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A NARRATIVA-IMPÉRIO DE AGUSTINA BESSA-LUÍS

Monica Figueiredo (mnfigueiredo@hotmail.com) 1

Para Isabel,

por abrir as portas,

antes mesmo de eu saber que batia.

Começo por uma citação que também me serve de epígrafe:

(...) para compreender-se o efeito que aquilo me causou, vocês


precisam saber como cheguei lá, o que vi, como subi aquele rio
até o lugar onde avistei, pela primeira vez, o pobre sujeito. Foi
um ponto extremo da navegação e o ponto culminante da
minha experiência. De alguma forma, aquilo pareceu lançar
uma espécie de luz sobre tudo o que me cercava – e sobre os
meus pensamentos. (CONRAD, 2008, p.16.)

1 Professora de Literatura Portuguesa nos cursos de Graduação e de Pós-Graduação da Faculdade de


Letras/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq.
O trecho é do livro de Joseph Conrad, O coração das trevas, publicado pela
primeira vez em de 1899 2. A conhecida narrativa conta a história do aventureiro inglês
Marlow, contratado por uma companhia de exploração de marfim para ser o capitão de
um barco, numa travessia ao longo do rio Congo – na África equatorial -, e liderar a
expedição de resgate de um famoso contrabandista e lendário caçador de elefantes. O
homem a ser resgatado é Kurtz, personagem que encarna o tipo oportunista, que se vale
da política neocolonialista para enriquecer, mesmo que isso signifique ultrapassar as
barreiras do escrúpulo e adquirir uma segunda pele desumanizada e violenta. Marlow –
o complexo narrador do livro – constrói para si mesmo, e também para o leitor, um
imaginário grandioso, com o qual envolve a figura de Kurtz. Esse imaginário se
intensifica conforme se aproxima o momento de conhecer(mos) o lendário caçador de
elefantes. Para surpresa do leitor – e não menos do próprio narrador -, eis que somos
postos diante de uma figura deseroicizada, enlouquecida e fragilizada, incapaz de
resistir à viagem de regresso, que o traria de volta a uma Europa pretensamente
hegemônica e vitoriosamente burguesa. Kurtz é vencido pelas trevas de uma África
incivilizada de onde não consegue partir.

Cabe aqui destacar que O coração das trevas foi escrito num momento
histórico específico – o auge da aventura neocolonial oitocentista –, criado por um
escritor que viveu ele mesmo, uma experiência muito próxima daquela narrada em sua

2 O texto surgiu neste ano, publicado em três partes na Blackwood’s Magazine, para ganhar sua edição
em livro apenas em 1902.
mais famosa e provocadora ficção. Joseph Conrad também foi capitão de um barco a
vapor, que viajou pelo rio Congo durante seis meses em 1890, contratado por uma
companhia belga de exploração colonial. As marcas desta experiência biográfica
encontram-se espalhadas por sua obra e não seria falso afirmar que, metaforicamente,
este livro é um exercício de busca de compreensão, uma viagem de aquisição de
conhecimento que tenta chegar ao “coração das trevas” através de uma reflexão sobre o
tempo referencialmente histórico. Por outras palavras, creio que Joseph Conrad dá vida
a Marlow, ficcionalizando aquilo que para ele foi História vivida.

Li algures numa reportagem, que Agustina Bessa-Luís desde muito cedo era
apaixonada pelo livro de Joseph Conrad. Na maturidade, a já escritora transforma o
romance numa “obstinação”, usando-o para tentar “perceber o que subjaz ao mundo dos
vivos através da leitura e interpretações várias de O coração das trevas” (LEME, 2009,
p.45). Distanciada temporalmente da experiência colonialista do século XIX, longe de
ser uma escritora de narrativa de aventuras, intrigou-me entender por que o livro de
Conrad exercia tamanha sedução na experiente leitora que sempre foi Agustina. Na
tentativa de compreender o inusitado fascínio, pensei em algumas hipóteses. O que
primeiramente me ocorreu foi talvez a suposição mais óbvia: a narrativa de Conrad
parte de uma realidade histórica precisa: a experiência neocolonial oitocentista. Não se
3
pode desprezar o encanto que os romances de fundo histórico sempre despertaram
numa autora cuja obra reúne títulos como as Advinhas de Pedro e Inês, Santo
António e Sebastião José para só citar alguns exemplos.

3 Emprego o termo em seu sentido mais amplo, não o restringindo ao modelo de romance histórico
produzido no século XIX pela escola romântica.
Também me poderia valer daquilo que defende boa parte da crítica quando
afirma a importância da experiência da travessia na obra da autora de A Sibila –
principalmente as que acontecem por mares e rios -, o que de perto a aproxima do autor
de O coração das trevas, que igualmente fez dos percursos um tema obsessivo. Por
detrás da insistência das imagens de viagem/travessia, existe a dolorosa premência do
tempo unindo Joseph Conrad a Agustina Bessa-Luís. Um tempo que ultrapassa os
limites da cronologia, para se firmar como experiência de angústia, da qual as
personagens tentam em vão se libertar para, vencidas, encontrarem a morte. Vítimas de
uma mesma crise, não há como negar que a inexorabilidade do tempo foi vivida de
forma dramática tanto pelo homem do século XIX, atarantado pelas teorias
evolucionistas, quanto pelo do século XX, encurralado pela relatividade de um tempo
que não pararia mais de escoar. De Darwin a Einstein, o tempo deixou de ser divino e
tornou-se dolorosamente humano.

Caberia lembrar que há em O coração das trevas, uma clara aproximação


biográfica entre o narrador Marlow e o próprio Joseph Conrad, recurso que de perto
apontaria para uma valorização da literatura como lugar da experiência do sujeito, como
espaço de registro enviesado de testemunho. Ainda que usando a narração em terceira
pessoa como um poroso disfarce, não se pode negar que a escrita autoral/testemunhal
ganhou forma no trabalho narrativo de Agustina Bessa-Luís. Na verdade, valendo-se da
condição de contadora de histórias dada a digressões surpreendentes, a escritora
manteve seu “compromisso com uma primeira pessoa testemunhal”, assumindo-se
“despudoradamente através de um presente verbal” (SEIXO, 1987, p.58), firmando-se
como presença constante em seus livros. Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco não
poderiam imaginar herdeira mais competente!

Outro ponto a ser levado em consideração para se explicar o fascínio de


Agustina Bessa-Luís é a diversidade de interpretações que o livro de Joseph Conrad é
capaz de suscitar. Se muitos acreditam que a narrativa apenas propagou a visão
preconceituosa que se tinha de tudo aquilo que não era a cultura eurocêntrica,
repudiando-o por ser exemplo de narrativa propositadamente imperialista; outros tantos
viram na obra o desejo genuíno da denúncia, que tentava por abaixo as supostas boas
intenções civilizatórias, oriundas de uma Europa branca, mecanizada e burguesa. Não
creio que o livro de Conrad mereça ser chamado de exemplo de discurso imperialista.
Na verdade, acho mesmo que ele se inscreve na contramão do romance de aventuras
típico (erguido por certa vertente da cultura burguesa oitocentista), uma vez que acaba
por desvelar aquilo que se esconde por detrás da aparência das coisas, denunciando a
falácia das supostas heroicidades e o engodo da justeza das razões expansionistas. Na
desgraça insana de Kurtz e no aprendizado a custo conseguido por Marlow fica provado
que aventura neocolonialista não guardava em si uma dimensão tão épica assim.
Procedimento como este não poderia ser mais caro à narrativa de uma escritora como
Agustina, afinal, o desvelar da “segunda pele”, ou o “cair das máscaras” são
circunstâncias recorrentes em sua ficção, o que leva Dalva Calvão a afirmar:
As trajetórias existenciais de várias personagens parecem
possuir um “caráter transitório” e suas personalidades escapam
constantemente à intenção analítica do leitor. (...) De forma
semelhante, diversas outras personagens mudam de pele,
assumem diferentes e inesperados papéis: tudo se mostra como
que em contínua representação e parece sujeito a múltiplas
interpretações, tudo se configura como se todos estivessem
num palco, usando máscaras e figurinos, a aparentar
temporariamente personagens diferentes de si próprios (2014,
p. 37).

Sugerida em negativo desde o título, há no livro de Joseph Conrad a ideia da


escrita como instrumento luminoso, como fonte de claridade, ou melhor, como recurso
de esclarecimento, capaz de iluminar as trevas que encobrem a profundidade da
existência humana. Por outras palavras, é preciso que Marlow recupere a sua travessia
(= memória) através do discurso para que toda a aventura de uma vida possa ganhar um
4
assustador sentido. Eduardo Lourenço, em ensaios já consagrados sobre a obra de
Agustina, havia atentado para o caráter luminoso da escrita da autora de A Sibila,
destacando o poder revelador de uma voz narrativa que percorre as “relações humanas”
como quem enfrenta um “labirinto” (1993, p.170), fazendo do “próprio romance” “o

4 Refiro-me a “Agustina Bessa-Luís ou o neo-romantismo” e a “Des-concertante Agustina (A propósito


de Os Quatros Rios)”. In: O canto do signo. Existência e Literatura (1957-1993).
lugar de encontro e de auto-revelação” (1993, p. 160). Para o crítico, a força dessa voz
narrativa provém de um eco de presença autoral:

Voluntariosa, autoritária mesmo, a voz da autora preside


soberana a esse des-mascaramento interminável que são as
suas evocações das pessoas e seus mundos, sempre iluminados
de maneira a que não nos seja possível escapar ao seu “lado-
outro”, ao seu peso insólito e fascinante. 5 (1993, p. 167)

Levando em consideração cada uma das hipóteses levantadas, creio mesmo que
um pouco de tudo isto pode explicar o fascínio de Agustina Bessa-Luís pel’O coração
das trevas. Mas se Agustina leitora pode ter sua predileção justificada por minhas vãs
especulações, gostaria de avançar por terreno mais seguro e confrontar agora o livro de
Conrad – cujo título, sem dúvida nenhuma, Agustina deve invejar para si –, e a obra da
autora de A Sibila. Desejo mesmo é friccionar o texto de Conrad com o de Agustina
Bessa-Luís, porque aqui a ideia de atrito me é fundamental.

5 Os grifos são meus.


Começo por lembrar que a narrativa de Conrad veio para marcar lugar para além
da literatura de seu tempo, sendo – segundo seus especialistas – um dos títulos mais
reeditados, traduzidos e estudados ao longo de todo o século XX. Como já se disse, o
livro tanto foi chamado de narrativa imperialista, quanto foi alçado a modelo de
discurso literário com preocupações críticas, muitas vezes sendo entendido como
exemplo de desconstrução da ideologia imperialista, ao encenar os desmandos dos
principais países europeus, perversos donos de um mundo transformado em tabuleiro
pela violenta política neocolonialista. Edward Said, ao estudar as relações estabelecidas
entre a cultura e o imperialismo, não se pode furtar de analisar O coração das trevas,
considerando-o um típico romance imperialista. No entanto, o ensaísta acaba por
justificá-lo, através do argumento de uma certa fatalidade que impediria que, naquele
momento histórico específico, o livro de Conrad pudesse ser outra coisa que não fosse
um exemplo de discurso a serviço da ideologia neocolonialista. Cito Said:

Com isso quero dizer que Heart of Darkness é uma obra que
funciona tão bem porque sua política e sua estética são, por
assim dizer, imperialistas, as quais, nos últimos anos do século
XIX, pareciam ser uma política e uma estética, e até uma
epistemologia, inevitáveis e inescapáveis. (1999, p. 56)
Creio que também Edward Said foi vítima de seu próprio argumento, uma vez
que pareceu esquecer - ou insistiu em desconsiderar -, inúmeras passagens do romance
em que comprovadamente aparecem as críticas tecidas à dilapidadora presença
estrangeira no Congo belga. No fim do século XX, com a vitória do neoliberalismo
consolidada e o avanço irrefutável da globalização, Edward Said, na ânsia de condenar
a existência do discurso imperialista propagandeado por muitas narrativas oitocentistas,
transforma O coração das trevas num exemplo equivocado de narrativa a serviço de
um poder. Mudam-se os tempos, mas nem sempre, mudam-se as vontades!

Se a meu ver, Edward Said – influenciado por seu momento histórico - carrega
nas tintas ao analisar o romance de Conrad, inteligentemente, ele se redime ao formular
o raciocínio que me serve de viga para defender a narrativa-império de Agustina: “o
poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito
importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões
entre ambas” (1995, p. 13). Brincando agora com a ideia de império e transformando-o
numa alegoria ao gosto benjaminiano 6, gostaria de pensar como as narrativas de
Agustina Bessa-Luís criaram, a seu modo, um império literário marcadamente
soberano. Eduardo Lourenço vem ajudar a construção desta minha alegoria, ao analisar
o aspecto inusitado da obra de Agustina, surgida em meio ao árido cenário ideológico
em que se debatia a estética neorrealista nos anos 50, firmando-se “soberanamente”
como “um mundo romanesco” desconcertantemente novo:

6 Para tanto, gostaria de lembrar que uso a palavra “império”, libertando-a de seu sentido original,
descontextualizando-a para (re)contextualizá-la sob outra perspectiva, atribuindo-lhe assim um sentido
Bessa-Luís, porém, começou noutro ponto. (...) Celebremos
esse acontecimento cujo significado cultural mais profundo e
decisivo foi, acaso, o de ter de novo imposto um mundo
romanesco, insólito, veemente, estritamente pessoal,
desarmante e tão profuso e rico, verdadeira floresta da
memória, tão povoada e imprevisível como a vida, onde nada é
esquecido e tudo transfigurado, mundo grave e inesquecível
soberanamente indiferente à querela literária e ideológica que
durante quinze anos paralisara em grande medida a
imaginação nacional. (1994, p. 162)

A este “mundo romanesco, insólito, veemente, estritamente pessoal, desarmante


e tão profuso e rico” não faltou cenário e não se pouparam atores. A galeria de
personagens de Agustina é composta por uma variedade incrível de possibilidades,
agrupando desde reis, nobres, religiosos, santos, até bruxas, burgueses, profissionais
liberais, escritores, gente do povo... Enfim, todos são heróis falhados, ou melhor, todos
fazem parte duma humanidade marcada pela heroicidade marginal e desviante. Há em

arbitrário – como bem o quis Walter Benjamin –, que pode ser entendido aqui como um universo
autônomo, ou mundo soberano, arquitetado pelas linhas da ficção de Agustina Bessa-Luís. .
sua obra um fascínio explícito pelos que são capazes de atos dúbios, por todo aquele que
não pode ser julgado como honrosamente valoroso ou desgraçadamente desprezível.
Suas personagens estão longe de se submeterem a julgamentos unilaterais! Marcados
por um maior ou menor descompasso em relação ao status quo, as personagens de
Agustina Bessa-Luís são as habitantes de um império literário construído por um desejo
político, concretizado num exercício ético, que artisticamente discutiu até onde iriam os
seus limites. Não se pode esquecer que, depois de Camilo Castelo Branco, é Agustina
aquela que faz com que os olhos do leitor português deixem Lisboa rumo à paisagem
nortenha, promovendo uma mudança significativa na geografia literária do Portugal da
primeira metade do século XX. Do mesmo modo, há de se levar em consideração o
importante número de traduções conseguidas pela sua obra que, vencendo um mercado
tão obsessivamente restrito, fez chegar a literatura portuguesa à Alemanha; Dinamarca;
Espanha; França; Itália; Romênia e Grécia. Se os limites foram alargados e as fronteiras
redefinidas, isto só foi possível porque Agustina Bessa-Luís, partindo da criação de um
registro particularíssimo, ousou refletir sobre temas universais, filiando-se a um grupo
seleto de escritores que sempre acreditou que a grande aventura se escondia na própria
condição humana. Por isso, na ficção da autora de A Sibila, “como em Dostoiévski e
Proust, o ser humano surge dotado de misteriosos, inesperados poderes ocultos, que se
manifestam nas circunstâncias mais singulares, desencadeando um tempo imenso
contido num instante de revelação, de epifania” (MACHADO, 2014, p. 45).

Para fora das escolas literárias e a caminho de uma literatura orgulhosamente


assinada por seu nome, a certeza da posteridade de seu território literário talvez
explique a aversão ao efêmero que, para Agustina Bessa-Luís, é uma forma velada de
enfraquecer a memória que mantém a humanidade viva. Essa rejeição pelas formas
transitórias é assumida pela autora numa entrevista: “É verdade. Não gosto [do
efêmero]. Embora ele viva permanentemente com a nossa vida inteira... Repare, eu não
gosto de objetos que não duram para sempre... Nunca seria uma colecionadora de
bibelots, que exigem muito cuidado para não partirem” (VIEGAS, 1990, p.12). Para se
entender como a obra de Agustina Bessa-Luís perdurou para além do efêmero, talvez
seja preciso voltar a Platão quando, na sua Carta VII, aproxima a aquisição do
conhecimento do ato de fricção da madeira, movimento capaz de gerar o fogo. O fogo
é, pois, o resultado do embate violento mas necessário, entre duas superfícies ou, se se
quiser, do enfrentamento entre dois ou mais argumentos. Partindo do conceito
platônico, acredito que o fogo/conhecimento pode ser prazerosamente produzido
através da fricção de vários discursos. Tomando de empréstimo as palavras de Leyla
Perrone-Moisés, creio que:

(...) a literatura se produz num constante diálogo de textos, por


retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da
literatura; cada nova obra é uma continuação, por
consentimento ou contestação, das obras anteriores, dos
gêneros e temas já existentes. Escrever é, pois, dialogar com a
literatura anterior e com a contemporânea. (PERRONE-
MOISÉS, 1990, p. 94)
No caso da escrita de Agustina Bessa-Luís (ultrapassando o civilizado processo
de diálogo, para se firmar como um bem acabado exemplo de apropriação), acho que se
dá aquilo que o nosso mais excêntrico modernista Oswald de Andrade chamou de
atitude antropofágica. A antropofagia se constitui basicamente naquilo que o autor de
Serafim Ponte Grande denominou de desejo do outro, ou melhor, de receptividade
para o que é alheio, buscando assim a devoração, ou a absorção da alteridade.
Entretanto, a devoração proposta – contrariamente ao que muitos pensam -, é um
movimento de absorção crítica. Em seu Manifesto Antropófago de 1928 7, Oswald de
Andrade explica que os índios brasileiros não devoravam qualquer um de qualquer
modo. Na verdade, os candidatos à devoração, antes de serem ingeridos, tinham de
provar determinadas qualidades, uma vez que nossos índios acreditavam que, via
antropofagia, se conseguia adquirir as qualidades dos devorados. Portanto, há na
devoração antropofágica uma seleção, uma escolha muito próxima do que acontece no
processo de recorte/citação sobre o qual se debruça o exercício da intertextualidade.

Contudo, insisto na peculiaridade: mais do que requerer, chamar, ou convocar


outros textos – práticas civilizadas do exercício intertextual -, a intenção antropofágica é
devorar o outro, alimentar-se dele e criar um novo, porque (re)novado pelo processo de
digestão. Muito próxima do sentido antropofágico defendido pelos modernistas
brasileiros, Agustina Bessa-Luís foi uma competente canibal, pois construiu a sua obra
a partir da devoração de uma cultura ampla e erudita, erguendo assim um império
literário de todo inultrapassável. Interessante seria elencar as variadas metáforas

7 In: TELES, Gilberto Mendonça - Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e


crítica dos principais manifestos vanguardistas, 1976.
utilizadas pelos críticos para definir a especificidade discursiva criada pela ficção de
Agustina, todas comparações que partem de objetos concretos marcados pela
complexidade, multiplicidade e desdobramento. Dona de uma refinada cultura e
conhecedora da História como poucos, a obra de Agustina foi reiteradamente
aproximada de imagens como “rosácea”, “tapeçaria”, “labirinto”, “mosaico”,
“caleidoscópio”, “floresta”, ou mesmo de “um quadro de Rembrandt”. Estas
aproximações comparativas tentam dar conta da presença constante do fragmento, dos
fios entrelaçados, do cromatismo inebriante, do desfiar de aforismos, dos
desdobramentos surpreendentes, da aposta na união de elementos díspares e de uma
irreverente sinestesia que parecem servir de base ao trabalho narrativo de Agustina.

Como competente canibal, não seria errado afirmar que a História foi um dos
corpos que mais de perto despertaram o apetite literário de Agustina Bessa-Luís. A
História, recriada pelas linhas de sua ficção, produz um refinado e renovado texto que
não abre mão de ser exemplo declarado de literatura, nascida do desejo de chegar ao
“coração das trevas” dos corpos históricos devorados por seu discurso ficcional, quer
assumidamente romanesco, quer escamoteado pela dúbia condição de “biografia”. Foi
assim com Pedro e Inês, com Uriel da Costa, com Santo Antônio, com o Marquês de
8
Pombal, com Florbela Espanca e, para meu desfrute pessoal, foi assim com Camilo
Castelo Branco. Na tentativa de atingir as entranhas de uma biografia que, por si só já se
constituía como provável ficção, Agustina Bessa-Luís devora a obra do autor de Amor

8 Refiro-me a: Advinhas de Pedro e Inês (1983); Um bicho da terra (1984); Santo António (1979);
Sebastião José (1981); Florbela Espanca (1979), respectivamente. Ressalto que a lista contempla
de Perdição e, antropofagicamente, nos devolve como produto de sua digestão o
desarmante Fanny Owen 9.

Não tenho a pretensão de muito acrescentar ao que já se escreveu sobre este


livro. De todo modo, para além do século XIX e do próprio Camilo Castelo Branco,
Fanny Owen me importa como exemplo do desdobramento antropofágico feito pela
escrita de Agustina Bessa-Luís. Obedecendo quase ao pé da letra às orientações do
manifesto modernista de 1928, a autora de A Sibila não esconde que este seu livro
nasceu de seu desejo de apropriação do alheio. Em seu prefácio, afirma a escritora:

apenas alguns dos vários títulos que se poderiam elencar.

9 Para as citações do romance, utilizarei a abreviação FO, seguida do ano de publicação (1997), e do
número da página entre parênteses.
Cada livro é uma peregrinação 10; não precisa de passaporte e
aviso que o distinga e lhe assegure hospitalidade. Mas este tem
umas contas a prestar, porque exactamente é um romance
conduzido até mim através duma ideia que não me ocorreu a
mim. Foi o caso de me terem pedido os diálogos para um filme
cujo assunto seria Fanny Owen. Para escrever os diálogos tive
que conhecer as circunstâncias que os inspirassem; e a história
que os comporta. Assim nasceu o livro e o escrevi. Pareceu-me
necessário e útil trazer Camilo Castelo Branco à luz da nossa
experiência humana sem o traduzir na opinião de escritor que é
a minha. Por isso usei a colagem, e quase todas as suas falas
são as autênticas que ele escreveu, em novelas, nos dispersos e
nas folhas em que anotava os seus pensamentos. Também
muitas palavras de Fanny e de José Augusto se podem entender
como ouvidas directamente da boca dos próprios em suas
vidas. Em parte, porque as deixassem assim escritas nos diários
íntimos; e também porque Camilo as fixou nos livros em que
eles pousaram como personagens, ainda carregados da
memória apaixonada que imortaliza tudo aquilo em que ele
toca. (FO, 1997, prefácio).

Se acreditarmos no prefácio, Agustina não se preocupa em esconder quais textos


serviram de iguaria à sua devoração: os diários deixados pelos sujeitos históricos Fanny
Owen e José Augusto, e as narrativas ficcionais de Camilo Castelo Branco: No Bom
Jesus do Monte (1864) e Duas horas de leitura (1857). No entanto, usando a sua voz

10 Retomando o que já foi dito, cabe destacar que a ideia de travessia/percurso reaparece aqui, agora
avalizada pela instância autoral.
autoral, ela faz questão de garantir a autonomia destas outras autorias, ao assegurar que
o Camilo Castelo Branco que ali se apresenta não será por ela “traduzido”; do mesmo
modo que as “palavras” de Fanny e de José Augusto serão “ouvidas directamente da
boca dos próprios”. Trabalho de persuasão digno de nota, que deseja estabelecer com o
leitor um pacto de veracidade irrefutável, recurso que só poderia partir de uma escritora
que mastigou cuidadosamente as linhas romanescas de Camilo! Não se engane o
crédulo leitor: absorvidas estas alteridades, Agustina promove o desdobramento destes
discursos que resultam no seu, e agora tão seu, Fanny Owen.

Como se pode depreender, o processo antropofágico não é facilmente


interrompido, afinal ele se dá em movimento de espiral, garantindo que o comedor de
hoje facilmente se torne a comida de amanhã. Percorrendo um caminho espiralado, o
romance de Agustina também é devorado pela câmera de Manoel de Oliveira, dando
origem ao filme de Francisca (1981); e a um simulacro de ópera, com texto assinado
11
pela própria Agustina – Três mulheres com máscara de ferro . Neste “ensaio”
operístico assiste-se à devoração da obra pela própria autora, que põe em cena três de
suas personagens mais marcantes: a Quina de A Sibila, a Bovarinho de Vale Abraão e,
é claro, Fanny Owen.

Como se vê, a devoração de Camilo Castelo Branco rendeu frutos e, entre


tantos, há um pequeno, mas precioso livro de ensaios, que considero merecedor de

11 A estreia ocorreu no dia 14 de Outubro de 2014, no Auditório do CAM da Fundação Calouste


Gulbenkian. Encenação de João Lourenço e música de Eurico Carrapatoso. A direção musical foi de João
Paulo Santos, dramaturgia de Vera San Payo de Lemos, cenário de João Mendes Ribeiro e figurinos de
Bernardo Monteiro.
destaque: Camilo: Génio e Figura. Nele a ensaísta Agustina Bessa-Luís reúne em sua
primeira parte textos críticos sobre o autor de Amor de Perdição. Mas se pretendia
fazer um estudo da narrativa camiliana, o que acaba por conseguir é a análise do sujeito
que está por detrás da obra, ou melhor, é a investigação psicológica de um eu, a partir
das personae em que foi capaz de se desdobrar e, fundamentalmente, a partir de um
narrador que sempre lhe serviu de esconderijo. Deitando Camilo Castelo Branco num
divã construído por seus livros, Agustina afirma: “Todos os autores, todos eles são um
12
pouco como crianças, frugais, porém amigas de dar nas vistas, devoradoras da
atenção do fabuloso espaço povoado por seres sobrenaturais – os homens” (1994, p. 32).
A citação não poderia ser mais cara a estas reflexões. Segundo Agustina, todos os
autores são devoradores de atenção, o que me leva a deduzir que os autores são como
narcisos incompletos, buscando sofregamente a aceitação dos outros, não importando se
para isto tenham de agir como conquistadores que, de maneira invasiva, tomam de
assalto o “espaço” já “povoado por seres sobrenaturais – os homens”. Se a afirmativa é
construída num plural por Agustina, é porque tanto deve servir a Camilo Castelo
Branco, quanto à própria autora de A Sibila.

Ainda no mesmo livro, a ensaísta aponta para certa pujança, mais


especificamente, para “certo arrepio sanguinário que desperta o animal humano para sua
caçada” (1994, p 38) presente na obra de Camilo Castelo Branco. Muito já se disse
sobre as imagens de jogo na obra de Agustina Bessa-Luís. O jogo em Agustina se

12 O itálico é meu. Cabe destaque outra passagem do livro em que Agustina, ao se referir a José Augusto,
aproxima mais uma vez o artista da ação devoradora, cito: “José Augusto, no dizer de Camilo <<o mais
infeliz homem que ainda conheci>>, era um desses intelectuais que admiram no artista os dotes que
relacionam com o triunfo temporal e com toda a sorte de canibalismos morais.” (1994, p.36).
comparado à caça em Camilo resulta num horizonte de semelhança, onde a luta pelo
espaço, ou a difícil demarcação de limites parecem ser denominadores comuns. Por isso,
não é gratuito que suas personagens se encontrem sempre em demanda do outro,
travando, na maioria das vezes, uma luta feroz pela ocupação violenta do espaço.

Espaço e literatura postos frente a frente podem gerar o que chamo de geografia
literária, considerada aqui como uma configuração conceitual que pressupõe o
estabelecimento de territorialidades literárias, comunidades imaginárias postas a
dialogar, a se relacionar a partir de espaços linguísticos e culturais que são
propositadamente aproximados com o objetivo de confrontar um o limite do outro.
Afinal, a existência de um espaço depende exclusivamente da existência de outro
espaço, capaz de sinalizar os frágeis limites e a porosidade das fronteiras. O espaço do
romance não é só o lugar de encontro de personagens, mas também é local de encontro
de linguagens, de tempos históricos díspares e de civilizações que, de outro jeito, não
teriam chance de se relacionar.

É no espaço do romance, nas linhas da ficção, que se encontram Camilo Castelo


Branco e Agustina Bessa-Luís. Por isso, Fanny Owen acaba por se firmar como um
exemplo bem acabado de romance que guarda uma refinada geografia literária, capaz
de unir - para fora do tempo cronológico e do espaço real - o discurso do autor do
século XIX ao da autora do século XX. Se levarmos em consideração alguns pontos,
não se pode negar que Fanny Owen é um romance muitíssimo bem tramado:
1. Fanny Owen e José Augusto, duvidosos escritores de ocasião, marcados de perto
pela estética ultrarromântica (de que são ideológicas vítimas), têm seus diários
devorados pelo escritor consagrado que era Camilo. É sobre estes escritos, a
priori, ficcionalmente falhados, que Camilo deseja imprimir uma versão que
permaneça como verdade histórica.

2. Agustina Bessa-Luís transforma o autor de Amor de Perdição em seu


personagem, escrevendo sobre seus escritos uma versão muito pouco favorável à
suposta afetividade que ligava Camilo a José Augusto e, consequentemente, à
Fanny Owen.

2.1. Num processo voraz de devoração, Agustina Bessa-Luís devora


Camilo Castelo Branco que, por sua vez, já havia devorado os diários
de José Augusto e de Fanny Owen, ambos devoradores sedentos da
literatura ultrarromântica que embalou a juventude de seu tempo. E,
já agora dando prosseguimento à metáfora de Conrad que serviu de
ponto de partida para estas reflexões, poderíamos dizer que este
processo de desdobramento permite pensar que Agustina, ao
percorrer o caminho já perpassado por Camilo, desejava atingir o
“coração das trevas” de personagens que saíram da História para
ganhar a eternidade nas linhas da ficção.
Resultantes do processo de devoração, as personagens surgem em Fanny Owen
como ruínas benjaminianas, que guardam nas suas derrotas as marcas indeléveis da
História. Em meio à ruína que lhes sobrou como realidade, o que permanece de pé é o
retrato histórico-político de uma sociedade falhadamente aburguesada, paralisada no
tempo, marcada pelo artificialismo das intenções que transforma tudo num grande baile
de máscaras. Cenários desolados ou artificiais abrigam personagens que carecem de
ocupação produtiva, de senso de responsabilidade coletiva, alienadas por um narcisismo
ultrarromântico que não as liberta de suas deformadas imagens sociais. Arrisco a dizer
que mais do que um enredo rocambolesco que envolve, repito, personagens mais ou
menos alienadas, Agustina Bessa-Luís está interessada em mostrar que o Portugal
oitocentista da década de 50 (pós-ditadura Cabralista e já na ressaca da Regeneração
que não foi capaz de regenerá-lo), estava muito próximo do Portugal pós-
revolucionário de 1979, ano em que a autora publica Fanny Owen, na sequência
desconcertante de seu doloroso As Fúrias.

A recuperação de Camilo Castelo Branco pelas linhas da ficção de Agustina é


antes a recuperação do tempo histórico que circunscreveu a trajetória do autor de Amor
de Perdição. Usando as palavras de Silvina Rodrigues Lopes, Agustina tem a vontade
de “salvar o passado do esquecimento, por uma evocação que o reescreve para o fixar
em retratos escritos, que para além dos retratos fotográficos, sejam outras tantas provas
da História” (2006, p. 41). Por fim, evoco Eduardo do Prado Coelho quando este
afirmou que não escreveu sobre Agustina Bessa-Luís “por ter medo de o fazer” (1994,
p.56) . Penso como ele, e rezo para que um dia este medo passe e quem sabe este texto
deixe de ser um bem intencionado, ainda que mal amanhado, rascunho.
a
1. BESSA-LUÍS, Agustina – Fanny Owen. 3 ed. Lisboa: Guimarães Editores,
1997, ISBN 9726654033.

2. - - - - - - . – Camilo – Génio e Figura. 1 a ed. Lisboa: Editorial Notícias, 1994,


ISBN 9789724606453.

3. BRANCO, Camilo Castelo – Duas horas de leitura. (eBook). Lisboa: Edições


Vercial, 2013, ISBN 9789897001246.

4. - - - - - - . – No Bom Jesus do Monte. (eBook). Lisboa: Edições Vercial, 2012,


ISBN 9789897000591.

5. CALVÃO, Dalva – “A cena é a vida”. Reflexões sobre “A Corte do Norte”.


Revista Colóquio Letras. ISSN 0010-1451. n o 187 (2014) p. 34-41.

6. COELHO, Eduardo Coelho – Tudo o que não escrevi. 1 a ed. Lisboa: Edições
Asa, 1994, ISBN 9789724113999.

a
7. CONRAD, Joseph - O coração das trevas. 1 ed. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2008, ISBN 8535912509.

8. LEME, Carlos Câmara – A romancista que sonhou a sua obra. Revista LER.
(2009) p. 42-49. Disponível em: http://revistaler.no.sapo.pt/pdfs/agustina.pdf .
9. LIMA, Isabel Pires de. Um inédito de Agustina: “Três mulheres com máscara de
o
ferro”cristalizações do feminino. Revista Colóquio Letras. ISSN 0010-1451. n
187 (2014) p. 62-69.

10. LOPES, Silvina Rodrigues – Agustina Bessa-Luís. As hipóteses do romance. 1


a
ed. Lisboa: Edições Asa, 2006, ISBN 9789724110028.

11. LOURENÇO, Eduardo – O canto do signo. Existência e Literatura (1957-


1993). 1 a ed. Lisboa: Editorial Presença, 1994, ISBN 9789722317306.

12. MACHADO, Álvaro Manuel – Agustina e o significado das coisas. Revista


Colóquio Letras. ISSN 0010-1451. n o 187 (2014) p. 42-52.

13. PERRONE-MOISÉS, Leyla - As flores da escrivaninha. Ensaios. 1 a ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 1990, ISBN 9788571641174.

14. PLATÃO – Carta VII - 1 a ed. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2008, ISBN
9788515035861.

a
15. SAID, Edward – Cultura e Imperialismo. 1 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, ISBN 9788571644670.

16. SEIXO, Maria Alzira – Para um estudo da expressão do tempo no romance


português contemporâneo. 2 a ed. Lisboa: INCM, 1987, ISBN 9789722702454.

17. TELES, Gilberto Mendonça – Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:


apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1976, ISBN 8532607977.

18. VIEGAS, Francisco José. – A bondade e a maldade. Revista LER. n o 12 (1990)


p. 10-15.
 

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