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Americanos por br

asileiros
no fim do século X
IX
Antonio D
imas
resumo abstract

No final de 1893, Eduardo Prado In the end of 1893, Eduardo Prado stirred
tumultuou o cenário intelectual e político quite a buzz in the Brazilian intellectual
brasileiro ao publicar A Ilusão Americana, and political scene when he published The
imediatamente confiscado pelo governo American Illusion, which was immediately
de Floriano Peixoto, nem um pouco confiscated by the government of Floriano
interessado em provocar atrito com o Peixoto, who wanted to avoid spurring
governo norte-americano. Em 1899, foi clashes with the American government. In
a vez de Oliveira Lima publicar seu Nos 1899, Oliveira Lima published In the United
Estados Unidos, obra de franca simpatia States, a work which was clearly supportive
pelo país norte-americano. Entre ambos, of America. Between those two works, the
o jovem Adolfo Caminha publicou seu No young Adolfo Caminha published his In the
País dos Ianques (1894), relato de viagem Country of the Yankees, an account of the
que realizara como guarda-marinha do trip he took as an ensign on the Almirante
Almirante Barroso, em visita oficial a Nova Barroso, in an official visit to New Orleans
Orleans e Nova York. Estas obras, com and New York. Those works, along with
algumas crônicas de Olavo Bilac e com a some chronicles by Olavo Bilac and the
crítica literária de José Veríssimo, diluem criticism by José Veríssimo, tone down the
parte da histórica francofilia brasileira e historical Brazilian Francophilia and bring
nela inserem uma alternativa que aponta into it an alternative pointing to the English
para o universo de língua inglesa. language universe.

Palavras-chave: Adolfo Caminha; Keywords: Adolfo Caminha; Eduardo


Eduardo Prado; José Veríssimo; Olavo Prado; José Veríssimo; Olavo Bilac; The
Bilac; A Ilusão Americana; No País dos American Illusion; In the Country of the
Ianques; Nos Estados Unidos; crônica. Yankees; In the United States; chronicle.
Q
uando derrubaram o Palácio este espaço e com o grau de intervenção neste
Monroe, no Rio de Janeiro, debate, vêm-nos à mente nomes como Adolfo
na década de 70, derrubava- Caminha (1867-1897), Eduardo Prado (1860-
-se não só um monumental 1901), Joaquim Nabuco (1849-1910), José Ve-
conjunto arquitetônico, mas ríssimo (1857-1916), Machado de Assis (1839-
também um marco de nossa 1908), Olavo Bilac (1865-1918) e Oliveira Lima
indecisão cultural. Implantado (1867-1928). Excetuando-se Adolfo Caminha e
em 1904 na cabeceira sul da lembrando que houve diferentes graus de parti-
Avenida Central, hoje Aveni- cipação, todos eles estiveram envolvidos com a
da Rio Branco, aquele edifício criação da Academia Brasileira de Letras, uma
público explicitava nossa fran- iniciativa de timbre nitidamente francês, pensa-
cofilia e repudiava, de modo da para conferir reconhecimento grupal a uma
pouco sutil, nossa herança classe intelectual já atuante, mas ainda carente
urbana portuguesa. Dois anos de imagem pública coesa e institucionalizada.
depois, o Monroe tornava-se Servem-nos esses nomes para esboçar algu-
cenário de outro movimento, de outra escolha: mas considerações em torno dos intelectuais bra-
nosso alinhamento com os Estados Unidos, quan- sileiros do final do século XIX, que se manifesta-
do ali se instalou a 3ª Conferência Pan-Americana, ram, contra ou a favor, da incipiente presença dos
em 1906. Em muito pouco tempo, o imponente Estados Unidos em nosso universo político e cul-
“bolo de noiva” esquartejou-se entre a Europa e tural, um relacionamento que sempre se mostrou
os Estados Unidos. Setenta anos depois, em 1976, conturbado e sujeito aos humores do momento.
apagaram-no, de vez, em nome de um Brasil novo Ou, se quisermos dilatar o espectro, esquadrinhar
e eufórico, porque – era o que se alegava – ficou alguns componentes da construção lenta do fluxo
na contramão atrapalhando o tráfego. transatlântico entre a língua inglesa e este país
De um ponto de vista simbólico, é esse de ascendência latina e composição mestiça, cujo
imponente “bolo de noiva”, segundo o jargão centro de irradiação era, de preferência, o Rio de
arquitetônico, que concentra e ilustra essa in- Janeiro, até o início da Segunda Guerra Mundial.
decisão, esses impasses, essas escolhas, que
vinham de longe e de que participaram mui-
tos intelectuais brasileiros, com intensidades
diferentes e com discursos variados, desde os
mais radicais aos mais moderados; desde os ANTONIO DIMAS é professor titular
de Literatura Brasileira da FFLCH-USP e
mais contundentes aos mais maleáveis. Para autor de, entre outros, Bilac, o Jornalista
efeito desta especulação curta, compatível com (Edusp/Imprensa Oficial/Unicamp).

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Do nosso lado, uma bibliografia já assen- Candido, Decio de Almeida Prado, João Cabral
tada – ficcional, testemunhal ou documental de Melo Neto, Lauro Escorel, Marques Rebelo e
– estende-se sobre o assunto, mas sua inclusão Rachel de Queiroz aparecem como tradutores.
aqui não cabe. Quando a universidade brasileira atenuar
Aqueles escritores, jornalistas e intelec- ou levantar o veto ideológico que pende sobre
tuais, reunidos em torno da Academia Brasi- as relações intelectuais entre nós e os norte-
leira de Letras e autorizados por uma carreira -americanos, talvez reduplique-se a bibliografia
pública que não era de somenos, externaram desse campo, ainda repleto de recantos obscu-
sua opinião, a partir de um centro irradiador ros e profundos.
de informações, que era o Rio de Janeiro da
***
virada do século. Não obstante estarem imer-
sos em uma cultura francófila, foram eles que É de uma das crônicas de Bilac – ele, de
ajudaram a construir um repertório alternativo novo! – que desencravo comentário de amplo
para nossa formação cultural mestiça, na qual alcance cênico no qual se visualiza como era
a França parecia protagonizar papel exclusivo a imagem dos Estados Unidos. Escrevendo sua
no século XIX, devorando todas as outras in- coluna “Diário do Rio” para o Correio Paulis-
fluências. Mas não era bem assim. tano (31/5/1908), o cronista comenta a reação
É claro que não foram apenas esses os inte- zangada da imprensa carioca à visita de uma
lectuais, nem estavam eles inaugurando alguma “baronesa dada às letras e às viagens”, suspeita
contenda nova. de ingratidão. Diz o parágrafo meio longo:
Hipólito José da Costa (1774-1823), por
exemplo, antecipara-se a eles e nos deixou seu “Aí está bem vivo o exemplo dos Estados Uni-
Diário da Minha Viagem para Filadélfia, es- dos da América. Desde que me conheço, e
crito entre 1798 e 1799, mas publicado no Brasil desde que leio jornais da Europa, só encontro
apenas em 1955. Em 2016, Tânia Dias, pesqui- nesses jornais publicações malevolentes contra
sadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Ja- a grande nação americana. Segundo a imprensa
neiro, deu-nos uma robusta edição crítica desse europeia, o povo americano é profundamente
diário, muito bem contextualizado e com trata- egoísta, plutocrata, açambarcador e amoral; a
mento filológico exemplar. Depois de Hipólito, sua preocupação única e absorvente é ganhar
outra figura importante nessa conexão Brasil- dinheiro; o seu único ideal é o gozo das baixas
-Estados Unidos foi a de José Carlos Rodrigues satisfações da vida; as suas mulheres são sacer-
(1844-1923), que publicou em Nova York uma dotisas do deus Flirt; os seus políticos são de
revista denominada O Novo Mundo, entre 1870 uma venalidade inexcedível; os seus casamen-
e 1879, e da qual foi secretário o maranhen- tos são negócios; os seus negócios são ladroei-
se Sousândrade (Joaquim de Sousa Andrade, ras... É isso o que se lê em artigos de jornais,
1832-1902), poeta de traço radical. No campo em crônicas, em revistas, em livros franceses,
específico das conexões literárias incipientes ingleses, alemães, italianos, portugueses, es-
entre os dois países, não é complicado elaborar panhóis. E tudo isso não impede que a nação
lista preliminar, onde alguns nomes têm pre- assim julgada seja hoje a mais rica da terra –
sença garantida. Por exemplo: Alceu Amoroso nação nascida ontem, e já fazendo sombra e
Lima, Brito Broca, Cassiano Nunes, Eugênio inveja às mais velhas e opulentas!!” 1.
Gomes, Hélio Lopes, Lúcia Miguel Pereira,
Manuel Bandeira, Otto M. Carpeaux, Sérgio Segundo Bilac, não só a baronesa era pre-
Milliet, Vinicius de Moraes, Willi Lewin e tan- viamente suspeita. Uma outra leva de visitantes
tos outros, que atuaram também como inter-
mediários entre o Brasil e a Inglaterra. Numa
antologia de contos norte-americanos, de 1963,
1 As crônicas bilaquianas aqui utilizadas foram recolhidas
organizada a partir de uma outra publicada em por Dimas (2006). Esta é do vol. 2, p. 186. Daqui em
1945, nomes como Alfredo Mesquita, Antonio diante só serão indicados o volume e a página.

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estrangeiros também, porque, argumentavam modo como nos conduzíamos diante dos países
alguns jornalistas, “toda essa gente aqui vem europeus com quem mantínhamos contato his-
com o fito no nosso dinheiro, e, não sendo paga, tórico ou diante da força emergente dos Estados
vinga-se de nós, caluniando a nossa civiliza- Unidos. Nesse caso, variando entre o sério e o
ção” (vol. 2, p. 186). irônico, mas mantendo sempre uma perspectiva
Desmanchada a pontualidade da questão, o cool, alinham-se várias crônicas suas em que
que está em jogo, em contexto mais largo, é a se diversifica o assunto em torno da conduta
opinião do cronista, que defende maior recep- norte-americana. Em certo momento, o que in-
tividade ao estrangeiro, mesmo que sua opinião teressa é a iniciativa disparatada de um grupo
não nos adule; que não preencha nossas expec- de magnatas locais, que pretende comprar a
tativas de afago; que não se curve à propalada Torre Eiffel e transportá-la de Paris para Bal-
beleza do país ou à nossa mítica simpatia. timore. O gesto provoca a plena aprovação do
Aquilo que parece lembrança isolada de Bi- cronista, que achava um horror aquele monu-
lac e, portanto, mero repente condenado à eva- mento criado para festejar a Exposição Univer-
nescência da crônica, perde essa característica sal de Paris de 1889. Sua opinião a respeito é
se o juntarmos com outras passagens de outras taxativa: “Um sindicato de capitalistas yankees
crônicas suas nas quais o relacionamento com o adquiriu o monstro por cerca de dous mil con-
estrangeiro é fio condutor. Habituado a prolon- tos: Paris, se a sua municipalidade tivesse juí-
gadas viagens anuais, rumo à Europa, ou afei- zo, devia dar ainda a Baltimore um milhão de
to a caminhos internos e distantes de seu Rio francos de quebra para lhe agradecer o favor”
querido, Bilac expande-se sobre seus contatos (vol. 1, p. 142). Em outro momento, sua preo-
com o outro, sempre disposto a encará-lo de cupação é com desordens públicas em Boston,
forma receptiva, mas não isenta de crítica. Ao onde “ainda se ensanguentam caras e ainda se
longo de sua produção para jornais e revistas arrebentam crânios em lutas religiosas” (vol. 1,
não é difícil recortar comentários seus sobre p. 169). Mais adiante, sua atenção se volta para
nosso comportamento diante do estrangeiro, o gigantismo norte-americano: “Nos Estados
seja ele abonado e famoso, seja imigrante po- Unidos só se fazem cousas monumentais: tudo
bre em busca de novas oportunidades de vida. ali é descomunal – casas e ideias, fortunas e
Em outra crônica para o Correio Paulistano falências” (vol. 1, p. 874).
(4/6/1908), por exemplo, sua atenção volta-se O bom cronista ajusta sua pulsão narrati-
para os imigrantes árabes que nos procuravam, va ao assunto. Do ponto de vista do artefato
aponta para a hostilidade que sofriam anos an- literário, o equilíbrio entre o discurso e sua
tes e para o acolhimento de então. Mais impor- motivação externa deve ser o mais justo possí-
tante que o fato em si, no entanto, é sua con- vel para que não haja sobrecarga emocional do
clusão a respeito da nossa política migratória: texto, nem do leitor. Na construção da crônica,
Bilac pregava com insistência o uso da ironia e
“Uma de duas: ou temos vitalidade própria bas- da piedade, título, aliás, de um de seus livros,
tante para absorver e incorporar ao nosso gênio publicado em 1916. Numa de suas crônicas, ele
e à nossa raça todos os elementos estrangeiros se explicita a respeito dessa dualidade que deve
que nos procurem – ou não a temos. No pri- controlar a construção do gênero:
meiro caso, havemos de absorver igualmente
os morenos e os claros, os pretos e os amarelos, “Vêde bem! Se há um desastre, se há um cri-
os europeus e os asiáticos. E, no segundo caso, me, se há um suicídio, descrevemos essas cou-
não será a escolha da colonização que nos há sas com a mesma indiferença, com a mesma
de manter uma independência e uma preponde- calma, com a mesma impassível opulência de
rância impossíveis” (vol. 2, p. 187). palavras ocas com que descreveríamos um
baile, um batizado, uma pândega. Manejamos
Não é difícil também recolher aqui e ali a ironia e a piedade com o mesmo soberano
suas opiniões sobre nossa política externa e o desdém” (vol. 1, p. 264).

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Movido por esse princípio, o cronista en- “Com quem devemos procurar manter uma
frenta os assuntos pândegos ou os sérios com solidariedade, que favoreça o nosso progres-
a mesma tonalidade estilística, sem demons- so, tão retardado por sessenta e sete anos de
tração de ânimo alterado. Isso não significa, é monarquia inepta e dezessete anos de república
claro, omissão opinativa. Diante da notícia de desmiolada? – com os vizinhos, que só querem
transferência continental da Torre Eiffel ou de crescer e prosperar à custa da nossa difamação,
uma outra que previa a construção nos arre- sistematicamente organizada? com os cafres?
dores de Pittsburgh, o grande polo siderúrgico com os chins? com os lapões? com os zulus?!”
dos EUA, de uma estátua enorme de Tubalcaim, (vol. 1, p. 787).
o descendente tinhoso de Caim, que era tido
como o primeiro homem a manejar o ferro e o Da recusa a determinadas parcerias à acei-
cobre, a reação do cronista é sempre a mesma: tação eufórica de outras, seu passo é curto e
ponderada, mas humorada. E o mesmo se pode temerário, mas ajustado ao tempo. Bilac não
dizer se o fato em foco é de alcance mais amplo se poupa pelos jornais. Graças ao conforto do
e menos local. Quando os Estados Unidos dece- prestígio poético mais que assegurado, sua in-
param parte da Colômbia para criar o Panamá, tromissão no cotidiano não se faz esperar. Mal
em novembro de 1903, o cronista atribuiu ao fizera 20 anos, seu nome explodira como poeta
“sentimentalismo” – variante eufêmica de con- helênico; aos 40, capitalizava o trunfo e aposta-
servadorismo – as reações contrárias à nova ge- va numa outra reconfiguração geopolítica me-
ografia mesoamericana. Segundo Bilac, o gesto nos literária e mais Realpolitik. A 3ª Conferên-
ousado provocou a indignação conservadora: cia Pan-Americana, reunida no Rio de Janeiro,
em agosto de 1906, sob o comando do Barão do
“Contra a intervenção cirúrgica, praticada com Rio Branco e de Joaquim Nabuco, seria o palco
soberba audácia pelo Tio Sam, já começou a ideal para a guinada decisiva e assumida de
ouvir-se protestos do Sentimentalismo. O Sen- sua carreira. Como cenário perfeito para essa
timentalismo é um médico da escola antiga, que transformação pessoal e pública, que visava ao
tem medo dos processos novos, e não se anima a coletivo, nada melhor que o Palácio Monroe,
praticar outra medicina que não a de pomadas e cuja arquitetura e decoração rasgadamente
pílulas. O grande Cirurgião do Norte não acredi- francesas haveriam de acolher a mudança sig-
ta na ação de pílulas e pomadas: empunhou a sua nificativa de rumos políticos, emparelhando o
rutilante faca cirúrgica e deu o golpe decisivo na fascínio francês à gula norte-americana.
questão, com uma coragem e uma perícia que Se nos voltarmos para suas crônicas desse
encheram o mundo de espanto” (vol. 1, p. 607). período, verbaliza-se de modo ostensivo sua
adesão à política americanista preconizada
A metaforização médica do affair político pelo Barão do Rio Branco e implementada por
alivia, mas não disfarça a posição do cronis- Joaquim Nabuco. Além dessa adesão, de cam-
ta, sempre entusiasmado com modificações de bulhada com manifestações desembaraçadas a
cenários urbanos ou nacionais. Daí que não se favor de novas tecnologias (automóveis, aero-
cale frente a conflitos expansionistas europeus, naves, maquinário para imprensa...), o antigo
às ocupações territoriais por parte de estados poeta não vacila e esclarece que tais mudanças
hegemônicos, ao temor generalizado diante implicam abandono de uma linguagem em be-
do “perigo alemão”, do “perigo amarelo”, do nefício de outra; que a poesia serve menos que
“perigo americano” ou “pan-americano”. Sua a prosa para os tempos que lhe correm entorno;
visão pragmática, parente muito próximo da que aquela serve ao sonho e que esta, à dureza
feição realista de sua poesia parnasiana, im- das relações comerciais e políticas. Cedendo-
pelia o cronista a sugerir alinhamentos úteis e -lhe a palavra, dele ouvimos:
a repelir alianças concessivas. Não é à toa que
se pergunta ele em crônica para a Gazeta de “Do istmo do Panamá para baixo, a América é
Notícias de 8 de abril de 1906: um imenso Parnaso, um vastíssimo viveiro de

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pássaros canoros, que nascem gorjeando, e gor- mas que não desfiguram sua reflexão, dão o
jeando vivem e morrem. Entre tantos poetas, os tom da diatribe desse europeizado até a medu-
yankees não podiam deixar de tornar-se poetas: la, que se locomovia mal em solo brasileiro, do
porque ninguém vive impunemente entre vates qual extraía seu bem viver, ocioso e sibarita.
[...]. Não vão agora os leitores imaginar que, Preferências supostamente objetivas à parte,
na Conferência, os pareceres sobre a ‘Doutrina não se pode ignorar, por outro lado, que seu
Drago’ foram escritos em redondilhas, ou que discurso deixa escapar, aqui e ali, preconceitos
cada um dos considerandos do tratado sobre de classe difíceis de controlar e que turvam
‘Patentes e Marcas de Fábrica’ foi enviado à sua pregação. Sua rejeição aos Estados Unidos
Mesa sob a forma de um soneto clássico, de é categórica. Alguns exemplos curtos ilustram
rimas alternadas ou de um rondó arcádico, tor- sua aversão aos norte-americanos:
cido em voltas e estribilhos. Não! Durante as
sessões, falava-se prosa maciça e severa – às • “Os Estados Unidos são, para o resto do
vezes um pouco bárbara, cheia de antipáticos mu ndo, o veícu lo t r a nsm issor d a bí l is
termos técnicos” (vol. 1, p. 810). argentina contra o Brasil [...]”;
• “[...] a inf luência deletéria que os Estados
Não era essa a primeira conversão de Bilac. Unidos exercem na América [...]”;
Em 1893, uns 13 anos antes, sua atuação pe- • “[...] os americanos têm pouco respeito pela
los jornais tinha-lhe valido um exílio interno, vida humana”;
quando caiu na repressão florianista decorrente • “[...] onde estão os escritores norte-america-
da 2ª Revolta da Armada. Do Rio de Janeiro, nos que se têm ocupado de modo sério do
assustado, foi asilar-se em Ouro Preto, onde nosso país?”;
descobriu, fascinado, o Barroco religioso e a • “[...] não temos com aquele país afinidades
riqueza documental dos arquivos locais. Num de natureza alguma real e duradoura”;
ímpeto retórico, declarou logo na primeira crô- • “[...] a influência moral daquele país, sobre o
nica que de lá enviou para a Gazeta de Notí- nosso, tem sido perniciosa” (Prado, 1961, pp.
cias: “Vir a Minas é vir ao coração do Brasil” 164-86).
(vol. 1, p. 48).
Por mera, mas curiosa coincidência, no mes- O livro de Eduardo Prado poreja preconcei-
mo novembro de 1893 em que o cronista Bilac tos de classe.
era despachado para o interior de Minas Gerais, No afã de desqualificar um país que consi-
por causa de seus comentários antiflorianistas derava nouveau riche sob qualquer aspecto e a
pela imprensa, Eduardo Prado fugia às pressas léguas de distância, portanto, de uma Europa
de sua Fazenda do Brejão, no interior de São bem restrita e determinada, A Ilusão America-
Paulo, porque fora notificado de que seria uma na destila opiniões preconceituosas, que refle-
das vítimas da mesma instabilidade republica- tem com precisão a medida do seu tempo e do
na de então. O motivo concreto era seu livro seu espaço.
recém-saído e imediatamente cassado, A Ilu- Como representante de nossa aristocracia
são Americana, que denunciava, sem rebuços, cafeeira, treinado desde pequeno pelo décor
o expansionismo norte-americano. Atropelando francês de uma residência versalhesca e descen-
argumentos, alguns dos quais ordenados mais dente direto de Dona Veridiana Prado – “uma
pela paixão que pela racionalidade histórica, o rebelde que descobriu sua causa ao transplan-
representante da cafeicultura paulista atribuía o tar a cultura europeia para São Paulo”, como
grosso de nossas mazelas à crescente presença recurso “para adquirir a própria liberação”,
norte-americana no Ocidente e não hesitava em na opinião de Darrell Levi (1977, p. 152) –,
denunciar essa influência – perniciosa e gros- Eduardo Prado não negou as origens, absorveu
seira, a seu ver – como resultado da deselegân- a noção da superioridade racial, generalizada
cia republicana, tida por ele como inferior aos no seu tempo, e aferrou-se ao fascínio europeu.
bons modos da monarquia. Frases recortadas, Mas fendido em dois. De um lado, encantava-

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-se com a joie de vivre da burguesia francesa, estes nossos pobres luso-índio-negróides dese-
padrão social obrigatório em seu meio; de ou- quilibram-se de todo, no meio da febricitação
tro, não se desgrudou das manobras capitalistas americana” (Prado, 1961, p. 181).
inglesas, com as quais manteve contato estreito,
talvez como forma de sustentar seu galicismo, São poucos os estudos dedicados à figura
com folga e garantia adicional. Ao longo de de Eduardo Prado, se levarmos em conta sua
seu texto sanguíneo, no qual fustiga a versão repercussão. Em 1967, Candido Mota Filho,
norte-americana do capitalismo, mas poupa a através da José Olympio, dedicou-lhe biografia
versão inglesa, Eduardo Prado goteja veneno fornida e simpática: A Vida de Eduardo Prado.
racial até mesmo quando elogia, ao contrapor Anos depois, em 1977, foi a vez de Darrell Levi
molduras nacionais históricas, ou quando em- publicar livro sobre A Família Prado, acima
baralha, de propósito, o modelo de exploração citado. Lúcia Lippi Oliveira, depois, sumariou
capitalista com a origem étnica de seus prati- bem as principais linhas de A Ilusão Ameri-
cantes, como nesta passagem: “O capitalismo, cana em ensaio publicado como parte de livro
semita ou não semita, goza hoje de privilégios organizado por Lourenço Dantas Mota: Um
reais e efetivos muito mais vexatórios do que os Banquete no Trópico (Dantas Mota, 1999). Mas
privilégios antigos da nobreza e do clero” (Pra- o dedo rápido e curto na ferida quem o põe é
do, 1961, p. 133). Por outro lado, ao vitimizar o Maria de Lourdes M. Janotti, que, numa breve
destino de países pobres, ele não hesita em re- passagem de Os Subversivos da República, en-
conhecer que os Estados Unidos são habitados quadra, com elegância acadêmica, o panfletário
pela “raça mais enérgica da espécie humana Eduardo Prado:
em contraposição a outros espaços habitados
por indivíduos de raças menos enérgicas” (Pra- “No conjunto, A Ilusão Americana é uma obra
do, 1961, p. 170). Um pouco mais adiante, o que explora três ordens de ideias: o nacionalis-
destemperado ensaísta admite que a mistura mo, a crítica da república brasileira e a defesa
étnica norte-americana carrega consigo “ca- dos interesses britânicos. Esta última dimen-
madas inferiores da população rural” (Prado, são, ainda não explorada pela crítica, permeia
1961, p. 175). Mas o caldo entorna de vez no todo o discurso” (Janotti, 1986, p. 80).
final desta catilinária de concatenação frágil,
quando Eduardo Prado, expondo suas vísceras Não é de mosqueteiro um outro livro que
patriarcais e liberando sua visão de mundo aparece no final do século XIX. É de um es-
de brasileiro enragé, providencialmente bem tudioso, de um diplomata, de um homem do
instalado na rue de Rivoli, acusa os estudantes métier, de um historiador sistemático, per-
brasileiros nos Estados Unidos de ignorarem nambucano de origem, autor de bibliografia
“os rudimentos de toda e qualquer instrução considerável. Bibliófilo compulsivo, adquiriu
geral”. Segundo o patriarca do café, estupenda biblioteca, que legou à Catholic
University of America (Washington, DC), em
“[...] esta mocidade julga as cousas america- aparente gesto de enfado contra o Brasil. É de
nas, compara os Estados Unidos com o Brasil, Oliveira Lima (1867-1928) um dos depoimentos
não vê as nossas qualidades, não conhece os mais extensos e mais substanciosos sobre os
antecedentes da nossa história, os feitos dos Estados Unidos, publicado em 1899: Nos Es-
nossos maiores, e por isso quer lançar tudo ao tados Unidos (Oliveira Lima, 1899). Indepen-
desprezo, rompendo com o passado e, se eles dente de eventuais passagens discutíveis, seu
pudessem, transformariam a sociedade brasi- livro respira estudo e serenidade, decorrentes
leira num arremedo simiesco dos Estados Uni- de observação contínua e de profissionalismo,
dos, que eles julgam o primeiro país do mundo, sobretudo.
porque há por lá muita eletricidade e bons wa- Como ex-funcionário de nossa embaixada
ter closets. Não tendo a ponderação que à raça em Washington, Oliveira Lima estabeleceu
saxônia dá a harmonia do seu desenvolvimento, fortes relações intelectuais com o país, do que

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é bom exemplo sua ligação com John Casper sulta, da vivência sistemática com bibliografia
Branner (1850-1922), perito em geologia bra- selecionada e atualizada. Sua leitura exige – e
sileira, professor da Stanford University, onde aguarda – meditação, não reação emocional, de
foi seu segundo reitor, e para a qual doou sua aplauso ou de rejeição 2.
enorme biblioteca também. O vínculo entre am- Logo na “Introdução”, Oliveira Lima dei-
bos, ainda a ser melhor investigado, fica claro xa claro sua admiração pelo país e com lápis
em dedicatória que Oliveira Lima inscreveu na grosso destaca seus traços comportamentais
página inicial de outro livro seu, La Evolución públicos e privados, tendo como referência
Histórica de la América Latina (1912). Neste simbólica as figuras de Washington, o aristo-
livro, dedicado ao colega de Stanford, Oliveira crata de origem, e a de Lincoln, “o rachador
Lima recolheu suas seis conferências pronun- de lenha e barqueiro do Mississippi” (Oliveira
ciadas naquela universidade, em outubro de Lima, 1899, p. 15). Depois dessa contraposição
1912, a convite de Casper Branner. Em seguida, didática, Nos Estados Unidos abre-se com uma
elas foram repetidas em Berkeley, em Chicago, exposição sobre a espinhosa questão do negro
em Madison, em Ann Arbor, em Cornell, em norte-americano, um tema que viria a ser do
Columbia, no Vassar College, na John Hopkins, agrado, bem mais tarde, de um discípulo in-
em Yale e Harvard. Por esse circuito acadêmi- formal de Oliveira Lima: Gilberto Freyre. Nas
co, percebe-se que a familiaridade de Oliveira linhas desse primeiro capítulo não é difícil sur-
Lima com os Estados Unidos ia muito além da preender sugestões que, mais tarde, viriam a ser
rotina diplomática. desenvolvidas pelo sociólogo pernambucano.
Nos Estados Unidos – voltemos ao livro – Nesse primeiro capítulo, é visível o esforço
é dividido em 11 capítulos, que cobrem uma panorâmico para a avaliação da questão, mas
gama considerável de assuntos: a questão do eivado de conservadorismo. Como se fosse
negro; os efeitos da imigração; as qualidades enorme tabuleiro, Oliveira Lima vai dispondo
do povo; a influência da mulher; a sociedade as peças sociais e políticas de uma engrenagem
em geral; o modelo político; a fé católica e a complexa, não se abstém de opinar, esforça-
educação; a literatura norte-americana; a polí- -se para desenhar um quadro das contradições
tica externa do país; as relações entre os dois locais, socorre-se de dados estatísticos e alia
países; a política colonial. a observação direta com a informação que lhe
A perspectiva do ensaio é, de preferência, trazem não só os livros, mas também a leitura
comparatista. Com base em sua extensa folha atualizada dos periódicos norte-americanos.
corrida de diplomata acreditado em Berlim, Com esse método vivo, porque nascido da
Washington, Londres, Tóquio, Caracas, Bruxe- combinação do silêncio com a vivência, não
las e Estocolmo, Oliveira Lima procura sempre surpreende que um desconcertante elogio ao
pensar o seu país a partir de um outro estran- conservadorismo confederado – capaz, segundo
geiro. Daí que não lhe seja incomum a reflexão o autor, de expandir as fronteiras do país rumo
paralela, na qual a herança latina é confronta- ao sul ou ao oeste (Oliveira Lima, 1899, p. 24)
da, sempre que possível, com a saxônica. Sua – venha atrelado, em seguida, a uma acusação:
bibliografia geral e extensa navega entre esses a de que essa energia política confederada gera,
dois polos, entre os quais mal se esconde um ao mesmo tempo, um cenário político demagó-
toque de iberismo como pano de fundo. gico. De acordo com as próprias palavras de
Ambiciosa, mas nada afoita, Nos Estados Oliveira Lima, “a aristocracia sulista era no
Unidos é obra de estudioso aclimatado ao reco- fundo uma demagogia: repousava sobre massas
lhimento do escritório. Mesmo que possa incor- incultas” (Oliveira Lima, 1899, p. 24). Nesse
rer em opiniões temerárias – e como incorre! –,
é livro que não brotou de zanga pessoal, nem de
preferência por esta ou aquela forma de gover-
2 Em 2008, o Senado Federal de Brasília publicou nova
no, mas do exercício sistemático da observação, edição deste livro com estudos introdutórios de Paulo
da análise, da erudição, do contraste, da con- Roberto de Almeida e Margarida Patriota.

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tom que não se cansa de apontar as contradi- tornaram canônicos dentro daquela literatura.
ções internas, Oliveira Lima vai desfilando Incomoda um pouco o esforço do autor no sen-
suas observações, minuciosas ou abrangentes, tido de incluir figuras governamentais, que se
sobre “falcatruas eleitorais, discriminação, se- permitiram o exercício literário. Da listagem
gregacionismo, migração interna, porte físico de Oliveira Lima ficaram de fora nomes que,
do negro para o trabalho duro, indolência e ne- embora correntes, vieram a se tornar de relevo
gligência dos negros, o fazendeiro branco, que naquela literatura. Para não exemplificar mui-
cultiva frutos e cereais, e o preto [que] cria to, lembraríamos alguns, como os de Fenimore
porco” (Oliveira Lima, 1899, p. 31), o “expli- Cooper, E. Allan Poe, Nathaniel Hawthorne,
cável desprezo do Americano pela raça afri- Herman Melville e Walt Whitman.
cana” (Oliveira Lima, 1899, p. 31), a “divisão Em vez deles, Oliveira Lima preferiu, por
da propriedade”, o seu “arrendamento” ou sua ordem de entrada em cena, Mark Twain (1835-
“posse”, a abundância de filhos entre os negros, 1910), Francis Marion Crawford (1854-1909) e
o erro de lhes atribuir “direitos políticos”, a John Fiske (1842-1901).
existência de “índios [como] criaturas fatalis- Mark Twain, por conta de seu humor e de
tas e taciturnas, os chineses que não votam¸ seu nacionalismo, “indubitavelmente america-
a superioridade americana [que se deve] ao no” (Oliveira Lima, 1899, p. 336); F. Marion
branco, a mão de obra barata” desempenhada Crawford, por conta de seu forte apego ficcio-
pelo negro, o “cultivo do açúcar e do algodão”, nal à paisagem italiana e romana; e o polígrafo
o papel da mulher na sociedade, a escolha do John Fiske, por conta de sua precocidade, de
“magistério” e do “sacerdócio” pelos negros sua “curiosidade” enciclopédica e porque Oli-
e por aí adiante. Não lhe faltam nem mesmo veira Lima acreditava que fosse ele “o maior
alguns comentários passageiros que, mais tar- filósofo dos Estados Unidos” (Oliveira Lima,
de, ressoarão, sotto voce, no primeiro Gilberto 1899, p. 355).
Freyre de Vida Social no Brasil nos Meados do Desse tipo de rompante emocionado esca-
Século XIX. Como este, por exempo: “Nós esta- pou José Veríssimo (1857-1916). Mas não es-
mos por conseguinte mais perto de pôr em prá- capou dos preconceitos de época. Ao fazer a
tica a equidade social educando a raça negra, crítica de Nos Estados Unidos, recolhida em
evitando que ela, fora do carinho interesseiro 1902 no primeiro volume de seu Homens &
das plantações, recaia na barbárie que ainda Coisas Estrangeiras (1899-1900), sob o título
lhe não tinha sido dado despir inteiramente” de “O País Extraordinário”, Veríssimo reco-
(Oliveira Lima, 1899, p. 45). nhece que o livro de Oliveira Lima é, naquele
Um painel bem geral, não se pode negar. fim de século, “o melhor manual existente em
São 11 os capítulos de Nos Estados Uni- português para conhecermos os Estados Uni-
dos. Afora os temas políticos e sociais, que se dos” (Veríssimo, 1902, p. 185). Em seguida, ao
espalham por dez capítulos deste livro, há um resenhar alguns capítulos, como aquele sobre
outro, de feição complementar, sobre a litera- o negro, de Veríssimo emerge, sem censura,
tura norte-americana. Trata-se, no entanto, de uma visão de mundo surpreendente para quem
inserção um pouco enganosa, uma vez que não se conduzia pela ponderação crítica contínua,
é a literatura em si que está em discussão, mas quase asséptica: “Estou convencido, como o Sr.
uma concepção mais larga, menos beletrística Oliveira Lima, que a civilização ocidental só
e mais próxima da concepção onívora de Sílvio pode ser obra da raça branca, e que nenhuma
Romero, que via a literatura como fenômeno grande civilização se poderá levantar com po-
onde cabiam todos os documentos escritos, vos mestiços” (Veríssimo, 1902, p. 192).
viessem de onde viessem. No caso de Olivei- Não são poucos os textos de José Veríssimo
ra Lima, este capítulo de 40 páginas ocupa- sobre escritores da cultura de língua inglesa ou,
-se de historiadores, filólogos, memorialistas, mais especificamente, da cultura norte-ameri-
etnógrafos, paleontólogos, o que deixa pouco cana. Sua atenção cautelosa à produção literária
(ou nenhum?) espaço para escritores que se norte-americana já vinha de longe, dos tempos

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em que ainda batalhava por uma “educação na- pecífico e escapa até mesmo à crítica literária
cional” – título de um de seus primeiros livros, convencional. Em vez de se pronunciar sobre
publicado em 1890 – mais ajustada às nossas este ou aquele romance, este ou aquele livro de
necessidades. Nessas alturas, ainda em Belém poemas, Veríssimo prefere ressaltar componen-
do Pará, ele já apregoava: “Estudemos os Esta- tes que colaboram para constituir o sistema in-
dos Unidos, estudemo-los não superficialmente telectual e literário norte-americano: universi-
como em tudo soemos fazer, mas fundamente” dades, agremiações, periodismo especializado,
(Veríssimo, 1906, p. 199). E, um pouco antes rede de bibliotecas, remuneração intelectual,
dessa passagem, para que não o acusassem de hábito das doações, etc.
adesista leviano, sua advertência não era menos Naquele contexto de franca adesão às fon-
incisiva: “Essa civilização sobretudo material, tes francesas em que vivia, surpreende, pois, a
comercial, arrogante e reclamista, não a nego frequência com que José Veríssimo se refere a
grande; admiro-a, mas não a estimo” (Veríssi- revistas literárias e culturais norte-americanas:
mo, 1906, p. 177). The Forum, North-American, Arena, Nineteen-
Se feito um recenseamento estatístico das th Century, Harper’s Monthly Magazine.
dezenas de artigos críticos escritos pelo inte- Uma pesquisa focada no tema talvez pu-
lectual paraense, não causará nenhum espanto desse aumentar este elenco e qualificá-lo com
ficarmos sabendo que os ficcionistas e intelec- mais apuro. Enquanto isso não ocorre, veja-
tuais que lhe servem de parâmetro são os fran- mos dois artigos seus, publicados no primei-
ceses, primeiro, e os portugueses, em seguida. ro volume de Homens e Coisas Estrangeiras
Nos muitos livros de ensaios sobre literatura (1899-1908) 3: “Um Americano e a Literatura
brasileira escritos por José Veríssimo, a fran- Americana” e “A Vida Literária nos Estados
cofilia é constante e isso não é novidade nenhu- Unidos”. São estes que nos interessam por cau-
ma, nem defeito. Isso é acaciano. Isso era praxe. sa de sua rota alternativa.
Isso é de época. Naquele momento, a literatura No primeiro deles, que é de junho de 1899,
francesa funcionava como modelo generalizado Veríssimo comenta artigo de Hamilton W. Mabie,
para a criação literária, em termos de ficção, “codiretor de um magazine e autor de meia dúzia
poesia e crítica, não só no Brasil como no resto de livros de crítica e literatura” (Veríssimo, 1902,
da América Latina e na Península Ibérica. Gra- p. 52); no segundo, que é de outubro de 1899, sua
vitávamos todos em torno de Paris, meca para atenção se volta para um livro que rendia culto
a imortalidade intelectual. O Sena era o único à memória de John Russell Lowell (1819-1891),
rio que corria em todas essas aldeias. poeta romântico norte-americano.
No precioso repertório bibliográfico das úl- Se nenhum desses dois artigos se ocupa
timas páginas de A Tradição do Impasse, João de criação literária especificamente, por que
Alexandre Barbosa arrolou cerca de 544 itens destacá-los? Exatamente porque não se ocupam
assinados por José Veríssimo, entre artigos e da criação literária especificamente, mas, an-
resenhas, éditos ou inéditos, espalhados por li- tes, de ocorrências que lhes são periféricas e,
vros, jornais e revistas (Barbosa, 1974). Entre nem por isso, menos importantes. Trata-se de
eles contam-se 18 itens que abordam os Estados ocorrências que viriam a ser valorizadas muitos
Unidos em sua literatura, política, sociedade e anos depois, quando entraram em discussão as
relações internacionais. Se, no plano político, questões relativas à produção material de um
a reserva de Veríssimo é sistemática, no pla- sistema literário e artístico.
no intelectual sua admiração pelas conquistas Sem separar com nitidez o conteú-
educacionais, institucionais e editoriais não se do desses dois artigos, o que importa neles é
cala, mas também não se excita. Como era do
seu feitio, é admiração controlada, mas nem
por isso menos importante, porque seu foco,
3 Em 2003, João Alexandre Barbosa organizou, prefaciou e
nos poucos artigos que escreveu a respeito do publicou os três volumes de Homens e Coisas Estrangeiras
segmento literário e cultural, toma rumo es- em um volume só, que saiu pela Topbooks.

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como José Veríssimo captura, com precisão, bronco e vasto armazém, não conseguiram eles
alguns elementos que favorecem a constitui- fazer exceção notável ao legítimo desapreço
ção de uma sociedade literária no lado de cá em que, nesse particular, os temos nós mesmos
do Atlântico, sem que isso implicasse fazer americanos” (Veríssimo, 1902, p. 50).
do pensamento americano “um pálido reflexo
do pensamento europeu” (Veríssimo, 1902, Ora, todo esse aglomerado explícito de ins-
p. 49). O que está em causa, de forma sub- tâncias que produzem e sustentam a cultura,
-repticiamente comparativa e como recado elencadas por José Veríssimo, discrepa, até
indireto para o leitor brasileiro de Veríssimo, onde sabemos, da batida rotineira de nossa
é a especificidade da produção artística norte- crítica literária do final do XIX, que se con-
-americana. É para o processo de produção centrava, de preferência, nas novidades e nos
do segmento literário que Veríssimo chama lançamentos. Uma pesquisa mais extensa po-
nossa atenção. De acordo com ele, não se pode derá confirmar esta suspeita: a de que novos
descuidar do processo, se a quisermos robusta, ingredientes críticos estão sendo acrescentados
volumosa e saudável. Não basta prestar aten- por Veríssimo à reflexão sobre o fazer cultu-
ção apenas no romance ou no poema. É pre- ral e literário, encorpando-o. Se voltarmos à
ciso se preocupar, também, com o sistema de listagem final de A Tradição do Impasse, de
bibliotecas; com a formação dos profissionais, João Alexandre Barbosa, vamos observar que
que nelas atuarão; com uma rede universitária os títulos de muitos dos artigos de Veríssimo,
extensa e de qualidade indiscutível; com um disseminados pela imprensa da época, já su-
periodismo especializado e sistemático; com geriam essa inquietação precoce com as con-
livrarias que não só vendam, mas que acolham dições materiais da produção literária. Fique-
também escritores de exercício variado; com mos com alguns exemplos: “Das Condições da
uma programação contínua de conferências e Produção Artística”, “A Produção Literária no
exposições públicas; com a remuneração in- Brasil”, “Condições da Produção Literária no
telectual condigna; com a separação inequí- Brasil”, “A Propriedade Literária no Código
voca entre interesses de procedência diversa, Civil”, “A Imprensa em Minas Gerais”, “Sobre
a fim de se impedir a “mistura perniciosa de a Formação da Literatura Brasileira”, “A Aca-
convento e quartel” (Veríssimo, 1902, p. 119); demia Brasileira” e a série sobre “Vida Literá-
com a rede escolar; com o fomento às doações ria”, publicada na revista Kosmos entre 1904 e
institucionais. Uma longa frase sua sintetiza 1908. Se conciliarmos essas pistas soltas com
bem a desatenção pela alta cultura que nos a introdução de Veríssimo para a sua História
castiga no hemisfério sul. Diz Veríssimo: da Literatura Brasileira (1916), obra que com-
pendia e coroa sua carreira como crítico, não
“Nada obstante a sua admirável organização será difícil observar que muitas dessas noções
do ensino primário, exemplo e inveja da mes- de estruturação convergente a favor de um pro-
ma Europa, as suas numerosas universidades, cesso de formação de uma literatura nacional
academias, colégios e institutos de instrução foram agregando-se devagar em sua reflexão
de toda a ordem, a cópia assombrosa das suas e culminaram com a “Introdução” que abre
sociedades de estudos, instituições científicas, sua História da Literatura Brasileira. Nela,
estabelecimentos didáticos de todo o gênero, não passam despercebidas certas expressões e
dotados alguns como não há outros no mundo, sintagmas que, anos depois, vieram a se tornar
da produção maravilhosa e única da sua livra- vitais para a construção da Formação da Lite-
ria em revistas, magazines, jornais científicos, ratura Brasileira (1957), de Antonio Candido,
literários e artísticos, do número sem igual das cujos dois volumes originais deram nova régua
suas bibliotecas, do progresso sempre crescente e compasso para pensarmos a nossa literatura,
dos estudos clássicos e desinteressados, da cul- a partir de 1957. Anos depois, tamanha afini-
tura da erudição e da cultura científica nesse dade crítica veio a lume mais uma vez, quando
país que a muitos se afigura apenas como um Antonio Candido se ocupou, por exemplo, da

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literatura como fenômeno “associativo” em “A Adolfo Caminha visitou Nova Orleans,
Literatura na Evolução de uma Comunidade” Nova York, Baltimore, Filadélfia, Anápolis,
em seu Literatura e Sociedade, de 1965. West Point e Newport, a bordo do Almirante
Essa especulação, no entanto, afasta-se de- Barroso. Antes de chegar a Nova Orleans, seu
mais do recorte temporal que nos impusemos barco tocou no Recife, em Barbados e na Ja-
para este artigo. Fica para outra ocasião. maica. Depois de Nova Orleans e a caminho
Dentro, portanto, dos limites que traçamos, de Nova York, o Almirante Barroso estacio-
faltam ainda muitos itens a considerar, o que nou oito dias em Cuba, sempre sob o comando
estenderia demais também este texto. Que do feroz e inf lexível almirante Saldanha da
esperem, pois, as crônicas sempre discretas Gama, de “temperamento atrabiliário, san-
de Machado de Assis; um que outro artigo de guíneo, nervoso, sujeito a transições bruscas,
Euclides da Cunha ou de Aluísio Azevedo; al- inesperadas, impetuosas e violentas, arbitrário
guma crônica trêfega de João do Rio, sempre e prepotente”, adepto entusiasmado da pavo-
encantado com as modernidades técnicas a seu rosa chibata. Segundo Caminha, a “natureza
redor; a correspondência de Salvador de Men- rancorosa” de Saldanha da Gama não titube-
donça e de Joaquim Nabuco, nossos embaixa- ava em transgredir o “código penal militar”,
dores em Washington; o confronto assustador que estipulava “vinte e cinco” chibatadas, por
entre Joaquim Nabuco e Oliveira Lima, que dia, no máximo. O almirante “não trepidava,
redundou em comovente, elegante e breve car- e isto é sabido, em mandar açoitar com duzen-
ta de ruptura pessoal, assinada por Nabuco; a tas chibatadas um praça qualquer, tal fosse o
disputa em torno da política pan-americanista, delito cometido. A um simples olhar seu as
motivo do confronto entre ambos; a zanga de guarnições tremiam como caniços” (Caminha,
Lima Barreto; a poesia hermética de Sousân- 1979, p. 131).
drade. A seu tempo, virão, se der. Do pouco que se escreveu a respeito do escri-
Mas que venha já, a título de finalização, o tor cearense, uma das apreciações mais adequa-
depoimento raro e inesperado de um dos nos- das parece ser a de Frota Pessoa (1902, p. 226):
sos naturalistas mais radicais, precocemente
falecido e francófilo militante, Adolfo Cami- “Adolfo Caminha foi um desses seres de destino
nha (1867-1897). Que foi autor de dois roman- errado. Ele não nasceu, nem para o homem que
ces que sacudiram e amarrotaram casacas e foi, nem para o escritor que se manifestou. O de-
cartolas, corpetes e corseletes da comportada sencontro da sua missão social e da sua missão
sociedade brasileira do fim do século: A Nor- intelectual formou todo o seu infortúnio”.
malista (1893) e o Bom-Crioulo (1895). Entre
o aparecimento de um e de outro, Caminha A morte precoce atalhou, no entanto, seu
publicou No País dos Ianques (1894), relato percurso, impedindo-o de, quem sabe, buri-
de viagem aos Estados Unidos, quando o es- lar mais sua vocação literária. Porque, se nos
critor tinha apenas 19 anos, nas vésperas da fiarmos na escolha temática de seus dois ro-
Abolição. O livro foi escrito em 1890, mas mances principais, de tom próximo do denun-
publicado apenas em 1894. ciatório, difícil será compatibilizá-los com
Dessa viagem como praça da Marinha bra- o entusiasmo juvenil que toma conta de No
sileira, Caminha deixou declaração apaixo- País dos Ianques. Para Caminha, a viagem
nada. Tão apaixonada quanto sua admiração prolongada de quase um ano foi mesmo de
pelo romance de Zola, seu guru literário. No libertação e descoberta. Seu encontro com
País dos Ianques p arece ser, salvo cochilo da uma sociedade de carne e osso revelou-se em
pesquisa, o segundo depoimento de intelectual tudo contrário aos seus romances, que pre-
brasileiro sobre os Estados Unidos, depois do feriam tão somente a carne. Sua disposição
Diário da Filadélfia, de Hipólito José da Cos- simpática para o novo, em inevitável pers-
ta, que – lembre-se – foi escrito entre 1798 e pectiva comparativa, mostra-se amiúde e se
1799, mas publicado no Brasil apenas em 1955. escancara diante de Nova York, onde os bra-

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sileiros permaneceram ancorados por “quase cantamento com West Point e Newport, “uma
dois meses” (Caminha, 1979, p. 175): cidadezinha elegante e sossegada”4.
As impressões juvenis de Adolfo Caminha
“E punha-me, nessa embriaguez do grandioso, desapontam a expectativa de quem aguarda
a pensar no progresso dos Estados Unidos, des- comportamento judicioso em relato de viagem.
se país modelo, onde tudo move-se por meio No entanto, talvez por isso mesmo, colaboram
de eletricidade e vapor, onde tudo é feito às para oferecer, ao brasileiro a quem se destinam,
carreiras, num abrir e fechar de olhos, sem a uma visão precoce sobre a região meridional
menor perda de tempo; vinham-me à imagina- norte-americana, que dificilmente entra em
ção escandecida as descobertas de Franklin, de nossa cogitação. Uma região que, por força de
Fulton e de Edison, as maravilhosas experiên- sua alta demografia negra e de sua forte mesti-
cias sobre o telégrafo, sobre o telefone e sobre çagem étnica e cultural, sem contar seu cená-
o fonógrafo, e eu repetia com os meus botões, rio político historicamente tortuoso e sua forte
mergulhando o olhar na distância, abarcando propensão à ruralidade, dá muito o que pensar
a cidade inteira: – Grande país! Grande povo, em termos de contraste Brasil-Estados Unidos.
gente feliz, que sabe compreender a vida e amar É a Bilac – mais uma vez! – que recorremos,
a pátria! Como era pequeno meu país, com toda no entanto, para encerrar estas considerações
a grandeza de suas montanhas e de seus rios, em torno das relações intelectuais entre Brasil
diante do colosso americano do norte!” (Cami- e Estados Unidos.
nha, 1979, p. 164). Como se sabe, o parnasiano conseguiu con-
ciliar bem sua carreira de jornalista e de poeta.
Mas, antes que alguém o tome por leviano Como cronista, sua presença nos jornais resul-
e deslumbrado, é preciso lembrar que, ao longo taria em boa quantidade de livros, se produzi-
de seu relato, há momentos – curtos, é verdade dos a tempo; como poeta, seus versos apare-
– de constrangimento, de azedume ou de obser- ceram, pela primeira vez, em Poesias, edição
vação crítica, quando aquilo que o marinheiro de 1888, seguida de inúmeras outras sempre
vê não corresponde a uma vaga noção de ordem acrescidas. O último acréscimo, “Tarde”, se dá
ou de evolução. Diante dessa discordância, ad- em 1918, ano de sua morte. E é nele que se
mite Caminha na “Introdução” de seu diário encontra um soneto dedicado a “New York”.
de bordo, é Taine que o orienta, como “uma Pouco ou nada se sabe se, viajante contumaz,
espécie de bússola”, no rumo da observação Bilac teria conhecido ou não os Estados Unidos.
visual, assentada sobre a boa fé: “Que chacun Seus quatro biógrafos – Afonso de Carvalho,
dise ce qu’il a vu, et seulement ce qu’il a vu” Eloy Pontes, Raymundo Magalhães Jr. e Fernan-
(Caminha, 1979, p. 115). do Jorge – silenciam a respeito. Não há, portanto,
Em sendo assim, podemos acompanhá-lo segurança nenhuma em torno dessa hipótese.
na viagem e testemunhar seu desapreço ini- O importante, no entanto, não é a concretu-
cial por Barbados e Jamaica. Seguindo-o mais de da presença na cidade, mas a sua represen-
um pouco, testemunhamos sua admiração pelo tação poética, cerne íntimo e indisputável da
comportamento da mulher norte-americana, literatura, sua resistência.
que se impõe diante do homem; sua contra- “New York” está na página direita do livro,
riedade com o mau alçamento de Nova Orle- bem em frente a um outro soneto dedicado a
ans; sua mágoa com a presença pífia do Brasil “Vila Rica”. Em páginas opostas, enfrentam-se
numa exposição internacional que se realizava e espelham-se os dois (Bilac, 1961, pp. 316-7).
naquela cidade do delta do Mississippi, motivo Se casual ou proposital, é assunto que provoca,
da viagem oficial; sua rejeição ao “anacrônico mas de piso arenoso. Para torná-lo menos cedi-
império do Sr. D. Pedro II”; seu bom humor
com a balbúrdia de Coney Island; sua repulsa
à cidade de Anápolis, “um quilombo africano”, 4 Essas passagens relativas aos Estados Unidos estão entre
que dorme “seu pesado sono tumbal”; seu en- as páginas 137 e 176 da edição utilizada.

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ço seria necessário um mínimo de informação Na página oposta, dá-se o inverso.
de caráter editorial. Sem ela, é temerário. Mas “New York” contorce-se em movimento rui-
isso não impede que a imaginação, calcada na doso. Nela o movimento ascensional, a agitação
configuração das páginas e no conteúdo dos e o ruído se apresentam logo no primeiro verso,
sonetos, se alvoroce, se mexa. onde o céu não amortalha a terra, mas, sim,
Sem pretender a análise dos dois sonetos, corre o risco de ser invadido por uma tropa
mas apenas sua paráfrase, comecemos por terrestre de deuses extraordinariamente mus-
“Vila Rica”, cujo nome já regressivo situa a culosos e barulhentos, de origem grega. São
cidade em tempo remoto, colonial e anterior tão ousados que desrespeitam a tradição do céu
ao século XIX, capaz de evocar o sacrifício de como morada celestial e partem da terra para
Tiradentes, a violência da devassa, o peso da invadi-lo, em inversão explícita. O cortejo de
dependência política e os conflitos em torno referências clássicas à cidade preenche-a de his-
do ouro, conjunto de fatores que ajudou a de- tória, empresta-lhe vitalidade extraordinária,
pauperar a cidade. A hora escolhida pelo poeta estufa-lhe as artérias, energiza-lhe as praças,
para o retrato urbano é a do fim do dia, quando provocando agitação incessante e assombrosa
tudo perece, escurece e se deforma, pela perda em todos os seus recantos. Nada está parado
de nitidez dos contornos. Reforçam essa atmos- em “New York”. É tão frenética a agitação da
fera de declínio a velhice das casas, as minas cidade que nem a falta de tempo, que Luté-
em sangue e a terra que se fende, resultado da cia e Roma poderiam lhe oferecer, prejudica-
cobiça. Um toque religioso de luto se mostra -a. Porque seu porte gigantesco agasalha em
presente como que a intensificar a atmosfe- si a figura do volumoso Prometeu, o ladrão do
ra de morte inevitável, que a extrema-unção fogo que socorreu os homens e deles se tornou
sugere e garante. O lusco-fusco da cerração, protetor, indiferente ao martírio e à punição de
do crepúsculo e da neblina impede a presença que seria vítima. O contraste flagrante entre o
da luz, que é o contrário da escuridão, pró- clima soturno e religioso da cidade mineira e
pria do fim. Nesse cenário, se alguma coisa se a alacridade de Nova York torna ociosos ou-
mexe não é gente: são espectros, figuras que tros comentários. Diante da imagem de uma
deixaram de viver e se arrastam sem destino, cidade que se esvai e se esgarça no passado
ao som de música que se arrasta igual. A vila soturno e de outra que se tonifica e se alimenta
que, apesar de antiga, era rica, tornou-se tris- do presente excitante, parece ficar registrado
te, amarelada e ensopada. Agora, o som que a e condensado um modelo de comportamento
preenche vem de versos que cantam um amor possível. Mas imagem e imaginação, sempre.
também condenado à morte, e o ouro, que já Passível de ser desmanchada pela ação humana
foi brilhante e vivo, agora é preto. real, privilégio da história.

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54 Revista USP • São Paulo • n. 112 • p. 39-54 • janeiro/fevereiro/março 2017

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