando essas baboseiras em horário de trabalho?
Não te pago para isso, senhorita Avelar.
— Só estava pensando alto, desculpe. — Deu de ombros. — Se você não estivesse
namorando Carina, quem sabe, não é? Fariam um casal bonito.
Ela definitivamente estava bêbada.
— Você vai acabar com a barriga molhada de lavar copos naquele bar se não der meia-
volta e ir chamar Antônia para começarmos a entrevista.
Nos últimos tempos minhas ameaças não tinham mais o mesmo impacto na garota,
porque ela sabia que era útil. Muito eficiente também. Infelizmente.
— Tudo bem, não está mais aqui quem falou. — Pôs as mãos para o alto, rendida. — E
ela nem iria querer mesmo depois de tudo o que aconteceu.
Roma saiu resmungando, mas eu escutei muito bem. Antônia estava falando para meus
funcionários sobre minha vida? Sobre o fato de ela achar engraçado ter me feito de palhaço anos
atrás? Ela realmente se orgulhava disso?
Quando aquela mulher infernal entrou na sala minutos depois, eu sentia meu sangue
zunir nos ouvidos. O fato de ela estar com a calça mais apertada que já foi feita na indústria da
moda, marcando cada curva de seu corpo, ajudava a fazer com que eu fique ainda mais irritado.
Para que vestir uma calça de ginástica apertada daquela forma, sendo que ela nem
malhava? O conjunto era marrom, combinando com o tom dourado de sua pele.
— Qual é o seu problema, Antônia?
Ela piscou duas vezes, sua feição confusa e desdenhosa nas mesmas proporções.
— Até um segundo atrás, nenhum.
— O que você falou sobre mim para minha assistente?
Suas sobrancelhas sumiram por baixo da franja. Da surpresa, surgiu a resignação em um
milésimo de segundo.
— E por que eu falaria de você para sua assistente? — Cruzou os braços. — Qual é seu
signo, mesmo? Leão, talvez? Deve ser, para achar que o mundo gira ao seu redor.
Antônia era o abuso em pessoa. Nunca ficava sem palavras, nunca deixava de rebater.
Era infernal.
— Sobre aquilo que aconteceu.
— O que aconteceu?
Ela estava perdida demais para estar fazendo cena.
— Quando nos conhecemos. — Odiei que minha voz baixou de tom, como se aquele
assunto significasse algo.
A realidade era que só me trazia mais raiva.
— Você precisa ser mais claro, Dante. Não estou entendendo.
— Não quero que fale sobre aquele equívoco para meus funcionários. Eles não são seus
amigos e não quero que saibam nada da minha vida.
Antônia ficou parada por alguns segundos, olhando para meu rosto de uma forma que
ficava difícil imaginar o que passava por sua cabeça. Seus braços estavam cruzados em frente ao
busto e um sorriso mínimo apareceu na lateral de seus lábios.
— Do equívoco de perder meu tempo com você?
Respirei fundo, lutando para controlar a comichão que antecedia uma briga com Antônia.
Eu nunca tentava realmente lutar contra isso, só que tinha compromisso e não perderia meu
tempo com ela.
— Não fale sobre a minha vida, tudo bem?
— Fique tranquilo, não tenho a menor vontade de comentar sobre ter te trocado pelo seu
irmão.
Finquei as unhas nas palmas da mão, mas estiquei os lábios, dando um sorriso forçado
para ela.
— Não dá para trocar o que você nem ao menos chegou perto de ter.
O comum da minha vivência com Antônia era somente ignorarmos o passado na mesma
medida que nos ignorávamos. Nossa convivência nesses últimos dias eu diria até que era
pacífica, porque não tínhamos grandes interações, exceto quando Vitória ou Gregório resolviam
fazer piadas sobre esse passado. Só que agora, as coisas pareciam tão tensas quanto foram na
época do ocorrido.
Se falasse que considerava engraçado o que aconteceu ou que admirava a atitude de
Antônia, estaria mentindo. Na época, fiquei muito chateado com Gregório. Fiquei algum tempo
sem falar com ele, por pura birra e só voltei a falar quando ele me ligou, desesperado, falando
que tinha conhecido o amor da vida dele e que só tinha um problema: ela era a irmã de Antônia.
Não tive como não voltar a falar com meu irmão depois disso e de rir sempre que imaginava o
momento em que Antônia provou de seu próprio veneno.
Os anos me fizeram entender que eu também tive uma boa parcela de culpa no
desenrolar dos fatos e, talvez, se tivesse me esforçado um pouco mais, as coisas tivessem sido
diferentes.
— Podemos acabar logo com essa tortura e chamar a maldita babá de uma vez?
— Por favor — resmunguei.
Demorou apenas alguns instantes para que a candidata surgisse na sala. E assim que
coloquei os olhos na mulher, senti saudades da discussão anterior com Antônia. Preferiria passar
meus próximos dez anos discutindo sobre aquele maldito encontro que não deu certo entre nós
do que reencontrar Gaia.
— Boa tarde — Antônia disse, sorridente, já com um caderninho em uma das mãos e a
caneta em outra. — Seu nome?
— Gaia Frontez.
A forma como seus olhos espreitavam cada canto meu sem qualquer surpresa era o
indicativo que ela sabia muito bem onde estava se candidatando a trabalhar.
— Conte um pouco de sua experiência para nós, Gaia.
Eu quase não reconhecia aquela mulher sentada formalmente em minha poltrona de
couro marrom, vestida com roupas formais demais até para uma entrevista de emprego, muito
diferente de como se vestia no cotidiano.
— A senhorita Frontez não se encaixa no perfil que estamos buscando — precisei cortar
Gaia, antes que ela começasse a falar.
Ela não ficaria perto dos meus sobrinhos, nunca.
Antônia me olhou por cima dos cílios.
— Nós estamos procurando qual perfil? — Antônia cochichou, como se aquele tom de
voz impedisse Gaia se escutar algo.
— Um que, com toda certeza, não é o dela — sussurrei no mesmo tom.
Gaia limpou a garganta, antes de endireitar os ombros e cruzar as pernas.
— Não é do meu perfil misturar assuntos profissionais com pessoais, senhor Albizia.
Nosso passado ficou no passado.
Gaia deu a munição que Antônia mais queria, foi como ver o rosto de uma criança se
iluminar ao pisar na Disney.
— Você parece ter um passado conturbado com muita gente, Dante — provocou.
— Misógino... — Gaia sussurrou.
Elas estavam unidas contra mim? As duas mulheres mais infernais que tive o desprazer
de conhecer, em uma mesma sala, falando merda para meus ouvidos. O que eu tinha feito de mau
para o Universo?
— Você me chamou de misógino?
— Não, mas se a carapuça serviu... — Deu de ombros. — Mentiroso, arrogante, ilusório
talvez sejam adjetivos melhores para você.
Que porra era aquela agora?
Antônia virou o pescoço, olhando com aqueles olhos castanhos arregalados. Ela estava
adorando aquela cena, tinha certeza.
— Peço que se retire da minha casa, Gaia. Essa entrevista está encerrada.
— Um clássico você fazer alguém criar expectativas e dar as costas ao final.
Sentia que perdi algo nesses últimos cinco minutos. Como viemos parar nessa conversa?
— Ah, isso ele faz bem, mesmo! — Antônia balançou o dedo indicador, concordando
com aquela maluca. — Diria que é sua especialidade, Dante.
— Eu fui sincero com você, Gaia. Não queria relacionamento algum contigo e falei
desde o primeiro dia que conversamos. Eu sinto muito se não supri suas expectativas.
Não importava quantas vezes eu explicasse, sempre que encontrava Gaia em algum
momento, era sempre a mesma ladainha.
Eu a conheci no bar do German, um dos lugares mais frequentados da cidade, que era
precária no quesito entretenimento. Ela era amiga de um amigo de German, que também era um
amigo de longa data meu. Sua beleza chamou minha atenção e, no final da noite, a levei para
minha casa. Expliquei naquele dia mesmo que não estava aberto a relacionamentos sérios e ela
concordou. Em todas as vezes que saímos deixei claro isso, achei que estava sendo direto, mas
acabei virando o desafio de sua vida.
— Você virou as costas para mim depois da maior prova de amor que lhe dei!
Antônia deixou o caderninho de lado, analisando a cena com puro deboche.
— Você não tem coração, Dante? — Ela tocou o próprio peito, inconformada. Ela dava
a atenção que Gaia queria. — Como pôde fazer algo assim?
Ok. Ela estava cobrando o preço por ter falado o que falei em nossa discussão.
— Eu te dei todo o meu amor!
— Ela deu todo o amor dela!
Eu não acreditava que estava vivendo aquela cena com o tanto de trabalho atrasado que
tinha para fazer.
— Te amei como ninguém mais amou!
— Ninguém mais te amou assim, Dante! — Balançou a caneta em frente ao meu rosto.
Cocei a sobrancelha direita, esperando que aquele showzinho de comédia das duas
tivesse um fim o quanto antes.
— Fiz uma tatuagem para você, de presente de aniversário, e você terminou comigo!
— Fez uma... Você fez o quê? — Antônia virou o rosto com tudo na direção de Gaia,
logo em seguida olhou para mim. Dei de ombros, sem nem precisar proferir as palavras “Eu
avisei”. — Você não fez isso, não é?
— Existe maior prova de amor?
Dei graças por minha concunhada não responder.
— Ainda tenho a marca do meu amor tatuado na pele, enquanto ele fica nessa pose
inacessível. Quem você pensa que é?
— Ela tem mesmo? — Agora sua voz estava temerosa.
Da mesma forma que fiquei quando vi a tal prova de amor.
Não precisei responder, porque Gaia levantou a manga do terninho vermelho para
mostrar o ato mais surreal que já presenciei em vida. Quem fazia o nome de uma pessoa no pulso
sem nem ter um relacionamento com ela? Se existia 1% de chance de ter algo mais sério com
Gaia antes disso, depois de ver a tatuagem eu só queria a mais profunda distância dela.
Antônia estava incrédula, olhando para a tatuagem fina com meu nome, seguida por
“Alighieri” feita em uma fonte um pouco diferente e levemente torta. Essa adição era inédita
para mim.
— Pelo menos agora tem um significado mais aceitável... — ponderei.
Deveria ter ficado quieto, porque a forma como Gaia me olhou, possivelmente
amaldiçoando todas as próximas gerações que eu não sabia se teria, deu medo. Antônia começou
a gargalhar, não de uma forma leve ou educada, ela gargalhava alto, de um modo até meio que
ridículo, o que fazia com que eu sentisse vontade de rir também.
— Por sua causa eu tenho que fingir que sou fã de um poeta que escreve livros difíceis.
Dessa vez precisei acompanhar Antônia, que estava jogada no encosto da poltrona,
retorcendo-se como se as gargalhadas doessem. Rindo daquela forma, ela não parecia nada
infernal.
— Gaia, obrigada pela visita, não podemos te contratar. — Ela precisou de alguns
segundos para se recuperar, ainda assim seus olhos estavam lacrimejando. — Seria uma decisão
muito permanente...
Quando Gaia foi embora, nós ainda ríamos sem nem conseguir mais disfarçar. Roma
entrou na sala alguns segundos depois e fez uma careta ao escutar as risadas incontroláveis. Eu
não era o homem mais risonho do mundo, na verdade, nem tinha muito tempo para essas coisas,
mas a situação saiu do controle. E, bem... Era divertido.
— Posso pedir para a outra candidata entrar? — Minha assistente ainda tinha um
semblante desconfiado.
— Sim. — Limpei a garganta, tentando voltar ao normal.
Roma encostou a porta de forma suave. Tirei o cabelo que caía em meus olhos e virei
para Antônia, flagrando-a olhando fixamente para mim.
— Quem é você, hein?
Não entendi sua pergunta, porque a forma como me olhava era quase como a de alguém
que queria ver além. Isso era algo que pouquíssimas pessoas conseguiram, ou talvez, tiveram
permissão. Eu não era uma pessoa fácil, tinha plena consciência disso. Tinha uma tendência a
afastar quem eu amava, a querer esconder as partes frágeis e quebradas, a me retrair ao menor
sinal de alerta. Eu aprendi que era mais fácil fugir, mesmo que tudo o que mais quisesse na vida
fosse ficar.
Não respondi nada para Antônia, pois a próxima candidata entrou. Tudo bem, eu não
responderia mesmo se continuássemos sozinhos, porque fugir era sempre mais fácil. E indolor.
Teresa era uma pedagoga com mais de vinte e cinco anos de carreira como babá. Suas
experiências e recomendações eram excelentes. Tinha um forte apego às regras e hábitos
regulares, o que parecia música para meus ouvidos. Fazia questão de impor uma rotina de
exercícios, jogos, aulas de música e etiqueta para as crianças. Teresa era a resolução de todos os
nossos problemas, mas ainda que eu já estivesse pronto para dizer que ela estava contratada,
Antônia passou à minha frente e disse:
— Qualquer coisa, entraremos em contato. Obrigada pela presença, Teresa.
— Senhora Allende — corrigiu Antônia antes de se despedir com um breve aceno de
cabeça em minha direção.
Esperei a senhora fechar a porta para virar para Antônia, a indignação fervilhando em
minhas veias.
— Ela era perfeita!
— Claro que era. Um robô sem emoções, igualzinho a você.
— Gostar de regras, rotina e educação de qualidade não é algo que me desagrada.
Antônia bufou, cruzou os braços e jogou os pés em cima da mesa de centro, de ébano.
Uma peça de marcenaria fina e design premiado. Bufei igual a ela e utilizei meu pé para
empurrar os dela para longe da minha mesa.
— Parecia que ela estava fazendo cosplay daquela diretora de Matilda.
Devia ter sido para me irritar que ela cruzou as pernas em cima da poltrona, uma Herman
Miller. Minha encarada feia não fez nem cócegas nela.
— O que é Matilda?
Antônia ergueu o pescoço com tudo, como se eu tivesse confessado um crime bárbaro.
— Você nunca viu esse filme? Tem outro nome aqui, será? A menina que tem uns
poderes, os pais são uns bocós, a professora é uma fofa e a diretora obrigava o menino a comer
um bolo de chocolate inteiro?
— Não faço ideia de que filme é esse.
Ela cruzou os braços e bufou.
— Você é tão chato.
A forma como prolongou as silabas, só para mostrar que eu era um real e verdadeiro
porre, era um ultraje.
— Meu voto é na senhora Allende.
— Absolutamente não. Por que uma criança precisaria de aulas de etiqueta? Você é de
alguma família real europeia e não estou sabendo?
— Para não acabarem como você. — Estiquei o braço em direção aos seus pés na minha
poltrona.
Ela estava pronta para me mandar à merda quando Roma entrou com a próxima
candidata. Cinco minutos de entrevista e vi Antônia riscar um X gigante em seu caderno assim
que a garota disse que trabalhou em um pet shop, o que era quase a mesma coisa de cuidar de
crianças, mas veio pelo salário atrativo.
Era final da tarde quando nossa última candidata entrou. Tinha um sorriso de orelha a
orelha, cabelos em um tom de loiro com as pontas cor-de-rosa e usava um vestido verde que a
deixava com a aparência daquela fada do Peter Pan. Eu tinha uma teoria de que quanto mais cor
tinha no cabelo de uma pessoa, mais doida ela era. Roma era a prova viva disso.
Lara não tinha qualquer formação relacionada a crianças. Segundo disse, só gostava
mesmo de conviver com elas. A áurea das crianças era pura e a energizava. Peguei a caneta da
mão de Antônia e eu mesmo fiz o x no nome da garota.
— Estou sentindo uma energia densa entre vocês — Lara mudou de assunto do nada. Eu
tinha perguntado se ela teria disponibilidade para dormir duas vezes na semana no trabalho e ela
começou a falar de energia.
— Perdão? — Antônia arqueou a sobrancelha.
— Qual a sua Vênus, senhor Albizia?
— A minha o quê?
— O seu planeta Vênus está em qual casa? Porque sinto que a Vênus de vocês se
completam, mas estão desconectados. Essa carga energética precisa ser liberada para que a vida
volte a fluir.
Antônia e eu tivemos a mesma reação. Piscamos duas vezes, tentando alinhar os
pensamentos e entender se aquilo era real ou mais um delírio do que foram aquelas entrevistas.
— É mesmo? E como deixamos fluir? — Antônia resolveu dar palco para a louca.
Uma atitude extremamente perigosa.
Lara deu de ombros e de forma despretensiosa e balançou a mão direita, como se fosse
algo bobo o que lhe foi perguntado.
— Não há forma melhor de um casal se conectar do que com sexo. Indico muito para
vocês liberarem essa carga energética que está atrapalhando a fluidez do relacionamento.
Antônia desatou a rir, diferente da vez com Gaia, de forma nervosa, quase histérica. Já eu
escolhi ficar parado. Era como ao se encontrar com um animal perigoso, quanto menos
movimento você fizesse, menos ele farejaria seu medo.
— Prefiro passar o resto da vida carregada, Lara — Antônia debochou.
— Obrigado pela visita, senhorita Gomez. Retornaremos ao final de nossa seleção.
— Não, espera... Eu faço Reiki, também! Muito útil para as crianças! Posso curar
doenças, ajudar com traumas, deixá-los mais calmos. Posso fazer em vocês também!
— É muita gentileza de sua parte. Obrigado.
Eu estava pagando algum tipo de pecado nesse mundo. Tinha certeza.
Quando Lara saiu da sala, pude respirar fundo, por puro alívio. Como Roma conseguiu
reunir as candidatas mais aleatórias dessa cidade? Seria preciso muito esforço para conseguir tal
feito.
— Gostei mais dela do que da Mary Poppins do mundo invertido.
— É claro que você gostou.
— Você deveria liberar mesmo essa energia ruim que paira ao seu redor. — Fechou seu
caderninho e finalmente tirou os pés da minha poltrona.
— Já libero bastante.
— É, percebi. Dá para escutar.
Antônia levantou, mas eu ainda seguia atordoado. Ela estava falando sobre isso que eu
entendi? Resolvi ignorar, como já era comum quando se tratava dessa mulher.
— O que vamos fazer em relação à babá? — perguntei.
— Não acho que nenhuma seja adequada para ficar com as crianças, exceto a sua ex-
namorada, gostei dela, bem intensa.
Ela estava tirando uma com a minha cara agora. Uma graça.
— Continuaremos procurando.
— Carina já marcou a sessão para escrever seu nome? — provocou. — Onde vai querer
dessa vez? Costas? Tornozelo?
— Você sabe que não é engraçada, certo? — Caminhei em direção à porta de entrada,
girei a maçaneta e encostei no batente, esperando que ela entendesse que era a deixa de ir
embora.
— Todos falam que sou.
— Eu não sou todo mundo.
— Sim, até porque eu gosto de todo mundo. Você... — Pousou uma das mãos em meu
ombro, torcendo o nariz. — Eu suporto.
Estiquei os lábios, sentindo o repuxar de meu maior e melhor sorriso cínico.
— Se passasse algum tempo comigo da forma como Carina passou, garanto que já
estaria com um coração, com meu nome no meio, tatuado na sua testa. — Cruzei os braços,
adorando a sensação de ver Antônia incomodada.
— É com isso que você sonha toda noite?
Não respondi. Muito menos ela.
Logo depois Antônia jogou os cabelos pelas costas e saiu com aquela maldita calça do
meu escritório, como sempre, levando a vantagem de ter a última palavra.
Inferno de mulher.
Carina estava cuidando das crianças enquanto Dante e eu fazíamos as entrevistas. Cuidar
era um termo um tanto quanto promissor para o que ela verdadeiramente fazia.
Milo tirava tufos de grama do grande gramado que se estendia na parte de trás da casa e,
pela forma como sua boca estava com pedaços de grama, não precisava ser um grande gênio para
imaginar o que ele fazia com ela depois de tirar da terra.
Cecília usava a jarra de suco casualmente colocada em cima da mesa baixa para dar
banho em duas Barbies enquanto Carina estava esticada em uma espreguiçadeira, tomando o já
fraco sol de final da tarde, lendo um livro.
Foram necessários dez segundos de meditação para não criar uma cena com a pobre
comissária de bordo que, assim como Dante e eu, caiu de paraquedas naquela loucura toda. Tirei
Milo da grama, limpei a boca dele com a minha manga e percebi que não tinha energia para
entreter Cecília, então a deixei afogando suas Barbies no suco de uva.
— Não entra na minha cabeça que alguém acorde um dia e decida que quer ter filhos. —
Carina tirou o livro do rosto para falar comigo.
Era uma surpresa ela falar comigo, então não consegui deixar de arregalar os olhos de
leve.
— Eu não acho que alguém acorde e decida ter filhos, desconfio de que todos só são
pegos de surpresa e finjam que era um desejo, para não traumatizar a criança.
— Duas horas com eles e eu tive a certeza de que não quero esse futuro para minha vida.
Carina falou de modo engraçado, mas não consegui rir. Porque aquele não era um futuro,
ela já tinha duas crianças, vindas dela. Sua escolha ou não, eles já estavam ali e fariam parte da
vida dela.
— Carina... Nós podemos conversar? De mulher para mulher? — Entrelacei as mãos,
temerosa.
Ela não era alguém receptiva comigo, mas eu precisava desesperadamente conversar
com ela sem Dante por perto.
— Claro. — O livro foi colocado de lado, na mesinha onde Cecília brincava com a
Barbie.
Considerei uma decisão arriscada, mas me mantive em silêncio.
— Sei que você caiu nessa de forma inesperada, aliás, todos nós, mas gostaria de saber
se realmente você quer fazer parte disso. — Apontei para as crianças. — Eu vou embora daqui a
alguns dias e será só você e Dante...
Precisei parar de falar quando ela ergueu a mão direita.
— Eu amo Dante, estou fazendo isso por ele.
Isso que ela se referia era a convivência com meus sobrinhos e apertou meu coração
ouvi-la falar dessa forma.
— Mas é algo que você quer mesmo? Crianças são um saco, ainda mais quando não são
nossas. E Dante... — Revirei os olhos. — Ele tem tudo pronto na cabeça dele. É um robô. Os
outros que se adéquem aos planos dele.
— Parece que você o conhece muito bem.
Engoli em seco.
— Não mesmo — rebati, lembrando muito bem do tom de ameaça que ele usou comigo
dentro do escritório sem que eu tivesse falado um “a” sequer para Roma.
— Ele me contou sobre vocês.
Quase fiquei feliz de não ser a única que perdia meu tempo contando para os outros essa
triste história na qual me vi inserida.
— Ele contou?
Ainda estava surpresa por Dante ter feito isso. Nem parecia que tivesse alguma
relevância para ele.
— Eu sabia que tinha algo! — Carina revirou os olhos. — Agora pode me contar o que
aconteceu entre vocês, porque está claro que teve algo.
Senti meu rosto esquentar no mesmo segundo ao perceber que caí como um pato, tudo
porque Lucas tinha razão ao falar que eu era obcecada por todos os acontecimentos da minha
história com Dante. No fundo, eu sabia que só queria uma comprovação de que foi importante
para ele tudo o que vivemos antes daquele triste encontro.
Sim, sei que preciso tratar disso na terapia.
Comecei a rir de uma forma forçada.
— Nada contra suas escolhas, mas prefiro ser comida por tubarões do que ter algo com
aquele lá.
Fui um pouco longe demais, mas o que menos precisava agora era criar uma inimizade
com Carina, sendo que precisava tanto dela para ajudar meus sobrinhos. Esperava que ela e
Dante fossem felizes de suas formas esquisitas e robóticas e que eu não fosse nunca um assunto
entre eles.
— Eu não sou ciumenta, você pode falar.
Seria algo que eu diria também para tirar uma informação importante. Já saquei a de
Carina.
— Não tenho o que falar, só que nunca nos demos bem.
— Mas vocês se conhecem há bastante tempo?
— Sim, desde que minha irmã e Gregório começaram a namorar.
Ela não tiraria mais nada de mim. Estava esperta agora. Vigilante e atenta.
— Mas...
— Então, sobre as crianças... — retomei o assunto principal; o único que deveria existir
em comum entre nós três.
— Vai dar tudo certo, Antônia.
Ficava difícil acreditar nisso quando nem ela acreditava. Seus olhos estavam nas crianças
sentadas na grama, com Cecília afogando cada vez mais a Barbie no suco. Os olhos claros de
Carina se tornaram profundos, tristes, carregados de preocupação.
— Está tudo bem?
— Posso contar algo pessoal para você?
Não! Era o que eu queria gritar para ela. Não queria saber absolutamente nada de sua
vida e, o menos ainda, da vida de Dante. O que eu escutava pela parede do quarto já era
perturbador o suficiente.
— Claro.
— Eu não sei o que estou fazendo aqui.
Eu deveria não me importar, porque nem conhecia Carina e todas aquelas questões
seriam facilmente esquecidas por mim assim que voltasse para casa, mas não foi o que senti.
— Quer desabafar? — sussurrei, como se aquele fosse um segredo só nosso.
O que seria, na verdade.
Ela suspirou e ficou sentada em minha frente, as pernas definidas cruzadas.
— Eu não sou quem Dante espera que eu seja. Não sei nem se essa pessoa existe, na
verdade.
Tive a impressão de que não deveria estar escutando essas coisas. Depois da nossa
conversa amistosa no escritório, estava claro que ele me queria bem longe de todo e qualquer
assunto que dissesse respeito à sua vida. E ali estava eu.
— Se não fosse eu que estivesse saindo com ele, seria qualquer outra nesse lugar,
entende? Acho que o forcei a falar que me ama durante uma transa e...
Aquilo estava passando dos limites.
— E agora sinto que é tudo uma mentira. A única coisa que ele precisa é de alguém que
aguente a barra que será cuidar das crianças ao lado dele. Não é sobre mim, sobre sentimentos,
nem nada disso.
Dante era realmente um belo de um babaca. Não existiam outras palavras para descrevê-
lo que não fossem essas.
— E o que você sente por ele? — Foi minha única pergunta.
Carina entrelaçou as mãos, repousando-as em cima de seu joelho. Olhou para o céu
alaranjado do fim da tarde e suspirou.
— Eu gosto de estar com ele, gosto do sexo, gosto de como ele é bonito.
Minhas bochechas esquentaram novamente.
— Mas...?
Sempre tinha um “mas” depois de uma frase como essa.
— Tenho medo de ficar presa a essa vida dele. Já tinha, antes das crianças, agora então...
— Balançou a cabeça negativamente. — Sinto que sou uma megera pelas coisas que penso quase
todo o tempo. Vocês perderam as pessoas que eram tudo para vocês e eu só consigo pensar que
seria mais feliz em qualquer lugar que não fosse aqui.
Uau! Aquela doeu em mim, que não tinha nada a ver com o pato, imaginava o quanto
doeria em Dante se ele tivesse um coração.
— Você não tem culpa pelo que aconteceu com nossos irmãos, muito menos tem de lidar
com as responsabilidades que são totalmente minhas e do Dante.
Carina assentiu.
— Eu não falei para ninguém ainda, mas passei na seleção da Emirates. É o que eu mais
quero na vida. Morar em Dubai, conhecer novos lugares, fazer o que eu amo. Não consegui falar
para Dante ainda, porque sinto que estarei sendo a pior pessoa do mundo. Ele tem o jeito dele,
mas é um bom homem, tem um coração incrível, me ajudou em todos os momentos que precisei
e no único que ele precisou de mim, só quero sair correndo.
— Carina, vou repetir o que acabei de dizer. Essa responsabilidade não é sua, é nossa. Eu
perguntei várias vezes para ele se você estava de acordo com esses termos, mas o Dante... —
Faltaram palavras para dizer o quão babaca Dante era, sem precisar xingá-lo em frente à sua
namorada.
— É o Dante.
Assenti e dei de ombros. Carina soltou um risinho e olhou para as crianças.
— Quando me convidou para morar com ele e cuidar das crianças, eu o deixei sozinho.
Estava decidida a terminar o namoro e seguir com meus planos.
— E o que te fez mudar de ideia?
— Você.
Meu rosto perdeu qualquer emoção ao escutar aquilo.
— O que eu tenho a ver com isso?
— De todas as pessoas, você é a única capaz de tirar Dante do sério. Ele é um robô como
acabou de dizer, mas quando o assunto é você, isso muda. E eu fiquei curiosa. E ciumenta.
Minha única reação foi começar a rir, porque era impossível que aquela mulher
maravilhosa sentisse ciúmes de mim. Dante não me suportava, eu não tinha onde cair morta e
minhas pernas não estavam nem perto de serem tão malhadas e bronzeadas quanto às dela.
— Preciso avisar que perdeu seu tempo à toa.
— Sei... — Carina suprimiu um sorriso, como se soubesse todos os segredos ocultos que
Dante e eu tínhamos em comum. O que ela não sabia. Nem de perto. — Eu preciso saber!
Cruzei os braços e encostei as costas na espreguiçadeira. Mas nem morta!
— Você fez o que para ele? Traiu? Deu um pé na bunda dele?
— Não sou desse tipo.
— Pegou o irmão dele enquanto ele era secretamente apaixonado por você?
Engasguei com a saliva e precisei voltar a sentar ereta para desengasgar enquanto tossia
desenfreadamente.
Inferno!
Quando olhei para Carina, meus olhos lacrimejando pelo engasgo, ela estava com a boca
estirada.
— Não acredito!
— Eu não disse nada!
— Você fez isso mesmo?
— Eu não fiz nada!
Meu rosto mais vermelho do que um tomate italiano não deixava margem para dúvidas.
— Quem diria, Antônia? Com essa cara de boazinha?
Carina estava brincando, mas eu quis chorar. Se ela falasse para Dante, ele pensaria que
eu perdia meu tempo falando sobre o assunto.
— Por favor, não comenta isso com ninguém. Eu não aguento mais brigar pelo mesmo
assunto.
Carina só ria, horrorizada. Mas vê-la daquela forma, de uma maneira mais descontraída,
tirou aquela impressão estranha que criei desde que a conheci. Ela nunca foi mal-educada
comigo ou algo do tipo, só era distante, fria; assim como Dante. Mas, aparentemente, nessa casa
só existia espaço para uma pessoa ser um grande babaca.
— E sobre o assunto anterior... — Tentei encerrar aquele papo patético e voltar à
seriedade. — Uma coisa que me ajuda muito na hora de tomar uma decisão é pensar se essa
escolha pode ser seu maior arrependimento daqui a trinta anos. Se, em uma tarde qualquer, você
vai pensar no que deixou escapar e sentir um aperto no seu coração, porque o tempo passou e
você perdeu a chance. É só pensar e você terá sua resposta.
Carina anuiu uma única vez e fiquei com a sensação de que nossa conversa não seria
encerrada ainda, mas fomos surpreendidas por Cecília virando toda jarra de suco nas pernas
perfeitas e bronzeadas da minha nova confidente. Eu imaginava que isso aconteceria, só não em
cima de Carina.
Aquele acontecimento, a julgar pelo rosto retorcido da comissária de bordo, talvez não
fosse vantajoso para Dante. Mas, a quem eu estava querendo enganar? Eu não me importava com
ele.
Só ficou um pouco difícil acreditar nisso quando percebi que o que falei para Carina
ainda rondava minha mente.
Eu tinha um grande arrependimento, mas agora já era tarde demais.
Aquele parecia um dia comum.
Céu azul, vento fresco, aroma de uva espalhado por todos os cantos. O meu tipo
preferido de dia.
Tive uma reunião com o pessoal do financeiro e Fabíola, a gerente de exportações.
Estávamos em um impasse sobre as formas que poderíamos continuar expandindo a empresa. A
Albi era para ser uma vinícola familiar, mas alguns contratos foram surgindo e já estávamos em
alguns países do mundo, mas estava difícil pensar em um plano maior. Gregório trabalhava
arduamente nessa expansão, seu sonho era ver a Albi espalhada por cada canto desse mundo. Já
eu, precisava confessar que a ideia de uma vinícola local, intimista, assim como minha mãe
queria, ainda era o que me agradava.
No horário do almoço, fiquei com as crianças para que Antônia conseguisse trabalhar.
Precisávamos o quanto antes encontrar alguém para ficar com eles durante o dia, mas ainda não
conseguimos resolver nada sobre esse assunto. Carina até tentava ajudar, mas era nítido que não
tinha o menor jeito com as crianças. Inclusive, enquanto dava banho em Ceci ontem à noite,
tivemos um diálogo que nunca achei que uma criança de quatro anos fosse capaz de ter.
— Você vai se casar com Carina, tio Dan?
— Eu... Eu... — Fiquei balbuciando na frente de uma menininha, por conta de uma
pergunta simples.
Depois do episodio do “eu te amo” eu estava receoso com qualquer coisa sobre meu
relacionamento com Carina.
— Você não dá risada com ela.
Franzi a testa. Que papo era aquele?
— Como assim, Ceci?
Ela terminou de enxaguar os cabelos que eu a ajudava a lavar. Na verdade, fui chamado
à atenção por passar condicionador na raiz de seu cabelo. “Não é assim que se faz, tio!”,
reclamou antes de fazer de seu jeito. Eu não sabia que existia um jeito certo de passar
condicionador, muito menos de que ela pequena daquela forma já fosse tão cheia de
personalidade.
— Quando vocês estão juntos, você não dá risada. Meus papais sempre dão risadas,
porque se amam e são casados. Você só pode casar com alguém que te faça rir.
Eu não deveria ter ficado tão sentimental por uma coisa que uma garotinha falou
aleatoriamente na hora do banho, mas ela não tinha razão? Carina e eu não éramos um casal que
ria por tudo, a base do nosso relacionamento era sexo, o que não era de tudo ruim. Vitória e
Gregório riam por tudo realmente; deles, dos outros, nas alegrias e nos momentos tristes. Eu
costumava pensar que o futuro deles seria morar em uma grande casa de praia depois que as
crianças crescessem, onde teriam uma horta, beberiam vinho todas as noites enquanto olhavam o
céu e apreciavam as ondas. Eles sempre estariam se divertindo, mesmo que sozinhos. Porque
Ceci tinha razão, eles riam de tudo e a alegria deles era estarem juntos.
Senti o nó na garganta ao perceber que todo aquele futuro deles, que era óbvio para mim,
nunca aconteceria.
Assim como um em que Carina e eu ríssemos de nós mesmo e só a nossa companhia
bastasse.
Horas depois dessa conversa com Cecília, eu ainda pensava sobre. Contei com a ajuda de
Roma para dar almoço para as crianças. Ela ficou com Cecília, eu com Milo. Tive a ligeira
impressão de que ela tivesse a exata idade mental de minha sobrinha, o que não era uma surpresa
para mim. Admirada, Ceci olhava para os cabelos coloridos de minha assistente e comia
entretida, escutando a garota enumerar os nomes de todas suas bonecas da infância.
Após o almoço, eles cochilavam por uma hora e foi a primeira vez que fiquei
encarregado de levá-los para a soneca. Não sabia muito bem o que deveria fazer, então fiz o que
achei certo. Coloquei Cecília em sua cama, Milo no berço, fechei as cortinas e disse que era a
hora do sono. Eles precisavam se acostumar a dormir sozinhos, faria bem para a independência
deles.
Lembrei que precisava pegar meu smartwatch para já ficar pronto para minha corrida
diária após minha última reunião da tarde. Essa parte costumava ser o ponto de paz do meu dia, o
horário em que colocava todas as frustrações e estresses para fora e focava em mim. Desde que
as crianças e Antônia tinham chegado aqui, esse tempo não existia mais. Quando eu não estava
correndo atrás deles, estava cuidando das crianças. Ou fugindo de Antônia, o que também era
cansativo, porque aquela era minha casa. Eu não deveria fugir de ninguém dentro de casa.
Foi pensar no capeta e ele se mostrou mais perto do que o esperado.
A porta do quarto de Antônia estava entreaberta e sua voz escapava de uma forma
raivosa e acalorada. Ela estava nervosa. E eu também ficava nervoso cada vez que passava pela
porta do quarto e pensava que não era justo essa garota estar em um quarto tão bom por um erro
de Roma. Eu não conseguia entender como alguém que era tão eficiente quanto minha assistente,
conseguiu errar em algo tão bobo.
— O que você queria que eu fizesse diferente? Não estou nessa situação por escolha
própria! Eu posso focar, posso me dedicar mais...
O tom dela, por mais nervoso que fosse, tinha um quê de desespero.
Eu deveria virar as costas, pegar meu relógio e sumir, porque não era da minha conta.
Mas eu sabia ser um curioso de merda quando queria e foi por isso que não movi um milímetro
para longe daquela porta.
Seria um problema com um namorado? Ninguém tinha tantos namorados quanto
Antônia. Ela parecia querer fazer uma coleção deles. E eu acompanhava por suas redes sociais
como parecia se dar bem com a maioria.
Quem conseguia se dar bem com ex-namorados?
— Ah, quer saber? Será um prazer nunca mais olhar para sua cara!
Arregalei os olhos e dei um passo para frente, querendo escutar melhor. Definitivamente,
era um namorado.
— O notebook? Manda alguém buscar aqui na Argentina, então, palhaço!
Eu já vi gente pedindo cada coisa em término de namoro, um notebook não me
surpreenderia.
Escutei o barulho do telefone caindo no chão e um grunhido de puro ódio saindo das
profundezas de Antônia. Ok, era hora de deixá-la lidar com essa dor.
Aliás, quem terminava um relacionamento dias depois da morte da irmã e do cunhado de
alguém? Era crueldade, até mesmo com Antônia.
Resolvi parar de bisbilhotar a vida alheia e voltar aos meus afazeres, mas aquele inseto
de meus sobrinhos colocou a cabeça para fora do pequeno vão aberto e começou a rosnar para
meus calcanhares.
Como um ser tão pequeno podia ser tão irritante? E ter olhos tão esbugalhados? Era tão
feio, que se tornava até engraçadinho.
— O que está fazendo?
Tive um leve sobressalto quando Antônia abriu a porta em um rompante. Ela pegou o
cachorro no colo, olhando desconfiada para mim.
— Passando pelo corredor. Essa casa ainda é minha, posso andar pelos corredores, sabe
disso, não? — Dei explicações demais, porque tinha culpa no cartório.
E ela sabia.
Eu sabia que ela sabia.
— Você estava escutando minha conversa?
— Não, eu tenho trabalho a fazer.
— Aqui?
— Não, no meu trabalho.
Ela cruzou os braços, movendo a língua de um canino ao outro. Não precisava ler mentes
para saber que Antônia estava amaldiçoando todas as minhas gerações futuras. Se eu tiver a
capacidade de tê-las e não apodrecer sozinho com meus vinhos.
— Pelo menos você tem um. — Deu de ombros, fingindo indiferença.
Antônia entrou no quarto com o inseto canino e eu fiquei parado onde estava, sem saber
se deveria fazer o mesmo ou seguir meu caminho.
Tudo que se tratava daquela garota era um paradoxo.
— Eu devo perguntar o que aconteceu ou posso seguir minha vida? — Coloquei a cabeça
na fresta da porta, observando a bagunça que estava dentro do quarto.
Como alguém conseguia viver nesse chiqueiro? O tanto de roupa em cima do sofá não
condizia com os poucos dias que ela residia em minha casa.
Antônia estava jogada na cama, de bruços, com o rosto enfiado na barriga rosada e
estufada do cachorro. Germes. Germes para todos os lugares.
— Acabei de ser demitida.
— Você namorava seu chefe?
Saiu alto? Eu realmente falei em voz alta? A julgar pela cara zangada dela, sim.
— O que isso tem a ver?
— Eu... Eu... — gaguejei, tentando achar uma saída para o constrangimento de confessar
que escutei sua conversa e pensei que alguém estivesse lhe dando um pé na bunda. — A empresa
pode ter uma regra dura com relacionamentos entre colaboradores, eu tenho na Albi. Ou, sei lá...
A mulher dele descobriu.
Antônia piscou, como se não acreditasse no que tinha escutado. Nem eu conseguia
acreditar na bobagem que falei.
— Quem você acha que eu sou?
A pergunta foi séria, feita de uma forma que Antônia nunca falou comigo. Tinha um tom
de descrença, quase repulsa por ter que estar no mesmo ambiente que eu.
— Não saiu da forma que pensei, desculpe — falei com sinceridade.
Antônia deu de ombros e soltou o cachorro, depois virou de barriga para cima, usando as
mãos para afastar a franja da testa, enquanto os olhos estavam fixos no teto.
— Você não deixa seus funcionários namorarem?
Ela poderia falar muitas coisas diante daquela situação, mas óbvio que escolheu a mais
aleatória de todas.
— Não. Conflito de interesses. — Abaixei para pegar com a ponta dos dedos uma meia
jogada no chão.
— Que conflito existe em uma vinícola? Um gosta de vinho tinto e outro de suave? —
ironizou.
Revirei os olhos e coloquei a meia em cima do recamier.
— Você sabe que existe um móvel chamado guarda-roupas para organizar suas roupas e
itens pessoais, não sabe? — Apontei para as portas no fundo do quarto.
Aquele quarto, a propósito, era do lado do meu. Na adolescência, era o quarto de
Gregório e eu esperava que Antônia nunca descobrisse que existia uma porta, dentro do tal
guarda-roupa, que interligava o quarto ao meu. Gregório e eu falávamos para todo mundo na
escola que tínhamos portais secretos na nossa casa.
Ela revirou os olhos.
— Você pode sair do meu quarto? — perguntou sem paciência.
— Definitivamente esse quarto não é seu.
Abaixei para pegar o que acreditei ser outra meia. Era preta, assim como a que acabei de
tirar do chão, só que não era. Era uma calcinha. De renda. Minúscula.
Minha primeira reação foi jogar na dona da peça. Antônia riu quando a calcinha caiu em
seu rosto, ela começou a rodar a peça no dedo indicador, cada mínima ação recheada de deboche.
— Sabe por que esse quarto não está arrumado, Dante? — Ela ergueu o corpo, apoiando-
o no cotovelo. Sua voz estava aveludada demais para ser ela mesma. — Porque eu cuido de duas
crianças vinte horas por dia e no tempo que me sobra, eu trabalho em uma empresa que deu um
pé na minha bunda alegando que não estou rendendo mais nas últimas semanas. Sabe por que
não estou rendendo, Dante? Porque as duas pessoas que mais amo na minha vida morreram, me
deixaram sozinha com os filhos deles e um irmão arrogante e idiota que acha que eu sou uma
puta uma hora ou uma imprestável na outra.
Sua voz ao final era tão aguda, que só me restou dar dois passos para trás. Foi quando eu
estava pronto para dar as costas e sair dali que Antônia começou a chorar. E eu fiquei.
— Você não é puta — murmurei baixo e ela respondeu com uma risada anasalada.
— Sabe o que eu sou, Dante? — Sentou na cama, esfregando os olhos para limpar as
lágrimas. — Uma imprestável que não faz porra nenhuma certa. Todo mundo na minha idade
tem uma carreira, um emprego legal, um marido, talvez um ou dois filhos já. Você é o quê? Dois
ou três anos mais velho que eu? E está aí, impedindo os seus funcionários de namorarem como a
porra do adulto que é. Você quis ficar com seus sobrinhos, porque sabe que vai dar conta, porque
sabe que vai dar o que eles precisarem. Já eu, preciso abrir mão deles, porque não sou adulta, eu
sou tão dependente quanto eles. Eu sou a adulta que não sabe viver em um mundo onde a irmã,
que marcava até minhas consultas médicas, não existe. A adulta que acabou de ser demitida do
emprego número... Sei lá! Noventa mil?
Não foi nada bonito escutar essas coisas. O tom era agudo, desesperado e, mesmo que
Antônia não fosse minha pessoa preferida no mundo, não existia como não me solidarizar.
— Não é justo se comparar comigo — pontuei. — Você teve de fazer sua vida do zero.
Eu herdei tudo isso. — Apontei para as janelas.
Antônia coçou o nariz e fungou.
— O pior de tudo... — disse entre um suspiro. — É que eu acreditei que tinha me
encontrado nessa empresa.
— Não tem como fazer uma carreira em cima de uma empresa. Sim, de um ideal.
Aquele era um conselho que vi Gregório dar muitas e muitas vezes. Ele tinha o dom de
acolher nossos colaboradores, de unir todos. De fazê-los quererem estar ali por um ideal, não só
por conta da empresa. E eu acreditava que esse pensamento fazia muito sentido para a vida de
Antônia.
— Eu não sei mais de nada sobre minha vida ou sobre mim. — O tom de confissão só
deixava claro que, para ter aquela conversa comigo, ela estava perdida mesmo.
— Você está em um bom lugar para descobrir — lembrei-a. — Paz, natureza e muito
vinho. Vai te ajudar a pensar. — Abaixei para pegar uma camiseta próxima de meu pé. Joguei
em cima dela e ergui o dedo. — Peça para Roma marcar uma degustação. Você merece um
pouco de vinho do bom, não aqueles mequetrefes que você compra.
Eu vi seus lábios dobrarem em um meio-sorriso, mas nada monumental, porque ela não
daria o braço a torcer que eu sabia ser legal em alguns momentos.
— E arrume esse quarto. Um chiqueiro é mais limpo do que isso.
Saí do quarto de Antônia segurando o riso ao ver seu dedo do meio em riste para mim.
Ela era insana. Em níveis homéricos.
Tive mais duas reuniões naquela tarde e, quando estava pronto para ir correr, Roma
entrou em minha sala falando que uma emergência estava acontecendo em minha casa.
Minha assistente que porcamente tinha saído da adolescência não parecia entender a
gravidade de falar que uma emergência estava acontecendo em uma casa com duas crianças
pequenas. Fiquei desesperado e literalmente corri pelo gramado que ligava a sede da Albi à casa.
Existia um caminho arborizado e bonito, com escadas e pedras pelo caminho, mas demoraria
demais e cenários terríveis passavam por minha cabeça naqueles cinco minutos de corrida.
Entrei como um louco em casa, subi as escadas até o quarto das crianças, mas estava
vazio. E se algum deles tivesse caído da escada? Antônia sabia dirigir, mas... levá-los a um
hospital? Ela sabia onde tinha um hospital aqui?
Desci correndo e escutei um choro alto vindo do fundo do corredor.
Ao entrar na sala de televisão, respirei aliviado antes de tentar entender o terror que
acontecia naquela sala. As crianças estavam inteiras, corriam e respiravam. Já era algo a
agradecer.
— O que aconteceu? — perguntei para Antônia, que corria atrás de uma Cecília vestida
com uma fantasia da Pequena Sereia, uma asa de fada com pequenas luzes amarelas acessas e
uma máscara do Salvador Dali, igual às usadas em La Casa de Papel.
Assistindo como um expectador, era horripilante e não fazia o menor sentido.
— Roma passou o recado?
— Essa é a emergência? — Apontei para Milo que chorava até perder o fôlego, ao
mesmo tempo em que colocava o controle remoto na boca.
— Eu preciso de ajuda.
Iria reclamar sobre o uso equivocado da palavra emergência, porque, para mim, ela
deveria só se usada em algo realmente grave, mas vi o olhar de desespero de Antônia quando
Ceci pulou no sofá e começou a correr em torno de si mesma.
— O que aconteceu com eles?
— Carina deu uma lata de chantilly para eles comerem. Cecília apontou para a geladeira,
disse que queria aquilo e ela deu.
Se havia algo que eu tinha medo, terror, arrepios, era o poder do açúcar para uma
criança. Ainda mais depois das 18h. As chances de minha sobrinha dormir pelos próximos vinte
dias eram mínimas. Sabia por que já cometi esse erro e paguei o preço com gritos indignados de
Vitória.
— Ela não fez isso... — murmurei, embasbacado.
— Ela fez. Inclusive para Milo. — Apontou para a criança que continuava chorando e
mordendo o controle.
— E onde ela está agora? Deveria estar aqui, cuidando do estrago!
Antônia se jogou no sofá, desistindo de correr atrás de Cecília.
— Aguentou o choro por dez minutos e disse que iria tomar um banho de banheira com
fones de ouvido e uma taça de vinho. — Cruzou os braços. — Eu a invejo tanto.
Eu a entendi completamente. Eu mataria por trinta minutos de silêncio ao lado de uma
taça de vinho. Trinta minutos meus, sem choros, birras, fantasias esquisitas e cheiro de leite.
Fizemos o possível e o impossível para gastar a energia deles antes do jantar, ainda assim
Cecília não parava de correr e Milo de chorar. Fui inocente o suficiente por achar que
conseguiríamos comer como uma família normal à mesma do jantar. Não que fôssemos uma
família, mas a sensação de ver todos ao redor da mesa era confortável, como me lembrar de
como era antes com minha mãe, Gregório e eu em nossos jantares. Meu pai quase nunca estava
presente, mas ainda eram meus momentos preferidos do dia, porque quem eu mais amava estava
ao meu lado.
— Eu quero assistir televisão! — Cecília gritava pelos corredores.
Eu tentava segurá-la, enquanto Antônia acalmava Milo.
Por que as noites eram tão estressantes com eles? O que estávamos fazendo de errado? O
chantilly foi uma exceção, mas todas as noites eram caóticas. Às vezes um pouco mais, às vezes
um pouco menos. Ontem comecei a desconfiar de que Vitória e Gregório colocavam calmante no
purê de batatas deles.
— Você pode assistir por cinco minutos depois que sentar e comer tudo.
— Eu quero comer aqui. — Apontou para a sala bagunçada, com todas as almofadas
jogadas no chão, encostos de sofás caídos sob os assentos e restos de chantilly jogados no chão.
Podia jurar que essas palpitações eram sintomas de infarto.
— O jantar ainda não foi servido?
Ao escutar a voz de Carina às minhas costas, senti cada parte de meu ser borbulhar de
raiva, o que só piorou quando a vi de cabelo escovado, maquiagem feita e roupas dignas de uma
festa.
Antônia bufou e voltou a acalmar Milo. Por que aquele garoto chorava tanto? Não era
possível.
— Pode ficar à vontade para comer, assim como esteve para tomar banho e ignorar o
problema que você criou.
— Dante! — Antônia chamou meu nome em tom de bronca.
Olhei para ela e dei de ombros. Ela deveria ser a primeira pessoa a estar brava com
Carina por nos deixar na mão.
— Desculpe, eu criei? — Carina colocou a mão no peito, confusa. — Não tenho
obrigação de saber o que os seus sobrinhos comem ou deixam de comer. Eu sou comissária de
bordo, não babá.
Pisquei, atônito.
— Já está na hora de comer, mesmo. Vamos? — Antônia estava assustada com nossa
pequena divergência e entrou no meio de Carina e eu, segurando Milo nos braços.
— Por que ele não para de chorar? — Carina apontou para o bebê, parecendo irritada
demais para o meu gosto.
— Porque ele é um bebê e bebês choram.
Eu estava sendo um babaca, sabia disso muito bem.
— Parem de discutir na frente deles. Que inferno! — Antônia gritou, assustando as
crianças muito mais do que Carina e eu fazíamos.
Quando olhei para Ceci, ela estava com os olhos arregalados, sentada no sofá como a boa
menina que era. A sensação foi péssima por vê-la assustada e receosa. Vitória e Gregório não
eram o tipo de casal que discutia na frente das crianças. Na verdade, nunca os vi brigando. A
sensação de falhar novamente com eles foi intensa.
— Vamos comer aqui — decidi. — Quer ver um filme, Ceci?
Era o meu arrependimento falando mais alto do que o completo pavor de toda a sujeira
que ficaria a sala após um jantar ali.
— Eu quero, tio Dan!
Vê-la feliz e voltando a pular no sofá fez minha respiração voltar ao normal.
Estava tudo bem. Estava tudo certo.
Antônia piscou, aprovando minha atitude e deu as costas com Milo ainda em seu colo.
Quando virei para falar com Carina, ela não estava mais ali.
A cara que Felicita fez ao ser informada de que nós comeríamos em frente da televisão
foi até que engraçada. Eu a ajudei a montar os pratos das crianças, fiz um para mim e outro para
Antônia e voltei à sala de televisão com um vinho embaixo do braço. Depois do dia de hoje, eu
merecia um vinho. E dos bons.
Ao retornar, Antônia já estava deitada no sofá, Milo estava em cima de sua barriga e
Cecília rolando pelo tapete ao lado do inseto canino que apareceu por ali.
— Já escolhi o filme. — Antônia informou antes que eu sequer colocasse os pratos em
cima da mesa de centro.
— Não gosto de baboseiras românticas.
— Isso explica muita coisa — sussurrou. — Não é romance, é Matilda, aquele filme que
te falei.
— Piorou.
Ela revirou os olhos, mas não rebateu. Só tirou o controle remoto da boca de Milo,
apertou o play e esticou o braço para pegar o prato de comida do garotinho. Enquanto ela o
alimentava, eu fiquei com a tarefa árdua de fazer Cecília ficar parada e comer.
— Eu acho que ele está doente — Antônia comentou e eu lhe dei atenção de imediato.
Milo seguia resmungando e choramingando cada vez que Antônia se aproximava com a
comida.
— Ele está com febre? — Ela colocou a mão na testa do garoto no instante seguinte e
negou. — Será que é dor de barriga, por causa do açúcar?
— Acho que não, ele já estava irritado antes.
Observamos o garotinho voltar a pegar o controle remoto e enfiar na boca, espalhando
baba por todos os lados. Céus... Era tão nojento!
Antônia desistiu de dar comida para ele, eu terminei de dar o jantar para Ceci, fingindo
que não vi que metade da comida ela dava para o cachorro. E só depois disso Antônia e eu
conseguimos comer o jantar já gelado e beber o vinho direto do gargalo, porque esqueci de pegar
as taças e me recusava a fazer um movimento sequer enquanto Cecília estava deitada, quase
pegando no sono.
Coloquei a cabeça em uma almofada, estiquei o corpo no tapete, acariciando o cabelo de
Ceci enquanto assistia ao filme sobre a menininha descobrindo seus poderes. Antônia estava no
sofá ao meu lado, vez ou outra rindo baixinho de alguma cena. Naqueles minutos silenciosos, eu
consegui sentir paz, uma felicidade genuína, mesmo que sem motivo algum.
— É o dente... — Ela sussurrou em certo momento.
Ergui o pescoço para conseguir olhar seus olhos e entender o que acontecia.
Antônia apontou para Milo dormindo de boca aberta, ainda agarrado ao controle remoto.
— A gengiva está inchada, acho que está nascendo um dente.
Ergui o corpo, apoiei no cotovelo direito e olhei para onde Antônia apontava. A gengiva
superior de Milo estava inchada e muito vermelha. Bem lá no fundo, eu conseguia ver o dente
forçando a pele sensível.
Agora, a irritação fazia todo o sentido.
— Deve doer tanto — lamentei. — Sabe o que fazer para melhorar?
Antônia arqueou a sobrancelha, debochada.
Ok. Estávamos no mesmo barco.
— Quando tirei o siso eu comi sorvete até ficar com dor de barriga, mas talvez não seja
uma boa ideia.
— É uma péssima ideia.
Deixei um sorriso escapar e, ao perceber, voltei a deitar no tapete, sentindo-me esquisito
por partilhar aquele momento de pura paz com Antônia.
— Aquilo com Carina... — Antônia falou baixo, ganhando minha atenção novamente. —
Não me leve a mal, mas não foi nada legal. A responsabilidade é sua, Dante.
Suspirei, tentando não ficar irritado com a intromissão de Antônia na minha vida.
— Se ela concordou com isso, deveria estar remando no barco conosco, não acha?
— Ela quer mesmo entrar nesse barco? — pontuou, fazendo minha nuca pinicar.
Levantei a cabeça novamente e olhei para Antônia. — Ela te disse isso ou você só presumiu?
Pelo meu silêncio, ela já tinha sua resposta e parecia maravilhada por ver a situação que
eu me encontrava.
Podia ter sido muito direto com Carina, mas nessa situação, tinha como não ser? Carina
tinha todo o direito de terminar nosso relacionamento e seguir sua vida, mas ela decidiu voltar e
tentar. Ela disse que tentaria. E eu também estava tentando melhorar dentro do relacionamento.
— Cuida da sua vida, Antônia.
— Sou desempregada, agora tenho tempo de sobra para cuidar da sua.
Eu poderia ter ficado quieto e voltado a ver o filme, mas estiquei o braço e a empurrei.
Foi algo tão banal, tão bobo, deveria ser comum, mas fui surpreendido com uma corrente elétrica
que se tornou ainda mais potente quando ela começou a rir.
Refreei qualquer pensamento e foquei no filme. As crianças já dormiam, tudo estava
calmo, o filme já estava no fim quando eu adormeci sem nem perceber o que acontecia.
— Dante?
Tive a sensação de que não se passaram dois segundos desde que fechei os olhos. Estava
naquela névoa de sono, sem saber nem quem eu era. Estava dormindo de lado, virado para o sofá
onde Antônia estava desmaiada, o braço pendurado para fora, quase tocando minha mão.
Se ela dormia, quem estava me chamando?
— Dante!
Com a névoa se dissipando, juntei forças para virar para o outro lado e encontrei Carina
de pé.
— Que horas são? — Sentei tomando cuidado para não acordar Cecília.
— Onze e vinte.
Quando ela consultou o horário no relógio, foi que percebi que estava com o uniforme da
companhia aérea.
— Você vai trabalhar?
— Sim, troquei a escala com uma colega. Podemos conversar antes?
Assenti e levantei com mais cuidado ainda. Seria um pesadelo acordar as crianças
naquele horário, elas voltariam a dormir daqui a vinte anos.
Fomos para a cozinha que, àquele horário, estava vazia. Liguei apenas a luz do pêndulo
em cima da ilha gourmet de madeira. Fui até a geladeira pegar um copo de leite, sentindo que
meus movimentos eram seguidos pelos olhos atentos de Carina.
— Quando você volta? — Deixei o copo pela metade em cima da madeira polida,
usando as duas mãos para me segurar na beirada.
— Eu não volto mais, Dante.
Pisquei, pensando se escutei o que bem entendi. Ainda estava com sono, não deveria ter
entendido.
— O quê?
— Decidi aceitar o trabalho na Emirates, vou morar em Dubai.
Pisquei duas vezes agora. Ela iria para onde?
— Nós não conversamos sobre isso...
— Nós não conversamos sobre nada. É normal. — Colocou sua bolsa em cima dos
bancos aveludados onde eu geralmente tomava café da manhã conversando com Felicita antes
das crianças chegarem.
— Eu não estou entendendo. Nós estamos terminando?
— O que você acha, Dante? — Cruzou os braços. — Tudo isso foi um erro. Eu estou
aqui pelos motivos errados, assim como você.
Peguei o copo, agindo no automático, sem nem saber o que fazer com ele. Subi até a
altura da boca, soltei novamente na bancada e coloquei as mãos nos quadris.
— Tudo bem.
O rosto de Carina se transformou em pura indignação.
— Tudo bem? Tudo o que você tem a me dizer é tudo bem? — murmurou.
— Se você não quer mais ficar comigo, eu não tenho o que fazer. E Dubai é ótimo, você
vai amar.
Não sei o que falei de tão errado, porque tudo o que ela fez foi esticar o braço, agarrar
uma maçã e jogar em minha direção.
— Você é um cretino, Dante!
Assenti, porque isso eu era mesmo. Gostaria muito de saber lidar melhor com essas
situações, não deixar as mulheres tão irritadas, saber lidar melhor com sentimentos e
expectativas.
— Desculpe.
Carina respirou fundo algumas vezes, fixou o olhar no chão e voltou a me encarar. Após
alguns segundos olhando para meu rosto, ela abriu um sorriso.
— Você nunca será feliz se continuar tratando os outros do modo como acha que merece
ser tratado. Você é uma pessoa boa, merece viver coisas boas, amar e ser amado. Não é fraqueza
alguma querer isso.
Meu coração gelou ao ouvi-la, pela primeira vez, falando realmente o que pensava; sem
querer agradar, sem meias-palavras.
— Eu não...
— Você vai acabar sozinho se continuar agindo dessa forma com todo mundo que goste
de você.
Umedeci os lábios e assenti. Eu sabia que ela estava com a razão, sempre soube que esse
era o meu maior problema. Só nunca senti que ficaria sozinho, porque sempre tive meu irmão. E
agora...
Agora ele não existia mais.
— Cuide dos seus sobrinhos e da Antônia.
Sua despedida fez com que minha testa ficasse franzida.
Antônia? Sério? De onde surgiu aquela preocupação toda?
Como se lesse minha mente, ela completou:
— Eu espero que ela te conserte. Deixe que tente, pelo menos.
E então, como se não tivesse soltado o maior absurdo de todos, ela deu as costas e saiu
carregando sua mala de bordo.
Fiquei em choque por tantos minutos que minhas pernas começaram a doer após o tempo
em pé. Repassei a conversa oitocentas vezes na minha mente e, ainda assim, não fazia sentido.
Resolvi colocar as crianças na cama e tentar voltar a dormir, porque depois disso tudo,
era hora de encerrar aquele dia.
Primeiro peguei Cecília, subi as escadas, deixei-a em sua cama sem fazer movimentos
bruscos e voltei à sala para pegar Milo. Observei a forma como ele estava agarrado em Antônia,
dormindo; tão serenos. Daquela forma, ela nem parecia tão difícil da forma como era.
— Dante? — Escutei-a resmungar.
— Preciso pegar Milo.
Ela estava tonta, perdida, tanto quanto eu estava quando Carina chegou. Depois de um
bocejo, ela deu espaço para que eu pegasse o bebê no colo.
— Que horas são?
— Uma da manhã.
Ela me seguiu para fora da sala, ao longo das escadas e do corredor. O silêncio do início
da madrugada costumava ser um acalento para mim, mas ao lado dela não era bom. As
conversas, resmungos e ofensas eram mais divertidos.
— Carina foi embora — falei de súbito.
Antônia parou de andar e me olhou por baixo dos cílios, desconfiada.
— Ela terminou comigo.
Antônia continuou em silêncio e apenas levou o polegar à boca, mordiscando o cantinho
da unha enquanto parecia pensar na novidade revelada.
— Garota esperta.
E com aquele sorriso ardiloso, ela zombou da minha cara e deu as costas para entrar em
seu quarto.
Eu que precisava de conserto? Quem precisava de conserto era ela.
A triste e chata história de amor de Dante e Carina acabou da mesma forma que devia ter
começado: sem qualquer graça.
O bom de não ter um coração era que Dante não parecia abalado. Era o que Roma e eu
comentávamos no horário de almoço.
Eu a atualizei sobre as últimas novidades enquanto comíamos no jardim. Cecília estava
brincando no gramado ao nosso lado, Milo em sua soneca da tarde lá no quarto.
— Ele disse que ela terminou com ele? — Roma ainda estava chocada, mastigando sua
rúcula com animação.
— Disse. Achei deusa, magnífica, apoteótica. Deu um belo pé na bunda dele.
— Você parece muito animada com isso.
A garota estava provocando, eu sentia a energia.
— Nem comece — adverti com o dedo indicador em riste. — Tenho mais coisas a me
preocupar do que com a fanfic que você criou de mim e do seu chefe.
Roma suspirou, jogando as pernas para a grama. Esse jardim era minha parte favorita da
casa, que era um espetáculo, sim, mas aqui... Aqui eu me sentia viva. O sol esquentava minha
pele, quase um lembrete de que por mais que as coisas estivessem difíceis, ainda havia beleza no
ordinário.
— Seria um sucesso de leituras, mas a vida de vocês é bem sem graça, precisaria
incrementar um pouco.
— Minha vida não é sem graça.
— Quando foi a última vez que você saiu?
— Sabe que minha irmã morreu faz quinze dias, não sabe?
Cruzei os braços, agindo na defensiva.
Roma ficou em choque com a resposta e começou a balbuciar desculpas, sem saber nem
como agir. Ninguém sabia lidar com o luto, muito menos com pessoas em luto. Eu já estava na
fase da aceitação, entendendo que nada mais traria minha irmã e Gregório de volta. Embora a dor
fosse absurda, os dias continuariam começando e terminando e eu estaria aqui. Com minha mãe
demorou muito mais, talvez porque fosse apenas Vitória e eu remoendo a dor vinte e quatro
horas por dia. Agora, com todas essas mudanças, os cuidados com as crianças e tudo mais, não
sobrava tempo para pensar em nada.
— Foi só uma brincadeira, Roma. Respire, por favor! — Tranquilizei-a com um sorriso e
duas batidinhas em sua perna.
— Você e Dante têm o mesmo senso de humor macabro e sem graça.
— Coloca essa característica na sua fanfic, então. — Pisquei para a garota.
— Primeiro preciso descobrir o que aconteceu com vocês para dar mais credibilidade à
obra.
Sua curiosidade juvenil era engraçada, ainda mais sobre esse assunto. Por que as pessoas
aqui se importavam tanto comigo e com Dante?
Respirei fundo, lembrando as incisivas palavras daquele ogro sobre não falar nada sobre
sua vida pessoal para seus funcionários e com um sorriso, falei:
— Nosso relacionamento não deu certo, porque ele me engravidou e não quis assumir o
bebê. Acabei tendo de dar a criança para minha irmã e Gregório e aqui estamos nós...
Precisei fazer muita força para não rir da cara de Roma, quando ela ficou travada,
processando a informação. Não aguentei mais do que dez segundos e comecei a rir.
— Vocês, velhos, sempre passam do ponto nas piadas — reclamou.
Ela me chamou de velha?
— Eu nem sou tão mais velha do que você assim, ok?
Ela virou o pote de salada na boca, tomando o restinho do tempero, limpou os lábios com
o punho da manga e deu de ombros.
— Todo sábado estou com Miranda no bar do German, é o maior da cidade, você não
terá dificuldade para encontrar. Ela canta lá com a banda dela e depois ganhamos algumas
rodadas de cerveja grátis. Por favor, apareça algum dia para fazer alguma coisa interessante, que
nem gente da sua idade faz.
— Gente da minha idade pode ser vista com gente da sua idade? — debochei.
— Não, mas abriremos uma exceção para você.
Não disse nem que sim, nem que não, mas fiquei feliz pelo convite. Sempre tive medo da
solidão e por isso vivia rodeada de pessoas. A maturidade, por mais que não fosse tão atrativa
para os jovens de dezenove anos como Roma, era benéfica. Quando você colocava pessoas em
sua vida apenas para preencher lacunas, o resultado nunca era bom e aprendi a duras penas que
preferia ter poucos e bons amigos, do que estar rodeada de pessoas que não me conhecessem.
Minha mãe, Vitória, Gregório e o meu seleto grupinho de ex-namorados eram tudo o que
eu precisava para me sentir bem e feliz.
Pensei muito em Vitória naquela tarde de sol que passei com Ceci. Minha cabeça ainda
estava focada na demissão. O que eu faria da vida assim que voltasse para casa? Precisava pagar
o aluguel do apartamento, pagar contas e tudo mais que a vida adulta oferecia de brinde. Tinha
uma reserva de dinheiro, mas que não duraria o suficiente para procurar emprego com calma. Eu
precisava de um milagre.
Ainda estava inconformada que eles tivessem me demitido com a desculpa de não estar
rendendo o suficiente depois de tudo o que tinha acontecido com a minha vida. Não sabia
quantas noites virei naquela agência para eles darem um pé na minha bunda no pior momento da
minha vida. Nem Olavo, que me traiu com sua própria prima, foi tão filho da puta assim.
Mas quando olhava para minha sobrinha, aqueles pensamentos ficavam mais quietos. Ela
era tão parecida com Vitória, o mesmo sorriso, o mesmo modo de olhar encantada para as coisas
mais simples. Tão doce, a minha garotinha.
O sol ficou ainda mais forte e decidi que tínhamos tempo o suficiente para fazer uma boa
bagunça. Peguei uma mangueira na lateral da casa e brincamos com a água, no gramado.
Correndo e rindo como se a vida fosse uma cena de um filme. E naquela tarde com ela, eu senti
que talvez fosse. A vida real podia ser bela naqueles gestos simples, em uma risada da minha
sobrinha, no entardecer estonteante rebatendo a coloração alaranjada nas janelas de vidro, no
simples ato de respirar.
Faltavam muitas coisas na minha vida, mas aqui eu me senti completa.
— Vocês estão ensopadas.
Virei o pescoço para encarar Dante. Sua camisa xadrez de sempre estava bem alinhada,
por dentro do cinto e da calça preta. Ele era tão certinho, tão composto, mesmo um dia depois de
um término. Será que Dante chorou? Teve insônia? Comeu um pote de sorvete durante a
madrugada? Não conseguia imaginá-lo fazendo nada disso.
Milo estava em seus braços, um sorriso radiante com aquelas gengivas inchadas dele.
— Olha, tio Dan! — Ceci chutou uma poça de lama que tinha se formado no gramado
perfeito de Dante após nossa pequena brincadeira.
A lama respingou em nós e ela fez a festa, girando em seu próprio eixo até cair sentada.
Dante se aproximou com os olhos fixos em mim. Eu não conseguia sustentar seu olhar por mais
do que dois segundos, simplesmente porque era estranho e desconfortável. Ele soltou Milo no
chão, o garoto que não era bobo e não perdeu tempo em bater as mãos na poça, espalhando lama
por toda sua roupa.
— Qual a probabilidade de eles contraírem uma infecção no meio de toda essa lama?
Olhei para os dois. Milo já estava com a mão na boca e segundos antes, Cecília coçou os
olhos com a mão suja, deixando uma marca de terra por ali.
— Germes são amigos das crianças. — Dei de ombros.
— Isso não está nos livros que ando lendo.
— Eu gostava de comer a areia do parquinho perto de casa quando era criança e estou
viva.
— Isso explica muita coisa.
A capacidade que Dante tinha de zombar de mim de uma forma inteligente era realmente
encantadora.
— Era crocante.
— Você é nojenta.
Mordi os lábios e segurei a ponta da mangueira com o dedo indicador, direcionando o
jato mais forte bem para o rosto de Dante. Ele pulou para o lado, gritando alto meu nome com
profunda surpresa.
— Ops! — Fiz um bico, lastimando muito o acidente que acabou de acontecer.
— Você não fez isso.
— Não fiz.
E mais uma vez direcionei o jato da mangueira para ele, dessa vez molhando toda aquela
camisa xadrez ridícula.
— Antônia! — ele bradou.
— Que loucura! Estou sem controle. — Fiz uma careta surpresa, jogando mais água nele.
— Me dá isso aqui. O planeta está morrendo e você gastando água dessa forma.
Consciente. E chato.
Revirei os olhos.
— Vem pegar, então.
Eu não deveria ter tanta confiança em minhas habilidades, muito menos tamanha falta de
noção de lançar um desafio para um homem do tamanho de uma geladeira duas portas com
dispenser de água e gelo e até aquelas telas touchscreen. Joguei mais um jatinho nele, antes de
dar as costas e sair correndo.
Levou exatos cinco segundos para Dante agarrar meu vestido com tamanha força, que
meu corpo foi para trás. Torci o tornozelo naquela terra molhada e deslizei de uma forma patética
por Dante, até encontrar o chão molhado.
— Eles estão... Ó, doidinhos... — Vi Cecília fazer um gesto com o indicador girando
para Milo, que estava mais interessado em lambuzar o rosto de lama.
Dante puxou a mangueira de minhas mãos e não ofereci resistência, porque sabia que
não tinha como lutar. Coloquei as mãos para o alto, rendendo-me.
— Tenha misericórdia de uma pobre tia que busca um pouco de diversão para seus
sobrinhos...
Aquele filho da puta só deu um sorrisinho antes de girar o registro de pressão da água e
me dar um banho mais forte do que tomaria se entrasse na frente de uma mangueira de apagar
incêndios. Comecei a tossir, meio engasgada, meio afogada e agi por impulso quando chutei a
perna de Dante, que se desequilibrou, escorregou na terra molhada e caiu em cima de mim.
Arfei ao sentir o peso e espalmei as mãos em seu peito, afastando-o um pouco de mim.
Era rígido, o que não era uma surpresa. Dante era malhado, não do tipo gigante, mas do tipo
definido e gostoso. Bem de leve, quase nada gostoso. Quase nada, mesmo.
— Essa ceninha é bem previsível, Dante. — Mordi o lábio, esperando sua réplica mal-
educada.
Eu sabia que viria. Ela sempre vinha.
— Só nos seus sonhos, Milani.
— Estaria mais para um pesadelo.
— Que nem aqueles que você falava que tinha comigo?
Não foi só minha bochecha que ficou quente, meu rosto inteiro; meu corpo, para ser mais
exata. Eu comecei a arder de vergonha, porque simplesmente não conseguia acreditar que ele
tinha falado isso.
Queria morrer ao lembrar que eu realmente tive um passado com Dante. Um passado
recheado de conversas tarde da noite, sonhos muito interessantes conforme o tempo passava e ele
entrava cada vez mais na minha vida, minha mente e meu coração. E ele sabia, porque quando
éramos jovens não tínhamos medo de nos jogar. Só falávamos, vivíamos e sentíamos sem
limites. Até darmos com a cara no chão.
— Sonhar com você agora configuraria paralisia do sono.
Dante repuxou um sorriso, parecendo gostar do que tinha escutado. Depois, virou a
mangueira para meu rosto antes de tirar suas mãos de mim e ir para perto das crianças.
A forma como meu coração estava disparado era vergonhosa e lamentável. Nunca
estivemos tão próximos na vida e era humilhante admitir que não tinha sido de todo mau.
Muito pelo contrário.
A babá das crianças era adorável.
Parecia uma fada, era pequena, sorridente e muito delicada. Cecília e Milo estavam
apaixonados por ela. E eu também.
Com ela trabalhando, eu finalmente tinha tempo para respirar fundo e não passar vinte e
quatro horas com Dante tentando não fazer que nenhum acidente acontecesse com as crianças. E
ele... Bem, ele poderia voltar a fazer o que quer que fizesse ao longo do dia.
Aquele foi o primeiro dia desde que cheguei que consegui tirar um tempo para passear
com calma, observando cada detalhe do lugar, sentindo o aroma das uvas, agradecendo a cada
funcionário que me presenteava vez ou outra com pequenos cachos de uva para experimentar.
Achei que seria loucura da minha cabeça que tudo parecesse mais colorido aqui, mas a
verdade era que parecia mesmo. Minha vida em São Paulo não tinha tantos tons assim. Era como
um mar sépia, ora um pouco mais claro, ora mais escuro.
— Aqui fica a administração. É onde o seu namorado trabalha.
Revirei os olhos ao escutar Roma e suas brincadeiras que passavam cada vez mais do
limite desde que Carina chutou a bunda de Dante. Ela não se cansava disso.
— Sabe que se ele descobrir as besteiras que você fala, vai te colocar no olho da rua, não
sabe? — Arqueei a sobrancelha.
— Você não jogaria tão baixo. — Deu de ombros, sem dar qualquer importância a minha
ameaça. — Quer conhecer o escritório?
Assenti, porque não tinha nada para fazer. As crianças estavam pintando com a babá e eu
continuava desempregada. Não era como se tivesse muitos compromissos.
A sede da Albi era mais moderna do que achei que fosse. Tudo muito claro, organizado e
sóbrio. Era quase a definição de Dante em um ambiente. Roma abriu várias portas, falando sobre
a sala do gerente, do financeiro, de reuniões e tudo mais. Era um pouco sem graça, embora muito
bonito. Preferia ficar lá fora.
— Aqui é a minha mesa. — Roma fez uma reverência para o balcão em “U” onde
trabalhava.
Era uma antessala, com um lustre bonito, computador moderno e um cheiro incrível que
me parecia biscoitos amanteigados.
— Muito chique.
— Sabe o que seria incrível? — O som de suas palmas se chocando era o precursor do
caos. — Você falar para seu namorado me dar um aumento. Nem só de mesas chiques vive o ser
humano.
— Gostaria que ele te desse mais trabalho para que você parasse de encher o meu saco.
Roma fez uma cena com a mão no peito e a boca escancarada.
— Vocês já estão ficando iguaizinhos! Cruéis! — Ela caminhou para sua mesa, de onde
tirou um pote escondido. — Quer cubanitos? Minha mãe fez ontem. São um pedaço do céu!
Roma esticou o vasilhame cheio de canudos recheados de doce de leite. Salivei só de ver
aqueles doces brilhando em minha frente, mas muito antes que eu encostasse um dedo neles, a
porta principal foi aberta e Dante apareceu com sua carranca usual.
— Quantas vezes preciso dizer para não comer em ambiente de trabalho?
Roma encostou o queixo na mão fechada em punho, arqueando a sobrancelha até o
limite. Era impressionante como não se abalava nem um pouco com Dante. Até eu tinha medo
dele.
— Não posso dizer não para os cubanitos de mamá.
— Suma com isso, agora. — Ameaçou com o dedo em riste. — E pare de comer tanto
açúcar. Isso não faz bem para a saúde.
Por pura provocação, peguei um dos canudos de wafer e dei uma bela mordida com os
olhos diretamente nele. Dante coçou o canto da boca com o polegar, não fazendo o mínimo
esforço para desviar o olhar intenso que me direcionava.
— Vá buscar os papéis com Fabian. — Dante ordenou para Roma.
A garota já parecia habituada com o jeito escroto com que ele tratava tudo e todos.
Levantou com sua graça de sempre, deixou o pote com os doces em cima da mesa e saiu da sala.
— Por favor — resmunguei.
— O quê?
— Custa falar “por favor”?
Dante cruzou os braços, a língua passeando pelo lábio avermelhado.
— Diga, em quais situações você gosta mais de usar essa palavra tão especial?
Senti uma mudança brusca no clima. Nossas interações eram tão cheias de eletricidade,
que quase conseguia sentir a energia. Só que dessa vez a energia ficou densa, quente como brasa.
Prendi o canudo entre os dentes, sorrindo de lado ao perceber a malícia implícita.
— Algumas em que você não teria a sorte de vivenciar.
Ele sorriu. Eu sorri.
Eu gostava mais de Dante quando ele namorava e era mais formal, sem essa proximidade
irritante, sem a malícia. Só o Dante formal, impessoal e arrogante de sempre.
— O que faz aqui?
— Roma estava me mostrando a sede.
Sua cabeça pendeu para frente, assentindo.
— Quer conhecer meu escritório?
Senti que algo parecia errado naquele convite, como naqueles dias em que sentíamos que
não devíamos sair de casa, mas éramos teimosos e uma grande desgraça acontecia. Mas a ideia
de Dante saber que me afetava era ainda pior.
Chacoalhei os ombros, não dando importância.
— O que tem de bom aí?
Ele deu espaço para que eu entrasse. Não me intimidei e fui com toda a coragem que não
tinha e a falta de noção que me sobrava. Mastigando o resto do doce de Roma, observei o
ambiente amplo, limpo e organizado, como todo o resto da empresa. Não tinha muita graça,
assim como ele, mas as janelas mostravam uma paisagem digna de uma obra de arte.
— Nossa... — murmurei.
— É por isso que não quero nunca sair daqui.
Eu entendia. Se tivesse um escritório desses, também seria uma louca por trabalho sem
emoções, amor ao próximo e incapaz de dizer “por favor” ou “obrigado”.
Dante foi até sua mesa, que não era surpresa alguma ser extremamente organizada. Havia
um computador ali e mais nada espalhado que não fosse uma taça de vinho ao lado do teclado.
— Quer um pouco de vinho?
Estranhei o convite e mais ainda o horário.
— São duas da tarde.
— Em algum lugar já passou das seis. Está liberado.
Era um bom argumento. Ainda desconfiada e receosa, aceitei o vinho. Não entendia
muito da etiqueta com vinhos, mas baseada no modo como Dante me julgou ao dar uma golada
que quase acabou com o que foi servido, percebi que tinha feito algo errado.
— Bom? — Ele testou.
— Tem gosto de uva.
Era para provocá-lo e vi que surtiu efeito quando fechou a cara e soltou o ar pelo nariz.
Caminhei ao redor de sua mesa, observando a paisagem plácida. Uma tarde perfeita, ensolarada,
mas não quente.
— Isso é uma afronta ao meu Syrah.
— Olha você, todo culto com seus termos enolísticos.
— Essa palavra nem existe.
— Agora existe. — Pisquei e inclinei o corpo para pegar a garrafa e calibrar o meu copo.
Eu estava desempregada, não estava? Por que não poderia me embriagar às 2h da tarde
de uma quinta-feira qualquer?
— Você não consegue sentir a nota de pimenta preta e o chocolate?
— Eu sinto sabor de vinho, serve? — Apoiei o quadril em sua mesa.
— Você é uma decepção.
— O gosto deve estar só na sua boca. — Dei de ombros e sorvi mais um gole, virando o
rosto para ver sua careta de profundo desprezo que eu apostava que estaria lá.
A surpresa foi que não encontrei isso. Dante estava com aqueles olhos verdes grudados
em mim, não existia um pingo de arrogância ou raiva, ou qualquer outra coisa que não fosse
desejo.
Eu já tinha idade o suficiente para saber quando o olhar de um homem refletia suas
vontades. E aquele era cheio de excitação e anseios.
— Quer provar para ter certeza?
O arrepio percorreu o primeiro fio de cabelo até a ponta dos dedos dos meus pés. O fato
de saber que essa tensão não existia só na minha cabeça foi reconfortante. Não era somente eu.
Ele também sentia e talvez quisesse.
Julgando a forma como me olhava, ele queria muito.
Abandonei a taça na mesa e virei o corpo para a direção onde Dante estava. Conseguia
ver dali a forma como seu peito subia e descia pela respiração intensa debaixo daquela camisa
xadrez horrorosa que ansiei demais tocar. Eu toquei, porque era fraca o suficiente. Curvei a
coluna até meus olhos ficarem na mesma altura dos seus.
— Só em seus sonhos, Dante.
Ele sorriu.
Eu sorri.
Então suas mãos vieram para mim, seus dedos estavam em meus cabelos, puxando-me
contra ele. E no segundo depois, eu senti a pimenta preta, o chocolate, a expectativa e toda a
complexidade de estar beijando Dante Albizia.
Não foi suave, não que eu esperasse isso dele. Mas a forma como seu braço segurou
minha cintura e em questão de segundos eu estava em seu colo, sentindo a rigidez de seu pau sob
o tecido fino do vestido que usava, foi o suficiente para me fazer suspirar contra sua boca.
— Diga — ele murmurou em minha boca.
— Dizer o quê?
— Por favor. — Sua língua tocou meu lábio inferior. — Não é isso que você mais gosta
de falar?
A pontada de excitação foi cruel e precisei inclinar o corpo ainda mais contra Dante.
— Seu cretino.
Ele riu e voltou a me cobrir com beijos. Seus dedos afastaram as alças do vestido e nem
tive tempo para raciocinar o fato de que o decote caiu pela cintura, mostrando meus seios para
ele. Dante teve dois segundos de contemplação antes de afastar meu tronco do dele, liberando
espaço suficiente para se inclinar sobre mim, a barba roçando na pele sensível.
— As coisas que tenho vontade de fazer com você, Antônia...
A voz rouca desligou qualquer neurônio que ainda funcionasse corretamente.
Foda-se a pessoa! Fodam-se as brigas! Foda-se toda a situação!
Eu precisava sentir Dante.
— Faça todas. Por favor!
A forma como seu sorriso se expandiu à medida que entendeu que eu estava entregue,
afoita e tão excitada quanto ele, foi quase tão bom quanto sentir sua língua circular meu mamilo.
Arfei, sem ar, os dentes raspando na pele sensível fez com que um gemido escapasse de meus
lábios.
Era uma sensação estranha essa de querer tudo de uma pessoa. Sentia como se uma
barragem acabasse de romper a partir do momento em que Dante colocou as mãos em mim.
Eu precisava senti-lo em cada parte minha.
— Por favor... — murmurei desnorteada.
Ele afastou a boca de mim só o suficiente para percorrer o caminho da coxa até minha
boceta. Seu toque era suave, provocava arrepios, deixava um rastro de fogo por onde passava.
Ele umedeceu dois dedos e com os olhos em mim, afastou a calcinha e tocou o ponto onde eu
mais ansiava.
— Titi?
O quê?
Não! Não! Não!
— Titi?
Abri os olhos com pavor e a primeira coisa que vi foi o rosto redondo de Cecília
debruçado em cima de mim. Apavorada, gritei e rolei da cama, não esperando que faltasse
espaço e eu fosse parar no segundo seguinte, com a cara no chão.
Era um sonho...
Fechei os olhos, tentando colocar os pensamentos no lugar.
— Titi, por que você estava chorando enquanto dormia?
Afastei a franja da testa, percebendo que minha pele estava grudenta de suor. Ergui o
pescoço e vi que o dia já estava claro, Ceci já estava desperta e eu... Eu não sabia que merda que
tinha acontecido.
— Tive um sonho triste. — Apoiei os cotovelos no colchão, buscando pelo celular na
mesa de cabeceira para ver o horário; 7h22.
Um sonho. Só foi um sonho.
— Você precisa de um Bolota para dormir com você, titi. — Ela balançou a pelúcia do
ganso que a acompanhava na hora do sono, do banho, na escola, em qualquer situação.
Aquele bicho já estava com um aspecto velho e desengonçado, mas seguia sendo seu
preferido.
Eu precisava de uma consulta com um terapeuta, isso, sim. Precisava marcar uma
consulta o quanto antes.
Aquele sonho...
Aquilo significava o quanto estou perturbada.
Levantei do chão, perturbada demais para interagir com Ceci enquanto meu coração
retumbava de forma tão dolorosa quanto as pontadas na parte que menos deveria clamar por
Dante. Eu tive um orgasmo durante um sonho com Dante? Quantos anos eu tinha, inferno?
Aquilo era a prova do quanto esse homem estava me atormentando. Meu próprio cérebro
estava me traindo e entrando em colapso. Estava molhada, suada e irritada demais para um
começo de dia.
Decidi tomar um banho para esfriar a cabeça, mas tive exatos doze segundos de paz
antes de Cecília entrar no banheiro e ficar assistindo meu banho, contando sobre os episódios de
Masha e o Urso que viu ontem. Eu odiava esse desenho. Aquele urso me assustava e a garota era
uma sonsa, mas, se distraía minha sobrinha por tempo suficiente para eu conseguir almoçar ou ir
ao banheiro, estava grata.
Sentar à mesa do café da manhã e olhar para Dante após as cenas extremamente gráficas
e bem frescas em minha memória foi uma tortura. Não conseguia olhar nos olhos dele sem
pensar na forma como me beijou e em como meu corpo reagiu às suas mãos. Eu já tinha sonhado
putaria com Dante antes, naquela época quando conversávamos, mas, real dessa forma de hoje,
nunca aconteceu.
— Recebi mais dois currículos, dessa vez por uma agência. Roma se mostrou incapaz de
escolher qualquer babá para essas crianças.
Assenti, ainda sem conseguir olhá-lo. Meus olhos estavam fixos em sua barba, pensando
na sensação de tê-la arranhando meus peitos. Como meu cérebro foi capaz de criar tudo aquilo
do zero? Eu nunca nem tinha prestado atenção naquele cara.
— Você está bem, Antônia?
Engoli com tanta força aquela medialuna que senti até arranhar a garganta. Só consegui
assentir, ainda em silêncio.
— Está doente?
Neguei.
Dante respirou fundo, insatisfeito com minha súbita falta de palavras.
— Eu fiz alguma coisa?
Espremi os lábios. Sim, ele tinha feito muitas coisas. Muitas coisas mesmo.
— Só não dormi bem. — Limitei a isso toda aquela situação lamentável.
— Hoje meu dia está mais tranquilo, posso ficar com as crianças na parte da tarde para
você descansar um pouco.
Uma alma foi salva do purgatório com essa proposta gentil. Era muito mais do que Dante
já tinha feito na vida por mim.
— Seria incrível.
Não consegui papear muito mais que isso. Levei Milo para tomar banho, brincamos um
pouco e depois os deixei cochilando enquanto via minhas mensagens perdidas. Entrei no grupo
dos garotos e percebi uma confusão de mensagens. Demorei um pouco para me atualizar e fiquei
preocupada que algo estivesse acontecendo, até perceber que eles estavam em colapso após uma
partida entre Corinthians e Palmeiras, valendo sabe Deus o quê. Esportes não eram bem a minha
praia.
Meu nome foi mencionado algumas vezes, geralmente dentro de alguma zoação que
quase sempre partia de Olavo.
Olavo Queiroz: Conta para nós como está a vida com seu príncipe encantado, Ton Ton.
Flávio Augusto: Quando ela volta para SP?
Olavo Queiroz: Está com saudades da sua amiga colorida?
Eu odiava tanto Olavo e sua inconveniência. De todos os meus ex-namorados, Flávio era
o único com quem ainda rolava algo vez ou outra. Ele não parava com ninguém, eu não parava
com ninguém também, muitas vezes achei que era nossa sina ficar juntos no final das contas.
Mas, era mais sobre sexo do que sobre sentimentos.
Flávio Augusto: Estou com saudades de comer sua mãe, Olavo.
Os dois já passavam dos trinta e ainda agiam como duas crianças. Era impressionante.
Olavo Queiroz: Ela não é tão gostosa quanto sua irmã. Fala que estou com saudades
dela.
Lucas Azevedo: Nem Freud explica essa fixação de vocês de comer mãe e irmã um do
outro.
Miguel Lavian: Quem ganhou o jogo? Estava fazendo as crianças dormirem.
Vitor Lima: O planeta está morrendo e vocês preocupados em comer a mãe do outro e
falar sobre jogos. A previsão para a semana que vem é de quarenta e dois graus! Viram sobre as
geleiras?
Olavo Queiroz: Geleira é minha pica.
Eu aprendi que opção sexual não era escolhida, depois de ter convivido com eles. Porque
gostar de homens e aturar tudo aquilo era castigo.
Antônia Milani: Vocês são nojentos.
Olavo Queiroz: Olha, quem chegou! A namorada do Flavinho e do argentino.
Miguel Lavian: Antônia voltou com Flavinho?
Antônia Milani: Não. Estou solteira e endoidando com as crianças. Como você aguenta
criar duas crianças e não endoidar, Mig? A propósito, sabem de alguma vaga de emprego
legal?
Vitor Lima: Não existe como combinar emprego e legal na mesma frase. O capitalismo
está nos adoecendo, se livre disso, Anto.
Lucas Azevedo: Seu iPhone não foi feito com luz e fotossíntese aí dessa sua chácara, seu
hiponga de araque.
Precisei segurar a risada com a resposta pouco educada de Lucas. Eles sempre discutiam
sobre o mesmo assunto e eu estava do lado dele, porque era fácil condenar o dinheiro quando
sempre o teve. Vitor agora vivia em uma chácara produzindo e vivendo do que a terra lhe
proporcionava, enquanto digitava de seu celular do ano, dirigia o carro elétrico que seu pai lhe
deu e recebia rendimentos da empresa milionária da família. Fora isso, ele era um amor. Pouco
depois que terminamos, ele conheceu Laura. Ela era toda good vibes, viviam em retiros
espirituais e até se casaram em uma cerimônia no meio da floresta Amazônica. Eles eram almas
loucas e gêmeas.
Olavo Queiroz: E aí, já conseguiu dar uns pegas no seu argentino? Fucei as redes
sociais dele, mas não tem nada de relevante. Aliás, o Instagram dessa vinícola dele é patético,
minha mãe faria melhor.
Flávio Augusto: Sua mãe faz muitas coisas melhores.
Torci o nariz. Eles não sabiam o que era a palavra limite.
Miguel Lavian: Quem tem vinícola?
Perdido como sempre. Um clássico de Miguel.
Lucas Azevedo: Vou falar com uma amiga RH que tenho e ver se ela tem alguma vaga
que se encaixe no seu perfil. Sinto muito, Ton. Ninguém merece perder o emprego depois de tudo
o que aconteceu.
Antônia Milani: Obrigada, Lu. Eu agradeço.
Flávio Augusto: O argentino está te tratando bem?
Antônia Milani: Ele é um escroto, mas estamos sobrevivendo. Só sigo preocupada com
o que vai acontecer. Ele terminou com a namorada, ela o ajudaria a cuidar das crianças depois
que eu for embora.
Olavo Queiroz: Hummmmm, ele terminou com a namorada, é?
Revirei os olhos, porque a voz de Olavo estava em minha mente.
Lucas Azevedo: Você acha que ele não daria conta?
Antônia Milani: Sinto que seria a coisa errada deixar meus sobrinhos com ele. Se fosse
ao contrário, minha irmã nunca tomaria essa atitude.
Miguel Lavian: Ainda estamos falando do argentino, certo?
Antônia Milani: Eu queria que fosse tudo mais fácil.
Lucas Azevedo: Você acha que ele não daria conta?
Antônia Milani: Acho que daria. Só não sei o preço que eu pagaria por desistir deles.
Lucas Azevedo: Você não precisa desistir.
Miguel Lavian: Só não se dá jeito para a morte.
Olavo Queiroz: Cedo demais, cara. Cedo demais.
Sorri e deixei o celular de lado, ficando por minutos olhando para a paisagem em frente
da janela do quarto. Precisava atualizar meu currículo, mas não conseguia parar de pensar em
como eu gostaria que toda aquela situação fosse diferente, até perceber que só seria diferente se
eu fizesse ser. Minha irmã e Gregório não voltariam mais, Dante e eu éramos responsáveis pelas
crianças das quais abri mão por estar totalmente perdida. O que era engraçado, era que ao longo
dos dias que passei com eles, eu nunca me senti tão em casa, como se aquela bagunça, o caos e o
cansaço que eles traziam de brinde para minha vida fosse o certo.
E, bem, talvez fosse.
Eu só precisava descobrir como fazer com que durasse. E com que Dante desaparecesse,
também.
Era estranho ter silêncio na casa antes das 8h da noite.
As crianças dormiram cedo, o que foi um presente divino. Comeram o purê de batatas, os
brócolis e o frango desfiado preparado por Felicita sem um resmungo e caíram no sono muito
antes de Dante chegar à metade de A Casa Sonolenta, o livro preferido de Ceci para antes de
dormir. Embalei Milo por mais algum tempo antes de colocá-lo no berço e sair ao lado de um
Dante tão chocado quanto eu.
— O que você deu para eles dormirem tão rápido?
— Meu afeto. — Ele ergueu os ombros.
Meus olhos reviraram sozinhos, juraria que nem precisei fazer força. Dante era
insuportável, mas hoje ficou o dia todo com as crianças, o que me deu tempo de ajeitar todo meu
currículo e até mandá-lo para alguns recrutadores do LinkedIn.
— Fale que não jogou sonífero na mamadeira deles.
— Um pouquinho de Clonazepam não faz mal para ninguém.
A forma como ele brincava era séria demais, mas tinha de admitir que ele era bom de
ironia. Muito bom. Ri baixinho e acabei empurrando-o pelo ombro, ficando em choque, um
segundo depois, ao perceber que eu coloquei minhas mãos em Dante. O que ainda era esquisito
demais.
Ele, se ficou incomodado, não demonstrou. Seguiu pelo corredor até a escada, para onde
o segui, obediente, não porque queria ficar perto dele, sim, porque queria comer. Felicita saiu
mais cedo hoje e deixou a mesa do jantar posta, mas como demos o jantar das crianças, a nossa
já estava fria.
— Está melhor? Hoje pela manhã você parecia a um passo de surtar.
Claro que parecia. Depois de passar metade da noite sonhando com esse homem entre
minhas pernas e acordar com a calcinha molhada, não tinha como agir de outra forma.
— Aconteceram muitas coisas nesses últimos tempos, só precisava de um tempinho para
respirar — menti.
Bem, em parte era verdade, só não hoje.
Ele assentiu.
Voltamos ao silêncio e perdi alguns segundos tentando mastigar a carne que depois de
fria estava mais dura do que o que estava no meio das pernas de Dante em meu sonho.
Deus... Eu preciso esquecer esse sonho.
— Você vai perder um dente se continuar tentando comer essa carne.
Soltei os talheres no prato e o encarei.
— Estou com fome.
— Vem, tenho algo que vai te agradar.
Precisei fincar os dedos na beira da mesa, antes que tivesse qualquer reação que
denunciasse o pânico que estava instaurado dentro de mim. O que estava acontecendo comigo?
Estava tudo indo tão bem!
Mesmo ainda reticente, fui atrás da proposta de comida boa. Eu me vendia muito fácil.
Percebi tarde demais que fiz a escolha errada ao ver que estávamos saindo da casa e indo até uma
caminhonete alta.
— As crianças estão dormindo no quarto e não tem mais ninguém em casa.
Dante não se abalou, apenas tirou o celular do bolso, desbloqueou e virou a tela para
mim, exibindo quatro imagens de pontos diferentes do quarto das crianças.
— Você colocou câmeras no quarto deles?
— Como poderia saber que estão bem?
Fiquei em silêncio, porque ele tinha razão.
— Onde estamos indo? — perguntei assim que passei o cinto de segurança sobre meu
peito.
— Para a sede da Albi.
Meus olhos dobraram de tamanho e senti uma pressão tão forte no fundo deles, que achei
que estaria tendo um derrame.
Aquele sonho não me daria trégua?
Precisei inspirar e expirar algumas setecentas vezes, até ficar um pouco mais calma. Ele
só queria comer algo legal. Era uma gentileza. Não tinha nada demais nisso. Nada que fosse
parecido com o que vivi na madrugada.
Olhando para a janela e vendo toda a paisagem escurecida, pensei na primeira coisa que
poderia falar para deixar o clima mais ameno.
— Você tem câmeras na casa toda?
— Em alguns pontos.
— No meu quarto? — A indignação foi tão grande, que saiu quase como uma acusação.
Dante soltou um risinho irônico e batucou os dedos no volante.
— Por qual motivo eu precisaria te monitorar?
— Você pode ser um pervertido — arrisquei.
Desviando os olhos do caminho por apenas um segundo, ele me lançou um olhar que foi
capaz de refrescar ainda mais a lembrança daquele maldito sonho.
— Eu prefiro acompanhar o acasalamento de búfalos no Animal Planet do que ver
qualquer coisa sobre sua vida íntima.
Nossa! Essa doeu.
Pelo menos ele não era um pervertido. Só um grande babaca.
Não demorou para ele encostar próximo a um galpão e descer sem maiores cerimônias.
Desci do carro e segui em seu encalço. Tudo estava bem escuro, mas o cheiro adocicado das
uvas estava presente.
— Aqui são feitas as degustações marcadas. — Apontou para o grande salão escuro à
frente. — O prédio ao lado é onde fica o administrativo.
Ok. Desse lugar eu queria passar longe. Principalmente do escritório dele. Mais ainda de
sua cadeira. E a mesa, também.
— Nossa produção fica armazenada nas adegas no subsolo. — Apontou mais uma vez,
agora para o chão. — Vou até a cozinha pegar os queijos. Acho que você vai gostar.
Nunca vi Dante falar tantas frases em um minuto de conversa. Era surpreendente. Mas o
que foi surpreendente de verdade foi quando Dante bateu a mão no interruptor e ligou as luzes do
lugar mais encantador e mágico que já coloquei os olhos.
Era tão rústico, confortável e acolhedor, que fazia com que eu me sentisse em casa. Ou
pelo menos o que uma casa deveria ser. Cordões de luzes amareladas pendiam do alto, todos os
móveis eram em cedro e as paredes de pedra escura eram decoradas com parreiras que pendiam
do teto, misturadas a dezenas de quadros coloridos.
Passei tanto tempo olhando para cada detalhe, que Dante foi e voltou e eu ainda estava
ali.
— Quantas pessoas vocês recebem aqui por semana? — Cruzei os braços e voltei a me
aproximar de Dante, que depositava uma quantidade exagerada de queijos, castanhas e algumas
frutas em cima da bancada do bar.
— Por volta de vinte. Depende de quantas vagas liberamos para agendamento.
Fiz as contas na minha cabeça e cheguei à conclusão de que não fazia sentido nenhum.
— Dante, você está louco? — Coloquei as mãos na cintura, girando em meu eixo, ainda
abobalhada com tudo aquilo. Ele negou, confuso. — Você precisa fazer as pessoas virem até
aqui, verem isso! — Apontei para as paredes.
— Nosso foco é em exportação, não, essas experiências. Há outras vinícolas por aqui
focadas nisso.
— Mas está errado.
— Você está dizendo que faço meu trabalho errado?
Já tinha sacado que quando ele empinava aquele queixo, boa coisa não sairia dele. Dante
estava achando que eu estava o atacando, mas a verdade era que não, eu só queria ajudá-lo. Se
existisse um lugar como esse em São Paulo, eu seria a maior consumidora de todas.
E olha que não entendo nada de vinhos.
— Estou falando que tem uma oportunidade incrível aqui e você não está sabendo
explorar.
Dante deu as costas para ir até o outro lado do balcão, pegar uma faca para cortar as
comidas que depositou ali em cima.
— Não gosto de lidar com pessoas. Gregório é bom nisso, eu não.
Ele sempre falava do irmão e de minha irmã no presente, como se ainda estivessem
vivos. E aquilo partia meu coração.
— Tudo bem, Dante.
Não queria criar caso com aquela situação, porque dava para ver que o incomodava. E
ele estava tentando ser gentil, ou o que quer que fosse aquilo que fazia nessa noite.
— Vejo que gostou muito daqui. Quer conhecer a adega?
A primeira imagem refletida em minha mente era do escritório. Sim, claro que era. Mas
uma adega deveria oferecer muito menos riscos para minha mente pervertida do que o escritório
dele.
— Bora lá.
Ajudei Dante a levar os queijos e pratos pelo caminho de pedras e cheio de escadas. Era
escuro, mas não dava medo. Entramos em um galpão imenso, com tantos barris que não saberia
nem mensurar a quantidade precisa. Todos tinham a mesma cor e tamanho e o cheiro era
agradável, uma mistura de terra molhada com o aroma doce da uva.
— Vocês fazem aquele negócio de ficar pisando nas uvas?
— A pisa da uva? — Ele perguntou com bom humor, o que ainda parecia esquisito. — É
mais uma tradição, não fazemos.
— É meu sonho pisar nas uvas. Falei para Gregório e ele disse que me deixaria fazer
uma vez para experimentar.
Sempre seria uma dor tocar no nome deles, dava para perceber principalmente pelo
semblante de Dante. Todos nós tínhamos tantos planos para viver juntos e tudo ficou pelo
caminho.
— Não quero saber desses seus pés sujos perto das minhas uvas.
— Meus pés não são sujos — defendi minha higiene com uma cotovelada em suas
costelas. — Eu até poderia vender fotos deles para pervertidos. Agradaria a clientela.
Ele fez um som de ânsia de vômito, provando ser o pé no saco de sempre. Depois, falou
um pouco sobre os vinhos armazenados, termos técnicos que eu não fazia a menor ideia do que
seria, mas parecia diverti-lo. Descemos mais três lances de escada e quando já estava preocupada
em saber se o sinal da câmera do quarto das crianças pegava bem ali, fui parar epítome de meu
mais completo desespero.
Se eu achava que o problema seria ir parar no escritório de Dante, era porque não
imaginava que ficaria sozinha em um ambiente requintado, cheio de climatizadores de vinho, luz
âmbar, um lustre colonial em bronze do meu tamanho pendendo do teto e uma mesa de ferro
fundido com quatro poltronas confortáveis ao redor. Aquilo ali era o Santo Graal de um diretor
de filmes pornôs. Qualquer sexo naquela adega seria arte.
E depois do dia — da noite, para ser mais precisava — de hoje, o que eu menos queria
era ficar em ambientes assim com Dante, porque a minha cabeça não estava boa. Nada boa.
— Parece o Salão Comunal dos vinhos.
Coloquei os dois pratos que segurava na mesa e olhei em volta para admirar as três
paredes abarrotadas de vinhos. Deveriam ter uns três metros de altura, no mínimo. E não havia
espaço para mais nenhuma garrafa.
Dante deu uma risadinha, ocupado em arrumar os queijos.
— Você entendeu a referência? — Cruzei os braços, desconfiada.
— Todo mundo sabe o que é Harry Potter.
— Não te imagino assistindo coisas assim.
— Alguém falou uma vez que era bom, eu assisti e li os livros. A pessoa tinha razão.
Ele deu as costas, saindo antes mesmo que eu elaborasse para pegar uma garrafa. Muitos
anos poderiam ter se passado, mas eu lembrava perfeitamente de quando dizia para ele naquelas
conversas que nós não poderíamos nem chegar perto um do outro, se ele não assistisse pelo
menos um dos filmes que eram meus preferidos.
Não conseguia entender a relação que o cara divertido que conversava comigo e que foi
ver e ler trocentos filmes e livros, porque eu falei que eram meus preferidos tinha com aquele
que apareceu no restaurante sem olhar direito para minha cara e se mostrou um dos maiores
babacas que tive o desprazer de conhecer.
Possivelmente foi outra pessoa que indicou para ele, ainda assim eu não conseguia
entender Dante.
— Esse é o Merlot preferido da sua irmã. Quer experimentar? Vai muito bem com
queijos.
Assenti, remoendo a sensação de angústia. Engoli o nó em minha garganta e segurei a
garrafa, lendo o rótulo.
— Não entendo como um vinho produzido em 2008 ainda está bom.
Dante sentou na poltrona à minha esquerda, retirando a garrafa de minhas mãos.
— Todos precisam de tempo para atingir seu maior potencial. Os vinhos também
precisam.
Com destreza, Dante retirou a rolha e despejou o vinho em um recipiente com um design
esquisito.
— Todos os vinhos aqui foram produzidos pela vinícola? — Apoiei o queixo na palma
de uma das mãos, admirada, olhando para todas aquelas garrafas.
— A maioria, sim. Alguns são meus preferidos, outros de Gregório, outros da minha
mãe. É nossa coleção particular.
— Tudo isso? — Apontei para as paredes, admirada. Ele assentiu. — É impossível
alguém beber tudo isso ao longo da vida sem morrer de cirrose.
Dante balançou a cabeça negativamente, como se eu fosse uma formiga petulante que
insiste em irritá-lo e direcionou sua atenção em depositar o vinho em um aparelho que parecia
um moedor, que já vi Gregório usar algumas vezes quando ia jantar na casa deles. Ele dizia que
era para reavivar os sabores do vinho.
Eram tantas etapas para tomar um simples vinho, que dava até cansaço. Quando
finalmente Dante encheu minha taça, eu a peguei e virei tudo em um só gole.
— Antônia! — A forma como me repreendeu era a mesma que fazia quando Ceci fazia
alguma merda.
— O que foi? — Inocentemente empurrei a taça vazia para ele colocar mais.
— Para de tomar vinho como uma selvagem. Aprecie o sabor, as notas.
Não gostei do rumo daquela conversa, porque lembrava muito bem que foi assim que
tudo desmoronou no meu sonho com aquele papinho sobre pimenta e chocolate.
Eu não provaria nota nenhuma na língua daquele ogro. Nem que me obrigassem.
— Hummm — debochei assim que engoli o primeiro gole da segunda rodada. — Isso
tem gosto de... — Movimentei os dedos, buscando encontrar o aroma certo. — Uva?
Ele fechou a cara e perdeu 10% de sua postura impecável ao se jogar no encosto da
poltrona. Vi os dedos longos agarrando um punhado de nozes e o observei por algum momento.
Ele estava com sua camisa xadrez de sempre, só que marrom. Aquele tom deixava seus olhos
ainda mais verdes. Dante era bonito sem precisar de artifício nenhum para isso, o que era
irritante.
— Para de encarar.
— Estou pensando.
— Em...? — Arqueou a sobrancelha cheia de pelos castanho-claros, no mesmo tom de
seu cabelo e da barba.
— Você precisa realmente dar mais valor a esse lugar. As pessoas precisam conhecer
isso aqui.
Ele afundou ainda mais na poltrona, parecendo cansado demais para lidar com minhas
bobagens. Mas não era bobagem, era muito sério.
Tomei mais um pouco de vinho e continuei:
— Você pode ganhar rios de dinheiro. Sabe o quanto valem experiências hoje em dia?
Todo mundo quer se sentir exclusivo, importante. E você pode oferecer isso aqui.
— Você está querendo um emprego? — Dante debochou.
— Com você sendo meu chefe? — Desdenhei. — Nem que você implore.
— Você trabalhava com marketing, não é? — perguntou.
Eu assenti, mastigando o queijo delicioso que derretia na boca.
— Nossa! Isso é bom — disse, chocada com o sabor do queijo. — Sim, marketing de
consumo. Justamente o que te falta aqui.
— Os negócios vão muito bem, se é o que quer saber.
Dante não dava o braço a torcer, era incrível.
— Quais são as estratégias da sua equipe de marketing? — Peguei mais um pedaço do
queijo, sem olhar muito para Dante. Quando seu silêncio passou de cinco segundos, eu o olhei
por baixo dos cílios. — Você não tem uma, não é?
— Roma cuida de nossas redes sociais. — Cruzou os braços, explodindo orgulho por
cada poro.
— Hoje Olavo disse mesmo que suas redes sociais são horrorosas.
— Quem é Olavo? — questionou com impaciência.
— Meu ex-namorado. Isso porque ele é jogador de golfe e não entende nada sobre esse
assunto.
Dante espremeu os olhos, voltando até a sentar direito, jogando o peso do corpo para os
braços apoiados no joelho.
— O seu ex é jogador de golfe? — falou com cautela. Eu assenti, mastigando aquele
pedaço de céu em formato de queijo. — Ele trabalha com isso?
— Sim.
— Ele ganha dinheiro jogando golfe?
— Sim, Dante. Com o taco, a bolinha no buraco, Tiger Woods, tudo isso. — Aquelas
perguntas estavam me irritando, porque ele estava fugindo do assunto.
— Você é a pessoa mais esquisita que já conheci — ele concluiu.
— Por namorar um jogador de golfe?
Fiquei confusa e precisei de mais vinho para tentar entender. Quando vi, a taça já estava
seca de novo. Apontei para ela e senti o bufar de Dante em meu cabelo enquanto enchia minha
taça pela segunda vez.
— Porque o seu ex-namorado jogador de golfe estava vendo as redes sociais da minha
empresa?
— Porque eles são curiosos. Principalmente Olavo.
— Eles?
Eu sabia que ele não deixaria passar.
— Eu mantenho contato com meus ex-namorados. Sou amiga de todos. Amiga das
namoradas e esposas deles também. Temos um grupo onde falamos sobre tudo e é assim que eles
sabem sobre você e toda essa situação, satisfeito? — destrambelhei a falar, perdendo um pouco
do fôlego até. Dante ficou em silêncio, piscando vez ou outra. A única atitude que tomou foi
encher sua própria taça. — Podemos voltar a falar do marketing?
— Como alguém consegue ser amiga de todos os ex-namorados? Eram eles que estavam
no velório, não eram?
Assenti, desistindo de falar sobre o assunto que eu queria.
— Nem todo término precisa ser cercado de drama, briga e caos. Você deveria tentar. —
Pisquei, dando a dica.
Dante continuou me olhando, mas não respondeu. Ficou quieto, comendo e bebendo seu
vinho. Eu também não puxei papo, porque era estranho o suficiente estar sozinha ali com ele,
conversando; como se fosse normal conversar com ele ou viver momentos de paz como aquele.
— Gregório quer muito expandir a Albi não só para mais lugares, mas aqui mesmo. Ele
fala que todo mundo precisa viver um dia aqui para conhecer o que é a verdadeira paz.
Fiquei surpresa por ele ter retomado a conversa, dessa vez no assunto certo. Abaixei a
cabeça, porque não queria que Dante visse meus olhos lacrimejando. Doía muito escutá-lo, muito
mesmo, porque nesse momento, só quem sabia o que ele estava passando era eu.
— Dante... — Não pensei muito antes de colocar minha mão em seu joelho e deu para
ver o susto que levou. — Por que você fala do Gregório e Vitória no presente?
A súbita mudança de semblante apertou ainda mais meu coração.
— Eu não falo...
— Fala, sim.
Sua reação básica foi buscar a taça e virar o restante do conteúdo. Eu sabia bem como
era precisar descarregar toda aquela frustração em álcool. Tudo que eu fiz naqueles dias antes de
ficar 100% imersa na rotina das crianças, foi descontar tudo em garrafas e mais garrafas. Eu
ainda sentia muita vontade de ficar trancada em um quarto bebendo e não pensando em nada,
exceto na dor que corroía tudo. Só que agora eu não tinha mais tempo para isso. As crianças
precisam de mim. E, sinceramente, a ideia de que Dante e eu éramos tudo o que restavam para
eles me pegava de jeito.
Eu não podia sucumbir.
Dante ficou em silêncio por mais algum tempo, parecendo perdido em seus próprios
pensamentos.
— Eu não consigo acreditar que tudo seja real, que a vida será sempre dessa forma. Sem
eles e... com esse vazio.
Eu mastigava uma noz quando escutei seu desabafo baixo. Algo que nunca esperei
escutar da fortaleza que Dante era. Ou, pelo menos, a que queria que todos enxergassem que era.
Circulei o indicador ao redor da borda da taça, considerando o quanto nossos pensamentos eram
parecidos.
— E me sinto cada vez pior, porque deveria bastar, certo? As crianças estão aqui, tudo
está aqui, só que não da forma que eu queria, que as crianças merecem. Não somos nós que
deveríamos estar aqui — confessou de forma quase desesperada. — Eu queria que houvesse uma
forma de trocar de lugar com ele.
Assenti, um pouco assustada por ter esse vislumbre dos pensamentos de Dante. Era triste
ver a forma como seus pensamentos eram cruéis com ele mesmo. Não que os meus fossem
diferentes; se eu tivesse a oportunidade, trocaria de lugar com Vitória no mesmo segundo, mas
era triste ver como nós não sabíamos viver sem nossos irmãos. Eles eram nossas partes boas,
nossos perfeitos opostos e sem eles existia o vazio, o nada, o desconhecido. E mais assustador
que isso era perceber que Dante e eu tínhamos o mesmo sentimento.
— Como foi quando sua mãe morreu? — perguntei.
Seus olhos perderam o foco e foi estranho vê-lo desarmado daquela forma. Alguém com
sentimentos, com dores, alguém muito distante de quem ele se mostrava ser dia após dia.
— Já faz muito tempo.
— Mas não é algo que dá para esquecer — pontuei. — Você conseguiu ter seu luto?
Dante bebeu mais vinho e limpou o canto da boca com a pontinha da língua, balançando
a cabeça negativamente.
— Gregório precisava mais de apoio do que eu. Ele era mais velho, mas sempre foi mais
sentimental. Ele sentiu mais, acho.
Ele falou o que eu tinha certeza de que ouviria.
— Não sentiu, Dante. Pode ter certeza que não. Você também foi uma criança que
perdeu a mãe, você também a amava e precisava de cuidado. Vitória cuidou de mim minha vida
toda, tanto que agora, eu não sei quem sou sem ela, não sei o que é não ter companhia para as
coisas mais bobas da vida, não sei nem como acho minha carteirinha do plano de saúde, porque
ela sempre esteve lá para cuidar de tudo. O único momento que ela não esteve foi quando nossa
mãe morreu. Ela surtou e não foi algo bonito.
— Eu me lembro. Foi muito triste a forma como sua mãe se foi. — Sua voz estava cheia
de pesar e eu assenti.
— Foi naquela época que percebi que todos nós somos humanos e temos nosso próprio
tempo. Mesmo sendo minha super-heroína, ela sucumbiu, sabe? Isso não a fez menos forte,
muito pelo contrário.
O gosto salgado das lágrimas já estava na ponta de minha língua. Tentei não me importar
por estar chorando na frente daquele homem.
Limpei a garganta e prossegui:
— Eu julguei o seu luto. Não entendia como alguém poderia estar lidando de forma tão
prática enquanto eu só me debulhava em lágrimas. E peço desculpas, porque foi um pensamento
horrível e egoísta. Você estava cuidando das crianças, das burocracias e de mim...
Coloquei a mão à boca para impedir o soluço, mas não consegui.
— Sentir não vai te fazer menos forte. Só te tornará ainda maior do que já é, assim como
Vitória se tornou.
Não sei muito bem o que esperava daquela conversa, talvez trazer um pouco mais de paz
para o coração dele ou só mostrar que ele, mesmo sendo alguém detestável, tinha atitudes dignas.
Eu só não esperava que Dante começasse a chorar. Sim, chorar. Com lágrimas, fungadas e
ombros chacoalhando.
Estaquei no lugar, sem mover um centímetro para o lado. Até minha respiração parecia
ter paralisado.
Eu nunca vi aquele homem chorar. Nunca o vi sequer minimamente abalado. E não sabia
o que fazer, como reagir, como ajudar ou se eu deveria ajudar. Estiquei a mão pelo menos duas
vezes, recolhendo-a segundos depois, por não querer ser íntima ou invasiva demais.
— É uma merda tudo isso — desabafou com a voz rouca de choro. — Eu nunca quis ter
filhos, nunca quis ter a vida que eles tinham, nunca pedi por nada disso. E agora estamos presos
nessa situação. E eu sinto falta deles. Sinto tanta falta que chega a doer, mas não posso fazer
nada com isso, porque se fosse com eles, eles estariam dando conta. E eu preciso dar conta.
Seu desabafo atropelado e desesperado fez uma flama ganhar força dentro do meu peito.
Uma flama que foi apagada naquele maldito dia do restaurante. Algo que tornava todas nossas
antigas questões bobas e irrelevantes, porque o Dante que eu conheci antes, ao longo de todas
aquelas conversas, ainda existia.
Ajoelhei no chão, segurando firmemente seus joelhos para mostrar que eu estava ali. E
que tudo era uma merda, o que aconteceu com nossos irmãos, com a gente e com as crianças,
mas que estávamos juntos nessa.
— Eu não paro de pensar nisso também. Que se fosse ao contrário, Vitória nunca
deixaria meus filhos sozinhos. Não existiria barreira nesse mundo que ela não fosse capaz de
cruzar para vê-los bem. E eu... Eu joguei a responsabilidade para você, porque é só o que sei
fazer. Sempre tive Vitória para segurar quando eu não conseguisse e não sei fazer nada sozinha.
Dante abaixou os olhos, suas bochechas vermelhas, as pálpebras ainda molhadas e
levemente inchadas.
— Eu odeio que eles tenham morrido e nos deixado nessa situação.
A maneira como seu queixo se projetou para frente, foi o indicativo que estava falando
sobre a proximidade que estávamos. Minha mão em suas pernas, todo aquele choro e desabafos.
Eu acabei rindo, incrédula.
— Eu poderia apostar que eles estão rindo da nossa cara agora.
Dante acabou rindo também, o que era melhor do que vê-lo chorar.
— E se for parte de um plano deles? Para ver como nos sairíamos? — Dante confabulou.
A ideia me divertiu por dois segundos. Seria a cara deles fazer algo do tipo, mas não era.
Infelizmente não era.
— Agora somos só as crianças, você eu, Dante. Goste a gente ou não. Você está sendo
incrível com eles, não por ser parecido com Gregório, mas só por ser você. E eles te amam
assim. Você está fazendo mais do que o suficiente.
E era verdade. Antes, meu maior medo era Dante não suprir a carência afetiva das
crianças. De dar tudo o que o dinheiro era capaz de comprar, menos o amor e a atenção. Ele
poderia ter suas limitações emocionais, mas era exemplar como tio.
— O que foi que aconteceu aqui? — perguntou rindo de uma forma nervosa enquanto
utilizava o indicador para limpar a umidade debaixo dos olhos.
— Foi o vinho, eu acho.
Meu maior medo quando desci ali era acabar me deixando levar pelos meus sonhos
loucos. A última coisa que passou por minha cabeça fosse que Dante e eu acabaríamos nos
debulhando em lágrimas um para o outro.
Seu lábio superior arqueou só um pouco, como se fosse bom demais para sorrir e se
deixar levar pela situação.
— Colocar a culpa no vinho é coisa de quem não sabe arcar com suas próprias escolhas.
Revirei os olhos com aquela súbita ruptura de atmosfera. Ele já tinha voltado a ser o
mesmo de antes. Impressionante. Levantei do chão, retirando as mãos de perto dele.
— Diz isso porque não sabe as merdas que já passei por conta de bebida.
— Controle, Antônia, controle — pontuou como um mantra.
Só para provocar, enchi mais da metade da taça, acabando com a garrafa e bebi em um
longo gole.
— Está recuperado do pé na bunda que Carina te deu? — Puxei assunto, aproveitando o
clima ameno que surgiu naquela noite estranha.
— Sabe que não somos íntimos para isso, não sabe? — zombou.
Por mais que ele tivesse aquele tom indiferente e distante, sentia que Dante e eu
tínhamos derrubado um grande muro que nos separava. Estávamos perdidos e solitários e
ninguém mais poderia entender exatamente o que estávamos passando. Então, era o que
tínhamos para hoje.
— Cara, você falou que amava uma mulher só para ela te ajudar com as crianças. Isso
mostra o quão desesperado você está.
Dante fechou a cara e cruzou os braços.
— Desde quando você sabe disso?
— Ela me contou.
Piscando quase em câmera lenta, ele me olhou fixamente.
— Você tem algo a ver com Carina ter ido embora?
— Eu? — proferi, assustada. — Você que faz a merda e eu que tenho culpa?
— Antônia...
Sua paciência já estava ultrapassando os limites saudáveis, conseguia sentir.
— Foi um golpe baixo, até mesmo para você. — Enchi a boca com as nozes, rindo por
vê-lo tão irritado.
— Você disse que eu não era suficiente para as crianças. Eu tentei achar alguém que
fosse.
Eu ri alto, gargalhando na cara dele, sem cerimônias. Ele ainda estava irritado, olhando
para mim como se fosse um suplício estar aqui, sendo que na verdade ele que convidou, então
que aguentasse.
— E você achou que Carina fosse? Ela e um iceberg debaixo do sol do meio-dia, quem
descongela mais rápido?
Dante precisou de muito autocontrole para não rir dessa. Ele até mordeu o lábio inferior
e olhou para o chão.
— Eu tentei, pelo menos. — Deu de ombros.
— Mas você está bem? — Arqueei a sobrancelha, curiosa em saber.
— Estou. Eu sou melhor sozinho.
Típico do tipinho dele. Que preguiça eu tinha desse homem, Deus do céu!
— O bom de não deixar ninguém se aproximar, é que seu coração nunca será partido.
Dante acenou milimetricamente com a cabeça, antes de jogar o peso do corpo nos
joelhos, ficando mais próximo de mim. Muito mais próximo do que eu esperava, na verdade.
Engoli em seco a bola que se alojou no meio da garganta e escolhi fazer o que para muitos seria
um movimento arriscado, mas foi friamente calculado para que ele nunca percebesse que parte
de mim ficava nervosa como uma adolescente boba e virgem quando ele se aproximava dessa
forma. Imitei a mesma posição que ele e encurtei ainda mais a distância entre nós.
— Ele já foi — murmurou.
— Impossível — rebati no mesmo tom. — Para isso você precisa de um.
Ele assentiu, umedecendo os lábios com a pontinha da língua. Fui longe ao pensar se sua
boca estava com o gosto do vinho, igual ao sonho. Quão perturbada tinha de ser uma pessoa para
lembrar exatamente o gosto da boca de outra pessoa em um sonho? Minha mente me assustava.
— Não entendo até hoje porque colocou outra cor nos seus olhos naquelas fotos. Eles
são incríveis assim.
Esqueci como respirar nos segundos seguintes, simplesmente porque Dante resolveu
jogar com o meu psicológico depois daquele dia esquisitíssimo.
Continuei parada, olhando sem piscar para ele.
Era um jogo. Uma brincadeira. Uma piada.
— E depois você fala que o vinho não te deixa doidão.
— Não deixa.
O que estava acontecendo ali? Eu tinha certeza de que não deveria ter saído de casa!
Devia ter comido quieta a carne dura e fria, sem reclamar, assim não estaria nessa situação com
Dante, nesse cenário de filme erótico.
Dante inclinou o tronco para frente só mais um pouco e eu cheguei a sentir sua
respiração bater contra minha bochecha. Devia ser a pior sensação de todas, mas não foi. Senti o
calafrio atingir a base de minha coluna, ramificando energia por todo o corpo.
Ele iria me beijar? Ele realmente iria me beijar?
Minha boca estava seca, mas passei a língua nos lábios de leve, porque se aquilo
acontecesse, não queria que fosse ruim. Dificilmente seria ruim, eu tinha certeza. Dante tinha
cara de que sabia o que estava fazendo. Pensar nisso, inflou ainda mais minhas expectativas.
Ele estava tão próximo, seu cheiro era intenso, amadeirado e combinava demais com sua
pessoa. Ele iria me beijar. E, tudo bem, eu achava que também queria.
— Quais são suas ideias para o marketing da Albi?
O corte abrupto de energia fez minha cabeça ficar zonza. O que tinha acontecido aqui?
Pisquei várias vezes e voltei a sentar direito, bem longe de Dante. Longe o suficiente.
Longe da forma que eu sempre fiquei e devia ficar.
Esse homem era o maior babaca no qual já coloquei os olhos. Ele fazia sem o menor
esforço, como um dom. Era uma característica impressionante.
— Fazer tudo diferente do que está sendo feito por você.
Ele balançou a cabeça negativamente, como se eu fosse um inseto petulante e levemente
divertido. Era como me sentia agora, depois desse papelão. Eu achei que Dante me beijaria e ele
não estava nem perto disso. O que era dolorosamente vergonhoso.
— O que preciso fazer para que você me ajude?
— Nascer de novo.
Raiva! Eu borbulhava raiva por todos meus poros.
— Eu pago bem.
Ele sabia as palavras mágicas. Claro, que sabia.
Eu tinha algo a perder? Não.
Eu deveria? Também não.
Mas, eu queria esfregar na cara dele que estava fazendo tudo errado? Sim, claro que sim.
— Fechado.
Como Dante Albizia virou meu chefe? Não faço ideia.
Aquela noite na adega ainda era um assunto delicado e nublado em minha mente. Mas,
agora, ali estava eu, na sede administrativa da Albi. Que era muito diferente da que imaginei
naquele sonho que, dois dias depois, já estava esquecido e apagado da minha mente, tal qual
aquela cena ridícula que protagonizei quando achei que Dante me beijaria.
O ponto era que a sede era bem bonita. Mais rústica do que eu esperava e muito
aconchegante, com piso em taco e paredes em pedra. Era como estar em uma cabana na serra.
Eu teria uma reunião com Dante e alguns gerentes para saber mais sobre a empresa e
alinhar alguns pontos, mas não tinha com quem deixar Ceci e Milo. Felicita estava na cidade,
fazendo compras para a casa. A outra ajudante da cozinha estava focada em cortar um arsenal de
batatas. Precisei levá-los comigo, o que me deixava ainda mais ansiosa.
Anotei todas as minhas ideias e melhorias antes de dormir e estava confiante de que
poderia fazer um bom trabalho, mesmo que não fosse oficialmente um emprego. Dante nomeou
como uma “consultoria em marketing”, o que já estava bom para o tempo que eu fosse ficar ali.
Não era como se pudesse escolher, nessa altura do campeonato.
E quem sabe se fizesse um bom trabalho, não pudesse continuar trabalhando do Brasil?
Mais do que ideias, eu tinha sede de vingança. Queria ver Dante pagar a língua, porque
eu sabia muito bem o que precisava ser feito, só nunca tive a chance de ser ouvida em outras
empresas.
Alinhei a saia de cetim cor-de-rosa que usava, sabendo que era um tecido que não
amassava, mas queria estar perfeita, sem qualquer defeito para o meu primeiro dia. Queria
realmente ser levada a sério.
— Por que fez isso com a sua vida, Antônia?
Virei o pescoço ao escutar a voz de Roma atrás de mim. Ela estava encostada na lateral
de um carro antigo. Suas roupas coloridas destoavam totalmente da garota que estava ao seu
lado.
— O que eu fiz?
Encostei o carrinho duplo onde as crianças estavam. Ceci ainda dormia, Milo estava mais
ocupado em babar em sua própria mão.
— Se uniu ao Lorde das Trevas.
Gargalhei, negando com a cabeça.
— O capitalismo nos faz cometer loucuras. — Virei o rosto para a outra garota,
esticando a mão para ela. — Muito prazer, sou Antônia.
— Eu sei, Roma não para de fofocar sobre você e o Mister M. Sou Miranda. — Ela
apertou minha mão e continuei sorrindo ao perceber que era a tão famosa namorada de Roma.
As duas eram figuras singulares. Uma parecia o vômito de um unicórnio com suas
roupas coloridas, cheia de babados e laços. A outra usava roupas de couro preto, cintos com
tachas, piercings em qualquer superfície perfurável em sua pele e um cabelo diferente, lembrava
o do Sonic, mas preto e branco. Era uma experiência imaginar como estavam juntas.
— Mister M?
— Sim. Sabe o mágico? Aquele com a máscara misteriosa e que dá medo?
Assenti, apreciando o senso de humor dela. Combinava bem demais com Dante o
apelido.
— Muito apropriado. — Balancei o dedo indicador e gostaria demais de ter conversado
mais com as duas, mas meu celular começou a vibrar.
Nem precisei desbloquear para ver a mensagem de Dante: “Atrasada.”
— Preciso entrar. — Apontei para a entrada.
— Você vai com as crianças para a reunião? — Roma perguntou.
— Sim, Felicita saiu. — Estreitei os olhos, percebendo Roma paradinha ali. — Você
poderia ficar com eles, não poderia?
— Não, tenho a mesma alergia que Carina tinha. Olha, já está me dando urticária. —
Mostrou o braço que não tinha qualquer alteração na pele.
— É meu primeiro dia, Roma! Por favor...
— O Lorde das Trevas precisa dos meus serviços, tchau. — Roma desapareceu em
questão de segundos depois de dar um beijo de despedida em Miranda.
A garota fez uma careta e estava pronta para entrar no carro quando eu a segurei pelo
ombro.
— Você pode ficar de olho neles, rapidinho?
— Não! — Ela nem pensou para responder.
— Você está atrasada para o trabalho?
— Não, eu só tenho ensaio com a banda amanhã e...
— Ótimo! Será rápido! Eu prometo!
Antes que ela raciocinasse, coloquei a alça da mochila com as coisas das crianças no
ombro dela e saí correndo, agradecendo demais por ter colocado meu tênis preferido hoje em vez
da única sandália de salto que trouxe do Brasil.
Nem olhei para trás com medo de Miranda estar atrás de mim e saí correndo para a sala
de reuniões. Antes de voltarmos para a casa, depois de sua proposta de emprego — ou o que quer
que fosse aquilo — nós demos uma passeada pela Albi. Ele mostrou alguns ambientes e, para
meu completo alívio, só apontou para onde ficava a sala dele. Nada de escritórios refinados e
línguas com gosto de vinho.
Não foi difícil chegar à sala de reuniões, só um pouco caótico, porque eu estava
esbaforida e agitada. As cadeiras estavam preenchidas com os colaboradores de Dante e ele,
vendo todo meu desespero com o cotovelo apoiado na mesa e a mão sustentando a cabeça.
Roma, aquela traidora, estava sentada em uma cadeira atrás dele.
— Atrasada. — Ele insistiu em repetir, como se eu já não soubesse.
— Deveríamos implantar novas propostas para nossas colaboradoras que cuidam de
crianças. Ninguém me avisou que seria tão caótico assim — brinquei, tentando ser simpática
com os cinco homens que me olhavam placidamente e as duas mulheres que sorriram,
possivelmente entendendo meu completo desespero.
Estiquei a mão para pegar o copo mais próximo de mim e bebi a água.
— Esse copo é meu. — Dante quase rosnou como um cachorro territorialista.
O gole desceu seco por minha garganta. Sustentando um sorriso de puro desespero,
empurrei de volta para ele e, finalmente, me sentei. O que eu deveria ter feito desde o primeiro
segundo ali.
Dante parecia irritado, mas ele sempre estava irritado. Exceto naquela noite na adega. Ali
ele parecia ter sido trocado por um gêmeo gente boa e caridoso.
— Essa é nossa nova consultora de marketing, Antônia Milani.
Eu gostaria muito de entender os olhares surpresos quando fui apresentada por Dante.
Não conhecia nenhuma daquelas pessoas que estavam sentadas à mesa e partindo desse princípio
eles também não deveriam me conhecer, mas parecia que não era assim que funcionava.
— Olá, pessoal. Prazer em conhecê-los. Desculpe se eu falar algo errado em espanhol,
algumas palavras são mais difíceis e...
— Todos nós te entendemos claramente, Antônia — Dante cortou minhas desculpas. —
Gostaríamos de escutar algumas de suas ideias para a Albi.
Assenti, sentindo-me um pouco acuada por todos aqueles pares de olhos assistindo cada
movimento meu. Retirei meu caderno da bolsa, abrindo na última folha, com minhas anotações
feitas na noite anterior.
— Gostaria de saber se há alguma estratégia sendo usada para promover a vinícola nas
redes sociais. — Eu sabia muito bem a resposta, mas não custava tentar.
— Nossa presença nas redes sociais é mínima. Dante diz que não será assim que seremos
vistos. — Uma das mulheres respondeu prontamente, parecendo contrariada. — Sou Teresa, a
propósito. Seja bem-vinda.
Virei o rosto para Dante com uma das sobrancelhas arqueadas.
— Só não quero adolescentes fazendo dancinhas toscas com o meu vinho na mão. —
Seu tom era de defesa, como se precisasse se desculpar por ser um senhor de oitenta anos
resmungando contra a tecnologia.
— Ninguém vai fazer dancinhas, Dante. — Deixei bem claro. — Precisamos achar os
influenciadores certos, voltados para gastronomia e gente que entende de vinho. E não só de
internet, precisamos de mais. Aqui tem Masterchef?
— Sim, não perco um episódio — respondeu um dos homens engravatados, animado.
— Poderíamos fazer uma collab com eles. Uma prova exclusiva com nossos vinhos.
Vi o assombro em seus rostos e sabia que tinha ganhado a atenção deles.
— Isso custaria muito — um homem de óculos quadrados, sentado ao lado de Dante,
discordou.
— Eu precisaria de algumas análises de custos para saber exatamente o que devemos
fazer, claro. Mas o ponto é que pesquisei algumas vinícolas da região com o tíquete médio
parecido ao produto que vocês ofertam e elas focam muito no comércio local, divulgação
massiva em redes sociais, além das visitações. Nós poderíamos ir muito além, criar experiências
interessantes por meio desses influencers, da televisão. Gerar desejo no consumidor, tornar o
produto algo além do vinho, mas um momento, um sentimento. Entendem?
— Já conversamos sobre as visitações e não acho que seja uma boa ideia aumentar o
número de visitas. — Dante ainda repetia isso com um disco arranhado.
— Tudo bem, mas por que então não oferecer algo diferente do que seus concorrentes
fazem para essas poucas visitas? Uma experiência nova, uma imersão, algo que faça a pessoa se
sentir parte desse lugar, que é incrível e precisa ser visto.
Olhei para além do ombro de Dante, onde Roma estava boquiaberta. Ela aplaudia
silenciosamente minha performance. Aquilo me deu mais gás ainda de continuar com minhas
ideias.
— Eu gosto dessa ideia. — Teresa afirmou também com a cabeça. — Ter uma
experiência ou simplesmente uma garrafa de vinho especial em sua casa para uma noite difícil é
tudo o que as pessoas buscam. Precisamos encontrar essas pessoas.
Assenti, vibrando por saber que ela havia compreendido.
— Antônia, eu quero uma apresentação formal de suas sugestões até amanhã pela
manhã. Villar apresentará os resumos de custos e orçamentos para você. Obrigado a todos pela
presença.
Dante terminou a reunião rapidamente e parecia ser algo comum para eles a forma áspera
como lidava com as situações. Roma foi a última a sair da sala, mas eu continuei, porque não
sabia muito bem para onde ir.
— É... Eu tenho uma sala ou algum local onde possa trabalhar? — Odiei como soei
perdida, tal qual uma criança em seu primeiro dia de aula.
Eu queria passar uma imagem profissional para todos dali, principalmente para Dante.
Era meu primeiro trabalho solo, sem uma equipe por trás, fazendo acontecer e dando as cartas.
Ao mesmo tempo em que estava entusiasmada, estava assustada e receosa de fazer tudo errado e
Dante me odiar mais do que já odiava. Uma relação pior da que tínhamos era simplesmente não
ter relação nenhuma.
— Eu pensei que você iria querer trabalhar da casa.
— Gostaria de trabalhar daqui.
Ele acenou e levou a mão à nuca, pensativo.
— Tenho um lugar na baia do comercial ou uma mesa provisória no canto do meu
escritório.
— A baia, por favor!
Sua testa ficou cheia de vincos ao zombar do meu pedido desesperado. Tudo, menos
conviver mais do que já convivo com Dante.
— Pedirei que Roma providencie tudo o que vai precisar. Algo mais profissional que o
seu caderno de estrelas prateadas.
— Sarcasmo é a forma mais preguiçosa de fazer humor, sabia?
Ele soltou uma risadinha forçada antes de levantar a bunda da cadeira e sair em direção à
porta. Já estava sentindo o clima até mais leve com Dante afastado quando ele parou com a mão
na maçaneta.
— Espera... Com quem as crianças estão?
Sua pergunta fez minha alma sair do corpo ao me lembrar de Cecília e Milo que deixei
com Miranda. Uma garota que vi uma vez na vida e não parecia ter a menor vocação com
crianças.
Nem respondi para Dante, só saí em disparada da sala, sentindo sua presença atrás de
mim. Sua energia era tão densa que pensei que foi um erro não tapar meu umbigo para ficar ao
lado daquele sanguessuga de energia.
— O que você fez com eles, Antônia?
Não respondi, porque encontrei meus sobrinhos no meio da recepção. Eu esperava vê-los
dormindo ou chorando ou só correndo desenfreadamente, o que era comum. Mas a visão foi
muito diferente disso. Eles estavam sentados, assistindo compenetrados, sem piscar, o show que
Miranda dava com dois únicos fantoches de dedo; ou o que quer que fosse aquilo que ela tivesse
criado com papel e olhos esbugalhados feitos com caneta preta.
Ela cantava uma música Caramel, do último álbum da Sonora, e eu tinha certeza de que
aquela letra sobre traições não era apropriada para crianças, mas era uma das minhas preferidas e
ainda entretinha meus sobrinhos.
— Quem é essa? — Dante cochichou ao meu lado.
— A namorada da Roma.
Dante cruzou os braços, fixando os olhos na garota como se inspecionasse cada parte de
seu ser.
— Será? — A pergunta ficou no ar, mas eu entendi, porque era a mesma coisa que
passava por minha cabeça.
— Podemos tentar.
— Ela me assusta — confessou entredentes, fazendo com que eu risse.
— Você também assusta metade da cidade e ninguém te fala nada.
Ele me ignorou, o que já era previsível e seguimos com nossos melhores sorrisos para
convencer Miranda de que ela precisava daquele emprego na mesma medida que nós
precisávamos dela.
Roma acabou ficando com as crianças enquanto Dante e eu seguimos para o escritório
dele, que dias depois daquele sonho idiota, parecia menos assustador do que antes. O ambiente
era mais acolhedor do que o criado por minha mente, uma prova de que talvez eu pintasse Dante
muito pior do que ele era. Depois daquela conversa na adega, deu para perceber que ele sentia
quase as mesmas coisas que eu, só que tinha uma fachada muito mais dura do que a minha. Ele
era um belo babaca, mas um babaca com sentimentos decentes, pelo menos.
Miranda, coitadinha, estava acuada por Dante. Ele só perguntava sobre a vida dela, o que
ela fazia, mas ela se encolhia como um ratinho de laboratório. Esse medo nem combinava com
todas aquelas tatuagens, piercings e maquiagem preta. Ela contou que tinha uma banda que se
apresentava todos os sábados no bar de German, mas que tinha quatro irmãs pequenas, por isso
se dava bem com crianças, mas nunca tinha trabalhado com isso. Na verdade, ela nunca tinha
trabalhado. Fazia alguns meses que tinha se formado na escola e se dedicou em fazer a banda dar
certo, mas não foi como eles planejaram.
— Você teria interesse em trabalhar cuidando das crianças? — perguntei, animada.
Eu não sabia muita coisa de Miranda, mas ela fez as crianças ficarem calmas e entretidas,
era namorada de Roma e parecia ser uma pessoa decente. Eu era a prova viva, com meus
trezentos empregos mais aleatórios que o outro, que toda função poderia ser aprendida com uma
dose de paciência e força de vontade. E nós estávamos desesperados...
— Eu... Eu... — Ela estava titubeando, o que era péssimo.
— Ele paga bem! — Apontei para Dante, agindo puramente pela ansiedade.
Foi assim que ele tinha me convencido, não foi?
O olhar de Dante foi tão frio, que seria capaz de fazer com que eu virasse picolé em
questão de segundos.
— Eu adoraria, estou atrás de emprego, mas na cidade é complicado, não temos muitas
vagas. E eu prefiro conviver com crianças que com os adultos, então acho que seria perfeito.
— Vamos conversar e retornaremos, Miranda. Obrigado por seu tempo — Dante cortou
a conversa, deixando a garota perdida.
Agradecida, sorri para ela, mantendo o sorriso até que fechasse a porta do quarto e eu
pudesse fechar o semblante para Dante.
— Ela era perfeita.
— Ela é um feto. — Deu de ombros. — Seria um feto cuidando de outros dois fetos.
— Podemos chamar sua ex-namorada, então. Quem sabe ela não faria uma tatuagem em
homenagem às crianças?
Ele revirou os olhos.
— Não achamos ninguém qualificado para essa tarefa ainda, continuaremos na busca.
— Não, Dante. Você precisa trabalhar, eu também. Fora o que vai acontecer depois que
eu voltar para casa. Vai ficar arrastando as crianças o dia todo para o escritório?
Ele bufou, sabendo que eu tinha razão.
— Só não acho que seja ela a babá certa.
— Por quê?
— Quais serão as atividades das crianças? Cantar em cima de túmulos com ela?
Mordi a língua na tentativa de não rir de sua piada sem noção. De uma coisa eu não
podia reclamar; Dante não guardava suas opiniões para si, por mais sinceras que fossem.
— Contrate a garota. Vai por mim.
— Você é péssima fazendo escolhas.
— Desde quando?
— Desde o dia em que te conheci.
Cruzei os braços, ficando com a boca aberta, incapaz de proferir qualquer palavra depois
daquilo. Ele estava brincando sobre aquele assunto, sério mesmo? Inusitado, para dizer o
mínimo.
Eu o vi apertar um botão no telefone chique que ficava em cima de sua mesa e no
segundo depois a voz de Roma soou pelo aparelho.
— Sua namorada ainda está aí? — Ela confirmou que estava. — Peça que volte aqui, ela
está contratada.
Sorri convencida de que Dante Albizia poderia ser muitas coisas, mas um completo
babaca não era uma delas. Talvez, só 80% babaca. Já era um grande avanço.
Sempre fui um homem aficionado por rotinas.
A certeza de começar e terminar meus dias sabendo de todos meus passos era algo que
me trazia paz. Isso foi até as crianças e Antônia chegarem àquela casa, tudo virou a maior
bagunça de todas. Vários dias fui dormir sem nem jantar, porque existiam dias que as crianças
estavam tão agitadas, que quando dormiam, já era começo da madrugada e eu só queria minha
cama.
E agora, quase um mês depois deles morando nessa casa, nós estávamos de volta a uma
rotina. Ainda era uma loucura, mais insano do que tudo que já me propus a fazer na vida e olha
que já corri duas vezes a maratona de Nova York e trabalhei assim que saí do ensino médio por
um ano inteiro em uma vinícola na Austrália, do nascer ao pôr do sol, sete dias da semana, sem
parar, tudo porque naquela época eu preferia trabalhar em qualquer lugar que fosse longe do meu
pai. Nada me cansou mais do que cuidar de Ceci e Milo.
Só que Antônia estava certa em insistir tanto sobre a babá. Miranda, por mais excêntrica
que fosse, estava salvando a minha pele. Ela cuidava das crianças durante o dia, era responsável
pela alimentação, pela rotina e, o principal, por fazê-los gastar energia. O melhor de tudo era que
ela também tinha energia para gastar com eles. Talvez contratar uma criança para cuidar das
minhas crianças não fosse tão ruim assim. Quando Antônia e eu voltávamos da sede da Albi no
final da tarde, eles estavam muito mais calmos do que antes. Dávamos banho, o jantar e depois
eu lia para que dormissem.
Ainda era uma rotina louca, mas não parecia mais tão ruim, nem tão assustadora.
E era por aquele motivo que no dia que Milo fez onze meses de vida, Antônia quis fazer
uma festa para celebrar que nós conseguimos, por um mês, manter aquelas crianças vivas.
Recebi um convite formal pelo celular, feito por ela, com direito a arte especial, data e
endereço da tal festa. Antônia deveria estar com tempo livre para todas aquelas bobagens.
Amanhã eu a faria trabalhar dobrado. Ela, inclusive, saiu mais cedo para preparar as coisas da
festa e deixou bem explicado que eu não deveria me atrasar, porque se não eles passariam da
hora de dormir e nós estaríamos fodidos.
Eu era viciado em trabalho, mas também não tinha muitas coisas para fazer na vida sem
ser isso. Seguia minhas planilhas de corrida, vez ou outra ia ao bar do German e passava a
maioria dos dias bebendo vinho e escutando música depois do jantar. Só que com as crianças, eu
precisava ter horários livres, deixar minha agenda bloqueada depois das 5h da tarde era uma
dessas mudanças. Ainda era esquisito sair tão cedo do trabalho, mas era bom estar com eles
naquele tempo.
Obedeci à ordem de Antônia e apareci no endereço — a minha casa — no horário
marcado. Ela não estava no quarto das crianças, nem em qualquer lugar do térreo. A cozinha já
estava silenciosa, o que indicava que ela havia dispensado Felicita. Resolvi dar uma espiada no
jardim e foi lá que a encontrei.
— Eu achei que seria uma festa. — Fiz questão de provocá-la assim que parei ao seu
lado.
Ela estava bonita com os cabelos presos e um vestido azul-claro com bordados em
formato de flores. Os pés estavam descalços em cima da grama. Percebia que era algo que ela
gostava de fazer, quase nunca via Antônia usando calçados.
— O que te parece, um circo? — Delicada como sempre, um doce.
— Cadê as pessoas?
— Não tem pessoas, Dante. Não conheço ninguém aqui e quem eu conheço não quis
ficar porque tem medo de você.
— Quem tem medo de mim?
— Miranda e Roma.
— Desde quando a Roma tem medo de mim? Ela é a pessoa mais falante que eu conheço
depois de você. É irritante.
Antônia deu um tapa em um dos balões que flutuavam ao redor da delicada e linda mesa
de piquenique que ela montou. Tinha comidas, frutas e um bolo pequeno ali no meio. Era tão
simples, não deveria parecer tão incrível assim aos meus olhos.
— Tem razão, ela não tem medo de você. Só te acha um Dementador de energia. E ela
está certa. — Seu sorriso debochado expandiu por quase todo aquele rosto irritante, corado e
bonito.
— Tio Dan! — Cecília apareceu correndo com seus três ursos preferidos nos braços:
Bolota, o ganso. Jules, o unicórnio e o Sr. Lightyear. Atrás dela, correndo sob aquelas patas
minúsculas demais para sua cabeça gigante, estava Rocambole.
Ela colocou os convidados em cima da toalha estendida e se jogou em minhas pernas.
Confessava que aquele era o momento preferido do meu dia. Ela sempre se jogava em cima de
mim, fizesse sol ou chuva, calor ou frio. Eu amava cada segundo daquilo.
Peguei-a no colo, virando para Antônia.
— Você acha o tio legal, Ceci?
Antônia revirou os olhos ao perceber o que eu fazia.
— Eu acho, tio. Você é o melhor.
— E você gosta mais de mim ou da sua tia? — joguei baixo.
Era fácil essa. Ela gostava de mais de mim, óbvio. Todos já sabíamos dessa. Eu lia mais
páginas do que as combinadas quando ela me pedia, deixava sempre que ficasse mais cinco
minutos brincando no banho e lhe dava um pouco de café escondido, mas somente aos sábados,
quando eles ficavam mais tempo com Antônia e era o meu dia de descanso.
Antônia fez uma careta demonstrando o quanto me considerava cansativo, mas sabia que
ela estava ansiosa pela resposta.
— A resposta é bem óbvia — ela cantou vantagem.
— Será que é? — lancei o desafio.
Nós dois olhamos para Cecília, esperando sua resposta. Ela enfiou um dedo na boca e
pediu para descer do meu colo.
— Eu gosto mais do Rocambole.
Ela soltou como se fosse simples e deu as costas para todas nossas expectativas e
competições.
Ela gostava mais do cachorro do que de um de nós?
— Bem-feito, babaca!
Milo estava praticando suas incríveis habilidades de engatinhar na grama, espalhando
terra por todo o macacão claro. Ainda não conseguia entender a aptidão que esse garoto tinha de
sujar mais roupas do que fraldas, era impressionante.
— E aí, campeão? Como está o dia? — Peguei-o em meus braços, afastando a franja
escura que estava quase acertando seus olhos.
Será que o meu barbeiro conseguiria cortar a franja de um bebê?
— Miranda disse que o canino dele está nascendo.
— Logo você está pronto para comer um filé suculento. — Joguei Milo para cima, da
forma que eu sabia que ele gostava e se acabava em gargalhadas.
O riso de bebês era o som mais delicioso do mundo. Não existia comparação.
— Ceci disse que estava com vontade de comer coxinha. Já provou? Toda festa brasileira
tem. — Ela apontou para os cones em um prato branco de porcelana.
Roubei uma assim que sentei na toalha, ainda segurando Milo.
— Você que fez?
Ela assentiu, orgulhosa.
— Fiz bolinha de queijo também. — Apontou para o outro prato. — Está bom?
— Dá para o gasto. — Balancei os ombros, provocando-a. Antônia fechou a cara de
imediato e enfiou duas daquelas bolotas na boca. — Está muito bom, Milani.
— Eu sei que está, como tudo o que eu faço.
Céus, ela era insuportável! E impossível!
Eu a assisti entregando os aperitivos para Ceci e depois partindo metade de uma coxinha
para dar a Milo.
— Nós devemos permitir que eles comam essas comidas? — Compartilhei meu
pensamento com ela, assistindo Milo mandar ver naquela massa frita.
Vitória era chatíssima com a alimentação deles, tudo era orgânico, sem açúcar, gordura
saturada e tudo que não fosse totalmente saudável para eles. Eu concordava com essa
abordagem, até porque cuidava muito da minha alimentação. Até viver com aquelas duas
crianças, vê-los chorar por qualquer birra, passar horas recusando qualquer comida. Depois de
um tempo, eu só queria que eles comessem qualquer coisa só para garantir que estavam
alimentados.
— É uma festa, não é? Acho que eles deixariam...
Suspirei, sem saber a resposta. Nós nunca saberíamos, porque eles não voltariam para
contar.
— Você sente que estamos destruindo tudo o que eles construíram?
— Todo o tempo. — Seu olhar ficou nublado e por um tempo só as risadas de Ceci
correndo atrás de Rocambole foram audíveis. — Esses dias eu estava tão cansada que só
compartilhei o meu café da manhã com os dois. Era cereal, daqueles cheios de açúcar e corante.
Uma coisa que eu tinha aprendido nesse último mês foi a não julgar as escolhas de
Antônia em relação às crianças. Da mesma forma que ela erraria, eu erraria duas vezes mais. Só
ela entendia o que era estar na minha pele nesse momento e não tinha margem para julgamentos
ali, porque já tínhamos problemas demais.
— Estamos fazendo um bom trabalho. — Ergui a mão, e ela ainda demonstrou certa
resistência, mas acabou tocando sua palma na minha.
— Deixando um bebê de onze meses comer chantilly?
Meu olhar foi para seu dedo indicador esticado e só então percebi que Milo, ainda
sentado no meu colo, inclinou-se para frente e estava lambuzando a mão com a cobertura do bolo
e enfiando tudo na boca.
— Droga!
— Não foi por isso que você surtou com a pobre Carina?
Limpei as mãos de Milo com um guardanapo, ignorando a gracinha feita por Antônia. O
pequeno interesseiro, quando percebeu que a facilidade para comer o doce acabou, ergueu os
braços para Antônia. Eu estava distraído limpando a bochecha do bebê quando escutei a voz
infantil e estridente falar:
— Mama.
Olhei para Milo, que seguia esticando seus bracinhos para Antônia. Ela escutou. Eu
escutei. E ficamos parados, atônitos.
— Não. Titi, eu sou a titi. — Apontou para si própria, deixando escapar a voz trêmula.
— Mama. — Milo insistiu, esticando os braços.
Eu não soube o que falar para Antônia naquele momento, fiquei tão apático e chocado
quanto ela, porque até aquele segundo, eu não tinha pensado no papel que assumiríamos na vida
das crianças. Cecília era mais velha, possivelmente ainda se lembraria dos pais, mas Milo era um
bebê, ele nunca se lembraria de quem foram seus pais, apenas de nós, que mesmo sendo seus
tios, agora tínhamos a função de... pais. Perceber isso não foi desesperador como eu achei que
seria.
Antônia o tirou do meu colo, aninhando o garoto em seu peito. Ela estava abalada, dava
para ver de longe, mas não demonstrou um segundo de fraqueza, não sabia se por eu estar ali ou
pelas crianças. Só seguiu em frente, lidando com a situação como se fosse comum.
Brincamos com as crianças durante o pôr do sol incrível que fazia naquele dia. O céu
ficou todo em tons de rosa e laranja enquanto brincávamos de bola com eles. Comemos todos os
salgados que Antônia preparou, dividimos o bolo de chocolate com Cecília, sabendo que nos
arrependeríamos mais tarde pela quantidade de açúcar que ela ingeriu e focamos tanto em não
deixar Milo comer o bolo, que terminamos aquela tarde limpando vômito e dando remédio de
náuseas para Rocambole, que roubou todo o resto do bolo.
Antônia correu quando percebeu que o cachorro estava mordendo e me restou quase
perder meu dedo indicador dando remédio para aquele inseto carnívoro e perigoso. Como um
cachorro de um quilo conseguia morder tão doído?
Não eram nem 9h da noite quando Antônia e eu estávamos jogados cada um em um sofá
da sala de estar. Minha barriga estava até estufada pelo tanto que comi e o cansaço de dar banho,
gastar a energia acumulada de Cecília e fazê-los dormir tinha consumido minhas forças.
— Tem vinho? Eu preciso muito de um vinho hoje. — Antônia estava jogada no sofá de
ponta cabeça, os pés para o alto e a cabeça para fora.
— Se tem algo que tem nessa casa, é vinho.
— Faz a boa aí, meu querido.
Fui arrastando os pés até a adega que mantinha dentro de casa e não consegui nem
pensar muito na escolha. Peguei duas garrafas de Bonarda, não a minha safra especial, mas uma
boa, porque queria que Antônia soubesse diferenciar os vinhos e parasse de consumir aquele
suco de uva com gasolina que ela costumava comprar.
Voltei com as garrafas e as taças e a vi dar uma cambalhota desajeitada pelo sofá. Ela
calculou a manobra errado e acabou caindo no chão, toda torta. Pulei seu corpo esticado em meu
tapete e apoiei os objetos na mesinha de centro, sentei no chão com uma boa distância dela logo
depois. Eu a servi, contendo a revirada de olho ao vê-la beber a primeira taça como uma
selvagem. Antes de encher a minha, já estava reabastecendo a dela.
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Ela estava esquisita desde a hora do piquenique
e nem precisava ser um gênio para adivinhar o motivo.
— Antônia? — chamei sua atenção, percebendo que ela não piscava fazia um bom
tempo. — Ele é um bebê, não entende o que aconteceu. Você está com ele todos os dias, é
normal que te veja assim.
Ela prestou muito atenção no que falei, mas ao final abaixou o queixo e passou mais
algum tempo mexendo na barra do vestido.
— Posso te falar uma coisa? Promete deixar de lado a sua babaquice por cinco minutos e
me escutar do fundo do coração que você não tem?
Cruzei os braços e ergui a sobrancelha, desafiando-a a continuar me provocando daquela
forma.
— Prossiga.
— Eu sonhei com a Vitória hoje. Foi um sonho lindo, muito real. Ela estava feliz, em
paz, parecia até brilhar, até então não tinha sonhado com ela assim.
— Vocês conversaram?
Quase deixei a inveja que sentia escapar nessa pergunta. Eu não tinha sonhado com eles
até agora e daria tudo para conseguir esse feito.
Ela assentiu.
— Ela estava sentada na minha cama, parecia muito real mesmo. Ela disse que está feliz
por ver as crianças bem, mas que queria me pedir algo.
Tive a impressão, julgando por todo o contexto, que esse algo não seria algo que me
agradaria muito.
— Ela pediu que eu não abandonasse as crianças.
Os olhos de Antônia eram os mais expressivos que já vi. Todas as emoções passavam
por eles e agora a agonia estava presente ali.
— O que você está pensando sobre isso? — perguntei com cautela.
— Ontem fui dormir pensando que já estou aqui há um mês, o combinado era vinte dias.
Mesmo com o trabalho na Albi, eu vou precisar voltar para casa em breve.
Engoli em seco, porque aquela conversa foi deixada de lado a partir do momento em que
Antônia começou a trabalhar para mim. Eu ainda não tinha uma opinião formada sobre o fato
dela viver na minha casa, mas gostava da segurança de que estávamos os dois no mesmo barco
juntos com as crianças. Se eu não estivesse presente, ela estaria e assim seguiria, tudo para o bem
deles.
— Você nem começou direito o trabalho na Albi — pontuei, querendo achar algum fator
que a mantivesse por aqui. Não porque eu queria, sim, porque era necessário.
— Nós sabemos que será temporário.
Nessa última semana Antônia tinha trabalhado pesado, montando estratégias para
alavancar nossas vendas. E mesmo sendo difícil admitir, ela era boa. Muito boa. E nem fazia uso
daquelas dancinhas terríveis nas redes sociais.
— Aonde quer chegar, Antônia? — fui direto ao ponto, percebendo que ela estava cheia
de receio.
— Se eu falasse que, quando decidir voltar para casa, eu quero levar as crianças, o que
você falaria?
O baque que levei foi inesperado, porque senti algo muito parecido com dor física se
reverberando dentro do peito. Ela queria levar as crianças embora? Para o Brasil? Para longe de
mim?
— Eu te lembraria todos os argumentos muito válidos que você usou para falar que não
poderia ficar com eles. Não acho que em um mês você tenha se encontrado, resolvido todos os
seus problemas e tudo mais.
Antônia assentiu sem nem olhar para meu rosto. Ela parecia verdadeiramente chateada.
— Não quero entrar em uma briga com você, até porque sei que sairia perdendo. Eu só...
— A frase morreu em sua boca, bem no segundo em que a lágrima correu por sua bochecha
rosada. — Eu só não queria decepcioná-los. Ainda mais depois de hoje, do que ele falou. Eles já
perderam tanta coisa sendo tão pequenos, nunca me perdoaria por não ter tentado.
Ela estava sendo tão verdadeira comigo, que era impossível não se compadecer. Da
mesma forma que eu queria aquelas crianças, ela também queria. No final das contas, além do
amor que sentíamos por nossos sobrinhos, nenhum de nós queria decepcionar nossos irmãos.
Abrir mão das crianças seria automaticamente fazer isso.
Sempre tive dificuldade em me colocar no lugar do outro, mas naquela situação, eu
entendia Antônia por completo. Foi movido por esse sentimento que acabei me aproximando e
usei a lateral de meu indicador para limpar o rastro de lágrimas em seu rosto.
Ela se assustou com o contato íntimo e não era para menos, eu estava assustado comigo
mesmo. Nunca toquei em Antônia dessa forma, nem daquele maldito dia no restaurante. Não que
eu não quisesse, só aconteceu uma sucessão de calamidades e tudo deu errado. E agora quase dez
anos tinha se passado e coisas demais aconteceram para um toque parecer algo normal.
— É um argumento válido — soprei para ela.
Antônia respondeu com um leve tremor nos lábios antes de jogar a cabeça no meu ombro
direito. As lágrimas tornaram a escorrer pela lateral de seu rosto, mas depois de alguns segundos,
escutei algo que parecia uma risada.
— Nós somos tão patéticos.
— Eu ainda sou seu chefe, tenha respeito — falei como se desse uma bronca, mas a
verdade era que aquele momento se tornou o ponto alto da minha relação com Antônia.
E, pelo resto de minha existência, eu negaria que pensei isso.
— Falando em chefe... — Ela se afastou de uma só vez, levando todo o calor consigo. —
Tive algumas ideias incríveis hoje! Posso compartilhar contigo?
Percebi que aquela conversa difícil foi encerrada sem qualquer conclusão. E como
haveria? Nós estávamos perdidos, sem saber qual o passo seguinte, o que fazer ou o que mais o
destino aprontaria conosco.
Bebemos todo o vinho enquanto escutava atentamente a nova proposta de Antônia. Ao
invés de vender só uma simples degustação, oferecer um final de semana de imersão na vinícola,
indo além das degustações dos vinhos e oferecer refeições com influência na culinária local, um
chalé com vista privilegiada para a Cordilheira e passeios pela região. Ofereceríamos
pouquíssimas vagas por mês, que tornaria a experiência um objeto de desejo para os clientes, o
que respingaria nas vendas dos vinhos.
Isso acabaria com a minha paz, mas eu seria louco se não desse o braço a torcer que
Antônia estava certa. E, talvez, só talvez, isso a fizesse ficar mais algum tempo por aqui, porque
agora eu entendia Gregório e sua felicidade por nunca estar sozinho.
E se tinha algo que eu sabia sobre meu irmão, era que ele nunca errava.
Nunca imaginei que fosse começar a gostar de ter uma rotina em Mendoza. A vida
começou a passar mais rápido enquanto me via envolvida com as crianças, com o trabalho e com
meu luto. Dante liberou um dos carros da casa para mim e comecei a conhecer melhor a cidade,
que não era tão pequena quanto achei que fosse. A vinícola era que ficava afastada de tudo,
mesmo. Conheci um café delicioso no centro da cidade e ficava trabalhando de lá enquanto
Cecília fazia ballet em uma escola de dança recomendada por Rubi, uma das mulheres que
trabalhava na administração.
Em alguns dias meu primeiro projeto saiu do papel e vi, com profunda satisfação e
admiração, as taças de vinho que misteriosamente apareceram em alguns pontos da cidade.
Lançamos um novo site no mesmo dia que a campanha foi veiculada e fechamos uma parceria
também com alguns influencers especializados no ramo de vinho. Apenas essas poucas coisas já
garantiram uma receita de 60% a mais do que a do mês anterior. Eu fiquei chocada, porque sabia
que tinha ótimas ideias, mas nunca tive a chance de poder realmente utilizá-las com um
propósito. Estava tão orgulhosa de mim que quase não conseguia controlar a satisfação nas
reuniões com a equipe em ver Dante sendo obrigado a me elogiar na frente de todos.
Tudo parecia nos eixos, estranhamente calmo. E aquela sensação me deixava tensa,
como se esperasse pelo que pudesse acontecer de pior. Culpei esse sentimento à rotina, porque
nunca soube viver em uma. Minha vida sempre foi uma bagunça, sem horários, sem muitos
planos, então era de se estranhar mesmo lidar com segurança e estabilidade.
— Você precisa beijar na boca.
Essa foi a conclusão de Roma em meio ao nosso almoço de todos os dias. Comíamos na
parte de trás do prédio, sentadas no gramado com vista para a Cordilheira e a plantação que se
estendia por quilômetros.
Franzi o cenho e espetei a muçarela de búfala que coloquei em minha marmita.
— Como se eu tivesse tempo para isso.
E era verdade. Nessa altura do campeonato eu estava ali há quase dois meses e se falar
que consegui pensar por vinte segundos em qualquer relacionamento com outra pessoa, estaria
mentindo. A maior proximidade que tive nesses últimos dias foi naquela adega com Dante, mas
obviamente era pura imaginação da minha mente perturbada com vinho e pensamentos
intrusivos.
Ah, teve o dia também que Alec, o gerente de transporte da Albi, disse que seria um
prazer me levar para comer o melhor alfajor da cidade. Eu não sabia se ele estava dando em cima
de mim ou só tentando ser simpático. Em outra língua ficava difícil demais saber se alguém
estava me cantando. Em português eu sabia identificar as segundas intenções, mas em espanhol
era mais difícil, perdia muita coisa no processo de pensar, traduzir e falar.
Essa continuava sendo uma das minhas maiores dificuldades. Dante eu entendia muito
bem, até porque ele também entendia português, mas no trabalho era mais complicado por conta
do sotaque. Alguns engatavam a quinta marcha e só Deus para me fazer entender o que estava
acontecendo ali.
— Vamos ao German amanhã? Miranda vai tocar com a banda, é semana de pagamento,
estará cheio lá.
Espetei um tomate e fingi estar ocupada demais para responder Roma.
Eu não queria sair com seus amigos adolescentes e fingir que a vida era divertida. Estava
atolada de trabalho, cuidando de duas crianças, preocupada com o futuro delas e superando o
luto aos poucos. Tinha muito em que pensar. A última coisa da minha lista de prioridades é ir a
um bar beijar desconhecidos e acordar na cama de alguém que não planejava nunca mais
reencontrar.
Preferia gastar essa energia lendo a sequência de Fourth Wing, livro pelo qual estava
obcecada. Tão obcecada, que precisei pedir que Dante lesse, para que eu tivesse com quem
conversar sobre. Ele não tinha terminado ainda, mas eu tinha esperanças de que acontecesse
dentro de mais um ou quinze anos.
— É meu dia de ficar com as crianças de noite — menti.
Roma semicerrou os olhos.
— Amanhã não é o dia que vocês testariam a babá folguista?
Essa garota era mesmo muito eficiente. Como podia decorar a agenda de Dante?
— É? — continuei em meu personagem perdido.
Encontramos uma babá enviada por uma agência para deixar em casos de emergência ou
quando Miranda tirasse folga. Na entrevista ela se saiu muito bem, era uma mulher risonha, com
quarenta e poucos anos que morava na cidade e tinha boas recomendações. Combinamos de ela
passar a noite de sábado com as crianças, porque estaríamos em casa, supervisionando tudo.
— Sim. Então você pode ir, não é?
Estava nítido em meu rosto que tudo o que eu mais queria era ficar quieta em casa. Tinha
um pouco de trabalho atrasado e queria resolver tudo isso no final de semana, além de ficar com
as crianças, talvez fazer um piquenique no jardim.
— Posso — murmurei, contendo a fúria dentro de mim por não saber falar não.
Era algo básico da Humanidade, certo?
Antônia, vamos para um bar beijar a boca de estranhos? Não.
Antônia, quer ir para uma adega escura e romântica falar sobre coisas da vida? Não.
Antônia, que tal um relacionamento aberto? Não.
Antônia, quer tomar um pouquinho de absinto? Não.
Antônia, você acha mesmo uma boa ideia ficar com o irmão do cara que você gostava e
depois ter de dividir um teto e duas crianças com ele? Não.
Era simples, não era?

Demorei um tempo considerável para estar pronta, porque tudo não estava legal. O que
vestir para ir a um bar onde adolescentes cantavam rock sem parecer um deles, sem estar muito
arrumada, nem muito desarrumada?
Eu também não tinha muitas opções de roupas. A maioria ficou no Brasil, por motivos
de: vinte dias.
Depois de muito fuçar em minhas roupas, escolhi um vestido preto. O vestido preto. Eu
não o escolhia muito, porque sempre que usava me lembrava das merdas que fazia e os caminhos
tortuosos que escolhia percorrer, mas não deixava de ser um vestido lindo. Dez anos depois ele
estava mais apertado nos peitos, porque qualquer quilo a mais na balança ia direto para os meus
peitos e as coxas. Eu gostava da forma como minha cintura parecia menor com ele, a saia rodada
tornava tudo mais delicado e o decote frente única valorizava meus ombros.
Escolhi usar uma jaqueta de couro preta, para ficar um pouco mais casual. Terminei a
maquiagem e saí do quarto calçando a sandália, sabendo que já estava atrasada.
As crianças estavam com Eugenia, a babá. Ela havia chegado duas horas atrás, no final
da tarde, e pude ver que pintava com as crianças assim que desci as escadas. Cecília estava de
bruços no tapete, pintando com giz de cera uma página do livro de colorir, já Milo, rabiscava
folhas com intenção, sendo, vez ou outra, corrigido por Eugenia na forma correta de segurar o
giz de cera.
— Está linda, senhorita Milani — Eugenia elogiou um sorriso doce.
Aquilo me fez ganhar o dia, porque não era sempre que era elogiada.
— Obrigada — agradeci.
— Titi, você vai sair? — Cecília perguntou com seus olhos curiosos, largando o giz de
cera de lado para me julgar.
Como eu ousaria sair e deixá-la aqui?
— Vou. E você vai ficar quieta e comportada com a senhora Tenebraz e seu tio,
fechado?
Quem falava que ser passivo-agressiva não funcionava, era porque não convivia com
crianças pequenas.
— Eu quero ir com você. — Ceci levantou em um pulo, o bico fofo surgindo em seu
rosto.
Ela ganhava qualquer coisa com aquele bico e o nariz torcidinho, mas não ganharia essa.
— Vou a um lugar de adultos.
— O tio Dante vai com você? — rebateu rapidamente.
— Não.
Nem por cima do meu cadáver. Um dia longe de Dante era tudo o que eu queria.
— Mas ele também é adulto.
— Mas só adultos legais podem entrar lá. — Espiei por cima do ombro a reação de
Dante, parado e encostado em um pilar quase como uma estátua.
Fazia poucos segundos que ele tinha entrado ali e não perdeu tempo em revirar os olhos
e entortar o pescoço para o lado, como se fosse uma tremenda chatice me aturar.
— Melhor ficar em casa, titi.
Dante explodiu em uma gargalhada alta, esquecendo totalmente sua própria regra de não
demonstrar diversão com a falta de educação deles. A regra só valia quando eu não era o alvo da
falta de educação daquela minipessoa que não tinha nem tamanho para tanta audácia.
Como assim eu não era legal? Eu era a adulta mais legal de todas. Não era chata,
permitia doces aos finais de semana, concordava que a hora da soneca era superestimada e que
beterraba era a vergonha do reino vegetal.
— Terá volta, garotinha — alertei em tom de ameaça, vendo aquelas duas covinhas fofas
surgirem em suas bochechas conforme ela sorria.
Abaixei para dar um beijo nela e outro em Milo.
— Mama.
Ele continuava repetindo aquilo freneticamente. Eu não conseguia aceitar e sempre
ficava com o coração partido.
— Titi — corrigi. — Sou sua titi.
Beijei a testa do meu garoto e levantei do chão, acenando para Eugenia antes de virar as
costas.
Peguei a chave do carro no aparador e saí em direção à lateral da casa onde Dante
deixava os carros estacionados. Minha cabeça ainda estava em Milo me chamando de mãe, algo
que eu não conseguia lidar bem. Era como tomar a vida de Vitória. Parecia errado demais.
— Se divirta com Alec e seus alfajores.
Pulei para o lado ao escutar a voz rouca de Dante no meio da noite. Precisei olhar para os
lados para tentar localizá-lo, mas ele estava na varanda, dois metros acima da minha cabeça.
Ele era patético.
— Pode deixar, chefe.
Lotei minha boca com ironia só para irritá-lo. Ele não precisava saber nada da minha
vida, esse sem noção.
— Você só tem esse vestido para ir aos encontros?
Travei os pés sob a grama e virei o pescoço, olhando novamente para onde Dante estava.
Não. Não era possível que ele lembrasse.
— Você precisa parar de ser tão obcecado. Já faz uns dez anos, não pega bem, sabe?
Escutei novamente sua risada rouca e estranhei o silêncio logo em seguida. Ele não
estava mais no peitoril da varanda. Continuei meu caminho até a SUV que eu normalmente
usava com as crianças, destravei o alarme e, antes de entrar, olhei para o lado. Na varanda, sob a
luz amarelada da arandela, Dante estava sentado em uma cadeira de balanço, uma perna dobrada
na outra, uma taça de vinho ao seu lado e óculos redondos com aro fino pendendo na ponta do
nariz.
Reconheci a capa dourado do livro que recomendei para ele e foi inevitável não me sentir
patética por deixar um sorriso escapar.
Travei o carro e fui em sua direção.
— É assim que planeja passar sua noite de sábado?
Cheguei como quem não quer nada perto dele. Vi seus ombros se retesarem pela
surpresa, tirei aquele sorrisinho do meu rosto e cruzei os braços.
— Eu deveria fazer algo especial? — Arqueou a sobrancelha, sem desviar os olhos do
livro.
— Sair, ver pessoas, não ser um robô aspirador.
— Um robô aspirador? — Ganhei sua atenção com essa.
— Que fica dando voltas em casa e aspira qualquer tipo de problema.
— Isso deveria ser um elogio?
— Definitivamente não.
Ele fez um bico, muito parecido com o que Cecília fazia. Deveria ser genético. E um
segundo depois, descruzou as pernas e virou o corpo em minha direção.
— Estou de olho nas crianças enquanto você encontra seu futuro ex-namorado.
Precisei morder a língua para não mandar Dante se foder. Ele estava merecendo. Com
um longo suspiro, abri a boca e contei sobre meus planos de sábado:
— Estou indo ao bar do German ver Miranda tocar com a banda. Você quer ir comigo?
Nem eu acreditei que falei aquelas exatas palavras, mas algo na forma solitária como ele
estava naquela varanda, mexeu comigo. Dante saía menos do que eu, até. Eu ainda ia à cidade
com as crianças, visitava aquela cafeteria, passava no mercado vez ou outra. Ele vivia para as
crianças e o trabalho. Não tinha mais nada além disso e de algumas taças de vinho pela noite. Era
solitário. E acabava me colocando em seu lugar, porque eu também era solitária.
— E seu encontro?
— Que encontro, Dante? O que você inventou na sua cabeça? — perdi a paciência,
porque ele era chato demais quando queria.
E ele queria sempre.
— Prefiro ficar por aqui.
— Ótimo!
Meu humor mudou em um segundo. Nem eu entendi o motivo. Virei as costas, bufando
alto e destravei o carro mesmo à distância.
Aquele homem não tinha jeito. Era um grande e enorme babaca.
— Espera! — Escutei sua voz às minhas costas. — Acha seguro deixar as crianças com a
babá?
Umedeci os lábios e ergui o queixo, mirando-o com toda a normalidade que existia
dentro de mim.
— É para isso que ela está aqui, certo? Além do mais, tem todas suas câmeras do seu Big
Brother particular, eles ficarão bem.
Dante ponderou por dois segundos. Foi somente isso que precisou para levantar e
desaparecer da varanda, falando um simples: “Volto logo”.
Eu aguardei ali, ponderando se foi uma boa ideia ou não tê-lo chamado. Roma odiaria,
com toda certeza. Mas pareceu errado deixá-lo ali sozinho com uma taça de vinho e um livro.
Não demorou quase nada para ele retornar com o cabelo penteado, uma camisa terracota
que eu jurei que não seria xadrez, mas assim que ele chegou perto o suficiente, eu vi a
padronagem minúscula, mas existente. Também consegui sentir o perfume delicioso que vinha
dele.
Por que perfumes masculinos eram tão superiores aos femininos? Era injusto.
— Eu dirijo. — Esticou a mão para pedir a chave.
— Você bebeu. Eu dirijo, princesa.
Ele não pareceu nem um pouco feliz com o novo apelido, saiu à minha frente
resmungando algo inaudível. Além de ser chato, ainda era resmungão. Ótimo!
Passar por aquela porta de balanço dupla do bar do German foi como ser famoso.
Todos os olhos vieram para mim e Antônia e conseguia escutar as suposições e fofocas
que faziam com nossos nomes. Era por isso que dificilmente eu aparecia por ali. Sempre odiei a
ideia de mais munição para as fofocas, mas não podia negar que fazia isso muito bem. Eu sempre
oferecia entretenimento para meus conterrâneos.
Agora que a notícia que eu estava solteiro depois de Carina ter me dado um pé na bunda
— o que não aconteceu — não ser mais novidade, as pessoas comentavam sobre a minha
proximidade com Antônia. A irmã de Vitória era um assunto conhecido na cidade. Possivelmente
o boca-aberta de Gregório contou para alguém, que contou para alguém, que espalhou para
alguém. Ninguém sabia verdadeiramente o que tinha acontecido, mas existia uma suspeita, que
foi ainda mais inflamada quando ela não foi embora da minha casa e começou a trabalhar na
empresa.
Eu sabia de tudo, só me fazia de sonso, porque era divertido.
Fiquei atrás de Antônia, ignorando qualquer contato visual com outras pessoas até chegar
ao bar. Roma foi a primeira pessoa a se aproximar de nós e seu olhar foi diretamente para mim.
— Ele veio com você. — Ela não parecia muito feliz com a ideia.
— Ele estava meio moribundo em casa — Antônia contou a maior mentira de todas.
Eu estava quieto e em paz na minha casa, apreciando um bom vinho e a história que ela
devorou em dois dias. Se algo fazia Antônia calar a boca por mais que dez minutos, então
deveria ser muito bom.
Roma me olhou dos pés à cabeça, petulante demais para quem era minha funcionária,
media meio metro de altura e tinha a mesma cor de cabelo do que uma caneta esferográfica.
— Se continuar me olhando assim, até o final da noite já estará habituada ao seu novo
emprego atrás do balcão. — Apontei com o queixo para o bar e vi a garota fechar a cara no
mesmo segundo.
Eu a entendia. Era um ambiente insalubre, cheio de homens bêbados amontoados ao
redor do balcão em formato de meio-círculo, gente falando alto, futebol passando toda hora na
televisão e cheiro de álcool grudado em cada canto.
Os dias mais animados do bar eram aos sábados. Um ano atrás o filho de German,
Fabian, começou a tocar com a banda ali. Não tinha nada a ver com o lugar, o público não era o
mesmo, mas ele não era o tipo de cara que falava “não” para o filho. Para a sorte dele, os
moleques eram bons e trouxeram mais clientes para o bar.
— Vem, vou te apresentar o pessoal da banda. — Roma puxou Antônia pela mão.
— Vai ficar bem?
Até parece que ela estava mesmo preocupada comigo. Assenti com um leve aceno e ela
se deixou ser levada por Roma. Uma inconsequente guiando outra inconsequente. Fiquei por
algum tempo parado, observando Antônia se afastar com aquele maldito vestido que caía tão
bem nela. Inferno.
Fui até o bar, cumprimentando German que estava atolado com os pedidos dos clientes.
Pedi uma cerveja e arranjei um lugar no balcão para mim, ignorando os olhares de quem estava
ao meu redor.
— Oi, Dante.
Virei o rosto para ver quem me chamava e quase não acreditei ao ver Gaia parada, seu
sorriso cheio de más intenções. Eu já tinha caído nessa uma vez, tinha aprendido a lição.
— Oi, Gaia.
Estiquei o pescoço, já elaborando minha rota de fuga. Se dissesse que alguém estava me
chamando, poderia ir em direção ao corredor dos banheiros e ficar nos fundos até que ela se
esquecesse da minha presença.
— Você não respondeu minhas mensagens. — Sua voz já estava embolada pela
quantidade de álcool que corria livremente em sua corrente sanguínea.
— Troquei de número — menti.
As mensagens estavam lá desde o dia que ela apareceu na minha casa, mas eu ainda
estava com Carina e mesmo que não estivesse, queria distância de Gaia.
Ela era sinônimo de problema. Eu não negaria que gostava de uma boa encrenca, mas
Gaia não era o tipo de problema bom.
— Soube que está solteiro. — Inclinou a cabeça para mais perto.
— Sim. — Bebi um gole da cerveja direto da garrafa e continuei elaborando minha rota
de fuga.
— O que acha de nos divertimos um pouco? Já te perdoei por não ter me contratado. Foi
ela que não deixou?
— Carina? — perguntei, confuso.
— A gordinha.
Precisei de alguns segundos para entender sobre quem ela falava. Gaia era do tipo sem
noção, isso sempre soube, só não sabia que era tão malvada também.
Apertei os dentes e precisei de certo autocontrole para não ser pior do que ela.
— Deve ser tão triste estar na sua pele, Gaia. Sem perspectiva de futuro, vagando de
cama em cama em busca de um marido e continuando mais sozinha a cada dia que passa. O
tempo está passando, quanto ainda te resta até sua beleza acabar e não sobrar mais nada de
interessante em você?
Ela perdeu qualquer resquício de arrogância no rosto ao escutar o que falei. Sabia que
não queria ser pior do que ela, mas infelizmente nem sempre conseguia me controlar.
— Dante, Roma quer te apresentar o pessoal da banda. — Escutei a voz afobada e
eufórica de Antônia. Ela surgiu em minha frente do nada, puxando meu antebraço. — Oi... Gaia,
não é? — Seu sorriso se ampliou ao olhar a outra mulher. — Desculpa interromper o papo de
vocês, é urgente.
— Adorei o seu vestido. — Gaia elogiou Antônia com a voz levemente trêmula.
— Obrigada! O seu também é lindo. Você ficou parecendo uma fada com ele.
Ver Antônia sendo simpática com ela, fez minha bronca de Gaia aumentar ainda mais.
Peguei o antebraço de Antônia, igual ela fez com o meu e a tirei dali.
— O que foi isso? — perguntei assim que estávamos longe o suficiente.
— Você parecia um animal sangrando em um lago de piranhas. Foi doloroso ver, aí vim
te salvar — tagarelou. — Nossa! Não quis chamar a sua ex de piranha, ela até que é legal...
— Ela não é legal.
— Mas não é piranha.
— Eu entendi a hipérbole.
— Eu entendi a hipérbole — ela repetiu com uma voz afetada e grossa. — Você é tão
chato, não sei como Gaia terminou tão apaixonada que foi capaz de fazer uma tatuagem para
alguém como você.
— Acho que você não iria querer saber como. — Mordi a parte interna da bochecha,
esperando a reação exagerada que eu sabia que viria.
Ela começou a fingir ânsia de vômito.
— Qual é, quem você acha que está enganando? Você recebeu sua namorada com um
aperto de mão, Dante.
Cruzei os braços, observando como estava solta e relaxada no ambiente. Talvez fosse o
álcool, talvez só estivesse feliz. Era muita pressão em cima de nossos ombros, era bom vê-la agir
como alguém de sua idade, em um bar, rodeada de gente e livre de preocupações por pelo menos
algumas horas.
— Tinha crianças na sala — defendi o fantasma de minha reputação.
— E daí?
— Queria que eu a jogasse em cima da mesa de jantar e enfiasse minha cabeça no meio
das pernas dela?
Antônia arregalou os olhos, engoliu em seco e precisou tirar a cerveja de minhas mãos
para tomar um pouco e se livrar da tosse nervosa.
— Você é travado demais para isso.
— Sou?
Eu não era. Ela não sabia de nada.
— É o que parece. — Deu de ombros, indiferente.
— Cariño, se eu quisesse, eu ficaria com qualquer mulher desse lugar.
Eu deveria ter percebido que ela não deixaria passar minha arrogância. Antônia riu,
como se eu estivesse falando a maior loucura de todas e deu mais uma golada em minha cerveja
antes de devolver a garrafa.
— Quer fazer algo divertido?
— Não.
— Você e eu... — Sua pausa fez um arrepio percorrer minha nuca. Aquilo não era boa
ideia. — Vamos sair pelo salão flertando com pessoas, quem conseguir mais números de
telefone, ganha.
— Ganha o quê?
— O desafio. Satisfação pessoal. Poder de jogar na cara um do outro.
— Quantos anos você tem? — debochei.
— Você é bonitinho, mas tem zero lábia, princesa.
Os dois tapinhas em meu ombro fizeram o monstro da masculinidade frágil ser acordado
dentro de mim.
— Antônia, você vai perder — alertei, porque era a realidade.
— Minha longa lista de ex-namorados discorda de você. Eu ganho fácil essa. — Ela
estava realmente achando divertido o desafio mais infantil que já tive conhecimento em anos. —
Espera! Você me chamou de cariño?
Franziu a testa, ainda processando aquela informação irrelevante.
— Foi irônico, cariño. — Mostrei meus dentes para ela, naquele misto de sorriso e
rosnado de cachorro.
— Que a sorte esteja com você!
Ela piscou e virou as costas, parecendo bem animada com aquela novidade. Nossa vida
estava mesmo um marasmo para que aquela idiotice pudesse animar alguém. Fiquei no mesmo
lugar olhando Antônia se aproximar de Teodoro, o dono do meu restaurante preferido da cidade.
Ela era terrível, mas eficiente. Fingiu tropeçar e foi auxiliada pelo homem. Senti uma pressão no
estômago ao vê-la cheia de sorrisos para o cara obviamente interessado e culpei o tédio.
Era tedioso ver Antônia flertando.
— É como ver um animal em sofrimento...
Fui distraído por Roma, que parou bem ao meu lado, olhando na mesma direção que eu.
Até que fazia sentido, era bem essa sensação mesmo ver Antônia naquela triste forma.
— O quê?
— Você olhando para ela dessa forma. — Aquela garota estava louca? — Chefe?
— O que foi, Roma?
— Eu ainda acho que vocês dariam certo. E olha que eu acho casais heteros sem sal,
molho e tempero.
Não pude dar a devida atenção para as baboseiras de Roma, porque Antônia entregou o
celular para Teodoro, olhando para mim por cima do ombro do homem. Aquele seu arzinho
vitorioso era irritante pra caralho.
— Você está demitida.
Achei de bom tom avisar Roma de sua nova situação de trabalho antes de sair de perto e
me certificar de que Antônia não ganharia aquela competição; ou o que aquela falta do que fazer
fosse.
Só queria me certificar de que ela não ganhasse.
Então, escolhi uma garota que eu não conhecia, possivelmente era alguma turista e me
aproximei.
— Nunca te vi por aqui. — Tentei soar despretensioso e divertido ao me aproximar da
mulher ruiva.
Ela me olhou de cima a baixo, o que foi rude. Seus olhos demonstraram interesse com
aquele brilho de luxúria. Essa brincadeira estava fácil demais.
— Não sou daqui e meu espanhol é péssimo, desculpe.
Ela estava certa, o espanhol era ruim mesmo.
Em um minuto eu sabia que ela se chamava Beatrice, era estudante de intercâmbio em
Buenos Aires e morava na Irlanda.
— Eu só tenho mais um dia aqui, podemos aproveitar, não acha?
— Claro, me dá o seu número.
Entreguei o celular para ela com o sorriso de quem sabia que ganharia de Antônia. Eu
não era travado, só não precisava expor tudo para os outros, igual a ela.
Beatrice foi dar uma volta e eu achei Antônia no bar, conversando com meu mecânico.
Ele fazia sucesso com as mulheres, mas poderia ter idade para ser pai de Antônia. Ela estava
começando a apelar.
Escolhi meu próximo alvo, bem ao lado de onde eles conversavam. Quando me
aproximei, senti novamente aquela pressão no estômago por ver que eles riam juntos.
Ainda falei com mais duas mulheres, só observando cada movimento que ela fazia. Não
parecia forçado, ela realmente se divertia. Aquela sensação foi ficando cada vez pior até chegar
ao ponto de ela passar ao meu lado e eu segurar os dois braços de Jasmin, forçando uma risada
histérica que não tinha nada a ver com o assunto. Ela falava sobre como estava difícil cuidar de
sua mãe enferma e ainda pegar vários plantões extra no hospital.
Antônia perdeu alguns segundos olhando para nós dois, mas logo seguiu seu caminho
rumo ao bar.
— Você está bem, Dante? — Jasmin perguntou com um ar de irritação.
Parei de rir no mesmo instante, recobrando a consciência.
— Desculpa, pensei em algo engraçado.
— Enquanto falava sobre minha mãe estar definhando com esclerose múltipla?
Espremi os lábios, desejei melhoras para sua mãe e caí fora dali, porque aquela
palhaçada já tinha passado dos limites. Fui para o bar pedir outra cerveja, observando Antônia
conversar animadamente com um cara que nunca tinha visto por ali.
Ela era tão irritante. Falava tanto que não deixava nem o homem falar sobre si, ainda
assim ele parecia apreciar cada segundo ao lado dela, porque Antônia tinha algo que encantava
naquela forma ligeira de falar, no sorriso fácil e na forma como parecia falar com as mãos.
Ela não fazia o menor esforço para ser assim e eu achava fascinante. Irritante.
Enquanto bebia minha cerveja em silêncio, observei cada detalhe de sua conversa com o
outro cara. Ele estava a fim dela, era nítido. E ela não parecia estar indiferente e levar como uma
brincadeira, pois em nenhum momento desviou os olhos para me procurar ou fazer qualquer
gracinha. Analisar cada detalhe daquela ceninha deplorável fez com que minha cabeça fosse
parar naquele restaurante em São Paulo, dez anos atrás. Ela com aquele mesmo vestido, o sorriso
entusiasmado e os olhos afetuosos.
Se fosse hoje, aquela noite seria diferente, tenho total certeza.
Antônia não precisaria mentir sobre quem é.
Eu não teria tanto medo do desconhecido.
Talvez, quem sabe, daria certo.
Pisquei, assustado pelo rumo que meus pensamentos tomaram e percebi certa
movimentação de Antônia. Ela estava saindo com o dito cujo, Deus sabia para onde. Ninguém
conhecia o cara, eu não conhecia o cara e minha memória era ótima, eu nunca esquecia um rosto.
Poderia ser um criminoso, sequestrador ou coisa pior.
Ela era insana? Perdeu o juízo dentro do copo da bebida?
Bufei, ignorando toda a parte do meu cérebro que gritava que Antônia era problema. Não
o mesmo tipo de problema de Gaia. Sim, o tipo que, mesmo lutando contra, sabemos que não
havia o que fazer, porque era o nosso tipo preferido. Daqueles que valia a pena insistir até o
final.
— Estou achando que algo estranho está acontecendo com as crianças... — falei sem
nem processar, segurando o pulso de Antônia.
Ela parou de andar e virou rapidamente em minha direção, todo o rastro de felicidade em
seu rosto desapareceu, restando só o mais profundo terror.
— Crianças? Você tem filhos? — O cara perguntou, alarmado, como se eu tivesse
acabado de gritar que ela era procurada em vinte e sete países por homicídios de idosos.
— São meus...
— Sim, tem. Dois. — Mostrei dois dedos para que ele entendesse bem e precisei ignorar
a olhada mortal que Antônia me deu.
— Preciso ir ao banheiro. — O babaca fugiu, assustado como um rato.
O que provava que eu estava certo e ele não era homem para ela. Antônia tinha um dedo
podre no quesito homens que beirava ao masoquismo.
Quando tomei coragem de olhar para a garota dos cabelos cor de chocolate, ela estava
com as mãos na cintura, seus orbes demonstravam o total e completo desprezo por minha pessoa.
— Qual é o seu problema?
— Você sabe quem ele é?
Cruzei os braços, pronto para iniciar uma discussão na qual já entrei pronto para perder.
Por que diabos tinha me metido na vida de Antônia?
— Não, mas é para isso que conhecemos as pessoas, certo? Eu poderia descobrir! — Sua
justificativa só mostrou que ela estava perdendo a cabeça.
— Ele é traficante da cidade. Matou a gangue rival e está jurado de morte por quem
sobrou.
Eu nem pisquei para despejar todo o enredo do filme que assisti ontem, antes de dormir.
Assistir era um termo forte, porque eu resisti vinte minutos antes de adormecer, dopado de
cansaço após a loucura que foi a rotina das crianças ontem de noite. Servimos purê de batatas
com carne e couve de Bruxelas.
Quem diria que um legume tão pequeno fosse capaz de fazer crianças chorarem tão alto
de completo pavor?
Antônia abriu e fechou a boca algumas vezes, parecendo selecionar as melhores palavras
e esquecendo como pronunciá-las.
— Ele disse que era contador.
— Todos dizem a mesma coisa.
— Alguém usa drogas nesse fim de mundo? Não parece ser um negócio muito rentável.
A forma como sua cabeça funcionava me assustada. Ao invés de estar assustada com
minha história, ela pensava em rentabilidade do tráfico de drogas em Mendoza.
— Todo mundo usa drogas.
— Você usa?
Rolei os olhos, cansado demais para continuar debatendo com aquela maluca.
— Eu tenho cara de quem usa drogas?
— Definitivamente, não. — Sua careta de desprezo foi tão convincente, que quase me
senti mal. — Você é a pessoa mais careta que conheço, não tem nem como.
— Ah, eu sou careta por ser um homem livre de vícios?
— Você é careta por ser chato, metódico, travado, com esse narizinho de pé e essas
camisas iguais.
Antônia contou nos dedos todos os meus defeitos. Aquilo deveria ser defeito? Porque,
para mim, eram qualidades.
— O que tem contra minhas camisas? São práticas, confortáveis e bonitas.
— Careta — provocou em um murmúrio.
— Eu já fumei maconha, sabia? Na época da escola.
— Uau, que rebelde! Ele não segue os demais.
Ela continha um sorriso da mesma forma que eu também continha. Não dava para negar
que nós gostávamos demais daquelas discussões bobas. Era a única forma que conseguíamos
conversar.
— Eu deveria me preocupar com você perto de meus sobrinhos?
Eu a segui em direção do bar, satisfeito em vê-la ir pelo caminho contrário do traficante;
ou o que quer que aquele coitado fosse.
— Se preocupar por conta de uma planta? — debochou.
— Vou te denunciar para o conselho tutelar — ameacei ao mesmo tempo em que sentava
no banco alto em frente ao balcão de madeira envernizada. — Já tomou fernet?
— Não, o que é? — Sentou-se ao meu lado, balançando as pernas que não chegavam
nem perto de tocar o chão.
— Uma bebida típica daqui.
— Está me convidando para tomar um drink com você, Dante? — Seu tom sedutor era
claramente para me provocar.
— É o seu dia de sorte, Milani.
Ela mostrou a língua em uma careta de desdém. Eu pedi dois drinks para German e
precisei conter as expectativas em vê-la dar o primeiro gole, pois não queria desestimulá-la.
Assim que tomou, Antônia precisou colocar a mão na boca, parecendo fazer muita força para não
cuspir tudo.
— Que merda é essa?
— O licor é um pouco forte, aí colocamos Coca-Cola e gelo para balancear. Bom, não é?
— É horrível!
Ri quando deu mais um gole, fazendo outra careta.
— Depois do terceiro copo melhora, acredite em mim.
— Parece que estou lambendo asfalto. — E lá se foi mais um gole. — Como se saiu com
suas pretendentes? — Ela quis saber.
Dei de ombros.
— O mesmo de sempre. Não preciso de uma aposta para conseguir o número de uma
mulher.
— Você é tão insuportável, Deus do céu. — Coçou o próprio rosto, como se estar em
minha presença lhe desse urticária. — Não sei como alguém cai na sua.
— Eu sou bom de papo.
— Você literalmente não abriu a boca para falar comigo no nosso primeiro encontro. Se
tem algo que você não foi, foi bom de papo.
Ela sempre parecia irritada quando tocava nesse assunto, só que dessa vez foi diferente.
Ela parecia achar divertido, como se fosse uma piada interna. Talvez fosse o álcool falando por
ela.
— Mas para te levar até lá eu fui, não fui?
Ela ficou calada, fazendo um gesto desdenhoso com a mão. Eu sabia que tinha ganhado
essa.
— Naquela época eu não era treinada contra babacas, só tinha dezoito anos.
— É mesmo? — Brinquei com o corpo embaçado de gelo, fazendo pequenos círculos
sob a camada translúcida. — Sabia que esse licor foi criado por um italiano, mas se popularizou
aqui na Argentina?
— Não. E daí? — Sua forma seca e descontraída me fez rir.
— Eu adoro a Itália. Você já foi para lá?
— Não, eu sempre fui dura. — Fez um bico e logo depois jogou a cabeça para a palma
de uma das mãos. — Mas queria ir.
— Para qual lugar?
— Já ouviu falar de Taormina? — Eu assenti, um dos locais mais mágicos que já visitei.
— Sou louca por aquela série White Lotus e virou meu sonho de vida conhecer esse lugar.
— Meus vinhos preferidos são da região da Sicília e Taormina é um dos lugares mais
bonitos que já conheci da Itália. Inclusive, fiquei no hotel em que foi gravada a série.
— Não acredito! — Ela era pura animação naquela altura do campeonato.
— Tenho fotos incríveis de lá. O pôr do sol é o mais lindo que já vi. Posso te mandar
algumas fotos para te inspirar.
— Nossa, sim! Quero ver.
— Qual o seu número mesmo? — Peguei meu celular despretensiosamente.
— Achei que você tivesse meu número. — Sua careta confusa durou dois segundos,
apenas o tempo de dar de ombros. — É 55...
Ela parou de falar no mesmo momento que eu exibi meu maior sorriso vitorioso. Antônia
ainda demorou dois segundos para entender o que tinha acontecido e quando entendeu, deu um
tapa em meu ombro.
— Filho da puta!
— É assim que acontece, Milani.
Ela corou, algo que nunca imaginei ver Antônia fazer. Ela não era do tipo pudica, então a
reação era sincera. Não consegui provocá-la mais do que isso, porque se fosse comigo, iria
querer morrer.
Para a nossa sorte a banda começou o show bem naquele instante, salvando Antônia de
sua vergonha e eu de toda aquela animação e felicidade esquisitas. De onde tinha vindo isso?
Será que já passei do limite com a bebida?
A Babilon, a banda dos garotos, não tocava meu tipo de música, mas era boa. Faziam
covers de bandas de rock alternativo, nacionais e estrangeiras. Foi só eles começarem com uma
música da Sonora para o público reagir com gritos, aplausos, assovios e todo tipo de algazarra
possível. Antônia, ao meu lado, gritava a música quase mais alto do que o vocalista.
— Eu amo essa — explicou com animação, pulando com a mão esticada e um coro alto
no refrão
— Estou vendo.
Antônia era leve. Não parecia ser o tipo de pessoa que se importava com o que as
pessoas diriam ou falariam dela. Não mais, ao menos. Depois das mentiras que contou sobre sua
própria aparência, eu acreditava que tivesse aprendido a lição. Ela sorria quando queria sorrir,
chorava quando queria chorar. Era bonito ver a vida pelos olhos de quem não tinha medo de
viver.
Os garotos tocaram uma autoral e mais alguns covers. Cantarolei baixinho The Wolf, do
Siames ― uma banda argentina que eu gostava ―, resmunguei ao ver o coro cafona que todos
faziam no refrão de Viva la Vida, do Coldplay, incluindo Antônia, que tinha até ligado a lanterna
do celular para apoiar a banda.
Quando eles começaram a cantar uma do Muse, minha banda preferida, sorri ao ver
Antônia esgoelando. Ela cantava muito mal, mas compensava com entusiasmo.

Our time is running out


And our time is running out
You can't push it underground
We can't stop it screaming out[1]

Nunca tinha prestado atenção na letra dessa música e na forma como condizia com o que
sentia naquele período da minha vida.
Eu tentava, enlouquecidamente, desde que me conhecia por gente, enterrar todos os
sentimentos que tinha, minhas vontades, meus desejos, por medo do desconhecido. Mas se havia
algo que aprendi nos últimos dois meses sem meu irmão e minha cunhada, foi que tempo não era
comprado e ele acabava em um piscar de olhos.
E o nosso tempo estava acabando.
Parei de cantar e virei para Antônia, observando-a com atenção. As ondas de seus
cabelos caindo pelas costas, a mania que tinha de bagunçar a franja toda hora, as unhas pintadas
de esmalte preto, o furinho que tinha no queixo e a curva acentuada que seu lábio superior fazia.
Cada detalhe que já conhecia, mas que hoje pareciam mais convidativos.
Minha boca secou quando ela me olhou, parando de cantar assim que percebeu o modo
estranho como eu agia ao seu lado. Exatamente da mesma forma naquele dia na adega. Quando
eu comecei a acreditar que não seria de todo mal dar voz aos meus desejos, só um pouco ruim,
porque éramos ruins um para o outro, éramos sinônimo de caos e ruína.
— O que foi? — perguntou, sua voz sem som.
— Antônia... — Minha voz saiu em um tom enrouquecido.
Não era habitual minha garganta estar seca dessa forma, pensei estar alucinando por
sentir meus dedos tremularem de leve. Eu estava nervoso por uma mulher. Isso deveria ter ficado
no passado, há anos não sentia esse temor e apreensão. Deveria ser só uma mulher, só uma
atração qualquer, mas era diferente, porque era Antônia.
— E-eu vou... Eu preciso ir... ali. — Ela vacilou, transparecendo o assombro em seus
olhos.
Em um segundo ela estava tão próxima que conseguia sentir o calor emanando de seu
corpo e no outro estava o vazio.
— Out time is running out. — O vocalista cabeludo da Babilon começou a cantar mais
uma vez o refrão.
Tempo.
Já tinha se passado tempo o suficiente.
Já tínhamos perdido tempo o suficiente.
Ela iria embora logo.
E eu continuaria para sempre pensando naquele maldito e se.
E se, pela primeira vez, eu não hesitasse?
Girei os calcanhares, caçando Antônia no meio de todas aquelas pessoas. Fui em direção
à saída, porque sabia que ela não foi para os banheiros, pois era do outro lado do salão. Ganhei a
brisa fresca da noite assim que saí e, ao olhar para o lado, lá estava ela, debruçada no peitoril do
pórtico em frente ao bar.
Respirei fundo, enchendo meu cérebro com tanto oxigênio que não deixaria margem para
nenhum pensamento me barrar.
— Já chega disso.
Eu senti seu sobressalto, pois minhas mãos já estavam em seu corpo. Girei-a para mim,
observando aqueles olhos castanhos recheados de temor.
— Dant...
Não deixei que escapasse por minhas mãos uma vez mais e, foi então que a beijei.
Sem perder mais nenhum tempo.
Já passei por situações realmente loucas na minha vida. Das mais esquisitas, às mais
gloriosas, mas nenhuma delas me preparou para o momento em que Dante Albizia levantaria
uma bandeira branca e acabaria com aquela distância entre nós.
Eu achava que seria com um abraço, um pedido de desculpas... Quem sabe, se ele
estivesse em um dia bom, teríamos uma conversa franca, colocando os pingos nos Is sobre nossa
não-relação.
Nunca imaginei que seria com um beijo, porque não fazia o menor sentido.
Dante e eu. Há! Parecia até uma piada pronta.
Mas seus dedos acariciando de leve minha nuca eram reais, a sensação de brasa que sua
língua espalhava pela minha era real, a forma como meu coração veio parar na garganta era ainda
mais real.
Dante e eu...
Dante e eu!
Quando caí em mim do que estava acontecendo, usei minhas mãos que estavam paradas
na lateral do meu corpo, flácidas, sem qualquer movimento assim como todo meu sistema
nervoso que parecia ter virado geleia, para empurrar Dante para longe de mim. Não foi um
empurrão fofo, foi forte, reunindo toda minha força para me afastar dele.
Dante piscou duas vezes, tentando realocar os pensamentos. Eu só conseguia pensar na
forma como sua boca me tocou. Não tinha nada de travado ali.
— Foi demais? — Dante testou, inseguro por minha reação.
Coçou a barba, olhando para mim por baixo dos cílios.
Eu deveria sentir tesão, mas a raiva estava borbulhando dentro de mim naquele segundo.
Dez anos! Dez anos em que aquele homem perturbou minha paz e foi um intruso em
meus pensamentos para decidir, diante da situação mais caótica de nossas vidas, que deveria me
beijar, porque não estávamos fazendo nada demais, certo?
Errado!
Ele não só me beijou, como provou que aquilo teria funcionado anos atrás. E isso me
dava ódio!
— Você é o maior babaca que eu conheço.
Dito isso, eu fiz a única coisa que poderia fazer. Enfiei meus dedos naqueles fios
dourados e o beijei mais uma vez, com raiva, com tesão, com expectativa. Tudo misturado. Tudo
o que ele merecia.
Dante não foi um cavalheiro, muito pelo contrário. Com um movimento firme, ele me
colocou sentada no guarda-corpo de madeira, enfiando o corpo entre minhas pernas. Eu senti a
rigidez de seu pau e aquele foi um lembrete de que era real. Não mais um sonho molhado fruto
de minha imaginação fértil, ele estava ali, onde eu desejei tanto que ele estivesse por um bom
tempo.
— Preciso que fale que isso é uma loucura e que nunca mais irá se repetir.
Ainda bem que não tinha perdido a cabeça.
— É uma loucura e isso nunca mais vai se repetir.
Dois segundos depois, sua boca estava na minha mais uma vez.
— Peça que eu pare. — Sua boca estava em meu pescoço, sugando, lambendo.
Senti que me deixaria marcada, mas... Sinceramente? Eu amaria.
— Você deveria parar, Dante.
Não tinha um pingo de verdade em minha sugestão. Como prova, minha mão que estava
em seu braço, escorregou para a parte frontal de sua calça.
O que eu tinha a perder?
No final desse dia, ainda seriamos nós mesmos, continuaríamos nos detestando e tendo
todo aquele histórico nos perseguindo.
Ele estava duro.
E era grande.
Escutei seu grunhido, o ar quente em meu cabelo.
— Precisamos sair daqui.
Dante puxou meu lábio inferior com os dentes, doeu, mas eu gostei. Deveria imaginar
que ele não tinha nada de delicado. E precisava confessar o quanto essa ideia me excitava.
— Se formos para qualquer lugar, eu vou pensar direito e desistir.
O que poderia ser verdade, embora duvidasse.
Seus dedos se engancharam aos meus e fui obrigada a segui-lo pela escuridão que
cercava o estacionamento. Era um campo escuro, cercado por árvores.
Eu deveria pensar melhor sobre o fato de estar indo para o cenário perfeito de um
homicídio com um cara que não me suportava, mas o tesão falava mais alto.
Pensar com a boceta é uma merda.
Fui prensada contra a lataria da picape, sendo beijada de uma forma tão faminta, que
ousaria dizer que nunca experimentei. Ele tinha pegada, era quente, uma delícia. Uma surpresa
vinda do homem que apertava a mão da própria namorada.
Segurando minha nuca com as duas mãos ele afastou a boca apenas para me olhar uma
vez mais, parecia que não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo.
Não julgaria, porque eu estava na mesma.
— Você é minha maldita sina, Milani. — Seu polegar escorregou por meu maxilar,
pairando sobre minha boca. — A mais linda de todas.
Sorri, satisfeita por saber que o tanto que aquele homem mexia comigo e fodia minha
cabeça, eu também fazia com ele.
Poderia fazer muito mais do que isso.
Eu poderia transformar essa sina em algo inesquecível.
E daria o que aquele babaca merecia.
Troquei de posição com ele, colocando-o de costas na lataria. Espiei por cima do seu
ombro só para garantir que ninguém estava por ali. A festa rolava solta dentro do bar, só nós
estávamos ali e ainda do lado do motorista, mesmo que alguém aparecesse, só veria as costas de
Dante.
— Eu só te dei o meu lado ruim até aqui, é uma parte divertida, mas a parte boa... —
sussurrei contra sua boca. — Eu acho que você vai adorar.
Deslizei a mão por seu abdômen, infiltrando meus dedos na barriga quente, lisa e rígida.
Aquele filho da puta tinha gomos na barriga. Um golpe extremamente baixo.
Arranhei sua pele, mas não demorei a cair de joelhos. Ele arfou, mas observou,
fascinado, eu abrir o botão de seus jeans e abaixar o zíper.
Esperei tanto tempo por aquele maldito, que juro por Deus que o faria nunca mais se
esquecer desse dia.
Segurei o cós e deslizei por suas coxas, observando a boxer preta que apertava suas
coxas e na frente formava um volume com muito potencial. Lambi todo aquele inchaço coberto
pelo pedaço de pano.
Foi Dante quem libertou seu pau e ali entendi o motivo dele ser tão babaca e prepotente.
Era o pau.
Se fosse homem, bonito, gostoso e tivesse um pau desses, eu também seria insuportável.
O tamanho já era avantajado, mas a grossura era o ponto alto. Era o tipo de pau que
poderia fazer um estrago, ainda assim eu estaria agradecida.
Sem usar as mãos, totalmente entregue, voltei a colocar a língua para fora, saboreando
cada centímetro de sua pele cheirosa e lotada de veias. Eu o provocava, lambendo devagar, sem
qualquer pressa.
— Ver você de joelhos, lambendo o meu pau... Ah, Antônia, isso não tem preço.
Ele fez um carinho em minha cabeça, tratando-me como uma cachorrinha.
— Aproveite, é a primeira e última vez que isso acontecerá. Espero que sua memória
seja boa.
Sem mais avisos, eu o engoli, chupando-o com vontade, subindo e descendo. Meus olhos
estavam nos seus, assistindo todo aquele controle sair de seu corpo e restar só um homem
gostoso para caralho entregue às sensações.
Eu fazia isso com ele.
Eu queria levá-lo ao limite.
— Maldita — xingou com o maxilar cerrado. — Você é uma maldita, garota.
Deslizei a língua para suas bolas, masturbando-o enquanto ele gemia meu nome em
múrmuros excitantes. Seus dedos estavam em meu cabelo, puxando sem piedade.
Segurei-o pela base, aproximando do meu rosto novamente.
— Eu vou voltar a te chupar e quero sentir o seu gosto. Goza na minha boca?
— Porra, Antônia!
Cada vez que esse homem pensasse em mim, eu queria que se lembrasse de todas as
chances que teve de fazer a coisa certa, mas preferiu agir como o belo babaca que era.
Não demorou para que me desse o que eu queria.
Vê-lo perder o fôlego e todas as palavras pelo prazer se tornou o meu momento favorito
com Dante.
Apenas quando ele afrouxou o aperto em meu cabelo afastei a boca, limpando o canto
dos lábios depois de levantar do chão.
Escutamos algumas vozes ao longe. Um grupo saía do bar e vinha em direção ao
estacionamento.
Aquele momento, se eu fosse esperta, seria a deixa perfeita para escapar da situação
caótica que criei por livre e espontânea vontade. Porém, quando Dante destravou a picape e me
enfiou no banco traseiro, só consegui ficar animada e ainda mais excitada.
Eu, no que julgo ser um lapso de caráter, o puxei para mim e beijei sua boca mais uma
vez e mais outra e mais uma. Ainda seria pouco para tanto tempo de espera.
Suas mãos puxaram meu quadril e fui parar em cima dele. O pau, ainda amolecido pelo
orgasmo, dava indícios de que queria mais.
— Todas as coisas que quis fazer com você... — murmurou contra meu pescoço.
Senti quando puxou a pele em seus lábios. Sabia que ficaria com uma marca amanhã e
tudo bem por mim, seria uma prova dia em que enlouqueci de vez.
Esfreguei minha pelve em seu pau, querendo senti-lo, querendo mais dele.
— Todas as coisas que desejei que você fizesse comigo... — repeti sua frase em um tom
aveludado contra sua orelha, onde segundos depois, deixei uma mordida.
Dedos ágeis soltaram a alça da frente única, o que foi um indício de que ele talvez
tivesse passado tempo demais olhando para esse vestido, pois a facilidade com que desabotoou
os dois botões foi assustadora.
O tecido caiu por minha cintura e com a mesma habilidade com os botões, ele se livrou
do tomara-que-caia preto que usava por debaixo da roupa.
O rosto de Dante se iluminou ao ver meus peitos, o que acabou também por dar uma
confiança a mais em mim. Tinha uma insegurança enorme com meus peitos, achava-os grandes e
pesados demais e qualquer grama a mais que engordava ia para eles e para as coxas. Era um
inferno.
Dante ainda era minha maior fraqueza, por toda a questão da rejeição e das minhas
mentiras sobre a aparência. Eu queria que ele me desejasse ao mesmo tempo em que tinha
vontade de me esconder debaixo de uma cama, como uma criança assustada.
Dante era... Dante.
Porém, a forma como suas mãos encaixaram nos meus peitos, parecendo que foram
moldados para ele, secou a minha garganta. Ele os movimentou, testando, apertando.
— Perfeita. — Seus lábios deixaram um beijo inocente demais em meu colo. — Você é
um sonho perfeito, Milani. — Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum. Meu coração era um fraco. — Um
sonho que eu não vejo a hora de poder foder.
Sorri, as expectativas já criando moraria permanente na minha cabeça.
Sua língua tocou um mamilo, um toque suave, que aos poucos foi substituído pela
sucção mais intensa. Entreguei meu corpo em suas mãos, deixando espaço apenas para o prazer
que percorria cada átomo do meu corpo.
Ele foi para o outro seio, repetindo todo o processo enquanto seus dedos trabalhavam no
mamilo livre.
Nunca fui de sentir prazer nos peitos, mas ele sabia o que fazer.
Esse maldito sabia muito bem o que fazer.
— Dante... — gemi seu nome.
— Fala de novo — ordenou. — Geme o meu nome.
— Isso também era um sonho? — provoquei.
Ele sorriu e dois dedos seguraram minhas bochechas, eu tentei sorrir também, mas o
aperto se intensificou até receber um tapa bem ali.
Puta merda!
Dante era desses.
Ele mordeu meu peito, o que fez com que eu gemesse seu nome, como a boa garota
obediente que era.
— Ver você assim, gemendo como uma puta por mim? Ah, cariño, era o maior deles.
Esse homem era inacreditável.
Bastou voltar a lamber meu mamilo e eu esfregar minha calcinha molhada em seu pau
que já estava duro novamente, pronto para mim, que me entreguei ao prazer pela primeira vez
naquela noite. Empinei o seio contra sua boca, querendo que aquela sensação nunca acabasse. Eu
poderia viver e morrer ali.
Quando ele se afastou, eu já senti sua falta. Queria Dante por inteiro. Queria tudo e mais
um pouco.
— Nem enfiei meu pau em você e já gozou? — debochou. — Para alguém que me
detesta tanto, deveria ter um pouco mais de força de vontade.
— Você não é tão repugnante quando usa a boca para outras coisas que não seja falar
merda.
Ele riu, seus dedos traiçoeiros subindo a saia do vestido. Quando percebeu a calcinha de
renda toda trabalhada, uma peça delicada que nunca imaginei que seria vista por aqueles olhos
verdes, ele mordeu os lábios.
Até imaginei que poderia acabar ficando com alguém hoje, só não com Dante. Isso
estava na minha lista de coisas impossíveis de acontecer.
Seu indicador deslizou por minha boceta coberta pelo tecido, o simples toque fez com
que aquela corrente elétrica fosse ligada mais uma vez.
— Tão molhada... — O indicador subiu até o nosso campo de visão. Sua pele estava
molhada, encharcada por minha excitação que em um só gesto foi parar em sua boca. — O
melhor sabor de todos. — Sorriu. — Eu preciso te foder. Posso?
— Por favor...
Mais um sorriso com minha resposta desesperada.
Dante ergueu o tronco para pegar o preservativo na carteira e eu fiz menção de me
despir, mas fui barrada por sua mão.
— Nem pense nisso. Quero você com esse vestido.
Esse vestido finalmente teria o fim que merece.
Dante afastou minha calcinha para o lado, segurou-me pela bunda e encaixou a cabeça de
seu pau em minha entrada. Subestimei sua grossura, porque conforme fui deslizando sobre ele, a
ardência foi incômoda.
— Porra, Antônia — xingou contra meu pescoço.
Quando ele estava todo dentro, paramos por alguns segundos, olhando um para o outro.
Eu estava transando com Dante Albizia, aquilo realmente estava acontecendo.
Foi ali que prometi que daria tudo de mim para aquele homem nunca mais esquecer esse
dia.
Apoiei os pés no banco de couro e comecei a cavalgar sobre ele, aproveitando toda sua
extensão para ondular e deslizar. Foi a vez dele de gemer e xingar meu nome. Eu o beijei com
força, repuxando seu lábio inferior com os dentes. A energia ficou mais intensa, nossos
movimentos mais fortes.
Nunca fui tão preenchida assim.
Nunca senti que queria dar e tomar tudo de alguém.
Comecei a suar, ele também. O contato ficou ainda mais íntimo, ainda mais rude. Tomei
mais um tapa no rosto, recebendo-o com um sorriso e soube que gozaria em breve quando seus
dedos apertaram meu pescoço, ditando o ritmo feroz da transa.
Dante assumiu o controle, esmagando minha bunda em seus dedos, forçando nossas
pelves até o limite.
Era bruto.
Era cru.
Era tudo o que eu mais queria dele.
O carro estava abafado, nossos corpos suados, a movimentação intensa não deixava
dúvidas do que fazíamos caso alguém passasse por ali, mas eu não me importava.
— Vem comigo, cariño?
Ele não precisou pedir novamente.
Seu nome foi repetido dezenas de vezes enquanto caía naquele penhasco abrasador. Se
gozar com sua boca em meus peitos era o céu, gozar com ele preenchendo tudo de mim era o
inferno. Quente, intenso; uma desordem.
Foi assim que me senti naqueles minutos em que estávamos respirando com dificuldade,
eu ainda em cima dele, suas mãos fazendo um carinho em minhas costas.
Eu nunca mais estaria em ordem depois daquela noite.
Voltar para casa depois de tudo aquilo foi uma situação constrangedora. Fomos o
caminho todo em silêncio. Eu começava a me arrepender, porque, como poderia haver
normalidade depois de algo assim?
Dei graças a Deus quando chegamos à casa e pude respirar fundo.
Eu daria um jeito de arrumar o que ele tinha bagunçado em mim.
Foi algo esporádico, para aliviar a tensão, nunca mais aconteceria.
As crianças já dormiam com Eugenia no quarto, a casa estava silenciosa e nós ainda
mais.
Parei em frente à porta do meu quarto e Dante também parou. Segurou a nuca e respirou
fundo, parecendo fazer um esforço para elaborar algo e sair daquela situação incômoda.
Se ele estava preocupado em agir como um babaca e desiludir meu coração como fazia
com as outras com que ficava, podia seguir em frente. Entrei nessa com os limites muito bem
definidos.
— Hoje foi... — ele começou, mas não conseguiu continuar.
— Foi legal.
Foi mais do que isso, mas era o que ele precisava reter de informação.
Coloquei a mão na maçaneta, pronta para entrar no quarto e finalizar aquela noite, mas
cometi o terrível erro de olhar para aqueles olhos verdes.
Eles me quebravam.
Eles não mentiam.
Dante deu um passo. Eu dei um passo. Nossas bocas estavam grudadas no segundo
seguinte.
— Hoje ainda é hoje. Não estaríamos desrespeitando as regras — ele sugeriu.
Eu sabia que já tinha passado da meia-noite, mas se eu não tinha dormido, ainda era hoje,
certo?
— Só mais uma vez, entendeu? E acaba aqui.
Dante não respondeu, apenas segurou meu quadril, abriu a porta do quarto e a fechou
com um pontapé.
Só mais uma vez e fim.
A mentira mais deliciosa que já contei.
“Titi?”
A voz de Cecília invadiu meu sono. Por que ela estava em meus sonhos? E por que eu
tinha bebido tanto?
Eu nem tinha aberto os olhos, nem sequer pensado em levantar da cama e minha cabeça
já latejava.
“Titi, abre os olhos!”
Cuidar de crianças era isso? Não ter mais nem mais em seus próprios sonhos?
— Antônia, acorda! — Não era mais a voz suave de Ceci, sim, de Dante.
Dante!
Despertei assustada e a primeira coisa que vi em meu dia foi o rosto redondo de Cecília
próximo demais do meu. Precisei conter um grito com minha mão, porque não queria assustar a
criança e piorar ainda mais minha cabeça latejando.
— Por que o tio Dan está dormindo na sua cama?
Virei o pescoço para me certificar de que não era uma paralisia do sono ou algo parecido.
E não era. Dante estava ali, com a coberta puxada até o pescoço, porque eu sabia muito bem que
não existia uma unidade de roupa naquele corpo malhado dele.
Custava alguma coisa ele ter levantado pela manhã e vazado do meu quarto? O que seu
pau tinha de eficiente, sua cabeça deixava a desejar.
A noite foi impecável, mas não era por isso que deveríamos dormir juntos como um
casalzinho de adolescentes. O sexo poderia valer a pena, mas não apagaria todo a antipatia que
nutria por esse homem.
— Barata — disse a primeira coisa que passou na minha cabeça, o que não fazia o menor
sentido. — Tinha uma barata no meu quarto ontem, seu tio me ajudou com ela. E ficou me
protegendo para que ela não voltasse.
Não sabia de onde tinha vindo essa, mas dizer tantas palavras assim fez minha cabeça
latejar ainda mais.
— É só um bichinho, titi — consolou-me.
— Que tal você descer para a cozinha? Vou fazer seu café da manhã. — Dante foi
esperto.
Muito mais do que eu, confesso.
— A Eugenia já me deu.
— E onde ela está? — A voz de Dante quando acordava deveria ser considerada
patrimônio da UNESCO; arrepiava minha nuca e acumulava energia em pontos onde eu gostaria
que ele tocasse mais uma vez.
— Com o homem sem cabelo.
— Quem? — Eu fiquei confusa.
Que homem sem cabelo? Não tinha nenhum homem sem cabelo nessa casa.
— O seu papai.
Cecília saiu correndo do quarto, saltitando em suas pantufas de unicórnio. Meu coração
sofreu um golpe seco, talvez pelo susto, talvez pelo medo. Torci o pescoço, querendo olhar
Dante, mas ele já estava de pé, passando as pernas pela calça.
— Dante — chamei, a voz falhando pela apreensão.
— Se vista, por favor!
Obedeci, sem questionamentos. Peguei o primeiro jeans e camiseta que vi na frente, sem
conseguir nem sentir receio ou vergonha por estar andando pelada na frente de Dante. Era para
ser um rolinho de uma noite só, isso não configurava acordar descabelada, com bafo, vestir-me
em sua frente e enganar a nossa sobrinha sobre o fato de termos dormido juntos.
Prendi o cabelo em um coque enquanto descíamos em passos apressados a escada e parei
no penúltimo degrau, terminando de dar a última volta do meu cabelo, ao ver o homem sentado
no sofá da sala de estar. Ele era bem-vestido, um porte atlético que lembrava o de Dante, mas já
com a idade pesando em seu rosto. Sua cabeça era brilhosa, sem cabelos, mas com uma farta
sobrancelha dourada, que tinha o mesmo formato da de Gregório. Ao seu lado no sofá, uma
jovem que parecia ser bem mais nova do que eu, estava sentada com uma postura impecável.
— O que você está fazendo aqui? — Dante vociferou.
Eu já tinha o visto bravo, principalmente comigo. Já tinha tido inúmeras discussões com
ele, já o irritei e chateei mais vezes do que seria capaz de contar, mas nunca recebi aquele tom de
voz carregando de desprezo e raiva.
— Ora, ora. Essa é a minha casa, tenho de avisar quando venho visitar o meu filho?
Cacei na minha memória o nome do homem, mas não recordava. Vi uma foto dele uma
vez na casa de Gregório e tudo o que sabia era o que Dante me contou quando conversávamos
virtualmente, o que foi bem pouco. O pai não era presente, tinha arrumado uma nova mulher
apenas quinze dias depois da morte da mãe. Vitória também me contou sobre a relação delicada
que os irmãos tinham com o próprio pai, que era um homem ambicioso e nada presente na vida
deles.
— Essa casa não é sua — Dante disse entredentes.
Sua mão chamou minha atenção, a forma como os dedos tremulavam. Por um segundo,
senti vontade de cobrir sua mão com a minha, mostrando que eu estava ali, que mesmo que o
homem que deveria ser capaz de amá-lo incondicionalmente o fizesse se sentir inseguro daquela
forma, ainda existia pessoas que queriam vê-lo bem.
— Achei que fosse encontrar uma versão melhor do Dante, um que dá valor para a
família, depois de tudo o que aconteceu.
Dante deu alguns passos para frente e eu fui atrás dele, como um imã. Ganhei a atenção
do homem mais velho, recebendo uma olhada intimidante.
— O que você quer? — perguntou, ignorando a provocação do pai.
— Ver como meu filho e meus netos estão. Infelizmente não pude estar presente depois
dessa tragédia que assolou nossa família.
Não havia qualquer traço de emoção em sua voz, por mais que ele tentasse fingir.
— Não existe desculpa para não estar presente no velório do próprio filho. — Meu
pensamento saiu alto, mas não houve qualquer arrependimento.
Ganhei tanto a atenção de Dante quanto a do homem, que até levantou do sofá. Seus
olhos tinham um brilho esquisito, algo que acuava e ligava todos meus alertas.
— Você quem é? — O senhor se aproximou ainda mais.
Senti os dedos de Dante segurarem meu pulso, seu toque me assustou, mas foi
estranhamente protetivo.
— Antônia Milani. Irmã da esposa do seu filho.
— Ah, Antônia Milani! — Um sorriso passou por aquele rosto estranhamente familiar,
mas que, ainda assim, era tão diferente do de Gregório e Dante. Era como se todas as emoções
verdadeiras tivessem sido roubadas daquele homem. — A famosa tia de meus netos.
Continuei calada, apenas o encarando. Se Dante, Gregório e Vitória tinham qualquer
problema que fosse com aquele homem, então, automaticamente, eu também tinha.
Ele limpou a garganta e esticou a mão.
— David Torres. — Ele se apresentou de forma pomposa. Assenti, mas não estiquei
minha mão para ele. — Essa é Emily Fariz, minha esposa.
Senti os dedos de Dante retesarem contra meu pulso.
— Você se casou novamente? — Dante era pura descrença.
— Foi por isso que não conseguimos vir para o velório do seu irmão. Estávamos em lua
de mel pelo Oriente Médio. — A tal Emily chegou até nós com um sorriso gracioso, como se
falasse sobre algo comum, não sobre a morte de alguém.
— Quantos anos você tem? — Dante soltou de imediato.
Eu olhei a mulher com mais atenção, ela era realmente muito nova e muito bonita
também com cabelos escuros escorridos pelas costas e um corpo escultural marcando em seu
vestido vermelho.
— Vinte e dois. Por esse motivo, acho melhor você não me chamar de mamãe. — Ela
fez graça, mas apenas David riu.
Dante soltou o ar pelo nariz. Não era preciso ser um gênio para saber que estava furioso.
Se eu, que não tinha nada a ver com o assunto, também estava, imagine ele.
Eu chutaria, com muita esperança, pelo menos uns quarenta anos de diferença daquele
casal ali, o que era nojento.
— Eu não ousaria — resmungou, mal-humorado. Sua atenção voltou a ser para o pai. —
O que você quer aqui, de verdade?
— Ver se meus netos estão sendo bem-cuidados.
Agora fui eu quem ficou irada com aquele homem. Em todos esses anos ele nunca
conheceu os netos, eu estava lá para ter a certeza de que nunca apareceu em um aniversário,
Natal ou qualquer outro evento. E agora queria saber se os netos estavam sendo bem-cuidados?
Falando naquele tom, como se Dante e eu não fizéssemos ideia do que estamos fazendo?
— É claro que estão. — Precisei me meter na conversa mais uma vez, porque David
estava me tirando do sério.
Dante que me perdoasse por minha intromissão, mas não conseguiria ficar calada com
aquele homem que nunca ajudou Gregório e Vitória em nada com as crianças.
— Por um homem que não sabe cuidar sozinho nem de uma planta? Que não consegue
ter um relacionamento sério com ninguém e já teve tantos problemas de controle de raiva? —
Tanto os olhos de David quanto os meus foram parar em Dante. Que papo era aquele agora? —
E a senhorita? Soube que não para em emprego algum, tem milhares de reais em dívidas e se não
estou enganado, não foi você que ficou com o meu filho antes de ele namorar sua irmã?
Precisei de muita força de vontade para não voar na cara desse homem. Cinco minutos
ao seu lado e já era a pessoa que eu mais desprezava nesse planeta. Como Dante e Gregório o
suportaram a vida toda?
— O que você quer, David? — Dante perguntou mais uma vez.
Seu músculo do maxilar pulsava a medida que seus dentes eram cada vez mais apertados
uns contra os outros.
— Somente o melhor para aquelas duas crianças e tenho certeza de que o melhor para
elas, não são vocês.
Meu nível de raiva ultrapassou qualquer parâmetro e avancei em cima do homem, sendo
barrada pela mão forte de Dante em meu punho, colocando-me novamente ao seu lado.
— Nós somos os padrinhos, as pessoas que mais conviveram com eles todos esses anos.
E, você? Onde esteve? — perguntei, irada.
— Não é porque são padrinhos que são os mais indicados a terem a guarda dessas
crianças. Inclusive, dei uma pesquisada e descobri que você não quis a tutela deles, certo? Que
maldade com crianças tão indefesas, senhorita.
Como ele sabia todas aquelas coisas sobre mim? Comecei e hiperventilar, sentindo-me
sufocada por aquele homem. Eu não sabia o que ele realmente queria, mas tinha certeza de que
objetivos não eram bons. Não para as crianças, pelo menos.
— A irmã dela tinha acabado de morrer, ela não sabia o que fazer — Dante interveio em
minha defesa.
— Mas você sabia, não é? Sempre tão responsável, o meu garoto. — David tentou tocar
no rosto de Dante, recebendo uma esquiva rápida do filho. — Eu vou ajudar vocês com essa
responsabilidade. Meu filho iria querer isso.
— Você não ouse tocar no nome do Gregório — Dante advertiu, soando mais ameaçador
do que achei que fosse capaz. — Você nunca foi pai para nenhum de nós dois. Ele, até o último
suspiro, teve dúvidas sobre ser um bom pai, simplesmente porque você foi o pior exemplo de
todos. Você realmente acredita que ele iria querer ver os filhos dele passando tudo o que nós
passamos na sua mão?
— Posso te indicar uma terapeuta muito boa. Ajudou muito com minhas questões. Sabia
que superar o passado é essencial?
David falava sério. O pior de tudo era que falava sério. Dava para sacar que ele era do
tipo de pessoa que acreditava na própria mentira e a tomava como verdade.
Dante não se alteraria por pouca coisa, ainda mais ele que era tão contido com emoções e
sentimentos.
— Saia da minha casa. — Ele perdeu a paciência, o que achei uma dádiva, porque mais
um pouco seria eu quem mandaria aquele lunático embora.
— Eu ainda não terminei de falar sobre as crianças — David argumentou, com o dedo
indicador em riste. — Emily e eu conversamos e decidimos que a melhor escolha para o futuro
deles seria serem criados por um casal maduro, que se ama e pode dar um lar para eles.
Eu precisei gargalhar, nem era por nervoso, foi porque realmente achei engraçado o quão
louco aquele senhor era para achar que ele criaria os meus sobrinhos.
— O maduro que o senhor se refere é a você, não é? Porque ela mal saiu da escola —
caçoei, perdendo qualquer manejo sobre os bons modos.
— Desculpe, não entendo o que você fala, o seu sotaque é péssimo. — A tal Emily
resolveu se pronunciar e novamente precisei ser contida por Dante.
— Você só pode estar brincando conosco. — Dante deu um meio-riso, coçando a sombra
escura da barba que horas antes estava entre minhas pernas.
O arrepio pela lembrança foi indesejado, porque agora não era hora para isso. Na
realidade, nunca mais seria hora para isso.
— Estamos em contato com o advogado de Gregório, ele se mostrou entusiasmado com
a ideia, afinal, estamos buscando o melhor para as crianças, certo? Vocês são jovens demais para
assumir um compromisso tão sério com tantas limitações que vem enfrentando. Nós somos a
melhor opção para Cecília e Milo, somos um casal, recém-casados, saudáveis e afoitos com a
ideia de criar uma família.
Dante balançou a cabeça algumas vezes. Ele parecia fora de si, como se tivesse perdido
qualquer capacidade de argumentação. Eu, pelo contrário, estava afoita para argumentar na cara
daquele velho. Uma família? Ele não soube cuidar nem da família dele. Estava para nascer a
pessoa que tiraria meus sobrinhos de mim e de Dante. Nós estávamos lá no nascimento, nas
doenças, nos aniversários, Natais, apresentações e qualquer momento em que eles precisassem
de nós. Se fosse para brigar pela guarda com alguém, seria com Dante. Ninguém tiraria as
crianças de nós.
— O problema é ser um casal? Porque nós também somos.
Eu, possivelmente, deveria ter pensado melhor, ainda mais quando vi o olhar incrédulo
de Dante. Foda-se! Era pelas crianças. Eu caminharia pela lava por eles.
David e Emily se entreolharam com um arzinho de riso insuportável.
— Vocês? Um casal? — questionou o senhor. — Desde quando?
Dante estava mudo, sem qualquer serventia para lidar com a mentira.
— Um pouco antes do acidente — menti sem nem piscar.
Eu fiz teatro por muitos anos, poderia fazer aquilo com os pés nas costas.
David estalou a língua, dando pouca importância à nova informação.
— Conheço meu filho, sei que ele não será capaz de manter um relacionamento
duradouro. Sinto muito por você, querida. — Ele não parecia nem um pouco chateado com isso.
— E quem sofrerá serão as crianças e isso eu não posso permitir. Entrarei com o pedido da
guarda definitiva o quanto antes.
— Isso tudo é pelo dinheiro, não? — perguntou Dante. David assumiu uma postura
empertigada, mas seus olhos não mentiam. — Nada é suficiente para você quando pode ter tudo.
Qual o seu próximo passo? Me matar para conseguir todo o dinheiro da minha mãe?
Abaixei os olhos, ciente de que escutava coisas pessoais demais da vida de Dante. Senti
como se estivesse espiando atrás da porta uma conversa que eu não deveria escutar.
— O dinheiro também é meu, fomos casados por muito tempo.
— Foram casados? — repetiu, debochado. — Era isso que você acreditava enquanto a
agredia? Quando gritava com ela nos jantares? Quando a traía? Quando acabava com a família
que você deveria ser capaz de proteger? — Suas perguntas eram recheadas de dor e eu senti meu
coração quebrar ao escutar tudo aquilo. Dava para imaginar que a infância dele foi uma merda,
mas não nesse nível de dor e traumas. — Você não quer a família, você quer o dinheiro que vem
junto das crianças. E eu não vou deixar você acabar com a vida deles, como acabou com a minha
e do Gregório.
David não pareceu 1% abalado por Dante, só mais determinado em estragar nossas vidas.
— É uma pena termos de levar isso a um tribunal. Quem sofre são eles. — Deu de
ombros, lamentando.
— Some da minha casa. Agora!
Seu grito ecoou pela sala, mas nem por um segundo me assustou, porque tinha plena
consciência que a partir daquele momento, éramos Dante e eu contra eles. Meus dedos
escorregaram para os seus, sendo levemente surpreendida quando partiu dele entrelaçá-los. Olhei
para ele, a imensidão verde me olhava de volta, aquela energia magnética de ontem a noite ainda
estava ali.
— Meu advogado entrará em contato com vocês.
Aquela foi a última coisa que David falou antes de sair da casa com a esposa. A energia
que eles deixaram foi pesada, o ar era tão espesso que poderia cortá-lo com uma faca. Dante fez
questão de ir trancar a porta da frente e, quando retornou, eu estava encostada em uma poltrona,
olhando meus próprios pés descalços. Ontem tive a noite mais doida de toda minha vida, delirei
de prazer nos braços daquele homem e agora estávamos ali, naquela situação de merda.
Como tudo tinha desandado tão rápido assim?
— Desculpa por falar que éramos um casal, eu não pensei direito. — Minha voz era um
fiapo.
Onde eu estava com a cabeça? David me deixou nervosa com todo aquele papo sobre
casal, recém-casados, como se Dante e eu não fôssemos suficientes por ser quem éramos.
Senti a quentura de Dante ao meu lado, seu braço roçando no meu.
— Aquilo foi brilhante, na verdade. — Minha surpresa ficou evidente em minha cara. —
Obrigado por ter tentado algo. Eu... Eu me sinto um garoto bobo quando ele está por perto. Não
consigo pensar direito.
Sua confissão me pegou desprevenida, porque era sincera. Ver Dante confortável para
expor seus segredos e temores para mim ainda era algo que assustava. Durante tanto tempo eu
quis ser a escolhida, a pessoa certa para ele, eu o desejei da forma mais verdadeira possível e
tudo o que ele me deu foi um grande muro entre nós dois. Depois de tantos anos, ver além desse
muro era confuso.
— Sinto muito por tudo o que tenha passado. — Suspirei, colocando minha mão em
cima da dele.
— Todo mundo tem problemas.
Dante respirou fundo. Sua raiva parecia ter virado pesar em questão de minutos.
— Mas não deixa de ser injusto. — Seus dedos, mais uma vez, se entrelaçam aos meus.
Parecia bobo, mas aquele simples gesto foi capaz de fazer meu coração bater mais rápido. — O
que vamos fazer agora?
— Bem... — Ele estremeceu, uma atitude que me causou estranheza. — Agora a gente se
casa, cariño.
Aquele dia foi um pesadelo.
Não gostaria de ser escrota e culpabilizar Dante por tudo, mas meio que ele era culpado
por tudo.
Culpado por ter topado ir àquele bar.
Culpado pela forma como me olhou ontem.
Culpado pela forma como fez que aquele beijo culminasse naquela noite doida.
Culpado por ter um pai que mais parecia um vilão de novela mexicana.
E mais do que tudo isso, ele era o culpado por ter alugado um triplex na minha mente.
Como assim iríamos nos casar? Falando dessa forma simples e fácil? Ele podia mandar bem na
cama, fazer com que eu visse estrelas, constelações e tudo mais, mas eu ainda o detestava.
Eu era uma romântica, mesmo com a minha maldição e dedo podre, sonhava com o
momento que encontraria alguém que fosse para a vida toda, aquele amor leve e bonito, que
fizesse tudo valer a pena. Alguém que decidisse ficar, que me amasse por eu ser quem era. Dessa
forma que imaginava um casamento, não uma formalidade para evitar uma desgraça ainda maior.
Não era assim que as coisas funcionavam.
Remoei durante todo aquele sábado aquela frase assustadora de Dante, sem poder nem
perguntar o que estava passando em sua cabeça, porque Eugenia entrou na sala naquele mesmo
momento, dizendo que as crianças já estavam alimentadas e ela pronta para partir.
A partir dali, precisamos entreter os dois e gastar toda aquela energia acumulada. Milo
estava ensaiando seus primeiros passos e eu o guiava pela grama, segurando as pontas de seus
dedos para que as perninhas bambas trabalhassem melhor. Ele era tão lindo, tão risonho, tão
especial. Pensar que algo ou alguém pudesse lhe fazer mal apertou tanto meu coração que fiquei
ainda mais angustiada do que já estava.
Por bastante tempo fiquei entretida em fazer o almoço para as crianças. Quando morava
sozinha, se fazia macarrão uma vez na semana era muito, ali eu sentia prazer em testar receitas,
principalmente quando Milo aprovava a comida e se lambuzava. Aquela criança tinha o paladar
de um crítico gastronômico. Se ele curtia algo que eu preparava, meu dia estava feito.
Eu terminava de colocar as louças do almoço na máquina de lavar quando escutei a voz
de Dante chamando Cecília não da forma carinhosa, nem comum, mas da forma “temos um
grande, grande, problema”.
Peguei Milo no colo e corri até o corredor dos quartos onde eles estavam. Quando
cheguei, a situação não era boa. Nada boa. Eu diria que Cecília estava em maus lençóis, para
dizer o mínimo.
— Por que você fez isso? — Dante apontava para a obra de arte produzida pela criança
que não parecia nem um pouco incomodada ou arrependida.
— Eu quis desenhar. — Seu tom descompromissado era até que engraçado, mas sabia
muito bem que precisava me manter séria ou daria mais poder para aquela minipessoa.
— Você não pode desenhar na parede, Cecília.
— Nem a minha família? — A voz doce e o olhar duvidoso fizeram Dante vacilar.
Ele procurou meu olhar e só consegui dar de ombros, espiando o desenho da garotinha.
Eram rabiscos disformes, corpos com cabeças gigantes e tronco em formato de palito.
Senti meus olhos encherem de lágrimas ao reconhecer quatro desenhos. A mulher maior
tinha cabelo preto, a menina menor tinha cabelos no mesmo tom de mel de Ceci, o homem era
grande, com um cabelo engraçado para cima e no chão, deitado em uma posição meio esquisita,
estava o que julguei ser Milo. Precisei segurar o bebê mais firme, apoiando-o no ossinho do
quadril.
— Você desenhou os seus pais? — murmurei, engolindo o choro que já estava pronto
para ter vazão.
Depois do dia de hoje, minha sensibilidade estava nas alturas.
— Não, titi. É você, o tio Dan, Milo e eu. — Apontou com o dedo indicador. — Vocês
são os meus papais agora, né?
O golpe veio seco, sem avisos. Meu coração falhou, porque nem em mil anos acreditei
que iria ouvir isso. A tensão já era palpável desde o começo da manhã, após aquela fatídica
conversa, agora então, eu nem conseguia mais formular palavras.
Os olhos de Ceci eram recheados de inocência e expectativas. E foi um susto perceber
que diante daquela pergunta desconcertante não existiu de princípio o sentimento de estar em um
lugar que não me pertencesse, porque era de Vitória e Gregório. Mas, sim, de decepcionar aquela
garotinha, de não ser suficiente, de acabar perdendo-a por meus medos.
— Ceci — Dante bem que tentou falar algo, mas falhou.
— Nós... — Foi a minha vez de tentar explicar, mas pensei bem no que queria falar e
parei.
Cecília tinha só quatro anos. Ninguém entendia bem sobre morte nessa idade.
Desisti de qualquer coisa e me sentei no chão, posicionado Milo em uma coxa e
chamando Ceci para sentar na outra. Dante seguia de pé, seus olhos brilhando pelas lágrimas
acumuladas, vidrados naquele desenho. Estiquei o braço para ele, chamando-o para se juntar a
nós.
Reunidos naquele corredor, eu entendi o real significado de amor. Não era sobre a
relação esquisita que tinha com Dante, sobre as perdas, sobre os amores que tive até então. Foi
naquela tarde de sábado, no dia mais confuso de toda a minha existência, que soube que faria o
possível e o impossível para nunca decepcioná-los, para ser um porto seguro; alguém que,
mesmo que não tivesse dado a vida a eles, daria a minha pela deles.
Foi assim que descobri que finais doíam, e recomeços curavam.
— Nós somos uma família. Nós somos a sua família, formiguita. — Beijei o topo de sua
cabeça, escutando um resfolegar estranho vindo de Dante.
Ele bem que tentou disfarçar, mas eu vi que estava chorando.
— Tio Dan, não chora, eu juro que não desenho mais na sua parede. — Ceci foi para o
colo dele, esfregando o rosto do tio para limpar as lágrimas.
Para alguém que não se permitia demonstrar sentimentos, Dante tinha virado uma
manteiga derretida com essas crianças.
— É o desenho mais lindo que já vi, Ceci. Você é perfeita.
A forma como abraçou a garota, apertou meu coração. Ele possivelmente sentia o mesmo
que eu, o medo de perdê-los, de não ser suficiente, de partir o coração de duas crianças que já
tinham tido tantas percas com tão pouca idade.
— Posso desenhar o Rocambole também? — Agora ela já estava sendo esperta e
abusando da boa vontade do homem.
— Claro. Esse saco de pulgas também faz parte da família.
Com um meio-sorriso ele me encarou de uma forma que fez com que algo se desligasse
dentro de mim, para um segundo depois explodir em milhares de luzes.
Nós estávamos tão fodidos.
E era dessa forma como me sentia no final da noite, depois de colocar as crianças para
dormir. Saí do quarto, observando as constelações que o abajur giratório formava no teto e nas
paredes antes de fechar a porta. Parei ali mesmo no corredor, escorregando pela parede até o
chão acarpetado. Não demorou nada para Dante também sair do quarto, fechando a porta com
cuidado antes de me encontrar ali.
Sem questionamentos, ele despencou ao meu lado. Ficamos em silêncio, mesmo que
existissem quinhentas mil coisas que precisávamos discutir. À nossa frente estava o desenho de
Ceci, com a inclusão agora de algo que parecia uma salsicha com patas e orelhas.
— Nós não podemos deixar que ele leve as crianças — ele murmurou.
Eu estava de acordo.
— Nós não vamos — assegurei com convicção, mas antes de qualquer coisa, eu
precisava saber mais, precisava saber se realmente podia confiar em Dante. — O que seu pai quis
dizer com aquilo de controle de raiva?
Ele umedeceu os lábios e minha mente vagou para a sensação de beijá-lo, da forma como
sua língua pareceu foder a minha boca. Ele tinha gosto de proibido.
Dante apoiou a cabeça na parede, parecia cansado, não só fisicamente. Eu o entendia,
aquele dia não foi fácil.
— Eu nunca tive uma relação boa com ele. Antes de minha mãe falecer, ele só era
distante. Depois, tudo ficou péssimo. Ele era agressivo comigo e com Gregório, colocava várias
mulheres dentro de casa, algumas eram péssimas conosco. Cresci com raiva, sempre esperando
que o tempo passasse rápido para que eu pudesse me livrar daquilo. Juro que tento me lembrar da
minha infância depois que minha mãe morreu e não consigo, porque eu só pensava no dia
seguinte, em ficar mais velho, em escapar de casa e daquele tormento.
Fechei os olhos, desolada por escutar aquilo. Eu não imaginava...
— Sinto muito, Dante.
— Sentir tanta raiva assim era horrível. Eu sentia que sempre estava a um passo de
explodir e, quando cresci, não demorou para que as brigas começassem. A primeira vez que me
descontrolei com ele foi quando o vi humilhar o meu irmão, estávamos jantando e ele bebeu
demais e falou que Gregório estava olhando os peitos de uma namorada dele. Ele deu um soco
no Gregório, no nariz, voou sangue para todos os lados. — A pausa que fez foi como se buscasse
na memória aquela lembrança horrenda. — Eu quebrei o nariz dele e passei uma noite na
delegacia, com catorze anos.
Segurei seu antebraço, lamentando todo aquele passado tumultuado. Ele era apenas uma
criança, não merecia tanto desamparo e solidão.
— Por que ele quer as crianças agora?
— Minha mãe herdou a vinícola dos pais dela, é algo que está na família há quatro
gerações. Mamá tinha muita grana e, quando morreu, meu pai ficou responsável pela herança até
que fôssemos maiores de idade, quando fizemos dezoito anos, o relacionamento que já era
péssimo desandou ainda mais. Ele não tinha mais controle sobre nós e tudo o que mais
interessava a ele era o dinheiro. Acabou que conseguimos um acordo anos depois, ele tem 46%
da vinícola, Gregório e eu ficamos com os outros 54%, mais a casa e todo o controle da empresa.
Só que agora...
— As crianças estão com a parte do Gregório — conclui o que ele confirmou com um
aceno.
Merda!
— Sendo sócio majoritário ele volta a ter todo o controle da empresa, do dinheiro e tudo
mais que ele tinha antes.
O buraco era ainda mais embaixo do que eu imaginava. Com tanto dinheiro em jogo,
David não brincaria. Ele jogaria para vencer e que Deus nos ajudasse com isso.
— Ele não vai levar Cecília e Milo — declarei, convicta. — Nós não vamos deixar.
— Só de imaginar que eles teriam a mesma vida que Gregório e eu...
Seu silêncio foi tão cruel, mostrando que por baixo de todas aquelas camadas existia um
garoto machucado. Alguém que não recebeu qualquer amor da pessoa que mais deveria amá-lo.
Fiquei com vergonha por lembrar todas as coisas terríveis que pensei sobre Dante. Sobre
sua falta de sentimentos, sua rigidez e toda a falta de emoção que demonstrava.
Como ele poderia ser diferente? Como demonstrar algo que nunca lhe foi dado?
— Não. Isso não vai acontecer. Nós temos escolhas.
Eu sabia bem qual era, mas, de verdade? Eu faria qualquer coisa.
— Antônia? — chamou e eu lhe dei atenção. — Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Aquilo sobre as dívidas que ele falou... — Ele estava quase tímido para chegar àquele
ponto, mas tentava ser delicado, quase como se tivesse medo do assunto me incomodar.
— Sim — dei a deixa para que prosseguisse.
— Sabe que as crianças recebem todos os rendimentos da empresa, certo? — Eu sabia,
porque Dr. Sebastião tinha falado na reunião. — E ainda assim não pensou em ficar com elas? A
sua vida... Bem, seria outra.
Entendi aonde ele queria chegar e suspirei.
— Sendo sincera? — Ele assentiu. — Nem pensei nisso, porque não é sobre o dinheiro.
Eu achei que não seria suficiente, que não daria conta, que não era merecedora para assumir esse
papel. Eu... Eu acho que tinha medo de deixá-los tão quebrados quanto eu estava.
Foi tão bom tirar isso de mim. Assumir que eu só não queria a responsabilidade de
desgraçar a vida de duas crianças inocentes.
— E agora não tem mais?
Balancei a cabeça lentamente.
— Não — respondi rapidamente. — Eu me sinto inteira agora. — Meus olhos estavam
no desenho à nossa frente. — Vocês me salvaram.
Dante molhou os lábios e senti uma vontade intensa de me aproximar dele, de sentir o
calor de seu corpo, de ter suas mãos em mim só mais uma vez. Mas ontem tinha sido uma
experiência única, algo que não se repetiria; não se quiséssemos que tudo desse certo.
— É... — Dante ensaiou algumas vezes para falar, como se mudasse de ideia a cada dois
segundos. — É muito dinheiro?
Precisei de algum tempo para entender que ele se referia à dívida, ignorando totalmente o
meu último assunto. O que era bom, afinal, eu nunca saberia explicar para ele o quanto sua
companhia ao longo desses meses foi importante para mim.
— São alguns financiamentos estudantis. Eu entrei e saí de muitos cursos nos últimos
tempos. Eu julgava que era minha lua em Libra, mas é só que nunca soube quem eu quero ser,
nem encontrei algo em que fosse realmente boa.
— Você é brilhante, Milani. Só precisa acreditar em si mesma. — O elogio me pegou
desprevenida, porque Dante, como chefe, não era do tipo que oferecia um banquete de elogios e
agradecimentos pelos serviços prestados, só dele não te olhar como um inseto insignificante, já
era o suficiente. E Dante, como pessoa, era ainda mais surpreendente. — Eu deveria te culpar
pelo interesse súbito do meu pai pela empresa. São os seus projetos dando lucro e atraindo o
olho-grande dele.
Nós acabamos rindo de toda aquela desgraça, porque não tínhamos mais o que fazer
além disso.
Eu sabia que precisamos falar sobre aquilo. O grande elefante branco no meio de nós. Só
não sabia como.
— Você acha que daria certo? — Não fui muito específica, mas era só porque estava
nervosa. — O casamento?
Falei, pronto.
Só considerar essa hipótese já parecia absurdo.
Dante apertou o ponto entre suas sobrancelhas, parecendo tão incomodado quanto eu.
— Dificultaria a vida dele, com certeza — ponderou.
— Você só está perdidamente apaixonado por mim e não sabe como me ter ao seu lado
para todo o sempre — brinquei, porque era o último recurso que restava antes de surtar por
aquilo ser algo realmente sério, algo que poderia alterar todo o rumo da vida das crianças. E das
nossas.
— Claro, é tudo parte de um plano bem elaborado — zombou.
— E seria para sempre? Porque, assim, não me leva a mal, mas eu prefiro andar sob
cacos de vidro a passar a eternidade com você.
— A eternidade? Da forma como você bebe álcool e toma dois mililitros de água por
mês, eu chuto que fico viúvo em duas semanas.
Dei um safanão em seu braço. Como conseguia fazer piada com um assunto tão sério?
— Ninguém vai acreditar nisso, todo mundo sabe que eu te detesto.
— Não era o que parecia ontem, quando implorava para que eu me enterrasse mais fundo
em você.
Sim, as lembranças estavam frescas na mente ainda. Eu implorei muitas vezes por mais
dele. Por tudo dele.
O tesão era realmente uma obra do satanás para desgraçar nossas vidas. Olha onde fui
cair por conta de fogo no rabo.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. — E não tinha mesmo. — Mas quem
acreditaria? Todo mundo sabe que não temos nada e aí aparecemos casados?
— Podemos falar que era segredo.
— Você namorava outra mulher um mês atrás — relembrei.
— Antônia, o foco são as crianças. Os outros detalhes nós resolvemos com o tempo. —
Ele era prático até diante da situação mais caótica de nossas vidas.
Era um casamento!
— Quanto tempo? — retornei ao assunto principal, com meu coração batendo tão rápido
que chegava a doer.
— Preciso consultar meu advogado, saber quanto tempo seria o suficiente para a guarda
definitiva vir para nós. Não faço ideia. Um ano? — chutou.
Um ano.
Um ano casada com Dante Albizia.
Só o pensamento parecia doentio e errado. Ele não me amava, eu não o amava. Ainda
tinha o sonho de me casar com alguém que fosse o amor da minha vida, um relacionamento
saudável, para o resto da vida.
— E depois? As crianças ficam com quem?
Dante esfregou os olhos. Ele parecia cansado, física e mentalmente. Sabia que ele não
tinha a resposta que eu buscava, nenhum de nós tinha.
— Com quem sair menos destruído de tudo isso.
Ele ainda tentou sorrir, como se fosse uma brincadeira, mas eu sabia que não era. Não
dava para brincar com um assunto desses.
Suspirei, admirada por minha cabeça ter virado um completo e assustador vazio. Deveria
ser algum tipo de autodefesa ou só meu cérebro se recusando a aceitar que aquela ideia era uma
possibilidade real.
— Eu teria de morar aqui?
Ele assentiu.
— E devolver meu apartamento?
Mais uma assentida.
— E fingir que somos um casal?
Dessa vez ele não teve reação, apenas ficou parado, ainda olhando o desenho de Cecília.
Mas eu sabia que sim. Precisava ser real, pelo menos aos olhos dos outros.
Isso deveria ser algum tipo de castigo de vidas passadas. Essa minha vida estava atrelada
a de Dante de todas as formas possíveis. E agora dessa forma. Da forma mais louca de todas. Ele
seria meu marido. Só cogitar isso parecia maluquice.
Tive a sensação de que Vitória e Gregório estavam dando sonoras gargalhadas de nossa
cara por toda aquela situação. Eles adorariam cada segundo desse sofrimento.
Uma vez, Vitória falou algo sobre Dante que nunca fui capaz de esquecer. “Ele será
sempre uma questão, porque você não pôde nem ao menos tentar.”
E agora eu me casaria com o cara.
Ao perceber isso, soube ali que não precisava de mais questionamentos. Eu vi minha
irmã fazendo o impossível por mim durante toda minha vida, então se eu precisasse fingir estar
apaixonada, montar uma família e abrir mão do sonho de me casar com o homem de minha vida
para que o sonho dela permanecesse bem, eu faria.
— Sim. — Respirei fundo, tirando toda aquela preocupação de mim.
Era pelas crianças. Tudo por eles.
— Sim? — Dante quis ter a certeza de que eu estava confirmando o que ele pensava que
era.
— Mas você vai ter de pedir direito, afinal, está tirando a chance de alguém que
futuramente faria da melhor forma possível. — Achei que era um momento oportuno para
atormentá-lo.
Arqueando a sobrancelha direita, ele me olhou repleto de deboche.
— A quem está querendo enganar? Você seria aquela velha cheia de gatos e
documentários de True Crime.
— Cachorros — discordei. — Eu prefiro cachorros. E, meu bem, faça direito, porque
essa sorte você não tira nunca mais. Ninguém diria sim se não fosse por um motivo de muita,
muita, muita força maior.
Dante resmungou algo que não escutei muito bem, mas precisei prender os lábios e evitar
rir ao vê-lo puxar minha mão. Achei que realmente fosse daquela forma que a pediria, mas senti
quando deslizou o anel de prata que carregava em meu dedo médio desde os quinze anos. Ganhei
da minha mãe em um Natal e gostava dele, fazia com que me sentisse próxima dela.
Não gostei da sensação de excitação quando o vi apoiar o peso no joelho direito e esticar
o meu anel de forma pomposa.
— Antônia Milani, você gostaria de embarcar comigo na mentira mais importante de
nossas vidas e se tornar minha esposa para salvar a nossa família?
Para uma brincadeira, ele falou sério demais. Meu olhar ficou preso ao dele, ele era fogo
e sentia a quentura alastrar por meu corpo. Por um segundo, um pequeno segundo, aquilo
pareceu real. Uma doce ilusão perigosa, assim como o jogo que começamos a jogar ontem.
Quis tocá-lo, cessar aquele espaço que existia entre nós, mas lembrei que eu mesma tinha
colocado as regras.
Uma vez. Uma única vez.
— Será um prazer ser a sua senhora Albizia.
Seus olhos escureceram. Algo muito parecido com o que tinha tomado conta de mim,
pareceu atingi-lo forte.
Aquilo nem tinha começado e já estava se tornando difícil.
E a quem estávamos querendo enganar? Desde o começo nada foi fácil para nós. E à
medida que o vi deslizar o anel por meu dedo, percebi que aquele era o terreno mais perigoso em
que já estive.
— Ok, onde estão as câmeras?
Era claro que aquela seria a primeira pergunta de Roma. Não era como se eu adorasse a
ideia dela saber sobre a minha vida, mas que tempo Antônia e eu tínhamos para organizar um
casamento?
Fora que aquela criatura era a pessoa mais próxima que eu tinha na vida depois de
Gregório e Vitória terem me deixado. Que escolha eu tinha?
— Roma, estamos falando sério. — Antônia estava rindo de nervoso, o que tornava
ainda mais difícil Roma acreditar que estávamos falando sério.
Ontem ela e eu tivemos uma reunião com meu advogado, Dr. Jimenez. Queria me
certificar de que não estávamos fazendo nada ilegal e mais do que isso, que seria algo que
realmente poderia ajudar as crianças. Era uma medida drástica demais para meus padrões.
Casar com Antônia Milani...
Só pensar parecia absurdo.
Mas, sim. Dr. Jimenez confirmou que ajudaria no processo, mas que também o juiz
levaria em conta outras questões, como nossa estabilidade familiar e a qualidade de vida das
crianças. Eles não tinham idade o suficiente para serem ouvidos por um juiz e escolher com
quem ficariam, o que piorava nossas chances. Havia a questão também de que a tutela legítima
tinha preferência para parentes consanguíneos com grau mais próximo, um avô era mais próximo
do que um tio ou tia, o que me dava raiva.
Aquela reunião com Dr. Jimenez nos mostrou que não precisávamos nos casar para
tentar a tutela das crianças, mas que qualquer chance que tivéssemos de deixar meu pai longe
deles, era válida. Eu cavaria com minhas mãos até o inferno se fosse preciso deixá-los longe de
qualquer influência de David. Todos os gritos, surras e humilhações acabaram em mim e
Gregório, meus sobrinhos não passariam por isso enquanto eu respirasse.
— Olha, todo mundo está falando que vocês se pegaram lá no German e tudo bem,
pessoal! Estamos no século vinte e um! Aqui não é Bridgerton para vocês darem um beijo e irem
parar em um altar.
Apertei a ponte do nariz, sentindo uma pontada na cabeça por escutar a ladainha
interminável daquela garota. Eu deveria ser um péssimo gestor para ter minha autoridade tão
desrespeitada dessa forma e não tomar providências. Eu a demiti sexta-feira, ela tornou a
aparecer e ainda brincava com a minha cara.
— Roma, pode fechar o bico e nos escutar? Precisamos organizar uma cerimônia e...
— Ele está te obrigando? — Ela cortou o pedido de Antônia.
— Não.
— Se ele não está te obrigando, por que você faria isso consigo? — Roma tentou falar
baixo, mas ela não era muito boa nessa ação.
Cruzei os braços, puto. Quem não gostaria de se casar comigo? Modéstia a parte, eu era
bonitão, trabalhador, tinha um bom papo e sabia muito bem como foder uma mulher. O que eu
tinha de errado?
— É pelas crianças — Antônia contou a verdade, o que acabou por me assustar.
O combinado era ninguém saber, porque tínhamos que levar o relacionamento como uma
verdade, por que então ela estava falando a verdade para Roma? Ela não tinha que dar
explicações.
— Pobrezinha... — Roma se solidarizou com a situação, colocando a mão no coração
como se Antônia estivesse na ponta de uma tábua pronta para cair em um mar de tubarões
famintos.
Eu não era tão ruim assim.
Fiz questão de contar para aquela fofoqueira nossa versão da história, o retorno de meu
pai e motivo pelo qual iríamos nos casar e porque era tão importante ela guardar o segredo.
Ao final, a cara dela de pena para Antônia estava ainda pior.
— Darei o meu melhor para tornar esse dia menos trágico para você. — Ela esticou a
mão para Antônia, dando-lhe apoio. Fiquei brutalmente ofendido agora. — Já fizeram a lista de
convidados?
Agora, ela virou para mim.
— Não teremos convidados — declarei.
Antônia e eu não tínhamos falado absolutamente nada sobre a cerimônia em si, o que
gostaríamos, como seria. Parecia errado e tornaria tudo ainda mais real.
Eu nem tinha digerido a noite que passamos juntos e agora me casaria com ela.
— Se vocês querem que todos acreditem nessa mentira, vão precisar de uma festa,
convidados e muita felicidade.
Aquela garota era tão irritante, quase na mesma proporção de Antônia.
Olhei de esguelha para minha noiva, que respondeu com um balançar de ombros.
Droga.
— Eu não tenho amigos — confessei.
— Não é uma surpresa — a garota sussurrou, como se eu não estivesse há um metro de
distância dela.
— Eu tenho alguns no Brasil, mas não sei se eles entenderiam a situação.
Ah, os ex-namorados. Ela estava pensando em convidar todos os ex-namorados para o
nosso casamento?
Quem continuava sendo amigo de um ex?
— Convide todos e chamem algumas pessoas da cidade, só para tornar mais real. Para a
sorte de vocês, sou uma romântica incurável e adoro casamentos. Tenho algumas pastas de
inspirações no Pinterest e estou pronta para...
— Tenha calma, Roma. Será algo simples. — Achei de bom tom explicar mais uma vez.
— E precisamos que seja rápido.
— Já entendi — resmungou, contrariada. — Chato e sem emoção, parece estranhamente
familiar.
— Roma... — ameacei.
— Posso usar o seu cartão bonito?
Ela amava aquele cartão. E amava mais ainda quando eu a autorizava a usá-lo.
Antônia segurou o riso e fiquei distraído pela forma como seus peitos estavam deliciosos
no decote da blusa que usava. Por estar com os braços cruzados, eles estavam ressaltados,
formando um monte onde eu gostaria desesperadamente de passar a língua. Excitado e distraído,
não percebi o poder que dei ao inimigo.
— Sim. Faça como quiser.
— Pode deixar, chefe. — Ela vibrou, saltitando pela sala. — Meus pêsames, amiga.
Tentarei deixar tudo lindo, como você merece. Espero que o seu próximo casamento seja melhor.
Antônia gargalhou e só pensei se eu era uma piada para aquela criança. Estávamos
dentro de uma empresa, tínhamos uma hierarquia que deveria ser respeitada, mas eu sofria
bullying da minha própria assistente. Isso não era normal!
— Você tem cinco segundos para sair dessa sala. — Uma pena que ameaças não surtiam
mais efeito com ela há uns bons anos. Antes que ela saísse, lembrei de algo importante. —
Roma?
— O que foi?
— Preciso que seja minha testemunha.
Ela abriu a boca e depois um sorriso irritante, dando pulinhos sobre o meu carpete.
— Você quer que eu seja sua madrinha, chefe?
Por que ela estava emocionada?
— Preciso que assine um papel que prove que estou me casando com ela. — Apontei
para Antônia.
— Isso é ser madrinha! — comemorou. — Eu aceito, chefe! Você é o melhor!
— Acha que sua namorada também aceitaria? — Eu precisava de duas testemunhas e
não tinha mais ninguém que fosse próximo de Antônia e eu que não fosse elas.
— Ah, eu estou tão feliz pelo convite! Nós aceitamos sermos madrinhas de vocês!
— Testemunhas — corrigi.
— Só não posso dar presente caro, ok? Meu salário é bem pouco, sabe? — Arqueou a
sobrancelha, sugestiva.
Entendi a insinuação.
— Só faça com que ela não apareça vestida com nada que tenha caveiras e spikes —
exigi, levando uma cotovelada de Antônia.
Obviamente Roma nem escutou, porque saiu desse escritório animada demais para meu
gosto. Ainda ficamos alguns segundos olhando o espaço vazio onde ela estava antes de nos
olharmos e começarmos a rir de nossa própria desgraça.
— Convidados, então — ela suspirou pesadamente.
— Vai convidar seus ex-namorados, mesmo?
— Com ciúmes, Dante? — provocou.
— Há, até parece — desprezei aquela ideia absurda. — Estou pensando em convidar
Carina também.
Apoiei o quadril na minha mesa de trabalho, assumindo uma postura relaxada.
Antônia semicerrou os olhos, desconfiada.
— Essa coitada deve estar fazendo terapia para estresse pós-traumático depois de
terminar com você, as chances de ela pisar aqui são zero.
Também não era assim. Foi um término amigável.
— Não sei quem convidar. — Cruzei os braços, irritado por ter de falar aquilo a ela.
— O dono do bar, o pessoal da banda, alguns funcionários da empresa — sugeriu.
Ninguém era próximo o suficiente de mim para justificar um convite. Por mim, seria
Antônia, as crianças e eu.
— Tudo bem — concordei, porque sabia que precisávamos que todos acreditassem em
nosso casamento.
E, bem... Se era para fazer, que fosse da forma certa.
— Você vai adorar os meninos.
Antônia passou tão perto de mim, que aquele seu cheiro de baunilha me atingiu como um
soco. Senti dois tapinhas em meu ombro antes de ela sair da minha sala.
Meninos.
Ela e esses meninos que fossem para a casa do...
Respirei fundo, acalmando aquela pontada de pura indignação no meu peito.
Repito: quem é que convida ex-namorados para o próprio casamento?
Aquela questão ainda rondava minha cabeça horas depois. Já estava em casa, com o dia
de trabalho encerrado. Felicita deixou nosso jantar pronto e foi um milagre conseguirmos
alimentar as crianças e ainda comer a comida quente, tudo na mais perfeita paz e organização.
Nem parecia a mesma casa de todos os dias com corre-corre, gritos e choros.
Ao entrar no quarto deles, segurando Ceci pela mão, vi que Antônia fazia Milo dormir.
Sentada na poltrona de balanço, ela o ninava como todas as outras noites, passando o dedo
indicador entre as sobrancelhas do garoto em um carinho suave, só que dessa vez ela cantava
baixinho.
— E numa estação como a primavera... — Ao perceber minha movimentação, ela parou
de cantar. Neguei com a cabeça, observando a forma vidrada como Milo a olhava. A ligação
deles era linda e mágica, tanto que, quando ela parou, o garotinho resmungou. Ainda mais baixo
Antônia completou: — Sentimentos são como uma canção para a Bela e a Fera.
Eu me recusava a acreditar que ela estava com as bochechas rosadas por vergonha de
cantar em minha frente.
— Sua voz é linda.
Travei ao perceber a besteira que tinha acabado de falar. Culpei a forma como a cena era
bonita e especial para não dar o braço a torcer que ver Antônia daquela forma mexia com algo
dentro de mim.
Ela não respondeu, mas seus olhos ficaram esbugalhados como se tivesse escutado a
maior loucura de todas. Depois de tudo o que falamos dentro daquele carro, eu não achei que
isso fosse abalá-la tanto.
— A titi é uma princesa. — Foi só aí que lembrei que Cecília coexistia naquele quarto e
seguia parada ao meu lado. — Quando ela encontrar um príncipe, vai morar em um castelo e
virar uma rainha.
Apertei os lábios, vendo o desespero de Antônia piorar consideravelmente. Seus olhos
encontraram os meus, um pedido silencioso surgindo ali.
Ah, mas se ela planejava me deixar com a bomba de contar sobre a mais nova novidade
para Cecília, ela estava totalmente enganada.
— Ceci, vá escovar os dentes antes da hora da história — pedi e a menina saiu saltitando
até o banheiro.
Ela amava escovar os dentes, porque a escova era elétrica e rosa. O combo do sucesso
para uma distração eficaz.
Antônia levantou da poltrona em silêncio, colocando logo em seguida Milo no berço. Eu
admirava a habilidade que tínhamos conseguido ter que consistia em nem respirar para evitar que
o bebê acordasse. Era básico e primordial dar a vida para não acordar a criança.
— Realmente precisamos contar para ela? — Seu olhar era de puro desespero.
— É de bom tom, não é?
— Ela tem quatro anos, não vai entender nada.
— Somos a família dela, Antônia.
Ainda era estranho pensar nisso, mas era a verdade. Nós quatro aprendemos a ser uma
família. Se tudo aquilo não fosse o dia a dia e os sentimentos de uma família, eu não sabia mais o
que seria. Havia amor, havia dedicação e entrega em cada canto daquela casa. E isso também era
estranho; ver a casa mais colorida, mais alegre, com sons e intensidade. Era muito diferente de
meses atrás. Eu costumava gostar do silêncio e da solidão porque era tudo o que tinha.
Escutamos os passos de Ceci retornando ao quarto e houve certa hesitação de minha
parte ao sentir o coração acelerar. Eu estava nervoso em dar uma notícia para uma menininha?
Não fazia sentido.
A verdade era que grande parte de mim se preocupava em falar para Cecília, porque ela
saber tornaria tudo real. Não existia como voltar atrás depois de contar para ela, que criaria
expectativas e acreditaria naquela mentira.
Antônia a colocou na cama, ajoelhando ao lado do colchão para cobri-la com o edredom
de linho azul.
— Titi? — Escutei-a chamar. — Você é a minha melhor amiga.
Antônia ficou derretida. E quem não ficaria com uma declaração dessas?
— Você também é a minha melhor amiga, Ceci. — Seu olhar subiu para mim e entendi a
deixa. Ajoelhei ao seu lado, levando um pequeno choque pela estática ao encostar meu braço ao
seu. O que era comum nos últimos tempos. Eu culpava o clima úmido. — Queremos te contar
uma coisa muito importante.
Estava no sangue ser tão curiosa. Os olhos de Cecília dobraram de tamanho. Não importa
a idade, todos nós éramos ávidos por novidades.
— O quê?
— Tio Dante e eu... — Quando ela engasgou, eu precisei morder o lábio inferior para
não rir. — Meio que estamos... — Agora ela buscou apoio em mim, como se eu não estivesse me
divertindo com seu sofrimento. — Namorando.
Cecília piscou três vezes, mas não elaborou nenhum comentário.
— E decidimos que seria melhor se... — Antônia tentou continuar, mas seguia
engasgando e tossindo a cada palavra. Ela era péssima mentindo. — Bem, ele me pediu em
casamento. Você sabe o que é casamento?
Ela assentiu.
— Quando você mora junto com a pessoa e tem bebês.
Errada ela não estava.
— Nós vamos nos casar em breve — finalmente ela conseguiu falar de uma vez.
Cecília passou os olhos por Antônia, depois para mim, depois novamente de um para o
outro. Eu não diria que ela estava surpresa, apenas desconfiada.
— Vocês vão ter bebês juntos?
Deus! Como eu poderia fazer um bebê em quem jurou que nunca mais me deixaria
encostar nela? Bem, se bem que meu braço estava encostando nela...
— Não. Você e Milo já são os nossos bebês — ajudei Antônia.
Cecília amoleceu um porquinho, um rastro de sorriso passando por aquele rosto lindo.
— Tudo bem! — Seu tom era permissivo, como se nos autorizasse a casar. — Eu sabia
que vocês iam casar.
— Como você sabia? — Antônia foi curiosa, já eu não era tão corajoso assim de
perguntar.
Só saiam pérolas da mente de titânio daquela garota.
— Porque o tio Dan ri muito com você e quem dá risada assim, se casa.
Antônia ficou sem jeito, coçando a nuca, mas eu relembrei o que aquela baixinha tinha
falado sobre meu relacionamento com Carina. Eu não ria com ela, o que era verdade. Com
Antônia, mesmo que fosse recheado de ironia e deboche, o riso vinha mais fácil. Sorrir ao lado
dela era corriqueiro.
A garota se aconchegou mais ao travesseiro, estendendo a mãozinha para Antônia. Seus
olhos estavam pesados, quase fechando.
— Titos? — chamou. — Prometem que nunca vão se esquecer de mim e do Milo?
Mesmo com os seus novos bebês?
Aquilo me quebrou, porque com tão pouca idade ela já tinha medo do abandono. Foi
horrível perceber que talvez ela pensasse que os pais a tivessem abandonado e que por mais que
explicássemos sobre estrelas e céu e anjos, ela só conseguiria entender quando fosse maior que,
até o último suspiro deles, ela foi amada. Assim como aconteceria comigo e com Antônia. Nós
faríamos o impossível para que eles crescessem felizes, da forma como mereciam.
— Nunca. Vocês são a nossa vida. — Beijei sua testa, sentindo cada parte do meu ser
reverberar de amor por aquela criança.
Eu nunca os deixaria sozinhos. E sabia que estava ao lado da pessoa que viraria o mundo
de ponta-cabeça antes que precisasse.
Antônia se aconchegou na cama de Ceci, oferecendo o braço para que ela deitasse e
depois me chamou com a mão. Receoso, olhei para a cama. Será que aguentava meu peso? Com
cuidado, desviei do cordão de luz enrolado nas ripas de madeira que davam o formato de uma
casinha para a cama e deitei ao lado delas.
Nós nunca tínhamos dormido juntos, mas era algo que uma família fazia, não era
mesmo?
E aquela era a minha família. E eu amava cada detalhe dela.
Meu celular não parava de vibrar e aquele som já estava atacando minha ansiedade,
porque eu sabia muito bem o que tinha ali.
Desviei o olhar do aparelho para o espelho à minha frente, sem saber o que me
assombrava mais. As mensagens dos meus amigos ou o reflexo de uma noiva que, por acaso, era
eu.
— Esse é o meu preferido. Você parece um anjo — Roma elogiou.
Ela era minha única amiga e precisava de uma opinião verdadeira. Aquele dia estava um
misto de emoções. Levantei da cama com a certeza de que escolheria qualquer vestido, porque
seria qualquer casamento. Não era de verdade, não seria para sempre. Mas, ao mesmo tempo eu
chorei no banho porque queria que Vitória estivesse aqui. Queria que ela me visse escolhendo o
buffet do casamento, provando os vinhos que Dante escolheu para servir no grande dia, vendo
como eu estava uma verdadeira noiva neurótica conforme o dia ia chegando.
Duas semanas.
Quinze dias foi o que levou do pedido de casamento até a data escolhida.
Dia 22 de maio. O dia do aniversário de um ano de Milo.
E agora faltavam cinco dias.
— Ele é perfeito — murmurei para meu reflexo.
Eu estava radiante, o vestido modelava todo meu corpo, principalmente a cintura e os
seios. Seu tecido era acetinado, mas encorpado. Simples, mas elegante. O decote tomara que caia
deixava meu colo bonito e a cauda longa era chique.
Se aquele fosse o casamento dos sonhos, aquele seria o vestido ideal.
— Você está brilhando. Tem que ser esse!
Roma estava empolgadíssima. Esse era seu estado de espírito nos últimos dias. Ela
estava resolvendo tudo do casamento, o lugar, os fornecedores. Dante e eu palpitávamos apenas
nos detalhes menores, como a comida e os vinhos.
— Ele é lindo, mas tinha pensado em algo mais simples. A cerimônia será em casa...
— É o seu casamento! Você merece o vestido dos sonhos. — Miranda também estava
conosco, assim como Cecília e Milo.
Eu nunca os deixaria de fora desse momento. Por mais que fosse uma grande mentira.
— Você está parecendo uma rainha, titi.
Sorri novamente pelo reflexo, observando os olhos brilhosos de Ceci. Ela estava
encantada. E eu também.
— Não acha que é demais? — teimei em insistir.
— Eu acho que o meu chefe vai cair para trás quando te vir assim.
Neguei com a cabeça, tímida de uma forma que não combinava muito comigo.
Será que Dante gostaria mesmo? O pensamento ficou por cinco segundos em minha
cabeça, até a parte racional do meu cérebro dizer que ele não tinha de gostar de nada. Eu quem
tinha de gostar e aprovar o vestido. Tudo aquilo seria um teatro, não era real.
Mas será que ele gostaria?
Espiei novamente meu reflexo, gostando de cada mínima parte daquele vestido. E mais
ainda do rosto encantando de Cecília e Milo, sentados no chão atrás de mim. Eu queria tanto que
minha mãe e Vitória estivessem ali também, que me vissem naquele vestido, que pudessem estar
comigo. Minha irmã amaria cada segundo disso, ainda mais por ser com Dante. Ela vivia
dizendo que uma hora ou outra, ele e eu acabaríamos nos encontrando novamente, com o
coração mais maduro e decidido.
Lembro que eu só revirava os olhos e dava uma sonora gargalhada, dizendo que ela
estava louca.
Eu ainda achava que ela estava louca por pensar isso.
— É esse — decidi.
Poderia não ser real, mas eu ainda estaria vivendo aquilo e merecia me sentir linda. E,
bem, Dante também merecia me ver linda e gostosa com esse vestido incrível.
Roma e Miranda comemoraram comigo e precisaram me acalmar quando descobri o
preço do vestido. Eu usaria aquilo uma vez na vida, como poderia custar o valor de um carro?
— Fica tranquila, eu estou com o cartão do chefinho — Roma tranquilizou, o que não
surtiu qualquer efeito.
— Mas... — tentei argumentar.
— Lembra todas as vezes que ele foi babaca com você?
Seria impossível lembrar todas, minha mente não era capaz de guardar tantos momentos
assim.
Aquele foi o impulso para liberar Roma a comprar o vestido. Eu chamava aquilo de
reparação histórica.
No final da tarde, cheguei em casa com os braços cheio de sacolas. Comprei os sapatos,
os acessórios e as roupas das crianças. Não conseguia sentir minhas pernas, mas estava feliz.
Tinha sido um dia divertido.
Dante ainda estava na sede da Albi, então fui a responsável por dar banho nas crianças e
o jantar logo em seguida. Era engraçado lembrar o apuro que Dante e eu passamos nos primeiros
dias com eles, hoje as coisas se tornaram mais fáceis ou talvez nós que estivéssemos mais
preparados para lidar com as crianças. A rotina era mais simples, sabíamos nossos deveres e tudo
fluía melhor. O que parecia impossível antes, agora era só mais uma parte do nosso dia a dia. E
eu gostava de cada parte dele.
No final da noite, fui para meu quarto, tomei banho e me meti em um pijama confortável.
Estava começando a esfriar e a ideia de passar o inverno ali me animava. Eu amava o inverno.
Fiquei em dúvida entre terminar o livro que comecei há três dias. Diferente dos romances
e distopias que amava ler, nas últimas semanas estava lendo livros sobre maternidade. Eu queria
me convencer de que era para melhorar o espanhol, mas sabia que era porque, meses depois, eu
começava a entender o papel que me propus a assumir na vida de Ceci e Milo. E se concordei,
queria dar o meu melhor.
Vitória uma vez me falou que aprendíamos a ser mãe um pouco a cada dia. Ninguém
nascia sabendo ser mãe, mas as circunstâncias nos tornavam uma. E agora eu a entendia. Eu
nunca tive uma puta ideia do que fazia da minha vida, não sabia cuidar nem de mim ou das
plantas de casa, mas Ceci e Milo acabaram me ensinando, dia após dia, qual meu papel e função
para eles. E eu aprendi a amar cada segundo com eles. Até os que especulava por que diabos
decidi amarrar meu bode naquela situação.
Meu celular acendeu pela milésima vez no dia e percebi que o livro teria de ficar para
depois, pois estava fugindo do inevitável e precisava encarar a realidade.
Suspirei e abri a conversa com os garotos. Tinham tantas mensagens, que escolhi ignorar
todas e ir para a última.
Olavo Queiroz: esse argentino deve estar a mantendo em cárcere privado. Não vou
deixar minha amiga presa com um lunático adorador de vinhos, já até comprei a passagem.
Miguel Lavian: eu comprei também, chego dia 25.
Flávio Augusto: o casamento é dia 22, seu lerdo.
Fechei os olhos, sentindo minha cabeça latejar.
Eu não os queria aqui, nem de perto.
Desde que enviei os convites, sem dar nenhuma explicação, eles estavam surtando
naquele grupo. Perdi as contas de quantas vezes recusei ligações e continuava fugindo, mesmo
faltando cinco dias para o casamento. Como eu poderia explicar que, em questão de dias, fui de
mensagens declarando meu profundo e absoluto desprezo por Dante para um convite chique com
letras formais e lacre de cera com nossas iniciais?
Se eu falasse qualquer coisa, eles descobririam em cinco segundos e eu perderia meus
sobrinhos.
Mas sabia que precisava dar um sinal de vida, antes que eles chegassem com a Polícia
Federal pronta para prender Dante por tráfico humano.
Antônia Milani: oi, meninos! Desculpa não responder, está uma correria aqui com os
preparativos do casamento. Dante e eu estamos animados em recebê-los. Até sábado!
Eu era uma piada pronta.
Se conseguíssemos realmente nos casar neste sábado, seria um golpe de muita sorte,
porque ninguém acreditaria nesse circo que armamos.
Percebi que eles estavam digitando mensagens e joguei o celular em cima da poltrona,
longe o suficiente de mim. Onde estava aquele livro para aliviar minhas preocupações agora? A
única preocupação que eu queria era como criar crianças mentalmente estáveis e felizes.
Escutei uma batida à porta e fui até lá, aproveitando para pegar o livro que estava pelo
caminho. Ao abrir, fui surpreendida ao ver Dante parado. Ele parecia cansado, com os olhos
menos brilhantes que o normal e uma sombra cinzenta embaixo deles. Parecia que tinha acabado
de sair do banho, os cabelos ainda estavam molhados, sua pele cheirava a sabonete e estava
enrolado em um roupão felpudo e confortável.
— Posso entrar?
Imediatamente abri mais a porta, deixando espaço para que entrasse. Fui direto para a
cama, recolhendo as pernas para o colchão e o observando olhar cada canto do meu quarto. As
sacolas com as compras estavam em cima da mesinha próxima da sacada. A única coisa que não
veio para cada foi o vestido de noiva, que precisou ser ajustado na barra e na cintura.
— Foi às compras hoje?
Assenti, levemente nervosa por vê-lo se aproximar. Achei que Dante ficaria de pé, mas
ele se jogou na minha cama como se fôssemos melhores amigos prontos para iniciar um bate-
papo.
— Percebeu o rombo na sua conta?
— Acho que semana que vem serão nossas contas. — Seus ombros foram para o alto, de
forma despretensiosa. Gelei ao escutar aquilo. — O que é meu, é seu, cariño.
— Comprei o vestido e as coisas de noiva, além das roupas das crianças — expliquei. —
Roma me convenceu de que seria uma boa ideia estourar o seu cartão de crédito.
— Você precisaria de muita força de vontade para conseguir isso.
Joguei uma almofada na cara dele. Que irritante!
— Você é muito esnobe.
— Só quero o melhor para minha noiva. — Não existia uma célula em meu corpo que
não entrasse em colapso ao escutar essa última palavra. — Você não precisa dar explicações
sobre isso, Antônia. Não fará a menor diferença depois de sábado. Inclusive, nos papéis do
casamento marquei o regime de bens como comunhão total.
Minha boca ficou aberta por alguns segundos.
— Por quê? — Foi tudo o que consegui falar.
— Achei que seria mais convincente para nossa história. Além de que, estamos no
mesmo barco.
Sua despreocupação em dividir comigo toda sua fortuna beirava o absurdo. Ele confiava
em mim dessa forma?
— Meu bem, eu vou tirar as suas calças no nosso divórcio — brinquei.
— Fique à vontade para tirar antes mesmo do divórcio.
Seu sorriso safado me tirou do prumo. Pisquei duas vezes, querendo ter a certeza de que
não estava delirando ao ver Dante flertar comigo.
— Você está bêbado?
— Um pouco — confessou, rolando em meu colchão. — Mas não deixa de ser verdade.
Sua tentativa de prolongar o flerte falhou, porque eu notei a tristeza que ele tentava
ocultar com as gracinhas.
— Está tudo bem, Dante?
Ele estava de barriga para baixo, mais próximo de mim do que minutos atrás. O cheiro
dele era tão bom que senti a vontade de me aconchegar em seu corpo e enfiar meu nariz em seu
pescoço.
— Meu pai entrou com a ação judicial reivindicando o direito da guarda das crianças. O
Dr. Lopes ligou hoje, informando que uma audiência de conciliação foi marcada para o começo.
Meu coração doeu ao perceber que aquele pesadelo estava prestes a se tornar real.
Aquele homem era horrível para jogar duas crianças em uma situação dessas só por
conta de suas ambições.
— Em São Paulo? — Ele assentiu. — Como faremos?
— Meu advogado daqui recomendou um parceiro muito bom de São Paulo. Não acho
que o Dr. Lopes seja muito confiável.
Foi a minha vez de jogar o corpo na cama, do lado contrário ao de Dante. Ficamos em
posições opostas, com nossas cabeças perigosamente perto uma da outra.
— Nós vamos conseguir. — Queria demais que fosse verdade, que acordássemos
amanhã e toda essa situação estivesse resolvida.
— Nós vamos. — Dante virou o rosto, naquela posição nossos narizes quase se
encostavam. Pensei em me afastar, mas estava confortável. Estar com ele era confortável,
gostoso e familiar. Como chegar à nossa casa depois de um dia difícil. — Não teremos lua de
mel.
Franzi a testa, estranhando aquela informação.
— E desde quando teríamos?
— Eu te levaria para esquiar. Tenho uma cabana em Ushuaia.
Pisquei, atônita. Mordi o lábio, contendo um sorriso ao perceber que ele estava falando a
verdade e, mais do que isso, que pensou em detalhes. Talvez fosse só mais uma prova de que
éramos ótimos mentirosos, que pensávamos nos mínimos detalhes para conseguir nosso objetivo.
Ou, talvez, Dante realmente se importasse. E aquilo seria perigoso.
— Não precisamos levar isso tão longe assim.
Eu era uma bela de uma hipócrita, isso, sim. Porque fui a primeira a falar que queria
Dante bem longe de mim, mas lá estava eu, tão próxima que bastava um mínimo centímetro para
frente que acabaria com minha boca colada a dele.
— Eu sei. — Seu hálito fez cócegas em minha bochecha. — Mas eu achei que você iria
gostar.
— É, eu iria...
Eu sabia muito bem onde aquilo daria. Já tinha caído nesse frenesi uma vez, estava a
ponto de cair pela segunda vez.
— Quem sabe depois que tudo isso passar, podemos ir para Taormina? — sugeriu.
— E teremos tempo?
Dante hesitou em responder e até eu fiquei com medo de sua resposta. Nem tínhamos
nos casado ainda e tudo o que passava na minha cabeça era o que o futuro nos reservaria. Depois
que as crianças estivessem em segurança conosco, como seria voltar para casa e seguir minha
vida longe de toda aquela rotina que tínhamos criado?
Por um momento, a julgar por aquele silêncio e seus olhos transparecendo melancolia,
ele também pensava na mesma coisa.
— Eu espero que sim.
Seu nariz encostou no meu, um singelo e carinhoso toque que foi o suficiente para fazer
meu coração disparar. Odiava sentir isso, porque já tinha me apaixonado vezes o suficiente para
saber que aquilo doeria demais quando acabasse, ainda mais quando estamos falando de Dante
Albizia. Ele destruiria todos os cacos que me restaram.
E mesmo sabendo disso, fui eu quem encerrou aquele espaço entre nós dois. Diferente de
todos aqueles beijos na noite do bar, aquele não era cheio de aflição e energia. Era calmo, suave,
como a brisa de um entardecer à beira mar. Beijar Dante, estar em seus braços, sentir o seu calor,
curava onde doía, calava todas as vozes que gritavam dentro da minha cabeça.
Suas mãos seguraram meu rosto e precisei de mais. Girei o corpo e fiquei de joelhos no
colchão, sentindo a mão direita dele deslizar pela lateral de meu corpo até chegar à coxa,
puxando-me para ele.
Eu sabia que fim aquilo teria e sabia mais ainda que aquela situação só pioraria o que já
estava ruim, mas eu nunca fui alguém conhecida por fazer boas escolhas.
— Presta bem atenção aqui... — Afastei meus lábios para deixar claro o que tinha em
mente.
— Essa é a última vez. — Ele tirou as palavras de minha boca.
— Exatamente.
— Por mim, está ótimo.
— Então, faça valer a pena.
Aquele sorriso cafajeste deu as caras novamente e precisei de um segundo analisando
esse rosto perfeito para concluir que eu era uma garota de sorte. Ele tinha as piores intenções
refletidas naqueles olhos verdes e eu já estava ansiosa para aproveitar aquela última vez.
— Titi?
Minha alma saiu do corpo e dei um impulso tão forte, que quase fui parar no chão. Por
sorte, Dante segurou meu braço, salvando-me da queda feia que eu tomaria.
Ergui a cabeça, observando a garota com o ganso de pelúcia embaixo do baixo, os
cabelos bagunçados e os olhos cheios de lágrimas.
Dante limpou a garganta, pegando a almofada que joguei nele minutos atrás para colocar
sobre as pernas.
— Você está bem? — Joguei as pernas para fora da cama, indo até Cecília.
— Eu tive um sonho ruim.
Peguei-a no colo, consolando-a com carinho. Seu coração batia acelerado, o que fez o
meu ficar apertado.
— Foi só um pesadelo, formiguita. Está tudo bem.
— O tio Dante e você não queriam mais que eu morasse aqui, aí me mandaram para
onde as crianças que não têm papais vão e o Milo nem foi comigo. Eles eram muito malvados lá.
Ela começou a soluçar, escondendo o rosto na curva do meu pescoço. Dante deixou a
almofada no colchão e veio para perto de nós duas, depositando um beijinho no topo da cabeça
de Ceci.
— Isso nunca aconteceria, porque não sabemos viver sem você e seu irmão. — Dante
cutucou a cintura dela, tentando animá-la com cócegas.
Saber que Cecília tinha medo do abandono foi como jogar álcool por cima da ferida. Ela
era tão pequena, isso não deveria nem chegar a ser uma preocupação para ela. Mas, era.
— Promete de dedinho? — Cecília ergueu a cabeça para olhar para Dante e eu.
O nó na garganta foi tão forte que senti vontade de vomitar. Diante de tudo o que estava
acontecendo, vê-la daquela forma, foi a confirmação de que eu faria o impossível para que ela
continuasse comigo e com Dante. Nós éramos a família deles e não existia pessoa nesse mundo
que os amassem mais do que nós.
Cecília e Milo não iriam para longe de nós. E isso era uma promessa.
— Prometo de dedinho. — Entrelacei meu mindinho ao dela, sorrindo ao ver Dante
unindo seu dedo ao nosso.
— Posso dormir com vocês?
Busquei a resposta em Dante, que só confirmou. Bobão do jeito que era, ele nunca
conseguiria negar absolutamente nada para Cecília naquela ocasião.
Ele tirou a garotinha de meu colo e foi em direção da cama, puxando o cobertor para
como se estivesse habituado em estar ali. E, ali de pé, observando ele e Cecília deitados na minha
cama, eu senti como se fosse. Parecia estranhamente certo ter Dante em minha vida, ocupando
cada lacuna que nunca percebi que precisava ser ocupada.
Que merda.
Mas que grande merda!
Deitei do outro lado de Cecília, abraçando-a em conjunto com Dante. Ele fazia cafuné
nela, mas assim que a garotinha caiu no sono, mais calma e com o semblante mais sereno,
aqueles dedos longos migraram para a minha cabeça. Receber esse carinho encheu meus olhos
de lágrimas, o que foi estranho. Eu não entendi o porquê da emoção, mas acolhi o sentimento.
— Esses travesseiros são meus, não são?
Acabei rindo, tapando a boca com o antebraço para não acordar Cecília.
— A vingança da Roma foi muito benéfica para mim.
— Estou com torcicolo desde que você chegou, agora entendi o motivo.
Sorri e virei de lado, observando o rosto risonho dele. Ele queria fingir que estava
zangado, mas ficava difícil quando tudo nele parecia adorável.
Quem diria que Dante poderia ser fofo?
— O pior quarto de todos, uh? — zombei, deixando claro que eu sabia sobre sua
vingança patética.
Dante escondeu o rosto no travesseiro, mas percebi pela movimentação de seus ombros
que ele ria.
Deixei em segredo que ele tinha conseguido, sim, sua vingança ao me fazer todos os dias
dormir enclausurada com seu cheiro, presa em sonhos que nunca seriam reais, perseguida por
inúmeros pensamentos que eu nunca teria coragem de dar voz.
Até que o acaso fizesse sua parte.
E aqui estávamos nós.
O carinho em meu couro cabeludo parou e busquei seus olhos, confirmando se tinha
apagado em questão de segundos, mas ele seguia ali. A noite estava clara e a luz do luar
iluminava parcialmente seu rosto, os olhos em mim, o que acabava por me deixar tímida de uma
forma que não combinava muito comigo.
— Eu não quero que seja a última vez.
Meu coração latejou em um baque seco para depois acelerar em potência máxima.
Apertei os dentes, perdendo totalmente a capacidade de elaborar frases ou agir como
uma pessoa funcional.
Aquilo estava indo longe demais.
E não terminaria bem.
Mas, ignorando toda a minha intuição, apoiei o corpo sobre o cotovelo direito tomando
cuidado para não esbarrar em Ceci e beijei de forma casta seus lábios.
Durou por dois segundos. E sabia que levaria uma vida para esquecer a forma como me
senti.
— Mentir é o que fazemos de melhor.
Ele sorriu.
Eu sorri.
E foi ali que percebi que estava verdadeiramente fodida.
Eu não tinha ideia de como fazer um voto de casamento.
Primeiro, nunca casei. Segundo, não sabia o que falar para Dante. Terceiro, sabia menos
ainda como convencer todos os convidados de nosso profundo e louco amor.
E para ajudar ainda mais, naquela sexta-feira eu estava atolada em trabalho. Estávamos
na fase de implementação de um projeto que custou muito para que fosse aprovado por meu
odiado chefe e amado noivo. Nesse tempo trabalhando com Dante percebi que ele era muito
resistente a mudanças. Então, de pouco em pouco, consegui convencê-lo junto à equipe do
financeiro que mudar era preciso. Aproveitamos que a temporada de inverno estava chegando
para fechar uma parceria com um restaurante local, o mesmo que seria responsável pelas
comidas do casamento, para servir uma experiência gastronômica durante as degustações.
Dante ainda não tinha concordado com o projeto das cabanas com vista para a montanha,
nem em aumentar a quantidade de visitantes, mas já era algo a se comemorar. Eu daria um jeito
de convencê-lo, tinha certeza disso.
Encerrei o dia de trabalho quando já passava das 6h da tarde e resolvi voltar andando
para casa. Dante tinha saído mais cedo, pois iria até a cidade pegar seu terno para o casamento,
mas a picape já estava na frente da casa, indicando que estava de volta. Desde aquela noite em
meu quarto, não conseguimos passar muito tempo juntos que não fosse na hora do jantar ou em
alguma atividade com as crianças, porque o trabalho e os preparativos do casamento tomavam
todo o tempo. O que acabava por ser bom, porque não sabia como lidar com a situação com
normalidade.
Planejando tomar um banho bem quente e me enfiar no pijama mais confortável de
todos, eu entrei em casa, para dois segundos depois, perceber que meus planos seriam
arruinados.
Os cinco homens que eu menos queria ver na minha frente hoje estavam de pé na sala,
em frente a um Dante com a cara fechada e braços cruzados.
— O que vocês estão fazendo aqui? — questionei, abismada.
Foi só então que vi Júlia, Laura e Alicia, sentadas no sofá, rodeadas de malas, assistindo
placidamente o que parecia ser uma discussão entre os garotos e Dante.
— Graças a Deus ela está viva! — Olavo foi o primeiro a ter reação.
Uma reação totalmente exagerada, diga-se de passagem.
Cinco segundos depois, estava sendo amassada por um abraço de urso. Olavo era
gigante, tinha quase dois metros de altura e cada vez que eu o via estava ainda mais musculoso.
— É claro que ela está viva! — Dante retrucou.
— Me solta, Olavo.
Empurrei-o, mas não consegui movê-lo um centímetro para o lado. Ele era uma
montanha de músculos, piadas ruins e conversas intermináveis sofre golfe. Ah, ele também era
um grande gostoso. Pele negra, lábios grossos, olhos castanho-claros e um sorriso que foi o
culpado por fazer com que eu caísse em seu papinho barato. O que tinha de bonito, tinha de
cafajeste. E o que tinha de cafajeste, tinha de coração bom.
— O que vocês estão fazendo aqui?
Encarei Miguel, Vitor, Flávio e Lucas, todos em suas poses protetivas, como se fossem
os Vingadores prontos para salvar o mundo. O que aqueles loucos tinham na cabeça?
Vê-los reunidos naquela sala acabou sendo engraçado, porque um não tinha nada a ver
com o outro, mas de alguma forma esquisita e torta, acabaram se tornando amigos. Miguel era o
mais baixo deles, tão magro que eu poderia tirá-lo do chão com um braço. Vitor estava com os
mesmos cabelos longos, abaixo do ombro, que achei que fosse alucinação minha durante o
velório de minha irmã e Gregório. Ele sempre usava batas e calças folgadas que pareciam
simples, mas eu sabia que custavam mais do que todo o meu guarda-roupa. Lucas era o mais
certinho deles, nunca o vi sem uma camisa social, exceto, bem... Deixa pra lá! Seus cachos
escuros estavam sempre penteados para trás com muito gel. E Flávio parecia inofensivo com sua
cara de menino bom e a fachada de nerd, mas aquele homem era terrível.
Escutei uma gargalhada infantil e logo vi Cecília passar correndo pelo fundo da sala com
Gabriel e Flora, os gêmeos de Miguel. O que me deixou ainda mais confusa.
— Viemos te salvar dele. — Flávio apontou para Dante.
Não foram palavras inteligentes, a julgar pela cara que Dante fez. Ele estava pronto para
voar em cima do meu ex-namorado.
— Eu vou me casar com ele. Sabem disso, certo? — repeti como se fossem crianças. —
Vocês foram convidados, mas o casamento é amanhã. O que diabos estão fazendo aqui?
— Você está claramente em um caso de TEPT. — Lucas se aproximou, tomando o lugar
de Olavo para segurar minha mão com todo o cuidado, como se me desse uma notícia terrível.
— Do quê?
— Transtorno de estresse pós-traumático. Nós vamos te ajudar, Ton. Você não está
sozinha.
Puxei minhas mãos das dele, mais confusa do que tudo.
— Eu não tenho isso.
— Cheira esse óleo essencial aqui, vai te ajudar. — Vitor apareceu com um vidrinho, ao
qual fiz questão de jogar longe.
— Vocês enlouqueceram? — Elevei a voz, saindo de perto daqueles malucos.
— Antônia, nós somos seus amigos e estamos aqui para não deixar que você cometa essa
loucura. Você odeia este homem. — Olavo apontou para Dante. — Você atormenta a nossa vida
há anos falando sobre o quão detestável ele é, sobre a forma como fez com que se sentisse a pior
mulher do mundo, como te magoou e é o maior babaca de todos...
— Olavo! — cortei-o, ciente de que Dante estava escutando.
Ele não precisava saber sobre meus sentimentos ocultos.
— Nós sabemos que você é um pouco obcecada por ele, mas tudo bem, isso vai passar, é
só um sintoma do seu transtorno. — Lucas voltou a me consolar, naquele tom polido e clínico
que psicólogos usam.
Aquilo não chegava nem perto de ser um pesadelo, sim, de uma pegadinha daqueles
programas de auditório. Eu estava com medo do Silvio Santos entrar naquela sala rindo e tirando
uma da minha cara a qualquer momento.
Acuada, acabei escapando de perto dos abraços e olhares protetores e fui para perto de
Dante. Ele parecia ser o único mentalmente estável dali.
— Você deveria ter vergonha de se aproveitar de um momento tão delicado da vida dela,
senhor Albizia. — Miguel batia para baixo do peito de Dante, mas o encarou firme, com dedo
apontado e tudo.
Tapei o rosto, morta de vergonha.
— Shame on you, hermano! — Olavo resolveu apontar o dedo também e juro por tudo
que há mais sagrado, se Dante resolvesse socar a cara deles, não teria cristo que me fizesse não
estar ao lado dele.
— O que esperar de um argentino? Eles se aproveitam de tudo, não é o La Mano de
Dios? — Flávio resolveu que era um bom momento para iniciar uma rixa entre argentinos e
brasileiros.
— Eu não posso me importar menos com futebol, se te interessa. — Dante balançou os
ombros e percebi que era melhor ele ter me mandado para a Turquia trabalhar em um bordel
ilegal do que ofender meus amigos ao dizer que estava cagando para o Santo Graal da vida deles.
— Ele realmente é o Anticristo — Miguel sussurrou para Olavo.
— Comunista! — Lucas gritou do outro lado da sala.
— O que você tem contra comunistas? — Vitor levou para o pessoal.
— Você realmente namorou todos eles? — Dante segurou meu braço, sussurrando ao
meu ouvido enquanto se formava uma discussão acalorada entre Vitor e Lucas.
Em dois segundos eles gritavam um para o outro sobre privilégios, meritocracia e todas
as baboseiras que eu já estava acostumada a ouvir.
— Todo mundo erra. — Suspirei. — Pelo menos nenhum deles fez uma tatuagem para
mim.
Dante revirou os olhos e empinei o queixo, sorrindo para ele, que negou com a cabeça,
mas acabou rindo comigo. Quando voltamos a olhar para os garotos, estavam os cinco parados
de braços cruzados, assustados, olhando para nós dois.
Deslizei minha mão para a de Dante, entrelaçando nossos dedos.
— Desculpa acabar o enredo de filme policial de vocês, mas nós estamos apaixonados e
vamos nos casar amanhã. Não estou doente, não estou sendo obrigada. Na verdade, eu estou bem
feliz.
Dei o crédito aos anos que fiz teatro por minha atuação digna de Fernanda Montenegro,
mas a verdade era que por mais que fosse uma loucura, era real que estava feliz.
— Quando isso começou? — Olavo apontou para nós dois, a novidade ainda lhe
causando estranheza.
Vacilei, porque sabia que eles não cairiam na conversa de que estávamos juntos antes do
acidente dos nossos irmãos.
— Desde que vim morar aqui. — Engoli em seco aquela mentira hedionda.
— Mas você não ficava com Flávio um pouco antes da sua irmã... — A pergunta de
Miguel foi calada por ele mesmo ao perceber que falou demais.
O engraçado era que ele nunca se lembrava de nada, mas para foder minha vida
lembrava bem demais.
Dante virou lentamente o rosto para mim, esperando por minha reação.
— E você não tinha uma namorada? Aeromoça? Que te deu um pé na bunda? — Olavo
falou demais, como sempre.
— Detalhes, pessoal. Detalhes! — minimizei os danos. — Nós temos uma história e
estar aqui... meio que mudou tudo.
— Você dizia que ele era seu pesadelo em formato de homem — Lucas relembrou.
— E que gostaria de fazer uma lobotomia para esquecer que já foi apaixonada por ele. —
Foi de vez de Vitor me envergonhar.
— E que...
— Chega! — gritei antes que Flávio jogasse uma pá de terra em minha dignidade. —
Vocês são meus melhores amigos, por favor, só fiquem felizes por mim. Eu estou bem.
Minha voz murchou ao perceber que eles eram as únicas pessoas, fora Dante e meus
sobrinhos, que eu tinha na vida. Eles estarem ali, mesmo que armando a maior confusão e me
fazendo passar vergonha, significava que se importavam.
— Isso é tão romântico! De inimigos a marido e mulher! — Laura, a esposa de Vitor,
estava emocionada ali no sofá, as mãos sustentando o queixo e os olhos azuis cristalinos pelas
lágrimas.
Ela era um amor de pessoa.
Os garotos ainda estavam sérios, observando cada movimento nosso. Dante resolveu
ajudá-los a acreditar em nossa mentira ao me puxar pela cintura e dar um beijo em minha testa.
Acabei ficando presa em seu olhar por tempo demais e estar ali, ativou novamente aquelas
batidas descompassadas em meu coração. Amanhã ele seria meu marido. Era inacreditável que o
mesmo Dante que passei boa parte de minha vida detestando e querendo esquecer, agora seria o
meu marido. Não pelos motivos certos, mas pelas circunstâncias necessárias.
— Isso, definitivamente, é TEPT. — Escutei a voz de Lucas bem ao longe.
Depois desses primeiros momentos tensos, pude falar direito com eles e as meninas.
Apresentei formalmente Dante para todos e precisei segurar a risada, achando adorável a forma
como ele fingia que não estava com ciúmes de Flávio, ainda mais depois que Cecília recebeu o
meu ex com festa, risos e abraços. Em minha defesa, nós éramos muito amigos, existiam
algumas recaídas, mas Flávio sempre foi presente em minha vida, ainda mais por sermos
vizinhos.
Dante poderia ter enxotado todos eles da casa, mas os convidou para ficarem até o
casamento. Depois de todos estarem acomodados em seus quartos, nós nos reunimos para o
jantar. Foi esquisito ter tantos convidados ali, porque durante muito tempo fomos apenas Dante,
as crianças e eu. O engraçado foi perceber que mesmo com as conversas, os risos e fofocas, nós
ainda tínhamos o nosso mundinho. Ele oferecia o suco para as crianças, enquanto eu cortava a
carne, depois trocávamos os pratos, porque eu era boa em convencer Milo a comer sem cuspir e
ele era ótimo em enrolar Cecília na conversa para não ver a quantidade de legumes que comia.
Quando ergui a cabeça, meus amigos estavam olhando de uma forma esquisita em nossa
direção. Escolhi ignorar e comer, porque precisava de sustância para aguentar o dia de amanhã.
A cerimônia seria no final da tarde, o que significava que precisaria acordar bem cedo para fazer
a unha e arrumar meu cabelo e a maquiagem. Planejava fazer algo simples, mas como não tinha
muita prática, levaria um tempo.
Depois do jantar, recebi ajuda das garotas para arrumar a cozinha e, quando retornei à
sala, vi Dante jogado no chão, brincando com Ceci, Milo e os gêmeos. Ser relembrada de tudo o
que costumava falar de Dante fez com que eu pensasse no tanto que ele tinha evoluído. Dante era
tão sério, tão certinho, um robô sem emoções. E agora ele rolava no chão com as crianças, estava
pronto para enganar a todos em um casamento de mentira e eu já tinha perdido as contas de
quantas vezes choramos um na frente do outro.
Eu estaria mentindo se dissesse que não gostava muito dessas mudanças.
— Estão fazendo isso pelas crianças, não estão?
Coloquei a mão no coração, sentindo-o ir parar na boca pelo susto que levei de Miguel.
Ele simplesmente brotou ao meu lado.
— O quê? — gaguejei.
— O casamento.
Eu odiava os piscianos. O que eles tinham de lerdos, tinham de observadores.
— Não. — Não fui firme, o que mostrava por que minha carreira no teatro falhou; eu não
acreditava nas minhas próprias mentiras.
— Eu faria o impossível por minha família. E agora você também tem uma. Eu entendo,
Anto.
Mordi a ponta da língua antes que me debulhasse em lágrimas em sua frente.
— Por favor, não conta para ninguém.
Ele negou e passou um braço por meus ombros, abraçando-me com todo o carinho que
existia nele. Miguel era uma pessoa incrível, era muito grata por meu caminho ter cruzado com o
dele.
— Contem comigo para o que precisarem, tudo bem? — Recebi um beijo na lateral de
minha cabeça. — E, quem sabe, não possa existir um recomeço para vocês em tudo isso?
Não consegui responder, porque a ideia ainda me apavorava. Todas aquelas sensações,
sentimentos antigos, novos, tudo estava muito confuso nos últimos tempos.
Retornei ao meu quarto depois de colocar as crianças na cama e desejar uma boa noite
para nossos convidados.
Respirei fundo ao fechar a porta do quarto e encostar na madeira fria.
Amanhã.
Eu me casaria com Dante amanhã.
E precisava fazer os votos!
Não dava mais para correr, precisava resolver isso agora.
Com o celular em mãos, fiquei alguns minutos olhando a tela do bloco de notas, incapaz
de elaborar uma mísera frase sequer. Talvez eu não tivesse nada para falar sobre Dante e estava
tudo bem.
Digitei no Google “Votos de casamento exemplo” e passei os próximos minutos imersa
nas mais variedades de votos já escritas. Alguns engraçados, outros tão românticos que fez com
que eu pensasse como deve ser lindo ser amada nesse nível. Pensei seriamente em plagiar um
daqueles exemples. Dante não se importaria, eu tinha certeza.
Porém, pensei que se fosse para copiar o texto de outra pessoa, que pelo menos fizesse
isso direito, em um papel, com uma caneta bonita, demonstrando que era caprichosa e
apaixonada.
Como não tinha papel e caneta no quarto, fui até o local onde sabia que teria o que
precisava.
O escritório de Dante.
Não foi nada difícil achar o que eu precisava naquele escritório que mais parecia um
daqueles cômodos de revistas de design de interiores. Tudo era tão arrumado e impecável, que
senti medo até de roubar uma das canetas pretas — iguais e perfeitamente alinhadas em cima da
mesa — e desorganizar toda a vida daquela pobre alma perturbada.
Tentei abrir a primeira gaveta, mas estava trancada.
O que será que ele guardava ali? Armas? Dinheiro? Drogas? Um coração?
— Isso é uma missão para descobrir meus segredos?
O susto por escutar a voz de Dante naquela sala escura fez com que esbarrasse nas
canetas, derrubando três delas no chão. Quando tentei salvá-las, acabei batendo a cabeça na
quina da mesa e quase derrubei o monitor do iMac dele.
— Ai! Desculpa!
Não sabia se pedia desculpas, se salvava o monitor, se massageava minha cabeça
dolorida.
— Deixe-me ver... — Em questão de um segundo ele atravessou a sala, tomando meu
rosto para ele. — Não cortou. Está doendo?
— Quando eu casar, sara. — Usei o ditado que minha mãe sempre usava para consolar
Vitória e eu quando sofríamos algum machucado.
Dante riu baixinho e acariciou de leve a região dolorida. Quando aquele dia parecia que
não poderia ficar ainda mais confuso, seus lábios depositaram um beijo tão delicado e singelo
onde doía, que eu pensei que fosse uma alucinação por conta da batida.
— Cecília me ensinou que essa forma é mais eficaz.
Fiquei em silêncio, derretida como um sorvete no asfalto do Rio de Janeiro.
Inferno de homem!
— Estava procurando caneta e papel — mudei de assunto, querendo me livrar daquela
névoa confusa que surgia quando estávamos juntos.
— Para os seus votos? — a pergunta tinha um tom de zombaria.
— Sim. — Fiquei com vergonha de admitir.
— Confesso que estou ansioso para saber o que você tem a falar sobre a nossa relação.
— Meu bem, eu poderia fazer uma redação do ENEM.
— Imagino que sim. Seus amigos deixaram bem claro tudo o que pensa sobre mim.
Ele entrou naquele assunto que eu queria muito evitar, mas em um gesto de pura
misericórdia, tirou as mãos de mim e foi para o lado da mesa, abrindo a segunda gaveta de onde
tirou um bloco com um monograma dourado no rodapé da folha.
Levei algum tempo para perceber que seus papéis tinham suas iniciais. Ele não se
cansava de ser um esnobe.
— Obrigada. — Peguei todo o bloco, porque sabia que iria precisar.
— Por nada.
Ficamos nos olhando por tempo suficiente para aquele clima estranho surgir entre nós.
— Você já escreveu os seus?
— Copiei de um site.
— Você roubou a minha ideia — reclamei, dando um soquinho em seu abdômen.
Estava pronta para dar as costas e sair dali, antes que tudo ficasse ainda mais confuso,
mas ele cruzou os braços e falou:
— Uma lobotomia então, uh?
Apertei os olhos, ciente de que ele queria entrar naquele assunto. Tinha esperanças de
que fosse algo que ele nunca mais quisesse falar sobre, mas Dante não facilitaria tanto assim a
minha vida.
— Duvido que nunca tenha falado algo cruel sobre mim também.
Dante negou, mas não existia um pingo de verdade em seus olhos. Nosso passatempo
preferido antes era falar mal um do outro para nossos irmãos. No meu caso, para qualquer um
que me dessa brecha.
Fiquei inquieta ali, quase que sufocada. Aquele assunto ainda era algo que me
incomodava para valer, por mais que minha relação com Dante tivesse melhorado, só eu sabia o
quanto doeu ter meu coração estilhaçado pela primeira vez.
— Eu fiz você se sentir a pior mulher do mundo, mesmo?
Coloquei os papéis e a caneta novamente em cima da mesa e, quando voltei a olhar para
Dante, sentia que tinha envelhecido vinte anos em dez segundos.
— Nós realmente vamos falar sobre esse assunto?
Ele assentiu.
— Eu gostaria.
Era uma surpresa, visto que ele era sempre o primeiro a fugir quando nosso passado
retornava a ser pauta. Mas ele estava em seu direito e, pensando bem, nós nos casaríamos
amanhã e eu não poderia me casar com aquela dúvida que sempre me assombrou.
Por que ele me tratou tão mal naquele restaurante? Por que fez com que eu acreditasse
que pudesse existir um futuro para nós sendo que ele nunca quis?
Virei as costas e fui para a poltrona de couro ao lado da estante lotada de livros que
tomava conta de toda a parede. Havia outra poltrona idêntica à que me sentei, que foi onde Dante
escolheu se acomodar.
— Você vai responder às perguntas que tenho?
— Claro.
— Da forma que elas merecem ser respondidas? — Eu duvidava, mas ele concordou. —
Por que você me tratou tão mal naquele restaurante?
Dante ficou em silêncio e percebi que era uma perda de tempo o que fazíamos ali. Essas
questões nunca seriam encerradas, porque era passado.
E não devemos mexer no passado.
Irritada, levantei da poltrona. Estava ficando tarde e eu precisava copiar aqueles malditos
votos de algum lugar. Só que Dante não deixou, segurando meu pulso e impediu que me
afastasse dele.
— Eu estava apaixonado por você.
Tive vontade de rir, mas segurei, porque ele era tão bom mentindo que nem piscava.
— Você? Apaixonado por mim? — ralhei, sentindo a irritação borbulhar dentro de mim.
— Dante, eu vou dormir. Já deu por hoje.
Consegui me soltar dele, dei as costas e, quando estava próxima das folhas e da caneta
novamente, escutei sua voz.
— Nunca fui bom nisso de amar alguém, até hoje não sou. Antes culpava o
relacionamento dos meus pais, o meu próprio pai que sempre foi um ogro comigo e com
Gregório, talvez até seja um pouco disso, mas não sou o tipo de cara que joga a culpa nos outros
por meus problemas. Tudo era simples para mim, meus sentimentos eram claros. Eu morreria
pelo meu irmão, sentia saudades da minha mãe e queria uma vida longe do meu pai. Era simples
e fácil. E aí eu te conheci.
Segurei a borda da mesa, minhas pernas meio trêmulas por escutá-lo falando sério, sem
sarcasmo, raiva ou qualquer outro subterfúgio que não fosse verdade. Dante parecia realmente
estar sendo sincero.
— Eu não queria que as outras garotas que conheci antes de você gostassem de mim,
porque sabia que seria momentâneo, seria um beijo ou uma noite e pronto, teria fim e tudo bem
para mim. Só que quando vi sua foto naquele aplicativo, quis que gostasse de mim. O mais
engraçado de tudo isso é que você foi a primeira pessoa que apareceu para mim. Gregório tinha
acabado de baixar o aplicativo no meu celular, estava puto da vida porque não queria que as
pessoas achassem que eu estava desesperado por alguém. A primeira garota que apareceu para
mim, mesmo há quase três mil quilômetros de distância, qual a chance disso?
Precisei virar, porque necessitava olhar nos olhos dele para vê-lo falar aquelas sandices.
— Você gostou da mentira que eu era naquelas fotos, Dante. Tanto que quando viu a
realidade, mudou completamente.
— Eu queria muito que você se enxergasse da forma como te enxergo.
— Não preciso da sua validação para me sentir melhor comigo mesma, meu bem. Graças
a Deus sua babaquice naquele restaurante fez com que eu enxergasse que não preciso mudar
quem sou por homem nenhum. Eu era nova demais para perceber isso, mas agora eu sei.
Aquele assunto ainda era tão delicado, que quando percebi já estava com a voz alterada,
gritando na frente de Dante. Só eu sabia o inferno que passei por culpar minha aparência pela
forma como Dante agiu. Demorou anos para que me entendesse comigo, que fizesse as pazes
com a balança, que passasse a me amar com minhas coxas grandes, a barriga marcando e aquela
maldita gordurinha nas costas.
Eu não era só um corpo que precisava ser validado por alguém. Era uma companheira
incrível, uma irmã, uma filha, alguém que tinha sonhos, desejos e esperanças. Alguém que queria
ser feliz e fazer outra pessoa feliz, ter um relacionamento bom, uma carreira que me desse
orgulho. Alguém que era a junção de todas as pessoas que passaram por minha vida e deixaram
algo de bom. Alguém que queria muito ser amada, mas que não se perderia nunca mais para
caber na vida de alguém.
— O que aconteceu no restaurante não foi por sua aparência. Você é a criatura mais
bonita que já cruzou a minha vida, sempre foi, sempre será. — Dante também perdeu a paciência
e alterou a voz, só que diferente dele, eu murchei diante daquela revelação. — Foi pela mentira.
E depois da mentira, veio o medo. Eu gostava de você, mas e se tudo fosse mentira? E se nada do
que vivemos foi verdade? Eu congelei de medo, Antônia. Eu não queria amar alguém que
tivesse a índole do meu pai e deixei que isso entrasse tanto na minha cabeça, que não consegui
nem saber quem você era de verdade.
Puta que pariu!
Joguei o corpo novamente na poltrona.
— Não foi pela minha aparência? — Quis confirmar para assinar o atestado de maior
otária do planeta para mim.
— Você poderia ser verde com pintas cor-de-rosa, eu continuaria querendo te comer
cada vez que colocasse meus olhos em você. Sabe quanto tempo eu sonhei com aquele maldito
vestido preto? Tudo o que eu mais queria naquele encontro era arrancar do seu corpo da mesma
forma que fiz no carro. Esperei dez anos por isso.
Cruzei as pernas e tapei a boca com a mão esquerda, repensando todos os
acontecimentos daquela fatídica noite.
Eu menti.
Ele paralisou.
Eu criei expectativas.
Ele criou paranoias.
E então eu decidi dar para o irmão dele.
— Dante... — Agora minha voz era um fiapo. — O que aconteceu com Gregório...
Eu tentei me explicar, mas falhei. Puta que pariu!
Por ser tão insegura e tão imatura, achei que fosse uma ideia incrível transar com o irmão
do único cara com quem tive uma conexão real em meus dezoito anos de vida. Enquanto ele
criava suas paranoias de que eu era uma cópia de seu pai, eu só provei que era mesmo.
— Nunca mais consegui deixar que alguém se aproximasse tanto de mim depois daquele
encontro. Quando você disse naquele dia na adega que nunca deixei ninguém se aproximar e por
isso nunca tive o coração partido, era mentira. Você me quebrou para sempre, Antônia.
O pior de tudo daquela conversa era que ela estava ridiculamente atrasada. Deixamos a
vida passar e agora não restava nada a ser feito. Eu nunca tomaria as mesmas decisões que tomei
naquela época. Dante, talvez, pudesse perceber que as pessoas são falhas. Só que não dava para
mudar o que já estava feito.
— Nunca consegui superar o que aconteceu, porque eu te quis tanto, mas tanto, que não
ter nada foi uma tortura. Você também me quebrou, Dante. E eu não soube seguir em frente
desde então. — Respirei aliviada por finalmente falar a verdade. — Só que eu dei para seu irmão
e fodi tudo. Então preciso pedir perdão por ser tão imatura, e vingativa, e boba. Eu não sou mais
essa pessoa.
Para minha surpresa, ele começou a rir. Foi o único momento de alívio que tive desde
que entrei naquele escritório. Eu achava que seria uma conversa tão difícil — o que foi —, mas
não imaginava que fosse me sentir tão bem ao final dela.
— Tudo bem, quem saiu perdendo foi você. — Aquele brilho de malícia voltou a
aparecer em seus olhos.
Belisquei a coxa dele, mas fui surpreendida por um cruel e inesperado ataque de sua
parte. Quando percebi onde estava já era tarde demais; nos braços no inimigo, sentada
perigosamente em sua pelve.
— Desculpe por te fazer sentir insegura ou insuficiente. Você foi a única mulher em
todos esses anos que me deixou totalmente sem palavras. Eu gostaria de ter dado uma chance de
você mostrar quem era naquele dia, porque agora eu sei o que perdi. E eu gosto de cada parte
sua, Antônia.
Fechei os olhos, aproveitando o carinho que ele fazia na lateral do meu pescoço até a
clavícula.
— Você gosta ou gostava? — provoquei, passando meus braços por seu pescoço,
aproximando-nos ainda mais.
Seus lábios tremularam, mas ele escolheu sorrir.
— Acho que você vai precisar descobrir isso sozinha.
Assenti, porque tempo para isso eu teria. Muitos e muitos dias ao lado do meu marido.
Sua mão escorregou de minha clavícula para as costas, parando logo acima do cós da
calça do pijama. Ele estava me tentando e eu não era dona de nenhum autocontrole para perceber
que aquele jogo era perigoso demais.
Tinha prazo de validade.
Envolvia dezenas de questões.
E, principalmente, estava fadado ao fracasso.
A boca próxima da minha era o maior golpe baixo, porque fui eu quem ditou as regras
ali. E sabia que teria de ser eu também a mandá-las para os ares.
— Para de complicar o que já está complicado.
— Você é meu problema favorito, cariño.
Ah, quer saber? Foda-se!
Nenhum casamento terminava bem, mas pelo que eu sabia, todos começavam da melhor
forma possível.
Por que o meu não começaria?
Quando hesitava e pensava que deveria me afastar, já estava com as mãos na bochecha
de Dante, minha boca sobre a dele, nossas línguas se tocando com lentidão.
Ele fazia com que meu corpo queimasse.
E eu queria mais.
Precisava de mais.
Sua mão em minha cintura, sua quentura em minha pele, a intensidade que eu sabia que
me esperava. Tudo em Dante me atraía, não sabia nem porque tentava negar se até ele já
percebeu.
— Adoro quando me chama assim — confessei, em um gemido.
— Cariño? — soprou ao meu ouvido. — Amanhã você será minha, cariño. — Ele
beijou meu queixo. — Só minha.
— Serei? — Arqueei a sobrancelha, provocativa.
— Pelo tempo que durar. Sem últimas vezes.
Eu gostava daquilo. Gostava demais.
— Isso é um acordo?
— Todos os nossos foram bons até aqui.
Mais um beijo foi depositado em meus lábios, seguido pelo queixo, mandíbula.
— Quais as regras? — Gostava daquilo. Gostava muito daquilo.
— A regra é não ter regras. — Seu sorriso revirava todo meu estômago, porque era ali
que descobria que estava genuinamente fodida. — Mas aquele seu ex-namorado, o seu vizinho...
Estreitei os olhos, esperando para ver se teria coragem de continuar.
— O que tem ele?
— Ficará só como um amigo, certo?
Ele realmente achava que eu ainda teria algo com Flávio? Nunca tinha visto Dante ser
ciumento, até porque ele nunca deixou que alguém permanecesse em sua vida tempo o suficiente
para isso acontecer, mas não negaria que adorei. Era excitante.
— Isso vale para você também? Vai controlar seus feromônios aguçados e impedir que
ninguém ouse fazer mais nenhuma tatuagem para você?
Levei um tapa na bunda em resposta.
— Somos só você e eu.
Mordi seu lábio inferior, testando seus limites.
— Enquanto durar.
— Enquanto durar — repeti como uma promessa.
Ele me beijou novamente e amoleci em seus braços, desejando que cada mínima parte
minha fosse tocada por ele. Cada vez que estava em seus braços, sentia que o mundo se calava.
Minha cabeça nunca ficava vazia, eu era sempre atormentada por pensar demais, ansiar demais.
Mas era esse homem que quebrou meu coração anos atrás o responsável por silenciar todos os
pensamentos e me fazer focar no agora.
Deslizei as unhas por baixo da camisa dele, sentindo os músculos enrijecerem ao meu
toque.
Tantas possibilidades...
— Até amanhã, Milani.
Quando percebei, estava em outra posição na poltrona e ele de pé. Minha boca quase
indo parar no chão.
— Aonde você vai?
— Dormir — disse como se fosse simples. — Amanhã será um dia cheio.
— Mas... — gaguejei como uma boba. — Nós não vamos dormir juntos?
Soei patética e sentia isso em cada célula. Ele curvou a coluna, usando as mãos para
segurar as laterais da poltrona, tão próximo ao meu rosto que seu nariz encostou ao meu.
— Dormir não era bem a palavra que definiria o que eu faria com você essa noite. — Eu
gostava tanto dessa nova versão de Dante. Talvez não fosse nova, eu só tinha desbloqueado
aquela fase e agora poderia aproveitar cada instante. — Mas sou um cara religioso e escolho
esperar até amanhã.
A mãe de Dante e Gregório parecia ser gente boa demais e, que me perdoasse, mas que
grande filho da puta!
— Dante! — reclamei, mas acabei sendo calada por um selinho.
— Além de que, você ainda tem seus votos para escrever. Capriche na sua redação,
porque eu mereço.
Mostrando que continuava sendo um belo de um babaca, ele saiu do escritório, deixando
meu corpo ardendo e minha mente borbulhando.
Eu só queria transar. O que custava?
Ainda fiquei um tempo sentada na poltrona, absorvendo tudo o que tinha acontecido
naquela noite.
Dante gostou de mim da mesma forma que eu gostei dele.
Saber aquela parte não foi uma ilusão, deixou meu coração em paz. Eu adorei cada
segundo que passei com Dante naquelas conversas intermináveis sobre nossa vida, nossa rotina,
sobre sentimentos e tudo mais que dava na telha. Eu me apaixonei sem nem conhecê-lo
pessoalmente.
O que aconteceu depois... Bem, isso já era obra do destino.
Talvez, se fosse diferente, Gregório e Vitória não tivessem se apaixonado, as crianças
poderiam nem existir e toda a nossa vida seria estupidamente diferente.
Mesmo com todos os desvios e caminhos tortuosos, nós estávamos aqui...
Exatamente como Vitória falou que um dia aconteceria.
Perceber isso, não me deixou puta como normalmente ficava quando ela vinha com essa
história. Comecei a rir, porque Vitória sempre tinha razão, até mesmo quando nada parecia fazer
o menor sentido.
Foi aqui, na penumbra desse escritório excessivamente organizado, com o cheiro de
Dante impregnado em todos os cantos e diante da situação mais ambígua que já vivi até então,
que senti a presença da minha irmã.
Eu sabia que Vitória estaria comigo para sempre. E que eu não estaria mais sozinha.
Depois disso, escrever aqueles votos foi a coisa mais fácil de todas.
Nunca fui tão bem tratada na vida quanto no dia do meu casamento.
Logo de manhã fui surpreendida com a notícia de que Dante contratou uma equipe de
beleza para me auxiliar durante o dia. Elite. Isso era a elite.
Fui massageada, amassada, depilada, paparicada, penteada e maquiada por tanto tempo,
que não sobrou um minuto nem para a ansiedade.
Quando vinha o pensamento “Meu Deus, vou me casar com Dante” eu recebia uma
massagem no couro cabeludo e aquietava.
“Isso vai dar certo?” Massagem nas mãos.
“Eu estou sentindo coisas que não deveria?” Shiatsu.
Só consegui ficar realmente nervosa quando encontrei o meu reflexo no espelho, já
pronta, no final daquela tarde. Eu era uma noiva. Oficialmente uma noiva. Daquelas que
brilhavam, que se sentiam como uma princesa dos contos de fadas.
Eu deveria estar tão bonita para um casamento que estava fadado ao fracasso? Tudo bem,
existia uma boa dose de tesão entre Dante e eu, ainda assim, não seria real, não seria para
sempre, como era esperado que fosse.
No meio da minha crise existencial matrimonial, fui interrompida por Olavo, entrando no
quarto já arrumado para a cerimônia. Ele sempre foi estiloso e gostava de ousar em suas
produções, não era para menos que estava com um terno lilás. Pareceria esquisito em qualquer
outra pessoa, mas nele combinava.
— Uau, Ton Ton. Você está muito gata.
Recebi o elogio com um sorriso e voltei a admirar cada parte daquela produção. Eu
gostava de muitas versões minhas, mas a de noiva era a preferida. O vestido clássico, com o
tecido encorpado e levemente brilhoso era uma obra de arte, fazia com que me sentisse como a
Cinderela em sua noite inesquecível no baile. A maquiagem não era pesada, mas seguia sem
entender a magia que Luiz fez comigo.
Ainda era eu, só que com uma pele impecável, meus olhos foram destacados e a boca
parecia mais volumosa. Meus cabelos estavam presos em um coque baixo com pequenas mechas
soltas e eu acreditava que a parte que fazia com que me sentisse uma noiva de verdade fosse o
véu. Era tão leve, tão bonito e delicado; longo da forma que sempre sonhei que fosse durante
aquelas brincadeiras na infância com Vitória. Ela colocava um lençol em cima da minha cabeça e
eu desfilava pela sala, acenando para meus convidados imaginários.
O engraçado era que naquela época eu nem pensava sobre o noivo. Ele existiria, porque
tinha de existir, certo? A única certeza que eu tinha era que, quando o dia chegasse, Vitória seria
uma das pessoas para quem eu acenaria, usando meu vestido bonito e o véu longo.
E queria tanto que ela estivesse aqui.
— Estou profundamente arrependido por ter perdido essa noiva espetacular. — Ele fez
um bico nem um pouco convincente.
O bom humor de Olavo acabou com meu sentimento de tristeza por conta de Vitória.
Assumi uma expressão desdenhosa para o espelho.
— Quem não te conhece que te compre, Olavo. Mais fácil Flávio casar com a sua mãe do
que você assumir um compromisso sério com alguém.
— Isso foi rude.
Eu sabia, ainda era um assunto delicado para ele.
— Estou pronta. — Virei de frente, reunindo toda a coragem que existia em meu ser para
sair daquele quarto.
Eu estava pronta.
Eu faria isso.
E daria tudo certo.
— Seu argentino discorda. — Percebi que em suas mãos estavam um estojo de couro
preto. — Ele pediu que eu entregasse para você.
— Dante? — Ele? Me dando presentes? Aquilo era novidade. — Você estava com ele?
— Sim, ele mostrou a vinícola e ofereceu vinho de graça. Miguel está vomitando nesse
exato momento.
Cruzei os braços, desconfiada. Não conseguiria projetar a imagem de Dante e meus
amigos confraternizando antes do casamento, tomando vinho e jogando conversa fora.
— E foi legal? — perguntei, ainda mais desconfiada.
— Você foi bem exagerada, ele nem é tão ruim assim.
— O problema é comigo, com os outros ele é minimamente tolerável. — Dei de ombros.
— Passa para cá.
Ele ergueu o braço, tirando o estojo do meu campo de alcance. Do campo de alcance de
qualquer ser humano normal e que não fosse quase do tamanho de um avatar.
— Você está feliz? — Seus olhos adquiriram uma preocupação exacerbada.
Engoli em seco e arrumei a postura.
— Estou.
— Não está se metendo em problemas, certo?
Neguei prontamente. Ele ainda pareceu desconfiado, mas desceu o braço e colocou o
estojo em minhas mãos.
Era um quadrado grande, maior que minha palma. E fiquei ansiosa em abrir logo. Ao
puxar a tampa, percebi um bilhete naquele papel de carta com o monograma dele e sua caligrafia
irritantemente perfeita.

Para que eles te acompanhem.


Te espero no altar, cariño.
Hoje não consegui comer muito bem e agora senti o filé de frango com legumes que
comi no almoço revirar meu estômago por aquele bilhete. E a sensação foi triplicada quando tirei
o veludo preto de cima do conjunto de joias que fez meus olhos marejarem de imediato.
Ah, Dante...
Em minhas mãos estavam o colar e brincos usados por Vitória em seu casamento. Foi
um presente de Gregório e, puxando em minha memória, me lembro do quão impactada Vitória
ficou ao saber que eram as joias preferidas da mãe dos meninos. Uma herança, um presente mais
do que especial para acompanhá-la em seu grande dia.
Eu tinha certeza de que aquelas joias estavam no cofre da casa deles em São Paulo, que
eu preferi deixar da mesma forma que eles mantinham. E agora estavam aqui...
No dia do meu casamento.
Algo tão delicado, que significava tanto para mim. Para ele.
Toquei o delicado cordão adornado por pérolas e brilhantes. Os brincos, em formato de
gota, tinham as mesmas pedras, porém em um tamanho maior. Impecáveis, lindas e tão
importantes para mim.
— Sabia que descobri que seu argentino é podre de rico? Tudo bem que na cotação
daqui, deve ser o mesmo que ter dez reais.
Fechei a cara ao escutar Olavo tagarelar sem parar, estragando meu momento lindo.
— A família tem dinheiro há muitas gerações, bem old money, mesmo. Pesquisei na
internet. — Ele não parava. — Não está querendo dar uma de Saltburn para cima dele, não é?
— Você se importa? — Tentei soar educada, mas não obtive resultado.
— Não, deixa que eu te ajudo.
Ele retirou o estojo de minhas mãos, o que não era bem isso que eu queria que fizesse.
Só queria que parasse de falar e deixasse com que eu pudesse apreciar aquele momento especial
que Dante proporcionou. Mas, acabei deixando com que ajudasse a colocar o colar, que
combinou perfeitamente com meu vestido.
Coloquei os brincos e respirei fundo. Agora, mais do que pronta.
— Você quer que eu te leve até o altar? — Olavo ofereceu. — Não é o mesmo que ter
sua mãe e Vitória com você, mas... sou eu, deve dar para o gasto.
Ele era especial da sua maneira e eu o adorava. Fiquei na ponta dos pés para depositar
um beijo em sua bochecha e olhei em seus olhos ao falar:
— Obrigada, mas já tenho as melhores companhias para me levar.
E não menti.
Quinze minutos depois, sob o pôr do sol que era a mistura perfeita do laranja com o rosa,
entrei com meus dois melhores amigos desse mundo todo.
Cecília estava de mãos dadas comigo, seu vestido era uma versão mais leve e mais
confortável do meu, com o mesmo tecido. Nem Cristo conseguiu convencê-la a não usar uma
galocha transparente que não combinava em absolutamente nada com o vestido e daqui a duas
horas deixaria seu pé em carne viva. Ela estava tão feliz, sorrindo e acenando para todos os
convidados. Exatamente da forma que Vitória e eu fazíamos muitos anos atrás. Ter Cecília e
Milo aqui comigo era como também ter minha irmã.
Milo estava no meu colo, apoiado no ossinho do quadril. O mais lindo e mais importante
buquê que uma noiva já teve. Ele estava a coisa mais perfeita do mundo com uma calça social
cinza, camisa branca e suspensório.
Juntos, dei o primeiro passo vacilante rumo ao meu futuro incerto.
Muitos olhos estavam em mim, mas os meus estavam fixos em um ponto ao final
daquela passarela de madeira, adornada por arranjos elaborados e extremamente requintados de
capim de pampas. A forma como Dante me olhava foi o meu ponto de foco. Ele não sorria, mas
também não chorava daquela forma forçada que muitos noivos faziam para ser um momento
bonito na filmagem de casamento. Ele não piscava, como se estivesse de frente para uma
miragem.
Eu o entendia, porque tudo aquilo era demais. Roma tinha passado de todos os limites.
Por isso cartões de crédito com limites eram necessários.
Já fui a muitos casamentos ao longo da vida, mas nenhum como esse. Nem nos meus
melhores sonhos imaginei que teria um desses. A vista, mesmo que não tivesse nada, já seria
impressionante, mas aquela garota ultrapassou todos os limites e escolheu a decoração mais
bonita que já tinha visto. As folhagens secas em tom marfim, o grande círculo com as mesmas
plantas e folhagens em um tom rico e intenso de esmeralda.
David poderia ficar tranquilo e cancelar o processo pela tutela das crianças, porque
depois desse casamento, não sobraria um tostão da família se dependesse de Roma.
Neguei sutilmente com a cabeça, achando tudo aquilo uma completa loucura. Deveria ser
algo íntimo, pequeno, sutil. Mas metade da cidade estava de pé, assistindo a minha entrada lenta
sob os acordes de uma orquestra — sim, uma orquestra! — tocando Daylight, do David Kushner.
Dois dias atrás Roma perguntou qual música lembrava minha relação com Dante. Sabia
que poderia mentir e inventar qualquer uma, mas aquela era uma das minhas preferidas e, bem...
Era feita para nós. Agora tocava na minha entrada, no nosso casamento. Roma era mesmo uma
cobra peçonhenta.
Dante seguia sem piscar. Poderia jurar que nem respirando ele estava.
Seria o pânico? O nervoso? A vontade de desistir e sair correndo?
Juraria que se esse homem me largasse nesse altar, neste casamento fictício, eu era capaz
de cometer atrocidades com ele, ainda que estivesse mais gato do que nunca naquela roupa de
noivo. O terno azul-escuro era clássico e sóbrio, caindo como um manto régio em seu corpo.
Dante era impressionante todos os dias, mas no alto daquele altar ele nunca esteve mais lindo.
Assim que fui recebida por ele ao final da passarela, senti que o mundo pareceu girar
lentamente. Não existiam convidados, não existia aquela cerimônia luxuosa e exagerada, não
existia mentiras e ficção.
Éramos nós ali. Somente nós.
— Milani. — Sua saudação ao tirar o véu do meu rosto fez um sorriso genuíno surgir.
— Pronto?
— Sempre.
Roma, com seu vestido rodado e com os tons do arco-íris, parecia uma versão moderna e
saltitante da Lucy Gray. Já Miranda, que surgiu ao seu lado para me ajudar com as crianças,
vestia preto da cabeça aos pés.
Quando voltei para Dante, sua mão estava esticada para mim.
Aceitei e embarquei naquela brincadeira que o destino aprontou para nós.
Roma obedeceu a nossa vontade de ter somente um juiz de paz como celebrante. Uma
cerimônia rápida que resolveria todas nossas questões burocráticas e não deixaria margem para
questionamentos. Parecia errado envolver religião em uma mentira daquelas. Fora que se eu me
casasse com Dante na igreja, não poderia nunca mais casar com outra pessoa lá. Gastaria minha
chance aos olhos de Deus com uma mentira.
Se bem que, olhando para Dante ao meu lado, sua mão na minha, a forma como ele
ignorava o celebrante para olhar a todo instante para mim, eu não me importaria de gastar essa
chance, não.
Que noivo que eu arrumaria que seria tão lindo quanto ele?
Um raio não caía duas vezes no mesmo lugar.
A cerimônia foi rápida. Aceitei Dante como meu legítimo esposo. Ele me aceitou como
sua legítima esposa. Ninguém tinha nada a falar contra a o casamento e, se tivesse, teria de ficar
calado para sempre.
Cecília entrou com as alianças, graciosa, sem um pingo de vergonha, o que mostrava que
era realmente filha de Vitória e Gregório.
Roma surgiu com os papéis em que ontem escrevi meus votos, provando que não só era
uma assistente pessoal incrível como uma assessora de casamentos também.
Um microfone foi colocado em frente ao meu rosto pelo juiz de paz e percebi que teria
de falar tudo aquilo que escrevi do fundo do meu coração na frente de todas aquelas pessoas.
Por que eu tinha de ir primeiro?
Ergui os olhos para Dante, temerosa.
Seu polegar acariciou a lateral da minha mão, ainda entrelaçada a dele.
Éramos ele e eu contra o mundo. Não havia o que temer.
— Eu gostaria de tomar a liberdade de usar esse espaço para ler algo que escrevi para
uma pessoa especial. — Fiz uma pausa, percebendo o sorrisinho presunçoso nos lábios dele. —
Que não é você, Dante.
Houve certa comoção entre os convidados e dei de ombros ao vê-lo jogar o peso do
corpo para a perna direita, olhando-me com mais atenção.
Abaixei os olhos para meu papel de carta e comecei a ler.

“Querida Vitória,

Eu tenho uma novidade. Algo que tenho certeza de que você nunca esperou vindo de
mim.
Estou me casando hoje. Pois é, surreal. Mas, essa não é a maior novidade de todas.
Espero que você esteja sentada confortavelmente e, por favor, afaste das suas roupas esse
matchá com gosto de grama, porque você pode derrubar quando eu contar quem é o homem que
escolhi para partilhar esse momento comigo.
Não quero ver esse sorrisinho pretensioso de quem acha que tem o poder de prever o
futuro.
Não quero escutar que você estava certa e sempre sabe de tudo.
É Dante, o irmão do Gregório, o seu cunhado, pois é. Agora que você sabe, por favor,
não seja cruel. Ainda é um assunto delicado para mim.
Você foi a primeira pessoa a saber quando o conheci. Disse que ele tinha olhos lindos,
mas que o sorriso não chegava a eles. Aquele tipo de pessoa que carrega todos os problemas do
mundo em suas costas. E, bem, você estava certa.
Você me aturou durante todos aqueles meses até tarde da noite, sorrindo para o celular
como uma adolescente boba, o que na verdade, eu era. Nunca reclamou quando contei
quinhentas vezes sobre cada detalhe que descobri sobre ele, mesmo que trabalhasse cedo no
outro dia e não aguentasse mais me ouvir falar sobre um cara; nem mesmo surtou depois de
meses me escutar treinar espanhol com o Duolingo. Sei que ainda tem pesadelos em escutar
“Soy una manzana roja”.
Foi você quem me levou até aquele hotel chique, deu um beijo no meu rosto, disse que eu
estava linda e que fosse eu mesma, porque não existia como alguém não gostar de mim. Só que
naquela época, eu não gostava de mim, Vitória.
E Dante... Bem, Dante realmente carregava todos os problemas do mundo nas costas. E
não conseguia deixar ninguém entrar na vida dele.
Nunca tinha sofrido de amor até então. Eu nem sabia que poderia gostar tanto de uma
pessoa que nunca tinha visto, que escutei a voz pouquíssimas vezes, mas foi você que estendeu a
mão e me consolou quando percebi que aquele garoto nunca seria meu.
Todo mundo sempre me pergunta como Dante e eu nos conhecemos e como terminamos
sendo a Nêmesis um do outro. E foi exatamente assim: com uma história que nasceu pronta para
ser uma obra do acaso e terminou em choro e caos generalizado.
Eu errei feio com ele.
Ele também errou comigo.
Mas algo muito bom surgiu disso tudo. Você e Gregório se conheceram, se apaixonaram
e formaram uma família. Esse sempre será o melhor e maior acerto que Dante e eu tivemos.
Lembro do quanto fiquei enciumada ao perceber o quanto você gostava dele. Como você
poderia gostar do cara que quebrou meu coração? E mais do que isso, como poderia tratá-lo
como um irmão e um melhor amigo? Ele já não tinha me tomado o suficiente?
Você respondeu que era fácil amar Dante, porque ele era extremamente parecido
comigo. Fiquei o restante do dia sem falar com você, mas hoje eu entendo.
Nós somos extremamente parecidos em muitos aspectos.
Somos o tipo de pessoa que não mede consequências para proteger quem ama.
Somos teimosos e obstinados.
Somos quebrados em milhões de pedaços.
Somos uma ótima dupla.
E só fui descobrir isso quando você e Gregório nos deixaram. O que ainda é um assunto
delicado para mim, porque sigo pensando que é uma brincadeira de mau gosto, algo que é a
cara de vocês fazerem conosco. Já estamos aqui em um altar, sabe? Você já provou sua teoria
de que existia um tempo para mim e Dante.
Você sempre acreditou que existiria uma segunda chance para nós, dessa vez com o
coração mais maduro e decidido.
Eu nunca acreditei nisso. Até agora.
De onde você estiver, sei que está feliz por ver os seus irmãos finalmente darem o braço
a torcer, por ver que somos uma dupla muito boa e que iremos fazer o impossível por nossa
família.
Você sempre soube. E agora eu também sei.

Amo você e estou com saudades.


Com amor,
Antônia”
Eu fiz Dante Albizia chorar. Metade dos convidados também.
Ele esfregou os olhos com uma das palmas, ainda querendo manter a pose de durão, mas
ficava difícil quando uma lágrima solitária descia pela lateral de seu rosto.
Fiquei na ponta dos pés para beijá-lo ali, limpando aquela gota carregada com todos os
sentimentos do mundo.
Conhecendo-o como eu conhecia, sabia o quanto era difícil para ele demonstrar
sentimentos, mostrar-se vulnerável, sair daquela concha que criou em torno de si.
— Você é inacreditável — confidenciou.
Ergui os ombros, convencida.
— Foi só jogar no Google “votos de casamento bonitos exemplo”.
O microfone foi parar na mão de Dante agora. Eu o vi limpar a testa com a mão. Aquele
deveria ser o inferno para ele, precisar falar sobre sentimentos na frente de tantas pessoas.
Poderiam ser sentimentos fictícios, ainda assim teriam de sair de sua boca.
— Ficou um pouco difícil para mim, depois dos seus votos — reclamou. Eu sei, meu
bem. Não entro em campo se não for para ganhar. — O amor é sofredor, é benigno; o amor não
é o invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece...
Engoli em seco, pensando se ele realmente teria sido burro o suficiente para copiar da
internet o versículo mais conhecido de todos os casamentos da face da Terra. Já comecei a ficar
puta com Dante, porque eu tinha me esforçado e feito aqueles votos escutando o que meu
coração dizia e...
— Eu poderia continuar falando toda essa balela bonitinha, que todos gostam de ouvir
em casamentos, mas isso não teria nada a ver conosco.
Tentei não sorrir, mas falhei. Ele não tinha copiado nada da internet!
— Eu acredito realmente que as pessoas entram em nossa vida por acaso, mas não é por
acaso que permanecem. Você, Antônia Milani, é o acaso mais surpreendente de toda minha vida.
Nossas chances sempre foram negativas e, ainda assim, nos encontramos. Quais as chances de
tudo o que houve ao longo desses anos acontecer com mais alguém?
Não fazia a menor ideia. Duvido que mais alguém fosse tão abublé das ideias para seguir
nossos passos.
— Existe uma lenda japonesa que duas pessoas estão interligadas por um fio vermelho
desde o nascimento, seus caminhos se cruzam, interligam, se embolam, se perdem, trocam
ofensas, gritam um com o outro, deixam todos à sua volta loucos, mas nunca se quebra. Você é
meu fio vermelho, Antônia. É a minha família, minha amiga, a pessoa que mais me detesta no
mundo e a única que eu escolheria para viver essa loucura comigo. Você é minha e eu sou seu.
Desde sempre e para sempre.
Puta que pariu!
Minha mais sincera e honesta reação foi arregalar os olhos.
Ele fez isso. Ele realmente fez isso. Fosse ficção ou não, ainda era lindo. Ainda parecia
como um sonho.
Porra!
Os convidados aplaudiram, mas os ruídos eram longínquos, porque a partir do momento
que Dante me tocou, tudo o que existia éramos nós sob aquele pôr do sol; o mais bonito de
todos.
Ele me beijou.
Eu explodi em milhões de pedaços. Só que dessa vez não doeu, muito pelo contrário.
Nunca me senti tão viva.
Você conseguiu, Vitória. Você realmente conseguiu o que queria.
Dante e eu éramos marido e mulher. E dez anos depois, meu coração voltou a ser dele.

Tenho certeza de que Roma faliu Dante.


Aquela louca, o que tinha de uma pessoa com bom-gosto espetacular para decorações,
tinha de inconsequente.
Nunca fui a um casamento como esse. Nunca achei que teria um casamento como esse.
Seria triste a comparação quando me casasse pela segunda vez.
A recepção no jardim era em uma tenda com teto de vidro, teto este que estava todo
decorado com as mesmas folhagens da cerimônia, mais inúmeros cordões de luzes pendendo
sobre nossas cabeças. A mesa do bolo era a coisa mais impressionante que já vi, tinham tantas
flores e folhas e velas que eu não sabia nem onde encontrar os doces. Mas minha doce amiga
logo me mostrou onde estavam; no meio do salão, em uma mesa redonda, sendo a atração da
festa aquele mosaico complexo e elaborado de doces que poderia alimentar um batalhão.
Havia bares com drinks chiques e complexos, com direito até as nossas iniciais nas
bebidas, comidas deliciosas e muita música.
Era o casamento dos sonhos. E era meu.
Dante e eu perdemos um bom tempo tirando fotos, cumprimentando convidados e sendo
simpáticos. Minha bochecha já estava doendo até.
Em certo ponto, nosso mestre de cerimônias — eu nem sabia que teríamos um — pediu
que todos os convidados fossem para a beira do lago onde uma queima de fogos — SIM! — foi
iniciada.
— Dante... — Cutuquei sua costela, descrente de que estava vendo aquilo.
— Eu vou demitir essa garota.
— Eu te ajudo.
Era para ser uma celebração íntima e tivemos quinze minutos de um show de luzes no
céu. Ela estava tentando competir com o Réveillon de Copacabana, por acaso?
Cecília estava encantada, Milo sorria e apontava para as luzes silenciosas. Eles pareciam
tão felizes. E vê-los daquela forma foi um lembrete de que tudo era por eles.
Quando voltamos para a recepção, era hora da primeira dança dos noivos. Ninguém me
avisou sobre essa parte e encarei Dante com os olhos arregalados.
Ele parecia sereno, nem um pouco nervoso com o fato de ter de dançar algo que não
ensaiamos na frente de cem pessoas. Dante ofereceu sua mão e fui obrigada a aceitar, porque não
tinha como correr.
Fomos de mãos dadas até o meio da pista de dança. Fiquei conectada em seu olhar,
percebendo que toda a situação poderia ser caótica e extravagante, mas estar ali com Dante era
familiar, trazia felicidade e acalmava meu coração.
Ele estava perigosamente perto demais de se tornar uma obsessão para mim.
— Agora para a primeira dança dos noivos, quero que aplaudam com muita energia a
banda preferida da noiva. Senhoras e senhores, com vocês, Sonora!
Roma não só perdeu os limites, ela perdeu o juízo.
Precisei parar de olhar para meu marido para poder ver que no palco rodeado de
holofotes e um grande telão entrava Eden Mazza, Mavi Collins, Fike Collins e Darren Norris.
Era um cover. Tinha de ser um cover.
— Antônia e Dante, obrigado por nos convidarem para o seu dia tão especial. — Eden,
ou um homem que se parecia muito com ele e tinha a voz assustadoramente idêntica, falou ao
microfone. Eu conseguia escutar os gritos enlouquecidos dos convidados atrás de mim, mas não
levaria isso em consideração, eles estavam longe demais para ver que eram covers. —
Felicidades ao casal!
— Fiquei sabendo que Sign in the Sea é importante para o casal e viemos até aqui cantar
essa para vocês. Ah, também foi pelo vinho! — A loira que era muito parecida com Mavi Collins
falou ao microfone e ergueu sua taça de vinho. — Um brinde ao amor. Ele muda tudo. Ele nos
transforma e faz com que tudo valha a pena.
Para uma banda cover eles iam longe demais na atuação. Eden e Mavi eram casal na vida
real, mas os covers até se beijaram em cima do palco.
Todos brindaram, mas eu segui parada, estática, assustada e muda.
Os primeiros acordes da música mais linda já criada pela Sonora começaram a ser
tocados e fiquei surpresa por ser ao vivo. Isso que era dedicação.
— Onde Roma achou covers tão parecidos? — questionei.
— Não foi Roma e não são covers. — Dante segurou minha mão no segundo que o cover
de Eden começou a cantar. Porra, até a voz era idêntica. — Eles estavam passando por Buenos
Aires com uma turnê, não foi tão difícil assim.
Meu mundo parou.
A Sonora de verdade estava em turnê pela América do Sul e essa semana faria shows em
Buenos Aires.
Virei o rosto para o palco, onde a minha banda favorita cantava a minha música
preferida.
Não, isso era impossível.
Dante não tinha contratado a Sonora para vir cantar em nosso casamento porque isso ia
além de qualquer imaginação.
Primeiro, era impossível.
Segundo, estávamos falando de Dante. Ele não fazia coisas assim. Ou, pelo menos, não
deveria...
Minha reação foi tardia quando comecei a pular e ter alguns sintomas de euforia ou de
um infarto ― não sabia bem ―, porque naquela altura do campeonato, poderia ser os dois.
Mavi Collins sorriu para mim.
E eu pulei em cima de Dante, abraçando-o apertado.
— Você não fez isso! — Eu seguia o apertando de todas as formas possíveis.
Era a Sonora! A banda!
— Você merece um pouco de felicidade depois de tudo o que aconteceu esse ano,
Milani. — Ele segurou a ponta do meu dedo indicador, girando-me de leve. — Vitória e
Gregório concordariam comigo.
Comecei a chorar, porque nunca alguém tinha feito algo tão lindo assim por mim.
Beirava a megalomania, mas era lindo, porque mostrava que Dante se importava.
Nenhum homem tinha se importado tanto assim comigo.
Esmaguei seus lábios com os meus, ciente de que estava perdendo a cabeça e tornando
toda a situação ainda mais confusa do que já era. Precisávamos fingir para todos que éramos um
casal feliz sendo um casal feliz, mas não deixar que essa felicidade se tornasse tão real em nossas
vidas que acabasse atrapalhando as crianças, que era a prioridade.
Mas esse era o dia do meu casamento.
E eu aproveitaria o dia beijando meu marido em nossa primeira dança cantada por Eden
Mazza. Como eu queria e como tinha de ser.
— Obrigada, Dante.
— Por nada, cariño. — Seus lábios avermelhados pelo beijo recente tocaram minha
testa, depositando um singelo e pacato beijo ali.
Continuamos dançando por tempo suficiente para meu coração errar muitas e muitas
batidas.
A Sonora cantou mais duas músicas depois de Sign in the Sea. Nossos convidados foram
à loucura, eu fui à loucura. Dante estava ao meu lado, calmo, controlado, impassível, como
sempre. Contudo, o brilho de divertimento estava ali, como se ver minha diversão fosse tudo o
que precisasse.
Depois de a banda sair do palco, fui levada por Dante até a sala de televisão da casa, que
descobri só quando entrei que foi transformada em um camarim para a banda.
A banda que agora estava na minha frente!
Não soube fazer costume e saí correndo em direção à Mavi, pensando logo depois que
deveria respeitar o espaço pessoal da coitada. Por sorte, ela foi solidária com uma noiva e fã
emocionada.
— Eu sou a sua maior fã! — E era mesmo!
— Obrigada pelo carinho, Antônia — agradeceu com um sorriso fácil. — Já o seu maior
fã é o seu marido, certo? — Piscou para mim e depois foi até Dante, cumprimentando-o com um
aperto de mão. Ela era incrível, parecia uma sereia e o vestido preto cheio de pedrarias
combinava muito com ela. — Felicidades ao casal.
— Obrigado por terem vindo. — Dante era formal e polido até na presença de astros do
rock, era de se admirar até.
— Seu vinho é o melhor que já tomei. — Eden Mazza em pessoa apareceu com duas
taças de vinho, esticando uma delas para sua namorada.
— Oi! — Eu parecia uma criança quicando de felicidade.
— Oi, Antônia.
Morri, mas passo bem.
Eden Mazza sabia meu nome!
— E isso que de vinho entendemos muito bem — Mavi falou com Eden e tive a
impressão de que estava no meio de algo íntimo deles.
— Senhor e senhora Albizia, felicidades ao casal. — Fike apareceu um pouco abatido.
— Espero que dure.
Não sei se foi isso que ele falou mesmo, porque foi mais baixo que um murmúrio, mas
precisei prender uma risada.
Depois dele, Darren apareceu para falar conosco. Eu nutria certa antipatia por ele depois
de ter traído Mavi, mas ele foi bem legal comigo.
Tiramos algumas fotos juntos e logo em seguida eles foram embora com sua equipe
levando todos os vinhos que conseguiram carregar. Não era porque era meu casamento que
perderia a chance de uma divulgação gratuita da Albi.
Aproveitamos que estávamos já dentro da casa para colocar Cecília e Milo para dormir,
honrando a nossa rotina de todos os dias. Eugenia já tinha dado o banho neles e estavam deitados
em suas camas quando entramos. Foi lindo ver a felicidade refletida nos olhos de Ceci ao nos ver
ali.
Enquanto cantava baixinho para Milo, Dante leria as três páginas de sempre para Cecília.
— Não, pai! Eu quero o do Boa noite Urso.
Ergui o pescoço assim que escutei o pedido de Cecília. Dante não se moveu e suas mãos
ainda estavam sobre o livro errado.
Pisquei, tentando afastar as lágrimas que se acumularam em tempo record. Milo fechou
os olhos e aproveitei para ir até Dante, pegar o livro do urso e acariciar suas costas, um gesto de
apoio. Eu sabia o que ele sentia. Sabia a importância daquela pequena palavra e quão assustadora
ela poderia ser.
Sentei no chão, esparramando meu vestido por todo o tapete fofo em formato de nuvem e
esperei Dante ter o seu momento e voltar para nós.
Ele sentou ao meu lado e, com a voz embargada, leu as três páginas do urso que desejava
boa noite para todos seus amigos.
Com um beijo nos cabelos escuros da garotinha adormecida, ele se despediu e me puxou
para fora do quarto. No caminho de volta à nossa festa, ele ainda estava quieto demais até para os
padrões Dante Albizia de silêncio.
— Eu nunca me senti tão poderoso, como se nada fosse capaz de me parar, sabe? — Seu
desabafo foi uma surpresa.
Eu entendia.
— Nunca tinha sentido algo tão forte quanto no dia que o Milo me chamou de mãe.
— Eu já seria capaz de destruir todo o mundo para garantir que eles estejam seguros,
mas agora... — Seus olhos estavam marejados, assim como os meus.
Conhecer Dante profundamente foi uma das experiências mais incríveis que já tive na
vida. Não por ele ser lindo, gostoso, foder bem e todas as qualidades que me beneficiavam, mas
para aprender que nem tudo o que parece é. Aquele homem sempre foi a pessoa mais fria e
centrada que conheci e só foi preciso uma brecha para se mostrar o tio mais babão de todos, dono
de um coração grandioso, do tipo de se emociona por tudo. E isso me impressionava.
— Agora seu pai está fodido na nossa mão.
Meu sorriso conspiratório combinou com o dele.
Éramos uma ótima dupla.
De mãos dadas, retornamos à festa animada. A Babilon, a banda de Miranda, tocava no
palco e fazia nossos convidados pularem. Peguei um drink no bar e voltei para perto do palco,
onde Roma, os meninos e o meu marido estavam.
Naquela noite não existiu um problema sequer.
Não existia nem a preocupação em mostrar que éramos um casal para todos, porque ali,
naquela festa, naquele dia... nós éramos.
Já fiz centenas de acordos durante minha vida, mas esse que com Antônia era de longe, o
mais confuso deles.
As regras não eram claras.
Não havia prazos.
Não sabia quais eram os limites.
Por isso que estava sentado na cama havia vinte minutos, os cabelos ainda molhados pós-
banho, sem saber o que fazer.
Devia ir ao quarto dela?
Se fosse, estaria forçando uma situação?
Não queria que ela sentisse que tivesse alguma obrigação comigo, porque não tinha. Mas
sentia falta de seu corpo ao meu, de seu cheiro, da forma como meu nome sussurrado por ela
acabava por me levar aos céus.
A festa de casamento estava em seus momentos finais lá no jardim, mas Antônia e eu nos
recolhemos alguns minutos atrás. Pareceu o certo a ser feito na frente de todos os convidados,
mas agora eu não sabia o que fazer.
Para alguém que sempre teve o controle da vida, das ações e todos os sentimentos, acabei
por me tornar uma bagunça.
Talvez eu devesse ir até ela e desejar boa-noite. Ou seria melhor dormir lá? Pessoas
casadas dormiam juntas e por isso esse acordo era tão confuso. Não acertamos questões básicas
de um matrimônio.
Algum funcionário poderia perceber que estávamos dormindo em quartos separados e
essa informação acabaria chegando ao meu pai. Quanto menos motivos pudéssemos dar, melhor
seria.
Decidido, levantei do colchão e segui para a porta, mas fiquei por ali mesmo ao
encontrar Antônia pronta para bater.
— Oi! Preciso de ajuda... — Ela virou de costas, apontando para as dezenas de botões
em formato de pérola que fechavam seu vestido de noiva.
Eu precisaria de centenas de anos para esquecer a forma como me senti quando vi
Antônia entrar com aquele vestido.
Noivas eram criaturas angelicais. Mas Antônia era a síntese da beleza. Ela parecia uma
deusa vestida daquela forma. Suas curvas foram acentuadas, os peitos naquele decote seriam
para sempre minha obra de arte favorita. Ela era gostosa sempre, mas no dia de seu casamento,
ela atingiu o ápice.
Passei tempo demais durante a festa imaginando como seria tirar aquele vestido e agora
que teria a chance, mal poderia esperar.
Puxei sua mão, trazendo-a para dentro do meu quarto.
— Estava indo para o seu quarto.
— Sentiu saudades, meu bem? — provocou com um bico. — Por favor, tire logo esse
vestido, estou prendendo a respiração faz umas dez horas — disse, com as mãos na cintura.
Deslizei o indicador por cima do ombro desnudo, percebendo o arrepio que lhe causei.
— Você com esse vestido é a minha visão preferida, Milani.
— Gostou mesmo? — Percebi o tom de dúvida.
— Só fiquei sem palavras daquela forma uma única vez. — Deslizei o dedo agora por
sua escápula, a pele arrepiada ao meu toque. — Quando te vi entrar naquele restaurante com o
vestido preto.
Ela segurou a respiração, mas não olhou para trás. Aproveitei para deslizar o lábio pelo
ombro desnudo com as inúmeras pintinhas que tinha ali. Eu gostaria de gravar cada parte daquela
mulher dentro da minha cabeça. Cada pinta, cada curva, cada sorriso para fazê-la eternamente
minha quando já não estivesse mais aqui.
— Branco e preto — sussurrei contra sua pele com o aroma característico de baunilha.
— São minhas cores preferidas depois de você.
Soltei o primeiro botão no intervalo de mais um beijo em seu pescoço, cada botão sendo
a deixa para beijar cada parte daquela mulher perfeita.
Trinta botões. Trinta beijos. Trinta vezes em que pensei no bastardo sortudo que eu era.
O vestido caiu aos seus pés, um amontoado generoso de tecido do qual a ajudei a sair.
Sua sandália era rodeada de cristais, as unhas pintadas de branco ressaltavam a pele dourada.
Senti como se fosse uma criança desembrulhando seu maior presente, quando subi os olhos pelo
corpo de Antônia e centímetro a centímetro, vi o quanto estava perfeita.
Ela usava um tipo de corpete branco, combinando com todo o resto da lingerie. A peça
era tão transparente que não deixava nada para a imaginação. Os mamilos criavam uma sombra
rosada no tecido, os peitos espremidos naquele tomara-que-caia, implorando para serem livres
em minhas mãos.
Ela se preparou para esse momento e, quando percebeu que sua intenção causou impacto,
veio com aqueles olhos terrosos, rodeados de desejo disfarçado de inocência.
— Existe algo nesse acordo que fale sobre a consumação deste matrimônio?
— O casamento, infelizmente, não será validado se eu não puder, até o fim desta noite,
meter nessa bocetinha.
Deslizei a mão que pairava suavemente em sua nuca até sua boceta. Conseguia sentir a
quentura pela camada fina do tule texturizado.
Ela tocou meu peito desnudo, as unhas longas enganchando a pele, o que dobrou meu
tesão.
— Não chegamos tão longe para correr esse risco. — Essa filha da puta nem piscava. —
Acho que você vai ter de me foder, pelo bem do nosso acordo.
Tão perfeita, tão quente, tão minha.
Eu a tomo para mim, sua boca na minha, seu corpo pressionando entre a porta do quarto
e meu corpo. Beijo-a forte, meu desejo sendo tão intenso que acabei por temer machucar sua
boca. Se bem que, depois de conhecer Antônia profundamente dentro do meu carro, considerava
que ela até gostaria.
Desvio de sua boca para o pescoço, o colo, até chegar ao meu maior ponto de interesse.
Precisei de um único movimento para libertar os seios daquele encarceramento encantador. Eles
estavam prontos para mim, empinados, inchados.
Chupei com avidez, deslizando a língua por um mamilo, depois o outro. Ela gemia
baixo, segurando meus cabelos, guiando-me na tarefa mais deliciosa que me propunha a fazer.
Belisquei o mamilo que não estava sendo sugado e não dou um segundo de paz para ela.
— Por favor... — O pedido morreu em sua boca.
Sabia o que ela queria. E queria lhe dar tudo.
Não era surpresa encontrar sua boceta tão lubrificada, tanto que o líquido transpassava o
tecido da calcinha. Acariciei de leve, observando a forma como seu quadril se arqueava e
investia contra meu dedo.
— Quero que goze na minha língua.
Seu sorriso se tornou mais largo, mas na primeira menção que fez de tirar a calcinha,
segurei sua mão, impedindo que movesse um centímetro daquela peça.
— Não! Quero foder a minha mulher da forma como ela escolheu ser vista por mim.
Ajoelhei aos seus pés, aproveitando a proximidade para trancar a porta do quarto, antes
que fossemos surpreendidos.
— Você falando que sou sua mulher acabou de se tornar o meu maior fetiche, Dante.
Meu sorriso se espalhou pelo rosto antes de eu afastar a delicada e elaborada peça com
alças finas nas laterais de seus quadris. Fiquei com o rosto entre suas pernas, absorvendo seu
cheiro que me enlouquece. Sua boceta era doce, quente e me deixava totalmente obcecado por
ela.
Com um só movimento, coloquei sua perna direita em meu ombro, ampliando o caminho
para minha língua sorver direto da fonte. Com meu nome escapando por seus lábios, deslizei a
língua para seu clitóris inchado, clamando por uma atenção especial. E eu não podia negar um
pedido de minha esposa. Lambendo cada parte de sua boceta, vi a forma descontrolada como o
quadril de Antônia passou a se movimentar contra meu rosto.
— Isso! — Sua voz acaba saindo mais alta do que eu esperava; um lembrete de que o
prazer parecia atingi-la.
Assim como no dia de nossa primeira vez, senti quando as pernas de Antônia começaram
a tremer e com um gemido baixo, vi quando atingiu seu ápice.
Sorvi cada gota de líquido que escorreu dela, apreciando demasiadamente a forma como
seu rosto ficou vermelho, combinando com o colo, o pescoço e principalmente o cabelo que
ganhou um aspecto selvagem. O orgasmo combinava bem demais com ela.
— Você sabe chupar uma mulher tão bem que agora eu entendo a sua ex fazer uma
tatuagem em sua homenagem.
Não fiquei surpreso por escutar a besteira dessa boquinha que deveria estar chupando
meu pau ao invés de falar tanta merda.
— Isso não é papo para se ter em uma noite de núpcias.
— A aliança está no meu dedo e daqui a pouco seu pau dentro de mim. Não dou a
mínima para quem chegou antes.
Puxei-a pelo pescoço, enfiando minha língua em sua boca. Ela sabia muito bem o que
falava para tirar um homem de seu juízo perfeito. Trouxe Antônia perto o suficiente da cama
para forçar seu corpo a ficar inclinado.
— Erga essa bunda para mim, cariño.
Ela obedeceu, porque obviamente aquela mulher só conseguia me obedecer durante o
sexo. Já era algo, ao menos.
Deixei Antônia de castigo, arrebitada para o ar, a calcinha socada na bunda redonda e
macia. Peguei a camisinha na gaveta da mesinha de cabeceira com toda a calma do mundo. Ela
fez menção de levantar ao perceber minha demora, mas ergui o dedo indicador.
— Se sair dessa posição, ficará com a bunda ainda mais marcada do que aquele dia. E
dessa vez, não terei piedade.
Ela apertou as coxas, contendo a excitação. Tão gostosa! Tão linda!
Só para torturá-la, comecei a tocar em meu cacete, lento, suave, assistindo cada parte
daquele corpo que tirava minha paz há anos. Eu poderia fodê-la pelos próximos dez anos e ainda
não seria suficiente.
— Dante, por favor! — implorou, manhosa.
Cheguei mais perto de Antônia, acariciando a pele de suas costas, desviando o caminho
rapidamente para seus seios saltados do corpete, voltei meu caminho pelo quadril e parei na
bunda, apertando-a, sentindo a pele quente e branca, que implorava para ficar rosa.
Dobrei o tronco para poder morder aquela carne gostosa, usando os dois dedos para
afastar mais uma vez a calcinha e aproveitar que estava ali para penetrá-la. Meus dedos entraram
sem qualquer empecilho e imediatamente ficaram ensopados.
— Você nem consegue disfarçar o quanto gosta disso.
Ela gemeu com o movimento que fiz com os dedos que a fodessem sem parar.
— Seus dedos são satisfatórios, mas eu realmente preciso do seu pau enfiado em mim,
meu bem.
Sua língua afiada sempre foi e sempre seria a minha maior perdição.
Segurei o coque que a essas alturas já estava mais solto do que preso, forçando sua
cabeça a vir para trás. Retirei os dedos dela e, só para provocar, comecei a pincelar a cabeça do
meu pau em sua entrada. Inclinando o quadril para mim, ela forçou, mas era quem estava no
comando, imobilizando-a, deixando-a totalmente entregue para mim.
A sensação era quase animalesca.
Eu a preenchi em um só movimento. Precisando de alguns segundos de autocontrole para
não gozar ali mesmo. Ela era toda boa, uma perdição, um pecado. Tão quente.
Antônia abriu um pouco mais as pernas, facilitando sua abertura. Senti-a vibrar em mim
e precisei de uma respiração profunda para começar a estocar. Não demorou nada para que
nossos gemidos se espalhassem pelo quarto.
Sempre achei um pouco esquisito gemer com uma mulher, mas Antônia fazia com que
eu perdesse a cabeça. Ela fazia com que tudo mudasse.
Usei a mão direita para prender seu pescoço, enforcando-a e trazendo-a até meu ombro.
Sua boceta encaixou ainda mais fundo em mim e senti que podia explodir em milhares de
pedaços em pouquíssimo tempo.
Ela me quebrava.
Ela mexia comigo.
Ela começou a rebolar ao meu redor, levando-me para o paraíso. Essa mulher sempre
seria minha mais dolorosa e profunda ruína.
— Eu estou quase lá — avisou.
Aumentei o ritmo, arremetendo. O baque seco da minha pelve contra sua bunda era o
meu novo som favorito. Mantive-a ainda mais colada comigo, seu pescoço preso entre meus
dedos, a outra mão castigando seu mamilo.
Estar entre suas pernas parecia a coisa mais certa, a escolha mais acertada de todas.
Poderia morar aqui... Em sua boceta. Em seu coração.
Em um grito abafado por seu próprio antebraço, ela chegou ao seu ápice, desmontando
entre meus braços. Deitada de bruços no colchão, a bunda ainda em minha cara, Antônia me
olhou por cima dos ombros, aquele sorrisinho que acabaria comigo.
Ver seu rosto vermelho, a bochecha arranhada por minha barba, o pescoço repleto de
marcas que fiz questão de deixar era o paraíso. Deslizei o indicador por sua boceta, aproveitando
toda a lubrificação para lambuzar seu cu, circulando, testando. Provando que era o meu maior
sonho e pesadelo reunido em uma mulher, eu a vi jogar o cabelo para trás e perguntar:
— Está querendo a minha bunda como presente de casamento?
Que mulher!
Dei um tapa em sua bunda.
— Eu teria essa honra?
— Pensei ter escutado que nossos corpos e almas são um só agora — ironizou. — Já que
sou sua, tome o que é seu.
Ela era fogo.
Com cuidado, penetrei um dedo. Antônia murmurou algo, investindo contra ele, sem
oferecer qualquer resistência. Encaixei outro dedo nela, testando seus limites, relaxando-a. Ela
pediu por mais e tudo o que eu queria era dar mais.
Posicionei-a de quatro na cama, surpreso por vê-la brincar com a cabeça de meu pau.
Encaixei nela, sentindo seus músculos me engolirem, expandirem à medida que a penetrava.
Era insano.
Segurei seus cabelos, formando um rabo de cavalo nos fios que já não formavam mais
um coque. Ainda tomava cuidado para não machucá-la quando percebi que Antônia era quem
forçava o corpo para trás, ditando o ritmo, me fodendo.
A sensação era tão intensa que não deixava margem para pensar em outra coisa que não
fosse pegar e dar tudo o que podia para aquela mulher.
Nossos corpos se chocavam um contra o outro.
Ela gemia meu nome diversas vezes.
Eu a comia de uma forma que beirava o primitivo.
— Vem comigo, Dante?
Não precisei de um segundo convite. Segurando uma nádega com cada mão, abri-a ainda
mais, estocando sem parar, tirando tudo dela.
Antônia gritou bem quando a descarga de adrenalina apossou cada canto de meu corpo.
Os jatos de porra enchendo a camisinha enquanto ela se derretia mais uma vez.
No minuto seguinte estamos jogados na cama. Sua cabeça em meu peito, seu indicador
trilhando um caminho por meu abdômen. Minha respiração ainda não tinha voltado ao normal,
tinha dúvidas de que algum dia voltaria. Talvez eu estivesse mesmo ficando velho, ou talvez essa
mulher fosse demais para mim.
Minha mulher.
Minha Antônia.
Gostaria de falar que vivi a minha lua de mel com Dante adotando uma dieta específica
resumida em água e sexo, mas não foi bem o que aconteceu.
No dia seguinte ao casamento, foi aniversário de Milo.
Meus amigos ainda estavam em casa e participaram da festa que fizemos no jardim,
junto de Roma, Miranda e Felicita. Milo estava risonho, mostrando o dedo indicador para quem
perguntasse quantos anos ele estava completando hoje.
Felicita, além de fazer comidas maravilhosas, ainda tinha o dom da confeitaria. O bolo
que ela fez para o aniversariante do dia era a coisa mais linda que já vi, cercado de nuvens e
astronautas.
Foi aqui, no meio de meus amigos, meus sobrinhos e Dante que senti uma felicidade
genuína pela primeira vez desde que Vitória e Gregório se foram. Estava em paz, feliz, mesmo
que o futuro ainda fosse incerto e uma grande batalha estivesse para ser iniciada.
No final da tarde, depois que todos foram para casa e os meninos para o aeroporto,
ficamos por algum tempo na sala de TV, comendo doces do casamento escondidos das crianças
que viam televisão, porque era isso o que adultos responsáveis faziam.
— Eles até que são legais — Dante comentou entre uma mordida e outra do doce.
Desviei o alfajor, o mesmo alfajor que Dante levou em nosso primeiro encontro, a
propósito, que foi dado como lembrança de nosso casamento. Roma não fazia a menor ideia de
que aquele doce era importante para mim, um doce que marcava a única viagem que fiz com
minha mãe. E Dante jurava de pés juntos que não tinha nada a ver com isso. Depois de postar
uma foto com todos os integrantes da Sonora, ficava difícil acreditar nisso.
Levantei os olhos para ele, intrigada.
— Eles quem?
— Os seus amigos.
Ele era ciumento demais para alguém vivendo um casamento puramente de
conveniência.
— Você achou, é? — debochei.
— Sim, são gente boa. Aquele Miguel é um pouco lerdo, mas muito gente boa. Sabia que
ele acampa com os filhos uma vez por mês?
Sorri, descansando o rosto em meu braço apoiado no encosto do sofá.
— Eu sabia.
— Ia ser legal fazer algo assim com as crianças, não é?
Dante era um perigo para o meu coração quando saía detrás de suas barreiras.
— Seria. Seria demais.
Estiquei meu braço para tocar seu cabelo. Dante estava despojado hoje, trajando uma
calça moletom e um cardigã de lã. Seus cabelos não estavam penteados para trás como sempre e
algumas mechas caíam por sua testa. Usei meu indicador para enrolar uma delas, aproximando-
me mais dele.
— Eles são bem protetivos com você, como cães de guarda. Só que cães facilmente
corruptivos por vinho de qualidade.
Quem resistia a uma boa taça de vinho? Nem poderia julgá-los. Eu ainda entendia merda
nenhuma sobre vinhos, mas aprendi que seria difícil demais voltar a tomar meus vinhos de
mercado. Eles tinham mais gosto de suco de uva do que vinho.
— Eles também gostaram de você.
— Você realmente me xingava para todos eles? — perguntou, indignado.
Senti uma leve vergonha, mas não pude negar e só dei de ombros.
— Eu não sou boa com rejeições e era um pouquinho... — Demonstrei o pouquinho com
os dedos. — Obcecada por você. Além de que, você não pode negar que é uma boa história,
rendia entretenimento.
— Entendo, é muito difícil mesmo esquecer os meus encantos.
Dei-lhe uma almofadada na cara para deixar de ser tonto.
— Sabia que vocês se dariam bem, já que têm uma coisa em comum.
— O quê?
Cruzei as pernas de um jeito provocativo, deixando bem claro qual era a coisa que
tinham em comum.
Dante estreitou os olhos e fechou a cara. Sabia que ele ficaria puto.
— Bom gosto para mulheres, obviamente.
Senti a quentura de sua pele muito mais próxima de mim e não demorou para que minhas
bochechas ficassem presas entre seu indicador e polegar.
— Não me teste, Antônia. Não gosto nada de saber que a minha mulher perdeu tempo
com aqueles pirralhos.
Mordi o lábio inferior, porque ele com ciúmes era uma delícia.
Miguel era mais velho do que ele, mas deixaria que assumisse seu papel de macho alfa,
porque era excitante.
— Sabe de uma coisa? — sussurrei ao seu ouvido. — Você é o melhor de todos.
Beijei sua bochecha de forma estralada.
— E posso continuar sendo. — Aquilo gelou cada parte de mim, sem brincadeira. —
Vou estragar todos os homens para você, Milani.
Espiei as crianças, deitadas no tapete, assistindo Moana, longe o suficiente para nem
escutarem o que conversávamos, mas precisei engolir em seco e respirar fundo, porque não era
momento para querer me jogar em cima dele.
Tínhamos crianças em casa, sabe?
— Possivelmente você caia na maldição Milani também. Todos caem.
— Que maldição é essa? — O vinco entre suas sobrancelhas era até que fofo.
— Todo mundo com quem eu tenho algo encontra o amor logo depois que se afasta de
mim. Aconteceu com todos.
Sua gargalhada também me faz rir. Com toda certeza ele esperava algo mais complexo
do que minha triste e dura realidade.
— Quantos vieram antes de mim?
Uma pergunta delicada a ser feita para uma dama. Namorados? Ficantes? Transas sem
compromisso?
Eu tinha vinte e oito anos, poxa!
Se bem que puto do jeito que Dante era, quem deveria se envergonhar era ele.
— Uns doze? — Fiz uma cena, como se não soubesse o número verdadeiro, mas eu sabia
muito bem.
— Talvez treze seja o seu número da sorte.
Pisquei duas vezes, incapaz de mover outro músculo do corpo. Com um sorriso delicioso
refletido no rosto, ele puxou minha cintura e tomou minha boca para ele.
Esse homem me destruiria, tinha plena convicção disso.
E doeria mais do que tudo.
O pior? Eu gostaria de pagar para ver, porque se continuasse sendo beijada daquela
forma, cada minuto valeria a pena.
A campainha tocando acabou por nos afastar, o que acabou sendo um ótimo para respirar
com calma e acalmar meu corpo, afinal... Crianças na sala!
Dante resmungou algo, mas acabou se levantando do sofá. Não esperávamos ninguém
hoje e tinha certeza de que ninguém também planejava interromper o dia seguinte do casamento
de recém-casados.
Espiei a televisão, observando Cecília entretida com a cena colorida da primeira canção
de Maui contando sua história. Já estava no final da canção e Dante não tinha voltado ainda.
Intrigada, saí da sala e fui até o hall, surpresa por encontrá-lo parado, olhando seriamente para
uma bicicleta e outras duas caixas grandes embrulhadas com um papel de presente azul.
— O que é isso?
— Um presente do meu pai para Milo.
Um cartão de aniversário foi colocado na minha frente e, sentindo a raiva borbulhar
dentro de minha corrente sanguínea, li a letra que rebuscada escrita em caneta preta.
Feliz aniversário, meu neto.
Que esse seja o primeiro ano de uma vida rodeada de felicidade.
De seu avô que tanto te ama e não vê a hora de te ter em meus braços em todos os momentos,
David

Cara de pau.
Homem intragável.
Eu o odiava tanto. Por tudo o que fez para Dante e Gregório, por tudo o que planejava
fazer com as minhas crianças.
— Tem mais esse.
Outro bilhete. Dessa vez, direcionado a nós.
Felicidades aos recém-casados.
Incrível o que o medo de perder pode causar.
Espero que seja um casamento duradouro.
Com amor,
David
Um dos embrulhos era nosso, um bonito jogo de taças, de cristal vermelho. Nem pude
olhar com mais atenção, porque Dante saiu pisando duro até a cozinha, onde jogou o presente no
lixo.
Conseguia ver sua respiração acelerada por suas costas e fiquei receosa em me
aproximar. Ainda tinha dúvidas do quanto íntimos éramos e não queria forçar uma situação. Por
mais que a lembrança de suas mãos em meu corpo ainda estivesse vívida em minha mente e a
aliança com seu nome em meu dedo, ainda sentia certo receio em acreditar que éramos íntimos.
Da última vez que acreditei, foi um desastre.
— Dante... — Fiz um teste ao colocar minha mão em sua cintura.
Se ele demonstrasse qualquer sinal de incômodo, eu o deixaria em paz.
Sua reação foi totalmente contrária ao incômodo. Dante me puxou pela mão. Fiquei
presa entre a bancada e seu corpo, de frente para aquele oceano verde que eram seus olhos. Sua
cabeça foi acomodada na curva de meu pescoço.
— Esse filho da puta nunca se importou com um aniversário meu ou do meu irmão.
Nunca tivemos uma festa depois que minha mãe morreu. E agora ele acha que vou acreditar
nesse papo de bom avô?
Abracei Dante, percebendo o quanto aquele assunto mexia com ele. Não era para menos
que sua personalidade foi moldada para ser tão séria e distante. Como ele poderia demonstrar o
que nunca recebeu? Ainda assim, ele tentava.
Lembrei que em nossa conversa naquela cafeteria, no dia seguinte do velório de Vitória e
Gregório eu disse que ele não poderia oferecer amor, acolhimento e proteção para as crianças e
perguntei se ele estaria disposto a tentar.
Desde aquele dia, não houve um que não vi Dante tentar ser a melhor pessoa para
aquelas crianças. Sem nunca ter recebido algo, ele oferecia tudo para eles.
E isso aquecia cada parte de mim.
— Ele só quer atenção, Dante. Não deixe que isso entre na sua cabeça. Nós vamos
conseguir, juntos.
Espalhei beijos por seu maxilar, percebendo seus ombros relaxarem um pouco.
— Ele vai tentar provar que estamos mentindo sobre o casamento.
Beijei agora o seu queixo.
— Nós somos ótimos mentirosos, não somos? Desde sempre. — Ocultei um sorriso. —
Precisamos só estar prontos para qualquer situação.
— Precisamos conhecer cada mínimo detalhe um do outro, como qualquer casal
conheceria.
Dei um impulso para trás, sentando na ilha da cozinha. Puxei Dante com as pernas.
— Qual o dia do seu aniversário? — perguntei a mais simples de todas.
Ele estreitou os olhos, levemente ofendido.
— Você não se lembra de nada do que te falei?
Ri, porque era engraçado vê-lo agindo como uma pessoa normal.
— Dante, já faz dez anos... — ponderei.
— Seu aniversário é dia 15 de dezembro e você sempre ficou chateada com a data,
porque só ganhava um presente que valia para o aniversário e o Natal. Você tem uma cicatriz nas
costas de quando foi mordida pelo poodle de uma amiga da escola, não sei se seu prato favorito
ainda é macarrão alho e óleo, mas naquela época era. Você é meio surda do ouvido direito,
porque estourou um tímpano brincando com um cotonete quando era criança e tem pavor de que
peguem no seu pé.
Fiquei por pelo menos trinta segundos sem conseguir nem respirar direito.
Aquele homem era uma coisa.
Quando ele inventava de ser a pessoa mais chata do mundo, ele conseguia com honras.
Mas, quando queria ser o homem que fazia meu coração acelerar, ele conseguia fazer isso como
mais ninguém.
— Desse jeito as pessoas vão achar que você é apaixonado por sua esposa — flertei
descaradamente, observando seus orbes refletirem um brilho de divertimento.
— Deixe que achem.
Meio segundo depois, nós nos beijávamos com aquela ânsia de sempre. Uma fagulha que
sempre ocasionaria um incêndio. Guiando meus movimentos com sua mão atrelada em meus
cabelos, fiquei, como sempre, à sua mercê. Entregue, mole e boba.
— Dia 15 de junho. — Foi assim que finalizou nosso beijo. — O meu aniversário.
— Geminiano — julguei. — Está tudo explicado.
Levei um tapa na bunda como um aviso.
— Qual a sua cor favorita? Lembrando que xadrez não é uma cor, tá? É só uma
padronagem.
— Você está muito engraçadinha hoje, Milani.
Ficava difícil acreditar que ele não estivesse gostando enquanto suas mãos exploravam
cada canto de minhas coxas.
— Tive uma noite boa ontem.
— Engraçado que eu também. — Gostoso. Ele era tão gostoso quando me olhava
daquela forma cheia de más intenções. — Verde. Não o claro, o escuro, como as folhas das
árvores.
— Verde-Dante — conclui e precisei explicar, porque claramente ele não entendeu. —
Seus olhos têm essa cor.
A forma como Dante me olhava às vezes fazia com que o ar se esvaísse de meus
pulmões. Era intenso, intenso até demais.
— E a sua cor?
— Branco. Não, acho que bege. Tem dias que é rosa.
— Escolha uma, Antônia.
— Não sou boa fazendo escolhas.
Não era mesmo. Em nenhum âmbito de minha vida. Fazer escolhas, ainda mais as
definitivas, sempre seria um dos meus maiores receios.
— Qual o seu dia favorito de todos? Aquele que nunca será capaz de esquecer?
Essa era boa. Muito boa.
— Quando vi Cecília nascer. — Meus olhos ficarem marejados só por me lembrar da
sensação. — Ela nem era minha, mas eu seria capaz de...
— Tudo por ela — completou e eu assenti. — Esse também é o meu dia favorito. Ela
segurou firme o meu dedo quando a peguei no colo a primeira vez naquele quarto de hospital.
— Eu lembro. Fiquei com tanto ciúme de ela ter feito isso com você e não comigo.
Eu era tão boba. Os dois, na verdade. Por um bom tempo competimos para quem seria o
tio favorito, o tio que ganhava mais sorrisos, o tio que ia a mais lugares legais com as crianças.
Eu sempre fui mais presente na vida deles, porque morava perto. Eles tinham toda a intimidade
comigo, mas quando viam Dante... Nossa! Era um inferno para meu coração ciumento.
— O do Milo também. Ele pode achar que não é amado da mesma forma que a Ceci se
falarmos assim.
— Seu segredo está guardado comigo. — Pisquei, conspiratória. — Qual a mulher que
você mais amou na vida?
— A minha mãe.
— Não dessa forma, Dante.
— Nunca cheguei nem perto disso. Bem, talvez uma vez, mas ela preferiu o meu irmão.
Espremi os olhos e escondi meu rosto em seu ombro. Ele ria, mas eu queimava de
vergonha.
Deus, por que eu só faço merda?
Ultimamente percebi que ele levava no bom humor toda essa história, mas ainda não
conseguia não me sentir mal. Como podia um dia alterar todo o rumo de nossas vidas?
— Se te consola, depois de ontem, eu facilmente faria uma tatuagem em sua
homenagem. Entendi o hype em cima de você.
Ele gargalhou, o que foi um alívio a julgar pela forma como o encontrei ali minutos
atrás.
— Eu te disse que tinha muitas qualidades, você só não estava disposta a ver. — Bufou,
fazendo toda uma cena. — Qual seria a tatuagem?
— Um foguinho com seu nome dentro? — Pisquei.
— Gosto, combina muito com meu espírito.
— Bem aqui. — Apontei para minha pelve, sendo tocada ali logo em seguida por dedos
longos e ágeis.
Sua boca tomou a minha mais uma vez, algo que eu nunca seria capaz de me acostumar.
Dante era tão distante de mim quanto as galáxias e estava acostumada a isso, até tudo mudar e
acabar sendo normal beijos como aquele. A questão era que eu não conseguia achar normal me
sentir tão bem em seus braços.
Meus quadris foram puxados por suas mãos, encaixando-me nele. Não fazia nem doze
horas que ele esteve dentro de mim e eu já ansiava pela próxima. E a próxima. E a...
— Titi, minha barriga está roncando de fome!
Valha-me Deus!
Empurrei Dante tão longe, que precisei pedir desculpas com o olhar, esperando que não
o tivesse machucado com o chute que dei no coitado.
Porra!
Éramos adultos com duas crianças em casa. Não dava para ficar flertando e se pegando
pelos cantos ao nosso bel prazer.
— Sanduíche de atum? — Dante conseguiu recuperar o fôlego primeiro que eu, batendo
palmas para distrair Cecília.
— Com cenourinha.
Dante a pegou no colo, rodando pela cozinha com a menina. Eu os admirei por tempo
demais, escutando a conversa sobre Ceci querer ir para a mesma praia em que Moana morava.
Tão especiais! Tão perfeitos!
O nascimento de meus sobrinhos ainda seria os dias mais importantes da minha vida,
mas todos esses últimos que passei com Dante também estavam perigosamente no topo dessa
lista.
Voltei a trabalhar na segunda-feira sendo a atração do escritório.
Nunca tinha reparado na forma sacana como as pessoas olhavam para pessoas que
voltavam de lua de mel, mas era real. Dante não tinha muito intimidade com os funcionários,
então acabei sendo a atração do dia.
— Obrigada, você é um anjo. Aceite essa oferenda como sinal de meu amor. — Roma
empurrou uma barra de chocolate pela mesa vazia, no horário do almoço.
Estava tão atolada de trabalho, que nem consegui sair para comer com ela. Já tinha
também ultrapassado todas as cotas de açúcar pelos próximos seis meses com os doces que
sobraram do casamento que se acumulavam na cozinha e eu era incapaz de deixá-los lá sozinhos
e intocados. Só que não pude dizer não à barra de Milka. O meu preferido, de chocolate com
Oreo.
— A que devo a gentileza?
— O Lorde das Trevas sorriu para mim hoje. E não ameaçou me demitir quando derrubei
café na mesa de reuniões. Ele disse “obrigado, Roma” antes que eu saísse de sua sala, você tem
noção? Você deu para ele, não deu? Só isso explica tamanha cordialidade.
Fiquei com o chocolate parado na boca, com a impressão de que ele chegou até mim
pelos motivos errados.
— Não vou falar sobre isso com você.
— Engraçado você estar com a carinha boa, o cabelo brilhante... Ele transa bem? Sabe,
sempre foi uma dúvida, porque ele é satisfatório como ser humano, mas sempre tive a impressão
de que fosse péssimo na cama.
Roma sentou na cadeira ao meu lado, esticando os pés em cima da mesa.
— Você nem tem idade para falar dessas coisas.
— Querida, eu tenho um dom aqui e você nem imagina. — Seus dedos magrelos vieram
parar em frente do meu rosto. Eu os estapeei e continuando mordendo meu chocolate. — Mas, e
aí, ele manda bem?
Não sei por que comecei a ficar corada e quente, dando munição para o inimigo.
Roma estendeu um sorriso tão largo que fiquei até com vergonha.
— Deveria ter imaginado que não era só pelas crianças. Ele é bem caidinho por você,
acabaram unindo o útil ao agradável — disse, despretensiosamente.
— Ele não é caidinho por mim.
— Ele é, amiga. Aqueles votos... — Sua boca produziu um som como o de uma bolha
estourando. — Ele está muito na sua.
— Para de falar besteira.
— Você também nem consegue esconder com esse rostinho vermelho e o sorriso de
quem está sendo bem comida. — Ela era um poço de elegância mesmo. — Falando em votos,
você caprichou naquele, hein? Eu também teria ficado caidinha por você depois daquilo.
— Você só sabe falar besteira, garota. — Empurrei sua cadeira, satisfeita em ver as
rodinhas deslizando e Roma quase cair no chão. — Dante saiu para almoçar?
— Não, está no escritório tão fodido de trabalho quanto você.
— Preciso falar com ele.
Levantei, levando meu chocolate junto. Sabia que ela estava com aquele sorrisinho idiota
atrás de mim.
— Continue fazendo o que quer que esteja fazendo. Eu agradeço.
Saí da sala com o dedo do meio erguido para aquela garotinha irritante.
Não é que Dante até tem razão em muitas coisas?
Fui até o outro lado da empresa, onde, no fim do corredor, ficava sua sala. Bati à porta e
escutei a permissão para entrar.
— Posso falar rapidinho com você?
Dante estava distraído, com os olhos no computador. Um meio-sorriso apareceu em seu
rosto assim que me viu em sua sala.
— Claro. Entre e feche a porta.
Fiz o que pediu e fui até sua mesa, achando prudente sentar na cadeira em frente à mesa,
profissional, como deveríamos ser em ambiente de trabalho. Aquela ideia de esposa e
funcionária ainda era um pouco confusa, era melhor deixar bem delimitado nossos campos de
batalha.
— Viu o que está acontecendo nas redes sociais?
Ele negou. Nem fiquei surpresa, descobri ontem que a única rede social que Dante tinha
era Facebook. Não era para menos que era um dos solteiros mais cobiçados da cidade. Um
homem low profile está quase em extinção.
Ops, Dante não era mais solteiro. Perdón, hermanas.
— Um lote gigante de um resort das Bahamas foi perdido, fiquei o dia todo resolvendo
esse problema.
Balancei a cabeça, batendo as pontas dos pés no chão de madeira polida.
Eu estava para explodir!
— Nosso casamento meio que viralizou — expliquei com delicada, mas percebi que não
entendeu muito bem. — Postaram vídeos da festa, da Sonora, de nós e bombou no TikTok.
Como o bom low profile que era, ele fechou a cara, mas me apressei em pegar o celular e
mostrar o que realmente importava. Entrei no Instagram da Mavi e mostrei seus últimos vídeos
para Dante.
Ela estava meio bêbada, gravando Eden e ela tomando muito vinho. O nosso vinho! Os
dois eram engraçados juntos, conversavam com a câmera e continuavam bebendo. Horas depois,
já pela manhã, Mavi publicou uma foto de quatro garrafas de vinho vazias pelo chão ao lado de
um sutiã e o que julguei ser a cueca de Eden, com a legenda: “O melhor vinho do mundo para a
melhor noite”.
Nosso site, enquanto Dante e eu aproveitávamos nosso primeiro dia de casados e
comemorávamos o aniversário de Milo, chegou a cair por tanto acesso. Vendemos em um dia, a
receita dos três meses anteriores.
— Você é um gênio, Antônia. — Ele levantou da cadeira e se debruçando sobre sua
mesa, puxou pelo rosto e beijou minha boca.
— Calma! Calma!
Precisei explicar toda a situação, as vendas que estavam saindo do controle, nossas redes
sociais que precisavam de mais engajamento e que a área de marketing — vulgo eu — precisaria
de mais dinheiro para continuar surfando na onda da divulgação gratuita de Mavi fucking
Collins. Se eu já amava aquela mulher antes, agora então ela era a minha musa. A parte do
dinheiro incluía mais mão de obra para mim, que não daria conta sozinha.
— E tem mais! — Ergui o dedo indicador. — Você conhece a rede Marine?
— Os hotéis?
— Sim.
— São clientes nossos. Eles têm vários hotéis boutiques espalhados pelos Estados
Unidos. Se não me engano, abriram um em Minas Gerais também.
— Você viu o e-mail que eles nos enviaram? Fabíola encaminhou para mim. — Dante
negou. — Um tal de Tay Chong que mandou o e-mail, pesquisei e é o dono do grupo. Ele
gostaria de marcar uma reunião para conversar sobre uma proposta de parceria. Seus hotéis ficam
em lugares selecionados e com os vídeos da Mavi e do nosso casamento, ele se interessou pela
vinícola...
— Mas nem por um caral...
— Dante, seria incrível. A vinícola está bombando, as pessoas querendo conhecer. Seria
a fusão perfeita e você não teria de lidar com as pessoas que você tanto odeia assim. Ficaria com
a rede de hotéis, que sabem o que estão fazendo, assim como o restaurante que contratamos para
a temporada de inverno.
Dante cruzou os braços, mas até ele não poderia negar que seria uma boa ideia. E
financeiramente, o céu seria o limite.
Levantei da cadeira e dei a volta na mesa, ficando mais próxima de Dante. Estar aqui,
nesse escritório e próxima o suficiente para ter sua mão em meus quadris, fazia com que me
lembrasse daquele fatídico sonho.
Misturar o profissional com o pessoal nunca seria uma grande escolha, mas o que
poderia fazer? Quando vi, suas mãos já estavam em mim.
— Você já almoçou? — Tentei mudar de assunto para suavizar o clima.
Se não poderíamos falar sobre negócios, pelo menos que falássemos como pessoas
normais.
— Não, e você?
— Fiquei enrolada com tudo isso. Roma me deu um chocolate, quer um pouco?
Lembrei do chocolate em minhas mãos e ofereci a Dante. Odiava que bastasse ficar tão
perto dele para agir como uma garotinha nervosa. Isso não era postura de uma mulher bem
resolvida e adulta como eu.
— Acho que prefiro comer algo mais gostoso que chocolate.
Ele era mesmo uma coisa, esse homem.
Espalmando as mãos na minha bunda, acabei caindo sentada na cadeira, em cima dele.
Seu cheiro me acertou como uma droga das pesadas. Eu estava viciada em cada detalhe dele.
— Dante, estamos no trabalho... — Tentei justificar para minha cabeça voltar a pensar
direito.
— É horário do almoço — provocou.
— Você não disse que funcionários não podem se relacionar?
Seu sorriso relaxado o deixa cem vezes mais bonito.
Ele era tão bonito que doía.
E não conseguia acreditar, ainda milhões de anos depois, que estávamos aqui.
— Essa é a vantagem de ser o chefe, cariño. Eu posso tudo e tudo o que eu quero é te
foder bem aqui. — Deu um tapa na mesa, causando uma secura sem igual em minha garganta.
O sonho...
O sonho finalmente se tornaria realidade.
— Roma vai voltar em breve do almoço. — Olhei por cima do ombro para a porta que
fechei, porém não tranquei.
Se aquela garota entrasse aqui, eu nunca mais teria paz na minha vida.
— Infelizmente teremos que ser rápidos, então. — Seus dentes seguram meu lábio
inferior, trazendo-o para ele. Quer saber? Foda-se. — Erga o vestido e tire a calcinha.
Mandão dessa forma, como não poderia obedecer?
Saí do colo e observei a forma como seus olhos ardiam de luxúria. E era muito louco
pensar que um homem daqueles pudesse sentir tanto desejo assim por mim. Eu era uma mulher
de sorte, sem dúvidas.
Estava com um vestido de lã de mangas longas e comprido, na altura dos tornozelos. Eu
o ergui até o quadril e, orgulhosa por ter usado a cabeça pelo menos por dois segundos na manhã
de hoje, deslizei a calcinha de renda azul-marinho. Eu quase escolhi a bege sem graça.
— Isso fica comigo.
Ele confiscou minha calcinha, enfiando-a no bolso da calça social cinza que usava.
Pisquei, atônita.
— Siéntate. — Empinou o queixo para sua mesa.
Obedeci mais uma vez. Eu lá era boba?
Subi o vestido mais um pouco, apenas para conseguir sentar e abrir bem as pernas,
exposta, aberta, da forma como seus olhos mais desejavam.
Dante massageou o volume inchado que se acumulava em sua calça, livrando-se um
pouco da pressão, antes de seus olhos famintos virem para mim.
As rodinhas da cadeira trabalharam para que ele viesse para mais perto, daquele modo,
seu rosto ficava na altura exata da minha boceta.
Já tive muitas experiências ao longo da vida, mas estar de pernas abertas na mesa do meu
chefe, que também era o meu marido, que também era Dante Albizia, era a melhor delas. Ele se
aproximou com o nariz, deslizando-o para cima e para baixo antes de abocanhar meu clitóris.
— Eu sou louco pelo seu cheiro, pelo seu gosto... — murmurou contra minha pele. —
Por você.
Nem tive tempo de processar, porque seus movimentos se tornaram ritmados. Ele era um
maestro regendo todas as sensações que se embolavam dentro de mim.
Enquanto sua língua trabalhava em círculos, dois dedos entravam e saíam de mim,
provando, estimulando.
— Dante — o nome saiu como um suplício.
A forma como meu corpo sabia reagir a todos seus estímulos, ainda era uma surpresa.
Ele parecia saber cada detalhe, cada funcionalidade em mim.
— Cariño, eu adoraria te fazer gozar muitas vezes essa tarde, mas nosso tempo está
apertado, por isso, quero que goze no meu pau, tudo bem?
Palavras tão doces para uma dama.
Sua boca e dedos saíram de mim e em um só movimento, fui virada de bruços na mesa,
caindo por cima de seus papéis e lápis organizados.
Esse babaca organizado.
O meu babaca.
Meu vestido foi puxado ainda mais para cima, vindo para minha cintura. Com a bunda
arrebitada, recebi o tapa ardido, seguido pelo apertão. Ele nunca resistia. Homens!
Dante abriu uma gaveta e começou a remexer ali, procurando pelo preservativo. Não
achou na primeira, nem na segunda.
Ergui o pescoço e utilizei seu pau para voltar a deixá-lo próximo de mim.
— Vem dessa forma, quero te sentir inteiro.
Seu sorriso se tornou tão safado, que precisei apertar as coxas para conter as
expectativas.
Fui eu quem o encaixei em mim, apreciando cada centímetro que ele tomava para si.
Deixei com que um gemido baixo escapasse e mordi a mão, precisávamos ser rápidos e
silenciosos.
Com a bunda empinada e os peitos colados em sua mesa, eu estava totalmente entregue a
ele.
— Tão molhada, cariño. Assim vou começar a desconfiar que você está amando ser a
minha puta.
Senti minha boceta latejar de desejo e mais uma vez recorri à minha mão para não deixar
que ninguém escutasse o que acontecia dentro dessas quatro paredes.
A vida real era tão, mas tão melhor que meus sonhos.
— Se é de certeza que você precisa... — Virei o rosto, mirando-o por cima de meu
ombro. — Amo ser a sua puta. Só sua.
Meus quadris foram apertados de uma forma desesperada pelos dedos do homem, sabia
que ficaria marcado, mas, sinceramente? Eu queria tudo o que ele pudesse me dar.
Rebolei contra ele, sentindo sua pelve bater contra minha bunda. Dante era intenso e eu
amava que fosse assim. Sabia que ficaria ardida, ainda mais naquela posição, mas valeria a pena
cada segundo para ser fodida daquela forma.
Dois dedos começaram a circular meu clitóris, elevando a sensação ao máximo. Arqueei
as costas, investindo ainda mais contra ele.
— Quero gozar em você. Posso?
— Por favor... — disse rapidamente e precisei continuar para não soar desesperada
demais. — Eu tomo remédio.
Seus movimentos se tornaram ainda mais ágeis contra mim, os dedos massageando o
ponto ideal que me fez chegar lá em murmúrios e tremores que me deixaram mole em questão de
segundos.
Ele era realmente uma maravilha.
Em uma última arrematada que tomou meu ar, ele chegou ao seu ápice, dentro de mim.
Com a respiração pesada e irregular, ele depositou um beijo casto meu ombro, um
contraponto interessante do que acabávamos de fazer ali.
— A visão daqui é algo que nunca sairá da minha mente. — Aquele safado estava com
as mãos em minha bunda. — Minha porra escorrendo por você...
— Então você é desses territorialistas?
— Contigo, si.
Engoli em seco, ciente de que não fazia nem dois minutos que tínhamos terminado e eu
já queria mais. Com sorte, isso acabaria em poucos dias, quando parasse de ser uma novidade.
Era o que eu mais repetia internamente, como um mantra.
Nada fugiu do controle.
Ele ainda é detestável.
Tem prazo de validade.
Não envolve sentimentos.
Seu dedo escorregou por minha boceta novamente, brincando com o melado que escorria
por minhas coxas.
— Preciso da minha calcinha de volta.
— Nem pensar. Quero que passe o dia todo de trabalho se lembrando de mim, cariño. —
Ele me virou de frente para ele, deixando um selinho em meus lábios. Ele era mesmo um filho da
puta irresistível. — E de noite... — Sua boca veio para meu ouvido. — Faremos tudo de novo. E
de novo. E de novo.
Engoli em seco.
— O que respondo para Tay Chong? — Precisei perguntar, porque aquele era o principal
assunto que fez com que eu entrasse naquele escritório.
— Marque uma reunião — disse, convencido, mas não querendo demonstrar. — E
mande nossas garrafas especiais para os roqueiros. Eles merecem.
Saí da sala mais do que satisfeita.
Só vitórias no dia de hoje. Só vitórias.
— A vida de recém-casados, não é? — Roma estava à sua mesa. Parecia indefesa, mas
não era nem um pouco. — Quer uma escova para pentear os cabelos, amiga?
Revirei os olhos.
— Te considero uma mãe, sabe? Nem Karl Marx fez tanto pela classe operária quanto
você. Obrigada!
— Se eu pudesse, eu também te demitiria, Roma.
— O poder corrompe as almas mais belas — lamentou.
Eu estava cercada por loucos.
E amava cada momento que passava ali.
Talvez, vir parar ali não tenha sido o fim do mundo, afinal.
Duas semanas depois do nosso casamento, tivemos de ir para São Paulo.
Tínhamos a primeira audiência de mediação para a guarda das crianças que meu pai
contestava. E eu estava uma pilha de nervos, porque tudo era muito confuso. As crianças eram
brasileiras, todos nós estávamos em Mendoza, mas ainda precisávamos cumprir com as leis
brasileiras.
Ficávamos perdidos em meio às leis diferentes entre os dois países e jogando com vários
advogados.
Ficamos no antigo apartamento de Antônia, do qual achei que ela já tivesse se desfeito e
entregado ao proprietário. A casa de Vitória e Gregório tinha acabado de ser alugada e sugeri
ficarmos em um hotel, mas ela insistiu para irmos ao seu apartamento.
Era apertado, pequeno, com um quarto só para nós e as crianças. Mas era tão a cara dela.
Colorido, divertido, cheio de quadros, livros e imãs coloridos na geladeira.
— Você já foi para Amsterdã? — Apontei para o imã.
— Não, Vitória trouxe de presente.
— E foi para Singapura?
— Não, esse foi presente do Olavo. — Ela deu duas cutucadas no objeto. — Nunca fui
para nenhum desses lugares, mas, quem sabe um dia?
Eram muitos lugares. E achei um pouco triste que nenhuma daquelas fossem suas
histórias próprias.
Minha opinião sobre Antônia era de que ela focou tanto em ajudar e viver pelos outros,
que se esqueceu de viver suas próprias experiências. Esperava, do fundo do coração, que quando
toda essa loucura passasse, ela pudesse viver um pouco mais para si.
E quem sabe eu não possa fazer parte disso?
Refreei o pensamento imediatamente, lembrando que tudo aquilo seria passageiro.
Eu não poderia pensar em fazer parte da história de Antônia dali em diante, porque
aquele era o nosso combinado. Seríamos algo até nossos objetivos estarem concluídos e então
seguiríamos nossas vidas, como costumava ser antes. O problema era que agora que sabia o
quanto era bom tê-la comigo, difícil seria viver como antes.
Naquela noite, jantamos com o insuportável ex-namorado de Antônia, Flávio, e os meus
mais novos colegas Miguel e Lucas; esses eram ex-namorados de Antônia minimamente
aceitáveis. Olavo estava viajando para uma competição de golfe e Vitor, segundo o que me
contaram durante a noite, vivia em um sítio no interior de São Paulo. Eu ainda não entendia
como alguém conseguia se dar bem com todos aqueles ex-namorados e ainda ser tão próxima da
mulher e namorada deles. Talvez minha mente fosse fechada demais.
Foi uma noite divertida, todos espremidos naquele apartamento minúsculo de Antônia,
sentados no chão, jogando conversa fora e comendo pizza. Um momento de respiro em meio
àquela ansiedade sem igual que eu sentia antes da audiência.
Na manhã de quarta-feira, fomos até o fórum. As crianças ficaram em uma sala separada
com uma assistente social e restou a mim e Antônia encararmos David e sua nova esposa.
Antônia e eu não éramos as pessoas mais indicadas para cuidar de crianças, mas só de olhar para
a cara daquela garota, eu conseguia ver de longe a indiferença que ela tinha com meus sobrinhos.
Eu tinha certeza de que se perguntasse a ela seus nomes, ela não saberia dizer.
Naquela audiência não teríamos um juiz, apenas um mediador. A ideia era que com
diálogo pudéssemos chegar a um concesso antes de darmos prosseguimento às ações judiciais.
Para mim, aquela reunião seria uma grande perda de tempo. Sabia que meu pai não
estava disposto a deixar as crianças em paz e eu nunca estaria disposto a deixá-las em suas mãos.
Minha advogada, a Dra. Sanches, era uma figura imponente com sua altura e postura
altiva. Era uma grande amiga de meu advogado e foi extremamente bem-recomendada. Ela tinha
a fama de nunca perder uma causa, principalmente as de disputa de guarda. Eu esperava que a
fama valesse a pena, porque seus honorários eram exorbitantes.
Dr. Lopes também estava ali, como advogado de Gregório e Vitória, ele cuidava dos
direitos das crianças. Meu pai também estava com seu advogado, que foi o primeiro a falar sobre
a forma como negávamos o direito à visita, impedindo que ele criasse laços afetivos com os
netos.
— Se ele não quis criar laços com os filhos, por que iria querer criar com os netos? —
Antônia disse ao meu lado.
Segurei sua coxa, não querendo contê-la, só mostrando que eu estava ali. E que
conseguiríamos.
— Acredito que minha relação com meus filhos não seja um problema seu, senhorita
Milani — David rebateu.
— Senhora Albizia — corrigiu. — Eu sou a esposa do seu filho.
Nenhum rastro de emoção no rosto dele. Nenhum.
Ele não foi ao casamento de Gregório.
Não foi convidado para o meu.
Aquele homem já tinha me tirado tantas coisas, mas a mais dolorosa de todas sempre
seria a figura paterna que me foi tirada, aquela ideia de ver o pai como um herói, uma inspiração,
alguém a ser admirado. David era um desconhecido para mim. Alguém que tinha um rosto
conhecido, mas era só mais um no meio da multidão.
— Precisamos nos manter focados no que é melhor para Cecília e Milo. Usarmos esse
tempo de conversa para analisar de que forma poderíamos cooperar para sua criação e bem-estar.
Poderíamos pensar na possibilidade de guarda compartilhada entre tios e avós? — o mediador
perguntou.
Dra. Sanches nos olhou e com um só aceno meu, ela ajeitou ainda mais sua postura
impecável.
— Recusamos qualquer proposta de acordo. A custódia deve permanecer sob a tutela do
Sr. e Sra. Albizia. Indivíduos intimamente ligados às crianças. Se nosso dever é manter o bem-
estar das crianças, é necessário que fiquem com quem as conheçam. O Sr. David é um
desconhecido para elas.
— É imprudente proferir tal afirmação sobre meu cliente sem apresentar evidências
substanciais — o advogado de meu pai o defendeu.
— Esta é uma audiência de mediação, na qual evidências formais não são apresentadas.
Nossa abordagem deve ser guiada pelo bom-senso e pela responsabilidade em relação ao bem-
estar das crianças. O que só o fato de estarmos reunidos aqui demonstra que não está havendo.
— Eu quero visitar os meus netos. Isso é um direito básico — David insistiu. — Estou
errado de querer isso? — Ele resolveu usar sua cartada de homem de bem com o mediador.
— Senhor Albizia, há algum motivo significativo que justifique a impossibilidade das
crianças receberem a visita do avô? — O mediador se dirigiu a mim.
Foi a vez de Antônia me olhar, um desejo silencioso para que eu falasse toda a verdade
sobre David. A realidade era que toda aquela audiência de mediação era uma baboseira. Meu pai
não abriria mão das crianças. Ele queria o dinheiro, não a convivência.
— Meu pai nunca foi próximo de mim ou de meu irmão. Ele é um desconhecido para
meus sobrinhos. Este homem não é um exemplo de figura paterna e não acredito em suas boas
intenções com as crianças.
— Baseado em quê o senhor diz isso? — o mediador perguntou.
— No péssimo pai e esposo que ele foi para nossa família.
— Todos temos a chance de mudar, Dante. Você também não mudou? De um garoto que
espancou o próprio pai para um homem casado, cheio de responsabilidades.
Cerrei o punho em cima da mesa, mas foi Antônia quem colocou a mão por cima da
minha.
— Não aceitaremos nenhum acordo com este senhor. — Ela se prontificou a tomar a
frente do que passava por minha cabeça.
Nossa advogada a repreendeu com um só olhar, porque aquele era o seu trabalho, no
final das contas.
— É importante para as crianças conviverem com os avós. Faz com que se sintam mais
acolhidas e...
— Onde o avô estava quando os pais morreram e eles ficaram sozinhos no mundo? —
questionei. — Porque nós estávamos aqui, mudando toda nossa vida para dar uma família para
eles.
— Eu estava em lua de mel.
— Nós também estamos em lua de mel e ainda assim estamos aqui. — Meu tom de voz
aumentou e novamente senti a mão de Antônia ali, como um porto-seguro.
O que, nos últimos tempos, ela acabou se tornando.
— Existe lua de mel em casamentos falsos?
Dessa vez nem ela foi capaz de me acalmar, avancei pela mesa, porém alcancei apenas o
vento, pois David se afastou com um sorriso contido.
Era o que ele queria.
E ele sempre conseguia o que queria.
— Por favor, sente e se acalme. — Dra. Sanches quase rosnou.
— A visitação avoenga é um direito das crianças e dos avós também. Minha
recomendação é que visitas semanais sejam implantadas até a próxima audiência.
— E se não quisermos? — Antônia perguntou.
— O interesse maior sempre será o bem-estar das crianças, senhora Albizia. Não o de
vocês, o deles, sempre.
Nada estava perdido, mas quando saímos daquela sala, eu sentia que falhei com meu
irmão, minha cunhada e meus sobrinhos.
A Dra. Sanches aconselhou a concordarmos com as visitas de David, assim mostraria
que estávamos cooperando e querendo o melhor para as crianças.
Ainda tentamos nos manter positivos pelas crianças, fomos almoçar no shopping e levá-
los para brincar com monitores em um daqueles parques cheios de brinquedos, infláveis e todo
tipo de diversão que as crianças amavam. Quando finalmente ficamos sozinhos, foi quando
Antônia começou a chorar.
De pé, no meio do corredor de um shopping relativamente vazio por conta do horário, eu
a abracei.
— Eu não quero perdê-los, Dante. Não agora que...
Ela parou de falar, escondendo o rosto em meu peito.
— Agora que...? — insisti.
— Agora que sinto que tenho algo. — Seu soluço cortou meu coração. — Alguém que
faça tudo valer a pena... Uma família.
Eu a entendia tão bem que aquela dor era a minha dor. Eu só não conseguia expressar tão
bem quanto ela.
— Não vou perder nenhum de vocês. Isso é uma promessa.
— Não prometa o que não pode cumprir, Dante — alertou. — Ele não estava tão errado
assim sobre nós.
— Ele estava. — Saiu sem nem eu processar. — Totalmente errado.
Olhos doces, mas que lutavam tanto para esconder o que ela sentia, vieram até mim. Eu
era realmente bom nisso de esconder sentimentos, mas Antônia... Bem, Antônia era péssima.
Nós estávamos dançando à beira do precipício há algum tempo, fingindo que não éramos
grandes mentirosos, quando, na verdade, éramos. Os maiores.
Eu a beijei com ternura, algo que nunca experimentei com mulher nenhuma.
Antônia era mestre em me fazer sentir coisas pela primeira vez.
— Estamos com tempo livre — confabulei. — O que acha de irmos ao cinema enquanto
as crianças estão brincando?
Mais uma primeira vez para mim.
Seus olhos brilharam de animação.
— Posso pegar o meu bolo de cenoura preferido antes?
— Duvido que sejam melhores que as panquecas de doce de leite da Felicita.
— Meu bem, sinto em te informar, mas nessa disputa Argentina e Brasil, vocês já saíram
perdendo.
Segurei sua mão, fingindo uma indignação. Bolo de cenoura era bem melhor que
panqueca de doce de leite, mesmo. Ela só não precisava saber disso.
— Igual a vocês naquela Copa do Mundo no Brasil?
Ganhei um tapinha no ombro e o direito de caminhar de mãos dadas pelos corredores do
shopping com a mulher que fazia meu coração acelerar de forma sem precedentes.
Mais uma primeira vez.
Aquele era um dos piores dias de todos, mas com ela ao meu lado, eu tinha a confiança
de que daria certo, porque eu não estava sozinho.
Esperava que nunca mais estivesse.
Nunca odiei alguém na vida, mas David eu odiava.
Cada vez que ele aparecia naquelas visitas fingindo que se importava, eu desejava jogar
veneno de rato no vinho e oferecer para ele. Na verdade, estava surpresa com as mais variadas
formas de cometer atrocidades com aquele homem que passava por minha cabeça cada vez que o
via com as crianças.
Miranda estava sempre por perto. Vez ou outra a esposa de David aparecia. O homem
estava claramente tentando comprar as crianças com brinquedos e presentes a cada visita. O bom
de Dante ser um tio babão e consumista era que as crianças tinham tantas coisas, que nada do
que David desse seria uma novidade.
Porém, pouco a pouco, ele se tornava alguém conhecido para eles. E saber disso ativava
uma parte totalmente egoísta e infantil dentro de mim.
Estava atolada em trabalho, mas ganhei duas assistentes para minha equipe, o que fazia
com que a carga fosse distribuída. Agora tínhamos até mesmo uma pessoa totalmente focada nas
redes sociais, que depois do boom que receberam pela publicidade gratuita de Mavi Collins,
precisavam ser muito bem trabalhadas. As degustações estavam com as visitas esgotadas até
janeiro do próximo ano, o que era um pouco assustador.
Dante teve a primeira reunião com o dono da rede Marine, um singapuriano simpático
que tinha ideias ótimas para unir os dois negócios. Seus hotéis combinavam perfeitamente com o
modelo de negócio que Dante gostaria de seguir. Algo reservado, de bom-gosto e rentável.
Teríamos uma reunião presencial em breve, assim que o empresário conseguisse voar até
Mendoza.
Pela primeira vez na vida, eu sentia que não era uma fraude, que estava no caminho certo
e poderia fazer a diferença, não ser apenas mais uma. Foi estranho perceber que eu finalmente
me encontrei em uma profissão, aos vinte e oito anos, em um lugar que nunca pensei que fosse se
tornar tão importante. Comparada aos outros, sempre me senti inadequada e atrasada, e agora,
pela primeira vez em muito tempo, estava completa e satisfeita.
Gostaria que Dante não estivesse ligado a essa sensação de completude, mas seria
inocência demais negar. Não sabia como, nem quando, nem onde, mas aquele cara impregnou
cada espaço vago, cada pensamento e cada momento; fosse bom ou ruim.
Naquela noite já tínhamos transado, mas seguíamos sem sono. Era uma quinta-feira
qualquer, sem grandes novidades. Trabalhei durante o dia, precisei levar Milo ao pediatra para
uma consulta de rotina, encontrei Dante na cidade e esperamos juntos que a aula de ballet de
Cecília terminasse. Ele fez sucesso com todas as mães das garotinhas, virando uma atração na
pequena e apertada sala de espera. Depois, jantamos juntos em um restaurante japonês da cidade.
Milo comeu peixe cru pela primeira vez e só lembramos depois que talvez não fosse uma boa
ideia servir frutos do mar para um bebê, mas deu tudo certo e agora estávamos ali, no quarto
dele.
Quarto dele era um termo ambíguo, pois minhas roupas se misturavam às dele no closet.
Minha escova de dente estava ao lado da sua na banda do banheiro e não me lembrava de um dia
desde o casamento que não tivéssemos dormido na mesma cama. Nem chegamos a conversar se
seria melhor continuar em quartos separados ou seguir juntos para que ninguém desconfiasse de
nada. Somente seguimos a vida, como bem queríamos. E eu queria noites como aquela, sempre.
Sua presença me fazia bem. Estar com ele era leve, um sopro de vida, era fresco como
um dia enrolado de primavera.
— Qual é seu filme preferido? — perguntei.
Minha perna direita estava jogada sobre seu quadril, o lençol cobrindo nossa nudez. Era
íntimo, mas não conseguia sentir timidez. Ele fazia com que me sentisse em casa.
— Taxi Driver. — Ele nem hesitou ao responder.
— Aquele com a Gisele Bündchen?
— O quê? — Franziu a testa. — Não, aquele de 1976, com o Robert de Niro, dirigido
pelo Scorsese.
— Ah! — Deveria ter imaginado que seria um filme blasé. — Nunca vi.
— É o melhor filme de todos. A fotografia é perfeita, a transformação do protagonista,
todas as questões sociais. É uma obra-prima.
Apostava que eu não gostaria. Meu gosto não era nada refinado para filmes, música,
livros ou vinhos. Teve um tempo que também não era para homens, mas ficava difícil falar isso
agora, ao lado dele.
— Posso imaginar. — Acomodei a cabeça em seu peito, inspirando o meu segundo
cheiro preferido de todos: o perfume de Dante.
O primeiro era o cheiro do cabelo das crianças, sem dúvidas.
— E o seu?
Soltei um risinho anasalado.
— Essa pergunta é muito difícil... — Suspirei. — Acho que o meu preferido é aquele
sobre a busca dos personagens pelo seu habitat natural, que deu lugar a uma imensidão de
concreto. É uma dualidade interessante sobre a forma como a Tecnologia e o homem impactam
na sobrevivência de outras espécies.
— Nossa! Parece interessante. Qual o nome?
— Os Sem-Floresta.
A cara de resignado dele, fez com que eu explodisse em gargalhadas. Levei um tapa
ardido na bunda e não parei de rir até que o ar estivesse escasso em meus pulmões.
— Você é uma peça rara, Milani.
Meus risos foram ficando para trás à medida que percebi seu olhar preso ao meu. A
forma como Dante me olhava, fazia sempre com que algo se agitasse dentro de mim. Era
perigoso brincar com fogo daquele jeito.
— Quando você me olha assim... — Deslizei a mão sobre seu rosto, sentindo a barba
roçar a palma.
— Sim?
— Parece real.
— Porque é. — Ele não hesitou. Parecia uma alucinação ver Dante agindo daquela
forma, vindo do homem mais ponderado e rigoroso consigo e com tudo à sua volta. Sem medo,
sem barreiras, sem jogos. — Você é a minha mulher e eu sou louco por você. — Escondi o rosto
na curva de seu pescoço. — Por que tanto medo, cariño?
— Quando acabar, vai doer. E eu já perdi muitas coisas ao longo da vida para não ter
medo da dor.
— Eu estou aqui e não pretendo ir a lugar nenhum sem você.
Meus olhos começaram a lacrimejar e precisei abraçá-lo ainda mais apertado. Eu estava
apaixonada por ele e sabia que isso aconteceria desde o momento em que ele me beijou naquele
bar. Dante era inevitável. A nossa história era inevitável.
— Você é o meu acaso favorito, Dante.
Pulando sem paraquedas, uma queda livre eminente. Era assim que me sentia nesse
momento.
Só que a vista, as sensações, aqueles olhares, a forma como me sentia quando estava em
seus braços, fariam esse acaso valer a pena.
Independentemente do desfecho que ocorresse.
Antônia eleva meus níveis de serotonina.
Era fácil esquecer qualquer problema quando estávamos juntos. Sentia que, em seus
braços, encontrei minha casa.
Só que a vida ainda continuava acontecendo e a sensação que tinha era de que corria de
um tsunami. Por mais que ele ainda não estivesse passando por cima de mim, estava em meus
calcanhares e não demoraria a ser atingido.
Tivemos a primeira audiência pela guarda, perante um juiz, quase um mês depois da de
conciliação. Todos nós demos testemunho, novamente falei sobre os problemas com meu pai,
sua agressividade, o péssimo pai e marido que ele foi. Falei sobre a preocupação que tinha de
que suas intenções não fossem as melhores, visto que fez a mesma coisa comigo e com meu
irmão quando éramos menores de idade.
Ele estava na sala, mas não esboçou emoção alguma. Era como se ele adorasse cada
minuto que eu gastava falando sobre nossa relação.
Antônia veio depois de mim, contando sobre sua relação com as crianças, a proximidade
que tinha com a irmã e Gregório, o fato de David nunca ter sido próximo ou mostrado qualquer
disponibilidade para assumir o papel de avô. Guiada pelas perguntas de Dra. Sanches, ela contou
sobre o período difícil da morte de nossos irmãos e de como decidimos alterar todas nossas vidas
para que nunca faltasse às crianças uma família que as amasse.
Na vez de Emily, aquela pobre coitada que parecia ter um total de dois neurônios, em um
discurso que parecia ter passado horas sendo ensaiado de frente ao espelho, começou a chorar
enquanto nos dizia o tanto que amava aquelas crianças e tinha de ser a mãe que eles tanto
precisavam.
Foi a primeira vez que achei que Antônia partiria para cima de alguém. Precisei contê-la
em sua cadeira, antes que colocasse tudo a perder. Ainda que isso pudesse acabar com nossas
chances de conseguir a guarda, achei incrível ver que ela seria capaz de tudo para defender
Cecília e Milo e, ainda que não aceitasse ser chamada de mãe ― por sentir que estava roubando
um lugar que era e sempre seria de Vitória ―, ela agia como uma, porque no final de cada dia,
após dar o seu melhor para eles, era o que Antônia era.
Todo o testemunho de meu pai foi baseado em segundas chances. Ele confirmou que foi
um pai ausente para nós, mas deixou de fora a parte sobre as agressões que cometia conosco e
com minha mãe. Eu fui taxado como agressivo e descontrolado. De forma muito comovente, ele
contou sobre meus episódios de descontrole na adolescência e encheu a boca para falar que
denunciou o próprio filho que o nocauteou em uma briga, mas que no outro dia, ofereceu uma
segunda chance para que eu aprendesse com meus erros. Assim como ele estava aprendendo.
Seria comovente, se fosse verdadeiro.
Ele citou minha incapacidade de manter relações, de demonstrar emoções e ainda foi
capaz de supor que Antônia e eu combinamos de nos casar para lucrar em cima das crianças.
Basicamente o que ele estava fazendo.
— Foram as melhores semanas de minha vida convivendo com meus netos. Tudo bem se
não pudermos obter a tutela deles, mas peço encarecidamente que permita com que eu conviva
com eles.
Ele chorou. Sim, chorou. Uma atuação impecável.
Foi assim que ele ganhou o direito de passar um final de semana a cada quinze dias com
as crianças.
Teríamos mais uma audiência, com presença de testemunhas, Cecília e Milo passariam
por uma terapeuta e só então o juiz daria seu veredicto.
A primeira sexta-feira que eles teriam de ir para a casa de David foi um dos piores dias
de todos. Antônia e eu tiramos folga para ficar com eles o tempo todo.
Milo começou a andar ainda nessa semana e eu nunca deixaria de considerar a coisa mais
fofa a forma trôpega como caminhava até alcançar nossas pernas, onde se jogava em um abraço
forte.
— Eu não quero ir — Cecília estava emburrada no sofá, recusando-se a colocar o casaco.
Estávamos chegando ao inverno e começava a esfriar lá fora.
— Vai passar rápido, formiguita. Eu prometo. — Antônia tentava acalmar a criança, mas
seus olhos estavam tão vermelhos pelo tempo que passou chorando enquanto arrumava as
mochilas deles, que ficava difícil passar credibilidade, até mesmo para uma criança.
— Não gosto dele. Quero ficar com vocês.
Precisei pegar Cecília no colo para dar um tempo a Antônia, antes que ela começasse a
chorar na frente da garotinha.
— Nós também queremos ficar com você, mas para que isso aconteça, precisamos
cumprir algumas regrinhas, sabe? Uma delas é você passar o final de semana com o vovô.
— Vocês cansaram de eu?
Nem consegui corrigi-la, porque precisei abraçar aquela criança. Antônia surgiu ao meu
lado com Milo em seu colo.
— Nós nunca cansaríamos de você, formiguita. Você e Milo são nossas pessoas
preferidas em todo esse mundo. — Antônia a beijou na bochecha repetidas vezes. — Sabe o
tamanho do mundo?
Cecília abriu os braços, demonstrando o tamanho do seu mundo.
— Nós te amamos um milhão de vezes mais do que esse tantão.
Ficamos ali na sala, abraçados uns aos outros enquanto David e sua esposa aguardavam
do lado de fora. Eles tinham alugado uma casa perto dali, porque era claro que continuariam
representando o papel de família perfeita. Fiquei sabendo que fizeram até um quarto para os dois.
— Eles vão contar a minha historinha?
— O livro já está na sua mochila. Quero que dê boa-noite para o urso por mim hoje e
amanhã. Duas vezes e depois você estará aqui novamente, o que acha?
— Tudo bem, titi.
Ela estava amedrontada e vê-la daquela forma estilhaçava meu coração.
— Sabe o que está entre nós e você lá na casa do seu avô? — perguntei e a vi negar. —
Só um lago, um pouquinho de água. Estamos por perto, Ceci. Sempre estaremos.
— E se eu ficar com vontade da minha chupeta?
Era uma dúvida justificável. Estamos tentando tirar a chupeta dela, mas vinha sendo
difícil. Já tentamos o papo da fada, dos gnomos, evocamos até a visita do Papai Noel mais cedo
para que ela se despedisse do objeto, mas até agora só conseguimos diminuir a frequência.
— Está bem aqui. — Antônia bateu no bolso lateral da mochila de unicórnio dela. —
Esse é o nosso segredo — cochichou com a garotinha que, pela primeira vez naqueles minutos,
abriu um sorriso.
— Promete cuidar do seu irmão? — perguntei.
Ela assentiu algumas vezes, adorando a responsabilidade de ser a irmã mais velha.
Aquela baixinha era realmente filha de Gregório.
Mesmo com toda a conversa, a hora que entregamos os dois para meu pai, o choro de
ambos foi angustiante. Milo até perdeu o fôlego pelo tanto que gritou ao ser separado de
Antônia.
E pela primeira vez desde que as crianças chegaram, enchendo minha vida de risadas,
gritos, caos e amor, éramos apenas Antônia e eu.

Antônia chorou o resto do dia.


Eu também queria ficar jogado na cama até que as crianças retornassem, mas estava mais
preocupado com ela e queria tornar a experiência menos traumática.
Nunca fui muito bom na cozinha, mas fiz um esforço para preparar uma massa gostosa
para nós dois. No meio da preparação tive a ideia de levá-la para comer em nossa adega
particular, o que seria uma distração. Lembrava que a primeira vez que fomos ali ela adorou o
lugar e só queria que ficasse mais feliz.
Vê-la sorrindo, nos últimos tempos, tinha se tornado entre todas as coisas, a minha
favorita.
Eu costumava acreditar que as crianças tinham preenchido minha vida com cor e luz,
mas não foram apenas elas. Antônia tomou para si uma parte de mim que acreditei que ninguém
mais conseguiria acessar.
Sempre fui um grande covarde quando falava sobre sentimentos, mas com ela, depois de
todas as curvas em nossa história, pela primeira vez eu não tinha medo.
Queria saber o que o futuro nos reservaria.
Queria mais dela todo momento.
Mais sorrisos, mais dias bons, mais dias ruins, tudo com ela.
Se alguém falasse no começo desse ano, que estaria na metade dele totalmente
apaixonado por Antônia Milani, eu acharia que era uma alucinação.
Só que era real. E a cada dia, eu desejava que também fosse real para ela, porque não era
só pelas crianças que eu caminharia sobre a lava.
Antônia foi a desilusão do meu passado, a felicidade do meu presente e a possibilidade
de um futuro precioso e belo, desde que decidisse ficar.
— Dante! Que coisa mais linda!
A surpresa estava refletida em seus olhos. Mesmo com a coisa mais simples — um jantar
meia-boca com massa que não parecia muito promissora, um pouco de vinho e uma vela que
achei por ali ―, ela estava fascinada. Eu gostava de verdade da forma como Antônia se
encantava com tudo. Ver o mundo pelos seus olhos era muito mais divertido do que pelos meus.
— Se a comida estiver ruim, não seja cruel.
No caminho para a mesa, ela ficou na ponta dos pés e beijou minha boca de leve. Um
gesto simples, mas que foi o suficiente para acelerar meu coração.
Eu a servi com vinho enquanto Antônia colocava a comida nos pratos. Selecionei o meu
Bonarda mais antigo, não que fosse uma comemoração ou algo do tipo, apenas porque ela
merecia.
Seu semblante estava melhor, os olhos ainda vermelhos pelo choro, mas parecia estar um
pouquinho mais animada.
— Isso aqui está dos deuses. — Apontou para a massa. — Já pode casar.
Observei a forma como bebeu o vinho, cujo uma garrafa custava quase mil dólares
quando importado, sem dar nem uma chance para apreciar suas notas. Há muito tempo já tinha
desistido de fazer com que entendesse que não tomamos vinho como quem se fosse Coca-Cola.
— Minha esposa é muito sortuda mesmo — brinquei.
— Ela será uma mulher de sorte.
— Ela já é.
Nossos olhares ficarem presos um no outro. Ela era transparente demais em suas reações.
Não entendia como que, vivendo todo o nosso dia a dia, ela ainda fosse tão reticente com
a relação que construímos.
— Falando dessa forma, as pessoas diriam que você parece apaixonado, Dante.
Seu rosto estava apoiando na mão. Tão linda!
Era irracional considerar alguém tão linda até em seus piores dias. Durante todos esses
anos precisei desviar o olhar, pensar em outras coisas e relembrar tudo o que passou entre nós
para não prestar atenção em cada parte do rosto perfeito e de cada centímetro de seu corpo. E
agora eu não precisava desviar. Eu não tinha mais nenhum medo.
— É como me sinto.
O silêncio sepulcral que veio da parte dela fez com que me sentisse um pouco
inadequado. Tinha passado dos limites?
A realidade era que gostaria que Antônia soubesse como eu me sentia, como tudo mudou
depois que ela chegou.
— Não faça isso — advertiu, os olhos ganhando um brilho lacrimoso.
— O quê?
— Fazer com que eu acredite que é real. Da última vez, não terminou nada bem e agora é
uma questão de tempo para que acabe.
Ela ainda tinha medo.
— Não precisa acabar. — Parecia simples na minha mente, mas talvez na prática fosse
um pouco mais trabalhoso.
— Dante, se perdemos as crianças, se... — Ela nem conseguiu completar, porque apenas
a ideia parecia quebrá-la. — Não tem nada mais que nos ligue.
— Não tem nada mais? — Debrucei sobre os joelhos, inclinado para mais perto dela.
— Não teríamos mais nenhuma razão para ficar juntos, não é?
— Eu ainda teria todas, Antônia.
Seus olhos estavam quase transbordando pelas lágrimas. Com a lateral da mão, ela
limpou a primeira delas que deslizou por sua bochecha.
— Todos que eu amo vão embora. — A dor refletida em sua voz apertou meu coração.
— Não quero acreditar que você vai ficar e depois te ver partir como todo mundo.
— Eu não sou todo mundo. — Toquei seu rosto, acariciando com o indicador a pele
macia como veludo. — Eu pertenço a você. Tudo em mim é seu.
Ela riu em meio às lágrimas, puxando o cabelo para trás, como se tudo aquilo fosse uma
completa loucura.
Era. Só que das boas.
— Não fale essas coisas, eu posso acabar amando você.
— Você já ama, só precisa de um pouco mais de tempo para aceitar.
Antônia não negou e ainda beijou minha boca. Tinha um tom de desespero, de
necessidade. Eu a entendia, porque estar com ela acalentava onde doía.
Precisamos de menos de dez segundos para decidir que existiam coisas muito melhores
do que um jantar.
Puxei-a para mim, provando seus lábios com tranquilidade, não daquela forma intensa e
bruta que acontecia quando estávamos juntos. Seus dedos estavam em meu cabelo, sua língua
explorando minha boca.
— Mostre como é ser amada por você, então — desafiou.
Sem desgrudar nossas bocas, segurei sua cintura, elevando seu corpo para repousá-lo
logo em seguida no chão em madeira. Antônia estava com uma camisola de algodão cor-de-rosa
por debaixo do roupão felpudo, o que facilitou o trabalho de acessar suas pernas. Acariciei sua
coxa, subindo até devagar até o elástico da calcinha. Sentia sua quentura, sentia sua lubrificação,
mas não a toquei.
Sem pressa, retirei o roupão, a camisola e a calcinha, vendo-a deitada, com os peitos de
fora, os mamilos enrijecidos clamando por meu toque, mas passei algum tempo a admirando;
nua, entregue, minha.
Não existia nada nem ninguém que se comparasse a Antônia.
— Você, Milani... — Aproximei-me ainda mais, com meus joelhos no chão, observando-
a. — É uma obra de arte. Poderia passar a vida te admirando daqui.
Seu sorriso era repleto de más intenções e com apenas um movimento, ela me desarmou
totalmente. Lentamente abriu as pernas, exibindo aquela boceta perfeita para mim.
— Não fique só admirando.
Peguei a taça de vinho com uma calma que não fazia jus às coisas que gostaria de fazer
com ela. Meu pau estava enclausurado na calça, clamando por alívio, por ela, por sua boceta que
foi feita para mim.
Observei a forma como se tocava, provocando e me instigando. Ela estava tão molhada
que seus dedos deslizavam com facilidade, entrando e saindo de forma lenta, a visão do paraíso
para mim.
Porra! Ela era como um sonho.
Abaixei só um pouco da calça e a cueca, necessitando de um pouco de alívio. Com os
mesmos movimentos lentos que ela reproduzia, toquei em meu pau, os olhos nela, o sabor do
meu vinho preferido na ponta da língua. Aquele costumava ser o meu gosto favorito até provar o
de Antônia.
Com um movimento vagaroso, toquei sua perna, subindo lentamente até a virilha, o
abdômen, parando nos seios que cobriam minha mão. Brinquei com um mamilo, beliscando-o,
da forma como eu sabia que a excitava. Em seguida, derramei o líquido entre seus seios.
Antônia arfou pelo susto e eu não perdi tempo sem desperdiçar todo o conteúdo.
Sorvi cada gota, suguei seus peitos, espalhando marcas enquanto escutava seus gemidos
cada vez mais altos.
Se sua boceta era meu gosto favorito, seus gemidos eram o meu som favorito.
Derramei todo o restante da taça entre seu abdômen e virilha. Satisfeito demais por ver a
forma como o vinho escorria por sua boceta.
Eu precisava provar.
Eu precisava dela como um viciado.
Seu gosto misturado ao vinho era o paraíso. Se aquele já era o meu favorito, agora eu
precisaria comprar todas as garrafas existentes nesse mundo.
— Eu estou quase lá — disse em um soluço.
— Não, cariño. — Ergui a cabeça. — Se for gozar, será no meu pau.
— Preciso de você, por favor.
Dessa forma doce, não havia como negar. O que era um alívio, porque tudo o que mais
queria e necessitava era me enterrar nela.
Em um só movimento, estava dentro dela.
Era como estar no céu.
Com movimentos firmes, continuei estocando enquanto a olhava. Então sua boca estava
na minha, minha mão cobria sua nuca, aproximando-nos, aprofundando aquela conexão.
Ela gemia em meus lábios.
E o paraíso se tornava ela.
— Eu sinto, Dante. Eu sei que sinto.
Estávamos naquele frenesi do sexo, mas eu sabia sobre o que ela falava. Ali, entregues
daquela forma, não existia margem para negar.
— É assim que amo você.
Com beijos e sussurros ela veio comigo, sua musculatura interna contraindo ao meu
redor enquanto caía no abismo de um orgasmo que lhe tirava o ar. Eu fui com ela, entrando
naquele vórtice de sensações enquanto a preenchia com minha porra.
O paraíso.
Ela era o meu paraíso.
Voltamos cansados para casa, mas satisfeitos. E meu último pensamento antes de cair no
sono, foi que eu era mesmo um filho da puta sortudo.
Porém, horas depois, eu não me sentia mais assim.
Após um cutucão forte, abri os olhos, sem saber que horas eram, quantas horas dormi ou
sequer onde estava.
Antônia estava mais pálida do que nunca sob a luz amarelada do abajur ligado.
— Aconteceu algo com Cecília.
O vento estava cortante quando desci da picape de Dante. O sol tinha acabado de nascer
e as sombras alaranjadas ainda serpenteavam no céu.
Estava com a mesma camisola que dormi, apenas joguei o roupão por cima, sem
conseguir pensar em nada que não fosse chegar àquela maldita casa e ver a minha menina.
Acordei quinze minutos atrás, com o celular de Dante vibrando. Ele tinha o sono pesado
e não acordava com essas coisas, mas eu, sim. Gelei quando vi o nome de David na tela e sabia
que algo de ruim tinha acontecido antes mesmo falar com ele.
Atender aquela ligação foi como voltar ao dia em que recebi a do policial, informando
que minha irmã e meu cunhado estavam mortos.
— Onde ela está? — Dante empurrou o pai para a parede da mesma pedra que revestia
toda a casa deles.
O homem estava assustado e não ofereceu resistência. Ele e Emily também estavam de
pijamas e olhar para os rostos preocupados deles era terrível.
— Não conseguimos achá-la em nenhum lugar da casa. — A voz de David falhou.
— Eu te levo para o inferno com minhas próprias mãos se acontecer algo com ela,
entendeu?
Eu já tinha visto Dante bravo e irritado, mas furioso como dessa vez, era a primeira.
— Ela deve estar escondida em algum lugar. Com licença. — Não perdi um segundo a
mais ali e entrei na casa.
O desespero me sufocava, mas eu precisava acalmá-lo e agir com serenidade. Ela estava
ali. Tinha certeza de que estaria.
Dante, seu pai e a esposa começaram a procurar no primeiro andar. Eu fui até o segundo,
gritando por Cecília, clamando para que ela saísse do esconderijo, porque nós estávamos ali para
buscá-la.
Ela nunca se escondeu. Nunca fugiu. Para ter feito isso, deveria estar assustada demais.
— Por favor, formiguita. Já está na hora de ir para casa.
Implorei, gritei, clamei, além de abrir cada armário, cada porta, cada cômodo. Baguncei
todos os quartos, revirei gavetas e acabei acordando Milo com minha gritaria.
Vê-lo com a cara amassada de sono fez com que meu choro se tornasse ainda mais forte.
Tirei o meu bebê do berço e o abracei apertado contra meu peito.
— Por favor! Por favor! Por favor! De novo, não.
Sua mãozinha repousou em minha bochecha, acalentando minha tristeza da forma como
conseguia.
— Mamamama— balbuciou.
— Vocês são tudo o que eu tenho. Por favor, não!
Meu pranto se tornava cada vez mais forte assim que os cenários mais terríveis passavam
por minha mente.
E se fosse tudo uma armação deles? E se a tivessem sequestrado?
Se não foram eles, e se alguém a tivesse levado no meio da noite?
— A mamãe já volta, está bem? — Beijei seu rosto e o acomodei novamente no berço
com os dois brinquedos que coloquei em sua mochila e estavam jogados no chão.
Cecília não estava naquele andar.
Voltei ao térreo, percebendo que uma enorme bagunça também foi feita ali. Quando
cheguei à sala, Dante arrancava todas as almofadas do sofá, desesperado, chamando alto o nome
da menina.
Fiquei parada, atônita, observando todos se movimentarem à minha volta, enquanto
sentia que estava em câmera lenta. Sabia que precisava correr, achar a minha menina, que ela
estaria ali em algum lugar.
A vida já tinha tirado metade das pessoas que mais amei em todo mundo. Ela não seria
cruel de fazer isso novamente.
Eu não aguentaria.
— Ela não está na cozinha também — Emily informou.
Ela acabou tirando aquele meu estado de transe. Fixei meus olhos na garota e, guiada
puramente pela raiva, atravessei a sala e a peguei pelo pescoço. Ela ficou surpresa, ainda mais
quando encostei sua cabeça na parede.
Não tinha qualquer controle. Enxergava tudo vermelho.
— O que vocês fizeram com ela? — Apertei ainda mais os dedos em torno do pescoço
dela.
Emily estava assustada, gaguejando, ao mesmo tempo em que tentava escapar.
Escutei David se alterar, mas ele foi barrado por Dante, impedido que se aproximasse de
mim.
— Me solta!
— O que vocês fizeram com ela? Cecília nunca fez isso!
Vi sua boca abrir, buscando ar.
Foda-se! Não dou a mínima.
— Antônia... — Dante soou alarmado às minhas costas.
— Eu quero escutar de você. Agora! — ameacei. — O que aconteceu nessa casa?
— Ela... Ela...
— Não aconteceu nada — David interrompeu a esposa.
— Cala a sua boca! — Não reconheci minha própria voz ao falar com David.
Estava irada, possuída, algo que nunca senti antes fervilhava dentro do meu peito.
Movida por essa flama que fazia com que tudo fosse vermelho, eu puxei Emily e bati sua
cabeça na parede.
— Agora! Fala, agora!
Ela começou a chorar, o que não causou um milésimo de piedade em mim. Minha
menina estava em algum lugar, sozinha, talvez perdida, por culpa da irresponsabilidade daqueles
dois.
— Ela estava chorando muito de noite, queria vocês. Eu gritei com ela. — Suas palavras
saíram emboladas. — Ela chorou ainda mais e David deu um tapa em sua boca.
Eu sabia que Dante partiria para cima do pai depois disso. Só não sabia que eu faria tanta
questão assim de socar a cara daquele filho da puta.
Nunca soquei alguém na vida, mas dei o meu melhor ao atacar aquele homem
desprezível. Ele não contava com isso e foi pego de surpresa.
Minha mão latejou no mesmo segundo, mas a satisfação de ver que o fiz sangrar foi
muito maior.
— Ora, sua puta...
Ele veio para cima de mim, como o óbvio lixo que era. Dante o segurou, mas ainda
parecia chocado por ver que ataquei seu pai.
— Vai me bater também? — provoquei. — É o que gosta de fazer, não é? Bater em
mulher, em crianças, seu covarde de merda. Eu vou te colocar na cadeia, seu...
— Antônia, por favor... — Dante estava no meio de nós dois, contendo toda a situação.
— Cecília está em algum lugar e precisa de nós.
Caí em mim, ele tinha toda a razão.
A prioridade era encontrá-la.
— Juro por Deus que depois que encontrar Cecília, eu vou acabar com você — Dante
virou para ameaçar o pai. Ele estava controlado, mas era nítido o esforço que fazia para não
colocar tudo a perder. — Não vou me importar de passar o resto da minha vida na prisão para
que você não exista mais nesse mundo, entendeu?
Como o bom covarde que era, Davi ficou caladinho.
— Liga para a polícia. — Apontei para Emily, que, amedrontada, saiu correndo em
direção ao celular.
Dante e eu saímos da casa, prontos para procurar no jardim.
Ao olhar a imensidão da clareira que se estendia por uma floresta e área montanhosa, eu
desabei no chão.
— Não. — Dante logo estava em minha frente, ajoelhado. — Ela está aqui. Nós vamos
achá-la.
Comecei a hiperventilar, entrando em uma crise de pânico.
Eu precisava encontrar a nossa menina.
Dante segurou meu corpo tão forte, que não sobrou lugar para aquele pânico que surgia
em meu peito.
Nós chegamos até ali juntos, sairíamos dali juntos.
Ela estava em algum lugar e nós a encontraríamos.
Custe o que custar.

Duas horas depois, todos os arredores estavam tomados por pessoas procurando por
Cecília.
Roma chegou minutos atrás com Miranda. O pessoal da banda, do bar, os meus colegas
da Albi. Todos montavam grupos de busca para achar Ceci.
A região tinha uma floresta extensa, onde alguns moradores e a polícia tinham mais
familiaridade. Havia quatro grupos em cada canto da mata, Dante e eu estávamos em um deles.
Tinham outros pela cidade, pelas videiras e pelo terreno da vinícola, caso ela tivesse sigo
ágil e chegado até lá. Ela estava com quatro anos, como poderia decorar um caminho assim?
Uma equipe da polícia conseguiu ver por uma câmera que ficava na cozinha, que às 3h19
da manhã ela passou pelo cantinho da gravação. Com a chupeta na boca, segurando o boneco do
Buzz Lightyear, com seu pijama de unicórnio e a pantufa em formato de coelho.
Eu estava em pânico.
Por mais que quisesse ser positiva e vibrar uma energia boa para que tudo desse certo, eu
sentia que estava em queda livre.
Quando retornamos para a casa já passava das 10h da manhã e a primeira coisa que vi no
jardim foram os dois carros dos bombeiros. Parecia que a cidade toda estava ali e ainda assim
ninguém conseguia encontrá-la.
Notei David prestando depoimento para dois policiais, na varanda de casa.
Dante conversava com dois grupos de buscas, indicando qual região deveriam explorar
agora. Ele estava em seu modo protetivo, sem ter tempo para expressar qualquer emoção, porque
estava focado em fazer o que tinha de ser feito.
Essa característica que foi julgada por mim na morte de nossos irmãos, agora era o que
me dava esperança de que Cecília retornaria para nós.
Naquele momento, tudo o que tinha em mãos era fé.
Caí de joelhos, implorando para Deus, para todos os santos que eu conhecia, para
qualquer força que tivesse poder de cuidar da minha criança.
— Vitória... — sussurrei o nome de minha irmã. — Cuida dela enquanto eu não posso.
Eu s-sei que você foi uma mãe maravilhosa para ela, mas, por favor, por favor, por favor, deixe
com que eu continue sendo. Ela é nossa garotinha, ela é a minha família. Tudo o que nos restou...
Engasguei com o choro, fincando as unhas na grama, apertando até que a terra
acumulasse entre meus dedos.
Cecília estava em algum lugar.
Tinha de estar.
Escutei certo burburinho começar e, ao erguer a cabeça, vi os policiais e a segunda
equipe de bombeiros, que vistoriava a casa, correr pela clareira.
Minha boca secou.
Os batimentos cardíacos ecoavam em minha garganta.
Levantei do chão lentamente, encontrando Dante no meio do caminho. Todos corriam
para o fim da clareira, onde ficava o lago.
Corremos juntos até lá, meu coração estava cheio de esperanças de, entre todas aquelas
pessoas, Cecília estar no meio, com aquele sorrisinho levado. Eu ficaria traumatizada por anos,
mas quando ela tivesse uns vinte e tantos, até conseguiríamos rir dessa história.
Quando chegamos à beirada do lado, eu tive a certeza de que nunca poderia rir dessa
história.
Fiquei paralisada com a movimentação à minha frente, mas nem em mil anos poderia
esquecer o grito excruciante de Dante.
Ele caiu aos meus pés.
E continuou gritando.
E chorando.
Enquanto dois bombeiros retiravam da água uma das pantufas de coelho.
O mundo ficou em silêncio quando entendi o que tinha acontecido.
A dor era dilacerante. Maior do que tudo que já tinha sentido na vida.
Com Gregório e Vitória eu entendia que foi um acidente, algo além do meu controle; do
controle de qualquer um.
Só que com Cecília eu era o grande culpado.
Fui eu quem não lutou o suficiente para que ela ficasse comigo e Antônia.
Fui eu que falei que nós estaríamos do outro lado do lago.
Fui eu quem matou minha sobrinha.
Antônia estava ao meu lado, sentia suas mãos em meu rosto, via sua boca se movendo,
mas não escutava nenhum som. O mundo era um eco dos meus pensamentos mais sombrios.
Ela estava ali. Ela estava em algum lugar. E eu a acharia.
Fiquei de pé em um pulo, correndo em direção ao lago. Empurrei quem estava na frente
e mergulhei sem me importar com profundidade ou qualquer outro perigo.
Ela estava ali.
Mergulhei várias vezes, mas a água era escura, não conseguia enxergar nada e quanto
mais mergulhava, mais fundo ficava.
— Tira a mão de mim! — gritei assim que senti várias mãos me puxando da água.
Eram os mergulhadores dos bombeiros que acabaram por me arrastar para fora.
Esperneei, gritei e empurrei cada um deles, mas não consegui continuar procurando por Cecília.
Antônia estava à margem lago, seu rosto refletia o mais profundo pânico.
Ela perdeu todas as pessoas que mais amava na vida. Perder mais alguém, era seu pior
pesadelo.
E eu era o culpado por fazer isso com ela.
— Dante... — Antônia estava quebrada. Eu a quebrei. — Ela está em algum lugar. Ela
tem de estar.
Eu a trouxe para mim, apertando-a tão forte, temendo que ela também desaparecesse
entre meus dedos.
Antônia caiu em um pranto alto e seus joelhos falharam. Ainda abraçado, ajoelhei no
chão com ela e pela primeira vez no dia, aquela sensação de desespero e impotência acabou
explodindo em um choro.
Sempre tive todos os sentimentos controlados dentro de mim. Sempre soube o que
precisava fazer para lidar com as mais terríveis situações, só que ninguém me preparou para a
pior delas.
Eu aprendi a viver esperando o mínimo; das pessoas, de emoções, de qualquer
sentimento.
Agora que aprendi a ter tudo com eles, não sabia como lidar com a possibilidade de
perder tudo.
— Ela vai voltar para nós. Eu te prometo. Nossa filha... Nossa filha vai voltar para nós.
Continuei com Antônia em meus braços. Rezando, implorando para que Cecília estivesse
bem e que tivéssemos uma segunda chance. Eu faria todos os segundos valerem a pena se tivesse
mais uma chance. Só mais uma.
Levantei o queixo ao perceber os sapatos ao meu lado. Era David. Ele não estava mais
com o pijama de quando chegamos ali e seria injusto falar que ele não parecia preocupado,
porque ele estava. Seus olhos estavam fundos e havia um brilho de preocupação refletido neles.
Só gostaria de saber se era por conta de Cecília realmente ou pela responsabilidade que cairia em
seus ombros.
A grande verdade era que a culpa de toda aquela situação era minha. Apenas minha.
— Estou entrando em um novo grupo de buscas. Iremos para o Norte.
Virei o rosto. Eu não dava a mínima para o que ele faria.
— Sinto muito... — Davi disse suavemente.
Ainda no chão com Antônia, olhei para ele mais uma vez.
— Não há motivo para sentir muito, ela está por aqui. E quando voltar para nós, você
nunca mais colocará os olhos nela, entendeu? — Deixei bem claro. — Ninguém mais será
puxado para a vida infeliz e vazia que você gosta de ter. Minha mãe, Gregório e eu fomos os
últimos. Esse ciclo acaba bem aqui.
Possivelmente aquelas palavras não valeriam de nada para ele.
Meu pai colocou a mão no peito, pensei que ele falaria algo, mas apenas nos deu as
costas.
— Precisamos continuar com as buscas. — Antônia soltou os braços de minha cintura,
afastando de leve a cabeça. — Não vamos desistir.
— Nunca.
Ajudei-a a se levantar e olhei para o horizonte, havia três equipes de bombeiros com
barcos e mergulhadores.
— Me desculpe.
Antônia virou o rosto para conseguir olhar para mim.
— Pelo quê?
— É tudo minha culpa. Eu disse a ela que estávamos do outro lado do lago.
Não conseguia parar de chorar, ainda mais por confessar a verdade para Antônia. Eu
precisava ser forte por ela. Eu precisava estar sempre disposto a proteger e dar segurança para
todos eles. E admitir que falhei me envergonhava.
— Dante, você não tem culpa de nada. Nós estamos do outro lado do lago. — Suas mãos
seguraram os lados de meu rosto. — As únicas pessoas culpadas aqui são seu pai e a mulher
dele. Eles assustaram a menina, eles a agrediram, eles que causaram tudo isso. Não, você. Você
dá o melhor para essa família, você é perfeito.
Ela era incrível. A melhor mulher de todo o mundo.
Mesmo no pior dia, ela ainda conseguia ver luz.
— Olha para mim — pediu —, ela não está naquele lago. Não está. Nós vamos sair
daqui e seremos felizes, entendeu? Ela vai crescer, ser a adolescente mais caótica dessa cidade,
vai dar o maior trabalho para nós dois e ser o maior orgulho de nossas vidas depois.
— Eu não posso deixar com que você perca mais alguém... — Isso ainda dilacerava meu
peito.
Como superaríamos algo assim? Não existia vida após uma tragédia como essa.
— Eu não vou perder mais ninguém. Esse é o nosso verdadeiro acordo, Dante. Eu, você
e as crianças, para sempre.
Se antes ainda tivesse dúvidas de que a amava, agora não existia mais nenhuma.
Eu a amava cada dia mais e, ainda assim, nunca seria o suficiente.
Nossos dedos mindinhos se entrelaçaram, um acordo silencioso surgindo por meio de
nossos olhares.
Segundos depois retomamos as buscas. Voltei para a floresta com um grupo com dois
produtores de vinho da região. Antônia foi para o outro lado com Roma, Miranda e o pessoal da
banda.
Reviramos cada canto daquela floresta e, conforme as horas passavam, o desespero
intensificava em meu peito. Evitava voltar para perto da casa, porque a ideia de ver um bombeiro
retirando Cecília da água era a pior imagem de todas.
Só que próximo das 3h da tarde, precisei voltar. Precisávamos de água e algumas pessoas
queriam descansar e se alimentar.
Eu acharia outro grupo para voltar às buscas o quanto antes. Recebi uma garrafa de água
e um sanduíche assim que entrei na clareira, mas só aceitei a água. Meu estômago estava
embrulhado e não conseguia nem pensar na ideia de comer algo.
— Senhor Albizia. — O chefe dos bombeiros e das buscas era um homem corpulento e
chamava atenção pelo bigode grosso. Seu semblante não era nada bom. — Estamos a poucas
horas do por do sol. Quando chegar a hora, teremos de pausar as buscas até amanhã pela manhã.
— Não.
— Infelizmente não conseguiremos fazer nada sem a luz do sol. É um procedimento
padrão. Amanhã pela manhã continuaremos as buscas no lago.
— Não! — repeti com a voz mais grossa. — Ela não vai passar mais uma noite sozinha.
Eu vou continuar procurando, nem que eu preci...
— Senhor Albizia... — Sua mão veio para meu ombro, um gesto acalentador. Odiei
como seus olhos transpareciam pesar. — Tudo indica que ela entrou no lago. Já faz muitas horas
do desaparecimento e...
— Continuem trabalhando.
Dei as costas, incapaz de seguir escutando o que ele insinuou.
Eu não desistiria dela.
Busquei por Antônia e não foi difícil encontrá-la sentada nos degraus da varanda. Milo
estava em seu colo, tomando mamadeira. O rosto dela estava vermelho, indicando que chorou há
pouco tempo. Sentei ao seu lado, beijei a testa do garotinho e segurei a mão da minha esposa.
— Se algo acontecer... — Ela tentou falar, mas se engasgou. Eu iria falar que nada
aconteceria, que tudo ficaria bem, mas conforme as horas passavam e cada vez mais pessoas
retornavam de cada canto da cidade sem notícias... Queria acreditar e insistir que ela estava bem.
Eu precisava continuar insistindo e acreditando. — Ele nem se lembrará dela, nem dos pais. Ele
será como nós.
Ela agarrou Milo contra o peito, chorando em cima do bebê que parecia alheio a tudo
aquilo.
— Não vai acontecer.
— Se não for o lago, seria o quê, Dante? Alguém a levou? A essa hora, ela não está nem
mais no país.
A polícia trabalhava em olhar cada câmera da rua, dos arredores e das rodovias que
saíam da cidade, tentando achar algo suspeito, algo que indicasse um sequestro.
Mendoza era pacata, porém recebia turistas de todo o mundo. Eles não tinham descartado
essa possibilidade.
— Não desista dela. Não ainda.
Beijei a lateral de sua cabeça, esfregando meu nariz nos fios bagunçados, mas ainda com
seu perfume.
Vi meu pai retornando com um grupo, seu semblante era a definição do cansaço mental e
físico. Por mim, ele já estaria atrás das grades, mas sua presença ainda era necessária. Ele
ajudava os policiais, procurava por todos os cantos.
Por um só segundo pensei se aquilo não seria mais um plano dele. Algo que nos
destruiria de uma vez por todas. Ele venceria. Mas, a que preço? David era covarde, falso e
ambicioso, mas não era sádico.
Naquela altura do campeonato eu não conseguiria descartar nenhuma possibilidade.
Ele esfregava o ombro, olhando para Antônia e para mim com algo que nunca vi em seus
olhos. Eu falaria que era um brilho de emoção, se ele fosse capaz de sentir alguma coisa.
Estava pronto para buscar uma equipe policial e falar sobre minhas suspeitas sobre meu
pai, quando percebi a movimentação na lateral do lago.
Bombeiros começaram a correr.
As pessoas que ajudavam nas buscas começaram a correr.
Eu não consegui correr, porque minhas pernas falharam.
Naquele milésimo de segundo eu deixei de acreditar.
Soube que falhei.
E que nada mais faria sentido sem Cecília em nossas vidas.
Foi quando eu a vi nos braços do meu gerente de vendas, Guillermo. No mesmo instante,
Antônia avançou pelo gramado e eu corri atrás dela. Ela deixou Milo com Roma, que estava pelo
caminho e correu até chegar perto da roda cheia de pessoas gritando.
— Papai!
Foi como voltar a respirar.
Avancei para frente, tirando Cecília dos braços de Guillermo. Ela estava toda suja de
terra, a boca seca e rachada, extremamente pálida, seu pijama estava um pouco úmido e cheio de
lama. Quando olhei para seus pés e vi a única pantufa de coelho, foi ali que desabei.
Antônia estava ao meu lado, chorando, beijando o rosto da menina, certificando-se de
que estava tudo certo.
— Você está bem? Está machucada? Alguma coisa dói? — Ela nem respirava para falar.
— Minha cabeça dói, titi. Estou com sede.
Beijei dezenas de vezes os cabelos da minha menina, agradecendo a tudo o que era mais
sagrado por ela estar ali, sã e salva.
— Ela estava escondida dentro de um buraco em uma árvore, uns seiscentos metros ao
Sul. — Escutei Guillermo falar para algumas pessoas.
— Obrigado! Obrigado, mesmo. — Segurei seu braço, sem saber como agradecer o fato
de que ele salvou a minha garotinha, o amor da minha vida.
— Você estava escondida todo esse tempo, formiguita? — Antônia ainda a ninava,
incapaz de soltar a criança.
Eu a entendia com todo pedaço do meu ser. Eu não soltaria a mão de Cecília e Milo
nunca mais na vida.
— Eu fiquei com frio e o coelhinho entrou no buraco.
Seu rosto estava tão pálido, que apertava o coração.
— A sua pantufinha? — questionou minha esposa.
— Não, um coelhinho de verdade. — Tossiu. — Eu perdi uma pantufa na água, titi.
Tentei encontrar vocês, mas fiquei com frio e não tinha mais chão.
Ela entrou no lago.
E precisei pegar Cecília, amassando-a contra mim. Ela só queria nos encontrar...
Ela poderia estar morta. Eu lutei contra essa ideia o dia inteiro, mas ela poderia.
As pessoas ao nosso redor choravam, alguns estavam ajoelhados agradecendo, outros
comemoravam. Foi no meio de todos aqueles anjos que se propuseram a nos ajudar que vi David.
Ele estava emocionado. Um sentimento que nunca o vi demonstrar.
— Você ficou escondida todo esse tempo, meu amor? — Antônia chorava e sua voz já
era apenas um fiapo.
— Eu não sei encontrar vocês, mas vocês sabe me encontrar.
— Você tem razão. — Peguei sua mãozinha toda manchada de terra. — Nós sempre
iremos te encontrar, Ceci. Mesmo que pareça impossível, sempre estaremos aqui com você e seu
irmão. Amo você, pequena.
Antônia e eu a abraçamos novamente. Era a mais pura verdade. Antônia, Cecília e Milo
me encontraram e alteraram todo o rumo da minha vida. Eu nunca mais seria o mesmo depois
deles e era grato por isso.
Eles eram mais do que algum dia sonhei em ter.
Um sonho que nunca achei que merecesse sonhar.
Eles eram tudo.
— Ela está desidratada. Precisamos levá-la ao hospital — o chefe dos bombeiros
informou, entrando no meio de todas aquelas pessoas para falar conosco.
Obedeci de imediato, porque eu precisava que ela fizesse todos os exames, fosse
atendida por todos os médicos dessa cidade e que todos eles me confirmassem que ela estava
bem e que aquele pesadelo tinha acabado.
Antônia entregou Cecília para um dos bombeiros que a colocar em uma maca. As
pessoas ao nosso redor começaram a aplaudir e foi saindo do meio da roda, que encontrei meu
pai.
Ele assistia Cecília sair com a maca. Havia alívio em sua expressão, mas também havia
tristeza. Como se algum dia tivesse se importado.
Eu não tinha ideia de como faria isso, mas aquele homem nunca mais chegaria perto da
minha família.
Passei por ele e alguns segundos depois escutei um gemido seguido por um baque.
Quando olhei para trás, David estava no chão, caído de bruços.
Por um momento achei que fosse uma brincadeira, mas quando vi a movimentação dos
bombeiros, retornei para perto dele. Ao ser virado de barriga para cima, seus olhos estavam
abertos, desfocados, sem vida.
Houve uma comoção, os bombeiros e policiais começaram a tentar ajudar, dois
bombeiros iniciaram uma massagem cardíaca.
Emily apareceu gritando, desesperada. Não consegui sentir pena dela, porque em
nenhum momento ela se desesperou por Cecília.
Antônia retornou para meu lado, entrelaçando sua mão à minha.
Um bombeiro chegou com um desfibrilador portátil. Dr. Evane, ainda com a roupa suja
das buscas pela floresta, apareceu para ajudar. Ele era o cirurgião geral do hospital da cidade e
pediu para que meu pai fosse na ambulância onde Cecília seria levada.
Não foi preciso.
Diante do entardecer alaranjado daquele dia terrível, eu vi o corpo, do homem que
permeou meus piores pesadelos, morto.
Gostaria de ter sentido algo mais digno do que pena, mas foi apenas isso que consegui
dar a ele.
O sentimento de pena por ter partido sem nunca ter sido capaz de amar alguém
verdadeiramente. Seus filhos, sua esposa, sua família. Ninguém que não fosse ele.
Naquele entardecer, agradeci por ter aprendido a sentir, a sorrir, a amar.
Isso mudou a minha vida. Isso me deu uma vida.
Quatro meses depois

A vida era boa na Itália.


Sob o sol da Sicília, tomando quantos Aperol Spitz conseguia antes de buscar as crianças
na recreação, enchendo a barriga de massa fresca todos os dias, aproveitando cada instante do
hotel dos sonhos, o mesmo em que foi gravado White Lotus, o mesmo que Dante prometeu me
levar.
A vida era mesmo muito boa.
Precisei abaixar os óculos de sol para analisar a olho nu a preciosidade que era Dante
Albizia com seu short de piscina com limões sicilianos, igual ao de Milo, que causou uma
discussão sobre o quão ridículo ele pareceria, vindo do homem que se vestia todos os dias como
um lenhador. O que tinha de irritante, tinha de gostoso.
Seu abdômen molhado e bronzeado como estava era uma obra de arte. Tudo naquele
homem era gostoso e eu não dava indícios de que me cansaria.
O melhor de tudo? Ele também não parecia nada cansado de mim.
Continuei analisando aquela perfeição que era o meu marido, caminhando até mim como
em uma abertura do De Férias com o Ex. Só que não era possível ele participar, porque se
depender de mim, ele nunca irá parar naquele grupo de WhatsApp com todos os meus ex-
namorados
Tinha quase certeza de que A Maldição Milani chegou ao fim. Talvez treze fosse o meu
número da sorte mesmo.
Também suspeitava que finalmente tivesse entendido o que era um relacionamento ao
lado de Dante.
Antes eu acreditava que precisava encontrar a pessoa perfeita, milimetricamente feita
para mim. Os defeitos poderiam ser esquecidos, desde que as qualidades valessem a pena.
Se algo não funcionava dentro do relacionamento, eu tirava meu time de campo antes
que acontecesse algo pior, antes de sentir algo a mais.
Eu posso ter me apaixonado por várias pessoas ao longo da vida, mas quem me ensinou a
amar verdadeiramente, da forma mais sincera e altruísta, foi Dante.
A perfeição passava longe de nosso relacionamento, nossa história era cheia de curvas,
defeitos e momentos incríveis. Ele ainda era arrogante, certinho demais, mal-humorado às
manhãs, tão organizado que beirava um transtorno.
Dante não mudaria. Eu não mudaria. E nos amávamos assim, com todos os defeitos, as
qualidades, os altos e os baixos.
Eu decidi ficar. Eu decidi ser dele.
E ele fez com que valesse a pena cada minuto.
Amar alguém nunca seria fácil, mas era um exercício diário. Se hoje fosse difícil, nós
nos esforçaríamos para amanhã ser melhor. Se o hoje foi perfeito, aproveitaríamos cada instante
disso.
Dante beijou minha boca, mas no processo balançou o cabelo, espalhando água gelada
em meu corpo quente do sol.
— O que você tem de gostoso, tem de irritante.
Ele se jogou ao meu lado no futton, virou de barriga para baixo e segurou meu queixo
entre o indicador e polegar.
— Falando em coisa gostosa... — Ele era um perigo. — Não conseguia parar de olhar lá
da piscina esse biquíni socado na sua bunda. Sabe as coisas que eu faria para colocar essa peça
de lado e te foder?
Música para meus ouvidos.
Dei um meio-sorriso, usando a pontinha da língua para umedecer o lábio inferior.
— Você gostou? Achei tão simples. — Fingi arrumar a lateral da calcinha do biquíni,
mas a tornei ainda menor, não deixando muito para sua imaginação.
Estávamos parecendo adolescentes cheios de hormônios naquela viagem.
Era a nossa lua de mel, mas não conseguimos deixar Cecília e Milo em casa. Depois de
tudo o que aconteceu, estar com eles, dedicar nosso tempo para a família, era tudo o que mais
queríamos.
Teríamos muitos e muitos anos para viajar o quanto quisermos, mas poucos para sermos
as pessoas favoritas de nossas crianças, antes que crescessem, que se tornassem monstrinhos com
hormônios desregulados e raiva acumulada.
Ao mesmo tempo em que foram os meses mais felizes da minha vida, também foram
difíceis. Depois de ter ficado perdida, Cecília tinha medo de tudo e demandava muita atenção.
Fazíamos de tudo para que ela se sentisse protegida e amada. Dia após dia, ela foi melhorando.
E não era só ela que tinha medo. Eu tinha medo de deixá-los sozinhos, medo da minha
própria sombra.
Dante foi um acalento para mim durante esse tempo, o meu porto-seguro. Foi durante
esse período que decidi que com medo ou sem medo, eu apostaria tudo.
Ele, eu, nossa família e tudo mais o que o futuro tivesse separado para nós.
— Nada consegue ser simples em você, cariño. Você tira o meu ar.
Ele era tudo.
E era meu. Só meu.
— Você precisa ver os outros que estão na casa do Flavinho. Preciso levar minhas coisas
para casa, a propósito. Já faz um tempão que estão lá.
— Do Flavinho... — Sua voz afetada pelo ciúme sempre seria engraçada.
— Ciumento. — Beijei sua boca e em represália tomei um tapa na bunda.
— Peça que ele doe tudo. Não quero a minha mulher usando as roupas que estão na casa
daquele moleque. Vamos comprar tudo novo.
— A sua mulher faz o que quer da vida dela, viu? — provoquei, sabendo que ele ficaria
puto.
E eu amava vê-lo puto, ele fodia com raiva e eu só ganhava quando o irritava e ainda
sendo bem comida.
— Posso botar fogo — confabulou. — Nas roupas e no apartamento dele.
Belisquei seu bíceps.
Minhas roupas e algumas caixas com objetos e documentos estavam na casa de Flávio,
porque fomos para o Brasil rapidamente, apenas para ir à audiência da guarda das crianças, duas
semanas depois da morte de David. Emily deixou bem claro que não queria as crianças, que elas
deveriam ficar conosco e tudo o que queria era o dinheiro. Ela ficou com toda a herança de
David depois que Dante abriu mão de sua parte.
Conseguimos a tutela definitiva de Cecília e Milo.
E toda aquela discussão sobre quem ficaria com as crianças depois que tudo terminasse,
nem chegou a existir.
Entreguei meu apartamento ao proprietário e voltei para casa com minha família, onde
criaríamos os nossos filhos juntos, em uma casa rodeada de amor e sorrisos.
E foi assim que o meu casamento se tornou o mais real da história.
— Uau! Tão violento — disse em um tom meloso. — Sabia que o banheiro do SPA está
sempre vazio?
Era um convite.
Como decidimos trazer as crianças para nossa lua de mel, agora tínhamos que achar cada
canto privativo desse hotel para poder comemorar da melhor forma possível.
Não negaria que era ainda mais excitante.
— Uma informação útil, porém não será utilizada agora, porque temos de pegar as
crianças no clubinho.
Resmunguei contra seu peito tão duro e grande quanto aquelas geladeiras bonitas.
Gostoso.
E todo meu.
— Depois do jantar? — pisquei.
— Gosto desse acordo.
Às vezes, tudo o que almas gêmeas precisavam era de um toque do acaso. Nós
éramos a prova viva disso.
Um ano depois

Eu venci a grande guerra contra Dante.


Deveria saber que nós mulheres sempre conquistávamos tudo o que queríamos, ainda
assim o gostinho da vitória era mágico.
A vista da varanda para os ciprestes e a Cordilheira dos Andes bem ao fundo era pura
poesia. A Babilon tocava no palco do lugar em que recepcionamos nossos convidados. Havia
comida, muito vinho e alegria.
Era esse o espírito que a Marine buscava. Um lugar em uma localidade estonteante, onde
as pessoas pudessem viver momentos inesquecíveis.
A fusão da Albi com a rede de hotéis Marine era um sucesso. Fruto de um trabalho árduo
meu — tanto na parte que me cabia profissionalmente quanto para convencer meu marido que
era teimoso como uma mula quando queria — e de Tay Chong, o dono dos hotéis.
O resultado? Seis meses de reservas esgotadas.
Saí da varanda e retornei à festa de inauguração. O crepúsculo pintava o céu de rosa e
transformava a paisagem em algo digno de prêmios. O que, a propósito, tínhamos um muito
importante: o de melhor vinícola da América do Sul.
Mesmo com meu coração brasileiro chorando, essa eu fiquei devendo para o Brasil.
Com o hotel e todas as experiências que proporcionaríamos para os hóspedes, tinha
certeza de que aquilo seria apenas o começo.
Cruzei os braços, analisando a caótica cena de Dante dentro do barril de uvas com seu
mais novo sócio singapuriano. Ele, que disse que tudo aquilo era uma enorme perda de tempo, se
divertia com o empresário, pelo qual ele dizia nutrir grande antipatia.
Os motivos? Tay Chong ria demais, fazia piadas que Dante não entendia e estava sempre
acompanhado de bichos que lhe davam alergia.
Se já foi difícil ele abrir o coração para Rocambole, seria incrivelmente árduo nutrir
simpatia por uma capivara.
Mas, olhando dali, eles pareciam até grandes amigos.
— Homens não crescem nunca.
A esposa de Tay, Alessa, surgiu ao meu lado. Ela era incrível e cozinhava
maravilhosamente bem. Em seus braços estava Lyssi, a bebê deles. Ela era adorável com o
cabelo escuro e escorrido caindo pela testa, sempre risonha e simplesmente amava Milo, os dois
tinham quase a mesma idade e brincavam juntos quando o casal aparecia para alguma reunião ou
durante a construção do hotel. Meu útero coçava cada vez que olhava para aquela criança.
— Nem me diga — bufei.
— Champanhe? — A loira ofereceu, retirando uma taça da bandeja que passou por nós.
— Não, obrigada. Não posso.
Vi seu olhar cheio de suspeitas, mas com um sorriso contido, coloquei o indicador sobre
a boca e saí dali.
Fui até o tanque de uva, bem no momento em que Tay saiu.
— Antônia! — Seu sotaque era forte, mas lhe trazia muita personalidade. — Você é a
minha segunda brasileira preferida!
Ele deu dois tapinhas na minha cabeça, aproveitando de sua altura para fazer com que eu
me sentisse uma criança.
— Se tocar novamente na minha mulher, eu te jogo em um tonel de carvalho e garanto
que só te acham lá daqui a quinze anos, após a maturação completa.
Dante sorria ao falar o maior absurdo de todos.
Tay sustentou o sorriso, mas inclinou a cabeça para perto de meu ouvido.
— É por isso que ninguém gosta de argentinos — cochichou.
— Pois é. — Dei de ombros, rindo da cara de Dante.
Tay saiu de perto de nós e sorri ao vê-lo com as calças dobradas até o joelho, no meio de
toda aquela bagunça.
— Não era seu sonho pisar nas uvas?
Ele sabia que era. Eu o irritei vezes suficientes para colocar todos esses tonéis na festa.
— Como descobriu? — Fingi surpresa e ri ao ser erguida por aqueles braços fortes, e
gostosos, e cheio de veias, e... Ok, deu!
Chutei as sandálias antes de entrar no tanque.
— Eu nem lavei o pé antes, credo!
Torci o nariz, percebendo a nojeira que tinha acabado de fazer espalhando milhares de
micróbios no futuro vinho de alguém. Esse teria notas de suor com saída em pele morta.
— Fica tranquila, vamos separar esse para Tay e Roma, quando voltar de viagem,
beberem.
Dei um safanão nele.
Roma estava em Roma. Nunca perdia a graça. Dante quis que ela estudasse, porque
alguém tão perspicaz merecia conquistar o mundo. Ela estava estudando negócios lá e tinha
certeza de que ele aguardava ansiosamente seu retorno. Fazia seis meses que ela tinha se mudado
e três assistentes já foram demitidas nesse período.
— Temos uma missão hoje — avisei sobre seu maior temor.
— Ainda não é hora. Podemos esperar mais uns meses.
Pisei no pé dele de propósito.
— Onde já se viu, um homem desse tamanho ter medo de duas crianças?
— Não tenho medo do Milo — rebateu rápido. — Mas Ceci...
Ela comandava Dante.
Eu não tinha tanto poder sobre meu marido quanto aquela garotinha de seis anos.
— Dante, você consegue! — Dei dois tapinhas em seu ombro, encorajando-o.
Naquela mesma noite, estávamos prontos para colocar as crianças para dormir. O quarto
agora tinha camas, uma ao lado da outra.
O meu bebê agora era um menino crescido que esse ano faria três anos. Não conseguia
acreditar que ele cresceu tão rápido.
Milo e eu éramos melhores amigos. Ele era o meu grude, o meu amor.
Cecília era grudada a Dante, seu fiel capacho. A relação deles era a coisa mais linda,
embora abusiva da parte dela.
— Mãe, posso ver só um pouquinho de vídeo no iPad, antes de dormir?
A forma fofa como Milo tentava fugir das regras ainda me pegava. Muitas vezes caí na
dele, mas agora estava vacinada contra sua fofura.
— Nem pensar.
— Mami, só um vídeo? — Foi Ceci quem pediu agora.
Seus olhos eram idênticos ao de Dante e eu tinha um fraco em olhos verdes pidões.
— Não mesmo. Vamos conversar antes de dormir e depois vocês vão fechar os olhos e
descansar.
Cecília começou a me chamar de mãe da forma mais natural de todas. Eu nunca os
corrigi, porque era isso o que eu era deles, embora não houvesse uma só semana em que não
falássemos sobre Vitória e Gregório para eles. Milo estava começando a entender agora que era
nosso filho do coração. Já Cecília, com o tempo, foi falando cada vez menos dos pais. Dante e eu
assumimos totalmente esse papel na vida deles e mesmo nos dias mais difíceis, quando eles
esgotavam minha paciência, eles ainda eram meu maior presente.
Eu não deixaria que Vitória e Gregório fossem esquecidos, nunca.
— Conversar o quê? — Ela ficou curiosa.
— Seu pai vai explicar. — Bati no ombro de meu aterrorizado marido.
— É... Meio que... vocês... — Ele não conseguiria.
— Vocês terão um irmãozinho ou irmãzinha — falei de uma vez.
Fazia quinze dias que descobri a gravidez. Na verdade, Dante descobriu. Um belo dia ele
passou por mim, eu me trocava no closet em uma manhã qualquer quando ele parou e ficou me
olhando fixamente.
Achei que estivesse querendo uma putaria matinal, mas ele virou e falou:
— Você está grávida.
A mãe Dinah Albizia estava certa, foi o que descobri depois de oito testes positivos e
muito choro de minha parte.
— É a capivara? Podemos ficar com a capivara? — Os olhos de Cecília eram puro
deleite.
— É um bebê, Ceci. Dentro da barriga da mamãe. — Apontei para a barriga que
começava a ficar mais estufada.
Eu gostava de pensar que era o bebê, não todas as empanadas que comi hoje.
— Como fazemos para devolver?
Eu quis rir, mas se risse, daria munição para ela. Dante teve a mesma reação e precisou
disfarçar com a mão no rosto.
— Não podemos devolver, é o seu irmãozinho. — Dante resolveu me ajudar.
— É só colocar no correio.
— Ele vai jogar bola comigo? — Milo era explicitamente prático.
Dava para ver que estávamos diante de um mini Dante.
— Pode ser uma menina também.
— Ela vai jogar bola comigo?
— Você pode ensinar, ele ou ela, não pode? — perguntei e recebi um aceno em resposta.
— Trato feito, mamãe.
Ele era uma pecinha rara, esse garoto. Como alguém com menos de três anos sabia falar
essas coisas?
— Eu posso ser devolvida pelo correio? — Nossa rainha do drama já estava pronta para
começar seu show.
Ao percebermos a veia dramática dela, nós a colocamos no teatro. Esperava que seu
futuro fosse mais promissor que o meu na dramaturgia.
— Você não pediu aquela boneca que parece um bebê? — Dante tinha tanta paciência
com eles que eu sempre ficava admirada. Ceci assentiu. — Então, é melhor do que uma boneca
dessas, porque é real.
— Prefiro a boneca, pai. Ela não chora.
Essa menina com dezesseis anos conquistaria o mundo e nos deixaria de cabelos
brancos, eu tinha certeza.
— O bebê terá roupinhas de verdade... — joguei baixo.
Ela era doida por roupas.
— Eu posso colocar as roupinhas nele?
Agora eu dobrei essa figurinha.
— Todos os dias.
— Vocês ainda vão me amar?
O que tinha de geniosa, tinha de sensível. Cecília era tão especial, tão única. Ganhava a
todos com seu sorriso fácil, aqueles olhos pidões e sua lábia infalível.
— Até o nosso último suspiro.
Distribui beijos por todo o rosto dela, indo em seguida para cima de Milo, que morria de
cócegas.
Sentamos no chão, prontos para ler a historinha para eles, quando Cecília se apoiou no
cotovelo e ergueu a cabeça.
— Pai, de onde vêm os bebês?
— Do correio.
Ele nem pensou para responder, não usou 1% de sua inteligência para tentar ensinar algo
para ela. Nem precisava ser algo técnico, sabe? Era o básico.
Dei um empurrão nele com meus ombros, que teve muita sorte por Cecília não fazer
mais perguntas. Lemos cinco páginas do livro da semana e ficamos observando-os por mais
algum tempo assim que caíram no sono.
Com a mão dele entrelaçada à minha, eu agradeci por ter tanta sorte.
O acaso me guiou até ali. Bagunçou tudo, tirou quem eu amava, virou toda nossa vida de
cabeça para baixo, mas ali estávamos nós.
Eu era feliz. Eu era imensamente feliz ao lado deles.
Dante encostou a cabeça em meu ombro e logo em seguida beijou minha bochecha.
“Eu te amo”, movi a boca sem emitir qualquer som.
O sorriso que fazia meus dias mais coloridos apareceu sob a luz baixa da luminária em
formato de cogumelo.
— Sempre foi você, Milani.
— Sempre foi você, Dante.

FIM
Parafraseando a nossa diva Anitta: “eu queria muito agradecer a mim, porque eu não
desisti.”
Longe de mim, querer soar arrogante ou pretensiosa, mas a grande verdade é que nunca
senti tanto orgulho de mim quanto no momento em que escrevo isso para você.
O ano 2023 foi o que marcou um novo ciclo na minha vida, mas também foi o ano em
que mais me senti perdida comigo mesma.
Existiram várias versões da Nathália até aqui, mas uma das mais favoritas era a minha
versão escritora. Eu amava tanto, que chegou a um ponto que não sabia quem eu era além da
escritora. Descuidei da saúde, de mim, de tudo o que amava.
Fiz uma bariátrica em março de 2023, mudei toda a minha vida, descobri tantas novas
versões da Nathália, eu me transformei na pessoa que sempre busquei ser e então descobri que
dentre tantas versões, aquela escritora não existia mais em mim.
Eu não sabia mais sobre o que queria falar, se ainda tinha algo para dizer. Duvidei de
cada passo que dei e precisei dar inúmeros passos para trás para conseguir ter um panorama.
E sabe o que foi incrível? Enxergar que eu não era apenas feita de histórias com começo,
meio e fim. Que mesmo que não tivesse nada para oferecer a vocês naquele momento, ofereci
minha amizade, a gratidão que sinto por cada uma de vocês que me acompanham. Mostrei minha
vida, meus cachorrinhos, partes de mim que antes não queria que ninguém visse. E vocês
retribuíram isso em dobro. Vocês são incríveis.
Muitos meses depois, voltei a escrever. Eu, finalmente, tinha algo a falar. E a experiência
valeu por cada segundo. No meu tempo, sem pressão, redescobrindo todo o meu amor em viver a
vida desses personagens.
Acordo com o Acaso mostrou que eu sou apaixonada por histórias de amor e que nunca
mais quero perder isso em mim ou duvidar da minha capacidade.
Talvez essa história não seja a sua preferida, talvez você tenha me mandado para o
inferno depois da cena do lago ou talvez só tenha pulado para o final mesmo porque é curiosa,
mas quero que saiba que ela é a minha preferida. O meu maior orgulho. Ela me fez voltar a
sonhar.
Obrigada a você que chegou até aqui! Que esperou, que foi uma amiga, que acompanhou
e torceu durante esse processo. Obrigada, sempre!
Espero que tenha valido a pena a espera.

Com muito amor,


Nathalia Oliveira
Saga Velocidade: Você – Livro 1
Saga Velocidade: Nós – Livro 2
Saga Velocidade: Eles – Livro 3
- Os Bergmans: Um conto de Natal da Saga Velocidade
LUNY: Contos de Amor na Universidade
Quando nos Perdemos
Depois de Vegas
A Assassina do CEO
Cape May
O Gêmeo Errado
Uma Boa Garota
Um Jogador para a Sugar Baby
Além de Vegas
A Troca Perfeita

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[1]
Em tradução livre: Nosso tempo está se esgotando / E nosso tempo está se esgotando / Você não consegue manter
isso enterrado / Não podemos parar isso gritando. (Time is Running Out – Muse)

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