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PROPOSTAS GRAMATICAIS EM LIVROS

DIDÁTICOS: UMA REFLEXÃO


Maria Auxiliadora Ferreira Lima*

Resumo instrumento de trabalho atua como o principal (muitas ve-


Neste artigo, tecemos algumas reflexões no que diz zes, o único) condutor teórico e metodológico do professor
respeito à natureza das abordagens de conteúdos grama- em suas atividades docentes. E, no que diz respeito, especi-
ticais em livros didáticos, com base em exemplos extraídos ficamente, ao ensino de gramática, os conteúdos gramati-
de livros de língua portuguesa utilizados no Ensino Fun- cais costumam ser abordados em função da seleção
damental. Procuramos redirecionar tais abordagens para estabelecida pelo autor do livro didático adotado.
um ensino gramatical que possa priorizar uma visão dinâ- A força desses dois aspectos motiva-nos a refletir
mica da língua, trabalhando os dados gramaticais como sobre o ensino de gramática via livro didático. Pensar sobre
elementos que dão suporte à significação dos enunciados o ensino de gramática, centrado ou não no livro didático,
em situações concretas de uso. suscita questões do tipo: Que gramática ensinar? Para que
ensinar gramática? Como ensinar? O que ensinar? Que pa-
Palavras-chaves: conteúdos gramaticais, ensino, usos pel o ensino de gramática deve ter no desempenho lingüístico
lingüísticos. do aluno? Que concepções teóricas permeiam o ensino de
gramática? Tais questões passam evidentemente por uma
Abstract concepção de língua, de linguagem, de gramática, de ensino
In this article we do some reflecting concerning the de língua materna, que servirá de condutor para tais indaga-
nature of the approaches of the grammatical contents in ções. No entanto, o professor, muitas vezes, não consegue
Portuguese schoolbooks from examples taken from estabelecer uma articulação entre cada uma dessas concep-
elementary school books. We have sought to focus such ções e o ensino de gramática adotado, não ficando as res-
approaches to a grammatical teaching that has as a priority postas para as referidas questões bem delineadas para o
a dynamic view of the language and works the grammatical professor, o que o impede de assumir uma postura crítica e
data as elements that give support to the meaning of the pragmática em relação, não apenas ao conteúdo gramatical,
enunciations in concrete situational usage. mas também aos procedimentos metodológicos encaminha-
dos pelo livro didático.
Key words: grammatical contents, teaching, linguistic O professor ressente-se de um delineamento objetivo
usage. para o ensino de gramática. Tem consciência de que a aborda-
gem gramatical proposta pelo autor do livro adotado não é
produtiva para os alunos, mas, por falta de uma formação
Uma reflexão sobre abordagens teóricas e lingüística adequada e articulada com o exercício da atividade
metodológicas referentes a conteúdos gramaticais em li- de linguagem, fica sem condições de redirecioná-la. Daí não
vros didáticos insere-se, naturalmente, em uma questão mais encontrar respostas que atendam às indagações supramen-
ampla que diz respeito à problemática do ensino de gramáti- cionadas. Tais respostas, naturalmente, não constituem a so-
ca nas escolas. Sabemos que este ensino tem sido objeto de lução, mas a indicação de caminhos a percorrer, contribuindo
interesse de muitos estudiosos da linguagem, insatisfeitos para um ensino de gramática mais eficaz, que proporcione ao
com seus resultados não satisfatórios. Restringimos a ques- aluno instrumentos lingüísticos que lhe permitam aprimorar o
tão ao âmbito do livro didático, por considerarmos que tal desenvolvimento de sua competência comunicativa.

* Doutora em Letras pela UNESP-Araraguara-SP. Professora do Departamento de Letras e do Mestrado em Letras na área Estudos de Linguagem
da Universidade Federal do Piauí-UFPI.

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Essa falta de delineamento tem sua origem no pro- Observe:
cesso de formação lingüística do professor. E aqui entra a I A amiga não emprestava sua roupa a ninguém.
nossa responsabilidade, enquanto professores de um Cur- II De quem era aquele vestido que ela estava usando?
so de Letras, que forma professores para o ensino de língua Os termos destacados nos exemplos são pronomes –
portuguesa, como bem ressalta Neves (2003, p.17): palavras que acompanham ou representam o subs-
tantivo.
[...] cabe especialmente aos docentes de graduação Na leitura de um texto, podemos retirar dos pronomes
em Letras, que são os formadores de professores de informações importantes, como:
língua materna, preparar as bases de um tratamento
- identificar a pessoa do discurso
escolar cientificamente embasado – e operacio-
nalizável – da gramática do português para falantes 1ª pessoa: a que fala
nativos, o que representaria dar aquele passo tão re- 2ª pessoa: a pessoa com quem se fala
clamado entre o conhecimento das teorias lingüísticas 3ª pessoa a pessoa de quem se fala
e sua aplicação na prática.
Exemplo:
É preciso, pois, que os professores dos Cursos de Nós compramos vestidos lindos.
Letras propiciem aos seus alunos uma reflexão crítica, 1ª pessoa do plural (a pessoa que fala)
alicerçada por pressupostos teóricos, que lhes dê condições - dar uma idéia indefinida em relação à terceira pes-
de estabelecer direcionamentos para um trabalho que tenha soa do discurso. Exercem essa função os pronomes
como meta refletir sobre o funcionamento da língua em situa- indefinidos.
ções concretas de uso e que objetive, sobretudo, o desenvol- 1. Algo aconteceu com a garota do shopping.
vimento da competência comunicativa, no sentido de que 2. Ninguém soube dos acontecimentos.
“possibilite ao falante utilizar cada vez mais um maior número
de recursos da língua de forma adequada a cada situação de Em uma abordagem enunciativa, a terceira pessoa
interação comunicativa” (TRAVAGLIA, 2003, p.16). não estaria incluída como pessoa do discurso, mas como o
Estabelecer o elo entre teorias lingüísticas e o ensi- elemento que está fora da relação de interação entre o eu e o
no de língua materna constitui um grande desafio para os tu e sobre o qual recai o que é dito nessa relação de interação.
professores da área de linguagem dos Cursos de Letras. É O pronome pessoal nós é utilizado como exemplo de prono-
um desafio, porque não se trata de uma simples aplicação de me de primeira pessoa do plural (a pessoa que fala) sem ser
uma teoria em uma aula de gramática do Ensino Fundamen- explorada a diferença que ele estabelece com o pronome eu
tal ou Médio. Teorias lingüísticas não são elaboradas para em situações efetivas de uso. Em nós compramos vestidos,
serem aplicadas em aulas de gramática. Elas constituem um há a inclusão de outro eu ou outros eus, no sentido de que
construto formal que analisa o funcionamento de uma dada houve mais de um agente para a compra de vestidos, ou
língua por meio do empírico, ou seja, por meio dos dados seja, além do sujeito enunciador, outra ou outras pessoas
lingüísticos. Compete, pois, ao professor dos Cursos de também foram responsáveis pela ação de comprar vestidos
Letras estabelecer uma ponte entre determinado construto junto com ele. O autor, ao abordar o pronome pessoal nós,
formal e o uso de determinadas construções lingüísticas, ignora o uso do a gente que vem ganhando espaço em rela-
propiciando a elaboração de uma reflexão que forneça ao ção ao pronome de uma forma mais agressiva no português
aluno, professor ou futuro professor de língua portuguesa falado, conforme tem mostrado as pesquisas e as observa-
pressupostos teóricos e direcionamentos para o trabalho ções assistemáticas. Não só a questão do uso do a gente,
com a linguagem. mas também os livros didáticos costumam ignorar a marca
Não precisamos ressaltar que a construção dessa de indeterminação referencial do pronome você em exem-
reflexão passa pela pesquisa lingüística. E, no que se refere plos do tipo:
ao ensino de gramática, o desenvolvimento de pesquisas
amigos de verdade é aquele que você conta com eles
voltadas para a gramática do português, investigando a
nos momentos tris::tes...nos momentos felizes e:: aque-
gramática utilizada pelos falantes em situações efetivas de les coleguinhas é quando você vai pra uma festa e
interação verbal e mostrando as múltiplas possibilidades de encontra um colega conversa e depois esquece dele.
manifestação de aspectos gramaticais, dará ao professor um (EPa IF. 8ªS).
suporte de indiscutível relevância para o ensino de língua
portuguesa. Este suporte permitirá ao docente preencher os Quanto aos pronomes indefinidos, o autor define-os
vazios lingüísticos encontrados nos livros didáticos quan- em função da pessoa do discurso, misturando pessoa gra-
do abordam determinados aspectos gramaticais. Por exem- matical do verbo e pessoa do discurso, ao dizer que o pro-
plo, citando uma abordagem dos pronomes pessoais em um nome indefinido dá uma idéia indefinida em relação à tercei-
livro de 5ª série, observamos uma preocupação do autor ra pessoa do discurso. Se tomarmos o exemplo que cita A
com aspectos classificatórios, definitórios, vejamos: amiga não emprestava sua roupa a ninguém, ninguém não

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está exercendo o papel de uma terceira pessoa do discurso, de uma norma padrão. O que não faz parte da gramática é
ele é um elemento constitutivo do que está sendo dito em rotulado de formas erradas das quais o falante precisa li-
relação à terceira pessoa do discurso, no caso, a amiga. O vrar-se para que possa pertencer ao grupo dos bons usu-
aluno perceberá facilmente o papel do indefinido se ele en- ários da língua.
tender que o verbo emprestar requer obrigatoriamente um O ensino de gramática na escola ainda não conse-
emprestador, o objeto emprestado e a pessoa a quem se gue pôr, lado a lado, a existência da norma lingüística no
empresta. Explorando construções metalingüísticas do tipo: sentido amplo de “normalidade”, por representar um con-
junto de formas lingüísticas utilizadas por grupos de fa-
A amiga não emprestava suas roupas às primas. lantes, e a norma lingüística, no sentido de “normatividade”,
A amiga não emprestava suas roupas às irmãs. a que corresponde à norma-padrão, para uma convivência
A amiga não emprestava suas roupas a nenhuma prima. harmoniosa (NEVES, 2003). Na realidade a variação lingüís-
A amiga não emprestava suas roupas a nenhuma irmã. tica ainda não é trabalhada na escola como um fenômeno
A amiga não emprestava suas roupas a nenhuma pessoa. inerente à lingua. Por exemplo, em um livro didático, en-
A amiga não emprestava suas roupas a ninguém. contramos um tipo de exercício em uma unidade denomina-
da de gramática aplicada:
O professor levará o aluno a perceber que existe um
conjunto de pessoas a quem as roupas poderiam ter sido Eu não tô doente...
emprestadas e não foram, e o pronome ninguém mostra essa Reescreva essa frase, seguindo as normas gramaticais.
inexistência de distinção entre um ou mais elementos dessa
possível classe de pessoas a quem a roupa poderia ter sido É um tipo de exercício que mostra a preocupação com
emprestada. Em relação ao outro exemplo Algo aconteceu a reprodução de uma construção que faz parte de um mode-
com a menina no shopping, muito mais importante é o aluno lo eleito, escolhido como o padrão. É um exercício mecânico
perceber que há um elemento que foi afetado por alguma sem nenhuma objetividade, a não ser mostrar sutilmente ao
coisa e esse elemento afetado está determinado (a menina), aluno que a forma correta não é aquela dita pelo persona-
o que não está determinado é o elemento afetador. O profes- gem do texto. Mas se o professor trabalha esse enunciado
sor poderá construir enunciados com a ajuda dos alunos levando em conta o sujeito enunciador, o que é dito, o modo
que mostrem isso, como: como é dito, para quem é dito, em que circunstância é dito,
ele estaria trabalhando a variação lingüística, explorando as
A menina sofreu algo no shopping. possibilidades de registro de tal enunciado em situações
A menina caiu no shopping. enunciativas distintas.
A menina sentiu-se mal no shopping. Esse tipo de exercício e muitos outros de natureza
diversa reforçam a asserção de que o ensino gramatical é
Dentre um conjunto de coisas que a menina poderá pautado por uma concepção estática de língua, em que os
ter sofrido no shopping, não houve a identificação de ne- elementos são dados, deslocados do processo de cons-
nhuma dessas no enunciado Algo aconteceu com a menina trução de significação dos enunciados. Não se volta, as-
no shopping e o pronome algo está marcando essa não sim, para o funcionamento da língua, tendo em vista os
identificação. Por que também não explorar exemplos de usos lingüísticos do falante em diferentes situações de
possíveis situações em que o sujeito enunciador recorre ao interação verbal.
pronome algo para indeterminar? Os falantes interagem entre si, por meio de uma
Desta forma, pensar o ensino de gramática significa articulação entre língua e linguagem, em diferentes situa-
pensar no funcionamento da língua não como uma realidade ções comunicativas que levam à construção de diferen-
estática, única (como se apresenta nos livros didáticos), mas tes tipos de textos, originando o que Travaglia (Id. ibid.)
como uma realidade dinâmica. Este dinamismo remete tam- chama de “pluralidade dos discursos”, a qual os alunos
bém para a heterogeneidade lingüística que não pode ser devem estar expostos. É importante que a essa pluralidade
ignorada no processo pedagógico e precisa ser vista no de discursos esteja atrelada uma reflexão sobre o funcio-
ensino, não apenas como diferenças dialetais, mas também namento da gramática.
em função de valores lingüísticos diferentes decorrentes da Nem o professor nem os livros didáticos podem es-
diversidade dos usos lingüísticos. quecer que a pluralidade de discursos do falante tem por
A escola preocupa-se em fornecer aos alunos subsí- suporte uma gramática internalizada de natureza fonológica,
dios para o domínio de uma norma culta, de um bom portu- sintática, semântica e pragmática que operacionaliza, por
guês, reduzindo, como observa Bagno (2002), a língua à meio de regras, a construção dos enunciados que resultam
norma culta e a norma culta à gramática. Reforça a concep- em construção de significações. Esta gramática permite a
ção estática de língua como algo pronto, em que o aluno tem constituição dos enunciados, ou mais especificamente, dos
apenas de absorver e reproduzir os modelos que dão conta textos, considerando que não interagimos com o outro por

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meio de enunciados soltos. Aqui se percebe como é sem ção. Se analisarmos o conceito dado para oração declarati-
sentido o corte que a gramática sofre em relação aos dois va, podemos verificar que o exemplo d não se enquadra bem
eixos do ensino de língua materna: leitura e escrita, quando no item I (oração declarativa). Pois, se considerarmos que
os três eixos deveriam estar em constante sintonia. Ler e este enunciado foi construído em razão do enunciado c (A
escrever implicam na construção e reconstrução de signifi- senhora tem um nome muito bonito!), e se considerarmos
cação dos enunciados que compõem o texto, e a gramática é ainda a definição de orações declarativas dada em I (quando
o suporte para a construção desses enunciados. Por que, informam algo), podemos dizer que em d não há uma asserção
então, não explorar os usos lingüísticos em função da cons- negativa, mas um pedido para que algo não mais aconteça.
trução de significação dos enunciados? O autor retirou os exemplos do texto, mas não os
A abordagem de aspectos gramaticais nos livros di- contextualizou na situação de enunciação envolvendo dois
dáticos ressente-se da falta de uma análise integrada. De- sujeitos enunciadores que assumem de forma alternativa (tra-
tectamos facilmente tal desintegração na abordagem das clas- ta-se de um diálogo) o papel de sujeito enunciador e de
ses gramaticais e das funções sintáticas. sujeito co-enunciador.
As classes gramaticais são elementos constitutivos Não só as classes gramaticais, mas os conteúdos
dos enunciados e estabelecem relações entre si dentro de gramaticais como um todo, são norteados por uma sistema-
um processo de construção de significação dos enuncia- tização mecânica, dada, pautada na língua desvinculada das
dos. Conforme já ressaltamos, os livros didáticos costumam situações efetivas de usos lingüísticos. Os aspectos grama-
trabalhar as classes gramaticais dando ênfase a aspectos ticais são estudados através de definições, classificações
conceituais, classificatórios, identificatórios e prescritivos. sem se levar em conta o processo de construção do enunci-
É privilegiada, pois, a exposição de conteúdos gramaticais e ado, a situação de enunciação. Sem se levar em conta tam-
a exploração de atividades metalingüísticas, conforme cons- bém que a construção de significação faz parte de um ato de
tatou Bräklibng (2003), em uma análise da gramática nos enunciação em que sujeitos enunciadores produzem enun-
livros didáticos de 5ª a 8ª séries. Vejamos mais alguns exem- ciados em uma situação de enunciação única. Esta situação
plos que refletem essa realidade: de enunciação envolve as variáveis sujeitos enunciadores,
espaço e tempo. E os sujeitos enunciadores constroem e
TIPOS DE ORAÇÃO reconstroem significações acerca da realidade, dentro de
I declarativas – quando informam algo. Podem ser um processo simultâneo de construção e reinterpretação da
afirmativas ou declarativas. Normalmente são realidade, no decorrer da atividade de linguagem em um
marcadas, na linguagem escrita, por ponto ou reti-
cências;
momento dado. Mediante essa perspectiva, a língua não
pode ser trabalhada de uma forma estática.
II interrogativas – quando exprimem uma resposta.
Normalmente marcadas, na linguagem escrita, pelo O ensino gramatical não se volta para o valor que um
ponto de interrogação; elemento gramatical assume na construção de um enuncia-
III exclamativas – quando exprimem uma emoção. do e das correlações que ele estabelece com outros elemen-
São marcadas na linguagem escrita pelo ponto de ex- tos do enunciado. Por exemplo, observemos um tipo de exer-
clamação. É comum repetir o ponto de exclamação cício sobre advérbio em um livro didático de 4ª série:
quando se quer intensificar a emoção. Reescreva as frases abaixo em seu caderno, acres-
Exercício centando as circunstâncias pedidas, como no modelo. Con-
Faça um quadro como o do modelo e preencha-o, sulte o quadro dos advérbios, em caso de dúvida:
identificando a intenção dos falantes no trecho final do
texto “A palavra escrita no muro”. a) O corvo é vaidoso. (afirmação e intensidade)
a) “ – E como é o seu nome, palavra-passarinho? *Dá como resposta:
b) “ - Meu nome é liberdade, menino.”
c) “ - A senhora tem um nome muito bonito”. “Realmente, o corvo é muito vaidoso. Certamente
d) “ – Não me chame de senhora...” o corvo é vaidoso demais”

Podemos observar que a abordagem gramatical em A Nesse enunciado, realmente não constitui uma mar-
apresenta concepções prontas de tipos de oração, quando ca de afirmação. A afirmação está na própria modalidade
poderia explorar os diversos usos dessas modalidades ten- assertiva do enunciado. Em um ensino de gramática que
do em vista a situação de enunciação. Não explora a prioriza a atividade de linguagem, o importante é levar o
entonação, que é fundamental para a constituição dessas aluno a refletir sobre o valor significativo do uso do real-
modalidades no enunciado. mente no enunciado. O importante é o aluno perceber que o
Trata-se de um exercício também pronto, porque o uso do advérbio realmente expressa um comprometimento
aluno deverá encaixar a intenção do falante de acordo com a total do falante com o valor de verdade do enunciado que o
classificação apresentada e os tipos de marca de pontua- falante, ao fazer uso deste advérbio, transmite ao interlocutor

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a idéia de que a verdade do seu enunciado tem bases comunicação, posto que o sujeito enunciador utiliza o meni-
constatativas, ou seja, ele se apóia em dados que o autori- no no enunciado; tais substantivos não estão identificando
zam a considerá-lo como verdade. Enquanto que certamen- todos os seres de uma mesma espécie, e sim remetendo para
te, embora esteja também classificado como advérbio de afir- um determinado elemento da espécie menino e da espécie
mação, não possui o mesmo valor significativo de realmente. cidade. Quanto aos nomes próprios, ele está nomeando um
Em certamente, não há um comprometimento total do sujei- elemento da espécie menino (Pedro) e outro elemento da
to enunciador com a verdade do enunciado, ele não é tão espécie cidade (Salvador).
categórico em sua afirmação quanto foi ao utilizar o advér- Não só as classes gramaticais, mas os conteúdos
bio realmente. gramaticais como um todo são norteados por uma sistemati-
Um outro exemplo refere-se à classificação dos subs- zação mecânica, dada, pautada na língua desvinculada das
tantivos em próprios e comuns. Vejamos como foi apresen- situações efetivas de usos lingüísticos. Os aspectos grama-
tada em um livro didático: ticais são estudados através de definições, classificações,
sem se levar em conta o processo de construção do enunci-
Observe: ado, a situação de enunciação. Não se observa que a cons-
Convidei o menino para a festa. trução de significação faz parte de um ato de enunciação em
que sujeitos enunciadores produzem enunciados em uma
Convidei Pedro para a festa.
situação de enunciação única. Esta situação de enunciação
I Visitei a cidade. envolve as variáveis sujeitos enunciadores, espaço e tem-
Visitei Salvador. po. E os sujeitos enunciadores constroem e reconstroem
Agora, identifique nos exemplos acima as frases que apre- significações acerca da realidade, dentro de um processo
sentam informações mais precisas. Justifique por que simultâneo de construção e reinterpretação da realidade, no
isso acontece. decorrer da atividade de linguagem em um momento dado.
Mediante essa perspectiva, a língua não pode ser trabalha-
Pode-se concluir que:
da de uma forma estática.
Os substantivos Pedro e Salvador são próprios, pois no-
meiam seres particulares dentro de um grupo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Os substantivos menino e cidade são comuns, pois identi-
ficam todos os seres de uma mesma espécie, sem BRAKLING, Kátia Lomba. A gramática nos LDs de 5 a 8ª
particularizá-los. séries. In: ROJO Roxane; BATISTA Antônio Augusto Go-
mes (Org.) Livro didático de língua portuguesa, letramento
É um tipo de exercício que prioriza o classificatório, e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
com base em definições prontas que se distanciam do uso BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: da prescrição gra-
efetivo desses substantivos nos enunciados. Se levarmos matical à educação lingüística. In: BAGNO, Marcos;
em conta o uso desses enunciados em uma dada situação STUBBS, Michael; GAGNÉ, Gilles. Língua materna:
de enunciação, nenhum deles apresenta informações me- letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola, 2002.
nos precisas. A marca do artigo indica uma retomada de BAGDO, Marcos (Org.). Lingüística da norma. São Paulo:
menino e cidade já mencionados anteriormente. Há uma par- Loyola, 2002.
ticularização e uma identificação unitária, porque há uma
NEVES, Ma. Helena de Moura. Que gramática estudar na
determinação. Podemos verificar que a definição dada para
escola? São Paulo: Contexto, 2003.
os substantivos comuns, menino e cidade, destoa do uso
lingüístico destes substantivos em uma situação efetiva de TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: ensino plural. São
Paulo: Cortez, 2003.

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