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Copyright © 2022 por Ana França & Luisa Borges

Todos os direitos reservados.

Título: BAD DRUGS


Escrito por Ana França & Luisa Borges

CAPA: GB Design Editorial


Revisão: Alina Ackermann - GB Design Editorial
Leitura Sensível: Barbara de Oliveira, Bruna Moresco CRP 09/14508
Diagramação: Ana França, Nathalia Santos

Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer


meios, sem o consentimento do(a) autor(a) desta obra.

Para contactar a autora, basta enviar um e-mail:


autoraanafranca@gmail.com ou autoraluisaborges@gmail.com

Texto revisado conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa
NOTAS INICIAIS
CAPÍTULO 01

CAPÍTULO 02
CAPÍTULO 03

CAPÍTULO 04

CAPÍTULO 05

CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 07

CAPÍTULO 08

CAPÍTULO 09
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12

CAPÍTULO 13

CAPÍTULO 14

CAPÍTULO 15

CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17

CAPÍTULO 18

CAPÍTULO 19

CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21

CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23

CAPÍTULO 24

CAPÍTULO 25

CAPÍTULO 26

CAPÍTULO 27

CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29

CAPÍTULO 30

CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32

CAPÍTULO 33

CAPÍTULO 34

CAPÍTULO 35

NOTAS FINAIS

AGRADECIMENTOS

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS

SOBRE AS AUTORAS
“Me sentindo tão bem, até você rasgar meu coração
Não consigo mais cobrir as cicatrizes, baby
Há sangue no céu e os pássaros não podiam voar
E estou perdendo a cabeça
Você me percorre como drogas ruins, sim
Rasgando-me em pedaços, se intrometendo na
minha fraqueza
Você é como drogas ruins, sim
Você vai para a minha cabeça, mas me fode em vez
disso
Me percorre como drogas ruins”
— Bad Drugs, King Kavalier feat. Chris Lee
Olá leitor!
Bem vindo a Kardama!
Estamos muito contentes em lançar mais um livro juntas.
Esperamos que assim como Bocas Costuradas Não Contam
Histórias (nosso primeiro livro em colaboração), vocês abracem
essa história e estes personagens.
Precisamos começar dizendo que esse livro sai completamente fora
da nossa zona de conforto, afinal, este é um Dark romance!
Enquanto a Luísa gosta de escrever romance com muito drama, a
Ana possui uma vertente muito mais ligada ao suspense e terror.
Então, por mais que Bad Drugs seja um romance dark, espere boas
doses de tudo o que foi citado acima.
Por ser um romance dark, devemos alertá-lo que ao decorrer destas
páginas, temas de caráter duvidoso e polêmicos serão retratado.
Neste livro você encontrará cenas detalhadas de violência gráfica,
tráfico de drogas, agressão física, manipulação psicológica, morte,
consumo de drogas e relacionamento abusivo familiar.
Os principais gatilhos psicológicos deste livro são: alcoolismo,
aborto (não descritivo) e cenas de violência explícita.
Por conta das temáticas citadas e por ter cenas de sexo explícito,
consumo de drogas lícitas e ilícitas, este livro é considerado para
maiores de 18 anos.
Este livro contou com leitura sensível por parte de um profissional
psicólogo. Preze sua saúde mental e se você não concorda ou não
se sente bem com leitura sobre os temas acima, pare aqui mesmo.
Este livro possui um enredo que fala sobre falsas morais e como
estamos condicionados a mudar a visão das coisas quando estamos
de um lado.
Então, escolha um lado do tabuleiro e faça parte dessa jornada de
descobertas, manipulação e também seja corrompido pelo lado
obscuro de Kardama.
Bem-vindos ao caos.

Com amor, Lu e Ana.


O calor californiano, incomum para mim, me incomodava e
contribuía ainda mais para o suor que insistia em deixar minha pele
com um aspecto asqueroso. Avaliei minhas roupas e soltei uma
risada curta e nasalada. Definitivamente jeans, coturnos e camiseta
preta não pareciam uma boa combinação para a cidade de
Kardama.
Engoli em seco quando o sino da Universidade que levava o
nome da cidade tocou, anunciando o horário do meio-dia.
Semicerrei os olhos e avalie a estrutura nova, porém escura à minha
frente. As paredes eram altas revelando vários prédios de até cinco
andares. Apesar do ambiente tenebroso, o gramado longo e verde
combinava, em muito, com o céu azul e com poucas nuvens
bloqueando o sol. Era como se a Universidade fosse uma nuvem
negra no meio de uma paisagem bela.
Bufei.
Eu estava pensando demais antes de agir. Um mecanismo que
eu precisava enfiar dentro de um quarto fechado e destrancá-lo
apenas depois de cumprir meu propósito naquela cidade.
Empurrei os ombros para baixo e levantei o queixo, mantendo
minha melhor postura para seguir pelo caminho de pedras até a
entrada da Universidade. A cada passo, meu coração parecia um
pouco mais leve. Retirei a jaqueta, tentando amenizar o calor e
enrolei na alça da mochila. Afinal de contas, eu tinha lutado tanto
para estar aqui e estava próxima de realizar um grande objetivo.
Ajustei a alça da mochila e retirei os óculos escuros assim que
meus pés pararam no hall de entrada do lugar. Meus olhos vagaram
pela multidão, que agora saía de suas respectivas aulas e corria até
alguma das cantinas atrás de comida. Um pouco zonza com a
quantidade de pessoas ao meu redor e pelo som que ecoava no
salão de entrada, dei um passo para trás como reflexo. Aquele
realmente era um bom dia para iniciar meu plano?
Travei ao sentir o impacto de algo contra a lateral do meu corpo.
Primeiro, fui jogada levemente para a direita, e depois, meus pés
cavaram no chão enquanto um líquido gelado e melado escorria
pelo meu braço direito.
— Ah meu Deus, me desculpe! — A voz suave sobressaiu a
gritaria dos jovens ao nosso redor.
Meus olhos estavam fixos no meu braço. A tatuagem de
serpente enrolada no antebraço parecia estar afogada no líquido
laranja e melequento. Enruguei o nariz no instante que movimentei
meus dedos, antes suados de ansiedade, e agora úmidos com suco.
Meus dedos, da mão limpa, apertaram-se ao redor do óculos
em fúria.
— Sinto muito por isso. — A garota continuava falando quando
movi meus olhos para ela. — Por favor, me deixe ajudá-la — falou,
nervosa, tentando segurar uma pilha de panfletos enquanto buscava
por algo na bolsa Prada.
Meu estado furioso pareceu amenizar no mesmo segundo. Ela
estava nervosa e eu nunca me senti tão bem por ter sido alvo de um
belo copo de suco.
Antes que eu pudesse planejar uma frase digna, a garota de
pele castanho-clara e olhos marcantes virou para mim, entregando-
me um lenço com um bordado estranho dos lados. Aquilo era
renda?
— Oi, eu sou Olivia. Me perdoe. Estava distraída — ela
explicou-se.
Arqueei uma sobrancelha e retirei o lenço da sua mão,
esfregando pela minha pele pálida. A analisei com curiosidade.
Definitivamente seus traços físicos de ascendência mexicana eram
forte: o tom da pele, olhos intensos, cílios volumosos e cabelos
escuros um tanto tingidos de loiro. O que era bem comum para a
região da Califórnia.
— Você está bem?
Não evitei uma risadinha. Céus, ela falava tanto.
— Sim — respondi, curta.
Olivia pareceu um pouco chocada com o meu tom irritado. Na
verdade eu não gostava muito de falar com estranhos. E nem de
fazer novas amizades, se fosse ser sincera, mas precisava,
desesperadamente, mudar isso no período em que estaria naquela
cidade. Afinal, não seria legal parecer uma anti-social ou algo assim,
baseando-se no que eu tinha planejado para minha estadia na
cidade.
— Olhe, me desculpe, de novo…
— Você pode parar de pedir desculpas? — Tentei soar tranquila,
enquanto soprei uma risada e evitei um revirar de olhos. — Foi só
um pouco de suco. E está quente como o inferno. Foi refrescante.
A garota pareceu aliviada quando sua risada soou, próximo.
— Suas tatuagens são bonitas — ela disse e desviei meus
olhos do trabalho de me secar para lhe olhar mais uma vez — Eu
costumo ser muito sincera e falar demais. Principalmente quando
estou nervosa… — explicou-se e balançou as mãos no ar.
Percebi, pensei.
Terminei a limpeza e estiquei a mão para ela.
— Ayla… Brown. — Sorri, nervosamente.
Ela piscou algumas vezes antes de segurar na minha mão e
chacoalhar. Definitivamente eu precisaria de certa dedicação caso
desejasse avançar uma amizade com Olivia. Nós parecíamos muito
diferentes, pelo menos em uma análise rápida. Ela vestia jeans,
tênis brancos, uma camiseta azul com um símbolo e carregava uma
bolsa que o preço provavelmente pagaria minhas despesas por
meses. Enquanto eu parecia uma gótica moderna.
Vi algumas pessoas com a mesma camiseta que ela vestia pelo
hall, o que me fazia acreditar que ela pertencia a alguma
fraternidade feminina do campus.
Absolutamente diferentes.
— Então, Olivia, além de uma péssima equilibrista de copos
plásticos. — Apontei para o chão, onde o copo repousava. — Você
estuda por aqui?
As palavras escorriam como veneno na minha boca. Eu
comumente não gostava de puxar e manter assunto com
desconhecidos. Mas Kardama precisava ser diferente.
— Ah, sim. E sou líder da Kappa Phi — ela disse, com orgulho,
mostrando-me um pequeno broche na camiseta, o qual nem tinha
notado.
Sorri, um pouco desorientada. Ela estreitou os olhos para mim e
depois compreensão tomou seu rosto.
— Você é caloura?
— Uh, sim — respondi, coçando a nuca. — Primeiro dia.
Afastei a mão do cabelo com uma careta. Aparentemente o
suco açucarado não tinha saído por completo da minha pele. As
bochechas de Olivia tomaram um tom avermelhado quando retirei
um fio da pele.
— E como funciona esse lance?
— Estamos recrutando algumas garotas, mas está um pouco
mais difícil do que o normal. E eu estou um pouco desesperada com
isso — resmungou, em um bufar.
— Por quê? Ainda é primeira semana…
— É meu último ano. Não posso fazer menos que uma estreia
incrível — explicou-se.
Mordi o lábio e observei mais uma vez o lugar, estreitando os
olhos para as garotas entregando as folhas para quem passava. Era
algo um pouco arcaico e ultrapassado. Então soltei uma risada.
Kardama, apesar de ser uma cidade relativamente grande, tinha
alguns hábitos antigos. Desde que me instalei no lugar, há menos
de uma semana, consegui esta constatação. A postura das pessoas
e até mesmo o método de entrada na universidade, me diziam isso.
Não me surpreendia uma das fraternidades mais requisitadas da
Califórnia seguir métodos tão estúpidos para o recrutamento de
novos moradores.
Assim que virei o rosto e abri a boca para falar com Olivia,
arregalei os olhos. Um garoto loiro estava ali, abraçando-a por trás e
enfiando o rosto em seu pescoço.
— Hugo, por favor! — ela resmungou, entre uma risadinha e um
tom de reprovação. O que não parecia compatível, mas ela tornou
capaz.
— Querida, você está linda hoje — o garoto disse, levantando o
rosto, revelando olhos azuis e um rosto anguloso.
Ele tomou postura, ainda a abraçando, e assim pude ver que
era alguns bons centímetros mais alto que Olivia. Os cabelos loiros
foram jogados para trás de um jeito charmoso e ele lançou um
sorriso sujo para a garota.
— Cara, não é legal abraçar alguém por trás dessa forma. —
Apontei para ele, com um tom ameaçador e olhei para Olivia, que
tentava desvencilhar-se dos seus braços. Uma onda de irritação me
preencheu. — Ele tá te incomodando? Posso chutar suas bolas ou
quebrar o nariz dele.
Inflei o peito, mas logo alívio me percorreu, já que Olivia sorriu e
o rapaz soltou um bufar.
— Esse é Hugo, meu namorado — ela disse, com evidente
amor na fala, e depois, abaixou o tom de voz. — Ele só está sendo
um idiota e marcando seu território — explicou, lançando um olhar
entediado ao rapaz. — Como se todo mundo nesta cidade não
soubesse que nós namoramos desde o ensino médio.
Hugo, o rapaz loiro e bonito, deu de ombros e depois colocou as
mãos nos bolsos da jaqueta esportiva, com os olhos cravados na
garota. Ele nem ao menos parecia me ver. Apenas enxergava Olivia.
— Alunos novos estão pelo campus, amor. Estou afirmando que
você é minha.
— Ah, por favor, Hugo — ela disse, com uma voz irritada, mas
pude ver um sorrisinho em sua boca. — Isso é muito medieval.
Ele e a ignorou.
— E você… é? — o rapaz questionou, finalmente me notando,
enquanto novamente suas mãos rodearam a cintura de Olivia, por
trás, e ele plantou um beijo em sua bochecha.
Olivia relaxou contra o corpo do namorado. Me senti um pouco
deslocada ali, então, cruzei os braços. Uma atitude protetiva,
enquanto rondei o ambiente, procurando por qualquer ponto além
dos olhos analíticos dele.
— Ayla. Caloura — expliquei, sem muito mais delongas.
— Espero que esteja gostando do campus.
— Até agora? Um banho de suco, uma conversa bacana com
Olivia e o desejo de quebrar o nariz de um mauricinho. Ótimo
começo — constatei levantando os dedos durante a fala, o fazendo
rir.
— Gostei dela — Hugo disse e beijou a bochecha a namorada
mais uma vez. — Convide-a para a Seven, amor.
— Uh, vocês mal trocaram uma frase. E ela estava te
ameaçando — Olivia lembrou, extasiada.
— Exatamente. A maior parte das suas amigas da fraternidade
gostam de falar sobre Prada e Gucci. Essa, pelo menos, tem bolas
— ele riu, explicando-se, enquanto encarava alguns rapazes longe
dali e sorriu para mim. — Foi um prazer, Ayla.
Estreitei meus olhos. Ele parecia meio idiota.
O lugar, de repente, pareceu um pouco mais calmo, como se
toda aquela massa de alunos tivesse achado seu caminho. Eu
precisaria estar em meu destino cerca de uma hora, então estava
tranquila.
Olivia manteve o olhar apaixonado no garoto até ele sumir no
meio da multidão, junto a alguns outros meninos.
— Você quer comer algo? Estou faminta.
Seu rosto virou em minha direção, radiante. Jesus, o senso de
segurança desta garota não era nada criterioso. Ou ela confiava
demais nas pessoas. Ambos perigosos.
— Vai pagar meu almoço em um pedido de desculpas por conta
do banho de suco? — perguntei, e ela novamente corou. Ok, agora
ela se sentiria obrigada a reparar o dano. Ri, dando um tapinha em
seu braço para amenizar o clima. — Gosto de sanduíche de abacate
com pepino.
Pude ver o exato segundo que ela deu um pulinho animado.
— Isso parece nojento, mas posso experimentar!
Ela disse aquilo como se fossemos ser melhores amigas. O que
me fez rir.
Não era muito religiosa, mas Deus parecia estar sorrindo para
mim naquele dia. Entre tantos alunos matriculados naquela
Universidade, quais eram as chances de eu acabar encontrando um
dos meus alvos? Sejamos, sinceros, baixíssimas, e mesmo assim, o
fiz.

— Então, qual é a dos panfletos? — perguntei, enquanto eu e


Olivia nos ajeitamos em uma mesa no canto da lanchonete da área
leste do campus.
Eu tinha desistido do meu compromisso da tarde após
enfrentarmos uma fila de mais de vinte minutos para conseguir um
pouco de comida. E claro, Olivia parou algumas vezes para
cumprimentar pessoas. Ela realmente era famosa no campus.
— Não sei bem — ela bufou, desembrulhando seu sanduíche
do papel alumínio. — Sempre foi desta forma...
— Vocês não usam redes sociais? — perguntei o óbvio. — Tipo,
Instagram, Twitter…
Ela soltou uma risadinha e negou com cabeça, em descrença,
mordiscando seu sanduíche e depois bebericando seu chá gelado.
— Claro que sim — disse, mas um pouco hesitante.
— Nunca ouviram falar de marketing digital? — mencionei, e ela
franziu o cenho. — Me diga que a fraternidade possui, pelo menos,
uma página no Instagram!
Não queria parecer uma nerd, mas aquela era a minha área.
Estudei por dois anos após a formatura no ensino médio, sistemas e
redes em cursos de curto período antes de decidir ir para Kardama.
Eu poderia falar horas sobre o assunto e se Olivia estava à vontade
para almoçar comigo, eu poderia também relaxar sobre o meu
assunto preferido. Não era à toa que eu trabalhava com o marketing
digital desde que me formei.
— Sim, claro, olhe só — ela disse, abrindo a página no
Instagram e me entregando seu telefone.
Peguei o aparelho e lhe encarei, um pouco incrédula.
— Você tá entregando seu telefone para uma estranha?
Ela deu de ombros.
— Em Kardama somos assim. Confiamos nas pessoas — disse
ela, sorrindo de lado. — Já notei que você não é daqui. Nova Iorque,
acho… — comentou, estreitando os olhos.
Foi minha vez de sentir o rosto corar.
— Uh, Canadá, na verdade.
Ela sorriu surpresa.
— Posso? — balancei o aparelho entre os dedos.
— Claro — disse ela, sem ao menos perguntar o que eu iria
fazer.
Ela tinha sérios problemas.
Observei a rede social um pouco mórbida e com fotos nem um
pouco harmônicas. A maioria era sobre festas, eventos de caridade
e também centros de estudos. Nada planejado, no entanto.
Baixei dois programas de edição de fotos e enquanto comíamos
nossos sanduíches, e Olivia cumprimentava algumas pessoas,
elaborei uma pequena manchete baseado nos dizeres do panfleto.
— O que é Seven? — perguntei, retirando meus olhos da tela
rapidamente e me recordando do que Hugo disse.
— A boate do Kian — ela explicou, como se eu conhecesse o
cara. — Hoje será a festa dos calouros e cada fraternidade do
campus tem um camarote. Somos em sete.
Arqueei uma sobrancelha, ainda com os olhos presos no
aparelho.
— Sete fraternidades, o nome da boate Seven…. Qual é dessa
cidade com esse número?
— Não é o número sete. São os números ímpares.
Levantei meus olhos, unindo as sobrancelhas.
— Como é?
Olivia deu de ombros, e apenas sorriu.
— Voltando ao sete… — ela disse, claramente tentando não
explicar-se, e me deixando extremamente curiosa. — Seven é a
boate que o Kian fundou há três anos. Ele usou uma temática
bem… ousada, ao escolher esse nome e absolutamente não tem
nada a ver com o campus. Seven refere-se aos sete príncipes do
inferno. — Olivia baixou o tom de voz ao explicar a última parte,
como se eu fosse sentir medo ou talvez atração por aquilo.
— Demonologia? Uh, sete príncipes ou demônios do inferno,
que são associados aos sete pecados capitais — continuei,
divertida. Afinal, eu tinha lido um pouco sobre teologia.
Os olhos castanhos chocolate dela brilharam em expectativa.
— Cada fraternidade tem um camarote. Cada camarote é
temático de um pecado, ou um demônio.
— E qual é o seu? Oh não, espere. Me deixe adivinhar. — Meus
olhos avaliaram seu corpo mais uma vez. A bolsa Prada, os cabelos
sedosos e a maquiagem perfeita. — Eu ri, ela só poderia ser um
deles. — Asmodeus. Luxúria.
Pela primeira vez naquela manhã, Olivia parecia ter ganho um
tom assombroso no rosto. Como se tivesse gostado do que falei.
Então, depois de me avaliar de cima a baixo, disse:
— Kian vai gostar de você.
— Por que diz isso?
— Ele tem adoração por pessoas que gostam do que ele
aprecia. E definitivamente, vocês parecem falar a mesma língua. —
Fez uma pausa, analisando-me de forma curiosa. — Então, vamos
até a Seven, hoje?
Sorri de lado.
— Isso parece um livro adolescente. Primeiro dia no campus,
amizade com a garota popular e uma festa. O que mais está
faltando?
Olivia soltou uma risada.
— Uh, Kian Wilding parece um bom bônus para a sua lista de
clichês. Alto, forte, tatuado e muito bonito.
O sobrenome me fez arrepiar. Wilding, selvagem, primitivo,
feroz.
— O que eu iria querer com, provavelmente, o cara mais
cobiçado da festa?
— Tudo. Kian pode ser o sonho sujo de qualquer garota.
— Até o seu? — indaguei, com o coração batendo um pouco
mais forte, já que os olhos de Olivia pareciam mais nebulosos à
medida que continuávamos naquele assunto.
— Meu não, do resto da cidade toda. Ele é a personificação do
inferno na terra, Ayla. E talvez, ele também se torne seu alvo.
Mal ela sabia que eu estava com a arma apontada em sua
direção. Kian era meu objetivo e fim, meu alvo permanente. Faltava
apenas pressionar o gatilho.
Observava cada parte que podia de Kardama.
Dentro das minhas buscas e aventuras pela cidade nos dias em
que estava ali, notei como as regiões eram distintas.
Apesar de a cidade estar localizada no interior da Califórnia e,
aparentemente, não ter nenhum grande atrativo além de uma
estrutura que mesclava o histórico e o moderno e muito deserto, as
vagas na Universidade de Kardama sempre foram disputadas,
principalmente pelo ensino em Engenharias. Assim, muitos alunos
perambulavam pela cidade.
Desbloqueei a tela do telefone, atrás do contato de Yue ou Tai
Yang, os locatários do quarto que estava alugando. Eles não eram
meus pais, mas como dividíamos uma casa e os costumes das
pessoas nessa cidade eram estranhos, achei melhor avisar que
chegaria um pouco tarde.
No processo, ignorei fielmente a mensagem de meu pai
perguntando se eu já estava em casa e como tinha sido o primeiro
dia de trabalho. Mesmo mentindo para ele por tanto tempo, ainda
não havia me acostumado com suas ligações de vídeo. E contar
inverdades olhando em seus olhos era, no mínimo, perturbador.
Então, meus olhos fixaram-se na mensagem de Olivia antes do
carro de aplicativo parar. As luzes vindas da frente da boate
refletiam dentro do veículo e o som das conversas era alto.
Cumprimentei o motorista e abri a porta, ainda observando o
telefone. Definitivamente, ela estava vestida para matar e fez
questão de me enviar uma foto da sua roupa. Segundo ela, para
que eu a encontrasse com mais facilidade.
Levantei o rosto e observei a boate. Era uma grande construção
com paredes altas e pretas. A luz neon escrito SEVEN brilhava.
Duas aspinhas pousavam sobre o S e um rabinho diabólico saía do
N. Algo que poderia parecer brega, mas naquele contexto parecia,
no mínimo, sofisticado. Me perguntei o que uma boate daquele porte
fazia em um bairro universitário.
Assim que meus olhos pousaram no tamanho da fila, eu ri.
Definitivamente, isso não parecia ajudar muito. O lugar estava
abarrotado de pessoas.
Desci meus olhos para o vestido preto até metade das coxas e
as botas pesadas estilo coturno. Bom, eu não era muito fã de saltos
e qualquer vestido liso ficava incrível com as botas de couro falso.
Então, não vi muito problema em usá-las. Esperava que não
existisse um código de vestimenta no lugar.
Depois de mais de vinte e cinco minutos na fila, e observando
cada rosto e detalhe possível, finalmente consegui dizer ao
segurança meu nome, ele o conferiu em um IPad e me deu
permissão para entrar. Olivia havia conseguido colocar meu nome
em uma espécie de lista VIP. Não deixei de notar que o segurança
nem ao menos verificou minha identidade. Qual era o poder da lista
de convidados? Deixei uma risada escapar. Nunca imaginei que
seria tão fácil entrar aqui.
As coisas estavam tranquilas demais. Era como se tudo
estivesse caminhando ao meu favor. Agora, no entanto, eu
precisava apenas do rosto de Kian Wilding em minha direção para
que eu pudesse finalmente dar o próximo passo.
Entrando na boate, me deparei com um túnel escuro de paredes
pretas, largo, e que levava até um mezanino. Assim que meus olhos
tomaram o ambiente, engoli em seco. Era muito maior e muito mais
belo do que as fotos que havia encontrado na internet.
O cheiro ali de dentro era de dinheiro, bebida alcoólica e jovens
corpos sedentos por pecado. Algo bem propício para o ambiente
soturno, com luzes apenas iluminando a pista e os grandes quadros
que comportavam os príncipes do inferno, ilustrados com os
respectivos pecados. Todos os sete estavam lá. Asmodeus e o
pecado da luxúria. Azazel e a irá. Belphegor e a preguiça. Belzebu e
a gula. Leviatã e a inveja. Mammon e a ganância. E claro, Lúcifer,
ligado diretamente com a soberba. No meu íntimo, algo me dizia
que talvez Lúcifer fosse o favorito do dono do clube, afinal, seu
camarote tinha alguns bons metros a mais que o resto.
As paredes negras e os nomes dos demônios em letras
tendenciosas para o gótico e em led vermelho eram de chamar a
atenção de qualquer um. Haviam escadas com ledes brancos, mas
fracos, a fim de evitar acidentes, acredito eu. E todo o segundo
andar preenchido pelos tais camarotes dos infernos. Atrás do balcão
do bar, ainda no primeiro andar, havia, em led vermelho também, os
dizeres mais levianos que a igreja proferiu em sua santa existência:
“Não nos deixeis cair em tentação”. Era sombriamente brilhante
aquilo, afinal não havia uma única alma ali dentro que não fosse
pecar, e muito, naquela noite.
Apoiei ambas as mãos na grade preta, no meio das escadas,
enquanto deixei meus olhos avaliarem cada espaço do lugar. Não
demorou muito para encontrar o camarote de Olivia e suas
companheiras de fraternidade. E apesar das demarcações, Hugo e
alguns rapazes pareciam íntimos da Kappa Phi, já que estavam por
lá enquanto viravam alguns shots e faziam dancinhas vergonhosas.
Rolei os olhos com a cena.
Após alguns instantes absorvendo o lugar, apertei as palmas no
ferro, sentindo o material gélido enviar uma onda de arrepios por
meu corpo.
Onde ele estava?
O pensamento fez meu coração bater um pouco mais depressa.
Uma dose de coragem líquida seria a melhor opção, mas não podia
perder o foco e álcool não parecia uma boa pedida. Então, após
estar munida de uma garrafa com água gelada, caminhei na direção
do camarote de Asmodeus.
Um sorriso brotou em meus lábios quando observei que Hugo
estava indo até o camarote de Mammon, o príncipe da Ganância.
Definitivamente, ele era um ganancioso por Olivia.
Quando parei na frente do pequeno portão de ferro, Olivia
encontrou meu olhar e veio saltitando até mim, dentro de um vestido
cor nude - o que destacava sua pele - e saltos coral, pulou em meu
pescoço, me fazendo ofegar.
— VOCÊ VEIO! — gritou em meu ouvido, fazendo-me
estremecer.
— Uh, uh. Sim — respondi, soando animada.
Olivia sorria largamente e mesmo de salto ainda ficava alguns
centímetros menor do que eu. Ela segurou em minha mão e
começou a me apresentar a uma quantidade absurda de garotas,
relatando sobre a salvação do início de ano da fraternidade.
Descobri então que as inscrições estavam sendo um sucesso, e
que quase todas as outras fraternidades do campus estavam
copiando o método da líder da Kappa Phi. Usando sites com menor
qualidade para as aplicações, bem diferente do que eu criei para
elas, mas funcionais. Quando uma de suas colegas relatou desta
maneira, Olivia me olhou com culpa.
— Eu sei que a ideia foi completamente sua. Não consigo
controlar as notícias — ela disse, carregando-me até uma mesa
com bebidas.
Observei todos os copos e garrafas.
— Sem problemas, Olivia — disse.
— Se serve de consolo, Kian pareceu animado para descer
hoje! — ela gritou sobre a música, chegando perto de mim. — Quem
sabe ele dá o ar da graça e você o conhece!
Estreitei os olhos para ela.
— Ele não está sempre por aqui?
— Ah, não. — Ela chacoalhou a mão no ar, como se não fosse
nada. — Ele é um lobo solitário, sabe? Parece meio distante e odeia
esse amontoado de pessoas. — Apontou para a pista.
— Então por que ele tem uma boate?
— É bom para os negócios... — ela respondeu, mordendo os
lábios. Por alguns segundos, achei que continuaria a frase.
O que ela quase deixou escapar?
— Me diz que você vai na festa da Kappa Phi amanhã, Ay! —
gritou Bella, uma das colegas de Olivia, parando ao nosso lado.
Olhei para a garota ruiva com uma expressão confusa. Primeiro,
pelo apelido estúpido. E segundo que, era óbvio que eu já tinha
ouvido sobre as festas semanais de boas-vindas no campus, mas
queria soar um pouco desentendida.
— A festa de abertura do ano letivo sempre é aqui, na Seven.
Depois, cada uma das fraternidades vai sediar uma comemoração.
— Uma semana de festas? — indaguei, torcendo o nariz. —
Isso soa a bebida barata e confusão. A polícia não fica maluca com
isso? Quero dizer, uma semana toda…
As duas riram.
— Ah, não — Bella disse, enrolando um fio de cabelo no dedo.
— Não se preocupe com o lance legal da coisa. Nós temos
proteção.
Abri a boca para lhe perguntar o que aquilo significava, mas
então uma música alta cantada por mulheres começou e, de
repente, as quatro fraternidades femininas do campus começaram a
festejar em cima dos seus camarotes.
Não sei bem quem puxou minha mão primeiro, mas quando
notei, estava sendo empurrada para o meio da pista por um monte
de garotas. Dei um longo gole em minha água e deixei a garrafinha
em uma mesa qualquer. Desisti de lutar contra a manada e me movi
conforme elas ditaram.
Estava tensa até aquele momento, quando deixei meu corpo
apoderar-se um pouquinho da música. A música pareceu aumentar
alguns decibéis e todas se moviam sem ritmo estabelecido. Tentei
observar os rostos das meninas através das luzes piscando. No
entanto, um sentimento estranho me fez parar, de repente.
Eu estava sendo observada.
Meu corpo arrepiou-se e aquela sensação de mal estar alojou-
se em meu peito. Levantei a cabeça, tentando girá-la. Eram tantos
rostos que eu não via nada além da multidão.
Virei na direção dos camarotes e não vi nada.
Absolutamente. Nada.
Um frio na barriga estava me fazendo sentir mal.
Lutando contra a taquicardia e o arrepio crescente em meus
braços, saí da pista, decidida ir até os banheiros, o que se tornou
impossível pela quantidade de jovens. Então, caminhei até o
camarote da fraternidade de Olivia e me acomodei em um dos
sofás.
Aquele sentimento estranho ainda parecia entranhado em
minha pele. Olhei para os lados. Ninguém parecia me encarar
tempo demais. Talvez fosse a minha própria culpa alojada no peito.
Dei um pequeno salto quando Hugo pousou no sofá, ao meu
lado.
— E aí, Ayla — ele disse, sorridente, com as bochechas um
pouco rosadas.
Sorri de volta, tentando parecer tranquila.
— Hugo.
Ele desviou seu olhar para a pista e parecia animado.
— Acho que perdi a minha garota.
Acompanhei-o.
— Ela parecia bem liderando a equipe.
— Olivia sempre está bem — constatou, em um sopro, me
fazendo rir.
— Oh, Céus, vocês são tão apaixonados que chega a ser
nojento.
O loiro novamente riu, jogando os cabelos para trás e tombando
a cabeça no encosto do sofá.
— E então, você vai tentar uma vaga na Kappa Phi?
— Longe de mim. — Chacoalhei as mãos, como se aquilo fosse
alérgico. — Se eu pudesse escolher uma, seria a Deltha Chi, com
absoluta certeza.
Hugo arregalou os olhos, como se eu tivesse dito algo absurdo.
— A Deltha?
— Soube que são ótimos no pôquer e jogos de azar — estalei,
um pouco orgulhosa da expressão irritada no rosto de Hugo.
— Cada fraternidade tem um trunfo. Eles podem ter os jogos de
azar, mas a Ômega Chi tem o melhor time de futebol americano do
campus.
Bati em seu ombro.
— Não sou muito fã de esportes, cara.
Ele chacoalhou a cabeça.
— Você é do Canadá. É óbvio que é estranha.
— Qual é, achei que éramos amigos. Você até disse que eu
tinha bolas. — Eu ri.
Então, me calei por alguns instantes. Acho que não falava tão
tranquilamente com um homem além de meu pai, há… não sei.
Anos? E Hugo parecia um rapaz tranquilo, apesar da primeira
impressão.
— Bem, se somos amigos, vale um conselho, mantenha-se
longe da Deltha e provavelmente do Trenton, o líder da fraternidade.
Fiquei tentada a perguntar o porquê, mas não tive a chance.
— Amor, vem para a pista! — Ouvimos.
Ambos viramos o rosto e Olivia estava na grade ao redor do
camarote. Hugo empurrou seu corpo e levantou-se, dobrando as
mangas da camisa de botões branca e fazendo uma reverência
exagerada para mim.
— Com licença, mas a minha garota está solicitando minha
presença ilustre.
Ele disse, desaparecendo para a pista de dança com a
namorada. Deixei seu copo sobre uma das mesas e analisei o
ambiente mais uma vez. Deveria existir um escritório aqui, certo?
Será que Kian guardava alguma informação importante por lá?
Eu conseguiria algo essa noite, já que ele, aparentemente, estava
pensando se apareceria ou não?
A ansiedade que corria em minhas veias parecia amaciar meus
pensamentos impulsivos.
Estava em Kardama.
Depois de tantos anos.
Pronta para colocar tudo em prática.
Nada podia sair do plano.
Termine logo e vá embora.
Livre-se do passado.
Minha cabeça estava tonta de tantos pensamentos. Me vi em
silêncio, sozinha, delirando sobre tudo. Até que Hugo e Olivia
voltaram com mais algumas pessoas. Não deixei de notar que nas
mãos de alguns jovens, havia mais do que bebidas e ervas. Eram
psicotrópicos, provavelmente. Minha boca ficou seca e eu olhei ao
redor.
Os seguranças em seus postos pareciam alheios ao que
acontecia. Aquilo era normal por aqui?
— Kian está por aqui — Olivia disse em alto tom, chamando
minha atenção.
Não entendi se era uma afirmação ou pergunta, no entanto.
Estremeci e escapei do lugar, murmurando para algumas
garotas que iria até o banheiro. Eu teria tempo suficiente para criar
um elo com Olivia, mas ver um tanto de jovens usar drogas como se
fossem doces era demais para mim. Chacoalhei a cabeça.
Me movi entre as pessoas, senti as palmas úmidas e os dedos
levemente trêmulos. Estava mais nervosa do que jamais estivera.
Mesmo assustada com o que vi no camarote, eu ainda estava
pensando sobre Kardama e Kian.
Ele realmente estava aqui?
O pensamento me fez parar e encher os pulmões de ar. Olhei
ao meu redor, como se estivesse sendo observada de novo.
Encontrei diversos rostos à minha volta, mas nenhum deles era o
que eu buscava. As luzes piscavam e brilhavam suas faces. Senti
uma leve tontura e as paredes pareciam fechar-se ao meu redor.
Como se o ar fosse me faltar.
Hiperventilando, empurrei alguns corpos. Nenhum deles
importou-se com minhas mãos os levando do meu caminho e
agradeci por isso.
Senti a garganta se fechar quando adentrei o corredor que
ficavam os banheiros. Uma fila enorme na frente do sanitário
feminino e uma bem menor na frente do masculino, e outra quase
inexistente no banheiro unissex. No entanto, meus calcanhares
viraram na direção contrária.
Os meus olhos fixaram-se no pequeno lance de escadas. Não
parecia mais do que quatro degraus largos de mármore preto, em
dois níveis.
Um arrepio cortante correu por minha coluna. Kian estava em
seu escritório? Aquele seria o seu escritório? Não tinha certeza… ao
mesmo tempo, também não tinha certeza se ele estava entre as
pessoas ou se sequer estava na boate – apesar das afirmações da
minha nova amiga. No entanto, não poderia deixar a chance passar
em vão.
Soltei uma risada baixa de mim mesma. Eu tinha que parar de
ser tão medrosa. Arquitetei isso durante tanto tempo. Não era o
momento de ter receio de tudo o que planejei.
Aprumei a postura e marchei na direção das escadas, sem olhar
para trás.
O som alto fazia com que eu não ouvisse meus passos, o que
me acobertava, em partes. O som da música eletrônica incomodava
meus ouvidos, que também recebiam sonido do bombear do meu
coração. E aumentava a cada centímetro percorrido.
Assim que minhas botas tocaram o mármore da escada, olhei
para trás. O medo de alguém estar me observando congelou meus
ossos. No entanto, assim que meus olhos voaram até o corredor,
não vi nada além de risadas e conversas entre jovens bêbados.
Por que diabos não havia segurança ali?
Ou ele estava lá em cima. Engoli em seco e baguncei um pouco
os fios dos meus cabelos enquanto subia os degraus. Precisava
parecer que eu estava em uma ligeira bebedeira para acobertar uma
mentira. Sorri para mim mesma, orgulhosa. Essa era a Ayla que
planejei trazer para Kardama. Ardilosa e desprovida de medo.
Cambaleando, na minha melhor pose, continuei levantando os
pés e subindo. A cada passo, minhas pernas pareciam pesar
toneladas. Como se algo me avisasse que não deveria fazer aquilo.
Uma força maior. Talvez o próprio Lúcifer.
Soltei o ar fortemente pelas narinas com o pensamento obscuro.
Chacoalhando a cabeça e com os braços arrepiados, atingi o topo.
Era outro corredor. Muito mais escuro. Não conseguia visualizar
absolutamente nada além de uma porta entreaberta no fim.
E de lá, uma luz vinha.
Como o fim do túnel.
Diretamente para o inferno.
Me obriguei a arrastar o corpo naquela direção. Quase
hipnotizada.
Minha cabeça parecia um borrão enevoado de adrenalina e
excitação. Parei na frente da porta e levantei a mão, pronta para
tocar a maçaneta. Meu coração batia descompassado, feliz pela
perspectiva de conseguir algo. Ele estava ali? Se sim, o que eu
faria? Não sabia bem qual seria meu próximo passo e, então, tudo
pareceu uma ação imprudente. Nada calculado.
Estremeci.
Burra, burra…
Olhei para os lados. A escuridão me abraçando e minha cabeça
em uma bagunça caótica.
Eu precisava sair dali.
— Quem é você?
O som me fez congelar com a mão no ar. Notei o tremor se
espalhar até meu ombro e não me movi. A voz masculina estava
distante e, ao mesmo tempo, perto. Como se ele estivesse ecoando
pelo corredor e também sussurrando em meu ouvido.
No mínimo, assustador.
Um nó formou-se em minha garganta quando levantei meus
olhos.
As luzes que piscavam na festa adentravam as janelas atrás do
lugar em que estava. Consegui ver apenas uma grande mesa e uma
poltrona. Com o encosto suficientemente grande para escondê-lo.
No entanto, vi a sua silhueta encostada na poltrona. Definitivamente,
era um homem.
Algo ainda segurava meus pés ao chão quando sua voz
novamente sobressaiu a música eletrônica, porém, de modo
cantarolado, como uma sinfonia. Uma sinfonia em escala menor,
macabra. Como o anúncio de algo terrível.
— Vou perguntar de novo. Quem. É. Você?
Ele se levantou da poltrona ao mesmo tempo que uma corrente
de ar invadiu o corredor. Um sopro gélido, perturbante.
Então, lá fora, as luzes foram acesas por algum motivo.
E naquele segundo, meus olhos caíram direto no próprio diabo.
Kian Wilding.
—Aqui… aqui não é o banheiro?
O tremor em minha voz denunciava meu estado. Eu estava
morrendo de medo.
Observei Kian com as mãos espalmadas na mesa e o olhar
firme em meu rosto. Ele não os desviou por longos segundos,
buscando por algo. Talvez uma mentira. Algum sinal de fraqueza.
Por dentro, meu corpo trepidava violentamente e podia sentir o
revirar dos meus órgãos em uma metáfora nada engraçada. Era
aterrorizante.
Meu cérebro pareceu acordar de um transe quando me dei
conta que precisava sair dali. Desesperadamente. Inspirei uma
quantidade generosa de ar, molhei meus lábios secos e cambaleei
para o lado, apoiando a lateral do corpo no batente da porta.
Fazendo uma cena completa.
Minha visão ficou levemente turva por conta da ansiedade.
Registrei pouco do escritório, já que meus olhos se fixaram no
homem atrás da mesa.
Ele tinha o corpo levemente inclinado para a frente e vestia
preto. Apenas preto. Como se aquela cor fosse apenas sua. Mistério
e a intensidade. A cor refletia perfeitamente os olhos castanhos e
cabelos escuros, meticulosamente penteados para trás. Ele era alto
e os braços evidenciavam músculos fortes.
Mesmo que tivesse observado suas poucas imagens na internet
por mais tempo do que deveria, eu não imaginava o impacto de ficar
de frente com ele. Era como se seus olhos escuros estivessem
vendo todas as minhas mentiras, os meus erros… Kian parecia
furioso e, ao mesmo tempo, analítico. Um grande jogador.
Eu o tinha desenhado em minha mente com uma mistura de
fascínio e ódio mortal. Existia algo sobre homens poderosos e frios.
Kian não tinha quaisquer redes sociais, informações excedentes na
internet e histórias de envolvimento para contar. Ele era quase uma
lenda de Kardama e governava seu inferno particular. E eu estava
pronta para adentrar em seu território, em sua vida, e quebrá-lo.
Como um maldito predador, de dentro para fora.
Se, naquele momento, deixasse algum dos pecados capitais
descrever meu estado de espírito, diria que, com absoluta certeza,
estava de mãos entrelaçadas com Azazel.
A ira.
No entanto, era como se estivesse, também, de frente para algo
maior. E no instante em que seus lábios se curvaram para cima,
notei que talvez estivesse subestimando meu oponente. À medida
que seu sorriso crescia, meu instinto de fuga gritava.
Fuja.
Não me movi. Ele estava lá, com aquele sorriso sujo e uma
expressão soberba que gritava diversão. Será que Kian sabia? Eu
tinha sido pega? A probabilidade me deixou doente. E tudo piorou
no segundo seguinte, quando as luzes se apagaram lá fora,
deixando o ambiente todo escuro. Senti meu estômago apertando-
se e perdi a noção do espaço.
Os gritos das pessoas eram altos e a música retumbava sob
meus pés. Minhas pernas pareciam gelatina quando me afastei da
porta e dei um passo para trás. Joguei as mãos para a frente,
tateando o ar, ainda sem encostar em nada.
O som dos pés movendo-se me fez pensar se Kian havia saído
da sua poltrona. Engoli o ar e girei no eixo, pronta para correr.
Dei um passo para a frente, pegando impulso, decidida a fugir.
No segundo passo, bati em um corpo. Um corpo forte, quente e com
um aroma intenso entre o amadeirado e o carvalho. O pânico tomou
conta de mim quando me afastei minimamente e, mesmo sem
conseguir enxergar, levantei o rosto, procurando pelos olhos de
quem quer que fosse.
— Corra.
Era ele.
Como ele havia chegado tão depressa?
O hálito quente soprou contra meu pescoço exposto e sua voz
intensa me fez tremer. Então, sem pensar muito, contornei seu
corpo e corri o mais rápido que pude. Em fuga e completamente
apavorada.
Só parei quando estava na frente das portas dos banheiros.
Apoiei as mãos nos joelhos, buscando pelo ar através da boca
aberta. Olhei de relance sobre o ombro, ainda sentindo o tremor por
cada parte do meu corpo. Meu coração não parecia o suficiente
para aguentar aquilo.
Por que eu tive tanto medo?
Eu era fraca! Chacoalhei a cabeça, indignada comigo mesma.
Não devia ter surtado, Deus! Era apenas seguir o plano. Fingir uma
bebedeira.
— Ayla? — A voz suave de Olivia soou alto.
Levantei o rosto, enquanto ela se aproximou, segurando meu
rosto e me colocando ereta.
— Céus, você está pálida. E gelada. Está tudo bem? Precisa ir
até a enfermaria?
Neguei com um movimento da cabeça, nervosamente, enquanto
engolia o bolo em minha garganta. De soslaio, olhei para a escada.
Kian não estava lá.
— Eu… acho que não estou me sentindo bem! — disse,
enquanto ela acariciava meus braços.
Olivia concordou com um movimento da cabeça.
— Tudo bem. Vamos até o camarote de Hugo e tomar uma
água. O.K. Depois, podemos te levar em casa. Kian descerá em
alguns minutos, eu acho.
— Não — rebati, mas logo engoli as palavras. Seja forte. — Só
preciso ir.
— Então me deixe acompanhá-la até o táxi, pelo menos. Mas…
apenas depois de uma garrafa de água, claro!
Ela parecia uma mãe mandona. E não iria me opor a isso.
Talvez o tempo de espera e uma garrafa de água me dessem mais
coragem e vergonha na cara. Eu não era uma garotinha assustada.
E Kian Wilding precisava saber disso.
Enquanto ela retornava comigo para o camarote, lembrei-me
das drogas. Ela estava bem? Ou simplesmente não usou nada?
Será que Hugo e Olivia vendiam esse tipo de coisa?
Minhas perguntas ficaram entaladas na garganta quando
chegamos lá e encontrei uma garrafa de água. Verifiquei o lacre e
abri, bebendo o conteúdo quase todo em um longo gole. Meus olhos
fixos nas vidraças escuras do andar de cima. Não vi absolutamente
nada. Apenas o preto.
E assim foi o resto dos minutos que permaneci na Seven.
Sem nenhuma resposta e decidida a não fraquejar mais uma
vez, saí de lá com mais perguntas em minha cabeça.

Abri meus olhos, vendo meu quarto claro demais, voltando a


fechá-los e tentando de novo alguns instantes depois. A minha
cabeça latejava enquanto meu corpo estava pesado em cima do
colchão confortável. Todo o estresse da última noite me resultou
nisso.
O calor californiano já me atingia e quando criei coragem para
abrir os olhos novamente, encarei meu celular apontando as dez
horas da manhã.
— Droga! — Tinha perdido todo o período da manhã na
faculdade.
E como se pudesse me rastrear, meu celular tocou novamente,
a mesma ligação que havia me despertado. Meu pai. Uma parte do
meu coração queria atendê-lo. Queria ouvir o que quer que ele
tivesse a dizer sobre Daniele e Sandy, respectivamente, minha
madrasta e minha meia irmã de dois anos, mas não tinha como lidar
com aquilo naquele momento. E se Sandy gritasse ao fundo, minha
cabeça provavelmente explodiria.
Só o pensamento sobre meu pai fez com que eu me recordasse
de todos os motivos do porquê estava ali. E eu precisava seguir em
frente com o meu plano. Kian era mais que um objetivo em
Kardama, ele era o único caminho para que eu chegasse
exatamente onde queria.
Passei os dedos nos olhos, os coçando um pouco. Sentei-me
na cama e joguei as cobertas para o lado, me livrando um pouco do
calor quase borbulhante instalado na minha pele. De shorts de seda
e uma camiseta qualquer do meu antigo curso de marketing,
coloquei os pés no chão gelado, agradecendo mentalmente os
refrescos.
Passei os dedos pelos meus cabelos curtos, sentindo-os
atravancarem em alguns nós. Deus, eu estava um lixo. E isso
porque nem tinha olhado o meu reflexo pra constatar tal fato. O
primeiro dia para seguir o meu objetivo tinha sido um fracasso,
porque eu insistia em ficar aflita, com medo.
Peguei minha necessaire e uma toalha, abrindo a porta do
quarto em seguida, e dando de cara com Tai em toda a sua glória de
músculos e tatuagens. O irmão da locatária do apartamento não
estava nos planos quando me mudei para cá. Algo aconteceu com
seu último apartamento e agora eu e Yue dividíamos o lugar com o
rapaz de vinte e oito anos. Ele tinha olhos fundos, arredondados e a
curva final para baixo. Sua ascendência chinesa era evidente não só
pelo formato dos olhos, mas também pelos cabelos ébano e liso, e o
enorme dragão mitológico no peito.
Os fios estavam levemente molhados, mas me concentrei nas
tatuagens de tinta preta sobre sua pele, já que estava sem camisa e
com uma calça baixa, dando-me uma bela visão do seu V.
— Bom dia… — ele soprou de cima, me encarando. Fui
obrigada a levantar um pouco a cabeça para encarar seus olhos
amendoados, quase no topo dos seus um metro e noventa.
— Bom dia, Tai…
Forcei um sorriso e esperei que ele saísse da frente da porta do
banheiro para que pudesse entrar ali. Sorri quando senti o cheiro do
seu shampoo, e não pude evitar um enrubescer nas bochechas por
ter cruzado com o homem.
Assim que melhorei minha aparência, depois de um banho
merecido, cheguei à sala do apartamento e encontrei não só Tai
desta vez, mas Yue também.
A irmã mais nova tinha a minha altura e o corpo repleto de
tatuagens, mas, diferente dele, ela tinha a desculpa de ser a
tatuadora, enquanto Tai, até aonde sabia, era jornalista. E para a
minha sorte, desta vez, o rapaz estava com uma camiseta, evitando
minha desconcentração. Já Yue possuía um braço é fechado com
carpas coloridas e traços budistas, enquanto o outro parecia uma
grande bagunça de desenhos pequenos de traços finos
desordenados.
— Garota, assim fica difícil, está perdendo aula!
Eu ri fraco.
— Uh, o professor teve um imprevisto e marcou a reunião do
grupo para outro dia — menti, mas logo parei para avaliar minha
fala. Será que os dois desconfiariam de algo?
Tai sorriu serenamente para mim e eu me xinguei um pouco por
estar presa em seu olhar mais tempo do que deveria. Logo, desviei
meus olhos para Yue, que tinha as mãos ocupadas com a jarra da
cafeteira.
Yue foi uma colega em Nova Iorque, da época que fiz alguns
cursos de verão. Foi uma surpresa e tanto quando descobri que ela
era de Kardama e estava voltando para cá. Como se fosse obra do
destino, Yue estava procurando por dois locatários para os quartos
do lugar em que alugou, para aliviar as contas. Me prontifiquei em
assumir um dos cômodos. O aluguel era possuía um valor tranquilo
e o ambiente amplo. Além disso, eu não me sentiria sozinha.
— Bem, venham comer — disse Yue, me fazendo sorrir
enquanto caminhava até a mesa.
Os cabelos pretos cortados em forma Chanel com franjinha
acentuavam seu rosto oval e os olhos amendoados. Assim como
Tai, os traços da ascendência chinesa eram bem evidentes em seu
rosto, seja pelo tom de pele ou no desenho dos olhos.
Deslizei pela cadeira e comecei a me servir, enquanto
observava a interação dos irmãos. Mesmo que Tai estivesse ali só
por um tempo, até achar um outro apartamento, Yue parecia
contente com a invasão do irmão em sua vida. Durante o nosso
tempo durante as aulas de Arte Moderna na instituição que
estudamos, ela falava muito sobre o rapaz.
Enquanto enchia uma xícara de café e lutava para não rir da
situação que Yue narrava, sobre uma tatuagem na virilha de um
homem, senti o telefone vibrar ao lado do prato.
Sorri abertamente quando vi o nome de Olivia. Eu precisaria de
uma nova chance para chegar em Kian Wilding e, com absoluta
certeza, ela seria meu caminho até ele. Mais uma vez.
Não dava para adiar aquilo para sempre, já fazia alguns dias
que ignorava as ligações e só mandava mensagens como garantia
de que estava bem. O suco verde em minha mão começava a
querer esquentar enquanto discava o seu número e colocava o
celular pendurado entre meu ombro e a orelha, parando sob uma
árvore que conferia uma sombra agradável.
Ainda não era adepta as videochamadas e não confiava no
lugar novo em que estava. Por melhores que fossem, não podia
relaxar completamente ao redor de Tai e Yue. Kardama não era um
lugar convidativo e mesmo que os irmãos Yang fossem ótimos, ali
eu era Ayla Brown.
Uma grande farsa.
A minha melhor mentira.
— Por Deus, Ayla! — Foram as suas primeiras palavras. —
Quer me matar do coração?
Sorri, enquanto empurrava os óculos para próximo do rosto e
sondava o ambiente. Quais eram os horários de aula de Kian? O
pensamento me fez avaliar tudo a minha volta, procurando por seu
corpo e olhar penetrante.
— Longe de mim fazer isso, père. Só ando ocupada.
Arrastei o francês, língua de origem do meu avô paterno, que
fez com que os filhos e netos aprendessem o básico, pelo menos.
— Duvido que não tenha cinco minutos pour parler à ton père.
Céus, como ele era dramático.
— Bem, arranjei esses cinco minutos para conversarmos, feliz?
— Ah, mon coeur, sinto sua falta, sabe disso, não?
— Sei sim, père. — O sol das duas estava forte e, mesmo na
sombra, o calor era absurdo. Minha pele chegava a arder apenas
com o mormaço. Tomei um gole do meu suco e observei alguns
alunos estenderem uma manta há alguns metros para se sentarem.
— E como estão Sandy e Daniele?
— Ah, estamos todos bem, querida. Daniele começou a falar em
levar Sandy para a escola, mas ainda acho muito cedo.
Eu ri, meu pai ainda tinha pensamentos “antigos”. Literalmente.
Comigo ele já era protetor, mas ainda conseguia manter a sua
moderação. Afinal, após terminar o ensino médio, recebi uma bolsa
de estudos em Nova Iorque para estudar Marketing e ele precisou
lidar com meu espírito aventureiro logo aos dezenove.
Já com Sandy, a idade já lhe alcançava, passava dos cinquenta
e o bebê de dois anos era um colírio para os seus olhos. E eu
amava aquela garotinha por isso. Ela o dava felicidade, Daniele o
amava e era tudo o que ele merecia depois da morte da minha mãe.
Ela foi um anjo na nossa vida e eu não tinha problema nenhum em
admitir aquilo. Eles se conheceram na minha escola, Daniele era
uma professora do ensino infantil na época que eu já estava no
ensino médio. E só por esse fato da sua profissão, tinha certeza que
ela saberia o momento certo de levar Sandy ao colégio.
— É a escola, pai. Não é como se ela tivesse ido trabalhar em
outro país — debochei.
— Ayla… — Seu tom foi de uma leve repreensão, mas eu
precisava brincar para me distrair. — Como está o trabalho? Como
está em Forks?
Trabalho? Que trabalho?, minha mente ecoou. Forks?
Oh, Deus, eu era a pior filha do mundo!
— Bem, tudo tranquilo. A empresa é ótima e a cidade é fria
como o Canadá.
Mentirosa do caralho!
Se meu pai sonhasse que eu tinha vindo à Califórnia, pegaria o
primeiro avião até aqui. E se ele soubesse os motivos que me
fizeram vir até aqui, provavelmente morreria de desgosto.
— Ah, que bom, ma belle. Me envie fotos quando puder.
Mordisquei o lábio, com aquela culpa crescente em meu peito.
Era ótima com mentiras, mas enganar meu pai ainda não era algo
que me orgulhava. Apesar disso, o propósito de tudo o envolvia.
Em um dos caminhos de pedra por entre os jardins do campus,
com mais duas meninas, enxerguei Olivia de longe. Seu tamanho
poderia fazê-la se perder na multidão, mas a sua energia fazia com
que eu a encontrasse em qualquer lugar. Sorri fraco.
— Père, preciso desligar agora, mas prometo enviar uma
mensagem de bom dia e outra de boa noite. Pelo menos.
— Vou aguardar, mon coeur.
— Mande um beijo para Dani e Sandy.
— Uh, sim, pode deixar.
E encerrei a ligação. Joguei o celular dentro da minha bolsa,
lembrando-me da mensagem da garota de cabelos castanhos
ondulados. Após nossa breve troca de mensagens, enquanto estava
no ônibus em direção a universidade, ela comentou sobre a festa da
sua fraternidade hoje à noite e concordei em ajudá-la. Achei
estranho o seu pedido, considerando todas as estudantes que
moravam com ela naquela mansão dentro do campus, mas não iria
reclamar da sua boa vontade em me deixar aproximar.
Apressei meus passos sentindo agora os raios solares tocando
a minha pele exposta. Afinal, a Califórnia me impedia de usar calças
todos os dias e blusas de mangas longas. Meus looks andavam se
resumindo em shorts e camisetas ou croppeds, dependia do meu
humor.
Senti as gotículas de suor se unindo em minha cabeça e quis
explodir a maior estrela do nosso sistema. Eu tinha lavado o cabelo
de manhã, inferno!
— Olivia! — a chamei, um pouco atrás.
Seu corpo logo virou-se para mim e um sorriso animado
preencheu seu rosto.
— Ayla!
Não conhecia as duas outras garotas que estavam com ela. No
entanto, era provável que deveria ter esbarrado com elas na última
noite, afinal, elas vestiam camisetas da fraternidade e
provavelmente estavam no camarote. Esse lance da primeira
semana parecia algo que movia o campus, de verdade. Apesar
disso, sorri, elas já não carregavam panfletos.
— Acabamos de sair da aula e precisamos ir até a fraternidade
organizar a festa de hoje! Você vem conosco, não é? Foi ótimo nos
encontrarmos aqui, podemos ir juntas! — Olivia explicou,
balançando algumas sacolas que não havia notado.
Estreitei os olhos.
— Venha conosco! Vamos pedir uma pizza e organizar aquele
lugar — ela continuo, e as outras garotas pareciam empolgadas.
— Não sou da fraternidade, pode pegar mal, não sei… Você
tem certeza? Aceitei o convite, mas… — Apertei o copo com um
pouco de suco ainda em minha mão.
— Nós deveríamos dar uma festa com seu nome — a garota
loira comentou, risonha. — Olivia disse que você foi responsável
pelo recrutamento online e… uau. Estamos no topo. — Ela riu.
Sorri, orgulhosa do feito.
— Então venha! — Olivia continuou a falar, enganchando o
braço no meu. — Vamos pedir pizza, arrumar a casa e depois dia de
beleza para todas as meninas.
— Eu tinha aula, e… sou vegana. Não como queijo... — falei,
querendo livrar-me da parte dia de beleza, mas elas ignoraram
minha relutância e me empurraram com elas.
— Temos outras garotas veganas na nossa irmandade, vai ter
pizza com o queijo de vocês lá.
Acabei sabendo os nomes das meninas nos momentos
seguintes: Julie e Railey, uma loira e magra que mais parecia
modelo da Victoria Secrets e uma outra que tinha mais ou menos a
minha altura e usava uns óculos estilo aviador de grau,
respectivamente.
Acompanhei as garotas no seu caminho até a Kappa Phi,
caminhando pelas calçadas de pedras escuras, as quais
contrastavam com o verde do gramado. Desviamos de um bocado
de pessoas que paravam para cumprimentar as garotas de roupas
coloridas. De fato, elas entravam muito bem no padrão de beleza
atual, com seus corpos e cabelos longos. Eu ri, já que minhas
vestes escuras e cabelos curtos acima do ombro, não eram nada
parecidos.
Observei os prédios dos dormitórios ficarem para trás e as
quadras enormes das fraternidades surgirem em minha visão.
Pouco mais de quatro quadras depois do fim do campus, havia um
complexo de prédios dos dormitórios antigos e, em seguida, as
quadras das casas das fraternidades. Eram sete, lado a lado.
Não consegui ver todas as casas, mas havia algo sobre aquele
lugar que me fez sorrir. Até onde pude enxergar, todas tinham
estruturas grandes, com, pelo menos, dois andares e colunas
gregas horríveis sustentando o lugar, além de, claro, um vasto
gramado verde e bem aparado, clássico. No entanto, o que me fez
sorrir foi o pequeno fato de que cada uma das fraternidades
estampava sua cor de uma maneira exótica.
A Kappa Phi estampava o azul oceano em um canteiro de flores
e em sua bandeira estendida no gradil da varanda do segundo
andar. Uma bandeira de fundo turquesa com uma sereia estampada
na frente.
A mulher com cauda não era uma versão sutil e encantada da
mitologia, mas provavelmente a que lembrava que sereias em
algumas culturas eram traiçoeiras. Meio humanas e meio peixe, elas
encantavam os marinheiros para as profundezas das águas escuras
e gélidas.
O sorriso perverso da mulher de cabelos loiros dizia isso. A
sereia em questão tinha cabelos esvoaçantes e corais em parte do
corpo. As conchas que tampavam os seios eram pretas e cauda
danificada era de um azul escuro como a noite.
— As sereias do campus? — murmurei, em um sorriso. —
Espero que tenham, no mínimo, uma piscina.
— Duas — murmurou Railey. — E são as maiores de todas as
fraternidades.
— Uh, pelo menos fazem jus ao símbolo da fraternidade. — Eu
ri.
A fachada da mansão lembrava a Casa Branca, por mais
exagerado que isso pudesse soar, era a mais pura verdade. Nós
passamos pelas grandes portas da frente, caindo em um hall com
piso de mármore em tons amarelo-ouro, enquanto as paredes
destoavam bastante das que haviam ali, caindo em um champanhe
elegante. Atravessamos o lugar e paramos em uma sala
parcialmente vazia.
Era tudo muito claro e com requintes de dinheiro. E
provavelmente alguns móveis já haviam desaparecido do lugar.
Passamos pela enorme sala com Olivia tagarelando sobre a
casa, me apresentando o primeiro andar — que consistia na sala de
televisão enorme, uma cozinha e a área externa, com piscinas e um
enorme quiosque (o qual já estava equipado com diversas caixas de
som e os freezers cheios de gelo).
— Aqui é onde fazemos as reuniões semanais e, hoje à noite,
vai ser onde vai rolar a festa! — avisou a líder.
Voltando para dentro da casa, ela continuou seu tour. Da grande
sala, havia uma sala menor, que explicou ser a sala de jantar, mas
as mesas haviam sido retiradas de lá para que pudesse haver mais
espaço para dança.
Algumas garotas perambulavam pela casa e cumprimentei
algumas que me recordava da noite anterior, como Bella.
E tudo o que tinha visto, no final das contas, era apenas o
primeiro andar. Tinha medo de descobrir o tamanho dos quartos das
garotas. Paramos na entrada da cozinha. Algumas delas estavam
abrindo caixas de pizza nos balcões e pegando pedaços da massa
recheada com queijo e molho. O cheiro me fez salivar.
— A Kappa foi fundada há algum tempo, mas o lugar vive sendo
revitalizado.
— E as rivalidades das fraternidades? Como surgiram?
— Kardama é... como um jogo de ego. Não seria diferente no
campus da UK...
— Ah, é? — indaguei, curiosa. — E Hugo e Trenton? Qual o
motivo da rixa?
Ela deu de ombros.
— Parece que o pai do Hugo, na época que era líder, tinha algo
contra o pai dele — ela abaixa o tom de voz. — Parece que Hunter
Müller fisgou a antiga namorada do homem.
Arregalei meus olhos sob a constatação e sorri.
— O.K. Vamos focar no que temos que fazer hoje? A festa
começa em poucas horas e nós temos muito o que fazer.
Seus ombros relaxaram um pouco.
— Ai, você tem razão. Acho que estou animada e com medo ao
mesmo tempo — admitiu, enquanto eu a soltava. — É a última festa
de recepção que organizo como líder da fraternidade, e se for um
fracasso?
Eu ri fraco, cruzando meus braços na frente do corpo.
— Não será! E eu estou aqui para garantir isso, vamos fazer
essa festa bombar — declarei. Coloquei minha mochila sobre o
balcão e puxei meu notebook de lá de dentro.
Munidas de pedaços de pizza, entramos no Photoshop e eu
comecei a montar uma arte bonita para lembrar todos os alunos da
universidade sobre a festa de hoje à noite. Enquanto eu mexia na
arte digital, Olivia preparou um martini para nós duas. O sol ainda
estava forte demais no céu e talvez não devêssemos estar bebendo
tão cedo.
— Por favor, você está fazendo milagre com essas imagens, o
mínimo que posso fazer é um martini — declarou, mexendo o drink
na coqueteleira.
Em seguida, puxou duas taças especiais do freezer e as
colocou no balcão enquanto eu ajeitava as fontes com as
informações importantes.
Fazendo aquilo, mesmo na presença de Olivia, me sentia mais
à vontade do que em todos os dias em que estive em Kardama.
Design digital era algo que eu realmente gostava e, mais do que
isso, era boa naquilo tanto quanto no marketing que faria utilizando
a arte final.
Ela me estendeu uma taça com uma azeitona enfiada em um
palito de metal rosa.
— E então, uma pena Kian não ter aparecido ontem… somos
super amigos, sabe, mas ele é difícil às vezes.
Ouvir aquele nome me fez sentir um leve tremor em meu corpo.
Meus dedos travaram por um instante no touchpad do notebook,
mas tentei disfarçar, estendo-os até a haste da taça, finalmente a
levando aos meus lábios. Aquilo estava realmente muito bom, o
gosto da azeitona não estava forte e isso fazia o drink beirar a
perfeição.
— Você fala muito dele… — declarei, tentando não soar curiosa
demais.
— Ah, ele é como um irmão pra mim. — Olivia arrastou o corpo
até o meu lado e puxou uma das banquetas, ainda disponíveis ali,
sentando-se. — Nos conhecemos desde que nascemos,
basicamente.
— Isso parece muito tempo.
— É, um pouco… — ela brincou, rolando os olhos.
Com os braços apoiados no balcão, enquanto eu continuava a
mexer no computador, reparei nas pulseiras douradas, anéis da
mesma joia e as unhas stiletto em cor nude. O que me fez voltar a
encarar a minha mão: unhas curtas e pretas, nenhuma joia. Eu
destoava absurdamente daquele lugar.
— Espero que apareça hoje… — Seu comentário chamou a
minha atenção, enquanto ela bebia um gole do seu martini. — Ele
não é muito de festas ou aglomerações, como já disse. No entanto,
estou confiante.
— Se ele sabe que é importante, e vocês são tão amigos, tenho
certeza que aparecerá.
Sorri para ela de forma encorajadora. E meus pensamentos me
levaram para aqueles olhos castanhos que encontrei na noite
passada e senti meu coração apertando-se e depois acelerando-se
entre os ossos da minha caixa toráxica. Era bom ele aparecer, e era
bom eu parar de ser uma covarde.
— O que você está estudando aqui? — ela questionou,
mudando de assunto abruptamente.
Olhei-a de soslaio.
— Ah, disciplinas gerais…, mas quero seguir na área da
comunicação. Publicidade, talvez.
— Ai, isso é legal! Acho que ninguém da nossa fraternidade faz
esse curso… Como você pode ver, ninguém teve uma ideia genial
igual a sua — falou e nós rimos. Ela continuou analisando minha
atividade, batendo com as unhas no balcão. — Eu faço direito, é
chato…
Observei a forma como ela disse aquilo. Claramente, Olivia não
estava animada com o curso que frequentava.
A tela do meu celular acendeu, com uma nova mensagem de
Daniele. Encarei rapidamente, mas antes de pegar o aparelho,
Olivia o segurou, encarando a tela.
— Quem é Daniele e por que ela tá te mandando fotos de um
bebê?
Engoli em seco, tentando não surtar com a garota segurando
meu telefone desbloqueado. O olhar inquisidor de Olivia me fez falar
rapidamente:
— É a minha madrasta e o bebê em questão é a minha meia-
irmã.
Olivia sorriu animada.
— Ai, abra a foto, amo bebês.
Achei estranho a sua empolgação, mas seus olhos intensos e o
sorriso médio me diziam que era melhor fazer aquilo. Peguei meu
celular das suas mãos e desbloqueei a tela, mostrando a mensagem
para Olivia. Sandy era absurdamente parecida com Daniele, tinha a
pele em um tom castanho-dourado, mas os olhos eram iguais aos
meus e do meu pai: azuis. Aquela garotinha daria um trabalho para
os dois quando descobrisse o que é namorar.
— Awn, que fofa! Tem seus olhos.
Senti as bochechas esquentando mais, apesar de ali dentro da
mansão estar fresco devido ao ar condicionado.
— E você se dá bem com a sua madrasta?
— Sim, ela é ótima! Eu a amo e tudo que ela representa para
nós… uma nova chance para o meu pai e também para mim, de
certo modo.
Algumas meninas passavam por ali, cumprimentando e seguiam
com bebidas e decorações por todos os lados. Continuei mexendo
na imagem em que trabalhava, fazendo um vetor da sereia símbolo
da fraternidade. Meus olhos estavam focados na tela.
— E sua mãe?
A pergunta me pegou de surpresa. Olivia e a sua curiosidade
infinita, deveria saber que viria algo assim.
A olhei de soslaio.
— Ela morreu faz algum tempo.
A sua pose se desfez, dando espaço para uma garota mais leve
e menos intensa.
— Sinto muito, Ayla.
Desviei o olhar dela e peguei o celular de suas mãos. Depois
responderia Dani.
— Tá tudo bem.
Na verdade, não, não estava tudo bem. No entanto, em breve,
ficaria. Trabalhei por mais alguns minutos, enquanto Olivia ditava
algumas ordens para as garotas e depois tentava organizar a
cozinha cheia de caixas de pizza e copos de bebida.
Terminei o trabalho quando ela colocou os copos na máquina de
lavar louças.
— E então, gostou? — chamei a sua atenção para a tela do
computador com a arte que tinha acabado de finalizar.
Um sorriso largo preencheu seu rosto quando se aproximou. Ela
soltou um gritinho animado e depois me abraçou.
— Eu amei! Nossa festa vai ser um sucesso.
Nossa? Ela já estava me colocando naquilo. Mesmo com o peso
da constatação, sorri. Desta vez, verdadeiramente.
Por algum motivo desconhecido, eu estava com grandes
expectativas para aquela festa.
Empurrei alguns corpos, procurando por Olivia. Não conseguia
ver muito mais do que três cabeças na minha frente e me perguntei:
como cabiam tantas pessoas em uma casa?
Avistei diversas camisetas e jaquetas semelhantes,
provavelmente das outras fraternidades. No entanto, não me
concentrei muito nisto, já que encontrar minha nova amiga parecia
uma atividade quase impossível.
O som alto da música fazia minha pele se arrepiar e os corpos
amontoados emanavam um calor intenso. Abaixei o rosto para
avaliar a regata preta que Bella me emprestou - já que não voltei a
casa dos Yang para me arrumar para a festa - , e uma quantidade
absurda de colares prateados também. Junto ao jeans e coturnos,
parecia uma combinação confortável e suficiente para uma festa de
fraternidade. Sem saltos, ou seja, sem perigo de quedas. Roupa o
suficiente e protegida de futuros banhos de cervejas.
Eu ri, enquanto troquei alguns sorrisos com as garotas da
fraternidade e fui até a cozinha. Enchi um copo com cerveja do barril
e quando me preparava para sair dali, esbarrei em Railey.
— Ei, você viu a Olivia? — perguntei, bebericando do copo
plástico de cor azul turquesa.
Railey sorriu, ajustando os óculos no rosto.
— Sim. Ela está na sala de jantar.
Meus olhos viajaram até a porta da sala, que estava fechada.
Franzi o cenho.
— Achei que o lugar ficaria fechado… — comentei, mas acabei
engolindo as palavras quando me toquei que mais cedo, o ambiente
também estava sem muitos móveis.
— Uh, não — Railey disse, preenchendo um copo com
margarita. — Lá é onde fica a elite.
Virei o rosto.
— O quê?
Seus olhos verdes rolaram e ela bufou uma risada, tomando um
gole de sua bebida e depois descansando o quadril no balcão.
Mesmo com a quantidade de pessoas ali, a cozinha parecia mais
confortável do que a sala de estar com uma pista de dança
improvisada ou a festa na piscina do lado de fora.
— Os líderes das fraternidades geralmente ficam por lá. Bebem
coisas melhores do que isso — Apontou para o meu copo com
cerveja barata —, e tem outros tipos de entretenimento.
Meus olhos cresceram com aquela informação.
— Tipo uma sala vip?
— Quase isso. — Ela riu, olhando diretamente para as portas
duplas do lugar. — Só que muito melhor. É como se isso. — Girou o
dedo no ar. — Fosse o inferno, e lá, o céu.
Bufei uma risada com sua analogia e bebi mais um gole do
líquido gélido, refrescando meu corpo de maneira quase
instantânea. Quase deixei o copo cair da mão quando Railey bateu
em meu braço com o cotovelo.
— Vai lá. Provavelmente, Olivia vai querer te apresentar para o
resto dos líderes.
— Ah, é?
— Você é o trunfo dela neste semestre… quero dizer, de todas
nós! — Ela sorriu de forma empolgada. — Sabe que tem um quarto
para você aqui na casa, não é?
Neguei com a cabeça. As garotas passaram o dia tentando me
fazer ceder a uma vaga na Kappa Phi.
— O.K. Estou indo lá! — anunciei.
— Pense na proposta — ela gritou quando a deixei para trás.
Sorridente, caminhei até as portas duplas da sala de jantar, com
um pouco de resistência das pessoas. Parei na frente da madeira
branca com maçanetas douradas. Olhei por cima do ombro, e me
perguntei porque diabos as pessoas não estavam tentando entrar
de penetra aqui também. Parecia que havia um respeito quase
celestial com os malditos líderes e o lugar, algo que me deixou
intrigada. Logo, lembrei-me do Seven. Kian pareceu irritado e até
mesmo surpreso quando subi até o que pareceu seu escritório. O
lugar estava sem seguranças. Algo sobre respeito às hierarquias
funcionava bem nesta cidade, pelo visto.
Abri uma das portas e logo meus olhos encheram-se com o
lugar.
Não vi quando as outras meninas da fraternidade organizaram o
ambiente, mas não parecia em nada com a sala de jantar vazia da
tarde. Havia luz negra e sofás espalhados pelo lugar. As pequenas
mesas de centro serviam de apoio para narguilés e baldes com gelo
e bebidas caras.
Até mesmo os copos plásticos comuns – azuis – foram
substituídos por taças douradas nas mãos dos presentes.
— Olha só o que temos aqui — Hugo surgiu ao meu lado,
sorridente, dentro de uma roupa social de tons claros. Ele tinha os
cabelos jogados de maneira sensual para trás e estampava um
sorriso gentil.
— Olá, garoto do esporte — murmurei, apertando os lábios, e
ainda com a mão na maçaneta, decidindo entre sair correndo dali ou
procurar por Olivia.
— Ainda não mudou de lado? — Ele parou ao meu lado, com
uma expressão de desaprovação. — Vamos precisar melhorar isso,
caloura.
Torci o nariz para o último comentário.
— Estou procurando por Olivia. Não quero atrapalhar —
expliquei.
Ele esticou a mão e fechou a porta, fazendo com que meus
braços caíssem ao lado do corpo. Hugo pegou meu copo e
descartou em uma lixeira e, em seguida, apontou para a mesa de
bebidas.
— Vamos pegar algo decente para você — disse, ignorando
minha pergunta.
Sem muita opção, o segui. Mesmo que estivesse caminhando,
meus olhos tentavam buscar por Olivia no local. Apesar das poucas
pessoas, a luz baixa não deixava os rostos muito acessíveis. E
claro, havia casais nos sofás. Se beijando sem nenhum pudor. O
que fez minhas bochechas aquecerem em vergonha.
Paramos ao lado de uma grande mesa com bebidas, Hugo
apanhou um copo baixo e o preencheu com uma dose de uísque.
— Como sabe que eu tomo isso? — indaguei, curiosa abriu o
licor de café e despejou no copo.
Hugo apenas riu e, depois, abriu um pequeno frasco de vidro e
despejou gotinhas do que parecia ser extrato de baunilha.
— Este é o meu drink especial — explicou, finalizando com
creme fresco.
Eu ri quando ele pegou uma das pecinhas de misturar drink, já
que a ponta era uma cauda de sereia degradê entre turquesa e
roxo. Após finalizar, me entregou o copo.
— Voilá! — brincou.
Segurei o copo e não pude conter um sorriso com a expectativa
no olhar do rapaz. Misturei a bebida, sentindo o aroma da baunilha
com o café acariciarem minhas papilas gustativas. Depois, trouxe o
copo para perto do rosto e sorvi um gole.
— Jesus — proferi, baixinho, lambendo os lábios. — Isso é
divino.
Quase engasguei quando Hugo soltou um muxoxo empolgado,
totalmente vitorioso. Negando com a cabeça, tomei mais um gole da
bebida forte e saborosa, decidindo que, talvez, eu pudesse assistir
algum dos jogos de Hugo se ele me preparasse mais desses.
Ele ainda estava sorrindo quando desviou os olhos do meu
rosto, para trás de mim e disse:
— Ei, Kian, venha aqui! Tenho que te apresentar uma pessoa!
Congelei. Lentamente, virei meu rosto para onde ele olhava e
engoli em seco. O sabor da bebida se tornou amargo na minha boca
à medida que meus olhos se ajustavam à luz ambiente e conseguia
visualizar o outro lado da sala.
E era óbvio que eu não o teria visto. Ele estava de costas para
onde nós estávamos, e o assisti, lentamente, girar no próprio eixo.
Perdi o ar quando seus olhos castanhos escuros se chocaram
aos meus. Ele estava longe, mas parecia perto o suficiente para me
sufocar.
Quando o reconhecimento brilhou em suas íris, os cantos dos
lábios subiram graciosamente em um sorriso largo, ao mesmo
tempo em que sua face adquiriu um tom de divertimento. Estremeci
com a visão.
Meu coração parecia pronto para saltar da boca quando ele se
moveu, revelando Olivia, encostada na parede. Ela estava
conversando com ele em um canto da festa de forma muito íntima.
Qual era o lance dos três?
No entanto, não consegui me concentrar em muita coisa
enquanto o observava caminhar em nossa direção. Novamente, ele
vestia as cores pretas. Calça jeans escura, camiseta preta e botas
pesadas. O cabelo estava úmido e bagunçado, de uma forma sexy e
perigosa.
Troquei o peso do corpo entre os pés e endureci minha postura,
pronta para um grande impacto. Meus dedos apertaram-se ao redor
do copo e levantei meu rosto, recebendo um movimento sutil de
suas sobrancelhas para cima e o aumento do seu sorriso em troca.
Um pequeno calor espalhou-se pela minha pele quando os
olhos dele desceram pelo meu corpo, parando nas tatuagens dos
meus braços e do meu colo exposto.
Ele parou não muito próximo. Apenas o suficiente para parecer
que nós estávamos em uma roda de conversa.
— Ayla… Esse é Kian, meu melhor amigo e de Liv.
Sorri com os lábios apertados, tentando encerrar o cumprimento
daquela forma. No entanto, perdi a postura firme quando ele esticou
a mão. Sem querer entregar aquele pequeno nervosismo, fiz o
mesmo movimento.
Meu corpo congelou quando Kian envolveu os dedos longos e
finos ao redor da minha mão e a virou. Deixando as costas da minha
mão para cima, abaixou sutilmente o tronco e encostou os lábios
gelados nos meus dedos.
— É um prazer — sussurrou, baixo.
Engoli em seco, mantendo meu olhar firme ao seu, que
estampava divertimento.
Ele ia fazer isso mesmo? Fingir que ontem não existiu?
Abri a boca para perguntar, mas, então, ele afastou o rosto da
minha pele e, ao invés de me soltar, brincou com meus dedos,
avaliando as tatuagens na altura dos metacarpos.
HELL.
O contato dos dedos frios na minha pele me atingia em um
misto de nervosismo e excitação.
— Ayla… — ele disse, como se testasse meu nome em seus
lábios, então, soltou minha mão e levantou o rosto, bebericando de
seu copo com uísque e me analisando. — Que nome… exótico. Soa
bem. Me conte um pouco sobre isso.
Ele era bom em assuntos diferentes. Qual é, ele poderia ter
perguntado sobre minha idade ou qual curso eu fazia…
— É o nome de uma estrela que fica na constelação Serpente…
— disse, sem vacilar, ganhando sua atenção exclusiva. Ele não
desviou dos meus olhos enquanto falei. — No mais, pode significar
sublime, alta... grandiosa. — E sorri. — Agora não me pergunte
mais nada sobre astros, como meu signo ou qualquer coisa assim,
porque não sei nada disso.
— Ah, não — Olivia surgiu, passando o braço pelo de Hugo e
depois apoiando a cabeça em seu ombro. — Kian é do tipo cético.
Não vê o nome da boate e suas menções a demônios?
Ele rolou os olhos e finalmente desviou o olhar do meu,
deixando-o cair no casal.
— Não é como se algo me fizesse crer em uma bênção ou
proteção divina.
— Ayla é igualzinha a você. Tenho certeza que dariam uma
ótima dupla — Olivia murmurou, sorridente, e se virou para Hugo. —
Querido, precisamos cumprimentar o pessoal da Deltha.
Hugo bufou, aprumando a postura e depois lançando um olhar
zombeteiro para nós.
— Vou até meus inimigos declarados pagar de bom moço. O
que eu não faço por essa mulher?
Olivia beliscou sua cintura e, entre risos, os dois escaparam dali,
deixando nós dois sozinhos. Kian acompanhou-os com o olhar,
vestindo uma expressão séria. Avaliei seu perfil de traços firmes e
retos. A mandíbula afiada e os olhos de cílios longos escuros.
— Então… Ayla — ele disse, com a voz profunda e em um tom
mais formal do que usava anteriormente. — Me conte como você
tenta invadir meu escritório, na minha boate, e depois aparece de
forma mágica em uma sala exclusiva da Kappa Phi?
Bebi um gole do drink, com a boca subitamente seca.
— Gosto de coisas perigosas — murmurei, ganhando sua
atenção. — Já te disse, eu acreditava que lá em cima tinha algum
banheiro. Tipo, para os funcionários.
Uma de suas sobrancelhas se moveu para cima, em análise.
Ele não acreditava no que eu estava falando, era claro. No entanto,
não me pressionou sobre isso.
— Coisas perigosas, uh… — debochou, estreitando os olhos. —
Serpentes nos braços e no nome, uma aparição suspeita e
respostas vagas. Você parece mesmo algo perigoso. Talvez isso te
condene ao inferno no dia do julgamento final.
Dei de ombros.
— Sempre preferi o inferno, de qualquer modo.
Ele terminou o conteúdo do copo e o repousou na mesa.
— Cuidado onde você se mete, Ayla. Neste lugar, temos
algumas regras, e se pudesse te alertar, seria sobre isso…
mantenha-se longe e não provoque as pessoas erradas.
Soltei uma risada, desviando meus olhos dos dele. Ele estava
dizendo aquilo como se soubesse que eu não pertencia a este lugar.
Obviamente, ele tinha conseguido alguma informação sobre mim, o
que me dava um pouco de medo… Olivia teria dito algo? Respirei
fundo e engoli meu receio. Avistei Hugo e Olivia conversando com
um casal, alheios aquela troca de farpas.
— Vai me dizer para ficar longe do diabo?
Ele riu, de maneira curta e fria.
— É algo inteligente a se fazer.
Categoricamente, Kian Wilding estava tentando me tirar dos
seus limites. Um nó se formou em meu estômago. O plano inicial
era me aproximar dele e ganhar sua confiança, para, assim, poder
colher informações de sua família.
A vertente principal, e talvez a mais fácil, seria ganhar seu
maldito coração para então conseguir o resto. Pelo visto, esse
caminho não seria tão fácil, ou talvez, precise trabalhar em um plano
B. Quem sabe pedir um emprego para ele na Seven. Geralmente,
boates e casas de show tem uma rotatividade grande de garçons…
precisaria falar com Olivia sobre isso.
— Não acredito no que me disse — ele disse, chamando minha
atenção. — Você é uma estranha que tenta, misteriosamente, entrar
em meu escritório e mente com uma desculpa estúpida.
Sua voz soou cortante, impiedosa. Suspirei, demonstrando
cansaço naquela história.
— Sou amiga de Olivia. E Hugo parece gostar muito de mim.
Estou perto deles, e não de você. Se nossa amizade te incomoda,
sinto muito. Sobre ontem, já disse que foi apenas uma confusão
bêbada — murmurei, voltando meus olhos aos seus. — E, afinal,
também tenho algo com você… nós temos um segredinho sujo, uh.
Ele não se moveu. Terminei meu drink, deixei o copo na mesa e
limpei o canto da boca com o polegar, ainda com meus olhos
alinhados aos seus.
— Preferiu encenar algo, fingindo que não me conhecia. Você
poderia ter contado a todos a sua visão deturpada dos fatos e me
colocar em uma situação ruim — disse, calmamente. — Parece que
você gosta de me ter fazendo parte disso, de algum modo.
Não dei mais tempo para ele continuar. Caminhei na direção
das portas duplas. No entanto, ainda pude ouvir sua voz antes de
me misturar aos outros.
— É o que veremos.
Eu não podia me sentir intimidada por ele novamente. Então,
ignorei sua frase.
Esperava a cafeteira elétrica da cozinha terminar o café
enquanto avaliava minha agenda de atividades do dia. Trabalhar
com marketing digital de forma online me dava liberdade para estar
em qualquer lugar, já que meus compromissos não ficariam em
segundo plano.
Não era novidade para mim que tinha mais trabalhos do que
conseguia comportar em uma agenda saudável, mas eu precisava
de dinheiro. Manter-me sem a renda do meu pai após a formatura e
ainda manter uma poupança de emergência eram coisas que
realmente levavam meu tempo.
Retirei os olhos da agenda online quando Tai entrou na cozinha,
usando apenas um short de malha fina. Ele tinha uma regata
enrolada na mão direita, os cabelos pretos longos amarrados em um
rabo e, provavelmente, não me notou na cozinha unida à sala, onde
a porta de entrada do apartamento amplo ficava. Deixei com que
meus olhos corressem, mais uma vez, por sua pele marcada pela
tinta preta. Mordi o canto do lábio porque, caramba, Tai era uma
visão e tanto.
Então, constatei que talvez eu precisasse de um encontro. Não
conseguia nem ao menos lembrar o nome do último cara com quem
saí. Liam ou Luke? Chacoalhei a cabeça e concentrei-me na tela do
aparelho. Não seria bom ser pega checando meu locatário. Soltei
uma risada baixa. Não poderia ter distrações em Kardama. Um
envolvimento amoroso cheirava a problema naquela altura do jogo.
— Uh, café pronto quando chego em casa? Estou no céu?
Soltei uma risada e respondi a mensagem de “bom dia” de
papai e uma de Daniele, que estava indignada pela demora de
ontem. Segundo ela, Sandy desejava uma resposta rápida e ficou
furiosa. Precisaria, em breve, fazer uma videochamada com todos.
Torci o nariz para o pensamento e coloquei o telefone sobre a
bancada, e peguei duas canecas no seca-louças.
— Yue sempre teve preferência por café, né?! — constatei o
óbvio, sabia disso desde os nossos tempos em Nova Iorque.
Tai fez um barulho de desdém, como se estivesse com nojo das
preparações da irmã, me fazendo sorrir.
— Sim, ela sempre gostou mais dessas coisas — enfatizou a
última palavra.
Preenchi as canecas com café e me virei. Ele ainda estava sem
camisa. Puxei o ar por entre os lábios e desviei os olhos do seu
peito nu.
— Você é daquele tipo adepto a atividade física e vida super
saudável? Porque se for, teremos problemas — brinquei, colocando
as canecas na mesa e esticando o braço para pegar o celular, que
tremia com o anúncio de uma nova mensagem de texto. — Tenho
alguns hábitos questionáveis, apesar de ser vegana.
Tai arrastou uma cadeira e sentou-se.
— Fale mais sobre isso.
— Batatas fritas são o meu ponto fraco. E comida italiana,
principalmente se envolve muuuito molho de tomate e azeite de
oliva.
Fiz o mesmo, observando a mensagem de Daniele na tela,
pedindo por mais fotos de Forks. Forks. Minha família achava que
eu estava morando perto da fronteira do Canadá e eu estava na
porra da Califórnia. Engoli em seco e disse que mandaria em breve.
Afinal, eu precisava encontrar algumas que parecessem tiradas por
mim na internet e enviá-las. Ainda bem que existia Pinterest no
mundo.
— Atividade física me ajuda a clarear os pensamentos — ele
comentou, ganhando minha atenção.
Bloqueei o telefone e apanhei minha caneca, soprando o líquido
fumegante e bebendo um gole. E ele continuava sem camisa!
— Nunca testei. Parece ser uma boa — comentei. — Como
jornalista, deve ser uma confusão de informações e notícias na sua
cabeça.
— Ah, sim. É quase um noticiário vinte e quatro horas. — Ele
riu, bebendo do seu café. — Se quer uma sugestão? Invista em algo
assim durante a faculdade. Também é uma época que temos muitas
informações na cabeça.
— Qual sua área no jornalismo? — questionei, mesmo sabendo
a resposta.
Yue tinha falado o bastante e eu tinha feito minha pesquisa
sobre Tai Yang.
— Jornalismo político. Sou o redator-chefe.
— Uh, importante. — Sorri. — Cidade pequena, dois partidos
políticos… Você deve ter trabalho.
— Nem me fale… — grunhiu, com visível desconforto na voz.
Sorri, bebendo mais um gole do café e descartando o resto na
pia. Deixei a xícara ali e segurei a alça da mochila que estava na
cadeira, pronta para sair.
— Você parece uma pessoa idosa falando desta maneira.
Ele arqueou as sobrancelhas escuras, evidenciando mais ainda
seus olhos, os quais tinham um formato monólido, arredondados e
fundos, típico do leste asiático.
— Experiente, eu diria.
— Vou anotar a sua dica sobre os exercícios físicos.
Comecei a sair dali, mas, então, sua voz soou:
— Se quiser, você pode correr comigo. Vou todas as manhãs
até perto de Soho e volto. Cinco quilômetros.
— Parece tentador. Vou pensar — prometi, pegando a minha
chave no aparador ao lado da porta.
— Posso te compensar com uma macarronada no final de
semana, caso aceite.
Olhei por cima do ombro e sorri. Em instantes, sai dali, e só
depois que estava dentro do elevador me perguntei: ele estava
flertando comigo?

Sentada na mesma lanchonete que havia almoçado com Olivia


alguns dias atrás, finalizei mais um dos meus trabalhos. Apertei em
enviar o e-mail com material solicitado por um dos meus clientes e
encarei a tela, enquanto carregava o envio, e puxei o sanduíche de
abacate e pepino para perto, mordendo uma quantidade generosa.
Provavelmente eu estava, mais uma vez, unindo o café da
manhã e almoço, mesmo que o sanduíche em questão parecia uma
ótima opção para as duas situações. No entanto, eu precisaria de
mais um destes, ou, talvez, uma porção de batatinhas fritas com
molho do KFC para aplacar minha fome gigantesca.
— Ayla?
Levantei os olhos da tela do notebook e encontrei Bella. Ela
tinha uma pasta com alguns papéis em um dos braços, parecendo
sair de alguma aula. Os olhos continham olheiras significativas,
provavelmente oriundas da festa de ontem.
Não fiquei até muito tarde. Após a breve interação com Kian
escapei de lá. Alguma coisa me incomodava na presença dele e eu
precisaria corrigir isso logo. Não poderia fugir após cada momento
de contato com ele. Afinal, eu precisava dele para atingir meu
objetivo em Kardama.
— Oi — respondi, limpando a boca e enrolei o resto do pão no
alumínio e deixei sobre a mesa. — Tudo bem? Como terminou a
festa ontem?
— Ah, sim. — Ela sorriu, trocando a pasta entre os braços. —
Perto das cinco horas.
Torci o nariz e ela riu do movimento.
— A maior parte das meninas nem conseguiu levantar para as
aulas — explicou. — Você tá muito ocupada?
— Não… Por quê? — perguntei, fechando a tampa do
computador.
Já tinha trabalhado por quase três horas. Poderia fazer uma
pausa e terminar o que tinha ficado pendente no turno da noite.
— Alguns garotos estão preparando hambúrgueres para o
almoço. Podemos ir para a fraternidade relaxar na piscina.
— Piscina? Ah, não. — Chacoalhei a mão no ar. — Dispenso.
— O.K. Então vá pelo almoço. Eu tenho certeza que todas nós
vamos gostar de te receber lá… E podemos aproveitar para relaxar
um pouco. Temos uma outra festa de fraternidade hoje à noite, afinal
de contas.
— Dispenso a festa, mas a comida parece uma boa ideia,
mesmo. — Seria uma grande economia.
E eu também gostava das garotas da Kappa Phi.
— Ah, hoje é o dia da festa da Deltha. O tema é casino. Sempre
é incrível.
Eu ri, fechando a mochila. Saímos da cafeteria e caminhamos
juntas até a Kappa Phi, enquanto ela bebia longos goles do café que
havia pegado antes de sairmos do lugar, dizendo que precisava de
um pouco de cafeína para manter-se em pé.
Assim que chegamos na casa, pude ver que a bagunça da festa
ainda estava pelo lugar. Bella disse que as garotas precisavam
repor as energias antes de limpar tudo, por isso, o almoço. Deixei
minhas coisas na cozinha, que parecia menos caótica do que a sala
e aparentava ter sido organizada, um pouco, pelo menos.
Acompanhei Bella até a porta dos fundos e saímos para a área
externa. Poucas garotas estavam na piscina retangular e gigante
acompanhadas de uns três garotos claramente atléticos, no entanto,
meus olhos fixaram-se em uma menor, que me lembrava uma
jacuzzi, próxima ao quiosque.
— Ayla! — gritou Olivia, de dentro da piscina menor, e
chacoalhou a mão no ar.
Bella logo voltou para dentro da casa, murmurando que ia
procurar por alguma roupa de banho e segui até Olivia. No entanto,
parei a caminhada por breves segundos, próxima ao quiosque
quando avistei Hugo próximo a churrasqueira, e Kian, ao seu lado.
Ele vestia um calção preto, camiseta da mesma cor, e tênis all
star. E mesmo usando óculos escuros tipo aviador, eu tinha absoluta
certeza que me observava. Os pelos dos meus braços e o tremor
que se espalhou por cada parte da minha pele não me deixavam
dúvida.
Ele estava sentado, próximo a Hugo, descansando o cotovelo
no braço da cadeira e segurando o queixo de modo analítico.
— Bella te encontrou perdida no campus?
Virei meu rosto para Olivia. Tomei um pouco de ar e continuei
caminhando até ela.
— Sim. Após uma aula entediante de Sociologia.
— Uhhh… sinto muito. — Ela riu e, depois, nadou até a beirada,
colocando os braços no deque de madeira.
Olivia empurrou os óculos de sol para cima, deixando-os no
meio dos cabelos castanhos e olhava diretamente para Hugo e
Kian.
— Ei, Kian, talvez seu anjo da guarda esteja aqui, uh.
Virei meu rosto na direção do rapaz.
— Do que você tá falando?
Olivia pegou impulso e saiu da água, revelando um biquíni
vermelho minúsculo. Ela caminhou até o quiosque e mordi o interior
da bochecha ao constatar que precisaria me juntar a Kian e Hugo, e
que ambos estavam sozinhos ali.
— Kian está com um probleminha na Seven — Hugo disse, e
depois me lançou uma piscadela com um “bom dia”.
Hoje ele parecia mais próximo do garoto que conheci no
primeiro dia na Universidade de Kardama, já que usava vestes
despojadas: um calção jeans e camiseta do time de futebol
americano São Francisco 49ers.
— Está precisando de mãos mágicas — Olivia disse, indo até
um dos freezers diagonais e abrindo-o.
Apanhou uma garrafa com água e depois bebeu um gole. Fiquei
observando seu movimento, já que ninguém mais disse nada.
— O serviço que você fez com a fraternidade, de impulsionar o
marketing, seria bem-vindo para a Seven — ela explicou.
— Não preciso que vocês abram a minha vida profissional para
uma completa estranha — Kian rosnou, irritado.
Cruzei os braços, na altura do peito e o ignorei.
— Uh, ah, é? Qual é o problema com a boate do cão raivoso aí?
Hugo engoliu uma risadinha, enquanto Olivia não se esforçou
tanto. Não evitei uma olhada para Kian, que parecia pronto para
pular em meu pescoço a qualquer minuto.
— A boate comemora três anos de fundação no Halloween
deste ano, ou seja, o faturamento está começando a render agora.
O local já se pagou, mas precisa de um fluxo maior de festas e
dinheiro para crescer — ela explicou.
— Olivia…. — Kian ameaçou, baixo.
— O negócio estagnou e ele precisa fazer mais dinheiro —
Olivia continuou a falar, ignorando o amigo e me fazendo sorrir. —
Apesar de Kian ter um sobrenome de peso na cidade e facilidade
com os universitários, precisamos chegar no público da elite da
cidade.
— Não sei bem, mas um plano com eventos mistos parece uma
ótima solução — exemplifiquei, e Olivia estalou os dedos,
apontando para mim enquanto olhava para Kian.
— Viu? Eu disse. Ela é genial.
O moreno apenas riu de lado, como se a ideia fosse absurda.
Olivia bufou, caminhando até mim e segurando em meu braço.
— Vamos até lá dentro buscar os hambúrgueres veganos para
você e as garotas. — Ela me puxou, me levando consigo.
No entanto, acabei ouvindo Kian fazendo uma piadinha sobre
minha opção alimentar, o que me deixou um pouco mais irritada
com ele. Céus, o garoto era um pé no saco.
— Hugo parece uma pessoa tão incrível. Ele não consegue
passar um pouco do seu estado de espírito alegre para o mal-
humorado do Kian?
Olivia me olhou por cima do ombro e riu. Entramos dentro de
casa e caminhamos na direção da cozinha.
— Eu sei que ele pode ser um pouco… complicado — disse,
abrindo a geladeira, e então, parou e virou o corpo para mim. — Ah,
meu Deus, ele foi um babaca contigo ontem, não foi? Foi por isso
que você foi embora daquela forma?
— Só um pouco — menti, com um sorriso de duplo sentido nos
lábios.
Olivia rolou os olhos e começou a buscar os hambúrgueres na
geladeira.
— Argh. Vou matá-lo! É por isso que ele não tem um círculo
social muito amplo e nem uma namorada…
Apoiei o quadril na bancada de mármore ali.
— Ele não namora?
— Ah, não — ela grunhiu, colocando os pacotes de
hambúrgueres ao meu lado. — Ele realmente não é bom com a
interação social. Além de amiga de infância, sou sua colega de
turma no direito. Estamos no último ano e se ouvi sua voz na sala
de aula mais de dez vezes, foi muito.
— E por que todo mundo é gamado nele? Quer dizer, você
mesma me disse isso.
— Ele é do tipo bad boy. A pinta de cara mau chama atenção,
sabe? Além do dinheiro dos Wilding, óbvio. Ele, eventualmente, tem
alguns casos. As garotas caem em seu colo e ele não tem muito
que conversar e fazer floreios.
— Eu até achei que… hum… — Mordo o polegar, olhando para
Olivia com receio. — Vocês tinham algo. Ontem na festa vocês
estavam no canto e você fala tanto dele…
Olivia riu, gargalhando. Depois, negou com a cabeça.
— É sério? Não… ontem ele estava falando comigo, sobre…
hum… algumas coisas das nossas famílias. Negócios. — Ela riu
nervosamente. — Mas não, definitivamente, não. Hugo é o amor da
minha vida.
Sorri com os lábios apertados, curiosa com o motivo da
conversa sussurrada dos dois.
— Relacionamentos abertos funcionam, tá?
— Para mim, não, O.K. — estalou, batendo em meu ombro. —
E Kian é possessivo com as suas coisas. Nunca teve uma
namorada, mas tenho absoluta certeza que não gostaria de dividir
uma mulher.
— Não me surpreendo que ele nunca tenha tido uma namorada.
Quem aguentaria aquele antipático dos infernos?
Olivia pegou os hambúrgueres e saímos em direção da porta
dos fundos mais uma vez. Então, lembrei-me do dia anterior,
quando Kian falou sobre mim e soubesse que eu não morava na
cidade.
— Você chegou a... hum, falar algo sobre mim? Ontem quando
nós conversamos Kian parecia saber que eu não sou da cidade, e…
— Sim, claro. Ele é meu melhor amigo, então o trabalho dele é
me ouvir. Ele perguntou sobre a ideia da rede social e falei sobre
você. Tipo, tuuuudo. Ele é um bom ouvinte.
Quando tocamos o deck de madeira dos fundos, ela parou.
— Droga. Esqueci as espigas de milho para o churrasco.
— Eu pego — avisei, dando meia volta e indo na direção da
cozinha sem pensar muito.
Quando entrei no cômodo, acabei rindo, porque não me sentia
em casa fazia muito tempo. Mesmo durante os dois anos em Nova
Iorque, eu ainda não estava totalmente confortável. Agora, em
Kardama, eu não me sentia tranquila por nenhum segundo. Então,
pareceu muito cômodo voltar e pegar algo na geladeira. Balancei a
cabeça em negação com a constatação.
Ao chegar na cozinha, encontrei Julie retirando um prato
coberto por papel filme da geladeira. Pareciam restos de alguma
refeição.
— Oi — cumprimentei e ela retribuiu, avistei as espigas em uma
fruteira e me aproximei para pegá-las. — Por que você não vai com
a gente para a piscina? Hugo está preparando hambúrgueres e eles
parecem mais apetitosos do que os restos do dia anterior. — Eu ri e
ela também. — E claro, o Kian tá lá só sendo uma nuvem preta
atrapalhando o sol em um dia de piscina.
Definitivamente, eu estava me sentindo em casa.
— Ah, não, hum… — Ela gemeu.
Peguei os milhos e olhei para ela, um pouco confusa.
— Não sou muito fã do Wilding —respondeu, torcendo o nariz.
— Ele quebrou seu coração, uh? — sondei, um pouco curiosa.
Julie fez uma careta e negou com a cabeça.
— Definitivamente, não… — completou, retirando o plástico do
prato e colocando no micro-ondas. — Sabe, eu gosto muito da Liv e
do Hugo, mas… O Kian não é uma boa pessoa. — Ela apertou os
botões do painel com certa força, me fazendo ficar em alerta.
— O que ele fez para você?
— Não é o que ele fez, mas sim o que ele faz na Seven —
disse, categórica, claramente encerrando o assunto.
Era visível que o assunto Kian Wilding era complicado para
Julie, então, não insisti. Apenas fiz uma anotação mental de não
esquecer isso e, talvez, perguntar a Olivia o motivo disso.
Segui para a porta da saída. No entanto, no meio do caminho,
acabei esbarrando em algo. Ou melhor, em alguém, fazendo meus
braços caírem em busca de apoio. Encarei os milhos rolando pelo
chão.
— Você não olha para onde anda?
Levantei o rosto, já sentindo meu rosto ficar quente. Era ele.
Óbvio que era ele.
— Te pergunto a mesma coisa, estúpido! — Grunhi, sem
ponderar o tom de voz.
Enquanto me abaixei para pegar os milhos, ouvi uma risadinha
de escárnio dele e observei algumas cabeças das garotas na
piscina virarem na nossa direção.
— Agora vamos mostrar a todos como é nossa interação, uh?
Sem segredinhos? — ironizou ele.
Sorri, levantando-me com os itens do chão. O encarei,
levantando o queixo para alinhar meus olhos aos seus, já que ele
era bem mais alto.
— Convenhamos, querido… Quem começou com o segredo, se
eu bem me lembro, foi você. Está mesmo desejando algo comigo,
não é? — Dei um passo em sua direção e sorri. — Tão miserável
que deseja a mínima interação. Está querendo ganhar a minha
atenção, Wilding?
Não dei chance para sua resposta. Sai dali, indo direto para o
quiosque. Desta vez, não era eu que estava indo embora, mas, sim,
ele. Após responder Olivia, que perguntou se Kian havia sido
inconveniente novamente, ouvi a porta da frente da casa bater e o
ronco do motor de um carro soar de maneira feroz pela rua.
— Então, ele está precisando de uma ajuda no marketing da
Seven?
— Total — murmurou Olivia, montando os hambúrgueres com
pão e salada. — Ele nem ao menos tem uma rede social para a
boate, acredita?
— E como ele vende ingressos e anuncia as festas? Ah,
espera… Método antigo? Boca a boca e panfletos?
Ela me olhou de uma maneira culpada, abriu a boca para falar
algo, mas, então, a fechou. Apenas concordando. Eu já sabia um
pouco sobre isso, afinal, fiz muitas buscas sobre Kian e sua família.
— Até parece que ele não quer que o lugar seja conhecido na
web. — Dei de ombros, analisando as possibilidades.
Na real, era no mínimo suspeito, mas facilitava meu trabalho.
Tinha um trunfo para me aproximar da família Wilding, e precisava
colocá-lo em prática o mais breve possível.
Não deixei de sorrir em nenhum momento daquela tarde na
piscina.
Talvez eu tivesse agido de uma maneira muito intrometida
quando perguntei a Olivia sobre a próxima festa na Seven, a qual
aconteceria em algumas semanas. Ela me entregou um panfleto feio
e sem harmonia alguma. Me perguntei quem era o designer
contratado para fazer aquilo e ri.
E talvez também tenha agido de forma impulsiva quando passei
a noite redesenhando o panfleto da Apocalypse - a tal próxima festa.
Escolhi uma paleta de tons bordô e marrom para o desenho do
fundo, e as letras da festa ficaram entre dourado e prata, com
sombreado preto. Tudo estava indo bem. Pensei em apresentar o
plano de divulgação da festa online para Kian, com uma projeção de
site para atingir as cidades ao redor de Kardama, mas então…
— Você viu o perfil da Seven no Instagram? — uma garota
perguntou ao colega, na minha frente na fila da cafeteria.
Sorri com o comentário.
A garota de cabelo rosa levantou o telefone e mostrou para o
colega a página que eu havia criado e alimentado.
— Incrível, não é? Já tem mais de cinco mil seguidores!
O.K. Talvez eu tenha promovido um único post, o da festa, para
atingir um número maior de pessoas. Mordi o interior da bochecha,
torcendo que aquilo chamasse atenção suficiente de Wilding.
Peguei um capuccino com leite de amêndoa e saí do lugar,
ajustando a mochila nas costas. Enquanto caminhava pela calçada,
na direção do ponto de ônibus, apanhei o telefone e busquei pelo
aplicativo de mensagens.
Beberiquei a bebida quente e rolei a barra, atrás de algum sinal
de vida de Olivia. Eu sabia que no instante que ela descobrisse,
saberia que fui eu. Provavelmente, ainda estava dormindo e de
ressaca da festa da fraternidade Deltha de ontem à noite.
Sorri para mim mesma, já que Hugo ficaria feliz com o fato de
que tirei o brilho do dia seguinte da festa da fraternidade que não
era sua favorita com a notícia no Instagram da Seven.
Distraída com o aparelho telefônico e meu café, não notei que
ouvi uma voz estridente gritava “cuidado”. O som era apenas um
eco distante, mas levantei o rosto, um pouco nervosa quando ouvi o
ronco de um motor.
Um motor que ouvi no dia anterior.
Congelei na calçada quando o antigo Mustang GT freou
bruscamente e deu uma meia volta na pista, parando sobre a
calçada e em minha frente. Meu cabelo voou para trás. O carro
parou tão próximo que podia sentir o calor da lataria em minhas
pernas moles.
Eu estava trêmula e o copo de café escapou da minha mão,
enquanto meu coração batia forte em meus ouvidos.
Mas que diabos? Esse carro quase me atropelou! Ee eu estava
em cima da calçada!
No entanto, tremi mais ainda quando Kian Wilding surgiu de
dentro do carro, parecendo pronto para me matar. Seus olhos
estavam transmitindo toda sua fúria. Minha boca ficou subitamente
seca e o telefone resvalou na minha mão. Bloqueei a tela e guardei
o aparelho no bolso de trás do jeans. Mais uma vez, meu instinto de
fuga estava em alerta perto de Kian.
Enquanto ele contornava o carro, pela frente, eu só queria
correr. Dei um passo para trás, pronta para a fuga. No entanto, me
repreendi quase no mesmo instante. Não era isso que eu queria?
Chamar a sua atenção? Conseguiu, Ayla.
Agora, eu sofreria as consequências disso.
— Sabe qual é o problema de pessoas que se metem onde não
são chamadas, Ayla? — ele disse, aproximando-se como um
predador. — Elas se machucam. Muito.
Levantei meu queixo e coloquei uma mão na cintura, decidida a
manter uma postura firme e confiante.
— É mesmo?
Ele parou em minha frente, a centímetros de distância. Notei as
pupilas pretas um pouco mais dilatadas do que o habitual, quase
não dando espaço para o castanho de sua íris.
Ele ofegava em fúria e, apesar disso, meus olhos pairaram
sobre os fios desordenados dos seus cabelos e as pequenas
sardinhas no nariz.
— Acho que a palavra seria obrigada. Pelo trabalho gratuito,
pelas horas de dedicação e…
— Foda-se, garota! — rugiu contra o meu rosto, em um grito,
dando um passo para perto de mim, me fazendo recuar — Não pedi
nada para você! — ele continuou caminhando em minha direção e
eu para trás, até que lataria do carro bateu em minhas costas. —
Pelo contrário, pedi para se manter longe. Qual é o seu fodido
problema, garota?
Fechei os olhos quando ele bateu com as mãos espalmadas no
teto do carro, ao lado do meu rosto, fechando-me contra o veículo.
Agora, era eu que estava ofegante. Um pouco apavorada. E
sentindo o calor do seu corpo ao redor do meu.
Abri os olhos e trinquei o maxilar. As pessoas pararam nas
calçadas e observavam aquela cena, provavelmente também
assustadas. Notei que, no entanto, ninguém interviu. Ele estava,
praticamente, me ameaçando aos quatro ventos e usando atitudes
violentas comigo e ninguém fazia absolutamente nada.
Qual é desse cara nessa cidade? As pessoas realmente o
idolatravam tanto para não interferir em algo assim?
Molhei meus lábios e concentrei meus olhos no seu peito
musculoso, escondido pela camiseta. Kian estava levemente
inclinado em minha direção, fazendo com que a gola da camisa
ficasse um pouco mais frouxa e me desse uma visão do pedaço de
pele do seu peito… que parecia coberto por uma tatuagem.
Pisquei algumas vezes, tentando me concentrar.
— Pensei que seria interessante te mostrar que você pode
ganhar o que quer se me deixasse ajudar — falei, calmamente,
controlando meu tom de voz. Lentamente, levei meus olhos até os
seus, que ainda pareciam impassíveis. — Preciso de dinheiro para a
faculdade e me manter em Kardama. Não estou tentando me
aproximar de você.
— Não é o que parece, querida.
Ele respirou forte contra meu rosto, bagunçando os fios do meu
cabelo solto. O embate visual não se quebrou, até que uma voz
surgiu, próxima demais.
— Epa, epa… O que temos aqui? uh?
Era Hugo. Ele tinha um tom apaziguador e senti uma de suas
mãos em meu ombro, a outra estava no de Kian. Hugo, literalmente,
empurrou o animal de cima de mim.
Desviei os olhos de Kian e voltei a respirar normalmente.
Hugo olhava para o amigo preocupado.
— Cara… você parecia pronto para… agressão física?
Kian arregalou os olhos e negou com a cabeça.
— Não — Kian disse, nervoso, e o vi escovar os cabelos para
trás. — Eu não ia… bater nela. Nunca — suas palavras saíram
atropeladas.
Aproveitei o momento de sutileza e olhei para seu rosto. Ele
estava me olhando, ainda daquela forma perturbada, mas havia algo
a mais ali. Vulnerabilidade, talvez?
Ele desviou do meu rosto, olhando para Hugo.
— Você sabe que eu jamais faria isso.
— Eu sei. Mas é o que todos estavam falando e vendo —
constatou o loiro, finalmente olhando para mim. — Tá tudo bem
aqui?
Engoli em seco e cruzei os braços, aproveitando que ainda
estava encostada na lataria para não vacilar as pernas. Apenas
neguei com a cabeça, cansada de manter a pose neste momento.
— Fiz uma coisinha usando o nome da Seven e Kian está um
pouco… descontrolado.
— Ah, é? Agora eu sou descontrolado? Você usa o nome do
meu negócio para algo que não foi autorizada e eu sou o
descontrolado?
Abri a boca para lhe responder, mas meus olhos prenderam-se
a um homem que descia de uma moto preta e grande, ao nosso
lado. Ele retirou o capacete escuro e desceu, sem muita cerimônia.
Seus fios de cabelo grisalhos contrastavam com pequenas
marcas de expressão no canto dos olhos, mas, apesar disso, seu
porte físico era digno de um atleta. O homem tinha maxilar quadrado
e olhos em tons semelhantes aos de Kian.
— Israel, ainda bem — Hugo disse, parecendo aliviado. —
Desta vez, ele passou dos limites. Precisamos colocar uma coleira
em Kian! — Esta frase saiu com certo humor.
Kian olhou feio para o amigo e depois desviou para o tal Israel.
— O que tá fazendo aqui? — Wilding falou, seco.
— Estúpido — sussurrei, não controlando as palavras.
Agora, Kian me encarava com um pouco mais de fúria. Apenas
rolei os olhos.
— Todas as vezes que você sai do escritório furioso, faz alguma
besteira. E como o motivo, desta vez, não era quem geralmente te
deixa insano, resolvi impedir, mas… parece que temos um problema
aqui.
Os olhos do homem caíram em mim. Tinha algo sobre a forma
que ele me olhava. Curioso, mas interessado.
— Oi, querida. Eu sou o Israel… você, provavelmente, é a Ayla.
Sorri, não evitando o tom irônico em seguida:
— Sim, sou. O Kian já falou de mim para você?
O homem riu.
— Claro. Ele gritou seu nome como se fosse uma maldição.
— Tão romântico…
Israel riu, e depois virou o rosto para Kian, desfazendo os traços
divertidos, tornando-se sério.
— É melhor irmos, ou podemos colocar em risco sua imagem. É
só alguma dessas pessoas presentes fazer um vídeo ou foto e
mandar para aquele jornalzinho de merda, que eles adorariam uma
manchete sensacionalista contra os Wilding. Então, acalme-se e
vamos embora.
Olhei ao redor. De fato, alguém poderia ter feito isso. Apesar
que eu duvidava muito, já que o infeliz fez o que fez e ninguém
interviu.
— Tudo bem. Mas ela vem junto.
Virei meu rosto para Kian, que havia acabado de falar.
— Não — rebati, firme. — Você não manda em mim. Não vou
em nenhum lugar com você. Você pode me matar! Quase me
atropelou!
Minha voz saiu um pouco descontrolada. Fiquei um pouco mais
irritada quando vi a sombra de um sorriso nos lábios de Wilding.
— Vamos resolver isso em um local seguro e longe de curiosos
— Israel interviu. — Müller, você tá de carro?
— Sim — respondeu Hugo, respondendo ao sobrenome.
— O.K. Vamos todos para a Seven.
Desencostei da lataria do carro de Kian. Marchei para onde
Hugo dizia, sem direcionar meus olhos a nenhum dos presentes e
muito menos ao responsável por toda aquela cena.
Pelo menos, eu havia conseguido o que tinha desejado e,
agora, precisaria enfrentar a ira do próprio diabo em seu covil.

Quando imaginei entrar no escritório de Kian Wilding, nunca


pensei em algo parecido das atuais circunstâncias. Agora, no claro,
a decoração aparecia melhor e eu conseguia captar cada detalhe.
As paredes pintadas de preto. Os móveis escuros e um tapete
vermelho sangue. Passei os dedos pela minha franja a balançando,
um pouco nervosa e desgostosa de estar em uma sala com mais
três caras.
Kian estava sentado na sua cadeira, atrás da grande mesa.
Israel estava parado próximo a porta e Hugo estava no sofá que
havia ali, com os cotovelos apoiados nos joelhos. Seu semblante de
garoto divertido tinha dado lugar a um garoto sério, que observava
Kian atentamente, enquanto o moreno encarava-me.
— E, então, você pode me explicar que porra é aquela? —
disparou Wilding, esperando por uma resposta.
Ajeitei a minha jaqueta bomber fina.
— Eu achei que poderia ajudar, tá?! Não fiz por mal, queria
realmente ser prestativa — comentei. — E já que você parece não
querer dar brecha pra nada, resolvi te mostrar.
— Péssima ideia — rosnou com um sorriso diabólico em seu
rosto, ainda em fúria.
Dei graças aos céus por ter uma mesa entre nós. Ele parecia
pronto para fazer uma besteira. De novo.
— É mais fácil pedir perdão do que permissão.
Uma risada ecoou pelo ambiente e me virei para Israel, que
finalmente caminhava pelo local, indo até Kian.
— Bonita, inteligente, gostei dela — declarou o mais velho,
pegando a referência, o qual descobri, durante a carona com Hugo
até ali, que era tio de Kian, irmão mais novo do pai dele. — Vamos
deixar uma coisa clara aqui, crianças: sim, você deveria ter pedido
permissão. — Seus olhos castanhos profundos como os do
sobrinho, repousaram sobre mim, mas era uma repreensão bem
mais leve do que a de Kian. — Mas não foi de todo mal, se a conta
tem mais de cinco mil seguidores em menos de vinte e quatro horas,
talvez isso possa nos ajudar a ganhar mais dinheiro. O que nunca é
um mau negócio. — Havia sarcasmo ali, estava escrachado, porém,
ele parecia que cederia muito mais fácil do que Kian. — Vamos ver
os números, passarinho.
Uni meu cenho e fiquei um pouco séria com o apelido, mas
decidi não questionar e mostrar o resultado positivo do que tinha
feito. Puxei meu celular e me aproximei da mesa, coloquei os
insights da conta, mostrando o que tinha acontecido nas últimas
horas com apenas algumas poucas postagens e um marketing que
prestasse.
— Não vou falar que toda a imagem de marketing que estava
sendo usada antes era horrorosa de feia, visualmente falando —
comecei a falar, recebendo um olhar mortal de Kian, quase gritando
para que eu parasse de ser insolente. — Certo, falando sobre o que
interessa: nas últimas horas, desde que o perfil entrou no ar
batemos não só cinco, mas vinte mil pessoas, a maioria residentes
de Kardama ou cidades ao redor. Várias mensagens questionando
sobre ingresso para a sua próxima festinha e muitas pessoas
repostando e marcando que estarão presentes.
Ele respirou fundo, algo como se procurasse por calma. Seu
tipo me parecia do que não daria o braço a torcer, mas algo em sua
postura me dizia que ele tinha gostado do que ouviu.
— Fiz os ingressos da festa da Kappa acabarem em doze
horas, posso fazer as festas aqui explodirem, eu juro.
Israel sentou-se no canto da mesa e me encarou com
seriedade.
— De onde você é, passarinho?
— Hm, Canadá, cheguei faz pouco tempo na cidade.
— Hm…
Sua postura era séria, então, ele cruzou seus braços,
mostrando um deles cobertos por tatuagens.
— Conheci Olivia no primeiro dia de aula quando ela,
basicamente, jogou um copo de suco em mim, depois... Hugo e,
consequentemente, esse ser humano… — Apontei para Kian com a
mão. — Ele e todo o mal humor dele.
— Você veio até mim.
Rolei meus olhos, lá vinha ele com aquele papo de minha
desculpa ser mentira. E era mentira, mas não podia deixar que ele
soubesse disso. Não podia deixar que nenhum deles soubesse.
Ajeitei a minha postura e acabei por sentar em uma cadeira,
precisava fingir estar confortável com o que estava clamando ser
verdade.
— Eu estava bêbada e perdida.
Cruzei minhas pernas. Estava incomodada em estar ali, me
sentia vulnerável. Eles não poderiam me pegar na mentira, caso
isso acontecesse, eu estaria ferrada.
— Ela deu em cima de você, foi isso? — Israel questionou,
curioso.
— Não! — gritamos juntos.
Israel jogou as mãos para o ar, como se não fosse nada e riu.
— Tinha uma fila enorme no banheiro e achei que poderia achar
algum banheiro de funcionários por aqui, acabei parando na porta
do escritório, onde o seu sobrinho ficou rosnando feito um cão
raivoso pra mim — declarei, como se fosse a coisa mais natural que
poderia sair dos meus lábios.
A pose séria deu lugar a uma risada de Israel, que bateu palma
e jogou a cabeça para trás.
— Ele é horrível com relações humanas — declarou, recebendo
um cutucão de Kian com uma caneta, o que tornou o clima um
pouco menos ruim.
Sorri fraco junto, sentindo um peso menor em meus ombros.
Ouvi algo se movendo e logo Hugo estava de pé, encarando o
próprio celular.
— É, eu vou indo, combinei de almoçar com a Liv — avisou. —
Kian, não pire. Israel, tô confiando em você pra não rolar um
assassinato aqui. E, Ayla — Ele abriu um sorriso, o primeiro desde
que entrou no escritório —, arrasou. — Uma piscadela ficou no ar
para mim. Seus passos foram para fora da sala e logo não ouvimos
mais nada do loiro.
Voltei minha atenção aos outros dois homens. Sentindo um
pouco mais de tensão em ficar sozinha com dois Wildings na
mesma sala. Os dois se encararam por um momento e pareciam
conversar em silêncio, mas logo Israel voltou a falar:
— Olha, o chefe aqui é o fedelho do meu sobrinho e, Ayla, você
o irritou — declarou levantando-se enquanto passava as mãos nos
cabelos castanho-grisalhos. — Você sabe o que faz, Kian. A decisão
final é sua, mas acho que a garota tem o que acrescentar por aqui.
— Quer entregar alguma coisa da boate na mão de uma
estranha?
— Se isso trouxer mais dinheiro sem precisar de uma agência
por trás, por que não tentar?
Havia uma tensão palpável no olhar de Kian, enquanto Israel
tentava parecer mais tranquilo. Levei meus dedos até o colar que
estava em meu pescoço e mexi um pouco no pequeno pingente de
madrepérola em formato de folha que havia ali.
— Ela é uma estranha.
— Ela é uma pessoa — Israel repetiu, deixando quase uma
frase no ar, tive a sensação que continuaria, mas parecia que
aquelas eram todas as palavras que deveriam ser proferidas, me
deixando um tanto confusa.
A troca de olhares entre tio e sobrinho levou mais alguns
segundos apenas. Naquele instante, a porta foi aberta. Uma garota
de cabelos raspados e alguns piercings no rosto colocou a cabeça
para dentro.
— Uh, Israel?
O homem mais velho fez um movimento para ela continuar a
fala.
— Algumas pessoas estão ligando e procurando pelos
ingressos da Apocalypse. Nós ainda não estamos vendendo, não é
mesmo? Enviei o arquivo da impressão dos ingressos para a gráfica
ontem.
Bufei uma risada e mordi o lábio, virando-me para a frente.
Encarei o rosto impassível de Wilding transformar-se em fúria. Ele
desceu os olhos até os meus e não evitei um arquear de
sobrancelhas presunçoso.
— Posso sugerir uma reserva de ingressos? Como, por
exemplo, pré-venda com um preço mais acessível. Esgotaria mais
rápido…
Israel olhou para Kian, que mesmo contrariado, trincou o maxilar
e fez um movimento positivo com a cabeça.
Bingo.
Depois que a porta foi fechada, uma risada curta e sem graça
escapou dos lábios de Wilding. Ele levantou-se e deu a volta à
mesa, passou por trás de Israel e prostrou atrás da cadeira em que
eu estava. Suas mãos caíram nos braços das cadeiras de madeira e
almofadadas no assento. Logo senti sua respiração na minha nuca.
Ele estava próximo, e isso fez meu corpo ter uma reação. Arrepiei e
a pior parte foi que ele notou, porque riu fraco.
— Avisei pra ficar longe, Ayla — ele começou. — Você é
teimosa pra caralho e eu odeio gente assim. É impulsiva e isso é um
puta de um problema.
Sua respiração continuou a tocar a minha pele, arrepiando meu
corpo. Apertei os dedos nos braços da cadeira estofada, engolindo
um pequeno suspiro.
— Mas… — Israel o incentivou.
O ouvi rosnar nos meus ouvidos.
— Mas fez algo que preste, reconheço.
Forcei-me a tentar abrir um sorriso, mas não consegui fazer
nada que não saísse meio afetado. Ele me deixava nervosa e eu
fiquei puta da vida comigo mesma por isso. Kian era intimidante,
precisava aceitar esse fato e tentar ao máximo não me sentir
intimidada.
— Você pode cuidar dessa conta do Instagram, permito que
veja o site, reformule o design dele, mas quero relatórios semanais
das coisas e você longe da minha boate. Se tivermos resultados,
você ajuda e ganha um bom dinheiro. Mas… você não põe os pés
neste lugar fora do horário comercial.
Aquilo não fazia sentido.
Levantei-me o encarando séria.
— Me quer longe daqui?
— Sim, e vou te passar o e-mail da Seven pra você e qualquer
contato que precise, me envie por lá. Nada de telefones ou contato
íntimo. Eu apenas quero uma reunião quando for me entregar os
resultados em números, claro. — Ele sorriu de lado. — Associando
isso aos números de vendas.
Caralho, minha mente gritou. Kian parecia a porra da muralha
da China. Como que eu me aproximaria daquele cretino? Ele não se
dobrava, não cedia e estava bem longe de ser um mulherengo
exibicionista. Era reservado e afastava as pessoas. Senti minhas
mãos começarem a suar em nervosismo e as enfiei nos bolsos do
meu casaco.
Um suspiro escapou pelos meus lábios e deixei a expressão
séria, um tanto quanto mais leve. Não poderia parecer uma louca
desesperada por estar ali dentro. Ele já estava começando a me dar
algo, depois de quatro encontros com o diabo, ele começava a
ceder e isso era um começo.
— O.K. Como quiser. Mando um relatório no final da semana e
um site melhorado também.
— Em breve, falaremos sobre seu pagamento. No mais, está
dispensada.
Saí de perto dos dois e comecei a caminhar para fora da sala
sem sequer proferir uma despedida, não achei que seria necessário
e muito menos que Kian responderia de qualquer modo. Meus
passos foram calmos até que saí do escritório, quando cheguei no
corredor, acelerei, sentindo as pernas um tanto fracas, o nervosismo
intenso finalmente estava me atingindo após a dose de adrenalina.
Contudo, meus olhos tiveram a sua atenção captada por algo ao
fim do bar, onde havia uma porta aberta enquanto alguns homens
traziam caixas para dentro. Era bebida? questionei-me, mas logo
reparei na altura do papelão, era muito baixo, portanto, improvável
que fosse bebida.
Senti uma mão em meus ombros. Virei-me sobressaltada,
encontrando Israel ali.
— Venha, vou chamar um táxi para levá-la de volta ao campus,
passarinho.
Encarei-o e depois a porta de onde vinham as caixas.
— Mais bebidas para a próxima festa, uh?
Os castanhos do homem me encararam e um sorriso
presunçoso preencheu seus lábios.
— Passarinho, para viver aqui, tem que aprender a não fazer
essas perguntas.
O impacto daquela frase ecoou em minha mente. Senti meu
coração dar um salto enquanto meu estômago se apertava. Desviei
o olhar e encarei a porta da frente, por onde tinha entrado e deixei
que Israel me guiasse até a rua. Deixei que ele pedisse o maldito
táxi e que pagasse a corrida.
Estava me sentindo nervosa demais e precisava distrair minha
mente quando cheguei em casa. Então, fui até o estúdio de
tatuagens de Yue, que ficava no térreo do prédio. Abri a porta da
frente, e um sininho anunciou a minha chegada. O sopro de ar
gelado do ar condicionado me atingiu e agradeci imensamente por
isto.
Tocava um rock clássico ali, acreditava que fosse AC/DC.
Caminhei pela recepção, onde havia um sofá todo colorido, um
balcão escuro, alto e grafites pretos destacavam-se nas paredes
brancas. O aroma de desinfetante ou álcool era um pouco forte.
— Ayla! — A voz de Yue fez com que virasse em meus
calcanhares e a enxergasse, saindo de uma porta por trás do
balcão.
Seu sorriso era largo.
— O que faz aqui?
— O apartamento estava vazio e achei legal vir fazer uma visita
— comentei, dando de ombros e o seu sorriso se alargou ainda
mais. — Espero que não se importe…
Mal terminei a frase e ela já soltou:
— Não! Vou adorar a companhia. — Só então reparei em suas
luvas sujas de tinta, ela estava tatuando, afinal. — Espere no sofá,
daqui a pouco arranjo um desenho novo para você.
Não contive meus lábios, que se abriram um sorriso mais largo.
— Não, não vim com essa intenção. Além do mais, não posso
gastar com…
— É por conta da casa! — Yue interrompeu a minha tentativa de
não ceder a ideia de uma tatuagem nova. — Fique aí, vou só
terminar o que estou fazendo e já vemos você.
Inspirei o ar e assenti, enquanto ela voltava para a sala de onde
veio. À minha direita, havia um corredor com mais duas portas, onde
havia mais gente trabalhando. Assim que cheguei a Kardama, Yue
fez questão de me apresentar todo o ambiente, mas era a primeira
vez que vinha procurá-la aqui por conta própria; geralmente, me
mantinha no apartamento, em cima do estúdio.
Meus pensamentos foram roubados quando um dos tatuadores
que trabalhava ali com Yue apareceu com seu cliente. Sorri para os
dois e me dirigi ao sofá no canto direito.
Talvez eu precisasse de um rabisco novo para renovar as
energias.
Sentei-me e encostei minhas costas ali, sentindo um alívio
imediato, assim que a voz de Halsey preencheu o ambiente. Não
sabia como tínhamos saído de metal rock e caído na cantora.
Estiquei as pernas e logo senti o celular vibrando, mas não era
mensagem, era ligação. Peguei o aparelho no bolso traseiro do meu
short e vi o nome de Olivia ali. Droga, Hugo deve ter contado tudo o
que ouviu pra ela.
Respirei fundo, enquanto criava coragem para atendê-la.
— Alô?
A minha resposta veio em forma de um grito estridente. Afastei
o celular do ouvido e fiz uma careta.
— Quer dizer que o Seven tem uma nova marketeira, é isso
mesmo? — A voz de Olivia finalmente ressoou.
— É o que ouvi dizer entre grosserias e ameaças.
Ela riu do outro lado e pude ouvir que Hugo estava com ela,
porque sua voz surgiu fraca ao fundo. Mas logo o grito dele se
sobressaiu, enquanto Olivia claramente afastava-se do celular e
pedia para ele parar de gritar por um vídeo game.
— Ai, Kian é difícil, já disse. Mas, no fundo, é uma boa pessoa,
tenho certeza que ficará feliz trabalhando de maneira remota, sabe?
Sem precisar ficar indo na boate — ela declarou, voltando a nossa
conversa e me ative ao último comentário. O que tinha na Seven
para todos me tirarem de perto do lugar? — E então, como vamos
comemorar na festa da fraternidade de Hugo, hoje, uh?
Eu ri fraco.
— Querida, tenho que organizar todo o marketing de uma
festa… — brinquei, observando, pelo vidro da frente da loja de
tatuagem, a rua calma. — Podemos comemorar quando a festa for
um sucesso e Kian tiver que engolir seu orgulho para me
parabenizar.
Olivia gargalhou.
— Ai, Ayla, você é muito divertida, gosto de você — disse, com
a voz leve. — Se Kian a agradecer, por favor, vamos gravar esse
momento, porque isso será raridade. Contudo, tenho certeza que vai
fazer a festa ser um sucesso, Ay.
O que essas pessoas tinham com apelidos?
— Obrigada pelo voto de confiança… Liv… — Passei a mão
pelo rosto, fechando os olhos por um instante quando o apelido
soou.
— De nada, estou certa que vai dar absolutamente tudo certo,
vai ser um sucesso.
A agradeci novamente e, de repente, nossa ligação foi
interrompida por Hugo roubando o celular da namorada.
— Ei, Ayla! Estou orgulhoso do seu feito, estou feliz que o Kian
não te matou, mas agora vou roubar a atenção da minha gata,
porque, em breve, precisarei ser o anfitrião de uma festa cheia de
adolescentes enlouquecidos por álcool e insanidades. E só pra
deixar claro, você vai ficar me devendo uma se não aparecer!
E sem que eu pudesse responder, a ligação foi encerrada. Eu ri.
Como aqueles dois poderiam ser amigos de Wilding? Como explicar
duas pessoas tão solares e felizes sendo íntimas de uma pessoa
como Kian?
Meus pensamentos sobre aquilo foram interrompidos quando
Yue apareceu, na companhia do seu cliente até a porta. Era
engraçado que o homem tinha braços que nem se juntasse minhas
duas pernas dariam o tamanho, de tão grandes que eram. E era
absurdamente alto, algo que provavelmente passaria os dois metros
e Yue era mais miúda ao seu lado. O homem agradeceu a tatuagem
e saiu.
Yue pegou três álbuns cheios de desenhos, deixando óbvio seu
talento para o que fazia.
— Tem ideia do que quer? — ela perguntou, curiosa, olhando
para os desenhos assim como eu.
— Hm, acho que ainda não… — Pensei por um instante,
enquanto meus dedos passavam as páginas plastificadas. Até que
encontrei um desenho pequeno e perfeito. — Esse aqui! — Apontei,
virando o caderno para ela.
Seus olhos amendoados me alcançaram em uma clara e
silenciosa pergunta: tem certeza? Mas ela nunca verbalizou, só
concordou nos instantes seguintes.
Yue fez o decalque enquanto eu observava a rua e sentia um
pouco de vitória. Nada mais justo do que marcar isso na minha pele,
afinal de contas. Em algum lugar, havia um texto sobre nosso corpo
ser o nosso livro e as nossas tatuagens, as histórias dele.
Marcaria minha pele com o começo da pior delas: minha
chegada ao inferno de Kian Wilding.

O burburinho da máquina de tatuagem ecoava pelo local


enquanto mordia meu lábio e me concentrava em não me mexer por
conta da dor que atingia minha pele. Apesar da região da costela já
estar adormecida, conseguia claramente sentir a dor da agulha me
marcando.
De repente ouvimos uma batida.
— Toc, toc, posso entrar? — Era Tai.
— Entra! — avisei, seria bom me distrair um pouco da dor.
O corpo do outro Yang passou pela porta. Apertei um pouco o
tecido que cobria meus seios e olhei para o homem por cima do
ombro. Um calor espalhou-se pelo meu pescoço enquanto ele
avaliava meu corpo sobre a maca e rodeava.
— Tatuagem nova?! — brincou, levando seus olhos até os
meus.
Apertei um sorriso nos lábios ao observar sua roupa, um pouco
mais sérias (e cobertas) do que a última vez que nos esbarramos.
Usava uma camisa preta e jaqueta jeans escura, contrastando com
o tom claro da calça do mesmo material. Os cabelos longos
estavam presos em um rabo e um óculos de grau de armação
grossa pairava em seu nariz.
— Estávamos entediadas — respondeu Yue, limpando minha
pele com papel toalha. — E aí, como foi o dia? Mais problemas com
as Lopez?
Lopez? Meus ouvidos se aguçaram. Eu sabia o sobrenome de
Olivia por conta das minhas buscas. Apesar dela e Hugo nunca
terem me dito o nome das suas famílias, eu fiz um bom trabalho em
descobrir suas redes sociais e pesquisar o mínimo sobre eles dois.
Afinal, precisava de informações das pessoas que eu me
aproximaria para chegar nos Wilding.
A família de Olivia tinha um envolvimento grande com a política.
Sua mãe, até onde eu sabia, era prefeita da cidade. E também sabia
que Olivia tinha uma irmã mais velha, chamada Pietra. No entanto,
não tinha conhecimento além disso.
Tai riu e jogou seu corpo no sofá que havia naquela sala.
— Ah, o de sempre. Pietra é insuportável. Está tentando de todo
jeito impedir que a matéria volte ao ar. Mesmo com o pedido do
advogado do jornal, nós sabemos que os juízes deste lugar são
todos comprados — resmungou, com a voz levemente irritada. Ele
soltou os fios longos, lisos e massageou o couro cabeludo. — Uma
pena eu nem poder falar nada do nepotismo dela, já que está
trabalhando no escritório da prefeita, sendo que esta é sua mãe.
Yue riu.
— Eu acho que você é apaixonado por essa tal de Pietra —
debochou a tatuadora, e meus ouvidos captaram bem aquilo.
Fiz uma expressão de dor quando Yue voltou a encostar a
agulha em minha pele. Ela continuou seu trabalho e Tai riu, curto, do
comentário. Agora, seus olhos estavam na irmã, apoiada sobre meu
corpo pelas minhas costas.
— Ah, dá um tempo, Yue! — resmungou o jornalista, descrente,
mas, então, um sorriso ladino brotou em seus lábios finos. — O.K.
Não sou cego, Pietra é uma mulher bonita — Jogou as mãos para o
ar, em descrença. —, no entanto, é intragável com todo aquele
narcisismo… e todos nós sabemos que aquele esquema político
que está metida fede mais do que deveria.
Ele esticou as pernas, visivelmente cansado.
O relógio na parede apontava cinco da tarde, o que era cedo
para que Tai estivesse em casa. Na semana que estive ali, pude
notar que ele sempre chegava beirando às nove da noite em dias de
semana, e que voltava ainda mais tarde nos fins de semana.
Os olhos de Tai desceram novamente pelo meu corpo e Deus,
aquele olhar era absurdamente tentador. De repente, o ar
condicionado pareceu falhar, porque senti cada parte de mim
subitamente quente. Tentei manter o meu olhar nele, mas precisei
desviar; caso contrário, aquilo seria muito explícito. Eu precisava me
manter focada e não ultrapassar alguns limites. O flerte era
suficiente, mas o contato físico com uma possível peça do meu jogo,
parecia algo errado. Eu não estava disposta a cair em tentação
naquela cidade.
Mordi meu lábio e ele levantou. Aproximou-se da maca onde eu
estava deitada. Com sua altura não foi difícil de enxergar o que Yue
estava aprontando.
— Asas de anjo? — ele me questionou, curioso, mas foi sua
irmã que respondeu por mim.
— Mais chifres e rabo.
Ele soltou uma risada abafada.
— Estou subindo para tomar um banho — murmurou.
— Você faz a janta — anunciou Yue, com uma expressão
inocente. — Estarei trabalhando até tarde, maninho.
O rapaz rolou os olhos e saiu dali, anunciando que o prato da
noite seriam tempurá de vegetais, o que achei fofo, já que ele sabia
que eu não comia derivados animais.
— Então, aplicando muito das técnicas que aprendeu em Nova
Iorque no pessoal de Kardama? — perguntei a Yue, e ela riu.
— Não é como se esse lugar gostasse muito de cores.
Nós havíamos frequentado aulas de harmonização de cores por
um tempo, mas nunca pensei em tatuagens coloridas. De fato, todas
as minhas eram pretas.
— Você tatua há muito tempo neste estúdio? — perguntei,
olhando o lugar.
— Desde que me mudei para Kardama, há dois anos, esse é o
meu ponto — ela disse, arrastando a agulha em minha pele.
— É um lugar estranho, não é? As pessoas parecem meio
preconceituosas, mas, poxa, você colocou um estúdio de tatuagem!
— Eu ri.
Yue afastou a agulha de mim e eu a encarei. Ela parecia meio
séria, ou, talvez, incomodada. A garota suspirou e depois soltou o
aparelho no suporte.
— Eu e Tai nunca fomos bem vistos pela elite da cidade.
Quando ele recebeu a oportunidade de emprego para o setor
político do jornal, foi uma bagunça. A cidade é muito bem
organizada nesse esquema nojento e ele não tem muito medo de
falar nas manchetes, apesar das ameaças constantes…
— Tipo da tal Pietra?
— Dela, principalmente. A mãe dela é prefeita, então… imagine
só. — Ela sorriu de maneira triste. — Nós vivemos neste bairro mais
ou menos seguro, eu mantenho minhas finanças por tatuar,
geralmente, as pessoas com índole questionável ou a galera que
está estudando na UK.
— E existe uma divisão em Kardama? Quero dizer, você está
classificando a população em três grandes grupos: elite, estudantes
e os de índole questionável.
Yue sorriu, pressionando os lábios e voltando a pegar o
aparelho com a agulha.
— É isso mesmo, podemos classificar exatamente desta
forma… No entanto, existe mais um grupo — disse ela, enquanto
voltava a dar atenção a tatuagem.
Esperei que ela continuasse, mas Yue manteve-se em silêncio.
Então, questionei:
— E qual é o quarto grupo?
— Os que governam a cidade — ela resumiu, finalizando o
desenho e levantando da sua cadeira.
Fiquei parada por alguns instantes, observando Yue guardar
seus materiais em silêncio, completamente intrigada com a frase
mal acabada.
Eu havia feito o que Kian me pediu. Me mantive longe dele e
também da Seven. Trabalhei todos os dias em home-office e os
ganhos estavam sendo melhores do que o esperado.
De tanto bom humor fui até em um dos jogos da fraternidade de
Hugo. Foi um jogo de futebol americano amistoso contra a
Universidade de Wolfsview. O que me restou uma confusão com
duas garotas mal encaradas que arrumaram encrenca comigo e
Olivia. Bom... comigo. Já que Liv tentou apaziguar a situação.
E apesar de estar em frequente contato com o e-mail da Seven,
tinha certeza que era Israel quem os respondia. Kian não poderia
ser meramente humano para colocar “Bom dia” no início de
qualquer texto.
Neste período, frequentei a Kappa Phi mais vezes do que pude
contar. E eu estava gostando daquilo. Não se tornou nem um pouco
trabalhoso ter meus encontros com Olivia, já que todas as garotas
da fraternidade estavam dispostas a me colocar no time de maneira
não-oficial. Noites de filme com pizza, hidratação no cabelo e até
mesmo piscina em um dia que fez muito calor em meados de
setembro. Além de que também entendi melhor como funcionavam
as fraternidades. As festas, os grupos de estudo e trabalhos
voluntários pela cidade.
Junto com o trabalho e os encontros com as garotas, mantive
uma rotina de chamadas com papai. E apesar de tudo estar tendo
um rumo, me sentia ansiosa. Era como se meus planos tivessem
estacionado no meio do processo e eu não pudesse fazer muito
sobre aquilo. Meu caminho sempre foi chegar até Kian e me
aproximar o máximo possível. Não esperava, no entanto, que o
rapaz tivesse um coração de gelo.
Movida pela ansiedade, estava fazendo algo que Kian não
gostaria: ir até a Seven.
Não sabia, ao certo, se ele estaria por lá a tarde, mas precisava
fazer algo a respeito do meu plano, precisava sentir algum avanço.
Tinha ouvido Olivia falar que ele passava mais tempo no lugar do
que em sua própria casa, então, deduzi que estaria por lá sim. E
afinal de contas, a festa Apocalypse seria no dia seguinte. Ele teria
que receber algumas mercadorias ou sei lá o que.
Ajustei a pasta de impressões sobre o braço quando desci do
carro de aplicativo. Olhando para a fachada do lugar, de portas
lacradas e nenhum indício de pessoas, me vi arrependida de ter
vindo. O sol do início da tarde queimava em minha pele e semicerrei
os olhos, rondando o ambiente.
No entanto, meus olhos captaram uma mulher de cabelos ruivos
no estacionamento ao lado da boate. Ela parecia ter saído de
alguma porta lateral e logo movi meus pés na direção do lugar.
Antes que conseguisse chegar, de fato, a lateral da construção,
parei. Agora conseguia visualizar a porta em que a mulher havia
saído e, de lá, Israel surgiu.
— Stephany! — ele gritou, e a mulher virou-se para onde ele
estava.
Então, engoli em seco.
Aquela era Stephany Wilding, a madrasta de Kian. Tão bonita e
jovial quanto as imagens da internet. Ela vestia roupas elegantes em
tons claros, contrastando perfeitamente com os cabelos vermelhos
alaranjados.
Israel aproximou-se dela, que estava parada ao lado de um
carro prata. Os dois falavam baixo, e não conseguia ouvir
absolutamente nada. Bufei, frustrada. Aquela seria uma ótima
oportunidade de colher algo sobre Stephany Wilding, mas não
conseguia decifrar nenhuma palavra sequer. Nem o mover dos
lábios, já que ambos estavam bem próximos.
Apertei os dedos no plástico da pasta e marchei na direção da
porta em que Israel havia saído; no entanto, após alguns passos,
sua voz soou pelo lugar, me fazendo parar.
— Passarinho?
Virei o rosto para ele, abrindo o melhor sorriso que consegui.
— Ah, oi.
Ele estreitou os olhos, curioso.
— O que está fazendo aqui?
— Kian está lá em cima? — indaguei, referindo-me ao escritório.
— Preciso entregar alguns documentos para ele.
Israel me estudou por alguns segundos.
— Acho que ele não está te esperando…
O comentário soou mais como um aviso. Torci os lábios e deixei
meus ombros caírem em uma expressão visivelmente aborrecida, e
me aproximei.
— Acha que ele pode ser um estúpido comigo, de novo, por
querer mostrar os resultados do meu trabalho? — Pela expressão
em meu rosto, eu merecia um Oscar naquele momento.
Parei de frente para os dois. Não sabia se a conversa de ambos
era importante, ou se precisariam manter aquilo. No entanto, eu não
perderia aquela deixa.
Apesar de fazer meu jogo, estava nervosa. Stephany Wilding
era um dos meus alvos, querendo ou não. Ela fazia parte da família
de Kian e eu desejava que tudo, no fim, fosse como um tabuleiro de
xadrez quando é balançado: todas as peças caindo juntas.
— O que o meu filho fez para essa pobre garota, Israel?
Finalmente, deixei meu olhar cair sobre a mulher, agora, a
pouco mais de um metro de distância do seu corpo. As vestes eram
ainda mais elegantes de perto e o escapulário dourado no pescoço
era uma peça a se notar. Ela retirou os óculos escuros e me olhou
nos olhos. Os orbes verdes eram intensos e grandes e, apesar
disso, transmitiam tranquilidade. Ela cheirava tanto a dinheiro e
conservadorismo que me preocupei com o que seus olhos
captariam em mim. Meus braços expostos, e as pernas também,
mostravam vários dos meus riscos e rabiscos.
Não deixei de notar, no entanto, que a mulher havia acabado de
chamar Kian de filho. Aquilo era algo interessante…
— O de sempre, Stephany. Kian tem um problema sério em
fazer novos amigos… — Israel contou, entre uma risadinha. —
Apesar de que a Ayla que o provocou.
Rolei os olhos.
— Veja bem, estamos com todos os lotes de ingressos em pré-
venda esgotados, a página no Instagram passa dos cinquenta mil
seguidores e, ah, sem falar do número absurdo de
compartilhamentos das fotos.
Israel apenas deu de ombros, como se não entendesse muito
do que eu tinha falado, mas Stephany que me chamou atenção,
estendendo a mão.
— Oi, eu sou Stephany Wilding. A madrasta do Kian.
Apertei sua mão, e desejei que ela não conseguisse sentir que
estava suando.
— Ayla Brown, responsável pelo marketing da Seven.
— Desculpe pelo comportamento do Kian — ela pediu, em um
suspiro. E daquela mulher só pude ver doçura.
— Por que todos pedem desculpas pelo comportamento dele?
— indaguei, entre uma risada nervosa. — Tá tudo bem. Ele só é um
mal humorado dos infernos… — parei, arregalando os olhos na
direção de Stephany. — Ah, meu Deus, me desculpe!
Stephany era a cara da elite, como diria Yue. Então, ao soltar a
palavra inferno, me senti levemente mal, como se tivesse dito aquilo
na frente de papai ou Sandy. E para a minha surpresa, ela apenas
riu.
— Tudo bem. — Balançou a mão no ar. — Apesar de católica,
lido da melhor maneira possível com as palavras nada
convencionais no dicionário Cristão. Afinal, Kian fundou a Seven
com toda essa temática bizarra.
Apertei os lábios em um sorriso, mas logo meus olhos
desviaram do rosto dela, concentrando-se na expressão irritada de
Israel.
— Ah, que porra, olha só a confusão… — ele disse, já
movendo-se dali, na direção da boate.
Girei o corpo para que pudesse ver para onde Israel estava
olhando e indo, e meus olhos arregalaram-se quando vi Kian
caminhando atrás de uma mulher. Ela tinha pele em tom castanho
médio, contrastando com o cabelo longo, na cor preta e até próximo
da cintura, tramados em uma trança.
A mulher movia as mãos no ar, falando alto, em espanhol. Não
entendia muito da língua, mas, pelo seu tom, parecia irritada.
E mais uma vez, Israel estava indo tirar Kian de uma enrascada,
ao que tudo indicava.
— Pietra, volte aqui! — Kian rosnou, visivelmente irritado
quando ela parou ao lado da porta do motorista de uma camionete.
— Já disse que podemos lidar com as licitações sem problema
algum.
Meus ossos congelaram.
Aquela era Pietra, a irmã de Olivia e filha mais velha da prefeita.
Observei mais uma vez seu corpo. Ela era um pouco diferente
de Olivia, apesar dos traços semelhantes. Pietra era alta e
corpulenta, de uma maneira forte. O jeans justo nas pernas marcava
bem suas coxas avantajadas e consegui ver alguns músculos nos
braços, expostos por uma regata branca. Ela marchava com botas
de combate marrons e a trança no cabelo longo a deixava com uma
aparência ainda mais forte.
Vi o exato segundo que ela levantou um dedo na direção de
Kian e ele parou, próximo à frente do carro. O rapaz vestia jeans
escuros e camiseta no mesmo tom, e jogou os braços ao lado do
corpo, de costas para onde estávamos.
— Você está há dias para conseguir a porra dessa
documentação, Kian. Estou farta de depender de você para iniciar a
construção.
— Hunter Müller não parece tão desesperado para iniciar a obra
do centro de eventos. Até onde eu sei, os insumos nem ao menos
chegaram — ele soava irritado. — Deixe de ser uma cretina e
acalme seus ânimos! Vou conseguir a porra do documento até
semana que vem.
Eu não evitei bufar. Ele realmente era péssimo.
No entanto, meu estado de irritação passou a felicidade quando
vi a garota rebater na mesma moeda.
— Então pare de reclamar e faça seu trabalho! Semana que
vem eu volto no mesmo horário. Se você me enrolar com alguma
desculpa, vou chutar suas bolas.
Ela abriu a porta do carro e entrou no veículo, saindo dali
depressa.
Um pigarrear ao meu lado me fez lembrar que a madrasta de
Kian estava aqui. Eu a olhei, e ela balançava a cabeça em negação.
— Nem parece que ele é um doce com os irmãos.
Enruguei a testa e sorri.
— Me desculpe, mas não consigo imaginar isso.
— Oh, ele é ótimo. Leva os garotos para pescar, os ensinou a
andar de bicicleta e skate e tomamos café todo domingo. Ele até
mesmo evita palavrões na frente deles!
Neguei com a cabeça e ela apenas riu, com um olhar cúmplice
como se tentasse me convencer daquele absurdo. Meu estômago
deu uma revirada quando ouvi a voz de Kian, e consegui ouvir seus
passos.
— Mãe? Ayla?
— Oi, querido! — Stephany logo olhou para ele. — Conheci a
sua nova amiga.
Apertei os lábios e encarei meu chefe, que havia parado ao meu
lado e me olhava um pouco irritado.
— Ayla não é…
— É uma garota muito competente — Stephany continuou a
falar, ignorando-o.
Um sorriso mínimo surgiu nos lábios dele, antes do seu olhar
deixar o meu. Ele encarou diretamente para a madrasta quando
disse:
— Claro. Tenho certeza disso.
Apesar de saber que aquela frase não tinha uma conotação
sexual, senti meu rosto aquecer e precisei encarar meus pés,
torcendo para que ele não visse minhas bochechas rosadas.
Principalmente pelo seu tom de voz ao dizê-la.
Afinal, eu não podia negar quão bonito Wilding era. Todo o
alerta de Olivia e as horas que fiquei observando suas fotos não
faziam jus a beleza dele. Kian parecia desumano de tão bonito e
intrigante. Era o pacote completo, quase um pecado embalado em
preto, músculos, sorrisos sujos e fúria.
— Bom, estou indo. Te espero para o jantar com os garotos — a
mulher disse, e ouvi o carro ser destravado. — Não esqueça que
Bryan…
— Prefere a pizza de queijo — completou Kian, em um bufar
mal humorado. — Ele mudou sua pizza preferida há meses, mãe.
Não precisa me lembrar todas as vezes que vou comprar essas
merdas.
— Olhe a boca, Kian. — Mordi o lábio inferior, segurando uma
risada. — Tchau, Ayla. Foi um prazer.
Levantei o rosto, sorrindo para Stephany.
— Digo o mesmo, senhora Wilding.
Não sabia se era o certo chamar aquela mulher, de no máximo
quarenta e cinco anos, de senhora, mas pareceu o pronome
adequado. Ela apenas sorriu e entrou no veículo, disparando para
longe dali.
Assim que o carro cruzou os limites dos portões do
estacionamento, Kian virou o corpo para mim. Eu fiz o mesmo,
encarando seus olhos analíticos, que pareciam menos furiosos do
que antes, como se a presença da madrasta e a menção aos irmãos
tivesse acalmado seus nervos.
— O que faz aqui?
Balancei a pasta.
— Resultados. Você me pediu isso e eu resolvi trazê-los antes
da festa.
— Não me teste, Brown — avisou, firme.
— Existem resultados pré e pós evento, Kian. É interessante
fazer este balanço para acompanhar os próximos lucros.
Ele estreitou os olhos.
— Você não terá acesso ao balanço financeiro.
Rolei os olhos.
— Nem quero. Eu só estou de olho no controle das vendas e
reservas online para te mostrar os resultados, nada mais. E, em
minha defesa, antes que você banque o irritadinho, não te encontrei
em lugar nenhum.
— Talvez porque eu não quero ser encontrado.
Arqueei uma sobrancelha.
— Você realmente é péssimo com isso de interação, puta
merda! — resmunguei.
Achei que vi um pequeno sorriso em seus lábios, mas apenas
por alguns instantes. Ele esticou a mão para mim.
— Me dê a pasta. Vou analisar e depois te ligo.
— Tem certeza? Vai entender o que tá aí?
Entreguei a pasta para ele, um pouco frustrada. Eu queria uma
chance para me aproximar de alguma forma. Enquanto ele abria e
avaliava o conteúdo dos papéis, me senti um pouco idiota por
aquela interação forçada.
E mesmo que eu não tivesse mais tempo do seu dia, já estava
contente em ter conhecido Stephany. Ajustei a bolsa no meu ombro
e dei um passo para trás, enquanto abria o aplicativo de carros para
pedir um.
— O.K. Qualquer dúvida, você pode me mandar um e-mail,
então — murmurei, levemente irônica ao dizer e-mail. — Amanhã
estarei aqui perto das oito, como você pediu no e-mail, e…
— A essa altura, você já deve saber que não sou eu quem envio
os e-mails.
Eu ri, levantando meus olhos para ele, que, curiosamente,
estava me olhando.
— Ah, pode ter certeza. Só estava tentando soar como uma boa
garota, que acreditava em bom dia e boa noite vindos de você.
— Israel precisa parar com isso. É íntimo demais — ele disse,
torcendo o nariz.
— Sem problemas. Tô indo nessa!
Girei o corpo no eixo, e dei alguns passos na direção da
calçada.
— Ayla.
Kian disse, e eu olhei para ele sobre o ombro.
— Hum?
— Vamos até o meu escritório e você decifra essa merda para
mim.
Ele não esperou que eu concordasse. Apenas caminhou na
direção da porta lateral da boate e eu o segui. Dentro do lugar, os
decoradores se moviam e sorri para Israel, sentado em uma das
banquetas do bar e bebericando algo em um copo baixo.
Kian e eu cruzamos o lugar e subimos as escadas de mármore
preto, até atingir o segundo andar e entrar em seu escritório.
Ele caminhou até sua poltrona e eu deslizei em uma das
cadeiras estofadas, que estavam na frente da sua mesa. Assim que
Kian colocou os papéis sobre a mesa, a garota de cabelos raspados
da outra vez apareceu ali.
— Kian? Você pode dar uma olhada na nota do fornecedor de
bebidas?
Ele levantou os olhos na direção da porta.
— Claro, me traga aqui.
— A mercadoria não bate com a nota — ela disse, parecendo
nervosa. — O pessoal do transporte não está…
— Onde está Israel para resolver isso? — disse, escovando os
cabelos para trás.
Estreitei os olhos para Kian, que levantou as sobrancelhas para
o meu sinal.
— Acabou de sair para a reunião com os outros fornecedores.
Ele espremeu os lábios, analisando a situação.
Kian se levantou e me lançou um olhar sério.
— Não mexa em nada, Brown.
Fingi bater continência, e me levantei apenas quando os dois
tinham sumido pelo corredor. Para o meu azar, o computador tinha
senha e, pelo sistema que Kian usava na segurança do Seven,
imaginei que após algumas tentativas erradas a câmera ligaria,
pegando assim quem fosse no flagra.
Avaliei alguns papéis empilhados na mesa, encontrando apenas
duas notas fiscais. As gavetas possuíam chaves.
Me senti derrotada. Apesar disso, tentei estudar um pouco mais
sobre a personalidade, quase oculta, de Wilding. Os tons escuros e
a mobília cara demonstravam poder.
No único móvel com prateleiras havia uma coleção de vinis ali.
Eu não havia visto uma vitrola, mas a coleção era realmente
impressionante.
A maior parte dos títulos eram músicas clássicas, e me
surpreendi quando encontrei uma coletânea do Bolshoi. Kian não
parecia o tipo que ouvia um disco com um musical de uma das
maiores companhias de dança do mundo.
— Você realmente não consegue obedecer a uma ordem. —
Ouvi sua voz, quando tinha em minhas mãos uma caixa com a
coletânea da quinta sinfonia de Beethoven.
— Tem uma coleção e tanto aqui, Wilding. Não achei que fosse
do tipo que ouvisse música clássica — comentei, colocando o disco
no lugar e voltando para a cadeira estofada.
Ele estava parado no meio da sala.
— E preciso ter um tipo para isso? — perguntou, contornando a
mesa e jogando-se na poltrona.
Eu ainda não sabia porque Kian parecia tão generoso comigo
naquele dia. Será que finalmente ele tinha cedido um pouco, pelo
menos? Ele passou do cara estúpido para irônico em um passe de
mágica após a interação com Stephany. Ou seria apenas um reflexo
do meu bom trabalho? Afinal, ele era meu chefe e teríamos que
aprender a conviver juntos.
Kian colocou uma pasta preta sobre a mesa e meus olhos
pousaram ali. Mordi o interior da bochecha, porque pela quantidade
de papéis dentro daquilo, poderia facilmente ter algo interessante
para olhar. Droga.
— Não sei. Tá mais para quem não ouve música, baseado no
seu mau humor. Músicas geralmente nos fazem relaxar, nos levam
para outras dimensões além dos problemas reais… Você parece ser
mais controlador do que qualquer coisa e, então, não tem tempo
para isso.
Ele estreitou os olhos castanhos.
— Conseguiu resolver o problema com o seu fornecedor?
Então, ele enrijeceu a postura pela primeira vez desde quando
me viu. Como se a menção ao seu negócio fosse proibida.
— Sabe, eu tinha um amigo que não pagava impostos da maior
parte das bebidas do seu bar. Ele conseguia alterar as notas fiscais
— tentei soar como uma amiga quando faz um comentário
indecente, dando de ombros.
Kian soltou uma risada, jogando o corpo contra o estofado e
alisando o lábio inferior com o polegar, enquanto me estudava.
— Está insinuando algo sobre sonegação de impostos, Brown?
Devo me cuidar com você?
Seu comentário direto me pegou de surpresa. Ele estava
invertendo aquilo me colocando numa posição não muito boa.
Levantei meus olhos para ele, e sorri de lado. Senti meu corpo
esquentando-se em intensidade e vergonha. O que eu estava
sugerindo? Porra, Ayla! Eu sabia de coisas, mas ele não poderia ter
noção do meu conhecimento prévio.
— Vamos trabalhar?
Não o respondi, fazendo com que seu sorriso sagaz
aumentasse ainda mais. É óbvio que ele gostou do comentário. Até
onde eu sabia, a família Wilding se ergueu em dinheiro sujo e
ilegalidades. Kian tinha cheiro de coisa errada. E, naquele instante,
não restavam dúvidas sobre minhas suspeitas do seu envolvimento
em atividades ilícitas.
Engoli aquilo e abri meu maior sorriso para ele, iniciando um
monólogo sobre os resultados. Em nenhum momento, daquela
tarde, Kian deixou de me olhar.
A casa estava lotada. Sorri observando o resultado do
marketing que havia feito, enquanto Kian Wilding parecia impassível
ao meu lado. Não havia nenhum sorriso, apenas um olhar analítico,
esquadrinhando cada pessoa que entrava ali. Com seus típicos
trajes pretos, ele parecia a personificação do diabo ao meu lado,
apenas observando o seu inferno particular se encher de pecadores.
— Sabe que sorrir é de graça, né?! — disparei enquanto me
inclinava levemente para mais perto dele. — Relaxe um pouco, olhe
só como os números que te apresentei estão refletidos em cada
parte desse lugar…
Seus olhos castanhos-esverdeados pareciam mais escuros pela
falta de luminosidade do local. Estávamos protegidos, na parte dos
bastidores da festa, isolados do restante das pessoas.
Os corredores estavam pouco iluminados, mas era por ali que
os funcionários transitavam.
Ele começou a caminhar na direção do corredor de banheiros,
provavelmente para ir até a escadaria do seu escritório e eu o
acompanhei.
— Você pode ter conseguido tudo isso, mas a noite mal
começou, Ayla. E esteja avisada que preciso dos resultados pós
festa na minha mesa na segunda-feira.
Rolei meus olhos em puro tédio. Aquele homem era impossível.
Troquei o peso das pernas sentindo já um leve arrependimento dos
saltos que tinha escolhido para usar naquela noite. A ansiedade de
estar perto de Kian estava diminuindo a cada vez que nos
encontrávamos. E naquela noite tudo parecia mais sereno entre
nós. Claro, ele ainda era um grosseiro, mas nada que eu não
pudesse lidar.
— Aqui? Vai mesmo permitir que eu frequente a boate fora do
horário comercial, huh? — brinquei.
Kian parou de caminhar. Seus olhos vazios de emoções
encontraram o meu enquanto seu maxilar estava trincado. Ele deu
um passo na minha direção e eu recuei, diminuindo a nossa
distância e por um instante me senti encolhida. Senti a parede
gelada em minhas costas e ele sorriu ao me cercar, igual no dia em
que quase me atropelou. Ele abaixou a cabeça alguns centímetros
para alinhar os olhos aos meus e sussurrou:
— Hora marcada, sem visitinhas surpresas. Entendeu?
Seu calor estava em toda parte. Eu engoli em seco observando
seu corpo inclinado para o meu. No entanto, antes de eu dizer algo,
algum dos funcionários surgiu do corredor e chamou pelo seu nome.
Limpei a garganta, observando-o se afastar. Ele voltou pelo
lugar em que tínhamos caminhado, sem ao menos se despedir.
Com o que restava de educação. Respirei fundo e saí dos
bastidores. Pessoas passavam por todo lugar, o fluxo aumentava e
era claro que Kian não gostava de estar no meio de tudo, cercado
de gente. Seu incômodo estava estampado na sua cara quando
observamos o lugar.
Avaliei mais uma vez a pista cheia e depois para a porta, por
onde mais uma leva de pessoas entravam como se estivessem indo
para uma expedição na Disney, cheios de sorrisos débeis e
excitação.
No entanto, concentrei-me em uma primeira busca por Olivia,
afinal ela estava tão animada com a festa que era capaz de chegar
de surpresa e me jogar no chão com um abraço exagerado. Ri fraco
com o pensamento, aquela atitude na minha imaginação era bem a
cara dela. O que me fez notar o quão profunda essa amizade estava
se tornando.
Deixei de observar a pista quando notei um fato importante:
Kian não estava no escritório. Ninguém estava lá. Todos estavam
ocupados em seus trabalhos. Pensei rapidamente na pasta que ele
havia colocado sobre a mesa no dia anterior e minhas mãos
formigaram de excitação.
Observei o longo corredor de luz apagada e com passos, que
disfarçassem a minha pressa causada pela ansiedade, fui em
direção ao segundo lugar. Em uma velocidade impressionante,
atingi o topo das escadas e cruzei o corredor. Para a minha sorte, a
porta do escritório estava destrancada.
Isso é descuido demais, Wilding, pensei.
Fechei-a atrás do meu corpo e observei pelo grande vidro mais
e mais pessoas chegando. Era engraçado observar todos enquanto
ninguém me via, a sensação que eu tinha era de poder. Talvez fosse
isso que ele sentisse quando passava a festa inteira em seu
escritório: poder. Algo egomaníaco mesmo.
Fechei os olhos por um instante e lembrei-me do que estava
fazendo ali. Precisava de foco.
Tudo parecia igual o dia anterior. No lugar.
Sentindo minhas pernas falharem momentaneamente ao dar o
primeiro passo, segurei-me no sofá e continuei a andar até chegar à
mesa. Durante o último dia Kian não me deixou chegar perto de
muita coisa e aquele momento poderia ser bem aproveitado, sem
seus olhos inquisidores me cercando o tempo todo, como se eu
fosse uma grande ameaça. Não que eu não fosse, mas ele não
deveria sequer sonhar com isso.
Para a minha infelicidade, a pasta não estava sobre a mesa, a
qual estava perfeitamente organizada. Tentei abrir a primeira gaveta,
mas estava trancada.
— Merda — resmunguei para mim mesma.
E foi quando o nervosismo começou a dar sinais claros de
querer me dominar. Meus dedos tremeram um pouco. Bufei e fui
para a outra, dando sorte de estar aberta. Sorri largamente
enquanto meus dedos agarraram o máximo de papéis. Estreitei os
olhos para observá-los melhor, usando a lanterna do telefone para
me dar um pouco mais de clareza. Eram poucos recibos, e
aparentemente eu não lembrava muito das empresas que
estampavam as notas. Anotei o nome de algumas delas em um
pequeno papel para pesquisar em outro momento, mas o que mais
me chamou atenção eram valores estranhos. Todos muito redondos.
Sempre quinhentos dólares, três mil dólares, até dez mil dólares,
mas os valores não passavam disso.
— Oye, cabrón! — Ouvi aquela voz alta e forte ecoando no
corredor.
Adrenalina correu em minhas veias e encarei a porta, atônita
por alguns segundos. Eu seria pega a qualquer momento. Soltei os
papéis e fechei a gaveta com pressa enquanto acelerava os passos
até a porta, mas a voz de Pietra soou mais alta. Eu não conseguiria
sair dali. Porra! Me enfiar no banheiro seria óbvio demais e se um
deles precisasse ir até lá, me acharia fácil.
O que diabos eu faria?
Meus olhos avaliaram o ambiente. Os passos de Pietra, e
provavelmente Kian junto, reverberavam mais altos apesar da
música. Engoli em seco e avaliei o lugar. Não tinham muitas opções,
então, acabei correndo até atrás do sofá e me encolhendo atrás do
estofado.
Fechei os olhos por alguns minutos, chamando-me de estúpida.
Foi questão de poucos segundos até Kian entrar na sala com
Pietra falando irritadiça. Ela xingava ele com vontade e tinha a
sensação que se pudesse estaria o estapeando.
— Tem ideia do que você fez, Kian? — reclamou a irmã de
Olivia. — Aliás, nem sei porquê pergunto, você sabe exatamente as
consequências dessas suas atitudes insanas. Não é nenhum niño
mais!
Ouvir a voz dela me lembrou que Olivia nunca falava da irmã ou
da família. Elas tinham algum problema? Afinal, eram apenas as
duas como filhas da prefeita.
Kian bufou e o ouvi dando passos para próximo de onde eu
estava. Me encolhi em medo, mas ele se reteve, quando o som de
vidro ressoou. Ele provavelmente estava servindo o uísque.
Eu encarava o chão de uma forma estúpida, enquanto tentava
não me mexer e nem respirar alto demais.
— Carajo! — Pietra ruiu, como um animal feroz. — Vai me
ignorar, cabrón?
Kian riu de forma curta. Não estava vendo nada, mas conseguia
ouvi-los claramente. A porta da sala estava fechada e isso ajudava
com que a música ficasse lá fora e não atrapalhasse o diálogo
deles.
— Pietra, não é dia de você me tirar a paciência. Não bastou
ontem aquele show? — O ouvi beber um gole. — Tem estado
furiosa demais.
Usei todo o cuidado para tirar os saltos e deixá-los deitados no
piso de onde estava.
— Você não tem noção do que eu vou ter que fazer pra livrar
essa sua cara bonitinha de não ir parar na porra do jornal. Bater em
um homem até quase a morte? Você perdeu o juízo! — Conseguia
sentir a raiva de cada palavra que deixava os lábios de Pietra,
enquanto tentava processar sua frase. — Tai Yang quer a cabeça da
minha mãe numa bandeja de prata e eu tenho evitado ao máximo
isso porque essa merda reflete em todos nós, inclusive em você e
no babaca do seu pai. — A mulher soprou uma respiração pesada,
e a última frase soou de uma forma cansada. — É sério. Você me
chama de furiosa, mas você age de uma forma totalmente
imprudente. Eu só estou tentando ser cautelosa e às vezes perco a
paciência.
Bater até quase a morte?
Céus… Kian. Não. Chacoalhei a cabeça. Com absoluta certeza
ela estava exagerando.
Ouvi o barulho do estofado do sofá e fechei os olhos,
imaginando Kian sentado em sua poltrona em toda sua glória.
Repreendi meus pensamentos no mesmo instante, já que eu estava
gostando da imagem em minha cabeça. Minha respiração acelerou
um pouco, enquanto meu coração acompanhou o ritmo e tudo isso
piorou quando ouvi Kian dizendo:
— Senta aqui… Deixa eu acalmar você…
Fechei os olhos, sentindo uma ânsia crescente queimando o
meu estômago. O lugar tornou-se claustrofóbico. Fechei as mãos
em punhos e arregalei os olhos quando ouvi os saltos de Pietra
tocando o solo e depois, o som das rodinhas da cadeira. Ela tinha
sentado no colo de Kian? Ah meu Deus, ou talvez na mesa dele?
Uma corrente gélida de ar tocou minha pele e eu me repreendi por,
mais uma vez, estar imaginando tudo.
Então, me dei conta da situação. Kian e Pietra. Eu nem tinha
absorvido o choque daquela informação quando os sons da sala se
tornaram ainda mais altos, quase ensurdecedores: eu pude ouvir as
bocas se tocando, tinha certeza disso. Com as mãos trêmulas,
apoiei-me no chão e levantei minimamente meu corpo, e através de
um espaço entre a mesinha do abajur e o braço do sofá, vi Kian e
Pietra.
Ela estava sentada em seu colo, sobre suas pernas, e ele tinha
as mãos cavadas em sua cintura. Apertando-a com força sobre o
tecido fino de uma camisa de botões larga e elegante. Quando
tentei focar em seus lábios tocando-se, eles se separaram.
— Kian… Você sabe que nada disso muda o que eu disse
quando cheguei, certo? — ela soprou entre um gemido prazeroso
quando ele desceu os lábios, de forma habilidosa pelo seu maxilar e
depois no pescoço.
Senti meu rosto aquecer porque aquela imagem estava me
deixando quente.
Estava clara a determinação de Kian. Vi suas mãos viajarem
pelas coxas de Pietra. O vi sorrindo enquanto estava com a boca no
pescoço dela.
— Você é teimosa demais — ele rosnou contra a pele dela
enquanto ela empurrava-se contra o quadril dele.
— Determinada, eu diria — ela disse entre um suspiro. Agucei
meus olhos, tentando ver o que ele tinha feito com a mão que sumiu
para a frente do corpo dela — Você precisa aprender uma lição,
niño.
Ele levantou o rosto a encarando de uma forma sacana… O seu
olhar nebuloso esbanjava luxúria. De uma maneira estupidamente
incrível. Kian parecia um Deus naquela posição, tendo Pietra em
seu colo. E caramba, os reflexos claros de excitação percorriam
cada célula do meu corpo, deixando mais claro que ouvir e ver
aquilo estava afetando cada parte de mim.
Um calor tomou minhas bochechas e mordi com força o lábio
inferior. Céus, eu estava gostando de vê-lo com outra mulher?
Observei ela contorcendo-se em prazer.
— É, você também.
E levei uma mão ao meu nariz e boca, a fim de evitar que
qualquer som saísse dali com a surpresa quando vi Kian empurrar
Pietra do seu colo. Escorreguei novamente para trás do sofá e
arregalei levemente os olhos.
Kian tinha acabado de deixar Pietra excitada e depois parado
aquilo? Céus, ele era um babaca. Me peguei sorrindo com a
constatação.
Nos instantes seguintes ouvi Pietra levantando-se e avisando
com veemência que ela não o acompanharia em uma tal festa.
Fechei os olhos em irritação quando pude ouvir as gavetas sendo
abertas e o medo instalou-se em meu peito, no entanto Kian
entregou o tal documento do dia anterior para ela, me acalmando e
aparentemente os ânimos de Pietra também. A garota reclamou
mais algumas vezes sobre as atitudes explosivas do meu chefe, me
deixando em alerta com aquilo.
Ouvi a porta se fechar e nenhum passo por ali. Esperei cerca de
trinta segundos antes de sair de onde estava. Tive que sair
engatinhando e depois esticar-me com certa dignidade. Eu
precisava sair dali. Coloquei os saltos e toquei a maçaneta. Virei-a e
abri a porta, uma fresta apenas, bem pequena. Já que não ouvia
nada além da música alta, resolvi espiar para ver se Kian ou Pietra
não estavam por ali.
Senti o suor gelado escorrendo pela minha nuca. Constatando
que não havia ninguém no corredor, saí para a festa, finalmente
respirando fundo o ar quente dali, onde o ar condicionado já não
vencia mais e as pessoas dançavam alucinadas.
— Você precisa de uma bebida e relaxar… Tá tudo bem, Ayla!
— falei sozinha, pensando que eu tinha algo para me divertir nos
próximos dias.
Os malditos nomes das empresas, as quais desconfiava que
poderiam ser fantasmas. Eu precisava de algo contra os Wilding e
esse era o caminho!
Só que, claro, eu não contava com aquela sensação ainda
impregnada em meu corpo. Fechei os olhos por alguns segundos,
lembrando-me de Kian tocando em Pietra.
Não pense nisso Ayla, me proibi.
Meus passos me levaram até o camarote onde Olivia sempre
ficava com as garotas, Asmodeus, e sorri para algumas que
estavam ali na porta. Entrei e logo recebi o sorriso mais animado do
local.
— Achei você! — Olivia gritou sob a música. — Achei que tinha
ido embora antes mesmo de me ver… — reclamou enquanto seus
braços eram jogados em volta do meu pescoço, me puxando para
um abraço. Me inclinei um pouco para frente, devida a nossa
diferença de altura, abaixando-me um pouco para corresponder.
— Não, vim aproveitar a festa. Agora sou funcionária da Seven!
— Ai que bom! — Seus braços voltaram a me abraçar.
Acabamos nos afastando eventualmente e Olivia finalmente me
deixou chegar perto das bebidas. Me servi uma dose de uísque a
virei na primeira oportunidade, servindo-me com outra dose, mas
dessa vez fui com mais calma. — Conseguiu fazer Kian admitir que
fez um bom trabalho, Ay?
Eu ri.
— Não… E duvido que consiga.
Caminhei até a grade do camarote e com Olivia ao meu lado e
dei um gole curto na minha bebida agora, observando as pessoas
se movimentando animadas viradas para o DJ. O som crescia e
logo chegaria à virada, todos iam nessa crescente de animação. De
repente senti um braço esbarrando em mim e ao olhar para o lado,
vi Hugo abraçando Olivia por trás, enquanto ela sorria
verdadeiramente com aquele seu ato de afeto. Sorri para os dois e
resolvi dá-los espaço, mas a mão de Hugo me segurou.
— Ayla, querida, preciso dizer uma coisa — ele começou, me
soltando. — Tem um cara que me pediu para lhe dar um recado,
mas eu já aviso que não fiquei feliz porque é o Trenton, o maldito
líder da Deltha.
Sorri para Hugo. Apesar de meu relacionamento estar muito
mais próximo de Olivia e as meninas da Kappa Phi, Hugo tinha se
tornado um bom amigo. Eu até havia prometido ir em mais um dos
seus jogos e ele comentou algo sobre a temporada de esportes em
algum canal. Estava decidida a me aproximar dele também, afinal, a
família Müller também estava nos negócios dos Wilding.
Levei a bebida aos lábios para evitar que uma risada exagerada
me escapasse. Hugo estava levemente alcoolizado e isso era claro,
mas parecia ainda centrado em certos limites.
E eu precisava aplacar aquele calor.
Então, a ideia de divertir-me com alguém pareceu interessante.
No entanto, antes que eu tivesse uma resposta, avaliei o ambiente
atrás dos olhos de Kian.
— Ele disse que esperaria você no bar — Hugo murmurou.
Fiz uma careta e uni os cenhos a procura do tal Trenton. Hugo
fez o favor de facilitar a minha vida e apontou para o garoto que era
tão branco quanto eu e de cabelos basicamente raspados. Ele
vestia roupas sociais, uma camisa cinza e jeans. Parecia bonito e
visualmente me agradou.
Rolei os olhos com a atitude de Hugo, mas Trenton pareceu não
se incomodar, na verdade ele levantou a sua longneck.
— Vai lá, vai me apunhalar pelas costas… — disse o loiro
fazendo drama enquanto Olivia dava risada.
Dei uma batidinha no ombro de Hugo e ele sorriu, piscando para
mim depois. Peguei minha bebida e saí do camarote, naquele
momento as pessoas pareciam presas a pista, por isso não havia
muita movimentação entre a escada e o bar. Consegui chegar até
onde queria sem muita dificuldade, apesar do número de pessoas.
Senti os olhos de Hugo e Olivia em mim, o que me fez sentir como
uma adolescente, mas tentei ignorar isso.
Terminei o meu copo de bebida e o deixei sobre o balcão.
Respirei fundo e pensei pedir mais uma bebida, mas o meu corpo
estava começando a ficar eufórico demais. Por isso considerei
melhor manter a minha sanidade.
Caminhei até o tal líder da Deltha e parei na sua frente. De fato,
ele era muito bonito. Seus olhos azuis gelo pareciam gentis, e ao
mesmo tempo ferozes. Me peguei sorrindo quando meus olhos
avaliaram os braços fortes sobre a camisa cinza.
Ele seria uma boa distração. Uma noite, alguns beijos… Nada
de sair fora do plano.
— Então, você é o Trenton?
— Sim, e você é a responsável por essa festa… Ayla. — Sua
voz rouca. E meu nome saindo tão bonito da sua boca, me fez
repensar sobre a bebida, talvez eu já estivesse passado do ponto.
— Existem boatos que dizem que sim — respondi tentando
conter meu sorriso, mas era bom ver meu trabalho sendo
reconhecido. Ao menos alguém fazia isso, minha mente
complementou, mas arranquei Kian dali. — Está aproveitando?
— Muito, mas acho que posso aproveitar mais agora.
Eu sorri e desviei o olhar do seu. Aquilo era tão cafona, mas eu
estava tão frustrada e precisando tanto tirar a maldita cena que tinha
visto da minha mente.
— Então vamos aproveitar na pista.
Virei-me de costas e comecei a me enfiar entre as pessoas
tendo certeza que ele estava atrás de mim. Ao chegar no meio,
parei e me virei, sentindo a sua mão rapidamente tomar a minha
cintura enquanto meus braços eram jogados ao redor do seu
pescoço. Um sorriso presunçoso dominou seus lábios e minha
cintura ficou leve em seu toque.
Levantei a cabeça para encará-lo diretamente nos olhos
enquanto a virada da música vinha se aproximando. Meu coração
pulsava tão forte quanto a batida do ritmo da música e tudo o que eu
conseguia sentir era a sua respiração quente ficando cada vez mais
próxima do meu rosto.
Meus dedos ousaram ao fazer um leve carinho em sua nuca, foi
quando a distância entre nossos corpos cessou. Eu estava pegando
fogo. E as coisas começaram a ficar mais agitadas no meu interior.
Meu coração parecia que iria explodir e não era de uma forma
romântica. Pisquei uma, duas, três vezes, caindo na compreensão
daquilo. Droga, literalmente droga. Eu não tinha bebido só álcool,
tinha droga naquela merda de uísque do camarote. Respirei fundo e
vi Trenton se aproximando ainda mais. Minha mente estava confusa.
Não seguia uma ordem. Não conseguia me concentrar em o que eu
deveria fazer, só sabia reagir ao presente.
Seus lábios rasparam nos meus e por Deus, o interior das
minhas coxas latejou, mas a única coisa que vinha a minha mente
era aquele diabo. Kian. Agarrando Pietra, com as mãos na sua
cintura, a boca em seu pescoço… fazendo-a gemer.
Porra eu precisava tirá-lo da minha cabeça. Eu não podia me
sentir atraída por Kian. Ele era meu principal alvo e… Eu o estudei
de longe por tanto tempo. Será que em alguma parte muito doente
da minha cabeça eu estava criando muitas expectativas? Ri do
pensamento. É óbvio que ele era algo interessante de se olhar. Eu
precisaria resistir e tirar todo aquele pensamento do cara mau na
minha cabeça.
Kian era apenas a merda de um alvo.
Em algum momento eu precisaria apertar o gatilho.
Chacoalhei a cabeça e avaliei o rosto bonito do rapaz à minha
frente. Trenton me olhava com expectativa e um sorriso sacana.
Encerrei a distância entre meus lábios e os dele. Agradeci pelo
rapaz estar me segurando com força, porque minhas pernas não
estavam confiáveis.
Sua língua adentrou a minha boca e senti o gosto amargo da
cevada. Meus dedos agarraram-se a sua nuca com veemência e
tudo o que eu queria era senti-lo mais e mais, contudo a cada
segundo que seus lábios estavam em mim, minha mente me traía. E
tudo ficou pior quando ele desceu-os pelo meu pescoço e eu abri os
olhos, encontrando os olhos dele.
Kian.
Com seus olhos intensos e cheios de luxúria.
Ele estava no camarote de Olivia, apoiado na grade preta com
um copo de uísque na mão. A distância era enorme, mas eu tinha
certeza que seu olhar estava em mim. Meu corpo todo
correspondeu aquilo com um arrepio involuntário e senti Trenton
sorrir contra minha pele.
O que ele estava fazendo ali? Kian não deixava escritório,
certo?
Meus lábios formigaram, enquanto não conseguia desviar dos
olhos de Kian. Vi o canto dos seus lábios subirem em um sorriso
sutil. Era como se ele soubesse de algo. O medo e a excitação
misturavam-se de forma intensa dentro de mim.
Decidida a tirar Kian do meu foco, puxei o rosto de Trenton para
o meu novamente e o beijei. E àquela altura, pouco importava o
gosto dele, eu tinha Kian não só na minha mente, mas da minha
mira, como eu estava na dele.
De repente Trenton puxou meu rosto para trás, delicadamente,
me encarando. Naquele instante houve uma pausa entre as músicas
e pude ouvir claramente sua voz:
— Tem planos para o resto da noite, Ayla?
Um sorriso afetado e duvidoso surgiu em meus lábios.
— Não exatamente, mas não sei se gostaria de acabar na sua
cama hoje. Talvez da próxima.
Ele sorriu e depositou mais um beijo em meus lábios.
— Tudo bem… — Ele apertou seu Apple Watch e vimos que
passava das duas da manhã. — Me prometa que te encontro na
faculdade, então.
— Nos vemos pelo campus.
Seus dedos foram até os meus cabelos e ele puxou uma mecha
para trás, aproximando sua boca do lóbulo da minha orelha em
seguida.
— Mal posso esperar para isso acontecer, boneca.
Torci o nariz para o apelido, mas sorri. Pelo menos ele não
estava criando uma situação sobre aquilo. Deixei que mais um beijo
seu viesse aos meus lábios antes dele sair.
Assim que o perdi de vista, procurei por Kian, mas ele não
estava onde tinha o visto. Virei-me por ali e tentei enxergar onde ele
poderia estar, mas simplesmente não o encontrei. Desisti. Ele
poderia ir foder a Pietra e não me encher que seria perfeito.
Meus pés me levaram meio ociosos até o bar onde pedi uma
água. Não me lembro a última vez que precisei me concentrar tanto
para fazer uma atividade tão simples. Meu corpo estava mole, ao
mesmo tempo que meu coração estava acelerado. Aqueles eram os
efeitos do que quer que tivesse ingerido ainda no meu organismo.
Tomei a garrafa de uma única vez e pedi por mais. Estava morrendo
de sede.
— Uau, parece que se divertiu hoje, passarinho… — A voz de
Israel tomou meus ouvidos e quando me virei notei ele ao meu lado
com um copo de uísque em mãos.
Ele ainda vestia roupas simples, mas algo sobre a forma como
Israel se portava o deixa atraente e sedutor. Malditos Wildings.
— Essa merda tá com droga? — perguntei, frustrada, e ele riu.
— Não, mas pelo jeito a dose de antes estava, uh?!
Rolei os olhos. Talvez ele tivesse razão, mas estava acabada
demais para discutir. A próxima garrafa de água caiu em minhas
mãos e Israel segurou-a.
— Tá bem?
— Talvez… sei lá — respondi sincera. — Da onde que eu fui
beber isso? — Aquilo me escapou enquanto observava os dedos
dele em meu pulso.
— O que você bebeu, Ayla? — Seu tom parecia mais sério. Dei
de ombros, tentando pensar direito.
— Uísque do camarote das meninas, só isso…
Levantei o rosto e capturei os olhos de Israel em mim. Analíticos
e quase cuidadosos.
— É, elas geralmente batizam as coisas do próprio camarote,
mas são as únicas que consomem também, então supostamente
estariam todas cientes. Ninguém te falou? — balancei a cabeça em
negação.
Seus dedos me soltaram e escovaram seus fios negros e
grisalhos para trás.
— Cuidado, não esqueça que precisa fazer xixi — avisou,
mudando completamente o assunto. Minha mente já estava
confusa, aquilo só piorou a situação.
Semicerrei meus olhos enquanto a música alta tocava ainda me
vibrando um pouco.
— Mas eu não to com vontade.
— Esse é o problema, passarinho, você acha que não precisa,
não vai sentir vontade... — Sua cabeça apontou para os banheiros e
eu suspirei. Por que ele estava dizendo aquilo pra mim? Era
preocupação? Enfim, não estava afim de discutir, por isso fiz o que
pediu. — Não beba nada que venha do copo dos outros ou de
bebidas já abertas, tá bom?
— Você parece meu pai.
Ele apenas piscou. Sentindo-me mais idiota que o comum.
Meus sentidos estavam me traindo demais. Meu corpo agia no
automático. As luzes piscando me faziam querer fechar os olhos por
um instante, mas não estava com sono, só caótica. Por sorte
consegui chegar ao banheiro feminino e fechei a porta. Foi quando
notei que talvez Israel tivesse razão, eu realmente estava louca pra
fazer xixi, mas não sentia vontade.
Depois de me colocar em pé novamente me encarei no espelho
e uau, eu estava absurdamente linda. Pisquei e encarei o chuveiro
que havia ali. Hm, não lembrava disso no banheiro feminino.
Suspirei e peguei na maçaneta caindo na realidade. Eu tinha vindo
para o maldito banheiro do escritório.
— Porra, Ayla! — resmunguei sozinha.
Levei a mão até a maçaneta, sentindo o material escorregar
entre meus dedos em uma consistência estranha. Apertei os lábios,
sentindo o formigamento espalhar-se pelo meu rosto. Era uma
sensação terrível.
Assim que empurrei a porta, travei. Lá estava ele, sentado no
sofá, com um copo de uísque nas mãos enquanto observava o
vidro, vendo a boate ainda fervendo de gente. Arregalei os olhos,
assustada e com medo.
Ele surtaria como a última vez? Eu perderia meu emprego?
Puta merda, eu poderia estar muito ferrada.
— Como que eu vim parar aqui? — questionei, com um sabor
amargo na boca.
Sem me olhar, ele levou o copo de uísque aos lábios, de modo
impassível.
— Você entrou sozinha e foi correndo para o banheiro. — Ele
começou explicando enquanto afastou o copo dos lábios e depois,
mexeu o gelo de um lado para o outro. — Pensei que ia vomitar, aí
considerei te ajudar, mas você foi bem enfática ao dizer que ia só
mijar, e trancou a porta.
Senti meu rosto pegando fogo. Senti meu corpo todo pegando
fogo. E não era de excitação, era de pura vergonha.
— Eu não sei… Eu não sei o que acont… Como eu vim parar
aqui… Eu não sei… — Droga, eu nem sabia o que dizer. Eu tinha
ido tão bem até ali. Eu estava dentro da porra boate e fiz uma
dessas sem nem saber como.
— Tá tudo bem, às vezes a droga com a bebida faz a gente
perder a memória, ter uns blackouts… Deveria saber disso, já que o
fez. — Quis gritar que não, eu não tinha feito aquilo, mas minha
boca parecia ter sido costurada, não consegui proferir mais
nenhuma palavra. Meus olhos apenas ficaram focalizados em Kian
diante de mim. Foram alguns segundos de silêncio antes dele
constatar: — Pelo visto, o seu papo do nosso primeiro encontro faz
sentido. Banheiro e escritório, hm.
Seus olhos em momento nenhum me encararam e por isso
decidi que era melhor que continuassem assim e que eu deveria
sumir dali o mais rápido possível. Meus pés começaram a caminhar
um atrás do outro.
— Se você estava excitada deveria ter me falado, talvez eu
resolvesse o seu problema… — ele declarou, me fazendo parar
imediatamente.
— O quê?
Virei-me agora tendo a atenção dos seus olhos. Se já sentia
vergonha antes, agora isso só triplicou, enquanto minhas pernas
estavam considerando se iriam falhar ou não, tremelicando.
Calmamente, Kian colocou o seu copo sob a mesinha de centro. Ele
caminhou em minha direção. Encarei o chão, envergonhada demais.
O que Kian sabia? Ele tinha me visto aqui anteriormente? Ele se
inclinou e seus lábios ficaram próximos o suficiente no meu perfil.
— Não sabia que gostava de observar… — soprou e eu
arregalei meus olhos, o encarando.
Parecia que meu coração iria sair do meu peito, arrebentando
os ossos e rasgando a pele. O ar estava tentando falhar e tudo
pareceu dar uma girada. Senti-me atordoada.
— Eu, não…
— Você sim. Saiu do meu escritório e agarrou o primeiro em sua
frente.... tsc, tsc — levantei meus olhos, aflita. Um sorriso cínico
estava em seus lábios. — O que eu me pergunto, é o que estava
fazendo aqui.
Fiquei em silêncio, engolindo em seco. As palavras estavam
embaralhadas em minha cabeça e nada parecia suficiente para
aquela mentira.
— Nos vemos semana que vem, Ayla.
Inspirei todo o ar que conseguia, engolindo o seu perfume e
obriguei as minhas pernas a darem um passo atrás do outro até que
conseguisse estar na rua, conseguindo, finalmente respirar algo que
não fosse Kian.
Minha mente estava caótica. Não conseguia parar de pensar
sobre a última noite e o fato do meu coração estar basicamente
explodindo dentro do meu peito não ajudava em nada. Mesmo que
já tivesse tomado banho e agora estivesse suando enquanto
gastava energia e tentava acalmar meu corpo. Ainda assim, sentia-
me frenética. Maldita bebida batizada.
Para manter minha cabeça ocupada, pesquisei as empresas
que anotei nas notas fiscais da boate. Achei algumas, outras não.
Como suspeitei, deveriam ser as empresas fantasmas. Se eu
conseguisse algumas daquelas notas, poderia ser uma prova
interessante contra aquela família.
Minha mente me levou ao escritório de Kian. Seu corpo próximo
ao meu. Seu corpo com o de Pietra. E porra, nem Lady Gaga no
volume máximo conseguia isolar minha mente daquilo.
Não sentia a fadiga dos meus músculos, mas meu celular dizia
que eu já tinha feito dois quilômetros a mais do que estava
acostumada. Aquela necessidade de manter a mente ocupada e
livrar meu corpo de qualquer química através do suor me faziam
sentir que ainda poderia correr mais dez. Apesar disso, não era bom
abusar.
Eu já tinha chego próximo a área central de Soho. O sol das dez
horas queimando em minha cabeça. Avistei um parque, que
provavelmente contava com bebedouros de água. Precisava me
refrescar. Adentrei o parque e continuei a correr até que meus olhos
pousaram em uma mulher sorridente. Ela encarava uma pista de
skate e então notei que aquela era Stephany Wilding.
Respirei fundo. O universo conseguia ser implacável às vezes.
Era domingo de manhã e aquela mulher absurdamente elegante
estava com seus scarpins na frente de uma pista de skate. Aquilo
era curioso, no mínimo, mas logo entendi o porquê ela estava ali às
dez horas da manhã: Charles e Bryan. Seus filhos e meio irmãos de
Kian.
Reconheci a cabeleira ruiva de Charles e os cabelos castanhos-
arruivados de Bryan. Tinha visto imagens suficientes dos Wilding
para saber quem eram.
Me mantive imóvel quando avistei Kian saindo de uma das
confrarias da quadra e indo em direção a Stephany. Nas suas mãos
estavam quatro bebidas e um saco pardo que com certeza tinha
comida.
Ele sentou-se em uma mesa próximo de onde Stephany estava
e observou os garotos. Sua áurea estava diferente ali. Era como o
dia em que o encontrei no churrasco improvisado na fraternidade.
Kian usava uma bermuda, o que condizia bem com o calor de fim de
verão que estávamos enfrentando, uma camiseta azul clara e óculos
escuros.
Parecia outra pessoa sorrindo de forma leve.
E naquele instante as palavras de Stephany fizeram sentido,
mesmo de longe era visível que Kian era diferente com os irmãos.
Inspirei todo o ar possível e resolvi ir atrás de uma nova garrafa
de água, já que não avistei nenhum bebedouro. Estava começando
a me sentir desidratada.
Entrei na mesma confraria que Kian tinha saído a pouco,
comprei uma água e quando estava saindo, pronta para me afastar
dali, ouvi:
— Ayla?!
A voz de Stephany reverberou o suficiente para que qualquer
um por ali ouvisse. Eu travei meus passos, sabendo que os olhos
dele estariam cravados nas minhas costas. O suor que escorria pelo
meu corpo só aumentou, teria que enfrentá-la, já que a ouvi e pior,
parei, dando-a certeza de que era eu.
Deveria ter continuado de fone, com a música alta.
Virei-me nos meus calcanhares. O shorts de tecido que eu
usava deixava boa parte das minhas tatuagens expostas e o top
ajudava a não deixar muito para a imaginação. Quase me senti nua
quando vi os olhos de Kian em mim. Ele tirou os óculos para me
encarar melhor com a sua melhor cara de desgosto.
— Oi, bom dia… — disse me aproximando deles, apertando um
pouco a garrafa de água entre minhas mãos.
Agora ambos estavam sentados lado a lado.
— Bom dia, querida. — Kian manteve-se em silêncio até que
Stephany lhe deu um tapa no braço. — Seja educado!
Senti as minhas bochechas esquentando ao presenciar a cena,
queria rir, mas achei que isso de alguma forma despertaria a ira de
Kian, por isso mordi o interior da minha bochecha, a fim de conter a
minha diversão.
E apesar disso, imagens do dia anterior ainda estavam em
minha mente. Céus, ele sabia que eu estava em seu escritório. As
coisas que me falou quando me enfiei lá novamente… E claro, ele
desconfiava de algo. Eu estava em apuros.
— Bom dia, Ayla. Como você está? — Havia ironia ali, mas não
me incomodei muito. — Depois de ontem, fiquei preocupado.
— Estou bem, obrigada pelos seus pensamentos a meu
respeito.
Ele rolou os olhos e encarou a pista de skate observando os
dois garotos interagindo com outras crianças.
— E então, vejo que gosta de fazer exercícios… — Stephany
comentou, claramente tentando puxar assunto. E antes que
pudesse responder, Kian soltou:
— Ela adora sair correndo por aí.
Cretino! Ele estava se divertindo às minhas custas, enquanto eu
estava começando a me sentir incomodada com aquilo.
— É, acho que é bom para esclarecer os pensamentos.
— Entre outras coisas… — Seu olhar era de puro desafio, mas
eu não estava afim de ceder àquilo.
Desrosquei a tampa da garrafinha e dei um gole na minha água
aproveitando enquanto ela estivesse gelada ainda.
— Bem, vejo que estão ocupados, não quero atrapalhá-los.
Tenham um bom domingo.
Stephany assentiu e Kian acenou enquanto eu começava a
caminhar para longe, contudo uma pequena discussão deles,
chamou a minha atenção. Parei na sombra e esperei o sinal fechar
para que eu pudesse atravessar a rua, mas quando estava no meio
da avenida principal ouvi a Sra. Wilding chamando a mim. Encarei-a
vindo na minha direção enquanto o sol começava a ficar mais forte
sobre nossas cabeças. Voltei para a calçada de onde tinha saído e
esperei ela parar na minha frente, enquanto Kian vinha atrás,
claramente contrariado.
— Querida, gostaria de fazê-la um convite — a mulher disse,
parando na minha frente.
— Mãe, não precisa… — Kian começou a resmungar, mas ela
apenas levantou a mão com os braços cheios de sardas amostra
devido a pele pálida e os cabelos ruivos.
— Precisa! Tudo precisa estar perfeito, por favor — ela disparou
sem encará-lo. Então seus olhos fixaram-se aos meus. — Sei que
posso estar ultrapassando alguns limites aqui, mas Ayla, gostaria de
saber se aceitaria ir à festa que daremos na próxima semana, na
mansão. Adoraria recebê-la lá, Israel foi só elogios sobre você e
acredito que as notícias sobre a festa de ontem voram, sei que foi
um sucesso então seria uma honra recebê-la lá.
— Sra. Wilding…
— Stephany, por favor, me chame de Stephany. Acabei de
completar quarenta, não preciso me sentir ainda mais velha com
esses pronomes de tratamento.
Eu sorri verdadeiramente. Aquela mulher me queria dentro da
mansão Wilding, será que era possível as coisas ficarem mais
fáceis? Uau, o destino de fato estava afim de sorrir para mim.
Contudo, o olhar de Kian me fazia repensar nas minhas próximas
palavras. Se eu aceitasse fácil demais, ele notaria. Ele já sabia que
eu tinha me enfiado em seu escritório e eu definitivamente não
queria que ele desconfiasse de mais nada. Aceitar aquele convite de
cara seria um erro, por isso fiz certo charme.
— Ok, Stephany, veja, eu agradeço o convite, de verdade…
— Então não o recuse.
Encarei Kian impaciente atrás de Stephany. Seu olhar se dividia
entre mim, Stephany e os irmãos que estavam agora na mesa,
comendo.
— Eu… Eu adoraria ir, mas é que eu sequer tenho roupa para
um ambiente tão sofisticado quanto a sua casa.
Ela riu. Enquanto Kian ainda mantinha-se em silêncio e
desgostoso.
— Isso não será um problema. Prometo! — ela disparou e
encarou meu corpo por um instante, parecia me avaliando. —
Enviarei a roupa para a boate durante a semana, pegue lá com
Kian.
— O quê? — A voz do citado se fez presente.
— Kian, não atrapalhe, você precisa de uma acompanhante! —
declarou Stephany um tanto desesperada, virando-se para o
enteado.
Uma acompanhante? Eu e ele? Abri a boca para rebater, mas
então ela disse:
— A festa precisa estar perfeita, por favor. Seu pai está vindo a
cidade, preciso que tudo saia dentro do planejado.
Benjamin Wilding.
Não consegui prestar atenção na pequena discussão que os
dois presentes tinham, o nome daquele homem ecoava na minha
mente e tudo parecia alinhado para que eu finalmente o
encontrasse. Um arrepio leve me dominou enquanto minha mente
fazia mil e uma ligações de possíveis cenários de como eu reagiria
ao finalmente o encontrá-lo.
— Você poderia ser a acompanhante de Kian? — Stephany
disparou e meus ombros murcharam rapidamente. Aquilo não daria
certo.
— Stephany, veja…
Eu queria formular uma recusa compreensível, mas minha
mente não estava me ajudando.
— Mãe, ela claramente não quer ir — Kian declarou e a mulher
o encarou incomodada.
— Kian, vá ver seus irmãos, por favor. — A delicadeza e
gentileza dela ainda estavam ali, mas a paciência pareceu fugir por
um instante. — Vá. — Seus olhos encararam Kian enquanto eu
trocava o peso de perna, sentindo-me nervosa. Os olhos intensos
de Kian me encararam com intensidade, mas logo ele obedeceu a
madrasta. Ao estarmos sozinhas ali, enquanto os garotos estavam
na mesa de café da manhã, com Kian sorrindo para eles, Stephany
voltou a falar: — Terá champanhe e boa música, prometo. E
também prometo que Kian irá se comportar, mas preciso que ele
esteja acompanhado, por favor.
Aquilo era uma encenação? Era isso que ela queria?
Esquadrinhei seu rosto e pude ver uma sombra de desespero
ali.
Deixei que um longo suspiro escapar dos meus lábios e troquei
de peso das minhas pernas. Um sorriso afetado, beirando a súplica,
preencheu o rosto da mulher a minha frente.
— Tudo bem, acompanho Kian, mas é porque você é muito
educada e não se recusa champanhe assim — declarei e um sorriso
enorme dominou Stephany. Tamanha a empolgação, seus braços
me puxaram para um singelo abraço, mesmo que eu estivesse toda
suada e tomando cuidado para não sujar sua blusa branca.
— Será ótimo tê-la conosco.
Assenti e finalmente me despedi dela, voltando para o
apartamento dos Yang. Se na ida meus pensamentos estavam nas
empresas fantasmas nas notas fiscais de Kian. Na volta, a minha
mente me levou a um lugar ainda pior: Benjamin Wilding, o bastardo
que me fez vir até aqui.
Após um longo banho, tentando acalmar a mente e falhando
mais uma vez, me arrumei e decidi ir ver Olivia. Ela me devia
algumas explicações. Principalmente sobre a droga na maldita
bebida do camarote.
Com uma saia preta soltinha e uma blusa justa vermelha,
alcancei minha bolsa e saí do apartamento dos Yang, por sorte, sem
encontrar nenhum dos dois. Peguei um carro de aplicativo e fui até o
campus. O local nos fins de semana era calmo, apenas os alunos
que viviam nas mansões de fraternidade viviam por ali naqueles
dias. Fui direto até a Kappa Phi. O sol da uma hora era forte e
minha pele sentia isso, mesmo que eu tivesse passado protetor.
Agradeci mentalmente o ar de dentro da mansão assim que cheguei
e dei de cara com Bella.
— Oi, Ay!
Seu cumprimento foi empolgado.
— Oi, Bells. A Olivia tá aí? — questionei sem querer perder
muito tempo, afinal estava precisando descansar. Ainda não tinha
conseguido sequer cochilar, mas sentia que a bateria logo
começaria a acabar.
— Sim, ela está no quarto, acho que vai sair — declarou a
garota, então notei suas vestes de banho. A agradeci e deixei que
continuasse o seu caminho até as piscinas.
Meus passos me levaram ao andar de cima, mas antes que
adentrasse o corredor, Olivia surgiu na minha frente toda arrumada
para sair. Com uma blusa colorida e um jeans largo que era todo
aberto dos lados.
— Ayla, o que está fazendo aqui?
— Vim falar com você — declarei séria e a sua postura deixou
de ser animada, para recair em algo mais sério também.
— O que Kian…
— Não foi ele dessa vez! — a cortei. Não sei como falaria aquilo
sem parecer uma paranóica, mas fato era: eu tinha consumido
droga sem ser por livre arbítrio e ela era a líder da fraternidade. — A
bebida ontem…
O seu sorriso foi forçado e eu sabia disso.
— Que tal irmos para outro lugar? — questionou enquanto eu
não conseguia formular meus pensamentos.
Decidi segui-la até o conversível que a garota tinha. Ela abriu a
porta e jogou a bolsa ali, finalmente virando para mim. Eu ainda
estava tentando criar coragem para falar com ela, porque aquela
situação era um pouco vergonhosa.
— Ontem, no camarote, eu, hum… Bebi algo que…
Ela segurou em minhas mãos, e notei a temperatura gélida de
sua pele. Levantei meu rosto para o seu, e havia um pouco de culpa
ali.
— Kian me contou o que aconteceu. Eu não sabia que haviam
bebidas adulteradas ali. Sempre existem drogas, mas não é comum
colocarem em uma bebida que todos estão consumindo.
A garota abaixou a cabeça enquanto deixava seus dedos
brincando com os meus. Ela parecia entristecida, realmente
arrependida, agora que estava ciente da situação. Isso fez com que
eu quisesse esganá-la um pouco menos.
— Isso é grave, bebi aquilo sem saber.
Seus olhos caramelo me encararam com um arrependimento
genuíno.
— Eu sei, sinto muito, de verdade.
— Isso é normal nas festas? É sério. Você tem ideia do quão
grave é isso? Pessoas acabarem drogadas por não saber o que
bebem?
— Existe esse tipo de coisa em várias festas. Aqui não seria
diferente.
Abri a boca para rebater, mas ela segurou na minha mão.
— Acredite em mim quando digo que eu não concordo com
isso. Definitivamente não. Na Kappa Phi não entram drogas, mas na
Seven é diferente, tá bom?
Assenti e virei-me para frente novamente.
— Quer carona para algum lugar? — questionou.
— Não, eu vou andando… — declarei.
— Que tal fazermos compras juntas? — ela questionou assim
que abriu a porta do carro. — Preciso comprar um vestido novo para
a maldita festa na mansão Wilding. Vai ser bom ter alguém pra me
ajudar.
Ela estava tentando consertar as coisas. E por Deus, eu queria
ainda um pouco de distância dela pela minha irritação, mas talvez
Olivia me dissesse mais sobre esse evento. Fechei a porta do carro
e transpassei o cinto sobre o meu corpo novamente.
— Tudo bem, vamos lá.
A voz de Ariana Grande dominou o ambiente. Precisava ficar
menos irritada com a situação e ao mesmo tempo tinha que me
manter acordada, algo que agora começava a pesar. A cidade tinha
um shopping, mas Olivia foi a uma das ruas pelo centro, onde havia
lojas de vestidos para festa. Ela estacionou na rua mesmo e nós
descemos indo à primeira loja.
Vestidos longos e elegantes estavam espalhados por todo o
local. Haviam todos os tons, todos os estilos. Assim que entramos
na loja, uma atendente veio até nós. Ela foi simpática e Olivia
correspondeu com toda a educação dizendo que daria uma olhada
nos modelos e qualquer coisa a chamaríamos. Os dedos entupidos
de anéis de Olivia passavam pelos tecidos enquanto eu sentia sono.
— A festa na mansão do Senador Wilding, é para quê? —
questionei curiosa, vendo Olivia sorrindo divertida.
— Em teoria para arrecadar dinheiro para várias organizações
que cuidam de crianças em situações de vulnerabilidade social no
estado — Olivia respondeu, me encarando, mas logo seus olhos
voltaram-se aos vestidos. — Na realidade? Para ele exibir a sua
fortuna e nós enchermos a cara de champanhe caro.
Eu ri fraco.
— Kian tem a quem puxar então. É um playboy nato. Roupas
caras, arrogante, prepotente, cheio de si…
Sentei-me em um estofado que havia ali, encostando as costas
de forma a tentar não desmaiar de cansaço.
— Não é bem assim! — ela replicou com um tom irritadiço. —
Kian e Benjamin são bem diferentes.
— Nós sempre temos algo parecido com nossos pais, Liv,
mesmo que a gente não admita — comentei e bocejei.
Ela me respondeu com silêncio, parecendo pensar sobre o que
eu havia acabado de dizer.
— Então talvez eu seja igual ao meu pai, porque se depender
da personalidade de minha mãe… Bom, de qualquer forma, é uma
pena nunca ter conhecido ele — ela soprou, como um pensamento
alto, algo que talvez eu não devesse ter ouvido. — Mas por que o
interesse repentino na festa do Senador Wilding?
— Nada… É que Stephany Wilding me convidou, na verdade,
insistiu com entusiasmo para que eu fosse — declarei como se não
fosse nada demais, recebendo um olhar curioso de Olivia. — Pior
que isso, ela pediu que eu acompanhasse Kian.
Olivia caiu na gargalhada, sua expressão era de quem duvidava
das minhas palavras por um instante. Mas ao perceber que aquilo
não era uma piada, seu rosto foi dominado por um choque.
— Uau, Kian deve estar possesso, mas acatou o que Stephany
disse com educação.
— Bingo!
Relaxei ainda mais a minha postura.
— Sabe, Pietra, minha irmã mais velha, geralmente o
acompanha, mas se não vai, bem, algo deve ter acontecido… —
especulou Olivia, mas sem real interesse naquilo. Era como se não
ligasse para tal fato.
Um vislumbre de Kian e Pietra voltou a minha mente, mas os
espantei dali.
Sua mão parou na frente de um vestido rosa claro.
— O que acha desse?
Encarei o modelo que parecia ter sido arrancado de uma
princesa da Disney por conta da saia esvoaçante e brilhos.
— Combina com você.
Um sorriso singelo brotou em seus lábios.
— Vou experimentar!
Ela entrou no provador e me joguei em um sofá de espera da
salinha com provador único. Eu tamborilei os dedos no encosto,
ainda pensando no dia de ontem.
— Uh, Olivia?
— Sim — ela gritou.
— Conheci Pietra, há alguns dias…
No mesmo instante ela abriu a cortina.
— Ah, é? — Apertou um sorriso nervoso. — Uh… Como se
conheceram?
— Fui a Seven falar com Kian e ela estava lá brigando com ele
— respondi honestamente. Olivia riu divertida.
— Esse é o normal deles. Vivem brigando por conta dos
negócios.
— Deu para perceber — comentei, superficialmente.
Ela suspirou e depois girou no eixo, avaliando o vestido. Uma
expressão triste brotou em seu rosto e resolvi avaliar os vestidos
das araras de roupas para buscar algo menos chamativo para mim.
— Não tenho um relacionamento muito bom com minha mãe e
minha irmã — confessou ela — Por isso não comento muito sobre
as duas.
— Tudo bem — respondi, mesmo que desejasse perguntar
mais.
Parecia um terreno irregular, porque houve uma súbita mudança
no clima entre nós.
Peguei um vestido preto liso e sorri, levantando-o para Olivia.
— O que acha desse aqui?
Ela sorriu largamente.
— Kian pode ter problemas com uma mulher gostosa ao lado
dele. E definitivamente, você vai ficar muuuuuito gostosa nesse
vestido.
Rolei meus olhos, mas não escondi um sorriso ao pensar
naquele babaca tendo problemas por causa de mim.
— É engraçado ver essa cidade tão quadrada e você andando
comigo… Não faz muito sentido — comentei pensativa. — Digo,
olhe para nós. Você está com um vestido rosa claro, parece uma
princesa… E eu… Sei lá, somos diferentes.
Seus olhos recaíram doces sobre mim. Um sorriso surgiu em
seus lábios e ela aproximou-se, parando na minha frente.
— Podemos ser diferentes por fora, mas desde o primeiro
instante tive certeza que você era mais parecida comigo do que
poderia imaginar.
— Como assim?
— Somos mais fortes e teimosas do que conseguimos admitir.
Um sorriso brotou em meus lábios, mas logo minha consciência
me cobrou: Olivia estava me dando sua amizade de forma tão bela,
enquanto eu estava me aproveitando de cada segundo naquela
cidade para um objetivo nem tão nobre assim.
Tomei um gole de café e voltei a editar a imagem que preenchia
a tela do computador. Precisava terminar de verificar algumas fotos
da última festa para postá-las e depois fechar o arquivo dos
resultados para enviar a Kian. Ou melhor, a Israel.
O clima na cidade começava a ficar mais ameno, mas ainda sim
abafado demais para uma calça. Meus cabelos estavam puxados
um pouco para trás pelos meus óculos de sol sobre a cabeça,
enquanto estava em um dos cafés do campus. Não havia
conseguido trabalhar no Domingo porque precisei dormir por horas
e mais horas até recuperar as minhas energias. Agora estava
correndo atrás do prejuízo em plena segunda-feira cedo.
Eu tinha os fones nas orelhas quando tirei o olhar da tela do
notebook e encarei o garoto sentando-se na minha frente, um pouco
surpresa por aquela aparição repentina dele. Principalmente no
campus da UK, onde eu nunca tinha o visto até então.
— Tá cedo demais pra você testar minha paciência com sua
abordagem arrogante — soprei pegando meu café e bebericando
mais um gole, enquanto retirava os fones dos ouvidos para ele ter
certeza que eu o ouvia. Era o segundo que tomava.
— Ah não diga… Eu disse que te procuraria na segunda —
rosnou, sorrindo de forma raivosa. — Você não acha que já se
meteu demais onde não é chamada? — Kian disparou com seu mal
humor típico. Deus, aquele homem poderia realmente ir fazer sexo e
se desestressar.
Estreitei meus olhos, avaliando-o. Ele vestia uma camiseta cinza
chumbo, jeans pretos e usava óculos de sol. Para a minha surpresa,
carregava uma mochila simples preta.
— Do que está falando agora? Não tenho paciência para
enigmas. — Cruzei os braços em defensiva, apesar de ter claro na
minha mente o porquê da sua birra.
— Não quero você na minha vida pessoal, Brown. Ligue para a
minha mãe e invente uma desculpa. Nem fodendo que vou
concordar com isso — disse ele, esticando o telefone para mim. —
Você não sabe onde tá se metendo — alertou-me.
Abaixei a tela do meu notebook e encarei-o um tanto quanto
cansada. Não sabia mais como me aproximar de Kian, porque em
um dia ele estava cedendo, no outro ele estava como um cão
raivoso novamente e isso estava me cansando. Não iria desistir do
meu plano, mas era exaustivo tentar estar perto de alguém que
claramente não me queria por ali.
— Olha, eu estou trabalhando pra você porque realmente
preciso do dinheiro e estou fazendo algo que realmente gosto, mas
isso —aponto para nós dois. — eu já tô cansada de repetir. Caso
ainda não tenha notado, sou boa no meu trabalho e isso tem
beneficiado a nós dois. — Comecei dizendo me inclinando um
pouco para frente, encarando-o. — Não tive a intenção de encontrá-
lo no Domingo, mas aconteceu, tá legal? Essa cidade parece
grande e ao mesmo tempo pequena como um bairro… — bufei,
frustrada com a sua falta de confiança. — Foi a sua amada
madrasta quem insistiu para que eu fosse a tal festa. Pior, ela
insistiu que eu te acompanhasse. Posso não aparecer já que quer
tanta distância de mim, mas te garanto que não tô fazendo nada por
você.
— Não é o que parece.
— Kian. Eu gostei da Stephany, ok? Ela parece uma pessoa boa
e não consegui dizer não, eu… — mordi os lábios, nervosamente —
Só queria que ela se sentisse bem. Não sei mas, ela me lembra
alguém… E… — parei de falar, sentindo-me ligeiramente nervosa e
desviando dos seus olhos.
Stephany lembrava muito minha mãe. A forma como ela
conversava e… Me dei conta daquilo naquele segundo. Meu
coração bateu mais forte.
Puxei a minha bolsa da cadeira e saquei o celular ali de dentro,
vendo o horário e uma mensagem de Daniele com uma foto de
Sandy. Deixei para respondê-la depois, enquanto enfiava minha
agenda e a caneta que estava sobre a mesa na bolsa. Minha
expressão estava séria e impassível como ele costumava estar
sempre comigo. Ele merecia isso. Eu já estava ali há tempo demais
tentando e tudo o que Kian me dava eram palavras curtas e
babaquices. E um lado meu estava realmente cansando daquilo.
— Como consegue ser tão prepotente? — disparei, sentindo
uma irritação sem precedentes. — Nem tudo é sobre você, Wilding.
Deixe de ser esse oito ou oitenta, tá? Um dia nós temos um avanço
no seu escritório e depois você está espumando sobre eu ir a uma
festa… Estou cansada disso. Talvez, seja melhor tratar as coisas
com Israel — murmurei quase para mim mesma.
O vi soltar o ar pelos lábios, surpreso pela minha última fala.
Quando estava a ponto de puxar meu notebook, Kian segurou
minha mão, me chamando total atenção. Encarei seus nós dos
dedos machucados, com casquinhas ainda decidindo se fechariam
a sua pele ou não. Aquilo era resultado do que Pietra havia cuspido
em sua cara no sábado?
— Não gosto de estranhos chegando assim do nada,
principalmente quando invadem a minha privacidade com a minha
família.
— Ah, por isso você não tem uma namorada! Tá explicado… —
debochei, ácida.
Suas narinas se abriram e a sua expressão se fechou ainda
mais. Desisti de ficar olhando para ele e enfiei o computador na
bolsa. Levantei-me e Kian colocou duas sacolas sobre a mesa.
Sacolas grandes.
— Eu gostaria muito que você não fosse, mas se for, Stephany
providenciou tudo. O endereço, onde me encontrar para irmos
juntos, está dentro da sacola do vestido — ele disse levantando-se e
ficando na minha frente. Seu corpo acabou inclinando-se levemente
em minha direção. — Olivia disse que você tinha ficado gostosa
nesse vestido, espero que goste.
Minha boca ficou seca, mas outros lugares corresponderam
bem a sua frase, principalmente com o adjetivo gostosa sendo
dirigido a mim. Encarei-o afastando-se.
— Vou esperar os e-mails até quinta-feira.
Assenti e ele me deu as costas.
— Kian? — perguntei, e ele parou, há alguns passos da mesa
— Eu estava no seu escritório, na festa, porque eu queria dormir.
Pulei para trás do sofá. Desculpa — pedi, em um sopro.
Ele não respondeu. Não sabia se, de fato, ele acreditou naquilo.
Não sabia nem se eu, em seu lugar acreditaria naquilo, mas
esperava que sim. Enquanto ele saiu do lugar, não tinha só os meus
olhos em seu corpo, mas o de vários outros alunos em si. Minhas
bochechas estavam quentes e certamente rosadas. Mas o fato era:
o meu corpo todo estava inflamado.
Maldito Kian! Maldito rostinho bonito com ar de cafajeste!
Encarei as sacolas e as puxei para baixo, tirando-as da mesa e
sabendo que não as abriria até chegar em casa novamente.
Vários alunos me olhavam e eu só queria sumir dali. Peguei
meu copo vazio e o joguei no lixo. Caminhei em direção a porta e
saí para o calor, dando de cara com Trenton e mais dois caras
dando risada. Não demorou para os seus olhos azuis me captarem
e na luz pude notar uma pequena pinta sobre seus lábios, que o
dava um charme a mais. Ele sorriu e afastou-se dos rapazes vindo
na minha direção.
— Oi, Ayla…
Me surpreendi dele lembrar o meu nome. Não evitei sorrir.
— Oi, Trenton.
Desci as duas mãos para segurar as duas sacolas na minha
frente, sem saber bem o que faria com as minhas mãos. Seus olhos
foram a minha ação e ele pareceu surpreso.
— Wilding entrou com essas sacolas e agora você está com
elas — constatou pensativo.
— Olivia, ela pediu para ele me entregar. — Não era tão mentira
assim. — Enfim, ele e a nuvem negra que ele carrega nos ombros já
se foram, então por favor, podemos não falar dele?!
Ele riu divertido.
— Bem, são roupas de gala, a julgar a loja estampada… Devo
esperá-la na festa do Senador Wilding, então?! — Trenton era
analítico.
Era líder de fraternidade, e pior, era líder da fraternidade da
trapaça, aquele homem tinha cara de quem cheiraria uma mentira
há quilômetros de distância e isso era problema para mim.
— Talvez… — soprei e seu sorriso vacilou.
— O que você e Kian tem?
Uni meus cenhos e ri, nervosa. Um pouco afetada pela
intensidade e curiosidade repentina de Trenton. Talvez tivesse sido
um erro rude meu beijá-lo, mas usaria a desculpa de estar fora de
mim para aceitar que esse fato tinha acontecido já e não haveria
como desfazer.
— Nada, ele é meu chefe basicamente, só isso. — Ele assentiu
e esticou seus dedos até tocarem em minha pele exposta do braço.
Um arrepio singelo dominou minha pele. — Então, nos vemos por
aí! Preciso ir, Trenton.
Mais uma vez ele não usou palavras, apenas meneou a cabeça
e afastou-se. Enquanto eu focava em ir embora daquele campus de
uma vez, ansiosa por experimentar o que que tivesse aqui dentro.
Gostosa.
Ri com o pensamento da palavra nos lábios de Kian. Será que
eu arrancaria essa constatação dele quando ficasse pronta para o
evento de Sábado?
Eu não podia negar o quão ansiosa estava.
Aquela situação era totalmente constrangedora.
Lembrei a mim mesma porque concordei com aquilo e respirei
fundo, avaliando o reflexo no espelho do quarto. Por sorte, Yue e Tai
não estavam em casa, então, não teria que explicar muito sobre a
minha saída dentro de um vestido de festa, joias falsas e
maquiagem.
O vestido preto moldava meu corpo de maneira perfeita. O
caimento rente ao corpo e o tomara que caia realçava minhas
curvas. Os sapatos de salto preto, clássicos, davam um ar elegante
junto aos brincos com Swarovski falsas – que eram a minha
contribuição quase medíocre ao meu look sofisticado - e o batom
vermelho sangue.
E, apesar da oportunidade ser perfeita para tudo o que eu tinha
planejado, estava tão ansiosa quanto o primeiro dia em que estive
na Seven. Era a minha chance, o meu maior trunfo.
Eu estaria frente a frente com todos os Wilding.
Inspirei, mais uma vez, e depois soprei o ar para fora dos
pulmões um pouco mais calma. No final do movimento, meu
telefone vibrou sobre a cômoda e o busquei. O carro de aplicativo
estava próximo, por isto, caminhei para fora do quarto, carregando a
bolsinha com documentos na mão.
Saí do prédio, me equilibrando nos saltos finos e entrei no carro.
Assim que o veículo entrou em movimento, abri um pouco da janela
atrás de ar para ajudar a aplacar a ansiedade. Funcionou, e mal vi o
caminho até a região de Paradis, o bairro onde Kian morava; assim
que saí do carro, meus olhos encheram-se com a visão da rua
movimentada, repleta de prédios grandes e poderosos. Eu sabia
que algumas ruas acima, os condomínios fechados com mansões
começavam a surgir, mas aquela região ainda possuía certo
comércio, o que justificava a movimentação.
Caminhei na direção do hall do prédio e acabei sorrindo ao
lembrar-me que Kian gostaria que chegássemos juntos na festa e
não gostou nem um pouco do fato de que eu iria até ele. Bom, pelo
menos ele era um cavalheiro e se ofereceu para me buscar em
casa. Neguei, obviamente, tentando manter minha privacidade ao
máximo, o que também evitaria possíveis perguntas oriundas dos
irmãos Yang.
Era quase como se eu levasse duas vidas diferentes em
Kardama: aquela com Yue e Tai, de uma maneira mais relaxada; e
claro, aquela com Olivia, Hugo, as garotas da Kappa Phi, tudo o que
envolvia Kian e a boate.
Assim que meus pés tocaram o hall, caminhei até o balcão com
um guarda e anunciei que estava ali esperando por Kian. Para a
minha surpresa, o homem disse que avisaria Kian e que eu poderia
aguardar em um dos enormes sofás da recepção. Eu imaginei que
teria uma pequena amostra do apartamento de Kian e, talvez,
alguma oportunidade interessante para investigá-lo. No entanto,
parecia que Kian tinha atingido seu limite máximo de proximidade
naquela noite.
Afundei no estofado bege do sofá e retirei o telefone da
bolsinha. Eu não tinha o número de telefone dele para ligar e
apressá-lo, e ele não tinha nenhuma rede social para enviar uma
mensagem… O que restava era passar um pouco do tempo no
aparelho. Enviei algumas mensagens para papai e Dani, recebi uma
foto de Olivia pronta para o evento e também verifiquei alguns e-
mails.
Quando passava dos quinze minutos de espera, bufei alto,
incomodada pela demora. Foi quando vi uma movimentação escura
em meu campo de visão periférico e levantei os olhos.
Estava feliz por ter escolhido esperar sentada, porque se tivesse
em pé... minhas pernas teriam falhado com aquela visão.
Kian parou em minha frente e eu o inspecionei da cabeça aos
pés. Ele usava um Black Tie preto de três peças e tinha os cabelos
jogados para trás, parecendo levemente úmidos. Não evitei sorrir
quando notei que ele não usava gravata, já que era algo clássico
para o código de vestimenta daquele evento. Sua cara de menino
rico sempre esteve ali, ele vivia de preto, mas eram roupas de
marca e eu sabia. Ele exalava luxo, e agora só tinha a mais certeza
disso, porque ele estava incrivelmente lindo naquela roupa.
Era uma visão e tanto.
Enquanto eu hiperventilava e o secava com os olhos, ele tinha
um olhar tedioso enquanto abotoava os punhos da camisa preta,
sem me olhar.
— Você não parece muito empolgado com o evento de hoje —
comentei, soando amigável e me levantando, diminuindo a distância
entre nós.
— Um evento recheado da pior espécie humana bebendo vinho
caro e falando sobre negócios? Ah, não é o meu tipo de lugar
favorito.
Não evitei um sorriso, porque eu concordava com o que ele
tinha dito, afinal de contas. Kian, então, levantou os olhos para o
meu rosto. Vi o exato segundo que suas pupilas dilataram e os
olhos inspecionaram cada parte do meu rosto, descendo
demoradamente pelo meu corpo, até os pés.
Um rastro de calor espalhou-se pelo meu corpo à medida que
seu olhar retornou para o meu rosto e o vi engolir em seco,
demorando os olhos no meu colo exposto.
— Gostou? — perguntei. Seus olhos vieram para os meus,
firme. Ele achou que eu estava gostosa? — Demorei um tempo
fazendo isso. — Apontei para o meu rosto, mas principalmente para
os fios médios do meu cabelo preso em um penteado trançado.
Kian não respondeu, apenas manteve o olhar no meu.
— Ainda não sei porque concordei com isso — ele resmungou.
— Para agradar a sua madrasta, que é uma ótima pessoa. E
claro, seu pai — lembrei, e não deixei de notar como ele tensionou o
maxilar na menção ao seu pai. — O.K. Então tenha compaixão por
nós e não torne esse evento algo entediante. Provavelmente, não
precisaremos ficar até o fim, e estou fazendo isso apenas para não
decepcionar aquela pessoa incrível que é Stephany. Isso não é
sobre você — o relembrei, minha voz denunciando meu estado
afetado.
Ele sorriu, daquela forma irônica e os olhos quentes deslizaram
por mim mais uma vez, enquanto ele parecia divertido.
— Oh, querida, pareço um homem bom pra ter compaixão?
Estranhei a pergunta, mas a resposta não demorou para sair
dos meus lábios.
— Definitivamente, não — respondi, arqueando uma
sobrancelha em desafio.
Ele esticou a mão para mim, em um convite silencioso. Lembrei-
me do encontro que tivemos na festa da Kappa Phi, quando ele
beijou minha mão. Kian parecia ter sido educado com bons
costumes. Deixei com que minha palma se conectasse com a dele.
Sua pele estava fria, o que enviou uma série de arrepios pelo meu
corpo.
— Um homem bom tornaria as coisas fáceis para você, mas
como você mesma acabou de dizer, estou longe de ser um.
Não questionei, apenas o acompanhei, com a minha mão posta
em seu antebraço. Meus olhos arregalaram-se quando vi um Dodge
Journey branco estacionando ali. Ele tinha alugado um carro?
— Meu bom Deus — murmurei, chamando atenção de Kian.
Ele me avaliou com diversão em seu rosto por conta do meu
estado surpreso.
— Não é conveniente chamar Deus enquanto está com o diabo,
querida — disse, e eu torci o nariz para ele.
— Não me chame de querida — grunhi, enquanto ele abria a
porta para que eu entrasse.
Entrei no lugar e meus olhos encheram-se com a luz vermelha
no interior. Eu nunca tinha estado em uma limusine antes, então
quando ainda estava observando o interior, Kian deslizou para o
sofá em minha frente, ao lado de um pequeno bar. Ele abriu o botão
do paletó e depois esticou a mão, pegando uma garrafa com uísque.
Minha atenção voltou-se para ele, que serviu um copo tão depressa
que parecia que aquilo era algum tipo de salvação. Engoliu o
conteúdo em um tiro e depois serviu outro.
— Não parece inteligente chegar bêbado na festa da sua família
— comentei, sentindo o carro entrar em movimento.
Kian me olhou com indiferença.
— Vai por mim, é melhor estar sobre o efeito de álcool —
comentou de maneira amigável.
Aquele tinha sido o primeiro comentário amigável e natural
vindo dele. O que me surpreendeu. Meus olhos novamente
perderam-se no ambiente, e pude ouvir uma risadinha vinda dele.
— Nunca tinha andado em um carro desse?
— Não — respondi com um sorriso. — Minha família não tem
tanto dinheiro quanto a sua… quero dizer, vocês estão propondo
uma grande festa de gala que os convidados chegam em
limusines… — Ri sozinha.
— Ele está fazendo isso, não nós — disse Kian, firme,
ganhando meu olhar.
Seu tom tranquilo de minutos atrás pareceu evaporar.
— Como?
— Meu pai está oferecendo a festa — falou, curto, enquanto
engolia o resto do uísque. — Não se refira a nós como algo único.
— Mas a sua família… — comecei, ele interrompeu.
— Não, Ayla! — Kian falou, encerrando o assunto de uma
maneira confusa.
Engoli meus comentários e encarei a janela, observando a
cidade desaparecer e adentrarmos um grande condomínio
residencial. Meus pensamentos concentravam-se na forma estranha
como Kian referia-se ao pai.
Até onde eu tinha lido na internet, ou ouvido falar por Kardama,
a família Wilding era forte, poderosa e unida. Ou, pelo menos, essa
era a imagem que o senador Benjamin Wilding vendia a todos.
Não demorou mais do que alguns minutos para que o carro
chegasse até os portões grandes da casa dos Wilding. Consegui
observar os detalhes do grande jardim pela iluminação presente
entre os arbustos. Era tudo de encher os olhos.
Quando a mansão entrou no meu campo de visão, engoli em
seco. Era esplêndida. A construção era grande, com requintes
antigos e modernos misturando-se.
O carro parou no local de desembarque e Kian se apressou em
tocar a maçaneta, no entanto, não saiu. Virou-se o rosto para mim e
disse:
— Mantenha a boca fechada para não me causar problemas e
tudo terminará rápido — ele disse, e não era um pedido sutil.
Torci os lábios.
— Você mesmo disse que não sou boa com ordens.
— Faça algum esforço hoje — pediu, saindo do veículo e depois
estendendo a mão para mim.
Aceitei o apoio e saí do carro, sendo recebida por uma
quantidade significativa de pessoas subindo o lance de mais de dez
degraus para a entrada da casa.
Kian chamou minha atenção enquanto estendia o braço e
entrelacei o meu ao dele. Segurei a barra do vestido e começamos
a subir as escadas. Não deixei de notar, no entanto, que, a cada
degrau, a respiração de Kian parecia ficar mais instável. Aquilo
estava me preocupando, já que era para eu estar ansiosa, mas, ao
que tudo indicava, Kian também não estava confortável.
— Você foi criado nesta casa? — perguntei, tentando distraí-lo.
Ele me olhou rapidamente, um pouco confuso, provavelmente
decidindo se valia a pena se abrir comigo. Me senti uma vadia por
me aproveitar de um momento, aparentemente, de vulnerabilidade
dele.
— Sim — respondeu, curto.
Quando atingimos o topo, soltei o vestido e deixei meus olhos
se perderem no que conseguia visualizar do interior da casa.
— Deve ser muito bom ter tanto espaço para correr — comentei,
tentando soar empolgada.
— Não quando se tem tantas aulas extracurriculares como as
que eu tinha — Kian resmungou.
— Ah, deixe-me adivinhar — brinquei, olhando para seu rosto
sério. — Aula de tênis? Uh, talvez golfe…
Ele franziu o cenho, mas depois concordou, me fazendo rir.
— Claro, um filho mimado. Não me diga que você também tinha
aula de violino?
— Piano — respondeu, com uma pitada de divertimento na voz,
o que me deixou um pouco mais aliviada.
Entramos na casa e o ar me faltou por um minuto. As paredes
brancas refletiam os lustres de luzes amarelas e a decoração
sofisticada. Grandes vasos dourados comportavam copos de leite
brancos com ramos, contrastando com as louças cor de ouro.
Tudo parecia requintado e caro.
— Não se impressione — avisou Kian. — Tudo aqui fede.
Abri a boca para perguntar sobre aquilo, mas Kian me arrastou
para dentro do lugar amplo e repleto de pessoas em trajes de gala.
O vi cumprimentar algumas pessoas com um movimento da cabeça
algumas vezes, mas nunca mostrava os dentes ou aproximava-se.
Diversos olhares curiosos estavam sobre nós. Claro que o filho
mais velho do anfitrião chamaria atenção, mas talvez fosse o fato
dos meus braços tatuados à mostra em um local onde as pessoas
claramente eram conservadoras. Contudo, foi só encarar a minha
companhia de relance para constatar algo que foi evidenciado
desde o primeiro instante: Kian, de fato, tinha problemas em
interações.
— Céus, Pietra está vindo para cá — ele disse, entredentes. —
Não estou com paciência para negócios, e aquela lá só sabe falar
disso.
Virei o rosto para onde ele estava olhando, encontrando Pietra
Lopez próxima a irmã e Hugo. Eles estavam do outro lado do salão.
Sorri para meus amigos, mas logo os perdi de vista quando Kian
nos arrastava pelo lugar.
Prestes a reclamar, perdi a postura quando ele girou no eixo,
para a minha frente. O movimento foi tão rápido, que só então notei
onde estávamos. Na pista de dança.
— Hugo e Olivia estão ali, podemos…
— Cale a boca e dance comigo — exigiu.
Estreitei meus olhos.
— Estúpido! — rebati, mas me calei quando as mãos de Kian
fecharam-se em minha cintura e ele me puxou contra o seu corpo.
Seu perfume sutil me invadiu e me prendi em seus olhos,
enquanto minhas mãos voaram até seus ombros. Notei alguns
olhares para nós, através da visão periférica, mas nada conseguiria
me fazer desviar do rosto furioso de Kian.
Ele sempre estava furioso, como se estivesse sempre com
raiva.
E, por alguns segundos, me perguntei o porquê.
— Não sou boa em obedecer — o lembrei, com a voz em um
sussurro.
Até então, não tinha observado a música nada clássica que
ressoava no ambiente. O tom do baixo e violoncelo eram mais
fortes, lembrando-me o tango argentino.
— Eu sei — ele disse, segurando minha mão, ajustando a altura
para que déssemos início à dança. — Só que eu sou persistente
nos meus objetivos.
— Fazer com que eu te obedeça é um objetivo?
Ele deu um passo em minha direção, eu recuei, movendo meus
pés de acordo com a música. Kian não quebrou nosso olhar
enquanto nós dançamos.
— Sou obcecado por controle, Ayla — ele explicou o óbvio, me
fazendo sorrir enquanto arrastei meus pés para o lado e segurei
com mais força em seu ombro, o surpreendendo por conduzir o
movimento seguinte.
— Me conte algo novo, querido — respondi, batendo meus pés
com mais força no chão e deixei meu quadril mais solto.
Kian desceu os olhos rapidamente para os nossos pés e
apertou os lábios em um meio sorriso. Depois, puxou meu corpo
para mais perto e seu rosto ficou ao lado da minha cabeça. Seus
lábios roçaram na minha orelha. Tentei me manter firme àquele
toque, mas a música ganhou um tom mais sombrio e forte, fazendo
com que nós continuássemos o balançar rítmico dos nossos corpos
quentes.
Sua respiração no meu pescoço me fez estremecer. Senti os
pelos dos braços arrepiarem quando me lembrei do que ouvi em seu
escritório. E não tinha a ver com Pietra. Depois de alguns dias,
repassei aquela noite com detalhes. Devo ter ficado presa demais
na cena dos dois e também nas empresas fantasmas que quase
não foquei no comentário que tinha ouvido da boca da Lopez mais
velha.
— É verdade que você bateu em um homem até quase a
morte? — perguntei, aproximando mais ainda nossos rostos.
Agora Kian tinha total controle da dança. Eu estava nervosa
com o rumo da nossa conversa, mas precisava perguntar. Ele
afastou o rosto do meu, encarando meus olhos daquela maneira
fria.
— Talvez.
Uma resposta vaga. Ótimo, pensei. A música chegou ao fim.
Nenhum de nós se afastou. Uma salva de palmas ressoou para a
banda no palco montado no meio do grande salão de entrada da
casa, onde a festa acontecia.
Outra música iniciou, e Kian moveu os dedos pela minha
cintura, fazendo uma série de arrepios correrem pela minha pele.
Suas sobrancelhas escuras arquearam-se, em uma pergunta
silenciosa se eu aceitaria mais uma dança.
Aliviei meu aperto em seu ombro e concordei com um
movimento da cabeça. Se eu precisasse, dançaria uma noite inteira
por respostas.
— Não vai me confirmar?
— Me diga o que você acha… sim ou não? — ele brincou.
Semicerrei os dentes, um pouco irritada com aquele joguinho.
Bufei e desviei dos seus olhos por alguns segundos, avaliando o
ambiente. Olivia e Hugo estavam em um canto, dançando, mas foi a
imagem de Tai Yang que me chamou atenção. Ele estava perto de
um vaso, com os olhos em mim e em Kian.
— Seria eu, capaz de bater em um ser humano até o seu fim?
— ele brincou, ronronando no meu ouvido de maneira sombria.
Virei meu rosto para ele.
Eu o olhei desconfiada, procurando por respostas em seus
olhos. No mesmo instante que os instrumentos de sopro ganharam
espaço na música. Deixando o movimento dos nossos quadris mais
próximos e prolongado. Se antes a música me lembrava tango,
agora era a salsa que ganhava espaço.
— Por quê? — arrisquei, com a expectativa de que ele
responderia.
— Porque ele mereceu — falou, impassível, confirmando o que
eu temia.
Meus olhos abriram-se mais em surpresa, pela indiferença na
voz dele.
— Não… Você não faria isso... — soprei, em descrença.
— Então só me prova que você, de fato, não me conhece —
lembrou, aproximando o rosto do meu e afastei-me o máximo que
consegui. — Deveria correr enquanto pode, Ayla.
Corra.
Foi isso que ele disse para mim no nosso primeiro encontro, no
corredor do segundo andar da Seven. Naquele instante, tudo o que
eu queria era, de fato, correr.
Não tive tempo para ter medo de Kian, já que, no instante
seguinte, seus olhos saíram dos meus e foram para o palco.
Lá estava a família Wilding, surgindo pela primeira vez na noite,
cortando a música para uma salva de palmas em comemoração à
chegada dos anfitriões. Meus olhos encheram-se de lágrimas no
mesmo segundo que pousei meus olhos em Benjamin Wilding: o
homem que acabou com a minha família estava no mesmo lugar
que eu. E mesmo depois de anos planejando aquele momento, não
conseguia controlar minha reação.
Eu ainda me lembrava da primeira vez em que ouvi sobre
Benjamin Wilding. Na época, eu tinha pouco mais de sete anos e
estava chegando em casa após a escola, no fim da tarde. Como
sempre, mamãe estava na cozinha, preparando um lanche para
mim e ainda usando sua roupa de hipismo. Ela era uma ex-atleta e
possuía uma escola de ensinamentos no terreno da nossa
propriedade, na província de Alberta no Canadá.
Lembro-me do cheiro das panquecas e do mel, mas o que me
chamou mais atenção foi o tom de voz alto de meu pai. Ele nunca
brigava comigo ou com ela, e foi o suficiente para me deixar em
alerta.
“Aquele homem estava aqui, de novo... Vicky! Estou farto de
chegar do trabalho e ter um homem com os olhos sobre a minha
mulher e na nossa casa”
Eu não entendi muito bem porque papai estava furioso. Havia
um homem observando a nossa casa? Mamãe sempre treinava
sozinha no período da tarde. Por inúmeras vezes, eu a vi treinando
enquanto passava com o ônibus do colégio, ou quando papai me
buscava na escola também.
Lembro-me de esgueirar o corpo até próximo a porta da cozinha
e observá-los, escondida.
“E você acha que eu já não pedi para o senhor Wilding ir
embora?” mamãe bufou, visivelmente irritada.
Ela estava de costas para mim, de frente para a pia. E papai
estava ao seu lado, ainda vestindo a camisa da corretora de imóveis
que trabalhava.
“Andrew… eu, só não sei o que fazer, tá bem? O homem
estaciona sua camionete na estrada e fica observando. Estou
incomodada com isso, mas também estou com minhas mãos
atadas”.
Os dois ficaram se encarando por algum tempo. Até que minha
mãe apoiou as mãos na bancada da cozinha e tombou o corpo
levemente para a frente, parecendo esgotada.
“Quero acreditar que ele quer comprar a nossa propriedade, o
que já é completamente frustrante. Mas depois daquele convite
inconveniente da semana passada, eu tenho certeza que o homem
não entendeu que tenho uma família”
Ela desligou a boca do fogão e depois virou-se para o meu pai.
Sua pele branca e cabelo preto eram iguais aos meus. Mamãe
envolveu o pescoço do meu pai com os braços e aproximou-se,
sorridente, tentando melhorar.
Ela sempre conseguia com seus sorrisos e beijos.
“Vamos esquecer isso, certo? Quero saber sobre a pintura da
nossa nova casa”.
Como se aquela nuvem densa tivesse evaporado, papai sorriu e
a abraçou pela cintura. Logo, revelei que estava ali e todos nós
comemos panquecas enquanto papai contava sobre a construção
do nosso novo imóvel no centro.
Nós estávamos prestes a ir embora da área rural naquele mês,
já que a propriedade estava ficando pequena para a escola de
mamãe e a nossa moradia. Eu sentiria falta do campo, mas estava
contente em morar perto dos meus amigos.
No fim, aquela mudança fez tudo mudar para sempre.
Naquela época, Benjamin Wilding estava iniciando testes de um
novo agrotóxico elaborado por sua empresa em uma plantação de
trigo vizinha a nossa propriedade. Por isso, ele rondava nosso
bairro, bem longe do sul da Califórnia e distante de qualquer
preceito legal americano.
Foi com as visitas recorrentes às propriedades que os seus
olhos caíram em minha mãe. Ele a observava como um maldito
maníaco. Aquela situação constrangedora não chegava ao fim, e o
casamento dos meus pais parecia estar por um triz.
No entanto, após três meses da nossa mudança e a constante
visita do senhor Wilding na escola de mamãe, ele se foi. Foram três
meses entre o início do seu trabalho por lá e todo aquele
constrangimento.
Não demorou muito para meus pais voltarem a ficar bem, no
entanto, logo após um ano, mamãe começou a ficar doente e
passou a ficar mais tempo em casa. Pouco mais de dois meses de
investigações, descobrimos que ela estava com câncer de pulmão
em estágio três. Nós desistimos de compreender a origem daquilo,
porque as coisas perderam o controle em poucas semanas.
Ainda me lembro do cheiro do hospital e da forma desnutrida de
mamãe. Seu sorriso se tornou uma memória distante. Nossa família
estava despedaçada e não podemos fazer muita coisa além de levá-
la para o hospital nas sessões de quimioterapia.
Aquela situação ficou um pouco mais complicada quando novos
casos de câncer agressivo chegaram à cidade, e, com a doença,
montantes de dinheiro como forma de indenização vieram para
manter o caso longe da mídia.
De algum modo, Benjamin Wilding havia conseguido que o
produto químico feito por sua empresa, que não tinha liberação das
agências sanitárias, fosse testado em grande escala no Canadá.
A associação da inalação dos agrotóxicos pelos trabalhadores e
residentes de propriedades próximas foi levantada por alguns
médicos do hospital, que logo foram transferidos do cargo ou
demitidos. Depois de anos, descobri os detalhes bizarros daquelas
demissões ou transferências, já que nunca esqueci as conversas
que meu pai tinha com sua família. De maneira sussurrada, quase
em segredo. Como se o senhor Wilding fosse uma lenda e tivesse
ouvidos apurados na cidade.
Todos tinham medo de processar o recém eleito senador da
Califórnia.
E para a minha sorte, ele se manteve sempre nas manchetes do
estado em que residia, me fazendo nunca esquecê-lo.
— Merda! — Kian rosnou ao meu lado, me fazendo acordar
daquelas memórias ruins.
Eu acompanhei seu olhar, indo diretamente para seu irmão mais
velho, caminhando na direção de um piano no palco.
— Ele não fez isso — o homem ao meu lado disse, parecendo
prestes a caminhar até seu pai ou fazer uma besteira.
Segurei em seus antebraços, apertando meus dedos no tecido
do paletó. Ganhei a atenção dos seus olhos, e vi quão perturbado
ele parecia.
— Calma — foi tudo o que eu disse, ainda nervosa e um pouco
tonta com a situação.
Os olhos de Kian pareciam uma bagunça, mas assim que
caíram para os meus lábios, próximos, vi uma breve rendição. Ele
inspirou uma quantidade significativa de ar e, depois, voltou os olhos
para os meus.
Daquela forma, ele não parecia ser um homem capaz de ferir
outro ser humano. Era só um garoto triste. Desci o meu toque até
suas mãos em minha cintura, sentindo os machucados cicatrizados
em suas mãos. Sim, ele tinha entrado em uma briga.
Tocando suas mãos e as abaixando, notei quando os lábios dele
se entreabriram, como se fosse dizer algo. Então, o som das teclas
do piano ressoou pelo salão, fazendo com que nossos olhos fossem
até o palco. Charles, o irmão mais velho de Kian, estava
concentrado na sua apresentação. O garotinho usava um terno de
três peças com tons de preto e branco.
Notei, no entanto, a postura firme e rígida dele, que, de vez em
quando, olhava de soslaio para Benjamin, ainda sentindo um leve
tremor quando meus olhos caíam no perfil dele.
A careca lustrosa refletia as luzes do salão. Sua roupa não
combinava em nada com sua áurea diabólica, já que o terno era
completamente branco. Não pude evitar uma comparação com o
filho, que parecia o reflexo oposto do pai.
Um arrepio terrível subiu por minha espinha quando o homem
virou o rosto, provavelmente sentindo que estava sendo observado,
e parou os olhos castanhos diretamente em mim.
Ofeguei, e antes que pudesse pensar sobre aquilo, segurei na
mão de Kian, que estava parado ao meu lado.
Por algum motivo, eu não conseguia desviar dos olhos dele. Do
maldito infeliz que matou minha mãe.
— Parece que ele não gostou muito de você. — A voz de Kian
surgiu, ronronada em meu ouvido.
Agora, ele parecia levemente divertido. Virei o rosto para ele,
minimamente.
— Você acha?
Ele estava inclinado para mim, com um sorriso nervoso nos
lábios. Era visível que Kian, apesar do divertimento, não estava nem
um pouco relaxado.
— Meu pai ama a moral e o ético, querida. Uma garota tatuada
com cabelos curtos segurando a mão do seu filho parece terrível
para o velho.
Comprimi os lábios em um sorriso nervoso, e não deixei de
perguntar.
— Ele sabe que o filho tem uma boate e é um grosseiro? Se
sim, deve saber que por trás desse rostinho bonito, há coisas que
podem ferir a santa moral.
— Sou um rostinho bonito então, hm?!
Rolei meus olhos.
— Foi só isso que ouviu do que falei?
— Respondendo sua pergunta: sim, querida, ele está bem
ciente que tenho uma boate — ele disse, voltando os olhos para o
irmão.
Quando fez o movimento, observei que a postura dele ficou
rígida. Kian parecia um pouco claustrofóbico, aumentando a folga do
colarinho enquanto o irmão tocava. Eu conhecia aquela sinfonia
como autoria de Bach. Kian tinha uma coleção daquele músico em
seu escritório inclusive.
Por que ele estava desesperado com aquilo?
Atrás dele, observei Olivia e Hugo, mas Pietra não estava junto.
Ao lado dele, notei que a família Müller e a prefeita da cidade, Grace
Lopez também estavam presentes. Sondei o lugar, buscando por Tai
e me surpreendi quando o vi na porta da entrada, parecendo ter
uma discussão acalorada com Pietra. No entanto, meus olhos
caíram por tempo demais em Trenton. O garoto estava nos fundos
do salão, vestido em um terno bem alinhado ao corpo, na cor cinza
chumbo, e me olhava com malícia. De uma forma que não gostei.
A música acabou e todos bateram palmas. Me dei conta que
ainda me segurava em Kian e soltei sua mão, ganhando sua
atenção em um movimento sutil da cabeça.
Não podia usá-lo para me segurar naquilo. Eu planejei vingança
pela morte da minha mãe desde os meus quinze anos, quando me
dei conta da dimensão daquilo. Alguém havia acabado com minha
família e havia saído impune. Então, me segurar a parte da minha
vingança, não era certo.
Meu plano inicial era me envolver com Kian e quebrar a família
Wilding de dentro para fora, descobrindo provas das suas
ilegalidades e juntando-as para uma denúncia formal na polícia
federal. Kian ferrou com meus planos. Esperava encontrar um
garoto mulherengo e cheio de amores, mas a personalidade dele
não foi nada do que imaginei. Então, agora, como sua funcionária,
eu tinha que usar de outros meios.
Minha cabeça ficou levemente bagunçada, porque lembrei-me
do que Kian tinha acabado de me dizer. Ele havia machucado, e
muito, um homem com suas próprias mãos. Aquilo não era boa
coisa.
Eu teria coragem de me envolver com alguém assim de maneira
fria?
Sim, Ayla.
Você não tem como voltar atrás.
Quis rir para mim mesma. Eu também, naquela altura do jogo,
não era uma pessoa boa. Havia conseguido documentos falsos, um
histórico tão mentiroso quanto, estava me aproximando de Olivia e
Hugo porque vi uma imagem deles e de Kian na internet e não dizia
verdades há muitos dias.
Eu poderia fazer isso.
— Qual a sequência de acontecimentos do evento? — perguntei
a Kian.
— Doações gigantescas, o cerimonialista anuncia as maiores e
a briga de egos começa. Quem fizer a maior doação, tem a honra
de ser recebido pelos Wilding em um jantar íntimo.
— Então, os moradores ficam mostrando suas fortunas através
de doações… E o pretexto disso é auxílio às crianças carentes?
Que contraditório… quero dizer, eles deveriam estar fazendo isso de
coração, não é?
Kian virou seu rosto para mim.
— Ninguém faz absolutamente nada de graça nesta cidade.
Mordi meus lábios e desviei dos seus olhos, agora observando
o palco.
— Preciso ir até lá… — ele disse, escovando o cabelo com os
dedos para trás e dando um passo para a frente.
Segurei em seu braço.
— Vou com você.
— Você não precisa — disse, firme.
— Eu sei, mas quero cumprimentar Stephany.
Para a minha completa surpresa, Kian apenas nos moveu entre
os presentes. Havia uma pequena fila no fim da escadaria do palco.
Todos estavam cumprimentando os anfitriões e a banda estava
novamente tocando.
A cada passo, minha garganta parecia fechar-se em ansiedade.
Quase caí quando Kian me soltou. Ele agachou o corpo, levemente,
e logo vi um garoto em seu colo.
— Kiiiiiiiiian — o ruivo disse, abraçando o pescoço do rapaz com
certa empolgação.
— E aí, campeão — falou o mais velho, bagunçando o cabelo
do garoto mais novo, que se eu bem me lembrava, chamava-se
Bryan. — Como você está apertado dentro disso — falou,
apontando para a camisa social e paletó.
Céus, o garoto não tinha dez anos e estava dentro daquilo.
Parecia desconfortável para uma criança.
Bryan fez uma careta, confirmando meu pensamento.
— Papai pediu para usarmos essas roupas.
— Ah, eu entendo — disse Kian, com os olhos indo para baixo,
onde Charles havia estava. — Oi, cara. — Ele se abaixou,
colocando o mais novo no chão e sorrindo para o irmão que havia
tocado. — Não sabia sobre as aulas de piano…
Charles suspirou.
— Papai…
— Tá, sei — ele cortou Charles, que também não parecia muito
feliz falando do pai.
Benjamin não parecia ser alguém de temperamento fácil.
— Essa é a sua namorada?
Arregalei os olhos quando ouvi o comentário vindo de Bryan.
Kian olhou para trás.
— Não — falou, olhando para o mais novo em seguida. —
Apenas bros, lembram? Sem meninas.
— Meninas são chatas — concluiu Charles. — Menos a mamãe
e a titia Piper.
Cruzei os braços e me aproximei, sem ser convidada.
— Em minha defesa, seu irmão é muito chato — falei,
recebendo um bufar de Kian. — Enquanto eu sou chata, ele é tipo...
muuuuuuuuuito chato.
O mais novo sorriu, divertido, enquanto o Wilding do meio me
analisava. Ele tinha um olhar parecido com o de Kian.
— Kian! — Ouvi uma voz firme chamar. — Já disse para não
brincar com as crianças em eventos sociais.
Minhas costas enrijeceram e acho que parei de respirar alguns
segundos. Vi algo se mover ao meu lado e aquele vulto branco me
cegou. Abaixei o olhar, encarando a barra do meu vestido por
alguns segundos. Sem coragem de encará-lo.
Meu coração batia com força contra as costelas. Senti a boca
seca e minha visão embaçar.
Levei um susto quando uma mão gelada tocou meu braço.
— Ayla, você está linda! — A voz de Stephany acalmou meus
nervos.
Sorri, antes mesmo de levantar a cabeça. Ela estava brilhante
dentro de um vestido nude e com os cabelos cor fogo cacheados,
combinando perfeitamente com o batom vermelho escuro. Abri a
boca para lhe cumprimentar, mas meus olhos ficaram-se em um
pequeno desnível no canto direito do lábio inferior. Como se fosse
um machucado.
Vermelho sempre foi a cor de batom que mais usei na vida e
sabia perfeitamente o que a maquiagem cobria. E, definitivamente,
aquilo parecia um machucado.
— Você está ótima, Stephany.
— Quando Olivia disse que você tinha ficado, hum… como vou
dizer, incrível. — Ela riu, provavelmente Olivia tinha dito gostosa
como foi para Kian. — Não imaginava que a escolha seria tão
perfeita, e…
— Stephany. — A voz de Benjamin cortou a fala da esposa.
Stephany abaixou a cabeça levemente e escorregou para o lado
do homem, forçando um sorriso sem muita empolgação.
— Pai — Kian disse, curto, se pondo ao meu lado.
Puxei uma respiração profunda e deixei meus olhos caírem em
Benjamin Wilding a pouco mais de um metro.
Fiquei impressionada com a velocidade que minha mente
trabalhava. Imaginei meus dedos enroscados no pescoço dele,
enquanto o levava para o chão, deixando toda a alta sociedade de
Kardama aterrorizada. Eles ficariam perplexos com a atitude. Depois
que Benjamin estivesse quase asfixiado em minhas mãos, eu
enfiaria um punhal em seu peito. Seu terno branco, imaculado,
ficaria manchado de sangue. Minhas mãos estariam ensopadas com
o líquido asqueroso e depois eu sorriria. E por que diabos, em
minha cabeça, Kian sorriria para mim ao final daquilo?
— Quem é essa?
Pisquei, acordando do meu transe e vendo que ele continuava
vivo em minha frente.
— Ayla Brown, esse é meu ilustríssimo pai, o senador Benjamin
Wilding.
— É um prazer, senhor. — Sorri, amargamente.
Os olhos de Wilding desceram pelos meus braços tatuados, em
total desgosto.
— Brown… — saboreou meu sobrenome falso em seus lábios
finos, e depois olhou para Kian, como se eu tivesse evaporado. —
Está com essa garota agora?
Abri a boca para responder, mas então congelei, com a mão de
Kian em minha cintura, me puxando para si lateralmente. Ele não
estava fazendo aquilo…
— Quem sabe. Você aprova?
Desviei os olhos do meu maior inimigo para Kian, surpresa.
— Kian… — alertou Benjamin.
— Estou começando a cogitar isso. — Kian virou o rosto para
mim, levantando a mão livre até a lateral do meu rosto em um
carinho sutil, fazendo minhas bochechas ficarem quentes e minhas
pernas fracas. — O que acha, querida?
— Basta — cortou o homem, mas em um tom baixo. — Preciso
que você faça um discurso hoje e…
Kian soltou meu rosto, mas apertou um pouco minha cintura ao
virar o rosto para o pai e a madrasta, que ainda continuava
cabisbaixa, quase apagada.
— Não acordamos isso.
— E desde quando preciso acordar algo com você previamente,
Kian?
— Se me permite interromper, senhor Wilding… — falei,
virando-me para Kian e levando meus olhos para o rapaz, batendo
as pestanas, enquanto alisei uma mão na frente do seu peito. — Eu
e Kian temos outros planos para hoje à noite, que são… inadiáveis.
Não olhei para a frente, apenas para Kian, que parecia contente
demais para desviar. Ouvi um murmurar raivoso do pai dele, que se
aproximou e disse, sussurrando:
— Durante anos você aparece aqui com a Lopez mais velha,
que é uma garota adequada, apesar de toda aquela postura
insolente e de ela ser uma mulher mais velha que você. E agora
mancha a nossa reputação desta maneira…
— Pai... — Kian virou o rosto para ele, e apesar do embate,
Kian parecia receoso com as palavras dirigidas ao homem. — Estive
aqui pela Stephany e os meninos. Não finja acreditar que eu falaria
em público. Agora, se me der licença, eu preciso dar atenção a Ayla.
Kian me girou no eixo e empurrou-me até a porta da saída.
Tudo em uma velocidade impressionante. Eu lutava para respirar
quando paramos para esperar o motorista com o nosso carro.
Não evitei uma risadinha com aquela situação.
Céus.
Eu estive na frente de Benjamin Wilding. E eu o deixei
enfurecido roubando a atenção de seu filho, que ao que indicava
parecia se dar bem fingindo coisas. Lamentei por um instante a
interação rápida como um tiro, mas sabia que faria outras
oportunidades aparecerem. Benjamin parecia ser o tipo que
intimida, mas eu me tornaria o tipo que executa.
Quando entrei no carro e sentei no sofá à frente de Kian, meu
coração ainda batia forte.
— Viu, até que foi bom você me trazer. Estou sendo a sua fuga
do show de horrores.
Ele me analisou de cima a baixo, e sorriu de lado.
— É….
— Eu que não vi muitos benefícios em te acompanhar neste
evento, além desse vestido caro e esses sapatos bonitos. Nem
consegui beber e comer o suficiente — bufei.
— Está com fome?
— Sim!
Kian apertou um botão no braço do sofá e disse:
— James, nos leve para o Soho.
— Sim, senhor. Para qual restaurante?
— O meu favorito.
O carro foi posto em movimento, mas, desta vez, fiquei
encarando o rosto de Kian enquanto o veículo de movia.
— Então, você e Pietra costumavam vir nestes eventos juntos…
Kian abriu dois botões da camisa, com os olhos ainda em mim.
Depois, relaxou contra o sofá e esticou o braço para pegar a garrafa
de uísque aberta anteriormente. Servia dois copos com o líquido.
— Você não parece fazer o tipo ciumenta.
Rolei os olhos para o comentário.
— Só estou sendo curiosa, como sempre. Vocês dois parecem
fazer negócios juntos, e ela é irmã da sua melhor amiga…
Ele me ofereceu um copo e eu o peguei, levando direto para os
lábios e bebericando um gole generoso.
— De fato, lidamos com negócios em comum. Ela sempre
esteve perto, já que eu e Hugo vivíamos na casa de Liv.
— Uma paixonite de infância, uh?
Foi a vez dele rolar os olhos.
— O que temos começou a acontecer só depois que assumi
uma parte dos negócios da família, ao sair do ensino médio.
— Além da boate você administra outros negócios? Cara, dá
pra entender porque você não tem namorada. Insuportável e viciado
em trabalho.
Kian bebeu um gole no uísque, depois, colocou uma única
pedra de gelo no copo. Ele ficou em silêncio por algum tempo e à
medida que os segundos passavam, observei as luzes da cidade
começarem a invadir o carro pelas janelas fechadas. Kian apoiou os
cotovelos nos joelhos, encarando o copo baixo entre as duas mãos.
— No que você pensou quando confirmei a sua suposição? —
ele perguntou, baixo.
Não respondi, tentando não deixar claro meus pensamentos.
— Descontrolado, furioso, indomável… — Ele riu, bebendo um
gole do líquido e me encarando.
— É o que todos pensam. Mas não sou assim.
— Então, o que você é? — a pergunta escorreu dos meus
lábios em uma velocidade impressionante.
Naquele instante, o carro parou.
Kian colocou o copo no bar e antes de sair do carro, me olhou e
disse:
— Um fodido pesadelo.
Um fodido pesadelo.
Kian parecia sempre transitar em dois estados emocionais: o de
pensamentos e falas depreciativas, e aquele arrogante, cheio de si.
No entanto, no último domingo e hoje, me deparei com um terceiro
traço da sua personalidade: o protetor.
Vi, tão claro como um rio de águas límpidas, a proteção dele
com os irmãos. E, então, por que ele estava enfatizando tanto seu
lado ruim?
De repente, meu estado de alerta fez com que enxergasse
melhor as variáveis: ele estava querendo me afastar, de novo?
Eu sorri para mim mesma.
Agora que tinha colocado meus olhos em Benjamin, a sensação
de vingança estava injetada em cada parte de mim, reafirmando
meus pensamentos terríveis sobre os Wilding.
Não havia dedicado dias e horas da minha vida com esse plano,
para desistir porque Kian não sabia socializar. Mudar-me para Nova
Iorque para estudar havia sido um bônus, mas, definitivamente, Yue
Yang estar na minha turma facilitou tudo. E o fato de Tai estar
envolvido com o jornalismo político também. A facilidade em entrar
na vida de Olivia e até mesmo o emprego que eu tinha agora… Era
como se o universo estivesse me ajudando, me dando a chance de
fazer justiça. Eu não iria desistir!
Após Kian conversar com o maitre do restaurante francês em
que estávamos, o homem de terno nos guiou na direção do salão.
Para o meu completo pânico, Kian colocou a mão na base da minha
coluna enquanto cruzávamos o hall de entrada do grande
estabelecimento.
Tentei não transparecer meu estado afetado, mas suspirei em
alívio quando adentramos o salão em meia luz, conseguindo
mascarar um pouco meu rosto quente. O lugar era requintado, com
velas nas mesas e muita madeira. Os candelabros nas mesas
pareciam ser dourados, refletindo nas toalhas peroladas e um
arranjo de lavandas.
O homem nos guiou até o fim do salão, onde quase nenhuma
mesa estava ocupada. Meus olhos arregalaram-se um pouco
quando Kian arrastou uma cadeira para mim. Eu não estava
acostumada a sair com homens cavalheiros, mas precisava me
lembrar que Kian era um deles - em seus gestos, pelo menos.
Ajustei o vestido e me sentei, aguardando Kian acomodar-se na
minha frente.
— Gerald, me traga o de sempre — pediu Kian, enquanto meus
olhos avaliavam as opções.
Por mais que falasse a língua, não eu era uma grande
apreciadora de culinária francesa. Geralmente, os restaurantes
franceses eram muito chiques e caros para mim.
— Então você e seu pai não se dão bem… — comentei,
fechando o cardápio e deixando-o sobre a mesa.
Kian abriu o paletó e depois o tirou, colocando sobre o encosto
da cadeira.
— Podemos não falar sobre isso?
— Tá legal. — Dei de ombros, observando um garçom chegar
com uma garrafa de vinho branco.
E com duas taças, pelo menos. No entanto, assim que o homem
serviu as nossas taças, notei como Kian parecia desesperado por
um gole. Ele bebia demais.
— Sobre o que vamos conversar?
Kian respirou fundo, bebendo da segunda taça ao relaxar um
pouco. Ele balançou a taça para os lados, me estudando. Eu já tinha
me acostumado, mesmo que pouco, frente à forma como Kian
tentava me decifrar.
Ele soprou uma risadinha com escárnio e aproveitei minha
irritação com aquilo para beber um longo gole do vinho.
Que era ótimo. Branco, seco e levemente floral no final.
— Você faz isso com o nariz todas as vezes que está irritada —
ele constatou, ganhando minha total atenção.
— Como é?
— Essa torção para o lado. Depois, levanta o queixo como se
fosse dona de si — ele disse, assertivo, enquanto levava a taça até
os lábios.
Arqueei as sobrancelhas, enxergando o suficiente para analisar
sua expressão arrogante.
— Não é a única que é boa em decifrar as pessoas, Brown —
avisou, colocando a taça sobre a mesa e, depois, uniu as mãos
sobre as coxas. — Reconheço que você esclareceu as coisas na
nossa conversa de segunda-feira, na cafeteria, mas ainda vejo você
como um parasita em alguns aspectos. Pergunta da minha vida
pessoal a todo momento, sempre está em volta de mim…
— Eu… — comecei a falar, mas ele me interrompeu,
continuando o monólogo.
— Apesar de detestar esse seu traço de personalidade
insolente e irritante, não gosto de machucar as pessoas sem que
elas mereçam. Por esse motivo, vou ser categórico com você.
Quero que você se envolva apenas com o marketing da boate e
mantenha distância.
— Por quê? — perguntei, depressa.
Larguei a taça sobre a mesa e espalmei as mãos no tampo.
— Eu gosto de você, tá legal? — disse, entredentes. — Por
mais que você também me irrite, gosto de estar na boate, fazer
parte disso… Quando não estou com Olivia, me sinto sozinha, e
estar envolvida com essa parte da Seven tem feito meus dias
melhores. E, caramba, não estou querendo que você acredite em
meu discurso emocional, mas é a verdade. Acredite ou não, é isso
que eu sinto.
Kian não disse nada por alguns minutos, e, então, aproximou o
corpo da mesa, diminuindo nossa distância.
— O que acha que as pessoas repudiam tanto em mim?
— Seu temperamento?
— Ah, não… com isso até você mesma lida. Pense em algo
moralmente errado…
— A Seven.
— Não, querida. A Seven é apenas a fachada do negócio —
confessou, tombando a cabeça para o lado. — Sabe porque estou
te mantendo longe, Ayla? Para você ficar segura.
Soltei uma risada curta, pegando a taça para beber um pouco
mais de vinho.
— Ah, é? Vai me pedir para me manter longe de você porque
você é o cara mau? Quebrado? — Sorri. — Me poupe, Kian. Já li
muitos romances para saber o que vem agora.
Entornei a taça depressa demais.
— Tráfico de drogas. Esse é o meu negócio da família.
Compreensão me atingiu no instante que ouvi suas palavras. As
drogas na Seven, meu copo batizado… Engasguei, sentindo o
amargor do álcool machucar meu esôfago.
Coloquei a taça com força demais na mesa, enquanto tentava
recuperar o fôlego. Meu rosto aqueceu, lágrimas brotaram em meus
olhos.
Corra, era apenas nisso que eu pensava.
Encarei os olhos dele, procurando por uma brincadeira ou
ironia. Não encontrei nada lá além do vazio.
— O quê? — Minha voz saiu trêmula.
Vê-lo admitir algo tão terrível me pegou de surpresa. Ele
sustentou meu olhar, mas não disse absolutamente nada.
— Você está mentindo.
— Eu pareço um cara que perde o tempo com mentiras?
Olhei em volta, desviando do seu olhar por alguns instantes.
— Existe um grande esquema em Kardama — explicou,
parecendo ter raiva em sua voz. — A polícia é controlada, os
prédios e construções pertencem a um único esquema, os jogos
políticos estão sempre em análise e… a parte imoral está entre
minhas mãos.
— Céus, a polícia… — soprei, levando a mão sobre a boca,
sentindo um arrepio subir pela espinha. — Olivia e Hugo, eles…
— Sabem. De tudo. Todos sabem, Ayla — Kian disse. — Todos
em Kardama sabem como isso funciona, querida. Não me diga que
nunca notou que existem dois tipos de pessoas aqui: aquelas que
me odeiam e repudiam o que eu faço, e aquelas que fazem parte do
esquema.
Eu o olhei, descrente da frieza da sua voz.
— Você está mexendo com a vida das pessoas… a saúde
delas… — parei de falar, bufando uma risada sem graça. —
Caramba, Olivia fala tão bem de você. Sua madrasta…
Fechei os olhos por alguns instantes, absorvendo o impacto
daquilo tudo.
— Existiu uma época que eu me preocupava, e que,
definitivamente, eu era um cara melhor — ele soprou, quase para si
mesmo. Quando abri os olhos, ele olhava pela janela, a escuridão
da cidade. — Isso é passado e o que eu sou hoje não irá mudar.
Mas, em alguma parte muito lá no fundo, eu me preocupo. Estou
tentando te manter longe disso, não quero que você se machuque.
Eu tinha certeza de poucas coisas sobre Kian Wilding. No
entanto, eu via como algo tinha se perdido dentro dele. Ainda não
conseguia enxergar Kian como uma pessoa que se importasse com
todos. Ou que fosse amável, até afável.
No fim, as pessoas quebradas sempre tinham algo estilhaçado
dentro de si. E o homem à minha frente parecia sem forças para
juntar as suas partes quebradas.
Eu me sentia em uma bifurcação. Poderia escolher o caminho
mais simples: voltar para o Canadá e morar com a minha família,
superando toda a merda em meu coração. No entanto, eu estava ali,
no meio daquele ninho de cobras.
Kian Wilding era um traficante.
E eu poderia entregá-lo à polícia federal, e foder seu esquema.
Meu estômago revirou com a possibilidade.
Eu vingaria minha mãe. Toda a minha dor iria embora.
Mantenha-se firme Ayla.
— E se eu escolher ficar? — perguntei, com a boca seca e o
corpo trêmulo.
— Fazer parte disso? Está maluca?
— Posso ser boa em alguma coisa — murmurei, então as
sobrancelhas dele levantaram, em divertimento. — Para os
negócios. E aposto que você paga bem seus funcionários. Como
você sabe, preciso de grana.
Ele arqueou o corpo sobre a mesa, em minha direção, ainda
mais.
— Estava entediada em casa e está atrás de alguma aventura?
Beba, foda e festeje neste campus, querida. Não pense que existe
algo bonito nisso.
Kian era um criminoso. Tanto quanto seu pai, e eu o colocaria
na cadeia também.
— Você sabe quão persistente posso ser.
— Eu sei — concluiu, sentando-se enquanto o garçom chegava
com o antepasto. — Por isto, preciso que veja com seus próprios
olhos. E corra de mim. É o mais inteligente a se fazer.
— Duvido que você realmente queira isso. Sua vida seria
entediante sem mim — brinquei, mas ele não sorriu.
Kian manteve-se sério e pensativo durante todo o jantar e o
caminho até o meu prédio em que estava morando. Antes de eu sair
do carro, ele disse:
— Vou pensar em uma barganha… se você tiver algo que me
agrade e valha meu tempo, e dinheiro, lhe direi. Amanhã, na boate,
à uma hora.
Assenti, saindo do carro com uma sensação terrível alojada em
meu estômago.
O que diabos eu estava fazendo?
Quando cheguei em casa, meu corpo parecia ter corrido por
uma longa maratona. A dor misturava-se com a névoa de álcool.
Deixei meus pés me conduzirem até a porta do apartamento dos
irmãos Yang, e assim que meus dedos tocaram a maçaneta, me
surpreendi.
Estava aberta.
Franzi o cenho e empurrei a porta lentamente. O apartamento
estava escuro e cheirava mal. O relógio de parede antigo acusava
três horas da manhã e meus olhos prenderam-se nele enquanto
entrava no lugar. Como não vi o tempo passar tão depressa?
Meus braços arrepiaram-se quando uma corrente gélida de ar
entrou pela rua. Só então me dei conta de que a porta de correr da
sacada estava aberta. Yue ou Tai deveriam ter esquecido aquilo
assim, e mesmo que a temperatura da Califórnia não se
comparasse a do Canadá, o vento estava me incomodando.
Caminhei na direção do lugar, decidida a fechar a porta, mas
senti algo sobre meus pés. Não me lembrava de ter tirado os
sapatos. Abaixei a cabeça, encarando meus pés no meio daquela
meleca escura e gosmenta.
Um grunhido baixo veio de dentro da cozinha. Corri meus olhos
até ali e perdi o norte quando vi a origem daquele líquido no chão.
Yue estava estirada, arrastando-se na direção da pia.
— Yue — chamei, mas ela não me ouviu.
Continuou arrastando o corpo com dificuldade, enquanto uma
quantidade absurda de sangue saía de alguma parte do seu tronco.
Eu não vi muito do seu rosto, mas tinha certeza que estava
machucado e coberto por lágrimas.
Algo me segurava no lugar e não pude me mexer.
— Yue, o que está acontecendo?
Notei que seus lábios se moviam, entre os gemidos. Ela dizia
algo. Eu não conseguia compreender do que se tratava. Segurei
minha bolsa com força entre os dedos trêmulos enquanto buscava
pelo meu telefone para chamar uma ambulância.
Yue parecia em choque.
Algo tinha acontecido aqui e não pude deixar de pensar em Kian
e as coisas ruins que fazia.
Segurei o telefone e no instante que a tela brilhou, ouvi um
barulho tão terrível quanto o dos lamentos de Yue.
— Não faria isso se fosse você, querida.
Era ele.
Meu corpo colapsou, indo do pânico ao desespero.
— Eu disse para você não se meter, e você continuou insistindo
nessa merda. Agora, você vai aprender a lidar com as
consequências.
O que diabos era aquilo? Kian havia machucado Yue?
Virei meu rosto para onde a voz vinha e constatei que tudo
estava pior do que eu havia imaginado. Kian segurava Tai com uma
chave de braço e tinha uma arma apontada para a sua cabeça.
O rosto de Tai estava deformado e eu, mais uma vez, não sabia
a origem de tanto sangue.
— Kian, por favor! — Levantei minhas mãos em um pedido de
rendição. — Nós podemos conversar…
— Comece falando sobre a sua mentira, Ayla Brown… ou devo
dizer, Ayla Bekker? — Congelei, sentindo meu corpo em queda livre
pelo medo. Um sorriso sujo brotou nos lábios dele, me mostrando
que ele sabia. — É sua culpa que isso esteja acontecendo —
sentenciou, antes de atirar, me ensurdecendo com o barulho alto.

Então, eu abri meus olhos.


A compreensão me atingiu no segundo que a luz forte do sol da
manhã machucou meus olhos. Pisquei, algumas vezes, sentindo
meu corpo úmido e trêmulo de suor. Olhei em volta, encontrando
apenas o quarto simples que ficava na casa dos Yang.
Minha boca estava seca e minha cabeça latejava. Segurei a
lateral do rosto, ainda ofegante, repetindo para mim mesma que
aquilo foi apenas um pesadelo.
Caramba, que inferno.
Olhei para o meu corpo, constatando que ainda estava com o
vestido da festa. Ontem, depois de chegar em casa, fiquei deitada
por algum tempo, pensando sobre o que Kian representava para
mim, agora que eu sabia sobre o que ele fazia. Acabei
adormecendo, com medo, assustada, e claro, com a janela aberta.
O vento sutil anunciando a chegada do outono acariciava minha
pele nua, incomodando-me por me fazer lembrar do sonho.
Levantei da cama e saí do quarto, pronta para trocar de roupa.
Contudo, o pesadelo e as palavras de Kian não deixavam a minha
mente: vou pensar em uma barganha. Eu teria algo para contribuir
com o seu negócio? O que ele iria pedir para que eu fizesse?
Vender drogas?
Parei de caminhar, assustada com a possibilidade. Kian
conseguia ser bem cruel quando queria. Suas palavras eram
maquiavélicas e ele sabia disso.
Me surpreendi quando vi Yue saindo do banheiro, com roupas
próprias para a prática de exercícios.
— Uau, a noite foi boa e chique pelo jeito — debochou,
enquanto amarrava os cabelos.
Parei no corredor, cruzando os braços e me apoiando na
parede, mas logo estranhei o fato de que ela estava pronta para a
prática de exercícios, sendo que nunca a vi praticar alguma
atividade.
— Devo estar uma merda — sussurrei, limpando a maquiagem
borrada abaixo dos olhos. — Vai caminhar ou a alguma academia?
Ela torceu os lábios e depois rolou os olhos.
— Tai está me cobrando por uma rotina mais saudável e resolvi
ceder um pouco. Engraçado, porque ele também chegou tarde
ontem, e havia cheiro de bebida com álcool nas suas roupas… E,
ei... — Ela apontou para a minha roupa. — Você estava na casa
dos Wilding?
Abri a boca para lhe responder, estranhamente nervosa por
cogitar mentir para ela. Céus, eu já havia feito tanto isso, por que
estava tão angustiada? No entanto, Yue não me deu tempo para
falar, engatando um comentário enquanto passava por mim.
— Não sei como você conseguiu o nome na lista do evento
beneficente de Stephany Wilding, mas, minha cara… espero que
tenha aproveitado, porque é um dos mais falados da cidade.
— Existem muitos destes?
— Inúmeros! Tenha um bom dia, Ayla.
Ela riu e passou por mim animada. Suspirei e me tranquei no
banheiro. Limpei a maquiagem e penteei os cabelos. Precisava de
um banho, mas não estava em condições de fazer isso sem tomar
um pouco de água e algum remédio.
Assim que saí dali, fui até o quarto e coloquei uma roupa
confortável antes de marchar até a cozinha. Logo meus olhos
recaíram sobre quem eu não queria ver tão cedo. Tai estava com
roupas despojadas, simples e confortáveis. Porém, em seu rosto
estava emoldurada a expressão mais séria que tinha visto em seu
rosto até então.
— Bom dia, Tai… — soprei, tentando ser simpática.
— O que fazia na mansão Wilding?
Direto e certeiro como um tiro.
Me remexi desconfortável e pensei na mentira que contaria.
— Olivia me convidou — soei curta e abrangente. Mesmo
assim, senti a tensão dominando meu corpo, meus ombros ficaram
levemente estáticos.
Meus pés começavam a ficar gelados demais no assoalho, por
isso, caminhei até o tapete no meio da sala enquanto ele continuava
sério.
— Você chegou com Kian Wilding… — Tai constatou o óbvio. —
E… Será que não ouviu nada sobre o que eu falei da família Lopez?
Grace Lopez não é uma boa pessoa, suas filhas também não são.
Agora o Senador Wilding é outra história, aquele homem é alguém
para se manter muita distância, Ayla. Assim como sua prole.
— Somos conhecidos, nos vemos na universidade e temos
amigos em comum, não achei que… — comentei, tentando parecer
menos mentirosa possível.
Se Tai sonhasse que eu trabalhava na Seven provavelmente
sua paciência iria se esgotar em um estalo de dedos.
Seu olhar desceu pelo meu corpo e a expressão séria não
mudou. Os braços fortes estavam cruzados na frente do seu
estômago enquanto ele se encostou na parede.
— Cuidado com quem se aproxima, porque se você se tornar
íntima dessas pessoas, vou ser obrigado a pedir que saia daqui. Por
precaução e segurança da minha irmã e minha — declarou, rude. —
Olivia, Kian e Hugo são todos da mesma laia.
Engoli seco. Não sabia se era um aviso ou uma ameaça
enfática.
— Tai… não é nada disso...
— Ayla, não se perca — ele me interrompeu, com o olhar
decepcionado. — Você veio aqui estudar, não foi isso? — Abri a
boca na tentativa de respondê-lo, mas resolvi só balançar a cabeça
em afirmação. — Então foque nos estudos, não caia em tentação
com o dinheiro sujo dessas pessoas, esse é o melhor conselho que
posso lhe dar.
Sem esperar por uma resposta minha, Tai saiu dali na direção
do corredor, me deixando sozinha com meus pensamentos. Pela
primeira vez, depois de muito tempo, estava com um sentimento
que não havia habitado meu coração até aquele momento: culpa.
Após algumas horas de sono, resolvi levantar da cama e me
aprontar para sair. Kian havia pedido que eu estivesse na boate e
eu não seria estúpida de perder a oportunidade. Ele disse que
mostraria onde eu estava me enfiando e esperava algo realmente
espetacular.
Meu coração pulsava com força dentro do meu peito quando o
carro de aplicativo parou na frente da Seven. Desde a última festa,
eu não pisei no local e estava ansiosa pelo o que estava prestes a
acontecer. Saí do veículo e segui pela porta lateral para dentro,
observando o salão com algumas pessoas por ali. O local durante o
dia era tranquilo, aparentemente, mas no domingo, perto do fim da
tarde, parecia levemente agitado.
Israel foi a primeira pessoa conhecida que meus olhos
alcançaram. E não levou muito para que ele me visse também. Sua
expressão saiu de dura para confusa. Haviam várias caixas por
cima do balcão do bar e, definitivamente elas não eram bebidas.
Desta vez, tinha certeza, porque Kian não me chamaria ali para ver
o recebimento de álcool.
Os passos pesados em botas de combate de Israel vieram na
minha direção enquanto meus olhos estavam grudados nas caixas.
Ele parou na minha frente, chamando a minha atenção para o seu
rosto.
— O que está fazendo aqui, passarinho?
Ele perguntou, tenso.
— Kian pediu para eu vir.
Seus olhos se estreitaram em descrença. Seu corpo se inclinou
para frente e ele me analisou.
— Você não estava na festa ontem… — comentei, tentando
soar casual.
Israel estreitou os olhos para mim, sorrindo de forma ladina.
— Sou a ovelha negra da família. Benjamin não gostaria da
minha presença lá, e eu também não faço questão nenhuma. Mas
até onde eu sei — Seus olhos desceram pelo meu rosto —, você e
Kian fizeram um bom casal na noite de ontem.
Bati de leve em seu braço.
— Não coloque meu nome e o dele em uma mesma frase que
contenha a palavra “casal”. — Fiz as aspas, ganhando uma risada
do homem.
Durou pouco, apenas até Israel olhar para a nossa volta.
— Ayla… Você não deveria…
— Eu sei de tudo — o interrompi, nervosa. — Kian me contou
sobre as drogas.
Mordi meus lábios quando Israel me olhou novamente. Desta
vez, parecendo furioso.
— O quê? — rugiu, visivelmente irritado. — Ele enlouqueceu?
Abri a boca para responder, mas o barulho de passos no salão
ganhou a atenção de nós dois.
Kian estava ali com uma expressão séria, mas parecia um
pouco mais despreocupado. Com o corpo menos rígido, talvez.
Quando um dos funcionários que estava por ali colocou uma
caixa sob o balcão, o vi se inclinar. Ele encarou aquilo e colocou a
mão ali dentro, pegando um pacote nas mãos. Daquela distância,
não consegui ver muito o que era, mas não era idiota, aquilo, muito
provavelmente, era alguma droga.
Os olhos de Wilding, então, me encontraram e um sorriso
sombrio surgiu em seus lábios quando se aproximou.
— Você veio… — cantarolou de uma maneira impressionada.
— Kian — Israel se aproximou dele, um pouco impaciente. —
Você não deveria…
O Wilding mais novo dirigiu seu pior olhar para o tio.
— Uma hora ou outra ela saberia. Todos sabem, Israel — falou,
rude. — Ela queria ver de perto e decidi que funcionaria assim.
Israel e Kian tiveram um embate de alguns minutos, até que o
mais velho escovou os cabelos para trás e saiu dali, bufando algo.
Kian balançou a cabeça, pedindo que eu me aproximasse e assim o
fiz, sentindo a ansiedade em meus passos um tanto rápidos.
Meus olhos caíram no amontoado de pacotinhos com três
comprimidos em cada plástico que ele estendeu no ar. A droga já
vinha separada e pronta para ele. Observei aquilo com cautela
enquanto ele tinha seus orbes castanhos em mim, cuidando de cada
expressão que eu fazia.
— Sabe o que é isso, Ayla?
Todos os presentes pareciam um pouco mais tensos. Haviam
alguns funcionários da boate ali, e, claramente, as pessoas que
tinham vindo trazer as drogas.
— Droga — soprei.
— Sim, mais precisamente é Metilenodioxianfetamina, ou MD,
como chamamos popularmente.
Assenti e encarei o rosto de Kian, com seus olhos vidrados em
mim. Meu estômago estava uma bagunça e minha dor de cabeça
estava voltando a todo vapor.
— É só isso? — questionei, tentando não transparecer meu
nervosismo.
Ele estreitou os olhos.
— Queria mais? — questionou.
Não respondi. Aquilo parecia limpo demais. As pessoas
estavam organizando os carregamentos e haviam muitas perguntas
em minha cabeça.
— Qual os próximos passos depois de separá-las?
Kian me ignorou, ordenando que os funcionários levassem as
mercadorias para o depósito. Dei um passo para trás, afastando-me
um pouco dele, saindo da proximidade sufocante que ele me
causava.
— Escritório — ordenou, e eu bufei.
O segui e caminhamos em silêncio por todo o período. Ele abriu
a porta e a deixou assim, seguindo o seu caminho até o sofá, ele
sentou-se e esperou que eu fizesse o mesmo. Estava nervosa. O
que eu tinha acabado de presenciar poderia me levar à cadeia, mas
também poderia ser a ruína de Kian.
Eu ainda não conseguia traçá-lo bem, mas afirmei algo em
minha mente: nossa única aproximação estava acontecendo quando
havia sua família envolvida. Ele teve um breve momento comigo
quando estávamos resolvendo os pontos sobre a festa, como no dia
do café e até mesmo durante a noite de ontem. Apesar de todo
avanço, eu atrelei isso completamente a sua vulnerabilidade frente
aos assuntos familiares.
Agora que eu havia cavado fundo, Kian, mais uma vez, tentava
me afastar.
Chegando ao escritório, sentei em uma das poltronas da frente
de sua mesa sem muita cerimônia. Sentindo todo o peso das
minhas últimas decisões sobre as minhas costas. A discussão com
Tai, a proximidade com Kian e, agora, as drogas. Estava atordoada.
— Você precisa de uma bebida — ele debochou, levantando-se
caminhando pela sala.
Ouvi toda a sua ação de colocar dois copos com uísque
enquanto meus olhos ficavam perdidos em algum ponto qualquer no
meio da sala. Minhas mãos estavam inquietas. E por mais que
tivesse perguntado se aquilo era tudo, eu já achava muito. Inspirei o
ar, com minhas pernas formigando, as estiquei em busca de um
melhor conforto, mas não adiantava, meu corpo só estava refletindo
tudo o que havia na minha maldita consciência.
Na minha mente havia tudo e nada ao mesmo tempo. Era
perturbador ficar só nos meus pensamentos. Lembrava do sorriso
gentil da minha mãe no seu último dia bom e da maldita cara cínica
de Benjamin Wilding na última noite.
— Viu o que precisava? — Kian questionou, colocando o copo
de bebida nas minhas mãos, ganhando, assim, minha atenção.
Inclinei meu rosto para encará-lo.
— Pensei que veria mais do que suas drogas meticulosamente
separadas e prontas para a redistribuição.
Ele riu e deu um longo gole no seu uísque. Aproveitei e bebi
também. Precisava acalmar a ânsia interior para que Kian não a
notasse.
Caminhando para o grande vidro da sala, ele me deu as costas.
Começava a sentir o suor se unindo e descendo pela minha
nuca. Minha consciência estava me matando naquele instante.
Cruzei e descruzei as pernas numa ação indecisa. Queria que
ele me mostrasse mais, mas, ao mesmo tempo, estava preocupada
com os meus limites. E por mais que quisesse mentir a mim mesma,
eles estavam lá. Havia uma linha que eu tinha medo de cruzar,
mesmo com toda a minha determinação em destruir os Wilding de
dentro para fora.
— Você está fazendo todos os caminhos errados, Ayla. — Sua
voz saiu pesarosa. O ouvi tomando mais um gole do uísque, virei
meu copo, encerando com até a última gota de bebida. — Mas já
que insiste em estar aqui, vou te fazer uma proposta. — Seus olhos
me encararam com cuidado e ele riu, divertindo-se com a situação.
— Tai Yang. Você mora com ele e com a sua irmã. — Minha boca
ficou seca instantaneamente, queria respondê-lo, retrucá-lo e talvez
até socá-lo, contudo, minhas ações pareciam todas petrificadas
dentro do meu ser. Instintivamente, me lembrei do sonho daquela
noite. — Ele é um problema na maior parte do tempo para mim e
para todos que estão envolvidos nos meus negócios. Ele tem escrito
coisas que me chateiam muito. — Sorriu, arrogante. — Preciso do
nome dos informantes dele. E, além disso, que fique de olho nele.
— Me quer espionando o Tai?
— Basicamente, é isso… — ele sussurrou. — E, claro, um
serviço aqui e outro ali.
— Não vou vender suas drogas… — soprei, firme.
Kian apenas levantou uma sobrancelha.
— Está me dizendo o que fazer ou não com você? Não é
inteligente aborrecer seu chefe — replicou, divertido, aproximando-
se, passando pelo meu lado e indo até a sua mesa. Ele abriu uma
das gavetas que vivia trancada e tirou uma pasta de lá, a jogando
sob a mesa. — Ainda pode ir embora.
Levantei-me e o copo da minha mão praticamente escorregou
para a mesa. Meus olhos o flagraram observando a minha ação,
minha indecisão. E odiava estar assim em sua frente.
Ele abriu a pasta e a empurrou para mim. A foto de Tai foi a
primeira coisa que vi, e depois, informações sobre ele.
— É um dossiê de Tai… — soprei, sentindo minha visão
escurecer por um instante. Se Kian tinha esse tipo de coisa na
gaveta sobre Tai, alguém ainda distante dele, o que será que teria a
meu respeito?
Com uma coragem falha, encarei-o novamente.
— Tem um desses com o meu nome também?
Meu coração esmurrava todo o meu peito em desespero. E ao
encontrar os olhos de Kian com diversão, senti-me ainda pior.
Filho da mãe, sádico.
— Ainda não. — Era a segunda vez no dia que alguém usava
de um tom de aviso comigo e estava começando a me preocupar. —
Tai é um problema… e preciso me certificar que ele continue na
linha, enquanto as coisas seguem o seu rumo por aqui.
Neguei com a cabeça, sentindo-me incomodada desde os meus
cabelos até a ponta dos pés, mas querendo dar corda a ele. Talvez,
se desse o suficiente, ele se enforcasse sozinho.
— Quer um relatório semanal também?
Ele riu e sentou-se na sua cadeira.
— Você está divertida hoje… — declarou com um humor
sombrio. — Não, mas eventualmente vai ter que me contar o que
ele sabe, senão, vou ser obrigado a tirá-lo do meu caminho em
algum momento.
Senti meu coração quase falhar.
— Eu faço isso. É só o que quer de mim? — Uma irritação
reverberou pelos meus lábios.
— Cinco mil dólares se me trouxer alguma informação
importante.
— Você vai machucá-lo? — perguntei, nervosa.
Kian tombou a cabeça para o lado.
— Todos aqui se machucam de alguma forma, querida.
Quando voltou aos meus olhos, não havia nada ali. Não havia
sarcasmo, não havia diversão. Só o vazio.
— É só você que existe fazendo, hum, isso, na cidade? Eu devo
me preocupar com a minha segurança caso fique por aqui? Quero
dizer… vocês têm um rival?
— Uma época, existiam alguns grupos pequenos. Há pouco
mais de sete anos, Benjamin Wilding achou válido entrar nesse
ramo e limpou a cidade. Menos arruaceiros, menos confusão. Além
de mais lucro.
Não deixei de absorver aquela fala repugnante. Benjamin
Wilding livrou-se de pessoas que faziam o mesmo que ele apenas
para obter mais controle sobre Kardama. Isso era um absurdo. Bem
como, colocar um garoto que recém saiu do ensino médio para
coordenar esse show de horrores.
— Agora, somos nós que controlamos tudo. Literalmente, tudo.
Sei para onde as drogas vão, quem as compra e o que as pessoas
fazem com elas. Não me pergunte como, mas quando eu falo que o
submundo desta cidade está em minhas mãos, não hesite em
acreditar. — Ele encosta-se contra a cadeira.
— Caramba… — soprei, surpresa. — Então, o ocorrido na
boate, naquela noite, foi algo inédito? — Minha voz soava incrédula.
— Porque, se não lembra, fui drogada sob seu teto.
Ele sorriu, largamente.
— Um estudante desavisado achou interessante batizar uma
garrafa de uísque. Assim que vi seu estado, descobri quem foi e, por
sorte, apenas um garoto havia bebido daquilo. Foi tudo facilmente
controlado.
— O que você fez?
— Quer mesmo saber? — indagou, sorridente.
Mordi o interior da bochecha, mas não respondi.
— Me diz que estou segura, mas veja só o que aconteceu… —
sussurrei, um pouco inquieta.
— O Sul da Califórnia é abastecido pelos meus homens e o
Norte, pelos Cavaleiros, um Moto Clube bem conhecido em São
Francisco. Não se preocupe com sua segurança, o pior que poderia
acontecer seria envolver-se conosco.
Tentei abrir um sorriso, com os lábios apertados.
— Então temos um acordo?
— Não — ele soprou, levantando-se. — Se você for ficar,
precisa ir até o fundo dessa merda. Existe mais uma parte dessa
história. Mantenha seu celular ligado hoje à noite, vou te chamar e
nós vamos dar um passeio.
O que poderia haver além de um controle esquematizado de
drogas por toda a Califórnia nas mãos de dois grupos criminosos?
Prostituição? Tráfico humano? Um arrepio subiu pelo meu corpo ao
constatar as possibilidades.
— O.K. Estou liberada?
Ele assentiu e não perdi tempo, lhe dando as costas e saindo
dali.
O clima ficou absurdamente sufocante e a neblina que estava
emaranhada com toda a situação deixava tudo confuso demais.
Estar com Kian era como o tango que tínhamos dançado na
última noite, quando eu achava que poderia comandar a dança, ele
me mostrava que estava no controle o tempo todo. Me sentia
enjoada. E com a cabeça latejando.
Minha mente não parava de trabalhar na possibilidade de que
se toda aquela informação não era um décimo do que havia
escondido em Kardama, quem era Kian Wilding e por que ele era
tão complexo?
O que mais ele poderia estar escondendo?
Estava passando pela porta quando sua voz fez questão de
soltar uma última ameaça:
— Se não me atender, é bom nunca mais voltar aqui.
Moral e ética. Provavelmente eu devesse colocar essas duas
coisas na balança.
Em uma semana eu consumi droga de forma inconsciente e
tinha ido do céu ao inferno com Kian mais vezes do que poderia
calcular. Fiquei cara-a-cara com Benjamin Wilding e fui
categoricamente humilhada por ele. Ainda sentia ânsia ao recobrar
suas palavras na minha mente, mas tentei ao máximo não pensar
naquilo.
Passei os dedos no colar no meu pescoço, lembrando-me dela.
Do porquê eu estava ali. Seu sorriso estava na minha mente e a sua
mão soltando a minha ainda parecia uma memória muito recente. O
som recorrente da máquina e a linha reta. As enfermeiras me
puxando para fora do quarto e meu mundo desabando. Senti
algumas lágrimas juntando-se em meus olhos, mas aquele não era
o momento de chorar, eu precisava parecer forte, mesmo que a
ansiedade estivesse me consumindo.
Agora, olhando o relógio bater uma da manhã, começava a
duvidar das palavras de Wilding. Ele só podia ter desistido. Sentei-
me na minha cama. Meus coturnos e o jeans que tinha escolhido -
pela primeira vez naquela cidade quente como o inferno - logo
seriam substituídos por meu pijama e Kian poderia ir se ferrar.
Meus olhos pesavam com sono, contudo, foi pensar no anjo
caído que meu celular começou a vibrar ao meu lado. Peguei o
aparelho e vi um número privado chamando. Meus dedos tremeram
tanto quanto o aparelho, mas atendi:
— Alô?!
— Estou na frente do prédio, desça.
Rugiu, em uma ordem clara. Como sempre, um poço de
simpatia.
O nervosismo aumentou e emanou do meu corpo por todo o
ambiente. Levantei-me mais uma vez, e, com cuidado, abri a porta
do quarto. Vesti uma jaqueta jeans rapidamente, por conta do mau
tempo lá fora, e logo me senti abafada. Saí para o corredor,
agradecendo por toda a casa estar com as luzes apagadas.
Caminhei até a porta e a abri com mais cuidado ainda, escapando
para fora como uma adolescente que iria aprontar escondido dos
pais.
Algo que, de fato, eu tinha feito muito durante os anos de glória
da minha vida, mas, naquela situação, mais velha e com assuntos
mais sérios envolvidos, a minha mente começava a pesar um
pouco, me fazendo reavaliar os riscos.
Não era uma medrosa, mas estava longe de ser uma impulsiva
inconsequente.
Me considerava uma pessoa razoável, até. Mas todas as
minhas ações em Kardama começavam a questionar a pessoa que
eu estava olhando no espelho todos os dias.
Abri a porta principal do prédio, observando o Mustang antigo
de Kian iluminado sob a luz do poste da esquina. A rua estava
vazia. Quase de forma sombria. O vento parecia furioso,
chacoalhando os fios soltos do meu cabelo.
Os vidros escuros do carro não me davam uma visão do seu
corpo, mas tinha certeza que o rapaz estava lá dentro. Aproximei-
me do veículo com as luzes da rua indicando o caminho. Abri a
porta do passageiro e me joguei no banco de couro.
Meus olhos o alcançaram. Ele me observava, de uma forma
séria.
— Estou aqui e não consigo imaginar o que de tão horrível você
quer me mostrar — declarei, tentando parecer firme.
Um sorriso triste dominou seus lábios.
— Espero surpreender.
Ele ligou o carro, e acelerou o veículo pelas ruas vazias. Era
madrugada de domingo para segunda, as pessoas precisavam
descansar para começar uma nova semana, afinal. As curvas de
Kian não eram nada sutis, o que me fez agarrar-me no cinto de
segurança.
O ar do carro estava ligado em uma temperatura absurdamente
baixa. Kian claramente não sentia frio, porque estava coberto com
uma jaqueta de couro, enquanto eu começava a me incomodar com
a temperatura contra minha pele, mesmo que estivesse com mais
roupa que o comum.
Tentei observar para onde estávamos indo naquela velocidade
absurda, mas logo o carro foi jogado de lado no estacionamento da
Seven, que estava vazio. Olhei o horário no painel do carro: uma e
vinte.
Kian abriu a sua porta e desligou o carro.
— Vamos para dentro.
Fechou a porta e começou a caminhar para a porta lateral da
boate. Soltei meu cinto, ainda respirando fundo repetidamente. Com
a ânsia por descobrir algo, saí de dentro do carro. Uma trovoada
rugiu no céu, indicando que uma tempestade estava a caminho.
Fechei a porta do veículo e caminhei até onde Kian estava.
Ele desligou o alarme e abriu a porta, segurando-a para mim.
Passei pela sua frente e tentei observá-lo, mas ele foi rápido em não
me deixar olhar para o seu rosto.
Kian trancou a porta da boate conosco lá dentro. As luzes
acenderam e ele começou a caminhar em direção ao palco,
enquanto eu apenas o seguia, em silêncio, ouvindo o sopear dos
nossos pés sobre o piso. Estranhei o caminho, mas ele subiu os
poucos degraus que haviam ali e, em seguida, puxou as cortinas
grossas que cobriam as paredes. Até onde imaginei, aquilo era um
item decorativo no fundo do palco e ninguém costumava ficar tão
perto do final do lugar, já que os DJs sempre estavam perto do
público.
Arregalei os olhos quando ele revelou uma porta pequena, com
cerca de um metro e meio. Retirou uma chave do bolso da jaqueta e
a destravou. Mais uma vez, em um silêncio sepulcral, Kian abriu a
porta, e vi uma iluminação precária.
Hiperventilei no mesmo instante.
Era um corredor apertado e tinha uma escadaria que levava
para baixo, como se fosse um subsolo.
— É o último aviso — Kian soprou, encarando a escadaria. —
Se descer, não vai ter sinal de internet, não terá rádio, muito menos
sinal de celular. Não poderá pedir por socorro.
Observei-o, procurando por algo no seu rosto. Kian mantinha-se
indiferente.
— Você vai me matar aí dentro? — questionei, tentando parecer
irônica e não uma garota desesperada.
Finalmente, seus olhos encararam os meus, e tudo nele parecia
tão nebuloso que sequer consegui distinguir se havia algo bom ali.
Nem mesmo no fundo. Talvez eu estivesse errada o tempo todo e
Kian fosse um grande buraco negro. Vazio, frio e sem emoções de
remorso.
— Não, irei te levar de volta para a casa de Tai Yang, e em
segurança, não se preocupe.
Assenti, mas em dúvida se poderia confiar em suas palavras.
Respirei fundo e caminhei até a porta. Kian fez a mínima
gentileza de segurar a minha mão para que eu começasse a descer
e, depois, veio atrás. Haviam luzes fracas nas paredes e, se o clima
no carro estava gelado, ali era ainda pior.
Uma corrente de vento bateu de trás em mim, e reparei a
extensão de se perder de vista do túnel onde tinha me enfiado. As
luzes nas paredes eram distantes umas das outras, mas consegui
ver o concreto úmido e pequenas poças sob nossos pés. Senti um
arrepio nervoso, enquanto encarava tudo o que conseguia observar.
Kian desceu e a porta se fechou. O que deixou o local um pouco
mais soturno e escuro. Meus olhos precisaram de alguns segundos
para se acostumarem com a pouca iluminação, mas Wilding não
parecia disposto a esperar isso acontecer.
Ele passou por mim e começou a caminhar.
— Sugiro que não fique para trás — avisou, com sua voz
ecoando pelos corredores do túnel.
Era tudo de cimento e concreto. Pareciam paredes grossas.
Estávamos isolados do mundo. E debaixo da boate.
— Onde estamos? — questionei, caminhando atrás dele
enquanto minha ansiedade só aumentava.
Kian não conseguia me deixar confortável, nunca. Sempre que
beirávamos isso, ele vinha com uma nova surpresa absurda. E
aquilo estava ultrapassando os limites.
— Só continue andando, Ayla — ele rosnou e me apressei,
ouvindo nossos passos por todos os lados.
Aquele local não era muito apertado, mas, àquela altura, estava
se tornando claustrofóbico enquanto eu sentia o vento e a umidade
por todos os cantos impregnados. Inclusive, no meu corpo. Puxei
minha jaqueta na tentativa de fechá-la melhor e a segurei, sentindo
o vento causar arrepios em mim da cabeça aos pés.
Foram longos segundos ouvindo apenas nossos passos em
uma inclinação baixa, como se estivéssemos descendo uma grande
ladeira na direção de andares abaixo. Nós estávamos sob
Kardama?
Nossas respirações e soprar das solas ecoavam, até que
começamos a ouvir outros passos e eles vinham de trás de mim. De
onde nós tínhamos vindo.
De repente, as mãos de Kian rapidamente me agarraram e ele
me colocou atrás de si enquanto uma postura minimamente
protetora o tomou. Ele estava assustado com quem encontraria ali?
Contudo, o rosto de Israel foi o que surgiu e seus olhos recaíram
sobre nós dois.
Por um instante, ele pareceu confuso; depois, sério e, por fim,
exibiu uma expressão indignada. Meu corpo estava frenético em
nervosismo e disfarçar isso não era a tarefa mais fácil.
— O que o passarinho está fazendo aqui, Kian?
— Não se meta, Israel.
O mais velho respirou fundo algumas vezes, alternando o olhar
entre mim e Kian. Ele deu um passo à frente e seus punhos foram
até o garoto à minha frente e ele o empurrou pelo colarinho até uma
parede. Um grito baixo deixou meus lábios enquanto me afastava
um pouco observando a cena assustada.
— Tá agindo feito um moleque! Ela já viu demais hoje mais
cedo, isso aqui não é lugar para ela — Israel rosnou, com os dentes
serrados, furioso.
— Ayla precisa entender onde tá se enfiando e mostrarei a ela…
— o Wilding mais novo declarou, sem tentar sair do aperto de Israel.
— Kian…
— Ela quer as consequências, vou dar todas.
Meu corpo começava a querer tremer, por isso, abracei minha
própria circunferência enquanto o relógio de Israel apitava. Era uma
e meia da manhã. De repente, seus dedos deixaram o colarinho de
Kian e o rapaz esticou a sua roupa novamente.
— Está atrasado para a sua reunião, garoto. — Ele desviou os
olhos do sobrinho, me encarando. — Eu espero que saiba o que
está fazendo.
Kian riu, sem humor, continuando o caminho, enquanto eu
dividia meu olhar entre Israel e ele. O mais velho logo começou a
caminhar, seguindo para a mesma direção de Kian.
— De que reunião está falando? — questionei a Israel, andando
ao seu lado, indo cada vez mais fundo pelo túnel.
Seus olhos esverdeados me encararam com análise, mas logo
ele começou a falar:
— Reunião da Tríade. Quem realmente manda nesta cidade.
Queria perguntar mais, no entanto, assim que viramos uma
esquina, observei as luzes mais intensas e ouvi vozes. O local dava
em um espaço maior, mas igual a todo o túnel, de concreto maciço.
Um xingamento reverberou e antes mesmo que a visse, sabia
que aquela era a voz de Pietra. Arregalei meus olhos, em
reconhecimento àquilo.
Adentramos um local amplo, que parecia um círculo com
algumas entradas semelhantes àquela que viemos, como se todas
desembocassem ali. No local, havia uma mesa e algumas cadeiras
espalhadas, mas não em ordem, como um local de reunião
propriamente dito.
Aparentemente, haviam outras pessoas ali, cada um na frente
de um túnel. Três grupos. No entanto, meus olhos caíram sobre o
homem em uma cadeira no meio do local, com um saco sob a
cabeça e mãos amarradas para trás.
Meu peito subiu e desceu aceleradamente enquanto tentava
entender o que estava acontecendo ali.
Era terrível.
— Quem é essa, Kian? — alguém questionou, e fui obrigada a
seguir a voz do homem.
O reconheci da festa de Wilding. Aquele era Hunter Müller, pai
de Hugo, na frente de um dos grupos.
— Parece que trouxe seu novo brinquedinho para jogar —
Pietra disse em um tom cruel, claramente coordenando a última
equipe.
Ela estava dentro de roupas de combate e tinha os cabelos
soltos desta vez. Seu olhar crítico pairou sobre mim, como se eu
não fosse capaz de estar naquele ambiente. E eu concordaria se ela
me fosse feito tal questionamento. Estava começando a acreditar
que tinha feito algo ruim em aceitar a proposta de Wilding.
Kian riu sem graça.
— É ela que vai resolver o seu maldito problema com Tai… —
declarou, tão frígido quanto ela. Minha mente tentava fazer uma
nota sobre isso, mas estava nervosa demais observando tudo. E,
porra, havia um cara amarrado no meio do local! — Você queria que
eu resolvesse, tá aí a sua resposta, Pietra. Agora, você tem feito a
sua parte?! — era uma retórica. — Não, né?!
A garota esboçava uma cara de poucos amigos. Senti Israel
aproximando-se de mim, prostrando-se ao meu lado.
Kian caminhou na direção do homem amarrado e meu corpo
entrou em estado de alerta quando seu olhar frio o analisou como
um pedaço de carne com roupas sujas. Ele tirou o saco da cabeça
do homem, revelando um rosto inchado e machucado em tons de
roxo e esverdeado, o que fez com que eu levasse as mãos à boca.
Dei alguns passos para trás, até as minhas costas pararem na
parede.
— Vamos falar sobre a nossa pequena reunião de emergência.
Esse verme foi enviado por Samael. Os Cavaleiros estão
atrapalhando meus negócios e eu odeio gente que atrapalha a
ordem natural das coisas na nossa região. Estão se metendo onde
não devem. Essa região é nossa! — ele falou, perdendo-se ao final,
levemente enfurecido. Kian respirou fundo, mas sorriu de forma
cruel para o homem, que estava mole e visivelmente cansado. Ele
segurou os cabelos de sua nuca, levantando o rosto do homem para
todos. — Ele machucou a Margot em uma festa em Lancaster. —
Seu tom de voz começou a alterar-se, a aumentar,
proporcionalmente à sua ira. — Ele estava lá, interceptando as
minhas drogas e machucando uma das pessoas que esteve nessa
merda de esquema desde o primeiro dia. — Seus dedos apontaram
para a garota de cabelos raspados, ao redor da saída do nosso
túnel, alguém que não tinha notado até então. Seus lábios estavam
machucados e havia pontos recentes em parte da sua cabeça.
— Dios, Kian! — Pietra reclamou colocando as mãos na cintura,
enquanto seu casaco preto abria-se. — Não controlo Lancaster.
Ele riu e jogou o saco longe.
— Não, a vaca da sua mãe que tem influência por lá.
O rosto de Pietra tomou um tom rubro, estava fervendo em ódio,
mas quem respondeu Kian foi Hunter:
— Vamos manter o mínimo de compostura, por gentileza.
— Vou ter o mínimo de compostura quando algum de vocês
resolver fazer a porra da parte de vocês — rugiu, feroz, soltando o
homem. — Estou cansado de resolver isso sozinho. Minha parte do
esquema são as drogas e o controle da região, você. — Apontou
para Pietra. — A segurança e os políticos, e você — Direcionou o
indicador para o pai de Hugo —, a porra da estrutura da cidade.
Façam a porra da parte de vocês!
— Veja bem, Kian, você deveria medir suas palavras — Hunter
finalmente disse, em desdém. — Samael é problema seu. A Tríade
tem seus negócios em comum que condizem com Kardama, mas
essa merda é sua.
Kian soltou uma risada curta e tenebrosa.
Sua jaqueta escorregou pelos seus braços e caíram sob a mesa
que havia ali enquanto todos se mantinham em pé, apenas
observando.
— Verme? Eu sou um verme? — O homem sussurrou com a
voz fraca, chamando a atenção de todos. — Não sou eu que estou
escondido, parecendo um rato de esgoto nos túneis embaixo da
cidade.
Kian riu, de uma maneira nada divertida. De forma quase
doentia.
— Tsc… — Israel cruzou os braços enquanto Hunter Müller
observava a cena com tédio. Pietra parecia impaciente. — Que erro!
Antes que eu pudesse perguntar a Israel seu comentário, notei
que, do bolso da jaqueta Kian tirou algo e assim que colocou aquilo
nos dedos, consegui ver exatamente o que era: um soco inglês. Um
para cada mão. Kian parou na frente do homem e agachou-se um
pouco, parando na sua frente, de costas para mim.
— Como é seu nome mesmo? Snake, não é? — questionou
com um sarcasmo de maneira tenebrosa. — Vou mandar o seu
corpo para Samael com um recado bem claro. Ou ele e os
Cavaleiros correm da minha região e de todo o sul da Califórnia, ou
eu vou fazer pior com ele do que estou fazendo com você. Vocês
estão se metendo no meu território e isso tem me deixado… bem
irritado. — De repente, ele virou-se de lado, me encarando com um
sorriso perverso. — Por favor, Snake, conte àquela bela moça, há
quanto tempo você está aqui?
Os olhos ainda inchados do homem me encararam com certa
dificuldade, fazendo meu estômago se revirar. Meus olhos não
desviaram da cena que se desenrolava na minha frente.
— Sei lá…
— O suficiente pra perder a noção do tempo…
Ouvi Israel bufar e desviei o olhar pra ele, abracei meu próprio
corpo, sentindo o nó na minha garganta ficar maior a cada segundo.
Ele estava disposto a me dizer que o inferno de verdade era a mais
insana composição de Dante, com seus nove círculos de sofrimento
e agonia, mostrando-me tudo aquilo.
Então, Kian desferiu o primeiro soco como um relâmpago. O
barulho do metal com a carne machucada do rosto do homem me
fez tremer. No entanto, ele não parou.
Os golpes continuaram. O rosto do homem virou uma confusão
em sangue, mas os sons foram o que me deixaram aterrorizada. Os
gritos, o som da pele machucada, os ossos estalando… tudo
ecoava alto, e de forma intensa.
Kian parecia um animal sobre o homem, o ferindo.
Sim, ele bateria em um homem até quase a morte.
Ali estava a prova daquilo.
Lágrimas nublaram a minha visão por um instante, não
hesitando em descer rapidamente. Em partes, pelo homem e, em
outra, porque eu estava apavorada. E o terceiro motivo era porque
eu não conseguia ver mais Kian na minha frente, apenas um
monstro.
Empurrei meu corpo para trás, tentando fugir. A parede me
lembrava que não havia espaço para fugas.
A cada golpe, a cada gota de sangue que escorria do homem,
minhas lágrimas escorriam mais. Tentei desviar meu olhar da cena,
mas não conseguia. Estava presa naquilo. Ninguém fazia nada. Das
várias pessoas que haviam ali, capangas ou pessoas supostamente
importantes, nenhum movia um músculo a fim de frear o ódio e a
violência do Wilding.
— Kian, é o suficiente! — A voz de Pietra ecoou pelo lugar,
misturando-se ao som da carne sendo machucada.
Mais golpes.
O som de ossos estalando.
Os grunhidos do homem.
E tudo o que eu sentia era um embrulho cada vez maior em
meu estômago. De repente, o corpo do homem tombou para o lado
e alguns homens fizeram menção em se aproximar, mas Kian
levantou as mãos, os fazendo parar no mesmo instante. Ele ainda
estava amarrado a cadeira e agora jogado no chão sujo, cuspindo
sangue e visivelmente nauseado.
— Não, não é! — Kian gritou, afastando-se do tal Snake e
apontando o dedo para Pietra. Sua mão estava suja com vermelho e
haviam gotas de sangue em seu rosto. — Não é o suficiente, porque
os policiais de merda que sua mãe tem no bolso não fizeram a porra
do trabalho deles e agora eu tenho que lidar com esses vermes. Eu
estou pouco me fodendo se a cena está desagradável para vocês,
mas quando vocês não fazem a merda da parte do acordo, este é o
resultado! — Ele voltou-se ao homem novamente, agarrando-o e
jogando seu corpo, ainda amarrado na cadeira, na direção do nosso
túnel, com uma força que não parecia proporcional a Kian.
— Minha mãe não controla todo o Sul, carajo — resmungou
Pietra. — A Tríade tem poder em uma região limitada, o lance das
drogas em todo o Sul é apenas seu — ela parecia irritada.
Kian virou o rosto para ela.
— Não me lembre as obrigações de cada um neste momento.
Todos aqui sabemos o que cada família da Tríade faz, e, pelo visto,
você tem esquecido da sua parte do acordo.
O corpo exausto e machucado de Snake parou a alguns metros
de nós e eu finalmente fechei os olhos. O cheiro de sangue e urina
me atingiu com tudo, fazendo sentir uma ânsia ainda maior me
atingir.
Logo, alguns homens que pareciam estar a mando de Kian
tiraram aquele pedaço de carne da minha frente, me fazendo
duvidar que ainda havia um homem com alguma dignidade ali.
— Vou ligar para Lancaster — Pietra declarou, claramente
dando aquilo por finalizado. Observei o homem ainda amarrado ser
levantado e carregado de lá, sumindo com mais três caras em um
dos túneis. — Resolva o meu problema com Tai Yang, e vou
resolver o seu. Agora, Hunter, precisamos do novo centro de
eventos para a Ação de Graças logo. Minha mãe precisa se reeleger
e você parece que está atrasando todas as obras possíveis.
Os olhos azuis de Hunter miraram a mulher com tédio.
— A demora dos insumos não está no meu controle, Lopez. —
Seus olhos azuis frios vieram até mim, e, depois, ele olhou em volta.
— Agora se os dois cães raivosos me dão licença, eu preciso ir —
declarou seco, retirando-se.
Pietra foi a próxima a sair por outra saída, enfiando-se em
túneis.
Enxuguei o que havia de lágrimas ainda ali e tentei acalmar meu
coração que parecia querer sair pela minha boca. Israel afastou-se e
foi conversar com a tal Margot e, mesmo machucada, a garota deu
um sorriso para ele. Eles conversaram baixo e me prendi naquela
cena, no cuidado notável que Israel tinha com a garota. Isso me
distraiu por um instante, me acalmando minimamente.
Mas ao ouvir o barulho de metal atingindo o chão, encarei Kian,
e logo algo se fechou no meu pescoço, colocando-me contra a
parede, entre a penumbra de duas lâmpadas presas à parede.
Não havia força ali, mas a ação me obrigou a encarar olhos
transtornados em ódio e desespero. O cheiro de sangue de sua mão
me deixou zonza e a umidade que tocou minha pele me deu certeza
que Kian estava me marcando com sangue do seu inimigo.
O rosto dele estava próximo o suficiente para que sua
respiração cheia de adrenalina batesse contra meu rosto.
— Era isso que você queria ver? — Senti o líquido viscoso,
causando-me toda a náusea novamente. Mais lágrimas vinham e se
tornava insuportável respirar. — Corra, Ayla. Vá embora e nunca
mais volte.
Sua mão soltou meu pescoço, mas agarrou meu braço, usando
da força para me empurrar em direção ao túnel pelo qual tínhamos
vindo. Minhas pernas tropeçaram uma na outra e quase caí,
observando Kian no meio do túnel, me encarando. Ele pediu para
que eu fosse embora dali.
Respirei algumas vezes, segurando meu estômago e sentindo a
garganta queimar com o vômito.
Meus olhos desviaram para trás dele, onde o homem
ensanguentado estava sendo levantado por dois dos seus
capangas.
Israel surgiu rugindo em ódio e decepção:
— Você passou dos limites, Kian!
Ele veio até onde eu estava, me dando suporte para ficar em
pé. Kian virou de costas para nós. Escovando os cabelos com as
mãos vermelhas. No mesmo segundo, coloquei as mãos no
pescoço, tentando limpar a pele suja. Queria tirar aquilo de mim.
— Já faz um tempo… — ele respondeu. Havia indiferença ali e
apenas isso.
— Vamos embora — Israel disse apenas para mim, me
auxiliando.
Dei meia dúzia de passos pelo túnel com as mãos de Israel
ajudando a me manter em pé, já que minhas pernas não eram
confiáveis naquela altura. Contudo, algo pior veio, afastei-me dele e
encostei minha mão na parede, inclinando-me para frente e
colocando qualquer merda que tivesse no meu estômago para fora.
Meu corpo todo colapsou enquanto ouvi Kian dando ordens.
— Kian vai matar aquele homem… — soprei, incrédula.
— Ele não vai, prometo — Israel respondeu ao meu comentário,
me puxando para si novamente. — Vem, vou tirar você daqui,
passarinho.
Israel me levou para fora. Minhas mãos ainda esfregavam a
minha pele e eu sentia como se pudesse arrancá-la fora. As
lágrimas escorriam com desespero e tudo o que eu queria era me
livrar daquele cheiro.
As palavras de Kian ainda ecoavam na minha mente. A cena de
violência ainda parecia nítida demais e aquilo me fazia querer
vomitar de novo. Israel me pediu desculpas durante toda a volta, e
me mandou ir embora. Ele me relembrou das suas palavras dizendo
que aquele não era o lugar para mim. E eu comecei a achar que
talvez ele estivesse certo.
Não sei quanto tempo permaneci debaixo da água do chuveiro,
mas foi tempo demais, com certeza. Porque cheguei de madrugada,
e o céu começava a clarear. Enrolei-me em uma toalha e fui até o
espelho, passando a mão pelo local, tirando o embaçado e
encarando uma garota que eu não tinha ideia de quem era mais.
Meu rosto estava inchado de tanto chorar e eu sentia uma exaustão
me dominando.
Coloquei meu pijama e penteei meus cabelos ainda dentro do
banheiro. Saí e agradeci por não ver nem Tai e nem Yue por ali.
Entrei no meu quarto e meu corpo foi direto ao colchão. Em nenhum
momento, deixei de me perguntar onde diabos eu havia me metido.
E desliguei quando a cidade despertou.
A chuva caía lá fora enquanto meu corpo continuava estático na
cama. A minha segunda-feira tinha sido inteira assim. Não saí do
quarto para nada, no máximo para ir ao banheiro ou tomar água,
porque nada parava em meu estômago.
As lágrimas tinham secado e eu me sentia vazia. Meus olhos
perdiam-se pelo quarto eventualmente, procurando por o que fazer,
mas tudo parecia cinza. Sem vida.
Na terça-feira, Yue entrou no meu quarto me perguntando se
estava bem, disse que achava que estava doente, mas que não
havia nada com o que se preocupar, que aquilo passaria logo.
Eu ainda tinha pesadelos com Kian batendo naquele homem e
os túneis sob Kardama todas as noites.
Na quarta-feira, meu pai ligou. Estava fugindo tanto de atendê-lo
que parecia uma filha ingrata, mas a verdade era que só queria
protegê-lo. Proteger ele, Dani e Sandy. O ignorei. Como ignorei as
ligações de Olivia e todas as mensagens dela e das garotas da
fraternidade.
Minha cabeça doía e, por algum motivo de merda, eu a deixava
doer no seu máximo, sem tomar remédio. Talvez fosse algum tipo
de punição pela pessoa horrível que estava me tornando.
Naquele dia, à noite, me forcei a sair do quarto e fui até a sala,
encontrando apenas Yue e as lágrimas vieram. Não poderia explicá-
la nada, mas foi bom ter seu abraço. Tive que mentir, dizendo que
minha madrasta estava doente no Canadá. Durante toda a
conversa, me senti péssima por fazer analogias com uma doença
inexistente e o meu vazio.
Naquele período, Kian não tinha me procurado.
Na quinta-feira, menti pra mim mesma dizendo que estava
pronta para sair do apartamento e enfrentar Kardama. Cheguei à
porta e voltei correndo para o quarto, como uma garotinha
assustada. Nunca me odiei tanto.
Foi quando busquei pela única foto que tinha trazido impressa
comigo. Era uma foto minha e da minha mãe, no nosso rancho. Ela
estava toda feliz, e me apertando em um abraço, enquanto eu a
encarava com um sorriso de rasgar o rosto. Eu deveria ter uns oito
anos e meus cabelos estavam longos na época. Sempre tive os
olhos do meu pai, azuis como safiras, mas olhando a foto de Victoria
na glória dos seus trinta e poucos anos, era claro que havia
semelhança entre nós duas.
Ouvi batidas na porta do meu quarto e mandei que entrasse,
para a minha surpresa era Tai. Ele estava com uma camiseta
simples e uma bermuda, suas típicas roupas de exercício.
— Ei, tô ficando preocupado com você… — ele disse, parado
na porta. — Sabe que pode voltar ao Canadá para ver sua
madrasta, certo? Se precisar, te empresto dinheiro para comprar a
passagem; nestes momentos, é bom estar cercado por quem
gostamos. — Ele estava sendo solícito.
Mordi meu lábio e suspirei. Enfiei minha fotografia sob o
travesseiro e levantei-me da cama, sentindo meu corpo pesado.
— Dani está melhorando, obrigada pela preocupação… —
soprei, ainda sem coragem de encará-lo completamente. — Eu só
não quero perder outra figura maternal.
Ele assentiu calmamente. Sabia que Tai e Yue tinham sido
criados pela avó após os pais morrerem em um acidente de carro.
Yue tinha me contado isso durante o tempo em que estávamos em
Nova Iorque. Eles sabiam o que era esse tipo de dor.
— Aconteceu mais alguma coisa? — ele questionou, me
medindo com cautela.
Ele estava preocupado, mas analítico também.
— Não… Só estou cansada.
Tai assentiu e logo saiu. Sozinha no apartamento, arrastei-me
para o banheiro, precisava de um banho, talvez isso pudesse me
ajudar a clarear a mente.

Família. Era difícil encarar o que eu estava fazendo pela minha.


Era difícil de aceitar que eu estava sendo egoísta a esse ponto.
Minha maldita vingança só me trouxe sofrimento, a recordação
dolorosa do luto durante todos os dias. Me levando para os piores
momentos da minha vida sempre.
Por isso, na quinta-feira à noite, decidi atender meu pai. Passei
maquiagem a fim de esconder a tristeza e aceitei a sua ligação de
vídeo com os fones no ouvido.
— Ayla, mon coeur! — papai disse, com um sorriso largo nos
lábios. — Como está, minha filha?
— Bem, pápa… cansada, mas bem. — Maldita mentirosa.
— Dani, venha aqui ver Ayla! — papai gritou e logo a mulher de
cabelos cacheados apareceu na tela, junto com uma garotinha que
era a sua cara, mas tinha os olhos do meu pai. Vê-los assim…
Deus, como eu sentia falta deles. Senti os olhos ardendo, mas tentei
não ceder à emoção.
— Oi, Lala… — Dani me cumprimentou animada, com um
apelido que ela e Sandy tinham inventado para mim. Rolei meus
olhos, eu não o odiava, mas não o amava também. Contudo, era
ótimo ouvi-la chamando-me com tanto carinho.
Estava precisando disso.
— Lala, quando você volta? — Sandy gritou, olhando com
cuidado para a tela do celular, como se fosse possível atravessá-la.
— Eu não sei, princesinha, mas vou tentar ir no Natal.
— Oba! — A garotinha bateu no balcão em que eles estavam
apoiados. — Vamos fazer bolinhos de banana, certo?
— Vamos, sim, linda…
E as lágrimas me atingiram com tudo. Lembrar-me de como a
minha vida era no Canadá doía, e saber que estava mentindo para
as pessoas mais importantes da minha vida era fodido de tão
complicado.
— Vamos dormir, San, a Lala precisa conversar com o pápa um
pouco — Daniele disse, a vi pegando a garotinha no colo enquanto
ela me mandava um beijo, dizendo que estava morrendo de
saudade e que me amava.
— Boa noite, meus amores — soprei.
Alguns segundos se passaram e eu fiquei sozinha com o olhar
preocupado do meu pai. Suas rugas pareciam acentuadas pela tela,
mas não era nada absurdo. Os cabelos grisalhos estavam ali e a
barba por fazer me indicava que ele estava trabalhando demais.
— O que está acontecendo, Ayla?
Por onde começar a explicar?
Suspirei e tentei me acalmar.
— Filha, se precisar posso dar um jeito, vou até Forks te ver.
Neguei com a cabeça.
— Não precisa, são só alguns dias ruins, nada demais, juro.
— A garota que mora com você, tá tudo bem entre vocês? —
ele questionou. — Yvana, Yana…
— Yue — o recordei. — Ela está bem, nós temos uma relação
ótima, juro. Ela tem sido, em boa parte, a melhor coisa por aqui.
Ela e Olivia. E, Deus, como doía me lembrar de Olivia. Ela e
Hugo sabiam sobre aquele esquema horrível da Tríade. Até onde
tinha entendido, cada família tinha um poder obscuro na cidade.
As lágrimas ainda incomodavam meus olhos, enquanto um
pequeno filme de toda a minha vida em Kardama passava pela
minha mente. E tudo o que havia me levado até ali. Todas as
risadas e todas as lágrimas. E lembrando-me dela, Victoria. Minha
mãe.
— Pai, você acha que minha mãe teria orgulho de mim? — a
pergunta escapou com sofrimento. E era claro que meu pai
perceberia. Seu semblante saiu de preocupação para emocionado.
Pude ver as pequenas lágrimas em seus olhos.
— Ayla, eu tenho certeza que sim! — Sua voz saiu firme. — Sua
mãe era… era um espírito livre, e só Deus sabe o quanto sinto o
amor dela todos os dias. Ela me deu você e me deu felicidade
durante todos os dias que ficamos juntos. Ela amava a nós e os
cavalos? Sim, mas mais que isso, ela amava a vida, filha, como
você. — As lágrimas já escorriam pelo meu rosto enquanto meu pai
continuava a falar. — Victoria e eu a criamos para ser uma mulher
forte, linda e bem sucedida em tudo o que fizer. Sei que está
correndo atrás do seu sonho nos Estados Unidos, sei que tem seus
objetivos e, Ayla, não poderia estar mais orgulhoso. — No fundo, eu
sabia que ele não ficaria nada orgulhoso ao saber quais eram os
meus reais objetivos naquele país, mas ouvi-lo dizer tais palavras foi
acalentador. — Eu te amo, mon coeur.
— Je t’aime, papa — soprei de volta.
Olhei para a foto da minha mãe mais uma vez e respirei fundo.
Eu já estava ali, tinha saído do Canadá e vindo até a porra da
Califórnia. Já tinha atravessado tanta coisa, deixado tanta outras
para trás, que não poderia deixar que tudo fosse por água abaixo
agora. Eu poderia acertar as contas comigo mesma depois, minha
mãe merecia vingança pela sua morte precoce e completamente
evitável. Benjamin Wilding iria ruir e eu estaria lá para me certificar
de que isso aconteceria com o máximo de sofrimento.
Passei aquela noite em claro, pensando. Quando a sexta-feira
amanheceu e a mensagem de Hugo chegou, eu sabia exatamente o
que precisava fazer.

Meus cabelos estavam amassados em ondas, enquanto uma


tiara com pedras falsas estava sob a minha cabeça. Um vestido
champanhe escuro estava em meu corpo e os saltos recém
comprados faziam uma bela composição. Mais que isso, faziam
todos os malditos olhos se virarem para mim. No fim da pista de
dança haviam balões flutuantes com um H e um vinte e cinco bem
grandes e chamativos. Era aniversário de Hugo, o líder da
fraternidade Ômega Phi e um Müller, por isto, não esperava nada
menos que uma festa espetacular.
O clube de golfe dos Müller comportava muito bem a alta
sociedade e os estudantes da universidade. Parecia um local
pacífico, mas sabia que o aniversário de Hugo seria algo a se
comemorar com algo grande, e por isso estavam todos ali. Os pais,
Hunter e Lindsay Müller, recepcionavam seus amigos, entre taças
de champanhe e sorrisos largos. Pietra também estava por ali, afinal
era aniversário do seu cunhado, mas Grace Lopez não foi captada
por meus olhos.
Passei por todos, ignorando cada olhar até finalmente encontrar
Olivia e Hugo, conversando com Trenton perto do bar. Não hesitei
em ir até lá.
Os olhos de Olivia foram os primeiros a me captarem e um
sorriso esperançoso a dominou.
— Ayla! — Seus braços logo viram até mim e eu a abracei,
sentindo-me péssima por estar fazendo aquilo. — Achei que teria
que matar o Kian.
— Eu considerei essa possibilidade também… — brinquei e ela
desceu os olhos pela minha roupa.
— Você está impecável, Ay.
— Obrigada, Liv. — Meus olhos também observaram o seu
vestido azulado e só pude constatar que aquela mulher ficaria bem
em qualquer cor de roupa. — Você está linda também.
— Você veio… — Hugo disse parando atrás de Olivia. — Sabia
que meu aniversário seria irrecusável.
Eu ri da sua autoconfiança.
— Tive alguns problemas familiares para resolver também. —
Decidi manter a mesma mentira que disse a Tai e Yue para os dois,
assim não caía em contradição. — Mas não perderia seu
aniversário, cali-boy.
O abracei e avisei que ficaria lhe devendo um presente e ele
pareceu não se incomodar com aquilo.
Então, o olhar de animação de Olivia perdeu o brilho por um
instante.
— Sinto muito pelo o que Kian fez… — Neguei com a cabeça,
não queria falar sobre aquilo. Não queria lembrar dos malditos
túneis.
— Deveria se afastar da Seven, Ayla. — Desta vez, foi Hugo
que falou. — Deixe quem é obrigado a lidar com isso que lide. Não
você.
Engoli seco. Eles nunca entenderiam.
— Eu estou bem, Kian vai precisar de muito mais para me
assustar e me fazer correr dele.
Olivia teve uma expressão triste a dominando.
— Poderia ter me atendido, né?!
Neguei com a cabeça.
— Eu precisava ficar sozinha, e tinha meus próprios problemas
para lidar. — Forçando o meu melhor sorriso. — Mas eu tô bem,
agradeço a preocupação de vocês dois, de verdade.
Eles concordaram e aceitei o abraço dos dois ao mesmo tempo.
Aqueles dois tinham tanto amor dentro de si que não entendia como
conseguiam se manter naquela maldita cidade com tudo o que
acontecia.
Assim que nos afastamos, vi Hugo bufar.
— Preciso ir ver os convidados dos meus pais…
Rapidamente Olivia enganchou em seu braço.
— Vou com você, meu amor.
Ele assentiu e aprumou a postura. Os desejei boa sorte e deixei
que se afastassem. Meus olhos rapidamente captaram Railey e
Julie, que vieram em minha direção animadas.
— Ayla, você sumiu essa última semana! — reclamou Julie. —
Tivemos a nossa tarde na piscina e sentimos tanto a sua falta.
Elas eram incríveis e eu, definitivamente, havia sentido falta —
mesmo que pouco — das gritarias das garotas da Kappa Phi. As
garotas continuaram a tagarelar e eu adorei saber as novidades da
última semana. Parecia que alguém tinha pregado uma peça nelas e
colocou pó de gelatina na piscina menor da fraternidade. Elas não
sabiam quem tinha sido, mas, com certeza, algo de trote de alguma
outra fraternidade do campus.
Nós acabamos pegando uma taça de champanhe para cada e
nos sentamos em uma das mesas disponíveis para as garotas. O
salão era gigante. E as toalhas douradas sob as mesas gritavam
quão chique aquele evento era, mesmo que o anfitrião principal,
Hugo, tivesse que fingir mais sorrisos do que eu poderia contar.
Sua mãe bebia uísque puro enquanto seu pai parecia ainda
manter a compostura com champanhe, entretanto, depois dos
túneis, sabia que Hunter Müller não tinha essa compostura, o que
ele tinha era a indiferença a tudo.
Eventualmente, a pista de dança foi aberta e Hugo dançou com
Olivia, uma valsa linda, em seguida convidando outras pessoas a se
juntarem àquilo. Enquanto Olivia dançava com o sogro com a cara
mais falsa que já havia visto ela usar, Hugo dançou com Pietra.
Protocolos calculados, unindo as forças entre as famílias e
mostrando isso para todos os presentes. Aquilo era doentio, e se
não visse Hugo e Olivia juntos, poderia até dizer que eles eram algo
fácil, mas era impossível, o amor deles exalava como um feromônio
a ser sentido quilômetros de distância. Outros casais juntaram-se
para dançarem e assim que a longa música encerrou, começou a
parte que os jovens queriam, as músicas dançantes.
Riley e Julie pareciam empolgadas para irem tirar alguns
garotos da Ômega Phi e da fraternidade Deltha para dançar. Como
não estava tão no clima, deixei que saíssem, dando a desculpa de
que pegaria mais uma bebida. Caminhei até o bar, deixando a taça
de champanhe e pedindo por um Martini. A taça larga com o líquido
transparente e um palito com azeitonas empaladas não demorou
para vir à minha mão.
Em seguida, vi Trenton se aproximando.
— Oi, Ayla…
— Oi, Trenton.
Em sua mão havia cerveja em uma longneck enquanto a camisa
cinza escura com o terno num tom mais claro, o caia bem.
— Está linda, iria te oferecer algo pra beber, mas vejo que sabe
se cuidar bem.
— É, eu sei.
— Há alguma chance de...
Trenton encarou-me com um sorriso, mas seu olhar
rapidamente recaiu atrás de mim e pude ouvir sua voz próxima
demais. Seu corpo parecia o inverno gélido e, ao mesmo tempo,
enviava um calor infernal pelas minhas costas.
— Trenton, estão chamando o líder da trapaça na mesa de
pôquer, deveria ir lá roubar dinheiro dos velhos desavisados. —
Havia um misto de sarcasmo e raiva em sua voz.
Eu ri fraco e comecei a beber, não iria discutir e muito menos
ficar entre egos masculinos. Não que pudesse haver muita, porque
a briga seria desleal. Meu corpo sentiu sua presença poderosa.
Apesar dos meus olhos estarem fixos no rosto de Trenton, minha
atenção era toda de Kian.
Trenton sorriu e assentiu, bebendo um gole do líquido, com os
olhos presos no homem atrás de mim.
— Vou lá, nos vemos Ayla.
Assenti e ele saiu. Quando o perdi de vista, me virei com um
sorriso divertido em meus lábios.
— Você é um idiota! — declarei em um bom tom.
Um sorriso sujo formou-se em seu rosto, assentindo e nada
abalado pela constatação.
— E você ainda está aqui. — Seus olhos encaram-me da
cabeça aos pés e eu gostei do brilho que apareceu ali por uma
fração de segundos apenas. — Achei que tivesse te assustado o
suficiente.
Eu ri fraco e dei um passo para frente, sentindo o meu coração
acelerando os batimentos.
— Não, eu posso lidar com as suas merdas, só estava ocupada
resolvendo problemas pessoais, acredito que você entenda disso —
menti. — Está bebendo? — questionei, curiosa, não tendo captado
nenhum copo em sua mão.
— Acabei de chegar.
— Ah, então vamos resolver isso! — Caminhei até o bar, e
depois de alguns passos, senti que ele estava me seguindo. Parei
na frente do bar e disse: — Por favor, um copo de uísque. Seu
favorito, não é, chefinho? — brinquei, batendo meus cílios na
direção dele.
Um dos garotos da fraternidade de Hugo me encarou com certo
cuidado e logo me entregou o copo com a bebida solicitada. E eu a
entreguei a Kian, que me encarava com diversão no olhar, mas uma
feição séria, de quem ainda me analisava demais.
— O que foi? — questionei, com uma expressão entediada
diante do seu olhar.
— Nada, ainda tô absorvendo que não saiu correndo como eu
queria.
Eu ri e me diverti com sua feição curiosa. Dei mais um gole na
minha bebida, finalizando. Deixei o copo sob o balcão do bar e me
virei para ele.
— Seu show de horrores me impressionou, mas estou dentro,
Kian. Vou te dar o que quer — soprei, nervosamente.
Eu não pretendia trair Tai Yang, e, sim, enrolar Kian até
descobrir algo válido sobre ele e entregá-lo. Não envolveria quem
me recebeu tão bem em Kardama.
— Nada disso é bonito, Ayla.
— Já vi que não é, Kian.
Ele levou os dedos até o cabelo, escovando-os para trás por um
instante. Ele estava desconfortável. Era bom que estivesse, só para
que tivesse um pingo de noção de como me deixou depois daquele
maldito túnel.
— Minha madrasta, ela estava doente… — confessei a mentira
a ele também. Se ele chamava Stephany de mãe, talvez seu
coração gelado pudesse ceder às minhas mentiras sobre a minha
família. — Fiquei preocupada, eu estava uma bagunça essa última
semana, por isso, o sumiço. Não foi só porque você me levou
para… bem, você sabe.
Seu corpo pareceu vacilar. E notei um vislumbre de
compreensão em seus olhos.
— Já perdi a minha mãe, não poderia perder a Dani também.
Meu pai e minha irmã definitivamente precisam dela presente, mas
eu… e-eu também preciso. Ela salvou a mim e ao meu pai quando
apareceu na nossa vida, não suportaria perdê-la.
O que não era mentira. Abaixei meu olhar, sem conseguir
mensurar a dor em tudo o que havia o confessado.
Logo senti seus dedos gelados no meu queixo, enquanto ele
dava um passo para frente. Seu corpo ficou próximo ao meu e seus
olhos castanhos esquadrinharam o meu rosto.
— Ela está bem agora? — sua pergunta me pegou de surpresa,
havia um verdadeiro pingo de preocupação ali? Aquilo era real?
Senti minha respiração falhar por um instante.
— Sim… — soprei.
Seus dedos me deixaram, fazendo com que sentisse uma
eletricidade percorrer todo o meu corpo em seguida. Os olhos dele
desceram pelo meu corpo e logo voltaram-se ao meu colo, que
subia e descia, enquanto tentava respirar de forma regular. Apesar
da direção libidinosa do olhar, eu sabia que Kian não encarava os
meus seios.
Era o meu pescoço.
Eu já tinha percebido seu olhar para a região algumas vezes.
Será que ele conseguia ver a pulsação de alguma veia quando eu
estava nervosa? Ou vermelhidão?
— É um belo colar — pontuou, observando a linha dourada com
um pingente de folha de madrepérola em meu pescoço.
— Era da minha mãe.
Ele anuiu, tomando toda a sua bebida, enquanto os olhos não
deixaram os meus. Era palpável a sua curiosidade quanto a mim, e
queria que ele ficasse mais curioso a cada instante, mas encarando-
o dessa forma, tão próximo, isso nublava meus pensamentos. Sua
beleza era sufocante e mesmo que o Kian dos túneis viesse a minha
mente, eu ainda encarava aquele homem em busca de algo além do
vazio dentro de si.
— Eu preciso ir… Só passei para dar um abraço em Hugo.
Desviei do seu corpo, mas seus dedos agarravam o meu pulso.
— Ayla, posso te dar uma carona.
— Não — neguei de pronto. — Nos vemos na Seven, na
segunda.
Sua cabeça balançou em concordância.
— Às 13h00! — avisou e seus dedos me deixaram ir.
Não tinha certeza se aquela informação ajudaria Kian. E eu,
definitivamente, esperava que não.
Precisava das provas contra os Wilding o mais breve possível, e
esperava conseguir enrolar Kian neste período. Em meus planos,
duas semanas seria o suficiente para que conseguisse a senha do
seu computador, ou as chaves das gavetas, e descobrisse algo
daquele esquema.
Eu também precisaria de nomes e mais detalhes sobre aquele
submundo de Kardama e, por Deus, depois que as provas
estivessem em minhas mãos, correr o mais rápido possível até a
polícia federal e, de preferência, para longe do estado da Califórnia.
O senador Wilding tinha mais poder do que eu imaginava, e até
onde sabia, a sede do FBI ficava em Washington.
Sequei a umidade em meu pescoço e encarei a estrutura da
Seven. Agora, eu sempre pedia para que os carros de aplicativo
parassem no estacionamento lateral, onde a porta de entrada dos
funcionários estava aberta para mim.
Assim que o veículo saiu patinando, senti o vento em minhas
pernas e pensei que, talvez, eu precisasse de um carro. Bufei uma
risada, isso seria demais. Muitas provas da minha existência em
Kardama. Precisava ser um fodido fantasma. E agora que Benjamin
Wilding sabia meu nome, qualquer passo fora dos trilhos me
deixaria à sua mercê. Eu não era idiota. Desafiei o homem junto a
Kian, e mesmo que nós dois tivéssemos quase um momento
cúmplice, aquilo me deixou na mira do velho.
Sorri, enquanto caminhava na direção da porta da boate, com
os pensamentos nisso, mesmo que meus olhos estivessem sobre o
caminhão de carroceria branca ali. Provavelmente, era para algum
produto que precisava de temperatura controlada estava chegando
na boate, já que a caixa branca parecia daquelas isotérmicas.
Que tipo de droga precisava deste controle?
Parei de caminhar, me sentindo ansiosa.
Uma respiração profunda escapou dos meus pulmões quando vi
um funcionário surgir com um pacote de gelo seco. O.K.
Aparentemente não tinha nada a ver com as ilegalidades de Kian
aquilo. Mordi meus lábios e andei depressa até a porta.
Parei sob a soleira quando vi as pessoas ali dentro. Havia, pelo
menos, seis homens vestidos com ternos pretos e pontos de
conversação nos ouvidos. Claramente, eram seguranças. Virei meu
rosto e notei os carros que não conseguia enxergar por conta do
caminhão. Três carros de luxo na cor prateada estavam ali. Aquilo
só poderia significar que Benjamin WIlding estava por ali.
Conferi meu relógio de pulso. Era uma hora da tarde. O horário
que Kian havia pedido para que eu viesse, então, ele não surtaria
com a minha presença.
Movida pela curiosidade, adentrei a boate.
Os homens de Benjamin estavam caminhando pelo centro do
salão e conversavam baixo. Israel, como sempre, sentado em uma
banqueta do bar. Me aproximei do homem, enquanto observava sua
postura derrotada e o olhar triste até o copo com bebida na mão.
Instantaneamente, lembrei-me do que ele havia dito quando
perguntei porque não estava na festa na mansão Wilding: a ovelha
negra da família.
— Ei — chamei sua atenção, sentando ao seu lado.
Israel levantou o rosto para mim, revelando um par de olhos
avermelhados e expressão caída.
— Oi, passarinho. — Levantou o copo. — Não é uma boa hora.
— Kian pediu que eu viesse — expliquei, olhando de soslaio
para os homens de preto.
— Parece que meu irmão escolheu o mesmo horário para uma
de suas visitinhas — bufou, e engoliu um longo gole de bebida. — É
uma pena.
Voltei meus olhos para o homem, focando minha atenção no
tom de voz totalmente desmotivado, mas havia uma pitada de
rancor e raiva lá.
— Por que é uma pena?
— Geralmente, ele deixa Kian à beira de um colapso, como faz
com todos a sua volta — disse, pegando a garrafa que estava
dentro do balcão e servindo mais uísque no copo baixo. Então,
parou o movimento. — Céus, eu não deveria estar bebendo tanto.
Preciso segurar Kian quando o filho da mãe sair daqui. O garoto
gosta de descontar a fúria em alguma coisa não muito saudável… E
para a merda do meu azar, Hugo e Olivia não estão aqui para
fazerem isso por mim.
Eu nunca havia visto Israel falar tanto. Só podia ser por conta de
um excesso de bebida. Então, toquei seu braço em um movimento
sutil e depois disse:
— Deixa comigo. Vou grudar nele e não deixar que uma
besteira aconteça. Você me salvou da fúria dele uma vez, lembra?
Te devo uma.
O homem abriu a boca para me responder, mas, então, um som
de algo batendo forte nos chamou atenção. Viramos o rosto ao
mesmo tempo, na direção do corredor dos banheiros e da escadaria
do segundo andar.
Meu coração disparou no peito, enquanto senti os músculos do
braço de Israel, o qual ainda tinha minha mão repousada,
enrijecerem. Não demorou muito para que a figura de Benjamin
surgisse de lá.
Ele vestia terno cinza claro, quase branco. A cor imaculada
parecia celestial contra a pele branca do homem. O que me fazia
questionar se ele queria passar uma imagem boa a todos, enquanto
era podre por dentro. Semicerrei os dentes quando os olhos dele
pairaram sobre nós. Ele não deixou de caminhar nenhum minuto,
cruzando o salão e fazendo um movimento com a mão para que os
seguranças o seguissem.
Benjamin virou o rosto apenas quando se aproximou da porta.
Seu olhar era sério e furioso. Havia um pouco de Kian na forma
como ele encarava a mim e Israel, mesmo que eu achasse Kian
muito mais parecido com o tio do que com o pai. O último segurança
que saiu, bateu a porta, fazendo com que a luz que vinha da rua
sumisse.
Voltei a respirar apenas quando ouvi o som dos carros lá fora.
Virei para Israel enquanto me levantava e, finalmente, retirei a mão
dele.
— Fica tranquilo. Vou lá ver como ele tá, e você pode curtir sua
bebida. — Apontei para o copo e lancei um sorriso nervoso para o
homem.
— Nem precisa ir atrás dele, passarinho. — Ele jogou o queixo
para cima.
Girei o corpo na direção de onde a sombra se movia. Agora, o
salão estava iluminado apenas pelas luzes dos camarotes de cada
ser endiabrado. O vermelho predominava ali, mas pude ver a
silhueta de Kian misturada ao rubro.
Mesmo que eu não pudesse ver seu rosto com clareza, sabia,
pela forma como ele se movia, que estava furioso.
Provavelmente, por conta da penumbra, Kian não me viu. Ele foi
na direção da porta, e, sem dizer nada, o segui. Kian abriu a porta
do lugar, fazendo-me parar por ter os olhos machucados pela luz
solar.
Cocei os olhos, tentando me recuperar, e apressei meu passo
quando ouvi o som do carro antigo de Kian sendo ligado.
Piscando algumas vezes, corri até a rua. Por sorte, o veículo
estava parado ao lado da porta. Identifiquei Kian dentro do carro,
com as mãos apertadas ao redor do volante e a testa apoiada ali.
Parecia respirar fundo, em busca de algum controle.
Corri até a porta do carona e a abri, me jogando dentro do carro
antes que Kian pudesse dar partida.
Assim que meus olhos focaram em seu rosto, vi que ele me
encarava, surpreso e totalmente transtornado.
— Que porra você tá fazendo no meu carro?
Ofegante, tentei recuperar o fôlego.
— Impedindo que você faça uma besteira — expliquei.
Ele riu, sem graça, jogando os cabelos para trás, desviando os
olhos dos meus, encarando a rua. Vi sua mão tremer no movimento.
— Saia do meu carro, Ayla. Não é uma boa hora.
Ri, sem graça.
— Sou péssima em seguir suas ordens — falei, e meu coração
errou uma batida quando vi um sorriso nervoso nos lábios dele,
parecendo retirar seu foco por alguns minutos daquilo. — E nós já
passamos da fase de você me afastar. Estou aqui fazendo um favor
para Israel, que parecia decidido a secar a garrafa de uísque, ao
mesmo tempo em que estava preocupado com a sua segurança,
então… Só me deixe ajudar. — Ele virou o rosto novamente para
mim. — Não me afaste.
Não sei porque escolhi tais palavras, mas a forma como ele me
olhava dizia que Kian era muito mais complexo do que eu
imaginava. E aquela relação com seu pai também. Por alguns
segundos, nossa troca de olhares foi tão intensa e verdadeira, que
me perguntei se, de fato, eu me importava.
Seus olhos solitários me diziam uma história muito mais
profunda e triste do que imaginei antes de colocar meus pés em
Kardama. Estava curiosa e preocupada… E isso fazia minha cabeça
ficar uma bagunça.
— O que você faz quando tá na merda?
— Geralmente, quebro a cara de alguém — ele explicou,
fazendo meus olhos arregalarem. — Fui criado em um lugar
violento. Não espere que eu resolva minhas merdas com conversa.
Abri a boca algumas vezes, mas, depois, desviei os olhos dele.
— Quando estou assim, eu gosto de fazer coisas que me tirem
de órbita… tirem o meu foco do problema. Dirigir e ouvir música no
volume mais alto funciona, assim como comer coisas nada
saudáveis — falei.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, sem encarar um ao
outro. Eu não sabia porque Kian estava falando, já que em crises de
ansiedade geralmente as pessoas se fechavam. Me perguntei,
então, se o simples fato de eu estar dentro do carro foi o suficiente
para retirar o foco de Kian do seu problema.
Aquilo aqueceu meu coração de um jeito estranho.
Acordei dos meus devaneios quando ele colocou o carro em
movimento.
— Coloque a porra do cinto e não encha o meu saco.
— Sim, senhor. — Sorri sozinha quando deixei claro que eu
seguiria suas ordens.
Ele apoiou o braço na janela do carro e acelerou, depressa
demais para a velocidade segura. Kian contornou os carros e dirigiu
para fora da cidade. Sua respiração alta misturava-se com o rugir do
motor.
Mais uma vez eu estava me aproximando de Kian por
consequência de sua família. Era engraçado, afinal de contas, já
que o ponto fraco dele e o meu, aparentemente, era o mesmo.
Quando eles estavam envolvidos, Kian abria-se para que eu
chegasse um pouco mais perto.
Minha missão, agora, era deixar essa passagem aberta de
maneira permanente.
Eu não podia deixar Kian se afastar.
As janelas estavam abertas e o vento gelado do outono entrava
no carro, bagunçando meus cabelos. O ar puro da Califórnia
agradava meus pulmões. Observei a paisagem desértica da região
e meus pensamentos ficaram claros por alguns segundos.
Como se eu tivesse entrado em um quarto branco. Sem
problemas, sem a vida ou qualquer preocupação.
Apenas a natureza.
Fechei meus olhos e descansei a cabeça contra o encosto do
carro.
Quando a música alta retumbou pelo carro abri meus olhos,
arregalando-os. Virei o rosto para Kian, que parecia relaxado contra
o banco.
— O que é isso?
Depois de encontrar clássicos em forma de vinil em seu
escritório, nunca imaginei que ele ouvisse algo como o rock clássico
dos anos oitenta. Aquilo parecia Pearl Jam.
— Primeira regra sobre o meu carro: nunca entre ser sem ser
convidada — falou, com os olhos na estrada. — Segunda: nunca,
absolutamente nunca, reclame da música.
Um sorriso contente se espalhou pelos meus lábios.
— Não ia reclamar, babaca.
Ele negou com a cabeça, em um movimento de total descrença.
Então, também relaxei contra o banco e curti a música com uma
melodia agradável. Não era uma banda que eu costumava ouvir,
então, nunca havia me atentado a letra daquela música.
“Eu saio para passear. Estou cercado por algumas crianças
brincando. Eu posso sentir suas risadas, então, por que eu
desanimo? Oh, e os pensamentos distorcidos que giram em volta da
minha cabeça. Estou girando, estou girando. Quão rápido o Sol
pode se pôr?
E agora minhas mãos amarguradas embalam cacos de vidro do
que era tudo. Todas as imagens foram todas banhadas em preto
tatuando tudo.”
Suspirei com o impacto dos dizeres daquilo. Por que diabos eu
estava querendo encontrar Kian nas palavras daquela música?
Mordi o interior da bochecha, lutando contra aquilo. Ao final da
música, Kian abaixou o volume do som, que parecia ser antigo com
entrada apenas para fitas, e finalmente me olhou.
— Qual era a sua outra sugestão para distração?
— Comida nada saudável.
Ele apertou os lábios por alguns segundos, então, voltou
aumentar o som. Achei que aquela conversa tinha terminado e,
após pouco mais de uma hora, continuávamos com aquela pequena
expedição nas redondezas de Kardama.
Minhas mãos voaram até o banco quando, do nada, Kian girou
o volante e puxou o freio de mão, girando o carro na pista.
— CARALHO! — gritei, alto, após minha cabeça balançar para
os lados.
Kian colocou o carro na pista contrária, na direção de Kardama,
enquanto eu me recuperava daquele meio cavalinho de pau. Tirei os
cabelos do rosto, sentindo uma leve ardência no pescoço, onde o
cinto tinha me prendido.
— Na próxima vez, avisa! — resmunguei, e ele sorriu de uma
forma divertida.
Cruzei os braços como uma garota mimada, ouvindo a banda.
Por algum motivo bizarro, novamente, eu estava procurando Kian
em cada frase daquela música.

Kian me olhava com uma expressão de nojo.


— Que foi? — perguntei, de boca cheia, enquanto mastigava o
burrito.
— Você pediu seu burrito sem pollo?
Sorri quando ele disse frango em espanhol.
— Sou vegana.
Ele bufou, aparecendo recobrar essa informação, apertando o
enrolado entre as mãos e mordendo uma quantidade generosa de
massa, feijão, arroz, vegetais e o frango. Dei de ombros em
seguida.
— Pense bem, o meu tem tudo o que o teu tem… menos o
animal morto.
Kian estreitou os olhos, mastigando, e depois pegou a cerveja,
bebendo um longo gole e apontou a garrafinha para mim.
— Não fale de boca cheia.
Rolei meus olhos. Ele era mesmo insuportável.
Terminei de mastigar a quantidade de lanche em minha boca e
depois peguei minha cerveja também, sorvendo uma quantidade
generosa do líquido geladinho. Depois, meus olhos vagaram pelo
ambiente.
Nunca imaginei que Kian frequentasse esse tipo de lugar.
Estávamos bem longe do Soho, onde os restaurantes chiques
da cidade ficavam. O pequeno trailer de burritos ficava nos limites
da região urbanizada de Kardama, próximo ao Deserto de Sonora,
na região oeste. Cordões de luzes amarelas pairavam sobre nossas
cabeças, no espaço onde três mesinhas estavam dispostas para os
clientes. Naquele momento, apenas nós estávamos ali.
— Para um playboy que esbanja dinheiro sujo, você não parece
o tipo que vem em um trailer de burritos… — disse, mordendo mais
um pouco do burrito.
Meus olhos estavam sobre a área desértica da cidade, atrás do
trailer. Como se houvesse um limite que, ao cruzar, você entrava em
uma terra banida de direitos civis.
— Israel costumava me trazer aqui, ele diz que minha mãe
adorava essa comida.
Engoli metade do lanche sem mastigar, sentindo minha
garganta doer. Virei o rosto para Kian. Seus olhos também estavam
na escuridão da região, perdidos e distantes.
Limpei a garganta e bebi um pouco de cerveja.
— Ela tinha um bom gosto para comida… — falei, querendo
continuar e fazer um comentário espertinho sobre a feiura do seu
pai, mas guardei para mim.
Kian voltou a morder seu lanche e comemos em silêncio por
alguns minutos, até que o telefone dele tocou. Um telefone de última
geração e nenhuma rede social, ele era complexo pra caramba.
Afinal, pessoas com telefones super modernos na nossa época se
preocupariam com fotos extravagantes para mostrar na web. No
entanto, Kian não era esse tipo.
— Liv — ele disse, quando encostou o telefone na orelha.
Depois, estreitou os olhos e afastou o aparelho. Eu sorri para
aquilo. Olivia falava muito alto. Kian pegou meu movimento e
trocamos um olhar cúmplice antes dele voltar a ligação.
— Liv, acalme-se — pediu, sem desviar os olhos dos meus —
Estou bem.
Ele ouviu por alguns minutos, depois torceu o nariz em um ato
de irritação, finalmente quebrando nosso contato visual.
— Maldito fofoqueiro — grunhiu. — Israel não precisava encher
a paciência de vocês. Estou bem! — afirmou, mais uma vez.
Kian rolou os olhos.
— Sim, ela está aqui. Porra, claro que ela está viva! — ele rugiu,
e não segurei uma risadinha. — Vou levá-la até você para que veja
com os próprios olhos, Liv. Pare de encher a minha paciência.
— Ele está até me alimentando! — gritei, e Kian me olhou
furioso.
Apenas dei de ombros, ouvindo Olivia rir no fundo. Kian apertou
a ponta do nariz e fechou os olhos por alguns segundos, ouvindo
nossa amiga falar. Nossa amiga. Chacoalhei a cabeça e encarei o
lanche.
É tudo uma farsa Ayla. Não deixe seus sentimentos sobressair
sua razão.
— Nem fodendo — Kian resmungou. — Não vou levá-la para
lá…
Levei meus olhos até o rosto dele, que já me encarava.
— Não me afaste — pedi, apenas movendo a boca, sem emitir
algum som.
Kian pareceu considerar, estreitando os olhos e engolindo seco.
Havia uma situação vertente oriunda do que aconteceu com seu pai
logo cedo, e outra vindo de Olivia murmurando em seu ouvido um
pedido para ele me levar junto para onde quer que fosse.
No entanto, quando ele assentiu e avisou Olivia que estava me
carregando com ele, preferi acreditar que Kian estava fazendo isso
apenas pelo que estávamos cultivando entre nós.
— Você não mexe em nada.
— O.K.
— Não toca em nada.
— Tá bom.
Kian virou para mim, enquanto eu ainda tinha os olhos presos
aos números do elevador.
— Está aceitando tudo muito rápido. Será que finalmente foi
adestrada?
Sorri pela forma idiota que ele lidou com a minha concordância,
mas apenas encarei sua provocação de maneira divertida. Entramos
no elevador e bufei quando ele passou um cartão preto na frente do
painel de botões e depois apertou o décimo andar. Era,
provavelmente, o maior e mais moderno prédio em Kardama.
— É óbvio que você moraria na cobertura — comentei,
cruzando os braços e descansando contra a parede da caixa
metálica.
— Eu tenho um cachorro que não gosta de pessoas. Não se
assuste.
Soltei uma risada divertida.
— Parece que aquela velha história da personalidade dos
nossos animais serem um reflexo da nossa, é real. Você também
não lida bem com isso… — Ele me olhou por cima do ombro. —
Pode deixar. Eu não me assustei com você. Um animalzinho fofo de
quatro patas não vai me abalar.
Ele rolou os olhos e virou-se para a porta, colocando as mãos
nos bolsos. Os números do elevador subiam lentamente, enquanto
me permiti observar suas costas largas dentro da camiseta preta.
— Eu posso ouvir as engrenagens do seu cérebro — comentei,
fingindo analisar minhas unhas e vendo-o me encarar, de soslaio. —
Deixe de ser desconfiado.
— Me dê um motivo para confiar no fato de que você está
entrando na minha vida pessoal.
Virei meu rosto para ele, arqueando uma sobrancelha.
— Poderia listar vários, mas vou te dar apenas um: eu me
importo. Me importo para te acompanhar em uma festa e te tirar de
lá, me importo por aceitar a sua parte feia e tentar entender tudo
isso, e, porra, me importo por te ver mal e fazer algo sobre isso.
— Ninguém se importa comigo além de Oliva e Hugo e minha
família — ele rebateu, quase que automaticamente.
Kian tinha uma forma estranha de lidar com os sentimentos dos
outros. O choque estava estampado em sua voz e em seu corpo.
— Adicione mais uma pessoa a essa lista. Mesmo que você
seja um babaca arrogante, parece que alguma coisa deturpada
dentro da minha cabeça faz com que eu me importe contigo —
constatei no instante em que as portas duplas do elevador se
abriram.
Passei por ele, para fora de lá e encontrei um corredor pequeno.
Havia uma porta solitária no fundo. Aguardei que Kian saísse do
elevador. Ele caminhou na direção da porta e o acompanhei.
Ouvi, então, as patas do cachorro na porta. Parecia de grande
porte. Parei de caminhar quando ele colocou a chave na porta,
momentaneamente tomada pela curiosidade e um pouco de medo.
Assim que Kian empurrou a porta, um pastor alemão saiu do
apartamento, balançando o rabo e pulando sobre suas pernas.
— Ei, garotão! — falou, ficando de joelhos e acariciando atrás
das orelhas do animal.
Definitivamente, eu nunca imaginaria que Kian teria um
cachorro. Ele não parecia o tipo de pessoa que tinha paciência com
um animal.
Observei o exato segundo que o animal reconheceu minha
presença. Engoli em seco, sem me mover. Kian girou o rosto em
minha direção.
— Luci, não seja um mau garoto.
— Oi, Luci… — Estava receosa, afinal pastores poderiam
morder com muita força, mas não queria deixar que um sentimento
de medo aflorasse. Animais eram sensitivos a essas coisas.
Para a minha surpresa, o cachorro caminhou na minha direção,
um pouco desconfiado. Kian se pôs de pé quando ele rosnou,
cheirando meus pés. Fiquei estática, observando o reconhecimento
feito pelo focinho. Então, Luci sentou na minha frente e…
— Filho da puta — Kian rosnou.
Luci estava rolando no chão, com a barriga para cima e língua
para fora. Claramente, pedindo um carinho. Sorridente, me coloquei
de joelhos no chão e corri as mãos pela barriga peluda.
— Que coisinha linda — disse, com a voz levemente afinada
para o cachorro.
Depois de alguns movimentos na barriga do animal de pelagem
marrom e preta, Kian pigarrou e o vi encarando a tela do telefone.
— Vamos entrar. Hugo e Olivia estão chegando.
Me levantei e acompanhei Kian para dentro do apartamento,
com o cachorro aos meus pés.
— Qual é a do nome? Tipo Lucy in the sky dos Beatles? — fiz
uma referência a música clássica, já que notei que ele gostava
deste tipo de estilo musical.
Ele me olhou sobre o ombro, já na entrada do apartamento.
— Luci é o diminutivo de Lúcifer.
Torci os lábios.
— Céus, você tem alguma atração doentia com o lado obscuro
das coisas.
Ele levantou as sobrancelhas.
— Quando você vive em uma cidade moralista e religiosa, isso
se torna um divertimento e tanto.
Fechei a porta atrás de mim e, finalmente, deixei meus olhos
percorrerem o apartamento de Kian. Era óbvio que o lugar seria
enorme. O primeiro cômodo era composto por uma sala de estar
com três sofás grandes e um painel que comportava uma televisão
de plasma. A mesa de centro estava posicionada no meio de um
tapete cinza. Na verdade, a cor do lugar variava entre o cinza
chumbo e o cinza claro.
As paredes tinham uma textura que lembrava concreto
queimado, enquanto o chão, era de tábuas de madeira escura. Em
uma das paredes, havia um quadro com uma fotografia de uma
bailarina, que recebia a luz da cidade, vinda das janelas amplas e
portas duplas da sala.
— Bom… fique à vontade — ele disse, de maneira forçada.
Eu sorri porque Kian parecia estar fazendo algum esforço sobre
a nossa aproximação após a conversa no elevador e o nosso
momento comendo burritos. Aquilo estava melhor do que o
esperado.
— Banho — anunciou, caminhando para a direita enquanto
mexia distraidamente no seu telefone, onde havia um corredor que
provavelmente levava até os quartos.
— Ah, obrigada por perguntar, estou confortável assim —
respondi, caminhando até um dos sofás e me jogando ali, sem
cerimônia alguma.
Ele estava parado no início do corredor, me encarando,
provavelmente lutando por estar cedendo. Enquanto isso, Luci
mantinha-se sentado aos seus pés, com os olhos curiosos e as
orelhas levantadas. Então, Kian sorriu de uma maneira diabólica.
— Não é educado negar algo que o anfitrião está oferecendo…
— Um garoto tão educado… — comentei, divertida.
Ele completou:
— Principalmente quando ele te oferece um espaço no
chuveiro.
Levantei as sobrancelhas e abri a boca, surpresa pela sugestão.
Kian estava me convidado para tomar um banho com… ele? Não
tive tempo de perguntar. Ele sumiu pelo corredor, e pude ouvir uma
risadinha ecoando pelo lugar.
Bufei, ouvindo uma porta ser fechada. Acomodei-me no
estofado fofo, observando de perto os detalhes da sala. Era
impessoal, como se ninguém com memórias vivesse ali. Não
existiam fotos, porta-retratos ou itens pessoais demais além de uma
vitrola, discos de vinil e um livro sobre a mesa de centro. Estiquei
minha mão e peguei o exemplar da biografia do Barack Obama, o
que achei curioso, pois seu pai era um republicano, ao contrário do
ex-presidente. Folheei as páginas, sem nenhuma anotação, apenas
encontrando o marcador de páginas.
Me sentindo levemente derrotada, coloquei o livro sobre a mesa
novamente. Batuquei meus dedos sobre as coxas. Naquele instante,
eu tinha uma escolha. Investigar e remexer nas coisas pessoais de
Kian, conseguir algo correndo um sério risco de ser pega e perder
completamente nossa evolução até ali. Ou, então, poderia manter-
me quieta e criar um terreno maior para espionar.
Eu tinha tido evoluções significativas: ele havia me levado em
um lugar apenas dele, e eu estava em seu apartamento. Livre para
fazer o que bem entendesse enquanto ele estava no chuveiro.
Kian no chuveiro.
Nu, molhado.
Meu rosto aqueceu com a lembrança do seu convite deturpado.
Será que ele tinha encontrado alguém nos últimos dias? Talvez
Pietra… afinal, eles tinham alguma coisa. Mordi o lábio. Kian já tinha
levado Pietra naquele trailer de burritos?
O.K. Meu rosto estava fervendo e um calor súbito subiu pela
minha espinha.
Não pense nestas coisas, Ayla.
Levantei, caminhando na direção do corredor. Precisava
refrescar meu rosto. Provavelmente, havia um lavabo nas primeiras
portas e, caramba, Kian não teria problemas em me ver lavando o
rosto, certo?
Quando entrei no corredor, meus olhos recaíram sobre outra
foto que havia ali. Era preto e branca, igual à da sala, com a mesma
moldura e envidraçada. Era uma foto bonita e eu tinha a impressão
de já tê-la visto… Espera, aquela foto era de Sebastião Salgado?
Céus eram fotos originais? Uau, Kian tinha um bom gosto e tanto. E
claro, muito dinheiro.
De onde estava, ouvi o som do chuveiro sendo desligado. Me
afastei das imagens e abri a primeira porta do corredor, encontrando
o que procurava. Entrei e refresquei o rosto, sentindo-me
subitamente melhor. Talvez eu precisasse, mesmo, de um banho.
Sem Kian.
Obviamente.
Sequei o rosto e abri a porta, saindo do lavabo. No entanto,
segurei meu olhar na porta do outro lado do corredor. Estava com
apenas um feixe aberto e não consegui ver muita coisa. Estreitei os
olhos, tentando ver algo além da parede.
— Pode abrir.
Dei um pulo, assustada pela voz de Kian no corredor.
— Céus, garoto, é a segunda vez hoje. Quer me matar do
coração?
Ele sorriu de lado.
Deixei meus olhos vagarem pelo seu corpo e rosto. Ele estava
com os cabelos úmidos, vestia uma camiseta branca e calça de
moletom cinza. Os pés estavam descalços.
Apesar de aquela imagem ser completamente nova para mim, já
que sempre o vi usar mais roupas escuras e formais do que
aquelas, meus olhos ficaram presos por tempo demais na camiseta
branca, já que consegui ver o contorno de alguma tatuagem em seu
peito sob o tecido fino.
Limpei a garganta, novamente sentindo um calor repentino nas
bochechas.
— Estava procurando pelo banheiro… — expliquei.
— Sei…
Rolei meus olhos, mas não esperei por mais uma provocação.
Ele tinha acabado de me dar permissão para adentrar aquele quarto
e eu não seria idiota em recusar a oportunidade.
Em dois passos, atravessei o corredor e empurrei a porta.
— Uau — falei, extasiada.
Era um quarto enorme. Limpo, sem muitos itens como a sala.
Havia apenas um sofá ao lado da janela e, no centro do lugar, um
piano de cauda preto.
Eu nunca tinha visto um piano de perto. Apenas em
apresentações sobre o palco. Me aproximei do instrumento, com os
olhos cheios e um sorriso crescente no lábio.
— Você ainda toca? — perguntei, rondando o piano.
Quando estava do outro lado, levantei meus olhos. Kian estava
encostado no batente da porta com as mãos nos bolsos da frente da
calça de moletom, me observando atento.
— Me disse que fez aula de piano, no dia da festa… — o
lembrei.
Ele parecia curioso pela minha memória.
— Sim.
— Então porque ficou aborrecido quando seu irmão tocou? —
perguntei, curiosa.
Ele apertou os lábios, de maneira estranha.
— Longa história.
Assenti, dando-me por vencida. Meus dedos tocaram as teclas,
sem apertá-las. Eu tinha mil perguntas rondando meus
pensamentos. Sobre sua mãe, o que havia acontecido em seu
escritório, porque seu pai o tirava tanto do sério…
— Espero que você não tenha tido problemas pela nossa cena
na festa — sussurrei, como quem não queria nada além de um
comentário. — Seu pai saiu do seu escritório furioso e me sentiria
um pouco culpada se fosse por causa da festa.
Ele soltou uma risada.
— Está aqui por culpa? E aquele discurso no elevador?
Fiz uma careta, ignorando-o. Apertei uma tecla com mais força,
ouvindo o barulho ressoar pelo quarto.
— É tão bonito… — sussurrei.
Kian não respondeu, e nem fez nenhum movimento, mas levei
meus olhos até ele. Seus olhos ainda estavam em mim. Ficamos
naquele embate por alguns segundos, até que o barulho da porta
surgiu e a voz de Hugo preencheu o ambiente:
— Kian! É bom que Ayla esteja viva!
Sorri, e Kian rolou os olhos castanhos, dando um passo para
trás e cruzando os braços.
— Eu não a matei! Ela está aqui, porra! — rugiu, caminhando
em passo pesados para a sala.
Dei mais uma olhada naquele quarto, mas nada me chamou
atenção, então, o segui para a sala. Chegando lá, notei Kian e Hugo
na cozinha americana que ainda não tinha visto, e Olivia
caminhando em minha direção.
— Ele fez alguma coisa?
Sorri.
— Não. Saímos para espairecer, ouvimos música e depois
comemos burrito.
Ela me olhou de cima para baixo, quase descrente.
— Bom… então tá! — Riu, apontando sobre o ombro com o
polegar. — Trouxemos pizza e vinho. Vamos aproveitar a sacada do
Kian antes que o inverno chegue e você não consiga ver o melhor
do apartamento dele!
Ela parecia empolgada com isso. Olivia girou no próprio eixo,
caminhando na direção das portas duplas da sala e as abrindo.
A sacada era preenchida por um deque de madeira escura e
algumas espreguiçadeiras estavam pelo lugar, bem como vasos
com folhagens verdes, finalmente dando um pouco de vida ao
apartamento. Bem próximo ao parapeito, uma jacuzzi.
Nos acomodamos nas cadeiras estofadas e Olivia retirou as
botas, ficando apenas com as meias coloridas enquanto relaxava.
— Como estão os preparativos para a próxima festa?
— Nós ainda não conversamos sobre isso… — confessei.
Ela girou, deitando lateralmente para me observar.
— A festa de Halloween é a mais importante do calendário da
Seven. É o aniversário da boate, então… Precisa de um grande
evento.
Sorri para ela, piscando depois.
— Tenha certeza que vamos fazer um ótimo trabalho.
Ela sorriu prolongadamente e, depois, esticou a mão, segurando
na minha.
— Obrigada pelo o que você fez pelo Kian hoje. O efeito que
Benjamin tem sobre ele é terrível…
Engoli em seco, encarando sua mão na minha.
— Não fiz nada demais, eu….
— Você está quebrando o gelo ao redor dele.
A encarei, nervosa.
— Ele te vê apenas como uma garota se metendo onde ele não
quer, mas Kian nunca teve alguém que lutasse para estar ao lado
dele. Ele sempre espera o pior, Ayla. É da natureza dele.
— Percebi… — comentei, nervosa por aquela informação.
Naquele segundo, o som dos passos dos rapazes surgiu e nos
afastamos. Levantei o rosto, vendo Hugo e Kian com as mãos
cheias de caixa de pizzas, taças e garrafas de vinho, enquanto Luci
estava aos pés dos dois.
Hugo parou de forma dramática e disse:
— Kian me disse que vocês dois apenas andaram de carro por
aí e eu ainda não tô acreditando nisso.
Kian bufou, empurrando um caixote de madeira e colocando o
vinho e as taças ali. Logo, ele tratou de aproximar outras duas
espreguiçadeiras do lugar em que estávamos.
— Foi só isso, acredite.
— Tuuuudo bem... — murmurou Hugo, e, depois, colocou uma
música no telefone, ligado ao Bluetooth da televisão. — Agora que
todos estamos bem, vamos falar sobre as fantasias do Halloween!
— Oh, meu Deus, Olivia acabou de me avisar sobre esse
evento e vocês querem falar das fantasias? — indaguei, risonha.
Kian serviu as taças com vinho e as espalhou sobre a mesinha,
enquanto cada um pegou uma.
— Estou em dúvida entre bacon e cachorro quente — disse
Hugo.
— Espera, comida ou fantasia? — perguntei, com o cenho
franzido.
— Fantasia, é claro! Quero parecer gostoso de qualquer forma.
Kian segurou-se para não rir, enquanto eu não fiz força alguma
antes de me divertir com o comentário. Enquanto Olivia falava sobre
as possibilidades da sua fantasia, notei, pelo canto dos olhos que
Kian tirou as tampas das pizzas e depois de encontrar a com queijo
vegano, colocou próximo de mim.
Naquele momento, Luci desistiu de correr pela varanda e sentou
entre a espreguiçadeira de Kian e a minha.
— ... então, estou com essa dúvida — divagava Olivia e me
senti péssima por observar demais Kian e ignorar sua fala. — A
roupa de coelhinha, e a de Mamãe Noel são tão legais… E preciso
ficar tão legal quanto a Regina George no filme!
— Tá querendo ir de Garotas Malvadas? — perguntei,
bebericando do vinho.
— Claro, mas não consigo decidir!
— Compre as duas fantasias, amor — disse Hugo, como se
tivesse resolvido um grande esquema. — Use a de Mamãe Noel na
festa e, depois, a de coelhinha sexy só para mim.
Olivia arqueou as sobrancelhas e os dois trocaram um olhar
cúmplice e cheio de malícia. Rolei meus olhos e desviei o olhar
quando os dois se beijaram.
Meus olhos caíram sobre Kian, que estava tranquilo em sua
espreguiçadeira.
— E você, Kian? Qual fantasia pretende usar?
Ele sorriu, me encarando.
— Não sou muito adepto às fantasias.
— Qual é? Você não teve infância? — Uni minhas
sobrancelhas. — Quero dizer, lá no Canadá nós também temos
esse lance de fantasias e toda criança adora.
Kian apenas deu de ombros.
— Deixei isso para trás.
— Que trágico — brinquei, virando meu rosto para Olivia, que já
tinha parado de deliciar-se no namorado. — Vamos comprar algo
para o Kian usar.
— Nem fodendo — disse Kian, e eu o ignorei.
— Podemos pensar em uma fantasia que combine com seu
espírito macabro. Que tal o papai Addams?
Hugo cuspiu um pouco de vinho, rindo.
— Ou diabo. Os chifres e um rabo!
— Odeio vocês — Kian rosnou, e todos nós gargalhamos.
Estiquei os braços para cima da cabeça quando despertei.
Durante o processo, senti o colchão mais macio do que o comum e,
definitivamente, o edredom tinha um aroma que não era do
amaciante que eu usava na lavanderia.
Abri os olhos, sentindo a cabeça doer por causa do vinho da
noite anterior. A boca seca acompanhou uma leve tontura quando
sentei na cama e joguei as pernas para fora, sentindo o chão gélido
tocar meus pés apenas com meias.
Estranhei aquilo, já que não lembro de ter tirado meus tênis. Na
verdade, não lembro de muita coisa após a quarta garrafa de vinho.
Lembro de poucas conversas após isso. E tenho quase certeza
que vi Kian sorrir largamente.
Pisquei algumas vezes e arrumei meus cabelos, enquanto meus
olhos avaliavam o ambiente. Nunca tinha entrado nos quartos da
fraternidade Kappa Phi além do quarto de Olivia. Mas,
definitivamente, o ambiente parecia muito escuro e silencioso para
uma fraternidade feminina.
Espera… Ainda estava na casa de Kian?
— Inferno — praguejei, puxando os tênis, que estavam ao lado
da cama e os coloquei.
Amarrei os cadarços depressa e peguei meu telefone sobre a
mesa de cabeceira, tentando me recordar como vim parar aqui.
Respondi algumas mensagens da minha família e outras da Yue
perguntando se estava tudo bem porque não apareci em casa
naquela noite.
O vinho havia me deixado sonolenta e fechei os olhos por
alguns segundos… depois disso, não conseguia me recordar de
absolutamente nada.
Levantei da cama e caminhei sorrateiramente até a porta.
Coloquei a cabeça para fora, me deparando com o corredor do
apartamento de Kian. Porra!
Alívio percorreu meu corpo quando cheguei na sala, vendo a
bolsa de Olivia jogada em um dos sofás.
— Bom dia.
Virei o rosto para a cozinha americana, vendo Kian. Ele estava
de costas para mim, novamente usando moletom. Desta vez, o
conjunto era azul escuro. Luci estava sentado aos seus pés.
— Ei… — falei, tentando soar divertida. — Como fui parar em
uma cama na sua casa, uh?
Ele me olhou por cima do ombro, e sorriu de uma forma sacana,
fazendo com que minhas bochechas ficassem quentes. Que frase
que fui escolher!
— Você dormiu na espreguiçadeira — explicou, enquanto me
aproximava.
Vi que ele estava de frente para uma máquina de café moderna.
— Uh, então como parei no quarto?
— Te levei.
Congelei meus passos no meio da cozinha cinza escuro.
— Ah, é…? — Não consegui esconder a surpresa.
— Olivia e Hugo já estavam no quarto quando resolvi me deitar
e não ia ser o idiota que te deixou lá fora.
— Ah… obrigada — falei, envergonhada.
Mordi meus lábios, pensando sobre o que falamos ontem.
Geralmente, álcool deixava a língua das pessoas fáceis, e eu não
podia ter corrido o risco de isso acontecer.
Deixei meus olhos caírem pelo seu corpo, analisando as costas
largas e os músculos. Céus, Kian ficava bem dentro do moletom
também. No entanto, a minha visão preferida ainda continuava
sendo a do terno…
— Precisa parar de me olhar desta forma.
Ele estava de costas! Por Deus, como ele sabia que eu estava
olhando para o seu corpo?
— Assim como?
— Como se quisesse que eu te fodesse.
Arregalei os olhos, e deixei meu olhar cair sobre a mesa da
cozinha. Limpei a garganta, desconcertada, sentindo meu corpo
todo bagunçado pela vergonha. Então, com a voz afetada, mudei o
assunto repetidamente com a voz abalada:
— Você preparou tudo isso?
Havia croissant, frutas picadas e até suco de laranja sobre uma
mesa de café da manhã bem posta.
— Não. Passei no mercado durante o passeio com Luci.
— Uh, você é do tipo que acorda cedo e prepara uma mesa
bonita para as visitas.
— Sim — respondeu, curto, virando e colocando o café em um
bule.
— Recebe muitas visitas por aqui? — perguntei, curiosa.
Ele levantou os olhos para mim.
— Tá curiosa sobre a minha vida amorosa?
Puxei uma cadeira e dei de ombros. Pesquei um morango e
mordi, ainda com os olhos nele.
— Olivia disse que sua vida amorosa é quase nula, mas,
eventualmente, algumas meninas caem no seu colo sem muito
esforço. Além de Pietra, é claro. Pelo tempo que vocês se
relacionam, ela, com certeza, já esteve por aqui.
Kian fechou o bule e ao virar-se para colocar a jarra na
cafeteira, Luci correu até onde eu estava.
— Bom dia, garoto — falei, acariciando sua cabeça e ele
pareceu gostar.
— Apenas Olivia e Hugo vem ao meu apartamento além da
minha mãe e dos meus irmãos — Kian falou, ganhando minha
atenção.
Eu ainda não entendia porque ele chamava a madrasta de mãe,
mas aquele gesto parecia muito fofo. Eu queria fazer algum
comentário sobre aquela situação, mas me calei e servi um pouco
de café. A mesa era pequena e fazia com que minhas pernas e de
Kian batessem eventualmente.
Não sabia se havia uma sala de jantar, mas, provavelmente,
sim. Aquela mesinha não parecia pronta para receber visitas e, pelo
visto, ele não fazia muito isso.
— Não vai ter problema você perder suas aulas hoje? —
perguntei a Kian, enquanto pegava um pouco de frutas. — Está no
último ano, então deve ser um pouco mais cheio.
Ele apenas deu de ombros, bebendo um pouco do café.
— Depois de saber sobre a Tríade, você espera que eu, Olivia
ou Hugo precisemos nos preocupar com presencialidade na UK?
Anui.
— Faz sentido.
— Falando nisso… vou encomendar os insumos da festa do
Halloween no final da semana. Precisamos ver isso. Amanhã, às
13h, parece bom para você?
— Sim.
Ouvimos um barulho vindo do corredor e logo Olivia e Hugo
apareceram. Hugo usava apenas um short, provavelmente de Kian,
e estava sem camisa, mostrando o peitoral bronzeado e cheio de
arranhões. Olivia surgiu atrás dele, com uma careta para a atitude
dele, vestindo a camiseta que o namorado usava ontem e os
cabelos bagunçados.
— Bom dia, família! — disse Hugo, em voz alta, e Luci latiu
sentado embaixo da minha cadeira.
Soltei uma risadinha, vendo-os acomodaram-se nas cadeiras.
— Céus, estou péssima — confessou Olivia.
Como se previsse isso, Kian pegou uma caixinha que estava
sobre a mesa e tirou de lá um remédio para dor de cabeça,
provavelmente. Olivia agradeceu e encheu um copo com suco.
— Estou morrendo de fome! — Hugo disse, abrindo uma das
caixinhas de papel pardo que haviam ali, mas, então, Kian bateu em
sua mão. — Ei, cara! Dividir o pão, lembra?
— Esse aí é para a Ayla, seu babaca — explicou, apontando
para um símbolo escrito “vegano”.
Arregalei os olhos porque ele lembrou daquilo. Hugo me
empurrou a caixa com uma torta de maçã enquanto resmungava
sobre Kian ser mal humorado ao acordar e os dois alfinetaram um
ao outro.
Assim que os olhos de Kian encontraram os meus, movi meus
lábios em um obrigada sem jeito. Ele apenas sorriu de lado, sem
mostrar os dentes.
Mesmo depois de Olivia e Hugo me deixarem em casa, ainda
não sabia reagir àquele gesto vindo de Kian.
Entrei no salão principal da Seven. A festa de Halloween estava
acontecendo e tudo caminhava para ser o mais incrível possível. A
decoração estava perfeita, o salão cheio e até um concurso de
fantasia tinha sido programado.
Encarei os meus sapatos, tinha escolhido botas de salto baixo
desta vez, não passaria noite de salto alto. Meu short preto e a
camisa branca aberta em um decote generoso poderiam não uma
pista da minha fantasia, mas o sangue falso no nariz não deixava
que a minha fantasia de Mia Wallace ficasse sem sentido. E amém,
Tarantino!
Caminhei pelo local vendo os camarotes infernais se enchendo
com os alunos das fraternidades. Finalmente. notei que a
fraternidade de Trenton, a Deltha Chi, estava no camarote do
Leviatã, o príncipe da Inveja. Enquanto a fraternidade de Hugo, a
Ômega Phi, estava, em peso, no camarote de Mammon, o príncipe
da Ganância. Eu ainda não conhecia as outras fraternidades além
da Kappa Phi.
As luzes coloridas já dominavam o local e a música estava alta.
Mais uma vez, os ingressos haviam sido vendidos todos com
antecedência, esgotando em poucas horas e eu não poderia estar
orgulhosa deste feito. Aos poucos, estava conquistando a confiança
de Kian e gostava disso. Não era como se ele tivesse se aberto
muito para mim, mas começava a aprender a lê-lo e isso era um
começo. Ir a seu apartamento foi um passo enorme e parecia que
finalmente as coisas voltavam ao prumo pela Seven.
Passei pelo bar e recebi um copo de Margot com um Moscow
Mule. Bebi um gole, sentindo o azedinho no fim do que será o único
da noite, ainda assim, eu também precisava relaxar.
Segui o meu caminho até a sala de Kian. Passei pelo corredor,
notando os seguranças a mais dentro da boate, principalmente perto
dos camarotes. Estranhei, mas segui meu caminho, abri a porta e
dei de cara com um Kian observando a pista pelo seu vidro
espelhado, em silêncio. Seus olhos me pescaram por um instante,
dando atenção o suficiente para o meu corpo, mas sua expressão
era de indiferença total.
— Oi… — disse com certa animação.
Ele voltou a encarar a pista e me aproximei, parado ao seu lado.
— Está tudo tão lindo! — comentei, me referindo à decoração.
— É, tá…
Deus, e lá íamos nós de novo, com ele sendo um babaca que
me afastava. Não sabia se estava no humor de aguentá-lo de tal
forma. Depois de tantas emoções, só queria me divertir um pouco.
Eu precisava e merecia. E não deixaria ele me afastar novamente.
— Se eu o chamar para ir dançar comigo na pista hoje, você
irá? — soltei, o pegando de surpresa, sentindo as minhas
bochechas esquentando ao fazer a pergunta.
Tentei disfarçar aquilo dando um bom gole na minha bebida,
sentindo um pouco de espuma prendendo-se nos meus lábios
superiores. Estava prestes a passar a língua ali quando os dedos de
Kian seguraram meu queixo, me fazendo encará-lo. Seu polegar
escorregou para a minha boca e ele mesmo limpou a espuma,
enquanto todo o meu maldito corpo reagiu àquilo. Senti a respiração
ofegante, meu coração acelerado e meu rosto rubro.
— Eu não desço para a pista, você sabe disso, Ayla —
declarou, tirando sua mão do meu rosto e levando o dedo úmido
com a espuma aos lábios.
Ele chupou o polegar, ainda próximo, e com os olhos presos nos
meus.
Hiperventilei.
Engoli seco, desviando meu olhar do seu rosto, e tentei soltar
minha próxima frase sem transparecer a ansiedade causada pela
sua última ação. Seu perfume misturou-se com o cheiro do uísque e
do meu drink, e aquilo pareceu um maldito gás tóxico, nublando
meus sentidos. Meu coração estava querendo me trair e, por mais
que parecesse tentador, não tinha certeza se queria aquilo.
— Uma pena... — Virei-me, à fim de sair dali. Dei dois passos
em direção a porta, mas parei. — Quando bater meia noite, vou
estar te esperando na pista. É o aniversário da Seven e tudo está
sendo um sucesso, deveria considerar se divertir hoje.
E sem esperar uma resposta, saí de lá.
Fechei a porta e os olhos por um instante, tentando controlar
novamente minha respiração.
Maldito jogo.
Maldita vingança.
Maldito Kian.
Voltei para a pista, terminei meu drink e pegar mais um com
Margot. Kian havia me deixado nervosa e precisava relaxar. Droga,
Ayla, não perca o controle, soprei a mim mesma. O.K. Apenas
alguns drinks não fariam mal, certo?
— Mais um Moscow? — Margot perguntou, sorridente,
enquanto sangue falso escorria da boca. Ela estava vestida de
zumbi, assim como todos os outros funcionários.
Neguei.
— Tequila, dois copos, por favor.
A garota riu, mas me arranjou o que eu pedi. Do nada, como
uma porra de uma voz da consciência surgiu Israel.
— Tá nervosinha, passarinho?
Encarei-o encostando-se ao meu lado com um copo de uísque.
— Não… — mentirosa! minha mente gritou.
— Tá claro que tá nervosa, passarinho — ele constatou o óbvio.
Virei minhas duas doses de tequila e encostei-me no balcão.
—Passarinho… Nunca o perguntei de onde tirou esse apelido
— comentei, tentando distrair a minha própria mente.
— Hm, é uma boa pergunta… Não sei se tenho uma resposta
muito certa. — Parecia honesto. — Você só me pareceu alguém
livre demais, acho.
— Disse o cara com o sobrenome Wilding — debochei o
fazendo rir.
Nos voltamos à pista. De longe, consegui encarar Hugo vestido
como um fodido Sol. Todo cheio de dourado e com um arco cheio de
pontas também na cor do ouro. Ao seu lado, claro, estava Olivia e
toda a sua beleza numa fantasia de sereia impecável. Tive que rir
ao encarar a cena.
— Esses dois têm sorte… — Israel declarou, com a língua solta.
— É palpável o amor que têm um pelo outro, é bonito de se ver em
meio a tantas coisas ruins nessa cidade.
Concordei com a cabeça, mas, instintivamente, meus olhos
foram ao espelho do outro lado do salão. Sabia que ele estava
observando e, por isto, olhei em sua direção. Ainda não sabia se
aguentaria tudo o que a minha mente tinha projetado, mas esperava
que sim.
— Ele é um bom garoto… — Israel voltou a falar e eu
rapidamente lhe dirigi minha atenção.
— Quem? Hugo? Com certeza.
— Não… quer dizer, sim, Hugo também. — O mais velho riu. —
Estou falando de Kian, passarinho.
Eu ri da minha confusão.
— Está falando isso porque é tio dele.
— Estou falando isso porque o conheço melhor do qualquer um.
Provavelmente, melhor do que ele conhece a si mesmo. Ele está
perdido em sua dor, mas existe um grande coração batendo em seu
peito.
— Ele pode ser amável?
— Todos podemos ser amáveis no meio do caos, passarinho.
Até mesmo no inferno que é Kardama.
— E você, já encontrou o amor por aqui?
A pergunta pareceu pegá-lo desprevenido. Israel engoliu em
seco, e sorriu tristemente.
— Uma vez. Ela era o tipo de amor que todos precisamos. Tão
caótico quanto uma tempestade, e tão calmo quanto um céu sem
nuvens. Um amor que faz o cinza torna-se azul safira, resgatando o
lado bom de tudo.
Levantei as sobrancelhas. Israel estava divagando,
provavelmente por conta do álcool, mas não me importei, porque o
que ele havia acabado de dizer fazia absoluto sentido. Todos
merecíamos um amor que chacoalhasse as estruturas nossa vida e
que depois se tornasse calmaria.
Ele deu de ombros e acabou seu copo encarando Margot por
um instante.
— Margot, chama um carro de aplicativo pra mim? Não aguento
mais essas festas de vocês, acho que estou ficando velho.
Eu ri e me despedi dele. Caminhei até a pista, seguindo até
Olivia e Hugo. Em minhas botas, já podia sentir o piso levemente
grudento por bebidas que tinham sido derramadas por ali. Os corpos
balançando pareciam se divertir, cada um em uma fantasia
diferente, e todos dispostos a competir pela melhor fantasia, o
vencedor do concurso seria anunciado à uma da manhã. Tanto
masculino quanto feminino.
Consegui chegar aos meus dois amigos. Meus amigos. Porra,
eu precisava parar com aquilo.
— Ay! — Olivia segurou minhas mãos me fazendo remexer um
pouco meu corpo, acompanhando o seu. — Adorei a fantasia, sua
cara! — ela gritou sob a música.
— Obrigada, vocês dois também estão lindos!
Ela sorriu, orgulhosa do feito.
— Essa fantasia dele me lembra Malibu… — ela confessou,
como se eu soubesse do que estaria falando, mas decidi não a
questionar, porque os dois pareciam com álcool o suficiente no
corpo para que, talvez, eu não quisesse ouvir alguma história
sacana dos dois na praia em questão. Nada disso, no entanto,
impediu que eu ouvisse a história. — Adorávamos fugir pra lá
quando éramos mais novos. A gente aprontava muito no começo do
namoro.
Hugo sorriu, quase orgulhoso, e puxou a namorada mais para
si.
— Eu sou viciado nessa mulher desde o começo da
adolescência.
Liv riu enquanto ele enfiava o rosto no pescoço dela,
depositando um beijo ou uma mordida ali, não sei ao certo. Mas
logo seus olhos voltaram-se aos meus.
— Cadê o corno do meu amigo? — Hugo questionou alto,
inclinando-se um pouco para baixo.
— No escritório?!
Dei de ombros. Não era como se alguém realmente esperasse
Kian na festa. Ele nunca aparecia.
— É um idiota… — Hugo resmungou. — Mas ele que se dane,
porque vou aproveitar com a minha gata e com você, senhorita
Wallace. — Eu ri e aceitei a mão de Olivia, dançando com os dois.
Estava divertido.
A música de electro house continuou, e Hugo nos colocou na
sua frente, enquanto prostrava-se atrás de Olivia, mas com um olhar
cuidadoso sobre mim. Teria que o agradecer por isso depois.
Minha cintura balançava enquanto as batidas tocavam e quando
a virada veio, só vi todos saindo do chão, dando pequenos pulos
sob a pista, divertindo-se. Fechei os olhos e continuei a dançar,
sentindo o calor humano emanando no local. Aquela era,
definitivamente, a festa mais incrível da Seven e não estava
pensando isso só porque estava diretamente envolvida no processo,
mas porque realmente estava aproveitando. Sem tensões, por mais
que elas existissem. Naquele instante, só queria dançar até cansar.
Ser uma jovem normal aproveitando um Halloween na faculdade.
Perdi um pouco da noção do tempo, e, de repente, o relógio de
Hugo brilhou e vi o horário: meia-noite. Aquilo fez meu coração bater
mais forte por lembrar de Kian. Ele viria?
Encarei discretamente ao redor, mas a minha esperança de que
ele aparecesse era um tanto patética. Até porque... não tinha
certeza se queria que Kian aparecesse. Minha guerra interna ainda
era grande, por mais que tivesse diminuído, naqueles momentos,
quase cruciais, começava a me questionar de novo.
Balancei a cabeça, como se o movimento físico o fizesse sair da
minha mente, contudo, o cretino parecia impregnado não só nos
meus pensamentos, como em meu corpo, porque inalei seu perfume
próximo. Achei que estava enlouquecendo, até sentir os dedos
gelados passarem suavemente pelo meu braço.
Virei-me assustada, dando de cara com o diabo. Pisquei uma,
duas, três vezes, ainda tentando acreditar que ele realmente estava
ali. Meu corpo tensionou. Queria fazer algum comentário
engraçadinho, mas Kian tinha me roubado todas elas pelo simples
fato de estar ali.
— Existem milagres no Halloween? Porque achei que eles
aconteciam só no Natal — Hugo debochou, ao nosso lado, captando
a presença de Kian.
O loiro o puxou de lado, o abraçando. Olivia logo abriu o maior
dos sorrisos que tinha visto em seus lábios, e o puxou para um
abraço.
— Estou com meus dois garotos favoritos, estou muito feliz! —
ela declarou, animada.
Os três pareciam uma pintura, e a amizade deles aquecia meu
coração ao mesmo tempo em que o despedaçava um pouco.
A música seguia e, pela primeira vez na noite, considerei ir
embora, mas não tive tempo para considerar muito, pois logo as
mãos de Kian alcançaram as minhas e ele me puxou para perto. Liv
encarou a nós dois e depois a Hugo com uma expressão maliciosa
e deu atenção ao namorado, nos dando as costas, o beijando com
vivacidade.
— Você veio... — soprei quando ele parou a minha frente,
puxando-me para si, deixando sua mão repousando sob minha
cintura enquanto minhas mãos paravam em seu peitoral, coberto
por uma camiseta preta de marca. E, por um instante, vi um sorriso
leve sem sarcasmo brotar ali.
— Precisava te contar uma coisa — começou a falar, bem
próximo ao meu rosto pelo som alto da música. — Sinto muito por
ter consumido droga sem querer, não quero isso nunca mais
acontecendo. — Sua língua passou em seus lábios por um instante,
e ele parecia procurar as palavras certas. — Intensifiquei a
segurança e te prometo que aqui é um lugar seguro para você.
Queria pensar numa resposta espertinha, mas não tinha
condições para aquilo. Por que Kian não havia me dito aquilo antes?
Era um comentário apenas para escapar de perguntas
constrangedoras ou ceder ao fato de que estava ali após o meu
pedido?
Em um ato imprudente, deixei meus dedos por seu pescoço em
um carinho leve, testando as reações do seu corpo sobre meu
toque. Suspirei com seu rosto próximo a mim, sua respiração
facilmente poderia se misturar a minha e o cheiro do seu perfume
com o uísque foram o que mais tornaram a minha atenção
disfuncional, porque Kian me roubava a racionalidade toda vez que
se aproximava demais.
Suas mãos fizeram a minha cintura balançarem no ritmo que ele
queria. Enquanto a cada leve aperto de seus dedos em minha
carne, havia uma reação que eu não podia controlar. Seu nariz
tocou o meu, e parte de mim ansiou pela sua ação. Fechei os olhos
por um instante, antes de sentir sua mão esquerda subindo pela
minha lateral, me deixando inquieta. Seus dedos puxaram as
minhas mechas para trás e sua boca aproximou-se dali. A
respiração quente tocou a minha pele e estremeci.
Meus olhos pesaram em expectativa, e mordi o lábio quando
seus lábios se abriram e fecharam apenas, também me testando.
Kian pareceu ofegante, enquanto minhas mãos agarravam-se a ele
como uma âncora. Subindo até seus cabelos, deixei meus dedos
afundaram-se em seus fios sedosos e o puxei para mim, ouvindo
um rosnado rouco contra a minha pele.
— Ayla… — meu nome em sua boca parecia a porra de um
pedido de socorro, e fui obrigada a apertar minhas pernas.
E ele sentiu essa reação, tanto quanto eu senti sua excitação
quando ele me puxou mais para si. Minha cabeça tombou para trás
e seus dedos agarram-se nos fios da minha nuca em um aperto
firme, quase desesperado.
Minha respiração estava ofegante e um gemido escapou
quando seus lábios roçaram na minha pele febril. Uma lufada
pesada deixou meus lábios e o senti sorrir contra a minha pele.
Eu poderia ser dele e, por Deus, eu seria, sem que Kian fizesse
muita força. Apesar daquele pensamento insano estar rondando-me,
quando seus dedos se arrastaram sobre o colar que era de minha
mãe, eu travei.
Foi como se um banho de água fria tivesse caído sobre mim.
Meus pensamentos me levarem até os túneis e quando voltei a
buscar os olhos de Kian, flashs da sua expressão confusa
misturaram-se a imagem do sangue em seu rosto. Aquela dor.
Aquela confusão.
Tirei as mãos do seu cabelo em um movimento lento e a abaixei
até seu peitoral, aproximei meu rosto do seu, mas deixei que minha
boca ficasse à altura da sua orelha, declarando:
— Parabéns pelo aniversário da Seven, Kian.
Afastei-me e depositei um beijo na sua bochecha, tirei suas
mãos de mim, que saíram com a minha ação sem insistir. E sem
olhar para trás, dei um passo atrás do outro para fora da boate.
— Até parece que você concordou com aquela palhaçada —
Bella disse, jogando as mãos no ar.
Coloquei a bandeja sobre a mesa, tentando entender o motivo
do alvoroço entre as garotas da Kappa Phi. O refeitório estava cheio
e, com absoluta certeza, o assunto da segunda-feira era a festa de
Halloween.
Olivia apenas rolou os olhos, sentada ao meu lado.
— Bailey tinha uma fantasia ótima e eu reconheço minhas
perdas, tá legal?
— Pode parar com isso! — estalou Railey. — A fantasia de
Viking dela nem era tudo isso! Sereias são muito melhores!
— Sem essa rivalidade, tá?! — pediu Olivia, tentando apaziguar.
— As garotas souberam usar muito bem o símbolo da fraternidade
delas e nós também. Foi apenas uma competição. Vamos focar
nossos esforços para o dia de Ação de Graças, quando
organizaremos uma visita ao asilo da cidade e promoveremos um
dia de diversão para a terceira idade.
Todas as garotas bufaram. Por incrível que pudesse parecer,
continuaram falando da festa e ignorando completamente sua líder.
Cutuquei Olivia enquanto tirava a tampa do pote de ketchup para
molhar as batatinhas.
— Parece que ninguém consegue esquecer essa festa, uh.
Ela virou o rosto para mim, os olhos arregalando levemente e
depois chegando para mais perto.
— Eu espero que você também não, porque... uau… Kian e
você lá na pista… — disse, abanando o rosto como se aquilo
tivesse sido quente.
Mordi o lábio e desviei dos seus olhos analíticos.
— Uh, pois é… Eu sei.
— Como isso aconteceu? Quero dizer, vocês se odiavam há
alguns dias… Kian tornou-se mais tolerável, eu sei, mas isso é
muito para a minha cabeça, e…
Ela estava falando demais, por sorte, fui salva quando seu
telefone vibrou sobre a mesa. Olivia pegou o aparelho e me
concentrei em comer um pouco de batatas fritas. Estava faminta e
enjoada do sanduíche da cafeteria que costumava ir, então, aceitei o
convite de Liv para um almoço com parte das meninas da Kappa
Phi.
— Vou matar a minha mãe.
Virei o rosto para Liv, que parecia querer ter sussurrado aquilo
apenas para si. Ela encarava a tela do aparelho, com os olhos
flamejantes e a postura rígida.
— O que houve?
— Ela… ela… — tentou falar, então, abaixou o telefone e
colocou os cotovelos na mesa, alisando as têmporas em círculos
com os dedos. — Acabou de me informar que não posso organizar
o evento do asilo no dia de Ação de Graças porque ela planejou um
evento para este dia.
— E você não pode faltar? É a sua fraternidade!
Ela virou o rosto triste para mim. Os olhos estavam cheios de
lágrimas.
— Todos nós, filhos das três famílias da Tríade — falou, com o
tom de voz sussurrado. — Temos obrigações e deveres nesta
cidade. O primeiro deles é mostrar o poder de cada família. Então,
você nunca verá qualquer família pela metade em um evento
público. Por que você acha que Kian foi forçado a ir à festa do pai
dele, no último mês? Apenas pelo amor que tem pela madrasta? —
Ela riu de uma forma sombria, e uma lágrima escapou pela lateral
de um dos olhos. — E ainda pior… com uma mulher. A sociedade
machista em que estamos vê isso como força maior, então, Kian
sempre precisa aparecer ao lado de alguma mulher. — Seu queixo
tremeu, e Olivia pegou um pouco dos guardanapos da sua bandeja
para secar os olhos. — Sinto muito, Ayla, você era uma peça nesse
tabuleiro antes mesmo de saber.
Fechei minha boca, tentando absorver aquilo tudo.
Enquanto isso, Olivia levantou o rosto e agiu como se nada
tivesse acontecido. Como se uma máscara tivesse sido colocada
em seu rosto. Almocei em silêncio, tentando encontrar o momento
ideal para abordá-la novamente, enquanto as garotas da
fraternidade falavam sobre a festa.
— Oh, meu Deus, olhe só quem está aqui... — Quinn, uma das
meninas, disse.
Não pretendia demorar muito por ali, já que os relatórios do
Halloween ainda estavam pela metade e Kian os exigiria a qualquer
momento. Peguei os fones e os coloquei nas orelhas, pronta para
me despedir e sair dali quando segurei minha mochila. Levantei,
ajustando a alça e me curvei para falar com Olivia, no entanto, Hugo
surgiu em minha frente, abraçando a namorada por trás e enfiando
o rosto no seu pescoço.
Me coloquei de pé, e antes de virar meu corpo, notei as garotas
olhando para algo atrás de mim. Assim que girei no próprio eixo,
estremeci.
— Oi, querida.
Os lábios de Kian subiram vagarosamente, enquanto os olhos
pareciam divertidos.
— O-Oi… — sussurrei, engolindo em seco.
Após sumir da Seven, no sábado, eu ignorei completamente a
mensagem de Kian perguntando se estava tudo bem. Sei que, de
algum modo, ele sabia que eu estava em casa, afinal, ele tinha
olhos por toda a cidade.
Meus olhos caíram por seu corpo repleto em preto. Ele cruzou
os braços fortes na frente do peito.
— Está com o relatório sobre sábado pronto? — soou
arrogante.
Arqueei as minhas sobrancelhas.
— Não totalmente, eu… preciso terminar umas coisas, e…
— Ótimo — falou, firme. — Preciso ver estes resultados e temos
outra festa na próxima semana. Gostaria, e muito, de ver o que você
preparou para essa semana. Vamos!
Ele se virou, como se fosse sair dali. Segurei em seu antebraço,
apertando a jaqueta de couro que ele usava com força entre os
dedos.
— Como é? Você não marcou uma reunião comigo hoje…
Kian me olhou com certa impaciência.
— Esteve fugindo de mim durante dois dias, Ayla — soprou
baixo. — Não finja que não esperava por isso.
Mordi o interior da bochecha e eu o segui, em silêncio. Preparei
o marketing da festa do dia dos mortos durante o domingo. Seriam
duas semanas seguidas com festa, o que requer muito
planejamento. Exatamente por isso, o balanço de sábado ficou
desfalcado.
Eu e Kian cruzamos a saída e caminhamos até o
estacionamento. Ele tirou os óculos Ray Ban clássico e preto do
bolso, os colocando antes de entrar no carro. A temperatura estava
mais baixa.
Coloquei minha mochila sobre as coxas e apertei o material
entre os dedos. Kian parecia levemente irritado quando tirou o carro
da vaga.
— Desculpa por não ter respondido — falei, mesmo que não
precisasse me explicar. — Ontem fiquei trabalhando no marketing
do evento deste próximo sábado e me distraí.
Ele apertou as mãos no volante e acelerou pelas ruas do bairro
estudantil, nos tirando dali em poucos instantes. Depois de um
tempo em silêncio, ele disse:
— Não conte mentiras para mim, Ayla.
Suspirei, unindo as mãos sobre a mochila e as encarando.
Remexi o meu colar, inquieta durante quase todo o percurso,
reunindo coragem para falar.
— Você está bravo? — perguntei, quando ele adentrou a
garagem do prédio.
Kian estacionou o carro e assim que desligou o veículo, virou o
rosto para mim.
— Por você ter fugido ou me ignorado?
— Os dois.
— Não. É seu direito.
Eu não sabia porque estávamos no apartamento dele. Se ele
não estava bravo, provavelmente, era frustração que se acumulava
em seu corpo.
Eu o segui, direto para o elevador e entramos na caixa metálica.
Enquanto segurava a mochila na frente do corpo, Kian colocou o
cartão de reconhecimento na frente dos botões e apertou o para o
seu andar.
— Por que estamos aqui? No seu apartamento?
— Estão limpando a boate.
— Tá...
Não parecia uma boa ideia ficar sozinha com ele. Era, no
mínimo, perigoso. Eu ainda podia sentir seu calor e suas mãos em
mim se fechasse meus olhos. E a reação que meu corpo tinha frente
aquilo me deixava no limite.
Eu conseguiria jogar aquele jogo? Manipular seu coração,
roubá-lo e depois quebrá-lo? Kian era culpado, mas algo sobre o
controle de Benjamin sobre os negócios e também sobre o
psicológico quebrado de Kian me deixava em uma luta interna sobre
ele ser o culpado ou não.
Definitivamente, eu colocaria tudo a perder quando tivesse
minha vingança feita e, com aquilo, levaria Kian para o fundo do
poço. Ou talvez... eu o libertarei, enfim.
Só que, para isto, eu precisarei manter-me no controle de tudo.
Inclusive, do meu coração.
As portas abriram e nós saímos do elevador, caminhando direto
para seu apartamento. Luci estava lá, sentado em um dos sofás e
eu sorri para a cena.
— Onde vamos trabalhar?
— Pode ser no sofá — ele disse, retirando a jaqueta e
colocando no aparador. — Apenas me deixe pegar o notebook.
— Tá certo…
Kian caminhou até o interior do apartamento e eu me acomodei
em um dos sofás, abrindo o notebook e procurando pelo plano de
divulgação e as planilhas de controle da última festa. Ele voltou para
ali, trazendo o computador e nós trabalhamos juntos durante horas,
discutindo alguns pontos relevantes. Durante todo aquele período,
evitei seu olhar.
Eu nem ao menos tentei memorizar a senha do seu notebook
quando ele a colocou, tamanho nervosismo. Bom, aquele era um
péssimo sinal.
Quando a luz do fim do dia entrou pelas janelas e pela porta de
correr, Kian jogou seu corpo forte contra o sofá e relaxou. Observei
o contorno dos braços quando ele se espreguiçou, e mordi o canto
do lábio, lembrando de como era estar no meio deles.
— Você quer beber alguma coisa?
— Pode ser.
Ele levantou e eu fechei meu notebook, observando-o ir até a
cozinha e trazer três garrafas de uísque, um balde de gelo e dois
copos baixos.
— Não sei qual você prefere — explicou, enquanto eu avaliava
os rótulos e cruzava as pernas sobre o sofá.
— Bourbon. Com gelo.
Ele desenroscou a tampa e serviu uma dose, adicionando duas
pedrinhas ao final. Kian me entregou o copo e serviu-se de uísque
escocês, sentando de modo tranquilo no sofá.
— O.K. — ele murmurou, balançando o copo para os lados com
o braço apoiado no encosto do sofá e me encarando. — Agora, nós
vamos falar sobre a sua fuga no sábado.
Ótimo, achei que ele tinha esquecido isso.
Desviei do seu olhar no mesmo instante, sentindo meu coração
bater mais forte.
— Eu não sou um cara que sabe flertar, mas eu sei quando uma
mulher me quer. E você, definitivamente, me queria. O que quer que
estivéssemos fazendo naquela pista de dança, bem, teve reação.
Então… me fale, por que você fugiu?
Bebi um pouco do uísque, sentindo a dormência convidativa da
bebida. Respirei fundo, e busquei pelos seus olhos, que refletiam o
entardecer.
— Cada vez que eu me aproximo mais de você, desta maneira,
eu sinto como se estivesse a um passo de perder o controle e… cair
para dentro a sua escuridão.
— E por que você está relutando tanto com algo que você quer?
— Porque se eu cair, não vou conseguir mais me levantar, Kian.
Você vai me levar para o fundo e não vou sair de lá.
Eu não sabia até onde Kian entenderia as minhas palavras. Não
queria que ele se sentisse rejeitado ou qualquer coisa do tipo, mas
era complicado explicar a ele que não sabia se poderia manter tudo
dentro dos eixos. Ele mexia com partes do meu coração que não
eram seguras para os meus planos.
— Querida… você já encontrou o meu pior naqueles túneis
enquanto tinha sangue nas minhas mãos. Não há mais nada que
você tenha a temer.
Minha boca ficou subitamente seca. Eu tinha bloqueado aquela
cena dos meus pensamentos. Kian enfurecido com sangue nas
mãos. Ele bateu em um homem até quase matá-lo. Existiam mais
pessoas que Kian feria desta maneira?
— Você sempre lida com as coisas com raiva? — minha
pergunta o fez arquear as sobrancelhas. — Quando tentei me
aproximar, quando fui drogada na Seven, quando alguém interferiu
seu esquema, e hoje, quando você estava visivelmente frustrado
comigo por causa do final de semana… Você é perigoso, Kian.
Ele bufou, as narinas dilatando ao sair ar do nariz.
— Não pareceu preocupada com isso no sábado.
— Porque eu estava me deixando levar pelo que meu corpo
pedia, e não pela minha razão. Existem dois tipos de pessoas,
aquelas que agem com o cérebro e a razão, e aquelas que agem
com seu coração e os seus sentimentos. Sou o primeiro tipo, e
você... visivelmente, é o segundo. Não somos compatíveis.
— Não estou te pedindo em casamento — falou, entornando o
resto de uísque nos lábios e depois pegando a garrafa para encher
mais seu copo. — Estou apenas tentando entender você, porra.
Encarei o copo com uísque em minha mão. Ficamos em silêncio
por alguns instantes. Ouvi Kian tomar respirações profundas, até
que sua voz surgiu:
— Uma vez, eu te disse que fui criado em um meio violento.
Essa não é a melhor justificativa para o meu temperamento, mas eu
aprendi a lidar com meus sentimentos através de ataques
explosivos.
Levei meus olhos até seu rosto. Ele os tinha perdido em algum
ponto qualquer e o maxilar estava trincado.
— Eu jamais vou te machucar, Ayla. Nunca. Eu… — Ele fechou
os olhos, por alguns segundos, engolindo em seco. — Eu não
machuco quem não merece. E jamais eu deixaria algo, ou alguém,
machucar as pessoas com quem eu me importo.
Então, seus olhos vieram até os meus e ofeguei. Uma vez, eu
havia dito a ele que me importava, e Kian estava, agora, deixando
isso claro para mim também. A confissão fez meu coração bater
mais forte. Eu não sabia como reagir àquilo, mas, com total certeza,
eu precisava fazer algo.
Kian estava me deixando entrar. E era isso que eu queria,
certo?!
— Eu sempre me pergunto qual sabor você teria… — confessei,
em um sorriso, mudando o assunto. Não poderia dizer novamente
que me importava. Não agora. Ele levantou as sobrancelhas. — O
suave do Bourbon ou o amargo do uísque escocês.
Ele sorriu, entendendo o que eu estava sugerindo e que,
claramente, eu tinha colocado todas as minhas resistências abaixo.
— Prove.
Molhei os lábios secos e descansei o copo na mesa de centro.
Com absoluta certeza, não poderia culpar o álcool pelo que estava
prestes a fazer.
Deslizei para fora do sofá e caminhei até parar na frente de
Kian. Suas pernas estavam ligeiramente separadas e os braços
jogados ao lado do corpo. Sua expressão relaxada me analisava
com curiosidade.
Meu coração batia forte e minhas mãos estavam suadas. Eu
apenas o encarei por longos segundos, tentando decidir se beijá-lo
seria algo inteligente a se fazer.
Por mais que meu corpo clamasse por isso, meu cérebro
parecia me enviar sinais de que era uma barreira que se romperia.
Haveriam consequências irreparáveis caso eu me deixasse cair
dentro da escuridão de Kian.
Kian não parecia com pressa enquanto os olhos frios e intensos
observavam minha guerra entre a razão e a emoção.
Ele levou o copo com a bebida na direção dos lábios, mas,
então, o detive, colocando a mão sobre seu pulso e impedindo-o de
beber mais.
Sentindo meu corpo zunir em ansiedade, apoiei um dos joelhos
no sofá e logo permiti meu corpo relaxar contra suas pernas, sem
me aproximar muito do seu quadril. Eu não queria tornar aquilo
íntimo demais e, mesmo assim, estava montando-o.
Kian abaixou a mão e relaxou o copo contra o estofado, dando-
me total controle. Aproximei meu rosto do seu, inalando o aroma do
uísque e do seu perfume.
Àquela altura, meus olhos encaravam qualquer ponto, menos os
seus. Em um misto de vergonha e ansiedade, permiti vê-lo melhor.
Como nunca tinha conseguido.
E assim que meus olhos pousaram em seus lábios, minha boca
formigou em expectativa.
Segurei firme no encosto do sofá, aproximando-me mais, sobre
ele. Kian parecia pequeno naquela posição, mas gostei do controle.
Sua respiração misturou-se com a minha e eu raspei minha boca na
dele.
Macia e convidativa.
Eu podia ver o controle escapar pelos dedos de Kian a cada
segundo. Estava alongando aquela situação ao máximo. Sua
respiração tornou-se forte e o vi cerrar o maxilar.
Projetei minha língua para fora e corri pelo seu lábio inferior,
provando-o.
Um sorriso maldoso brotou em mim.
— Veneno — soprei, em um sussurro. — Você é veneno, Kian.
Então, o beijei.
Primeiro, de uma forma singela, sútil. Apenas encostando.
Então, movi minha boca e ele correspondeu.
Instantaneamente, relaxei, sentindo a textura da sua língua
chocar-se com a minha e enviar uma onda de prazer em cada parte
do meu corpo.
Apertei o estofado entre os dedos e resisti ao máximo em me
aproximar.
Kian não me tocou e mesmo assim o sentia me segurando
naquele beijo lento.
Quando me afastei, ele tinha os olhos fechados e respirava
profundamente. Lentamente, o canto dos seus lábios subiu e ele
abriu os olhos, encarando-me de forma sagaz.
Antes que eu pudesse me mover, sua mão surgiu em meu
campo de visão. Eu congelei quando seu polegar tocou a artéria
pulsante em meu pescoço e, depois, a palma fechou-se na minha
garganta. Seus dedos longos estavam cobrindo a outra parte do
meu pescoço e ele aplicou um pouco de pressão enquanto me
segurava.
— Minha Ayla — disse, em um rosnado, e me puxou para a sua
boca, de novo.
Havia fúria e poder por trás do olhar que me lançou.
Definitivamente, Kian Wilding estava me reivindicando para si, e
a constatação fez meu corpo todo tremer em expectativa. Céus, eu
queria isso.
A boca dele tomou a minha, faminta e desesperada. De forma
bruta e intensa, ele moveu a língua enquanto me fez sentar sobre
suas coxas, aproximando meu corpo do seu o máximo que
conseguia.
Um gemido baixo saiu da minha garganta no segundo que sua
outra mão me segurou pela cintura e me trouxe até seu quadril, me
fazendo senti-lo entre minhas pernas.
Segurei seu pescoço e o trouxe para mim, desejando fundir
nossos corpos. Um som de reprovação deixou meus lábios quando
Kian afastou sua boca da minha. Abri meus olhos, e quando foquei
em seu rosto, ele disse:
— Eu ainda não sei se você é uma benção ou maldição, mas
estou disposto a decidir isso muito lentamente.
E, mais uma vez, ele me beijou, fazendo-me esquecer de
qualquer coisa que não fosse sua boca sedenta sobre a minha.
Eu não conseguia parar de beijar Kian Wilding.
Não sabia há quantos minutos eu tinha minha boca na dele,
mas a cada movimento do meu corpo, arrastando-se deliciosamente
sobre seu membro rígido, nós dois gemíamos. Naquela altura, Kian
tinha as mãos em meus quadris, me ajudando no movimento.
Um gemido prolongado saiu dos meus lábios quando ele
arrastou a boca pelo meu maxilar, levando-a até meu pescoço e
sugando minha pele. Apertei as mãos em seus ombros e
movimentei meu corpo contra o seu, novamente.
Minhas mãos passearam pelos seus músculos e apertei meus
dedos em sua pele rígida. Enquanto Kian devorava meu pescoço,
mordi meus lábios para evitar os sons que queriam escapar. Minha
respiração travou quando sua mão subiu pelo meu tronco,
arrastando-se lentamente pelo meu peito.
Senti meus mamilos ficarem rígidos e mordi o lábio inferior até
sentir sangue.
— Como é a sensação? — ele perguntou, de repente. Ainda
com a boca em mim.
Ele chupou a pele sensível atrás da minha orelha e apertou um
seio com a mão grande, enviando uma onda de dor e excitação pelo
meu corpo.
— De perder o controle? — Sua voz profunda fez com que eu
respirasse prolongadamente, sentindo minha pulsação latejando no
meio das pernas e, cada vez mais, Kian me levava à beira do
abismo.
Meus músculos ficaram tensos e o calor espalhou-se por cada
parte do meu corpo. Eu não tinha controle sobre meu corpo perto de
Kian.
Esse cara ia me arruinar para qualquer outro.
Ele se afastou, encontrando meus olhos. Seus lábios estavam
inchados e estampando um sorriso maldoso. Kian lambeu os lábios,
parecendo vitorioso, como um fodido rei.
Meu peito subia e descia, descompassado. E, mesmo assim,
entendi que ele estava comemorando minha rendição. Me
aproximei, roçando meus lábios aos dele.
— Me diga, você. Nós dois perdemos nesse jogo, Kian. O
controle não parece se manter estável nas nossas mãos quando
estamos no mesmo lugar.
A tensão cedeu e sua boca tomou a minha com força, fazendo-
me esticar o pescoço. Mas meus lábios desesperados encontraram
seu beijo exigente, e eu apertei minhas mãos em volta do seu
pescoço para puxá-lo para mais perto, sentindo minhas unhas em
sua pele. Nossas línguas lutaram e eu gemi quando ele segurou
minha bunda e sem esforço, levantando-me e permitindo-me
envolver minhas pernas em torno dele.
Seu corpo estava duro contra o meu, enquanto caminhava
comigo em seu colo e, em instantes, fui colocada sobre uma cama.
Abri os olhos, encontrando o que parecia ser o seu quarto. Não
absorvi muito do ambiente, já que meus olhos se fixaram na imagem
de Kian aos pés da cama, retirando a camiseta em uma velocidade
impressionante.
Ele tinha uma tatuagem de árvore no peito, o que parecia
desumano em conjunto com o abdômen trincado. Mordi os lábios e
esfreguei as pernas, em expectativa.
Kian apoiou um joelho na cama, aproximando-se do meu rosto.
— Ayla, você não deveria ter entrado naquele corredor. — Ele
se referiu ao nosso primeiro encontro. Seus dedos forçaram meu
queixo, até que nossos olhos estivessem alinhados. —
Honestamente, eu quero muito te foder por bagunçar a minha vida.
Aquilo parecia uma sentença. No entanto, não me importei,
porque eu pegaria qualquer coisa que Kian Wilding me desse. Meu
corpo ardia por ele, e, juntos, colocaríamos fogo um no outro. Eu
estava sob o efeito do seu veneno, cedendo o controle e qualquer
coisa que fosse exigido.
Seu polegar raspou em meu lábio inferior enquanto ainda
segurava meu queixo e mantinha o olhar firme ao meu. Ele queria
meus olhos nos seus, então, os mantive assim quando disse:
— Faça o seu pior!
A maneira como ele olhou para mim era como se eu fosse uma
maldição por fazê-lo perder o que tanto almejava: o controle. E eu
teria que fazê-lo acreditar o contrário. Uma benção, era isso que
deveria me tornar.
Ele se abaixou, grudando a sua boca na minha, movendo os
lábios com força e sua língua exigindo. Perdi o fôlego por alguns
segundos com a sua intensidade.
Suas mãos infiltraram-se em minha camisa e, rapidamente, ele
a retirou do meu corpo. Não tive tempo para ver para onde o tecido
foi. Kian já tinha seus lábios nos meus, enquanto as mãos trataram
de abrir meu sutiã.
Ofeguei quando ele mordeu meus lábios com força, logo após
meus seios nus tocarem seu peito.
— Caramba. O que você está fazendo comigo? — praguejou,
com as mãos no cós da minha calça, em uma luta ferrenha até que
o tecido estivesse no chão do seu quarto.
Enquanto recuperava o fôlego, Kian se levantou e tirou a calça
jeans. Rapidamente, ele voltou para a cama, colocando-se sobre
mim. Seus olhos ficaram nos meus quando seu quadril encontrou o
meu. Senti seu pau, duro, no meio das minhas pernas e gemi, ainda
presa no seu olhar. Ele parecia estar testando minhas reações e seu
poder em mim.
— Por favor... — pedi, jogando meu quadril contra o seu.
Nós dois gememos com a fricção dos nossos corpos, ainda
protegidos pelas peças íntimas.
— O que você quer?
— Faça alguma coisa — rugi, exigente.
Joguei minha cabeça para trás quando sua mão envolveu meu
seio, e ele apertou o mamilo entre os dedos.
— Olhos em mim! — ele soou divertido, enquanto abaixou o
rosto e senti lamber meu outro seio, ainda pressionando o meio das
minhas pernas.
Abaixei minha cabeça, em busca dos seus olhos. Kian lambeu,
vagarosamente, meu mamilo e fechou a boca sobre a região. Meu
tórax subia e descia, em uma respiração descompassada, enquanto
meu corpo queimava pelas sensações que se espalhavam.
A umidade crescente no meio das minhas pernas me
incomodava, mesmo que Kian estivesse pressionando a região.
— Mais — pedi, depois que ele mordeu a lateral do meu peito.
Provavelmente, teria uma marca ali amanhã.
— Peça por favor, querida.
Eu o encarei, descrente.
— Nem fodendo.
Envolvi minhas pernas ao redor do seu quadril e movi contra
ele, moendo em seu pau. Kian apoiou as mãos na cama, dando
suporte para que afastasse minimamente nossos corpos e avaliasse
o que eu estava fazendo com nossos corpos, sem a sua ajuda.
— Oh, porra — estremeci, sentindo um arrepio subir pelo corpo.
Aquilo estava bom. A sensação do seu pau, grande, em mim
seria o suficiente para me fazer gozar. Fazia muito tempo que eu
não estava com um homem e a frustração de dias de desejo — por
Kian — havia me deixado no limite por tempo demais.
Joguei a cabeça para trás, ofegante.
Eu estava tão perto.
As mãos grandes de Kian fecharam-se em minhas coxas, as
retirando do seu quadril. Abri meus olhos, pronta para xingá-lo.
Então, ele segurou com força a lateral da calcinha de algodão e
puxou.
— Você não vai gozar sozinha.
Sorri com aquela constatação. Meu sorriso, no entanto, deu
espaço a um gemido alto quando ele abaixou a cabeça e os lábios
foram até a minha boceta. Minhas mãos agarraram o lençol cinza e
abri um pouco mais as pernas, lhe dando mais espaço.
Ele arrastou a língua pela minha fenda, indo da minha entrada
até o ponto latejante do meu clítoris. Meus quadris estavam
inquietos por mais, enquanto Kian Wilding me torturava com seu
toque.
— Kian — clamei, em um sussurro desesperado.
Eu o vi sorrir antes de lamber os lábios e os descer sobre meu
centro quente.
Eu deveria imaginar que Kian me daria um sexo oral incrível,
baseado na forma como me beijava. Mas a forma como sua boca
estava me devorando era esplêndida. Sua língua estava em todos
os lugares, enquanto os dedos pressionavam o interior das minhas
coxas, abrindo-me para ele.
Meu corpo estremeceu quando senti seus dedos na minha
carne molhada, indo até minha entrada e seus lábios fecharam-se
em meu clitóris. Deixei minhas mãos irem até os fios sedosos do
seu cabelo e o segurei contra mim.
Desesperada, ofegante.
— Kian! — chamei, quando meu interior se contraiu e meus
olhos fecharam-se.
Aquela fricção enlouquecedora da sua língua e dos dedos
entrando e saindo, me levaram ao limite. Gozei, enquanto Kian
moldava meu corpo como desejava.
Minha cabeça caiu no travesseiro e não abri os olhos. Senti
Kian soltar minha pele e mover-se até seu peso estar sobre mim,
mais uma vez. Ele retirou alguns fios de cabelo colados na minha
pele úmida. Sorri, satisfeita.
— Acho que estou obcecado pela imagem de você gozando —
Kian disse, me fazendo abrir os olhos.
Ele lambeu os lábios brilhosos, com resquícios do meu orgasmo
ali. Pensei em um comentário esperto para rebater aquela frase,
mas os olhos de Kian me calaram. Ele estava faminto e o seu pau
em minha coxa deixava claro que ele estava pronto para me fazer
gozar mais uma vez.
— Quem sabe você consegue isso mais uma vez.
Kian sorriu, como se soubesse que me levaria ao orgasmo
quantas vezes desejasse. E baseado na forma como seus lábios e
seus dedos trabalharam em mim, eu tinha plena certeza disso.
Meus olhos, no entanto, saíram do seu rosto para a sua mão
direita. Ele segurava algo ali, que provavelmente pegou do chão
quando eu ainda tinha os olhos fechados.
— Mãos na cabeceira, querida. Você me teve entre suas pernas
te levando ao limite. Nada mais justo do que me deixar no controle
agora.
Seu sorriso se alargou quando levei as mãos até a cabeceira de
ferro escuro e a segurei firme. Ele levantou o cinto preto e envolveu
meus pulsos ali.
— Torne isso divertido para nós dois, mon amour.
Arrastei o francês, chamando-o de amor. Ele apertou meus
pulsos firmemente, e depois suas mãos desceram dos meus braços
até minhas pernas, em uma tortura lenta e gostosa.
— Não acredito na palavra amor dita na cama, Ayla — explicou,
enquanto os dedos longos passeavam pelo interior das minhas
coxas, as separando. — Mas gostei da forma como você torna isso
pervertido.
Sorri, mesmo quando seus dedos tocaram a minha boceta ainda
sensível. Ele arrastou os dedos em uma tortura lenta e meus olhos
fixaram-se na boxer preta, apertada para o seu volume. E eu queria
senti-lo por inteiro.
Encontrei seus olhos, sendo pega por encará-lo sem pudor.
— Se eu pedir com carinho, você me fode?
Ele apertou o maxilar com força, e sua mão parou de mover-se
na minha pele. Eu sorri quando ele praguejou baixo. Caramba, ele
me tinha amarrada e, ainda assim, eu estava no controle.
— Forte e duro?
— Porra! — disse, deixando meu corpo e esticando a mão até a
calça jeans no chão, retirando a carteira do bolso e depois um
preservativo.
Tentei fechar minhas pernas para aliviar a pressão ali,
hipnotizada quando Kian tirou a boxer e segurou seu pau para
colocar o preservativo. Ele se pôs entre minhas pernas, impedindo
que eu fizesse aquilo.
Antes que eu pudesse reclamar, Kian segurou uma de minhas
pernas, a colocando sobre o ombro, e senti seu membro na minha
entrada.
— Eu nunca quis tanto dar uma lição em uma pessoa — disse,
enquanto apoiou um braço ao lado da minha cabeça —, como quero
dar em você, Ayla. Quero marcar você de todas as formas mais
impuras que você imagina. — E ele entrou em mim, lentamente.
Seu rosto estava próximo o suficiente para que eu sentisse sua
respiração misturando-se com a minha, e nossos gemidos saindo
em uníssono. Ele manteve-se dentro do meu calor por alguns
segundos, então, aproximei minha boca da sua e puxei seu lábio
inferior entre os dentes.
— Forte e duro — repeti minhas palavras, em um tom
autoritário.
Sem esperar, ele se moveu, me fazendo ofegar pelo seu
tamanho me alargando, com seus olhos presos aos meus e
invertendo minha posição. Ele mordeu meu lábio inferior, lambendo
a região dolorida ao fim.
— Você ainda me sentirá entre suas pernas amanhã, amor — a
última palavra saiu com sarcasmo, mas gostei como soou.
Eu sorri com aquilo e ofeguei. Kian segurou em minha cintura e
tomou tudo o que podia em movimentos intensos, sem me dar
tempo para recuperar o fôlego entre suas investidas. Desta maneira,
com minha perna sobre seu ombro, Kian estava atingindo um ponto
que deixava minha visão turva a cada vez que se movia.
Tentei não fechar os olhos, mas meu corpo tremeu quando ele
desceu sua mão até o encontro dos nossos corpos e tocou meu
clitóris inchado.
— Olhos nos meus. — Foi a vez dele exigir.
Obedeci, abrindo meus olhos e engolindo seco ao vê-lo me
segurando com força e suado. Então, meus olhos passearam pelo
seu físico perfeito e a tatuagem estampada em seus músculos. Os
grunhidos que escapavam da sua boca e do choque entre nossas
peles úmidas eram música para mim e me levavam à loucura.
Segurei minhas mãos na cabeceira da cama, sentindo o couro
machucar meu pulso, desejando contato, para mostrar a ele que
estava perto, lembrando-me do exato segundo em que ele disse que
eu não conseguiria isso sozinha.
Seus olhos caíram sobre os meus em compreensão e um
sorriso surgiu nos seus lábios quando bateu mais forte. Mais rápido.
Mais duro.
— Kian! — o chamei, como se fosse minha salvação.
Ele se aproximou, enquanto me tocava e me fodia.
Meus olhos se fecharam quando Kian sussurrou, de maneira
gutural, em meu ouvido:
— Goze para mim.
Contraí contra seu membro e gritei, recebendo uma injeção de
prazer em meu corpo. Minhas costas arquearam da cama e
pequenos pontos brilhantes preencheram minha visão ao abrir os
olhos.
Seu corpo ainda se movia sobre o meu, até que ele se desfez,
com a boca no meu pescoço e sua respiração em minha orelha.
Estava ofegante quando sentir seu membro sair de mim,
encontrando meus olhos ao retirar o cinto do meu pulso. Fechei
meus olhos por um segundo, extremamente cansada e satisfeita,
pela segunda vez.
Senti a tira de couro sair do meu pulso, e voltei a abrir os olhos
quando senti Kian segurar em meu braço e levar os pulsos
vermelhos até os lábios, pressionando sua boca em um beijo gentil.
Eu sorri com o gesto.
— Quero você de quarto — ele disse, sorrindo contra a pele
vermelha do meu pulso.
Molhei meus lábios secos e ri em seguida, concordando com
um movimento da cabeça. Eu testaria se conseguiria controlar Kian
Wilding, também, naquela posição.
Despertei e me mantive imóvel por alguns segundos. Eu tinha
plena consciência de onde estava e do que tinha feito na última
noite. Meu corpo estava dolorido e o meio das minhas pernas
também ardia um pouco.
Apertei o travesseiro um pouco mais entre os braços e suspirei.
Kian era o Deus do sexo.
Ri com a constatação, colocando seu nome e a palavra do
criador na mesma frase. Espreguicei meu corpo sentindo cada
músculo, enquanto meus olhos ajustavam-se à luz, ainda fraca, do
ambiente.
Cortinas pretas aplacavam a luz solar. E notei com mais
atenção o lugar, a mesa de cabeceira comportava um abajur
moderno; próximo à janela, havia uma poltrona. Além disso, havia
apenas um painel com televisão e duas portas, uma para o banheiro
da suíte e outra para o closet.
Virei-me na cama, constatando que estava sozinha. O lado da
cama de Kian estava frio, indicando que ele havia levantado cedo.
Lembrei do que havia dito na outra vez que dormi em seu
apartamento sobre sair com Luci.
Suspirei, sentando na cama. Nossas roupas ainda estavam
espalhadas pelo chão. Peguei minhas roupas e as vesti. Em pé, no
meio do quarto, observei o ambiente.
Razão e emoção.
Eu estava sozinha no quarto do filho do meu maior inimigo e
tinha tudo para descobrir algo pessoal. Mordi meu lábio, em uma
luta interior.
Engolindo em seco, resolvi que precisava encerrar esse
envolvimento e trabalhar com a cabeça focada em outro momento.
É isto. Dividindo os objetivos em cada situação será mais fácil.
Ontem e hoje foi sobre atração sexual e saciar nossas vontades.
Entrando num acordo bizarro comigo mesma, caminhei até o
banheiro da suíte para lavar o rosto e arrumar meus cabelos o
melhor que conseguisse. O cômodo era recheado de mármore
branco, com direito a um box amplo e uma banheira retangular.
Fiz o melhor que pude e voltei para o quarto, procurando por
meus calçados. Lembrei que havia os tirado, ontem, no meio da
tarde de trabalho. Fui até a porta e parei por um segundo, olhando
para trás.
— Outro dia, Ayla — lembrei a mim mesma e abri a porta,
lentamente.
Eu não queria ter uma conversa pós sexo com o meu chefe,
então, esperava escapar em silêncio daquela situação e, depois,
fingiria que nada aconteceu. Era a melhor solução.
Um barulho repetido de forma rítmica chamou minha atenção.
Apurei minha atenção e identifiquei que vinha do quarto ao lado.
Existiam seis portas naquele corredor. Até onde eu sabia, havia o
quarto de Kian, um quarto comumente ocupado por Hugo e Liv, o
quarto com o piano, lavabo, e um quarto de hóspedes onde dormi.
Faltava descobrir um cômodo.
Podia ser um escritório recheado de provas.
Sorri, caminhando até o lugar, que estava com a porta
encostada. Eu só iria olhar e voltar em outro dia. Empurrei
minimamente, olhando para o interior.
Meus lábios se abriram com a visão.
Kian usava apenas um calção de malha preto e batia
repetidamente em um saco de areia vermelho pendurado no teto
com uma corrente. O local era uma academia particular, com, pelo
menos, dez aparelhos diferentes. Certo… não precisava de muito
para descobrir como ele adquiriu o corpo incrível.
Ele se movia rapidamente ao redor do saco, concentrado com
fones de ouvido sem fio.
No entanto, perdi o ar quando meus olhos encontraram suas
costas. Havia uma enorme caveira mexicana cobrindo a maior parte
da extensão de pele. No entanto, ainda era possível vê-las.
Cicatrizes.
De diversos tamanhos. Na maior parte delas, pequenas linhas
verticais.
O que diabos era aquilo?
Ontem não havia tocado em suas costas e como passamos a
maior parte da noite apenas com os abajures acesos, não as notei.
Não contava, no entanto, que Luci estivesse com ele. O
cachorro estava sentado em uma parte do tatame azul no chão e
latiu alto no segundo que me viu.
Kian segurou o saco de areia com as mãos enfaixadas e me
olhou, ofegante e coberto de suor.
Deixando minha imaginação me levar até a noite de ontem.
Subitamente, minha boca ficou seca.
— Bom dia — ele falou, jogando a cabeça para o lado e os
cabelos indo para trás.
— Bom… dia — falei, com dificuldade, focando no seu rosto.
— Onde está indo? — perguntou, unindo as sobrancelhas ao
deslizar os olhos pelo meu corpo vestido.
Troquei o peso do corpo entre os pés, nervosa. Ele começou a
tirar as faixas das mãos, caminhando na minha direção.
— Uh, estou indo, hum… terminar o balanço que você pediu e,
bom, tenho aulas…
Ele jogou uma das ataduras no chão, parecendo um pouco
irritado.
— Que diabos, Ayla. Vamos fingir que ontem não existiu?
Abri a boca algumas vezes, ansiosa. Coloquei uma mecha para
trás da orelha e encarei meus pés nus.
— É melhor, não é? Para os negócios, coisa e tal. Nossa
relação não pode ficar abalada por causa de sexo.
Ele parou na minha frente, segurando meu queixo e levantando
meu rosto.
— Ontem não foi apenas sexo. O que eu te disse quando nos
beijamos naquele sofá?
Engoli em seco, insegura pela escolha das palavras.
— Me deixe refrescar sua memória — falou, aproximando o
rosto do meu. — Agora você é minha. Entendeu?
Assenti, movendo minha cabeça minimamente e sentindo meu
corpo reagir a forma dura que ele falava comigo.
— Agora, mova a sua bunda para o meu quarto porque é lá que
vamos passar o dia.
— Kian, eu tenho…
— O inferno que tem — ele falou, arqueando as sobrancelhas.
— Se o problema é a faculdade, suas faltas serão cobertas, apenas
me diga às aulas e lidarei com isso. — Ele jogou meus cabelos para
trás do pescoço, deslizando a ponta dos dedos na minha pele e
enviando uma série de arrepios pelo meu corpo. Seus olhos
pararam no meu pescoço, provavelmente cheio de marcas e ele
sorriu. — E seu chefe está lhe dando o dia de folga.
Neguei com a cabeça, rindo.
— Ao que tudo indica, ele me quer nua em sua cama para
trabalhar muito no dia de hoje.
Os olhos dele tornaram-se quentes, e ele se aproximou,
roçando a boca na minha.
— Não existe chance alguma de esquecer o que aconteceu
ontem, amor. Espero que você saiba o que significa quando eu digo
que você é minha.
Caramba, eu era fraca perto dele.
Minha ideia de escapar do seu apartamento tinha evaporado
com a conversa dura e depois com Kian sussurrando contra a minha
boca, seminu e suado.
— Ainda não sei bem. Ontem você não me explicou sobre
isso…
Suas mãos desceram até minha cintura, onde ele apertou e me
puxou para si.
— Minha para cuidar.
Eu gostei de como aquelas palavras soaram nos lábios de Kian.
Meu coração encheu-se de… alegria. Deixei minhas mãos
deslizarem por sua pele úmida e sorri sozinha.
— Gosto como isso soa — confessei, vendo a marca das
minhas unhas em sua pele.
Mordi o lábio, lembrando das suas cicatrizes. Eu teria que
perguntar a ele sobre isso, e em breve.
— Posso ir até a cozinha ver o que consigo preparar para o café
da manhã.
Ele riu baixo.
— Já resolvi isso, mas agora... — Kian segurou em minhas
pernas e as envolveu em sua cintura. Eu gritei, em surpresa ao me
apoiar em seus ombros. — Estou faminto de outra coisa.
Não evitei sorrir quando ele me carregou até o seu banheiro e
me colocou no box e ligou o chuveiro. Suas mãos trabalharam em
me despir enquanto a água quente fazia minha roupa grudar no
corpo.
— Kian! Você está molhando a minha roupa — constatei o
óbvio, um pouco irritada.
Ele sorriu, sacana.
— Você não vai precisar delas. E se precisar de algo, use as
minhas — disse, puxando-me para um beijo quente e necessitado.
Quando senti a parede fria do box bater contra as minhas
costas, um gemido abafado saiu dos meus lábios. A água quente
logo caiu sobre nós em uma rajada. Eu o puxei para mais perto do
meu corpo com as mãos grudadas em seu pescoço. Nossas bocas
correspondiam a necessidade um do outro na mesma intensidade.
As mãos de Kian seguraram minhas pernas com força,
pressionando-me contra o azulejo. Senti o corpo todo ceder ao peso
das pernas quando ele roçou o corpo no meu.
Envolvi as minhas pernas na sua cintura deixando que ele me
levantasse. Um grunhido saiu dos meus lábios e ele me apertou na
bunda, com ambas as mãos, dando-me mais estabilidade. Sorri
entre o nosso beijo, puxando seus lábios com os dentes.
Senti seu pau roçar na minha entrada. Movi meu quadril e ele
deslizou alguns centímetros para dentro. Nós dois gememos em
uníssono. Kian se afastou minimamente, mas não moveu mais do
que isso. Seus olhos encontraram os meus, e ele pareceu pedir uma
permissão para continuar.
— A gente deveria pegar uma camisinha — soprei, um pouco
nervosa, mas pensando que eu me cuidava o suficiente.
— Eu tenho no quarto, posso ir buscar.
Não me parecia a ideia mais inteligente do mundo transar sem
camisinha com Kian, mas, porra, estávamos tão inflamados, não
queria esperar, só queria sentir sua pele com a minha. Mordi o lábio
inferior, e ele deslizou um pouco mais para dentro, me fazendo
ofegar.
Ele me roubava toda a sensatez.
— Só desta vez... — soprei, enquanto grudava minha boca na
dele e joguei meu quadril em sua direção.
Suas mãos me seguraram desesperadamente e, novamente, eu
estava contra a parede, ofegando contra seus lábios.
Quando Kian entrou em mim, apertei mais as pernas em sua
cintura e ele gravou os dedos na minha pele com força, me
empurrando contra a parede para estocar com força. Um gemido
rouco saiu da minha boca quando ele se moveu, ofegando contra
meu pescoço.
Igualmente à noite, foi brutal. Necessitado. Sentimentos
acumulados estavam sendo expressados nos movimentos dos
nossos corpos e eu não julgava Kian em querer descontar qualquer
coisa naquele momento. Até a fúria da minha quase fuga.
Segurei seu rosto entre as mãos, e o puxei até que conseguisse
me ver.
Água escorria pelas nossas peles, misturando-se ao suor.
— Eu já me perdi, Kian — confessei, movida por aquele
momento insano de tesão.
Céus, eu estava me entregando ao que quer que aquilo fosse.
Ninguém podia me julgar, ali, com ele e protegida de qualquer coisa.
Seus lábios vieram para o meu pescoço e ele puxou a pele em
um beijo forte, que possivelmente me marcaria mais um pouco. O
ritmo dele aumentou e pude sentir seu corpo tensionar embaixo do
meu. Minhas unhas foram até suas costas, em meio ao momento
insano e senti as elevações.
— Você é o fogo do inferno nas minhas mãos, amor.
Meus olhos encheram-se de lágrimas e os fechei, sentindo o
calor diferente da água do chuveiro. Que bagunça, porra. Ele era um
ótimo desvio e talvez seria um caminho mais longo para que eu
tornasse meu plano real. Mas, naquele instante, eu não me
importava com a forma que meu coração batia.
Sua mão escorregou para o nosso meio e ele pressionou o meu
clitóris. Meus dentes foram até seu ombro e mordi sua pele,
sentindo-me contrair. Um arrepio tomou conta do meu corpo quando
ele disse:
— Você está me apertando. Está próximo, não é? — Sorriu
contra a minha pele e me apertou com mais força. — Céus, Ayla,
estou sentindo você.
Fechei os olhos e senti meu corpo estremecer, e aquela
sensação chegou em uma velocidade impressionante. Joguei a
cabeça contra o azulejo. Kian beijou meu pescoço, sem parar de
mover-se contra o meu corpo. Ferozmente, até que se desfez.
Quando os abri, Kian estava com os olhos fixos em mim. Meu
corpo todo formigava em prazer.
Ele ainda estava dentro de mim quando moveu o polegar em
cima do meu clitóris, me torturando um pouco. Gemi de prazer,
mordendo o lábio em seguida. Ele aproximou o rosto do meu:
— Vamos tomar café da manhã e, depois, tenho planos para
você na jacuzzi. Que tal?
Molhei os lábios e sorri.
— Playboy.
Kian riu e me colocou no chão. Senti as pernas fracas,
precisando me apoiar nos seus ombros. Me surpreendi quando ele
me abraçou pela cintura e me trouxe para baixo da água quente.
Envolveu os braços em mim e meus lábios converteram-se em um
sorriso genuíno, absorvendo a importância daquele momento.
Deslizei o indicador sobre a sua tatuagem, estudando o
desenho.
A cada minuto ao lado de Kian Wilding, eu tinha mais perguntas
sem respostas e meus sentimentos mais bagunçados.
Não sabia, de fato, se ele era uma maldição ou uma benção.
Quando disse a Kian que o controle não parecia algo estável
quando nós nos mantínhamos no mesmo ambiente, não estava
mentindo. Não sabia como eu tinha acabado de deixar aquilo tudo
acontecer. Estava dormindo no apartamento dele pela terceira noite
seguida, e nós não havíamos saído dali. Kian foi até o hall buscar
alguns dos nossos pedidos de delivery, mas foi o máximo.
E não foi como se nós tivéssemos apenas transado.
Trabalhamos em seu sofá, aproveitamos a jacuzzi, Kian tocou piano
duas vezes e descobri que haviam muitos canais na televisão
enorme da sala. Kian fez com que eu assistisse todos os filmes do
Star Wars, e confessei adorar a série de filmes após o último.
Eu havia dito a Yue que estava em uma saída de campo da
faculdade e me senti extremamente culpada por aquilo. As mentiras
estavam cada vez mais fáceis em meus lábios e não gostava disso.
Mordi o lábio, encarando o reflexo no espelho do banheiro
enquanto secava os fios médios úmidos. Um sorriso largo brotou em
meus lábios quando peguei uma boxer preta de Kian para colocar e
depois sua camiseta larga, da mesma cor. Eu já não usava minhas
roupas há algum tempo, e sentir o cheiro de Kian perto de mim era
algo confortável.
Com certeza, eu levaria alguma daquelas camisetas para casa
após sair daquele nosso deleite em seu apartamento. Ainda não
sabia como as coisas ficariam entre nós, mas, definitivamente, Kian
parecia decidido a manter o nosso… relacionamento.
Meus pés estagnaram no meio do quarto dele com o
pensamento. Relacionamento. Eu e Kian. Fechei meus olhos,
sentindo o impacto daquilo.
Eu deveria estar feliz. Estava na posição que desejei ter quando
cheguei em Kardama. O caminho mais fácil para descobrir os
podres de Benjamin Wilding seria sendo a namorada do seu filho. E,
agora, tudo estava uma verdadeira bagunça dentro de mim.
Precisava de mais informações antes de tomar uma atitude.
Sobre Kian, sua família e o esquema.
Mais uma vez, ignorei meus instintos, a razão, e caminhei para
fora do quarto que estive dividindo com Kian. Um sorriso brotou em
meus lábios quando entrei na sala e ele estava sentado no sofá,
com os olhos fixos no notebook sobre seu colo. Seu rosto estava
iluminado pela luz do aparelho eletrônico apoiado em sua coxa,
enquanto a cabeça de Luci estava na outra perna, como se o animal
estivesse concentrado na atividade de Kian.
Para a minha sorte, ele também estava adepto ao uso de
poucas peças de roupas. Naquele momento, usava apenas uma
cueca boxer. E aquilo era uma visão e tanto.
— Trabalho? — perguntei, apoiando o ombro na parede do
corredor.
Os olhos de Kian subiram vagarosamente pelo meu corpo, e um
sorriso crescente nasceu em seus lábios.
— Precisei distrair a minha cabeça quando descobri que a porta
do banheiro estava trancada…
Rolei meus olhos e sorri.
— Eu disse que precisava de um banho.
— E sabe que eu poderia ter feito isso.
Cruzei os braços.
— Você sabe muito bem qual o resultado quando estamos no
chuveiro, ou na banheira. Precisava descansar meus músculos na
água quente.
Ele torceu os lábios em irritação por ser contrariado.
— Não lembro de você reclamar da última vez em que esteve
montada no meu colo naquela banheira — disse, enquanto os olhos
foram para o notebook, que apitou, mostrando uma mensagem. —
Um momento, já vou terminar isso aqui.
— São as coisas da Seven? — perguntei, curiosa, desviando
meus olhos dele e indo até a cozinha, como se fosse uma pergunta
qualquer. — Quer comer alguma coisa?
— Você — ele respondeu, e eu olhei para Kian sobre o ombro.
Ele estava concentrado no notebook, então, apenas encarei sua
nuca.
— Babaca.
— Já sabe que sou, amor — ele disse, irônico com o apelido
que nem ele acreditava. — Um sanduíche com creme de amendoim
e geleia parece bom.
Abri os armários atrás dos ingredientes, enquanto ouvi as teclas
do notebook sendo massacradas. Depois, abri a geladeira para
procurar creme de amendoim e geleia, preparando dois sanduíches
e voltei para a sala. Sentei ao seu lado no sofá e dei uma espiada
para o sistema de dados que Kian usava.
Parecia uma plataforma com informações bancárias e
transações.
— Aqui — falei, levantando o prato.
Ele colocou o notebook sobre a mesinha de centro e tentei não
manter meus olhos ali muito tempo, preferindo observar Kian.
Comecei a comer o meu sanduíche, mas parei de mastigar quando
vi Kian tirando a casca do pão.
— Tá brincando comigo… — falei, entre uma risada. — Céus,
você é uma criancinha mimada!
Ele me olhou de soslaio, dando de ombros.
— Não gosto de comer casca de pão. Minha mãe, Stephany,
sempre as tirava para mim.
Engoli o conteúdo em minha boca com um pouco de dificuldade.
Ainda era surpreendente o carinho com que ele tratava a madrasta.
Kian relaxou contra o sofá, me observando de uma maneira
curiosa.
— O que foi? — perguntei, limpando o canto dos lábios com o
polegar e depois lambendo a geleia ali.
— Quem é você, Ayla Brown? — ele perguntou de uma forma
tranquila.
Arqueei as sobrancelhas.
— Por que está perguntando isso agora?
Ele sorriu, mordendo o resto do seu lanche e colocando o prato
ao lado do notebook. Eu mal tinha chegado na metade do meu
lanche.
— Porque toda vez que olho para você, tenho muitas perguntas
rondando minha cabeça.
— O sentimento é recíproco — confessei, o fazendo sorrir.
— Você chega em Kardama no início de um ano letivo, se mete
nos meus negócios e depois na minha vida. E eu não sei
absolutamente nada sobre você além do que deixa claro.
— E o que eu deixo claro?
— Que é ambiciosa e muito determinada.
Mordi mais um pouco do pão, ganhando tempo.
— Você não fez um dossiê sobre mim? — perguntei, juntando
meu prato ao dele.
Encostei-me no sofá e Kian escovou meus cabelos para trás,
delicadamente, concentrado em meu rosto. Tentei me manter calma.
— Estive preocupado com os negócios nos últimos meses e a
porra dos Cavaleiros. Meus homens não estão à disposição para
produzir uma ficha de alguém que não é um alvo.
Estremeci, desviando dos seus olhos e lembrando-me daquele
nome. Cavaleiros. Era algo que eu tinha ouvido naquela noite, nos
túneis. Desviei dos olhos de Kian por alguns segundos. As
memórias que eu tanto tinha lutado para bloquear dos meus
pensamentos, voltando com tudo.
— Aquele homem… no dia dos túneis — falei, sentindo um mal
estar súbito me atingir em cheio. — Ele fazia parte desses
Cavaleiros, não é?
Kian não respondeu, então, o encarei. Ele me olhava com certo
receio e me assustei quando ele tocou meu ombro.
— Ele não é uma boa pessoa, Ayla. O filho da mãe enviou
Margot para o hospital de maneira brutal.
Assenti, com os olhos presos aos seus. E você fez a mesma
coisa com o homem. Não falei meus pensamentos em voz alta, mas
Kian pareceu lê-los em meus olhos.
— Os Cavaleiros comandam o tráfico de drogas no Norte e
estão tentando conseguir parte do Sul do estado. Samael e seus
homens estão querendo ganhar espaço a todo custo. Eu preciso
manter a ordem das coisas.
Meu olhar caiu até seu peito.
— Ele morreu?
— Céus, Ayla, não… Ele foi enviado a Samael com muitos
hematomas, em aviso. Apenas isso.
— Isso é sobre… dinheiro? — perguntei, em um sopro. — Até
onde eu entendi, você possui esse esquema em Kardama e
algumas cidades ao redor, mas as drogas… O estado todo. — Eu ri,
sem graça, sentindo meus olhos levemente úmidos. — Céus, Kian.
Isso é loucura.
Ele apertou os lábios com força, como se estivesse com
inúmeros pensamentos em sua cabeça. Então, escorregou, se
aproximando. Sua mão segurou meu rosto lateralmente, fazendo
com que eu o encarasse.
— É claro que é sobre dinheiro. O dinheiro move o mundo. Só
que, para mim, é muito mais do que isso. Não concordo com como
Samael lida com as drogas e nem com as pessoas. As
imprudências, a falta de controle e as alterações nas matérias
primas. Eles são cruéis, Ayla. Muito mais do que eu consigo ser —
confessou, com a voz vacilante. — Só que dentro disso, o que mais
me importa, é a segurança das pessoas que eu me importo. É sobre
isso também. Eu faria tudo pela minha família e pelos meus amigos.
Perdi o ar por alguns segundos, apenas encarando seus olhos
vulneráveis próximos aos meus. Kian parecia uma muralha de força
naquele segundo. Quando achei que ele parecia vazio, nunca
imaginei que Kian usava essa máscara, escondendo dentro do seu
coração a solidão e todo aquele amor pelas pessoas que
importavam a ele.
— Entendeu? — ele perguntou, colocando uma mexa do meu
cabelo para trás da orelha. — Essa merda é muito grande.
— Estou vendo — soprei, fazendo-o sorrir.
Ele não se afastou, mas deslizou a mão até a minha,
entrelaçando nossos dedos e encarando o movimento.
— Não se sinta pressionada a contar sobre seu passado. Eu
não me importo com quem você foi, porque, se eu pudesse,
apagaria a maior parte do meu passado. Se você veio para
Kardama começar uma nova vida, irei entender. Apenas quero
conhecer você, agora, Ayla.
Suspirei, apertando meus dedos aos dele.
— Minha família não tem muito dinheiro. Meu pai foi corretor de
imóveis a vida toda. Minha mãe morreu de câncer quando eu tinha
nove anos — disse, atropelando os fatos, nervosamente. — Como
você sabe, eu amo minha madrasta. Apesar da sua torta de maçã
ser péssima.
Kian sorriu, e eu o acompanhei, sentindo meus olhos levemente
úmidos por estar, de fato, abrindo uma parte verdadeira da minha
vida a ele.
— Temos algo em comum, uh. Nós não temos nossas mães, e
amamos nossas madrastas.
— Sim… Parece que sim.
Kian, de repente, me puxou para o meio das suas pernas, me
fazendo ofegar. Ele esticou o braço, pegando o notebook e
colocando sobre o meu colo. Com os braços ao redor do meu corpo,
eu o vi abrir algumas pastas no notebook. Fiquei atenta a cada
detalhe, mas não entendi quando o mapa dos Estados Unidos
surgiu na tela do eletrônico. As demarcações dos estados estavam
corretas, mas havia subdivisões em cores e em alguns lugares,
símbolos.
— O que é isso? — perguntei, olhando para ele sobre o ombro.
— Como funciona o controle de drogas no país — disse,
apontando para a Califórnia, que estava dividida em duas cores:
preto e vermelho. A divisão era bem ao meio, em norte e sul — Meu
território e o de Samael.
— Caramba! — falei, nervosa. — Isso existe há muito tempo?
— O controle da distribuição?
— Sim.
— Em alguns lugares, isso é histórico. Nunca ouviu falar sobre a
University of the Kingdoms em Londres? Há um esquema
centenário entre as fraternidades do campus, entre comercialização
de drogas, jogatinas, festas e roubo de informações.
— Céus… — coloquei a mão sobre a boca, surpresa. — E na
Califórnia?
— Da maneira como está? Pouco mais de alguns anos. Antes
eram pequenos grupos, e dois ou três maiores. Após o meu pai
começar a investir neste ramo é que as coisas ficaram mais, hum,
organizadas, foi na época que o tio Israel saiu da cadeia e
conseguiu alguns contatos importantes. Nós começamos querendo
apenas um controle local e da cidade, mas expandimos o negócio
em meses.
Israel esteve preso? Me ative a informação.
— Conseguimos controlar estes pequenos grupos e hoje eles
vendem a minha mercadoria.
— Também produz drogas? — perguntei, nervosa.
— Algumas coisas, sim. Meu pai tem uma indústria química,
isso facilita as coisas.
A menção à empresa de Benjamin Wilding fez meu corpo ficar
tenso sobre o de Kian. Ele pareceu ter sentido minha mudança
súbita. Ele retirou o notebook do meu colo, colocando-o sobre o sofá
e me abraçou, beijando a curva do meu pescoço.
— Você está assustada — constatou, em um sussurro.
— Um pouco — menti, e então falei: — Seu pai é senador,
Kian…
— O esquema é muito grande, Ayla.
Apoiei minha cabeça contra ele, envolvendo meus braços nos
dele.
— Enquanto ele lida com a parte bonita e imaculada de tudo, eu
lido com a parte feia. Sempre fui motivo de vergonha para o meu
pai, e mesmo que eu lide com isso da melhor maneira, ele não se
envolve muito.
— Ele mal está aqui, mas está em cada lugar também —
murmurei, mais para mim do que ele.
A mão de Kian iniciou um carrinho gentil em meus braços, me
trazendo para mais perto.
— Tudo aqui é sobre poder, querida. A Tríade começou quando
Kardama estava à beira do colapso no meio das drogas, meu pai
achou melhor reivindicar a cidade. Tornou-se prefeito, aliou-se à
procuradora da época, Grace Lopez e a Hunter Müller, que
historicamente ajudou a construir a cidade em sua estrutura.
— Wilding, Lopez e Müller — soprei, encarando o tecido da
camiseta em seu peito e sem coragem de olhar em seus olhos.
Kian maneou a cabeça positivamente.
— Exato. Os túneis sempre foram uma forma segura de
conversar, e a antiga propriedade da minha família estava onde
agora é a Seven. Cada família possui seu túnel.
Levantei o rosto para olhar em seus olhos.
— Os túneis levam sempre ao mesmo lugar?
Ele negou.
— Eles estão sob a cidade toda. Nós controlamos o lugar de
diversas maneiras.
Me apertei contra ele, ignorando a forma despedaçada como
meu coração parecia ficar todas as vezes que Kian falava sobre o
pai. Aquele relacionamento parecia cheio de feridas ainda abertas,
sangrando e machucando.
— Sou uma fodida bagunça, querida.
Virei meu rosto, beijando sua bochecha e soprando contra sua
pele:
— Pelo visto, temos mais coisas em comum do que
imaginamos.
Eu estava gostando de ser a garota de Kian Wilding. Era
absurdo como essa informação soava, e como eu estava
claramente me enganando.
Durante a quinta e sexta-feira, eu me mantive no apartamento
dos Yang, mas Kian parecia decidido a não me deixar muito tempo
longe. Quinta-feira ele me surpreendeu, aparecendo no campus, na
cafeteria onde normalmente eu fazia meus trabalhos online e me
tirou de lá para um passeio pelas rodovias ao redor de Kardama.
Um pretexto para que nós tivéssemos alguns momentos sozinhos
no banco de trás do seu carro, com absoluta certeza.
Na sexta-feira, como de costume, fui até a boate para averiguar
os preparativos da festa de Sábado. Kian tentou me arrastar para o
seu escritório, mas fui firme e trabalhei boa parte da tarde dentro da
Seven, e sob seu olhar irritado. Naquela noite, Kian me buscou para
um jantar no restaurante que havíamos ido no Soho, e depois me
levou para o seu apartamento, onde permaneci até a hora da festa
com temática da Noite dos Mortos.
Yue já tinha me perguntado algumas vezes sobre quem era a
pessoa com quem eu estava me encontrando, e burlei seus
questionamentos o máximo que consegui. Principalmente quando o
Yang mais velho estava no mesmo lugar. Tomei cuidado para não
pegar carona com Kian nos momentos que Tai estava em por lá.
Estava, claramente, fugindo dos questionamentos morais dele, e,
secretamente, dos meus também. E claro, havia a ameaça que ele
tinha feito. Se Tai soubesse da minha aproximação com Kian, eu
teria que encontrar um novo lar.
Tudo estava a um fio de se perder, mas ignorava aquilo de uma
forma esplêndida.
Prova daquilo era onde eu estava, e com quem estava.
Kian e eu observamos a festa do seu escritório, com taças
repletas de champagne nas mãos e olhares atentos ao público.
— Precisamos contar a Olivia e Hugo — Kian murmurou,
olhando-me de soslaio. — Eles estão no meu pé porque desapareci
durante essa semana.
Beberiquei a bebida gelada e sorri.
— Devo me desculpar com os dois por ocupar demais o seu
tempo?
Kian apenas sorriu de lado, entornando o copo e depois
enchendo-o mais uma vez. Enquanto isso, meus olhos identificaram
o casal no meio da multidão.
Notei os dedos de Kian passeando pela minha cintura quando
se pôs atrás de mim. Estremeci quando ele desceu os lábios até
meu pescoço, inalando o aroma ali, e depois os lábios brincando no
lóbulo da minha orelha.
— Parece que você não consegue manter as mãos longe de
mim por muito tempo, uh — murmurei, vendo meu reflexo sorridente
no vidro.
Kian sorriu contra a minha pele e me puxou contra si, me
fazendo ofegar. Eu sabia que ninguém conseguia nos ver lá de
baixo, mas ver aquele monte de pessoas me deixou inquieta.
— Kian…
— Ninguém está nos vendo — ele disse, com os dentes em
minha pele.
Vagarosamente seus dedos acariciam a minha cintura,
movendo-se para a parte de trás do vestido e brincando com o
zíper.
— Gosto de como esse vestido fica em você — ele confessou,
com a voz levemente mais grave.
— Foi você que pagou — o lembrei, já que eu pretendia ir para
casa me arrumar e ele ligou para Stephany e pediu que ela enviasse
para o apartamento algo para eu vestir só para não sairmos de lá.
— Estou louco para rasgá-lo.
Mordi o lábio inferior, escondendo um sorriso. Girei no eixo,
parando de frente para ele.
— Você é insaciável, Wilding.
Ele molhou os lábios com a língua e nos puxou, até que seu
quadril batesse na ponta do sofá.
— Não finja que você não gosta disso, Ayla.
Céus, eu gostava mesmo de como ele falava o meu nome.
Principalmente quando estava dentro de mim.
O pensamento me fez apertar as coxas.
No que Kian WIlding estava me transformando?
Era só Kian fazer um mínimo movimento e, de repente, minha
pele queimava em desejo. Isso nunca aconteceu comigo. Por Deus.
— Precisamos de outras atividades além de transar igual dois
animais — proferi, entre um gemido, quando Kian subiu a mão pela
parte lateral da minha coxa, levantando o vestido.
— Estamos curtindo o início de algo juntos. Nunca namorei ou
algo do tipo, mas é normal, não é? Querer transar a qualquer
minuto.
— Um pouco… — confessei, e, então, Kian me olhou, sério.
— Já teve outros namorados?
— Uh, hum…. Sim. Dois.
Eu nunca gostei de homens possessivos ou autoritários, e muito
menos de demonstrações de ciúmes. Mas algo que queimava no
corpo de Kian me chamou atenção.
Definitivamente, era sobre poder. O poder dele saber que eu era
sua o deixava sordidamente incrível.
— Nenhum em Kardama? — perguntou, com a voz levemente
afetada.
Deixei minha taça sobre a mesa, ao lado do seu corpo, e me
inclinei contra ele.
— Apenas um momento divertido com Trenton.
Como se eu tivesse lhe dito algo terrível, Kian levantou-se e
antes que eu pudesse pensar muito, ele estava me pressionando
contra o vidro do seu escritório. Ele tinha um sorriso maldoso nos
lábios, enquanto me mantinha dentro do seu aperto, entre seu corpo
e a parede.
— Você nunca teve medo de mim, não é? Beijou aquele filho da
puta com os olhos cravados em mim na porra daquela festa.
— Não era sobre você — menti, fazendo-o sorrir mais ainda.
Não gostei da forma arrogante como Kian sorria, porque, afinal,
eu sabia que não adiantava bater de frente sobre aquilo. Era óbvio
que era sobre ele. A forma como meu corpo queimou por Kian
naquela noite ao ouvi-lo com Pietra…
Decidida a não me dar por vencida, tentei virar o jogo. Minha
mão deslizou para entre nós, encontrando o zíper da calça jeans
preta. Kian enrijeceu a postura no mesmo instante, apoiando uma
mão ao lado da minha cabeça e outra na minha cintura, como se
pudesse me conter.
— Não vai confessar? — ele perguntou, com o tom levemente
irritado.
— O quê, exatamente? — Minha mão acariciou sua ereção dura
sobre o jeans, para cima e para baixo.
Ele grunhiu quando apertei de leve, pressionando mais ainda o
corpo no meu.
— Estava, até agora, falando sobre nós fazermos algo diferente
de sexo e agora está aqui me tirando a sanidade. O que diabos eu
vou fazer com você?
Nem eu sabia porque estava fazendo aquilo. Eu queria outras
coisas com Kian, mas o poder do seu corpo sobre o meu parecia
sobrenatural. Nunca me considerei uma pessoa que amasse sexo,
apesar de gostar. Só que com Kian... parecia certo. Urgente.
Como se eu precisasse de tudo antes que acabasse. De
maneira desesperada.
— Acho que você está me envenenando também, afinal de
contas. Seu efeito sobre mim nubla meu lado racional — provoquei,
o apertando de novo.
Kian apertou os lábios, provavelmente excitado demais para dar
atenção a minha frase.
— Não me provoque assim se não quer que eu faça algo, Ayla.
— Uh, é mesmo?
Observei suas pupilas dilatando e a forma como seu corpo
gloriosamente parecia ganhar alguns centímetros quando estava
irritado. A veia do seu pescoço ficou evidente a voz ganhou um tom
mais obscuro.
— Eu não deveria confessar isso, mas… às vezes... — comecei
a falar, focando meus olhos em seus lábios e percebendo o quão
fundo eu estava me afogando nele. — Eu gosto quando você está a
um passo de perder o controle comigo.
Kian soprou o ar em uma rajada forte o suficiente para bagunçar
alguns fios dos meus cabelos. Levantei meu rosto e encontrei seus
olhos flamejantes me encarando, e as narinas levemente dilatadas.
— Até onde eu me lembro, quando estou desta forma em
relação a você, posso parecer furioso.
— Eu gosto quando você está furioso comigo.
Aproximei meu rosto do seu, roçando os lábios nos dele.
— Essa é a diferença, mon couer. Você fica furioso comigo e
não é insano, sem controle sobre seus atos. Gosto desta maneira.
— Seja mais específica — pediu.
Segurei em seu pulso e trazendo sua mão para a parte da frente
do meu pescoço
— Gosto quando você dita ordens e quando me segura com
força.
Minhas bochechas estavam quentes e meu coração batendo
forte quando Kian apertou os dedos na minha garganta, sorrindo
antes de descer os lábios até os meus.
Kian sabia a intensidade exata do beijo para me deixar com as
pernas moles. Tinha vontade de rir da sua urgência, como se nós
não tivéssemos transado naquela manhã. Não teve nada de gentil
na forma como ele segurou a minha nuca e me pressionou contra si,
esfregando seu corpo no meu. Um gemido baixo escapou dos lábios
dele, fazendo meu interior contrair em expectativa.
Me surpreendi quando Kian me girou, colocando-me sobre a
mesa do seu escritório. Seus lábios desceram pelo meu pescoço
então ele, deliberadamente, correu as mãos grandes pelo meu
corpo ansioso. Tentei circular seu corpo com as pernas e trazê-lo
para mim, mas Kian segurou minhas pernas e as afastou, soltando
os lábios da minha pele.
Um choque de excitação concentrou-se no meio das minhas
pernas quando vi Kian ajoelhar-se entre as minhas pernas. Mordi
um sorriso vitorioso com aquela cena.
— Não é todo dia que vemos um pecador ajoelhado — zombei,
ciente da minha posição. Totalmente exposta.
Kian levantou os olhos ladinos para mim. Suas mãos seguraram
meus joelhos por trás, e, gentilmente, ele os colocou sobre os
ombros. Estremeci com a proximidade do meu centro.
— Você tem razão — murmurou, o tom um pouco mais afiado
do que antes.
Suas mãos foram até a barra do vestido e ele empurrou a saia
para cima. O mínimo contato dos seus dedos em minha pele
deixaram cada parte do meu corpo arrepiado. Apertei as mãos na
borda da mesa escura, com a respiração entrecortada.
Kian amontoou o tecido em meu quadril. Seus dedos dançaram
sobre o tecido da calcinha e eu movi o quadril em reflexo.
— Quieta, Ayla! — ele rosnou, com os olhos fixos no meu rosto.
Engoli em seco e virei o rosto para trás quando ouvi um barulho
no corredor. A porta havia sido apenas encostada e qualquer um
podia entrar ali. Era excitante e, ao mesmo tempo, aterrorizante.
Minha atenção voltou para o homem de joelhos em minha frente
quando seu indicador traçou a costura da calcinha, na altura da
virilha.
— Do que você me chamou mesmo, naquela nossa
inesquecível discussão na fraternidade?
— Diabo — respondi, sem necessidade de me alongar, já que
ele estava me tocando sob a calcinha apenas por um breve contato.
Kian estava me testando. Seus lábios rasgando um sorriso sujo
enquanto me tinha sobre sua mesa em pura necessidade. Ele
afastou o tecido do meu centro úmido, enviando um arrepio por todo
meu corpo quando riu baixo, daquela maneira sagaz que só ele
fazia.
— Então, o maior pecador de todos está de joelhos em sua
frente. Isso soa como um acordo com o diabo.
— Já te disse. Eu sempre preferi o inferno — interrompi,
engolindo em seco. — Você vai ficar falando ou vai fazer algo sobre
o que está demorando para começar? Não é educado deixar uma
garota esperando.
Enquanto ele se aproximou do meio das minhas pernas e
segurou minhas coxas abertas, pude ouvi-lo praguejar:
— Boca suja, insolente.
Lutei contra o desejo de fechar os olhos quando Kian levou sua
boca até a minha boceta úmida. Eu precisava vê-lo. Saber que ele
era real.
O filho da mãe apenas pincelou sua língua ali, me deixando
frustrada com o movimento sutil. Então, um grito escapou dos meus
lábios quando dois dos seus dedos me invadiram. Ele me distraiu e
depois me pegou desprevenida, e, porra, eu amei aquilo.
Amava a forma como ele sabia usar a sua boca, a língua e até
mesmo os dentes. E seus dedos fazendo mágica ao me foderem
com força, senti seus dedos marcando meu quadril enquanto me
puxava contra a sua boca.
Ele era muito bom nisso.
Meu corpo estava queimando e meus olhos pesados, enquanto
sentia os tremores subirem pela minha espinha. Não acreditava que
estava recebendo sexo oral de Kian Wilding sobre a mesa de seu
escritório, com a Seven cheia.
Soltei a mesa e puxei seus cabelos, forçando-o em mim quando
ele colocou um terceiro dedo em mim, me levando ao orgasmo
depressa.
— Caralho! — disse, sentindo minha pele arrepiar.
Meu corpo estremeceu e Kian lambeu cada resquício do meu
orgasmo antes de levantar e sorrir de uma maneira totalmente suja.
Eu estava ofegante, buscando por ar, e Kian abaixou minha saia,
plantando um beijo nos meus lábios depois.
— Na próxima vez, vou te foder contra o vidro.
Minhas bochechas ficaram quentes.
— Por que não faz isso agora? — perguntei, com a mão trêmula
indo até o cós da sua calça de novo.
Kian pareceu gostar da sugestão, mas algo chamou sua
atenção. Um pequeno sensor vermelho apitou ao lado da sua mesa,
e os olhos dele foram para a porta. Em poucos segundos, Israel
apareceu ali.
Havia um sensor de presença no corredor? Desde quando?
No entanto, não consegui me concentrar nisso. Apenas nos
olhos de Israel, que demonstravam pavor.
— Encontramos um garoto tentando drogar algumas bebidas no
depósito.
Kian arqueou as sobrancelhas.
— Alguém invadiu o meu depósito?
Israel segurou a maçaneta da porta com força e seu maxilar
ficou duro.
— É pior que isso, Kian. Ele tem a tatuagem dos Cavaleiros.
Meu estômago pareceu cair com aquela informação. Eles
estavam aqui. Dentro da boate. Kian trocou um olhar assustado
comigo. Pela primeira vez, eu vi o medo em seus olhos.
Ele voltou a olhar para Israel.
— O coloque no carro e vamos levá-lo para longe daqui. Não
podemos usar a entrada da Seven para os túneis.
— Certo — o tio respondeu, enquanto eu pulava da mesa e
pegava minha jaqueta.
Kian segurou em minha mão e saímos da sua sala, a qual ele
trancou com uma fechadura com senha - algo novo por ali -, e
seguimos até os fundos da boate. Era um beco escuro e úmido.
Havia dois carros e uma van ali. Eu não vi o homem que foi pego,
mas ouvi grunhidos vindo do camburão da van. Ele parecia querer
fugir.
Meu corpo estremeceu por reconhecer o que estava prestes a
acontecer.
Aquilo era uma invasão territorial e Kian não trataria isso sem
sangue. Ele mataria o homem?
Kian caminhou na direção do primeiro carro e abriu a porta,
antes que eu entrasse, ele colocou algo em minha mão e depois me
virou para ele.
— Vá para o apartamento e fique lá.
Arregalei os olhos, tentando compreender o que ele falava.
— Estarei com você — falei, mesmo com medo.
Kian negou com a cabeça.
— Ayla…
— Eu posso aguentar.
— Vamos torturá-lo — ele explicou, me fazendo congelar.
Fiquei quieta, olhando em seus olhos e buscando pela fúria do
dia em que me levou até os túneis. Não havia descontrole ali. Ele
estava sério, agarrado ao controle. Se quando ele estava furioso,
batia daquela maneira, o que poderia significar a frieza daquele
instante?
— Preciso que fique segura… não sei quantos homens estão
na cidade…
— Eu vou com você — repeti.
— Não, Ayla. — Kian virou o rosto para Israel. — Leve-a para o
apartamento.
— O que você vai fazer? — perguntei, segurando em seu braço.
Ele me olhou por alguns segundos e, antes de sair dali, disse:
— Proteger a todos nós.

Eu ainda conseguia sentir o nervosismo em cada parte do meu


corpo a cada minuto sozinha naquele apartamento. Caminhei em
círculos por muito tempo até decidir tomar um banho para passar o
tempo e tentar me acalmar. Eu até mesmo tentei vasculhar as
gavetas das mesas de cabeceira de Kian atrás de algo, e além de
encontrar uma caixa de fotos de sua falecida mãe, encontrei apenas
um sentimento ruim crescendo em meu peito: o da culpa.
Senti culpa por estar procurando por algo dentro da sua casa.
Me senti culpada por traí-lo.
Céus, eu era patética!
Saí do banheiro e encarei minhas roupas sobre a cama. Meus
olhos encheram-se de lágrimas de medo. O que Kian estava
fazendo?
Torturá-lo.
Coloquei as mãos sobre a boca, reprimindo meu choro o
máximo que consegui. Não durou muito, meu corpo colapsou e caí
de joelhos no quarto, sentindo meu corpo fraco.
Kian estava torturando uma pessoa.
Machucando-a.
Apertei minhas pálpebras com força, como se ver aquele lugar
me deixasse mais próxima da verdade. Kian podia ser um monstro
quando desejasse. Senti o focinho de Luci em meu braço e abri
meus olhos, vendo o cachorro apoiar a cabeça em minhas pernas
dobradas.
Acariciei o animal, ainda presa naquele sentimento angustiante.
Eu parecia sufocada de tantas coisas. Ou melhor, perdida. Estava
ignorando o motivo de ter ido até Kardama por uma atração lasciva
pelo filho do meu maior inimigo.
Estava me tornando fraca.
Kian estava me tornando fraca.
A constatação me assustou.
Ele me tornava fraca e me colocava em uma posição onde eu
julgava a minha índole. Estava sob o teto de um traficante, que
agora estava machucando outra pessoa.
Mordi o lábio inferior e voltei a fechar os olhos, lembrando-me
do motivo de estar ali. Minha mãe. Era ela, sempre foi. Benjamin
Wilding a envenenou, anos atrás, nem prestou auxílio a minha
família… E foda-se, não queria que meu pai tivesse aceitado de
qualquer modo. Era dinheiro sujo.
O dinheiro sujo que eu estava usufruindo enquanto estava com
Kian.
O ar me faltou, precisei buscá-lo pelos lábios, em uma
respiração desesperada. Limpei o rosto com as mãos úmidas e
trêmulas, me colocando em pé.
— Eu preciso sair daqui — soprei para mim mesma.
Eu precisava sair de perto de Kian. De Kardama. De tudo.
Apenas por algumas horas ou dias, até colocar tudo nos eixos.
Uma fuga no meio da madrugada não parecia inteligente enquanto
não sabia o que estava acontecendo pelas ruas da cidade, mas ficar
sob o teto de Kian seria seguro?
Ele disse que me protegeria, mas estar ao seu lado era ter um
alvo sobre as costas. Benjamin e os tais Cavaleiros apontariam para
mim. E Kian era o veneno que nublava meu foco.
Corra, Ayla.
Vesti minhas roupas o mais depressa possível, enquanto Luci
me observava em confusão. Engolindo meu choro, entrei no closet
de Kian e escolhi uma jaqueta. Eu deixaria seu cartão na recepção e
correria até meu bairro, enfiaria algumas peças de roupas na
mochila e partiria de Kardama por algum tempo. Com os
pagamentos generosos de Kian, por conta do serviço para a Seven,
eu poderia ficar em exílio.
Saí do seu quarto, decidida a fugir. Meus pés, no entanto,
grudaram-se ao chão quando cheguei na sala e Kian estava parado
perto da porta.
Coberto de sangue.
Engoli em seco, observando-o. Ele tinha o olhar perdido, vazio,
no chão. Seus braços estavam jogados ao lado do corpo, e havia
sangue por toda extensão de pele que a camisa preta não cobria.
— Kian?
Ele não respondeu e nem se moveu. Me aproximei em dois
passos, mas parei de novo.
— Você está me assustando — soprei, sentindo meus lábios
tremerem.
Eu podia ver que sua camiseta estava úmida pela forma como
grudava na pele. Aquilo também era sangue?
Finalmente, ele virou o rosto para mim. E não me mediu, como
sempre fazia. Apenas me olhou, com um vazio grande em sua alma.
Ficamos nos encarando por minutos angustiantes, até que
percebi os espasmos em seu corpo. Desta vez, eu o medi de cima
para baixo. Ele estava apertando a chave do carro contra a palma
da mão direita. Os nós dos dedos estavam brancos.
Kian parecia em choque.
— O que aconteceu?
Ele respirou profundamente, piscando algumas vezes e desviou
os olhos dos meus, parecendo acordar de onde quer que estivesse.
Senti meu rosto molhado com lágrimas que escapavam pelos meus
olhos.
Há minutos atrás, estava com medo e assustada, e, no
momento, vendo Kian de tal forma, meu coração se partiu.
— Tudo está sob controle — disse, de uma forma mecânica,
quase como se tivesse repetindo isso apenas para si.
O que quer que tivesse acontecido naquela noite, pareceu ter
matado um pouco mais de Kian. Ou lembrado a ele do quão
humano podia ser.
Aquela constatação me deixou sem chão e, mesmo chorando,
dei mais alguns passos em sua direção, parando em sua frente. Em
silêncio, engolindo os soluços, segurei em sua mão e soltei os
dedos do aperto nas chaves.
Sua pele estava machucada na palma por conta da pressão, e o
cheiro de sangue era forte.
— Me deixa cuidar de você — eu disse, fungando.
Kian não hesitou quando segurei em sua mão e caminhei até o
banheiro. Entrei no box com Kian, mesmo de roupas. Abri o
chuveiro. O jato de água caiu sobre a sua cabeça, lavando o sangue
dele e encharcando o chão de vermelho. Uma piscina rubi estava
sob nossos pés.
Fiquei encarando meus pés afogados naquilo. Tomei um susto
quando as mãos frias de Kian seguraram em meus braços. Busquei
pelos seus olhos, mas Kian estava com os seus fechados. Por
algum motivo estranho, eu agradeci isso. Não queria que ele visse a
bagunça e a quantidade de sentimentos estampados no meu rosto.
Kian me puxou para si, envolvendo os braços de forma apertada
em mim. Seus lábios encostaram no topo da minha cabeça e o som
do seu coração martelava em minha orelha, lembrando-me que ele
era humano. Feito de carne e osso.
E medo.
— Não vá embora agora. Ainda não, por favor.
Eu não sabia como responder aquilo. Havia tanta coisa entre
nós e, ao mesmo tempo, parecia que nenhum obstáculo era mais
forte do que a maneira como meu coração estava batendo por Kian
Wilding.
Ele se apertou contra mim, como se eu fosse sua tábua de
salvação. Meu corpo tremia e o dele também.
— Faça o que quiser comigo, mas, por favor, fique aqui.
Foi o que eu fiz, até Kian estar limpo do sangue e me levar para
a cama.
Minhas pálpebras estavam pesadas quando despertei. Mantive
meus olhos fechados enquanto senti o toque de Kian em minha
coluna, subindo e descendo. O seu cheiro me fez lembrar da
necessidade de fuga que tive ontem, antes de colocar meus olhos
nele, mudando mais uma vez todos os meus planos.
Aquele pensamento me fez abrir os olhos e encarar a janela,
fazendo-me lidar com a realidade. Eu tinha certeza que Kian sabia
que eu estava acordada, principalmente, pelo modo como eu estava
respirando, mas não me movi e ele não parou de me tocar.
Em algum lugar do quarto, o telefone de Kian tocou. Ele não fez
menção de buscá-lo, mas, assim que o toque cessou, girei meu
corpo e encontrei seu olhar. Novamente, ele estava daquela
maneira vulnerável, como se fosse uma ferida aberta e sangrando.
Sua mão repousou na base da minha coluna, toquei seu peito
nu. Ele vestia apenas uma cueca e eu uma de suas camisetas e
calcinha. Meus dedos traçaram o contorno da sua tatuagem do
peito, a árvore de tronco grosso e torto, com inúmeros ramos e
folhas.
— O que significa?
Seu polegar se arrastou em minha pele, em um carinho sutil.
— É uma árvore da vida — ele disse, com a voz rouca.
Meus dedos deslizaram pelo contorno preto, e eu estava
evitando seus olhos a todo custo.
— E por que você tem uma caveira nas costas?
Pude ouvir seu sorriso.
— Não é uma caveira, é Catrina. É uma das personagens mais
emblemática da noite dos mortos no México. Ela mostra como a
nossa vida é transitória…
Sorri de maneira triste.
— Então, você anda com a vida e a morte em seu corpo. Como
uma moeda, com dois lados.
Kian moveu as mãos para os meus braços
— E as suas? Me conte sobre elas.
Encarei o lugar para qual ele apontava. As serpentes enroladas
nos meus braços.
— Coragem, força vital, renovação e renascimento — falei,
reproduzindo o mesmo discurso que falei para meu pai quando eu
as fiz.
— Quando tatuou?
— Assim que cheguei nos Estados Unidos, renasci fora do
Canadá. Era uma nova eu e eu precisava marcar o momento.
Kian continuou movendo seus dedos sobre meus braços e não
perguntou o significado das outras que eu tinha espalhadas pelos
braços, agradeci por isso. Algumas não tinham um significado,
apenas foram feitas em momento de puro tédio. A luz do sol
adentrava o quarto em feixes, iluminando o ambiente com o tom
amarelo alaranjado. A cortina grossa estava meio aberta, permitindo
tal feito.
Deixei meus olhos correrem pelo corpo de Kian e depois
procurei pelos seus. Pela primeira vez, vi suas írises sobre a luz do
nascer do sol, notando os pequenos pontos verdes perdidos no
castanho escuro.
Ficamos em um silêncio agradável, até que movi minhas mãos
por seus braços, em rumo às suas costas. Kian enrijeceu a postura
quando meus dedos tocaram uma das cicatrizes.
— Me conte sobre as suas, que eu te contarei sobre as minhas
— falei, em um sussurro.
— Ayla… — ele disse com aquele tom que costumava me dar
um aviso, mas mantive minha mão ali, demonstrando que eu
gostaria de ouvi-lo.
— Quem tem cicatrizes, tem batalhas em sua história — proferi,
mas ele apenas bufou e negou com a cabeça.
Vi que não cederia se eu não desse o primeiro passo, então, eu
disse:
— Fui a última pessoa a segurar a mão de minha mãe. No dia
em que ela morreu, tinha seus olhos nos meus e a mão firme a
minha — confessei, sentindo minha garganta apertar-se. — A dor
esteve aqui por tanto tempo… Eu era apenas uma criança vivendo o
luto.
Senti meus olhos umedecerem. Kian segurou meu rosto e seus
polegares afastaram as lágrimas que brotaram ali.
— Em uma noite, fugi de casa e roubei o carro do meu pai.
Dirigi até o estábulo que costumava ser seu e estava decidida a
montar em seu cavalo para ver se conseguia senti-la. Meu pai
estava vendendo a nossa fazenda e eu não concordava com aquilo.
Meu peito apertou-se com a memória.
— Chegando no lugar e, no meio da noite, a égua de mamãe
não me reconheceu e veio contra mim — eu disse, segurando sua
mão e levanto até minha nuca, onde tinha uma pequena cicatriz. —
Eu caí e me machuquei feio. Naquele dia, eu decidi que precisava
parar de chorar de tristeza. Precisava sorrir pelas memórias felizes,
e, eventualmente, chorar por não a ter aqui.
Kian reconheceu a elevação na pele. Havia cinco pontos ali.
Kian puxou o ar, lentamente, embrenhando os fios de cabelo entre
os dedos e me puxou para perto, fazendo meu rosto encaixar na
curva do seu pescoço. Ele ficou agarrado em mim por algum tempo,
e pude ver que tentou normalizar a respiração, que se tornou
frenética. Minhas mãos apertaram-se em sua pele, aumentando o
nosso contato.
— Benjamin — ele falou, com a voz mais firme do que antes. —
Ele costumava me bater com a fivela do cinto.
Fechei meus olhos, absorvendo o impacto daquela informação.
— Depois que minha mãe morreu, as coisas perderam o
controle para nós dois, acho que, de alguma forma, no fundo, ele
me culpa pelo o que houve — Voltei a encará-lo, vendo certa dor ali.
— Ela morreu num acidente, e eu tinha dois anos na época, estava
no carro com ela. Ele não tinha jeito nenhum pra cuidar de uma
criança. Eventualmente, me tornei mais difícil de se lidar, e, depois,
um adolescente pior ainda. Benjamin sempre quis controlar a todos
e acreditava que, desta maneira, eu cederia às suas ordens…
Estremeci, lembrando-me do rosto do infeliz. Céus, eu o odiava.
— É claro que não resolveu. Vivíamos em uma guerra dentro de
casa, até Stephany chegar, eu tinha uns oito anos, mesmo assim
me tornei ainda mais difícil. Adolescência já não é uma fase fácil,
tendo Benjamin como pai, é ainda pior. — Um suspiro escapou de
seus lábios, como se ele estivesse mergulhando em memórias
demais ao me falar tudo aquilo. — As coisas ficaram um pouco
amenas quando Stephany ficou grávida de Charles, e ele descobriu
uma fraqueza. E depois resolveu que me dar alguma
responsabilidade seria a melhor solução. Quando Israel voltou a
Kardama, as coisas pareceram se alinhar para o meu pai. Eu e meu
tio lidávamos com a parte feia e ele poderia finalmente fazer o que
queria: concorrer ao senado. — ele riu sem graça. — Um cargo
político maior para o seu próprio ego. E foi quando ele se deu conta
das minhas fraquezas…
Afastei meu rosto minimamente, buscando pelos seus olhos.
— Como assim?
— Ele tem ameaçado levar os garotos e Steph para Boston —
falou, com o queixo trêmulo. — Benjamin me tem nas mãos. Não
sou nada sem a minha família. Eu não tenho nada além disso, Ayla.
E ele pode me tirar tudo.
Perdi o ar por alguns segundos, sentindo um misto de revolta e
tristeza. O rosto de Kian parecia tão cansado… Como se ele
estivesse em seu limite de forças para lutar.
— Existe tanta escuridão aqui — ele disse as palavras como se
pudesse me afastar, mesmo sem querer me perder.
Segurei seu rosto, aproximando minha boca da sua.
— Então eu serei a luz no meio disso, Kian. Eu estarei
segurando sua mão nesse caminho sem luz, te trazendo para a
superfície de novo e de novo. Só, por favor, eu não posso fazer isso
sozinha. Você precisa confiar em mim para que eu possa te ajudar.
Ele recuou alguns centímetros, balançando a cabeça para os
lados, como se estivesse descrente daquilo. Lembrei-me do que
Olivia me avisou certa vez. Kian não tinha alguém para lutar por ele.
E, por Deus, naquele minuto, eu senti que poderia lutar uma batalha
com Benjamin Wilding ou qualquer fodido Cavaleiro para vê-lo feliz.
Fiquei ansiosa, sentindo o coração bater mais forte quando a
dimensão dos meus sentimentos por ele ficou clara para mim.
Eu estava me apaixonando por Kian Wilding.
Os nós dos seus dedos alisaram a lateral do meu rosto em um
carinho sutil. Estava hipnotizada pela forma paciente e delicada que
Kian me analisava e tocava. Como se toda tensão de ontem tivesse
morrido. Ali, ele não parecia o homem cruel e frio que vivia da porta
do apartamento para fora. Era apenas um garoto que precisava ser
amado.
— Ontem, depois de sair dos túneis, eu não lembro de nada.
Não sei como cheguei ao apartamento. É tudo um borrão confuso
com sangue, trevas e, então, você estava aqui, segurando em
minha mão. Me trazendo do fundo.
Algo brilhou em seus olhos quando continuou:
— Você é uma benção por me fazer sentir algo bom. Me tira da
minha própria escuridão e acalma os monstros que vivem dentro de
mim. E tem horas que eu acho que você é uma maldição, Ayla.
Você se tornou tudo o que eu preciso, mais uma maldita fraqueza
para a minha vida.
Kian desceu os olhos pelo meu rosto, como se estivesse
buscando por algo. Esperei que ele visse todo meu sentimento
estampado em cada expressão do meu rosto, porque eu queria que
ele visse que lutaria por ele em todas as suas batalhas.
Ele soltou um suspiro longo e encostou a testa na minha.
— Me diz que escolhe ficar, Ayla. Porque eu invadiria o inferno
por você.
Respondi a ele, selando nossos lábios nos segundos seguintes.
Eu não deveria me envolver daquela forma. Mas eu já havia
caído para dentro da escuridão de Kian Wilding. Agora, precisaria
me levantar e tirá-lo de lá comigo.
Kian estava no chuveiro quando saí do quarto e resolvi preparar
algo para o nosso café da manhã. Luci me saldou com um latido alto
na sala e me acompanhou até a cozinha. Eu tinha alguma
habilidade na cozinha e pretendia preparar algumas panquecas para
servir com geleia de amoras, então, retirei dos armários a farinha, e
antes que pudesse encontrar o fermento, o som da campainha da
casa soou alto.
Levantei minhas sobrancelhas e encarei Luci, que estava
sentado preguiçosamente sobre as patas no meio da cozinha. Ele
levantou as orelhas e olhou na direção da porta, como se também
estivesse estranhando.
Franzi o cenho e olhei para as minhas vestes: roupas de Kian.
Eu possivelmente não deveria atender a porta daquela maneira,
mas a pessoa do outro lado da porta parecia insistente. Para a
minha sorte, Kian surgiu vindo do corredor, vestindo uma calça de
moletom e passando uma camiseta branca pelo corpo.
— Mas que diabos… — ele proferiu baixo, sem me olhar e indo
até a porta.
Estiquei meu corpo pelo vão do passa-pratos e observei Kian
abrir um pequeno espaço da porta.
— Porra.
— Esses são seus modos, Kian Wilding? — era Stephany.
Arregalei os olhos e segurei na barra da camisa de Kian, que
batia na metade das minhas coxas, e a puxei para baixo, ouvindo-a
entrar dentro do apartamento. No entanto, haviam mais passos, e
assim que os rostos surgiram em meu campo de visão, vi que eram
Charles e Bryan. Me grudei no passa-pratos, para que eles não
vissem minhas pernas do outro lado.
— Bom dia — proferi em um tom sussurrado, enquanto meu
rosto aquecia.
Stephany finalmente me viu, e sua expressão de reprovação
com o enteado transformou-se na luz da manhã. Ela sorriu
largamente para mim, como se tivesse visto um passarinho azul. Ri
mentalmente, estava absorvendo o apelido que Israel havia me
dado.
— Ayla? Oh, oh…
— Como vocês podem ver, estou com visita… — Kian disse a
todos. — Ontem aconteceram algumas coisas na Seven e perdi a
noção de tudo. Me perdoem.
— Essa é a namorada do Kian, mamãe — explicou Bryan, o
mais novo. — Ela estava na festa.
— O Kian já disse que ele não tem namorada, moleque —
Charles falou, batendo na nuca do mais novo.
Stephany cutucou o filho mais velho.
— Charles, os modos! — ela grunhiu, mas logo seus olhos
voltaram para os meus — Sinto muito pela intromissão, mas,
domingos são os dias de Kian com os garotos. Quando passou da
hora de você aparecer — disse, virando-se para Kian, que parecia
sem jeito —, os meninos pediram para vir até aqui saber se estava
tudo bem.
— Sem problemas, mãe — ele falou, sorrindo para Stephany.
Apertei meus lábios em um meio sorriso. Então a ruiva bateu as
palmas e disse:
— O.K. Meninos, mudança de planos. Vamos comer donuts e
almoçamos com Kian e Ayla, o que acham?
— Só se for hambúrguer, cooom… — gritou o mais novo, com
as mãos para o ar.
Kian se abaixou e o pegou no colo, completando a frase, como
se fosse algo apenas dos dois:
— Com batatas fritas e milkshake de chocolate.
Mordi o interior da bochecha, sentindo meu coração se encher
com a cena. Eles caminharam na direção da porta, mas, então,
Stephany parou e me olhou de uma maneira cúmplice:
— Vou pedir para que uma loja de confiança entregue algo para
você vestir para o nosso almoço. — E piscou.
Eles saíram do apartamento e Kian fechou a porta, me
encarando de uma maneira divertida.
— É melhor você trazer algumas coisas pra cá.
— Também acho.
Ele caminhou até onde eu estava, sorrindo por ver que eu me
escondia por causa das roupas curtas que vestia. Então, Kian
segurou em minha cintura e me colocou sobre o balcão,
encaixando-se no meio das minhas pernas.
— Sabe que não precisa ir se não quiser, não é?
Provavelmente, Stephany vai escolher o restaurante mais caro de
Soho. Ela tem um paladar apurado e gostos refinados.
Passei os braços ao redor do seu pescoço e tombei a cabeça
para o lado em divertimento.
— A pergunta aqui é: vai querer sair por aí com as mãos em
mim? Sabe, pode ser um caminho sem volta. Imagine só o que vão
dizer por Kardama… que alguém finalmente colocou uma coleira no
indomável Kian Wilding.
Seus olhos pareceram ganhar um tom sombrio e ele traçou o
polegar pela minha garganta.
— Gosto da ideia de que todos saibam que você é minha. Mas
sobre a coleira… — Ele pressionou o dedo na artéria pulsante do
meu pescoço e sorriu, com os olhos presos na região. — É uma
ótima ideia, desde que seja em você, querida. — Abri a boca um
pouco em choque, mas não proferi nada. — Tenho uma espécie de
fascínio pelo seu pescoço e uma coleira aqui faz meu lado sádico
extremamente feliz.
Neguei com a cabeça e depois o beijei. Em seguida, Luci latiu e
Kian grunhiu contra meus lábios.
— Precisamos tomar café da manhã logo para poder levá-lo
para o passeio matinal.
Deslizei da bancada da cozinha e voltei a buscar pelo fermento.
— Vou terminar as panquecas e enquanto você caminha com
Luci, vou estar de molho na sua banheira — resolvi.
Kian bufou, chamando minha atenção. Ele estava sob a soleira
da porta da cozinha, me encarando com um olhar mortal.
— Como você quer que eu corra com a porra do cachorro
pensando em seu corpo nu na minha banheira?
Dei de ombros, como se não fosse nada. No entanto, não evitei
sorrir.

Quando chegamos ao restaurante, no Soho, não imaginei que


Stephany conseguiria comida de fast food para Bryan naquele
restaurante. Era um lugar elegante, e, possivelmente, o lugar mais
bonito que eu tinha ido em toda a minha vida.
O salão era antigo, no teto havia um lustre e os garçons usavam
ternos. Apesar do restaurante francês favorito de Kian ser
espetacular, aquele lugar parecia ter saído de um filme da Disney.
Eu tinha colocado uma saia preta com camisa social poá e um
conjunto de sapatos de salto médio, os quais Kian me fez prometer
não os tirar durante o sexo quando retornássemos para casa.
Casa.
A sua casa.
Não a minha.
Mordi o interior da bochecha, encarando o cardápio com tantas
possibilidades e lutando para me concentrar, enquanto os dedos de
Kian estavam em meu joelho nu, acariciando a região.
Mesmo que ele estivesse conversando com Stephany,
eventualmente me provocava com o toque. Subindo os dedos até a
barra da saia ou apertando minha pele.
— Não acredito que Benjamin fará isso — Kian falou, em um
tom que chamou minha atenção.
Levantei os olhos, achando mais interessante sua conversa do
que a sessão de risotos do menu. Provavelmente, eu pediria com o
fettuccine com cogumelos e ervas.
— Ele está com um problema sério em Boston e disse que não
sabe se conseguirá vir — Stephany resmungou, bebericando do seu
gin e tônica. — Não imagino como isso irá repercutir na cidade.
Afinal, o evento de Ação de Graças costuma ser uma das datas
mais importantes para as famílias da cidade.
Eu não sabia se Stephany tinha conhecimento de tudo que
acontecia na administração daquele lugar. Benjamin não parecia o
tipo de marido que deixava sua esposa a par de tudo. E não pude
deixar de notar, no entanto, que ela parecia muito mais viva longe
do marido. E, por Deus, aquele machucado em sua boca no dia da
festa ainda era algo estranho para mim. Sabendo da vertente
violenta de Benjamin, me perguntei se ele não descontava sua ira
em outra pessoa agora que Kian estava longe das suas mãos, ao
menos para isso.
— Aquilo é um show de horrores, Steph. Você sabe bem —
Kian resmungou, enquanto fez um movimento para o garçom, que
prontamente veio nos atender e anotar os pedidos do almoço.
Charles e Bryan estavam sentados mexendo em seus Ipads
enquanto isso.
— Por isso, preciso de você lá, Kian. — Stephany suspirou.
— Se meu pai não estiver lá, eu posso fazer isso.
Não deixei de notar os ombros dela caírem um pouco.
— Ele ficou muito bravo com a sua cena na festa… — ela disse,
então, moveu os olhos para os meus. — Me desculpe pela forma
rude como Ben falou com você.
— Não se desculpe pelas atitudes dos outros, Steph — pedi, e
ela sorriu.
— Ele fez alguma coisa? — A voz de Kian soou firme quando
olhou para Stephany.
Ela o encarou com um pouco de nervosismo, e depois
concentrou-se em dobrar o guardanapo de pano sobre seu colo.
— No início, ele ficou de mau humor, mas logo distraiu a cabeça
com os convidados e bebeu o suficiente para dormir cedo — ela
resumiu em um tom baixíssimo, sem olhar Kian nos olhos.
Ela parecia envergonhada. Aquilo me deixou furiosa. O que uma
mulher incrível como Stephany ainda estava fazendo com aquele
monstro. Ele também a ameaçava?
Kian desviou o assunto para a nova reforma que Stephany
estava fazendo no jardim da casa, e ela pareceu recobrar a
empolgação. Logo, Charles e Bryan começaram a explicar sobre os
planos para uma casa na árvore e um tobogã na piscina.
Um casal sentou em uma mesa próxima a nossa, e os vi
cumprimentarem Stephany e Kian com um menear na cabeça. Não
deixei de notar, no entanto, a forma curiosa como os dois estavam
me olhando.
Desviei dos olhos curiosos quando Kian soprou contra a minha
orelha:
— Todos sabem que você é intocável agora.
Eu sorri com aquela constatação. No entanto, me perguntei
quanto tempo aquilo demoraria a chegar nos ouvidos de Tai Yang. E
eu, provavelmente, começar a procurar novos apartamentos nos
classificados de Kardama.
No momento que a garota de olhos castanhos me encontrou,
poderia ver a fúria ali, mesmo que estivessem atrás de uns óculos
escuros.
— Você sumiu, de novo — constatou o óbvio.
Ponderei por alguns segundos. Mordi os lábios, um pouco
nervosa. Eu deveria falar a verdade para Olivia? E, por alguma
razão absurda, a verdade escorreu pelos meus lábios de uma forma
tranquila e até mesmo feliz.
— Kian… — declarei como uma primeira resposta. — Acho que
ele não sabe ter um relacionamento saudável que não envolva fazer
algo além de sexo.
Os olhos de Olivia apareceram sob os óculos, quando ela os
puxou levemente para baixo. Seu delineado perfeito e os lábios com
gloss pareceram duvidar das minhas palavras por um instante, mas
logo um sorriso largo abriu em seu rosto.
— Eu tinha certeza que tinha um clima depois do dia em que
você o levou daqui — declarou, animada, enquanto estávamos no
estacionamento da Seven e chamando a atenção de Margot que
estava por ali fumando. Ela riu para mim e fui obrigada a rolar meus
olhos para Olivia. — Me dê mais detalhes!
Fiz uma careta, um tanto desgostosa. Ela havia mandado
mensagens durante o dia anterior e disse que estava sentindo
minha falta pelo campus. Decidi, então, dar a graça da minha
presença, mas ela parecia ansiosa demais para me esperar ir até a
fraternidade, por isso veio me buscar na boate, com o pretexto de
fazermos compras juntas.
Eu não sabia como o evento de Ação de Graças seria, mas Kian
e eu estaríamos por lá. E Olivia deveria saber sobre o código de
vestimenta e me auxiliaria na escolha de uma roupa adequada.
— Ai, meu Deus, foi no Halloween, não foi? Ele chegou lá e te
puxou, e…
— Olivia — a interrompi, tentando não sorrir pela forma frenética
que ela falava. — Mais ou menos, tá legal? Naquela noite
avançamos em algumas coisas e no dia seguinte…
— Ele te carregou do refeitório daquela forma estúpida e sem
nem falar comigo — bufou ela, mas logo sorriu. — Claro. Era por
causa disso. Kian nunca deixa de me cumprimentar, mas aquele dia
parecia um pau no cu. — De repente, ela parou de falar, piscando
algumas vezes. — Depois daquele dia, vocês sumiram.
Ela não desistiria de me questionar, por isto, resolvi que
encerraria a conversa por uma outra vertente:
— Kian me prendeu em seu quarto de gostos peculiares —
murmurei, avaliando o rosto de Olivia se contorcer em uma careta.
— Quarto de gostos peculiares? O do piano?
— Não. Aquele que ele esconde muito bem. Cheio de chicotes,
mordaças, e…
Ele colocou as mãos nos ouvidos, negando com a cabeça.
— Ah, meu Deus, cale a boca! Não quero detalhes! Kian é um
pervertido.
Ri para aquela situação.
— Você não veio me buscar para fazemos compras, uh? —
perguntei, contornando o carro e me jogando contra o banco do
carona.
Olivia abriu a porta do motorista e entrou no conversível.
— Sabe que ainda tenho muitas perguntas, certo?!
— Sei…
Ela deu partida no veículo e o colocou nas ruas de Kardama.
— E sabe que não vou te deixar em paz enquanto não falar
tudo.
— Olivia, em um grande resumo dos dias em que estive no
apartamento de Kian, nós transamos depois de ele me arrastar do
refeitório e, bem, ele tem me mantido ocupada desde então —
declarei, contando o máximo que me permitia a ela.
Sabia que Olivia era o tipo de pessoa que descreveria todos os
detalhes, mas eu não era assim e esperava que ela entendesse.
Ela riu e ligou o som.
— Não posso dizer que não entendo, Hugo e eu éramos
impossíveis depois que descobrimos sexo — comentou, nostálgica.
— Enfim, entendo bem Edward e Bella agora.
Deus, ela realmente tinha feito uma analogia com Crepúsculo
depois ter tirado sarro com 50 Tons de Cinza.
— Não é bem assim, até porque é impossível ficar pálido no
estado da Califórnia — comentei, revelando que, em algum
momento do meu passado, eu também tinha lido os livros ou visto
os filmes.
— Kian odeia praia e qualquer coisa que envolva ficar sem
muita roupa na frente dos outros…, mas não sei se é muito
reservado ou odeia o próprio corpo — Olivia comentou, me
mostrando que mesmo pelo tempo de amizade, ela não conseguia
entrar em todas as camadas que eram Kian.
— Bem, ele tem um bronze regular, posso te garantir isso.
Um sorriso divertido brotou em seus lábios, enquanto
contornava suavemente uma curva.
— O.K. Acho que é o suficiente de informações por hoje…. Mas,
agora, vamos ao que realmente interessa: nossos looks das
malditas comemorações de Ação de Graças.
Eu ainda não tinha perguntado a Olivia como ela estava
sentindo quanto a isso. A forma como reagiu aquela festa no dia do
refeitório não havia sido boa, mas agora estava ali, pronta para ir às
compras comigo. Pelo visto, ela havia aceitado aquela obrigação e
estava tirando o melhor da situação.
A música da rádio nos conduziu pelas ruas enquanto o Outono
mostrava a sua cara, deixando a cidade com um clima ameno,
obrigando-nos a colocar calça junto com blusas curtas.
Desta vez, Olivia dirigiu até o shopping e deixou seu carro com
um valete, para que ele estacionasse enquanto seguimos para
dentro do estabelecimento. Tinha ido ali uma ou duas vezes, apenas
acompanhando Yue, antes de começar as aulas na faculdade, mas
não tinha prestado muita atenção no ambiente. Era simples, afinal,
estávamos numa cidade no interior, mas, ao mesmo tempo, tudo era
absurdamente moderno.
— Preciso de um vestido bonito e que não me deixe passar frio
— Olivia concluiu, guardando suas armações Gucci na bolsa assim
que caímos no ar condicionado do ambiente fechado.
— Não dá pra usar uma calça?! — perguntei, divertida, e seu
olhar me atravessou, questionando se eu estava falando sério. —
O.K. Entendi, vestido!
Ela riu e segurou em minha mão me puxando pelo local até
chegarmos, ao que pareceu, a loja certa para o que ela procurava.
Os vestidos ali pareciam festivos, mas eram esporte fino, nada
como as roupas de gala que usamos até então nos eventos.
Entramos na loja e Olivia logo dispensou a atendente dizendo
que nós mesmas nos viraríamos. Os dedos cheios de anéis de
minha amiga rodaram as araras, distraidamente. Decidi olhar outro
conjunto de cabides, mas ao seu lado, na frente da vitrine. Observei
uma mulher entrar na loja, e atrás de si vinha um carrinho de bebê,
sendo empurrado pelo marido. Encarei a cena com divertimento e
depois fixei os olhos em Olivia, que, de repente, pareceu ter perdido
toda a sua luz. Ela olhou para a mesma cena que eu e um sorriso
fraco a dominou, mas era um sorriso cheio de dor.
— Liv, tá tudo bem? — Toquei seu ombro, parando ao seu lado.
Ela pareceu despertar de um transe e expirou todo o ar
possível. Seus olhos me encararam e depois ela pareceu procurar
por algo dentro de si.
— Sim… é que… — Ela caiu o olhar na família na loja
novamente. — Minha mãe… Eu, bom, hum… queria tanto
acompanhar as garotas na ação ao asilo, mas não posso porque,
bem, sou a filha da prefeita Grace Lopez, preciso estar ao seu lado
— declarou, jogando seu corpo em um dos sofás da loja, claramente
chateada. A acompanhei, sentando-me e vendo-a curvar o corpo
para frente, apoiando seus cotovelos nos joelhos. — A maldita
Tríade, e… ah, você entende bem isso agora. — Assenti,
entendendo em partes, ainda havia muito o que queria saber. —
Ação de Graças é sempre uma tensão, desde que Benjamin
resolveu concorrer ao senado e minha mãe deixou a promotoria
para ser prefeita. É um saco, os dois adoram as brigas de ego.
Benjamin e Grace brigavam por poder dentro de Kardama? Isso
era novidade.
— Só achei que quando estivéssemos na faculdade seria
diferente… — Liv soprou, quase para si mesma.
Ignorando seu próprio comentário, ela voltou a escolher outro
vestido. Olivia parecia estar ligada num frenesi automático. Por mais
que mostrasse o descontentamento com a situação, estava fazendo
o que todos esperavam dela: compras para um evento importante.
Alguns segundos se passaram até que seus olhos castanhos
viessem até mim novamente.
— Invejo Hugo e Kian, sabe? Eu os amo, mas os invejo em
certa medida. Eles conseguem ter algum mínimo controle sobre a
própria vida, Kian tem sua boate e Hugo tem uma facilidade absurda
em mandar Hunter a merda com regularidade, e sem sofrer as
consequências disso. — Uma surpresa implantou-se na minha
mente: afinal, Kian não tinha tanto controle assim da própria vida e
nem mesmo sua melhor amiga sabia disso. — Eu não posso fazer
isso… Minha mãe teve Pietra muito nova, estava terminando a
faculdade ainda e já trabalhava na promotoria. Ela conseguiu se
formar, nosso pai ainda estava lá e, poucos anos depois, ela
descobriu que eu estava em seu ventre e meu pai… morreu. Algo
estúpido, um maldito assalto. Nunca o conheci e Grace fez questão
de nunca deixar fotos dele pela casa. — Olivia fez parecer que
precisava mesmo desabafar e algo a fez abrir a boca e não parar
nunca mais. — Depois disso, ela concorreu a promotoria, venceu e
a maldita Tríade foi criada, ela varreu essa cidade da violência,
Benjamin e Hunter a ajudaram e, por Deus, parecia um lugar tão
pacífico, mas sei que minha mãe sempre teve que se manter à
frente de tudo. Pietra é a filha modelo, aquela que sempre faz tudo o
que ela quer, enquanto eu sou só um maldito souvenir. Algo de
enfeite.
Não tinha ideia de como Olivia se sentia em relação a tudo,
mas, ao que parecia, ela se sentia sozinha dentro da sua família.
Alguém dispensável, talvez. Bloqueei o pensamento, que me levou
a lugares errados, cheios de sangue e dor.
— Ao mesmo tempo, me sinto péssima ao pensar assim. Kian é
um ótimo amigo, e Hugo… — Ela soltou um suspiro, enquanto sua
mente a levava ao namorado ao que tudo indicava. — Deus, como
eu o amo! Sou completamente apaixonada por aquele homem! —
Ela riu e suas bochechas coraram suavemente. — Sempre fomos
amigos, mas quando entramos na adolescência as coisas mudaram
de figura e, bem, um dia, resolvi beijá-lo.
Foi a minha vez de rir; afinal, era a cara de Olivia fazer isso.
— Desde então, somos inseparáveis… E, bem, sei que talvez
não seja tão saudável sermos tão ligados assim, mas dane-se,
porque ninguém sabe o que nós dois passamos juntos. Nem mesmo
Kian, e sou grata demais por tê-lo ao meu lado.
Seus olhos pareceram ganhar lágrimas quando as palavras
deixaram seus lábios, mas Liv segurou-se, as impedindo de cair.
Segurei em seus ombros e sorri fraco.
— Essa conversa vai terminar com você me perguntando como
pedir Hugo em casamento, ou algo do tipo? Porque, sinceramente,
não saberia como fazer isso.
Consegui fazer Olivia gargalhasse, e seu ar leve pareceu
retornar aos poucos. Era difícil vê-la assim. Parecia exausta, a ponto
de ceder a desistência total.
— Não, até porque depois de dez anos juntos já sei exatamente
como vou pedi-lo em casamento. — Ela me lançou uma piscadela.
— Será no próximo verão, depois da formatura. — E eu tive que rir,
afinal, ela era uma Lopez e as mulheres daquela família pareciam
fortes e destemidas, de maneiras diferentes, é claro. — Só queria
um pouco mais de voz na minha própria vida, eu acho.
Assenti. Olivia nos fez voltar aos vestidos, deixando o clima um
pouco mais tranquilo. Experimentamos alguns, e me senti
incomodada em estar ali. O dinheiro era sujo, e eu, definitivamente,
não deveria estar gastando-o com futilidades. Parecia que minha
consciência me pegava pelo pescoço quando estava longe de Kian.
Saí do provador com um vestido preto, de mangas longas
bufantes e corte que parecia um longo blazer, ficando a um palmo
acima do meu joelho. Precisaria de uma meia calça fina, mas era
bonito.
Observei Liv encarando o próprio reflexo com o vestido bordô
com um decote em V e mangas longas com uma saia que ia até
pouco antes do seu tornozelo. O corte modelava sua cintura fina e
parecia quente o suficiente para baixas temperaturas. Afinal, Ação
de Graças era no final de novembro e o frio parecia disposto a nos
incomodar.
— Está incrível nesse vestido — a elogiei.
Ela virou-se rapidamente, me encarando com entusiasmo.
— Chica, você precisa parar de escolher vestidos assim,
qualquer dia desses vai matar meu amigo do coração.
Meu sorriso aumentou significativamente, e pensei na forma
como Kian ficaria ao me ver naquela peça. Foi quando seus olhos
tentadores voltaram a minha mente e um calor que conhecia se
instalou em meu corpo, mesmo que tentasse o ignorar. Passei a
mão pela saia reta e esperei que a roupa fosse boa o suficiente para
o evento.
— Espero que Kian não queira roubá-la hoje, porque vamos
jantar massas e vinho na fraternidade e você não está só convidada,
como está intimada — Olivia declarou, ao meu lado, mexendo em
seu cabelo, vendo algum tipo de penteado que ficaria bem com o tal
vestido.
Rolei meus olhos em divertimento.
— Eu vou com você à fraternidade.
— Ótimo, porque vou te trancar no quarto e arrancar todas as
informações que quero sobre vocês dois.
A tensão de Kian era palpável. E aquilo não tinha nada a ver
com o que estávamos fazendo. Enquanto estava o beijando no sofá
do seu apartamento, seu corpo estava quente, mas levemente
travado sob o meu. E, na verdade, aquilo era apenas uma forma de
distrair todos os nossos problemas.
Kian estava se tornando a válvula de escape dos meus próprios
pensamentos, mas ele também parecia me usar da mesma maneira.
Ao longo da semana, ele esteve ocupado demais com os
problemas acerca dos Cavaleiros e, vez ou outra, o sentia com a
mente absurdamente distante. Sabia que a aparição de um de seus
inimigos dentro da sua própria boate o transtornou, o piso vermelho
ainda me vinha à mente como uma lembrança fodida, marcada em
minha mente por uma eternidade.
Sua mão segurou meu queixo, me afastando suavemente.
— Por que não fica no meu apartamento, e me espera no
quarto? Prometo que serei todo seu depois dessa maldita reunião —
ele disse baixo, devido à nossa proximidade.
— Já disse que vou com você, Wilding. Pare de ser teimoso,
quero estar ao seu lado — repliquei com as mãos repousadas em
seus ombros. Um sorriso ladino abriu-se em seus lábios e um
carinho sutil foi depositado na minha pele, na bochecha. — Uma vez
você me disse que eu era ambiciosa, o que é uma verdade, não
posso mentir quanto a isso, mas disse também que invadiria o
inferno por mim e, Kian, faria o mesmo por você. — Seus dedos
desceram até meu pescoço, causando um leve arrepio. Ri fraco,
tentando disfarçar seu efeito sob mim. — Além do mais, quando diz
que sou sua, o mínimo que espero é reciprocidade, mon amour.
Portanto, você não será meu, você já é meu.
Ele tentou controlar o sorriso. Sua felicidade estava ali, em
minhas mãos. E, por um instante, a minha mente me cobrou isso.
Espantei o pensamento quando seus braços me envolveram,
puxando-me para si enquanto seu rosto afundava na curva do meu
pescoço, me fazendo ofegar com os beijos sendo depositados na
minha pele.
Deixei que meus dedos escorregassem até seus cabelos e se
emaranhassem ali, puxando-o contra mim. Um prazeroso suspiro
deixou meus lábios quando sua língua se arrastou pela minha pele,
fazendo-o me apertar ainda mais contra si.
Infelizmente, o celular de Kian nos interrompeu, avisando que
estava na hora de sair de casa. Ele se afastou, pegou o aparelho
jogado ao nosso lado no sofá e mandou uma mensagem, observei
toda a ação em silêncio. Quando seus olhos voltaram a procurar
pelos meus, o tesão de momentos antes pareceu ter evaporado,
sendo substituído pelo nervosismo.
— Naqueles túneis, eu sou uma versão de alguém que você
não gosta de ver — avisou, como sempre, tentando me afastar.
E um lado racional meu queria fazer o que ele tinha dito: ficar no
apartamento e esperá-lo no quarto, mas não conseguiria. Havia algo
sobre não o obedecer, mas também, estar frente a frente com tudo
aquilo.
— Eu sei, e estou pronta para lidar com isso.
Seus dedos entrelaçaram-se aos meus e ele os levou aos seus
lábios, depositando um beijo ali, enquanto seus olhos não deixaram
os meus. Quando os afastou, levantou e me puxou com sigo.
Naquela noite, os casacos eram todos bem vindos, já que as
temperaturas começaram a diminuir significativamente.
Caminhei com meus dedos entrelaçados aos de Kian até o
carro e, então, até a entrada dos túneis. Descemos juntos, seguidos
por alguns de seus homens, e caminhamos por boa parte do
caminho de mãos dadas. O ambiente ainda me incomodava. O
escuro, o som dos nossos passos ecoando junto ao gotejar de água
e a umidade faziam com que me sentisse claustrofóbica. No
entanto, alguma coisa sobre estar com as mãos em Kian me faziam
sentir segura.
Notei a tensão no corpo de Kian a cada passo na direção do
lugar onde os túneis de cada família desembocaram. Pouco antes
de chegarmos ao mesmo lugar da outra vez, o que poderia ser
chamado de sala de reuniões da Tríade, seu corpo estava
totalmente enrijecido. Apesar disso, assim que seus olhos caíram no
local com os outros presentes, ele subitamente, encenou um ar
arrogante e relaxado.
— O que essa garota está fazendo aqui, de novo, Kian? — A
voz de Pietra foi a primeira a ressoar, em insatisfação.
— Ciúmes não combina com uma Lopez, Pietra — Kian a
respondeu e a garota de cabelos negros riu, desgostosa.
— Não seja tão egomaníaco, Kian. Só estou preocupada com
os negócios. — Pietra parecia particularmente mais intimidadora. —
Vou ser bem clara: trazer sua namorada para as nossas reuniões é
uma péssima ideia, ela não deveria estar aqui. Ela não deveria ouvir
e nem ver o que acontece aqui. Tratamos de negócios, isso não é
colônia de férias para universitária entediada com a própria vida.
— Sou obrigado a concordar com Pietra, Wilding. — Hunter se
fez presente.
Kian sorriu.
— Temos um problema fodidamente grande e Ayla não é ele! —
rosnou Wilding, soltando minha mão e pegando uma pasta das
mãos de Israel, que já estava lá embaixo quando chegamos.
Ele caminhou até a mesa no centro do lugar, iluminada por um
feixe de luz vindo de uma lâmpada no centro. Os líderes das outras
famílias se aproximaram, e assim que Pietra Lopez e Hunter Müller
estavam próximos, Kian soltou o objeto sobre o tampo.
— Esses vermes não estavam só em Kardama, como estavam
dentro da minha boate.
Vi Pietra fechar os olhos em um sinal de cansaço, enquanto
Hunter apenas parecia um tanto quanto indiferente àquele fato.
— A segurança… — Pietra começou a dizer, mas Kian a
interrompeu em um grito que ecoou por todos os cantos.
— A segurança é um problema da sua mãe, Pietra! — Ele bateu
em sua mão, derrubando a pasta. Os papéis e as fotos que haviam
ali espalharam-se pelo chão. — Grace deveria cuidar disso e não
eu. Isso só fode tudo e você sabe disso. E posso deixar mais claro:
Benjamin está puto! E eu mais ainda de ter que contar uma merda
dessas para ele.
A Lopez mais velha lançou um olhar cruel na direção dele, e,
depois, respirou fundo, controlando-se para, ao que tudo indicava,
não perder a paciência com Kian.
— Resolveu o problema? — ela rosnou.
Senti a tensão ali, enquanto minhas mãos começavam a soar.
— Sim, devolvi um monte de pedaço de carne a Samael. Ele foi
todo picado, feito um maldito porco abatido.
A imagem de Kian cheio de sangue voltou à minha mente. A
forma como ele confessou que não se lembrava de como tinha
chego ao apartamento. Aquilo fez com que eu fechasse os olhos,
com um sentimento duplo. Ele falava com a Tríade de uma maneira
fria, meticulosa e cruel. No entanto, o garoto assustado que entrou
naquele apartamento estava tão distante deste…
— Esquartejou o homem, Kian? — Hunter soprou a pergunta
com a sua impassividade.
Os olhos de Kian viajaram de Pietra até ele, com cuidado e um
sorriso diabólico brotou ali.
— É claro que sim. Ele estava dentro de Kardama, dentro da
porra da minha boate… Isso já não é mais um problema meu,
Hunter. É de todos nós! Ele está na nossa região… —
Pausadamente, Kian analisou o rosto contorcido do homem. —
Quer saber por onde começamos, ou é muito para você? — O ar
pesou. — Qual é, não é como seus homens nunca não tenham feito
algo do tipo também.
Pietra deu um passo para trás e virou-se de costas aos dois
homens. Ao mesmo tempo, meu coração apertou-se na minha caixa
toráxica. Respirei fundo. Encarei meus pés, tentando tirar a imagem
de Kian perdido e ensanguentado da minha mente.
— Chega, Kian, você fez o que tinha que ser feito, já
entendemos isso, cabrón. — Ela parecia extremamente irritada. —
Carajo, Kian, e a Ação de Graças? O desgraçado do seu pai ligou
hoje avisando que não vinha, essa cidade já está um caos, e um
dos homens mais importantes dessa merda resolve que não quer
dar as caras?
E, mais uma vez, a tensão era palpável no ar. Desta vez, não
havia sangue, mas eu estava com o coração acelerado, e com a
ânsia apertando meu estômago.
— A cidade está perigosa, era previsível que ele não moveria a
bunda dele até aqui. Meu pai gosta do dinheiro que isso gera no
bolso dele, não de lidar com essas merdas — Kian declarou com
obviedade. — Agora, preciso da porra da polícia dobrada Pietra,
caso contrário, não tem como darmos conta dessa porra. Grace
precisa…
— Minha mãe não precisa nada! — declarou Pietra. — Eu lido
com isso, já revi a merda da segurança quando pegamos Snake,
meus homens vão lidar com a polícia, farei eles entenderem o
recado e serem úteis.
E aquele discurso não era de quem estava fraco, mas, sim, de
algo que precisava funcionar em conjunto. Eram uma Tríade, afinal,
os três malditos poderes precisavam agir em conjunto para que a
cidade funcionasse.
Meus olhos deixaram os três, reparando na quantidade menor
dos homens ali. Não sabia se isso era um bom sinal, do tipo: não
precisamos de tanta segurança aqui; ou era o pior dos sinais, do
tipo: está tudo caótico e estamos terrivelmente desfalcados.
Pensando no discurso de Kian, acho que a minha resposta estava
bem mais direcionada para a segunda opção.
— Desde que os dois resolveram ter suas vidas políticas, isso é
um caos… — Hunter resmungou, coçando o rosto com barba por
fazer e o sorriso que Pietra soltou beirou o do Coringa, era óbvio
que ela não gostou de ouvir aquilo, mas se conteve para não o
responder na mesma moeda. Apesar dele merecer. — Se querem
mais más notícias, outros dois Cavaleiros foram encontrados em
uma das construções abandonadas nos limites da cidade.
— E você diz isso agora? — Pietra rosnou a ponto de pular no
pescoço de Hunter e matá-lo.
— Meus homens resolveram o problema, não como Kian o fez,
mas resolveram. — Hunter parecia calmo diante dos dois. — Talvez
seja interessante eu prestar uma visita a prefeita logo mais para
vermos sobre a expansão urbana da cidade, assim teremos menos
buracos para eles se esconderem.
Pietra sorriu de forma forçosa.
— Me deixe saber depois quando quer a reunião.
Hunter assentiu, enquanto Kian apenas observava a forma
odiosa que os dois se tratavam.
— Agora, se me dão licença, tenho um centro de eventos para
terminar de inspecionar a limpeza e a decoração, por gentileza,
façam a parte de vocês, mantenham a porra da segurança. — A voz
de Hunter era tranquila e irônica ao mesmo tempo.
Com um tom leve de crueldade misturada.
— Espero tudo esplêndido no dia de Ação de Graças, Hunter—
provocou Pietra.
O homem voltou-se a ela com sarcasmo.
— Estará, Lopez! — rosnou de volta. — Sua mãe terá tempo no
palco o suficiente para falar as mentiras políticas dela e me
agradecer em bom tom pelo mais novo centro de eventos de
Kardama. — Ele deu um passo em direção ao túnel pelo qual
sempre vinha, mas se ateve antes de entrar. — E Kian, dá próxima,
quero saber antes de esquartejar um homem. Você não responde
sozinho!
Estava em meu quarto, na casa dos Yang, terminando de
organizar alguns itens dentro da minha mochila. Eu tinha
desaparecido mais vezes do que o habitual e ficar alguns dias por
ali foi importante para, também, dar alguma satisfação após toda a
mentira sobre Daniele e o estado em que havia ficado naqueles
dias. Eles confiavam em mim e odiava ter que fazer isso.
O frio estava se intensificando e as noites eram ainda piores,
então passei um blusão quente sobre a cabeça e calcei meus
coturnos de salto para sair. Peguei a mochila preta, para ir até o
apartamento de Kian, já que ele havia pedido que eu passasse a
noite com ele e precisava de alguns produtos de higiene e roupas.
Passei os dedos pelos meus fios negros e segurei na maçaneta
da porta, respirando fundo e criando coragem para sair e enfrentar
os dois irmãos na sala. Tentei relaxar os ombros e não pensar nas
perguntas que viriam de eu estar saindo com uma mochila de lá.
Meu celular vibrou no bolso do jeans, indicando que o carro de
aplicativo tinha chegado e eu ainda não tinha criado coragem o
suficiente para sair. Fechei os olhos, sentindo um ódio enorme em
mim mesma. Meu coração começou a acusar a ansiedade e eu
decidi sair de uma vez.
Passei pelo corredor, e encontrei apenas Yue na sala.
— Vai sair? — questionou, curiosa. — Garota, me diz o que tem
de tão interessante nessa cidade, porque nem em Nova Iorque eu
via você saindo assim — brincou.
— Tem algumas coisas interessantes na faculdade à noite, um
curso de yoga que me inscrevi, começa às 19h — comentei,
levantando a bolsa.
— Ah, legal. Mas… Yoga? — Ela riu, e depois estreitou os
olhos. — Você desistiu até mesmo das corridas matinais com Tai.
Se eu me lembro bem, odeia exercícios…
Dei de ombros.
— Estou afim de tentar coisas novas.
— Falando em coisas novas… vai abrir um restaurante
mexicano no Soho e estou muuuuito afim de ir. O que você acha?
Nós costumávamos comer muitos burritos juntas e quero repetir a
dose.
— Quando? — questionei, trocando o peso do corpo entre os
pés.
— Ação de Graças.
— Ah, hum… Eu tenho um compromisso.
Ela estreitou os olhos para mim mais uma vez, visivelmente
desconfiada. Yue abriu a boca algumas vezes, mas depois sorriu.
— O.K. Acho que tudo bem, então. Você não costumava ter
tantos amigos assim quando nos conhecemos, então achei que
teríamos mais tempo juntas.
Me aproximei dela, tocando seu braço.
— Prometo que em breve vamos fazer mais noites de filme com
yakissoba. É só, hum… estou conhecendo uma pessoa.
Seus olhos brilharam e depois ela deu um tapinha no meu
braço.
— Eu preciso saber de tuuuudo.
Eu ri. Ela me odiaria se soubesse que estava me envolvendo
com um criminoso. Criminoso. O peso da palavra me deixou
nauseada. Chacoalhei a cabeça e voltei a sorrir para Yue.
— Vou te contar tudo em breve, tá?
Sorri e me despedi rapidamente movendo os pés para fora do
apartamento. Estranhamente eu não me sentia mal por mentir tão
facilmente para Yue.

Fui recepcionada por Luci pulando no meu colo com


empolgação, enquanto Kian fechava a porta. Ele estava com uma
blusa de mangas longas num verde-militar e jeans escuros.
— Trouxe roupa para ficar quanto tempo? — questionou,
encarando o tamanho moderado da minha mochila.
— Algum tempo… — soprei como se não fosse nada demais,
mas um sorriso apareceu em seus lábios, me fazendo corresponder
àquela ação. Deixei a bolsa no sofá e voltei a encará-lo. Seus
braços me puxaram para si em um beijo longo. O gosto de menta
em sua boca me inebriou e me fez esquecer, por um instante, que
havia um evento para comparecermos. Ou melhor, um jantar.
Sua mão apertou-me contra si enquanto minha mente me
levava à mansão Wilding. A última vez que estive lá, quase quis sair
correndo, desta vez, sem Benjamin por perto, tentava pensar que
seria menos sufocante. Afastei-me, procurando por seus olhos,
checando a beleza do homem à minha frente e pensando no quão
mais fundo eu poderia ir.
— Que horas combinou com Stephany?
Ele encarou o relógio no pulso por um instante.
— Em meia hora. Precisamos ir logo.
Passei os dedos pelo colarinho da blusa que estava por baixo
do suéter, encarando a minha ação, em seguida enfiei-me mais em
seus braços deixando minha cabeça repousando em seu peito, em
um abraço, o qual ele correspondeu de pronto. Inalando o seu
perfume, fechei os olhos por um instante. Não queria pensar sobre
as consequências das minhas ações até ali, principalmente porque
a cada dia Kian se tornava algo que eu queria me agarrar e, no fim,
sabia que nós dois iríamos ruir.
Ele era só o meio para eu chegar ao meu fim e eu não deveria
estar me envolvendo daquela forma.
Tinha metas e objetivos. Tinha uma maldita agenda a cumprir
em Kardama e meus sentimentos estavam começando a foder com
tudo.
Aquilo não era ficção, era a minha maldita vida. E, a cada
instante, sentia que tudo iria desmoronar como um maldito castelo
de cartas.
— Ei, está tudo bem?
Meu coração deu um solavanco. Seus dedos tocaram meu
rosto, puxando-me delicadamente, até que meus olhos estivessem
nos seus, arrancando-me dos meus pensamentos autodestrutivos.
Pisquei duas vezes, o encarando, enquanto minha mente ainda
me mostrava um cenário cheio de dores futuras.
— Ayla…
— Estou bem, só estava precisando deste abraço.
Kian precisava fazer tudo aquilo parar. Eu não queria pensar
naquelas coisas, ao mesmo tempo em que minha consciência
gritava que eu precisava pensar sobre.
Ele sorriu, aquecendo todo o meu ser. Com carinho, ele apertou
um pouco mais e logo soltou-me, descendo suas mãos até a base
da minha cintura, deixando um carinho suave ali. Beijou minha testa
e logo escorregou os dedos até entrelaça-los aos meus.
— Tem certeza que está bem? — Sua expressão era de
preocupação genuína.
Forcei-me a dar um sorriso.
— Tenho. Estou um pouco cansada, só isso — Sabia que se
deixasse Kian interviria e cancelaria o jantar para ficarmos em casa,
mas não era o que eu queria, por isso rapidamente continuei —,
mas estou muito animada para o jantar — comentei, adicionando: —
Os garotos devem estar ansiosos e enlouquecendo Stephany.
Kian riu.
— Eu não tenho dúvida disso.
— Vamos?
E ele assentiu.
Kian estacionou o carro na grande parte da frente da mansão
Wilding. Desta vez, sem convidados, podia ver a casa um pouco
melhor. O lugar me lembrava a mansão do filme do Gatsby.
O motor do carro foi desligado e vi Kian saltar do veículo com
pressa, e dirigiu-se à minha porta, abrindo a porta e me estendendo
a mão. O meu lado feminista poderia dizê-lo que aquilo era
dispensável, mas o meu lado romântico achou aquela ação uma
demonstração de cuidado.
Minha para cuidar, foi o que ele disse e, porra, ele estava
fazendo isso.
Saí do carro e ele fechou a porta, deixando seus dedos
entrelaçados aos meus com força. Ele respirou fundo, encarando a
casa. Sentindo o seu desconforto, caminhamos em silêncio até a
porta principal e fomos recepcionados pelos garotos. Bryan estava
animado, sorridente, já Charles expressava uma felicidade contida.
Kian abaixou-se na altura do mais novo e deixou que ele o
abraçasse.
— Mamãe foi para a cozinha dizendo que ia fazer a comida,
mas vi o motorista chegando com as caixas do restaurante favorito
dela — confessou o mais novo, como se estivesse contando um
segredo. Kian sorriu divertido.
— Então é melhor fingirmos que ela cozinhou tudo ou a
perguntamos sobre o restaurante?
Bryan ponderou sobre o comentário, enquanto Charles parecia
mais introvertido com estranhos ao redor, assim como Kian.
— Vamos fingir que ela cozinhou. Acho que ficaria chateada se
descobrisse que eu sei — o mais novo disse. Kian concordou e
lançou uma piscadela a ele. Bryan então saiu correndo dizendo que
iria buscar seu IPad para mostrar algo para Kian. E ele deu atenção
ao do meio.
— E você, campeão? Não precisa ficar tímido na frente da
Ayla… — incentivou.
— Não, não é isso! É que tive aulas de piano hoje, foram três
horas, estou um pouco cansado — declarou, com receio.
Kian suspirou, o puxando para si e o abraçando. Não entendia
bem qual era o lance do piano, mas tinha algo ali.
— Que tal jogarmos bola amanhã? Chamo Hugo, pego vocês
dois e vamos jogar um pouco basquete, sei que gosta disso. — O
rosto de Charles ganhou certa empolgação. Um sorriso tímido
surgiu ali. — Pode ser?
Charles assentiu, animado.
E logo a voz da dona da casa ecoou pelos quatro cantos,
enquanto vinha em nossa direção com os saltos batendo contra o
piso impecavelmente ilustrado.
— Kian, Ayla. Que bom que chegaram! Já ia ligar — avisou.
Primeiro abraçou o enteado e, depois, a mim, muito receptiva como
sempre. Ao invés de roupas requintadas e finas, ela usava algo
mais simples, mas, ainda assim, elegante. Calça jeans e uma
camisa embaixo de um suéter vermelho vivo. Seu rosto estava
iluminado. — Desculpa a demora, estava terminando de organizar o
nosso jantar.
Charles sorriu, divertido, enquanto eu e Kian fazíamos o
mesmo, concordando. Passos rápidos foram ouvidos e Stephany
virou-se para as escadarias, gritando:
— Bryan, não corra!
E logo o Wilding mais novo voltou a sala principal com sua
cabeleira ruiva e um IPad que parecia grande demais em suas
mãos. Stephany nos convidou a sentar nos sofás caramelo da sala
de estar — sofás estes que tinham sido retirados na festa, da última
vez que tinha estado ali —, enquanto os funcionários da casa
terminavam de ajeitar a mesa e colocar a comida que ela,
supostamente, havia feito.
Charles estava ao lado da mãe, enquanto Bryan parecia mais
confortável jogado entre mim e Kian.
Não demorou muito até que Stephany começasse a falar sobre
os preparativos sobre o dia de Ação de Graças, avisando-nos que
teria um almoço na mansão, mas apenas para a família, insistindo
para que Kian e eu viéssemos. E que, depois, à tarde, todos iriam
para o evento da prefeita Grace Lopez. E que, inclusive, Lindsay
Müller havia ligado para relembrá-la do evento naquela tarde.
— Lindsay deveria cuidar do próprio marido — Kian declarou,
desgostoso.
— Eles não são meu problema, Kian. Meu problema é Benjamin
não vir.
Ao nome do homem ser proferido, senti Bryan fazendo a mesma
ação que eu: encolhendo-se um pouco. Aquele homem parecia um
maldito fantasma, quase nunca estava presente, mas sempre que
era citado, causava arrepios nos outros.
— Eu estarei lá, mãe. E isso será o suficiente, eu prometo —
Kian queria acalmá-la, tranquilizá-la e o sorriso que Stephany deu
me fez pensar que o garoto talvez tivesse conseguido tal feito. Nos
olhos dela havia tanta vida, mas tanta dor também.
Ela abriu a boca, mas calou-se quando foi anunciado que o
jantar estava na mesa. Bryan levantou-se em um pulo e largou o
IPad no colo de Kian, indo até a mãe, segurou na mão da mulher e
a puxou até a mesa de jantar. Enquanto isso, Charles caminhava
atrás, tranquilamente. Senti os dedos de Kian entrelaçando-se aos
meus dedos e, em seguida, nos levantamos, os seguindo.
Todo o cuidado de Stephany com o cardápio foi notável, mesmo
que ela tivesse pedido aquelas comidas. Estava impecável. A minha
massa com pesto estava ótima, enquanto o vinho era tão bom
quanto; porém, tomei só uma taça, enquanto Steph e Kian
deliciavam-se em mais. Os garotos pareciam leves na presença do
irmão e o efeito deles no homem ao meu lado era o mesmo: Kian,
de fato, era ótimo com eles.
Após o jantar, acompanhei Steph em uma mesa próxima a
janela, que dava acesso ao jardim atrás da casa. Nos deliciamos
com fatias de cheesecake e mais taças de vinho, enquanto os
garotos insistiram para jogar uma partida de videogame e tomar
sorvete com Kian. Achei aquilo engraçado, porque não conseguia
imaginar Kian fazendo isso. Após o que parecia ser a sétima taça de
Stephany, ela parecia relaxada e disposta a falar algumas coisas.
— Ele anda tão tenso nos últimos tempos, fico feliz que tenha
encontrado você — começou, com os dedos no talher de prata
enquanto remexia seu pedaço de torta. — Kian estava precisando
de alguém… E, assim, não me entenda mal, adoro Olivia e Pietra,
mas Pietra não era mulher para o meu filho. Odiava vê-lo engatado
nela nos eventos porque era apenas algo social. Eles não tinham
essa... conexão, sabe? Pietra sempre me pareceu tão
autossuficiente, como se estivesse sempre escapando pelos dedos
de qualquer um que a segure. Seria ótimo vê-los juntos, já que as
famílias ficariam unidas, mas… definitivamente, eles nunca se
amaram… — suas palavras saíam com facilidade. — Ela é linda,
educada, extremamente inteligente, mas… é um clone de Grace, e
aquela mulher não tem nada de graciosa.
Soltei um riso curto e anasalado com sua constatação. Ela era a
segunda pessoa a reclamar de Grace Lopez, e eu começava a
pensar sobre quem era aquela mulher. Só havia a visto de longe
durante a festa na mansão, não a conhecia ou tinha sido
apresentada.
— Benjamin não pareceu muito feliz em me ver aqui naquele dia
— comentei, encolhendo-me um pouco ao deixar o nome do homem
sair pelos meus lábios.
Stephany rolou os olhos.
— Se serve de consolo, no fundo, acho que meu marido não
fica muito feliz com ninguém além dele mesmo — declarou sem
paciência e deixando que o álcool se sobressaísse. — Ele é pai dos
meus filhos, mas casamentos são complicados, Ayla —
acrescentou, na tentativa de se justificar, deixando a taça sob a
mesa.
Em seguida, enfiou uma colherada da torta na boca.
Observei sua ação e a li como uma forma de calar-se para não
falar muito mais. Acabei fazendo o mesmo que ela.
— Kian realmente é ótimo com os meninos… — declarei, após
tomar um gole da minha taça.
O sorriso de Stephany mostrou-me uma alegria que estava
faltando desde a menção ao seu marido.
— Ele é! Sempre foi assim, desde as minhas gravidezes, ele
sempre foi muito cuidadoso com Charles e Bryan. Era divertido vê-lo
conversando com Charles enquanto estava grávida. Ele ficava
falando com a minha barriga e fazendo planos para ele e o irmão. —
Ela riu fraco. — Quando Bryan chegou, ele era mais velho, tinha
mais coisas para fazer, mas, ao mesmo tempo, assim que o caçula
nasceu, Kian correu ao hospital.
Sorri ao imaginar um Kian com dezenove anos chegando para
conhecer o irmão mais novo.
— Ele perdeu uma prova aquele dia, lembro-me até hoje.
Benjamin ficou furioso, mas Israel resolveu o problema com o reitor
— ela soprou. — Aliás, esse é outro, meu cunhado é ótimo com os
garotos, mas insiste em manter-se distante em certa medida.
Eu ri.
— É a cara dele.
Stephany concordou, levantando-se.
— Venha, vou te mostrar uma coisa…
Em silêncio, nós subimos as escadas, caímos em um corredor
largo e comprido, com o mesmo estilo de decoração da sala
principal. Ela liderou até uma porta aberta no corredor. A luz que
vinha lá de dentro era fraca.
Ela passou na frente da porta e encostou-se na parede ao lado
da porta e eu fiz o mesmo, perto do batente. Com cuidado,
espiamos para dentro do quarto, encontrando Bryan dormindo nas
pernas de Kian com uma coberta de dinossauros que cobria seu
corpo, ao mesmo tempo que ele conversava baixinho com Charles.
Todos deitados na cama do irmão do meio, enquanto a cama de
Bryan estava vazia.
Não achei que veria uma cena como aquela na minha vida, mas
a verdade é que aquilo estava se desenrolando na minha frente e, a
cada segundo, eu sentia que meu coração era menos meu e mais
de Kian.
— Ele fez algo? — Kian perguntou ao irmão, mas Charles
negou.
— Não. Ninguém pode fazer isso com as garotas. Lílian chorou
e ele continuou lá. Eu empurrei Jimmy depois que ele puxou o
cabelo dela…
— Não é legal receber suspensão, mas foi por um bom motivo.
Prometo que vou à escola resolver isso. O papai nem vai desconfiar
e vou falar com os pais deste garoto.
Stephany forçou um sorriso para mim e decidiu encerrar aquela
conversa, surgindo na porta do quarto. Ela entrou no cômodo e os
dois que estavam acordados a olharam.
— O.K. Já passou das dez e tem alguém aqui que precisa
dormir.
Kian sorriu fraco e sentou-se, tirando uma perna da cama e, em
seguida, puxou Bryan para os próprios braços. Stephany o ajudou e
eles colocaram Bryan na cama, enquanto eu olhava a cena. Depois,
Kian encarou Charles.
— Amanhã venho te buscar e vamos jogar basquete, certo?!
Ele concordou com um movimento da cabeça, enquanto
Stephany o ajeitava na cama, depositando um beijo na testa dele.
Kian veio até mim e nós nos afastamos da porta. Stephany logo veio
atrás.
— Já falei com a diretora e consegui retirar a suspensão. Não
precisa se preocupar, tá bom?!
Apesar da aparência, Stephany não era uma mulher nova, ela
entendia bem da vida e até que parecia saber se virar sozinha.
Kian passou um braço pela minha cintura e me puxou para si.
— O jantar foi incrível! — ela disse, voltando ao seu clima
animado. — Obrigada por virem, os meninos ficaram muito felizes.
— Sorri para ela com sinceridade e reparei em Kian fazendo o
mesmo. — Nos vemos na Ação de Graças?
Em um suspiro, ele confirmou e logo soltou-me para abraçar a
madrasta.
— Gosto quando tenho minha família reunida, gosto de cuidar
dela — Stephany disse, baixo, encarando o rosto do enteado. — O
que é meu deve ser cuidado com muito zelo.
Minha para cuidar.
Minha família, para cuidar.
Respirei fundo, tentando não pensar muito a esse respeito. Vê-
lo daquela maneira era lindo, simplesmente lindo e algo dentro de
mim se partia ao pensar no fim daquela história.
Eu e Kian entramos no grande salão do novo centro de eventos
da cidade. Meu braço estava ao redor do seu em uma
demonstração clara da nossa união. O olhei de soslaio, com um
sorriso crescente nos lábios. Kian era quente como o inferno, e a
visão dele naquela camisa preta junto com o blazer no mesmo tom
era a própria visão do pecado.
Stephany estava à frente com Charles e Bryan, Kian e eu a
acompanhávamos em uma longa entrada de escadaria com
corrimão dourado e um tapete preto cobria o piso de mármore. Ali,
tudo gritava luxo.
Mesmo sem Benjamin, nós fazíamos frente à família Wilding.
Nós. Respirei fundo e tentei afastar os pensamentos torpes da
minha mente.
Haviam câmeras por todos os lados, fotógrafos e imprensa,
prontos para registrar o momento, e tudo o que eu queria era
desviar daquilo. Para a minha sorte, Kian tinha o mesmo desejo.
Enquanto Stephany parava para pousar como a família exemplar do
Senador, nós a ultrapassamos e caímos em um salão enorme. O tal
centro de eventos parecia a porra de um clube e eu desconfiava que
poderiam haver mais salas por ali do que poderia contar.
Meus saltos batiam no assoalho amadeirado e lustroso
enquanto Kian nos conduzia para dentro do salão, logo Stephany
adentrou com os garotos e foi cumprimentar a mulher que, até
então, só conhecia por nome e fotos na internet. Algumas pessoas
estavam na nossa frente, então aguardamos pacientemente até que
pudéssemos estar frente a frente com a prefeita de Kardama.
— Prefeita Lopez, que evento magnífico! — Stephany
comentou.
Pela sua altura, a madrasta de Kian comprometeu parcialmente
a minha visão da mulher à minha frente, mas não me importei.
Talvez eu precisasse de mais alguns segundos até encará-la. As
duas trocaram mais algumas poucas palavras, e pude ver um
sorriso singelo de Olivia, que estava ao seu lado; desta vez,
desacompanhada de Hugo.
Instantes depois, Stephany deixou a nossa frente e saiu para
conversar com alguém que queria a sua atenção, nos dando acesso
a uma das mulheres mais poderosas da cidade.
— Prefeita Lopez — Kian a cumprimentou.
Os cabelos castanhos mais parecidos com os de Olivia e o
corpo parecido com o de Pietra, não deixavam mentir: Grace não
tinha muito de graciosa. Ela parecia mais alguém preparada para
uma guerra enquanto sua saia mídi mostrava quão bem cuidada ela
era.
Diferente da mãe, Pietra usava um vestido que deixava suas
panturrilhas bem amostra, enquanto o azul-claro contrastava com
seu tom de pele castanho e cabelo liso.
— Wilding… gostaria de dizer que é um prazer tê-lo por aqui,
mas minha capacidade de mentir não é tão grande — declarou em
um tom baixo, sendo cínica. Um sorriso falso estava estampado ali,
e logo seus olhos recaíram sobre mim. — E você, quem é?
— Ayla — Olivia e Pietra responderam ao mesmo tempo, mas
com tonalidades diferentes. Olivia parecia mais embaraçada, como
se já tivessem conversado sobre mim e ela não se recordava. Já
Pietra, se referia a mim com indiferença.
Estiquei minha mão, me colocando na frente de Kian.
— Ayla Brown, é um prazer conhecê-la.
A mulher me mediu e encarou Pietra, como se a perguntasse
algo. Pietra apenas anuiu com a cabeça, fazendo um sorriso largo
brotar nos lábios da prefeita, que voltou a me encarar e segurou a
minha mão, aplicando uma força desnecessária ali.
— É um prazer finalmente conhecê-la, Ayla. A garota que está
se metendo nos negócios das famílias da Tríade finalmente toma
um rosto…
Abri a boca para dizer que estava com Kian, mas logo a mulher
soltou a minha mão, a puxei para baixo, sentindo a pressão dos
anéis que haviam ali. Estiquei os dedos, um pouco nervosa.
A mão de Kian repousou na minha cintura, me puxando para si.
Senti seu peitoral em minhas costas e logo o ouvi falando baixo:
— Nunca mais a toque desta maneira, Grace.
A ação de Liv chamou a nossa atenção, suas mãos tocaram a
mão da mãe, em uma súplica silenciosa para que parasse. Era
visível o nervosismo dela diante da situação, não a culparia por ficar
à beira de um colapso ao ver seu melhor amigo e a sua mãe com
tratamentos hostis.
— Isso é uma ameaça?
De soslaio, vi Kian sorrir.
— Não, porque eu não as faço. Geralmente, avisos funcionam
melhor. E você sabe que eu os cumpro.
— E você deveria saber que colocar alguém, por esporte, no
meio desse esquema, não é permitido.
Kian pareceu ficar tenso.
— Eu confio nela…
— Deixe-me ser clara, não me importo se está dormindo com
ela, com uma de minhas filhas ou com a cidade inteira. Só saiba o
seu lugar, garoto, não estou há anos lidando com tudo isso, com
Hunter e Benjamin, principalmente, por nada. Lembre-se do seu
papel aqui — ela rebateu, mal movendo os lábios e mantendo o tom
de voz sutil. Logo, ela estreitou os olhos para Kian, os desviou para
mim e depois moveu até Pietra — Müller não tem muita voz e Pietra
parece um pouco amolecida demais para o meu gosto —Sua filha
abaixou a cabeça, sentindo o impacto da crítica. —, mas estou
avisando, Wilding: mantenha sua fodida cabeça no lugar. Esse não
é um passeio para trazer sua namoradinha.
— Não preciso que me explique meu próprio esquema, Grace.
E muito menos que controle minha vida amorosa.
Com os olhos fixos em Kian, a mulher parecia testar o seu
poder diante dele, mas logo ela desviou dos seus olhos, avaliando o
lugar enquanto um sorriso largo preencheu seus lábios.
— Hoje é dia de agradecer pelas coisas boas, Kian… — disse,
baixo. — Portanto agradeça que ainda não levei esse pequeno
insulto ao seu pai.
Minha respiração acelerou, enquanto me sentia, mais uma vez,
diminuída dentro daquela maldita cidade.
— Prefeita, meninas… Licença — Kian segurou a minha cintura
com firmeza, enquanto passávamos por Olivia, que tinha o olhar
baixo e perdido.
Conduzindo-me pelo salão, Kian nos levou para alguns metros
de distância da nossa anfitriã e paramos perto de uma mesa alta,
onde havia um arranjo de lírios brancos e não muitas pessoas por
perto.
Seus dedos vieram ao meu rosto, segurando nas duas laterais
do meu rosto.
— Ela é uma vaca, não deveria prestar atenção no que diz.
Meus olhos quiseram se encher de lágrimas, mas não poderia
dar esse gosto a Grace. Desviei o olhar para a camisa de Kian,
evitando seus olhos.
— Eu sei…
Senti a garganta seca e observei Grace, sendo só sorrisos a
cada um que chegava ali para cumprimentá-la.
— Olhe pra mim — ele pediu, com seus dedos me fazendo um
carinho sutil na pele. E eu o fiz. — Preciso que esteja aqui comigo,
mas não vou obrigá-la a ficar. — Seu tom era compreensivo, mesmo
que houvesse uma dureza característica ali. E ele fez a pergunta: —
Quer ir embora?
Neguei com a cabeça, mesmo ela estando entre as mãos de
Kian.
— Não, não estou disposta a dar essa vitória a Grace.
Os lábios do homem à minha frente curvaram-se em um sorriso
orgulhoso e malicioso. Rapidamente, seus lábios vieram a mim,
selando-os aos meus, pouco se importando se havia batom
vermelho ali. Agarrei-me no seu blazer, aceitando a sua língua na
minha boca. O gosto de menta arrastou-se por mim, acalmando nós
dois. E por aqueles segundos, com a boca de Kian nos meus lábios,
esqueci que estávamos em uma festa cheia de pessoas e que
aquela ação provavelmente chamaria atenção.
Ele desceu os dedos pelo meu pescoço, seguindo até as
minhas mãos, as segurando com cuidado. Levando uma delas aos
lábios, ele depositou um beijo ali.
— Essa é a minha garota. — E fez o mesmo movimento com a
outra.
— Não sou sua propriedade, Wilding — o provoquei.
Ele sorriu mais ainda.
— Quem disse que não?! — o tom era de brincadeira, mas seus
olhos intensos me mostraram todos os seus pensamentos impuros.
Seu rosto aproximou-se do meu, tocando a pontinha do seu nariz no
meu, enquanto mantinha meus olhos fechados. — Já disse, minha
pra cuidar.
Ele soprou baixo e delicadamente. Em seguida, senti seus
lábios depositando um beijo na minha bochecha, arrancando-me um
sorriso carinhoso.
Senti os olhos marejados por um instante, recebendo seu um
olhar protetor. Meu coração ficou absurdamente inflamado com a
forma como seus olhos castanhos de pintinhas esverdeadas me
observavam. Ele me deixava em queda livre, e, no nosso mundo
caótico, era também a única corda na qual queria me agarrar.
— Le mien pour m'en occuper — soprei para ele, dizendo as
exatas palavras dele.
Um sorriso gentil surgiu em seus lábios.
— Amor, não falo francês.
Foi a minha vez de sorrir largamente. Dei um passo para frente
e levei meus até a sua orelha.
— Meu para cuidar.
Depositei um beijo em seu maxilar, agradecendo pelo batom
não ficar ali marcado e o vi radiante.
— Um espumante para nos mantermos sãos? — sugeriu e eu
assenti.
— Antes, irei ao toilette, guarda minha taça?
Ele concordou e eu me afastei. Precisava de um pouco de ar, e
uma água gelada no pescoço. Caminhei entre as pessoas que
começavam a encher o salão, procurando por suas mesas com a
ajuda de alguns recepcionistas do evento. Sabia qual era a nossa
mesa porque Stephany avisou no almoço que sentaríamos na mesa
da frente. As três famílias sentariam.
Com um passo após o outro e desviando de algumas pessoas,
estava quase chegando à porta do banheiro quando dedos fortes se
fecharam no meu braço e eu fui parada por uma muralha de
homem. Tai Yang e eu estávamos lado a lado, com ele virado para o
centro do salão enquanto eu estava virada para a porta do banheiro.
Subi o olhar analítico para os seus olhos e encontrei a fúria
contida de um homem.
— Você está bem mais envolvida nisso do que imaginava....
— Tai — o chamei, nervosamente.
Ele me ignorou, parecendo nervoso e decepcionado.
— Eles não são bons, Ayla. E todo o negócio sujo deles envolve
a minha segurança e da minha família — Senti a glote se fechar. —
Quero você fora da casa de Yue. Invente uma boa desculpa para a
minha irmã, e saia de lá o mais rápido que conseguir. — Seu tom
era extremamente baixo, mas fui capaz de ouvir cada palavra. —
Você é um perigo para mim e para a minha irmã.
Sem esperar uma resposta, Tai me soltou e saiu de perto.
Senti como se tivesse segurado a respiração todo o instante
que ele esteve falando e lá vinha todo o oxigênio machucando meus
pulmões com a ansiedade.
Foram necessários alguns minutos para que eu me acalmasse e
dei sorte de não haver ninguém ali. Não queria parecer uma
covarde, mas tudo naquela situação me deixava nervosa. Era claro
que estava mentindo para Tai e Yue há semanas. Ou melhor, desde
que a conheci em Nova Iorque, mas ainda tentava mentir para mim
mesma dizendo que era por um bom motivo, ainda que começasse
a duvidar do que, realmente, estava fazendo.

As mesas estavam impecáveis e as cadeiras eram


curiosamente estofadas. Com as mãos de Kian sob as minhas,
enquanto Stephany e os garotos estavam junto conosco ao redor da
mesa de toalha preta, observamos o palco. Lá, estava a prefeita
com toda a sua rigidez e sorrisos falsos, acompanhada das filhas:
Pietra e Olivia. O vice-prefeito com a esposa, o líder do partido, o
presidente da câmara de vereadores, o secretário de infraestrutura
da cidade, o xerife inútil, e, claro, a família Müller: Hunter, a esposa
Lindsay e Hugo. Descobri todos os títulos quando a própria Grace
começou o discurso os apresentando.
A tensão parecia presente no ambiente, por mais que houvesse
abundância de bebidas e sorrisos distribuídos com intensidade. O
primeiro sinal de que havia algo estranho era a distância cruel e
visível entre Hugo e Olivia. Ele estava ao lado da mãe, em um dos
cantos do palco, enquanto Olivia estava sentada ao lado de Pietra
na outra extremidade.
Senti os dedos de Kian arrastarem-se pela minha pele em um
carinho sutil. Desci meus olhos para nossas mãos e voltei-me para o
seu rosto, tendo a minha atenção roubada quando Grace voltou a
falar após um gole de água.
— Hoje é um belo dia para se agradecer, apesar do frio que se
faz na nossa amada Califórnia. — Alguns riram. — Nós temos que
agradecer a nossa força policial por sempre manter as ruas seguras,
nos dando liberdade para ir e vir. Temos que agradecer a família…
— Seus olhos recaíram sobre duas filhas, que sorriram fraco. — E,
principalmente, as pessoas que escolhemos ter ao nosso lado, que
chamamos de amigos. — Kian segurou-se para não rir. — É um dia
para celebrar a vida — ela prosseguiu —, nossa cidade de Kardama
é tão próspera, com pessoas tão incríveis e trabalhadoras. Alunos
dedicados e que só nos trazem esperança de um futuro ainda
melhor, todos os dias. É preciso agradecer ao nosso secretário de
infraestrutura, arquitetura e urbanismo, Paul Peruz, e, claro, à
gentileza infindável da construtora Müller por ceder o terreno e
auxiliar nessa construção incrível na qual estamos.
Foi visível o sorriso imenso que Hunter colocou no seu rosto. A
forma como amaciavam o ego um do outro era bizarra e, olhando de
dentro, era ainda mais insano.
— E mais importante do que tudo isso — continuou Grace —, é
termos em mente o quanto esse centro de eventos será importante
para a cidade de Kardama. — E é claro que ela transformará isso
sobre ela, pensei. — Todo o planejamento da estrutura é, sim,
importante, mas há algo mais importante: as pessoas de Kardama,
e é por isso que este local estará aberto todos os dias para as mais
diversas atividades culturais. Seja para receber a recreação do asilo
municipal, quanto para receber o novo programa de terapia coletiva,
ofertado pela prefeitura, e, na primeira sessão, receberemos
mulheres absurdamente fortes, que passaram pela perda que o
aborto causa na vida de um indivíduo.
Enquanto todos os olhos estavam em Grace, Olivia ousou
levantar-se, empurrando sua cadeira para trás. A sua expressão era
de choque enquanto encarava a mãe, que agora mirava a filha mais
nova. A briga no olhar das duas era claro, mas não haviam palavras.
Kian segurou minha mão com mais pressão, sem tirar os olhos
da mesma cena que eu observava. Pietra tentou segurar o pulso da
mais nova, mas Olivia foi ríspida como nunca e esquivou-se do
toque. Haviam lágrimas presas nos olhos da minha amiga e isso me
acendeu um tipo de alerta.
— Olivia… — ouvi Pietra suplicando, mas acredito que não
houveram muitos convidados que ouviram para trás, já que
estávamos na primeira mesa.
— Foda-se você, Pietra — Olivia moveu os lábios.
E com passos apressados, Olivia desceu do palco, passando
pela frente da nossa mesa já correndo sobre os saltos. Voltei-me ao
palco quando vi uma movimentação de Hunter e Hugo. O garoto
tentou levantar-se, provavelmente para ir atrás de Olivia, mas
Hunter jogou seu braço por trás da esposa e segurou os ombros do
filho, colocando sua cara atrás da esposa, sem permitir que
víssemos o que ele disse ao filho, mas foi algo que o fez
permanecer no lugar.
Senti meu coração apertado e logo algo pousou na minha mão.
Observei as chaves ali.
— Tire a Olivia daqui — Kian soprou com os lábios mais
próximos dos meus ouvidos. — Não tenho um bom pressentimento
sobre isso, leve-a para um lugar seguro.
E sem pensar duas vezes, me levantei, correndo atrás de Olivia,
mesmo de salto - o que dificultou o meu processo - a alcancei na
porta do banheiro. A garota entrou ali e eu a segui para dentro,
sentindo meus pés doerem um pouco, mas nada doeu mais do que
meu coração ao ver aquela pessoa radiante com um choro
desesperado.
— Liv…
Seus olhos castanhos me encontraram e logo seu corpo estava
agarrado ao meu em um abraço apertado enquanto ela derramava
lágrimas sem previsão de parar.
— Eu estou aqui, vai ficar tudo bem…
E mais lágrimas vieram. Foi preciso alguns instantes, até que
consegui dizer a ela para sairmos de lá e irmos embora. Sua
concordância de pronto fez com que a carregasse pelo salão lateral
com facilidade, saindo pela cozinha do centro de eventos.
Chamei um carro de aplicativo enquanto Grace continuava o
seu discurso e a levei para onde Kian havia me pedido: um lugar
seguro.
Quando tudo ficou silencioso, arrisquei a me mexer. Olivia
dormia pesadamente após basicamente desidratar de tanto chorar,
sem me contar o motivo do porquê tinha ficado tão abalada.
A luz de fora já era toda artificial, a noite engolia Kardama e o
coração da minha amiga estava calmo. Me movi na cama do quarto
de hóspedes do apartamento de Kian e caminhei descalça pelo
piso. Precisava checar meu celular, que acabou ficando na sala,
precisava avisar Kian que ela estava dormindo já que,
provavelmente, ele e Hugo estavam nervosos o suficiente.
Abri a porta com cuidado, observando Luci deitado no começo
do corredor observando a sala. Caminhei a passos lentos até lá,
parando e levando a mão ao peito ao ver Hugo no sofá, encarando
uma garrafa de vodca.
— Porra, me assustou! — eu disse em um tom baixo, entrando
de vez na sala. — Quando chegou aqui?
Observei o garoto loiro de cabeça baixa, analisando a garrafa
que já tinha menos da metade do conteúdo. O garoto sorridente de
sempre estava em algum outro lugar, porque aquele Hugo estava
com a pior expressão possível. Por um instante, ele pareceu em
transe, até que seus olhos azuis, misturados com a vermelhidão, me
encararam. Ele possuía um olho roxo e, com certeza, havia
chorado.
— Ayla… — ele pigarreou. — Como ela está?
— Dormindo… — Aproximei-me e sentei ao seu lado. —
Quando chegou aqui? Quem bateu em você?
— Sei lá, Kian me deixou faz algum tempo... E, bom, meu pai.
Ele não gosta de ser contrariado.
Assenti, agradecendo por eu e Kian termos pensado no mesmo
lugar quando ele se referiu a algo seguro. Observei o rapaz ao meu
lado e ele parecia arrasado. Não, ele parecia destruído.
— Ela te falou algo? — Sua língua pareceu se enrolar para
deixar as palavras saírem.
Neguei com a cabeça, puxando uma mecha dos meus cabelos
para trás.
— Não — verbalizei. O que não queria dizer que a minha
curiosidade não estivesse enorme para entender o que é que tinha
acontecido. Escorreguei minha mão e segurei a dele. — Vocês
estão seguros aqui, Hugo.
Ele riu e levantou-se, deixando a garrafa na mesinha de centro.
— Nós nunca estaremos seguros nesta cidade — declarou,
irritado.
E as lágrimas voltaram aos seus olhos, deixando uma dor que
parecia, até então, contida, esvair-se pelos seus olhos como uma
tempestade de verão. Violenta e barulhenta. Ele ajoelhou-se na
frente do sofá e enfiou a cara em uma almofada, para abafar o som.
Onde estava Kian? Por que ele tinha largado o Hugo ali? Por
que os dois estavam chorando desse jeito?
Meu corpo foi ao chão, parando com a mão nas costas de
Hugo, fazendo um carinho ali. Ele precisava se acalmar.
— Eles tiraram tudo de nós. Eles sempre tiram! — ele rugiu com
raiva, vi os nós dos seus dedos ficando brancos, devido à força que
aplicava a almofada e depois voltou a derramar mais lágrimas.
— Hugo, eu…
Não sabia o que dizer. Meu coração ficava minúsculo com os
dois dessa forma.
— Tudo… eles tiraram tudo de nós. Eles sempre fazem isso… E
dói. Ainda dói. E ela… Deus, como eu amo a Olivia, e eu nunca vou
ser capaz de cuidar dela como ela merece — ele disse, arrasado. —
Eu a amo, Ayla.
— Eu sei… — soprei, sentindo minhas próprias lágrimas unindo-
se em meus olhos.
— E eu não posso protegê-la.
— Vocês dois estão a salvo aqui… — tentei argumentar, mas
ele negou com veemência.
— Nunca estaremos a salvo em Kardama. Nunca estaremos
livres. Nunca…
— Hugo…
Seus olhos então encontraram os meus. Eram olhos de
ressaca, acabados. De alguém em pedaços.
— Já pensou em ter filhos, Ayla? — ele soprou, enquanto seus
olhos piscavam vagarosamente. Estranhei a pergunta, mas ele
continuou, mesmo sem a minha resposta: — Eu penso nisso
bastante. E, porra, como queria um filho com aquela mulher. Só
que…
Meus olhos analisaram seu perfil, tentando compreender o que
Hugo queria me dizer com aquilo.
— Eles já tiraram isso da gente uma vez — confessou, fazendo
com que minha boca ficasse seca. Seus olhos não tinham mais
lágrimas, só estavam absurdamente vazios. — A gente tem essa
mania de fugir para Malibu, sabe? E em uma dessas, nós… bem,
nós fizemos um filho. Tínhamos dezesseis. Com Grace sendo a
promotora da cidade e meu pai o dono dos prédios, as coisas
pareciam absurdas. Seria um escândalo e tanto em Kardama… —
Ele riu, sem humor. — Assim que Grace descobriu, ela deu um jeito
de se livrar do problema. — Minhas lágrimas escorriam,
desesperadas já. — Ela não queria tirar. Eu não queria. E, mesmo
assim, eles fizeram. — Respirar começou a se tornar difícil,
enquanto Hugo parecia confessar o seu maior segredo. — Eles a
machucaram, eles machucaram a minha Liv e não pude fazer nada.
Nada!
Agarrei sua mão novamente.
— Não foi sua culpa.
— Eu deveria ter ficado ao lado dela, sempre. A culpa é minha
também.
— Hugo, por favor, não diga isso.
— Eles sumiram com ela, durante quinze dias. Eu quis morrer,
achei que nunca mais me deixariam chegar perto dela — ele
soprou, os olhos piscando cada vez mais vagarosamente. — E
quando ela voltou… era outra pessoa. Ela passou meses destruída
e eu não tinha ideia do que fazer. Eu me senti tão… inútil. Um
merda, igual o meu pai. Lembro de quando cheguei a casa delas, e
Pietra me disse que Grace a tinha levado. Acho que aquela foi a
primeira e única vez que a vi chorar. Faz quase dez anos, e ainda
dói tanto — Ele bufou, irritado. — Eles tiraram nosso bebê e
ninguém nem perguntou o que queríamos. Eu a queria e ao nosso
filho também. Porra! — E sua cara foi parar na almofada
novamente, enquanto ele urrava em aflição.
Meu coração estava destruído, aquela sala estava vertendo em
lágrimas e eu só conseguia pensar no quanto eles conseguiram
machucar Hugo e Olivia.
De repente, a porta da frente se abriu e um Kian ansioso
chegou. Seus olhos logo captaram a cena, seu blazer foi parar no
sofá e ele se abaixou ao nosso lado.
— Ei, vem… — Kian o chamou. — Vou te dar um banho e você
vai deitar com ela.
Os olhos de Hugo apenas o encararam e, em silêncio, ele se
levantou e, entre tropeços, Kian conseguiu carregá-lo pelo corredor
até o seu quarto, fui atrás, mas Kian só me pediu para fechar a porta
do quarto. Pedindo que esperasse na sala.
Cansada, caminhei até lá, arrastando meus pés e com as
palavras de Hugo enfiadas no fundo do meu ser. Achei que o fato de
Benjamin espancar Kian era o pior que poderia ver de um pai, mas,
aparentemente, estava errada. Aqueles três conseguiam ser piores
do que eu sequer poderia imaginar.
Joguei meu corpo no sofá, sentindo todo o peso do dia me
atingir com tudo. Todas as palavras, todas as lágrimas.
Aquela cidade era, realmente, um inferno.

Dois dedos passaram em meus braços, me fazendo ter um


sobressalto. Olhei ao redor, encontrando os olhos dele, enquanto
meu pescoço doía um pouco pelo meu cochilo no sofá.
— Ei, tá tudo bem — Kian soprou, segurando a minha mão. —
Vem, vamos tirar esse vestido e te deixar bem confortável pra
dormirmos…
Sonolenta, sentei-me, sentindo um pouco de dor de cabeça.
— Que horas são?
Ele levou os olhos até o relógio que estava na parede nas
minhas costas e logo constatou:
— É uma hora, tá tarde.
Assenti e me levantei, deixando meu corpo se grudasse no de
Kian. Bocejei no meio do caminho e entrei no quarto dele, deixei os
olhos perscrutarem o local, ainda não sabia bem o que estava
passando na minha mente. Conseguia ouvir o choro do casal que
estava dormindo em um dos quartos do apartamento nos meus
pensamentos.
Procurei por Kian, então. Mergulhando em seus olhos enquanto
queria silenciar a minha mente. Seus dedos, cuidadosamente,
abriram meu vestido, tirando-o do meu corpo.
Em silêncio e sem qualquer malícia, ele tirou minha meia calça e
vestiu meu corpo com uma camiseta sua. Baixei meu olhar,
encarando-o dentro do conjunto de moletom, voltando a encarar o
seu rosto.
— Você sabe o que eles fizeram? — minha pergunta saiu como
um sopro, ao mesmo tempo que sentia minha maldita glote
querendo se fechar novamente.
Seus olhos saíram dos meus e ele encarou a cama por um
instante, até que respondeu:
— Soube hoje… — admitiu. — Hugo falou tudo enquanto o
enfiava embaixo do chuveiro.
— Liv não me falou nada, foi ele que disse.
— Então a gente não vai falar nada pra ela. É algo deles. Se
esconderam esse tempo todo, não vou falar nada...
Assenti e senti os olhos marejados.
— Onde você estava? — questionei, enquanto ele me puxava
consigo até a cama. Ele me colocou embaixo das cobertas. E tirou o
conjunto de moletom, o deixando sob a poltrona que havia ali. Ainda
sem responder minha pergunta, ele foi até o outro lado da cama e
deitou-se, apagando as luzes.
— Resolvendo algumas mercadorias na Seven.
Meus dedos foram até seu peito e senti seu coração batendo.
Aproximando-me na cama, enrolei minhas pernas nas suas. Um
suspiro pesado deixou meus lábios. Tudo o que queria era que o
mundo parasse, porque além da bagunça exterior, havia o caos
interior que eu estava enfrentando.
— Ei... — Seus dedos tocaram meu rosto em um carinho sutil.
— Vai ficar tudo bem, eu te prometo. Não vou deixar nada te
acontecer, Ayla.
Sorri com tristeza.
— Eu sei disso, é só que tudo isso… é tão intenso.
Seus dedos subiram, puxando uma mecha do meu cabelo para
trás, enquanto seus olhos mantinham-se nos meus. Podia ver um
vislumbre de medo ali.
— Posso te tirar da cidade, mandar você de volta para o
Canadá, se essa for a sua vontade.
Estiquei meu pescoço e deixei meu nariz roçar no seu, antes de,
finalmente, depositar um beijo em seus lábios. Um beijo sincero.
Porra, um maldito beijo de entrega. As lágrimas queimavam minhas
pálpebras enquanto mantinha os olhos fechados.
Seus dedos fecharam-se na minha pele, puxando-me para si,
mas precisei afastá-lo. Precisava que seus olhos estivessem nos
meus e só assim confessei:
— Não vou a lugar nenhum, Kian Wilding. Eu já te disse que
escolho ficar.
Um sorriso surgiu em seus lábios e em seu abraço foi onde cedi
a exaustão do dia.
Apesar das baixas temperaturas do começo de dezembro,
Kardama era um lugar confortável para se estar. Prova disso era
aquele momento, onde eu e as meninas da Kappa Phi estávamos
na área externa da casa, enroladas em cobertores e bebendo
chocolate quente com marshmallows. O meu, claro, era vegano.
— Ainda estou exausta das provas finais — Railey disse,
soprando o líquido fumegante da sua caneca.
— Nem me fale — Olivia resmungou, jogando a cabeça contra o
encosto da espreguiçadeira. — Depois da festa de Ação de Graças,
tive que ter cabeça para essas merdas.
Mordi o lábio inferior; por alguns instantes, me perguntei se
Olivia também não usufruía do poder de sua família na UK. Afinal,
Kian não se preocupava muito com o curso de Direito. No entanto,
após descobrir sobre o bebê que Hugo e Olivia perderam, eu
entendia o quanto os dois negavam todo aquele esquema sombrio
que existia na cidade.
Era uma forma de se manterem longe de algo que os machucou
tanto.
— Pelo menos, as férias de inverno estão aí. Duas semanas
tranquilas de descanso na casa dos meus pais. — Quinn suspirou.
Olivia bufou uma risada e eu me encostei mais na minha amiga,
que dividia uma espreguiçadeira comigo.
— Como será o seu natal? — perguntei em um sopro.
Ela me avaliou através dos cílios longos. Por mais que, por fora,
ela esboçasse um sorriso largo, era possível ver a tristeza no fundo
dos seus olhos.
— Hugo reservou um apartamento em Malibu — ela disse, com
a voz levemente trêmula em emoção. — Vamos fugir pra lá no dia
vinte e quatro.
Eu sorri, feliz por aquilo. Os dois mereciam um tempo longe de
Kardama. Com absoluta certeza, Grace Lopez não ficaria feliz com
aquilo. No entanto, não me importava nem um pouco. Eu lutaria com
unhas e dentes contra aquela mulher se fizesse algo contra Olivia
por causa desse momento com Hugo, e faria o mesmo pelo meu
amigo.
Meu ódio pelos pais dos dois era imensurável.
— E você? Vai voltar para o Canadá?
Desviei dos seus olhos, um pouco angustiada com a ideia de
deixar Kardama e Kian. Não sabia como funcionavam as coisas com
os Wilding durante o natal, mas desconfiava que a data cheirava a
evento caro.
— Não sei muito bem. Estou tão preocupada com a mudança
que mal tive tempo de falar com meu pai — confessei, o que não
era mentira.
Eu estava, cada vez mais, contando verdades a Kian, Olivia e
Hugo. Fossem elas sobre meus sentimentos, ou pequenas
informações sobre mim e a minha vida.
— Encontrou alguma coisa? — Liv perguntou, colocando mais
alguns marshmallows sobre o chocolate quente.
— Claro! Hugo pegou trocentas chaves na imobiliária da família
dele — soprei, entre uma risada.
Por conta de os Müller serem os donos de quase todos os
prédios e grandes construções da cidade, tanto no ramo da
construção como o imobiliário, não foi difícil ele me ajudar a
conseguir algo para alugar. No entanto, Kian não gostava muito das
opções que cabiam no meu bolso. Mesmo depois do constante
aumento do policiamento na cidade, por causa dos Cavaleiros, e as
coisas estarem relativamente mais calmas, ele estava paranoico
com a segurança de todos.
Inclusive, a minha. Então, não era todo apartamento que servia.
É claro que, agora, eu conseguia entender porque Tai Yang foi
praticamente expulso do seu último imóvel. O mesmo pertencia aos
Müller. Ou seja, o rapaz importunou a tríade e pagou com sua
moradia. A sorte era que o pequeno apartamento antigo que Yue
vivia, não era uma propriedade direta da família de Hugo.
— Suas coisas ainda estão na casa dos Yang? — perguntou Liv,
curiosa. — Se precisar de uma ajuda para embalar tudo, me chame.
— Provavelmente, irei precisar. Kian e Tai no mesmo ambiente
parece uma combinação explosiva e não estou preparada para
danos sobre isso — murmurei, bebendo um gole do líquido e
queimando superficialmente a língua. — Uh, droga.
Olivia esticou a mão até a mesinha do lado da cadeira e pegou
uma garrafa com água, me entregando. Agradeci e bebi um gole,
sentindo o líquido gelado abrandar a dor. De repente, observei os
olhos de Quinn indo para trás de nós.
— Com todo respeito, Ayla. O seu namorado é uma visão e
tanto, ainda não estou acostumada com ele invadindo a nossa
fraternidade para te roubar — ela disse, fazendo todas rirem.
Virei o rosto para trás, vendo Kian surgir das portas da parte de
trás da casa. Eu estava dormindo há alguns dias na fraternidade
Kappa Phi com Olivia e as meninas, e Kian aparecia furtivamente no
lugar, uma vez ao dia, pelo menos.
Ele tinha passado o dia em uma reunião na cidade vizinha,
como vinha fazendo quase todos os dias nas outras cidades da
região. Firmando seu poder e mantendo o esquema forte.
— Não julgo vocês por olharem demais — respondi, sorrindo
para o meu, aparentemente, namorado, quando seus olhos pararam
nos meus e começou a caminhar na nossa direção. — Ele é quente
como o inferno.
Retirei os cobertores de cima do meu colo, depositando a
caneca e a garrafa de água em uma das mesinhas enquanto as
garotas seguravam a risada. Kian se aproximou de mim, sem olhar
para as outras garotas.
— Está pronta?
Agradável, como sempre.
— Sim — falei, pegando a bolsinha que havia deixado comigo.
— Até mais tarde, meninas — anunciei, enquanto Kian pegou na
minha mão e caminhamos para longe dali.
— Você não vai voltar hoje — ele rugiu.
Estreitei meus olhos para ele, enquanto descemos as escadas
da entrada da casa e cruzamos o jardim, indo até o seu carro.
— Ah, é?
— Sim.
— Como você tem tanta certeza? Está determinando isso?
Ele destravou o carro, e abriu a porta para mim, me lançando
um olhar sujo quando apoiou o braço na porta e esticou o corpo na
minha direção.
— Tenho uma surpresa pra você. E, com toda certeza, você vai
querer me agradecer com seu corpo no meu. Sem roupas e durante
a noite toda, de preferência.
Meu interior se contraiu em expectativa.
— Surpresa?
Ele segurou meu queixo, me trazendo para perto e beijando
meus lábios demoradamente entre um sorriso.
— Entre no carro, Ayla. Estamos perdendo tempo.
Fiz o que ele pediu, com as pernas vacilantes e o coração
disparado.
Kian fechou a porta e contornou o veículo. Assim que colocou
seu Mustang em movimento, sua mão descansou na minha perna
coberta pelo jeans. Era um pequeno movimento que me fazia sorrir
sempre que estávamos dentro do seu carro.
Ele dirigiu por algum tempo até o bairro que o seu apartamento
ficava. Identifiquei o lugar. Era há pouco mais de duas quadras do
prédio em que Kian morava. Antes que eu tivesse chance de
perguntar algo, Kian pulou para fora do carro.
Fiz o mesmo e confusão me tomou quando ele tirou uma chave
do bolso. Encarei o prédio com pelo menos seis andares. Ele tinha
uma estrutura parecida com os demais daquela rua. Todos
modernos. Os que eu havia ido visitar faziam parte das estruturas
antigas de Kardama, geralmente com dois ou três andares.
— O que estamos fazendo aqui? — perguntei, intrigada.
— Achei um apartamento seguro e que talvez você goste —
Kian explicou, retirando do bolso uma chave.
— Não consigo pagar um apartamento aqui — disse, com os
olhos presos no seu perfil.
Ele encarava a entrada do apartamento de forma séria. Seus
olhos encontraram os meus e divertimento brilhou ali.
— Seu chefe acabou de te dar um aumento, ou um auxílio
moradia…. O que você preferir.
— Kian — disse, firme, segurando em seu pulso quando ele fez
menção de começar a caminhar. — Não quero que pague o meu
aluguel.
— Bem, eu não te quero correndo risco — ele rebateu, com a
voz levemente cansada e terna. Kian molhou os lábios, parando em
minha frente e escovando os nós dos dedos na lateral do meu rosto.
— Você é teimosa pra caralho, Ayla. Deveria ter aceitado se mudar
para o meu apartamento, e, aí, sim, eu estaria tranquilo.
— Já conversamos sobre isso, Kian… — disse, colocando a
mão na cintura. — Estamos nos conhecendo, mudar para o seu
apartamento seria um pouco rápido demais.
Ele apertou os lábios com força, demonstrando que não
concordava com aquele meu pensamento. Então, suspirou,
abaixando sua mão e me segurando pela cintura.
— Me deixe cuidar disso, por favor. Não estarei tranquilo com
você morando em qualquer lugar. Aqui é seguro, vigiado e perto de
mim.
Olhei de soslaio para o prédio, um pouco nervosa pela forma
como ele estava agindo. Não parecia ruim, mas, certamente, Kian
estaria com os olhos atentos em mim a todo minuto.
Mais uma vez, eu estava me tornando algo muito diferente da
garota que um dia chegou em Kardama. Eu estava permitindo que
Kian Wilding cuidasse de mim.
— Acho que podemos, hum… — Mordi o lábio inferior,
encarando Kian. — Olhar o apartamento, então.
Ele apertou os dedos na minha cintura.
— Não quero forçar você a nada. Quero que entenda porque
estou fazendo isso e o perigo que estamos enfrentando. Você tem
um alvo nas costas e isso me tira o sono para caralho.
O canto dos meus lábios subiu vagarosamente, de uma maneira
ansiosa, e me pus na ponta dos pés, roçando meus lábios nos dele.
— Você tem uma boca suja, Kian Wilding.
Ele sorriu, me beijando depressa.
— Digo o mesmo, querida — respondeu, e depois segurou em
minha mão para que entrássemos no lugar.
Era um prédio novo, com elevadores e um hall espaçoso em
tons gelo e dourado. Nada que eu pudesse pagar, de fato. Entramos
no elevador, e quando Kian apertou no botão do sexto andar, eu o
encarei incrédula.
— Não me diga que é uma cobertura.
Ele me olhou de uma forma divertida.
— Claro que não.
Eu não sabia se ele estava falando a verdade, então, bufei,
cruzando os braços na altura do estômago. O que pareceu apenas
diversão aos olhos de Kian, porque ele me puxou para si, entre uma
risada e, depois, beijou a curva do meu pescoço.
Céus, como eu era fraca perto dele. Minha pele arrepiou quando
seus lábios encostaram em minha pele, mas me mantive firme,
dando um tapinha em seu braço e tentando me afastar do seu
aperto forte.
— Estou falando sério, Kian.
— Eu também — ele respondeu, mas ainda parecia contente
demais.
Soltei uma rajada de ar pelas narinas e me dei por vencida em
relação ao seu abraço. O elevador chegou ao sexto andar, e Kian
nos levou para fora. Respirei aliviada quando vi que o último andar
possuía portas o suficiente, indicando que haviam mais
apartamentos por ali. Kian caminhou comigo até a porta do
seiscentos e três, e me entregou o molho de chaves para que eu
abrisse a porta.
Meus olhos avaliaram o corredor antes que pegasse as chaves
da mão de Kian.
— São quatro apartamentos por andar? — perguntei, curiosa.
— Sim — respondeu, sucinto.
Estreitei meus olhos para ele. Ele apenas deu de ombros, me
fazendo bufar em seguida.
Segurei firme a chave e empurrei contra o miolo. Girei a chave e
apertei a maçaneta entre meus dedos, abrindo a porta. Mantive meu
corpo parado sob o batente, enquanto meus olhos captavam o lugar,
em êxtase.
— Meu Deus! — soprei, incrédula com o que via.
A sala de estar era grande, com paredes brancas, dois sofás
espaçosos em cor bege e uma estante de livros ao lado da janela.
Folhagens verdes contrastavam com o branco e o colorido das
almofadas dos sofás. Apesar do sol do meio da tarde não ser dos
mais fortes, a iluminação naquele lugar era o suficiente para refletir
cada espaço ali.
Virei meu rosto para a direita, encontrando a cozinha com
eletrodomésticos modernos em uma vibe retrô.
— Me diga que tudo isso estava aqui quando você pegou a
chave — falei, minha voz ecoando pelo lugar enquanto dei alguns
passos para dentro do apartamento.
Ouvi a porta ser fechada e a risada baixa de Kian.
— Sim. Estava mobiliado.
Não sabia se era verdade, porque aquele lugar era
absolutamente tudo o que sonhei um dia. Estava deslumbrada por
cada parte daquele lugar, e meu coração batia forte quando pensei
que tudo aquilo poderia ser meu.
Eu estava vivendo meus melhores dias ao lado de Kian, sem
preocupações com contas e a vingança. Ele estava me mostrando o
melhor dos meus sentimentos, de si próprio e também do que o
dinheiro poderia trazer. Principalmente, o conforto.
Andei devagar pelo apartamento, observando os detalhes do
lugar e não escondendo meu sorriso ao encontrar uma vista
memorável na janela da sala. Conseguia ver a ponta do deserto de
Sonora e a imensidão do céu naquela altura.
Girei no eixo, vendo que Kian ainda estava perto da porta. Ele
tinha as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e um olhar vitorioso
em minha direção.
— Eu sabia que você ia gostar.
— Convencido — rebati, ainda sorrindo. Virei o rosto na direção
das portas do pequeno corredor. — Dois quartos e um banheiro?
— Uma suíte, um quarto de hóspedes e, sim, um banheiro.
Uma suíte. Eu sorri, caminhando depressa até o quarto que
seria meu.
Eu ainda estava impressionada com o lugar quando passei pelo
quarto da suíte, composto por uma cama de casal grande, uma
porta que levava ao closet, escrivaninha e televisão de plasma.
No entanto, parei na soleira da porta do banheiro, observando o
lugar refletindo o mármore branco. A pia do banheiro possuía uma
cuba moderna, um espelho enorme e um cesto de toalhas. O box
era grande o suficiente para que eu e Kian coubéssemos juntos, e o
pensamento fez meu rosto aquecer. Eu já estava nos imaginando
ali.
Meus olhos foram até o reflexo do espelho quando notei a
movimentação de Kian. Ele parou atrás de mim, com os olhos fixos
aos meus.
— Aprovado?
Sorri.
— Sim — respondi, mesmo que eu ainda não gostasse de saber
que ele estava pagando por aquilo. — Preciso saber como
compensá-lo. Nosso acordo, há semanas atrás, envolvia o nome
dos informantes de Tai Yang.
Ele fez um barulho de desdém com os lábios, pairando as mãos
em meus quadris.
— Bobagem. Depois daquilo, você se tornou mais do que uma
informante.
— Pietra ainda tem problemas com ele — lembrei-o, já que ele
havia prometido a Lopez mais velha que lidaria com Tai.
— O problema é dela, não meu. Eu a ajudaria a resolver algo,
mas, no momento, existem problemas maiores do que um jornalista
metido.
Apesar de tudo, eu gostava de Tai Yang. Ele era uma boa
pessoa no meio daquele ninho de cobras, e a forma como Kian se
referiu a ele fez meu coração apertar-se. Porque, no fim, Tai e Yue
poderiam ser as únicas almas puras no meio daquilo.
E eu já não fazia parte daquele grupo.
Eu havia me tornado um deles.
Desviei meu olhar para os meus pés, perdida demais naquele
sentimento ruim que fazia com que minha consciência gritasse
comigo sempre que colocava meus sentimentos em uma balança.
Kian viu a forma como fiquei, então, senti suas mãos em meus
ombros protegidos pelo casaco grosso.
— Me fale o que está passando pela sua cabeça — Kian disse,
próximo ao meu ouvido, fazendo meu corpo inteiro arrepiar.
Novamente, ele estava ali, nublando aquela parte quase
esquecida da história. A vingança. O meu propósito.
— Nada… estou apenas lembrando sobre algo que falei com as
garotas — desviei o assunto, voltando a procurar seus olhos no
espelho.
— E sobre o que era?
— Sobre o natal — falei, engolindo em seco.
— Hum. E o que mais?
Kian colocou meus cabelos para um lado só. Os fios estavam
um pouco mais longos, o suficiente para que ele conseguisse fazer
aquilo. Eu precisaria cortar as pontas em breve, mas, no momento,
eu queria deixá-lo maior ainda para que Kian fizesse aquilo mais
vezes.
Seus lábios encostaram no meu pescoço, e ele desceu as mãos
até meus quadris, me puxando para si.
Subitamente, me senti quente entre as mãos e os lábios de
Kian. Fechei os olhos, deixando meu corpo se apoderar daquelas
sensações que só ele conseguia me dar.
— Não falamos sobre a data ainda…
— Os Wilding presidem uma festa anual no dia vinte e cinco —
ele explicou, entre os beijos, fazendo meus olhos pesarem e meu
corpo amolecer. — Eu adoraria te ter ao meu lado.
Mordi o lábio inferior, reprimindo um gemido quando os dentes
dele cravaram na minha pele.
— Está cogitando ir nessa festa?
— Se você estiver ao meu lado, sim — continuou, e, então,
suas mãos intensificaram o aperto. Seus olhos estavam nos meus
pelo reflexo. Apoiei minhas mãos ali, ofegante pela forma intensa
que ele me olhava.
— Precisamos mostrar poder e fortalecimento neste momento
— lembrou, desviando os olhos para a minha nuca, enquanto
segurava os meus cabelos em uma mão. — Por mais que eu
repudie a presença de Benjamin, essa festa não é mais um evento
social. Depois que o maldito faltou a festa de Ação de Graças, a
prefeita não está muito contente.
Kian me explicava aquilo como se estivesse em uma reunião de
negócios e eu gostava daquilo. Ele me tratava como igual e parecia
confortável em me contar tudo.
— Agora, tire o seu casaco.
Minha boca se abriu em surpresa e não fiz um movimento
sequer, processando a mudança súbita no rumo da conversa e o
tom firme que ele usou. Kian apertou meus cabelos entre seus
dedos e me encarou com certa urgência.
— Agora, querida.
Engoli em seco e minhas mãos receosas foram até o zíper do
casaco. Eu o tirei de meu corpo sob o olhar quente de Kian,
revelando uma camiseta de mangas compridas térmica. Ele molhou
os lábios, descendo os olhos pelo contorno dos meus seios.
— A camiseta também.
Pediu, soltando meus cabelos, e espalmando as mãos na pia,
enquanto me cercava. Fiz o que me foi pedido, mas ele não se deu
por vencido. Kian ditou que eu retirasse cada parte de roupa do meu
corpo, enquanto, demoradamente, ele fazia o mesmo.
Meu corpo e o interior das minhas pernas, úmido, estavam em
chamas quando a sua última peça de roupa encontrou o chão do
banheiro. Ele estava duro e totalmente pronto.
Kian continuava perto, roçando seu corpo no meu e a cada
toque, minha expectativa sobre aquilo aumentava. Ele parou atrás
de mim, levando uma das mãos até o interior da minha coxa, me
tocando superficialmente, quase como se estivesse me testando.
Instintivamente, projetei meu corpo para trás, aumentando o toque.
Ele sorriu de forma ladina e minha respiração tornou-se instável
quando subiu o toque, encontrando meu centro molhado.
— Você está pronta para mim, querida — ele soprou, orgulhoso
e um pouco perverso.
Apertei as mãos na borda da pia quando ele afundou os dedos
em mim. Minha cabeça tombou para a frente, e me joguei contra a
sua mão, desesperada por aquilo.
Esse com certeza era um dos motivos pelos quais preferi dormir
na Kappa Phi até que encontrasse um lugar. Estar perto de Kian,
por tempo demais, sempre me fazia esquecer de tudo.
Absolutamente, tudo.
Porque quando Kian estava me tocando, tudo se tornava ele.
— Gosta disso, amor?
O respondi com um gemido baixo, que se tornou mais alto
quando ele me segurou pelo quadril com força, misturando a dor de
sua mão me marcando ao prazer dos seus dedos entrando e saindo
de dentro de mim. Com força, desesperados.
Aumentando a minha satisfação.
Minha respiração estava alta, e ecoava pelo banheiro e os nós
dos meus dedos estavam brancos.
Forcei meus olhos a se manterem abertos, deleitando-se com a
expressão poderosa de Kian. Ele girou os dedos e meus olhos
fecharam-se, na beira do limite.
— Eu quero que você segure firme, porque eu vou te pegar por
trás — ele anunciou, retirando os dedos do meu interior.
Ouvi o pacote do preservativo ser aberto e assim que senti os
pés de Kian chutando minhas pernas para abri-las um pouco mais,
voltei a abrir os olhos. Ele segurou em meu quadril e deslizou para
dentro de mim.
Meus lábios abriram quando ele me preencheu, e um suspiro de
prazer escapou dos nossos lábios no mesmo segundo.
A cada movimento, nós mantivemos o olhar um no outro.
Quando ele segurou nos cabelos da minha nuca e intensificou a
velocidade, meus olhos marejaram em prazer. Ele espalmou a mão
na frente do meu pescoço, me trazendo para ele, até que minhas
costas grudaram em seu peito.
Kian abaixou a boca até a minha orelha, sem quebrar o nosso
contato visual, e disse:
— Acho que estou viciado em você. Como uma maldita droga.
Eu queria dizer que pensava o mesmo dele, mas apenas gemi
quando ele apertou meu pescoço entre sua mão e investiu com
mais força. Meu corpo inteiro arrepiou e meu interior contraiu
quando sua outra mão desceu até o meio das minhas pernas e ele
massageou meu clitóris inchado.
Eu duvidava que existisse algo mais importante do que me
manter em Kardama ao lado de Kian.
— Ainda estou em dúvida sobre isso — Stephany disse,
balançando o drink para os lados. — Não parece muito ácido?
— Eu gosto da acidez do limão siciliano com o Campari italiano
— confessei, bebericando do líquido vermelho.
Ela tomou mais um golinho e depois repousou a taça sobre a
mesa, fazendo uma análise sobre a bebida.
Era quinze de dezembro e eu estava em uma espécie de
degustação dos comes e bebes da festa de natal. Stephany havia
me convidado para participar daquilo e eu não vi porque negar.
Agora que Olivia estava mais próxima de sua família, antes da sua
planejada viagem natalina, e a maior parte das meninas da Kappa
Phi nas casas das suas famílias, minha única distração era Kian e
Luci.
Desde o início das férias, há dois dias, eu havia voltado para o
apartamento dele. Estivemos nos dividindo entre os apartamentos
durante as duas semanas seguintes do aluguel do imóvel em que
estava morando, no entanto, as férias de inverno também eram uma
época onde Kian fechava a Seven. Ou seja, sem trabalhos na boate.
Apesar disso, Kian precisava estar por lá por conta da
administração do seu outro negócio. Todas as vezes que ele saía de
casa para lidar com isso, ou atendia alguma ligação estranha no
meio da noite, meu sangue parecia gelar dentro das veias.
Isso acontecia até Kian voltar, sorrir para mim e me colocar
entre seus braços fortes.
— Devo dizer que nunca vi Kian sorrir tanto — Stephany
comentou, do nada, ganhando minha atenção.
— Ah, é?
— Sim. Ele está radiante com tudo isso! Até mesmo os meninos
estão felizes.
— E como eles estão? Natal é uma época muito esperada pelas
crianças.
— Não só por elas! Pelos adultos também! — estalou,
sorridente. — Charles está nervoso pela apresentação que vai fazer
no piano, enquanto Bryan não tem certeza se o Papai Noel vai
encontrar o presente que pediu. — E piscou.
A menção a Charles e o piano me lembrou sobre o dia da festa,
no qual Kian ficou tenso quando viu o irmão naquela posição.
Estava curiosa sobre aquilo, já que eventualmente ele tocava em
casa.
— É algum ritual de família? Todos os filhos tocarem piano?
Stephany enrugou o nariz e fez um movimento com a mão para
o garçom.
— Benjamin é apaixonado por música clássica. Ele fez com que
todos os filhos praticassem piano, mesmo que eles não gostassem
disso — então, calou-se quando o garçom estava próximo demais e
sorriu. — Acho que vamos ficar com esse — Stephany disse ao
garçom, apontando para a taça em que havíamos bebido o drink
temático de natal. — Agora, pode trazer os pratos principais.
Soltei uma respiração profunda. Stephany parecia uma mulher
cuidadosa. Estava me jogando informações importantes, mas
também tinha consciência de quem estava à nossa volta.
Eu achei graça que ela havia escolhido uma sessão do buffet
com comidas veganas, e eu estava ali para experimentá-las com
ela. Enquanto instruiu o garçom, peguei meu telefone e verifiquei se
havia alguma mensagem de Kian.
Ele havia me deixado no restaurante um pouco antes das dez
horas e partiu para a indústria Wilding para verificar algumas
mercadorias que seriam transportadas para fora da cidade.
A lembrança disso me fez desviar os olhos da tela do aparelho
para qualquer ponto. Eu deveria estar com o Kian. Estudando sobre
aquilo. Recolhendo provas. Fechei os olhos momentaneamente,
apertando o aparelho entre os dedos.
Cada dia que passava, a minha vingança parecia mais distante.
Eu parecia outra pessoa.
— Ayla, está tudo bem? — Stephany perguntou, e abri os
olhos. Piscando algumas vezes.
Apertei os lábios em um sorriso e assenti, soltando o telefone e
enrolando meus dedos na haste da taça com água.
— Sim, claro.
— Obrigada por ter vindo — ela disse, animadamente. —
Geralmente, organizo os eventos sozinha. E, eventualmente, Kian
me acompanha nesses momentos de degustação, mas é diferente
com uma garota… E, claro, quando não é seu filho postiço que está
ao seu lado. — Riu.
Meu sorriso decaiu um décimo por aquilo. Stephany parecia tão
sozinha.
— Não existe uma comissão para isso, uh? Amigas?
Ela torceu o nariz para o lado, em uma expressão desgostosa.
— Apesar de ter sido criada em Kardama, não sou a maior fã
das pessoas dessa cidade — falou, baixinho, como se fosse um
segredo.
Observei o lugar à nossa volta, notando como o salão ainda
estava vazio. Os Wilding pareciam ter dinheiro o suficiente para abrir
um restaurante horas antes do horário do almoço apenas para uma
série de degustações.
— Então, você é daqui?
— Na verdade, não. Meu pai foi transferido para a empresa de
Ben no último ano de serviço como engenheiro. Nessa época,
terminei meus estudos na UK.
Levantei as sobrancelhas, surpresa com aquela informação.
— Você tem uma formação?
Ela apertou os lábios em um sorriso tenso.
— É difícil acreditar? Eu sei, geralmente não é esperado muito
da esposa modelo de um senador.
— Não é isso, Stephany… — falei, molhando meus lábios
subitamente secos. — É que… não sei, você organiza os eventos e
vive na mansão… pensei…
— Me formei em administração.
— Por isso, o sucesso nos eventos — constatei e ela piscou
para mim. — Você chegou a atuar na sua área de formação?
Stephany balançou a mão no ar.
— Ah, não. Logo depois da formatura, eu me envolvi com Ben
— explicou, desviando os olhos para a taça com o resto do drink.
Stephany deslizou o indicador pela borda. — Na época, ele era o
viúvo mais cobiçado de Kardama. Bonito, rico e misterioso — sua
voz caiu um décimo, como se estivesse perdida em seus
pensamentos. — E, de repente, eu tinha os olhos dele em mim.
Minha boca ficou subitamente seca com uma menção gentil a
Benjamin. Geralmente, as pessoas se referiam a ele com medo ou
repulsa. Aquilo era novidade.
— A mãe de Kian havia morrido há pouco tempo?
Ela levantou os olhos claros para mim, parecendo despertar dos
seus próprios devaneios.
— Victoria havia morrido há alguns bons anos.
Victoria. O mesmo nome que minha mãe. Nunca havia feito
aquela associação bizarra. Minha pele ficou arrepiada com a
constatação.
— Foi um acidente de carro, não é?
Eu tinha lido algumas coisas na internet depois da conversa que
tive com Kian. Há muito tempo, quando estava sondando a família
Wilding, eu tinha visto uma matéria que falava sobre isso. A
encontrei dentro do pequeno banco de dados que montei sobre os
Wilding, mas foi uma informação única e perdida. Pelo visto, a
Tríade, naquela época, tinha algum controle sobre as informações
que escapavam de Kardama. Talvez por isso eles estivessem tão
putos com Tai Yang, um jornalista que não tinha medo de falar a
verdade e tinha contatos por todo o país, assegurando, assim, que
se ele sumisse, todos saberiam.
Durante esse período longe de Yue e Tai, também fiz uma
busca sobre o rapaz. Haviam informações que eu já sabia, por
exemplo sua formação na Universidade de Nova Iorque e seu tempo
no The New York Times, mas descobri que por conta disso, tinha
adquirido muitos contatos. Mas ainda não entendia porque Tai tinha
se enfiado no buraco que Kardama era.
— Sim… — Stephany murmurou, em um suspiro. — Na época,
eu nem planejava me casar com ele. Ben estava desesperado por
uma mãe para Kian, já que ele nunca estava em casa por causa da
sua posição como prefeito e como estava decidido a concorrer ao
senado, precisava disso. Era apenas um jogo de poder. E a cada
jantar ou encontro, me sentia perdidamente apaixonada por ele.
Engoli em seco, vendo os olhos dela ganharem uma umidade a
mais. Stephany uniu as mãos sobre o colo, parecendo buscar por
alguma força.
Eu não sabia porque ela estava jogando aquele monte de
informações para mim. Talvez, ela precisasse apenas desabafar e o
álcool dos drinks tenha ajudado.
— Assumi o papel que ele entregou e também me apaixonei por
Kian. Ele era um garoto tão amável… E que precisava de amor.
Quando ele se tornou um adolescente rebelde, Benjamin queria
mais herdeiros e eu novamente me coloquei na posição que ele
queria.
Uni as sobrancelhas. Aquilo, definitivamente, era um
relacionamento abusivo. Então, me lembrei do machucado em seu
lábio no dia da festa. E, depois, da pergunta de Kian em nosso
almoço, preocupado com a forma como Benjamin reagiu ao que
fizemos na festa. Me remexi na cadeira, inquieta.
— Stephany…
— Eu sei, eu sei — ela disse, com a voz terrivelmente cansada.
— Não é uma história feliz. E eu não tenho nem um pouco de
orgulho disso.
Minha boca abriu e fechou. Eu não sabia como reagir àquilo. Me
aproximei dela, segurando sua mão.
— Você sabe que isso é abusivo, não é?
Ela desviou os olhos dos meus, mas não soltou o meu aperto.
Aproveitei isso para chegar mais perto e sussurrei:
— Eu vi o machucado no seu lábio no dia da festa.
Stephany puxou a mão para longe de mim, como se meu
contato fosse brasa. Ela olhou para os lados e depois, pousou os
olhos nos meus.
— O que está insinuando, Ayla?
— Sei o que Benjamin fazia com Kian — rebati, baixo, apenas
para que ela ouvisse. — Não me surpreenderia ele descontar sua
fúria em outra pessoa. E, pelo o que você está me contando, ele
tem muito poder sobre você.
Ela apertou o maxilar, evitando o tremor que estava começando.
Stephany lutava contra as lágrimas e ali eu tive certeza do quão
ruim aquele homem era. Céus, a raiva fervia dentro de mim. Kian
sabia disso? Se sim, porque diabos ninguém fazia nada?
— E não é tudo sobre poder neste lugar? — ela disse, com a
voz embargada.
— Você pode fugir, Steph. Eu sei sobre a Tríade, sobre tudo…
sei como ele tem influência nesse estado, e…
Ela segurou com força meu braço, apertando as unhas na
minha pele, e me puxou para mais perto ainda.
— Eu tenho minha vida e a dos meus filhos nas mãos de
Benjamin, Ayla. Não ache que, se de fato pudesse, eu já não teria
tentado fugir desse inferno — confessou, parecendo mais firme do
que antes. — E por mais que eu ame o que você tem feito por Kian,
deve saber que depois que está dentro, você não sai.
Aquilo não era um aviso. Era uma constatação. O que me fez
tremer.
Eu nunca poderia sair.
Minha boca ficou subitamente seca e me afastei de Stephany
assim que o garçom chegou. Ela vestiu uma máscara de
empolgação e sorrisos, agradecendo ao homem. Ficamos em
silêncio por alguns segundos, até que o garçom se afastou.
Ela soltou uma respiração profunda, com os ombros caídos e
disse:
— Kian não é Benjamin. Eu jamais quis insinuar isso… Só que
você, pelo visto, você sabe demais, querida. Em Kardama, o nosso
conhecimento nos condena.
No mesmo segundo, busquei por alguma mensagem de Kian.
Não havia nenhum texto e já fazia mais de uma hora e meia. Algo
ruim apertou meu coração e um mau pressentimento me fez ficar
nauseada. Novamente, ignorei aquele sentimento.
— Experimente isso — Stephany me empurrou um prato com
uma quantidade de risoto de vegetais.
Eu fiz exatamente o que Stephany e Olivia costumavam fazer.
Sorri e fingi não ter uma avalanche de sentimentos em meu peito.

— Você precisa de uma carona para ir embora? — Stephany


perguntou, quando parou na frente do carro.
O motorista estava esperando-a durante todo o nosso almoço.
— Não. Kian vem me buscar — disse, mesmo que ele ainda
não tivesse respondido minhas mensagens.
— Tá certo, então — ela se aproximou e me abraçou com força.
Retribuí, tentando não parecer abalada demais por conta das
confissões. — Vai ficar tudo bem, querida. Não se preocupe.
Fiquei parada na calçada observando Stephany entrar no carro
e ir embora. Eu ainda tinha um pressentimento ruim tomando meu
coração. Não poderia deixar Benjamin Wilding acabar com a vida de
outra pessoa.
Suspirei, encarando meu celular mais uma vez. Não havia nada
ali. Tentei completar uma ligação para Kian enquanto caminhava até
a loja de conveniência no outro lado da rua, mas ouvi apenas o
telefone chamando. O vento gelado batia em meu rosto e precisei
me agarrar ao meu casaco quente para evitar tremer.
Peguei uma cesta e caminhei pelos corredores. Kian precisava
de algumas coisas no apartamento, então tomaria um tempo
naquele lugar. Se ele não me atendesse em alguns minutos, pegaria
um carro de aplicativo e iria para o seu apartamento, já que agora
eu possuía uma chave e um cartão.
Quando estava prestes a entrar no corredor de bebidas, meus
pés congelaram no chão.
Yue Yang estava ali.
Olhei para os lados, constatando que estávamos sozinhas,
então, caminhei em sua direção. Nós não tínhamos conversado
desde que eu sumi do seu apartamento enquanto ela estava
fazendo um curso fora da cidade. Inventei uma desculpa qualquer e
agora me sentia profundamente em débito com ela.
E para a minha surpresa, Yue não me procurou.
— Yue… — a chamei, parando próximo a ela.
Ela virou o rosto para mim, e assim que a compreensão de
quem estava ali a tomou, seu sorriso murchou, ficando de maneira
inexpressiva e gelada. Abriu a boca algumas vezes e, depois, a
fechou quando os olhos desceram pelo meu corpo.
— Achei que fosse entrar no carro de Stephany Wilding depois
do almoço juntas.
Estreitei meus olhos, um pouco surpresa pelo seu tom frígido e
a escolha do tema. Por que ela estava falando daquilo e não sobre
meu sumiço? Ignorei o comentário e dei um passo em sua direção.
— Yue, eu… queria me desculpar.
— Pelo quê?
Abri a boca, tentando encontrar algo para dizer. O que eu queria
dizer exatamente? Pedir desculpas por sair da sua casa sem
avisar? Por ter fugido do lugar que ela me ofereceu, facilitando meu
plano e também minha chegada em Kardama? Por me envolver
com Kian? Ou por não ter ouvido Tai? Talvez, por tudo aquilo. Mas
dizer aquilo em voz alta seria como dizer que eu me arrependia. E
eu não sentia arrependimento pelos meus sentimentos em relação a
Kian.
— Quando moramos juntas em Nova Iorque, eu tinha certeza
que você era uma pessoa incrível, Ayla — ela disse, com os olhos
nos meus, parecendo estar a quilômetros de distância da Yue que
eu adorava. — E por algum tempo, enquanto você estava morando
aqui, acreditei nisso. Só que, deixar se envolver com alguém como
ele? — riu, sem graça. — É jogar toda a sua bondade fora.
— Não fale assim, por favor… — pedi, sentindo meu coração
pequeno pelo impacto das suas palavras.
Céus, ela sabia. Vergonha tomou meu corpo. Yue deu um passo
em minha direção, ficando frente a frente comigo.
— Tai avisou você. Ele luta contra esse sistema há anos, Ayla.
— Ela suspirou, visivelmente decepcionada. — Você concorda com
o que ele faz? As drogas, o controle da cidade e até o modo como
ele envia recados a outros grupos criminosos? — A voz dela era um
sussurro terrível, recheado de verdades que eu não queria acreditar.
Um arrepio subiu pela minha espinha.
Como ela sabia sobre o homem que Kian matou?
— Yue… — chamei, sentindo meu queixo tremer.
— Mesmo que, lá no fundo, você não concorde, está apenas
fechando os olhos para o que quer, Ayla. — Ela apontou para trás
de mim, mas os olhos permaneceram firmes aos meus. — Prova
disso foi o que vi agora. Você, sentada em um dos restaurantes
mais caros da cidade com a esposa de Benjamin Wilding. Está
usando dinheiro sujo dele. Você tem tanto sangue nas mãos quanto
o homem que está ao seu lado — cuspiu as palavras cruéis contra o
meu rosto.
Meu queixo tremeu e tentei segurar em sua mão. Ela deu um
passo para trás, negando com a cabeça.
— Onde eu estava com a cabeça em oferecer a minha casa
para alguém com valores tão baixos e imorais? Eu achei que te
conhecia, mas, pelo visto, eu estava muito errada.
Suas palavras me machucaram o suficiente para que meu
coração comprimisse no peito. Ela saiu dali, enquanto eu tremia da
cabeça aos pés, sentindo as lágrimas acumularem-se em meus
olhos.
Coloquei a mão sobre os lábios, abafando meu choro de uma
maneira desesperada. Tudo parecia estar se fechando à minha
volta. Meus pulmões pareciam pequenos e meu coração disparou
no peito, ao mesmo tempo em que se quebrava.
Meus batimentos aumentaram de frequência assim que meu
telefone vibrou no bolso do casaco de inverno.
Para o meu alívio, era Kian. Limpei a garganta, sequei os olhos
e depois atendi a chamada.
— Ayla, onde você está? — foi a primeira pergunta, em um tom
nervoso e tenso.
— Estou na conveniência do posto, na frente do restaurante que
estava com Steph.
— Não saia daí. Estou enviando alguém para te buscar e levá-la
para o apartamento em segurança — ele disse, e pude ouvir outras
pessoas falando.
— Kian, onde você está? O que está acontecendo? Faz três
horas que você sumiu.
— Não tenho tempo para explicar agora. Apenas vá para o
apartamento e fique trancada até que eu chegue. Tem uma arma no
meu quarto, dentro do closet…
— Kian! — falei, um pouco alto, sentindo meu coração bater tão
forte que minhas costelas doíam. — Que porra tá acontecendo?
Ele resmungou algo sobre a minha teimosia, depois, respirou
profundamente e disse:
— Os Cavaleiros. Eles invadiram a indústria, mataram um dos
químicos e deixaram aqui do mesmo modo que mandamos o último
homem para Samael.
Esquartejado.
Arregalei os olhos, sentindo meu corpo inteiro querer colocar o
almoço para fora.
— Ayla, me escute. O lugar que você está é protegido pelos
Müller. Fique aí até que Israel chegue.
— E você, Kian?
— Estou indo para casa.
E desligou. Eu não conseguia me mover. Provavelmente, estava
tendo uma reação de pânico e meu cérebro apagou por alguns
minutos. Quando voltei a me recompor, meu rosto estava molhado,
meu braço enrijecido segurando o telefone na orelha e um senhor
na minha frente.
— Senhorita? Sou Liam, o dono do posto. O senhor Wilding
ligou para cá e pediu que ficasse em segurança até seus homens
chegarem — o homem idoso explicou.
Pisquei algumas vezes e assenti, nervosamente. Me obriguei a
mover as pernas até o caixa e o homem me seguiu. Aguardei Israel
com os olhos presos na estrada, e a cada carro que passava em
baixa velocidade, meu corpo entrava em alerta.
Os Cavaleiros tinham invadido Kardama e feito uma vítima.
Eles poderiam estar em qualquer lugar.
Voltei a respirar aliviada quando Israel estacionou um carro
próximo a porta da saída da conveniência, e praticamente corri até
lá. Me joguei no banco do carona e olhei para o homem, que parecia
cansado.
— Onde está Kian? — perguntei, ouvindo minha voz
embargada.
Israel suspirou, ainda com as mãos presas ao volante.
— Terminando de resolver tudo, mas logo estará aqui.
— O que diabos é resolver tudo, Israel? — Eu ri, nervosa,
sentindo as palmas úmidas de ansiedade. — Dar conta de um corpo
esquartejado? Uma fodida invasão?
— Exatamente! — ele disse em um tom de voz alto e virando o
rosto para mim, de forma explosiva. — Passamos a manhã tentando
abrir a porra do laboratório do subsolo da empresa para descobrir
que o nosso químico estava com os membros dilacerados lá dentro!
— gritou, em angústia. — Não finja que não sabia que essas coisas
aconteceriam quando entrou! Você escolheu estar aqui!
Escorreguei para a ponta do banco, sentindo a porta contra as
minhas costas. Israel nunca tinha falado assim comigo.
Sua voz era dura, furiosa.
— Pessoas se machucam nesse esquema, Ayla. E, agora, o
perigo está batendo na nossa porta!
Me calei, com a visão embaçada e lágrimas descendo pelas
minhas bochechas. Deixei meus olhos caírem para o meu colo e me
endireitei no banco, ficando o mais distante que consegui de Israel.
Aquela reação era totalmente sem sentido, mas eu só precisava
de Kian naquele momento. Estava triste, magoada e sem rumo
algum. Nada parecia certo, além da forma como meu coração batia
por ele.
— Ayla… me desculpe, eu estou nervoso com isso tudo, e…
— Por favor. Me leve para casa — pedi, apertando as mãos
sobre as coxas.
Israel não demorou para colocar o carro em movimento.
Quando parou na frente do prédio de Kian, disse:
— Kian enviou alguns homens até o apartamento. Tudo está
seguro.
— O.K.
Saí do carro tropeçando em meus próprios pés. Adentrei o hall e
notei que haviam alguns dos homens de Kian por ali, mas não os
encarei por muito tempo. Olhei para o chão e caminhei de cabeça
baixa até o fim do hall.
Apertei o botão para chamar o elevador algumas vezes
repetidas e assim que as portas metálicas se abriram, me joguei
para dentro. Passei o cartão na parte que dava acesso ao andar da
cobertura. Assim que o elevador começou a subir, relaxei meu corpo
contra a parede.
Eu esperava que Kian estivesse em casa, porque eu me sentia
a ponto de explodir. Estava tremendo com medo do amanhã. O que
poderia significar tudo aquilo.
A possibilidade de uma fuga passou pela minha cabeça.
Poderia roubar um carro e disparar para longe daquela cidade. Eu ri
com o pensamento. Provavelmente a Tríade tinha um controle de
quem entrava e saía dali.
Lembrei-me então do que Stephany disse.
Tudo fazia sentido.
Eu não sairia de Kardama sem que eles soubessem.
Limpei as lágrimas do meu rosto e saí do elevador, sentindo o
nó em minha garganta aumentar a cada passo na direção do
apartamento de Kian. Como se aquele lugar fosse um santuário,
sem a interferência do mundo ao nosso redor. Lá, seríamos apenas
nós dois, protegidos do mundo.
No entanto, meu mundo inteiro caiu quando abri a porta. Meu
maior pesadelo estava ali, em pé, no meio da sala de estar de Kian.
— Olá, Ayla — disse Benjamin com um sorriso doentio,
colocando as mãos nos bolsos da calça do terno branco. Haviam
três homens com ele, e um deles segurava Luci na coleira e com
uma focinheira mantendo-o quieto. — Sente-se. Nós temos muito o
que conversar.
Vocês querem nos matar? Porque sentimos a energia vibrando
vinda do seu aplicativo Kindle.
A boa notícia é que Bad Drugs terá uma continuação: BAD
ROMANCE! Esses livros fazem parte da série SANGUE E HONRA,
as quais contam a história envolvendo os esquemas ilegais de
Kardama. E claro, Ayla e Kian.
Esperamos que você tenha se apaixonado por esse casal caótico e
cheio de imoralidades.
Ao final deste livro, desejamos que além da energia vibrante, você
tenha gostado do que leu.
Por favor, não deixe de fazer uma avaliação na Amazon e skoob
para ajudar o nosso trabalho.
O enredo deste livro conta como a vingança de Ayla muda por conta
do envolvimento dela com Kian e as pessoas de Kardama. Ao ter
uma visão pré estabelecida da família Wilding, ela escolheu por
muito tempo acreditar naquilo que criou para si.
Ao se deparar com a realidade, Ayla se comove com a história de
cada pessoa deste lugar e se vê apaixonada pelo inimigo.
Quais as consequências disso?
Vocês terão suas respostas em 13 de Setembro de 2022, aqui na
Amazon!
Coloque na agenda e não deixe de acompanhar as autoras nas
redes sociais para não perder nenhuma novidade da série e dos
nossos trabalhos solo.
Ah, não deixe de ler o nosso outro collab juntas: BOCAS
COSTURADAS NÃO CONTAM HISTÓRIAS, um romance policial
que se passa no Rio Grande do Sul.
E em Outubro deste ano, ATRAVÉS DOS SEUS OLHOS, um thriller
psicológico também chega na Amazon.

Até breve, Ana e Lu.


Impossível começar esses agradecimentos sem agradecer a
você, leitor, por dar uma chance a esse caos de Kardama. Obrigada!
Esperamos ver vocês de volta em Bad Romance.
Agradecemos também imensamente à todas as pessoas
envolvidas nesse projeto (e foi muita gente!). Alina e Genevieve (do
GB Editorial); Bruna e Bárbara, que foram leitoras sensíveis do livro;
Camila e Ísis por serem betas incríveis e surtarem por todo o
processo conosco; E claro, dona Nathalia por nos auxiliar aos 45’ do
segundo tempo com a diagramação.
Obrigada a cada parceira envolvida no lançamento do livro.
Vocês foram fenomenais!
Com amor, Ana e Lu
● 14 de Junho: Acasos do Destino (Luisa Borges)
● 07 de Julho: Medusa (Ana França)
● 13 de Setembro: Bad Romance (Ana França & Luisa
Borges)
● 13 de Outubro: Através Dos Seus Olhos (Ana França &
Luisa Borges)
Escritora curitibana com um ego grande demais para o próprio bem
(leonina ela), mas que odeia falar de si mesma. Vinte e tantos anos
de vida e mais quase vinte livros publicados na Amazon de maneira
independente. Café, suspense e romance são assuntos básicos dos
seus livros. Apaixonada por slashers bem feitos e suspenses com
plot twists na mesma proporção que gosta de comédias românticas
adolescentes.

Encontre-a em: @anafrancaft (instagram)


Luísa Borges é uma gaúcha que adora café, ler, gatos e é
extremamente viciada em estudar.

Encontre-a em: @autoraluisa (instagram)

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