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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Docente responsável - Ivan Francisco Marques


Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas

Através da disciplina Literatura Brasileira I tomei paixão por Mário de Andrade e seu
desvairismo pela valorização da identidade brasileira. Parecia-me não haver nada mais
revolucionário e impreterível do que romper com parnasianismo e reivindicar o direito de dar
voz e visibilidade à cultura brasileira.
Todavia, a continuidade nos estudos que abrangeu o período pós 22 em Literatura Brasileira
II foi uma surpresa. A renovação da linguagem, a busca de experimentação e o rompimento
dos poetas com a métrica parnasiana ocorrida na primeira fase do modernismo parecia ser
suficiente para solidificar uma cultura nacional. Mas a literatura brasileira buscou algo mais.
Ficou maior que a sua própria mãe, e passou a influenciar a literatura portuguesa.
Pude perceber que faltava aos nossos escritores uma reflexão política, e era preciso
deixar o Brasil mítico e sua antropofagia um pouco de lado. A literatura de 30 foi uma
continuidade do modernismo de 1922, com adensamento das questões brasileiras. A literatura
passou a representar o cidadão comum. Não havia mais um Brasil mítico de Antropofagia,
mas uma literatura empenhada em colaborar com a reflexão política, preocupada em como
representar a alteridade: minorias, mulheres, negros, pobres e homossexuais.
A obra de Morte e Vida Severina foi a leitura mais insigne. A repetição de palavras
poderia caracterizar uma literatura pobre, mas ao contrário a enriqueceu, marcando a
limitação da vida. A secura na construção verbal e a atenção obcecada de Cabral pela
paisagem pernambucana denunciaram seu engajamento pela condição do retirante nordestino.
Talvez a sua indignação com a miséria e impotência do homem diante da escassez do
nordeste tenham sido o motivo de sua incurável dor de cabeça.

O ensaio comparando as poéticas de João Cabral de Melo Neto e Orides Fontela foi,
de todos os trabalhos de literatura já realizados, um dos mais desafiantes. O motivo não foi
apenas minha natural dificuldade com a análise poética, mas pela obrigatoriedade da síntese:
extrair o sumo e condensá-lo em duas páginas foi um desafio enorme! Foram dias olhando
para as duas poesias sem que viesse à mente uma ideia brilhante que resumisse as diferenças
das duas obras. Pareceu-me que Cabral realmente estava certo: a poesia não é uma inspiração

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divina, é matemática: nega o inconsciente e a embriaguês, e resulta do trabalho de arte.


Fernando Pessoa já dizia: "O que em mim sente, está pensando." Foi necessário revisar toda a
leitura proposta pelo professor somado às anotações de aula para que dali saísse algum fruto
proveitoso.
Compreender a poesia de Orides foi sobretudo árduo. Entender a espiral poética,
como é chamado por Augusto Massi, foi como um caleidoscópio: cada vez que lia algum
trecho, o sentido parecia se modificar. A aproximação de Orides com a filosofia e sua poética
simbólica só me fizeram ficar mais tempo ainda girando no mesmo lugar como o móbile gira
em torno de seu próprio eixo. O texto "Símbolo e acontecimento na poesia de Orides", de
Alcides Villaça, e o documentário "A um passo do pássaro" da TV Cultura foram os materiais
mais completos que utilizei para entender a desconcertante obra de Orides. É uma pena que o
Estado de São Paulo invista algo insignificante para manter a TV Cultura, uma instituição de
caráter educativo e cultural.

Mas, se o Governo, assim como o Estado pouco se importam com o desenvolvimento


intelectual de seu povo, não se pode permanecer como Diadorim. Cada escritor deve ser um
homem que vive o seu tempo, que o enxerga como tal, e se torna consciente dos problemas.
O engajamento político, o tomar partido, o comprometer-se, é muito mais que um dever, uma
necessidade natural do escritor de hoje, e antes ainda do escritor, do homem moderno.
Num mundo endurecido, cheio de dogmas, de verdades prontas, de bulas, de manuais
de instrução, de modismos, a literatura é o lugar da resistência. E, se nada puder resolver,
contribuirá ao menos para desmascarar certezas, hábitos, preconceitos, ilusões, expandindo a
liberdade interior.
Em 2014 completaram-se 50 anos do golpe civil-militar que instituiu um
regime ditatorial no país. Esse período tem sido rememorado em diversos filmes, livros,
documentários e atos para contestar as arbitrariedades da ditadura. O governo federal criou a
Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos contra os opositores do
regime.
Apesar de haver muitas iniciativas para recuperar a memória daquele período, o Brasil
ainda desconhece muito dessa história. As novas gerações sabem pouco e muitas vezes de

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forma parcial sobre um período tão intenso e que deixou tantas marcas na vida de muitos
brasileiros.
Se a população brasileira não conhece sua história recente, a situação é ainda pior
quando se identifica a precariedade com que o assunto é tratado na educação básica, que tem
como responsabilidade garantir o estudo da História do Brasil para a formação da cidadania.
Os livros didáticos, por melhores que sejam, são limitados como fonte de informação, e
abordam o assunto de forma superficial.
Cabe aos estudantes universitários, futuros escritores, inspirados por João Cabral de
Melo Neto e Guimarães Rosa, usar o verbo para expandir a liberdade que a palavra concede.

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