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A LATÊNCIA VERBAL EM O ANJO ANCORADO

DE JOSÉ CARDOSO PIRES

Profa. Dra. Monica Figueiredo


Faculdade de Letras da UFRJ

No centro da sala, diante da mesa


No fundo do prato, comida e tristeza
A gente se olha, se toca e se cala
E se desentende no instante em que fala.
Cada um guarda mais o seu segredo
Sua mão fechada, sua boca aberta,
Seu peito deserto, sua mão parada
Lacrada, selada, molhada de medo
(Hora do Almoço. Belchior)

Se partimos do termo “latência”, segundo Aurélio Buarque de Holanda, teríamos


como definição: “a presença de elementos psíquicos esquecidos na esfera subliminar da
consciência, donde podem ressurgir”. No caso da narrativa de José Cardoso Pires, O Anjo
Ancorado (1958), percebemos a presença insistente de várias imagens que funcionariam
como um revestimento habilmente construído no intuito de escamotear, ou antes, de
(re)apresentar esteticamente a realidade histórica portuguesa compreendida entre o fim da
Segunda Grande Guerra e os derradeiros anos da década de 50, quando forçosamente a
noite salazarista é invadida pelos primeiros sinais de claridade, graças aos ares de
liberdade oriundos da vitória das Forças Aliadas que põem abaixo muitos dos regimes
ditatoriais vigentes na Europa de então. Várias são as imagens recorrentemente usadas pela
narrativa que, se agrupadas em três grandes núcleos, constituiriam aquilo que aqui
chamamos de imagens de base, uma vez que favoreceriam o aparecimento, ou melhor, o
desdobramento de significados metafóricos. São elas: as imagens bíblicas, as imagens
marinhas e as imagens de caça /conquista.
Torna-se claro que a utilização insistente, e porque não latente destas imagens de
base é um dos recursos utilizados pela narrativa não só para a sua estruturação, mas
também para que ela possa definir uma viagem de aprendizagem que não abre mão da
intenção didática ao propiciar ao leitor um espaço de reflexão, conduzindo-o a uma

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conscientização social, mesmo que a todo o momento o discurso da ficção disfarce o seu
caráter educacional. Deste modo, as imagens são, em verdade, um recurso utilizado para
disfarçar o cunho didático, além de serem, ao mesmo tempo, aquilo que justifica o caráter
romanesco, evitando que um discurso panfletário-político se sobreponha à intenção
estetético-literária que deve acompanhar toda a obra de ficção.
Cardoso Pires é um grande construtor de imagens, porque faz com que o seu
universo imagístico seja produto de um trabalho cuidadoso de seleção que
competentemente reúne os três valores que de perto acompanharam a formação da
identidade portuguesa, firmando-se como verdadeiros vetores de força que muitas vezes
decidirem o destino de Portugal: a Igreja, o Mar e a Conquista.
Outro ponto que parece importante destacar é a classificação sugerida pelo autor,
quando num posfácio, afirma que a sua narrativa não é uma “fábula social”, já que não
possui nenhum comprometimento social, mas antes é uma “fábula” com a função de
“instruir ou divertir”, indo ironicamente de encontro ao célebre pórtico escrito por Alves
Redol em seu Gaibéus. Na contramão do caminho traçado pela literatura neo-realista de 45
e quase duas décadas depois, Cardoso Pires não compactua com uma certa visão romântica
que acreditava que a literatura poderia ser um instrumento gerador da revolução, mas crê
que o fazer literário é sempre um exercício revolucionário que pode ensinar o caminho da
reflexão crítica.
E se estamos falando do que pode ser desestabilizado, é bom lembrar de que esta
narrativa que ironicamente se assume como fábula, através de uma “narração de sucessos
inventados”(AA, p. 149), não conta nenhuma história já que a ação é mínima, bem como
não cria situações que sejam capazes de provocar riso ou diversão. Na verdade, o não
acontecer provoca uma espécie de tensão, de perto marcada pelo descrédito do narrador
que não perde nenhuma chance de acentuar a sensação de paralisia e de letargia que
envolvem a aridez da paisagem, os movimentos econômicos que regem o desenrolar da
ação e os gestos humanos repetidos:

O companheiro lançou para além dela, muito para além, o


mesmo sorriso cansado de há pouco. Raras vezes se terá visto
quadro tão estranho: uma rapariga a sacudir a cabeça, desesperada,
e um homem sorrindo tristemente para a paisagem, certo de que a
tempestade seria passageira. (AA, p. 23)

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E se partimos da análise das personagens, o caráter didático inerente à fábula
também não se sustenta, uma vez que a narrativa não privilegia nenhuma delas com um
discurso instrutivo capaz de orientar ou de ensinar o leitor. No entanto, é preciso entender
que se as personagens isoladamente não são capazes de ensinar, a narrativa como um todo
acaba por o ser, já que mesmo sem ser “didática” no sentido de claramente direcionar o
aprendizado, ela não deixa de instruir o leitor, despertando nele o espírito crítico diante de
tantas personagens desprovidas da capacidade de reflexão, seja porque estão subjugadas
pela miséria, seja porque estão embotadas pela abundância improdutiva. Por isso, elas
podem ser divididas em três núcleos que aqui definimos como sendo:

Núcleo A: Núcleo B:
Os habitantes de São Romão 1 Os habitantes da Casa da Parede
Proletariado Burguesia

Elemento Intermediário:
João

No início na narrativa, o narrador nos apresenta João de maneira muito significativa:


“indivíduo de modos terra a terra, não se podia comparar a qualquer dos ditos infantes da
lavoura. Se tinha esse à-vontade seria pelo descuido que dá segurança, e muito
principalmente por cansaço, por desencanto” (AA, p. 11). Ele é, portanto, uma personagem
inclassificável - se quisermos obedecer a esta divisão em núcleos e aos próprios parâmetros
do narrador -, já que o seu passado de militante político impede de o equiparamos aos
convidados da Casa da Parede, da mesma forma que a sua atual posição social e seu
distanciamento participativo não permitem a sua inclusão no núcleo A . Em verdade, João
pertence no presente da narrativa ao núcleo B, mas dele se afasta pela consciência que tem
de seu estatuto de opressor, vestígio último de sua passada militância política, e, apesar dos
“modos terra a terra”, seria injustificável incluí-lo entre os do núcleo A, já que o narrador
insiste em explicar esse “à-vontade” não por opção ideológica, mas pelo desencanto da
ausência dela.

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Cabe ressaltar que o taberneiro é, até certo ponto, destoante em relação aos demais habitantes do lugar, uma
vez que é o único a esperar alguma mudança, mesmo que ela corresponda a uma vitória meramente
individual.

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A verdade é que enquanto o núcleo A possui um discurso minimizado, ou seja, há
uma clara economia de palavras que aponta para uma comunicabilidade suprimida - que de
perto lembra a narrativa de um Graciliano Ramos -, o núcleo B possui um excesso verbal
que não se sustenta e a todo momento é ridicularizado, ou antes, é colocado em xeque pelo
narrador. Assim, a pretensa fábula não pode mesmo ser considerada instrutiva, se partimos
da concepção que a instrução se dá pela transmissão de informação ajuizada, o que só pode
ser conseguido através da palavra, justamente aquilo que é menos valorizado pela narrativa,
seja pela impossibilidade de usá-la, seja pelo uso esvaziado e abusivo que dela fazem
alguns personagens. De uma maneira ou de outra, dolorosamente, aqui a palavra não é
capaz de comunicar.
Há de se observar que a narrativa não possui um tom moralizante como seria de se
esperar de uma fábula tradicional. O que temos é uma tentativa de superação do outro ou de
algo, que nada tem de instrutivo ou de educador, pois não há pudor ou moral que regulem a
ação das personagens, e mesmo quando os valores positivos tentam prevalecer – no caso
específico da luta inglória de Ernestina – são vencidos e deixados para trás, embaçados por
uma densa nuvem de poeira que faz com que percam a visibilidade necessária ao exemplo.
Ao final do livro, a voz autoral afirma que a sua fábula não tem caráter documental,
sendo produto exclusivo do gênero romanesco, que segundo ele “é pessoal, intemporal e
seletivo” (AA, p. 149). Propositadamente, este criador, ao contrário de um Redol, quer que
seu texto seja visto como um produto puramente estético, fazendo uso de uma certa
despretensão narrativa que, apostando na oralidade, pretende retomar a tradição dos antigos
contadores de estórias: “Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa
aldeola da costa um automóvel aberto, rápido como o pensamento...” (AA, p. 9). Do mesmo
modo, o narrador deixará claro que tem total conhecimento do destino de suas personagens,
de seus atos e até mesmo de suas intenções: “É bem certo: a tentação do perigo acompanha
cada mortal desde o berço à sepultura. Quando menos se espera, cegamos, somos nada e
aventura do acaso. Com o velho deu-se isso. Ia ele a recuar para terra ... ( AA, p. 102)”.
No entanto, é preciso que o leitor atento perceba o logro, porque ao lado dos
recursos romanescos, há outros tantos recursos que fazem desta narrativa uma versão
possível para um tempo histórico, haja vista a insistente presença de referências histórico-
sociais e de representações documentais feitas em forma de notas de rodapé, que não

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pertencem à convenção ficcional, mas muito mais a um outro corpo discursivo, tal como o
do discurso científico. Deixemos, entretanto, apenas apontada essa voluntária intromissão
de outras formas de discurso, porque é mais importante atentar para os disfarces utilizados
por Cardoso Pires na tentativa de escamotear o papel social que possui O Anjo Ancorado.
Se partimos do pressuposto que todo texto literário é construído a partir de imagens
significativas e que a principal função das imagens em literatura é realizar a realidade de
maneira particular e sugestiva, perceberemos que esta obra como um todo se reveste de
uma imagem de fábula divertida, ou de instrução, para na verdade se realizar enquanto
produto final, como obra social que denuncia, ou reflete, as desigualdades sociais e a luta
de classes em um Portugal ancorado com todos os seus anjos, inocentes ou não.
Não podemos também desprezar uma análise cuidadosa do título que reúne as três
referências temáticas principais: anjo ( referência bíblica) e ancorado ( referência marinha
e, por extensão, de conquista e de posse). A palavra anjo é mencionada no livro pelo
menos três vezes. O termo é sugerido por João ao descrever Guida, sendo usado por ele
todas as três vezes, sempre se dirigindo à amiga. Assim, vemos que Guida é primeiro um
“anjo à espera de revelação”, depois é um anjo que já não necessita de revelação, uma vez
que, aos olhos de João, já se tornara plenamente previsível, para chegar ao final do texto
como um “anjo torturado”. A adjetivação se modifica porque está intimamente ligada ao
processo de reconhecimento estabelecido entre as personagens. Quando João vê Guida pela
primeira vez na Casa da Parede, a seus olhos, ela se confunde com os demais convidados,
porque naquele momento deseja aderir ao grupo, acreditando que dele partiria a
“revelação” capaz de a salvar do vazio existencial que afinal era coletivo e circundante:

Serviu-se. Lá para a sala o escultor tinha dado a palavra à


mulher dum engenheiro que passava a vida sentada a fumar. A
jovem, atenta, escutava. Parecia-se com um anjo dos retábulos de
igreja, na posição em que estava. Um anjo à espera de revelação.
(AA, p. 48) 2

No entanto, a incompetência social de Guida é mesmo intransponível, já que no


decorrer da festa, João percebe que ela não mais espera dos convidados o sinal necessário a
sua “revelação”, porque sendo jovem demais, a eles também não pertence e o seu desejo de

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Grifo nosso

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adesão ao grupo se desfaz, fazendo com que acabe por escolher o isolamento e a ausência
como formas enviesadas de presença:

A jovem não chegara a rir – um sorriso passageiro, talvez,


de simples cortesia. Do seu refúgio, o visitante da última hora
percebera que ela se isolara também, que estava de cabeça baixa,
toda entregue ao cigarro que rolava nos dedos. E de novo a
comparou com a figura de retábulo, um anjo discreto, mas de
maneira nenhuma um anjo à espera de revelação como a princípio
julgara. ( AA, p. 56) 3

Quando a referência angelical surge pela última vez, ela se dá após uma discussão
em que Guida ameaça uma exposição de si através da confissão, enfim, quando finalmente
desiste da representação de ser para assumir a verdadeira condição de não ser. Neste
instante, fica claro pela voz de João, que o discurso da amiga é mesmo um exemplo de
improdutividade da palavra, o que faz com que ela não passe de um “anjo torturado”,
jogado num mundo que é incapaz de compreender:

Ele ali, através dos ecos que lhe chegavam do passado de


Guida, não se iludia. A voz soava a desprezo e, mais que a
desprezo, a ódio, a rancor. Olhava os lábios que não paravam, mas
não via claro nem isso lhe interessava. Via sons, se assim se pode
dizer, saindo duma imagem torturada. E pensava a imagem do anjo,
uma vez mais. (AA, p. 115)

Na verdade, a imagem do anjo está de saída revestida por uma conotação de


alienação. Por isso, Guida desconhece a realidade que a cerca, revestindo suas atitudes de
uma “bondade” superficial e não direcionada que privilegia pássaros em lugar de meninos
aviltados pela humilhação de um trabalho quase mendicante. Esta alienação do anjo que
paira, sem pés na terra, pode ser estendida às demais personagens do texto, que não
percebem a estagnação de suas posições e a verdade social que as cerca. Nesse meio
burguês, só João é “terra a terra” e, embora avesso à participação social, tem a consciência
de seu estado de imobilidade.
Quanto a “ancorado”, o termo reproduz a estagnação e o aprisionamento que
percorrem todo o texto em nível temático e estrutural. Ancorada está Guida em suas
discussões esvaziadas de conteúdos; ancorado está João em sua luta entre a antiga
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Grifo nosso.

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participação militante e sua atual estagnação; ancorados estão os habitantes de São Romão
à miséria e à paralisação; bem como os convidados da Casa da Parede estão presos à
alienação e à futilidade. E ancorado encontramos voluntariamente o livro, no seu reproduzir
seco da linguagem e na sucessão mínima dos acontecimentos; ancorado está o texto,
quando este se reveste de tom de fábula para fugir ou escamotear o discurso social;
ancorado está ainda a realidade social que serve de tema ao livro, porque em última
instância, ancorado está o próprio Portugal da década de sessenta.
Mas se as personagens estão grupadas em núcleos, é justo que certas imagens
também se polarizem, funcionando como metáforas significativas na composição destes
dois grupos. Assim, teríamos:

 São Romão precariamente caracterizada como “um punhado de gaiolas (...)


empoleiradas sobre o oceano e com ventos e gritos de aves marinhas a salpicarem-nas
de cima” (AA, p. 11); em oposição à Casa da Parede, que mantém uma aparência
exterior tradicional, mas que já possui um interior reformado pelo moderno, sendo em
verdade uma representação extensiva do ser de seus habitantes, seres cuja tradição só
sobrevive mesmo ao nível da aparência: “era uma vivenda apalaçada, estilo burguesia
republicana, (...) como as que havia antigamente em Alges (...) Simplesmente, por
dentro, tinham-na arranjado ao gosto “funcional”, tectos baixos, móveis lisos, cores
variadas, cortinas com desenhos arrevesados” (AA, p. 44).
 A carroça de hortaliças que, com dificuldade de locomoção, carregava a miséria de um
povoado (AA, p. 66); em oposição a figura do carro vivo e móvel, que desestabilizava a
paisagem sem nenhum respeito pela inércia do lugar: “de longe, como era vermelho,
vermelho vivo, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto por entre o mar e
cabeços” (AA, p. 9).
 A caça do perdigoto que representa a luta pela sobrevivência e o exercício lúdico da
conquista, em oposição à caça ao mero que não passa de um exercício de vaidade
pessoal, onde a presa e o caçador não estabelecem nenhum jogo, já que a paralisia do
mero acabar por inibir qualquer gosto de vitória que João poderia ter. O gozo da posse e
da conquista é dado apenas aquele que soube lutar, daí porque é o velho do perdigoto o
caçador que tem do que se rir.

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 A comunicabilidade precária presente na casa de Ernestina transforma o uso da palavra
em imperativa necessidade, o que claramente se opõe ao discurso excessivo presente na
Casa da Parede, onde a palavra é exacerbada a ponto de gerar um discurso exagerado
que leva ao esvaziamento do significado. Por caminhos opostos, em ambos os casos, a
palavra não comunica.

A narrativa ganha em tensão todas as vezes em que se dá o confronto entre os dois


núcleos, basta lembrarmos do fascínio provocado pelo material de pesca no menino das
rendas que, em contrapartida, não consegue impressionar os forasteiros com o trabalho
artesanal feito pela irmã (AA, p.31) . Do mesmo modo, repetidamente, o carro de João
perpassa a paisagem de São Romão de maneira invasora e violenta, ratificando sua
superioridade técnica, seu poder de movimento em detrimento da pobreza local que
“vale muito pouco” quando comparada ao preço do progresso que o automóvel
simboliza:

O carro. Em dinheiro aqueles dez ou doze casebres não


dariam para o Talbot Lago, dois litros e meio, que estava ali
adiante, no deserto. Nem que se juntasse toda a tralha de redes
podres, covos de lagosta e mais uma ou outra embarcação de fundo
chato. Nem com isso, nem mesmo com isso. (AA, p. 39)

Não há como não destacarmos a forte presença do mar que propositadamente é


usado pela narrativa como espaço de oposição a uma terra deserta e árida. Se o mar no
passado português significou aventura e conquista, no presente ele é o limite aterrador que
empareda uma população miserável, servindo apenas como um parque de diversões a uma
burguesia enfastiada, que não está mais à procura de grandes feitos, mas antes quer somente
preencher o tempo marcado de perto pelo ócio e pelo tédio. De dentro de seu mundo
confortável e previsível, Guida vê o mar como um “espetáculo terrível e maravilhoso”,
capaz de despertar-lhe um imenso medo por ser uma totalidade incontrolável e
desconhecida: “Quando o homem desceu para o oceano por um cerreiro talhado na falésia,
a amiga dele abeirou-se do precipício e teve medo. Mar para um lado e para outro, mar e
mais mar. Mar à altura dos olhos – no horizonte; mar por baixo dos pés” (AA, p. 35).

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Por motivos diferentes, para os habitantes de São Romão, o mar é também um
espaço intransponível, incapaz de ser vencido por navegantes tão desgraçados. Segundo as
palavras de Guida, a aldeia seria o resultado da expulsão de alguns náufragos, não passando
portanto de salsugem renegada. De certa forma apropriando-se do discurso bíblico 4 do
Gênesis, Guida sugere uma explicação mítica para a existência de São Romão, o que lhe é
extremamente conveniente já que somente o mito não necessita de explicação. Aquietada
pela justificativa, ela só tem de aceitar a miséria que a rodeia, não precisando exigir da
realidade social uma resposta política e transformadora. A verdade é que a explicação
mítica sugerida por Guida – mas não endossada pelo narrador – ratifica, a seu modo, a
impossibilidade real que a aldeia tem de dialogar com o mar:

De mal com a terra, pior ainda com o mar. Pior e bem pior
porque, em boa verdade, pode São Romão namorar cá de cima as
marés que nada lucra. Pode conhecer, como conhece, os ventos e
assistir à passagem dos cardumes, mas quê? Faltam-lhe barcos e
armações de cabo grosso para discutir com águas fortes. (AA, p. 38)

O mar só poderá ser vencido por alguém melhor preparado, alguém tão bem
equipado como é o caso de João. Mas se ele contorna o mar, não se pode, entretanto, falar
de uma efetiva vitória, já que o mero - o seu suposto troféu – é apanhado durante o sono,
quando não podia, ou não queria, reagir, não passando afinal de uma conquista fácil que,
sem a justificativa da batalha, acaba por denunciar a falência do conquistador: “Firmou o
dedo no gatilho. O fabuloso filho do mar ia morrer sem ao menos ter dado combate ao
inimigo que viera do reino da terra para aquele encontro necessário”(AA, p. 72). Certo da
inutilidade de sua conquista, João ainda tentará justificar a caça através da necessidade do
consumo do peixe que não se concretiza. Matando pelo prazer de matar, o homem se
transforma em monstro marinho: “à imagem dos monstros de Bosch, meio homem meio
peixe, o caçador pisou terra plana, e era de mostrengo o seu andar mole e de grandes
sapatas”(AA, p. 96).
A presença insistente de um bestiário vem propositadamente ratificar a condição de
fábula sugerida pelo o autor para O Anjo Ancorado. Muitas são as vezes em que os animais

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Produtivo seria fazer um levantamento da incidência de termos bíblicos presentes narrativa, que
propositadamente utilizará o texto sagrado para criar uma atmosfera mítica que justificará a circularidade da
estrutura romanesca.

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ganham lugar de destaque, sendo associados à imagens bíblicas, como é o caso do cão que
vaga pela aldeia e é nomeado por “cão de Lázaro”, para depois chamar-se “Leão”, ao tentar
vencer a ferocidade aterradora do carro vermelho que, ao deixar a cidade, será chamado
pelos moradores humilhados de “cão selvagem” e de “lobo”.
Por outro lado, as figuras humanas também vão sofrendo um processo de
zoomorfização: o escultor, freqüentador da Casa da Parede, torna-se ainda mais patético
quando assume a forma do jacaré de sua piada; para Guida, as mulheres são uma espécie
de caça; o velho do perdigoto é claramente comparado a um rato ao perseguir
insaciavelmente o pássaro que tenta transformar em alimento, e até João adquire uma forma
animalesca, quando é descrito como um “monstro marinho” ao sair do mar.
Em várias ocasiões, os animais serão representações de uma adversidade que precisa
ser combatida, aliás, são eles que provocam a única forma de luta possível dentro de uma
realidade em que a ação está definitivamente ancorada. Nela, os personagens só
conseguem combater a natureza. Por isso, o perdigoto, o mero e as aves que atordoam
Guida na praia são vistos como inimigos, ou melhor, como obstáculos a vencer, o que
acaba por deslocar as personagens do enfrentamento necessário de seus reais adversários:
as desigualdades sociais e a opressão gerada pela situação política.
Não gratuitamente existe na Casa da Parede um quadro que significativamente
reproduz uma cena de caça, que mais do que uma mera representação de ordem estética, é
na verdade um discurso elucidativo das diferenças sociais que perpassam toda a narrativa, o
que faz com que João o analise em toda a sua densidade político-social 5. A disposição
espacial inscrita na tapeçaria metonimicamente recupera a ordem social do Portugal da
década de sessenta, com os serviçais comparados a pequenos galgos e com os senhores
associados aos carvalhos majestosos. Na tapeçaria, os tempos se encontram graças à
circularidade que imobiliza, uma vez que as desigualdades sociais estão presentes tanto na
representação pictórica que recupera a época medieval, quanto no quadro vivo semi-feudal
composto pela sociedade portuguesa de 1957.
Por fim, cabe retomar a questão da falência da comunicabilidade da palavra,
marcada ora pelo excesso, ora pela escassez. Na casa de Ernestina, há como que um jogo de
imagens instantâneas, onde o pouco significa o essencial. O que é dito refere-se somente à

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Vale a pena chamar a atenção para o trocadilho irônico sugerido pela palavra “perspectiva”.

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expectativa da partida de João, sem que jamais seja verbalizado a profunda dor que
acompanha o estado de ansiedade que une filha, mãe, irmão e marido. Só é dito aquilo que
é estritamente necessário à sobrevivência daqueles que há muito vivem silenciados pela
miséria e opressão. Ao contrário, os personagens que habitam a Casa da Parede padecem
de um excesso verbal que tem no nada o seu único produto. Os diálogos desprovidos de
qualquer serventia transformam o discurso num espaço estéril que de perto lembra a aridez
que está por detrás das paredes que separam os falantes privilegiados, dos silenciados
abandonados pela sorte em São Romão.
A comunicação frustada em ambos os casos se reproduz ao nível da ficção, de perto
marcada por uma economia verbal que metaforicamente simboliza uma estagnação social
que é histórica. As personagens não falam pelo simples fato de não terem o que falar,
porque mudo está Portugal. No entanto, é pelo silencio de sua personagens que José
Cardoso Pires laça um grito que destoa - e que por isto acrescenta – em meio a uma
realidade ancorada, a espera da partida.

Bibliografia:
PIRES, José Cardoso. O Anjo Ancorado. Lisboa: Moraes Editores, 1977.

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