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ABRASIL ADE

VE E-AMARELA:
nacionalismo e regionalismo
paulista
Mônica Pimenta Velloso

gler que previa o fim da cultura euro­


A construção da nação: péia e a aurora do novo mundo.
arte e política Cai por terra, portanto, o mito libe­
ral da 'era internacional que tornava
obsoletos os nacionalismos. A idéia da
clima do primeiro pós-guerra de­
grande comunidade que se auto-regu­
termina alterações fundamen­
lava com perfeição, distribuindo eqüi­
tais na forma de se pensar o Brasil.
tativanlente a ordem e o progresso, é
Modificado o quadro internacional, alta­
desmascarada. O Brasil vê-se, então,
ra-se conseqüentemente a oonfiguração
frente a frente com os seus problemas.
da parte Brasil. A crise de valores que
sacode o cenário europeu tem seus refle­ E eles são graves: quistos de imigran­

xos imediatos aqui. Recorrendo às me­ tes, vazios demográficos, amplidão de


táforas organicistas, nossos intelectuais território.. I Este quadro denota clara­
exprimem a idéia da velha e da nova mente a fragilidade da nossa situação

civilização: o Brasil é o organismo sadio no panorama internacional, amplian­


e jovem, enquanto a Europa é a nação do o fantasma da cobiça externa.
decadente que deve fatalmente ceder Em 1915, na conferencia "A unidade
lugar à América triunfante. Alguns in­ da pátria",MonsoArinos prega a neces­
telectuais interpretam o contexto como sidade de uma campanha cívica desti­
uma confirmação da análise de Spen- nada a criar a nação. Se o Brasil tem

Nota: Este texto roi C$Crilo em 1084 c pubJicodo pela primeiro vez em 1987 no série "Textos CPOOC".
A versão origi nnl sor reu flq ui (l1�UllS cortes c leve pn8J�ngen8 sintelizndas.

ElJtlldo.llistór;cos, Rio de JOllCiro. vaI. 6, n. 11, 1903, P. 89-1 t2.


90 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1093/11

território, não tem ainda o que se pode da mobilização militar. A defesa da na­
2
chamar de nação. cionalidade brasileira, segundo ele, só
Esta é a palavra de ordem da época: pode ser feita através do Exército, úni­
criar a nação. Daí o tom de urgência ca instituição capaz de restaurar a or­
assumido pelo debate intelectual então dem no país. Seus discursos assinalam
instaurado com vistas à descoberta de a união entre intelectuais de inclina­
um veredito seguro, capaz de encami­ ção militarista e oficiais propriamente
nhar o processo da organização nacio­ ditos. O patriotismo é interpretado co­
nal. O problema da identidade nacio­ mo um dever cívico, cabendo aos inte­
nal assume lugar de relevo. Encontrar lectuais - elementos da vanguarda so­
um tipo étnico específico capaz de re­ cial - assumi-lo integralmente.
presentar a nacionalidade torna-se o Ao desembarcar da sua viagem à
grande desafio enfrentado pela elite Europa, em 1916, Bilac pronuncia um
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intelectual. discurso alertando para a urgência da
A Revista do Brasil, lançada em mobilização intelectual em torno do
1916, reflete esse debate, propondo-se ideal nacionalista. Duas questões ad­
efetuar um reexame da identidade na­ quirem relevo em seu pronunciamento:
cional. Seu editorial de lançamento es­ de um lado, a necessidade de se refor­
clarece que o objetivo da publicação é mular a função da literatura na socie­
criar um núcleo de propaganda nacio­ dade; de outro, o novo papel a ser assu­
nalista. Gilberto Amado, em discurso mido pelo intelectual. Assim, a literatu­
parlamentar pronunciado no mesmo ra brasileira deve deixar de ser apenas
ano, conclama o brasileiro a assumir a um ''templo da arte" para se transfor­
sua verdadeira identidade: "Sejamos mar em uescola de civismo". Para levar
.f
cafuzos ou curibocas resignados rocu­ a efeito tal princípio, o artista precisa
rando honrar o nosso sangue...' abandonar sua '�rre de marfinl" e pôr
1bmados deste sentimento de orgu­ 05 pés na terra, que é onde se decidem

lho e resignação, os intelectuais brasi­ os destinos humanos. Porque dotados


leiros se auto--elegem executOle5 de urna de dons divinatórios, os intelectuais são
missão: encontrar a identidade nacio­ eleitos os '1egítimos depositãrios da ci­
nal, rompendo com um passado de de­ vilizaçáo", tornando-se, portanto, os
pendência cultural. Verifica-se, portan­ mais indicados para ensinar o amor pela
H
to, uma mudança radical na forma de pátria Nesta perspectiva, eles devem
conceber o papel do intelectual e da se transformar enl educadores, exer­
literatura. A idéia corrente é a de que o cendo uma função eminentemente pe­
intelectual deve forçosamente direcio­ dagógíca na sociedade.
nar 6118S reflexões para os destinos do As idéias de Olavo Bilac encontram
país, pois o momento é de luta e de repercussão imediata entre os intelec­
engajamento, não se admitindo mais o tuais que, mais tarde, comporiam o
escapismo e o intirnismo. Cabe, então, grupo modernista Verde-Amarelo. Me­
ao intelectual evitar os temas de cunho notti Del Picchia defende a idéia de que
pessoal: ele deve deixar de falar de si o intelectual deve se portar como um
mesmo para falar da nação brasileira. mestre em relação às multidões, que
O marco valorativo da obra literária necessitam ser educadas, assim como
passa a ser o grau maiOr ou menor com as crianças. E é esta relação que vai

que exp'ressa a terra e a sociedade bra­ assegurar o progresso e a cultura.


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sileira. Em Olavo Bilac esse naciona­ Além de mestre, o poeta deve assumir
lismo literário venl associado à questão O papel de soldado a serviço da pátria,
A ORASIUDADE VERDE·AMARELA 91

defendendo-a das invasões alieníge­ Na constituição do projeto do Estado


nas. O nome de D'Annunzio é constan­ nacional, literatura e política cami­
temente mencionado por Menotti como nham juntas como il'liIÃs siamesas. A
exemplo do "poeta-soldado" que soube arte é definida como o saber mais capaz
abdicar de sua individualidade para de apreender o nacional e, portanto, o
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lutar pelos ideais patriótic06. mais apto para conduzir a organização
No período pás-guerra, a questão da do país. O mito cientificista do progles­
organização nacional passa a figurar sa indefmido e todo o seu corolário de
como tema obrigatório no debate inte­ valores já haviam sido desmascarados
lectuaL Verifica-se uma refonnulação nos estertores da guerra. Razão, leis,
total de valores, na qual a política ad­ desenvolvimento linear, pa drões civili·
quire papel fundamental. Alberto 'lbr­ zatórios etc. passam a ser vistos como
res aparece como um dos principais representações ultrapassadas de uma
guias da nova geração, mais pelo tom é poca dada como encenada. Neste con·
de urgência de sua obra e pela ênfase texto, as teorias de Bergson, a valora­
conferida à questão nacional do que ção da intuição e da emoção mostram­
propriamente por suas propostas polí­ se mais atraentes, por oferecerem um
H novo lugar à arte no campo do conhe­
ticas.
cimento. Lidando com a emoção e a
O depoimento de Cândido Motta Fi­
intuição, a arte passa a ser consagrada
lho registra o estado de espírito que
como depositãria de valores supe­
reinava no seio da intelectual idade bra­
riores, devendo sair da esfera do puro
sileira sob o impacto da Primeira Guer­
9 intimismo para exercer uma ação mais
ra Mundial. O autor caracteriza sua
dinãmica no seio da sociedade.
geração como sendo essencialmente pc-­
lítica por ter ficado entre duas civiliza­ Tais idéias tendem a adquirir força
ções. Esta posição dramática teria leva­ crescente entre 08 intelectuais brasi­
do a que o problema da organização leiros por tornarem patente a decadên­
nacional assumisse primazia absoluta. cia dos valores civilizatórios europeus.
A arte deixaria de ser um caprichoso A visão pessimista do ser nacional, o
subjetivismo para interferir na própria atraso econômico do Brasil e os proble­
organização da sociedade. Procurando mas racial e climático são repensados
desfazer a tradicional idéia da incompa­ em função das modificações determi­
tibilidade entre a arte e a política, Cân­ nadas pelo panorama internacional.
dido Motta Filho observa que ambas se Verifica-se, então, uma tentativa de
voltam para o ser humano. Enquanto a reverter a situação. Os fatores negati­
arte se dirige para a expressão, a políti­ vos atribuídos à nossa civilização não
ca se volta para o exercício da conduta. o são, na realidade. Se aparecem assim
Além do mais, argumenta ele, a política é porque as elites brasileiras se pensa­
não é destituída de raízes metallSicas ram e pensaram o seu país de acordo
conforme a concebiam os positivistas, com a mentalidade européia. E se esta
na medida em que trata da questão do demonstra sua falência, sua inaptidão
lO para gerir a comunidade internacio­
destino. A arte, por sua vez, também
tem o seu lado pragmático, pois é atra­ nal, não há mais sentido em continuar
vés do sonho que é possível projetar e tomando-a como modelo.
dar margem à realização. Neste senti­ Nesse ambiente de reclJsa ao aliení­
do, é nos "povos poéticos", como o brasi� gena, considerado como responsável pe­
leiro, que encontramos as grandes reali- lo ceticismo que se abatera sobre as
- 11
zaçoes. elites brasileiras, cresce a onda naciona-
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lista. Alceu Amoroso Lima observa que capaz, portanro,de difundir o moderno
o impacro do pc5s-guena no nosso meio pensamenro brasileiro. Mais do que
intelectual teria incentivado a "volta às qualquer outra região,o estado paulista
nossas raízes,que mais tarde n06 iriam vive diretamente os impactos da imi
12
..

levar à reação mode rnis "


ta . gração européia,com a expansão do café
dando surgimenro ao proletariado e
subproletariado urbano. Em meio a este
clima de intensa agitação social, política
São Paulo: símbolo da e intelectual nasce o movimenro moder­
modernidade e brasilidade nista, procurando expressar,simbolica­
mente,o fluxo da vida moderna.14 Para
Em nenhum ponro da nossa pátria os intelectuais que dele participam tra­
ainda encontramos reunidas tantas ta-se naquele momenro de fazer a
possibilidades, tantos farores para a "aprendizagem da moderrudade" nos
elabo,,!ção de uma grande cenlIm civilizatórios, que é onde ela se
nacionalidade. E em São Paulo que manifesta. A revista Klaxon, considera­
está se formando a grande intuição, o da porta-voz da geração de 22, elege a
gran.<Ú! corweito de pátria. arte de Pérola White como o paradigma
A Carneiro Leão -10.03.1920 da modernidade, por traduzir os valores
do século XX que o Brasil precisa absor­
ver, com vistas à atualização de sua
No início da década de 1920, o Brasil
produção cultural. Se a figura de Pérola
vive uma situação de otimismo. A de­
White é """"lhida como símbolo do
cadência da civilização européia é in­
mundo moderno,a de Sarah Bemhardt,
terpretada como o advenro promissor
em contraposição, incorpora 05 valores
de uma nova era, na qual a América
do passado. Vejamos os dois perfis:
deveria exercer o papel de líder mun­
dial. São Paulo vivencia mais intensa­
mente este clima. Argumenta-ee que o Pérola White é preferível a Sarah
desenvolvimenro do estado o coloca em Bernhardt. Sarah é tragédia, roman­
luga,: de vanguarda no conjunro nacio­ tismo sentimental e técnico. Pérola é
nal. E lá, portanto, que se experimen­ racIOCLTUO, z.nstruçao, esporte, rapL-
. . " - .

tam agudamente as maravilhas e 85 dez, alegria, vida. Sarah Bernhardt


crises da modernidade. A revista Papel = século XIX. Pérola White = século
e dirigida por Menotti dei Pic­
Tinta, XX .15
.

chia e Oswald de Andrade, apresenta


este registro otimista do Brasil: Cabe,portanro, à arte brasileira cap­
tar estes valores,registrando o dinarnis­
... uma rajada de energia conduziu o mo do momento. Porém, o processo de
braço rural às zonas fecundas do ser­ atualização nem sempre se dá de forma
tão,já axadrezadas pelos trilhos das pacífica. Ele é conflituoso e às vezes
estradas de fello e de rodagem; as chega a ser trágico, na medida em que
cidades densas de uma população implica a ruptura com 06 nossos valores
ávida de trabalho rornaram-se cen­ tradicionais. Em "Novas correntes esté­
tros febricitantee de progresso e de ticas ", Menotti dei Picchia exprime tal
. 13
rIqueza. idéia argumentando que a arte deve
refletir o "espíriro de tra�" que se
Este centro febricitante é São Paulo, debate na cidade tentacular.16 O proces­
núcleo do pro gI'esso econômico e social, so de urbanização constitui a tônica e o
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 93

motivo de inspiração dessa fase do mc>­ le. No cosmopoHtismo da cidade os in­


vimento modernista, na qual São Paulo telectuais paulistas entrevêem o novo
se confunde com o próprio Brasil. De Brasil que se anuncia. Centro indus­
acordo com esse espírito ...tão os livros trial, berço do movimento modernista,
de Mário de Andrade Paulicéia desvai­ São Paulo corporifica o espírito do pro­
rada (1922) e de Oswald de Andrade Os gresso e da modernidade.
condenados, obras que traduzem a per­ Menotti dei Picchia, nome já conhe­
plexidade, a velocidade, o desvario, en­ cido nacionalmente através de 6Uas
fim, a própria tragédia existencial e sc>­ crónicas no Correio Paulist=, histo­
eial acanetada pelo processo de indus­ ria com entusiAsmo as inovações esté­
trialização-urbanização da grande cida­ ticas introduzidas pelo movimento,
de. apontando as obras de Mário e de Os­
Concomitante ao clima de tensão, wald de Andrade como símbolo da nova
instala-se também o de euforia. Os jor­ geração paulista. Oswald discursa na
nais da época enaltecem o proglessO da cerimônia de homenagem prestada a
cidade de São Paulo, comparando-a Menotti por ocasião do lançamento de
19
com as grandes capitais européias. sua obra As máscaras. Nessa etapa
Seus jardins públicos, avenidas, tea­ inicial do movimento modernista os
tros e cinemas nada ficam a dever a05 paulistas estão unidos em torno de
de Paris; a construção da catedral no uma questão: combater seus adversá­
largo da Sé obedece ao modelo da ca te­ rios passadistas para realizar a revo­
dral de Viena; o seu povo é exem· lução literária. São Paulo, segundo pa­
plar.Enfun, a idéia é recorrente: São lavras de Oswald, surge como símbolo
Paulo representa o exemplo da moder­ da prometida Canaã que irá acolher as
nidade e a imagem do país futuro.17 futuras geraçôes. De lá, portanto, irra­
Alcântara Machado, tido como um dia o espírito moderno destinado a to­
dos cronistas mais perspicazes da vida mar conta de todo o país.
paulista, não esconde o seu encanto A visão ufanista de São Paulo traz
pela urbanização. um aspecto interessante: a desqualifi­
cação empreendida em relação ao Rio
(...) em Santa Cecília as caSQS se aras­ de Janeiro. A promiscuidade de suas
tam respeitosamente para as rUAS praias, o aspecto anárquico de sua eco­
passarem à vontade. Higienópolis se nomia, a futilidade dos hábitos cario­
enche de sombras. Do Piques atã a cas e a violência e amoralidade do car­
avenida é um despropósito de prédios naval são objeto de inúmeras crônicas
se acotovelando. No Piques são pré­ e char� publicadas no Correio Pau­
20
dios mesmo. Na avenida são palace­ list=. Até a questão da diferença
tes. E aí estão os anúncios de novo: climática entre os dois estados aparece
Cheurolet, Lança,.Perfume Pienvt, como fator favorável ao progresso pau­
Cruzwaldina, Sabonete Gessy. Es­ lista. O clima frio propiciaria o confor­
verdeando, azulando e aVel'lIlelhan­ to, a intimidade e a concentração de
do, sobretudo avermelhando de alto energias no trabalho, enquanto o calor
a baixo a arquitetura embaralha- favoreceria a displicência e a promis­
18
da. cuidade das ruas e praças.21
O nome do estado paulista adquire
A linguagem cinematográfica regis­ significado simbólico: como o santo bí­
tra o dinaolismo das transforll18ções blico que se vê investido de uma missão
que fazem da província uma metrópo- sagrada, cabe a São Paulo levar sua
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mensagem ao Brasil, notadamente ao A revista Brasilea, fundada em 1917,


Rio de Janeiro, vítima do ceticismo.22 pertencente ao grupo nacionalista cató­
São Paulo aparece sempre como a terra lico, também reforça a oposição São
do trabalho, do espírito pragmático, da Paulo-Rio de Janeiro. Defendendo o
responsabilidade e da seriedade. Mais '1>rasileirismo puro e integral", esta pu­
ainda. 'Iem o poder da síntese por ser blicação desqualifica o Rio de Janeiro,
capaz de unir energias aparentemente identificando." como centro essencial­
contradit6rias: a da ação e a da criação. mente cosmopolita e corrupto, voltado
Por isso São Paulo é simultaneamente para fms puramente materiais.2G
Hércules eAp,<?lo, é um ''titã com miolos Através da Revista cio Brasil os inte­
de Minerva".Z� Como se vê, o manejo de lectuais paulistas continuam defenden­
recursos simbólicos destinados a 'ideo­ do o mesmo ponto de vista, que vem a
logizar' a superioridade paulista atinge constituir a t6nica do artigo de Rubens
dimensões surpreendentes... do Amaral ''Manifestações do naciona­
A disputa estabelecida entre São lismo". Nele, o autor apresenta São Pau­
Paulo e Rio de Janeiro não se restringe lo como o '}lai rico do Brasil vadio",

apenas ao período mencionado, mas observando que o grande maI do país é

apresenta linhas de continuidade no a falta de integração. Cabe ao estado


paulista, na qualidade de pai, promover
corpo do nosso pensamento político.
a unificação nacional através da valori­
Exemplos: as obras de Euclides da Cu·
zação das tradições culturais brasilei­
nha e de Lima Barreto, autores mobili­
ras. De acordo com esse espirito, a revis­
zados pela questão racial que tém a
ta anuncia a promoção de um concurso
preocupação de eleger um tipo étnico
literário, voltado para a pesquisa do
representantivo da nacionalidade. Eu­
folclore regional, sugerindo como temas
clides aponta São Paulo como o foco da
as quadrinhas populares e as lendas
hist6ria do Brasil, pois lã se encontraria
sobre o Saci-Pererê e o Caipora.27
a Usede da civilização mameluca dos
A preocupação com a valorização das
bandeirantes". Já Lima Ban-eto elege o
nossas tradições culturais e folclóricas é
Rio de Janeiro como modelo da socieda­
plenamente encampada pelos moder­
de mestiça, capaz de garantir o padrão
nistas. Recuperá-las significa construir
de homogeneidade étnica do país. Para
a identidade brasileira, sem a qual seria
Lima, São Paulo é a imagem da opres­
impossível ao país afirmar sua autono­
são do Brasil, g'r ser a "capital do espí·
mia no panorama internacional.
rito burguês".
Através da crítica aos gêneros literá­
Desde há muito, os intelectuais pau­
rios herdados do século anterior esboça­
listas vinham insistindo na questão d a
se um quadro do ideário modernista. Se
hegemonia do seu estado, destacando­ nele predomina o acordo em discutir
o como o centro dinâmico da nação. Tal certas questões- como a da atualização
espírito presidira a criaçáo do Centro cultural-já se delineiam o que seriam
Paulista, em 1907, no Rio de Janeiro. mais tarde as diferenças entre os diver­
Contando com o respaldo do governo sos grupoe. Daí a importância de recons­
estadual, o centro promove uma série truir as linhas meshas do debate ocor­
de eventos, como conferências, soleni· rido entre 1920 e 1924, no qual se ma­
dades cívicas, reuniões, exposições so­ nifestam as oontrovérsias relativas ao
bre a indústria paulista etc., com o regionalismo que mais tarde iriam se­
objetivo de instituir na capital um parar o grupo Verde-Amarelo das de­
"centro de convergência paulista".25 mais cotlentes.
A BRASILlDADE VERDE·AMARELA 95

Os modernistas são unânimes no modernista, o riso deeempenha uma


combate às estéticas parnasiana, realis­ função catãrtica, voltada pira a libera­
ta e romântica. O parnasianismo é des­ ção de falsos conceitos eetéticos, étiOO8 e
cartado enquanto gênero literário ultra­ sociais. Exige-se uma nova consciência
passado por aprisionar a linguagem n08 social capaz de refletir a complexidade
cânones rigid08 da métrica e da rima. A do mundo moderno. Menotti também
liberdade de expreesão é a bandeira de combate o romantismo argüindo a nee
luta do movimento, que reivindica a cessidade de atualiwçãD do ser nacio­
criação de uma nova linguagem, capaz nal. No entanto, eeta atualização assu­
de exprimir a modernidade. me um tom às vezes dramático e dilacee
Thmbém o realismo é criticado, na rante quando o autor sente
medida em que incidiria sobre valOles
tid08 como retrógrados, tais como o cien­ ( )
ou uma necessidade instintiva de
tificismo. OswalddeAndradese insurge apunhalar ( ) esse q"aM duende ( )
u. .u

contra a pintura figurativa do quadro de que, de quando em quando, surge à


carneiros que se "não tivesse lãzinha tona do (seu) ser atualizado para
mesmo não prestava". Para o autor, a relembrar o país sempre intimamen­
utopia é uma dimensão do real, porque te sonhado da cisma e da sentimen­
3O
não é 8Pf!:Das sonho, mas também um talidade.
28
proteeto. Assim, o ideal figurativo, a
extremada ê nfase no realismo são con­ A incorporação à ordem moderna é
siderados barreiras à criação artística. compreendida como urbana e induse
Para Menotti, a crítica ao realismo trial. Por isso torna-se dramático ter
adquire uma outra conotação. Ele as­ uma Ualma de caboclo'" aprisionada na
31
socia realismo a pessimismo, obser­ "gaiola anti-higiênica da cidade". O
vando que 05 autores realistas dão acesso à modernidade significa então o
sem pre uma visão distorcida do nacio­ acesso à racionalidade, ao pragillatise
naL Distorcida por sobrecarregar seus mo, enfim, à ética capitalista. Através
aspectos negativos, gerando sentimen­ de sua coluna no Correio Paulistann,
tos de derrota e incapacidade. Em Juca Menotti defende esses valores e plei­
Mulato (1917), o autor procura criar teia a morte necessária do romantise
umA nova versão do "Jeca-Tatu", fugin­ mo. Em ''0 último romântico", o autor
do ao estilo realista de Monteiro Loba­ lamenta o caráter anacrônico de um
to, que retrata o atraso e a miséria do suicídio amoroso, argumentando que
caboclo, em oposição frontal à ideologia os novoe tempos exigem que o amor
da grandiosidade e da operosidade passe para o domínio de uma simples
paulista, tão veementemente defendi­ operação financeira, devendo essa
da pelos verde-amarelos. Aobra de Me­ mesma dinâmica OCOI'ler no nível da
notti acaba derivando, todavia, para vida pesso al, social e política.
uma "idealização de base sentimen­ Menotti propõe, então, o "patriotis­
tal", sendo a vida do caboclo descrita de mOeprático" baseado no lema "Amar o
29
modo lírico e sonhador. Brasil é trabalhar". Na era industrial,
A objeção ao romantismo incide na é preciso sacrificar o lirismo e o "nirva­
ênfase que este dá ao sentimento, na niSIDO contemplativo" e 886umir uma
sua tendência à tragédia e à morbidez. perspectiva eminentemente utilitaris­
Agora, a "alegria é a prova dos nove". ta e pragmática. A natureza deve dei­
Oswald é categórico: "E preciso extírpar xar de ser, confol"me o fora no roman­
as glândulas lacrimais". Na literatura tismo, objeto de culto poético para se
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transformar em objeto de lucro e de vão se situar as divergências quanto à


investimento. A poesia da nossa rique­ forma mais adequada de apreendê-lo.
za econômica deve predominar no Bra­
sil novo. Esse Brasil é representado
por São Paulo, considerado como cen­
tro do trabalho, de atividades práticas, A geografização do Brasil
utilitaristas e inteligentes. A velha Fa­
culdade de Direito - antigo núcleo da Cada um de nós tem um ltecho de
boemia - transforula-se numa "fábrica paisagem dentro de si. Temos que
de bacharéis" que deverão difundir a flXá-lo em tudo quanto escrevemos.
32
cultura brasileira. Cassiano Ricardo
Na crítica ao romantismo e a todo o
seu corolário de valores (devaneio, esca­ O que é o Brasil? Um país fragmen­
pismo, culto à natureza, boemia) esbo­ tado pelas diferenças ou um conjunto
ça-6e a ética do homem empreendedor­ homogêneo? E o regionalismo? Seria
ideologia típica dos países europeus no um sinal do n0550 atraso, um obstáculo
começo do processo de industrialização. à atualização da cultura brasileira ou,
Nela encontram-se os fundamentos pelo contrário, o deJXlsitário da nossa
ideológicos da doutrina dos verde-ama­ verdadeira identidade?
relos. AD defender o espírito pragmático, São essas as questões que aquecem
o poeta-educador e o soldado, o culto da o debate intelectual modernista, crian­
operosidade e do progresso, o grupo, na do cisões, cOIÚusóes e alianças. Se, de
realidade, estã apontando São Paulo certa fotmA, a idéia do Brasil como
como o modelo da nação. Pelo alto grau conjunto cultural que se impõe pela
sua originalidade é unânime, a consta­
de desenvolvimento industrial e pela
tação do fato não dilui as divergências.
vanguarda de intelectuais que produ­
Lançado em 1926, oManifesto regiona,.
ziu, o estado deve necessarialnente
listadoNorckste registra o seu protes­
exercer o papel de líder.
to contra a homogeneização, criticando
A partir do denominado segundo
o estilo citadino de vida, a cultura ur­
tempo modernista (1924 em diante)
bana ocidentalizada, enfim, a nova re�
consolidam-se as diferenças entre as
alidade do pós-guerra. O grupo Verde­
várias correntes do movimento. Se,
Amarelo encampa em parte esta críti­
num primeiro momento, a questão da
ca, notadamente a reação ao cosmoJXl�
atualização da nossa cultura uniu in­
litismo. Acusados de fazerem uma
distintamente os modernistas na luta
literatura regionalista, os verde-ama­
contra os gêneros literários tidos como relos respondem dizendo que os acusa­
ultrapassados, agora o problema muda dores é que perderam a dimensão do
de configuração. Para modernizar o nacional por estarem comprometidos
Brasil urge conhecê-lo, considerar as -
com os modismos estrangeiros.
suas peculiaridades e propriedades. E Entre 1925 e 1926, os verde-amare­
neste momento, p:>rtanto, que se arti­ los rompem com os grupos Terra Roxa e
cula a proposta modernizadora - vol­ Pau Brasil. Desencadeia-se a partir de
tada para a atualização - com a ques­ então uma verdadeira polêmica que
33
tão da brasilidade. O ingresso na mo­ tem como pano de fundo a questão da
dernidade deve ser mediado pelo na­ relação regionalismo-nacionalismo. Pa­
cional. A grande questão que se coloca ra os verde-arnarelos, as demais corren�
é dar conta do nacional. E nesse ponto tes modernistas cometem um elIo ruo-
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 97

damental: encaram O regionalismo c0- se assumir como anti-regionalista, na


mo motivo de vergonha e de aliaso. Isto medida em que confere notória impor­
acontece, segundo seu ponto de vista, tância ao folclore e aos costumes das
porque esses intelectuais teimam em diferentes regiões culturais brasilei­
ver o Brasil "com olhos parisienses", o ras, ele introduz uma nova concepção
que leva, em decorIência, a que qual­ do regional, acrescentando elementos
quer manifestação de brasilidade seja que viriam mediar a relação regiona­
34
reduzida a regionaJisDlo. lismo-nacionalismo.
Para o grupo Verde-Amarelo, o que 'Ibda a polêmica desencadeada so­
estâ em primeiro plano é o culto das bre o que significa ser brasileiro deixa
nossas tradições, ameaçadas pelas in­ clara a relevância da questão regiona­
fluências alienígenas, tornando-se, JX>r lista no interior do modernismo, mar­
JlQ
isso, urgente a criação de uma " lítica
35
cando bem as resistências à tentativa
de defesa do espírito naciona!". A1!.­ de redefmi-la de acordo com novos pa­
sim, a valorização do regionalismo co· râmetros. Apesar de o modernismo não
loca-se como imprescindível porque se assumir como anti-regionalista, na
poesibilita "delimitar fronteiras, am­ medida em que confere notória impor­
biente e língua local". E mais: só o tância ao folclore e aos costumes das
regionalismo é capaz de dar sentido diferentes regiões culturais brasilei­
real no tempo e no espaço, já que o ras, ele introduz uma nova concepção
ritmo da terra é local. A1!.sim, o brasi­ do regional, acrescentando elementos
leiro não deve acompanhar o ritmo da que viriam mediar a relação regiona­
vida universal, pois este é abstrato, lismo-nacionalismo.
genérico e exterior. A alma nacional A1!. diferenças existentes entre as vá­
tem um ritmo próprio que deve ser rias regiiiee brasileiras passam a ser
36'
respeitado custe o que custar. E este vistas como parta. de uma totalidade
senso extremado do localismo que COIporificada pela nação. A perspectiva
marca a doutrina verde·amarela, diCe· de anãlise é extrair do singular os ele­
renciando-a do ideário modernista. mentos capazes de infonnar o conjunto.
Ao aplcscntarem o caipirismo como Portanto, a visão do conjunto cultural é
elemento definidor da brasilidade, os que deve direcionar a pesquisa do regio­
verde-amarelos se indispõem com o gru­ nal. Mário de Andrade, um doa intelec­
po antropofágico e com a conente lide­ tuais mais representativos do movi­
rada por Mário de Andrade. Criticam a mento, defende com precisão essa idéia
filiação européia do primeiro e o intelec­ através da teoria da "desgeografização"
tualismo da segunda, posicionando-se - prooesos através do qual se descobre,
contra tudo o que não consideram ser além das diferenças regionais, uma u�
genuinamente nacional. As idéias do dat:k subjacente relativa à sua identi­
37
particular, da fronteira e da guarda do dade. Tal unidade deve constituir o
primitivo passam a constituir 85 bases objeto último da pesquisa do regional,
do seu nacionalismo cultural. pois nela reside sua inteligibilidade, sua
'Ibda a polêmica desencadeada so­ razão de ser. O regional em si não tem
bre o que significa ser brasileiro deixa sentido.
clara a relevância da questão regiona­ Através da teoria da "desgeografiza­
lista no interior do modernismo, mar­ ção". Mário propõe uma nova maneira
eando bem as resistências à tentativa de se pensar o Brasil. Até entâo a lite­
de redefini-la de acordo com novos pa­ ratura regional vinha interpretando a
rámetros. Apesar de o modernismo não realidade a partir da geografia e do
98 ESTIJDOS HISTÓRICOS - 191)3111

meio ambiente, priorizando sempre o por alguns intelectuais frente à ques­


fator espacial. Agora, entram as ques­ táo do nacionalismo. Presos à tradição
tões temporal e histórica. De acordo loca lista, eles tendem a identificar a
com esse universo conceitual, Mário sua região de origem como núcleo da
procura interpretar o Brasil, situando­ nacionalidade. E o caso de Milliet: para

o no quadro internacional. ser autenticamente brasileiro é preciso


O regionalismo aparece como uma ser paulista!
mediação necessária para se atingir a Este tema estará sempre presente
nacionalidade, assegurando O ingl'esso nas elaborações de um grupo modernís­
do país na modernidade. No quadro in­ ta: o Verde-Amarelo. Para estes intelec­
ternacional, a parte Brasil deve ser tuais, a construção de um projeto de
apreendida como uma totalidade indivi­ cultura nacional deve comportar um re­
sa, coesa e unitária. Assim, o folclore e torno idílico às tradições do país. No
as tradições populares das várias re manifesto NMngaçu, os verde-amare­
gióes brasileiras - do Oiapoque ao Xuí­ los rememoram o período colonial como
devem ser valorizad03 apenas como ele­ o momento áureo de nossa civilização
mentos constitutivos da própria nacio- devido à integração pacífica entre o ele­
nalidade. E portanto a idéia de unidade mento colonizado e o colonizador. A cul­
o

cultural que interessa resgatar. tum brasileira é sempre percebida como


Esta percepção do nacional que de­ uma esfera isenta de conflitos, onde rei­
fende a eliminação das partes em favor na a integIação e a ha.litOnia. O elemen�
do conjunto torna-se uma das idéiss­ to tupi é eleito o cerne da nacionalidade
guias do modernísmo. No entanto, a brasileira por simbolizar a passividade,
própria d inâmica do movimento vai identíficada como o canal perfeito de
mostrar que ela não é consensual. O absorção étnica e cultural. A chegada
obstáculo à sua aceitação residia na pre­ dos portugueses ao Brasil teria inaugu­
dominãncia de forte tradição regionalis­ rado um tempo que não se esgotou sim­
ta de cunho ainda local e geográfico. O plesmente no processo de colonização,
comentário que Sérgio Milliet endereça mas que permanece ao longo de toda a

ao livro de Guilherme de Almeida Raça nossa história devido à plenitude de


é um exemplo característico dess a visão seus valores.4o
ideológica. Elogiando a obra pelo seu Observa-se nessa perspectiva o pre­
alto sentido nacionalista, Milliet assim domínio de uma visáo pitoresca e está­
se refere ao seu autor: "Guilhelme é tica da tradição, uma vez que o passado
profundamente brasileiro. Digo mais passa a coexistir com o presente. lWm­
paulista.'.3il Mário de Andrade, em carta pe-se com a concepção linear do tempo:
dirigida a Sérgio, o advertiria contra o passado e presente deixam de ser con·
sentido simbólico, heróico e grandilo­ cebidos como etapas sucessivas para
qüente atribuído à palavra paulista. Ar­ ingressarem numa mesma realidade.
gumenta ser necessário abandonar tal Tal percepção da história que tende a
visão, pois o Brasil tem sido um "vasto privilegiar o espacial sobre o temporal
hospital amarelão ' de regionalismo" e constitui uma das características cen­
''1> ' ' ' té ,,39
81IT15mO hIS rico . trais do pensamento conservador, de
A polêmica Mário uersus Milliet é acordo com o já consagrado estudo de
significativa por registrar os resquícios . eln.
Ma nnh · 41
de uma tradição regionalista de fortes Ao adotarem esta concepção da tra­
bases locais. Através dela é possível dição, 06 verde-amarelos mais uma vez
entrever a }X>stura ambígua assumida se distanciam do ideário modernísta.
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 99

Não por defenderem a tradição como cunaina (1928) é visível o esforço de


requisito para a elaboração de um pro­ Mário para superar a concepção geográ­
jeto de cultura nacional. Nesse aspecto fica do espaço, em Martim Cererê
não há discordância; todos 08 modernis· (1926), de Cassiano Ricardo, encontm­
tas estão convencidos de que só a partir se mais do que nunca pJ'esente a geogra­
do conhecimento de nossas tiadições é fização da realidade. Mas vamos por
possível encontrar um caminho próprio, partes.
urna cultura de bases nacionais. BU8� Para Mário, o Brasil é uma entidade
cando os tmços definidores da identida­ homogênea na qual as diferenças re­
de nacional, Mário de Andmde cria o gionais devem ser abstmídas. Por isso
conceito de "tradições móveis". Através seu personagem Macunaíma movi­
desse instrumental, o autor procura menta-se livremente pelo espaço da
resgatar a dinâmica das manifestações brasilidade. Assim, sua trajetória não
da cultura popular e, ao mesmo tempo, segue a lógica dos roteiros possíveis,
garantir a permanência do ser nacional. mas inventa uma espécie de "utopia
Mário chama a atenção para o aspecto geográfica" que vem corrigir o grande
positivo das "t.radições móveis" na me­ isolamento em que vivem 08 brasilei­
dida em que, movimeniando-se através ro5.43 Sobrevoando o Brasil no "tuiuiú
dos tempos. elas atualizariam as mam· aeroplano", o herói COllBegue descorti­
festações da cultura popular. A perspec­ nar o mapa da sua terra. Este episódio
tiva do autor é histórica, uma vez que � rico de significados. Encontrar a
evidencia sua preocupação em encon­ identidade nacional significa não per­
trar para o Brasil uma temporalidade der de vista a visão do conjunto. Para
própria no quadro internacional. 42 levar a efeito tal projeto, é preciso,
05 verde-amarelos não comparti­ então, se deslocar dos estreitos limites
lham desse ponto de vista, pois consi­ geográficos. Sobrevoar o Brasil para
deram a tradição um valor que extra­ vê-lo na sua inteireza e complexidade.
pola o contexto histórico. Assim, ela Assim, a perspectiva geográfica é
transcende o tempo cronológico para se abandonada, por impedir que se atiIüa
uma visão do conjunto. E este o aspecto
,

fixar no espaço, no mito das origens.


Este mito cria um tempo ideal que deve para o qual Mário de Andrade quer
ser revivido, retomado, pois nele reside chamar a atenção na elaboração de um
a brasilidade. A tradição permanece, projeto de cultura nacional.
portanto, aflXBda em um momento e Já no Martim Cererê verifica-se o
espaço precisos: eles são plenos de sig­ inverso: Cassiano Ricardo cria 08 "he_
nificados. Não há que atualizá-la, con­ róis geográficos" que irão realizar a
forme o quer Mário de Andrade, já que epopéia bandeirante. O ponto de parti­
ela não pertence ao temporal, mas ao da das incursões tem um retorno pre­
espacial (São Paulo). determinado: São Paulo. O percurso é
Este contmponto entre o ideário ver­ circular, cabendo aos heróis realizar a
de-amarelo e as teorias de Mário de ''psulistanização'' do Brasil. Isto por­
Andmde tem como objetivo mostmr � , que os valores desta civilização sinteti-
distãncia que separa o referirt... grupo zam a própria brasilidade.
dos ideais modernistas no que se refere O contraste entre as duas obras é
à questão do regionalismo. Concebendo flagrante: a primeira constrói a figura
a tradição de forma espacial, o grupo do "herói sem nenhum caráter", e a
busca recuperar o tempo mítico, locali­ segunda, a do '�rasil dos meninos, poe­
zando� na região paulista. Se em MOr tas e heróis". Flávio Koethé4 sugere
100 ESTUDOS HlSTÓIUCOS - IO!l3i1 1

que a figura do herói, presente em qlJDse rica (mesmo que limitada), crítica e
toda narrativa Hterária, se configura universal, a de Cassiano Ricardo refor­
como elemento estra tégico para decifrar ça a visão geográfica de cunho estrita­
um texto. Rastrear o percurso e a tipo-­ mente localista.
logia do herói corresp:mderia a uma Para os verde-amarelos, São Paulo se
forma de captar as "pegadas do sistema apresenta como o cerne da nacionalida­
social nosistema das obras", No caso dos de brasileira, justamente pela sua con­
dois autores, a figura do herói - seja ele figuração geográfica. Aoriginalidade da
inspirado no épico (Cass iano J.'ticardo) geografia paulista investiu a região de
ou no pícaro (Mário de Andrade) - tra­ um destino especial: ser o guia da nacio­
duz a própria imagenl do Brasil. 'fumos, nalidade brasileira. O argumento se de­
então, o confronto de duas visões sobre senvolve da seguinte forma: diferente­
a nacionalidade: a de Mário, que é em mente das demais regiões do país, em
aberto, irônica e inten'Ogativa porque São Pa ulo os rios col'tem em direção ao
voltada para a dificil busca da identida­ interior. Este fato teria obrigado os pau­
de nacional. Busca esta que pode acabar listas a caminharem em direção ao ser­
em um log io, em um verdadeiro beco tão, abandonando o litoral. Por uma
sem saída. O personagem Macunaíma questão de fatalidade do meio ambiente,
náo corporifica apenas qualidades con­ eles se tornaram, então, bandeirantes e
sideradas positivas, mas inclui todas as desbravadores. Ao se internarem nos
fraquezas e vacilos do ser nacional que, sertões, os bandeirantes teriam abdica­
dilacerado entre duas culturas, busca a do dos falsos valores do litoral-alieníge­
sua estratégia de sobrevivência. Este na para encontrar os mões do Brasil-au­
herói, ou este anti-herói, é o próprio
,4
ill
téntico, ue é o rural. Em ''Canção geo­
Brasil: ambíguo, conflitante, em cons­ gráfica' transparece claramente a
tante procura de identidade. A diversi­ oposição litoral-sertão, e a associação
dade de raças, culturas e dominações geografÍ<vbra3ilidatk-Sãa Paulo. Diz o
tece a "roupa arlequinal" do brasileiro, bandeirante:
na qual se misturam o "tango. a bran-
. �,, 45 p ' h "
cura e pIa . 01' 1550, o . el'Ol senl ne- A estar chorando de saudade
nhum caráter, o desenraizado, o descon­
portuguesa
tínuo...
prertrO varar o sertão
Já o herói ricardiano é aquele que
que é o meu destino singular
realiza a "epopéia dos trópicos", Ele é
pleno de atributos por sua capacidade
E mais adiante:
de enfrentar dificuldades, seu espírito
aguerrido, seu altruísmo ímpar. O en­
grandecimento e a dignidade desse he­ minha esposa é terra firme

rói são sem ", reforçados pela dimen­ as sereias estão no mar.
são trágica. G Como decorrência desta
visão, temos um outro retrato do Bra­ Na formação da cultura brasileira, o
sil: acabado (no sentido de não afeito a litoral representaria a parte falsa e en­
dúvidas), grandiloqüente e laudatório. ganadora do Brasil por reproduzir os
Contrapondo-se à "heterogeneidade valores estrangeiros. Não é à toa que
Dlacunaínlica do nacional", vemos ins­ Cassiano Ricardo se refere à saudade
talar-se a homogeneidade. como uma herança portuguesa. Sauda­
Em resumo: enquanto a obra de Má­ de esta que se deve ao "instinto de na­
rio aponta para uma perspectiva histó- vegação", ao desejo permanente de des-
A BRASII.IDADE VERDE·AMAREt.o\ 101

cobrir novos horizontes eaventuras . Por No seio da tradição filosófica ociden­


isso, o habitante do litoral é propenso à tal, desde os fins do século XVII, o fa tor
''nostalgia do exotismo", que o leva fre tempo já aparece associado à idéia de
qüentemente a importar idéias e ma. acréscimo e aperfeiçoamento, prenun­
das,grando revoluções e desordem Sl>­ ciando 8S noções de evolução, civiliza­
cial. ção e progresso. De acordo com esse
A imagem da sereia simboliza a atra­ quadro de referencias o Brasil seria
çãl>-traição que o litoral exerce sobre os desqualificado, e na qualidade de povo
seus habitantes, enquanto a tetla-es� p
primitivo re resentaria a "
infância do
sa repIes
enta a fidelidade e o porto se­ civilizado". 5
guro. Tal discurso poético bU8C8 mos­ A idéia do Brasil-criança encontra
trar que São Paulo optou pelo caminho certo consenso entre as elites intelec­
certo, ao contrário, por exemplo, do Rio tuais brasileiras, vindo a ser constituir
de Janeiro, vítima do fascínio europeu. em vertente expressiva da nossa tradi­
Graças à sua reserva natural, ao seu ção política. O grupo Verde-Amarelo a
espírito conservador, sobriedade e tena­ absorve e consagra, buscando, ao mes­
cidade, o paulista soube se precaver con­ mo tempo, mcxlificar os marcos valora­
tra os sortilégios estrangeiros. Refu­ tivos que a infoJ'mam. Ou seja: ao invés
giando-se nas fontes nativas, ele se mos­ de o fator temporal entrar como elemen­
trou capaz de encarnar o espírito mais to abalizador da superioridade na histó­
49
intenso da brasilidade. É por isso que ria das civilizações, agora entra o espa­
cabe a São Paulo exercer o papel de cial. O tempo paSSQ a ser associado à
guardião das verdadeiras tradições bra­ idéia de esgotamento, crise e passado,
sileiras, Assumindo a va nguarda no enquanto o espaço é identificado à idéia
conjunto nacional. de potencialidade, riqueza e futuro. Se
No ideário verde-amarelo, o Brasil o critério temporal serviu até então para
sempre é apontado como motivo de explicar a evolução das velhas civiliza­
orgulho: de um lado, ele é o gigante, de ções, o espacial vai definir o Brasil, ga­
outro a criança. Apesar da aparente rantindo a sua originalidade no quadro
disparidade, as metáforas convergem internacional. Chegamos ao ponto ne­
para urna idéia matriz: a de potencia­ vrálgico da questão: brasilidade = espa­
lidade. Quando o gigante acordar, ço, território, geograf18.
quando a criança crescer... Em pleno modernísmo, os verde­
A história do Brasil é apresentada amarelos atualizam o pensamento de
como testemunha da nossa grandiosi­ um autor que fora estiglnatizado pelo
dade. E fato curioso: é a geogra{la que movimento: Afonso Celso. Dele reto­
escreve esta história de grandes feitos mam a identificação entre nacionalis­
e heróis ... Porque no Brasil, diferente­ mo e território. A extensão territorial
mente dos países europeus, é a catego­ do país aparece como fator determi­
ria espaço que explica a civilização: nante de sua história, que será sempre
gIandiosa porque deve reeditar a epo­
A pátria, nos outros países, é uma péia das Bandeiras.
coisa feita de tempo; aqui é toda espa.­ O mapa do Brasil se transforma no
ço. Quinhentos anos q'Ia"" não é pas­ nosso 8
1ande poema nacional, deelo­
sado para uma nação. Por isso, nós a cando-se do domínio puramente geo­
compreendemos no plesente, na sín- gráfico para o �tico ao tomar a forma
, 50 62
te... prod"Igl0S8 do nosso paIS. de uma harpa.
102 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1 993111

56
Esta transmutação do objeto impli­ espírito cívioo e patriótico. Daí a ênfa­
ca a sua imediata sentimentalização: se que os verde-amarelos conferem à
defesa de nossas fronteiras, cujo concei­
... Ergo-me para olhar o mapa, com to extrapola uma representação pura­
amor. O sentÍlnento da pátria é uma mente jurídica para exprimir a própria
eucaristia. Cada ponto da carta � idéia de nação: sua economia, política,
gráfica me evoca uma lembrança. 53 cultura e espiritualidade. O intelectual
deve se transfoJ'umr em um cidadão-sol­
São as lembranças que geram o sen­ dado sempre alerta, guardando as fron­
timento da pátria, o senso profundo de teiras do país contra as invasões aliení-
57 . - , '" .
sua unidade, a par das diversidades. A genas. S ua rn15sao e resgatar a 11510-
"totalidade da nação" é um mistério, nomia interior da pátria, que está na
58
comunhão profunda que não pode ser terra, na língua e no Brasil-território.
decodificada pelo intelecto. Esse tipo de Para expressar esse nacionalismo
pensamento que desqualifica o uso do inerente ao espaço Brasil o grupo reto­
intelecto vendo-<l como prova de pouca ma o pensamento romântico que identi­
brasilidade nos vem desde o romantis­ fica brasilidade e natureza, vinculando­
mo, conforme o mostra Luís Costa Li­ as à questáo da identidade nacional. A
54
ma. Nos trópicos, é a natureza que se uma natureza 8uigeneris deve necessa­
encarrega de provocar o avanço do pen­ riamente corresponder uma civilização
samento nacional. E como isto ocolTe? 8ui generis avessa a outros modelos ci­
Como a natureza dá conta deste papel? vilizatórios. A natureza se transforma
Para os verde-amarelos, a questão se assim em elemento abaliz.ador e cons­
resolve na geografIa. Através do conhe­ trutor da nacionalidade. Observá-la pa­
cimento dos acidentes geográficos de ra apreender nossa originalidade oons­
seu país a criança tem o primeiro in­ titui um dos postulados românticos
sg"t
i de brasilidade. mais absorvidos pelos verde-amarelos.
Mas esta observação, segundo Luís Cos­
... fazendo rios com tinta azul e mon­ ta Lima, é pura e tão somente impulsio­
tanhas com lápis maJ'lum, traçando nada pelo sentimento, sendo destituída
59
fronteiras com tinta vermelha e pin­ de qualquer esforço auto-rel1exivo. No
tando coqueiI'05 primitivos. E for­ contato com a natureza vivencia-se o
mando uma idéia gráfICa do pCÚ$ e êxtase, dá-se a comunhão total oom as
amando nessa figura aquela coisa forças cósmicas do meio ambiente. O
vaga e incompreensível (...) O nosso homem deve, então, fundir-se com a
grande
fi
rma é ainda o mapa do natureza: '\7er-se nela como no espelho
60
Brasil. dos nossos rios". Plinio Salgado é ain­
da mais categórico quando afIrma que
O mapa do Brasil se transforma em ao pintar um coqueiro, o homem deve
objeto de culto cívico e poético, porque transfol'lJlar-se no próprio coqueiro.
através dele se consegue criar o senti­ Não há dúvidas. A fusão hcmem-natu­
mento nacional. Tal formulação eviden­ reza.brasilidade deve ser completa.
cia claramente a associação entre pa­ Coerentes oom tal perspectiva, os
triotismo e representação gráfIca do verde-amarelos vão criticar as demais
país. Este ussber geogláficon que encer­ visões nacionalistas, notadamente a de
ra a noção do círculo da fronteira é típico Mário de Andrade. O espírito de obser­
da escola de Jules Ferry, que confiaria à vação e a análise são descartados como
história-geograím a tarefa de inculcar o impróprios porque reCOI'J'em às media-
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 103

ções do intelecto. No conhecimento não do seu país. Um exemplo de intelectual


deve haver mediação, mas oomunhão: O alienado é Rui Barbosa, criticado pelo
sentimento da pátria é uma eucaristia... seu saber livlesco e inteligência teári·
Os verde-amarelos consideram a visão ca, fatores que o teriam irremediavel­
crítica do nacionalismo falsa por se re mente afastado do Brasil. Já Euclides
fugiar no espírito de análise, o que de­ da Cunha é apontado como modelo do
nota incapacidade de criar, de apreen­ intelectual brasileiro, porque sua obra
der, de intuir. Daí a identificação do fala do país, que é rural.
nacionalismo com o sentimento: ele de-­ Na ideologia do grupo a visão anti­
61
ve ser "coração, sangue e cérebro". Na têtica rural-urbano aparece intima­
construção do nacionalismo as catego­ mente associada à idéia de espaço e
rias do intelecto são sempre as últimas tempo. Assim, a cidade encarnaria a
a atuar. Como na literatura romântica, noção de tempo, porque sofreria a in­
o impulso à reflexão é confundido com fluência do século) enquanto o campo
"devaneio ocioso". Ao invés da pesqujsa significaria o espaço, a influência da
e auto-reflexão, o contato direto com a terra e da natureza. E estas seriam as
mâe e mestra natureza que fala pela voz verdadeiras forças nacionais ...
da geoglafia. E ela que cria a nacionali-
-

A cidade representa o cosmopolitís­


dade, fazendo prevalecer o espacial s<>­ mo, na medida em que projeta o homem
bre o temporal. Basta, portanto, render­ no mercado) dist&nciando-o da nature·
mo-nos ao fascínio do nosso habitat, in­ za. Este distanciamento gera tipos fal­
tegraimo-nos nele, para seI'UIOS nacio­ sos como o homem de gabinete, da fábri­
nalistas autênticos... ca e da burocracia. E o brasileiro não é
No debate modernista a controvér­ ísto; sua mentalidade é caipira, desur­
sia do nacionalismo aparece de fOj'llla ba.nizada e rude. Os verde-smarelos
clara quando se distingue brasüidade consideram o espírito citadino um dos
e brasileirismo. Qual das expressões grandes males do Brasil por trair nossa
seria a Dlais adequada para exprimir o índole primitiva e nossas mires rurais)
verdadeiro sentido do nacionalismo? A gerando problemas e ideologias que náo
brasilidade, identificada como estado combinam com a realidade brasileira. O
natural de espírito, diz respeito à intui­ fenômeno comunista é entáo apontado
ção de um sentimento nacional, visce­ como um exemplo de corpo estranho à
ralmente brasileiro. Já o brasileirismo organização do país, pois representaria
é associado a sistemas fU08Óficos, esco­ a "antecipação histórica de um século".
62
las e partidos. Por outro lado, se o espírito citadino
Os verde-amarelos defendem a bra­ antecipa problemas, ele também retar­
silidade, argumentando que esta per­ da soluções para as verdadeiras ques­
mite a comunhão natural do homem tões nacionais. O cangaço seria um des­
com o meio ambiente. Ao intelectual é ses problemas não resolvidos.
designada uma missão: a de criar a O prognóstico sombrio sobre a reali­
consciência nacional, removendo os dade brasileira é endereçado às elites
obstáculos que dificultam a comunhão intelectuais. São elas, segundo os ver­
homem-meio. E quais aeriam esses de·amarelos) 8S responsáveis pelo nos·
obstáculos? As idéias alienígenas, o so descompasso traduzido ora na ante­
mal da inteligência , o mal urbano. O cipaçãD de problemas ora no atraso em
espírito citadino de nossas elites é visto resolvê-los. Exige-se, portanto, uma
como uma verdadeira catástrofe, na nova postura do intelectual: não mais
medida em que distancia o intelectual o "saber livresco", mas o saber prático.
104 ESTUDOS HlSTóRICOS - 1993/11

Para conhecer a sua terra, o intelectual ção São Paulo-brasilidade, São Paulo­
deverá aprender geogra(w., único sa­ Estado nacional. Todas as conferências
ber capaz de colocá-lo em contato direto do Centro Paulista vão girar em torno
com a realidade e com os fenômenos desse eixo. A história de São Paulo
naturais. Tal idéia é defendida por Plí­ sintetiza a própria história do Brasil,
65
nio Salgado que, na sua Geografia sen­ desde a colônia até os dias atuais. E
timental, narra suas viagens pelo Bra­ é a geograflB privilegiada da região que
sil. Detalhe importante: leva apenas explica o seu papel de vanguarda...
um livro na bagagem: O problema ncv Rememorando o que já foi dito: o
cioruzl., de Alberto 'lbrres. E Plínio vai grupo Verde-Amarelo atribui à origi­
confirmar a tese do seu mentor: o Bra­ nalidade da rede hidrográfica paulista
sil verdadeiro é rural... o papel-diretor da região no seio da
1bda essa retórica converge para um nacionalidade. Os rios explicam o fenô­
ponto: a urgência de integração interior· meno bandeirante, que por sua vez
litoral, espaço-tempo, enfim, a busca da propiciou a integração territorial. Da
homogeneidade. Se o litoral é designado mesma forma, foi o clima que tornou
como a parte falsa do Brasil, nem por possível a adaptação dos mais diversos
isso ele deve ser esquecido. Urge nacio­ tipos humanos à região.
nalizá-lo. E o sertão deve comandar esse O grupo Verde-Amarelo revive a
processo, ou seja. deve dar sua alma à epopéia das Bandeiras, mostrando
cidade para em seguida receber os be­ que, desde o século XVI, São Paulo já
neficios oriundos da civilização. G3 E a estaria imbuído de uma missão: a da
alma brasileira se exprime através do integraçáo territorial e étnica.
folclore, dos cantos nativos e das lendas,
que são os elelllentos responsáveis pela
integração do rural com o urbano.
Para os verde-amarelos foi São Pau­ o imigrante se incorpora à
lo que deu início ao processo nacionali­ "alma coletiva"
zador. Através da epopéia das Bandei­
ras, em pleno século XVI, o estado par­ No interior da ideologia modernista,
tiu para a conquista do território. Cabe o tema da imigração ganha um lugar
a São Paulo, portanto, coordenar todas especial, marcando sua presença nas
as vozes regionais, assegurando a co­ obras mais expressivas do movimento:
munhão brasileira. Este é o objetivo do basta lembrar a figura do gigante Pie­
Centro Paulista, sediado no Rio de Ja­ tro-Pietra em Macunaima (1928) e a
neiro. Em 1926 a entidade promove preceptora alemã em Amai; verbo in­
uma série de conferências sobre o pa­ transitivo (1927), além dos vários con­
pel pioneiro de São Paulo na fonnação tos de Alcântara Machado sobre os imi­
do Estado nacional. Os verde-amarelos grantes italianos em São Paulo.
aplaudem a iniciativa argumentando A questão deve ser necessariamente
que a providência histórica havia ou­ enfrentada, pois o que está em pauta é
torgado ao estado este destino, pois a constituição de um projeto de cultura

fora ele que elineara o "nosso gigan� nacional. Qual seria, então, o papel do
tesco mapa". imigrante no novo contexto? Constitui­
A associação nacionalismo-territó� ria uma ameaça à nacionalidade ou um
rio�heroísmo constitui Ullla das bases

elemento passível de ser integrado?
do ideá rio verde-amarelo. E através A maioria dos intelectuais paulistas
dela que sempre se estabelece a rela- tende a assumir a segunda posição, não
A BRASll.JDADE VERDE-AMARELA 105

deixando, no entanto, de mostrar o cho­ mo, o seu nacionalismo defensivo, com a


que cultural ocasionado pela imigração. exaltação da flgllrR do imigrante?
A primeira vista tudo pareoe muito

Mário de Andrade se refere ao fenômeno


da modernidade paulista como a "mis­ contraditório. Mas O grupo tem uma res­
tura épica das raças". Já Oswald aponta posta: devido ao seu passado glorioso,
São Paulo como o modelo para se repen­ São Paulo corporifica a própria idéia de
sar a nossa formação étnica: nação. Logo, a região é imune às desca­
racterizações e ameaças alienígenas.
A questão racial entre nós é uma Em outras palavras: em São Paulo, o
questão paulista. O resto do país, se sentimento de brasilidade é tão forle e
continuar conosco, mover-se-.á como está tão profundamente enraizado que
o corpo que obedece, empós do nosso se torna mais fácil O imigrante conta­
caminho, da nossa ação da nossa von- giar-se por ele do que exel1,er qualquer
GG ação que lhe seja prejudicial. Assim, a
tade.
"alma coleliud' da região é capaz de
homogeneizar todas as diferenças ra­
Os modernistas criam uma nova ver­
ciais, englobando-as em um todo orgâni­
são sobre a nossa fOImação étnica diver­
co e coeso. A unlloI'luidade de valores -
sa da clássica teoria da "trindade racial"
como o senso de realidade, instinto de
composta pelo branco, o neglO e o índio.
expansão econômica e gosto pelas cate­
Esta teoria, segundo eles, apICsentaria
gorias objetivas do trabalho - é imposta
uma profunda defasagem em relação à G8
naturalmente.
nova realidade brasileira, muito mais
Com base em teis argumentos, os
complexa e dinâmica. A associação imir
verde-amarelos alegam ser desproposi­
grcu;ão-nuxJernirúzde desfruta, portanto,
tada a crílica dirigida a São Paulo en­
de certo consenso entre 05 intelectuais
quanto terra conquistada pelos estran­
paulistas.
geiros. Revertem a acusação: de antina­
Para os verde-amarelos o Brasil nâo
ção, São Paulo passa a ser a nação capaz
pode ser definido pelo "selvagem anllO­ de abrasileirar todos os imigrantes. Re­
pofágico", pelos mestiços miseráveis, avivando as nossas tradições, reveren­
"mulatos bonachos" e ''mucamas sape­ ciando os nossos cultos cívicos e rituali­
G1
C:as". Sua recusa da Utrindade racial" zando a nossa história, o estado paulista
se alia ao combate a uma imagem pessi­ é o exemplo mais vivo da brasilidade
mista da nacionalidade. Se "o passado 69
junto aos imigrantes.
nos condena", o futuro é promissor... Não O grupo posiciona_ contra o "nacio­
basta, porém, associar a questão da mo­ nalismojacobino" que tem como lema ''O
dernidade à da imigração: é necessário Brasil é dos brasileiros". Argumentam
tornâ-Ia compatível com a proposição não ser necessária tal afil'll,sção, já por
que se tornou sua bandeira de luta: São demais evidente na nossa Constitu �o,
Paulo como núcleo da brasilidade. Como história, sangue, liVhó e discursos. O
estabelecer um nexo entre a idéia de São imiglante, segundo os verde-amarel06,
Paulo constituir a representação mais se caracteri:za pelo sentimento de inte­
autêntica do nacional e o fato de ser o gração na comunidade nacional. Embo­
maior centro de imiglação? Como defen­ ra, às vezes, se verifiquem algumas ten�
der os beneficios oriundos da imigração dências no sentido de quebrar esta uni­
sem entrar em chCXJ.ue com o nacionalis­ dade - como o projeto de ligas de des­
mo? Enfun, como os verde-amarelos vão cendentes italianos -, elas não têm con­
conciliar seu virulento anticosmopolitis- tinuidade. São apenas vozes isoladas
IDOS/li

106 ESTUDOS J IISTOruCOS -

que lutam contra os sentimentos patrió­ O afluxo de imigrantes para a região


ticos. explica também o fato de o modernismo
O grupo defende, então, o ''naciona­ ter ocorrido em tellas paulistas. Devido
lismo integralizador", apontando a in­ ao contato direto com os centros civili­
fluência estrangeira, se reduzida ao zatórios europeus, todas as fOl'mas de
denominador comum da nacionalida­ pensamento chegam a São Paulo com
de, como benéfica ao país. O imigrante uma "rapidez telegráfica". Mais uma
é sempre visto como elemento integrá­ vez aparece a idéia do imiglante en­
vel, capaz de contribuir para o enrique- quanto veículo de atualização e de mo­
. - 71 dernização da sociedade brasileira. Só
ClIDento da naçao.
No bojo de toda a discussão fica clara que agora em termos de cultura. Arevo­

uma idéia: a positividade de nosso meio, lução estética aó poderia ocon"r, por­
tanto, em São Paulo porque lá estaria se
sempre flexível à absorção de novos ele-
formando a nossa verdadeira identida­

mentos étnicos. E o mito da democracia


de. Identidade esta que se caracteriza
racial... O problema do choque cultural
por uma complexidade proveniente da
advindo da miscigenação está fora de
''rebeldia íncola", da "
inquietude ociden­
cogitação, pois o que predomina é a
tal", do ''nirvarusmo do oriente" e da
tCa. As­
perspectiva de integl'açfro pací{
"audácia dos oow-OOys e aventureiros",
sim, entre 05 verde-amarelos, a pl'oble­
Os verde-amarelos atribuem à nova
mática da imigração ganha um trata­
arte brasileira uma função inadiável:
mento que a diferencia do conjunto do
ideário modernista. Explicando melhor:
refletir a "tr �babélica da diversi­
dade racial". Tal diversidade, apesar
o imigrante perde sua identidade origi­
de seu aspecto caótico, é sempre valori­
nal para se integrar no "organismo et­
zada pelo grupo por abrigar em seu
nológico nacional". Verifica-se quase
interior a idéia de sintese. Se nossa raça
que uma reificação da figura do imi­
é originalmente heterogênea, ela é ho­
grante: ele se transfol'ma em instru­
mogênea na sua essência, porque obe­
mental não só da modernidade, como
decemos à "futalidade de um destino"...
também da própria brasilidade!
A argumentação fica mais clara quando
Mas vamos por partes. Primeiro a os verde-amarelos anunciam o advento
idéia do imigrante enquanto elemento do homem novo. O homem que realiza
introdutor da modernidade. Entra aqui a sintese prodigiosa, pois reúne em si a
a questão do trabalho. São Paulo apare­ "soma de virtudes positivas" de todas as
ce como exemplo da modernidade JXlr­ raças, constituirá um dos JXlVOS "mais
que foi a primeira região a abolir o tra­ 73 •

belos e másculos do mundo",.. E exa-


balho escravo, favorecendo o afluxo de tamente nesse ponto que se dá a articu­
correntes imigratórias. Mas, note-se lação imigraçáJ:>-brasilidade via raça. O
bem: não foram propriamente os imi­ abrasileiramento do imigrante é uma
grantes os responsáveis pela industria­ fatalidade, JXlis os que vêm de fora são
lização paulista. Para os verde-amare­ absorvidos, pel"mitindo, assim, o enri­
los, ela se explica antes pelo ímpeto quecimento do espírito nacionaL
empreendedor dos paulistas do que pelo Em síntese: a doutrina dos verde­
trabalho do imigrante; o imigrante tor­ amarelos confere especial ênfase ao
nou-se trabalhador porque sofreu as in­ papel dos imigrantes na construção da
fluências benéficas do meio. Logo, é a nacionalidade, sendo eles 05 responsá­
herança bandeirante que explica o pro­ veis pelo progresso industrial paulista,
gle5S0 e a modernidade de São Paulo... o evento modernista e a constituição de
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 107

uma nova raça. No entanto, toda essa 6ua origem em São Paulo! E porque São
constelação de fatores positivos só se Paulo? Argumento primeiro e únioo: de­
Bustenta em função da positividade do vido à herança bandeirante que possibi­
meio. Trocando em miúdos: se os imi­ litou o fenômeno da absorção étnica. Se
glantes trouxeram o progresso é por­ as expedições bandeirantes integraram
que 6e incorporaram ao espírito paulis­ o branco, o negro e o indio, São Paulo da
ta. Esta versão heróica do nacionalis­ década de 1920 dá continuidade ao ideal
mo vai distinguir 08 verde-amarelos integl"ador, absorvendo 88 mais varia­
dos demais grupos modernistas. das nacionalidades. Tal absorção, con­
fOJ'lllejá foi visto, resultaria em riqueza
tanto em termos biogenéticos quanto
culturais. O homem paulista passa a
o herói nacional é paulista! representar, portanto, a "raça dos for­
tes", Daí a acalorada polêmica que o
Como todo movimento literário, o grupo trava contra o caboclismo corpo­
modernismo também cria a figura do rificado na figura do Jeca Tatu.
seu herói, inspirada, segundo Wilson Transparecem no debate duas gran­
Martins, no tipo renascentista: atlético, des linhas ideológicas: a primeira, que
, ��,
74 na' ,
IOn - sad·la e VIgoroso. identifica o brasileiro como um tipo
.

Ua.se
I a eI
" - •

nos esportes e no escotismo, que se li­ não-homogêneo: não é nem o Jeca nem
gam diretamente aos problemas de hi­ o índio. É o "Brasil·menino" dos curo·
giene pública e de defesa nacional, ta. mins, dos moleques de senzala, dos
IDAS tão caros 80s verde-amarelos. Por italianinhos, verdadeiro "xadrez-etno­
outro lado, o culto do esporte e da vida lógico" no qual se entrecruzam diver­
sadia representariam, segundo o autor, sas nacionalidades. Logo, a idéia do
uma reação contra a "nevr06e" do sim­ caboclo como protótipo da brasilidade
bolismo. Assim, ao invés da boemia ur­ é falsa. Ao defender tal perspectiva, o
bana com os seus vicios contraprodu­ grupo não está destituindo o homem do
centes, a vida ao ar livre, as viagens pelo interior do seu papel de verdadeiro
interior, a fuga dos centros turbulentos. representante da nacionalidade. O pa­
Essa temática aparece constantemente râmetro da autenticidade continua
nas crônicas de Hélios, publicadas pelo eendo o homem rural, só que em novas
C01Teio Paulistano.75 roupageM. Substitui-se a versão re­
Trata-se de construir o universo do alista pela ufanista: o Jeca Tatu de
homem novo, do herói que irá dominar Monteiro Lobato cede lugar ao Mané
o mundo moderno. A heroização do ser Xique-Xique de Idelfonso Albano. É es­
nacional já se manifesta em JucaMu­ te caboclo o verdadeiro herói nacional, .
lalo, que representa o nosso Hércules: que passa a corporificar a brasilidade
"gil como um poldro e forte como um devido à sua bravura para enfrentar 85
touro." E em Martim Cererê o Brasil adversidades do meio e ao seu espírito
aparece como o resultado de uma epo­ de aventura e de conquista. Ele realiza
péia realizada por gigante6. a "epopéia nos trópicos", moldando o
A visão ufanista do grupo encontra território nacional e garantindo a pre­
76
sua versão mais bem elaborada na ideo­ servação do espírito da brasilidade.
logia do caráter nacional, que viria 6in­ Alguma dúvida 60bre a semelhança
tetizar toda uma tradição ufanista do de perfil entre o Mané e o bandeirante?
pensamento polítioo brasileiro. Só que Na doutrina dos verde-amarelos a fIgUra
com um detalhe: o hSlói nacional tem do Mané Xique-Xique vem atualizar, re-
108 E�·ruDOS IIIS1'ÓRlCOS 191)3/11
-

forçar e talvez popularizar a ideologia da ao nosso país no concerto das nações?


grnndiosidnde do caráter nacional. C0- Ser mera projeção ou ter luz propria?
ragem, espírito combativo e finlleza de Se as indagações são comuns, as res­
caráter modelam o perfil do herói naci<>­ postas divergem. Oswald sugere que
nal representado pelo paulista. Tama­ acertemos o nosso relógio; Mário alerta
nho ufanismo levaria o glUpo inevitavel­ para a necessidade de pensaImOS em
mente a entrar em choque com ideol<>­ uma temporalidade própria, o que sig­
gias ou representações de caráter mais nifica dizer que o Brasil não reproduz o
crítico. Como aceitar a figura incômoda tempo, llUl3 o cria de acordo com uma
de U1n Macunaíma que oscila todo o nova dimensão, que é a sua. Fica paten­
tempo em busca de sua identidade? No te, portanto, que a singularidade reside
discurso laudatório, a dúvida e o ques­ no fator temporal, na descoberta de um
tionamento se transformam rapida­ novo tempo, do nosso tempo. Mas esta
mente em acinte e injúria. A polênuca idéia não é consenso. Os verde-amarelos
suscitada pela caricatura do Juca Pato, defendem perspectiva adversa quando
criada por Belmonte,jornalista paulista, priorizam o espaço como fator da nossa
ilustra bem o caso. O gmpo vai interpre­ singularidade. Interessa ao gmpo res­
tá-la como uma injúria à "fibra máscula gatar o Brasil-território, do mapa e das
dos paulistas". A1; atitudes constantes fronteiras, das paisagens locais delimi­
do personageln, de aool'lecimento, des­ tadas pela geografIa ...
conflança e protesto, seu modo de ser Deflnem."e, portanto, duas visões
urbano suas vestes, enfim, toda a sua antagônicas sobre a nacionalidade: a
,;,
flgura, 7 se colocam frontalmente contra primeira, que emerge com o modernis­
a ideologia dos verde-amarelos. Para o mo, baseada no critério temporal e vol­
gmpo, Juca Pato não passa de um dandy tada para a contextualização histórica
sem caráter. E este não é o povo brasilei­ (Mário de Andrade); e a segunda, ba­
ro, que prima pelo vigor e dedicação ao seada no critério espacial, revelando
trabalho. ksim, é a tradicional imagem nítida preocupação com a geografla
do Zé-Povo que melhor traduz o brasilei­ (grupo Verde-Amarelo). Enquanto esta
ro: caboclo ingênuo e esperto, mósofo e última mantém presente e atualiza a
bonachão, enfun, expressão do trabalho, tradição regionalista, a conente de
bom humor e sacrifício. Mário de Andrade procura justamente
Esta idealização do ser nacional é romper com essa perspectiva, apresen­
incorporada pela flgura do paulista, tando novos instrumentos para repen­
portador imediato da herança bandei­ sar a nacionalidade.
rante. São os uheróis geográficos" que Ao longo de três décadas a teoria da
constroem a brasilidade ... espac.ialização do Brasil fundamenta o
projeto hegemônico dos verde·amare­
los. Na década de 1920, a visão da na­
Considerações finais: cionalidade que apresenta São Paulo
a geografia nos redime ... como núcleo da brasilidade chama à
polêmica intelectuais paulistas e cario­
A questão da brasüidade constitui cas. Comparando o movimento moder­
um tema obrigatório no debate moder­ nista com as expedições bandeirantes,
nista, mobilizando indistintamente t<>­ os verde-amarelos argumentam que os
dos os intelectuais. Como enfrentar o paulistas sempre se destacaram pelos
fator diferença? Como explicara defasa­ seus ideais vanguardistas ao se d<;sloca­
gem Brasil-mundo? Que lugar caberia rem para as outras regiões... E bem
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 109

significativo o comentário que tecem ao telecto, evitando os perigosos meandros


visitarem o Rio de Janeiro: "Mais umA da reflexão, chega se ao ufanismo...
vez a província se adianta à metrópole." Estas ""0 algumas das idéias que
Mas o que está em jogo é o próprio compõem a doutrina dos verde-amare­
projeto de hegemonia paulista. A des­ los. Na realidade, sua ideologia está
qualificação empreendida em relação ao bem mais enraizada na nossa história
Rio de Janeiro - província com ares de do que supomoe. Ela se encontra diS5e­
metrópole - toma...e fundamental para minada nas linhas e entrelinhas dos
ass egurar o lugar de São Paulo no seio nossos projetos políticos e dos nosBOB
da nacionalidade. manuais escolares; aparece volta e
Além de polemizar com 08 intelec­ meia noe discurBOB de parlamentaree
tuais cariocas, 06 verde-amarelos tam­ ufanistas, chegando mesmo a desfru­
bém elegem paulistas como seus inter­ tar de certo consell8o entre os mais
locutores oposicionistas através das fi­ desavisados. A idéia do "Brasil giande"
guras de Mário e Oswald de Andrade. O seguida do imperativo "Ame..., ou dei­
confronto que se estabeleceu aqui é de xe-o" não é mais do que uma reinven­
outra natureza, decorrente de visões ção dessa ideologia.
antagônicas sobre a nacionalidade. Como explicar tal poder de aceita­
Através da visão geográfico-espa­ ção ou tal reconência? Por que esta
cial é possível explicar as origens do visão espacial do Braei! casa táo bem
Estado nacional (bandeirante), o rura­ com o ufanismo?
lismo da nossa civilização (voz do Oes­ A recoll8tituição da nossa história
te), a formação do caráter nacional (São pode oferecer uma resposta. De modo
Paulo = empreendedorlRio = contem­ geral, os nossos historiadores trall8mi­
plativo), a história como fruto da ge0- tem uma visão amarga do passado. A
grafia (percurso das expedições ban­ idéia de um "Brasil etIado" aparece
deirantes = percurso da brasilidade) e quase sempre MS reconotituições his­
o predomínio da natureza sobre o inte­ tórica,.. Forwamos um paÚ5 de mesti·
lecto. Essas idéias constituem os fun­ ços e analfabetos, Bofremos a extorsão
damentos da idéia verde--amarela da metrópole, nossos aIl8ei"" de liber­
através da qual o grupo consegue im­ dade foram oonados... Isto nos conta a
por sua hegemonia política ao longo de história. Mas a geogiafl9 fala uma ou­
três décadas (do modernismo ao Esta- tra linguagem: a da grandiosidade. En­
táo, há porque se ufanar do Brasil! Seu

do Novo). E dentro desse quadro que


OCQfIe a associação entre a ideologia

gigantesco mapa, sua natureza exube­
ufanista e a visão geográfica. E porque rante, sua flora e fauna, sua geoglsfia
a natureza tropical é um desafio que poética (o mapa do Brasil vira harpa).

sua conquista se transfOl'lU8 numa E perfeita a coi\iugação geogIafia-


epopéia a ser vivida por gigantes e ufanismo. Se o te"eno da história está
heróis (bandeirantes, é claro!). minado pelo pessimismo, "" nele não
Na qualidade de linguagem primor. cabem as Ioas e glóriAS, é necessário
dial, é a natureza que deve inspirar o deslocar...e entáo para a geogiafia.
"sentimento patriótico". Por isso a Gecr Na geografia as coisas falam por si.
grafia sentimental, de Plínio Salgado, A linguagem da natureza não envolve
dispensa a pe"Quisa etnográfica, tipo a trama das ações huma nas... Este
Mário de Andrade, para registrar ape­ campo é livre, portanto, para o que se
nas 08 sentimentos evocados pela paisa­ deseja construir. Por isso a geografia
gem. Dispensando as mediações do in- serve táo bem ao ufanismo. Se a histó-
110 ESTUDOS lIISTÓRICOS - 1993/1 1

ria nos condena, a geografia nos redi­ 13. "Nós", Papel e TI"ta. Sáo Paulo, 31
me... de maio de 1920, n9 1 . Citado por Mário da
Silva Brito, l-Jistól'ia do moder"úmo brasi·
leiro, São Paulo, Saraiva, 1958, vol . 1 , p.127.
14. Richard Morse, Fon".aç.üo hüstórica
de São Peu.lo, São Paulo, Difel, 1970,
Notas
p.343.

15. Klaxon, nQ 1 , 1 5 de maio de 1922.


1 . Thomas Skidmore, "O novo naciona­
Citado por Richard Morse, op.cit., p.277.
lismo", em Prelo no bl"wu::o; raça e ILacrouar
lidade no pensamento brasileiro, Rio de 16. Menotti dei Picchia, "Novas corren­
Janeiro, Paz e Terra, 1976, p.190, e Nicolau tes estéticas", Correio Paulistan.o, 3 de
Sevcenko, Literatura como missão; ten.sões março de 1920.

sociais e criação cultural na 1 a República, 1 7 , Oscar Sobrinho, UAgrandeza de São


São Paulo, Brasiliense, 1983, p.84. Paulo", Correio PalLlistOllO, 4 de maio de
2. Thomas Skidmore, op.cit., p.173. 1920.

3. Idem, ib., p.l84. 18. Luís 'lbledo Machado, Alltôllio de


Alcmtw a Machado e o modernismo, Rio
4 . Antônio Cândido, Literatura e socie­
{ '

de Janeiro, José Olympio, 1970, p.45.


dade; estudos de história literária, São
Paulo, Nacional, 1965. 19. Menotti dei Picchia, "O almoço de
ontem no Trianon", Correio Pau.listano, 1 0
5. Olavo Bilac, Jornal do Comércio, 2
de janeiro de 1921, p.3.
de maio de 1916, p.3.
20. Sobre o assunto consultar as crôni·
6. Idem, ib., p.3.
cas de Veiga Miranda, "Os palhaços do
7. Com ul tar a esse respeito as crônicas
Flamengo", 1 5 de outubro de 1920, P.li
de Hélios (pseudônimo de Menotti deI Pic­
Otto Prazeres , "Como se vive no Rio de
chia) publicadas no Correio Paulistano: A
Janeiro", 2 1 de dezembro de 1 9 2 0 ;
crítica, 29 set. 1920, p.3, Gente nova de
Chrysânteme, "Carnaval e sangue", 7 de
Portugal, 12 jul. 1920, p.1; e D'Annunzio,
fevereiro de 1921, p.1; Flexa Ribeiro, "Crê·
29 dez.1920, p.3.
nica Carioca", 1 3 de abril de 1928, p.2j e
8. Maria Teresa Sadeck. Machiauel, as charges sobre a vida carioca: "Noivados
machicwéis: a trag(fdia. octllviaJta, São cariocas", 1 1 de março de 1920, e "A crise
Paulo, Símbolo, 1978, p.85. das casas", 1 3 de abril de 1920.
9. Cândido Motta Filho, ''Meu depoi­ 21. Hélios, "Calor'\ COI1'cio Pau[istOlI.O,
mento", em Testemunho de uma. ge.l'ação, 28 de novembro de 1926, p.4.
org. E . Porto Alegre Cavalheiro, Globo,
22. José do Patrocínio Filho, "Na estrada
1944. As idéias do autor têm clara filjação
de Damasco; epístola aos cariocas", Correio
na obra de Alberto 'lbrres, Na década de
PcutlistwlO , 18 de dezembro de 1922, p.6.
1920, Cândido Motta Filho escreve uma
série de artigos para o Correio PaulistQJw 23. Menotti deI Picchia, "Novas corren­
que depois seriam reunidos na obra Alber· tes estéticas", Correio PaulistlU�o, 3 de
lo Torres e o tema da nossa geraç.ão, março de 1920, p.l.

10. Cândido Motta Filho, op.cit. 24. Nicolau Sevcenko, op.cit., p.188 e
203-205.
1 1 . Víctor Viana, "Poetas", Jornal do
Comércio 7 jul.de 1919, p.3.
, 25. Mário Vilalva, Como se faz uma

12. Alceu Amoroso Lima, Mem,órias im­ in.stituiçÕIJ; notícia histórica sobre o Cen·
tm Paulista (1907-37), Rio de Janeiro, Re­
provisadas, Petrópolis, Vozes, 1973. Gitado
vista dos Tribunais , 1937.
por Lúcia Lippi Oliveira, liAs raízes da ar·
dem: os intelectuais, a cultura e o Estado", 26. Lúcia Lippi Oliveira,O nacionalis·
em Revolução de 30, Brasfiia, UnB, 1983. mo no pensmnenlo político brasileiro da 1 11
A BRASIUDADE VERDE·AMARELA 111

República, Rio de Janeiro, CPDOC (mi­ 4 1 . Karl Mannhein, "O pensamento


meo), p.49. conservador" em José de Souza Martins
I

27. Rubens do Amaral, "Manifeataçães (org.), 1"trodução crítica à sociologia ru­


do nacionalismo", Revista do Brasil, São ral, São Paulo, Hucitec, 1981, p.77-131.
Paulo, nov.1919, p.218-25. 42. Eduardo Jardim de Moraes, op.cit.,
28. Lúcia Helena, Uma literatura an­ p.121-27.
tropofágica, Rio de Janeiro, Cátedra, 43. Gilda de Melo e Souza, O tupi e o
1981, p.108. alaúck; uma inkrpretaçeÚ) de Macunaíma ,

29. Mário da Silva Brito, op.cit., p.123. São Paulo, Duas Cidades, 1979, p.38-39.
30. Menotti dei Picchia, "Uma carta", 44 Flávio Koethe, "O percurso do he­
COI1't!io FaulistaJw, IV de julho de 1922, p.4. rói", Tempo Brasileiro (passagem da mo­
demidade), n' 69, abr/jun. 1982, p.96-120.
31. Menotti dei Picchia, "11ma carta",
Correio PaJ1UstwJ.,O, 18 de outubro de 45. Mário de Andrade, Iflmproviso do
1921, p.5. mal da América", 1928. Citado por Flora
32. Sobre o combate ao romantismo Sussekind, Tal Brasil, qual romance ?, Rio
pelos verde-amarelos ver as seguintes crô­ de Janeiro, Achiamé, 1984, p.9S.
nicas publicadas no Correio Paulistw,o: 46. A distinção entre o perfil do herói
"O último romântico", 27 de agosto de épico e do herói pícaro é feita por Flávio
1921, p.5; ''Pelo Brasil!", 19 de setembro Koethe, op.cit., p.120.
de 1923, p.3j 'Patriotismo prático", 4 de 47. Cassiano Ricardo, Martim Cerel'ê,
outubro de 1923j e "São Paulo de hoje", 7 p.221-23.
de setembro de 1922, p.38.
48. A psicologia do habitante do litoral
33. Eduardo Jardim, A constituição da e do sertão é traçada por Alceu Amoroso
idéia de mode,.uidcuJe no modernismo bJ'(Ü Lima, op.cit., p.267-75.
sileiro, Rio de Janeiro, UFRJ, 1983 (tese
49. Alceu Amoroso Lima, op.cit., p.174-
de doutorado).
75.
34. Menotti dei Picchia, "Regionalis­
50. Plínio Salgado, "Geografia senti­
mo", Correio Paulistano, 3 de outubro de
mental", Co,.,.eio P(Ullistano, 10 de novem­
1926, e "Carta ao Dany", Correio Paulis­
bro de 1927, p.3. Esta idéia da geografia e
ta"o, 30 de setembro de 1926, p.7.
da espacialização do Brasil como refer­
35. Hélioe, "Nacionalismo", Correio enciais para exprimir a brasilidade começa
Paulistall,o, 13 de abril de 1923, p.5 ser desenvolvida na década de 1920, atra­
36. Estas idéias são expostas por Me­ vés dos artigos que o autor escrevia para o
notti deI Picchia no artigo ''Regionalismo'' Cm"l"eio PeUllistw�o. Em 1937 Plínio os reu­
(ver nota 34) e por Cassiano Ricardo em niria em uma obra intitulado Geografia
"O espírito do momento e da pátria na 8entimental.
poesia brasileira", Correio Pa.u.listw,o, 24 51. Français Furet, L'aJ.elie de I'histoire,
de setembro de 1925, p.3. Paris, Flamarion. Citado por Maria Helena
37. Eduardo Jardim de Moraes, op.cit., Rouanet, "Uma literatura sentimental pa­
p.62-63. ra neutralizar a subjetivirlade", 'Thmpo
38. 'Terra Roxa, no I, p.6. Citado por Brasikiro, jan-mar da 1984, p.5-6.
Eduardo Jardim de Moraes, op.cit., p.103. 52. Cassiano Ricardo, Martim Cererê,
39. Ibidem. p.191.

40. Sobre o projeto cultural dos verde­ 53. Plínio Salgado, Geografia. senti­
amarelos consultaro trabalho da autora: O mental, em Obraa completos , São Paulo,
mito da originaJ.i dcule brasileira; a tf'ojellr Ed. das Américas, 1954, v.N.
ria intelectual de CasSiO/lO Ricardo (doa 54. Luís Costa Lima, O controle do ima,
WlOS 20 ao Estado Novo), Rio de Janeiro, gin.ário; razão e imaginação IlO ocidente,
PUC, 1963 (tese de mestrado), p.24-65. São Paulo, Brasiliense, 1984, p.14S.

112 ESTUDOS I I ISTOHlCOS - J !)D3I1 1


55. Plínio Salgado, Geografia. sen ti­ 67. Candido Motta Filho, "Literatura
m(!lttal, em Oúras com pletas , São Paulo, nacional", JOJ'lLCll (w Commercio, São Pau-
Ed. das Américas, 1954, v. IV, p.21·22. 10, 3 de outubro de 1921. Citado por Mário
56. Entrevista de Hérodete à 'Michel da Silva Brito, op.cit., p.176.77.
Foucault, "Sobre a geografia", em Micl ofi.­'
68. Ribeiro Couto, O eRpírito de Seio
sica do poder, Rio de Janeiro, Graal, 1982, Pa.ulo. Rio de Janeiro, Schmidt, 1932.
p.161.
69. Hélios, '�acionalismo integraliza­
57. Sobre a relação dos verde-amarelos dorll, Correio PcuLlislemo, 19 de agosto de
com o militarismo ver Calazans de Cam­ 1923, p.3.
pos, "O verde-amarelismo nas casernas",
Correio Paulislcmo, 1 4 de outubro de 70. Hélios, ''Nacionalismo perigoso",
1927, p.4. Correio PoulistWlO, 4 de maio de 1920, p.6.

58. Casslano Ricardo, "Nossa terra e 7 1 . Estas idéias sáo expostas no Cor­
nossa língua", Correio PrULlisloILo, 8 de reio Paulistano por Plínio Salgado em
dezembro de 1925, p.5. seus artigos '�acionalismo", publicado a
2 de agosto de 1923, e lISuave convívio", de
59. Luís Costa Lima, op.cit., p.l04.
29 de maio de 1923, p.3.
60. Cassiano Ricardo, "O estrangeiro",
Correio Paulistano, 25 de maio de 1926, p.3. 72. ru idéias que associam o fenômeno
étnico paulista ao modernismo são expos­
61. Hélios, "Uma carta anti-cáqui", Cor­
tas por Menotti deI PiccJúa em "O proble­
reio PCULlistllll.O, 5 de fevereiro de 1926, p.2.
ma estético em face do fenômeno étnico
62. Adauto Castelo Branco, "Brasilida­
paulista", Correio Puulistcut.O , 7 de setem­
de", Correio Pau listano, 11 de agosto de
bro de 1922, p.2, e "Poesia Brasil", Correio
1928, p.5.
Pcuilistmw, 18 de maio de 1925.
63. Estas idéias que consagram as raí­
73. Menotti deI Picchia, liA questão ra­
zes ruralistas de nossa formação e aler­
cial", Correio Paulistano , 10 de maio de
tam para o perigo citadino sáo expostas
1921, p.1.
por Plínio Salgado em "Aspectos brasilei ­
rosu, Correio Pou.lis tw,o, 30 de julho de 74. Wilson Martins, O moder"ismo,
1927, p.3; Candido Motta Filho, "Para a São Paulo, Cuítrix, p.151.
conquista da terra", Correio Pau.listano , 4
75. Arespeito do assunto consultar Hé­
de julho de 1927, p.5; e PUnia Salgado,
lias, "Escoteiros", Correio PaulislcuIO, 10
USão Paulo no Brasil; crônicas verde-ama­
de maio de 1922, p.4.
relas", Correio Pau.listano, 21 de julho de
1927, p.3. 76. Cassiano Ricardo, "Meus heróis",
Correio PaulislGJIO, 29 de dezembro de
64. Cassiano Ricardo, "As conferencias
1927, p.3.
do Centro Paulistano", Correio Pau.lista-
110, 20 de novembro de 1926, p.3. 77. A descrição desse personagem é fei ­
65. As palestras do Centro Paulista ta JXlr Herman Lima, em lliswl'ia_ da C�
realizadas por Marcondes Filho, Menotti l'icaJ.ura 1).0 Brasil , Rio de Janeiro, José
deI Picchia, Alfredo Ellis, Roberto Moreira Olympio, 1963, vA, p.1.368.
e outros encontram-se publicadas na obra
S{w Paulo e sua. evoluçcio, Rio de Janeiro, (Recebido para publicação emjan.eiro de 1993)
Gazeta da Bolsa, 1927.
66. Oswald de Andrade, "Reforma lite­
rária", Jornal do ComnwI'cio, 19 de maio
de 1921. Ci tado por Luís 1bledo Machado, Mônica Pimenta Velloso é pesquisado­
op.cit., p.16. ra do CPDOC/FGV.

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