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Filosofia da História e Filosofia de vida: a narrativa autobiográfica de Fausto Reinaga

MARCOS LUÃ ALMEIDA DE FREITAS*

Don Fausto escribía en cualquier momento, a veces en el mismo libro que leía,
o en un papelucho que encontraba por ahí; también se empeñó en dejar escrito
retazos de su vida en varios de sus libros publicados, en la idea de que no le
iba a quedar tiempo para publicar su autobiografía. Siempre con la sospecha
de que iba a ser asesinado o morir a causa de cualquiera de sus dolencias, que
en la última etapa de su vida arreciaron. Y también porque cada edición de sus
obras era un vía crucis, aparte del parto difícil de parir cada obra. (REINAGA,
Hilda, 2014: 12)

Assim pensa a sobrinha e secretária de Fausto Reinaga sobre a existência de notas


autobiográficas de seu tio em seus livros. Para Hilda, ele possuía uma preocupação clara sobre
o que seria lembrado de sua vida após sua morte, a biografia era parte de suas preocupações e,
eu acrescentaria, a sua vida era vivida com uma preocupação constante com a história que seria
contada dela posteriormente. Fausto queria ser um exemplo e, para tal, tinha que levar a vida
que ele mesmo pregava como correta para um índio ciente de sua história, de seu dever e de
seus objetivos.
Para Hilda, no entanto, o aparecimento da autobiografia em meio às reflexões de suas
obras não-biográficas não era nada mais do que o reflexo da necessidade de escrever sobre a
própria vida sem esperar por um futuro que talvez fosse interrompido precocemente. Para ela,
parece não haver uma relação direta entre o que seu tio refletia em seus textos e as passagens
autobiográficas no sentido de que a primeira estava ligada à segunda, ou que elas se
relacionavam de tal forma que se influenciavam mutuamente.
O intuito deste ensaio é propor uma visão diferente desta, buscando perceber o quanto
a história de vida do autor fez parte da sua própria reflexão sobre a história de seu país e de seu
povo. Procuro aqui mostrar o quanto de biográfico uma obra política, produzida por alguém
estreitamente ligado aos acontecimentos de seu país, pode conter. Dessa maneira, é possível
aproximar o sujeito produtor de sua própria obra, assim ela se torna, ao mesmo tempo, a
expressão de uma reflexão e de uma forma de ser no mundo.

*
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutorando em História, apoio CAPES.
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Para mim, a obra de Fausto é autobiográfica em todos os momentos, pois o


desenvolvimento de suas reflexões está intimamente ligado às suas experiências de vida. A
formulação de um pensamento índio não foi um exercício filosófico-político abstrato e que deu
origem a uma maneira de viver de acordo com ela, mas exatamente o contrário. O viver de
Fausto lhe deu as bases para produzir um pensamento índio, através do reconhecimento das
características intrínsecas ao jeito de ser no mundo e daqueles indivíduos que compartilham
com ele uma história comum. E, por isso mesmo, surge a necessidade de expor essa história
que é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva.
Assim, os pontos de virada, ou de quebra, do pensamento de Reinaga são marcados por
momentos importantes na sua vida que ele denominou “crises de consciência”. São momentos
em que experiências pessoais agiram como um gatilho para a negação de um pensamento
anterior e o desenvolvimento de outro. Por exemplo, a experiência com a Revolução de Abril
de 1952 o fez negar o marxismo como teoria explicativa da desigualdade e da opressão na
Bolívia, para formular o Indianismo, que levava em consideração aspectos históricos e étnicos
específicos e alheios ao marxismo. Não foi o exercício do pensamento puro e simples que gerou
a “crise de consciência”, mas a experiência empírica, o viver, que levou Reinaga a pensar nos
limites e nos problemas que uma determinada posição política, ideológica e filosófica possuía
diante da vida.
Apesar dessas mudanças, nem tudo é perdido de um momento para o outro e, a meu ver,
existe um fator determinante e permanente nesse processo que influenciou a construção do
pensamento nos três momentos da obra reinaguista. Esse fator é a Filosofia da História que o
autor reproduziu, mesmo que inconscientemente. Reinaga possuía uma noção muito clara de
que o devir histórico se desenrolava através de um processo evolutivo e que os momentos de
retrocesso apenas eram sinais dos empecilhos postos contra a marcha virtuosa da História,
principalmente a indígena, para um destino que produziria uma sociedade perfeita, assim como
um dia os incas haviam conseguido produzir, segundo a sua visão.
A partir desta concepção de que o futuro, o presente e o passado estavam imbricados e
respectivamente subordinados, ele atuou politicamente e intelectualmente. Suas propostas
giravam em torno da necessidade de se conhecer o passado, detectando os aspectos que geraram
a desigualdade e opressão, para agir no presente de tal forma que se possa encaminhar o curso
3

da história para um futuro em que a sociedade retorne à perfeição uma vez conquistada, não
abrindo mão do desenvolvimento técnico e tecnológico benéfico para esse processo.
Assim, Reinaga pôde negar o marxismo, a filosofia europeia, e a história oficial e buscar
a construção de um pensamento índio a partir de suas próprias referências culturais. No entanto,
a filosofia da história ocidental e moderna, cujo personagem Fausto é a grande representação
literária e cujo nome foi adotado por José Félix Reinaga como nome próprio1, manteve-se
impregnada no discurso e no pensamento reinaguista e sobre esta questão este ensaio se detém.
A escolha do nome Fausto (baseado em Goethe) e o sentimento de ser o próprio, parece ser o
vestígio inicial que mostra a importância da filosofia da história moderna para o pensamento de
Reinaga.

Marxismo-leninismo, nacionalismo, indigenismo2

A primeira etapa do pensamento de Fausto Reinaga foi marcada pelo processo de


formação das bases intelectuais sobre as quais o seu pensamento posterior iria se desenvolver.
Enquanto tal, continha uma série de proposições que seriam negadas por ele próprio nas etapas
seguintes, num processo que Reinaga, como já dito anteriormente, chamava “crises de
consciência”.
Como identifica CRUZ (2014), o pensamento de Reinaga nesta etapa não pode ser
definido a partir de um único ponto articulador, mas de pelo menos três (marxismo,
nacionalismo e indigenismo). Nesse sentido, o pensamento expressa não somente sua formação
intelectual, mas seu engajamento político. O marxismo (notadamente de tendência leninista,
ainda segundo CRUZ), organizou as ideias de Reinaga quanto à necessidade de uma revolução
e do empoderamento das classes subalternas. O nacionalismo impulsionou sua visão acerca da
necessidade de fortalecer o Estado boliviano e a integração das suas populações, principalmente

1
José Félix Reinaga era seu nome de batismo. Segundo ele próprio, o nome Fausto foi adotado no período em que,
após o secundário, conheceu a obra de Goethe. “Años después de haber dejado el colegio secundario, junto al
poeta Octavio Campero y al filósofo Francisco Lazcano, me sumergí en el oleaje desbordante del mundo
intelectual. Era la época en que me topé con Goethe. Leí su vida y su obra. Me aprendí de memoria los pasajes de
su amor con Margarita. Por encima de la distancia, tiempo, época, y lugar que me separaba de la núbil doncella y
del viejo taumaturgo, no sólo que yo me creía, sino que me sentía aquel ‘Fausto’ de Goethe… Sepulté mi nombre
de pila ‘José Félix’ y me puse el nombre de Fausto” (REINAGA, 2014: p. 44) Negrito do autor.
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As divisões do pensamento de Reinaga aqui utilizadas estão proposta por CRUZ (2014).
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aquelas que viviam alheias à sociedade branca que dominava o poder político e econômico. Já
o indigenismo, aliado principalmente do marxismo através da leitura dos marxistas peruanos
Mariátegui e Val Cárcel, deu ao autor a percepção de que a “maioria nacional”, de origem índia,
seria a grande responsável pelas mudanças sociais necessárias e apontadas pelos dois pontos
anteriores. Aqui a visão sobre o índio ainda estava subordinada à necessidade da revolução
socialista/comunista e a construção nacional boliviana. Veremos mais à frente a mudança desse
ponto que sai do indigenismo para o indianismo.
Nesta etapa, a escrita sobre a história boliviana e a análise produzida por Reinaga estava
preocupada em solucionar os problemas nacionais que, em geral, estavam ligados à pobreza de
grande parte da população, formada quase que exclusivamente por índios. Essa preocupação
fazia parte das preocupações de outros intelectuais bolivianos desde o século XIX, era a
“questão indígena”. Assim, Reinaga vai em busca das explicações históricas para essas
problemas e tenta oferecer respostas que possam permitir o desmantelamento dessas condições
que atrasavam o país. A defesa de Fausto no início de seu primeiro livro, intitulado Mitayos y
Yanaconas, de 1940, é clara acerca da questão:
Quien se sienta sinceramente nacionalista, debe ante todo, saber dónde actúa
y qué se propone. Conocer y amar a su tierra, a su pueblo. Conocer y amar a
su tierra, a su pueblo. Conocer con la ayuda de todos los medios que la
civilización pone al alcance del hombre. Y a la luz de la verdad y la ciencia;
de la experiencia y realidad, esculpir, hacer en su alma y corazón: convicción
y fe de nacionalidad. Y el primer paso del conocimiento es comprender, a
través de la historia la cuestión social palpita en la carne de Bolivia.
(REINAGA, 1940: 9)

Neste livro, Reinaga expressa uma preocupação claramente nacionalista e marxista.


Naquele momento, o problema índio era um problema econômico e social boliviano, ainda não
era visto como um problema de racismo, de colonialismo. Para o autor, o incanato estudado
naquelas páginas, parte de seu trabalho do curso de direito, seria um exemplo de sociedade
comunista em que havia igualdade e prosperidade para todos, de tal forma que era preciso
retomar os valores que criaram aquela sociedade para organizar a nova sociedade boliviana.
Nesse sentido, Reinaga se envolveu na política boliviana desde a Guerra do Chaco
(1932-1935) quando se colocou em oposição à ela. Depois, participou de grupos nacionalistas
e chegou a filiar-se ao Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), partido nacionalista
que englobava uma grande diversidade de posições políticas entre esquerda e direita. De caráter
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autoritário, o partido buscava tomar o poder e modernizar a nação, pauta cara inclusive para um
nacionalista de esquerda como Reinaga.
Entre 1940 e 1953, após a Revolução de abril de 1952, levada à cabo pela população em
armas e que colocou no poder o MNR sob a liderança de Victor Paz Estenssoro, Reinaga
publicou diversos livros, são eles: Victor Paz Estenssoro (1949), Nacionalismo Boliviano
(1952) e Tierra y Libertad (1953), Belzu. Precursor de la revolución nacional (1953), Franz
Tamayo y la revolución boliviana (1956), Revolución, Cultura y Crítica (1956), El pensamiento
mesiánico del pueblo ruso (1960) e Alcides Arguedas (1960). Nestes livros a sua preocupação
estava voltada para a história e a definição da nação e do nacionalismo que lhe daria origem e
para a liderança que despontava naquele momento, além dos intelectuais que tratavam do
“problema indígena” na Bolívia. Os últimos livros desta fase, de Revolución, Cultura y Crítica
pra frente, são o período de transição para o Indianismo, onde as questões filosóficas, éticas e
históricas começam a ser discutidas mais profundamente. Todos esses livros, compõem, junto
à Mitayos y Yanaconas, a primeira etapa do pensamento de Reinaga, segundo a proposição de
Gustavo Cruz (2014).
A atuação política (tendo sido deputado) e dentro do partido que chegou ao poder
executivo, permitiu a Reinaga ter uma visão geral sobre o processo histórico-político que criava
a institucionalidade boliviana e que organizava a sociedade de tal forma que a maioria da
população, índia, permanecia afastada da vida nacional pela própria maneira como eram
conduzidas as políticas do Estado, mas também como as relações eram mediadas por um
racismo entranhado nas elites políticas e econômicas, mesmo aquelas que se diziam
nacionalistas ou de esquerda. Sua desilusão com o resultado da Reforma Agrária decretada em
1953, fez com que a primeira “crise de consciência” de Reinaga se desenrolasse e permitisse a
formulação da ideia de que o índio deveria ser responsável pela sua própria libertação, uma vez
que o Estado boliviano tinha sido construído no intuito de alijá-lo do poder por uma posição
racista difundida desde o período colonial.
Em sua autobiografia, Reinaga afirma esse primeiro momento como aquele de sua
tomada de consciência índia. A narrativa de Fausto sobre esses anos busca mostrar sua atuação
política e sua escrita conjugadas na luta pela maioria nacional (como ele se referia à população
índia por ser ela, de fato, a maior parte da população), porém sem o apontamento das questões
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raciais que impediam os avanços políticos. Esta fase está intrinsecamente ligada à ação política
em uma Bolívia nacionalista pós-Guerra do Chaco. Ao final deste período, desiludido com a
Revolução de 1952, o autor, já com seus 46 anos, passa a tentar explicar os fracassos que viu
de 52 e reinterpretar as possibilidades revolucionárias para a Bolívia a partir de um novo
paradigma, qual seja, a condição de subalternidade do índio está baseada num pensamento
colonizado e racista da elite branca-mestiça que vê o índio como um ser inferior a partir dos
padrões europeus. Assim, surge a segunda etapa, a Indianista.

Indianismo

Como consequência de sua tomada de consciência índia, segundo o próprio autor, a


segunda etapa de seu pensamento se caracterizou pela formulação do Indianismo, uma
ideologia política índia, e expôs as premissas históricas que lhe deram base e as consequências
históricas que dele derivariam. O Indianismo organiza uma explicação histórica para a opressão
sofrida pelos índios, expõe o racismo que regula as relações sociais e detecta nelas a fonte das
desigualdades, uma vez que ainda que o indivíduo tenha uma condição econômica favorável,
se ele for índio, será marginalizado. Deste modo, o Indianismo não só explica o processo de
opressão deslocando da questão econômica (cara ao marxismo) para uma questão étnica como
aponta a necessidade de uma Revolução índia, e não mais uma Revolução socialista/comunista.
A luta de classes não seria o motor da história, mas a luta de filosofias, de culturas, uma luta
entre o mundo ocidental e o mundo índio.
Desta forma, Reinaga buscou as características filosóficas, morais e éticas que
diferenciavam o ocidente do mundo índio e tomou o segundo como base para o Indianismo que,
por sua vez, tornou-se um imperativo para a Revolução índia, uma espécie de fato inevitável
para a busca de uma sociedade melhor, desocidentalizada. Desta forma, o passado e a história
tomaram lugar cada vez mais central no pensamento de Reinaga. No seu livro La Revolución
India de 1970, o livro mais conhecido e difundido dele, Fausto busca trabalhar essas questões
históricas, morais e filosóficas que, para ele, criam a inevitabilidade e a necessidade da
Revolução índia que restauraria uma filosofia virtuosa.
Nuestra filosofía, la filosofía del indio, está contenida en el “ama llulla, ama
súa, ama khella”. (No mentirás, no robarás, no explotarás). He ahí el
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humanismo inka. De este mandato trinitario salía el “imperativo categórico”


de la Ley y la obligatoriedad de la religión. La filosofía que era la voz del
pueblo y la religión que era la voz de Dios, se confundían. (…)
La moral social no tenía el pesimismo nihilista ni la desesperanza actuales del
Occidente. El bien saliendo del dios Inti, estaba personificado en el Inka. El
Inka era la presencia física y la acción permanente del bien. El bien colectivo
era lo primero y estaba por encima del interés individual.
Este pasado, no sólo que es para el indio liberado de hoy, el presente, sino que
es el porvenir mismo, un porvenir pleno de posibilidades, si lo sabemos
conjugar con el humanismo que nos propone el Tercer Mundo.
Y si la filosofía es la teoría de la acción, el pensamiento hecho acto, la filosofía
inka no tiene paralelo en la historia. (REINAGA, 2001: 94)

Em contraposição, a filosofia ocidental é vista por Reinaga como pervertedora dessa


natureza humana expressa nos incas.
(...) Para el indio liberado, el indio libre, el modelo no es, pues, el hombre de
Platón, que vive el “reflejo” de las IDEAS-PURAS; ni el hombre del “mundo
noumenal” de Kant; ni el hombre de Hobbesm dispuesto siempre a devorar a
su semejante, (homo homini lupus, el hombre es lobo del hombre). Estas
perlas de la cultura Occidental, llegaron a nuestras tierras de América,
juntamente con la sífilis, para pervertir y corromper la “naturaleza humana”
inka. (REINAGA, 2001: 94-95)

Antes dessa segunda etapa, Reinaga tinha passado por uma intensa vida política que o
levou a diversas partes do mundo, inclusive a União Soviética (URSS) quando, segundo ele,
pôde perceber as limitações do modelo marxista que excluía indivíduos por suas ascendências
étnicas, que queria apagar as diferenças em prol de um modelo ocidental de humanidade. Para
o autor, a experiência que teve na URSS e a subsequente ida a Espanha franquista, lhe deu
subsídios para entender que o problema estava na filosofia ocidental que gestava os regimes
despóticos e autoritários, fossem de esquerda ou de direita, e que subalternizavam as pessoas
não-brancas. Nesse sentido, as leituras de Franz Fanon também lhe ajudaram a tomar essa
posição.
A fase indianista foi frutífera em termos de publicações, nela Reinaga publicou El Cuzco
que he sentido (1963), El indio y el cholaje boliviano. Proceso a Fernando Diez de Medina
(1967), La intelligentsia del cholaje boliviano (1967), El indio y los escritores de América
(1968), a triologia central do Indianismo, La Revolución india (1970), Manifiesto del Partido
Indio (1970) e Tesis india (1971) e, por fim, América india y Occidente (1974). Nesse período
o foco principal de Reinaga esteve voltado para o problema histórico da subalternidade do índio
e da necessidade da uma revolução. A comparação foi um recurso muito utilizado pelo autor,
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uma vez que buscava demonstrar as virtudes índias em contraposição aos defeitos da sociedade
ocidental que, segundo ele, impregnavam o pensamento inclusive de índios e mestiços e que
seria responsável pelos problemas das sociedades americanas, notadamente aquelas com
maiorias índias, por isso a busca por tratar de temas como o pensamento intelectual criolo.
Em seu livro El indio y el cholaje boliviano Reinaga faz uma forte crítica à Fernando
Diez de Medina, escritor pretensamente indigenista que o autor vê como símbolo do
pensamento colonizador da elite branca-mestiça boliviana. A citação é longa, mas demonstra
bem tanto a posição de Reinaga sobre o índio como sobre a elite intelectual branca-mestiça
encarnada em Diez de Medina.
Un pueblo oprimido, una Nación explotada, una raza discriminada, segregada
y esclavizada, que por paradoja constituye las nueve décimas partes de la
población de Bolivia, con una clara conciencia de su situación y condición, no
puede desear ni hacer otra cosa en la vida, que luchar por su libertad. Luchas
hasta la victoria de su propia Revolución: La Revolución india que: a) barrerá
de la conciencia social y de los hechos, la infamia de la segregación racial que
con tanta saña practica el cholaje contra el indio; b) que las riquezas naturales,
como el oro, el petróleo, el estaño, el hierro, la goma, la castaña, la lana de
vicuña, alpaca, etc., los cholos no entregará ya al imperialismo yanqui, sino
que quedarán para beneficio de los hijos de Bolivia; c) al indio que solloza
hambriento, semidesnudo, descalzo, analfabeto, al indio que duerme sobre
tierra pelada, sin luz ni calor, al indio que no tiene Patria, al indio esclavo y
apátrida la Revolución india le dará una Patria, pero sobre todo le dará Poder,
para rehacer en el viejo Kollasuyu una sociedad justa y libre, vale decir, una
Patria democrática y socialista.
El escritor Diez de Medina no entiende este lenguaje. Su espíritu cholo se
asusta como si se presentaran a su vista desbocados los caballos del
Apocalipsis. El quiere al indio (1) un manso animal; eterno asno de
explotación. El quiere al indo, igual que a su montaña, hecho un paisaje y nada
más. Un paisaje, para hacer retratos, cuadros de estérica literaria,
disquisiciones mitológicas o “filosóficas”. Lo que quiere al indio y su Titicaca,
su altipampa, su Illimani, su Tiahuanacu y su Calamarca; lo quiere al indio y
a “su eterna compañera” la esbelta llama; lo quiere en fin, al indio y a su
cadena de montañas de armiño, solamente, exclusivamente y taxativamente
como “materia prima” de negocio literario lucrativo contante y sonante.
(REINAGA, 1964: 77-79)

Neste trecho, Reinaga expressa, através de sua crítica a Diez de Medina, a crítica que
ele faz aos intelectuais brancos-mestiços que, em geral, viam os índios como peças exóticas que
ficavam lindas em telas e livros, mas que não tinham poder transformador e que eram primitivos
por natureza. Ao mesmo tempo, Reinaga contrapõe uma posição inversa, onde o índio pode ser
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produtor de seu destino, um destino virtuoso não somente para si, mas para a sociedade como
um todo.
Essa fase do pensamento de Reinaga corresponde à sua atuação no sentido de produzir
um partido índio, haja vista a experiência traumática com os partidos que fez parte no período
anterior. A desilusão com o marxismo e com o nacionalismo branco-mestiço, fez Reinaga
buscar alternativas, a principal delas é o Indianismo que produziria uma Revolução e que
precisaria organizar os índios em torno desse projeto através de um partido de índios. Em sua
autobiografia esse momento aparece como aquele fruto de uma epifania causada por suas
viagens, principalmente para Cuzco, onde refletiu sobre a grandeza da sociedade inca que foi
perdida mas que poderia ter seus valores retomados, uma vez que eles ainda estariam presentes
na população índia.
Novamente, a experiência e a busca de um caminho para sua vida levou Fausto Reinaga
a modificar seu pensamento. Uma vez mais, a filosofia da história moderna aparece como
elemento articulador desse pensamento e da proposta. Um passado exemplar que gera uma
consciência política que produz, no presente, uma mudança que levará a uma Revolução
inevitável, sendo o futuro a consequência imediata dessa revolução.
Esta etapa do pensamento de Reinaga também sofreu grande influência da tensão da
Guerra Fria. Ao mesmo tempo em que o autor se transforma num fervoroso anticomunista, ele
também se torna um ferrenho antiocidente. Para ele, o comunismo ou o liberalismo são frutos
da mesma matriz ideológica e filosófica do ocidente, portanto, produzem os mesmos problemas
para a humanidade. A guerra atômica, para ele, é o símbolo da destruição produzida pela
filosofia ocidental, e nela é possível enquadrar tantos a potência capitalista quanto a potência
comunista. Para Reinaga, o caminho seria uma outra filosofia, uma que produzisse uma
sociedade diferente da ocidental e, para ele, essa filosofia deveria sair dos índios ou outros
povos autóctones da terra conhecidos como indígenas. Essa posição tomou cada vez mais força
no pensamento de Reinaga e criou uma nova “crise de consciência” que o levou a rejeitar o
Indianismo e propor o Amautismo, ou pensamento amáutico, como alternativa à razão e ao
pensamento ocidentais.
Amautismo
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Mais uma vez, a mudança no pensamento advém de experiências do indivíduo Fausto


Reinaga. Desde o início dos anos 1970, Reinaga vê o movimento indianista tomar corpo e
influenciar a formação de grupos de intelectuais e militantes índios e o surgimento de outros
pensamentos que reivindicam a herança índia, como o Katarismo. Os primeiros kataristas foram
diretamente influenciados pelo pensamento de Reinaga, não somente através de leituras, mas
também através de encontros com ele.
A proliferação de movimentos e partidos índios, principalmente no final dos anos 1970,
com o início do processo de redemocratização da Bolívia e o surgimento, em outros países, de
organizações índias, fez crescer a esperança de Reinaga na construção de um organismo
internacional que organizaria a luta índia no continente e no mundo. No entanto, as divergências
internas e o enfraquecimento desses organismos, como a Comunidad India Mundial (CIM) e a
Comunidad Amautica Mundial (CAM) fundada por ele, fez com que o autor começasse a
diferenciar o indianismo dessas organizações e dos grupos que as compunham, do seu próprio
pensamento. Segundo CRUZ,
“Desde entonces, el indianismo empezó a ser criticado por Reinaga, a lo sumo
considero que ‘el reinaguismo’, es decir su pensamiento, era el verdadero
indianismo. Pero ya no sostuvo el concepto ‘indianismo’ para caracterizar a
su pensamiento, sino que lo reemplazó por ‘amautismo’” (2014: 52)

Nesse momento, a crise de consciência atingiu em cheio sua construção do indianismo.


Reinaga não apenas começou a diferenciar seu pensamento do indianismo agora posto em
prática e defendido por outros, mas o contrapôs a uma nova posição ideológica, o Amautismo.
Ao viver o processo de colocar em prática o indianismo na sua prática política e organizativa e
observar os limites que ele possuía, Reinaga parte para uma nova proposição, agora muito mais
teórica, chegando inclusive a questões que se podem enquadrar como metafísicas, tendo ele
sido acusado de ser esotérico em seu Amaustimo.
Já em sua década de 70, Reinaga passou a pensar que o problema índio era um problema
filosófico muito mais complexo do que o racismo histórico. Era um problema gestado na
filosofia e na religião ocidentais, simbolizadas por Sócrates e Cristo de um lado e na ideologia
política marxista, de outro. Para Reinaga amauta, era precisa tirar Sócrates, Cristo e Marx da
mente índia e colocar no lugar a relação direta entre os seres humanos e a natureza, ou os deuses
ancestrais, que os índios tanto preservaram através dos séculos de colonização.
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Assim, Reinaga passou a se preocupar menos com a ação política derivada de um


pensamento para pensar cada vez mais nas implicações morais, éticas, econômicas e sociais
dessas filosofias que organizam a vida humana, notadamente buscou comparar o “pensamento
socrático ou ocidental”, que ele definiu como a concepção racional do Universo e da vida, e o
“pensamento amáutico”, definido como a concepção cósmica do Universo e da vida. Assim,
expôs os efeitos que delas derivam.
No seu livro, El pensamiento amáutico (1978), Reinaga afirma:
Pensamiento socrático. El pensamiento socrático es la concepción racional
del Universo y de la vida.
Para el pensamiento socrático el hombre es la razón.
Existe para la razón.
Y, ¿qué es la razón?
La razón es un poder absoluto.
¿Dónde está?
La razón está en sí misma; es sí misma; existe para sí misma.
¿Qué ha hecho la razón del hombre?
Un animal racional.
¿Para qué?
Para que se devore.
La razón encarnada en el hombre, “soplo vital” del hombre, es el homo
homini lupus, y el Deus lupus dei: el hombre lobo del hombre en la Tierra,
y Dios lobo de Dios en el cielo.
Este hombre ha convertido hoy su hacha de piedra cavernaria en la Bomba
Atómica.
¿Con qué objeto?
Con objeto de destruir no sólo al hombre, sino a la vida del planeta Tierra.
El hombre “fin último de la Creación”, llega a la Luna. Y en 1976 sus Vikingos
1 y 2 se posan sobre la “roja superficie” de Marte, planeta que “posiblemente
encierre la clave para la comprensión del origen y evolución de la vida en la
Tierra”. Y ahora está a punto de arrojar la Bomba Atómica contra la
“Creación”… La ley del Homo Sapiens de la Era Atómica, es: “Puedes, pues
debes”. Puedes destruir, pues debes destruir la “Creación”.
El “Conócete a ti mismo” es el destrúyete a ti mismo. Y el “Ama a tu prójimo
como a ti mismo” equivale a destruye a tu prójimo como a ti mismo. El Homo
Sapiens mata y se mata día y noche, porque allá en el cielo espera encontrar
el “Reino de Dios”.
He ahí Sócrates y su Occidente, he ahí Cristo y su Occidente.
¡He ahí occidente! (REINAGA, 1978: 25-26)

Em contraposição, Reinaga afirma o pensamento amáutico:


Pensamiento amáutico. El pensamiento amáutico es la concepción cósmica
del Universo y de la vida.
Para el pensamiento amáutico el hombre piensa, la hormiga piensa, el árbol
también. De alguna parte ha debido salir el pensamiento. Ni el hombre ni la
hormiga ni el árbol piensa sin el Sol; no vive sin el Sol; de alguna manera el
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Sol es quien engendra, quien hace la vida de los seres terrestres. Porque sin el
Sol no hay vida, no hay pensamiento. En consecuencia, el hombre piensa
gracias al fluido del Padre Sol. El pensamiento, de una u otra manera es
energía hecha luz, luz solar.
Pensar es conocer. Saber.
¿Conocer qué? ¿Saber qué?
Conocer, saber qué es, cómo es, para qué es: “Lo que Es”. Y, ¿qué es lo que
Es”?
El Cosmo es “lo que Es”.
¿Qué existe? Existe el Cosmos. El Cosmos es el Ser.
Y, ¿qué es el hombre? ¿Cuál su destino? Para qué existe?
El hombre es la conciencia del Cosmos. Su destino es ser Cosmos consciente.
Existe para la Verdad, la Libertad y el Bien. (REINAGA, 1978: 26-27)

A contraposição que Reinaga criou buscava afirmar uma ideologia humanista total,
porém, partindo de uma concepção holística da vida e não mais de uma concepção
antropocêntrica ou teocêntrica que caracteriza o pensamento ocidental, segundo ele. O
amautismo seria então a alternativa, e retiraria suas premissas e seu fazer dos povos índios não
somente das Américas, mas também do mundo todo, em busca dessa vida holista, de volta a
uma vida de contato integral com a Terra, na busca do bem total. A Revolução passa a ser uma
ação interna de cada pessoa, não mais um movimento social que produziria uma mudança, mas
um movimento existencial que produziria um futuro harmonioso.
Apesar dessa forte mudança no caráter de seu pensamento, Reinaga permanece com
uma concepção de filosofia da história moderna, como venho apontando desde o início deste
ensaio. A ideia de um curso linear em que o passado, o presente e o futuro estão intrinsecamente
ligados e respectivamente subordinados, está presente ainda no pensamento amáutico, porém,
nesta fase, há uma busca por parar esse tempo, a negação dele próprio. Ou seja, ao acreditar
que existe esse processo de sucessão infinito, o autor busca alternativas para pará-lo, para fazê-
lo tomar novo curso.
Nesse processo, Reinaga continua sua posição de negar o tempo presente, assim como
fez negando o nacionalismo dos anos 40 e 50, negando a Revolução de 52 e negando o
movimento indianista possível nos anos 70, pra citar os exemplos já citados anteriormente.
Assim, a ânsia moderna da negação do presente, base da concepção de Filosofia da história
moderna, está claramente presente em toda a obra de Reinaga. Para deixar mais clara essa
questão, cito as palavras de Michael Jaeger de sua análise sobre o pensamento revolucionário
moderno:
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Tanto para a revolução política como para a revolução econômica dessa época,
o princípio da negação é constitutivo. Isso se torna particularmente evidente
no âmbito da política revolucionária, a qual nega continuamente o estado de
coisas vigente, reconhecido como corrupto e, portanto, como inimigo mortal.
Na consciência dos revolucionários, o processo movido pela revolução é
idêntico ao processo do movimento histórico. As sentenças proferidas pelos
tribunais da Revolução, assim o quer a autoconsciência revolucionária, estão
integradas à lógica processual da história e, como negação permanente do
respectivo presente político e social, promovem e executam o progresso.
(JAEGER, 2007: 312)

Assim, Fausto Reinaga mantém uma lógica moderna de pensar o curso da História, ou
seja, usa a Filosofia da História moderna, mas modifica seu pensamento a partir de sua
experiência de vida, de acordo com o que estou chamando aqui de Filosofia de vida, entendida
como o conjunto de premissas (e as ações que delas derivam) que organizam o viver individual,
sendo essas premissas de caráter moral, ético, histórico, político e econômico.

Considerações finais

Fausto Reinaga foi um militante e um intelectual. Viveu sua vida na política e na escrita,
sendo uma complemento da outra. Por sua formação inicial e sua atuação, Reinaga se deparou
com os problemas centrais da sociedade boliviana e buscou respostas históricas para eles.
Assim, a cada nova fase de vida em que viveu e agiu sobre seu contexto, pôde pensar e formular
seu pensamento, seu marxismo, seu indianismo e seu amautismo. Os contextos da vida de
Reinaga fazem parte de sua obra, como não poderia deixar de ser, uma vez que ela é fruto dos
embates da vida individual e coletiva do seu autor com a sociedade em que viveu.
Por isso, me parece que a autobiografia exposta em seus livros não é apenas um
movimento pela busca de contar a própria história, mas a prova de que a vida do autor estava
intimamente ligada com o que ele pensava, ou melhor ainda, sua vida lhe dava os problemas e
as possibilidades de buscar soluções. Na obra de Reinaga, a vida não aparece apenas como parte
inseparável de qualquer obra humana, mas aparece como aquela parte que dá motivo, razão,
ímpeto, mote, empiria e direção para a obra e imprime nela as suas vicissitudes, suas mudanças,
suas reviravoltas. O devir do autor impulsionou a obra, criou-lhe fraturas, mudou-lhe o
caminho.
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Referências

CRUZ, Gustavo R. Los senderos de Fausto Reinaga. Filosofía de un pensamiento indio. La Paz:
Plural Editores, CIDES-UMSA, 2013.

JAEGER, Michael. A aposta de Fausto e o processo da Modernidade: Figurações da sociedade


e da metrópole contemporâneas na tragédia de Goethe. En: Revista Estudos Avançados, v. 21,
nº 59, 2007. p. 309-322.

REINAGA, Fausto. El Indio y el cholaje boliviano. Proceso a Fernando Díez de Medina. La


Paz: Ediciones PIAKK, 1964.

________. El pensamiento amáutico. La Paz: Ediciones Partido Indio de Bolivia, 1978.

________. (1970) La Revolución india. 2ª ed. La Paz: Ediciones Fundación Amáutica Fausto
Reinaga, 2001.

________. Mitayos y Yanaconas. Oruro: s.n, 1940.

________.: Tierra y libertad. La revolución nacional y el indio. La Paz: Ediciones Partido Indio
de Bolivia, 1953.

REINAGA, Hilda. Prefacio. In: REINAGA, Fausto. Mi vida. La Paz: Ediciones Fundación
Amáutica Fausto Reinaga, 2014

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