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uni novo olhar, 1

MÁRCIA MENDONÇA

Para conhecer as coisas, há que dar-lhes


A VOLTA, DAR-LHES A VOLTA TODA.
José Sara mago'

1. A AULA de gramática: um espaço de conflito?


ensino de gramática constitui um dos mais fortes pilares das aulas
■ ■ de português e chega a ser, em alguns casos, a preocupação quase
■ I exclusiva dessas aulas. Nas últimas duas décadas, entretanto, vem
Wlv se firmando um movimento de revisão crítica dessa prática, ou
seja, vem-se questionando a validade desse “modelo” de ensino, o que faz emergir
a proposta da prática de análise linguística (AL) em vez das aulas de gramática.

Essa crítica se baseia em pontos-chave, dos quais citamos dois:

a) os resultados insatisfatórios da ênfase nas aulas de gramática (parcial


1
mente evidenciados em avaliações como ENEM e SAEB 2), ou seja,
alunos cujas habilidades básicas de leitura e de escrita não foram
potencializadas, já que estas ficam em segundo plano;
b) a constatação, por meio de pesquisas, de que a gramática normativa, base
do ensino de gramática na escola, apresenta inconsistências teóricas (por
ex., a definição de sujeito e suas subclassificações, que misturam aleato-

1 Depoimento no documentário Janela da alma (J. Jardim & W. Carvalho, Europa


Filmes, 2001).
2 Ainda que se questione a validade absoluta dos números apresentados nessas avaliações,
elas indicam dificuldades dos alunos em questões de. compreensão de texto e também de
produção de textos, quando esta é solicitada. Para ufria discussão sobre essas avaliações, ver
o capítulo 4, de B. Marcuschi.
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riamente critérios semânticos, sintáticos e até pragmáticos), além de não


descrever adequadamente a norma padrão contemporânea’, o que era
apontado por Oswald de Andrade, já no início do século XX:

PRONOMINAIS

Dê-me um cigarro
Diz a gramática
D o professor e d o aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro
{Poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 80)

Tomemos como exemplo desse movimento o lançamento da obra orga


nizada por J. W. Geraldi, O texto na sala de aula, em 1984. Os artigos deste
livro já propunham uma reorientação para o ensino de português, com base
na leitura e escrita d e textos como práticas sociais significativas e integradas,
e na análise dos problemas encontrados na produção textual como mote para
a prática de AL, em vez dos exercícios estruturais de gramática (normativa e
descritiva). Apesar de ter-se convertido num marco entre as publicações vol
tadas para a formação de professores, não se efetivaram, desde seu surgimento,
grandes mudanças quanto ao ensino de gramática, ao passo que o trabalho
3
com leitura e escrita já apresentou algumas modificações 4.

Quando se trata do que acontece numa sala de aula, não há padrões inflexíveis,
modelos fixos; na verdade, recorre-se a diversos caminhos teórico-metodológicos
para a condução do processo de ensino-aprendizagem. Por isso, neste momento
histórico, do início do 3o milênio, as praticas de ensino de língua materna do ensino
íudamental II (EFII) e do ensino médio (EM), revelam (como sempre revelaram)
uma mescla de perspectivas: o jeito “tradicional”5 de ensinar gramática ainda está
presente, ao passo que novas praticas também já são encontradas.

3 Duas falhas da abordagem da norma padrão apontadas por Faraco (2002) são a
identificação do padrão com o conteúdo dos compêndios gramaticais e a consideração do
padrão como homogêneo e estático por parte desses mesmos compêndios, sem que se admitam
a variação e a mudança.
4 Ver, neste livro, os capítulos 2 e 3, sobre leitura; e 5 e 6, sobre produção de textos.
5 O termo “tradicional” nada tem de pejorativo aqui, pois não implica necessariamente
ANÁLISE LINGUÍSTICA N O ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 201

U m exemplo de como isso ocorre de fato nos foi relatado por uma
professora do EM de Recife (PE) : ao mesmo tempo em que ela abordava os
pronomes a partir da classe e de suas subclassificações e nomenclaturas especí
ficas (pessoais, demonstrativos, possessivos etc.) — ensino de gramática — ,
começou também a fazer u ma reflexão sobre a sua função textual como recurso
coesivo d e retomada de referentes — A L . Essa professora ainda revelou sentir
certa angústia, u ma vez que não conseguia da r esse “salto” para outros con
teúdos curriculares convencionais.

A tentativa de aliar uma nova perspectiva a formas conhecidas de ensinar é


natural num processo de apropriação, por parte do docente, de uma proposta
*
teórico-metodológica diferente da sua prática cotidiana 6. Isso se explica porque não
é possível, para o professor, desvencilhar-se da sua própria identidade profissional,
o que seria quase negar a si mesmo, de uma hora para outra, a não ser por meio
de uma adoção acrítica de novas propostas, de um “inovacionismo” irresponsável.
Nesse sentido, atravessamos um momento especial, em que convivem “velhas” e
“novas” praticas no espaço da aula de gramática, por vezes, conflituosas.

Alguns desses conflitos revelam-se também com questionamentos de alu


nos: “Por que a gente tem de estudar isso?”, “ P r a que serve saber a diferença
entre complemento nominal e adjunto adnominal?”. O problema não é o
surgimento da s perguntas, desejáveis para a aprendizagem, mas a ausência de
respostas convincentes na grande maioria dos casos. Isso parece indicar que
muitos professores não encontram outra razão para ensinar o que ensinam nas

uma abordagem obsoleta, equivocada ou sem sentido. Aponta na verdade, para um conjunto
de práticas que se solidificaram com o passar do tempo, com regularidade de ocorrência, o
que terminou por constituir uma “tradição”. Aspectos dessa tradição podem ser hoje
questionados com o devido distanciamento, que nos possibilita um olhar menos envolvido e
mais objetivo, mas isso não significa desprezar todo o trabalho feito em determinados
momentos da nossa educação (dadas essas explicações, não mais usaremos aspas no capítulo).
Por exemplo, na escola tradicional, também há práticas de letramento significativas, algumas
das quais deveriam ser resgatadas, mesmo com outra roupagem. É o caso da recitação de
poemas, dos saraus na escola, em que os alunos eram solicitados a conhecer textos poéticos,
memorizá-los e declamá-los, para uma audiência de colegas, professores e pais. Era, enfim, um
evento de letramento significativo dentro da vida escolar. A respeito de mudanças históricas
no ensino de português, ver o capítulo 8 deste livro, de Bunzen.
6 Alguns livros didáticos e gramáticas pedagógicas assumem essa configuração
intermediária entre o ensino de gramática e a prática de AL, como os lançamentos, em 1995,
da Gramática aplicada aos textos (Infante, 1995); e em 1999, da Gramática reflexiva: texto
semântica e interação (Cereja & Magalhães, 1999). Os próprios títulos apontam esse
direcionamento: gramática + texto, e gramática + reflexão + texto + interação, respectivamente.
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aulas de gramática, a não ser a força da tradição, revelando uma prática docente
alienada de seus propósitos mais básicos.

A partir desse olhar para o que atualmente se vivencia nas aulas de português,
propomos discutir, junto com o professor em formação, o papel das práticas de AL
no EM. Que lugar ocupa, portanto, a AL nesse cenário? Perguntam os professores:
“AL é só um novo nome para o ensino de gramática?”; “Como trabalhar com AL
sem ‘cair’ nas regras e nomenclaturas da gramática normativa?” Sabe-se ainda que a
interligação entre os eixos da AL, da leitura e da produção de texto no ensino de
língua materna permanece um desafio para professores e pesquisadores do campo
aplicado da linguística. Assim, ganham espaço, entre docentes, questões como: “E
necessário articular a AL com as práticas de leitura e de produção textual? Por que
razão? De que maneira?”, “Se o foco são os usos linguísticos — materializados na
leitura e a produção de textos — por que dedicar um papel específico à AL?”, “ É
preciso ensinar nomenclaturas? Quais?”, “Fazer AL é substituir nomenclaturas da
gramática normativa por nomenclaturas da linguística (coesão, coerência, sintagma,
anáfora, dêidco etc.)?”. A reflexão sobre tais questões norteará este capítulo.

2. Língua materna no ensino médio:


ALGUMAS PARTICULARIDADES

O ensino de língua portuguesa no EM apresenta algumas características espe


cíficas que se relacionam à organização dessa etapa da escolarização quanto à escolha
dos conteúdos a serem convertidos em objetos de ensino, quanto à progressão desses
objetos nas séries e quanto às justificativas para se estudar tais tópicos.

O E M , por caracterizar-se como a etapa final d a educação básica, carrega


um peso significativo quanto à seleção dos objetos de ensino (conteúdos e
competências) a abordar e das estratégias a adotar, pois não é possível “retomar
o que não foi visto” ou “suprir as lacunas” para além dos três anos de E M.
Além disso, o caráter de preparação para o trabalho (hoje em dia, quase restrita
a vagas oferecidas em concursos) e/ou para o vestibular, que efetivamente não
pode ser negado, traz outras implicações para essas escolhas.

N a seleção d e objetos d e ensino da área de língua materna, o EM tem


privilegiado, em geral, uma revisão /repetição do que foi visto no EFII, o que
se restringe, primordialmente, a uma revisão de gramática 7 e de técnicas de

7 Essa repetição já era apontada por Neves no seu livro Gramática na escola (1994),
lançado em 1990.
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 203

redação, especialmente para as dissertações escolares, com a novidade da intro


dução do estudo da literatura.
No âmbito do ensino de gramática, aborda-se a análise fonética e
morfossintática de palavras e expressões no l u ano do EM, como revisão do
1" ciclo do EFII (5a e 6a séries); introduz-se a análise sintática de períodos,
agora com as orações reduzidas, no 2o ano do EM, revisando-se o 2o ciclo d o
EFII (7 a e 8a séries) etc. O 3° ano do EM seria dedicado a uma revisão geral
de todo o currículo escolar, com ênfase no treinamento para o vestibular,
situação mais comum em escolas privadas.
A lógica subjacente a essa organização é a sucessão de unidades a serem
analisadas, cada vez mais complexas do ponto de vista morfossintático: da
9
palavra, para a oração; da oração, para o período8 . Entretanto, muito raramente
se chega à unidade maior: o texto. Menos ainda se tematizam aspectos
discursivos. É o que denominamos de organização cumulativa. Nessa pers
pectiva, a listagem de tópicos gramaticais a serem ensinados assemelha-se,
muitas vezes, ao sumário de uma gramática normativa: da fonologia para a
morfologia, daí para a sintaxe e daí para a semântica (da frase), onde parece
acabar o universo dos fenômenos linguísticos.
A perspectiva da organização cumulativa ignora dois aspectos fundamentais.
O primeiro deles é o fato de que a aquisição de linguagem se dá a partir da
produção de sentidos em textos situados em contextos de interação específicos e
não da palavra isolada; ocorre, portanto, do macro para o micro. Mesmo quando
apenas fala algumas palavras, a criança está, na verdade, produzindo discurso: é a
interação com o outro que importa e é para isso que ela procura aprender a falar
(e a escrever, posteriormente). O fluxo natural de aprendizagem é: da competência
discursiva para a competência textual até a competência gramatical (também cha
mada por alguns de competência linguística). O isolamento de unidades mínimas
— que é parte da competência gramatical — é um procedimento de análise e que
só tem razão se retomar ao nível macro: na escola, analisar o uso de determinada
palavra num texto só tem sentido se isso trouxer alguma contribuição à compre
ensão do funcionamento da linguagem e, portanto, se auxiliar a formação ampla
dos falantes’. A análise pela análise não faz sentido, conforme apontam os P C N + :

8 É o caso da inclusão tardia das orações reduzidas no estudo da subordinação,


geralmente apenas no EM, supondo-se que estas sejam difíceis para os alunos do EE Ignora-
se que as orações reduzidas (por ex.: Chegarei ao entardecer) só são difíceis de se categorizar,
mas não, de se usar. »
9 Perini (1995: 28-33) apresenta três razões para o 'ensino de gramática: aplicação imediata
(por ex.: saber procurar palavras no dicionário), formação de habilidades (raciocínio, observação,
204 MÁRCIA MENDONÇA

Considera-se mais significativo que o aluno internalize determinados me


canismos e procedimentos básicos ligados à coerência e à coesão do que
memorize, sem a devida apreensão de sentido, uma série de nomes de
orações subordinadas ou coordenadas ( . . . ) (p. 70-71).

Em segundo lugar, a organização cumulativa ignora o objetivo de formar


usuários da língua, para privilegiar a formação de analistas da língua. A escola
não tem de formar gramáticos ou linguistas descritivistas, e sim pessoas capazes
de agir verbalmente de modo autônomo, seguro e eficaz, tendo em vista os
propósitos das múltiplas situações de interação em que estejam engajadas.

Por isso, a AL surge como alternativa complementar às práticas de


leitura e produção de texto, dado que possibilitaria a reflexão consciente
sobre fenômenos gramaticais e textual-discursivos que perpassam os usos lin
guísticos, seja no momento de ler/ escutar, de produzir textos ou d e refletir
sobre esses mesmos usos da língua.

Não se exclui aqui a necessidade d e sistematização na AL, já que, espe


cialmente nessa etapa da escolarização, não há mais motivo para tratar os
fenômenos normativos, sistêmicos, textuais e discursivos de forma intuitiva.
Isso é defendido para a abordagem d e alguns aspectos no EFI (principalmente)
e EFII, quando a meta maior é alfabetizar e letrar, ou seja, levar os alunos à
apropriação do sistema d e escrita e inseri-los em diversas práticas letradas
significativas. Portanto, é preciso que o trabalho com AL no EM parta de uma
reflexão explícita e organizada para resultar na construção progressiva de
conhecimentos e categorias explicativas dos fenômenos em análise.

Outra peculiaridade do EM é o seu objetivo de preparar para o trabalho e/


ou para o vestibular, o que traz implicações para a seleção de conteúdos e estratégias
de ensino, pois se passa a questionar o que seria essencial nessa formação, entre os
objetos de ensino abordados na escola. Numa visão mercadológica, alegou-se,
durante um tempo, que alguns saberes seriam um “luxo” dispensável. Por exemplo,
a fruição estética e análises linguísticas mais sofisticadas, que levariam à leitura

testagem de hipóteses sobre aspecto da estrutúra da língua, enfim, formação para a pesquisa
e o pensamento independente) e formação cultural (tópico valorizado socialmente, embora sem
aplicação imediata). Esta última justificativa é pertinente numa formação generalista, que
suponha um lastro forte de conhecimentos gerais, necessários, por exemplo, para se produzir
e entender um comentário como “Bela metáfora!”. Porém corre o risco de ser mal compreendida
como uma ênfase na filigranas gramaticais, nas minúcias. Nesse caso, passaria a revelar um
desejo de formação erudita, de caráter elitista, insustentável dentro do atual paradigma da
formação para a cidadania e a inclusão.
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 205

crítica, das entrelinhas, não encontrariam espaço num currículo voltado para sa
beres de aplicação prática imediata no mundo do trabalha

No entanto, mesmo que se vise ao mercado, essa formação de cunho mais


prático, criada para atender às necessidades do Brasil na sua fase de expansão da
industrialização, não mais contempla as necessidades humanas deste 3o milênio, in
clusive do mercado de trabalho. Por essa razão, a articulação entre ciência, conheci
mento e cultura seria o eixo central do EM, de modo a permitir a formação de
capacidades criadoras e emancipatórias, e não apenas reprodutoras (Frigotto, 2004).

Quanto ao vestibular, há uma tendência crescente de valorizar as habilidades


e competências de leitura e escrita (saber fazer), em detrimento de conhecimentos
metalinguísticos (saber sobre), sendo estes auxiliares àquelas. Desse patamar mais
amplo, a AL constitui uma das ferramentas para o desenvolvimento de habilidades
essenciais de leitura e produção de texto, conforme detalharemos a seguir.

3. Análise linguística: afinal, o que é mesmo?


Novas palavras surgem quando surgem novas necessidades, já apontam os
dicionaristas e lexicógrafos. A esse respeito, Soares (1998: 19) diz: “ ( . . . ) novas
palavras são criadas, ou a velhas palavras dá-se u m novo sentido, quando
emergem novos fatos, novas ideias, novas maneiras de compreender os fenôme
nos”. O termo análise linguística não foge à regra, ou seja, surgiu para deno
minar uma nova perspectiva de reflexão sobre o sistema linguístico e sobre os
usos da língua, com vistas ao tratamento escolar de fenômenos gramaticais,
textuais e discursivos. Foi cunhado por Geraldi em 1984, no artigo “Unidades
básicas do ensino d e português”, parte da coletânea O texto na sala de aula
([1984] 1997c) para se contrapor ao ensino tradicional de gramática, para firmar
um novo espaço, relativo a uma nova prática pedagógica.

Essa outra perspectiva, porém, não põe em dúvida a necessidade de


refletir sobre a linguagem, atividade que praticamos dentro e fora d a escola,
ao longo de toda a nossa vida. A questão reside em como se dá essa reflexão
na escola, com que objetivos e com base em que aspectos, pois a A L explícita
e sistemática é uma prática que nasceu nessa instituição, sendo, portanto, parte
dos eventos de letramento escolar 10.

10 Atualmente, a reflexão sobre a linguagem extrapolou os muros escolares com os


“consultórios gramaticais” (programas de rv, colunas'em jornais e revistas etc.), mas estes a
fazem numa perspectiva normativa estreita, dos pecados e das virtudes.
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Geraldi (1996) amplia a crítica à tradição do ensino gramatical nas esco


las, pois considera que rigorosamente nem se leva o aluno a fazer análise, pois,
de fato, aos dados aplicam-se análises preexistentes, aquelas cristalizadas nas
gramáticas normativas, sem que os alunos possam testar suas hipóteses sobre
os fenômenos observados. Tais análises seriam, para o autor:
( . . . ) respostas dadas a perguntas que os alunos (enquanto falantes da língua)
sequer formularam. Em consequência, tais respostas nada lhes dizem e os
estudos gramaticais passam a ser ‘o que se tem para estudar’, sem saber bem
para que apreendê-los (Geraldi, 1996: 130).

Ainda assim, a AL não elimina a gramática das salas de aula, como muitos
pensam, mesmo porque é impossível usar a língua ou refletir sobre ela sem gramá
tica. Não há língua sem gramática, já nos lembram Possenti (1996) e Antunes
(2003). A AL engloba, entre outros aspectos, os estudos gramaticais, mas num
paradigma diferente, na medida em que os objetivos a serem alcançados são outros.

Então, o que há de novo e de diferente em fazer AL, que não é ensinar


gramática? De fato, a diferença começa pela própria concepção que serve de
base a toda reflexão sobre ensino de língua materna: o que é lingua(gem).
Assumir determinada concepção de língua implica repensar o que é importante
ensinar nas aulas de português e também como realizar esse ensino.

Por isso, numa perspectiva sociointeracionista de língua, a AL constitui


um dos três eixos básicos do ensino de língua materna, ao lado da leitura e
da produção de textos. Ao assumir tal ponto de vista teórico, o estudo dos
fenômenos linguísticos em si mesmos perde sentido, pois se considera que a
seleção e o emprego de certos elementos e estratégias ocorre, afora as restrições
óbvias do sistema linguístico, em consonância com as condições de produção
dos textos, ou seja, de acordo com quem diz o que, para quem, com que
propósito, em que gênero, em que suporte etc. Surge, então, a proposta da AL,
que teria como objetivo central refletir sobre elementos e fenômenos linguís
ticos e sobre estratégias discursivas, com o foco nos usos da linguagem.
Conforme explica Geraldi (1997c: 74), em nota de rodapé:
O uso da expressão ‘análise linguística’ não se deve ao mero gosto por novas
terminologias. A análise linguística inclui tanto o trabalho sobre as questões
tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do texto, entre
as quais vale a pena citar: coesão e coerência internas do texto; adequação
do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos utiliza
dos (metáforas, metonimias, paráfrases, citações, discursos direto e indireto
etc.); organização e inclusão de informações etc. Essencial mente, a prática
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de análise linguística não poderá limitar-se à higienização do texto do aluno


em seus aspectos gramaticais e ortográficos, limitando-se a ‘correções’.
Trata-se de trabalhar com o aluno o seu texto para que ele atinja seus
objetivos junto aos leitores a que se destina.

Para uma melhor compreensão das diferenças básicas entre ensino d e


gramática e AL, elaboramos a tabela abaixo, ilustrativa:

ENSINO DE GRAMÁTICA PRÁTICA DE ANÁLISE LINGÜÍSTICA

• Concepção de língua como sistema, estrutura • Concepção de língua como ação


inflexível e invariável. interlocutiva situada, sujeita às
interferências dos falantes.

• Fragmentação entre os eixos de ensino: as aulas • Integração entre os eixos de ensino: a


de gramática não se relacionam necessariamente AL é ferramenta para a leitura e a
com as de leitura e de produção textual. produção de textos.

• Metodologia transmissiva, baseada na exposição • Metodologia reflexiva, baseada na


dedutiva (do geral para o particular, isto é, das indução (observação dos casos
regras para o exemplo) + treinamento. particulares para a conclusão das
regularidades/regras).

• Privilégio das habilidades metalinguísticas. • Trabalho paralelo com habilidades


metalinguísticas e epilinguisticas.

• Éhfase nos conteúdos gramaticais como objetos • Éhfase nos usos como objetos de ensino
de ensino, abordados isoladamente e em (habilidades de leitura e escrita), que
sequência mais ou menos fixa. remetem a vários outros objetos de
ensino (estruturais, textuais, discursivos,
normativos), apresentados e retomados
sempre que necessário.

• Centralidade da norma padrão. • Centralidade dos efeitos de sentido.

• Ausência de relação com as especificidades dos • Fusão com o trabalho com os gêneros,
gêneros, uma vez que a análise é mais de cunho na medida em que contempla
estrutural e, quando normativa, desconsidera o justamente a intersecção das condições
funcionamento desses gêneros nos contextos de de produção dos textos e as escolhas
interação verbal. linguísticas.

• Unidades privilegiadas: a palavra, a frase e o • Unidade privilegiada: o texto


período.

• Preferência pelos exercícios estruturais, de • Preferência por questões abertas e


identificação e classificação de unidades/ funções atividades de pesquisa, que exigem
morfossintáticas e correção. comparação e reflexão sobre
adequação e efeitos de sentido.

TABELA 1: DIFERENÇAS ENTRE ENSINO D E GRAMÁTICA E ANÁLISE LINGUÍSTICA"

11 Esta tabela, como as outras neste capítulo, tem propósitos ilustrativos. Portanto, ao
reduzir os fenômenos e enfocar apenas o que é normalmente observado, ela não pretende
208 MÁRCIA MENDONÇA

Por isso, pode-se dizer que a A L é parte das práticas de letramento escolar,
consistindo numa reflexão explícita e sistemática sobre a constituição e o
funcionamento da linguagem nas dimensões sistêmica (ou gramatical), tex
tual, discursiva e também normativa, com o objetivo de contribuir para o
desenvolvimento de habilidades de leitura/ escuta, de produção de textos orais
e escritos e de análise e sistematização dos fenômenos linguísticos.
Note-se que, no lugar da classificação e da identificação, ganha espaço
a reflexão. A partir de atividades linguísticas (leitura/escuta e produção oral
e escrita) e epilinguísticas (comparar, transformar, reinventar, enfim refletir
sobre construções e estratégias linguísticas e discursivas), que familiarizam
com o aluno com os fatos da língua, este pode chegar às atividades metalin-
guísticas, quando a reflexão é voltada para a descrição, categorização e siste
matização dos conhecimentos, utilizando-se nomenclaturas (Franchi, 1988;
Geraldi, 1997c; PCN, 1998c).

É certo que a AL inclui o trabalho com a norma de prestígio e com


estruturas morfossintáticas, mas refletir sobre a linguagem vai muito além disso.
Desse ponto de vista, o que pode, enfim, ser trabalhado na prática de AL? O u
melhor, que aspectos da língua são transformados em objeto de reflexão? Norma
e variação linguística? Morfologia? Vocabulário? Sintaxe? Modalização? Rimas
e aliterações? Coesão? Estratégias argumentativas? Cada um desses conjuntos de
fenômenos pode estar envolvido na prática de AL, alguns deles simultaneamente
numa mesma atividade. O que configura um trabalho de AL é a reflexão recor
rente e organizada, voltada para a produção de sentidos e/ ou para a compreen
são mais ampla dos usos e do sistema linguísticos, com o fim de contribuir para
a formação de leitores-escritores de gêneros diversos, aptos a participarem de
eventos de letramento com autonomia e eficiência.

Quanto à organização das atividades de AL na sua relação com os demais


eixos do ensino, apresentamos três possibilidades, igualmente válidas, mas que
supõem metas distintas. Outras organizações podem ser pensadas para atender
a outros objetivos.

abarcar a multiplicidade de procedimentos utilizados de fato em sala de aula, inclusive a mescla


de perspectivas, já mencionada.
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210 MÁRCIA MENDONÇA

por meio da AL. Nesta discussão, a prática de AL estará relacionada aos demais
eixos do ensino de língua materna, constituindo uma ferramenta para a
potencialização das habilidades de leitura e escrita, conforme dizem os P C N
de Língua Portuguesa do EFII (1998c: 34):
Ainda que a reflexão seja constitutiva da atividade discursiva, no espaço
escolar reveste-se de maior importância, pois é na prática de reflexão sobre
a língua e a linguagem que pode se dar a construção de instrumentos que
permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência discursiva para falar,
escutar, 1er e escrever nas diversas situações de interação (grifo nosso).

4.1 Análise linguística e leitura


Alguns professores, ao afirmarem trabalhar com gramática
“contextualizada”, em que tudo seria abordado a partir da leitura do texto,
mascaram, na verdade, uma prática d e análise morfossintática de palavras,
expressões ou períodos retirados de um texto de leitura, transformado em
pretexto para a análise gramatical tradicional. A tabela abaixo compara os
procedimentos do ensino de gramática com os realizados na prática de análise
linguística para o eixo da leitura.

ENSINO DE GRAMÁTICA

Objeto de Estratégia mais usada Habilidade esperada


ensino

Advérbios, •Exposição de frases e •Identificar e classificar os termos em orações


locuções períodos (ora inventados, e períodos.
adverbiais e ora retirados dos textos de •Transformar advérbios em locuções
orações leitura) para identificação e adverbiais.
adverbiais classificação dos termos. •Fazer a correspondência, em exercícios
•Uso das explicações das escolares, entre locuções adverbiais e
gramáticas como texto advérbios, resultando, algumas vezes, em
didático de base para a construções que não se equivalem
abordagem do assunto. pragmaticamente (por ex.: de forma feliz
felizmente, de forma rea realmente etc.).

Adjetivos, •Exposição de frases e “ •Identificar e classificar os termos em orações


locuções períodos (ora inventados, e períodos;
adjetivas e ora retirados dos textos de •Transformar adjetivos em locuções adjetivas.
orações leitura) para identificação e •Conhecer e reproduzir, em exercícios
adjetivas classificação dos termos. escolares, a correspondência entre locuções
•Exposição de listas de adjetivas e adjetivos, geralmente de uso
adjetivos relativos a certas menos comum (de gelo = glacial; de
locuções, a serem chumbe = plúmbeo etc.).
memorizadas.
•Uso das explicações das
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 211

gramáticas como texto


didático de base para a
abordagem do assunto.

ANÁJLISE LINGUÍSTICA

Objeto de Sugestão de estratégias Competência esperada


ensino

Expressões • Leitura e comparação de Perceber que:


adverbiais, gêneros diversos; • as circunstâncias podem ser sinalizadas —
indicadoras observação de casos por meio dos adjuntos adverbiais e de
de particulares para se chegar outros recursos — construindo-se
circunstâncias a conclusões mais gerais. expectativas de leitura e matizes de sentido
•Consulta a manuais, relevantes para a compreensão global (ex.: o
gramáticas e dicionários uso de Na verdade, indicando a posição do
para ampliar as discussões locutor);
e o próprio repertório de • em diferentes gêneros, há usos específicos
expressões etc. desses recursos para atender a propósitos
distintos (ex.: notícia e fábula).

Processos de • Leitura e comparação de Perceber que:


adjetivação/ textos; observação de • a adjetivação pode ser construída por meio
qualificação casos particulares para se de várias estratégias e recursos, criando
chegar a conclusões mais diferentes efeitos de sentido;
gerais. • gêneros diferentes admitem certas
•Consulta a manuais e adjetivações e não outras, como as notícias
gramáticas e dicionários com descrições mais “contidas” que uma
para ampliar as discussões fábula o u um artigo de opinião;
e o próprio repertório de • os processos de adjetivação/qualif ¡cação,
expressões etc. incluídos numa descrição, podem estar além
d o uso dos adjetivos, revelando-se na
escolha dos verbos {esbravejou no lugar de
afirmod. por exemplo.

TABELA 3: LEITURA: ENSINO DE GRAMÁTICA E ANÁLISE LINGUÍSTICA

No fragmento de poema a seguir, o processo de adjetivação é a chave


para a construção da representação do eu lírico feminino:

ESTAS MAOS
Olhe para estas mãos Mãos de semeador...
de mulher roceira, Afeitas à sementeira do trabalho.
esforçadas mãos cavouqueiras. Semeando sempre.
Jamais para elas
Pesadas, de falanges curtas, os júbilos da colheita.
sem trato e sem carinho. Mãos tenazes e obtusas,
Ossudas e grosseiras. feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida. ( . . . )
212 MÁRCIA MENDONÇA

Mãos que varreram e cozinharam. Mãos pequenas e curtas de mulher


Lavaram e estenderam que nunca encontrou nada na vida.
roupas nos varais. Caminheira de um? longa estrada.
Pouparam e remendaram. Sempre a caminhar.
Mão$ domésticas e remendonas.(...) Sozinha a procurar.
o ângulo prometido,
a pedra rejeitada. " ,
(CORALINA. C Meu fívro de cordel.Gòinar. P. D. Araújo/ Liyraria-e Editora Cúftura Colana. 1976. pp.,59 0)

O eu lírico feminino é apresentado/ representado metonimicamente por


suas mãos, que são descritas, caracterizadas ao longo do texto. Numa aula de
gramática tradicional, o olhar talvez fosse dirigido primeiramente (e apenas?)
para a localização e classificação dos adjetivos, locuções adjetivas e orações
adjetivas (e há uma profusão deles no poema). Numa prática de AL, a leitura
do texto seria essencial, o ponto de partida na verdade. Só então, com o intuito
de ampliar os potenciais de leitura, seriam focalizados os recursos linguísticos
usados para construir sentido, neste caso, a adjetivação como processo central,
que permeia todo o poema. Classificar as orações adjetivas, por exemplo, não
seria o objetivo do trabalho, mas sim levar à reflexão sobre:

a) por que, no poema, a descrição das mãos é o mote para tematizar as


características do eu lírico e os percalços d e sua vida;
b) com que recursos essas descrições são realizadas. Assim, pode-se
dizer que a AL é uma ferramenta importante nas aulas de literatura,
pois contribui para desvelar traços da criação literária.

No trecho abaixo, retirado de uma entrevista, podem-se focalizar outros


fatores relevantes para compreensão do texto e para o funcionamento do gênero:

A paz do primeiro emprego


Países com grande população jovem sem trabalho têm mais chance de sofrer conflitos
armados e até guerra civil, aponta o pesquisador americano

Ivan Padilla

Países com alta porcentagem de jovens têm duas vezes e meia mais chances de se tornar palco
de conflitos armados do que os países com população adulta madura. A mesma lógica alimenta
o crime, indica o pesquisador americano Richard Cincotta, presidente da ONG Population Action
International e consultor do Instituto Woddwatch, ambos com sede em Washington. Ele diz que
a estrutura demográfica brasileira é similar à da Coreia do Sul e Taiwan na década de 80, quando
os tigres asiáticos despontaram. Mas alerta: para isso acontecer, é preciso investir maciçamente
em educação, avisa.

ÉPOCA — Países c o m população jovem são mais instáveis?


Richard Cincotta — Sim. Países com alta proporção de jovens têm aproximadamente duas vezes
e meia mais chances de instabilidades que os países com população adulta madura. Muitas razões
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 213

expliçamesse fenômeno. Muitos jovens vão para as ruas. Essa hier


fora de casa oferece uma identidade aos jovens. Gangues de
crônico não qtãm uma revolução, mas facilitara o recrutamento pw-hanc
políticos (...).

ÉPOCA Qual seria a solução? , ... ..


Cincotta-— A curto prazo, é necessário estimular a criação de empregos. ( . . . ) A longo prazo,
os países devem promover progressos em süa transição demográfica. ( . . . ) Os governos, tanto
do Sul como do Norte, devem incentivar meninas a ir à escola, lutar contra a mortalidade infantil,
permitir o acesso a métodos contraceptivos, assegurar que as mulheres não sofram preconceito.

(Época, 06/06/05, n B 368, pp. 75-76).

Percebem-se, como recursos e estratégias linguístico-discursivas:

o uso da justaposição (a ausência de conectivos), como estratégia de construção do discurso


argumentativo na primeira resposta do entrevistado;

a adjetivação do pesquisador, com profissão e local de trabalho, importante para


legitimá-lo como entrevistado da revista sobre o tema e sancionar a relevância da
publicação da entrevista n o veículo. A propósito, no texto original, há um boxe com
mais detalhes sobre a atuação profissional d o pesquisador;

estabelecimento de progressão tópica, pelos nexos coesivos (ora explícitos ora implí
citos), entre:
o o primeiro período e A mesma lógica;
o "isso" (Para isso acontecer. . . ) e a afirmação anterior sobre o crescimento dos tigres
asiáticos, relação implícita que necessita da leitura das entrelinhas ( O Brasil só
poderá crescer como os tigres asiáticos se investir em educação.)
o Muitos jovens vão para as ruas, essa hierarquia masculina que se forma fora de casa
e gangues de garotos nas ruas, criando uma rede de causa e efeito importante na
sustentação dos argumentos centrais;
o progressos em sua transição demográfica e o último período, que detalha que
progressos seriam esses, fazendo avançar a argumentação d o texto;

o uso dos verbos alertar e avisar e das expressões é preciso e é necessário, indicando
a posição dos interlocutores: um especialista n o tema fala a não especialistas;

o estabelecimento da coerência global com a explicação (no subtítulo, na abertura da


entrevista e nas respostas do especialista) dos implícitos que estão do título (Jovens
empregados não são recrutados para a violência e a guerra);

o uso dos operadores argumentativos a curto prazo e a longo prazo indicando duas
linhas de argumentação complementares para encaminhar a solução dos problemas;

a alternância de perguntas e respostas, típica do gênero entrevista, também constrói


a progressão tópica e a coerência global d o texto, na medida em que os tópicos
podem ser lançados pelo entrevistador em sua pergunta o u pelo entrevistado em sua
resposta;

etc. (vários outros aspectos relevantes para compreensão d o texto e para o funcio
namento d o gênero nessa situação específica de interação. Cf. PCN+, 2002: 82-83).
214 MÁRCIA MENDONÇA

Assim, a reflexão organizada e sistemática sobre aspectos como os citados


pode ajudar os alunos a desenvolverem habilidades importantes para a forma
ção de leitores proficientes, autônomos e críticos.

4.2 Análise linguística e produção de texto

A título de comparação, explicitamos as diferenças de perspectiva no


tratamento de um mesmo fenômeno linguístico, segundo a tradição das aulas
de gramática e a proposta de AL, na tabela a seguir:

ENSINO DE GRAMÁTICA

Objeto de Estratégia
Habilidade esperada
ensino mais usada

Orações • Exposição de • Identificar e classificar as orações e os períodos.


coordenadas e períodos para
subordinadas identificação
e classificação
dos termos.

ANÁLISE LINGÜÍSTICA

Objeto de Sugestão de Habilidade esperada


ensino estratégias

Operadores • Leitura e • Perceber que as várias formas de estruturar períodos e


argumentativos; comparação de ligá-los por meio de operadores argumentativos
organização de textos. (preposições, conjunções, alguns advérbios e expressões)
estrutural das • Exercícios de podem mudar os sentidos do texto, ou podem resultar
sentenças. reescrita de em textos mais ou menos coesos e coerentes.
textos e de • Ser capaz de escolher, entre as diversas possibilidades da
trechos de língua, a que melhor atende à pretensão de sentido de
textos. quem escreve.
• Saber consultar dicionários e gramáticas para ampliar o
repertório de operadores argumentativos e conhecer suas
nuances de sentido.

TABELA 4: PRODUÇÃO DE TEXTO: ENSINO DE GRAMÁTICA E ANÁLISE LINGUÍSTICA

No desenvolvimento das habilidades de escrita de textos e de produção oral,


em vários gêneros, a AL pode ser de grande auxílio, na medida em que supõe não
uma atitude de higienização dos textos, da correção por parte do professor sem a
colaboração do aluno, mas um movimento de reflexão sobre virtudes e lacunas
percebidas, de natureza diversificada, como a tabela a seguir exemplifica.
*
Nas atividades de produção de texto, podem-se enfocar problemas de ordem:
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 215

• Ortográfica — erros de grafia em palavras que apresentam regularidade devido ao mesmo


radical (ex. pesqulsa/pesquisador) e 'também cúrtas àhèráções relativas ao contexto silábico
(coragem/corajoso);

• Motfp sintâtica/nqrmativa — problemas de concordância verbal, comuns, por exemplo, com


sujeito posposto, distante do verbo;

• Textual — problemas de coesão/coerênçia, por ambiguidades indesejada$, qrganízação


sintática inadequada e/ou por mau uso de operadores argumentativos (preposições, con
junções e locuções conjuntivas; certos advérbios e adjuntos adverbiais, copio assim, agora;
logo depoif) etc.;

• Discursiva — uso inadequado de vocabulário eip relação-à orientação argumentativa Jdo


texto (referir-se a adolescentes infratores como. 'bandidos’ num texto'que argumente serem
eles vítimas de causas sociais), inadequação d o grau de formalidade ao género (formal pu
informal demais) etc.

TABELA 5: PRATICA DE ANALISE LINGUÍSTICA PARA A PRODUÇÃO D E TEXTO

Como estratégias didáticas, pode-se trabalhar com a avaliação da produ


ção por parte dos colegas, com a comparação entre os textos produzidos e entre
estes e outros textos, com a escolha de alguns exemplos para atividades indi
viduais, em grupo ou coletivas. Nesses momentos, o professor conduz a
reflexão, reescrita de trechos/ textos e, principalmente, a sistematização dos
conhecimentos construídos”.

4.3 Análise linguística e análise linguística

Apesar de o foco d a A L ser a produção de sentido, certos aspectos da


língua remetem às dimensões normativa e sistêmica. Assim, há tópicos que
precisam ser trabalhados d e forma recorrente, independentemente do gênero
(lido ou produzido). Por exemplo, erros de grafia relativos a parónimos de
uso corriqueiro (sessão /seção} podem não interferir na compreensão de um
texto, mas devem ser trabalhados para que os alunos passem a dominar, cada
vez mais, as convenções d a no rma ortográfica.

Em outros casos, é preciso chamar a atenção para certos recursos de coesão


e coerência, que não dizem respeito a um ou outro gênero em especial, mas aos
textos de modo geral. Exemplos são a ausência de contradição para o estabeleci
mento da coerência, a progressão tópica, o uso adequado de conectivos etc. Aulas
que focalizem específicamente tais aspectos, ainda que exemplifiquem os fenômenos
em gêneros diversos, podem ser necessárias e pertinentes, dependendo da turma.

13 Sobre produção de textos, ver o capítulo 9 deste livro, de I. Antunes.


216 MÁRCIA MENDONÇA

A tabela a seguir resume as principais diferenças para o tratamento da


norma padrão no ensino de gramática e na prática de análise linguística.

ENSINO DE GRAMÁTICA

Objeto de Estratégia mais usada Competência esperada


ensino

Sujeito e • Exposição de frases e • Identificar e classificar os termos em


predicado períodos para identificação orações e períodos.
e classificação dos termos.

Concordância • Resolução de exercícios • Utilizar as formas verbais corretas em


verbal estruturais com frases e frases e períodos, geralmente
períodos para escrita da preenchendo lacunas.
forma verbal correta. • Justificar a concordância, explicitando a
regra prescrita pela gramática normativa.

ANÁLISE LINGÜÍSTICA

Objeto de Sugestão de Competência esperada


ensino estratégias

Concordância • Análise e comparação de • Perceber a que termo o verbo se refere


verbal e textos, especialmente (qual é o sujeito), para efetuar a concor
referência produções dos alunos, com dância de acordo com a norma padrão.
posterior reescrita; •Habituar-se a consultar gramáticas para
consulta a gramáticas para dirimir dúvidas nos casos menos comuns.
compreender por que • Compreender as regras aí apresentadas
determinada concordância para ser capaz de recorrer às gramáticas
se faz de certa forma etc. com autonomia em momentos de dúvida.

TABELA 6 : N O R M A PADRÃO: ENSINO DE GRAMATICA E ANÁLISE LINGUÍSTICA

Os fenômenos eventualmente podem até ser os mesmos nas aulas de gra


mática e de análise linguística, entretanto os objetivos de ensino diferem, o que
leva à adoção de estratégias distintas, situadas em práticas pedagógicas distintas.

5. Longe d o c o n s e n s o . . .
Certas questões relativas à na escola são recorrentes e polêmicas,
merecendo alguma discussão, na qual assumiremos nossos pontos de vista.

1
5.1 Nomenclatura: ensinar ou não ensinar!

O primeiro passo da gramática usual consiste numa definição, e de defini


ções e classificações, e preceitos dogmáticos se entretece todo este ensino.
Em todo esse longo e penoso curso de trabalhos, que nos consomem o
melhor do tempo nos primeiros anos de estudo regular, não se sente, não
ANÁLISE LINGUÍSTICA N O ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 217

há, não passa o mais leve movimento de vida. Como se as teorias fossem
a primeira, e não a última expressão da atividade intelectual no desenvol
vimento, ou da humanidade. Como se o uso não pressupusesse o conheci
mento cabalmente real do objeto definido. Como se a linguagem, numa
palavra, não precedesse necessariamente a codificações gramaticais.
(Rui Barbosa, Parecer sobre a reforma do Ensino Primário em 1883,
apud A. J. L. Introdução a Rui Barbosa: escritos e discursos seletos. Rio
de Janeiro: Edição Aguilar, 1960).

Na encruzilhada entre calar sobre as nomenclaturas ou priorizá-las, o


professor se pergunta “ensinar ou não nomenclatura?”. Essa dúvida surgiu
com as críticas feitas ao privilégio da apresentação de classificações e conceitos
nas aulas de gramática, em detrimento da reflexão sobre os fenômenos. Na
verdade, é uma falsa questão, pois a nomenclatura técnica é parte dos objetos
de ensino, ou seja, nomear os fenômenos é necessário para a construção de
qualquer saber científico. A nomenclatura é mais uma ferramenta no processo
d e aprendizagem, o que não equivale a eleger como objetivo das aulas o
domínio dos termos técnicos, como já criticava Rui Barbosa em 1883.

Além disso, na escola, não basta apenas saber, é preciso saber dizer. E só
é possível dizer com propriedade se usarmos alguma metalinguagem, seja ela
uma nomenclatura técnica, seja ela uma paráfrase individual e intuitiva. Quan
t o a isso, dizem os P C N + (2002):

Aplica-se com muita frequência o conceito em todas as disciplinas: a


metalinguagem constitui-se instrumento de descrição e análise dos diversos
códigos utilizados na cultura (p. 49).

Assim, se a escola espera que o aluno não só se aproprie de certos conhe


cimentos, mas também saiba falar a seu respeito, saiba verbalizar seu saber (boa
parte das avaliações solicitam isso), é necessário o uso d e nomenclaturas,
quaisquer que sejam elas. A esse respeito, Kleiman (1995: 27) afirma:

A maior capacidade para verbalizar o conhecimento e os processos envol


vidos numa tarefa é consequência de uma prática discursiva privilegiada na
escola, que valoriza não apenas o saber mas o “saber dizer”.

Se o EFI deve se voltar essencialmente para a apropriação do sistema d e


escrita e para a ampliação das experiências de letramento dos alunos, com ênfase
nas práticas de leitura e escrita, esse trabalho é ampliado no EFII, com o acrés
cimo de outras habilidades e outros conceitos, estes devidamente nomeados. O
EM, por sua vez, continua essa abordagem, mas o aluno deve, além de perma-
218 MÁRCIA MENDONÇA

necer desenvolvendo habilidades de leitura e escrita, ter acesso sistemático às


nomenclaturas técnicas, saberes culturalmente construídos e socialmente valori
zados. Negar aos alunos esse conhecimento é um equívoco, por várias razões.
Em primeiro lugar, o uso da metalinguagem é econômico porque pos
sibilita referir-se aos fenômenos em qualquer exemplo, desde que estes estejam
englobados sob um nome genérico. Por exemplo, a compreensão do conceito
de “ambiguidade”, referido por esse mesmo termo, serve para explicar qual
quer ocorrência ambígua, permitindo aos alunos analisar outros exemplos
ambíguos e generalizar sobre o fenômeno.

O conhecimento das nomenclaturas é fundamental também para que os


alunos manipulem, com autonomia, manuais de consulta e gramáticas, cujo
índice se constitui de uma lista de termos técnicos. Também é útil para sanar
dúvidas na consulta a dicionários, pois os verbetes apresentam informações
relevantes, por meio de abreviaturas de termos técnicos, por exemplo, s.m.,
adj., v.t.d., sin., para substantivo masculino, adjetivo, verbo transitivo direto e
sinónimo, respectivamente.

Em último lugar, citamos os exames de seleção — vestibulares e concur


sos públicos — que exigem, em maior ou menor grau, o conhecimento de
termos técnicos básicos, seja como ferramenta para a compreensão dos enun
ciados das questões, seja como objeto das próprias questões 1*.

5.2 AL e. organização curricular

Outra questão pendente nas discussões sobre as mudanças no ensino de


língua é como organizar o currículo tendo em vista a integração dos eixos de
leitura, produção e AL. Mesmo sabendo que o currículo não é uma grade
fechada de conteúdos, já que dialoga com as demandas sociais de cada época,
a escola precisa de saberes minimamente estabilizados, para poder funcionar
como agência d e disseminação e reformulação desses saberes.

Tradicionalmente a organização cumulativa, de que já falamos, não con


templa a integração dos eixos de AL, leitura e produção. Para integrá-los, a
seleção e a organização dos conteúdos deveria seguir não uma lógica meramente
estrutural (fonologia, morfologia, sintaxe etc.), como se observa correntemente,
mas sim critérios discursivos, relativos à produção de sentidos com base em

14 O conhecimento de nomenclaturas como foco das questões tem sido cada vez menos
frequente nos concursos e vestibulares, dada a tendência crescente de privilegiar as habilidades
de leitura e escrita.
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 219

recursos e estratégias linguístico-discursivos, que seriam o foco da prática de AL.


Entretanto, esses recursos e estratégias aparecem a todo o momento, em qualquer
gênero, o que dificulta a progressão de abordagem na escola.

Dolz & Schneuwly ([1996] 2004) sugerem, numa perspectiva de trabalho


com gêneros, que a progressão escolar se organize em torno da exploração d e
habilidades necessárias à leitura e produção de gêneros pertencentes aos diver
sos agrupamentos: do relatar (narrativas não ficcionais), d o narrar (narrativas
ficcionais), d o descrever ações (textos instrucionais e prescritivos), do expor
e do argumentar. Em todos os momentos de escolarização, os alunos seriam
levados a refletir sobre a organização de gêneros diversos, pertencentes aos
vários agrupamentos, e a progressão se daria de acordo com as habilidades
relativas a cada um dos agrupamentos.
No âmbito das habilidades argumentativas, por exemplo, haveria pro
gressão quanto à elaboração de argumentos ao longo dos anos escolares: da
exposição de pelo menos um argumento, passa-se a solicitar a hierarquização
de uma sequência de argumentos em função da situação, depois à sustentação
por meio de exemplos, até a exploração dos argumentos de cada uma das teses
possíveis sobre o tema em debate. Progressão semelhante ocorre quanto à
escolha de outros recursos linguísticos necessários à argumentação: desde a
simples utilização de organizadores de causa nos ciclos 1-2 (porque, por isso
etc.) até a escolha entre verbos declarativos neutros (dvpr, falar), apreciativos
(assegurar) e depreciativos (titubear) çm ciclos posteriores.

Para que esse tipo de progressão possa ser implementado nas escolas, é
preciso estudar mais a respeito da constituição dos gêneros diversos e refletir
sobre o que seria relevante para a abordagem da escola. Essa lição de casa está
sendo feita por vários pesquisadores, mas não está desenvolvida a ponto de
podermos propor, sem grandes dúvidas, uma organização curricular mínima
que sirva de ponto de partida para a elaboração de currículos e programas, nas
diversas instâncias de decisão sobre educação. Por essa razão, cremos que a
mescla de perspectivas vai ser o mais comum nas salas de aula ainda durante
um bom tempo: uma progressão que ora segue critérios estruturais, tradicio
nais; ora segue critérios discursivos.

5.3 Ensino de gramática: identidades em jogo


MINHA ESCOLA
A escola que eu frequentava era cheia de grades como as prisões.
E o meu Mestre, carrancudo como um dicionário;
220 MÁRCIA MENDONÇA

Complicado tomo as Matemáticas;


Inacessível como Os lu&adas de Camões!

À suá porta eu estacava sempre hesitante’..


De um lado a vida... — A minha adorável vida de criança;
Pinhões... Pajjagaios... carreiras ao sol... ( . . . )

Do outro lado, aquela tortura: ...


'As armas e os barões assinalados!"
— Quantas orações?
— Qual o maior rio da China?
— A 2 +2AB = quanto? (...) |

Felizmente, à boca da noite,


Eu tinha uma velha que me contava histórias...
Lindas histórias do reino da Mãe-d'Água...
E me ensinava a tomar a benção à lua nova.
(A. Ferreira, Poemas de Ascenso Ferreira. 5. ed. Recife: Nordestal, 1995. p. 41)

O ASSASSINO ERA O ESCRIBA


Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da I a conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva. . ., ' ■
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia matei-o com um objeto direto na cabeça.

(P. Leminski, Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983)

Para quase finalizar, reafirmamos um princípio já bastante aludido: o que


entra em jogo quando se discute o ensino, inclusive de gramática, é mais do
que uma questão de ordem lingüística'5, mesmo porque não há ensino neutro,
como nos ensinou o mestre Paulo Freire. Na verdade, ao optar por uma ou

15 Possenti (1997) e Geraldi (1997b) já discutiam essa questão na coletânea O texto na


saia de aula, lançada em 1984, além de Possenti & Ilari (1992), em Linguística aplicada ao
ensino de português, cuja primeira edição data de 1987. Outros trabalhos sobre variação e
preconceito linguístico também abordam o caráter político-ideológico das questões relativas
ao ensino de língua materna (Bagno, 1998, 2000; Britto, 1997; Gnerre, [1985], 1991).
ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR. UM OUTRO OBJETO 221

outra corrente teórica, po r esta e não aquela metodologia, valores e crenças são
acionados, uma vez que a identidade profissional de quem ensina é posta em
xeque e, por consequência, o valor que se atribui ao seu trabalho. O ensino
d e gramática tem relação direta com as identidades construídas no interior da
escola e até fora dela: o que é importante ensinar, o que faz um bom professor
de português, como deve ser a aula de português, o que se deve avaliar e como
etc. Interligam-se, inevitavelmente, concepções teóricas, sejam elas conscientes
ou não, e escolhas metodológicas:

( . . . ) toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política —


que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade —
com os mecanismos utilizados em sala de aula (Geraldi, 1997b: 40).

A crítica ao ensino d e gramática nos chamados moldes tradicionais tem-


se tomado tão presente em encontros de formação continuada, textos de
divulgação científica e artigos acadêmicos que chegou a produzir a negação
dessas práticas no discurso docente: poucos professores atualmente admitem
que ensinam gramática à maneira tradicional. A imagem de u ma prática ultra
passada está vinculada a esse ensino de gramática, prática recriada nos poemas
de Ascenso Ferreira (início do século X X) e Paulo Leminski (meados do
século X X ) , na epígrafe deste tópico. Mesmo separadas por cerca de 50 anos,
as experiências com o ensino d e português relatadas nos poemas são bastante
parecidas (e atuais!), pois percebe-se o foco em análises e classificações
morfossintáticas, e regras de uso da norma culta, com critérios que oscilam
entre o certo ou o errado, sem maleabilidade — tudo isso, como ainda hoje,
através de exercícios estruturais que não ultrapassam a unidade do período.

Orgulhar-se dessa prática é cada vez mais raro em muitos ambientes d e


convívio dos professores, ao contrário d o que ocorria há cerca d e apenas 20
anos, quando o bom professor era o que dominava e cobrava com rigor as
minúcias da gramática, o hoje chamado professor “gratimaqueiro”.

Percebe-se a instalação de u m certo conflito d e identidades docentes: a


assumida publicamente, como o prófessor que trabalha “tudo a partir do texto”,
com a “gramática contextualizada”, mesmo que eventualmente não saiba muito
bem por que nem como; e a praticada nas salas de aula, como o professor que
mescla diferentes objetos d e ensino — aspectos da gramática normativa, como
concordância, ortografia etc.; aspectos da gramática descritiva, como classes d e
palavras, funções sintáticas; aspectos textuais, como esquemas para textos dissertativos,
entre outros — a várias abordagens metodológicas — exposição-transmissão, exer
cícios estruturais com frases e períodos, leitura e escrita de textos etc.
222 MÁRCIA MENDONÇA

Na v e r d a d e , a afirmação d e q u e se trabalha com a gramática


“contextualizada” oculta, muitas vezes, o fato de que essa contextualização se
refere normalmente à retirada de frases e períodos de um texto, sem qualquer
referência ao funcionamento do fenômeno gramatical em estudo na produção
de sentido dos discursos. Em outras palavras, o texto é pretexto para ensinar
gramática, tal e qual já se vinha fazendo.
O duplo perfil do professor de português pode ser observado também na
escolha dos LDs avaliados pelo PNLD em 200016. Não por acaso, os LDs mais
escolhidos pelos professores são os recomendados com ressalvas (RR) (65,42%)
pela avaliação do PNLD 2001, conforme aponta o estudo de Batista (2004: 42).
Contraditoriamente, 41,10% desses mesmos professores declaram, nos questioná
rios aplicados, preferir os LDs recomendados com distinção (RD), contra 7,88%
de preferência declarada pelos recomendados (REC) e 4,45% pelos recomendados
com ressalvas (RR). Esses dados parecem indicar que o professor tanto busca
aproximar-se dos discursos oficiais favoráveis às mudanças quanto se apega a
esquemas que já lhe são familiares, inclusive para o ensino de gramática. Isso talvez
ocorra porque ele não se sinta à vontade para (ou convencido a) trabalhar na
perspectiva discursiva que os LDs REC ou R D 17 propõem, que sugere, em linhas
gerais, o trabalho a partir de: a) práticas de leitura e de escrita assemelhadas à
interlocução que ocorre em contextos extraescolares, b) abordagem sistemática da
diversidade de gêneros, c) reflexão sobre os fenômenos linguísticos em função dos
usos e da produção de sentido, entre outros princípios norteadores.

A importância dada ao ensino de gramática também é refratada pelas


expectativas criadas quanto ao que o aluno deve aprender. Outra professora,
num encontro de formação, nos relatou que uma colega sua apreciava muito
ouvir o aluno “cantar a gramática”, ou seja, fazer uma análise morfológica ou
sintática detalhada, quase como um ato de declamação para uma plateia atenta.

Outros depoimentos de professores experientes, do EM e EF I e II,


indicam ainda quão angustiante pode ser perceber as lacunas de um modelo
de ensino, sem conseguir avançar, ainda que gradualmente, rumo a outra
prática pedagógica. Muitos chegam, a declarar: “Desaprendi a ensinar.”

Nessa mudança que se pretende radical, com uma nova identidade pro
fissional sendo forjada em meio a conflitos, a reflexão sistemática sobre os
fenômenos linguísticos começa a perder espaço, embora a maioria dos profes-

16 Para mais informações sobre o PNLD, ver o capitulo 3 deste livro, de Jurado & Rojo.
17 Essas categorias não mais são usadas nos guias dos LDs.
ANÁLISE LINGUÍSTICA N O ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 223

sores ainda defenda o ensino tradicional de gramática, para melhorar a pro


dução oral e escrita d o aluno.

No vácuo formado pela rejeição ao modelo anterior, a tentativa de aten


der às demandas mais recentes em termos da discussão sobre ensino d e por
tuguês pode levar à adoção d e uma metodologia “ativista”, a exemplo do que
propõem Privât & Vinson para o ensino da produção escrita (1994, apud Dolz
& Schneuwly, [1996] 2004: 46-47). Esses autores alegam que seria suficiente
a exposição às propriedades culturais do texto. Trata-se de uma metodologia
que pressupõe uma aprendizagem quase “natural”, quase espontânea, apenas
pelo exercício da leitura e da escrita de textos. Se a tendência atual é buscar a
formação do leitor-produtor de textos, com a ampliação das experiências de
letramento dos aprendizes, a “solução” seria a superexposição, na escola, às
situações d e leitura e escrita. No lugar da gramática, o texto, mas sem ensino,
sem sistematização, sem progressão curricular, sem objetivos definidos. Dolz
& Schneuwly criticam essa proposta, apontando a enorme lacuna quanto ao
ensino sistemático e à função catalisadora da intervenção d o professor.

Ainda assim, a despeito desse perigo da pedagogia d o “com o texto,


estamos salvos”, nota-se que já há um redirecionamento para explorar aspectos
discursivos e textuais, seja como resultado de uma reflexão consciente sobre
as novas orientações para o ensino de português, seja para construir uma
identidade profissional distinta da “gramatiqueira”.

5.4. Formando o proj essor para (não) ensinar gramática?

O processo de formação de professores é um dos fatores que interfere na


mudança de parâmetros para o ensino ou na manutenção destes. Alguns cursos
de graduação em letras continuam preparando professores para ensinar gramá
tica, enquanto outros, no extremo oposto, formam para não ensinar gramática.

Com perfis profissionais diferentes, não parecem ser tão distintos, con
tudo, os efeitos dessas experiências d e formação frente às novas propostas de
ensino d e língua materna, conforme já apontamos em outro trabalho (Men
donça, 2005): efeito de rejeição, efeito de perplexidade, efeito de inércia, em
meio a tentativas de realizar um trabalho mais “antenado” com a discussão em
pauta. Em muitos casos, o professor chega a retornar às aulas de gramática
convencionais, ainda que compreenda as falhas desse modelo, justamente pela
dificuldade de efetivar a prática de AL, ou seja, de articular a reflexão sobre
os fenômenos linguísticos à produção de sentido, ao tratamento da norma e
às necessidades de aprendizagem dos alunos.
224 MÁRCIA MENDONÇA

Cremos que, para fugir ao dogmatismo ou à mera intuição quanto ao


papel da AL na escola, a formação docente deve respaldar-se numa clara
concepção: a) do objeto de ensino das aulas de português — a linguagem; b)
de seus objetivos centrais — a ampliação das experiências de letramento e o
desenvolvimento d e competências linguístico-gramaticais, textuais e
discursivas; c) do papel dos recursos gramaticais e das estratégias textuais e
discursivas nesse processo.

De fato, para uma formação mais adequada às novas demandas para o


ensino de língua materna, são necessárias mudanças estruturais e pedagógicas
profundas nas instituições formadoras, além de uma política consistente de
aperfeiçoamento em serviço, para que o professor seja capaz de atuar como
agente de letramento (Kleiman, 2005a) no seu sentido mais amplo.

Em suma, não há consenso quanto a essas questões, pois as formas de


encaminhar alternativas de solução são bem diversas, às vezes até opostas, ge
rando tensões por parte de quem vive o cotidiano do ensino de língua materna,
em todos os graus de ensino, como mostra o trabalho de Morais (2002). Mas o
primeiro passo é identificar os pontos polêmicos e começar a refletir sobre eles,
para que alternativas sejam pensadas, negociadas e encaminhadas.

6. Finalizando mesmo

AULA DE PORTUGUÊS

A linguagem Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,


ná ponta da língua, e vai desmatando
tão fácil de falar o amazonas rfa minha ignorância.
e de entender. Figuras de gramática, esquipáticas,
atropelam-me, aturdem-me, sequestram-me.
A linguagem
na superfície estrelada de letras, Já esqueci a língua em que comia,
sabe lá o que ela quer dizer? em que pedia para ir lá fora,
em que levava e dava pontapé,
a língua, breve língua entrecortada
do namoro com a prima.

O português são dois; o outro, mistério.

(Carlos Drummond de Andrade, Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 1089)

Refletir sobre a linguagem é algo que fazemos a todo o momento, como


seres pensantes que somos. Ponderar se fomos muito ofensivos, se vamos dizer
ANÁLISE LINGUÍSTICA N O ENSINO MÉDIO: UM NOVO OLHAR, UM OUTRO OBJETO 225

isso ou aquilo, se de fato entendemos o trecho daquele livro, se uma palavra


tem este ou aquele sentido, tudo isso é AL, ainda que assistemática e sem os
objetivos escolares.

A escola cabe, diante dos objetivos que lhe são próprios, tornar tais
análises conscientes e sistemáticas, especialmente no EM, de modo que os
alunos construam um conjunto de conhecimentos necessários à ampliação da
sua competência discursiva, inclusive para saber expressar a sua análise, não
mais intuitiva, o que exige o uso de alguma metalinguagem.

Por isso, a AL deve ser complementar às práticas de leitura e produção


de texto, uma vez que possibilitaria a reflexão consciente sobre fenômenos
textual-discursivos que perpassam os usos linguísticos nos momentos de ler/
escutar ou de produzir textos.

Em meio à necessidade de mudanças, às dificuldades e resistências em


implementá-las e a um tatear metodológico por parte do professor, este se
pergunta: espelho, espelho meu, que professor de gramática sou eu? Nesse
jogo de identidades, assumidas e não reveladas, em que se busca, muitas vezes,
a consonância com os discursos “oficiais (“gramática contextualizada”, “en
sino a partir de textos”), a prática de AL pouco pode avançar na escola. É
preciso maior clareza quanto ao que se pretende, em termos de ensino, com essa
nova perspectiva, que tanto assusta alguns professores, d e tão diferente que é
de sua prática docente cotidiana.

A mudança na prática pedagógica que prevemos é gradual e repleta de


dúvidas, com passos adiante e atrás, e este parece ser é o caminho mais pro
vável e seguro, por paradoxal que pareça.

Nesse percurso, esperamos que a competência discursiva seja pouco a


pouco construída no trabalho com leitura e produção, e também com a prática
de AL. Nessa prática, o saber a respeito d e estratégias discursivas ou d o uso
intencional de elementos e estruturas gramaticais não deve ser mais um desses
“bichos esquisitos” que povoam os currículos, mas um conjunto d e conheci
mentos acessível e, principalmente, útil, em nossas interações diárias. Que a
língua seja, para os alunos, cada vez menos misteriosa, no dizer de Drummond,
sem deixar de ser fascinante.

Novos olhares, outros objetos, práticas diferentes, enfim.


226 MÁRCIA MENDONÇA

JLn Atividades
1. O objetivo desta atividade é levá-lo(a) a refletir sobre sua prática
de ensino de gramática/análise linguística. Escolha um ou dois
assuntos abordados em sala de aula e procure identificar, numa
síntese escrita, os objetivos subjacentes:
a) à escolha desse(s) objeto(s) de ensino;
b) à sequenciação desse(s) objeto(s) no currículo escolar;
c) às atividades propostas;
d) aos critérios de avaliação usados.
Agora reflita:
• essa prática de ensino tem permitido o desenvolvimento de
competências linguísticas? textuais? discursivas? Em que medida?
• É possível torná-la melhor? Como?

2. Esta segunda atividade tem o objetivo de levá-lo(a) a esboçar


propostas de intervenção didática. Selecione um gênero e planeje
uma sequência de dois ou três encontros que focalizem recursos
e estratégias usados para a produção de sentido, sejam eles
recorrentes nesse gênero, sejam eles específicos do exemplo
escolhido. Procure elaborar atividades que integrem os eixos de
leitura, produção e análise linguística, de modo que esta última
seja ferramenta para o desenvolvimento de competências de leitura
e escrita. Se possível, vivencie o planejamento em sala de aula e
avalie os seguintes aspectos: que tópicos gramaticais, textuais e
discursivos foram abordados? Qual o objetivo das atividades
propostas? Houve sistematização ao final dos encontros?

Márcia R o d r i g u e s oe S o u z a M e n d o n ç a é professora de Língua Portuguesa n o


Departamento de Letras da UFPE, universidade onde obteve seu grau de mestre em
Linguística e onde hoje cursa o doutorado na área. Atua na formação continuada de
professores de língua materna e presta assessoria pedagógica a escolas e a faculdades
de formação de professores. Desenvolve pesquisas sobre livros didáticos, gêneros e
letramento, tendo publicado artigos e capítulos de livros a respeito, como em 0 livro
didático de português-, múltiplos olhares e Gêneros textuais e ensino (Editora Lucerna).
É membro do Núcleo de Avaliação e Pesquisa Educacional (NAPE - UFPE) e do Centro
de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL - UFPE), n o qual coordenou, em colaboração
com Carmi Santos e Cristina Teixeira de Melo, a elaboração de materiais didáticos
(livro, video e guia didático) para a formação de professores na área de alfabetização
e letramento. E-mail: marcia@nlink.com.br.

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