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Para Isabel,
Cabe aqui destacar que O coração das trevas foi escrito num momento
histórico específico – o auge da aventura neocolonial oitocentista –, criado por um
escritor que viveu ele mesmo, uma experiência muito próxima daquela narrada em sua
2 O texto surgiu neste ano, publicado em três partes na Blackwood’s Magazine, para ganhar sua edição
em livro apenas em 1902.
mais famosa e provocadora ficção. Joseph Conrad também foi capitão de um barco a
vapor, que viajou pelo rio Congo durante seis meses em 1890, contratado por uma
companhia belga de exploração colonial. As marcas desta experiência biográfica
encontram-se espalhadas por sua obra e não seria falso afirmar que, metaforicamente,
este livro é um exercício de busca de compreensão, uma viagem de aquisição de
conhecimento que tenta chegar ao “coração das trevas” através de uma reflexão sobre o
tempo referencialmente histórico. Por outras palavras, creio que Joseph Conrad dá vida
a Marlow, ficcionalizando aquilo que para ele foi História vivida.
Li algures numa reportagem, que Agustina Bessa-Luís desde muito cedo era
apaixonada pelo livro de Joseph Conrad. Na maturidade, a já escritora transforma o
romance numa “obstinação”, usando-o para tentar “perceber o que subjaz ao mundo dos
vivos através da leitura e interpretações várias de O coração das trevas” (LEME, 2009,
p.45). Distanciada temporalmente da experiência colonialista do século XIX, longe de
ser uma escritora de narrativa de aventuras, intrigou-me entender por que o livro de
Conrad exercia tamanha sedução na experiente leitora que sempre foi Agustina. Na
tentativa de compreender o inusitado fascínio, pensei em algumas hipóteses. O que
primeiramente me ocorreu foi talvez a suposição mais óbvia: a narrativa de Conrad
parte de uma realidade histórica precisa: a experiência neocolonial oitocentista. Não se
3
pode desprezar o encanto que os romances de fundo histórico sempre despertaram
numa autora cuja obra reúne títulos como as Advinhas de Pedro e Inês, Santo
António e Sebastião José para só citar alguns exemplos.
3 Emprego o termo em seu sentido mais amplo, não o restringindo ao modelo de romance histórico
produzido no século XIX pela escola romântica.
Também me poderia valer daquilo que defende boa parte da crítica quando
afirma a importância da experiência da travessia na obra da autora de A Sibila –
principalmente as que acontecem por mares e rios -, o que de perto a aproxima do autor
de O coração das trevas, que igualmente fez dos percursos um tema obsessivo. Por
detrás da insistência das imagens de viagem/travessia, existe a dolorosa premência do
tempo unindo Joseph Conrad a Agustina Bessa-Luís. Um tempo que ultrapassa os
limites da cronologia, para se firmar como experiência de angústia, da qual as
personagens tentam em vão se libertar para, vencidas, encontrarem a morte. Vítimas de
uma mesma crise, não há como negar que a inexorabilidade do tempo foi vivida de
forma dramática tanto pelo homem do século XIX, atarantado pelas teorias
evolucionistas, quanto pelo do século XX, encurralado pela relatividade de um tempo
que não pararia mais de escoar. De Darwin a Einstein, o tempo deixou de ser divino e
tornou-se dolorosamente humano.
Levando em consideração cada uma das hipóteses levantadas, creio mesmo que
um pouco de tudo isto pode explicar o fascínio de Agustina Bessa-Luís pel’O coração
das trevas. Mas se Agustina leitora pode ter sua predileção justificada por minhas vãs
especulações, gostaria de avançar por terreno mais seguro e confrontar agora o livro de
Conrad – cujo título, sem dúvida nenhuma, Agustina deve invejar para si –, e a obra da
autora de A Sibila. Desejo mesmo é friccionar o texto de Conrad com o de Agustina
Bessa-Luís, porque aqui a ideia de atrito me é fundamental.
Com isso quero dizer que Heart of Darkness é uma obra que
funciona tão bem porque sua política e sua estética são, por
assim dizer, imperialistas, as quais, nos últimos anos do século
XIX, pareciam ser uma política e uma estética, e até uma
epistemologia, inevitáveis e inescapáveis. (1999, p. 56)
Creio que também Edward Said foi vítima de seu próprio argumento, uma vez
que pareceu esquecer - ou insistiu em desconsiderar -, inúmeras passagens do romance
em que comprovadamente aparecem as críticas tecidas à dilapidadora presença
estrangeira no Congo belga. No fim do século XX, com a vitória do neoliberalismo
consolidada e o avanço irrefutável da globalização, Edward Said, na ânsia de condenar
a existência do discurso imperialista propagandeado por muitas narrativas oitocentistas,
transforma O coração das trevas num exemplo equivocado de narrativa a serviço de
um poder. Mudam-se os tempos, mas nem sempre, mudam-se as vontades!
Se a meu ver, Edward Said – influenciado por seu momento histórico - carrega
nas tintas ao analisar o romance de Conrad, inteligentemente, ele se redime ao formular
o raciocínio que me serve de viga para defender a narrativa-império de Agustina: “o
poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito
importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões
entre ambas” (1995, p. 13). Brincando agora com a ideia de império e transformando-o
numa alegoria ao gosto benjaminiano 6, gostaria de pensar como as narrativas de
Agustina Bessa-Luís criaram, a seu modo, um império literário marcadamente
soberano. Eduardo Lourenço vem ajudar a construção desta minha alegoria, ao analisar
o aspecto inusitado da obra de Agustina, surgida em meio ao árido cenário ideológico
em que se debatia a estética neorrealista nos anos 50, firmando-se “soberanamente”
como “um mundo romanesco” desconcertantemente novo:
6 Para tanto, gostaria de lembrar que uso a palavra “império”, libertando-a de seu sentido original,
descontextualizando-a para (re)contextualizá-la sob outra perspectiva, atribuindo-lhe assim um sentido
Bessa-Luís, porém, começou noutro ponto. (...) Celebremos
esse acontecimento cujo significado cultural mais profundo e
decisivo foi, acaso, o de ter de novo imposto um mundo
romanesco, insólito, veemente, estritamente pessoal,
desarmante e tão profuso e rico, verdadeira floresta da
memória, tão povoada e imprevisível como a vida, onde nada é
esquecido e tudo transfigurado, mundo grave e inesquecível
soberanamente indiferente à querela literária e ideológica que
durante quinze anos paralisara em grande medida a
imaginação nacional. (1994, p. 162)
arbitrário – como bem o quis Walter Benjamin –, que pode ser entendido aqui como um universo
autônomo, ou mundo soberano, arquitetado pelas linhas da ficção de Agustina Bessa-Luís. .
sua obra um fascínio explícito pelos que são capazes de atos dúbios, por todo aquele que
não pode ser julgado como honrosamente valoroso ou desgraçadamente desprezível.
Suas personagens estão longe de se submeterem a julgamentos unilaterais! Marcados
por um maior ou menor descompasso em relação ao status quo, as personagens de
Agustina Bessa-Luís são as habitantes de um império literário construído por um desejo
político, concretizado num exercício ético, que artisticamente discutiu até onde iriam os
seus limites. Não se pode esquecer que, depois de Camilo Castelo Branco, é Agustina
aquela que faz com que os olhos do leitor português deixem Lisboa rumo à paisagem
nortenha, promovendo uma mudança significativa na geografia literária do Portugal da
primeira metade do século XX. Do mesmo modo, há de se levar em consideração o
importante número de traduções conseguidas pela sua obra que, vencendo um mercado
tão obsessivamente restrito, fez chegar a literatura portuguesa à Alemanha; Dinamarca;
Espanha; França; Itália; Romênia e Grécia. Se os limites foram alargados e as fronteiras
redefinidas, isto só foi possível porque Agustina Bessa-Luís, partindo da criação de um
registro particularíssimo, ousou refletir sobre temas universais, filiando-se a um grupo
seleto de escritores que sempre acreditou que a grande aventura se escondia na própria
condição humana. Por isso, na ficção da autora de A Sibila, “como em Dostoiévski e
Proust, o ser humano surge dotado de misteriosos, inesperados poderes ocultos, que se
manifestam nas circunstâncias mais singulares, desencadeando um tempo imenso
contido num instante de revelação, de epifania” (MACHADO, 2014, p. 45).
Como competente canibal, não seria errado afirmar que a História foi um dos
corpos que mais de perto despertaram o apetite literário de Agustina Bessa-Luís. A
História, recriada pelas linhas de sua ficção, produz um refinado e renovado texto que
não abre mão de ser exemplo declarado de literatura, nascida do desejo de chegar ao
“coração das trevas” dos corpos históricos devorados por seu discurso ficcional, quer
assumidamente romanesco, quer escamoteado pela dúbia condição de “biografia”. Foi
assim com Pedro e Inês, com Uriel da Costa, com Santo Antônio, com o Marquês de
8
Pombal, com Florbela Espanca e, para meu desfrute pessoal, foi assim com Camilo
Castelo Branco. Na tentativa de atingir as entranhas de uma biografia que, por si só já se
constituía como provável ficção, Agustina Bessa-Luís devora a obra do autor de Amor
8 Refiro-me a: Advinhas de Pedro e Inês (1983); Um bicho da terra (1984); Santo António (1979);
Sebastião José (1981); Florbela Espanca (1979), respectivamente. Ressalto que a lista contempla
de Perdição e, antropofagicamente, nos devolve como produto de sua digestão o
desarmante Fanny Owen 9.
9 Para as citações do romance, utilizarei a abreviação FO, seguida do ano de publicação (1997), e do
número da página entre parênteses.
Cada livro é uma peregrinação 10; não precisa de passaporte e
aviso que o distinga e lhe assegure hospitalidade. Mas este tem
umas contas a prestar, porque exactamente é um romance
conduzido até mim através duma ideia que não me ocorreu a
mim. Foi o caso de me terem pedido os diálogos para um filme
cujo assunto seria Fanny Owen. Para escrever os diálogos tive
que conhecer as circunstâncias que os inspirassem; e a história
que os comporta. Assim nasceu o livro e o escrevi. Pareceu-me
necessário e útil trazer Camilo Castelo Branco à luz da nossa
experiência humana sem o traduzir na opinião de escritor que é
a minha. Por isso usei a colagem, e quase todas as suas falas
são as autênticas que ele escreveu, em novelas, nos dispersos e
nas folhas em que anotava os seus pensamentos. Também
muitas palavras de Fanny e de José Augusto se podem entender
como ouvidas directamente da boca dos próprios em suas
vidas. Em parte, porque as deixassem assim escritas nos diários
íntimos; e também porque Camilo as fixou nos livros em que
eles pousaram como personagens, ainda carregados da
memória apaixonada que imortaliza tudo aquilo em que ele
toca. (FO, 1997, prefácio).
10 Retomando o que já foi dito, cabe destacar que a ideia de travessia/percurso reaparece aqui, agora
avalizada pela instância autoral.
autoral, ela faz questão de garantir a autonomia destas outras autorias, ao assegurar que
o Camilo Castelo Branco que ali se apresenta não será por ela “traduzido”; do mesmo
modo que as “palavras” de Fanny e de José Augusto serão “ouvidas directamente da
boca dos próprios”. Trabalho de persuasão digno de nota, que deseja estabelecer com o
leitor um pacto de veracidade irrefutável, recurso que só poderia partir de uma escritora
que mastigou cuidadosamente as linhas romanescas de Camilo! Não se engane o
crédulo leitor: absorvidas estas alteridades, Agustina promove o desdobramento destes
discursos que resultam no seu, e agora tão seu, Fanny Owen.
12 O itálico é meu. Cabe destaque outra passagem do livro em que Agustina, ao se referir a José Augusto,
aproxima mais uma vez o artista da ação devoradora, cito: “José Augusto, no dizer de Camilo <<o mais
infeliz homem que ainda conheci>>, era um desses intelectuais que admiram no artista os dotes que
relacionam com o triunfo temporal e com toda a sorte de canibalismos morais.” (1994, p.36).
comparado à caça em Camilo resulta num horizonte de semelhança, onde a luta pelo
espaço, ou a difícil demarcação de limites parecem ser denominadores comuns. Por isso,
não é gratuito que suas personagens se encontrem sempre em demanda do outro,
travando, na maioria das vezes, uma luta feroz pela ocupação violenta do espaço.
Espaço e literatura postos frente a frente podem gerar o que chamo de geografia
literária, considerada aqui como uma configuração conceitual que pressupõe o
estabelecimento de territorialidades literárias, comunidades imaginárias postas a
dialogar, a se relacionar a partir de espaços linguísticos e culturais que são
propositadamente aproximados com o objetivo de confrontar um o limite do outro.
Afinal, a existência de um espaço depende exclusivamente da existência de outro
espaço, capaz de sinalizar os frágeis limites e a porosidade das fronteiras. O espaço do
romance não é só o lugar de encontro de personagens, mas também é local de encontro
de linguagens, de tempos históricos díspares e de civilizações que, de outro jeito, não
teriam chance de se relacionar.
6. COELHO, Eduardo Coelho – Tudo o que não escrevi. 1 a ed. Lisboa: Edições
Asa, 1994, ISBN 9789724113999.
a
7. CONRAD, Joseph - O coração das trevas. 1 ed. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2008, ISBN 8535912509.
8. LEME, Carlos Câmara – A romancista que sonhou a sua obra. Revista LER.
(2009) p. 42-49. Disponível em: http://revistaler.no.sapo.pt/pdfs/agustina.pdf .
9. LIMA, Isabel Pires de. Um inédito de Agustina: “Três mulheres com máscara de
o
ferro”cristalizações do feminino. Revista Colóquio Letras. ISSN 0010-1451. n
187 (2014) p. 62-69.
14. PLATÃO – Carta VII - 1 a ed. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2008, ISBN
9788515035861.
a
15. SAID, Edward – Cultura e Imperialismo. 1 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, ISBN 9788571644670.