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08/10/2021 15:34 As heranças do Quixote

ESTADÃO › Anotações

As heranças do Quixote
17 DE SETEMBRO DE 2011

O escritor mexicano Carlos Fuentes tem uma receita pessoal para manter o
intelecto equilibrado: ler, ao menos uma vez por ano, o clássico D. Quixote,
de Miguel de Cervantes. "Ele abre todos os caminhos do romance moderno
e sua obra mantém um frescor intacto: poucos livros, como D. Quixote,
consegue a proeza de mostrar que a primeira leitura é insuficiente para o
leitor absorver toda sua riqueza", disse Fuentes ao Estado na quarta-feira, em
conversa por telefone de Londres, onde vive. Ele acabara de voltar de um
périplo europeu de lançamento de La Gran Novela Latinoamericana, ensaio
editado pela Alfaguara espanhola em que oferece uma visão pessoal da
história do romance escrito na América Latina.

A tradução do livro já está assegurada pela Rocco, que edita sua obra no
Brasil, embora ainda sem data definida de lançamento. No ensaio, Fuentes
exalta a importância de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis, como o melhor romance latino do século 19. E ignora o chileno
Roberto Bolaño, escritor cuja obra Fuentes confessa não ter lido ainda.

Fuentes é autor de um conjunto de livros marcado pela inquietação. Como


o recente Adão no Éden, espécie de reportagem romanceada, em que ele põe
o dedo na ferida mexicana ao descrever um país assolado pela corrupção,
pelo crime e por uma profunda desigualdade econômica. Próximo dos 83
anos (completa em 11 de novembro), o autor - que nasceu no Panamá, onde
seu pai, diplomata mexicano, servia na ocasião - é um crítico incansável. "O
México não enfrentaria um problema tão grave de narcotráfico se não
houvesse demanda nos Estados Unidos, nossos vizinhos ao Norte", afirma
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ele, que adota o humor em Adão no Éden, além de flertar com o surrealismo
e o realismo mágico, para acompanhar a ascensão de Adão Gorozpe, homem
que, nascido pobre, transforma-se em figura de destaque depois de um
casamento por interesse.

Narrado em primeira pessoa e com diversos recursos estilísticos (como saltos


temporais e constantes intromissão na narrativa de notícias de jornal), o
livro se encaixa sem segmento denunciador da obra de Fuentes, como a
ficção futurista A Cadeira da Águia, que se passa em 2020 , quando a
Presidência dos Estados Unidos é assumida pela ex-secretária de Estado do
governo George W. Bush, Condoleezza Rice. Incansável, prepara novo livro
(Frederico en Su Balcón) para 2012 e também uma visita ao Rio de Janeiro,
em novembro, quando vai participar do Fórum da América.

Como surgiu a ideia de escrever sobre a história do romance latino-


americano?

Fui convidado por meu editor americano para produzir um ensaio sobre
minha leitura de obras latinas. Algo pessoal, sem acadêmica. Comecei com
os descobridores da América, que foram os primeiros escritores a tratar do
nosso continente. Em Crónicas del Nuevo Mundo, de David Posse,
transbordam descrições de maravilhas como tartarugas e seus mil ovos ou
pérolas negras. É o primeiro contato que a Europa, ansiosa por fantasia, tem
do Novo Mundo. Mas se a narrativa das Américas começa com a imaginação
mítica, logo Bernal Diaz del Castillo foca sua escrita na conquista épica.
Assim, a maravilha da descoberta é superada pelo clamor da conquista. Uma
vitória cheia de dúvidas, porque Bernal exige a destruição do mundo que
ama por aquele a que obedece. Seu livro é a memória da juventude de um
homem maduro, esquecido e cego. O mito é já épico.

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E qual a importância de Cervantes nesse contexto?

Ele abriu o caminho para todos os novelistas modernos. Afinal, foi o


primeiro a desdobrar o gênero porque, em sua narrativa cavaleiresca,
aparecem formatos épicos, picarescos, de amor, de aventuras e,
principalmente, o romance dentro do romance, uma vez que D. Quixote se
imagina personagem de um livro sobre suas aventuras, o que é totalmente
metalinguístico. Uma confusão de gêneros que vai influenciar e consagrar o
argentino Domingo Faustino Sarmiento, cujo clássico Facundo: Civilização
ou Barbárie, de 1846, é, aliás, o livro definitivo do século 19 latino-
americano.

Sobre esse século, aliás, há um detalhe em seu ensaio que interessa muito aos
brasileiros: por que considera Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, como o único romance que se salva?

Porque manteve um parentesco literário com Cervantes. Naquela época, a


literatura hispana foi contaminada por ideias de independência, ou seja, de
influência francesa. O mexicano Joaquín Fernández de Lizardi inaugura essa
fase com El Periquillo Sarniento, de 1816, abrindo as portas para diversos
escritores profundamente influenciados pelo romantismo, realismo e, por
fim, pelo naturalismo europeus. Machado, por outro lado, com Brás Cubas,
recupera a tradição cervantina ao mesclar gêneros, ou seja, une o humor, o
herói comum, como ilusões e o engano, assim como a crítica do livro dentro
do livro e o questionamento de sua autoria. E o grande herdeiro de
Machado de Assis é Jorge Luis Borges, que consegue dar um salto ainda
maior.

Como assim?

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Há trechos na obra de Machado que precedem O Aleph, de Borges. Esse,


por sua vez, é um dos escritores que promovem uma grande revolução na
literatura latino-americana da época, que estava estancada sem realismo e
sem naturalismo - o pampa ou uma selva tinha de ser inválidos em seus
critérios detalhes. Borges, por outro lado, criou um mundo fantástico, que
fundia tudo, real e irreal. O universo aspira a todos, mas somente a exceção é
capaz de explicá-lo. Nesse sentido, O Aleph reúne todos os espaços possíveis.
O conto Funes, o Memorioso é a união de todas as memórias e a História
Universal da Infâmia abraça todas as histórias. O que acontece é que esse
gigantismo todo é ameaçado por um amor pessoal (Beatriz Viterbo, no caso
de O Aleph), por uma diminuição do absoluto (Funes) e pela
particularidade excêntrica (Infâmia). Borges, ainda, reescreve D. Quixote no
conto Pierre Menard: linha por linha, palavra por palavra, com uma
intenção totalmente distinta. Enfim, há uma apologia à imaginação literária
na escrita de Borges, algo que abriu brechas para outros, como Alejo
Carpentier e Lezama Lima, que vão abrir o caminho mundial para o boom
latino-americano que viria em seguida.

E como é possível encaixar, nessa sequência, a literatura de Juan Rulfo e


Octavio Paz?

Paz foi um poeta e ensaísta que influenciou muito seus pares, enquanto
Rulfo, apesar da produção reduzida, figura como um dos maiores nomes da
literatura mundial - Pedro Páramo é um romance de tirar o fôlego graças à
sua beleza literária. Em meu ensaio, afirmo que as literaturas campesina e
revolucionária mexicanas culminam com dois autores, Agustín Yáñez e
Rulfo. Eles encerram um ciclo com obras que aparentemente tratam de um
momento histórico (revolução mexicana) mas, na verdade, transcendem a
originalidade do estilo, da estrutura e da intenção. Al Filo del Agua e Pedro
Páramo encerram um capítulo temático e abrem outro, o da escrita como
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busca do desconhecido. Dessa forma, a história narrada sobre o século 19 se


converte na história sobre o que não foi contado: a paixão de Pedro Páramo
por Susana San Juan, uma imensa solidão dos povos de Yáñez, a dúvida
acerca de um tema fundamental: quem é meu pai? Quem são minhas mães?

O que dizer sobre o realismo mágico?

Muitos acreditam que se trata de um movimento recente, o que não é


verdade. Cristóvão Colombo, quando estudou como primeiras imagens da
América recém-descoberta, já afirmava ter visto como sereias do Caribe em
1495, o que lhe causou uma certa decepção, pois não pareciam tão belas
como eram examinadas. Claro que as características marcantes do realismo
mágico foram exteriores bem depois, por Borges em grande escala e também
por Carpentier, García Márquez e outros.

Há uma parcela de autores mais jovens que criticam o realismo mágico


porque se tornou um estilo aprisionador, ou seja, quem não escrevesse nesse
estilo, não era reconhecido.

Isso é bobagem dita por pretensos escritores que não sabem fazer nada mais
que imitar (e mal) o estilo de García Márquez. Felizmente, na nova geração,
há nomes que se destacam, como o colombiano Santiago Gamboa e os
mexicanos da geração do Crack, como Jorge Volpi e Ignacio Padilla, que têm
uma obra consolidada e uma carreira encaminhada.

Por falar nisso, o senhor não faz referência, em seu ensaio, ao chileno
Roberto Bolaño, um dos latinos mais elogiados na literatura contemporânea.
Porque?

Simplesmente, porque ainda não li nenhum de seus livros. Fico incomodado


quando algum autor se transforma em unanimidade, especialmente da
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crítica. Não quero dizer que sua obra não seja boa, pois, como já disse, não
conheço. Vou esperar a poeira baixar para então avaliar criteriosamente. E,
em meu ensaio, não traço a história formal da literatura latina, apenas elenco
os livros que li e que contribuíram, na minha opinião, para o
desenvolvimento da arte.

Sobre Adão no Éden, o que o motivou a escrever essa história?

Foi minha preocupação com o grande flagelo provocado pelo tráfico de


drogas no México. Adotei uma escrita jornalística para conferir mais
realismo à história desse homem, poderoso, que, ao combater o poder dos
traficantes, torna-se mais violento que eles. Esse é um problema crônico do
meu país que nenhum presidente consegue eliminar. A origem, no entanto,
está nos Estados Unidos: se não houvesse demanda no vizinho do Norte,
não haveria oferta mexicana. Infelizmente, tendo a acreditar que nem Barack
Obama, que é um político bem intencionado, se atreverá a combater a droga
nos Estados Unidos.

O livro se parece, em muitos momentos, com uma história de humor negro.

Foi justamente essa a minha intenção. Adão Gorozpe, o personagem


principal, é uma figura pantagruélica e, ao escrever, eu me lembrei dos
grandes clássicos como Rabelais, Sterne e, claro, Cervantes, que sabiam
como metamorfosear os personagens à medida que a trama avança.

E o senhor está trabalhando agora em uma nova obra?

Sim, estou finalizando um romance que vai se chamar Frederico en Su


Balcón. Deve ser publicado no ano que vem, mas não posso adiantar nada
até porque, graças aos mistérios da criação, tampouco sei como vai terminar.

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LA GRAN NOVELA LATINOAMERICANA

Autor: Carlos Fuentes

Editora: Alfaguara (Espanha)

(400 págs., R $ 58,60)

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