Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
revolução cubana
surgem com as nações ao longo do século XIX, a idéia de uma literatura latino-
americana está fortemente associada aos anos sessenta, em que a revolução cubana
e o boom da narrativa contribuíram para forjar uma imagem de América Latina como
campo unificado, isto é, um campo com suas próprias relações de força, alianças e
origem”, isto é, “da fonte de uma cultura comumente aceita pelos integrantes desta”.
572
uma mistura de romance, crítica literária e cultural, autobiografia, história e ensaio
sobre o imaginário da revolução. Assim, o relato traz à tona pelo menos três questões.
lugar da ficção hoje. As outras duas têm a ver com as relações entre a literatura e a
narrativo único, mas avançando, de uma associação a outra. Sendo um texto que não
As narrativas pós-autônomas aparecem como literatura, mas não podem ser lidas
com os critérios ou com as categorias literárias (específicas da literatura) como
autor, obra, estilo, escritura, texto e sentido. E, portanto, é impossível dar a elas um
“valor literário”: já não tem, para essas escritas, literatura boa ou ruim (LUDMER,
2006).
Estas escrituras não admitem leituras literárias; quer dizer, que não se sabe ou não
importa se são ou não literatura. E também não se sabe ou não importa se são
realidade ou ficção. Instalam-se localmente e numa realidade cotidiana para
“fabricar presente” e esse é precisamente seu sentido (LUDMER, 2006).
presente: “Su objeto es operar, incidir, impactar en el estado de cosas del presente”
colocam a um escritor cubano hoje, na primeira década do século XXI. Como ser
escritor numa cidade e num país em ruínas? Que dizer, desde dentro, sobre a
573
O livro de Ponte está dividido em quatro partes. Cada uma delas relata
coisas da história recente de Cuba, junto com anedotas pessoais, leituras e críticas
Center, Nova Iorque. Essas histórias “son vestigios para recuperar la fiesta, rastros
con los que reconstruir un desastre, datos de caja negra” (p. 128), diz o narrador.
impressionante ensaio, Ponte fala, entre outras coisas, do déficit habitacional que
sofre Habana e diz que “cuando resulta imposible ocupar un afuera queda aún el
recurso de las cajas chinas [...] la arquitectura emprende el camino del exilio interior,
ruina” (p. 174). Esse “exílio interior” da arquitetura funciona assim como metáfora do
574
Na última parte “Una visita al Museo de la Inteligencia”, o narrador relata
uma visita que faz ao Museu da Informação em Habana, que ele apresenta como uma
cópia patética do Museu de Berlim Oriental e onde ele imagina que tem se perdido (se
é que existiam) os arquivos com informações sobre sua vida, convertendo, assim, até
narrador relata seus encontros com outros escritores que se exilaram de Cuba e que
se surpreendem de que Ponte tenha ficado na ilha, apesar da perseguição que vive.
secreto britânico. No entanto, não fica claro no romance de Green qual seria a missão
secreta dele. “El espía más improbable parece haber dado con el lugar más
improbable para una historia de espías: La Habana de fines de los cincuenta.” Assim
como o personagem de Graham Green, que era um espião, Ponte é considerado pela
entre o espião e o escritor não é, de forma alguma, caprichosa. Diz o narrador que
“Green había llegado a calibrar cuánto tienen en común espía y novelista desde que
Com essa acusação, ele é expulso da “cidade das letras” (p. 41) pela União
de Escritores. E, apesar disso, o narrador diz que fica em Cuba “para cuidar da
tradição literária”, para “velar por alguns velhos nomes da literatura nacional”
(KALSENPOLZKY, 2008). Numa bela passagem em que traça uma sutil analogia, o
narrador relata como cuida — “vigila” — da sua avó doente, “con la tenacidad y el
cariño con que se cuida lo que inevitablemente se va a perder”. Pois Ponte escreve
575
com o ceticismo próprio de um momento em que tudo está a ponto de desaparecer, de
acabar. “Tropecé de talón con las ruinas al volver a la Habana” (p. 161), diz o narrador
Marc Augé, que “volver a las ruinas [...] es refrescar al pasado con el fin de recuperar
la confianza perdida en algún punto” (p. 161). Assim como chega a se sentir morador
de uma cidade em ruínas, também se sente herdeiro das ruínas da tradição literária
cubana. “Ser el único habitante de una ciudad no lleva aparejadas ínfulas de fundador.
Por otra parte, uno tendría que contar con muy poco amor propio para erigirse en
intelectual que alguma vez girou em torno dele. E são as ruínas da “festa”. “En 1968
cerraron los bares y los cabarets y la fiesta se convirtió en algo privado. En 1993,
Cuba de los años cincuenta”, explica o autor. A Cuba dos noventa, em que a festa
retorna dentro dos grandes hotéis, se parece assim com a Cuba pré-revolucionária, do
antes da revolução. Durante várias décadas, a Habana descrita por Green pareceu
literária, remota, diz o narrador. Uma vez que triunfou a revolução, foram proibidas a
Aragonesa à Buena Vista Social Club, a indústria cultural teria reinventado uma
mitologia sobre Cuba que Ponte se encarrega de desmentir. Por exemplo, Ponte conta
que foi assistir em Portugal ao Buena Vista Social Club, o filme de Wim Wenders
576
sobre a banda cubana de salsa. Diz o narrador: “La música era el perfume de un país,
el recurso que quedaba a ese cuerpo emputrecido para hacerse presente de algún
modo” (p. 140). Depois revê o filme numa cinemateca cubana, onde o público era na
maior parte turistas, e diz: “Visto por segunda vez, el filme remitía a una ciudad que yo
no iba a encontrar a la salida del cine. Lo mismo que en Porto” (p. 140). “La música,
Erigindo-se a partir das ruínas e um pouco contra elas, Ponte não propõe
um romance como monumento, nem como lugar desde o qual seja possível construir
(reconstruir) uma identidade cubana. Escreve a partir dos restos da tradição. É por
isso que esse instigante texto de Antonio Ponte suscita várias perguntas: Que dizem
essas ruínas dos mitos da revolução cubana acerca da ficção ou, melhor, acerca do
campo literário latino-americano de hoje? E, por outro lado, que dizem as ficções
sobre as ruínas desses mitos: América Latina, revolução cubana, campo intelectual?
Se, como assinala Josefina Ludmer, a narrativa do presente é uma literatura “pós-
americana, qual é o horizonte da nova narrativa? A autonomia foi condição para que
alienada e a visão de uma epifania redentora” (AVELAR, 2000, p. 49). Sendo assim,
espaço para as ficções enquanto mito, isto é, existe ainda espaço para os meta-relatos
político-culturais?
Referências
577
AVELAR, Idelber. Alegorías de la derrota. La ficción postdictatorial y el trabajo del
FRANCO, Jean. The decline and fall of the lettered city: Latin America in the Cold War.
<http://www.pacc.ufrj.br/z/ano4/1/josefinaludmer.htm 2006>.
<http://www.eldigoras.com/eom03/2004/2/fuego35ajp01.htm>.
Nota
1
É interesante assinalar que o tema das ruínas é recorrente na obra de Ponte. O autor
publicou um livro de poemas intitulado Asiento en las ruinas (Madrid: Renacimiento, 2005) e
578
um volume de contos intitulado Un arte de hacer ruinas y otros cuentos (México: Fondo de
Cultura Económica, 2005), cujo título serviu ao documentário La habana: el arte de hacer
ruinas dirigido por Florian Borchmeyer e Matthias Hentschler, em que Ponte é um dos
protagonistas. Diz Ponte, no filme: “Yo me considero un ruinólogo, ando siempre buscando
razones a las ruinas. Es posible imaginar la muerte en La Habana escrita por Thomas Mann,
pues es una ciudad decadente en hundimiento y la plaga que recorre la ciudad da la sensación
de que la naturaleza se está vengando de algo que le han hecho. La Habana tiene más ruinas
que Roma, pero la diferencia es que las ruinas de La Habana están habitadas y eso no permite
la melancolía. Las ruinas de Roma son ruinas que no están habitadas. Realmente es un
sentimiento muy hiriente, muy ponzoñoso, sentir que te estás arruinando con las ruinas. Ha
sido todo un ejercicio de destrucción, cuando una capital se arruina, se están fabricando ruinas,
es el arte de hacer ruinas”.
579