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Começo pelo Antigo Testamento.

Na fórmula famosa e ainda verdadeira, o


Capital é a própria contradição em processo. Valor que se auto-valoriza sugando o
mesmo trabalho vivo que se empenha em tornar cada vez mais redundante. Em busca de
sobrevida, foge para a frente. A desmedida e a escalada se encontram no seu DNA. Não
surpreende portanto a regularidade com que tende à auto-destruição. Em plano
ciclópico, nas guerras pela hegemonia mundial. Em tais ocasiões, arrasta consigo todas
as classes sociais, anestesiadas em seu antagonismo pelo contágio de tamanha
compulsão para o desastre.
A primeira grande revelação deu-se em agosto de 1914, quando as classes
trabalhadoras, alinhadas com suas respectivas burguesias imperialistas, marcharam para
o matadouro. A derradeira está começando a se desenrolar diante dos nossos olhos. É
bom esfregá-los bem. Recentemente, embandeirados operários americanos da
construção civil se reuniram em Nova York para manifestar apoio a uma guerra de
ocupação que lhes renderá empregos no ramos promissor da reconstrução humanitária.
Seja qual for a agenda oculta da presente guerra, uma coisa é certa: trata-se de uma
guerra sem futuro, se é que se pode falar assim. A prova por absurdo deste fim de linha
transparece já na obscena cegueira de manchetes do tipo: “rápido fim da guerra no
Iraque aumenta otimismo dos investidores globais com os mercados emergentes”. Logo
saberemos.

Caso o século que se inicia testemunhe o recomeço do Grande Jogo para o


controle da Eurásia – quer dizer, a disputa de morte pelo novo dinheiro mundial e
recursos energéticos cada vez mais escassos –, não é inverossímil antever no seu
desfecho algo como um End Game beckettiano para as sociedades industriais, no
prognóstico bem argumentado de Richard Heinberg. Digamos que o desenlace tende
mais para uma ditadura militar global do que par um novo Bretton Woods. Na verdade,
sempre estivemos às voltas com um sistema suicida. Só mesmo por efeito de uma
miragem retrospectiva deixamos nostalgicamente de enxergar na prosperidade dos trinta
anos de consenso keynesiano a vida à beira do abismo termo-nuclear, como se uma não
fosse possível sem a outra, uma economia de preparação permanente para a guerra e a
felicidade material das classes confortáveis. Pois bem: estamos inaugurando uma nova
Era, algo como um Estado de Emergência planetário, em que o triunfo ideológico
avassalador do capitalismo e o seu novo ímpeto suicida correm um na direção do outro.
O espantoso paradoxo de nosso tempo vem a ser a reativação desta esquizofrenia
estrutural. Não há um agente do mercado que ignore o caráter destrutivo da livre
circulação dos capitais num universo essencialmente assimétrico, e no entanto, não
desgrudam os olhos dos monitores. Na boa pergunta de Robert Kurz, por que tanta
indignação com o fundamentalismo dos homens-bomba ao lado de igual confiança cega
no programa demente da economia global de mercado?

Aqui entramos nós. O risco país diminui, o dólar recua, a inflação desacelera e
até já viramos “a estrela dos emergentes no pós-guerra” e contudo é bem provável que
um historiador do futuro intitule o capítulo referente ao período inaugurado pelo triunfo
eleitoral do maior partido de esquerda do ocidente, Crônica de um Suicídio.

No primeiro mês de governo não por acaso falou-se muito em esquizofrenia a


propósito do desencontro sabido: discurso enfático à esquerda, e muita energia no
encaminhamento de políticas ortodoxas. Quatro meses depois, a mudança de rota
assumiu proporções tais que já não é mais possível recusar a hipótese da autodestruição,
nos termos enunciados acima – menos um trivial tiro no pé (esquerdo) em matéria de
política econômica, do que uma fulminante conversão à lógica mortal da crise. Não vou,
nem poderia, discutir alternativas macro-econômicas, nem chorar o leite derramado,
toda a tradição crítica brasileira e latino-americana descartada sem maiores
considerandos. Creio todavia que também interessa e muito identificar a natureza da
mutação quase antropológica em curso, a continuidade por assim dizer “espiritual”
lograda por um sistema de domina;cão social tão acachapante que pode se dar ao luxo
de se perpetuar entregando o comando primeiro a um sociólogo acometido de apoteoso
mental, depois a um líder sindical generosamente empenhado em levar todas as classes
sócias à mesa da comunhão nacional. Tampouco explica muita coisa observar que o
próprio Partido dos Trabalhadores já vinha entregando os pontos há um bom tempo.
Pelo contrário, apesar de todos os pesares, durante a campanha o show de vileza e terror
econômico em que se esmerou a direita prestou o inestimável favor de revelar o
irreconciliável inimigo de classe num adversário eleitoral que apenas vendia paz-e-amor
e outras amenidades. A memória recente deste antagonismo só fez aumentar a
estupefação provocada pela retomada da agenda falida do período anterior e seu cortejo
de racionalizações mambembes.
Não é falso afirmar que a lógica da situação finalmente se impôs e que
beijando a cruz – primeiro na Carta aos Brasileiros, em seguida endossando o acordo
com o FMI, Lula teria selado o seu destino. Também não é falso alegar a herança de um
país arruinado para além da imaginação. Como deve ter pesado igualmente a percepção
de que a eleição foi ganha um pouco por acaso e no centro do espectro político, onde
reinam os temores de uma classe média tão conservadora quanto sua congênere
Argentina, que aliás se prepara para cometer um segundo suicídio, tomada pela mesma
certeza paralisante de que qualquer mudança será sempre para pior. A essa visão se
somaria outra não menos verdadeira de que tal imaginário congelado contagiara amplos
setores das camadas populares.

O que pensar? Aqui uma chave possível para todo esse maldito imbroglio –
infelizmente um tanto remota ou “filosófica”, mas não vejo outra para tamanha
reviravolta. A boa pergunta neste caso talvez seja a mais rasa de todas: afinal, o que fez
a cabeça do núcleo duro do governo? Não se trata de simples adesão a tal ou qual
doutrina, isso é mera conseqüência. Trata-se a rigor de um ritual. Isso mesmo, algo
como uma prática material muito próxima da gesticulação religiosa. E de fato tudo se
passa como se nos defrontássemos com uma verdadeira conversão à “religião da vida
cotidiana”, como Marx se referia à liturgia requerida pelo serviço do Capital. Parece até
behaviorismo, pois “reforço” é o que não falta.

Me explico. Segundo o filósofo Slavoj Zizek, deveríamos reler numa outra


chave a célebre frase de Marx a respeito do modo de funcionamento da ideologia
enquanto falsa consciência: “disso eles não sabem, mas o fazem”. A seu ver, a ilusão
ideológica não se situa no “saber” mas no “fazer”. Reconsideremos por este ângulo o
nosso drama. A primeira vista, o desconcerto atual decorreria da discrepância entre o
que a esquerda no governo efetivamente faz e o que pensa estar fazendo. Seria então o
caso de ajustar discurso e realidade, ultrapassando esta divisão interna etc. Acontece que
não é bem assim, é muito mais grave. Lula e seus companheiros sabem muito bem
como as coisas são, mas continuam a agir como se não soubessem. Durante oito anos
demonstramos a falência de uma receita para o desastre, mas agora vai dar certo... O
osso é bem mais duro de roer porque, ao contrário do grupo dominante anterior, não são
cínicos, não gozam da impunidade de classe que permitia ornamentar o esbulho com
asneiras sociológicas. A boa fé de agora porém é de outra ordem. No esquema proposto,
nos deparamos com uma crença muito especial, pois não se trata em absoluto de um
estado mental interno, mas de “uma crença radicalmente externa, incorporada no
procedimento efetivo das pessoas”. O exemplo de Kafka talvez ajude. Sabemos que a
burocracia não é assim tão onipotente como é representada no universo kafkiano, mas é
esse “exagero” o verdadeiro assunto. Ele não se encontra no que sabemos a respeito,
mas no âmago de nossa conduta efetiva na presença da máquina burocrática, conduta
justamente regulada por uma crença em sua onipotência. Ou por outra, agimos como se
acreditássemos na sua onipotência. Sobre este “como se” ergue-se toda a construção da
realidade. Tal como o rei do exemplo de Marx: “um homem só é rei porque outros
homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam ser
súditos por ele ser rei”. Mas essa “imaginação” está por assim dizer lá fora, sustentando
o vínculo social.

A bizarra teologia materialista do Pascal, redescoberta por Zizek, nos permitirá


entrever ainda melhor o enigma da conversão que está derrubando e desmoralizando a
esquerda brasileira. Como somos “tanto autômato quanto mente”, provas, segundo
Pascal, convencem apenas a mente, enquanto o hábito fornece as provas em que
verdadeiramente acreditamos, daí a sua força, que dobra o autômato que somos. Pois
esse autômato “inconscientemente leva a mente consigo”. Creio que foi este
automatismo que operou o milagre e fez enfim o PT ver a luz. Numa palavra (do
filósofo), se os sujeitos não acreditam, as coisas acreditam por eles. Essa a base mística
da autoridade do Capital. Sabemos que é apenas uma relação social, de exploração
ainda por cima, e que não há nada de mágico nisso, mas agimos como se não
soubéssemos.

Beijar a cruz deve ser tomado nessa acepção pascaliana e materialista.


Voltemos à lógica da situação, ao ABC da política contemporânea, vender confiança
aos mercados e reduzir os custos da incerteza, que podem ser fatais num sistema
desenhado para operar sob a ameaça permanente da morte súbita. Mas como vender
credibilidade sem crer? Vinte anos de ateísmo não recomendam. Tampouco declarações
registradas em cartório. Da esquerda exige-se uma profissão de fé que em princípio ela
não poderia oferecer. Só um milagre. Que afinal aconteceu. Nos termos de há pouco,
encarregaram as coisas, que povoam o mundo religioso da vida cotidiana regulada pelos
mercados, de acreditarem por nós. “Você quer descobrir a fé e não sabe o caminho?
Quer curar-se da descrença e roga por remédio?” acudia Pascal à aflição de uma
consciência de cuja constituição originária inibia a aposta em Deus – “minhas mãos
estão atados e meus lábios cerrados; sou forçado a apostar e não estou livre”. Pois então,
prosseguia, “aprenda com aqueles que um dia estiveram atados com o você e que agora
apostam tudo o que têm”. Religião-cassino, numa palavra, sem falar no comportamento
de drogado do apostador. Conhecemos a receita, a do hábito que dobra o autômato em
nós. Como diria outro filósofo (mais um), confiem no crescimento da composição
orgânica do ser humano, cada vez mais análoga à do próprio Capital. William Randolph
Hearst, o Cidadão Kane, acrescentaria que nunca se perde dinheiro quando se subestima
a “mente” em favor do “autômato”. Voltando ao caminho das pedras: “eles se portaram
exatamente como se acreditassem, recebendo água-benta, mandando rezar missas e
assim por diante. Isso o fará acreditar com muita naturalidade”. Em suma, beijar a cruz
uma ou duas vezes por semana. Quer dizer: “submeta-se ao ritual ideológico, entorpeça-
se repetindo os gestos sem sentido, aja como se já acreditasse, e a crença virá por si só”,
esta a súmula do sistema lotérico de Pascal.

Armou-se em conseqüência no governo algo como um serviço Delivery [ver ao


lado artigo de Leda Maria Paulani e Fernando Haddad]. De tanto entregar o prometido,
com a exata regularidade litúrgica recomendada por nosso consultor ad hoc, a lógica da
aposta na Agenda virou fé, que por sua vez irradia na forma da credibilidade almejada.
Aposta por necessidade de sobrevivência, não há dúvida. Aliás o cerne mesmo da
estratégia de venda da vida eterna concebida por uma gênio do marketing como Pascal.
Há mais ainda, o inestimável conforto de não precisar renunciar às convicções
anteriores. Se a fé que gera credibilidade se materializa num ritual externo, minha
crença íntima pode continuar publicamente animada por reminiscências de esquerda: o
Capital não se queixa, até agradece, pois “objetivamente” estarei rezando. Daí a
sensação de esquizofrenia. Ou de suicídio, apenas o observador se afaste um passo que
seja. O diabo (não há outra palavra) é que o automatismo de um tal sistema de
dominação, justamente por ser impessoal e cego, sempre joga a favor dos exploradores,
mesmo quando os ameaça de destruição. Em cima há sempre mais escolhas do que
risco, reservado com exclusividade aos de baixo.

Fantasia teórica? O raciocínio pode parecer extravagante, porém no fundo nada


mais fiz do que estender democraticamente ao aparelho dirigente, e hoje governante, de
um grande partido de esquerda, o mesmíssimo argumento que o melhor de nossa
reflexão crítica vem desenvolvendo acerca dos derradeiros e assustadores
desdobramentos da sociedade de consumo. Como neste aspecto os sistema não cuida
muito de distinguir elite e massa, é só inverter o raciocínio e verificar que, na sua ânsia
desmedida de gratificação, o consumidor anônimo de todos os dias também se ajoelha
diante das grandes marcas e beija a cruz. E também sabe perfeitamente que a grife é
apenas um nome, e no entanto, procede como se não soubesse. Novamente dissociação
entre sentimento pessoal e agenciamento externo da crença através do rito sumário do
consumo. No final das contas, as conversões espetaculares de partidos de esquerda
pesam bem menos no triunfo atual da contra-revolução capitalista do que o
consentimento de massa gerado por tais práticas materiais. O keynesianismo americano
de guerra mal poderia sufocar o sistema soviético não fosse a corrosão interna do
consumo reprimido pela ditadura da escassez. Aqui o viés auto-destrutivo da atual
“normalidade” capitalista, a junção entre o reflexo pavloviano dos agentes do mercado e
seus operadores políticos e a violenta ilimitação dessa demanda imperativa do consumo
de massa. Uma confluência a tal ponto mortífera que não seria injusto incluir esse
gigantesco exército de crentes numa espécie de extensão da atual máquina de guerra
imperial, que afinal existe para perpetuar essa insaciável fome canina do consumo e seu
custo energético demente. Não penso ser injusto encaixar nessa gravitação de conjunto a
conversão suicida do Governo Lula à ortodoxia econômica. Um alto dignitário do novo
regime afirmou recentemente que uma tal linha justa veio para ficar, pois a crise
internacional seria permanente. Essa a lógica do estado perpétuo de emergência.

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