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FURG/ILA – Teoria da Literatura I – 2012

As categorias da narrativa literária1

Alguns conceitos iniciais


Gênero narrativo ou épico: romance, conto, epopeia, telenovelas, filmes, histórias em
quadrinhos etc.
Autor: entidade “real”, histórica / Narrador: entidade fictícia, imaginária.
Leitor: entidade “real”, histórica / Narratário: entidade fictícia, imaginária.
Assim como o narrador, o narratário tem apenas uma existência discursiva,
diferente do leitor. O narratário nem sempre é reconhecível em uma narrativa; neste
trecho de Dom Casmurro, no entanto, ele assume forma:
“Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena,
nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa!”
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, cap. XXXIII.
Dicotomia história/discurso, ou fábula/trama
A história (ou enredo, ou ação, ou fábula), é o que se conta; discurso (ou trama),
é como se conta. A história é formada pelo conjunto dos fatos fictícios (no caso da
literatura) relatados e constitui o plano de conteúdo da narrativa; a história, sendo assim,
pode ser resumida. O discurso, por seu turno, não pode ser resumido, é o plano da
expressão, o modo como o narrador vai usar determinada linguagem/língua para
expressar o que deseja.
Assim, uma determinada história pode ser contada por meio de vários discursos
diferentes, destacando-se partes, selecionando ou ocultando outras, conforme pontos de
vista diferenciados. Ou seja, uma história pode ser expressa no texto (nível do discurso)
conforme as escolhas do narrador.

1) Narrador
Aquele que conta algo numa história. É uma entidade fictícia que se difere do
autor, portanto.
Sumário e cena
Há duas maneiras de o narrador contar algo: por meio do sumário e da cena.
Ocorre sumário na narrativa quando o narrador nos apresenta, resumidamente, os fatos
relatados. A cena é uma tentativa de imitação, por parte do narrador, ao nível do
discurso narrativo, da duração de um diálogo que ocorre no plano da história da
narrativa.
Se no sumário narrativo o narrador apresenta os fatos, na cena ele os representa.
O narrador na terminologia de Gérard Genette
(diegético = referente à diegese, ou história)
a) narrador heterodiegético: relata uma história da qual não participa (narrador em 3ª
pessoa) (hetero = diferente). Ex.: O primo Basílio, de Eça de Queirós, ou Triste fim de
Policarpo Quaresma, de Lima Barreto;
b) narrador homodiegético: relata uma história da qual participa, embora não seja o
protagonista (narrador em 1ª pessoa) (homo = o mesmo). Ex.: Watson, das histórias de
Sherlock Holmes;
c) narrador autodiegético: relata uma história da qual participa, e é o protagonista
(narrador em 1ª pessoa) (auto = o próprio). Ex.: Memórias póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis, ou São Bernardo, de Graciliano Ramos.
1
Material confeccionado a partir de: ABDALA JUNIOR, Benjamin. Introdução à análise da narrativa.
São Paulo: Scipione, 1995; e REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos
literários. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

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Tipologia de Norman Friedman
1) Onisciência do autor-editor: narrador onisciente intruso; 2) Onisciência neutra:
narrador onisciente neutro, ou observador; 3) “Eu” como testemunha (narrador-
testemunha); 4) “Eu” como protagonista (narrador-protagonista); 5) e 6) Onisciência
multisseletiva e Onisciência seletiva: ambas se utilizam do discurso indireto livre e do
fluxo de consciência; o que diferencia uma categoria da outra é que na multisseletiva
são abordados dois ou mais pontos de vista, enquanto na seletiva apenas um é enfocado;
7) Modo dramático: desaparece a figura do narrador, tem-se somente com os diálogos,
como se fosse uma peça teatral; 8) Câmara, ou câmera: uma espécie de radicalização do
narrador onisciente neutro, que tenta ser o mais objetivo possível, “mostrando”
arbitrariamente os fatos, como uma câmera cinematográfica.
Os focos narrativos 1 a 4 são os principais; os de 5 a 8 são menos comuns e
aparecem, com frequência, associados aos focos de 1 a 4.

2) Ação ou Enredo
É o que o narrador relata ao narratário; é a história que está sendo contada por
alguém a um outro alguém. Também o enredo, como as categorias da “personagem” e
do “narrador”, é ficcional: o que está sendo narrado constitui um universo diegético
ficcional, embora, evidentemente, aqui ou ali possam ser feitas conexões de vária ordem
com o mundo empírico. Sendo assim, não se deve cobrar, de um enredo, uma relação
direta com a realidade, mas sim a sua verossimilhança, isto é, que haja uma verdade
interna da ficção, o que ocorrerá se o mundo criado for bem estruturado.
O enredo é onde a o conflito se arma, com os seguintes elementos: um ou mais
sujeitos que nela se empenham, um tempo em que ela se desenrola e transformações que
propiciam a passagem de certos estados a outros estados. A ação se desenvolve a partir
da apresentação de certos eventos de forma encadeada, os quais são encaminhados a um
desenlace ou desfecho. Sendo assim, podemos dizer que, tradicionalmente, o enredo se
estrutura em:
- começo: apresentação das personagens e da história, ocorre uma tensão mínima;
- meio: desenvolvimento do(s) conflito(s), com os consequentes aumentos da
complicação e da tensão, até o...
- fim (desenlace ou desfecho): após o ápice da tensão (o clímax), acontece a resolução
do conflito. Em geral, o clímax não coincide com o desfecho (no caso, chamado de
anticlímax); há coincidência entre clímax e desfecho, por exemplo, nos contos de
enigma ou terror.
Mas, atenção: com frequência, essa ordem é alterada. Há histórias, por exemplo,
que não apresentam clímax, ou há aquelas que começam in media res (no meio das
coisas), só depois acontecendo a apresentação. Deve-se notar que a ação de um romance
policial, por exemplo, vai ser bem diferente da ação de uma romance psicológico.

3) Personagem
Em geral, representam pessoas, mas podem também emular animais ou coisas.
Categoria fundamental da narrativa, a personagem normalmente é o eixo em torno do
qual gira a ação. A personagem é identificável e localizável pelo nome próprio, pela sua
caracterização (física, social e psicológica) e pelos discursos que enuncia, o que permite
associá-la a sentidos temático-ideológicos confirmados em função de conexões com
outras personagens da mesma narrativa, ou até mesmo de relações intertextuais.
A personagem é um ser fictício, ou um “ser de papel”, diferente, portanto, da
pessoa; mesmo quando temos uma “personagem histórica”, essa já difere da pessoa que
o autor usou para se basear.

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Classificação em plana (flat) e redonda (round), por E. M. Forster
- personagens planas ou simples: donas de um comportamento previsível, que pouco
evolui ou se modifica ao longo da narrativa. A repetição de um comportamento pode
levar à classificação de uma personagem como tipificada; a acentuação/radicalização de
uma característica, por sua vez, leva à classificação como personagem caricatural;
- personagens redondas ou complexas: possuem um comportamento imprevisível, o que
as torna mais ambíguas; assim, em geral são mais consistentes e ricas do ponto de vista
da composição narrativa.
Divisão das personagens
- protagonista: é o sujeito da ação, aquele que estabelece um conflito e move a história,
no momento em que busca um objeto (concreto ou abstrato: uma arca perdida, passar no
vestibular, um amor, um amigo etc.); também é chamado de personagem principal, ou
central;
- oponente: personagem secundária que coloca obstáculos à ação do protagonista em
busca do seu objeto; caso o oponente, além de obstaculizar a ação do protagonista,
também dispute o mesmo objeto, tem-se o antagonista; caso só possua qualidades
negativas, caracteriza-se o vilão;
- adjuvante: personagem secundária que auxilia o protagonista na busca do seu objetivo.

4) Espaço
É o componente físico que serve de cenário à história: cenários geográficos,
interiores, decorações, objetos. Há também o espaço social (ambiência social pela qual
circulam as personagens) e o espaço psicológico (as atmosferas interiores das
personagens). Os espaços social e psicológico podem também ser chamados de
ambiente, aquilo que, muitas vezes, reveste o espaço físico de significados.
Uma história pode se passar num espaço amplo – as ruas de uma grande cidade –
ou num espaço reduzido – o quarto de uma casa. Uma rua (espaço físico), por exemplo,
terá diferentes ambientes (espaços social e psicológico), conforme a iluminação daquela
rua no momento, os tipos de pessoas que por ali circulam, se a via estiver suja ou limpa,
com pouco ou muito movimento etc.
Aqui também a questão da verossimilhança se coloca como uma característica
importante da literatura, no momento em que um espaço textual tem que obedecer,
somente, a uma coerência interna, sem levar em conta, muitas das vezes, o espaço
referencial, “real”. Assim, por exemplo, nem sempre o Rio de Janeiro de uma narrativa
vai corresponder 100% ao Rio de Janeiro “real”, ex-Capital Federal e hoje Capital do
Estado de mesmo nome.
Por outro lado, se no cinema a representação do espaço e da ação se dá ao
mesmo tempo, na literatura essa simultaneidade é impossível, pois para se construir o
espaço físico o narrador precisa fazer uma descrição, interrompendo o desenvolvimento
da história. Por isso, diz-se que a descrição “pára” a ação. Assim, pode-se dizer que, no
cinema, a representação da história é simultânea; na literatura, é sucessiva.

5) Tempo
O lapso temporal de uma ação pode ser extenso (vários anos: O tempo e o vento,
romance de Erico Verissimo, por exemplo) ou reduzido (alguns minutos: “O barril de
Amontillado”, conto de Edgar Allan Poe, por exemplo). Quando se consegue medir
cronologicamente a passagem do tempo em uma narrativa, diz-se que o tempo é
cronológico, aquele que pode ser mensurado pelo relógio, pelo calendário, pela
passagem das estações do ano etc. O tempo psicológico, por sua vez, é aquele que não
pode ser medido em segundos, minutos ou horas, pois a ação passa-se dentro da mente

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da personagem, em geral retratada por meio do fluxo de consciência; o tempo
psicológico aparece, também, nos sonhos, nos delírios etc.
Tempos externos à narrativa
- tempo do escritor (ou da escrita): momento histórico da vida do escritor, que interfere
na composição da obra devido a uma série de valores da sua época;
- tempo do leitor (ou da leitura): momento em que o leitor/receptor decodifica (lê,
recebe, assiste) uma obra, conforme os seus valores. Um romance do século XIX é
apreendido de forma diferente hoje (século XXI) do que foi na sua época ou no século
XX.
Tempos internos à narrativa
- tempo da história (TH): é a sucessão cronológica dos eventos de uma narrativa, numa
continuidade que pode ser explicitada pelo narrador ou deduzida pelo leitor; de outro
lado, pode aparecer também o tempo psicológico, que é o tempo cronológico distorcido
em função das vivências subjetivas das personagens;
- tempo do discurso (TD): é a representação narrativa do tempo da história. Grosso
modo, o tempo do discurso pode ser entendido como o tempo que um leitor leva para ler
uma determinada unidade narrativa.
Em geral, TH e TD não correm paralelamente numa narrativa, pois há
interrupção do fluxo temporal da narrativa por meio de:
- retrocessos (flash-backs): uma personagem entra num quarto; logo após, recorda-se de
fatos de sua infância. Para quem lê a narrativa (tempo do discurso), essa recordação vem
depois da personagem entrar no quarto. Entretanto, no nível do tempo da história, houve
uma inversão do vetor da direção temporal, com a apresentação de acontecimentos
anteriores à entrada da personagem no quarto;
- antecipações (flash-forwards): o narrador antecipa a separação de um casal, para levar
o leitor a se preocupar com os fatores que motivaram o afastamento.
A sequência cronológica das ações (o tempo da história) pode se dar, no tempo
do discurso, de três maneiras: por meio do encadeamento (1ª sequência, depois a 2ª, a
3ª, e assim por diante), do encaixe (entre a 1ª e a 2ª sequências, encaixam-se as
sequências 1a, 1b etc. Exemplo clássico: 1001 noites) e da alternância (conta-se a
história A; depois outra, a B, e assim por diante).
Relações entre o tempo da história (TH) e o tempo do discurso (TD)
Escamoteamento, ou elipse: só há o TH, o TD inexiste – o narrador escamoteia
(esconde) uma informação. O texto narrativo sempre pressupõe seleção; assim,
informações não relevantes podem ser suprimidas.
Resumo, ou sumário: TH > TD – o tempo da história tem uma extensão maior que o
tempo que levamos para ler a informação. Ex.: cinco anos da vida de uma personagem
podem ser resumidos em um parágrafo ou em uma frase.
Discurso direto, ou cena: TH = TD – quando ocorrem os discursos diretos, seja por
meio dos diálogos ou dos monólogos; o tempo que as personagens levam para falar é o
tempo que o leitor-modelo levaria para ler.
Análise: TH < TD – o tempo de leitura do discurso narrativo é mais demorado do que o
que se desenvolve ao nível da história. Ex.: alguns minutos de um acontecimento podem
ser contados ao longo de cem páginas.
Digressão: só há o TD, o TH inexiste – é quando o narrador se afasta da história que
está narrando, e começa a fazer digressões, dissertações ou, então, descrições; a ação
“interrompe-se”.

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