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CPTL- CÂMPUS DE TRÊS LAGOAS

[0783] HISTÓRIA- LICENCIATURA

Romântico índio, brava nação1


COSTA, Gabrielli Oliveira da2

Resumo: Este artigo pretende discutir a formação de um personagem que representasse e


fosse herói da nação brasileira em cima da figura do indígena neste primeiros passos de
nacionalismo, trazendo a reflexão para o campo da literatura a partir da trilogia indianista de
José de Alencar. Afim de fundamentar esta pesquisa contaremos com diversos autores, como
Maria Odila Leite Silva Dias, José Evaldo de Mello Doin, Dante Moreira Leite, entre outros.

Palavras chave: Indianismo, povos originários, literatura, nacionalismo.

1. Introdução

O estudo na literatura está intimamente ligado à História, os contextos sociais e econômicos


que transformam e guiam a sociedade também influenciam suas produções e em incontáveis
obras nos contam sobre como viviam e o que ansiavam as pessoas de um tempo específico.
No presente artigo vamos lançar um olhar sobre a necessidade específica de constituir um
identidade nacional e de criar um herói perfeito que represente a nação.
Analisaremos então os alicerces para esse movimento, ou seja sua primeira fase no Brasil
onde foram lançadas sobre a figura do indígena, deveras romantizada, idealizada e até mítico,
as expectativas e necessidades de encontrar no meio de tanta miscigenação um símbolo da
nação.
Primeiramente se fará necessário observar o contexto da época recém independente e
imperial, para que assim possamos adentrar no âmbito da literatura e assim entender as obras
analisadas. Feito isso veremos o porquê de ter sido escolhido o indígena como representante e
algumas de suas características idealizadas, para assim podermos comentar o romantismo e
finalmente nos aprofundar nas três obras indianistas de José de Alencar 3 onde finalmente
veremos a fundo as necessidades de uma identidade supridas literariamente.
1
Ensaio realizado como exigência a disciplina de Brasil Império, ministrada pela Prof. Dra. Maria Celma Borges.
2
Graduanda do curso de História na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), campus de Três
Lagoas (CPTL).
3
José Martiniano de Alencar foi um escritor e político brasileiro. É notável como escritor por ter sido o fundador
do romance de temática nacional, e por ser o patrono da cadeira fundada por Machado de Assis na Academia
Brasileira de Letras.
2. Contextualizando

2.1 O romantismo

Foi este um movimento literário iniciado na Europa no final do século XVIII,


"em oposição à objetividade, ao racionalismo e à retomada dos valores clássicos do
Arcadismo, o Romantismo foi um movimento marcado por subjetividade, valorização
das emoções, idealismo, individualismo, busca da liberdade de criação,
espiritualidade, valorização do passado e nacionalismo."4
O que mais representa o romantismo, diz Dante Moreira Leite 5, é o desequilíbrio entre o ideal
romântico e a realidade que se pode atingir, "daí a revolta diante do destino, ou diante das
limitações sociais impostas ao indivíduo, bem como de sua atitude de fuga, ora para o passado
ora para a utopia e os movimentos de libertação." 6 Os românticos desta forma oscilam entre a
nostalgia do passado e o anseio por um futuro diverso, dentre eles podemos encontrar tanto os
libertários, quanto os saudosistas, cujo ideal está localizado na Idade Média ou, ainda mais
cedo, num passado mitológico. É nesta última categoria que lançaremos luz.
Diferente dos movimentos anteriores o Romantismo não se tratava de admirar uma paisagem,
mas sim de revelar uma ligação profunda entre o homem e a natureza. A celebração da
natureza foi estabelecida e levada ao extremo no romantismo brasileiro. A atitude romântica
leva a utopia a dizer o lugar de cada um e com esse par que já estabelecemos de
romantismo/nação estabelecemos junto o par história/utopia. Aqui os personagens deveriam
atender a um conjunto de valores éticos e políticos ao molde de Plutarco 7, onde desenhar a
virtude moral é o único modo de ser considerado um grande homem, este padrão é deveras
bem observado no personagem Jaguarê, posteriormente Ubirajara de José de Alencar.
"Em textos e ícones variados, enunciados empíricos e imagens enunciativas, buscaram
expressar e constituir o "ser brasileiro", como outro, na relação e na diferença, frente
as heranças e características do colonizador português. Assim, de romances, peças
teatrais e músicas, biografias, autobiografias, memórias, textos e pinturas históricas,
das investigações sobre a língua falada e escrita, da crítica das letras e artes,
emergiram alguns dos referentes da terra tomada como pátria e nação." 8

4
GASPARETTI, Thais. Romantismo, in: I- Juca- Pirama, Os timbiras, outros poemas. DIAS, Gonçalves.
Página 09.
5
No cenário da História da Psicologia no Brasil, Dante Moreira Leite apresenta-se como intelectual importante,
tanto pelo conjunto de sua obra inaugural no campo da pesquisa em Psicologia Social, quanto por suas
contribuições no estabelecimento de um padrão de ensino em psicologia.
6
O caráter nacional brasileiro: História de uma ideologia. Página 215.
7
Plutarco ou Lúcio Méstrio Plutarco, ca. Queroneia, 46 d.C. – Delfos, 120 d.C., foi um historiador, biógrafo,
ensaísta e filósofo médio platônico grego, conhecido principalmente por suas obras Vidas Paralelas e Morália .
8
O Brasil Imperial, volume II- 1831- 1870. Página 429.
2.2 A sociedade

É importante ter em mente que a independência em 1822 (separação política da metrópole),


não coincidiu com a consolidação de uma unidade nacional (1840-1850), e muito menos foi
um movimento nacionalista. O que explica o fato de os primeiros movimentos em relação a
constituição de uma herói nacional que vem dos povos originários começou apenas após
1950.
Havia ainda indivíduos com ideias constitucionalistas que queriam e achavam fundamental se
manter unido a Portugal, afinal era daí que provinham os laços que nos ligavam a civilização
europeia, fonte de progresso, renovação e de valores cosmopolitas. Nos próximos tópicos
veremos que nossa separação política nada atrapalhou nesse desague da Europa como
inspiração de civilização e ética já que nossos personagens em suma possuíam suas principais
características semelhantes ou iguais aos ideais europeus.
Tínhamos ainda profundas divergências entre portugueses do reino e portugueses da nova
corte, o que de forma alguma simbolizava uma luta nativista da colônia contra a metrópole,
mas iniciava o processo de colocar Portugal como inimiga. Ainda as severas tensões internas
sociais e raciais não deixavam margem para o surgimento de uma identidade nacional,
consciência esta que só foi conseguida a duras penas e, segundo Maria Odila Leite Silva
Dias9, foi imposta pela nova corte no Rio de Janeiro, dita pelo poder da "vontade de ser
brasileiro". Portanto, a semente da nacionalidade não teve nada de revolucionário, foi
simplesmente a busca pela continuidade da ordem existente.
Nesse período, pessoas voltavam suas inseguranças e um profundo pessimismo em
sentimento de insegurança social e no pavor a população escrava e/ou mestiça. O que aqui já
nos exclui uma possibilidade de representante da nação.
Andando alguns para mais perto dos primeiros lançamentos, vivemos também a chamada, por
José Evaldo de Mello Doin10, Belle Époque caipira onde os ditos brasileiros estavam sedentos

9
Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1961), mestrado em História Social pela
Universidade de São Paulo (1965) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo
(1972). Recebeu o título de Professora Emerita da Faculdade de Filosofia da USP em 2013. Foi Professora
Associada da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, de 1996 a 2013, quando se aposentou. Tem
experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colonial e Império, atuando principalmente
nos seguintes temas: historiografia, teoria da história, história social, história urbana, escravidão, relações de
gênero, da cultura.
10
José Evaldo de Mello Doin é professor Livre-Docente em História Contemporânea desde 2001. Concluiu o
doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 1986. É graduado em História pela
FFLCH-USP. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho -
UNESP/ Campus de Franca.
por modernização a exemplos vindos, mais uma vez, da Europa. Ondas que nos trouxeram o
romantismo, mesmo que este tenha sido na Europa um movimento do século anterior.
Estava em alta, então, o nacionalismo e todo nacionalismo necessita de história ou passado, o
nacionalismo brasileiro precisava, após a independência, de um passado independente de
Portugal e seu passado colonial, pois Portugal era o inimigo o qual precisava-se distinguir.
Mas, leia-se que Portugal de forma alguma significava a Europa em um geral.
Precisava-se então de um herói, alguém que representasse o brasileiro assim como o cavaleiro
medievo representava o europeu.

3. Mas porque o indígena?

Ao vermos as obras indianistas temos a sensação de que os autores, ante a uma confusão
sobre o que representa o brasileiro em um país cheio de povos diversos, olha para um lado e
vêm portugueses que por motivos óbvios não poderiam nos representar. Olhava para o outro e
via negros, que além de virem de outro continente eram escravos e portanto de forma alguma
seria uma opção. Até que ao olhar para frente deparasse com os povos originários que já
estavam aqui, que são filhos dessa terra e a observar deste modo parecem uma escolha óbvia.
Mas de forma alguma esta foi uma escolha assim tão inocente e despreocupada.
Olhando para o passado colonial os autores com ideias românticas buscaram a base moral
sobre a qual deveria estar o perfil nacional, e então os indígenas foram proclamados os donos
da terra, opostos aos invasores portugueses que, como já foi comentado anteriormente, agora
figuravam inimigos. Devemos levar em conta também que existe uma preferência do
romântico pelo que é exótico e distante.
Sobre tudo os povos originários não figuravam ameaça a ordem vigente, sobretudo à
escravatura. A não adaptação do indígena a escravidão se dava pelo seu espírito de liberdade e
sua coragem, ou por sua preguiça. Na literatura prevalece a primeira opção.
"O indianismo apresentava uma imagem positiva do povo brasileiro: amor à liberdade, apego
à terra e a valores individuais." 11 São muitas as passagens que sugerem a coragem, liberdade
e união indissolúvel com a terra, "os escritores, políticos e leitores identificavam-se com esse
índio do passado, ao qual atribuíam virtudes e grandezas."12
Portanto, quem é melhor que o indígena para ser nosso passado glorioso e mítico?

11
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: História de uma Ideologia. Editora Unesp; Edição: 8
(30 de julho de 2017. Página 226.
I

Aqui na floresta

Dos ventos batida,

Façanhas de bravos

Não geram escravos,

Que estimem a vida

Sem guerra e lidar.

— Ouvi-me, Guerreiros,

— Ouvi meu cantar.

II

Valente na guerra,

Quem há, como eu sou?

Quem vibra o tacape

Com mais valentia?

12
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: História de uma Ideologia. Editora Unesp; Edição: 8 (30
de julho de 2017. Página 226.
Quem golpes daria

Fatais, como eu dou?

— Guerreiros, ouvi-me;

— Quem há, como eu sou?


V

Na caça ou na lide,

Quem há que me afronte?!

A onça raivosa

Meus passos conhece,

O inimigo estremece,

E a ave medrosa

Se esconde no céu.

— Quem há mais valente,

— Mais destro que eu?


VI

Se as matas estrujo

Co’os sons do Boré,


Mil arcos se encurvam,

Mil setas lá voam,

Mil gritos reboam,

Mil homens de pé

Eis surgem, respondem

Aos sons do Boré!

— Quem é mais valente,

— Mais forte quem é?13

Portanto quem além deste forte guerreiro para nos representar?

4. A trilogia indigenista de José de Alencar.

Nascido em 1829, José de Alencar teve suas obras imortalizadas com foco em especial em
suas contribuições ao indianismo que todos conhecemos graças as leituras obrigatórias das
escolas.
Um homem conservador e escravocrata, que tem a necessidade de mostrar a arte brasileira, o
que é o Brasil. Nesses três livros ele mostrou o que para ele era cultura brasileira.
Em uma ordem cronológica das histórias começamos com Ubirajara, um indígena que não
teve contato com a civilização europeia; após, O Guarani, onde temos um primeiro contato do
indígena com o branco e por último Iracema, onde o homem branco já está inserido na
sociedade.
Podemos ver nos dois últimos um caráter conservador pois é claro a demonstração de como o
branco é considerado o que deu caráter civilizador, como se os indígenas dissessem algo

13
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama: Os Timbiras e Outros Poemas. O canto do guerreiro, página 101.
como: 'Foi graças aos portugueses que a gente aprendeu como se portar e o que a gente deve
fazer'.

4.1 O amor puro dos selvagens


Vemos nestas obras que o amor do indígena é puro e mais digno que o dos brancos, provo
isso primeiramente com uma passagem de Ubirajara, onde após ter disputado com os mais
fortes guerreiros a mão de Araci, não deseja que a moça fique com ele por ter sido vencida e
sim por querer.
"Jurandir seguiu-a. Ele conhecia a velocidade do pé gentil de Araci, que zombava do
salto do jaguar. Nem que pudesse alcançá-la, o guerreiro o tentaria; depois de
vencedor, queria dever a esposa ao amor dela e não a seu esforço. Disputaria Araci
não só a todos os guerreiros das nações, como a todas as nações das florestas; só à
vontade da própria virgem não a disputaria, pois a queria rendida e não vencida." 14

Mas, para além disso, vemos que desse amor dito puro vem uma devoção cega e até absurda,
como Peri que abdica de ser chefe de sua tribo, deixa a família e sua terra para proteger e
fazer as vontades de Ceci sem mesmo questionar, ou ainda Iracema que ao fugir com Martin e
ter seu irmão enraivecido em seu encalço diz a Martin:
"-Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araquém.
Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta mão, não pela tua."15
Iracema se oferece para matar o próprio irmão para continuar a fuga com o português, assim
como Peri que arrisca a vida lutando com uma onça apenas por que quer levá-la para Ceci ver,
pois esta disse em dado momento que gostaria de ver o animal vivo. "Era feliz: tinha visto sua
senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar." 16 "-Manda;
Iracema te obedece. Que pode ela para a tua alegria?" 17 Além da profunda abnegação de si
mesmo pelo outro, a felicidade destes indígenas dependia apenas de ver a quem amava feliz.
Quem mais digno dos suspiros dos leitores do que estes três? Quem mais agradável de
representar o amor de uma pátria que Ubirajara, Iracema e Peri? Porém, ao analisar as três
obras podemos, talvez, perceber o preconceito escondido ali com os indígenas. O homem
branco se casa com a indígena, o homem indígena toma para si duas esposas de tribos
diferentes porém indígenas como ele, mas o homem indígena não se casa com a moça branca
e sua história em momento nenhum é perpassada por alguma sensualidade como as duas
outras são.

14
ALENCAR, Jóse de. Ubirajara, página 70. Martin Claret; Edição: 3.
15
ALENCAR, Jóse de. Iracema, página 95. Panda Books; Edição: 1ª (18 de dezembro de 2015)
16
ALENCAR, Jóse De. Página 66. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)
17
ALENCAR, Jóse de. Iracema, página 82. Panda Books; Edição: 1ª (18 de dezembro de 2015)
4.2 Aparência, nobreza e o mito fundador
"Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos
dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos
exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte mas
bem modelada e guarnecida de dentes alvos, davam ao rosto pouco oval a beleza
inculta da graça, da força e da inteligência."18

"— Ela não é mais doce do que Iracema, a virgem dos lábios de mel, nem mais formosa!
murmurou o estrangeiro."19
O próprio José de Alencar afirma ter copiado sua descrição dos indígenas dos cronistas e de
ter escolhido as que os diziam mais robustos, fortes e altos. Apenas o considerado melhor na
cultura poderia vigorar.
Além de amplamente belos esses indígenas eram nobres, D. Antônio de Mariz afirma
convicto que Peri é um cavalheiro português no corpo de um selvagem,
"por acreditar que o autor do aclamado épico "não soube aproveitar todas as belezas
que lhe ofereciam os costumes e tradições indígenas", fez de o guarani um meio de
afirmar a força simbólica que via não só nos costumes e tradições indígenas, mas
também na herança portuguesa- de modo a transformar o encontro de ambas na base
de afirmação de uma nação forte e original."20

Mais para frente o mesmo personagem faz uma afirmação parecida dessa vez em relação a
todos os nativos os dizendo como capazes de grande generosidade e de estímulo nobre.
Tamanha nobreza não remete aos romantizados cavaleiros medievos? Em O Guarani temos
todo o ambiente medieval transferido para o período colonial, para além disso, o indianismo
de José de Alencar cria uma idade média brasileira o que, sobretudo, é uma forma de dar
conteúdo histórico ao nacionalismo, que em Iracema vai para mais longe colocando no
ambiente da lenda o nascimento da nacionalidade. "Iracema recua ainda mais, e a intenção
consciente ou inconsciente de Alencar só pode ter sido apresentar o passado mítico da
nacionalidade, simbolizado no casal que se encontra como no Paraíso: o branco e a índia." 21
E assim como em Iracema, também encontramos o mesmo mito de harmonia simbólica entre
diferentes mundos entre Peri e Ceci, que ao se salvarem em um tronco de árvore de uma
enchente, representação possibilidade de um futuro vigoroso.

18
ALENCAR, Jóse de. Página 37. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)
19
ALENCAR, Jóse de. Iracema, página 39. Panda Books; Edição: 1ª (18 de dezembro de 2015)
20
Affonso, Leonardo; Pereira, Miranda. A realidade como vocação: literatura e experiência nas últimas décadas
do império. in: O Brasil imperial. Grinberg, Keila; Salles, Ricardo. Volume 3- 1870-1889. José Olympio LTDA,
Rio de Janeiro, 2014. Página 280.
21
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: História de uma Ideologia. Editora Unesp; Edição: 8 (30
de julho de 2017. Página 227.
4.3 Inferioridade e selvageria
E mesmo com toda a nobreza, beleza e devoção do índio Peri este ainda é tido como
selvagem, prova disso é Ceci exercer seu domínio sobre ele para o proteger de seus instintos,
ou do próprio Peri ter medo de denunciar Loredano por ser a palavra de um branco contra a de
um indígena.
"Álvaro fitou no índio um olhar admirado. Onde é que este selvagem sem cultura aprendera a
poesia simples, mas graciosa; onde bebera a delicadeza de sensibilidade que dificilmente se
encontra num coração gasto pelo atrito da sociedade?" 22 Pode-se ser forte e guerreiro, até
mesmo engenhoso mas de forma alguma erudito e culturalmente rico, isso estranhado pois
estas características "são únicas" do homem branco.
E obviamente Álvaro se surpreende por que como já dito, apesar de tudo, Peri é um selvagem
e não se espera erudição de tal. Lembro-me de ficar chocada durante a leitura quando o filho
de D. Mariz mata uma indígena por acidente e além de nada ser feito, nem mesmo enterrarem
a moça, os acompanhantes do rapaz ainda zombam da moça morta comentando da "qualidade
da caça". No fim das contas não é assim tão surpreendente, pois se até o indígena aceito em
seu meio como amigo não tem a palavra mais forte que a de um desconhecido, por que um
outro indígena, visto como bárbaro, receberia um tratamento melhor?
E sobre a barbárie não se economizam palavras durante a narrativa, "— A morte que nos
espera é horrível; serviremos de pasto a esses bárbaros que se alimentam de carne humana;
nossos corpos sem sepultura cevarão os instintos ferozes dessa horda de canibais!..." 23, e ah se
fossem palavras vindas apenas de uma homem branco, de forma alguma, vêm também de Peri
"Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião, que se alimentava
de carne humana e vivia como feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a
idéia de que pudesse vir assaltar a casa de D. Antônio de Mariz."24
Veja bem a descrição de Peri muito se assemelha com o que afirma Vespúcio: "essa gente
não tem lei, nem fé, nem rei, não obedece a ninguém, cada um é senhor de si mesmo. Vive
secundam maturam e não conhece a imortalidade da alma." 25 A opinião de brancos e do
próprio indígena então vai de encontro ao que se pensava sobre os indígenas dois séculos
antes.
4.4 A religião
22
ALENCAR, José De. Página 151. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)
23
ALENCAR, José De. Página 290. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)
24
ALENCAR, José De. Página 100. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)
25
CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de Índios do Brasil: O século XVI.
Obviamente trataremos aqui da espiritualidade do homem branco que em dois dos livros foi
colocada como aceita de bom grado e prontamente pelos indígenas que protagonizam, ou são
coadjuvantes das histórias. Primeiro em Ubirajara, apesar de não ter branco algum e portanto,
nem sua religiosidade, temos algumas pequenas referências como o momento que sob o nome
de Jurandir, Ubirajara vai a tribo de Araci conquistá-la de modo muito semelhante ao que fez
Jacó com Raquel na narrativa bíblica.
Já com a presença dos brancos temos a conversão do guerreiro Poti, pois por se considerar
irmão de Martins deveriam os dois terem o mesmo Deus, mas por que não foi escolhido o
Deus de Poti? Esta é claramente uma pergunta retórica.
Em O Guarani toda a relação de Peri e Ceci tem base moral e religiosa, o indígena vê a
menina Cecília como uma santa a quem é totalmente devoto, de modo a mesmo que de forma
chulamente velada o dito fardo do homem branco está posto dentro destas obras.

4.5 A natureza
E por último, mas de forma alguma menos importante, temos a natureza que poderia sozinha
ser feita o grande herói nacional, pois é ela que faz de nossos protagonistas tão perfeitos,
Iracema mesmo é a própria personificação da natureza.
A flora e fauna tão exaltada em todos os livros mas principalmente em Iracema, onde José de
Alencar faz questão de citar vários animais e plantas que se enrolam e findam por ser parte
essencial da narrativa, nos faz vê-la sem defeitos e figura parte principal no posto de
brasilidade, pois a natureza é um dos elementos básicos do nacionalismo, essa terra selvagem,
com essas florestas virgens onde o homem tem a possibilidade de se reverter à sua condição
de inocência.
"Em José de Alencar, que é o maior indianista da prosa, as ideias românticas sobre o índio e a
natureza aparecem explicitadas. A natureza do Novo Mundo é perfeita, e não apenas cria
homens fortes e corajosos, mas também permite a recuperação de pessoas idosas que a
procuram."26
A mãe de Peri é curada pela natureza, assim como o próprio Peri que ao ser alvejado por uma
flecha está quase nas últimas de suas forças quando vê uma árvore
"era uma cabuíba de alta grandeza que se elevava pelo cimo da floresta, e de cujo tronco
cinzento borbulhava um óleo cor de opala que desfiava em lágrimas. O suave aroma que
recendia dessas gotas fez o índio abrir os olhos amortecidos, que se iluminaram de uma

26
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: História de uma Ideologia. Editora Unesp; Edição: 8 (30
de julho de 2017. Página 227.
brilhante irradiação de felicidade. Colou ardentemente os lábios no tronco, e sorveu o óleo,
que entrou no seu seio como um bálsamo poderoso. Sentiu-se renascer Estendeu o óleo sobre
a ferida, estancou o sangue e respirou. Estava salvo."27
"A simples menção a temas como a natureza tropical ou as tradições e costumes indígenas
serviria, dessa perspectiva, como prova do caráter propriamente nacional de uma literatura." 28

5. Considerações Finais

Apesar do leitor muito provavelmente já imaginar ou até saber, a realidade verdadeira dos
povos originários estava muito longe da romântica. Vemos durante o Império um interesse
apenas em catequizar e civilizar os indígenas, visto num parecer do visconde de Olinda em
1845 que levou ao único "documento indigenista de todo período imperial" ou "lei indigenista
básica de todo período imperial" que vigorou até 1889, projeto este que com muitas ressalvas
foi aprovado. Apenas o marquês do Paraná demonstrou alguma preocupação com os
arrendamentos de terras indígenas por causa dos abusos que eles poderiam sofrer, mesmo
assim votou a favor do projeto.
"A nova legislação criou uma estrutura de aldeamento indígenas, distribuídos por um
território, sob gestão de um diretor-geral de Índios, nomeado pelo imperador para cada
província. Cada aldeamento seria dirigido por um diretor de aldeia, indicado pelo diretor
geral, além de um pequeno corpo de funcionários. Cabia aos missionários a tarefa relativa à
catequese e à educação dos índios, enquanto os demais funcionários imperiais se
encarregariam da vida cotidiana, incentivando o cultivo de alimentos, monitorando os
contratos de trabalho, mantendo a tranquilidade e o policiamento dos aldeamentos, regulando
o acesso de comerciantes, contando índios ainda não aldeados e controlando as terras
indígenas, entre muitas outras atividades previstas."29
A demanda por uma política que desse conta da demanda indígena estava alta, e o império
tinha dificuldade de achar uma solução definitiva. O regulamento foi um desastre para os
povos indígenas e consolidou o processo de expropriação de suas terras por todo território do

27
ALENCAR, José De. Página 84. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)
28
Affonso, Leonardo; Pereira, Miranda. A realidade como vocação: literatura e experiência nas últimas décadas
do império. in: O Brasil imperial. Grinberg, Keila; Salles, Ricardo. Volume 3- 1870-1889. José Olympio LTDA,
Rio de Janeiro, 2014. Página 274.
29
Sampaio, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. in: O Brasil imperial. Grinberg, Keila; Salles,
Ricardo. Volume 1- 1808-1831. José Olympio LTDA, Rio de Janeiro, 2014. Página 178.
império. Perdigão Malheiro afirmou que as aldeias se mantinham a muito custo em miséria e
falta de vestuário.
É obvio que indígena real não figurava personagem para literatura, muito mesmo para ser
visto como o herói da nação. Qual seria o papel do indígena nessas primeiras décadas no que
diz respeito a construção da nova nação? Aparentemente nenhuma além de fornecer uma
imagem romantizada para a constituição de uma identidade fajuta. Ao mesmo tempo que se
fazia guerra contra os povos originários pelo país, reivindicava-se um passado comum de
mestiço, para destacar a identidade desta nova nação.

Referências Bibliográficas

https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_de_Alencar visto por último em 18/11/2019 às


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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932002000300012 visto por


último em 18/11/2019 às 16:18.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Plutarco visto por último em 18/11/2019 às 16:24.

http://historia.fflch.usp.br/docentesaposentados/mariaodila visto por último em 18/11/2019 às


16:29

https://www.youtube.com/watch?v=SUsBeE6STdg&t=264s visto por último em 19/11/2019


às 17:00.

AFFONSO, Leonardo; PEREIRA, Miranda. A realidade como vocação: literatura e


experiência nas últimas décadas do império. in: O Brasil imperial. Grinberg, Keila; Salles,
Ricardo. Volume 3- 1870-1889. José Olympio LTDA, Rio de Janeiro, 2014.

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Gonçalves.
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: História de uma Ideologia. Editora
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SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. in: O Brasil imperial.
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CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de Índios do Brasil: O século XVI.

NAXARA, Márcia Regina Capelari. Estrangeiro em sua própria terra- representações do


brasileiro.

FONTES

ALENCAR, José De. O Guarani. Martin Claret; Edição: 4 (24 de julho de 2012)

ALENCAR, José de. Iracema. Panda Books; Edição: 1ª (18 de dezembro de 2015)
ALENCAR, José de. Ubirajara, página 70. Martin Claret; Edição: 3.
DIAS, Gonçalves. I-Juca Pirama: Os Timbiras e Outros Poemas. O canto do guerreiro.

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