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Um eremita em Paris

Como contar a própria vida? Italo Calvino ensaiou um projeto de autobiografia nos moldes
tradicionais, à maneira de um romance realista, mas foi com estes fragmentos, reunidos
postumamente, que o autor de As cidades invisíveis deixou a imagem mais acabada de seu
percurso intelectual e existencial.

Pode parecer paradoxal que a melhor síntese de toda uma vida seja franqueada precisamente
por relatos descontínuos, variados, em que a mudança prevalece sobre a constância. No
entanto, aí está a chave: Calvino foi um dos mais inventivos e inquietos escritores da segunda
metade do século XX, um mestre da forma breve, sismólogo brilhante de tempos de ruptura e
dispersão. Coerente com o mundo em que viveu, preferiu evitar um relato totalizador, no qual
cada um de seus leitores pudesse finalmente reconhecer uma moldura que enquadrasse, num
conjunto único e definitivo, a trajetória do menino nascido por acaso em Cuba, do jovem
militante da Resistência e do Partido Comunista Italiano, do homem maduro que se fixou em
Paris para sentir-se estrangeiro ou eremita, como sugere o título do livro.
Aqui está presente, também, parte substanciosa da vida intelectual, cultural e política que vai
dos anos 1930 ao início dos anos 80: os embates ideológicos vividos durante a Guerra Fria, a
situação do escritor na sociedade contemporânea, a necessidade de criar sempre novas
formas ficcionais. Em entrevistas, ensaios, reportagens, diários de viagem, Calvino vai
traçando um mapa minucioso e impalpável das experiências que o constituíram e deram uma
cara ao seu tempo. Como ele mesmo disse a respeito de Cesare Pavese, e como o atesta este
volume, hoje já é possível falar de uma "época Calvino".

O caminho de San Giovanni


Os cinco textos reunidos neste livro fazem parte da série de "exercícios de memória" em que
Italo Calvino trabalhava quando morreu. Escritos entre 1962 e 1977, são heterogêneos na
forma e na intenção: podem ser descritivos, poéticos, reflexivos, críticos, constituindo
narrativas de caráter fortemente espacial e visual. Longe da autocomplacência comum nos
relatos autobiográficos, e mais do que narrar eventos e revelar fatos da história pessoal, são
quase ensaios sobre o imaginário da infância e da adolescência do autor, ou sobre temas
banais como o lixo doméstico. Mas em Italo Calvino nada é prosaico. Nada é trivial para esse
escritor que inventou, a partir das imagens da infância em San Remo, um "lugar geométrico
do eu" e, desse lugar, pôs-se a ver o mundo.

Sob o sol-jaguar
Três narrativas póstumas em que o escritor italiano transita com naturalidade entre os
registros realista e fantástico, comprovando sua versatilidade em construir universos tão
surpreendentes quanto verossímeis. Um tríptico dedicado às relações entre olfato, paladar e
audição e linguagem e realidade.

De um bando de antropóides vagando na pré-história a um elegante salão parisiense do século


XIX. De uma orgia de roqueiros à reclusão de um rei em seu palácio, passando por uma
incrível viagem sensorial em meio às ruínas de Oaxaca, México. Pouquíssimos autores
possuem o dom de Italo Calvino de transformar a literatura num jogo ímpar, que leva às
últimas conseqüências as possibilidades imaginárias do real.
Nas três narrativas aqui reunidas, o escritor italiano comprova uma vez mais sua incrível
versatilidade em construir universos tão surpreendentes quando verossímeis, demonstrando
por que sua obra é, ao lado da de Borges, Kafka e alguns outros, um dos grandes legados da
cultura do século XX.

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