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DOI: http://dx.doi.org/10.22296/2317-1529.

2001n5p119

OS RUMOS DA CIDADE: bulário eclético, beaux-arts, neocolonial ou “moderno


URBANISMO E MODERNIZAÇÃO monumental” – são enfatizados e discutidos.
EM SÃO PAULO A obra salienta o papel relevante desempenhado
Candido Malta Campos na conformação do espaço da cidade por políticos, en-
São Paulo: Editora Senac, 2002. tre os quais, João Alfredo, Fábio Prado e Gofredo Te-
les; por engenheiros, arquitetos e urbanistas – como
Telma de Barros Correia Vítor Freire, Saturnino de Brito, Ricardo Severo, Bou-
vard, Ulhoa Cintra e Artur Sabóia; e por personagens
O livro Os rumos da cidade: urbanismo e moder- que atuaram nos dois campos de atividades – como
nização em São Paulo, do arquiteto Candido Malta Heribaldo Siciliano, Alexandre de Albuquerque, Pires
Campos, surge como uma importante contribuição do Rio, Anhaia Melo e Prestes Maia.
para a compreensão do papel de urbanistas e políticos Na sua conclusão, ao tecer considerações sobre a
nas transformações do espaço desta cidade no período configuração atual de São Paulo, o autor assinala que “o
entre 1870 e 1945. Produzido como tese de doutora- modelo que persiste na cidade não é único nem inevi-
do pelo programa de Pós-Graduação da Faculdade de tável, tendo resultado dos embates em torno da moder-
Arquitetura e Urbanismo da USP – orientada pelo Prof. nização urbana ao longo do século passado” (Campos,
Dr. Philip Gunn –, o livro se baseia numa pesquisa 2002, p.631). O grande mérito de sua obra é precisa-
ampla e incorpora análises acuradas. Entre as qualida- mente desvendar aspectos desses embates. O autor
des da obra estão a riqueza e diversidade das fontes mostra como nessas disputas vão estar envolvidas de-
consultadas, as ilustrações profusas e esclarecedoras mandas simbólicas, estéticas, higienistas, de tráfego, de
(sempre tratadas de forma complementar e subalterna valorização imobiliária e interesses políticos e comer-
à narrativa), a densidade, rigor e profundidade das aná- ciais. Confrontos, debates e busca de soluções alterna-
lises realizadas e a redação ágil, características que tor- tivas, muitas vezes conciliatórias, marcaram a trajetória
nam a leitura de suas mais de 600 páginas tarefa insti- de projetos e propostas, e vão contrapor urbanistas, po-
gante e agradável. O livro baseia-se em trabalho de líticos e técnicos dos setores de obras públicas, cujas po-
pesquisa histórica que concilia a leitura de uma vasta sições são defendidas em artigos, conferências, cursos e
bibliografia sobre o tema a um amplo trabalho com as em propostas de intervenção no espaço urbano. Dois
fontes – artigos, transcrições de conferências, leis, pa- aspectos destes embates são enfatizados ao longo do li-
receres, discursos, mapas e fotos – dialogando com es- vro: o confronto entre projetos diversos e o relativo des-
te material e, a partir dele, construindo uma narrativa compasso entre projetos e realizações.
bem estruturada. Em termos da convivência e concorrência entre
Trata-se de uma abordagem abrangente que recu- orientações e projetos diversos, uma das questões enfa-
pera e articula aspectos relevantes das transformações tizadas refere-se às diferentes formas de apropriação e
pelas quais passaram a cidade de São Paulo – especial- assimilação de experiências e modelos internacionais.
mente sua área central – ao longo do período em aná- A esse respeito mostra-se, por exemplo, como nas pri-
lise. Analisa a gestação e o conteúdo de projetos ur- meiras décadas do século XX modelos de inspiração
banísticos e de instrumentos intervencionistas ou “hausmannianas” – então privilegiados nas interven-
reguladores (códigos de obras, zoneamentos, normas de ções urbanísticas nas capitais nacionais – chocaram-se
parcelamento, taxas de melhoria etc.). Investiga de for- com padrões de inspiração “sittiana”, defendidos por
ma minuciosa a evolução e maturação de propostas e a urbanistas como Vítor Freire e Saturnino de Brito. De-
maneira como foram eventualmente implantadas. Des- monstra-se também como a ênfase das propostas urba-
venda a diversidade das propostas formuladas em meio nísticas foi se deslocando de questões sanitárias para
a diferentes posturas, divergências teóricas e distintas fi- preocupações viárias, num movimento que redefine
liações. Indica as referências internacionais e nacionais inclusive os padrões estéticos eleitos e o lugar de preo-
mobilizadas nas diferentes propostas e a forma como se cupações desta natureza nos planos. Recupera-se o de-
procurou adequá-las às condições locais. Os elos entre bate entre propostas que buscam conter o crescimento
modelos urbanos e arquitetônicos – vinculados a voca- da cidade – defendidas por Anhaia Melo – com outras

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R E S E N H A

que pressupõem um crescimento ilimitado, que tive- Ao final de sua análise, Campos salienta o poder de
ram em Prestes Maia um representante. Assinala-se o permanência da visão expansionista e “rodoviarista” de
conflito entre o padrão urbanístico dos bairros-jardins Ulhoa Cintra e de Prestes Maia, enumerando interven-
e os modelos de vias retilíneas e largas consagrados nos ções recentes na cidade de São Paulo que concretizam
códigos das primeiras décadas do século XX, além dos diretrizes do Plano de Avenidas, como a passagem sub-
embates entre defensores e críticos da verticalização do terrânea da avenida Tiradentes, que integra o períme-
centro da cidade, e entre propostas de criação de gran- tro de irradiação e túneis e vias ligando as avenidas
des avenidas por meio do alargamento de vias existen- Bandeirantes e Salim Maluf, que integram o terceiro
tes ou criação de novas vias em fundos de vale. circuito perimetral.
Ao assinalar o descompasso entre planos e inter- Ao tratar a cidade de São Paulo como um campo
venções, o autor contrapõe ao teor e a amplitude dos de disputas entre idéias, práticas e projetos urbanísti-
projetos as características e o caráter parcial das realiza- cos, que contrapõem concepções que afetam interesses
ções. Mostra o limite geográfico restrito atingido pelas diversos, o livro desvenda o papel central de urbanistas
reformas urbanas do início do século XX. Citando ins- que atuaram no período em análise na mediação de
trumentos como as taxas de calçamento e a contribui- conflitos de interesses e de visões de cidade. Analisan-
ção de melhoria, indica a dificuldade encontrada de do esta atuação, mostra como o domínio de técnicas, o
pôr em prática medidas amplamente defensáveis em conhecimento de experiências internacionais e uma
termos conceituais. Referindo-se aos casos dos urbanis- suposta neutralidade fundamentada numa pretensa ra-
tas Anhaia Melo e Prestes Maia, mostra os limites da cionalidade foram instrumentos importantes. Mas, o
aplicação de muitas das ditas “soluções racionais” reco- grande mérito da obra é precisamente sublinhar o vas-
mendadas por urbanistas, que não conseguiram efetuá- to campo de lutas – tantas vezes escamoteado em abor-
las mesmo quando prefeitos da cidade. Tal descom- dagens restritas a aspectos formais – que permeia o
passo evidencia não apenas limitações orçamentárias, pensamento e a prática do urbanismo.
como também a busca em conciliar a ação pública com
interesses locais. Ao analisar a trajetória entre a formu-
lação das propostas urbanas e a eventual intervenção, CIDADES ESTREITAMENTE
Campos evidencia os ajustes introduzidos e as negocia- VIGIADAS: O DETETIVE
ções efetivadas que buscavam conciliar interesses diver- E O URBANISTA
sos de setores do capital, de valorização fundiária, de Robert Moses Pechman
reprodução da força de trabalho e de legitimação dos Apresentação de Stella Bresciani
dirigentes. Analisando este percurso entre proposições Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
e ações, o autor salienta como “o processo de interven-
ção urbanística, longe de ser mero campo de progresso Amilcar Torrão Filho
técnico, implicava opções com sérias conseqüências so-
bre as condições de vida, acumulação e produção vi- Clarice Lispector escreveu em uma crônica que,
gentes no centro urbano” (Campos, 2002, p.283). quando criança, acreditava que os livros nasciam em
Em meio a tais embates, o autor assinala o deli- árvores. Hoje sabemos que eles têm autores e são resul-
neamento de algumas tendências, entre as quais a mais tado de muito trabalho e de um esforço de imaginação.
nítida é a crescente ênfase das intervenções – em espe- Há ainda aqueles que são escritos inspirados em outros
cial a partir da década de 1920 – nas questões referen- livros, que lhes abrem o caminho ou servem como fon-
tes a tráfego e sistema viário. Tal ênfase ocorre em de- te de informação, estímulo ou inspiração. É este o ca-
trimento de outras demandas – estéticas, habitacionais so de Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o ur-
e de lazer – e se direciona, sobretudo, ao estímulo do banista, de Robert Moses Pechman, inspirado que foi
transporte particular e do ônibus entre as modalidades pela leitura de um pequeno livro já tornado um clássi-
de transporte coletivo. O Plano de Avenidas – conce- co. Considera-se o autor uma destas pessoas a quem,
bido por Prestes Maia no final da década de 1920 – por defeito de fabricação, os “livros desequilibram, pro-
surge como um momento exemplar desta tendência. duzem abismos, causam estragos, torcem a vontade,

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