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PASSAGEM PARA O PRÓXIMO SONHO

DE HERBERT DANIEL: UM LUGAR DE


FALA NOS EXÍLIOS
No desfecho da ditadura militar, Herbert Daniel publica
Passagem para o próximo sonho (1982). Degredado na França,
Daniel mapeia um roteiro dos seus exílios. O seu exílio começa
no Brasil sentindo-se “estrangeiro” na sua própria terra. Nesse
momento, a consciência o exorta a lutar contra o regime,
participando na resistência clandestina e experienciando um
exílio político. Concomitantemente, a sua homossexualidade
o conduz para outro exílio, num contexto de luta que o
obriga a esconder a própria sexualidade. O roteiro destes
exílios, permite uma reflexão sobre as identidades, projetadas
nos processos históricos e sociais do Brasil daquela altura.
Sondando o seu degredo interior, o autor dialoga com o ‘mundo
literário’ consubstanciando a sua voz num processo catártico,
autocrítico e liberatório.

Palavras-chave: Ditadura Militar, Memória, Exílio,


Homossexualidade, Política.

1. INTRODUÇÃO

1.1. QUEM FOI HERBERT DANIEL ANTES DO EXÍLIO EUROPEU?

Na bibliografia crítica estudada até agora, destaca-se o interesse


historiográfico desta personagem que se afigura como
particularmente lúcida e corajosa.

De origem proletária, Herbert Daniel começa os seus estudos


GIGANTE universitários na Faculdade de Medicina em Belo Horizonte.
MATTEO Durante o período da ditadura militar, aproxima-se ao marxismo
Universidade e ao movimento estudantil. Então, em 1967, inscreve-se na POLOP
de Lisboa - Política Operária (Daniel, 1982, p. 26). Nestes anos de repressão,
giga.matteo91@
gmail.com as organizações de esquerda eram proibidas e reprimidas pelo
regime, os seus militantes eram obrigados à clandestinidade.

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Mesmo assim, Daniel participa em várias organizações de


resistência1 onde conhece Dilma Rousseff, que será eleita duas
vezes Presidenta do Brasil, e Carlos Lamarca, importante militar
e opositor do regime.

Em 1969, participa no movimento em Belo Horizonte e no Rio de


Janeiro. Nenhuma organização considerava a guerrilha urbana
suficiente para organizar a revolta, assim, o militante participa no
“treinamento da guerrilha rural” em Ribeira (Daniel, 1982, p. 27),
o “pequeno motor que colocaria em marcha o grande motor”
(Daniel, 1982, p. 19). Apesar disso, em abril de 1970, o exército
cerca Ribeira e Daniel foge voltando para o Rio de Janeiro. Nestes
anos, é procurado pela polícia política e vive na clandestinidade
escondendo-se através de pseudónimos.

Em 1972, após uma fase de reflexão e desilusão, deixa a guerrilha.


Portanto, com o companheiro Cláudio, conhecido durante
a militância, abandona o Brasil fugindo com um passaporte
falsificado, começando oficialmente o seu exílio europeu.

1.2. ESTADO DA ARTE

Repercorrendo o rumo das resistências silenciadas durante o


período da ditadura militar, deparamo-nos com personagens
emblemáticas e corajosas que, com suas lutas e reflexões
intelectuais, marcaram a história do Brasil contemporâneo.

Entre elas cabe mencionar a figura de Herbert Daniel, ainda


pouco conhecida no âmbito dos estudos literários. Nesta primeira
fase dos estudos sobre a obra de Daniel este autor desperta
principalmente a atenção dos historiadores.

Atualmente, a redescoberta académica, em pompa magna,


desta personagem, deve-se ao trabalho do historiador James
Green, da Universidade Brown. Green redigiu uma série de
artigos sobre o autor, e este ano apresentou o livro Revolucionário
e Gay: A vida extraordinária de Herbert Daniel que, em vista da
sua recente publicação, não consta na bibliografia consultada
para esta comunicação.

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Além disso, outros historiadores como o Professor Rômulo


Medeiros Pereira, da Universidade Federal da Paraíba, realizaram
pesquisas académicas sobre o autor como a dissertação de
2013 “Herbert Daniel e as suas escritas de memória: exercícios
autobiográficos e traços estéticos de uma existência (1967 –
1984)”.

Por outro lado, no âmbito dos estudos literários, cabe mencionar,


entre outros, um artigo de 2015 escrito pelo Professor Israel
Pechstein, “Passagem para o próximo sonho de Herbert
Daniel e seu lugar na literatura brasileira pós-regime militar”.
No artigo, Pechstein (2015) cita um verbete publicado em 1994
por Borim Dário Jr., no livro Latin American Writers on Gay
and Lesbian Themes: A Bio - Critical Sourcebook, no qual o
escritor é oportunamente mencionado (p. 78). Mesmo assim,
como destaca Pechstein (2015): “O autor foi ignorado no exílio,
esquecido na anistia e negligenciado pela crítica literária do seu
tempo e da atualidade” (p. 78).

2. OBJETIVOS

Os objetivos desta apresentação prendem-se com a vontade de


divulgar brevemente a história de Daniel, apresentando a sua
primeira obra publicada, Passagem para o próximo sonho (que
desde agora mencionaremos apenas como Passagem).

Paralelamente será oportuno refletir brevemente sobre a


peculiaridade da estrutura narrativa escolhida pelo autor,
definida como “possível romance autocrítico” ou “literatura
pessoal”, questionando a sua possível colocação no panorama
literário brasileiro. Por outro lado, considera-se pertinente
destacar, ao longo do livro, as referências intertextuais explícitas
ou implícitas a obras literárias, refletindo sobre as interconexões
temáticas e a interdependência entre a realidade e o literário.

Além disso, será fundamental analisar, dentro desta narrativa,


o tema dos exílios, elemento que se apresenta como central
do ponto de vista alegórico e empírico, nas suas implicações
narrativas, emotivas, psicológicas, políticas e históricas.

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3. METODOLOGIA

Na abordagem do corpus principal, a obra Passagem,


empregaremos uma metodologia hermenêutica ligada
principalmente aos estudos literários. Neste sentido,
tencionaremos focar a análise em elementos literários como a
construção do discurso narrativo, o emprego de figuras retóricas,
a linguagem e a intertextualidade.

Apesar disso, reputamos essencial o emprego de uma


metodologia diversificada a fim de obtemperar uma
interpretação holística do texto, em vista da sua ostensiva
interdependência em relação à biografia do autor e ao seu devir
como sujeito histórico. Por isso, será imprescindível uma sucinta
contextualização histórica, tanto da personagem quanto do
mundo político e social em que se insere.

4. UM ENFOQUE LITERÁRIO

Passagem é definido desde o incipit, pelo próprio autor, como


“um possível romance autocrítico sobre os exílios: do desterro
na militância clandestina, do asilo europeu, do degredo na
homossexualidade”. (Daniel, 1982, capa). Nesta classificação
original, podemos constatar uma conformação de género híbrida,
proposta pelo autor. Efetivamente, a literatura de testemunho
punha em causa, como valor, a veridicidade dos factos narrados,
compromisso instaurado com o leitor. Este compromisso é
definido por Philippe Lejeune como “pacto autobiográfico” que,
como citado por Ana Amelia Barros Coelho Pace, prescreve: “O
engajamento de um autor em contar diretamente sua vida (ou
uma parte, ou um aspecto de sua vida) num espírito de verdade”
(Lejeune, 2006, apud, Pace, 2012, p. 54). Por outro lado, como
explica Israel Pechstein:

Em Passagem, Daniel assume seu papel na criação e no


relato do romance e se recusa a confirmar qualquer verdade
que o leitor queira estabelecer. Para interromper este
processo, o autor dialoga com o leitor, questiona sua própria
escrita e ironiza, enfim, faz o leitor pensar no processo
necessariamente criativo (e possivelmente ficcional) de

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escrever um romance, mesmo que seja um romance de


memória. (Pechstein, 2015, p. 82).

Portanto, explica Pechstein (2015), esta narrativa de Daniel


“pertence à literatura da memória e do trauma, mas também
diverge destas categorizações” (p. 82). Neste sentido, também
o termo “literatura pessoal”, empregado pelo autor para definir
a sua obra, conflita com as barreiras fixadas entre ficção e
realidade, constantemente desafiadas pelos próprios escritores
e críticos. Efetivamente, como Rômulo Medeiros comenta a obra
memorialística de Daniel, usando as palavras de Ecléa Bosi:

[…] o passado em sua memória esteve sempre ativo, porque


“lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar,
com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado.
A memória não é um sonho, é trabalho”. (Medeiros, 2013,
p.85, apud, Bosi, 2010, p. 55).

Por isso, em Passagem o escritor apresenta-se como uma


personagem descrita conforme as informações de um
documento de identidade preenchido subversivamente,
questionando sarcasticamente a sua esquematização
identitária castrante: “imaginemos a possibilidade de existência
de um personagem-autor de um romance imperfeito” (Daniel,
1982, p. 22). Desde o nome, o autor foge da determinação de
respostas estandardizadas, escrevendo “vários”, considerando as
mudanças “do batismo aos batismos de fogo” (Daniel, 1982, p.
22). Nesse proémio o autor sublinha a sua necessidade de usar
pseudónimos e nomes de guerra, na clandestinidade. Assim, para
refugir das codificações normativas do tempo vital, aproveita de
um estratagema literário “Idade – a dantesca, o meio (injusto) do
caminho” (Daniel, 1982, p. 22). Em continuação, a sua carteira de
identidades, continua acrescentando detalhes narrativos:

Sexo – masculino.
(sem nenhuma dúvida, nem vacilação. Embora
entre os outros masculinos seja peculiar, minoritário:
homossexual.)
Nacionalidade – brasileiro
(sem nenhuma dúvida, nem vacilação. Embora entre

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os outros brasileiros seja peculiar, minoritário: exilado.


(Daniel, 1982, p. 23).

Na autoapresentação do protagonista, reparamos como, desde


o início, o escritor introduz uma série de questões fulcrais na
narrativa, desvinculando-se das etiquetas identitárias impostas.
Nas primeiras linhas o autor refere as classificações de sexo e
nacionalidade, descrevendo-se como másculo e brasileiro, mas
destacando o seu distanciamento em relação a estas definições,
assumindo-se como minoritário e diferente. Posteriormente a
descrição acrescenta outros elementos:

Filiação – pai preto, porém militar. Soldado por imposição,


humorista por vocação, adulto por contingência, pai por
consequência, tímido por gentileza, abrupto por timidez,
silente por atavismo. Mãe branca, porém italiana. Operária
por descuido, dona de casa por obrigação, rebelde por
destinação, domada por destino, arrependida por convicção,
sentimental por hipocondria, emocional por atavismo. […]
Cor – aquela.
(dependente da iluminação, do estado de espírito e do
momento político.)
Religião – escapou de várias.
(sem religião, mas sem misticismo. Por isto – descrédito
dos textos revelados – reconhecendo a revelação, força e
validade de todos os orixás do meu povo.)
Instrução – desorientada.
(autodidata impaciente, oscilando entre crenças e
justificações.)
Profissão – incerta.
(atualmente mão-de-obra não especializada, empregado
numa sauna para homossexuais, em Paris.)
Estado civil – incivil.
(vivo há dez anos com um cara que é, por ser quem é, a
melhor explicação de tantos anos que a gente vai passar
juntos.)
Sinais particulares – cicatrizes.
(como se verá.). (Daniel, 1982, pp. 23-24).

Nestes excertos, o autor discute ironicamente a questão da

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religião, da instrução, da profissão e do estado civil, refugindo


dos estereótipos, sublinhando a sua ascendência africana e
introduzindo a questão das cicatrizes, que constrói a narrativa.

Além disso, do ponto de vista estilístico, o escritor dialoga


com tendências literárias e linguísticas experimentais usando
recursos literários sem purismos ortográficos e convencionais.
Como salienta Pechstein, “A prosa de Daniel não se conforma
a um estilo específico e desafia o leitor a perceber ironias e
trocadilhos, entre reflexões mais críticas. O que temos é um
estilo quase neobarroco — elemento notado por Borim” (Borim
& Foster, 1994, p. 130, apud, Pechstein, 2015, p. 80).

Por outro lado, as memórias do autor são constantemente


perpassadas pelo ‘mundo literário’ apresentado através de
referências intertextuais que dialogam com a narrativa. Desde
o incipit, narrando os seus momentos de solidão durante a
fase de guerrilha rural em Ribeira, o protagonista entrelaça as
suas próprias vivências com uma das obras mais simbólicas da
Literatura Brasileira, Grande Sertão: Veredas. O autor menciona
este livro como um companheiro de aventuras, leituras e práticas
de escrita ao lado de uma fogueira, que representava a sua
única fonte de luz. Confessa ter escrito cartas neste período, logo
queimadas, para dois Joões – um deles um amigo que morava na
cidade. Por outro lado, escrevendo para Guimarães Rosa, Daniel
(1982) usava como pseudónimos seus filhos literários Riobaldo e
Diadorim (p. 28). Através desta referência, averigua-se uma forte
contaminação entre as fronteiras da ficção e da realidade, sendo
a o amor interditado entre os guerreiros do livro uma das mais
lindas representações literárias de uma história aparentemente
homoerótica.

Além disso, inseridas como metáforas, constatamos referências


de Daniel (1982) à obras como Dom Quixote (pp. 18 e 33), à
personagem Sherlock Holmes (p. 41) e ao escritor Shakespeare,
citado numa passagem irónica (p. 47). No entanto, em outra
passagem do livro, verificamos o apreço do autor pelos escritos
de Oswald e Mário de Andrade, citados como “raízes próprias
da nossa libertação de brasileiros […]” (Daniel, 1982, p. 85).
Paralelamente, percorrendo outras experiências de libertação,

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relembra Ulisses de Joyce. Apresentado como uma “suprema


aventura do espírito” (p. 85) é interligado com o espírito de aventura
dos anos 1970 em que “As grandes auroras adiadas estalavam na
boca das cordilheiras que uniam a América num único e latino
coração de transbordamentos” (p. 85). Como “profeta tímido”
(p. 85) da libertação após a feroz repressão é citado também o
artista Chico Buarque, personagem emblemática da resistência
democrática brasileira (p. 85).

5. OS EXÍLIOS

Como referido na capa e nas primeiras páginas do livro, o exílio


caracteriza-se como tema central de Passagem. Este elemento
fundamental na vida do autor é empregado também como
metáfora para descrever a sua situação existencial.

5.1. O ASILO EUROPEU

Do ponto de vista biográfico, o efetivo desterro de Herbert Daniel


com o seu companheiro Cláudio, começa em 1974. Neste ano,
cruzam a fronteira da Argentina fingindo ser de um país centro-
americano, conseguindo deslocar-se para Portugal. Durante a
permanência em Lisboa, Daniel experiencia com muita paixão,
o fermento da Revolução de Abril, dedicando-lhe várias odes,
poemas e reflexões:

Mais não falo das coisas portuguesas que já avisei que escrevo
sobre exílios. E Lisboa não foi: nem exílio, nem soluços. Um
dia talvez vos conte, portugueses da anedota da minha vida,
o amor em que me ficastes ancorados, felizes caravelas de
descobrimentos próprios, meus. (Daniel, 1982, p. 149).

Por outro lado, apesar da amena experiência portuguesa, os


dois são obrigados a emigrarem para a França a fim de obterem
os documentos necessários a permanecerem como exilados.
Portanto, ao chegar no país, receberam a acolhida da esquerda
que manifestava solidariedade em relação aos refugiados
(Daniel, 1982, p. 150).

No entanto, para obter os documentos, Daniel foi entrevistado

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por um policial, junto com um intérprete. Na entrevista eram


fundamentais a ortografia e a boa pronúncia: “Os franceses
não se incomodam com o que dizem, desde que pronunciem
corretamente” (Daniel, 1982, p. 152). Então, contou que tinha
participado no movimento estudantil, tendo sido perseguido
pelo regime, do qual todos conheciam a crueldade. Em seguida,
o policial recomendou-lhe que, caso quisesse continuar os seus
estudos, não se envolvesse mais com movimentos: “Política é
proibido aos asilados, sentenciou grave.” (Daniel, 1982, p. 153).
Como explica o autor, “O exílio, como afastamento, é uma das
formas do silêncio. E vice-versa.” (Daniel, 1982, p. 34).

Neste contexto, os refugiados provindos de outras regiões da


América Latina, como o Chile, observavam que a atenção da
‘opinião pública’ nas próprias tragédias caducava, bem como o
espaço concedido pelos jornais. Assim, em janeiro de 1976, “- O
golpe do Chile saiu de moda” (Daniel, 1982, p. 150). Para os que
sobreviveram à atrocidade daqueles acontecimentos, sobrou o
exílio: “O exílio é o grande asilo para dissidentes. Não importa a
sua situação geográfica: o exílio é antes de tudo uma localização
política e ideológica.” (Daniel, 1982, p. 34).

5.2. O DESTERRO NA MILITÂNCIA CLANDESTINA

Como explica o militante, o seu exílio tinha começado


anteriormente, na sua terra natal: “Não há pior desterro do que
aquele que se vive no meio duma gente que fala uma língua que
parece ser a nossa.” (Daniel, 1982, p. 35). Neste sentido, reparamos
que, segundo descrito pelo autor, a sua experiência política
clandestina foi o preâmbulo do exílio, um exílio identitário e
político, como cidadão e como brasileiro. Portanto, como exposto
na dissertação de Rômulo Medeiros:

A clandestinidade trouxe para Herbert Daniel uma sensação


de fragmentação de si, um não situar-se em lugar algum.
Durante a clandestinidade, não podia se fixar, pois se
fizesse corria o risco de ser capturado, preso, torturado e até
morto. Daniel aprendera que para manter-se vivo naquelas
condições era necessário um constante reinventar-se, um
intenso tornar-se outro. (Medeiros, 2013, p. 55).

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Além disso, apesar do entusiasmo advindo da descoberta do


marxismo, a militância mostrou-lhe um panorama diferente, que
é possível ser verificado nas suas autocríticas. A clandestinidade
do movimento, bem como a urgência de uma resposta à
repressão da ditadura sufocaram as possibilidades de instaurar
um debate e um diálogo necessário entre os militantes.

A urgência em responder à ditadura militar suspendeu uma


busca compartilhada de perspetivas de análise social da
conjuntura política do país em nome da unidade e da ação.
Além disso, principalmente depois do Ato Institucional nº 5,
era praticamente impossível incluir a população nas atividades
políticas, tendo em conta que “toda a ditadura no nosso tempo
é uma técnica de manipulação das massas populares” (Daniel,
1982, p. 98). Assim, a atividade da organização perseguiu a
lógica do adestramento, definindo um “momento pré-político”,
uma fase de “intervalo”, “suspensão” (Daniel, 1982, p. 22). Neste
sentido, como refere Daniel:

Não seria melhor dizer que neste intervalo está o verdadeiro


início do exílio? Que aí, neste “isolamento” político, nesta
incapacidade de abrir um diálogo atual, a esquerda armada
viveria o seu primeiro exílio? Porque, à guisa de diálogo, a
única coisa que a esquerda fez foi um combate singular,
e derrotado a priori, com a ditadura. Neste combate
exclusivo, havia apenas o monólogo do Poder. A derrota
não foi consequência disto: a derrota é este monólogo. /
Na esquerda armada, como em muitos aspectos da vida
social do país, a sobrevivência não foi senão uma forma de
extermínio. Muitos, para sobreviver, abdicaram a existência.
(Daniel, 1982, p. 22).

Dessarte, em nome da política, os militantes foram muitas vezes


obrigados a apagarem as próprias individualidades, consideradas
secundárias em relação ao sacrifício devido à causa revolucionária.
Com Daniel não foi diferente. Como será visto mais adiante, o
militante precisou sacrificar a própria sexualidade em nome do
movimento. Neste sentido, é narrado o desconforto de Gláucio,
um companheiro do autor, na guerrilha rural da VPR, em Ribeira.
Após uma reunião em que Gláucio estava prestes a fracionar a

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organização, mostrando o seu descontento, chorando, confessou


privadamente a Daniel que não conseguira ficar na guerrilha por
falta de mulheres.

Portanto, Daniel consolou o companheiro sem nunca falar


da própria sexualidade (Daniel, 1982, p. 220). Mesmo assim,
como relembrará nos últimos anos do exílio francês ao
companheiro Átila, na guerrilha rural o tabu do sexo envolvia
todos, independentemente da orientação sexual. Apesar disso,
confessa Daniel:

[…] eu era feliz em Ribeira porque não me sentia reprimido.


Sentia, como todos deviam sentir, que a ausência do sexo
era uma necessidade da luta, assim como os desconfortos
que sofríamos, a falta de comida, por exemplo. Para mim a
repressão existia nas cidades, porque a ausência de relações
sexuais não era nenhuma condição da luta. Era um silêncio.
Um exílio. Sabe, meu amigo, eu não era exatamente um
militante homossexual. Era um homossexual exilado.
(Daniel, 1982, p. 221).

5.3. O DEGREDO NA HOMOSSEXUALIDADE

Como exposto até agora, durante a militância clandestina,


Daniel não aborda politicamente a sua sexualidade ocultando-a
dos seus companheiros. Naquela fase histórica, o preconceito
em relação à homossexualidade abrangia todos os grupos
políticos. Mesmo a esquerda que, mais tarde, revelou-se mais
progressista em relação aos costumes e menos puritana em
relação à sexualidade, tinha posições discriminatórias em relação
à homossexualidade.

Neste sentido, como explica James N. Green no artigo “Quem


é o macho que quer me matar?” homossexualidade masculina,
masculinidade revolucionária e luta armada brasileira dos anos
1960 e 1970” (2012), dentro da esquerda brasileira existiam três
linhas de pensamento discriminatório. Em primeiro lugar, o
homoerotismo era considerado um “comportamento burguês” e,
por isso, contrarrevolucionário. Por outro lado, alguns fundavam
a própria discriminação em conceitos médicos e psiquiátricos

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daquela altura, ou eram inconscientemente influenciados


pela cultura cristã. Os últimos, preocupados pela influência
dos Estados Unidos, consideravam as lutas pelos direitos civis
uma ingerência imperialista (p. 71). Por isso, como assinalado
no prefácio de Peter Fry no livro de Green Além do carnaval: a
homossexualidade masculina no Brasil do século XX, no âmbito
da hierarquia de valores da esquerda daquela altura, a luta dos
grupos socialmente oprimidos foi longamente desclassificada
como “luta menor”, em detrimento da “luta maior” para o
socialismo (Fry & Green, 2000, p. 9).

Ainda, segundo referido por Green (2012) no artigo supracitado,


geralmente a aceitação das homossexualidades, nestes
contextos, dependia da sensibilidade e das experiências de cada
militante (p. 89). Portanto, no âmbito da resistência ao regime e
na fase de democratização, existia uma pluralidade de posições
em relação às novas instâncias libertárias e identitárias colocadas
pelos movimentos antirracistas, feministas e das chamadas
“minorias sexuais”:

Alguns membros da geração politizada de 1968 não


apoiaram facilmente estas novas ideias. Muitos esquerdistas
ainda argumentavam que o feminismo dividia homens
e mulheres. Outros insistiram que discutir o racismo, no
Brasil, criava hostilidade entre brancos e negros, o que era
estranho à cultura brasileira. Em debates públicos sobre a
homossexualidade, alguns argumentavam que a luta pela
igualdade de direitos para gays e lésbicas dividia a ampla
oposição contra a ditadura militar (Green, 2012, p. 89).

Daniel (1982) constata que, dentro da organização, o proletariado


era visto como uma classe assexuada, segundo esta lógica,
não existiam “bichas” operárias (p. 96). O militante, de origem
proletária, apesar de ser (na sua análise) um indivíduo que
se desligara da sua condição, tornando-se num estudante,
chegou a considerar a sexualidade como uma “questão pessoal”
desvinculada da política. Por outro lado, escondia a própria
sexualidade “Porque ‘ser bicha’ era uma acusação. Crime cujo
castigo está nele e no rótulo” (p. 96). Assim, Daniel refere a própria
situação:

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Meus problemas pequeno-burgueses me preocupavam,


como tantos empecilhos que eu tivesse para poder me
tornar um bom revolucionário. Entre eles a sexualidade,
mais explicitamente, a homossexualidade. Desde que
comecei a militar, senti que tinha uma opção a fazer: ou eu
levaria uma vida sexual regular – e transtornada, secreta e
absurda, isto é, puramente “pequeno-burguesa”, para não
dizer “reacionária”, ou então faria a revolução. Eu queria
fazer a revolução. Conclusão: deveria “esquecer” minha
sexualidade. (Daniel, 1982, p. 96).

A recusa da homossexualidade por parte da esquerda daquela


altura vinculava-se, segundo Green (2012), a “conceitos populares
que rejeitavam a homossexualidade masculina, uma vez que
isso implicava a feminização da masculinidade” (p. 71). Esse
processo colidia com a construção identitária da “masculinidade
revolucionária” (p. 71). A imagética do revolucionário, acrescenta
Green (2012), construiu-se, nesse contexto, a partir da figura
emblemática de Che Guevara. Portanto, o “Homem Novo” era
“viril, barbudo, agressivo e tinha só um objetivo em mente que
era o sacrifício pela causa, adiando prazeres mundanos do
momento em busca de um futuro socialista glorioso” (p. 78). Na
obra de Daniel é elogiado o fascínio de Che Guevara:

A morte do Che nos pesaria como uma iluminação, uma


tragicamente alegre evidência de que não importa onde,
não estaríamos sós: éramos nós as outras mãos do Che;
depois, se nós sofrêssemos a mesma morte infinitamente
pura, nada senão o desmedido gozo de partilhar a lenda.
Porque o Che morreu na sua lenda, como parte do seu mito,
inevitável e compreensível.[…]A morte derrota na Bolívia foi
vivida como uma vitória e sua justificativa, ou uma certeza
da inevitabilidade dum futuro vitorioso. Foi uma morte
plena de esperança. (Daniel, 1982, p. 94).

Assim, relevamos que a figura do Che representa ainda hoje um


símbolo de virilidade. Consequentemente, embora o proletariado
fosse visto como uma classe assexuada, na guerrilha existiam
rígidos padrões de género. Por exemplo, na guerrilha urbana
as mulheres personificavam uma figura descrita pela imprensa

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como “A Loura” ou “Nossa Senhora dos Assaltos”, que segundo


Daniel (1982), “foi uma criação bem masculina” (p. 38), amantada
por uma “extraordinária carga erótica” (p. 38). Efetivamente,
A Loura, era A Mulher: “Todas as companheiras foram um dia
A loura” (p. 38). A personagem correspondia a determinados
cânones preconcebidos: “loura, linda, tinha pernas estonteantes,
usava uma minissaia ousada e comandava bravamente todos
os assaltos. Tinha a voz firme, o gesto decidido e o gatilho
leve. Impiedosa, não mostrava comiseração” (p. 38). Portanto,
apesar do papel de vanguarda e da atitude transgressora das
expectativas de género ligadas à feminilidade, segundo Daniel a
Loura continuava a ser uma “invenção masculina”:

A gente gozava, encontrava na lenda um aspecto folclórico,


até mesmo inocente. Nunca se levou a sério o significado
daquela invenção para as mulheres guerrilheiras. E o
que se fazia era uma mistificação e um desrespeito. Uma
segregação da mulher, um racismo descaradamente
intolerável. Sim, não somos racistas. Apenas falocratas
ingênuos. (Daniel, 1982, p. 38).

Por outro lado, os discursos sobre a sexualidade e o género foram


evitados pelas organizações políticas, pois eram vistos como
elemento de divisão.

5.4. O EPÍLOGO DOS DEGREDOS

Na transição democrática, o desterrado ficou excluído do


processo de anistia (Daniel, 1982, pp. 226-227). No Comitê
Brasileiro pela Anistia (CBA) a carta enviada pelo exilado foi
desconsiderada (Daniel, 1982, p. 227). Lida por um grupo de
amigos, a linguagem da epístola foi julgada, segundo relatado
por Daniel (1982), demasiado “literária” e “difícil de ser entedida”
(p. 228). Além disso, um dos participantes decretou que o seu
pedido não devia ser ouvido porque era: “’Simplesmente uma
bicha’ (sic)” (Daniel, 1982, p. 229). Esta afirmação, despertou a
indignação do autor, que retrucou o acontecimento no capítulo
do livro, chamado “Simplesmente”, questionando:

Não que ele dissesse que eu era uma bicha, porque não

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contava novidade. Menos ainda que julgasse que, por bicha,


eu merecia sanções penais: a idéia não é dele. Há séculos o
obscurantismo referenda essa tese. / Impressionou-me que
dissesse: simplesmente. […] Ao meu conhecimento é o maior
VIADÓLOGO do hemisfério. Entende tudo, muito entendido,
porque ele acha que ser bicha é simples de toda simplicidade.
Ele descobriu, singelamente, nos cadinhos da sua alquimia,
que um mortal pode ser bicha e simplesmente. […] Sim,
vou procurá-lo, onde quer que esteja, sábio patriarca, para
humildemente pedir-lhe: Ó, mestre, iluminai-me e contai-
me como, por quais vias da viadologia, conseguistes tal paz,
conseguistes resolver a vossa homossexualidade com tal
simplicidade? / Porque, eu, aqui, olha que foi brabeza. / E
como! (Daniel, 1982, pp. 229-230).

Consequentemente, já em 1979, Daniel (1982) relembra que


participou dos debates sobre a proposta de uma reunião
chamada “Homossexualidade e Política”, advinda da Comissão
de Cultura do CBA (pp. 212-213). Esta proposta causou polémicas
entre os militantes do comitê parisiense, sendo que alguns
barraram a iniciativa (p. 214). Dado isto, Daniel (1982) sentenciou
que: “a forma mais geral de se falar sobre a homossexualidade é o
silêncio. Esta mudez (censura) é dos mais renitentes resíduos do
totalitarismo.” (p. 215). Assim, continua: “O silêncio é a imposição
de um discurso. O silêncio é a forma do discurso duma certa
parcela da esquerda sobre a homossexualidade. É uma forma
de exilar os homossexuais.” (p. 217).

Contudo, salienta que é possível para um homossexual integrar-se


nessa política aplicando a dinâmica da “autocensura” que criaria
um “homossexual calado”, “aceitável”, “educado, comportadinho,
tranqüilizante” (p. 217). Pelo contrário, segundo o autor, o discurso
de quem não se ativer a estes padrões é silenciado e rotulado
como alheio à política (p. 217). Portanto, o militante afirma: “Para
eles, a política trata com classes assexuadas. A classe operária,
como os anjos, não tem sexualidade; segundo eles, é uma classe
etérea, esterilizada, sanitária”. (Daniel, 1982, p. 217).

Nesse mesmo rumo, em 1981, quando a sua pena caiu em


prescrição (Daniel, 1982, p. 12), o ativista voltou para o Brasil,

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instalando-se no Rio de Janeiro. Na construção da nova


democracia brasileira, o autor contribuiu para um debate
afirmativo sobre a sexualidade e o género, empenhando-se
também pelos direitos das pessoas seropositivas. Paralelamente,
participará na política partidária filiando-se ao Partido dos
Trabalhadores e contribuindo, mais tarde, à fundação do Partido
Verde.

6. CONCLUSÕES

Nesta obra podemos reconhecer algumas marcas do devir


do escritor e da sua formação humana e política. No texto é
apresentada uma reflexão autocrítica a respeito do seu percurso
de militante e de guerrilheiro, mostrando a evolução de um
debate, sobre o género e a sexualidade, que se instaurará na
sociedade brasileira posteriormente.

Além disso, neste texto constatamos uma redefinição do conceito


de exílio do sentido próprio ao metafórico. Revela-se pertinente
a metáfora do exílio como fenómeno de estranhamento que
prescinde do deslocamento físico, mas refere-se ao degredo
social derivante das circunstâncias políticas e culturais.

Em relação aos discursos apresentados em Passagem, que


dialogam com perspetivas trazidas em outras obras de Daniel,
são possíveis muitas outras chaves de leitura. Estes livros, de difícil
acesso, estão a despertar, no século XXI, o interesse académico na
recompilação de um património histórico e humano de grande
interesse.

Antes da sua prematura morte em 1992, esta personagem deixou


na terra as marcas de uma vida dedicada aos seus ideais. Entre
estas marcas herdamos relevantes textos de memória, densos
de conteúdo e intensos no uso da palavra, que abriga uma
cartografia das emoções e das razões capaz de desvencilhar
horizontes iluminantes, ofuscados naquela época de escuridão
e de silêncios assassinos.

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NOTAS
1 Entre
elas, são citadas as siglas COLINA (Comandos de Libertação Nacional), VAR (Vanguarda
Armada Revolucionária) e VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), (Daniel, 1982, pp. 48-49).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Themes: A Bio-Critical Sourcebook. (pp.129–34). Westport: Greenwood.

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Brasil do século XX. (pp. 9-15). São Paulo: Ed. UNESP.

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masculinidade revolucionária e luta armada brasileira dos anos 1960 e 1970. Revista anistia
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Lejeune, P. (2006). Qu’est-ce que le pacte autobiographique. [artigo eletrónico]. Disponível em:
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Medeiros, R. P. (2013). Herbert Daniel e as suas escritas de memória: exercícios autobiográficos


e traços estéticos de uma existência (1967 – 1984). (Dissertação de Mestrado). UFPB, João
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Pechstein, I. (2015). Passagem para o próximo sonho de Herbert Daniel e seu lugar na literatura
brasileira pós-regime militar”. Spanish and Portuguese Review.(1), pp. 78–86.

AGRADECIMENTOS
Agradeço a Professora Alva Martínez Teixeiro, Caroline Almeida, Luciana Inhan e o Programa
de Bolsas de Doutoramento da ULisboa pelo patrocínio concedido através da Bolsa de
Doutoramento BD2017, financiada pela Faculdade de Letras e pela Universidade de Lisboa.

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