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Não há mais nada para se escrever sobre Mário de Andrade. Tudo o que havia de ser
dito já foi dito. Uma pequena busca pelo nome Mário de Andrade na internet ou no Youtube
trará inúmeros resultados, o que parece demonstrar que é um artista contemporâneo, não
restrito aos corredores acadêmicos, facilmente reconhecido como autor de Macunaíma pelo
grande público. Este artista já foi homenageado na Flip em 2015 e tem até mesmo um museu
e uma biblioteca em seu nome. O que há a mais para se escrever sobre Mário, se este artista
precursor da Semana de Arte Moderna de 22 é tão popular?
Foi no Teatro Municipal que se realizou a Semana de Arte Moderna, e não por acaso
é escolhido como palco para o Oratório profano das Enfibraturas do Ipiranga. Mário de
Andrade já antecipa o tema no título: trata-se de um Oratório Profano. Danilo Freitas, em
seu ensaio A música na trajetória poética de Mário de Andrade: Antropofagia e crítica,
apresentado na ABRALIC de 2017, destaca que oratório é um gênero concebido a partir de
temáticas religiosas. Sendo profano, Mário adianta que o Teatro Municipal, cerne da poesia
parnasiana, será profanado por este oratório.
O poema possui todas as indicações musicais para a sua execução - menos uma partitura -
como se fosse o folheto de um oratório propriamente dito, e traz as informações detalhadas de
como se organiza a composição como os esclarecimentos de entradas de instrumentos e a
designação da dinâmica musical como pianissimo, forte e fortíssimo que contribuem para a
compreensão da dinâmica do poema assim como para auxiliar na sua significação. (NUNES,
1984, p. 4)
Na introdução do poema são distribuídas as vozes, e cada uma representa uma camada
social da cidade de São Paulo da década de 1920. Os Orientalismos Convencionais são os
escritores, entre outros artífices elogiáveis. São, portanto, os escritores presos às estruturas
tradicionais, da poesia parnasiana, da língua portuguesa, muito afinadíssimos. As Senectudes
Tremulinas são os milionários burguezes, que estão localizados nos pontos nobres da cidade,
como as janelas e terraços do Teatro Municipal, nas sacadas do Automóvel Clube, da
Prefeitura, do Hotel Carlton. Essa enumeração de locais distantes fisicamente, mas listados
como se pudessem estar adjacentes, é um recurso que será depois amplamente trabalhado em
Macunaíma, o chamado espaço desgeograficado, especialmente nos momentos de fuga de
Macunaíma.
Os Sandapilários Indiferentes são o operariado e gente pobre. De acordo com Nunes
(1984, p.70), sandapilários são aqueles que remoem as tolices, talvez por isso também sejam
as vozes de baixo e barítono, vozes graves. Mário de Andrade ainda está em uma fase inicial
que poderíamos classificá-lo como iconoclasta. Deseja apenas romper com os padrões, louvar
a cidade de São Paulo. Somente numa etapa posterior surgirá um Mário preocupado em
buscar para o Brasil uma identidade, através de seus trabalhos de pesquisa musical
etnográfica, e passará a valorizar o povo, que culminará com a produção em 1927 de
Macunaíma.
As Juvenilidades Auriverdes são os modernistas. Mário as identifica como vozes que
desafinam, pois o ensaio foi insuficiente. Neste trecho parece ficar claro que ainda estão
experimentando, são jovens como frutas que ainda não amadureceram. A melhor tradução
para essa inexperiência é o que Mário declara em seu Prefácio Interessantíssimo, em que se
confessa passadista:
"Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor dêste
livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende
bem."(ANDRADE, 1922, p. 8).
Por fim, A voz Minha Loucura é a personificação do Mário, que é solista, soprano
ligeiro, e se apresenta no meio de todas as vozes.
Os poemas que se seguem possuem características claramente musicais, como
estrutura e ritmo.
Mário de Andrade mescla conceitos da música para redefinir a nova poesia. No
Prefácio Interessantíssimo (ANDRADE, 1922, p. 23), Mário critica que a poética está mais
atrasada em relação à música, justificando que a música abandonou a melodia e se enriqueceu
ao utilizar os recursos da harmonia. Na melodia, as notas musicais aparecem em sequência,
uma após a outra. Na linguística de Saussure isso representaria o sintagma, onde cada
elemento tem uma posição definida pelo sistema.
Já a harmonia seria a combinação de sons simultâneos, como um acorde no piano. No
acorde de sol (G), as teclas sol, si e ré devem ser tocadas simultaneamente, e não uma após a
outra. A nova poesia deveria deixar de ser melódica, ou seja, sintagmática, presa a uma regra
imposta pelo sistema, e deveria ser harmônica, com sobreposições, polifônica. Para atingir
este objetivo, as palavras deveriam deixar de usar as ligações imediatas entre si: "estas
palavras, pelo facto mesmo de se não seguirem intelectual, gramaticalmente, se sobrepõem
umas às outras, para a nossa sensação, formando, não mais melodias, mas harmonias."
(ANDRADE, 1922, p. 24).
Essa sobreposição de palavras é algo muito presente na obra de Mário, que também
aparece em Macunaíma e nas obras de Oswald de Andrade. Traduzindo para a linguística,
chamamos isso de parataxe, isto é, uma sequência de frases justapostas, sem conjunção
coordenativa. A parataxe se contrapõe a hipotaxe, em que existe dependência ou
subordinação de uma palavra ou de uma oração a outra palavra da frase ou a outra oração do
período.
Há inúmeros trechos em Enfibraturas do Ipiranga em que a parataxe ou a harmonia
está presente:
AS JUVENILIDADES AURIVERDES
(num crescendo fantástico)
O refrão parece ser executado sempre pela consciência do poeta, representada pela
voz Minha Loucura. A voz só aparece duas vezes ao longo de todo o poema. A primeira
aparição se dá praticamente na metade do poema, após uma gargalhada de timbalares, que
são tambores, seguido de um súbito emudecimento da orquestra. Surge então a voz lírica do
poeta, interpretada por um soprano ligeiro.
O soprano ligeiro é destinado àquele que tem a voz mais aguda de todas. A
característica principal é a sua agilidade, daí o termo leggero. É uma voz especializada em
saltos e alta extensão superando facilmente o dó66 e não muito raramente até o fá 6. O
soprano ligeiro é capaz de formar coloraturas, que na música significa uma linha melódica
vocal muito ornamentada e com valores rápidos e limpos. Talvez a escolha desta voz para a
Minha Loucura tenha a intenção de representar o estado de desvario em meio a todas as
outras vozes, daí a inevitabilidade de ser uma voz ligeira, mas também com a capacidade de
formar coloraturas, portanto ao mesmo tempo suaves. A Minha Loucura tem e a
responsabilidade de conduzir as Juvenilidades Auriverdes, seus irmãos, e sua voz é recitada
poeticamente, mesclada com intervenções musicais, como as harpas, trompas e órgão:
MINHA LOUCURA
(recitativo e balada)
[]
[]
[]
A sonoridade nas últimas linhas do trecho destacado acima traz a imagem de uma
cascata: "Os cérebros das cascatas marulhantes". As repetições da consoante fricativa
alveolar desvozeada "s", traz à mente o som mudo da cascata. As consoantes tepe alveolar "r"
e a lateral palatal "lh" presentes em "marulhantes" também nos remete ao som das ondas
resultantes da queda d'água. Um banquete de sinestesia.
A repetição de três estrofes que estão separadas por inserções de instrumentos
musicais, e são notadamente refrões, ocorrendo apenas a troca dos paradigmas serenas,
solenes e gloriosas. Essa repetição confere ritmo, a alternância de som e silêncio.
AS JUVENILIDADES AURIVERDES
(loucos, sublimes, tombando exaustos)
Seus..............................!!!
(A maior palavra feia que o leitor conhecer)
MINHA LOUCURA
As vésperas do azul...
Neste trecho também é possível verificar mais uma característica marcante de Mário,
conforme a quarta linha da última estrofe: "As milhores vozes para vosso adormentar!". O
emprego da prosódia em "milhores" em oposição a "melhores" é justificada por Mário em
uma carta a Murilo Miranda, datada de dezembro de 1935:
(…) Tentei grafar exatamente, com o mais contraditório realismo, as
inconsequências da fala popular (…). Mas grafei mais como objeto de estudo da fala popular,
que como arte, que requer maior unidade e… parecença. Se você quiser mesmo publicar a
coisa, faça um esforço danado pra sair sem nenhum erro tipográfico.
Mário de Andrade uniu música e poesia, e o som do piano na Rua Lopes Chaves
ultrapassou a sala, atravessou as janelas, alcançou o firmamento da cidade de São Paulo, e foi
repercutir muito além das fronteiras do Ipiranga. Sua obra percorreu os corredores
acadêmicos e foi muito além, alcançou o gosto popular. Se multiplicou.
No princípio parecia não haver mais nada para se falar de Mário de Andrade. Mas era
apenas miopia de quem ainda está tateando no escuro, dentro da imensidão literária. Há tanto
para se escrever sobre Mário de Andrade, que seu nome ultrapassar as bordas da capa deste
ensaio. Mário é arlequinal, agregação de fragmentos e multiplicidade. Como ele mesmo se
denominou, ele é trezentos, trezentos e cincoenta, e apenas oito laudas não são suficientes
para abarcar este artista tão plural.
Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Paulicea Desvairada – São Paulo: Casa Mayença, 1922.
ANDRADE, M. [Carta] dezembro de 1935, São Paulo [para] MIRANDA, M. Disponível em:
<http://www.cdp.ibilce.unesp.br/obras/20CMA.pdf>
FREITAS, Danilo Mercês. A música na trajetória poética de Mário de Andrade: Antropofagia
e crítica - In: XV Congresso internacional Abralic, RJ, 2017. Disponível em: <
http://www.abralic.org.br/anais/arquivos/2015_1456146786.pdf >. Acesso em: 10 agosto
2018.
NUNES, Benedito. Mário de Andrade: As enfibraturas do modernismo. IN: Revista
Iberoamericana, n. 125, p. 63-75, 1984.
WISNIK, José Miguel. Mário de Andrade e a construção da cultura brasileira, 2016.
Disponível em:<https://youtu.be/mnJ7yVd7nYA>. Acesso em: 29 de julho de 2018.