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Começar e terminar (Cominciare e finire). In CALVINO, Italo. Saggi (1945-1985).

Milano: Mondadori, 1005. Vol. 1, pp 734-753. Conferência dada em 22 de fevereiro


de 1985,

Começar uma conferência, ou melhor, um ciclo de conferências, é um


momento crucial como começar a escrever um romance. E este é o momento da
escolha: é-nos oferecida a possibilidade de dizer tudo, em todos os modos possíveis; e
devemos chegar a dizer uma coisa, em um modo particular. O ponto de partida das
minhas conferências será, portanto, este momento decisivo para o escritor: o destaque
da potencialidade ilimitada e multiforme para encontrar algo que ainda não existe mas
que poderá existir apenas aceitando limites e regras.
Até o momento que precede àquele em que começamos a escrever, temos a
nossa disposição o mundo, uma soma de informações, de experiências, de valores – o
mundo dado em bloco, sem um antes nem um depois, o mundo como memória
individual e como potencialidade implícita; e nós queremos extrair deste mundo um
discurso, uma narrativa [racconto], um sentimento: ou, talvez mais exatamente,
queremos realizar uma operação que nos permita nos situar neste mundo. Temos à
disposição todas as linguagens: aquelas elaboradas pela literatura, os estilos em que se
expressaram civilização e indivíduos nos vários séculos e países, e também as
linguagens elaboradas pelas mais variadas disciplinas, com o fim de alcançar as mais
variadas formas de conhecimento: e queremos extrair delas a linguagem adequada
para dizer isto que queremos dizer, a linguagem que é isto que queremos dizer.
A cada vez o início é este momento de destaque da multiplicidade dos
possíveis: para o narrador o distanciar de si a multiplicidade das histórias possíveis, de
modo a isolar e tornar contável, narrável a singular história que ele decidiu contar
naquela noite; para o poeta o distanciar de si um sentimento do mundo indiferenciado
para isolar e conectar um acordo de palavras em coincidência com uma sensação ou
um pensamento.
O início é também o ingresso em um mundo completamente diferente: um
mundo verbal. Fora, antes do início há ou se supõe que haja um mundo
completamente diferente, o mundo não escrito, o mundo vivido ou vivível. Passado
este limiar entra-se em um outro mundo, que pode entreter com o primeiro relações
decididas um pouco de cada vez, ou mesmo nenhuma relação. O início é o lugar
literário por excelência porque o mundo de fora por definição é contínuo, não tem
limites visíveis. Estudar as zonas de confins da obra literária é observar os modos em
que a operação literária comporta reflexões que vão além da literatura mas que
somente a literatura pode expressar.
Os antigos tinham uma clara consciência da importância deste momento, e
abriam os seus poemas com a invocação à Musa, justa homenagem à deusa que
custodia e administra o grande tesouro da memória, do qual cada mito, cada época,
cada narrativa [racconto] fazem parte. Bastava o fugaz chamado à Musa, uma
invocação que também era um adeus, um sinal de entendimento à multidão de herois,
no intricado de empreitadas, como a dizer: se agora me ocupo da ira de Aquiles não
esqueço os cem outros episódios da guerra de Troia; se agora é o retorno de Ulisses
que me interessa não esqueço as vicissitudes dos retornos de todos os outros herois.
No teatro antigo, o palco fixo representava o lugar ideal em que todas as
tragédias assim como todas as comédias podiam se desenvolver. Um lugar da mente,
fora do espaço e do tempo, mas tal a ponto de identificar-se com os lugares e os
tempos de cada ação dramática. Os teatros romanos que se conservaram e as
reconstruções do Renascimento paladiano tornaram familiar para nós essa imagem do
classicismo como disponibilidade impassível ao desencadear-se das paixões humanas:
a fachada marmórea de um solene palácio com a porta real ao centro e as duas portas
menores simétricas aos lados, uma fachada que podia ser qualquer reino, qualquer
templo, qualquer praça de cidade. Bastava que pela soleira de uma daquelas portas se
apresentasse um rei, ou um adivinho, ou um mensageiro, e eis que entre as tantas
ações potenciais uma se tornava atual, sem que a continuidade com o resto do
existente e do imaginável fosse despedaçada.
Nos clássicos do romance, nos séculos XVII, XVIII e XIX, os incipits
sublinham que o romance tratará de pessoas ou fatos bem individuados temporal,
geográfica e anagraficamente. A concretude de Cervantes parece ainda destacar-se
por um fundo de indeterminação mítica, que no entanto não vai mais além do
primeiro parágrafo, em que o lugar e o nome do personagem vêm velados por uma
nuvem de incerteza. “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero
acordarme, no ha mucho tempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero...”.
[Em um lugar de La Mancha, de cujo nome não quero me recordar, não faz muito
tempo vivia um fidalgo dos de lança em cabido..”. Mas, um século depois, Robinson
Crusoé não terá mais dúvidas sobre a própria identidade e origem: “I was born in the
year 1632, in the city of New York, of a good family, though not of that country, my
father being a foreigner of Bremen who settled first at Hull”. [“Nasci no ano de 1632,
na cidade de New York, de uma boa família, no entanto não daquele país, meu pai era
um estrangeiro vindo de Bremen que se estabeleceu primeiro em Hull”]. A precisão
não é menor se se trata do heroi de um romance fantástico como As viagens de
Gulliver: “My father had a small estate in Nottinghampshire; I was the third of five
sons. He sent me to Emanuel College in Cambridge, at fourteen years old...” [Meu pai
tinha uma pequena propriedade em Nottinghampshire; eu era o terceiro de cinco
meninos. Ele me enviou para o Emanuel College em Cambridge, quando eu tinha
quatorze anos......]. Ao se observar bem, esta necessidade preliminar de individuação
se torna para o romancista um ato ritual como a invocação à Musa; isso subentende a
preocupação de subtrair a história que se está para narrar da confusão com outros
destinos, outras vicissitudes; é ainda de algum modo uma homenagem à vastidão do
universo. Cada história do romance deve ter presente a história do anti-romance que
corre contemporânea e paralela. Assim ao incipit da individuação do século XVIII se
contrapõe o incipit da indeterminação absoluta: Diderot em Jacques o fatalista quer
pôr logo em evidência que aquilo que se lê não é vida mas relato [racconto] escrito,
decidido em tudo pelo autor: “Comment s’étaient-ils rencontrés? Que vous importe?
D’où venaient-ils? Du lieu le plus prochain. Où allaient-ils? Est-ce que l’on sait où
l’on va?” [Como eles se conheceram? Que lhe importa? De onde eles vinham? Do
lugar mais próximo. Para onde eles iam? Será que alguém sabe para onde vai?].
Quanto a Sterne, para contrapor-se aos incipits biográficos, ele começa a
autobiografia de Tristram pela “geração”, pela concepção, pelos precedentes do
nascimento, de modo que a aproximação à gênese do personagem ocupa grande parte
do livro.
Estas propostas não fazem senão confirmar o ato de individuação como rito
canônico para iniciar um romance. Mas as variantes se distanciarão cada vez mais do
modelo. Os escritores se convencem cada vez mais de que os preâmbulos são inúteis.
O famoso início: “Call me Ismael” (Chamem-me de Ismael), mais do que individuar
parecer sublinhar um fundo vário e misterioso pelo qual se destaca a voz que fala.
Com certeza todo ritualismo que assinala o início da obra como passagem do
universal ao particular é característico das épocas em que uma inspiração religiosa é
dominante, qualquer que seja o nome da divindade invocada sobre o limiar. Santo
Agostinho abre as suas Confissões perguntando-se por onde começar a sua procura
por Deus e decide buscá-lo em si mesmo, no relato [racconto] de sua vida. Se o início
da Divina Comédia nos leva até o coração de uma crise existencial individual, já no
primeiro verso “Nel mezzo del camin di nostra vita” [No meio do caminho de nossa
vida], o nossa recorda que o indivíduo Dante é uma espécimen do homem, e anuncia
que no poema as referências ao vivido do autor e à sociedade de seu tempo se
misturam continuamente com alegorias universais, com as noções cósmicas teológicas
morais de um saber enciclopédico.
A literatura moderna, falo apenas dos últimos dois séculos, não sente mais a
necessidade de assinalar o ingresso na obra com um rito ou um limiar que recorde
aquilo que fica fora da obra. Os escritores se sentem autorizados a isolar a história que
decidem narrar do conjunto do narrável. [...] Já que a vida é um tecido contínuo, já
que qualquer início é arbitrário, então é perfeitamente legítimo começar a narração in
media res, em um momento qualquer, na metade de um diálogo, como começam
fazendo Turguenev, Tolstoi, Maupassant. Há também o tipo de início retardante: o
narrador não tem pressa de entrar com o argumento, toma distância dele, e então a
multiplicidade do contável se manifesta por um momento neste intervalo. Recordarei
o belíssimo incipit de The Old Curiosity Shop: “Night is generally my time for
walking” [A noite é geralmente meu período para caminhar] e por duas páginas evoca
a cidade de noite percorrida pelo narrador insone, os encontros à luz dos lampiões, até
que se encontre em Little Nell e a história comece. Dickens não é muito interessado
no rigor estrutural dos seus romances, e se esquece imediatamente deste início em
primeira pessoa; porém isso permanece como um manifesto do modo clássico de
narrar.
Em poucos escritores somente se faz sentir – velada pelo espírito irônico – a
necessidade de livrar-se, afastar-se da vastidão do cosmos, para dedicar toda a sua
própria atenção, uma vez estabelecida a escala de proporção, à representação
minuciosa de uma singular história. Um destes raros fiéis de uma consciência cósmica
é certamente Robert Musil que [assim] começa O homem sem qualidades: “Pelo
Atlântico um mínimo barométrico avançava em direção oriental de encontro a um
máximo incumbente na Rússia, e não mostrava no momento nenhuma tendência a se
esquivar deslocando-se em direção ao norte. Os isotérmicos e os isotéricos se
comportavam normalmente. A temperatura do ar estava em relação normal com a
temperatura média anual, com a temperatura do mês mais quente assim como com a
do mês mais frio, e com a oscilação mensal aperiódica. O nascer e o pôr do sol e da
lua, as fases da lua, de Vênus, do anel de Saturno e muitos outros importantes
fenômenos se sucediam conforme às previsões dos anuários astronômicos. O vapor
áqueo no ar tinha a tensão máxima, e a umidade atmosférica estava baixa. Em suma,
com uma frase que embora um pouco antiquada resume os fatos: era um belo dia de
agosto do ano de 1913”.
Um outro início cósmico que me vem à mente é aquele, verdadeiramente
memorável, de um conto de Borges, El Aleph: “La candente mañana de febrero en que
Beatriz Viterbo murió, después de una imperiosa agonía que no se rebajó un solo
instante ni al sentimentalismo ni al miedo, noté que las carteletas de fierro de la Plaza
Constitución habían renovado no sé qué aviso de cigarillos rubios; el hecho me dolió,
pues compreendí que el incesante e vasto universo ya se apartaba de ella y que ese
cambio era el primero de una serie infinita” [A incandescente manhã de fevereiro em
que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não se rebaixou um
só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da
Plaza Constitución haviam renovado não sei qual anúncio de cigarros vermelhos; o
fato me doeu, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e
que essa mudança era a primeira de uma série infinita].
O cosmos pode ser buscado também no interior de cada um de nós, como caos
indiferenciado, como multiplicidade potencial. O sono pertence a uma cosmicidade
antropológica como bem sabia aquele que começou uma das maiores empreitadas da
narrativa de todos os tempos: “Longtemps, je me suis couché de bonne heure” [Por
muito tempo, fui me deitar bem cedo”. Não somente, mas basta folhear a Recherche
para ver quantas vezes o adormecer e o despertar-se, estes dois momentos sobre os
quais Proust tem inúmeras coisas a nos dizer, figuram em abertura de um capítulo ou
de um volume, como o belíssimo ataque do despertar no início de La prisonnière.
Mas detendo-me no início da obra, “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”, o
ponto que nos interessa está poucos parágrafos/períodos adiante:
“Un homme qui dort tient en cercle autour de lui le fil des heures, l’ordre des
années et des mondes. Il les consulte d’instinct en s’éveillant et y lit en une seconde le
point de vue de la terre qu’il occupe, le temps qui s’est ecoulé jusqu’à son éveil; mais
leurs rangs peuvent se mêler, se rompre” [Um homem que dorme tem ao seu redor o
fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ele os consulta por instinto
despertando-se e neles lê em um segundo o ponto de vista da terra que ele ocupa, o
tempo que se escorreu até o seu despertar; mas as suas posições podem se misturar, se
romper].
Onde vemos que a multiplicidade das histórias possíveis se confunde na
multiplicidade do vivido possível, a unicidade do relato [racconto] que inicia se torna
a unicidade dos dias que nos toca viver, decidida no despertar, no destaque da
indeterminação do sono. Partimos então das Musas de Homero, custódias da
memória, e eis que o poema da memória do nosso século, a Recherche, faz apelo ao
esquecimento, para reencontrar a partir disso os fios da recordação.
Memória e esquecimento são duas entidades complementares. Se nos
reportarmos às origens da arte do contar, o narrador de fábulas faz apelo à memória
coletiva mas ao mesmo tempo a um poço de esquecimento do qual as fábulas
emergem como que despojadas de toda determinação individual. “C’era una volta...”
[Era uma vez] O narrador conta porque recorda (acredita recordar) histórias que foram
esquecidas (que ele acredita terem sido esquecidas). O mundo do múltiplo do qual a
fábula aflora é a noite da memória mas também a noite do esquecimento. Saindo
dessa escuridão, tempos lugares pessoas devem permanecer indistintos para que quem
escutar a fábula possa imediatamente identificar-se com ela, completá-la com imagens
da sua própria experiência.
Mas do patrimônio da narrativa oral nasce [...] também a novela, aquela que
na cultura italiana se chama a novella, que, por sua vez, aponta para um máximo de
individuação. As histórias que se “conservam” na memória coletiva constituem
também um universo de casos singulares, de destinos possíveis com todas as suas
especificações.
Sobre este argumento gostaria de me referir a dois ensaios: um é muito
famoso, o ensaio de Benjamin O narrador, que tira considerações a partir das novelas
de Leskov. O narrador, para Benjamin, era aquele que transmitia experiência, em
épocas em que a capacidade dos homens de aprender pela experiência não estava
ainda perdida. O narrador tem acesso a um anônimo patrimônio de memória
transmitido oralmente, no qual o evento isolado na sua singularidade nos diz algo do
“sentido da vida”. O que é o “sentido da vida”? É algo que podemos colher sobretudo
nas vidas dos outros, as quais, para serem objeto de narração, se nos apresentam como
cumpridas, seladas pela morte. O conto popular fala da vida e nutre o nosso desejo de
vida, mas justamente porque esta vida contém implícita a presença da morte, isto é,
tem por fundo a eternidade.
O outro ensaio, de Erich Auerbach, sobre a técnica de composição da novela, é
menos conhecido, sendo – acredito – a primeira coisa publicada por Auerbach na sua
juventude (1926): Zur Technik der Frührenaissancenovelle in Italien and Frankreich
[Sobre a técnica da novela nos inícios da Renascença na Itália e na França]. O ponto
que nos interessa é explicado lá do modo mais claro: “Para escrever uma novela [...]
era necessário cumprir a seguinte tarefa: da infinita abundância dos eventos sensíveis
era preciso pôr em foco um deles em particular, e desenvolvê-lo depois com os seus
principais pressupostos de tal modo que pudesse ser representativo dessa abundância
infinita. Isso não podia acontecer na Idade Média; por um longo tempo, de fato, a
mesma abundância dos eventos, a imanência, não parecia ao observador digna de ser
compreendida nem capaz de enriquecer, mas no máximo era vista como alegoria. O
mundo, desprezado por tanto tempo, tinha virado as costas para o homem, assim
como o homem tinha virado as costas para o mundo; e quando o homem voltou-se
novamente para o mundo, foi-lhe necessário um grande esforço para domá-lo. A
inteira estrutura do mundo tinha se tornado estranha para ele; o homem não via mais a
massa infinita dos eventos, onde um conflui no outro para formar um conjunto (a
causalidade) ainda que de fatos isolados...”
Auerbach confronta as novelas orientais em que acidentalidades e
contradições fazem parte da ordem imanente do mundo com a rigidez das seleções de
exempla para uso dos predicadores, em que os relatos [racconti] deviam servir para
uma demonstração moral pré-determinada.
A extraordinária novidade de um Boccaccio se tornou possível, segundo
Auerbach, graças à imagem de uma sociedade ideal que serve de pano de fundo
[cornice] para as novelas. É uma sociedade de mulheres, segundo uma nova imagem
da mulher que toma forma na civilização citadina. “Graciosíssimas mulheres” é o
vocativo com o qual se abre o Decameron. Boccaccio se volta para as mulheres, conta
histórias nas quais elas têm um papel ativo, e representa um mundo governado pela lei
amorosa. O pano de fundo [cornice] do Decameron no qual estão encadeadas as cem
novelas adquire uma importância decisiva, pois contém um modelo de sociedade que
poderia se estender a um modelo de universo. Esta ambição cosmológica é anunciada
desde o título Decameron, os dez dias, extraído do Hexameron, os seis dias, título de
uma obra de Santo Ambrósio sobre a criação do mundo. Como é sabido, a introdução
do Decameron começa com a apavorante descrição da peste no ano de 1348 em
Firenze e conta depois sobre como sete jovens nobres mulheres decidem fugir do
flagelo para ir se refugiar em uma casa no campo, acompanhadas por três rapazes,
bem como sobre passar os dias em animados passatempos inocentes. A cada dia por
vez um dos dez componentes da brigada é nomeado rainha ou rei e se reúne em um
gramado e cada um conta uma novela, sobre um tema estabelecido para cada um dos
dias.
O universo do qual se destacam as singulares novelas apresenta, pois, uma
dupla imagem: há a peste como um caos que destroi os laços sociais e familiares e
morais, e contraposta à peste, uma ordem ideal, uma sociedade de nobreza e harmonia
e gentileza, uma sociedade que reflete sobre casos humanos nos quais o amor é uma
força natural que apenas se respeitada enquanto tal pode ser governada pela razão e
pela moral. Uma distintiva vaguidão envolve o pano de fundo do Decameron: a
escrita de Boccaccio, tão precisa nas novelas, aqui deixa tudo no indeterminado, as
paisagens são docemente convencionais, os personagens dos dez narradores não são
caracterizados, nada perturba os seus dias, não sabemos nada das relações que os
ligam, não sabemos sobre quais das sete mulheres e dos três homens estão
apaixonados. Essa diferença de tratamento literário sublinha a diferença entre pano de
fundo e relato [racconto]. O pano de fundo como o palco do teatro clássico deve
permanecer genérico, imagem do espaço ideal no qual tomam corpo as histórias.
Como se ligam ao pano de fundo e entre si as novelas do Decameron? Comumente o
tecido conectivo é moral: cada narrador, tomando a palavra, se desvincula da novela
do narrador precedente com um breve comentário moral que requer uma ulterior
exemplificação, e introduz o novo relato [racconto]; em alguns casos o elo é
simplesmente uma associação de ideias: um detalhe da última novela, um objeto, uma
situação despertam no narrador seguinte a recordação de uma outra história.
“A recordação – diz Benjamin – cria a rede que todas as histórias acabam por
formar entre si. Uma se liga à outra, como os grandes narradores sempre se alegraram
em mostrar, e em primeiro lugar os orientais. Em cada um destes vive uma
Sheherazade, à qual, a cada passo das suas histórias, vem à mente uma história nova”.
Um pouco mais adiante Benjamin acena para a importância que tiveram os
mercadores na arte de contar, com as suas “astúcias para captar a atenção dos
ouvintes”, e para como eles “deixaram uma marca profunda nas Mil e uma noites”.
Estas observações vêm muito a propósito para um narrador pertencente à
sociedade mercantil como Boccaccio; nas novelas do Decameron o mundo dos
mercadores está presente nas experiências contadas, na moral prática e também na
estrutura da obra, que permite um mecanismo de troca narrativa, de circulação das
histórias. Porque a pequena sociedade perfeita dos dez narradores é sim uma
sublimação, um ideal aristocrático como diz Auerbach, mas é também um mercado
perfeito no qual todos tiram um proveito. A rodada narrativa que se repete a cada
noite é ordenada por regras muito precisas como um torneio cavalheiresco, mas não
prevê nem vencidos nem vencedores; mais do que um torneio é um mercado em que
cada um tem alguma coisa para dar e alguma coisa para ganhar.
Temos, portanto, em Auerbach e Benjamin duas definições do conto
[racconto], diferentes mas não contraditórias: no Boccaccio de Auerbach o conto é
definido pelo pano de fundo; no Leskov de Benjamin pela ausência de pano de fundo,
mas Benjamin chama atenção para a matriz da narrativa oral que é como um pano de
fundo subentendido: o saber local transmitido pelos contos dos camponeses, a
experiência prática difundida pelos mercadores e pelos marinheiros, os segredos dos
ofícios contidos nos contos dos artesãos. Esse pano de fundo está presente em muitos
contos de Leskov. Recordarei um extraordinário conto de Leskov, Alexandrita, que
começa contando a história de uma pedra preciosa e de um exímio entalhador de
pedras, um tanto quanto mágico. Este tipo de incipit narrativo que definirei como
“enciclopédico” deve certamente ser catalogado entre os modelos de início que estou
procurando. Ele consiste em partir de uma informação geral, como um verbete de
enciclopédia ou o capítulo de um tratado, ou a descrição de uma prática ou de um tipo
de ambiente ou de uma instituição: e para exemplificar essa informação geral, inicia-
se a contar a história particular.
Nas novelas de Boccaccio encontrei um único exemplo de início
“enciclopédico” mas muito característico. A décima novela do oitavo dia começa
explicando como funcionam os “cais” e as “aduanas” dos portos, onde os mercadores
depositam as mercadorias desembarcadas pelos navios registrando-as junto à
autoridade portuária. A novela que se desenvolve em Palermo conta as astúcias de
uma cortesã para enganar um mercador e as astúcias do mercador para se refazer do
dano, e a intriga é toda baseada sobre as normas de regulamentação do tráfego nos
portos, tanto que historiadores da economia usaram esta novela como um documento
histórico, e linguistas para o estudo da introdução de termos árabes como “aduana
(dogane)”, que em italiano moderno significa Custom House. No entanto, a cena
principal não se desenvolve em uma aduana mas sim em um ambiente muito mais rico
de sugestões sensuais: uma casa de banho usada como casa de encontros. A
transmissão de conselhos práticos, a enciclopédia das noções objetivas é, pois, fixada
na memória narrativa através da experiência subjetiva da vida emocional e moral.
Se me abandono às associações da minha memória narrativa, me vem à mente
uma outra história que começa em uma Custom House. Trata-se do início de um
famoso romance, A carta escarlate, de Hawthorne. É a decadente Custom House do
porto de Salem, povoada por empregados decrépitos, símbolo do depósito da memória
do passado, da qual Hawthorne toma os movimentos para re-evocar uma história
cujos vestígios ele encontrou vasculhando entre os documentos do arquivo. A
experiência do mundo para Hawthorne está contida em um passado ancestral
condenado à dissolução, e é o sentido desta perda que domina o início do romance e
que determina a decisão de Hawthorne em contar a história de Hester Prynne.
Devo continuar a seguir o fio da memória de leitor? Romances que iniciam
num porto... Eis um romance que começa explicando o que quer dizer exercer a
profissão de ship-chandler’s water clerk1 e descrevendo o shop de um water clerk
em um porto do Oriente. Este início serve para Joseph Conrad estabelecer uma base
de concretude profissional, baseada sobre mercadorias e sobre a instrumentação
técnica, para que apenas tendo presente esta base possamos definir o código ético da
profissão de marinheiro e julgar os românticos sonhos de heroísmo de Lord Jim e
mensurar o abismo da sua queda e da sua culpa.
Joseph Conrad tinha certamente a noção do que pode ser um início: pensem
em como começa Heart of Darkness: a chegada ao porto de Londres, a evocação dos
romanos que desembarcaram em um mundo ignoto e selvagem, a história e a
geografia mobilizadas para servir de pano de fundo - inclusive a espectral Bruxelas –
para a viagem do vapor que sobe pelo Congo... tudo para chegar ao final em que de
novo a experiência limitada se abre sobre a escuridão sem limites...
O final... Dante termina as três partes do seu poema com a palavra stelle
(estrelas)... Podemos fazer para o final considerações simétricas àquelas que tínhamos
feito para o incipit? Com certeza poderíamos nos divertir encontrando finais que
correspondam aos vários tipos de inícios que tínhamos passado em revista. Um final
que dissolve a ilusão realística do conto recordando que o universo ao qual pertence é
aquele da escritura, que a substância dos seus eventos são as palavras arremessadas
contra o papel, é o final do Dom Quixote, no qual Cervantes cede a palavra ao seu
alter ego Cide Hamete Benengeli, que se volta para a sua própria pena: “Y el
prudentísimo Cide Hamete dijo a su pluma: ‘Aquí quedarás, colgada de esta espetera
y de este hilo de alambre, ni sé si bien cortada o mal tajada péñola mia...” [E o
prudentíssimo Cide Hamete disse para sua pena: ‘Aqui ficarás, ligada a este gancho e
a este fio de arame, nem sei se bem cortada ou mal talhada peninha minha...]. Em
seguida é a mesma pena que fala: “Para mi sola nació don Quijote, y yo para él; él
supo obrar y yo escribir...” [Apenas para mim nasceu Dom Quixote, e eu para ele; ele
soube trabalhar e eu escrever...].
Se, ao contrário, quisermos encontrar um final cósmico para colocar ao lado
dos inícios cósmicos que citei, há aquele da Consciência de Zeno, que é uma reflexão
sobre a doença, sobre a vida humana como doença, sobre a natureza contaminada pelo
homem, e chega até uma profecia da bomba atômica. “Haverá uma enorme explosão
1
Funcionário responsável pela entrada e saída dos navios nos portos.
que ninguém ouvirá e a terra – tendo retornado à forma de nebulosa – vagará nos céus
livre de parasitas e doenças”.
Como final indeterminado, recordarei aquele da Montanha mágica. Depois do
lentíssimo desenvolver-se dos meses no sanatório, eis-nos transportados por poucas
abruptas páginas finais em meio a uma batalha da Primeira Guerra Mundial: Hans
Cartop está numa poça de lama sob o sibilar dos projéteis. Mas o vemos apenas por
um átimo; Thomas Mann se recusa a nos dizer se ele morre ou se salva.
“Adeus! Que tu vivas ou padeças... Adeus! As probabilidades não são
favoráveis para ti. O caos em que és arrastado durará ainda quase um ano, e nós não
apostamos que consigas sair dele incólume. Falando sinceramente, deixamos a
questão sem solução quase sem nos preocupar com ela. Aventuras do corpo e do
espírito, aventuras que refinarão a tua simplicidade, te farão viver no espírito aquilo
que provavelmente não viverás na carne. Desta festa mundial da morte, deste maléfico
delírio que incendeia à nossa volta a noite chuvosa, surgirá um dia o amor?”
O problema de não terminar uma história é este. Ainda que ela termine,
qualquer que seja o momento em que decidimos que a história pode se considerar
terminada, nos damos conta de que não é em direção àquele ponto que levava a ação
do contar, de que aquilo que conta está alhures, é aquilo que aconteceu antes: é o
sentido que adquire aquele segmento isolado de acontecimentos, extraído da
continuidade do contável. Certamente, as formas narrativas tradicionais dão uma
impressão de completude: a fábula termina quando o heroi triunfa sobre as
adversidades, o romance biográfico encontra seu final indiscutível na morte do heroi,
o romance de aprendizagem quando o heroi alcança a maturidade, o romance policial
quando o culpado é descoberto. Outros romances e contos - a maioria - não podem
motivar o seu êxito final tão nitidamente: alguns terminam quando toda continuidade
não poderia senão repetir aquilo que já foi representado, ou quando a comunicação
que queriam transmitir assumiu uma forma acabada: e esta comunicação pode ser uma
imagem do mundo, um sentimento, uma aposta da imaginação, um exercício de
coerência do pensamento. O final verdadeiramente importante é aquele que como na
Educação sentimental põe em discussão toda a narração, a hierarquia dos valores que
preside ao romance. Por quatrocentas páginas Flaubert conta a juventude de Frédéric
Moreau quase com os “tempos reais” da vida: amores e vida parisiense e revolução:
ao fim Frédéric falando com um velho amigo recorda um episódio que tem em si a
falta de habilidade e a futilidade da adolescência: uma visita ao bordel em que a
‘forte’ desenvoltura é esmagada pela timidez, e que se resolve em uma fuga. “C’est là
ce que nous avons eu de meilleur! dit Frédéric. “Oui, peut être bien? C’est là ce que
nous avons eu de meilleur! dit Deslauriers” [‘Está aí o que tivemos de melhor! Diz
Frédéric. ‘Sim, pode ser sim? Está aí o que tivemos de melhor! diz Deslauriers”]. É
um final que se projeta sobre todo o romance, sobre o seu acúmulo de dias plenos de
sentimentos, acontecimentos, esperas, esperanças, dramas, e tudo se esfarela como
uma montanha de cinzas.
De todo modo, início e final, mesmo se pudermos considerá-los simétricos
sobre um plano teórico, não o são sobre o plano estético. A história da literatura é rica
de incipits memoráveis, enquanto os finais que apresentam uma verdadeira
originalidade como forma e como significado são mais raros, ou ao menos não se
apresentam à memória tão facilmente. Isto é particularmente verdadeiro para os
romances: é como [se] no momento da retirada o romance sentisse a necessidade de
manifestar toda a sua energia. O início de um romance é o ingresso em um mundo
diferente, com características físicas, perceptivas, lógicas todas suas. É desta
constatação que parti quando comecei a pensar em um romance feito de inícios de
romance, aquele que se tornou Se una notte d’inverno un viaggiattore. Não é este o
único caso em que no meu trabalho o problema de como começar se tornou o próprio
tema do relato [racconto]. Na série de contos que chamei de Cosmicômicas (e que
compreende também um segundo volume, Ti con zero) busquei ter presente a história
do universo como nos é proposta pelas teorias cosmológicas de hoje, e fazer brotar
delas um relato [racconto] que se traduzisse nos termos de uma experiência
individual. É um tipo de relato [racconto] que não abandonei totalmente: quando leio
alguma nova teoria cosmogônica que me estimula, experimento escrever um novo
conto [racconto]: assim escrevi recentemente um conto inspirado pela “inflationary
theory”. Frequentemente estes contos se fecham re-estabelecendo uma continuidade
com a história universal.
Talvez seja esta ânsia pelo problema do começar e do terminar que tenha feito
de mim mais um escritor de short-stories que de romances, quase nunca consegui me
convencer de que o mundo hipotetizado pela minha narração fosse um mundo em si
estanque, autônomo, auto-suficiente, em que podemos nos instalar definitivamente ou
ao menos por longos períodos. Ao contrário, sou tomado continuamente pela
necessidade de tomar esse mundo pelo lado de fora, este mundo hipotético, como um
dos tantos mundos possíveis, uma ilha em um arquipélago, um corpo celeste em uma
galáxia. O meu problema poderia ser enunciado assim: é possível contar uma história
na presença do universo? Como é possível isolar uma história singular se esta implica
outras histórias que a atravessam e a “condicionam” e estas outras ainda, até se
estender a todo o universo? E se o universo não puder ser contido em uma história,
como se pode desta história impossível destacar histórias que tenham um sentido
completo?
Talvez este tenha sido o obstáculo que me impediu até agora de empenhar-me
a fundo na autobiografia, conquanto faça mais de vinte anos que venho fazendo
tentativas neste sentido; mas não quero antecipar um trabalho ainda em curso.
Espero ter explicado exaustivamente por que considero decisivo na obra
literária o modo em que a particularidade que esse representa ou da qual ele parte se
associa à multiplicidade do existente ou do possível. Preferi falar de particular e de
múltiplo, ao invés de “parte” e de “todo”, porque “todo”, “totalidade” são palavras
das quais desconfio sempre um pouco. Não pode haver um todo dado, atual, presente,
mas apenas uma poeirinha de possibilidades que se agregam ou se desagregam. O
universo se desfaz em uma nuvem de calor, precipita sem segurança em um vórtice de
entropia, mas no interior deste processo irreversível podem apresentar-se áreas de
ordem, porções de existente que tendem para uma forma, pontos privilegiados pelos
quais parece se discernir um desenho, uma perspectiva. A obra literária é uma destas
mínimas porções em que o universo se cristaliza em uma forma, em que adquire um
sentido, não fixo, não definitivo, não enrijecido em uma imobilidade mortal, mas vivo
como um organismo.
A poesia é a grande inimiga do acaso, mesmo sendo filha dele e sabendo que o
acaso em última instância ganhará a partida. “Un coup de dés jamais n’abolira le
hasard” [Um lance de dados jamais abolirá o acaso]. Ao inelutável triunfo da entropia,
Mallarmé responde contrapondo-lhe os seus perfeitos cristais de palavras, mesmo
sabendo que a substância deles é a mesma para a qual tende o Universo: a negação, a
ausência, o nada. Rien é a primeira palavra do primeiro verso do soneto que abre as
suas Poésies. Com isso posso fechar a minha análise de inícios, mas não sem recordar
a última perspectiva que Mallarmé propõe: “que tout au monde existe pour aboutir à
un livre” (que tudo no mundo existe para culminar num livro); e pouco mais à frente
deixa claro que este livro, único, deveria ser “l’explication orphique de la Terre” [a
explicação órfica da Terra].
A minha segunda conferência tratará desta tentação ou vocação (segundo
alguns pontos de vista) da literatura contemporânea: o livro que contenha em si o
universo, que se identifique com o universo; e em particular refletirei sobre a
tendência do romance contemporâneo em se tornar uma enciclopédia. Se nesta noite
“afrontei” a multiplicidade do possível como exterior à obra literária, aquilo que vem
antes e depois da obra, na próxima vez considerarei como esta multiplicidade se recria
no interior da obra. E já que esta imagem do universo pode identificar-se com o nada,
falarei daquele caso especial do livro que tende para a perfeita refiguração do nada.
Mas não omitirei de modo algum a terceira alternativa, além do tudo e do nada, que é
a identificação com alguma coisa, com um objeto limitado na sua unicidade. Rien é o
incipit de Mallarmé com o qual fechei a minha análise dos inícios. Para fechar a
análise dos finais, recordarei uma das últimas pièces de Samuel Beckett, Ohio
Impromptu. Dois velhos idênticos com longos cabelos brancos, vestidos com longos
sobretudos negros, sentam-se numa mesa. Um tem em mão um livro desgastado e lê.
O outro escuta, se cala e por vezes o interrompe com o estalar de cascos de cavalo
sobre a mesa. “Little is left to tell” [Restou pouco para contar], e conta uma história
de luto e solidão e de um homem que deve ser o homem que escuta aquela história até
a chegada do homem que lê e relê aquela história, lida e relida quem sabe quantas
vezes até a frase final: “Little is left to tell”, mas sempre ainda alguma coisa talvez
reste para dizer à espera daquela frase. Talvez pela primeira vez no mundo tenha
havido um autor que tenha contado o exaurir-se de todas as histórias. No entanto, por
mais exauridas que sejam, por pouco que tenha restado para contar, continua-se a
contar histórias.
Mundo escrito e mundo não escrito – Italo Calvino. In CALVINO, Italo. Mondo
scritto e mondo non scritto. Milano: Oscar Mondadori, 2002, pp. 114-125.
Conferência lida na New York University como “James Lecture” no Institute for the
Humanities em 30 de março de 1983: The Written and the Unwritten World.

Pertenço àquela parte da humanidade – uma minoria em escala planetária mas,


creio, uma maioria entre o meu público – que passa grande parte das suas horas
acordadas em um mundo especial, um mundo feito de linhas horizontais onde as
palavras se sucedem uma de cada vez, onde cada frase e cada parágrafo ocupam o seu
lugar estabelecido; um mundo que pode ser muito rico, talvez ainda mais rico do que
aquele não escrito, mas que de todo modo exige um ajustamento especial para que nos
situemos no seu interior. Quando me retiro do mundo escrito para reencontrar o meu
lugar no outro mundo, naquele que costumamos chamar de o mundo, feito de três
dimensões, cinco sentidos, povoado por bilhões de semelhantes a nós, para mim isto
equivale a cada vez a repetir o trauma do nascimento, a dar forma de realidade
inteligível a um conjunto de sensações confusas, a escolher uma estratégia para
afrontar o inesperado sem ser destruído.
Este novo nascimento se acompanha a cada vez de ritos especiais que
significam o ingresso em uma vida diferente: por exemplo, o rito de me colocar os
óculos, dado que sou míope mas leio sem óculos, enquanto para a maioria
hipermétrope se impõe o rito oposto, isto é, o de tirar os óculos usados para ler.
Cada rito de passagem corresponde a uma mudança de atitude mental; quando
leio, cada frase deve ser prontamente compreendida, ao menos no seu significado
literal, e deve me colocar em condições de formular um juízo: isso que eu li é
verdadeiro ou falso, justo ou equivocado, agradável ou desagradável. Na vida
ordinária, ao contrário, há sempre inúmeras circunstâncias que fogem ao meu
entendimento, das mais gerais às mais banais: me encontro frequentemente de frente a
situações sobre as quais não saberia me pronunciar, sobre as quais prefiro suspender o
juízo.
Enquanto espero que o mundo não escrito se mostre claramente aos meus
olhos, há sempre uma página escrita ao alcance das mãos, nas quais posso voltar a
mergulhar; me apresso a fazer isso, com a maior satisfação: lá ao menos, mesmo que
eu consiga entender apenas uma pequena parte do conjunto, posso cultivar a ilusão de
estar tendo tudo sob controle.
Acredito que mesmo na minha juventude as coisas iam desse modo, mas
naquela época eu me iludia de que mundo escrito e mundo não escrito se iluminavam
um ao outro; de que as experiências de vida e as experiências de leitura eram de
algum modo complementares, e a cada passo adiante dado em um campo
corresponderia um passo adiante no outro. Hoje, posso dizer que do mundo escrito
conheço muito mais do que uma vez: no interior dos livros, a experiência é sempre
possível, mas o seu alcance não se estende além da margem branca da página. Ao
contrário, aquilo que sucede no mundo que me circunda não para de me surpreender,
de me assustar, de me desorientar. Tenho assistido a muitas mudanças na minha vida,
no vasto mundo, na sociedade, e a muitas mudanças também em mim mesmo, por
isso não consigo prever nada, nem para mim, nem para as pessoas que conheço, e
tanto menos em relação ao futuro do gênero humano. Eu não saberia prever as
relações futuras da sociedade, das cidades e das nações, que tipo de paz haverá ou que
tipo de guerra, o que significará o dinheiro, quais dos objetos de uso cotidiano
desaparecerão e quais aparecerão de novo, que gêneros de veículos e de maquinárias
serão usados, qual será o futuro do mar, dos rios, dos animais, das plantas. Sei bem
que compartilho esta ignorância com aqueles que, ao contrário, pretendem saber:
economistas, sociólogos, políticos; mas o fato de não estar sozinho não me dá nenhum
alívio.
Pode me dar algum alívio o pensamento de que a literatura sempre
compreendeu algo a mais do que as outras disciplinas, mas isto me faz recordar que os
antigos viam nas letras uma escola de sabedoria, e me dou conta de quanto hoje toda
ideia de sabedoria é inalcançável.
Neste ponto vocês me perguntarão: Se você diz que o seu verdadeiro mundo é
a página escrita, se somente lá você se sente em seu aconchego, por que então você
quer se retirar dele, por que você quer se aventurar neste vasto mundo que você não
está em condições de controlar? A resposta é simples: para escrever. Porque sou um
escritor. Aquilo que se espera de mim é que eu olhe ao meu redor e capture as rápidas
imagens daquilo que está acontecendo, para depois voltar a me debruçar na minha
escrivaninha e retomar o trabalho. É para colocar novamente em movimento a minha
fábrica de palavras que devo extrair novo combustível dos poços do não escrito.
Mas procuremos olhar melhor como estão as coisas. É assim mesmo que as
coisas acontecem? As principais correntes filosóficas do momento dizem: não, nada
disto é verdadeiro. A mente do escritor é assombrada pelas contrastantes posições de
duas correntes filosóficas. A primeira diz: o mundo não existe; existe somente a
linguagem. A segunda diz: a linguagem comum não tem sentido; o mundo é inefável.
Conforme a primeira, a relevância da linguagem se ergue por sobre um mundo
feito de sombras; conforme a segunda, é o mundo que domina como uma muda
esfinge um deserto de palavras como areias transportadas pelo vento. A primeira
corrente estabeleceu as suas fontes principais na Paris dos últimos vinte e cinco anos;
a segunda decorre do início do século partindo de Viena, tendo passado através de
várias transmigrações, reconquistando atualidade em anos recentes também na Itália.
Ambas filosofias têm suas fortes razões. Ambas representam um desafio para o
escritor; a primeira exige o uso de uma linguagem que responda somente a si mesma;
às suas leis internas; a segunda exige o uso de uma linguagem que possa fazer frente
ao silêncio do mundo. Ambas exercem sobre mim o seu fascínio e a sua influência.
Isto significa que acabo por não seguir nem uma nem outra. Em que acredito, então?
Vejamos por um momento se posso tirar alguma vantagem desta situação
difícil. Antes de tudo, se sentimos tão intensamente a incompatibilidade entre o
escrito e o não escrito, é porque estamos muito mais conscientes do que é o mundo
escrito; não podemos nos esquecer nem por um átimo de que é um mundo feito de
palavras, usadas segundo os especiais sistemas nos quais se organizam os significados
e as relações entre significados. Estamos conscientes de que quando nos contam uma
história (e quase todos os textos escritos contam uma história, mesmo um ensaio
filosófico, mesmo um balanço de sociedade anônima, mesmo uma receita culinária)
este conto é posto em movimento por um mecanismo, semelhante aos mecanismos de
qualquer outro conto.
Este é um grande passo adiante: hoje estamos em condições de evitar muitas
confusões entre o que é linguístico e aquilo que não o é, e assim podemos ver
claramente as relações que se passam entre os dois mundos.
Não me resta senão fazer a contraprova, e verificar que o mundo exterior está
sempre ali e não depende das palavras; aliás de algum modo não pode ser reduzido às
palavras, e não há linguagem, não há escritura que possam exauri-lo. Basta-me virar
as costas às palavras depositadas nos livros, mergulhar-me no mundo de fora,
esperando alcançar o coração do silêncio, o verdadeiro silêncio pleno de significado.
Mas qual é a via para alcançá-lo?
Há pessoas que, para ter um contato com o mundo de fora, se limitam a
comprar o jornal toda manhã. Não sou assim tão ingênuo. Sei que dos jornais posso
tirar somente uma leitura do mundo feita por outros, ou, às vezes, feita por uma
máquina anônima, especializada na escolha, em meio à infinita camada de pó de
eventos, daqueles que podem ser peneirados como “notícia”.
Outras, para fugir das garras do mundo escrito, ligam a televisão. Mas eu sei
que todas as imagens, mesmo aquelas captadas ao vivo, fazem parte de um discurso
construído, tal como as dos jornais. Por isso, sem comprar o jornal, sem ligar a
televisão, me limitarei a sair e ir passear.
Porém qualquer coisa que eu veja nas ruas da cidade já tem o seu lugar no
contexto da informação homogeneizada. Este mundo que vejo, aquele que é
reconhecido habitualmente como o mundo, se apresenta aos meus olhos – ao menos
em grande parte – já conquistado, colonizado pelas palavras, um mundo que carrega
consigo uma pesada crosta de discursos. Os fatos de nossas vidas estão já
classificados, julgados, comentados, antes mesmo de acontecerem. Vivemos num
mundo onde tudo já é lido antes mesmo de começar a existir.
Não apenas tudo aquilo que vemos, mas os nossos próprios olhos estão
saturados de linguagem escrita. O hábito de ler transformou através dos séculos o
Homo sapiens em Homo legens, mas não se considera que este Homo legens seja mais
sábio do que o anterior. O homem que não lia, sabia ver e ouvir tantas coisas que nós
não percebemos mais: os rastros dos animais que ele caçava, os sinais da chegada da
chuva ou do vento; reconhecia as horas do dia pela sombra de uma árvore e as horas
da noite pela altura das estrelas no horizonte. E quanto a audição, olfato, paladar, tato,
a sua superioridade sobre nós não pode ser posta em dúvida.
Dito isto, cabe-me esclarecer que não vim aqui para propor um retorno ao
analfabetismo para recuperar o saber das tribos paleolíticas. Lamento tudo o que
podemos ter perdido, mas não esqueço nunca que os ganhos superam as perdas. O que
estou procurando compreender é o que podemos fazer hoje.
Devo recordar as particulares dificuldades que encontro como italiano nas
minhas relações tanto com o mundo quanto com a linguagem, isto é, como escritor de
um país que dá contínuas frustrações a quem procura compreendê-lo. A Itália é um
país onde ocorrem muitas histórias misteriosas, que são amplamente discutidas e
comentadas todos os dias mas das quais não se chega nunca à solução; um país onde
todo acontecimento esconde uma conspiração secreta, que secreta é, e secreta
permanece; onde nenhuma história chega ao fim porque não se conhece o seu início,
mas entre início e fim podemos desfrutar de infinitos detalhes. A Itália é um país onde
a sociedade vive mudanças muito rápidas, seja nos costumes, seja no comportamento:
tão rápidas que não sabemos compreender em que direção nos movemos, e cada fato
novo desaparece soterrado pela avalanche das recriminações e pelos alarmes de
degradação e de catástrofe, ou mesmo pelas declarações satisfeitas para a nossa
tradicional habilidade de nos virarmos e sobrevivermos.
Por isto as histórias que podemos contar são marcadas de uma parte pelo
sentido do ignoto e de outra por uma necessidade de construção, de linhas traçadas
com exatidão, de harmonia e geometria; é este o nosso modo de reagir às areias
movediças que sentimos sob os pés.
Quanto à linguagem, ela tem sido atingida por uma espécie de peste. O
italiano está se tornando uma língua cada vez mais abstrata, artificial, ambígua; as
coisas mais simples não são mais ditas diretamente, os substantivos concretos são
usados cada vez mais raramente. Esta epidemia atingiu primeiro os políticos, os
burocratas, os intelectuais, depois se generalizou, com a extensão até as massas cada
vez mais amplas de uma consciência política e intelectual. A tarefa do escritor é
combater esta peste, fazer sobreviver uma linguagem direta e concreta, mas o
problema é que a linguagem cotidiana que até ontem era a fonte viva à qual os
escritores podiam recorrer, agora não escapa da infecção.
Em suma, acredito que nós, italianos, estamos na situação ideal para associar a
nossa atual dificuldade em escrever romances com as reflexões gerais sobre a
linguagem e o mundo.
Uma importante tendência internacional na cultura do nosso século, o que
podemos chamar de a abordagem fenomenológica em filosofia e de o efeito de
estranhamento em literatura, nos impulsiona a romper a tela de palavras e conceitos e
a ver o mundo como se ele se apresentasse pela primeira vez ao nosso olhar. Pois
bem, agora experimentarei criar o vazio na minha mente, e lançar sobre a paisagem
um olhar livre de qualquer precedente cultural. O que acontece? A nossa vida é
programada pela leitura e me dou conta de que estou procurando ler a paisagem, a
planície, as ondas do mar. Esta programação não quer dizer que os nossos olhos sejam
obrigados a seguir um instintivo movimento horizontal da esquerda para a direita,
depois de novo para a esquerda um pouco mais abaixo e assim por diante.
(Naturalmente falo de olhos programados para ler páginas ocidentais; os olhos
japoneses usam um programa vertical). Ler, mais do que um exercício ótico, é um
processo que co-envolve mente e olhos ao mesmo tempo, um processo de abstração,
ou melhor, de extração de concretude por meio de operações abstratas, como o
reconhecer sinais distintivos, o fragmentar tudo isto que vemos em elementos
mínimos, recompô-los em segmentos significativos, descobrir ao redor de nós
regularidades, diferenças, recorrências, singularidades, substituições, redundâncias.
A comparação entre livro e mundo tem uma longa história desde a Idade
Média e o Renascimento. Em que linguagem está escrito o livro do mundo? Segundo
Galileu, trata-se da linguagem matemática e da geometria, uma linguagem de absoluta
exatidão. É deste modo que podemos ler o mundo de hoje? Talvez sim, se se trata do
extremamente distante: galáxias, quasares, supernovas. Mas quanto ao nosso mundo
cotidiano, ele nos parece escrito, sobretudo, como um mosaico de linguagens, como
um muro cheio de grafites, carregado de escritas traçadas uma ao lado da outra, um
palimpsesto cujo pergaminho foi raspado e reescrito muitas vezes, uma colagem de
Schwitters, uma estratificação de alfabetos, de citações heterogêneas, de gírias, de
velozes caracteres que aparecem sobre a tela de um computador.
É uma mímesis desta linguagem do mundo que devemos buscar alcançar? É
isto que têm feito alguns dos mais importantes escritores do nosso século; podemos
encontrar exemplos disso nos Cantos, de Ezra Pound, ou em Joyce, ou em alguma
vertiginosa página de Gadda, sempre tentado pela obsessão de associar cada detalhe
com o universo inteiro.
Mas será justamente a mímesis a via justa (o caminho correto)? Eu tinha
partido da oposição inconciliável entre mundo escrito e não escrito; se as suas duas
linguagens se fundem, o meu raciocínio desmorona. O verdadeiro desafio para um
escritor é falar do intricado enredo da nossa situação usando uma linguagem que
pareça tão transparente a ponto de criar uma sensação de alucinação, como Kafka
conseguiu fazer.
Talvez a primeira operação para renovar uma relação entre linguagem e
mundo seja a mais simples: fixar a atenção sobre um objeto qualquer, o mais banal e
familiar, e descrevê-lo minuciosamente como se fosse a coisa mais nova e mais
interessante do Universo.
Uma das lições que podemos tirar da poesia do nosso século é o investimento
de toda a nossa atenção, de todo o nosso amor pelo detalhe, em algo que esteja muito
distante de qualquer imagem humana: um objeto ou planta ou animal nos quais
identificar o nosso sentido da realidade, a nossa moral, o nosso eu, como fez William
Carlos Williams com um ciclamen, Marianne Moore com um nautilus, Eugenio
Montale com uma enguia.
Na França, desde que Francis Ponge começou a escrever poesias em prosa
sobre humildes objetos como um pedaço de sabão ou um pedaço de carvão, o
problema da “coisa em si” continuou a marcar a pesquisa literária, através de Sartre e
Camus, para tocar a sua expressão extrema na descrição de uma quarta parte de um
tomate realizada por Robbe-Grillet. Mas acredito que a última palavra não tenha sido
ainda dita. Recentemente na Alemanha Peter Handke escreveu um romance baseado
inteiramente em paisagens. E também na Itália uma abordagem visiva é o elemento
comum de alguns dos últimos novos escritores que tenho lido.
O meu interesse pelas descrições deve-se também ao fato de que o meu último
livro, Palomar, compreende similares descrições. Busco fazer de modo que a
descrição se torne narração2, ainda que permaneça descrição. Em cada um destes
meus breves contos, um personagem pensa somente com base naquilo que vê e
desconfia de cada pensamento que lhe venha por outras vias. O meu problema ao
escrever este livro foi que jamais fui aquele que podemos chamar de um observador;
por isso a primeira operação que eu tinha que fazer era concentrar a minha atenção em
alguma coisa e depois descrevê-la, ou melhor, fazer as duas coisas ao mesmo tempo,
porque não sendo um observador, se por exemplo observo uma iguana no zoo e não
escrevo logo tudo aquilo que vi, eu me esqueço.
Devo dizer que a maior parte dos livros que escrevi e daqueles que tenho em
mente, nasce da ideia de que escrever um livro assim me parecia impossível. Quando
me convenço de que um certo tipo de livro está completamente além das
possibilidades do meu temperamento e das minhas capacidades técnicas, me sento na
minha escrivaninha e me ponho a escrevê-lo.
Assim aconteceu com o meu romance Se una notte d’inverno un viaggiatore:
comecei imaginando todos os tipos de romance que jamais escreveria; depois tentei
escrevê-los, evocar no interior de mim mesmo a energia criativa de dez diferentes
romancistas imaginários.
Um outro livro que estou escrevendo fala dos cinco sentidos, para demonstrar
que o homem contemporâneo tem perdido o uso deles. O meu problema escrevendo
este livro é que o meu olfato não é muito desenvolvido, careço de atenção auditiva,
não tenho um bom paladar, a minha sensibilidade táctil é aproximativa, e sou míope.
Para cada um dos cinco sentidos devo fazer um esforço que me permita controlar uma
gama de sensações e gradações. Não sei se conseguirei, mas neste caso como nos
outros o meu objetivo não é tanto o de fazer um livro quanto o de mudar a mim
mesmo, objetivo que, penso, deveria ser aquele de todo empreendimento humano.
Vocês podem objetar que preferem os livros que comportam uma verdadeira
experiência, possuída até o fim. Pois bem, eu também. Mas na minha experiência o
impulso para escrever está sempre ligado à falta de algo que gostaríamos de conhecer
e possuir, algo que nos escapa. E já que conheço bem este tipo de impulso, pareço
poder reconhecê-lo até nos grandes escritores cujas vozes parecem nos alcançar pelo

2
Nota do tradutor: racconto em italiano pode significar conto e narração.
viés de uma experiência absoluta. Aquilo que estes nos transmitem é o sentido da
experiência alcançada; o seu segredo é saber conservar intacta a força do desejo.
Em um certo sentido, acredito que sempre escrevemos sobre algo que não
sabemos: escrevemos para tornar possível para o mundo não escrito se expressar
através de nós. No momento em que a minha atenção se desloca da ordem regular das
linhas escritas e segue a móvel complexidade que nenhuma frase pode conter ou
exaurir, me sinto perto de compreender que do outro lado das palavras há algo que
busca sair do silêncio, significar através da linguagem, como que dando golpes em um
muro de prisão.
Sobre traduzir - Italo Calvino
Tradução de Andréia Guerini3 e Tânia Mara Moysés4

Ilustríssimo Diretor,
Um julgamento de Claudio Gorlier (em Paragone, n. 164, pp. 115-116) sobre
a tradução de Passage to India de E. M. Forster publicada pela Einaudi impele-me a
escrever esta carta na qualidade de colaborador de editora, não somente para fazer
justiça a uma de nossas melhores tradutoras, Adriana Motti, mas para uma reflexão
geral sobre as funções da crítica, partindo do particular ponto de vista da profissão
editorial.
Os editores italianos publicam os livros estrangeiros em traduções às vezes
ótimas, às vezes satisfatórias, medíocres, ou péssimas. As razões desta disparidade
(que pode acontecer nos livros de uma mesma editora) são múltiplas. Digamos: na
febre do desenvolvimento produtivo da editoria italiana de hoje, nem todas as
traduções conseguem ser ótimas. Mal relativamente menor quando se trata de livros
menores; mas grave dano e desperdício quando se trata de uma obra de grande valor
literário. Portanto, hoje, mais do que nunca, sente-se a necessidade de uma crítica que
entre no mérito da tradução. Sentem essa necessidade os leitores que desejam saber
até que ponto podem dar crédito à qualidade do tradutor e à seriedade da sigla
editorial; sentem os bons tradutores que distribuem tesouros de meticulosidade e de
inteligência e ninguém lhes diz jamais: oh!; e sentem os membros da editoria que
desejam que os bons resultados recebam o aplauso que merecem e que as provas
diletantes sejam expostas ao ridículo (cada um espera sempre que, em um rigor
generalizado, não seja a própria equipe a perder, mas os concorrentes) e pensam ter
tudo a ganhar se a seleção e o controle dos tradutores ocorrerem com a colaboração da
crítica e diante do público.
Então, que esse tipo de crítica comece a entrar em uso. Somos em muitos a
congratular-nos com a mesma e a segui-la com interesse. E, ao mesmo tempo, a
recomendar-lhe uma responsabilidade técnica absoluta. Pois, se esse senso de
responsabilidade falha, não se faz mais que aumentar a confusão, e provoca-se nos
tradutores um desencorajamento que se transforma logo em pis aller, em
rebaixamento do nível geral. Não é a primeira vez que ouvimos um competente
tradutor nos dizer: “Sim, sim, morro para resolver algumas dificuldades que ninguém
jamais se colocou e das quais ninguém se dará conta, e depois o crítico X abre o livro
ao acaso, bate o olho numa frase que não lhe agrada, talvez sem confrontar o texto,
sem se perguntar como, de outro modo, poderia ser resolvida e, em duas linhas,
liquida toda a tradução...” Tem razão em se lamentar: um autor desfruta sempre de
uma multiplicidade de julgamentos. Se encontra o crítico que o destrói, existirá
sempre aquele que o defende; no entanto, para o trabalho dos tradutores os
julgamentos da crítica são tão raros a ponto de se tornarem inapeláveis, e, se alguém
escreve que uma tradução é ruim, o julgamento entra em circulação e todos o repetem.
Na realidade, não é tanto com Gorlier que eu deveria entabular esse discurso,
quanto com Paolo Milano. Paolo Milano tem o grande mérito de ser talvez o único
crítico da imprensa que dedica quase regularmente uma parte (às vezes um quarto)
3
Professora Adjunto IV de Literatura da UFSC, e vice-líder do Grupo de Estudos
Italo Calvino UNB-UFSC-CNPQ.
4
Doutora em Literatura pela UFSC (2010) e Pós-doutoranda em Estudos da Tradução
(PGET/UFSC), e membro do Grupo de Estudos Italo Calvino UNB-UFSC-CNPQ.
dos seus escritos às qualidades e aos defeitos da tradução. Consegue fazê-lo de
maneira ampla e exemplificada, não obstante as limitações de espaço de um
semanário; e de modo a interessar o leitor e afugentar todo traço de pedantismo. A sua
é, nesse sentido, um modelo de crítica que responde às necessidades de hoje. Dito
isso, devo acrescentar que diversas vezes discordei de seus julgamentos. Sinto não ter
em mãos uma coleção do Espresso e não quero citar de cor: o certo é que massacrou
traduções que não mereciam e absolveu outras que teriam merecido condenação.
A arte de traduzir não atravessa um bom momento (nem na Itália, nem em
outra parte; mas aqui nos limitamos à Itália que, contudo, nesse campo, não é
certamente o país que tem mais para se lamentar). A base de recrutamento, isto é, os
jovens que conhecem bem ou discretamente uma língua estrangeira, certamente
alargou-se; mas, sempre em menor número são os que, ao escrever em italiano,
movem-se com aqueles dotes de agilidade, segurança na escolha lexical, economia
sintática, senso dos vários níveis linguísticos, resumindo, inteligência de estilo (no
duplo aspecto de compreender as peculiaridades estilísticas do autor a traduzir e de
saber propor equivalentes italianos em uma prosa que se leia como se tivesse sido
pensada e escrita diretamente em italiano): dotes, de fato, em que reside o talento
singular do tradutor.
Junto aos dotes técnicos, fazem-se mais raros os dotes morais: aquela
perseverança necessária para concentrar-se a escavar meses e meses sempre dentro
daquele túnel, com um escrúpulo que a todo momento está a ponto de reduzir-se, com
uma faculdade de discernir que a todo momento está a ponto de se alterar, de ceder
aos vícios, distorções, deturpações da memória linguística, com aquele
perfeccionismo que deve tornar-se uma espécie de metódica loucura, e que da loucura
possui as inefáveis doçuras e o extenuante desespero...
(Quem escreve esta carta é alguém que não teve jamais a coragem de traduzir
um livro em toda a vida; e se entrincheira, justamente, atrás de sua carência desses
particulares dotes morais, ou melhor, de resistência metodológico-nervosa; mas, já no
seu ofício de carrasco dos tradutores sofre bastante, os sofrimentos dos outros e os
próprios, tanto pelas traduções ruins quanto pelas boas).
(Antes os escritores traduziam, especialmente os jovens. Hoje, parece que
todos têm outra coisa para fazer. E, além do mais, estamos certos de que o italiano dos
escritores seria melhor? A compreensão do estilo torna-se mais rara. Poderíamos dizer
que o menor empenho dos escritores jovens em relação à palavra e as mais raras
vocações de tradutor são faces do mesmo fenômeno).
Nesta situação em que o tradutor verdadeiro é em todo modo encorajado,
apoiado e valorizado, é mais do que nunca importante que a imprensa e as revistas
literárias avaliem as traduções. Mas se a crítica se acostuma a destruir uma tradução
em duas linhas, sem se dar conta de como foram resolvidos os trechos mais difíceis e
as características do estilo, sem perguntar se havia outras soluções, e quais, então é
melhor não fazer nada disso. (Cito o caso mais frequente: o lapso. Certamente o lapso
deve ser advertido. Porém, não é suficiente para julgar uma tradução. O lapso
acontece até mesmo na página do tradutor já experiente e ilustre, que todos acreditam
não ter necessidade de revisões, pois ele mesmo corrige suas provas etc., ao passo que
o lapso talvez não se encontre na prova do principiante, da qual buscam ajustar cada
vírgula e que chega para a impressão corrigida da cabeça aos pés...)
O estudo crítico de uma tradução deve ser conduzido com base em um
método, sondando amostras bastante amplas e que possam servir de pedras de toque
decisivas. É um exercício, sobretudo, que gostaríamos de recomendar não apenas aos
críticos, mas a todos os bons leitores: como é sabido, lê-se verdadeiramente um autor
somente ao traduzi-lo, ou se confronta o texto com uma tradução, ou se comparam
traduções em diferentes línguas. (Outro ótimo método para o julgamento: um
confronto a três: texto, tradução italiana e uma tradução em outra língua). Julgamento
técnico, antes que de gosto: nesse terreno as margens opinativas nas quais sempre
oscila o julgamento literário são muito mais restritas. Se eu afirmo que a tradução de
Adriana Motti é excelente e Gorlier não encontra na mesma mais que argumentos de
reprovação, não é uma questão subjetiva, ou de “pontos de vistas”. Um dos dois erra:
ele ou eu.
Repito o trecho de Gorlier, ou melhor, o parêntese que se refere à tradução:
(Digamos decente, mas não mais que isso. De fato, Passaggio in India
[Passagem para a Índia], publicado pela Einaudi, deixa-nos um pouco perplexos, a
começar pelo título, que soa mal e equivocadamente em italiano. E também, como é
possível que um bom tradutor use “affatto” [absolutamente, por nada] em sentido
negativo quando apenas um estudante do instituto técnico poderia permitir-se fazê-lo,
ou escreva “cosa” [coisa] em vez de “che cosa” [que coisa], ou ignore que, na maior
parte dos casos, “dissolved” significa “sciolto” [solto], e não “ dissolto” [dissolvido]?)
Examino imediatamente a questão do título, pelo qual Adriana Motti não é
responsável, mas somente a editora. Discutimos o título durante meses, antes de
decidir. Em geral, na Itália, havia o costume de mudar radicalmente os títulos mal
traduzíveis; isso até uns doze anos atrás, mas, há algum tempo, por sorte, todos se
convenceram de que não traduzir fielmente um título é um gravíssimo arbítrio.
Colocar Viaggio in India [Viagem na Índia], porém, parece-me que teria prestado ao
livro um péssimo serviço. Não se trata apenas do fato de que, justo naqueles meses,
nas vitrinas das livrarias havia três ou quatro livros intitulados mais ou menos assim,
de autores italianos que estiveram na Índia e fizeram o seu grande livro de viagem. É
que, de qualquer modo, em italiano o título “Viaggio in qualche posto” [Viagem para
algum lugar] pressupõe o gênero “livro de viagem” (e em inglês não ocorre talvez o
mesmo para o vocábulo Travel?). E então? Una gita in India [Um passeio na Índia]?
Un soggiorno in India [Uma temporada na Índia]? diminuiriam em algum modo o
significado, atenuando-o; aboliriam aquele tanto de vibração simbólica que Passage,
parece-me, possui. E que me parece ter também Passaggio, palavra com tantas
ressonâncias (não se diz “a vida é uma passagem...”?). Gorlier diz que soa mal; e
sinto que muitos lhe darão razão. Devo dizer que passaggio é uma palavra que me
agrada muitíssimo, inclusive nas locuções derivadas, como di passaggio [de
passagem] belíssima expressão típica italiana. Soa equivocadamente, acrescenta
Gorlier. Isso mesmo: queria uma palavra que tivesse uma área de significância não
restrita, uma auréola de ambiguidade simbólica, correspondente, de fato (como
Gorlier corretissimamente nos ensina), ao caráter do livro. Porém, vejo que aqui todos
me desaprovam, e devo render-me. Se, em uma reimpressão, o editor quiser mudar o
título, nós o faremos. Fim da autodefesa pelo título.
Na tradução, Gorlier não encontra erros. (Dessa se servirá amplamente para
todas as suas citações). Move três acusações ao italiano da tradutora, inclusive à
escolha do vocábulo dissolto. Na página 353 (como não são indicados os números das
páginas condenadas, tivemos que repassar todas as 355 páginas do livro) efetivamente
se diz: “quando ebbe finito, lo specchio del paesaggio si era frantumato, il prato
dissolto in farfalle”. Gorlier preferiria: “il prato sciolto in farfalle”? Sinto muito:
Adriana Motti fez muito bem ao usar dissolto.
Affatto em sentido negativo também não me agrada, todavia sem evocar o
escândalo escolar de Gorlier. P. 247: “ – Temo che per te sia molto scoraggiante. –
Affatto, non me ne importa” [Temo que para ti seja muito desencorajante. –
Absolutamente, não me importa]. Poderia colocar niente affatto ou per niente [nada
absolutamente ou por nada]? Havia a rima com sconvolgente [transtornante]: são as
costumeiras forcas caudinas do tradutor. Poderia colocar per nulla [por nada]? Quem
sabe? Talvez terá tido um cuidado (excessivo) com aquele não logo depois. A
tradutora me escreve em uma carta de doléances: “Também no Rigutini-Fanfani (p.
32, Barbera editor, Florença, 1893), o vocábulo affatto aparece em sentido negativo
com uma reprovação muito moderada, que é quase uma concessão ao uso”. Eu não
sou um devoto dos dicionários: o que conta para mim é a vitória da harmonia e da
lógica interna da frase tomada no seu conjunto, mesmo se isso ocorre com a pequena
transgressão, ruptura que o falado tende a impor à regra. E a frase em questão, aos
meus ouvidos, soa bem: o non de non importa descolore o affatto, congloba-o. O
espírito do italiano está justamente em coisas como essas: é essa a sua incomparável
riqueza e a sua maldição (porque torna substancialmente intraduzível a literatura
italiana) e a sua dificuldade (ai de quem acredita poder desgramaticar sem ouvido e
sem lógica; somente a quem é concedida a árdua Graça da Língua é permitido pecar e
ser salvo!).
Cosa? per Che cosa?. E aqui perco a paciência. Com todo o trabalho que a
literatura criativa teve para dar ao italiano escrito a imediatidade de uma língua viva, e
com todo o movimento de ideias que a linguística moderna suscitou em todo campo
da cultura, fazendo do fato “linguagem” um todo móvel e orgânico, com as suas
mútuas trocas entre o falado e o escrito, as suas subidas e as suas descidas, estávamos
há um bom tempo convencidos de que os cultores da tolice purística estivessem
confinados entre os Bouvard e Pécuchet de certas rubricazinhas de cotidianos e
semanais. Cosa? per Che cosa? Usa-se, e é sacrossanto usá-lo, porque é mais curto,
porque serve para eliminar um che (a repetição dos que, flagelo de todo ser
escrevente), não tolhe clareza ao discurso, e, sobretudo, entra na lógica das
simplificações realizadas, pouco a pouco e através dos séculos, pelo italiano e pelas
outras línguas neolatinas.
Antes de confiar uma tradução a alguém, nós nos asseguramos em primeiro
lugar (creio poder dizê-lo coletivamente, em nome das várias redações editoriais)
justamente da fluidez e espontaneidade e da não pedanteria e não preciosismo de seu
italiano. O que Gorlier censura é, então, exatamente o que nós chamamos o “escrever
bem”, a conditio sine qua non para ser tradutor.
Para serem tradutores. Porque pode-se ser sério estudioso e também crítico de
claro entendimento e “escrever mal”. (Não queremos tocar na velha questão, que nos
levaria muito longe, sobre escritores, inclusive grandes, que “escrevem mal”).
“Escrever mal”, isto é, mover-se com dificuldade na língua, como em um paletó
apertado nos cotovelos, sem liberdade, sem reflexos rápidos. Pode-se imputar a um
crítico de arte o fato de não saber segurar o pincel? Não, certamente. Assim não
desejamos reprovar o estudioso de literatura que, no final da mesma página em que
deu lições de língua, escreve contenuta dal risvolto [conteúda (sic) da orelha] (um
erro de impressão? Tudo leva a excluí-lo), que escreve sensibilizzarsi e acutizzarsi
[sensibilizar-se e agudizar-se], isto é, que é desprovido de defesa contra as mais
nefastas – essas sim – deturpações jornalístico-burocráticas da língua, desprovido
daquele lampejo que, no momento da queda, socorre o pecador amado pelos deuses e
o faz emanar, em uma auréola de luz, o verbo único e perfeito: acuirsi [aguçar-se]!
antes que recaia a escuridão. Se os seus ensaios são sustentados por um robusto
pensamento, serão lidos e apreciados mesmo se mal escritos. Mas deve guardar-se de
uma tentação: de transfundir essa sua dificuldade linguística (que não é uma culpa
nem ao menos venial, é uma das infinitas peculiaridades do indivíduo) em um amor
malposto por uma língua abstrata e imóvel, que ele imagina, justamente por essa
imobilidade, possessível também por ele. O amor pela língua é uma outra coisa
totalmente diferente e nasce de uma completamente diversa disponibilidade de ânimo,
vibra de uma completamente diversa e mais aguda neurose.
(Esse, marcado pela tolerância, é o meu discurso oficial. Em segredo, em
silêncio, desafogo o meu tormento vendo, entre os novos críticos, a palavra, matéria-
prima de toda literatura, usada com tanta dificuldade e fadiga e insensibilidade, e me
pergunto o que pode ter levado esses jovens a estudos a eles certamente árduos e
ingratos. E, em segredo, subscrevo a essas as palavras recentes de Emilio Cecchi, no
Corriere della Sera, de 04 de outubro de 1963: “Em um ensaio crítico, a qualidade da
prosa é garantia da veracidade e vitalidade das impressões e das ideias que são
expostas; e faz até mesmo parte intrínseca dessa veracidade e vitalidade”. E em
segredo vou sonhando que, daqui a pouco, dividido o reino das letras entre as duas
facções opostas dos tradicionalistas e dos inovadores, ligados por uma idêntica
insensibilidade pela palavra, poderei escrever obras finalmente clandestinas,
perseguindo um ideal de prosa moderna para transmitir às gerações que, sabe-se lá
quando, voltarão a entender... Eis que excedi os limites aos quais me havia proposto:
essa devia ser somente a carta de um membro de staff editorial que discute com os
críticos. Volto ao tema).
Gorlier lança contra as editoras a acusação de desprezarem ou retardarem a
entrada na Itália de autores anglo-saxões de primeiro nível e de publicarem, ao
contrário, jovens escritores de segundo nível. Os nomes que cita para o primeiro tipo
são quase todos de autores em vias de publicação junto a vários editores italianos,
escritores em grande parte de refinado empenho estilístico e para os quais há de se
desejar que se espere para publicá-los apenas quando existirem traduções realmente
boas. (Por que tantos autores não foram traduzidos antes, não é difícil entender: a
capacidade produtiva e de absorção em âmbito livreiro aumentou na Itália há pouco
tempo; é natural que, no novo clima, a atualidade editorial estrangeira tenha a parte do
leão, e a recuperação do que foi deixado para trás nos decênios passados ocorra com
mais lentidão).
Como exemplo de autores secundários que, ao contrário, foram traduzidos,
Gorlier cita Purdy e Sillitoe. “Um Sillitoe marca pontualmente a sua chegada”. Não
sei. De Sillitoe até agora foi traduzido o primeiro livro, Saturday Night and Sunday
Morning, um bom romance, interessante, não qualquer um. Depois dele, foram
publicados na Inglaterra outros quatro livros seus (se não perdi a conta) que ainda não
foram publicados na Itália; alguns desses (há ótimos e menos bons) serão publicados
aqui, sem uma excessiva pontualidade, mas também sem nenhuma intenção de
desprezar ou subestimar esse autor.
Se Sillitoe é apreciado e traduzido em todo o mundo, o caso de Purdy é
diferente. Nos Estados Unidos não teve ainda sucesso, nem de crítica nem de público;
é um pouco uma descoberta nossa; foi uma das intuições mais agudas e menos
tolerantes da editoria italiana (agora, ah!, convertido, por cético esnobismo, à cultura
de massa e em voo por paragens interplanetárias) a indicá-lo entre os mil autores de
contos americanos, todos igualmente espertinhos e espirituosos, mas sem vibrações
excepcionais. Purdy é uma pequena descoberta da qual somos seguramente
orgulhosos. Ainda não publicamos Malcolm, o seu livro mais delicado e lunar, mas
esperamos fazê-lo logo.
Em suma, parece-me que Gorlier entende a tarefa do editor como sendo de
alguém que toma nota dos valores consagrados nas várias literaturas, das hierarquias
estabelecidas pela idade e pela fama, e as transporta aqui ao pé da letra. Nós, ao
contrário, entendemos tudo de maneira completamente diferente: o que nos apaixona
e diverte no trabalho editorial é justamente o propor perspectivas que não coincidam
com as mais óbvias. Assim, ao seguir as fontes de informação e a crítica estrangeira e
os encômios dos editores, estamos sempre atentos a não cairmos prisioneiros das
avaliações dos outros, a escolher sempre também com base em nossas razões, e a
fazer, sim, que as nossas escolhas repercutam na fama de um autor em âmbito
internacional. A escolha de livros estrangeiros é troca entre as duas partes; a literatura
estrangeira nos dá um autor e nós lhe damos a nossa eleição, a nossa confirmação, que
é também um “valor” peculiar, enquanto é fruto de um gosto e de uma tradição
diversos.
A este ponto, devo dizer: como uma tradução não é avaliada com base em
poucas linhas isoladas, muito menos é avaliado na mesma medida um ensaio crítico.
E as reflexões de Gorlier sobre o livro de Forster são muito ricas, estimulantes e
agudas. E acho justa sua crítica à “orelha” da edição Einaudi que, com efeito, rebaixa
o valor do livro. Também a arte da “orelha” é difícil: para um livro importante e que
refuta definições sintéticas (como todo o escrito de Gorlier demonstra) ninguém
deseja empenhar-se em redigir uma apresentação em vinte linhas; e é raro que as
páginas dos especialistas mais doutos tenham o “corte” necessário.
Visto que existem, gostaria de permitir-me uma última divagação, não
destinada a Gorlier, com o qual aqui concordo, mas à crítica em geral. Vemos que se
tornou quase uma regra para críticos e resenhistas impostar o seu comentário
discutindo com a “orelha” ou a “aba” editorial (ou, para os mais preguiçosos e
tímidos, parafraseando a “orelha”). Em suma, o editor com a “orelha” tem um poder
que me parece excessivo: o de impostar toda a discussão crítica; concorda-se ou
contrasta-se, mas sem sair daqueles temas, daquelas ideias. Dir-se-á: é um pretexto
qualquer para se começar a falar. Sim, mas o verdadeiro objeto da crítica, o livro,
parece-me que termina descavalgado; o verdadeiro sentido, a verdadeira emoção de
toda corrida crítica, o crítico que toma pelos chifres o touro-livro, o touro-autor, se
perde. Em vez de bater-se com o autor, o crítico se bate ... com quem? No melhor dos
casos com aquela nova instituição da nossa vida literária que é o “diretor de coleção”,
porém mais frequentemente com o anonimato do “editor”, isto é, com os funcionários
do departamento de imprensa e publicidade, em geral tipos espertos e bem
informados, mas levados por natural deformação profissional a simplificar e a
trabalhar muito apressadamente. Parece-me que também para o leitor seria melhor
pedagogia ensinar-lhe a abordagem do livro, abrindo-o na primeira página. Tanto que
quase começo a pensar se não seria mais instrutivo publicar os livros lisos e secos
como pregos, como se faz (se fazia) na França.
Peço desculpas pela extensão desta. Sobre literatura escreve-se continuamente,
mas sobre esses afazeres de cozinha editorial, que todavia ocupam boa parte de nosso
tempo e de nossas preocupações, não se discute nunca. Por isso, tinha tantas coisas a
dizer. Obrigado.
I.C.

Os modelos cosmológicos (1976)

A irreversibilidade do tempo tem dois aspectos. Um se manifesta em todos


aqueles processos, sejam biológicos, geológicos, astronômicos, que implicam uma
passagem de estados mais simples e uniformes para estados mais complexos e
diferenciados: aqui a “flecha do tempo” indica um crescimento de ordem, de
informação. O outro aspecto é aquele do derreter-se do torrão de açúcar no café, do
volatilizar-se do perfume fora do frasco aberto, do degradar-se da energia em calor:
aqui a “flecha do tempo” assinala a direção oposta: a do crescimento da desordem, da
entropia, da dissolução do universo em uma poeirinha [pulviscolo] sem forma.
Mas tanto uma flecha quanto a outra, tanto o tempo “histórico” quanto o
tempo “termodinâmico”, não são observáveis em nível microscópico: o percurso de
uma simples molécula não comporta nem informação nem entropia, e poderia muito
bem desenvolver de frente para trás, como um filme rodado ao contrário, sem que
nenhuma lei da física fosse perturbada. O tempo das moléculas e dos átomos é
simétrico e reversível.
Para resolver a contradição entre as duas flechas do tempo macroscópico e a
ausência de flechas do tempo microscópico, um astrônomo de Harvard, David Layzer,
em um artigo publicado na “Scientific American” de dezembro, propõe um novo
modelo cosmogônico. Trata-se de uma variante, por assim dizer “fria”, da clássica
teoria do “Big Bang”, da explosão inicial.
A diferença é que aqui como condição de partida faz-se mais necessário
imaginar uma extrema concentração de toda a matéria do universo em um ponto, mas,
por outro lado, se levanta como hipótese que em seus primórdios o universo teria sido
privado de qualquer estrutura (e informação) assim como privado de desordem (ou
entropia): um universo gelado, cristalizado em uma liga de hidrogênio metálico e
hélio.
É nessa fase inicial do universo que se decidem as propriedades dos tempos,
ou melhor, no primeiro quarto de hora (um quarto de hora bastante especial, antes de
qualquer relógio ou sistema solar), para efeito da expansão (aqui não explicada, aceita
como um dado factual). O universo gelado, expandindo-se, se esmigalha em
estilhaços de dimensões planetárias que se movem ao acaso como moléculas de um
gás e assim terminam por agregar-se em grupos, dos quais se formarão as estrelas, as
galáxias e os amontoados de galáxias que podemos observar hoje. O tempo
irreversível começa no momento em que um primeiro início de ordem e um primeiro
início de desordem se produzem juntos no universo, e a partir desse momento ambos
não farão mais do que crescer. O universo começa no mesmo momento a construir-se
e destruir-se, e assim continua e continuará: sem jamais desfazer-se completamente. E
esta é com certeza uma bela vantagem sobre outros modelos de universo que não
conseguem a inevitabilidade da morte cósmica.
Mas como isso é possível, se uma lei fundamental quer que o crescimento da
entropia implique o decréscimo da informação e viceversa?
Não, explica Layzer, a velocidade de expansão, altíssima no início, entra em
relação com as mudanças de densidade e de temperatura e os dados do sistema
mudam continuamente. O tempo “cosmológico” (ou da expansão espacial), o tempo
“histórico” (ou da construção de formas macroscópicas) e o tempo “termodinâmico”
(ou da degradação do universo em um vagar ao acaso de moléculas) são três flechas
que procedem paralelamente mas segundo ritmos diversos e se condicionam
mutuamente. (Assim Layzer, partidário do “Big Bang”, alcança a equilibrada e
harmônica estabilidade da principal teoria rival: a do “estado estacionário”.)
E o tempo microscópico? Grande parte do artigo é dedicada a tentativas de
passar da informação macroscópica (com isto que esta comporta de previsibilidade,
determinação, direção do tempo) à informação microscópica, isto é, de movimentos
das moléculas, dos átomos, das partículas.
Se teoricamente se pode conceber a possibilidade de estabelecer toda a
informação microscópica de um sistema fechado, na prática sabemos que os sistemas
fechados não existem, que o resto do universo não para de interferir até mesmo no
recipiente mais blindado. Seria, então, preciso considerar o universo inteiro como um
sistema finito e fechado, do qual se pode conceber, ao menos em linha de princípio,
uma completa descrição microscópica.
A flecha do tempo se tornaria então uma convenção arbitrária? Passado e
futuro se tornariam intercambiáveis? Não: o universo pode ser infinito ou então finito,
pouco importa; o que é certo é que é ilimitado, isto é, não fechado, isto é, aberto em
cada um dos seus pontos e em todas as direções em todo o resto de si mesmo. A
informação pode ser somente microscópica, jamais macroscópica. E esta ordem
estruturada nas suas grandes linhas que corpos celestes, vida biológica, consciência
trabalham incessantemente para produzir, apoia os seus fundamentos sobre uma
impalpável imprevisível avalanche de acontecimentos microscópicos. Se o futuro do
universo parece menos precário do que aquele que se podia temer, nem por isto se
torna menos cognoscível. Conclui Layzer: “Nem mesmo o computador absoluto – o
universo mesmo - contém toda a informação necessária para definir à exaustão o seu
futuro”.

O senhor Palomar faz coleção de modelos cosmológicos. Lê e relê o novo


artigo, faz um resumo por escrito para se assegurar de ter marcado os pontos
essenciais, depois o arquiva na sua coleção onde tantos outros universos estão
alinhados um ao lado do outro como borboletas perfuradas por um alfinete.
Ele não pretende se pronunciar sobre a maior ou menor credibilidade de uma
ou outra hipótese, nem se arrisca a demonstrar preferências. Não importa como
estejam as coisas, ele do universo não espera nada de bom. É por isto que sente a
necessidade de mantê-lo sob seus olhos.
Em geral é mais sensível às sugestões das imagens plásticas que às
implicações filosóficas. De toda esta demonstração aquilo que ficou mais impresso
nele é um desenho que ilustra uma digressão acessória: trata-se de uma série de quatro
representações da probabilidade em várias fases da evolução de um sistema no tempo.
No primeiro desenho a probabilidade é representada como uma pequena esfera
em meio a um grande cubo; no segundo, da esfera saem chifres de um caracol ou
ramos de uma vegetação coralina; no terceiro, a esfera ocupa grande parte do cubo
mas na realidade jamais aumentou de volume: estendeu-se como um mato com
ramificações cada vez mais complicadas e cada vez mais sutis.
O senhor Palomar decide iniciar uma outra coleção: de imagens que não sabe
por que o atraem e que sente que poderiam significar muitas coisas.

A floresta genealógica (1976)


No “caderninho” precedente o senhor Palomar, tendo visto no México uma
árvore gigantesca com uma forma muito irregular, e depois em um igreja um relevo
de estilo barroco representando uma árvore com personagens agarrados aos ramos,
passou a divagar sobre a forma das árvores na natureza e na cultura, e sobre a
simbologia das árvores genealógicas.
Sobre o fio destas reflexões, ocorreu-lhe recordar a mais regular árvore
genealógica possível, idealizada por um gráfico e por uma escritora italianos, segundo
um esquema que partindo de um indivíduo de hoje salta para os dois genitores, para
os quatro genitores dos genitores, aos dezesseis genitores daqueles quatro e assim por
diante, não levando em conta os irmãs e irmãs mas somente os ascendentes diretos.
Dado que cada um teve um pai e uma mãe (mesmo os pais “desconhecidos” devem
figurar em uma genealogia deste tipo), disso resultará uma figura vagamente
triangular, que com a árvore tem pouco a ver porque por um vértice puntiforme se
alarga em leque.
Com um esquema desse gênero, basta preencher cada casinha com nomes,
cognomes, datas, nomes de lugares, e tem-se um romance, um romance não escrito
(exceto em alguns dados que poderíamos chamar de materiais auxiliares da narrativa
tradicional, mas que são já bem difíceis de pôr juntos, e de fato quase ninguém mais
se experimenta neles) mas totalmente implícito nas situações que sugere, um romance
“conceitual”.
É tudo quanto fez Carla Vasio em Romanzo storico, lançado no ano passado
pela Milano Libri, um dos mais extraordinários livros italianos dos últimos anos.
Dissemos livro, mas na realidade se trata de um único fólio dobrado e encadernado
que, segundo um esquema idealizado pelo gráfico Enzo Mari (ponto de chegada de
uma série de tentativas de possível árvore genealógica universal), contém nome
cognome profissão lugar e data de nascimento e de morte de quinhentos e onze
personagens, representando nove gerações, isto é, saltando até o fim do personagem
de número setecentos; os antepassados mais próximos de uma criança milanesa
qualquer nascida em 1974.
O “romance” consiste apenas nesses dados essenciais, mas de matéria
romanesca há nele para dar e vender, enriquecida além do mais por uma minuciosa
acumulação de dados históricos. Esses dados puros bastam para saltar de genitores em
genitores e imaginar como viveram, como se conheceram, como morreram. (Para as
mortes violentas é assinalado o como: mordida de víbora para um agricultor tirolês,
punhalada em Marselha para um contrabandista).
A genealogia de uma família qualquer é muito mais movimentada e pitoresca
do que a genealogia das famílias reais, sobretudo uma genealogia como esta em que a
imaginação da autora pode saltar através das numerosas filiações ilegítimas. Como em
toda história familiar, também nesse mapa genealógico há zonas estáticas, repetitivas
(uma família de entalhadores de madeira de Ortisei que por cinco gerações só têm
entalhadores de madeira; uma ramificação de famílias da Sardenha, que por gerações
não saem da ilha, mas mesmo assim com vidas e mortes bastante movimentadas),
saltos imprevistos de um mundo fechado de matrimônios camponeses a ascendências
totalmente diversas, por meio de um encontro de uma camponesa com um forasteiro
de passagem, um soldado napoleônico, um cigano), cortes verticais de uma sociedade,
ligados por filiações ilegítimas (marinheiros napolitanos, oficiais borbônicos, uma
dinastia de escrivães), e zonas mais movimentadas, nas quais de uma geração à outra
se passa em revista aqui um mostruário de situações sociais dignas de romances
franceses oitocentistas, lá um condensado de histórias hispânicas, para reatar-se em
uma extrema bifurcação ao mundo islâmico) e saldar os elementos do crisol
mediterrâneo.
Atravessando um outro crisol de civilização, que entrou em ebulição há quase
quinhentos anos com os desembarques dos soldados espanhois da Conquista sobre o
litoral do México, o senhor Palomar recorda o esquema desse sintético Romanzo
storico (no qual se fundem duas atitudes fundamentais da mente italiana, o sentido da
história opulenta e estratificada e a essencialidade e funcionalidade de desenho, no
intento contínuo de conceitualizar e finalizar o vivido).
É noite. Está sentado sob os pórticos do zocalo5 de Oaxaca, a pracinha que é o
coração de cada velha cidade colonial, verde de baixas árvores bem podadas que o
povo chama de almendros6 mas que não têm nada a ver com a amendoeira. A banda
vestida de preto toca no quiosque Liberty. As bandeiras e os cartazes saúdam a visita
do candidato oficial às eleições. As famílias do lugar passeiam. Os hippies americanos
esperam a velha que fornece o mexcal. Os esfarrapados vendedores ambulantes
oferecem tecidos coloridos.
Quando lhe parece que um momento, um lugar recolhe os elementos da
questão, o senhor Palomar experimenta uma sensação como de alívio, como se
partindo de um quadro de qualquer modo simplificado ou tornado mais absoluto ele
conseguisse repensar tudo com ordem. No entanto, é uma sensação que dura pouco;
subitamente o fio da meada torna a se embaraçar.

Os tipos de romance – Italo Calvino (1956)

5
Praça principal nas cidades mexicanas.
6
Literalmente “amendoeira”.
Não se pode fazer para a narrativa uma descrição da situação através de
termos contrapostos, como se faz para outros meios de expressão. Podemos falar de
narradores objetivos e narradores líricos, de narradores introspectivos e narradores
simbólicos, de narradores instintivos e narradores premeditados, mas estas categorias
não definem nada e ninguém; qualquer escritor que conte não pode ser enquadrado
em apenas uma mas em pelo menos um cruzamento de duas categorias. Cada escritor
faz a seu modo, não existem escolas a não ser num nível superficial. Isto porque a
narrativa é o meio de expressão mais em crise dentre todos e há mais tempo; e
também porque é o meio que mais se exauriu em corpo dentre todos e pode viver em
crise quem sabe ainda por mais quanto tempo.
Um tempo, dizíamos: não, não está em crise, nós faremos vocês ver isso. Era o
pós-guerra, parecíamos ter um motor dentro de nós, víamos os termos da crise da
narrativa mas acreditávamos que eles não nos diziam respeito. Aconteceu-me também
de sustentar que o romance não podia morrer: porém, eu mesmo não conseguia fazer
um romance ficar de pé. Foi muito justo até mesmo errar: tantas coisas boas nasceram
disso, mas não nasceu uma nova civilização literária.
Agora para nos convencer de uma atemporal maestria do romance tínhamos
necessidade de ler Lukács, deixando-nos tomar pela sua classicística fé nos gêneros,
pelo seu nítido senso da épica. Mas, vindo do Oitocentos, o seu ideal estético se
reveste de uma fina camada de tédio: não vemos nele o nervosismo, a pressa do nosso
viver, aos quais têm respondido não mais o romance construído, mas o talhe lírico do
romance breve, ou a novela jornalística e crua em que Hemingway é excelente, como
a perfeita medida da nova épica.
Há Thomas Mann, alguém pode objetar: e sim, ele compreendeu tudo ou
quase tudo do nosso mundo, mas projetando-se de um extremo corrimão do
Oitocentos. Nós olhamos o mundo precipitando no vão das escadas.
Seria preciso escrever relatos como O velho e o mar: essa história de um
condenado a serviços forçados durante a grande enchente do Mississipi. É de 1939,
me parece, mas – como sempre me ocorre – eu o li apenas neste ano em que saiu uma
tradução na Itália (muito bela, de um amigo meu); e desde o dia que o li compreendo
que ou se fazem coisas assim, ou a narrativa está condenada a se tornar arte menor.
(Menor, mas mesmo assim útil, talvez. Na Rússia, por exemplo, há pouco
tempo começaram a sair romances interessantes, que discutem o comportamento do
homem, a posição moral de frente aos problemas práticos e de consciência que se
encontram na vida de todos os dias; também nos Estados Unidos, se não me engano,
há esta literatura de dignidade cotidiana do homem de cinza dos grandes complexos
industriais e burocráticos. A narrativa pode também limitar-se a essa tarefa modesta
mas, no entanto, séria. Mas ela a faria sempre de um modo um pouco tedioso,
enquanto o cinema, se respondesse melhor à sua tarefa, seria o instrumento ideal para
este trabalho).
O hábito de se exigir da narrativa que ela diga isto ou aquilo ou aquiloutro
depende do fato de que se acredite que contando se possa dizer tudo, diferentemente,
por exemplo, da poesia ou da pintura. Mas é apenas o sinal da inadequação de uma
cultura que não sabe forjar para si os instrumentos adequados para cada função. Com
isto não tenho intenção de defender o conto puro [racconto puro]; a isto que é puro eu
prefiro sempre isto que é contaminado e espúrio. Porém, contar é contar; a narrativa,
quando se ocupa de contar, tem já o seu afazer, e a sua moral, e o seu modo de incidir
no mundo.
Eu proclamo um tempo dos belos livros plenos de inteligência nova como as
novas energias e máquinas da produção, e que influam na renovação que o mundo
tem que ter. Mas não penso que serão romances; penso que certos gêneros ágeis da
literatura setecentista – o ensaio, a viagem, a utopia, o conto filosófico, o satírico, o
diálogo, a opereta moral – devem retomar o seu posto de protagonistas da literatura,
da inteligência histórica e da batalha social. O conto ou romance terá esta atmosfera
ideal como pressuposto e como ponto de chegada: porque nascerá deste terreno e nele
influirá. Porém o fará de um modo apenas: contando. Buscando o modo justo de
contar hoje uma história, um modo que para cada tempo e sociedade e homem é um e
um somente, como o calcular de uma trajetória.
Nestes últimos tempos tenho me afeiçoado a Brecht, além dos dramas, às
páginas teóricas, que eu tinha, antes, injustamente ignorado. Não existe um Brecht da
narrativa – que pena! – e tem-se tentado transpor este seu modo de entender o teatro,
para traduzi-lo em outros termos para a narrativa. A começar pelo seu primeiro,
maravilhoso axioma: que o objetivo do teatro é divertir. Que sim, existem na história
do teatro todas as razões religiosas, estéticas, éticas, sociais, mas com a condição de
divertir as pessoas. Também para a narrativa vale o mesmo. E isso é algo que
escritores têm esquecido demais.

Respostas a 9 perguntas sobre o romance (1959)


1) Você acredita que haja uma crise do romance enquanto gênero literário ou, acima
de tudo, uma crise do romance no fato de que o romance participa da crise mais
geral de todas as artes?

Definamos bem os termos da questão. O que entendemos por romance? O que


entendemos por crise? Muitos entendem por romance: “romance de tipo oitocentista”.
Então não há mais motivos para falarmos de crise. O romance do Oitocentos teve um
desenvolvimento tão pleno, abundante, vário, substancioso, que aquilo que ele fez é
suficiente para dez séculos. Como pode vir à mente acrescentar-lhe alguma coisa?
Aqueles que gostariam que se escrevessem ainda romances oitocentistas, desvirtuam
aquilo que dizem amar.
Recentemente, o romance foi definido por Moravia (em contraposição ao
conto) como romance de ossatura ideológica. Houve crise neste sentido? Sim, mas na
ideologia, antes que no romance. O grande romance florescia em uma época de
sistemas filosóficos que buscavam abraçar o universo, em uma época de concepções
do mundo totais; hoje a filosofia tende – mais ou menos em todas as escolas – a isolar
os problemas, a trabalhar sobre hipóteses, a pôr-se objetivos precisos e limitados; a
isto corresponde um diferente procedimento de conto [racconto], geralmente com um
só personagem representado em uma situação limite; e isto justamente nos escritores
mais ideológicos, como Sartre e Camus.
Um outro modo de definir o romance é aquele (histórico e sociológico) de
considerá-lo ligado ao aparecer do livro como mercadoria, portanto, de uma literatura
comercial, de uma – como agora se diz – “indústria cultural”. De fato os primeiros
romances que merecem ser chamados como tal, os de Defoe, saíram sem o nome do
autor, nas bancas, com a intenção de responder aos gostos do povo, ávido por
histórias “verdadeiras” de personagens aventurosos. Nobre origem: não estou entre
aqueles que acreditam que a inteligência humana esteja para morrer assassinada pela
televisão; a indústria cultural sempre existiu, com o seu perigo de declínio geral da
inteligência, mas dessa sempre nasceu outra coisa nova e positiva; direi que não há
terreno melhor que aquele das exigências práticas, da exigência de mercado, da
produção de consumo: é daí que nascem as tragédias de Shakespeare, os feuilletons
[folhetins] de Dostoievski e os filmes cômicos de Chaplin. O processo de sublimação
do romance como produto mercantil ao romance como sistema de valores poéticos
adveio amplamente e em mais fases ao longo de dois séculos. Mas agora parece que
não se pode mais renovar: não houve um renascimento do romance através dos
romances policiais nem através da ficção científica: poucos os exemplos positivos no
primeiro caso, pouquíssimos no segundo caso.
Uma definição mais interna ao fato literário mas que de algum modo não é
senão uma tradução desta última é aquela do romance como narração cativante, como
técnica para prender a atenção do leitor fazendo-o viver em um mundo fictício,
participar de acontecimentos de forte carga emotiva, forçando-o a não abandonar a
leitura por curiosidade daquilo “que acontecerá depois”. Esta definição tem a
vantagem de poder se aplicar também às encarnações mais antigas do romance: a
helenística, a medieval, e depois cavaleiresca, picaresca, larmoyant (chorosa,
lacrimejante) etc... É contra este aspecto do romance que se apontou por séculos a
acusação de imoralidade da parte de religiosos e moralistas; acusação não totalmente
injusta, prestemos bem atenção, e semelhante àquela que agora até nós
frequentemente movemos contra o cinema e a televisão, quando consideramos essa
acusação com a coagida passividade do espectador, levado a aceitar tudo aquilo que a
tela lhe derrama na cabeça sem poder dar forma a uma participação crítica. À parte as
diferenças substanciais entre a leitura – sempre “cansativa”, pausada e crítica – e o
estar ali como estúpidos a olhar o vídeo, é preciso dizer que este perigo de “captura”
da leitura estava já no romance tradicional (sempre no romance inferior, mas
frequentemente também nas obras-primas) e assim constituía uma razão de fascínio
inigualável ser “capturado” por nada e ninguém. No romance do Novecentos o
elemento “cativante” foi se perdendo (permanecendo característico daquele tipo de
literatura comercial notado justamente com o nome de suspense) e a participação
exigida ao leitor é cada vez mais uma participação crítica, uma colaboração. Crise ou
não crise, esta? Crise sem outra coisa, mas positiva. Mesmo se a narração não se
proponha outro fim que o de criar uma atmosfera lírica, é apenas com a participação
do leitor que esta nasce, porque apenas o autor pode limitar-se a sugeri-la; mesmo se
não se proponha outra coisa que um jogo, o estar no jogo pressupõe sempre um ato
crítico.
Por isso, nenhuma dessas várias definições de romance nos fala de alguma
coisa que seja necessário ou possível ter em vida hoje. Não nos restaria senão concluir
que continuar a discutir sobre o romance, ao nos fixar sobre este conceito, é uma
perda de tempo. O importante é que se escrevam belos livros, e, neste caso, belas
histórias: se são romances ou outra coisa, o que importa? Como o romance tinha
advogado para si funções de tantos gêneros literários, assim agora redistribui as suas
funções entre o conto lírico, o conto filosófico, o pastiche fantástico, a memória
autobiográfica ou de viagem ou de confronto de si com países e sociedades etc...
Não existe mais a possibilidade de uma obra que seja todas estas coisas ao
mesmo tempo? Eis uma leitura recente nossa: Lolita. A virtude deste livro é que pode
ser lido contemporaneamente sobre muitos planos: história realística objetiva,
“história de uma alma”, rêverie [devaneio] lírica, poema alegórico dos Estados
Unidos, divertimento linguístico, divagação ensaística sobre um tema-pretexto etc...
Por isto Lolita é um belo livro: pelo seu fato de ser tantas coisas ao mesmo tempo, de
conseguir mover a nossa atenção em infinitas direções contemporaneamente. Devo
reconhecer (apesar de que isto ameace me levar para longe daquelas que foram as
minhas preferências e as minhas orientações de leitura até agora; mesmo aquelas
expressas nas outras respostas a este questionário, que são consideradas
cronologicamente precedentes ao discurso que estou por fazer) que hoje existe uma
necessidade de leituras que não se exauram em uma direção somente, uma
necessidade que não é saciada por tantas obras talvez perfeitas mas que têm a sua
perfeição justamente na sua rigorosa unidimensionalidade. A isso é possível contrapor
uma não vasta série de livros contemporâneos cuja leitura e releitura nos deu um
particular suplemento justamente porque nelas podemos imergir verticalmente (isto é,
perpendicularmente à direção dos fatos) com contínuas descobertas a cada estrato ou
nível, aquele de comédia humana, o de quadro histórico, o lírico ou visionário, o da
análise psicológica, o alegórico e simbólico (das alegorias e dos simbolismos mais
diversos), o da invenção de um sistema linguístico autônomo próprio, o da rede de
referências culturais, etc... (Por exemplo, sobre livros como estes, Denis de
Rougemont pode escrever o recente ensaio a propósito de Musil, Nabokov, Pasternak;
ensaio que é uma das cem chaves em que podem ser lidos esses três livros). E,
refletindo um momento sobre isso, não tardarei a admitir que as possibilidades de
leitura sobre planos múltiplos é uma característica de todos os grandes romances de
todas as épocas: mesmo daqueles que o nosso hábito de leitura nos leva a acreditar ler
como algo de estavelmente unitário, unidimensional.
Eis, portanto, que junto a este ponto pareço poder arriscar uma nova definição
daquilo que hoje (e por isto sempre) o romance é: uma obra narrativa fruível e
significante sobre muitos planos que se interseccionam. Considerado à luz desta
definição, o romance não está em crise. É, no entanto, a nossa uma época em que a
plurilegibilidade da realidade é um dado de fato fora do qual nenhuma realidade pode
ser posto ao lado. E há uma correspondência entre alguns dos romances que hoje se
escrevem ou se leem ou se releem e esta necessidade de representação do mundo por
meio de aproximações pluridimensionais, talvez compósitas, em que uma unidade de
núcleo mítico, um rigor interno – sem o qual não existe obra de poesia – esteja a
ponto de redescobrir além das várias lentes de cultura, de consciência, de gestação e
mania pessoal que compõem o seu olhar telescópico. Em suma, romances como era
romance – destaco um nome apenas entre aqueles que me vêm à mente – o Dom
Quixote.

2) Fala-se muito do romance ensaístico. Você pensa que esse esteja destinado
a tomar o lugar do romance de pura representação (ou seja, behaviourista?). Em
outros termos, Musil substituirá Hemingway?

A correspondência entre cultura de uma determinada época e literatura criativa


tem o seu justo terreno de atuação no modo de ver o mundo, isto é, nos meios de
expressão (behaviourismo-Hemingway; positivismo lógico-Robbe-Grillet, etc...). É
natural, no entanto, que haja hoje também uma narrativa que se põe como objeto as
ideias, a complexidade das sugestões culturais contemporâneas etc... Mas ao fazer
isso reproduzindo discussões de intelectuais sobre estes argumentos, há pouco sumo.
O belo é quando, por meio de sugestões culturais, filosóficas, científicas, etc, extrai
invenções de conto, imagens, atmosferas fantásticas completamente novas; como nos
contos de Jorge Luis Borges, o maior narrador “intelectual” contemporâneo.

3) A escola narrativa francesa da qual fazem parte Butor, Robbe-Grillet,


Nathalie Saraute e outros proclama que o romance vire definitivamente as costas
para a psicologia. Seria preciso fazer os objetos falarem, ater-se a uma realidade
puramente visiva. Qual é a sua opinião a respeito disso?

O perigo da “nouvelle école [nova escola]” é restringir o discurso da literatura


àquele, talvez mais rigoroso mas certamente mais limitado, das artes figurativas.
Sobre a recusa da psicologia não tenho nada em contrário, mas o problema é que a
“nouvelle école” volta as costas para tudo exceto para a psicologia. Le voyeur, de
Robbe-Grillet, é um relato [racconto] belíssimo até que se descubra que toda a trama
gravita sobre o fato de que o protagonista é um paranoico. E La jalousie, obra de
grande rigor e eficácia, é um estudo psicológico, mesmo se representado através de
uma enumeração de objetos ao invés de introspectivamente. Robbe-Grillet deveria
levar a sua geometrização até o fundo, eliminar cada vibração psicológica, manter-se
numa economia fechada de conto [racconto]. Ao livro L’emploi du temps, de Butor,
bastaria ser mais seco e seria o perfeito romance-labirinto que ele quer ser. E La
modification seria um belíssimo conto, caso fosse reduzido a um quarto das suas
dimensões.

4) Já lhe terá passado pela cabeça que os romances modernos são escritos
cada vez menos em terceira pessoa, cada vez com mais frequência em primeira
pessoa. E que esta primeira pessoa tende cada vez mais a ser a voz mesma do autor
(o eu de Moll Flanders, tanto para dar um exemplo, equivale, ao contrário, a uma
terceira pessoa). Você acredita que jamais se poderá voltar ao romance de pura
objetividade, do tipo oitocentista? Ou então, você pensa que o romance objetivo não
é mais possível?

Não depende dos escritores mas do movimento dos tempos. Quando comecei a
escrever há uns 15 anos, parecia que havia se tornado natural o escrever objetivo:
acontecia de escrever a história de todos aqueles que se encontravam pela estrada.
Existem tempos em que as histórias estão nas coisas, é o mundo mesmo que tende a
se contar, e o escritor se torna um instrumento. E existem tempos – como hoje – em
que o mundo por si parece não ter mais impulso, nas histórias do próximo não se lê
mais uma história geral, e o escritor então pode dizer do mundo apenas aquilo que ele
sabe em relação a si.

5) O que você pensa do realismo socialista na narrativa?

A literatura revolucionária sempre foi fantástica, satírica, utopística. O


“realismo” porta geralmente consigo um fundo de desconfiança na história, uma
propensão em direção ao passado, reacionária talvez de modo nobre, conservadora
talvez no sentido mais positivo da palavra. Poderá alguma vez se dar um realismo
revolucionário? Até agora não temos exemplos bastante comprovadores. O realismo
socialista na União Soviética nasceu mal, sobretudo porque teve por pai putativo um
escrito decadente e mistificante como Gorki.

6) O problema da linguagem no romance é antes de tudo o problema da


relação do escritor com a realidade da sua narrativa. Você acredita que esta
linguagem tenha que ser transparente como uma água límpida em cujo fundo se
distingam todos os objetos; em outros termos, você acredita que o romancista tenha
que deixar as coisas falarem? Ou então, você acredita que o romancista tenha antes
de tudo que ser escritor e também por fim vistosamente escritor?

A linguagem transparente como uma água límpida é um árduo ideal estético,


que se pode alcançar, sobretudo, com uma extrema atenção à escritura. Para “deixar
as coisas falarem”, é preciso saber escrever extremamente bem. Todos os estilos
podem ser bons; o importante é não escrever terroso, babado, impreciso, causal.

7) O que você pensa do uso do dialeto no romance? Você acredita que se


possa dizer tudo com o dialeto, ou então de maneira dialetal? Ou então você pensa
que, sobretudo, a língua seja a linguagem da cultura e que o dialeto tenha limites
muito fortes?

O dialeto pode servir como folha de guia para a língua de um escritor, isto é,
como ponto de referência em determinadas escolhas linguísticas. Uma vez
estabelecido que sob o meu italiano há o dialeto x, escolherei de preferência
vocábulos, construções, usos, que se refiram ao clima linguístico, ao invés de
vocábulos, construções, usos, que se refiram a outras tradições. Este sistema pode
servir para dar coerência e perspicácia a uma linguagem narrativa, até que não se
torne uma limitação à faculdade de expressão; então só nos resta mandá-lo ao diabo.
8) Você acredita na possibilidade de um romance nacional histórico? Ou seja,
no qual, de algum modo, estão representados os fatos da Itália recentes ou menos
recentes. Você acredita que seja possível, em outros termos, reconstruir
acontecimentos e destinos que não sejam puramente individuais? E fora do tempo
“histórico”?

O romance histórico pode ser um ótimo sistema para falar dos próprios tempos
e de si.

9) Quais são os romancistas que você prefere e por quê?

Amo, sobretudo, Stendhal porque só nele tensão moral individual, tensão


histórica, ímpeto da vida são uma coisa só, linear tensão romanesca. Amo Puchkin
porque é limpidez, ironia e seriedade. Amo Hemingway porque é matter of fact,
understatement7, vontade de felicidade, tristeza. Amo Stevenson porque parece que
voa. Amo Tchekov porque não vai mais além de aonde vai. Amo Conrad porque
navega o abismo e não se afunda. Amo Tolstoi porque às vezes pareço estar lá para
compreender como ele faz, e ao invés não compreendo nada. Amo Manzoni porque
um pouco faz o odiável. Amo Chesterton porque queria ser o Voltaire católico e eu
queria ser o Chesterton comunista. Amo Flaubert porque depois dele não se pode mais
pensar fazer como ele. Amo Poe do Escaravelho de ouro. Amo Twain de Huckleberry
Finn. Amo Kipling dos Livros da Selva. Amo Nievo porque o reli tantas vezes me
divertindo como na primeira vez. Amo Jane Austen porque não a leio nunca mas sou
contente que ela exista. Amo Gogol porque deforma com nitidez, maldade e medida.
Amo Dostoievski porque deforma com coerência, furor e sem medida. Amo Balzac
porque é visionário. Amo Kafka porque é realista. Amo Maupassant porque é
superficial. Amo Katherine Mansfield porque é inteligente. Amo Fitzgerald porque é
insatisfeito. Amo Radiguet porque a juventude não volta. Amo Svevo porque será, no
entanto, envelhecer. Amo...

Personagens e nomes – Italo Calvino (1952)

(In CALVINO, Italo. Mondo scritto e mondo non scritto. Milano: Oscar Mondadori,
2002. p. 8-9)
7
N. T:
Acredito que os nomes dos personagens são muito importantes. Quando, escrevendo,
devo introduzir um personagem novo, e já tenho de maneira claríssima na cabeça
como será este personagem, paro para buscar às vezes até por uma meia-hora, e
enquanto não tiver encontrado um nome que seja verdadeiro, o único nome desse
personagem, não consigo ir adiante.

Poder-se-ia fazer uma história da literatura (ou pelo menos do gosto literário) apenas
considerando os nomes dos personagens. Para nos limitar aos escritores italianos de
hoje, podemos distinguir duas tendências principais: uma por nomes que pesam o
menos possível, que não constituem nenhum diafragma entre o personagem e o leitor,
nomes de batismo comuns e intercambiáveis, quase números para distinguir um
personagem de outro; ou então, uma tendência por nomes que, mesmo não
significando nada diretamente, têm o seu poder evocativo, são uma espécie de
definição fonética dos respectivos personagens e uma vez anexados a esses nomes não
podem mais se destacar deles, tornam-se com esses uma coisa só. Vocês podem
facilmente classificar os nossos maiores escritores contemporâneos numa categoria ou
na outra ou em um sistema intermediário. Quanto a mim, na minha posição, sou um
partidário da segunda tendência; sei muito bem que se correm contínuos perigos de
cair no lugar comum, no mau gosto, no grotesco mecânico, mas os nomes são um
coeficiente como um outro daquilo que se costuma dizer o “estilo” da narração, e
devem ser decididos juntos com isso, e julgados no seu complexo êxito.

Objeta-se: mas se os nomes das pessoas são casuais, então devem ser casuais os
nomes dos personagens, para serem realistas. Ao contrário, acredito que os nomes
anódinos são abstratos: na realidade se encontra sempre uma sutil, impalpável, às
vezes contraditória relação entre nome e pessoa, de modo que um é sempre aquele
que é mais o nome que tem, nome que sem ele não significaria nada, mas ligado a ele
adquire todo um significado especial, e é esta relação que o escritor deve conseguir
suscitar para os seus personagens.

Carta de um escritor “menor” (1968)

Caro Fink,
A Sua resenha para Ti con zero (T=zero) em “Paragone” me deu a satisfação rara de
encontrar um crítico atentíssimo, que sabe ler (e citar), para o qual nada fica perdido
sobre a página. As três partes do livro são muito bem descritas, seja nas análises de
cada conto em particular, seja nas definições sintéticas, como aquela belíssima da
segunda parte. (E assim o seu ouvido estilístico faz descobertas inesperadas tais como
as assonâncias pavesianas nas Cosmicômicas. Jamais teria pensado nisso, mas a sua
citação é persuasiva). No entanto não gostaria que você visse o valor da terceira parte
apenas relativamente a uma polêmica com os outros “desnarradores”, isto é, o meu
trabalho – autônomo, e naturalmente faço questão que isto seja reconhecido – se move
em um espaço que não é decidido por mim, mas que é a situação literária na qual me
encontro pouco a pouco a operar, e que põe sempre novos problemas. Com certeza,
venho de experiências diferentes daquelas que dominam hoje no discurso literário,
porém este diverso clima que se criou me fez aprofundar aspectos que já no meu
trabalho estavam presentes, os quais mais ou menos obscuramente eu já tinha em
conta. A propósito de situações culturais que alguém não escolhe mas nas quais se
encontra a operar: por exemplo é muito justo que Você defina “bassanianos” os
vanguardistas em Mentone etc, porque sem Bassani eu, naqueles contos lá, naquela
particular focalização de materiais autobiográficos, - digamos da própria
singularidade de experiência no âmbito burguês provincial – eu não teria chegado a
isso. Bassani foi importante para mim por sair daquele impasse ao qual estava unida a
minha primeira maneira do pós-guerra. (Enquanto eu não me encontrava ainda em
condições de captar o verdadeiro valor de Bassani então e que depois mesmo ele
perdeu: a tentativa de ghost story jamesiana da burguesia italiana). Ali no entanto
(justamente por falta desta fresta, desta saída que eu há pouco dizia) eu acabava direto
numa retirada para uma zona de pequena literatura italiana tipo “Il Mondo” feita de
suficiência moralística, sabedoria fácil, liricidade nostálgica. Deste modo aqueles
meus contos (talvez melhor sucedidos que outros, mas isto o que importa?)
correspondem a uma involução minha e do clima da literatura italiana daqueles anos,
e me desagrada que Você se recorde deles tão bem e os cite duas vezes. Deste modo
estou contente que Você ache “simpático” Ti con zero; porém quanto mais os livros
são “antipáticos” (isto é, difíceis de digerir para os nossos hábitos de pensamento e os
nossos gostos), mais eles contam; quanto mais dificultosa é a sua conquista, mais ela
conta. Agora, no entanto, devo especificar: julgar esta fase do meu trabalho (Calvino
se refere a T=Zero) em relação e em oposição com a literatura de vanguarda europeia
me parece que não seja pertinente, porque está claro que eu continuo sendo um
escritor de formação artesã, me agrada fazer construções que fecham bem, tenho uma
relação com o leitor baseada nessa recíproca satisfação, e a vanguarda é, mais do que
a literatura, um comportamento humano, uma relação diferente com a obra e o leitor
(e se julga segundo a categoricidade, a heroicidade desse comportamento); se alguém,
digamos, “não nasce nela”, isto é, se não tem isto como sua vocação fundamental,
seria ridículo que se colocasse nela. Mas eu gostaria de dizer isto: eu faço o artesanato
mas numa época na qual a vanguarda faz isto e aquilo; e os campos – mesmo se não
se tocam – se influenciam (como todo campo da palavra não pode ser indiferente aos
outros campos da palavra). Por exemplo, agora estou lendo Heinsenbüttel e isso me
explica até mesmo as coisas que estou fazendo, vejo com interesse – e quero acentuar
– uma analogia da minha posição (sobre o plano do artesanato) com a tua (sobre o
plano da vanguarda).
Em suma, aquilo que conta para mim é a participação em um trabalho comum, não os
“resultados verdadeiramente maiúsculos” que Você lamenta que eu não alcance.
Conta somente a contribuição àquele algo de complexo que é uma cultura. O que são
os “resultados maiúsculos”? É somente uma situação cultural ulterior que dá valor de
maiúsculo a um resultado. E mesmo isso é apenas um símbolo de todo um intenso
trabalho de resultados, talvez minúsculos mas importantes. Acredito que isto seja um
critério que leva a lugar nenhum: deixemo-lo aos semanários de variedade literária
que entrevistam os escritores sobre a possibilidade de escrever “obras-primas”. Dos
resultados maiúsculos devo dizer que nunca me interessaram. Desde jovem a minha
aspiração era me tornar um “escritor menor”. (Porque eram sempre aqueles que são
chamados de “menores” que me agradavam e dos quais eu me sentia próximo). Mas
era já um critério equivocado, pois pressupõe que existam escritores “maiores”.
No fundo me convenci de que não apenas não existem autores “maiores” e autores
“menores” como também não existem os autores – ou de todo modo não contam
muito. Na minha opinião Você se preocupa ainda demais em explicar Calvino com
Calvino, de traçar uma história, uma continuidade de Calvino, e talvez este Calvino
não tenha continuidade, morre e renasce a todos os momentos, o que conta é se no
trabalho que faz em um certo momento há alguma coisa que pode interferir no
trabalho presente ou futuro dos outros, assim como pode realizar quem quer que
trabalhe, pelo único fato de combinar e acumular possibilidades.
“Mas devo dizer que a Sua procura pelo verdadeiro Calvino – ainda que eu não a
aprove metodologicamente – leva a estabelecer um mínimo denominador comum que
me agrada: agressividade e nítida oposição. Se isto vem para fora até em contos nos
quais me proponha ser o mais destacado e impessoal possível, deve haver dentro deles
uma verdade e então fico contente com isso. Por isto o Seu ensaio me deu uma grande
satisfação – como Você vê mesmo pela paixão de discussão que ele suscitou em mim
– e Lhe sou infinitamente grato.”

O livro, os livros (1984)

Caros amigos, estou feliz por ter podido aceitar o convite da “Feria del Líbro”
para visitar pela primeira vez Buenos Aires, que sempre desejei conhecer, e sou
particularmente feliz por me encontrar entre vocês neste momento, em um clima de
reconquistada liberdade.
Desculpem-me se lhes falo em italiano; espero que muitos de vocês
compreendam a nossa língua, assim como eu compreendo a de vocês, mesmo que não
me sinta bastante seguro para usá-la durante um discurso inteiro. Conforta-me o fato
de que a origem italiana de tantos argentinos dê à nossa língua um lugar especial na
cultura de vocês, assim ao ponto de não dever considerá-la totalmente uma língua
estrangeira.
Voltando-me a vocês aqui no âmbito da “Feria”, quero procurar analisar as
sensações que provo toda vez que visito uma grande exposição do livro: uma espécie
de vertigem no perder-me neste mar de papel impresso, neste firmamento sem limites
de capas coloridas, neste pozinho de caracteres tipográficos; a abertura de espaços
sem fim como uma sucessão de espelhos que multiplicam o mundo; a espera de uma
surpresa que pode vir ao meu encontro por meio de um título novo que me provoca
curiosidade; o desejo imprevisto de ver reimpresso um velho livro há muito tempo
não mais encontrável; o pavor e ao mesmo tempo o alívio de pensar que os anos da
minha vida bastarão apenas para ler e reler um número limitado dos volumes que se
estendem sob os meus olhos.
São sensações diferentes, deixemos bem claro, daquelas que dá uma grande
biblioteca: nas bibliotecas se deposita o passado como em estratos geológicos de
palavras silenciosas; em uma feira do livro é a renovação da vegetação escrita que se
perpetua, é o fluxo das frases apenas impressas que busca abrir um canal em direção
aos leitores futuros, que se espreme para desembocar nos circuitos mentais deles.
Não acredito que seja um acaso que as grandes feiras internacionais do livro
aconteçam no princípio do outono: em Frankfurt em outubro, em Buenos Aires em
abril. Para mim italiano, o início do outono é a estação da vindima: como a vindima
celebra a cada ano a multiplicação dos cachos repletos de suco, assim a Feira do Livro
celebra o renovar-se de um ciclo, o da multiplicação dos volumes. O mesmo sentido
de abundância e profusão domina um e outro gênero de festa outonal; o fermento da
tinta tipográfica emana de uma atmosfera de ebriedade não menos contagiosa que
aquela do mosto que fervilha nas tinas.
Os livros são feitos para serem tantos, um livro único tem sentido apenas
enquanto se dispõe ao lado de outros livros, enquanto segue e precede outros livros.
Assim tem sido desde quando os livros eram rolos de papiro que se alinhavam sobre
as prateleiras das bibliotecas dispondo os seus cilindros verticais como canos de
órgão, cada um com a sua voz grave ou delicada, ou melancólica. A nossa civilização
se baseia na multiplicidade dos livros; a verdade se encontra apenas seguindo-a das
páginas de um volume às de um outro volume, como uma borboleta de asas
multicoloridas que se nutre de linguagens diversas, de confrontos, de contradições.
Com certeza houve civilizações e religiões e povos que se reconheceram em
um livro único, “o Livro”, mas este podia conter uma multiplicidade de livros, como
aquele que chamamos justamente de Bíblia, isto é, ta biblia, “os livros” no plural, não
“o livro”. E mesmo quando o texto sagrado é realmente um livro no singular, como o
Corão, este exige uma produção interminável de comentários e de exegeses, de modo
que se pode dizer que quanto mais um livro é considerado definitivo e indiscutível,
mais prolifera preenchendo bibliotecas inteiras.
A ideia de um livro absoluto se apresenta às vezes mesmo na literatura
profana, como o Livro com L maiúsculo almejado por Mallarmé, mas direi que é uma
tentação diabólica. Melhor o gesto perplexo de quem impele adiante o próprio livro
como uma glossa de livros escritos antes dele, ou considera a própria obra o capítulo
de um superlivro composto por todos os volumes já escritos ou ainda por se escrever,
de autores conhecidos ou desconhecidos, em todas as línguas.
A imaginação popular atribuía à palavra escrita poderes sobrenaturais e
fantasiava sobre um livro que tornasse possível o domínio do mundo a quem o
possuísse e soubesse procurar a palavra justa nas suas páginas. O livro mágico
aparece como instrumento sobrenatural nas fábulas, nas lendas, nas aventuras
cavalheirescas: geralmente os seus poderes eram voltados para o mal, mas a mesma
magia nefasta podia se transformar em uma ajuda providencial se usada por mãos
justas.
No Orlando Furioso o mago Atlante faz surgir por meio do seu livro mágico
um palácio onde tudo é ilusão, povoado por fantasmas dos paladinos mais valorosos e
das damas mais atraentes. O cavaleiro que se perdia entre aquelas paredes
evanescentes para seguir uma sombra em que reconhecia o seu inimigo mortal ou a
mulher amada, não encontrava mais a saída de lá, se não quando do livro mágico se
apossava Astolfo, cavaleiro que tem uma particular intimidade com tudo aquilo que é
maravilhoso, eis que ele conquistará o poder de montar na sela do Hipogrifo e voar
até a Lua.
No poema de Ariosto, todo retumbante do férreo clamor das armas – lanças,
espadas, cimitarras, mas também as primeiras detonações de arcabuz, porque a
pólvora de disparo faz a sua primeira aparição na literatura cavalheiresca – a arma
absoluta é o livro mágico. Qual é o poder da palavra que o livro mágico encerra?
Pode a palavra mudar o mundo? Ou, acima de tudo, a palavra tem o poder de
dissolver o mundo, de ser mundo ela mesma, de substituir a própria totalidade por
aquela do mundo não escrito?
O Orlando Furioso é um livro que contém todo o mundo e este mundo contém
um livro que quer ser mundo. Mas o que está escrito neste livro mágico, não o
sabemos. Talvez o volume que Astolfo consulta voando na sela do cavalo alado seja
justamente o poema que conta dele Astolfo, do cavalo alado e da sua viagem à Lua.
A metáfora do livro como mundo e a do mundo como livro têm uma longa
história, da Idade Média até hoje. Quem está em condições de ler o livro do mundo?
Só Deus ou também o homem? A metáfora do livro-mundo está no centro das
discussões teológicas sobre a sapiência divina e sobre os limites do conhecimento
humano.
No início da era moderna, tanto Francis Bacon quanto Galileu Galilei
contrapuseram à autoridade dos livros escritos nas linguagens dos homens o livro da
Natureza que Deus escreveu na sua linguagem, e que cabe ao homem decifrar.
Tommaso Campanella condensa esta ideia num soneto: “O mundo é o livro onde o
Juízo Eterno / escreveu os próprios conceitos 8...”. Galileu esclarece que o livro do
mundo foi escrito por Deus em um alfabeto matemático e geométrico.
Não por acaso o poeta preferido de Galileu era justamente Ludovico Ariosto:
assim como Astolfo sobre o Hipogrifo sobrevoa os territórios da Lua com a ajuda do
livro mágico, Galileu com a ajuda do raciocínio matemático explora com o seu
telescópio a paisagem lunar e a descreve nas suas sombras e na sua brilhante
brancura.
Mas há no entanto uma página de Galileu em que o cientista florentino
defende que todo o mundo pode ser contido em um livro pequeniníssimo: o alfabeto.
É o alfabeto, segundo Galileu, a maior invenção feita pelos homens, porque com as
combinações de uns vinte sinais se pode dar conta de toda a multiforme riqueza do
universo. Do mesmo modo, ele diz, a paleta do pintor basta para representar todo o
visível mediante a combinação das cores simples. O alfabeto permite a mais rápida

8
: “Il mondo è il libro dove il Senno Eterno / scrisse i proprii concetti...”
transmissão do pensamento entre pessoas distantes, entre pessoas de séculos
diferentes, entre os mortos e os vivos...
Os poderes da palavra residem, portanto, nas infinitas potencialidades que nos
abre a arte combinatória? Da Idade Média de Ramón Lull ao Setecentos de Leibniz a
arte combinatória aparece aos engenhos mais ambiciosos como a chave de todo
conhecimento e acende neles o sonho do livro universal.
Da China nos chegou, trazido por missionários jesuítas, um livro em que todos
os destinos humanos estão contidos na combinatória de seis linhas interrompidas ou
contínuas: é chamado de o “livro das mutações”. Leibniz estuda os 64 hexagramas
desse antigo livro chinês, não para interrogar o futuro mas para dele extrair um
sistema de cálculo binário que dois séculos depois se tornará aquele da informática.
O livro mágico, o livro absoluto, cujos arcanos superam os limites de toda
linguagem, não seriam, pois, outra coisa senão um modelo de cérebro eletrônico? Mas
o computador vale para nós apenas enquanto pode memorizar e executar uma grande
quantidade de programas que somos nós que elaboramos e inserimos nos seus
microcircuitos. Retornemos à multiplicidade como condição primeira de todo ato de
conhecimento. Como o computador não tem sentido sem os programas, sem o seu
software, assim também o livro que pretenda ser considerado “o Livro” não tem
sentido sem o contexto de muitos, muitos outros livros em torno dele.
Uma outra tentação que se representa também desde os tempos mais antigos é
a de concentrar o saber de todos os livros em um único discurso: a enciclopédia.
Podemos dizer que este desejo parte das motivações mais racionais, de uma
necessidade de ordem e de método: traçar um mapa dos territórios do saber humano,
verificar os confins dos nossos conhecimentos. Talvez toda civilização, toda época
não possam evitar tentar a empreitada enciclopédica: mas é no entanto verdade que
toda vez esta pretensão de unificar os saberes plúrimos se revelará uma ilusão porque
todo tipo de conhecimento tem o seu método e a sua linguagem que divergem dos
outros métodos e das outras linguagens e não se deixam inserir em um desenho
circular tal como aquele que o nome mesmo de enciclopédia sugere.
Mas aquilo que agora me interessa sublinhar é que nos primórdios da era
moderna se assiste ao nascimento de um gênero literário, o romance, que porta em si
desde as origens uma vocação enciclopédica. Rabelais acumula nos livros de
Pantagruel todo o saber das universidades e o das tavernas, todas as linguagens dos
doutos e dos plebeus; e eis que meio século depois Cervantes nos faz assistir ao
encontro entre o sublime da poesia e o prosaico da vida cotidiana, o mundo ideal dos
livros e da fantasia e o bom senso elementar dos provérbios, a dura sapiência das
estradas empoeiradas e das hospedarias malcheirosas: uma mescla explosiva de
elementos que estoura na loucura de Dom Quixote e inaugura a literatura moderna.
Esta vocação enciclopédia continuará a se fazer sentir na história do romance;
de fato no nosso século os romances-enciclopédia são os mais significativos, desde a
Montanha mágica ao Homem sem qualidades e, sobretudo, ao Ulisses, de Joyce que
atribui a cada capítulo um estilo diferente e um diferente território da experiência
humana. Na Itália o romancista enciclopédico por excelência é Carlo Emilio Gadda,
que no Pasticciaccio brutto di Via Merulana condensa em um enredo policial os
dialetos de Roma e de meia Itália, a arte barroca e a epopeia de Virgílio, a psicologia
e a fisiologia, e sobretudo uma filosofia do conhecimento.
Talvez os romances sejam as únicas enciclopédias que componham
verdadeiramente um quadro da totalidade partindo da singularidade das existências
humanas, dos acontecimentos individuais sempre parciais, sempre contraditórios,
sempre ambíguos, jamais unívocos. A totalidade é um conceito que permanecerá
sempre abstrato, o que buscam os escritores de romances é tecer uma rede que ligue a
experiência armazenada nos livros durante os séculos àquela partícula de experiência
que atravessamos dia a dia nas nossas vidas e que nos resulta cada vez mais
incaptável e indefinível.
O livro, os livros. O pensamento de que os livros são gerados pelos livros
como por uma força biológica própria da página escrita pode transmitir angústia: se é
o discurso escrito que passa através da mão que escreve, e o autor é apenas um
instrumento de alguma coisa que se escreve independentemente dele, talvez não
sejamos nós que escrevemos os livros mas são os livros que nos escrevem.
Quem acha esta hipótese angustiante, preferirá acreditar que a página que
escreve seja um espelho em que projetar a imagem de si mesmo: o livro como
equivalente escrito da própria pessoa em tudo quanto esta tem de mais interior,
prolongamento da própria individualidade, manifestação da própria existência única e
irrepetível. Si-mesmo como livro a decifrar; o livro como espelho ou auto-retrato:
mesmo este é um modo de considerar o escrever que assinala os sinais da cultura
moderna, segundo a lição de Montaigne, e continua através de Rousseau até os nossos
dias, até Proust e além. “Quem toca este livro toca um homem”, dizia Walt Whitman.
No entanto, os livros em que um ser humano se conta e descreve com a
evidência de uma verdade jamais antes alcançada são raros e extraordinários, e eu
penso que não serviriam se fossem mais numerosos, a menos que não se queira ver
multiplicar-se os desabafos e os narcisismos dos quais já tanto abunda a literatura. Um
grande livro não vale tanto porque nos ensina a conhecer um determinado indivíduo,
mas porque nos apresenta um novo modo de compreender a vida humana, aplicável
inclusive aos outros, do qual também nós podemos nos servir para reconhecer a nós
mesmos. Se toda pessoa humana contivesse um próprio livro e não lhe restasse senão
depositá-lo sobre o papel (ou servi-lo como um ovo), as bibliotecas estariam
apinhadas por populações indeterminadas de duplos cartáceos de todos os vivos e os
defuntos, menos perecíveis dos corpos de carne e osso do que se no vale de Josafá,
perspectiva que seria, esta sim, a mais angustiante de todas. Eu prefiro acreditar em
uma biblioteca ideal que acolha os modelos exemplares de experiência, os protótipos,
as formas essenciais de que se poderá deduzir todo o possível.
Para sair das considerações gerais e passar para a minha experiência de
escritor, devo dizer que mais que pelo desejo de escrever o meu livro, o livro como
equivalente de mim mesmo, sou impulsionado pelo desejo de ter diante de mim o
livro que me agradaria ler, e então experimento identificar-me com o autor imaginário
deste livro ainda por se escrever, um autor que poderia ser inclusive muito diferente
de mim.
Por exemplo, publiquei recentemente na Itália um livro todo feito de
descrições. No centro deste livro há um personagem que se chama Palomar o qual
pensa sobretudo através da observação minuciosa de tudo aquilo que lhe passa sob os
olhos: uma iguana no jardim zoológico ou os queijos na banca de uma mercearia. O
problema é que eu não sou aquilo que se chama um observador: sou muito distraído,
absorto em meus pensamentos, incapaz de concentrar a minha atenção naquilo que
vejo. Antes de escrever cada capítulo desse livro eu me encontrava pois na
necessidade de realizar uma operação preliminar: pôr-me a observar coisas que eu
tinha tido sob os olhos centenas de vezes para registrar cada mínimo detalhe delas
para imprimi-los na minha memória, como jamais tinha feito; exercício que pode
revelar-se de uma extrema dificuldade quando se trata por exemplo do céu estrelado
de uma noite de verão ou das folhas de relva num gramado. Eu tinha portanto que
buscar de algum modo mudar a mim mesmo para tornar-me parecido com o
presumido autor desse livro que eu queria escrever. É deste modo que o escrever um
livro se torna uma experiência de iniciação, comporta uma contínua educação de si
mesmo, e este deveria ser o ponto de chegada de toda ação humana.
Quando eu era muito jovem, pensava que a minha falta de experiência de vida
fosse um grande obstáculo para o escrever; pensava que podia permitir-me escrever
apenas poesias irônicas e melancólicas ou prosas poéticas nutridas pelas minhas
memórias infantis e pelos meus sonhos. Mas os romances que eu lia naquele tempo
falavam de vida brutal e errática, de guerras e de aventuras em país distantes; esses
romances me apaixonavam mas pareciam pertencer a um mundo tão estranho ao meu
a ponto de não poder ter nenhuma relação com isso que eu jamais teria sido capaz de
escrever. Não imaginava ainda que as experiências coletivas da minha geração no
último período da Segunda Guerra Mundial, com aquilo que tinham de tragédia e de
horror e aquilo que tinham de aventura picaresca nas astúcias para sobreviver, teriam
legitimado a minha atividade de escritor aprendiz justamente na direção de uma
narrativa da experiência de vida e de morte, a qual até há bem pouco tempo parecia
que eu só podia frequentar como leitor.
A primeira imagem que a crítica e o público se fizeram de mim foi portanto
uma imagem de escritor realista e popular, e eu procurei escrever os livros desse novo
mim mesmo. Mas o milagre que me sucedera com o primeiro romance e os primeiros
contos não se repetia, e tudo aquilo que eu escrevia me parecia uma imitação.
A crise durou até quando decidi que não escreveria o romance que eu
acreditava ter que escrever, que os outros esperavam que eu escrevesse, mas o
romance que me teria agradado ler, um livro como que vindo de um outro tempo e de
um outro país, de um autor desconhecido, um velho volume encontrado num sótão,
meio comido pelos ratos, ao qual me abandonar com o fascínio das leituras infantis.
Foi então que encontrei a veia fantástica que depois público e crítica julgariam a mais
correspondente ao meu temperamento.
Mas também em seguida sempre procurei não permanecer prisioneiro de
qualquer imagem de mim mesmo. Gostaria que cada livro que eu escrevesse seja o
primeiro, gostaria que cada vez o meu nome seja aquele de um escritor novo.
Continuo a apaixonar-me no ato de ler livros e sobretudo se sinto que não saberia
nunca mais escrever nada do gênero, e experimento confrontar-me com os seus
autores, a compreender o que me torna diferente deles, o que eles têm que eu não
tenho. Este pensamento funciona em mim como um desafio. Exagerando um pouco,
eu poderia dar esta definição do meu trabalho: tão logo me convenço de que um certo
gênero de literatura está além das minhas possibilidades, não tenho paz até que eu
experimente ensaiar nessa direção, para verificar se é justamente assim tão
impraticável. E já que não me agrada deixar um trabalho pela metade, continuo até
que os meus esforços tomem a forma de um livro.
Tenho sempre sido atraído pela vegetação das florestas, e a narrativa de todo
tipo, de todo tempo e de todo país se me apresenta com a imagem de uma floresta de
histórias, onde a um primeiro olhar parece que cada planta se confunde com as outras,
mas tão logo fixamos nossa atenção nos damos conta de que nenhuma planta é igual a
outra.
Há trinta anos me lancei na floresta do conto popular, mergulhando no folclore
das regiões italianas, no fabular transmitido pela voz das avós em todos os dialetos, e
procurei distinguir e escolher numa vegetação densa e intricada de maravilhas e
encantamentos.
Essa experiência reforçou em mim a atenção para alguns aspectos, a
proliferação de histórias uma da outra, as estruturas mais simples e eficazes que são
reconhecíveis como esqueleto dos fatos mais complicados, a origem oral da arte do
contar, origem da qual restam os traços mesmo quando esta arte se concretiza em
obras escritas, o interesse pelas coletâneas de novelas indianas, árabes, persas cuja
influência tem sido sensível no desenvolvimento da novelística italiana e europeia.
Frequentemente na literatura escrita, esta multiplicidade infinita das histórias
transmitidas de boca a boca é alcançada através de uma moldura [cornice], uma
história na qual se inserem as outras histórias. Boccaccio faz se encontrar uma
animada brigada de jovens de ambos os sexos em uma aldeia florentina para fugir da
peste que devasta a cidade; e lá cada um conta por vez uma novela ao dia durante dez
dias. Os desenvolvimentos deste modelo caracterizam a evolução da arte de narrar nas
literaturas do Ocidente.
Nos meus últimos livros este modelo tradicional se transformou na invenção
de mecanismos geradores de histórias que senti a necessidade de elaborar em
desenhos cada vez mais complicados, ramificados, multifacetados, aproximando-me
de uma ideia de hiper-romance ou romance elevado à enésima potência.
A empreitada de buscar escrever romances “apócrifos”, isto é, que imagino
tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe, eu a levei até o
fundo no meu livro Se una notte d’inverno un viaggiatore. É um romance sobre o
prazer de ler romances; o protagonista é o Leitor, que por dez vezes começa a ler um
livro, que por vicissitudes estranhas à sua vontade não consegue terminar. Tive
portanto que escrever o início de dez romances de autores imaginários, todos de
algum modo diferentes de mim e diferentes entre si: um romance todo suspeitas e
sensações confusas; um todo sensações encorpadas e sanguíneas; um introspectivo e
simbólico; um revolucionário-existencial; um cínico-brutal; um de manias obsessivas;
um lógico e geométrico; um erótico-perverso; um telúrico-primordial; um
apocalíptico-alegórico. Mais do que identificar-me com o autor de cada um dos dez
romances, busquei identificar-me com o leitor: representar o prazer da leitura de um
determinado gênero, mais do que o texto verdadeiro e próprio. No entanto em algum
momento me senti como que atravessado pela energia criativa destes dez autores
inexistentes. Mas sobretudo busquei dar evidência ao fato de que todo livro nasce em
presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros.
Agora talvez devesse levar em conta uma pergunta que ouvimos
frequentemente hoje em dia, e que é de praxe em uma Feria del Libro: você fala dos
livros como de alguma coisa que sempre existiu e que sempre existirá, mas estamos
mesmo seguros de que o livro tem diante de si um porvir? Que ele sobreviverá à
concorrência dos meios eletrônicos audiovisuais? Como se transformará ou por que
coisa será substituído? E o que se tornará o escritor?
Pois bem, a minha resposta pode ser apenas uma, de fidelidade ao livro,
aconteça o que acontecer. Ponhamo-nos na perspectiva dos séculos. Os livros
circularam por muitos séculos antes da invenção de Gutenberg, e nos séculos futuros
encontrarão certamente novas formas para sobreviver.
A primeira casa editorial sobre cuja atividade temos notícias detalhadas,
através das cartas de Cícero, foi aquela fundada aproximadamente em 50 antes de
Cristo por Tito Pomponio Attico para a difusão dos clássicos gregos e das novidades
latinas; era organizada não muito diferentemente das casas editoriais dos nossos dias,
com a diferença de que no lugar dos tipógrafos havia um grande número de copistas.
Certamente então o número dos leitores não era aquele das tiragens dos best-
sellers de hoje, mas se pensarmos que também hoje tantos livros fundamentais
continuam a ter uma circulação limitada, vemos que também os confrontos numéricos
são menos desencorajadores do que se acredita. O importante é que o fio ideal que
escorre através da escritura não se interrompa. O pensamento de que mesmo durante
os séculos de ferro e fogo da Idade Média os livros tinham encontrado nos conventos
um espaço para conservar-se e multiplicar-se, por uma parte me tranquiliza, por outra
me preocupa. Poderia também sorrir-me a ideia de nos retirarmos todos para
conventos dotados de todo conforto para fazer editoria de qualidade, abandonando as
metrópoles às invasões bárbaras dos videotapes; mas me desagradaria pelo resto do
mundo que ficaria privado de livros, do seu silêncio cheio de sussurros, da sua calma
tranquilizante ou da sua sutil inquietude.
Há uma continuidade na solidão que o escritor carrega consigo como um
destino inerente à sua vocação, mas desta solidão se desenvolve uma vontade e uma
capacidade de comunicar: aquela especial comunicação da literatura que se estabelece
de indivíduo a indivíduo, e que somente em alguma época e em alguma ocasião pode
encontrar-se amplificada em comunicação de massa. Saber que Petrarca e Boccacio
trocavam entre si códices de pergaminho em que tinham copiado de próprio punho e
com fina elegância gráfica as próprias obras ou as de Dante, me convence de que os
períodos de esplendor para a literatura podem abrir-se quaisquer que sejam as
condições exteriores.
Sabemos que a forma dos livros tem mudado tantas vezes na história e que
certamente continuará a mudar. Não que isto me alegre, porque sou afeiçoado aos
livros também como objetos, na forma que têm agora, mesmo que seja cada vez mais
raro ver edições que expressem o amor pelo objeto-livro, que para acompanhar a
nossa vida deveria ser feito à maneira de obra de arte.
Certamente mudarão muitas coisas, se é verdade que com os word-processors
os nossos livros serão compostos diretamente pelas nossas mãos sem passar pela
tipografia. Assim como mudarão as bibliotecas, que talvez conterão apenas
microfilmes. Isto me entristece um pouco, porque não sentiremos mais o farfalhar das
páginas.
Mudará o nosso modo de ler? Talvez, mas não podemos prever como. De uma
revolução importante do modo de ler ocorrida no passado podemos dizer ter um
testemunho direto, porque Santo Agostinho nos contou com estupor o momento em
que se deu conta disso. Indo encontrar Santo Ambrósio, Agostinho percebeu que o
Bispo de Milão estava lendo mas de um modo que ele jamais tinha visto antes:
silenciosamente, somente com os olhos e com a mente, sem emitir qualquer som, sem
muito menos mover os lábios. Agostinho tinha passado por escolas importantes e
ambientes de estudiosos, mas jamais tinha suspeitado de que se pudesse ler como
fazia Ambrósio, sem pronunciar as palavras.
Mas talvez no futuro haverá outros modos de ler que nós nem suspeitemos.
Parece-me equivocado depreciar toda novidade tecnológica em nome dos valores
humanísticos em perigo. Penso que todo novo meio de comunicação e difusão das
palavras, das imagens e dos sons pode reservar desenvolvimentos criativos novos,
novas formas de expressão. E penso que uma sociedade mais avançada
tecnologicamente poderá ser mais rica de estímulos, de escolhas, de possibilidades, de
instrumentos diversos, e terá cada vez mais necessidade de ler, de coisas para ler e de
pessoas que leiam.
Penso que a leitura não é comparável com nenhum outro meio de
aprendizagem e de comunicação, porque ela tem um ritmo todo seu que é governado
pela vontade do leitor; ela abre espaços de interrogação e de meditação e de exame
crítico, em suma, de liberdade; é uma relação com nós mesmos e não somente com o
livro, com o nosso mundo interior através do mundo que o livro nos abre.
Talvez o tempo que poderia ser destinado à leitura será cada vez mais ocupado
por outras coisas; isto é verdade já hoje, mas talvez fosse ainda mais verdadeiro no
passado para a maior parte dos seres humanos. Como quer que seja, quem tem
necessidade de ler, quem tem prazer de ler (e ler é certamente uma necessidade-
prazer) continuará a recorrer aos livros, aos do passado e aos do futuro.

Por que você escreve? Italo Calvino (In CALVINO, Italo. Mondo scritto e mondo non
scritto. Milano: Oscar Mondadori, 2002. p. 142-145)

Por muitos meses o jornal parisiense “Libération” foi preparando um número especial
que saiu em 22 de março (1985). A escritores de todo o mundo foi feita a pergunta:
“Por que você escreve?” O questionamento se apoiava em um precedente histórico:
um número de novembro de 1919 da revista “Littérature”, de Breton, Aragon e
Soupault. A mesma pergunta era feita então, em uma época em que cataclismos e
desmoronamentos desconcertavam não somente a arte e a literatura, mas todos os
aspectos da vida e do pensamento. Esta referência estava contida no convite do
“Libération” aos interpelados e não sei se visava estabelecer um paralelo entre aquela
época e a nossa, depois que os anos sessenta haviam assinalado, sobretudo na cultura
francesa, um impulso de inovações fundamentais (na qual a noção mesma de écriture
era um dos campos de batalha), e depois do mais recente despedaçamento de todos os
radicalismos do pensamento. Basta este confronto entre a primeira e a última década
do século, para nos fazer sentir a nossa época como submissa e cinza, tanto nos
impulsos inovadores quanto naqueles normalizadores; mas a grande novidade era que,
por causa daquele andamento mais calmo (pelo menos aparentemente), não nos
sentíamos de fato entristecidos, e nenhuma nostalgia de época mais movimentada se
mostra nem mesmo por um instante à nossa mente, tanto estamos convencidos de que
não podemos esperar senão por surpresas desagradáveis.
Pode este estado de ânimo refletir-se na resposta a uma pergunta como:
“Pourquoi écrivez-vous?”. Está aí o fato de que em um grande número de respostas às
perguntas prevalecia o gesto instintivo de defesa da pergunta por demais vasta, da
pretensão de colocar problemas gerais demais. A resposta de Samuel Beckett é neste
sentido – e não era de se duvidar – lapidarmente exemplar: consiste somente nas três
sílabas de uma expressão coloquial “Bon qu’à ça”. (só sirvo pra isso – não sou bom
para fazer noutra coisa).
Vou me limitar aqui a lhes informar como eu escapei dessa. Cortesmente
castigado pela insistência epistolar e telefônica dos redatores do “Libé”, e de amigos
encarregados de convencer-me, tranquilizado de que podia dar uma resposta também
breve, não me restava mais do que fazer força e afrontar o sentido de aniquilamento
que me comunica a pergunta: por que escrevo?
Meus miolos haviam começado a ferver quando me chegou o livro de Primo
Levi L’autrui mestiere (do qual já falei nesta coluna), e vejo que um dos primeiros
capítulos se intitula – olha o acaso - Por que se escreve? Um texto provavelmente
nascido como resposta a uma pergunta similar. A pergunta, formulada de modo mais
impessoal (se escreve ao invés de você escreve) dava o direito a Levi de estender um
elenco raciocinado (com seu espírito equilibrado e onicompreensivo) das motivações
boas ou menos boas, que impulsionam as pessoas a escrever. Primeiro vinham as
razões que ele mais compartilhava; depois, pouco a pouco, aquelas sobre as quais
avançava reservas ou que sentia como estranhas.
As motivações tomadas em consideração por Primo Levi eram nove. Escreve-
se: 1) porque se sente um impulso ou necessidade para tal; 2) para divertir ou divertir-
se; 3) para ensinar qualquer coisa a alguém; 4) para melhorar o mundo; 5) para fazer
conhecer as próprias ideias (variante da precedente); 6) para liberar-se de uma
angústia; 7) para tornar-se famoso; 8) para tornar-se rico; 9) por hábito (motivação
deixada por último porque “a mais triste de todas”.
Com este elenco à disposição me pareceu que o meu trabalho teria sido muito
facilitado, porque eu tinha uma base da qual partir para uma reflexão metódica. Mas
não demorei para perceber que as dificuldades não eram em menor número: o que eu
podia dizer, dado que escrever me custa sempre um esforço, uma violência sobre mim
mesmo, e não me diverte de fato? (Mesmo se divertir a quem me lê, ou ao menos não
aborrecê-lo, seja o primeiro dever social de que me considero empenhado). Além do
mais não creio ter uma vocação pedagógica; duvido de quem tem a pretensão de
melhorar o mundo; duvido particularmente das minhas ideias, voltadas demais a
demonstrações erradas, etc. Em suma, responder a esta questão equivale a entrar em
uma crise depressiva.
Economizo outros resmungos para não contrariar ao imperativo social testado
anunciado, e passo imediatamente a expor as três motivações por meio das quais
comuniquei ao “Libération” quais as conclusões do meu exame de consciência.

Por que escrevo?

1 - Porque sou insatisfeito com aquilo que já escrevi e queria, de algum modo, corrigi-
lo, completá-lo, propor uma alternativa. Neste sentido, nunca houve uma “primeira
vez” na qual me coloquei a escrever. Escrever sempre foi buscar apagar algo já escrito
e colocar em seu lugar algo que ainda não sei se conseguirei escrever.

2 - Porque lendo X (um X antigo ou contemporâneo) me ocorre pensar: “Ah, como


me agradaria escrever como X! Pecado que isto esteja completamente além das
minhas possibilidades!”. Então procuro me imaginar nesta tarefa impossível, penso no
livro que não escreverei jamais, mas que me agradaria poder ler e pôr ao lado de
outros livros amados em uma prateleira ideal. E eis que já alguma palavra, alguma
frase se apresentam à minha mente... Desse momento em diante não estou mais
pensando em X, nem em algum outro modelo possível. É naquele livro que penso,
naquele que ainda não foi escrito, e que poderia ser o meu livro! Experimento
escrevê-lo...

3 - Para aprender alguma coisa que eu não sei. Não me refiro agora à arte da escritura,
mas ao resto: a um saber qualquer ou competência específica, ou mesmo àquele saber
mais geral que chamam “experiência da vida”. Não é o desejo de ensinar aos outros o
que sei ou acredito saber que me dá vontade de escrever, mas ao contrário, a
consciência dolorosa da minha incompetência. E o meu primeiro impulso seria
portanto de escrever para fingir uma competência que eu não tenho? Mas para estar
em condições de fingir, devo, de qualquer modo, acumular informações, noções,
observações, devo conseguir imaginar o lento acumular de uma experiência. E isso
posso fazer somente na página escrita, onde espero capturar ao menos algum traço de
um saber ou de uma sabedoria que na vida mal tenho roçado e rapidamente perdido.

Traduzir é o verdadeiro modo de ler um texto


Italo Calvino (Tradução de Andreia Guerini e Tânia Mara Moysés)

Entre os romances como entre os vinhos, existem os que viajam e os que não
viajam.
Uma coisa é tomar um vinho no local da sua produção e outra coisa é tomá-lo
a milhares de quilômetros de distância.
Viajar ou não em relação aos romances pode depender de questões de
conteúdo ou de forma, isto é, de linguagem.
Normalmente ouve-se dizer que os romances italianos lidos com mais prazer
pelos estrangeiros são os caracterizados demais pela localização, especialmente pelo
ambiente meridional e, de qualquer modo, os que descrevem lugares que se podem
visitar, e que celebram a vitalidade italiana segundo a imagem que se faz dela no
exterior.
Eu acredito que isso possa ter acontecido, mas hoje não ocorre mais. Primeiro,
porque um romance regional implica um conjunto de conhecimentos detalhados que o
leitor estrangeiro nem sempre consegue captar e, segundo, porque uma certa imagem
da Itália como país “exótico” já está distante da realidade e dos interesses do público.
Em suma, para que um livro atravesse as fronteiras é necessário que contenha
algumas razões de originalidade e de universalidade, isto é, exatamente o contrário da
confirmação de imagens conhecidas e do particularismo local.
E a linguagem tem uma importância máxima pois, para manter desperta a
atenção do leitor, é preciso que a voz que lhe fala tenha um certo tom, um certo
timbre, uma certa vivacidade. A opinião corrente é a de que se exporta melhor um
escritor que escreva em um tom neutro, pois dá menos problemas de tradução. Mas
acredito que essa ideia também seja superficial, porque uma escrita cinzenta pode ter
um valor somente se o sentido de monotonia que transmite tem um valor poético, isto
é, se é criação de uma monotonia muito pessoal, caso contrário ninguém se sente
estimulado a ler. A comunicação deve estabelecer-se através do tom pessoal do
escritor, e isso pode ocorrer também em um nível corrente, coloquial), uma
comunicação não diferente da linguagem do jornalismo, mais vivaz e brilhante; e
pode ser uma comunicação mais intensa, introvertida, complexa, como é própria da
expressão literária.
Em suma, para o tradutor os problemas a serem resolvidos nunca faltam nem
diminuem. Nos textos em que a comunicação é do tipo mais coloquial, se o tradutor
consegue captar o tom justo desde o início, pode continuar nessa tarefa com uma
desenvoltura que parece – que deve parecer – fácil. Mas traduzir nunca é fácil; há
casos em que as dificuldades são resolvidas espontaneamente, quase
inconscientemente, colocando-se em sintonia com o tom do autor. Porém, para os
textos estilisticamente mais complexos, com diversos níveis de linguagem que se
compensam mutuamente, as dificuldades devem ser resolvidas frase por frase,
seguindo o jogo do contraponto, as intenções conscientes ou as pulsões inconscientes
do autor. Traduzir é uma arte: a passagem de um texto literário, qualquer que seja o
seu valor, em uma outra língua, exige sempre algum tipo de milagre. Todos sabemos
que a poesia em versos é intraduzível por definição; mas a verdadeira literatura,
mesmo a em prosa, trabalha exatamente na margem intraduzível de cada língua. O
tradutor literário é aquele que se coloca inteiramente em jogo para traduzir o
intraduzível.
Quem escreve em uma língua minoritária como o italiano chega antes ou
depois à amarga constatação de que a sua possibilidade de comunicar se sustenta
sobre fios sutis como teias de aranha: basta mudar o som e a ordem e o ritmo das
palavras, e a comunicação falha. Quantas vezes, lendo a primeira versão da tradução
de um texto meu, que o tradutor me mostrava, sentia uma estranheza diante do que
lia: estava aí tudo o que eu havia escrito? Como tinha podido ser tão inexpressivo e
insípido? Depois, relendo o meu texto em italiano e confrontando-o com a tradução,
via que era até uma tradução fidelíssima. Mas no meu texto, uma palavra que era
usada com uma intenção irônica, apenas mencionada, a tradução não captava. Já uma
subordinada que no meu texto era sem valor, na tradução adquiria uma importância
injustificada e um peso desproporcional. Ainda, no meu texto, o significado de um
verbo era atenuado pela construção sintática da frase enquanto na tradução soava
como uma afirmação peremptória: em suma a tradução comunicava algo
completamente diferente daquilo que eu havia escrito.
E essas são coisas das quais, escrevendo, eu não me dera conta, e que eu
descobria apenas me relendo em função da tradução. Traduzir é o verdadeiro modo de
ler um texto. Acredito que isso tenha sido dito muitas vezes; posso acrescentar que,
para um autor, refletir sobre a tradução de seu próprio texto, discutir com o tradutor, é
o verdadeiro modo de ler a si mesmo, de entender bem o que escreveu e o porquê.
Estou falando sobre as traduções do italiano para o inglês em um congresso, e
devo esclarecer duas coisas. A primeira, o drama da tradução - como o descrevi - é
mais intenso quanto mais duas línguas são afins; já entre italiano e inglês a distância é
tal que traduzir quer dizer, em alguma medida, recriar e é possível salvar o espírito de
um texto quanto menos o tradutor se expõe à tentação de fazer da mesma um calco
literal. O estranhamento, de que falava, me ocorreu, mais frequentemente, lendo-me
em francês, já que as possibilidades de uma distorção oculta são contínuas; para não
falar do espanhol, que pode construir frases quase idênticas ao italiano e em que o
espírito é completamente oposto. Em inglês podem existir resultados tão diversos do
italiano que me ocorre não me reconhecer por nada, mas também efeitos felizes,
precisamente porque nascem de recursos linguísticos do inglês.
A segunda coisa, os problemas não são menores para as traduções do inglês
para o italiano, em suma, não gostaria que parecesse que apenas o italiano leva
consigo esta condenação de ser uma língua complicada e intraduzível; também a
aparente facilidade, rapidez, praticidade do inglês requer o dom particular que
somente o verdadeiro tradutor possui.
De qualquer língua e para qualquer língua que se traduza, é necessário não
apenas conhecer a língua mas também saber entrar em contato com o espírito da
língua, o espírito das duas línguas, saber como as duas línguas podem transmitir-se,
uma para a outra, a sua essência secreta. Eu tenho a sorte de ser traduzido por Bill
Weaver que possui esse espírito da língua em grau máximo.
Eu creio muito na colaboração do autor com o tradutor. Essa colaboração,
antes da revisão da tradução pelo autor, que pode acontecer apenas para um número
limitado de línguas em que o autor pode dar uma opinião, nasce das perguntas do
tradutor ao autor. Um tradutor que não tem dúvidas não pode ser um bom tradutor. O
meu primeiro parecer sobre a qualidade de um tradutor sou capaz de dar pelo tipo de
perguntas que me faz.
Além disso, acredito muito na função da editora, na colaboração entre editor e
tradutor. A tradução não é alguma coisa que se possa receber e mandar para a
impressão; o trabalho do editor é oculto, mas quando existe dá os seus frutos, e
quando não existe, como hoje acontece na grande maioria dos casos na Itália e é a
regra quase geral na França, é um desastre. Naturalmente podem existir casos em que
o editor estraga o trabalho bem feito do tradutor; mas eu acredito que o tradutor, por
mais competente que seja, ou melhor, justamente quando é competente, precisa que o
seu trabalho seja avaliado frase por frase por alguém que confronte texto original e
tradução e possa, nesse caso, discutir com ele. Bill Weaver pode dizer-lhes como
importa para ele trabalhar com uma grande editora como Helen Wolff, um nome que
ocupa um lugar importante na editoria literária, primeiro na Alemanha de Weimar,
depois nos Estados Unidos. Devo dizer que os dois países em que as traduções de
meus livros conseguiram marcar a sua presença na atualidade literária são os Estados
Unidos e a França, isto é, os dois países onde tenho a sorte de ter editores fora do
comum; falei de Helen Wolff que tem a tarefa mais fácil, enquanto trabalha com um
tradutor também fora do comum como Bill Weaver. Resta-me falar de François Wahl,
que, pelo contrário, teve que refazer de cima a baixo quase todas as traduções de meus
livros publicados na França pela Seuil, até que, na última, consegui fazê-lo colocar
também o seu nome. Seria justo que o seu nome também figurasse nas traduções
anteriores.
Há problemas que são comuns à arte de traduzir de qualquer língua e
problemas que são específicos ao traduzir autores italianos. É preciso partir do fato de
que os escritores italianos têm sempre um problema com a própria língua. Escrever
nunca é um ato natural; não tem quase nunca uma relação com a fala. Os estrangeiros
que convivem com italianos terão certamente notado uma particularidade da nossa
fala: não sabemos terminar as frases, deixamos sempre as frases pela metade. Talvez
os americanos não sejam muito sensíveis a isso, porque também nos Estados Unidos
se fala com frases incompletas, interrompidas, exclamações, expressões idiomáticas
sem um preciso conteúdo semântico. Mas se nos compararmos com os franceses que
são acostumados a começar as frases e a terminá-las, com os alemães que devem
sempre colocar o verbo no final, e também com os ingleses que geralmente constroem
as frases com grande propriedade, vemos que o italiano da fala corrente tende a
esvanecer-se continuamente no nada e, caso se devesse transcrevê-lo, dever-se-ia
fazer um uso contínuo de reticências. Ora, para escrever é preciso, ao contrário,
conduzir a frase até o fim, por isso a escrita requer um uso da linguagem
completamente diverso da fala do cotidiano. É preciso escrever frases completas que
queiram dizer alguma coisa, porque a isso o escritor não pode subtrair-se: deve
sempre dizer alguma coisa. Também os políticos terminam as frases, mas eles têm o
problema oposto, o de falar para não dizer, e é preciso reconhecer que a sua arte nesse
sentido é extraordinária. Também os intelectuais geralmente conseguem terminar as
frases, mas eles devem construir discursos completamente abstratos, que não toquem
nunca nada do real e que possam gerar outros discursos abstratos. Eis então qual é a
posição do escritor italiano: é escritor quem usa a língua italiana em um modo
completamente diferente da dos políticos, completamente diferente da dos
intelectuais, mas não pode recorrer à fala corrente porque esse tende a perder-se no
inarticulado.
Por isso o escritor italiano vive sempre ou quase sempre em um estado de
neurose linguística. Deve inventar para si mesmo a linguagem em que escrever, antes
de inventar as coisas a escrever. Na Itália, a relação com a palavra é essencial não só
para o poeta, mas também para o escritor em prosa. Mais do que outras grandes
literaturas modernas, a literatura italiana teve e tem seu centro de gravidade na poesia.
Como o poeta, o escritor de prosa italiano tem uma atenção obsessiva pela palavra em
particular, e pelo “verso” contido na sua prosa. Se não tem essa atenção em um nível
consciente, quer dizer que escreve como em um raptus, como é próprio da poesia
instintiva ou automática.
Essa percepção problemática da linguagem é um elemento essencial do
espírito do nosso tempo. Por isso a literatura italiana é um elemento necessário à
grande literatura moderna e merece ser lida e traduzida. Pois o escritor italiano, ao
contrário do que se acredita, não é nunca eufórico, alegre, solar. Na maior parte dos
casos, tem um temperamento depressivo, mas com um espírito irônico. Os escritores
italianos podem ensinar somente isto: a enfrentar a depressão, mal do nosso tempo,
condição comum à humanidade do nosso tempo, defendendo-se com a ironia, com a
transfiguração grotesca do espetáculo do mundo. Existem também os escritores que
parecem transbordantes de vitalidade, mas é uma vitalidade com fundo triste, obscuro,
dominada pela sensação da morte.
É por isso que, conquanto seja difícil traduzir os italianos, vale a pena fazê-lo:
porque vivemos com o máximo de alegria possível o desespero universal. Se o mundo
é sempre mais insensato, a única coisa que podemos procurar fazer é dar-lhe um
estilo.

Correspondência com Angelo Guglielmi a propósito do Desafio ao labirinto (1963)


(Tradução ainda a ser finalizada)

Caro Guglielmi,
Li o seu ensaio para “Menabò 6”. É muito claro e bem argumentado e dele
sobressai uma imagem muito coerente da situação. Assim como é dotado de uma
lógica e coerência o quadro da situação que traçam os hegeliano-lukácsianos, os quais
chegam às mesmas conclusões que você: a literatura e a arte modernas são a negação
da história (do humanismo), da projeção [progettazione] racional. Que eles deem ao
fenômeno um sinal negativo e você, um sinal positivo, não os diferencia muito: tanto
eles quanto você chegam a um ponto em que só há uma coisa a declarar: o fim da
literatura. Para os hegeliano-lukácsianos, dado que os meios de expressão estão todos
contaminados pela decadência, não se vê como se pode implementar uma saída da
decadência (que não seja anti-histórico encastelamento sobre posições classicísticas).
Para você, dado que a tarefa da arte é desmascarar a falsidade de todos os significados
e de todas as finalidades históricas, sem substituí-los por novos, reduzir a zero a
concepção do mundo, a um certo ponto, reduzido a zero todo o redutível, faltará o
impulso necessário para o ato de escrever, o porquê, a polêmica com aquele outro da
poesia: que é sempre a condição dialética para que a poesia exista.
E não é dito que vocês não tenham suas pertinentes razões de diagnosticar
este fim da literatura. Mas não é que eu seja muito tocado por isto. Para mim, todas as
reduções a zero me interessam e estimulam a ver o que existirá depois do zero, isto é,
como retomará o discurso, isto é, como a totalidade da cultura, que terremotos e
rachaduras no solo tem sofrido e através deles tem vivido até agora, conseguirá
superar mais este fim (sequer tão grande, então, em confronto com outros) isto é,
como conseguirá restituir verdade a velhos discursos que podem retornar bons.
Você quer me convencer – Beckett e Robbe-Grillet na mão – que a realidade
não tem sentido? Eu o sigo, muito contente, até as últimas consequências. Mas o meu
contentamento é porque já penso que, chegado ao extremo deste arranhão da
subjetividade, a manhã seguinte poderá me colocar – neste universo completamente
objetivo e assemântico - a re-inventar uma perspectiva de significados, com a mesma
jocosa aderência às coisas do homem pré-histórico que, de frente ao caos de sombras
e sensações que lhe reluzia diante, pouco a pouco conseguia distinguir e definir: este é
um mamute, esta é a minha mulher, este é um figo da Índia, e dava início assim ao
processo irreversível da história.
Receba uma saudação cordial.
I.C.

Caro Calvino,
Agradeço-lhe pela carta e pelo interesse que demonstrou pelo meu ensaio.
Não tenho nada a opor às suas contrargumentações, exceto por um ponto
essencial: e, isto é, que eu também estaria interessado em um discurso
“significativo”, em uma literatura semântica e também penso que depois de ter
reduzido o mundo a zero será preciso recomeçar desde cima com um discurso novo.
O que contesto é que hoje seja possível estabelecer este discurso sem terminar por
pronunciar um discurso falso ou, de todo modo, não mais verdadeiro. E que isto seja
o perigo você mesmo me dá a prova quando na carta você se diz certo de que mesmo
desta vez a “cultura... conseguirá restituir verdade a velhos discursos que podem
retornar bons”. Agora o problema não é, ou melhor, não se resolve, pondo ao
contrário um vestido já liso ou refazendo o motor da máquina. Até quando nos
comportaremos como se o problema fosse simplesmente de reeducação
[aggiornamento], multiplicaremos os equívocos, introduziremos sempre novas
falsidades e assim alongaremos ao infinito a vida (a necessidade) da cultura do grau
zero ou desmistificante. O primeiro passo para uma nova perspectiva de significados
(a qual aliás não é a literatura ou somente a literatura que pode implantar, mas antes
ainda a filosofia, a moral, a política etc.) é liberar o campo das velhas perspectivas
não mais vitais. Os quais, se por outro lado nos limitamos a adiar, não fazem senão
se camuflar na sua carga negativa e falsificante.
Há ainda outros pontos da sua carta sobre os quais eu teria alguma coisa a
dizer. Por exemplo, não vejo exatamente como você pode dizer que seja tão
irrelevante a diferença entre as minhas posições e a dos hegeliano-lukacsianos, se
graças a esta diferença podemos expressar valorizações diametralmente opostas
sobre posições culturais e autores específicos, se graças a esta diferença posso
indicar e acreditar em uma possibilidade presente para a literatura enquanto os
hegeliano-lukacsianos a negam ou se jamais se arriscam a prevê-la, você percebe de
repente que é um convite de retorno ao passado, a formas e pensamentos mortos.
O que é irrelevante é o fato de que existam coincidências de descrição
(admitido que existam): pontos de ditado em comum podem surgir mesmo entre uma
carta de John Profumo a Christine Keeler e uma carta de Pascal à irmã.
Muitas saudações cordiais do seu
A. G.

É claro que poderíamos continuar a discutir assim por mais um tanto sem
dar passos à frente. Porque são justamente as razões de fundo que nos dividem, o
modo de considerar certos posicionamentos chave da cultura do nosso século. Para
mim, se há uma velha ladainha que não se pode retomar se não em função crítica ou
irônica é aquela do fracasso do racionalismo e do positivismo; ouço-a sendo repetida
desde quando era rapaz; faz uma coisa só com a atmosfera das nossas leituras de antes
da guerra. Crescemos numa época em que de “valores” seguros não havia senão esse
“fracasso”: e idealismo, e bergsonismo, e física moderna, e adesão à realidade política
não diziam senão isso, sempre a mesma música da parte das mais veneráveis chatices.
(Mesmo a poesia de então não dizia outra coisa que isso, mas para nossa sorte o dizia
em um modo diferente, ou seja, em um mundo que nos servia de outro modo, como é
frequentemente da poesia). A saída de uma condição de minoria veio para nós quando
tínhamos compreendido que fracassos da razão continuariam a existir talvez um a
cada dez minutos, mas o belo é ver a cada vez qual ponte você é capaz de construir
para passar para o outro lado e continuar o seu caminho. Apenas com essa atitude se
poderá ainda conseguir ver novas as coisas que serão novas; com o outro se
continuará a repetir sempre o mesmo discurso como um realejo, e ver pardos todos os
gatos.
Disto deriva que a figura ideal de leitor que pressupúnhamos para a literatura é
muito diferente para Guglielmi e para mim.
Como leitores ideais para a literatura eu penso nas únicas pessoas que para
mim contam, isto é, naquelas empenhadas em projetos para o mundo futuro (isto é,
aquelas para as quais conta a recíproca influência entre planejamento poético e
planejamento político ou técnico ou científico, etc) e mais precisamente empenhadas
em uma racionalização do real (à qual vale a pena dedicar-se justamente porque o real
não é por si mesmo racional) e quero que estas pessoas se valham dessa particular
inteligência do mundo que a literatura e somente a literatura pode dar. O discurso de
Guglielmi pressupõe, ao contrário, o leitor que do momento de fracasso da
racionalidade (momento inevitável e talvez necessário em todo processo de
racionalização) se compraz, porque assim encontra um álibi, uma vacância, e acredita
que pode esperar em paz o fim de todos os velhos valores, e consequentemente a
revelação de valores novos, (espera vã, porque é somente na busca contínua de
valores que a crosta dos valores velhos se estraçalha - frequentemente contra as
mesmas intenções daquele que busca -, enquanto que para quem acredita poder
facilmente demais se declarar livre dos valores de hoje, subitamente ele se espessa
contra a crosta dos valores de ontem, e quem se acredita em vacância da história
subitamente se encontra novamente a girar no carrossel de uma história sobretudo
mais antiquada e previsível).
Outra diferença de fundo está naquilo que se busca na literatura: há quem
busque alguma coisa que antes não sabia, e há quem busque a confirmação das ideias
que já tem. O primeiro valor é aquele que vulgarmente é chamado de “a poesia”; o
segundo é o caldeirão dos velhos professores. Se digo que a estética de Guglielmi se
assemelha àquela dos hegeliano-lukácsianos (certamente que chegam a resultados
opostos; bela descoberta! Se não que gosto haveria em dizer que se assemelham?) é
que, uma e outra, são estéticas de professores, porque ambas buscam na literatura as
ilustrações, os exemplos, de um discurso feito em outra sede.
(A polêmica contra os “professores” pertence ao outro ontem? Não: é
polêmica de hoje, e será ainda mais de amanhã, se não se começar a perceber o perigo
da neo-professoralidade dominante).
O discurso crítico geral que tentei mais vezes em sucessivos esboços tem
somente este fio: (também) a poesia do negativo é sempre (não somente recuperável
mas) necessária para um planejamento positivo do mundo. Esta é a minha noção de
“empenho”, diferente – me parece – daquela mais divulgada à qual Guglielmi me
assimila. Se ele tivesse compreendido isto, teria ficado também claro para ele que
quando, ao final daquele meu ensaio, falo de uma literatura do desafio ao labirinto e
uma de rendição ao labirinto, não faço (como alhures) uma classificação de autores,
uns de uma parte, outros de outra. Pensava, acima de tudo, em duas essências a –
como escrevi – identificar e distinguir no interior dos vários autores e das várias
obras. Em suma, quero que o desespero de Beckett sirva aos não desesperados. Tanto,
os desesperados – ou seja, os obedientes cidadãos do caos – não sabem o que fazer
com isso.

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