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Género Narrativo

Romance  o mais moderno; (extenso e podemos ter ramificações sem fim)

Conto  narrativa antiga, muito curto, microcontos; (texto pouco extenso/ curto,
mas condensado; tem poucas personagens)

Novela  há uma distinção (do romance) da extensão e das personagens; (tem


cerca de 1100/150 páginas; está entre o conto e o romance; não tem tantas
personagens nem uma ação tão ramificada como o romance, mas já é mais
desenvolvida)

Epopeia  ex.: Eneida/ Os Lusíadas/ Odisseia; (apesar de ser em verso é uma


narrativa porque conta uma história)

Fábula  “morreu” ao longo dos tempos. (narrativa protagonizada por animais


antropomórficos- sob a forma humana)

Parábola ex.: parábola do bom samaritano, ou da multiplicação dos peixes;


pequena história que tem por si uma lição de moral; no fundo uma parábola é
uma alegoria)

Modos Literários – grandes categorias estruturais

Lírica, Drama e Narrativa

Drama

Texto narrativo e texto dramático tem uma história ou diegese que envolve uma
ação (sequência de eventos que são protagonizados por personagens e que se
situam num tempo e num espaço).

No caso do texto dramático (que é escrito a pensar na sua possível


representação) não tem narrador e a ação avança através dos diálogos das
personagens. Tudo o que acontece no texto dramático acontece no “aqui e
agora” das personagens. Quando há necessidade de aludir a um tempo
anterior/ passado, tem que ser uma personagem a fazê-lo no seu presente.
É muito mais difícil fazer um drama do que uma narrativa, especialmente por
causa do “tempo” e “espaço” que pode ser utilizado.

Num drama costuma haver um conflito por resolver que acaba por se resolver
num clímax.

A tragédia e a comédia são os dois principais géneros literários do texto


dramático.

Narrativa

Conta uma história.

 Narração da identidade que narra, organiza e conta a história: o narrador.

 Ação, tempo, espaço, personagens.

 O que é um texto narrativo? Um texto que relata eventos (tem de ter um


narrador) que se sucedem no tempo, situados num tempo-espaço,
protagonizados por personagens.

 O narrador não é o autor implícito. Não tem existência, é uma voz off que
geralmente não participa na história, mas, por outro lado, pode até ser
personagem principal, é sim a voz que fala no texto.

 Todo o texto narrativo é formado por: história – sucessão de acontecimentos


no tempo e no espaço; discurso (narração) – o enunciado/texto que conta e
encadeia os eventos. Estão intimamente relacionados pois não existe uma
história sem um discurso.

 O autor não coincide com o narrador  pode haver proximidade, porém não
são a mesma pessoa. O narrador é a voz que fala no texto, é uma figura que
não tem propriamente existência real e é exterior à história que conta, ou seja,
é heterodiegético.

 As narrativas são ficcionadas.


Narrativa Aberta e Narrativa Fechada

 Narrativa aberta

 técnica mais recente;

 deixa a ação com pontos de indeterminação (aspetos por resolver);

 causa desconforto ao leitor.

 Narrativa fechada

 Quando a intriga se desenvolve e termina (sabemos o final das


personagens).

Ação / Intriga

 Ação – é mais focada na sequenciação de acontecimentos.

 Intriga – os acontecimentos não são só sequenciados, mas também são


encadeados entre si.

Narrador

Heterodiegético

 Não participa na história que conta, ou seja, é exterior à história que narra.

Heterodiegético de grau zero

 Não se manifesta na história que conta, isto é, mantém-se neutro à história


que narra.

Heterodiegético interventivo

 Que intervém na história que conta.

Homodiegético

 Participa como personagem na história que narra.

Autodiegético
Conta na 1ª pessoa a história narrada.

Espaço e Tempo

Tempo

Tempo da história diferente de tempo do discurso

Tempo da história  princípio, meio e fim – mais fácil de observar porque a


história tem encadeamento e uma ação – tem uma certa cronologia  passada
num certo espaço.

Tempo do discurso  permite narrar os acontecimentos sem ser


cronologicamente.

Tempo – espaço  estão interdependentes (relacionados entre si).

Espaço

Espaço físico – ex.: em Coimbra

Espaço social – ambiente em que ocorre a ação.

Espaço psicológico – história passa também no pensamento de alguém,


portanto o pensamento é o espaço de alguém.

Personagens

As personagens são seres de palavras, seres humanos, simulados, feitas com


base na nossa imagem e semelhança. Os animais, as idades, as alegrias –
podem ser considerados, excecionalmente, como personagens. Estão
enquadradas socialmente.

Há três tipos de personagens:

1) Principais – a história gira à volta delas;

2) Secundárias;
3) Figurantes – como pano de fundo da ação.

A ação centra-se no protagonista, que é o centro da diegese, é mais explorada


do ponto de vista psicológico, recebe o papel de herói/heroína.

Há uma distinção das personagens, pois estas podem ser planas ou redondas:

a) Planas – é traçado um perfil psicológico no início da história e não evolui;

b) Redondas – tem densidade e não é apenas feita de traços gerais.

Formas de caracterizar personagens

 Caracterização direta – feitas, em princípio, pelo narrador, as características


são feitas de forma direta, de forma a que a personagem fique desde logo
apresentada e, depois, limita-se a apresentar-se tal como foi descrita.
Características físicas, psicológicas e sociais.

 Caracterização indireta – revelada pela personagem quanto aos seus atos,


às suas falas e à relação com as outras personagens. O leitor quem que
abstrair as características das personagens.

Focalização e Voz

Focalização e voz são dois aspetos indissociáveis: a voz indica-nos quem tem
a palavra, o discurso; a focalização indica-nos quem tem o campo de
observação.

Nem sempre quem fala é quem está a observar! Daí advém a dificuldade em
perceber como nos chega a informação no texto narrativo.

A principal entidade a deter o discurso e o foco narrativo é o narrador. O que


acontece num texto narrativo é que há intervenção de outras vozes de
personagens;
Cabe ao narrador orquestrar esse coro de vozes. Ele pode incorporar as vozes
das personagens no romance servindo-se de uma panóplia de técnicas, tais
como:

QUANTO À VOZ:

• Discurso Direto – citação de personagens

• Discurso Indireto – transposição da fala das personagens; é mediado pelo


narrador. Há alteração dos tempos verbais, advérbios de tempo e lugar, etc.

• Discurso Indireto-Livre – invenção do século XIX. Voz duplamente dual/ a


dois. Mostra-se o narrador e a personagem ao mesmo tempo.

- ex: “Ela lembrou-se das tardes de verão cheias de sol. Que felicidade nesse
tempo! Não restava nada disso agora!” (Madame Bovary) - se fosse no
discurso indireto, os pontos de exclamação, bem como o próprio tom
exclamativo, não estariam presentes.

• Monólogo Interior – discurso direto de uma personagem, normalmente longo,


em que fala sozinha. É uma intervenção moderna, de James Joyce, que
consiste em reproduzir o discurso mental de uma personagem, caótico, sem
linguagem ou pensamentos organizados. Discurso fragmentário, que vai buscar
as mais variadas recordações, pensamentos que passam pela cabeça de
alguém que não está propriamente a falar, mas a pensar.

QUANTO À FOCALIZAÇÃO:

Focalização = perspetiva narrativa = foco narrativo = ponto de vista narrativo.

É o campo de observação; quem olha; quem tem conhecimento.

As diferentes estratégias usadas determinam a qualidade de informação que é


dada.

Pende essencialmente do estatuto do narrador (pode ser hétero, homo ou


autodiegético) – Nota: um narrador heterodiegético está fora da história, por
isso, pode ter sobre ela uma visão ampla e panorâmica, se assim o desejar. Já
o narrador do tipo auto ou homodiegético, que é personagem, tem um campo
de conhecimento mais limitado, semelhante ao de uma pessoa normal.

No século XIX o comum era o narrador ser omnisciente, isto é, sabia tudo. Um
narrador deste tipo também tem uma focalização omnisciente, ou seja, tem
uma capacidade de visão completa, panorâmica, consegue saber o que
pensam e sentem as personagens,

A partir de meio do século XIX, começou a procurar-se formas de focalização


mais realistas, no sentido em que não é uma única consciência a perceber e a
transmitir tudo. Ou seja, acontece que o narrador dá espaço a personagens
para elas próprias se observarem e analisarem interiormente – Focalização
interna (≠ omnisciente).

Quando a personagem se analisar a si própria, é mais parcial, mais falível e


menos digna de confiança que o narrador (pelo menos há confronto entre duas
perspetivas diferentes). Esta técnica é muito utilizada por Eça de Queirós – há
um deslizar subtil para dentro do campo da personagem; é ele que se está a
analisar e não o narrador, pois este fá-lo-ia de outra maneira.

Há personagens que são ingénuas e não têm a capacidade de observar o


mundo de forma igual ao narrador – ex.: crianças têm uma perspetiva interna
diferente da do adulto; essa variação pode conferir um estilo muito interessante
ao romance.

Focalização externa – corresponde ao que se chama em inglês “showing”, em


vez de contar (“telling”), isto é, o narrador que se coloca como observador
externo, sem conhecimento do que se passa no interior das personagens e até
de certos pormenores da ação; reajusta os gestos, as falas, os movimentos.
Esta técnica é muito inspirada no cinema.

A focalização também pode ser interventiva ou neutral:

• Focalização Interventiva – quando o narrador faz comentários e juízos de


valor. Às vezes até fala com o leitor.

• Focalização Neutral – o narrador “apaga-se”, ou seja, tenta aproximar-se do


“grau zero”, evitando deixar marcas de subjetividade, apesar de elas existirem
sempre, pois é impossível redigir sem subjetividade, contudo é possível fazer
um esforço para a controlar.

Nota: a tendência é para que quanto mais moderna a narrativa, mais neutral a
posição do narrador.

Tempo na narrativa (tempo dos verbos)

 Tem dois aspetos complementares

 Da diegese  (cronologia + história) conceito da narratologia que diz respeito


à dimensão ficcional de uma narrativa. Realidade própria da narrativa à parte
da realidade externa de quem lê. O tempo diegético e o espaço diegético são,
assim, o tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com
suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor.

o Analepses  retrospetiva do passado;

o Prolepses  consiste na alteração da ordem sequencial dos acontecimentos,


antecipando alguns que ainda não tenham ocorrido ou fazendo simplesmente
um sumário de uma situação que virá a ocorrer.

 Do discurso  o narrador escolhe o tempo.

Ulterior  história contada depois de ter acontecido.

Anacronia  não obedece à sucessão normal dos acontecimentos registada


pela cronologia.

Elipse- quando o narrador oculta o que aconteceu em determinado período da


história. (Ex.: “Passaram 5 anos”)

No texto de Umberto Eco (“Demorando no Bosque”), temos uma análise do


tempo enquanto categoria da narrativa. Notas importantes:

Umberto Eco compara a leitura da narrativa a um passeio no bosque.


• Quanto à perspetiva de passagem do tempo há 2 posições antagónicas: se
por um lado o leitor quer atingir o clímax, por outro há uma demora na
satisfação de prazer, que é por si só uma forma também ela de prazer literário.
Isto é, queremos ter a satisfação de saber como acaba a história, mas temos
simultaneamente o prazer da demora em chegar lá.

• “Demorar não significa perder tempo”, dado que esse tempo de demora tem
por si só um valor estético.

• O leitor está envolvido na trama não só psicologicamente, porque se identifica


com as personagens, mas também porque o narrador lhe vai dando sinais de
suspense - sinais de que alguma coisa se vai passar. Contudo, por vezes
podemos ser levados a esperar certo desenlace, que não acontecerá. Isto é, o
autor pode frustrar o nosso horizonte de expectativas.

• Tempo da leitura - tempo que o autor geriu e nos obriga a ler de certa
maneira.

• O ritmo narrativo impõe ao leitor um certo ritmo de leitura!

“O ritmo da leitura acompanha o do corpo, o ritmo do corpo


acompanha o da leitura. Não se lê apenas com o cérebro, lê-se
com o corpo inteiro, e por isso sobre um livro nós choramos, e
rimos, e lendo um livro de terror se nos eriçam os cabelos na
cabeça. Porque, mesmo quando parece falar só de ideias, um
livro nos fala sempre de outras emoções, e de experiências de
outros corpos.”
Humberto Eco
O Anjo Ancorado

Resumo

O anjo ancorado, obra de José Cardoso Pires, é nas palavras do próprio autor
uma fábula. É uma história simples cuja ação se desenrola numa tarde. João,
um homem da cidade, resolve ir fazer pesca submarina numa pequena aldeia
nos arredores de Peniche, acompanhado por Guida, uma jovem com metade
da sua idade, que ainda mal conhece.

Mal chegam à falésia são abordados por um rapazinho da aldeia que tenta logo
fazer negócio com os forasteiros, propondo a venda de uma renda que a irmã
terminará à pressa. Também um velhote que tenta caçar um pequeno
perdigoto faz parte desta história, uma história repleta de contrastes. De um
lado a despreocupação de João e Guida, claramente abastados, do outro lado
os habitantes da pequena aldeia, vivendo à beira da miséria, dependentes dos
humores do mar. Este contraste está também presente no próprio ritmo da
narrativa: lento na de João e Guida, simbolizando as despreocupações, e mais
acelerado na da população local, denotando a dificuldade de vida e a luta pela
subsistência.
Técnicas narrativas em “O Anjo Ancorado” - neorrealista e alegórica

Este prisma cinematográfico em forma de “cenas” que se sucedem


regularmente, acentuando a brusca diferença social entre os personagens,
como observamos nos capítulos XV, XVI, XVII e XVIII. No exemplo a seguir, o
narrador opõe por meio de alternância o velho que caça um perdigoto por
sobrevivência enquanto João desbrava o mar à procura de prazer pessoal e
afastamento do mundo real:

XV. Correu-lhe no encalço. Em menos de nada, velho e perdigoto encaravam-


se, tolhidos de medo, na ponta de uma falésia.

XVI. Pelo carreiro a prumo, o caçador [João] do oceano carregava às costas o


peixe fabuloso.

Nas obras neorrealistas deste período, a realidade social surge representada


como estagnada e incapaz de uma mudança. Ou seja, uma realidade social
moldada por um regime autoritário que não foi removido após o final da
Segunda Guerra Mundial.

A realidade aludida é dualista, o que faz com que todas as personagens deste
romance se movimentem e interajam a partir da sua classe social, sem que
sejam capazes de agir segundo uma lógica de mutualidade de modo a
transformar as várias manifestações de escassez em abundância.

Em O Anjo Ancorado, não são apenas os habitantes de São Romão, a aldeia


piscatória, que não têm meios humanos de realização e, como tal, não acedem
a uma individuação. Também João e Guida, os protagonistas endinheirados e
entediados pela abundância, não se sentem realizados, não acedendo sequer
a qualquer tipo de individuação que os pudesse definir como sujeitos porque
«sofrem» a realidade que lhes é imposta sem a poder modificar.

Mais do que João, Guida encontra-se num estado de ignorância e de


alheamento em relação à realidade sua circundante:

 Guida não vê o velho do perdigoto como um idoso que anda atrás do


pássaro porque tem fome; vê erradamente um velho cruel que quer
aprisionar uma pobre ave e, em consequência da sua visão distorcida e
falsamente «humanista», dá-lhe dinheiro para a soltar.
 Também não vê o miúdo que quer vender a renda que a irmã está a
fazer no lapso de tempo em que os visitantes citadinos se encontram na
aldeia.

Guida só vê o que o seu lugar de classe lhe ensinou a ver: a beleza da


paisagem marítima, o homem que a acompanha que poderá vir a ser o seu par
amoroso, a bestialidade do velho do perdigoto e a desumanidade do rapaz do
casaco largo e comprido. Em suma: todas as personagens deste romance são
agentes passivos em relação à realidade, que é a sua.

A figura de Guida, a protagonista feminina, está ancorada numa


emocionalidade de dúvidas sentimentalistas extemporâneos, (contrária à
independência feminina desejada e exibida), que acaba rejeitada pela
indiferença de João, o seu companheiro de passeio.
Tipos de Narrador

Em O anjo ancorado notamos alguns tipos de narrador que contribuem para


ampliação do entendimento da obra em vários níveis:

 o narrador que torna os personagens sujeitos da enunciação;


 o narrador que “joga” com elementos estruturais da cultura clássica,
fazendo menções a passagens bíblicas, mitologia, fábulas até
constituintes da escrita científica e tradicional, como: a precisão
temporal, notas de rodapé e inserção de referências do “mundo real”,
etc.

As referências às passagens bíblicas (“cão de Lázaro”) e ás fábulas (“crocodilo


e do bode”) mostram a dicotomia entre mito/realidade e ficção/documento
como formas de representação de Portugal e, sobretudo, a desconstrução de
imagens idealizadas e do discurso instituído pelo regime.
Personagens

 João e Guida (coprotagonistas que possuem drásticas diferenças)


 Camponeses de São Romão e convidados da Casa da Parede
(personagens secundárias)

Através de João e Guida observamos a exploração de temas característicos da


realidade portuguesa: a soberba da burguesia, “a falta de motivação, o ócio, a
hierarquia sociocultural, o posicionamento social feminino”

Assim temos, como exemplo, Guida, “anjo ancorado”, personagem


representante da segunda geração sob regime salazarista: prolixa (fala muito),
alienada (não se interessa pelos acontecimentos do país), dona de desejos
vagos que não se sustentam entre a deceção com o passado e a falta de
perspetivas futuras (realçadas por Cardoso Pires na maneira fechada com que
encerra o romance).

Como pontos a favor de Guida, manifesto de crítica à realidade em: “O erro,


João, o crime, está em nos terem ensinado desde pequenos a renunciar à vida.
Contrariar, dominar o desejo natural” e no seu posicionamento, ainda que muito
questionável, como mulher burguesa numa sociedade machista que se
manifesta em: “Tinha a voz áspera, de mando. Guida, e quase toda a gente de
boas famílias, num tom áspero de voz” e defende sua posição de mulher em
relação a João: “[Diz Guida:] (...) ‘Gracejam como se as mulheres não
passassem dumas peças de caça.' ‘E são. Em muitos casos são.' ‘Oh, cale-se.”
João (tem o dobro da idade de Guida), personagem solitário, amargo, dono de
sorrisos “de canto de boca”, “ex-camponês” que carrega a pesada armadura de
cidadão burguês acomodado e pacato, cujo desencanto é em grande parte
respondido por um sentimento de desejo não-cumprido quando resistira contra
o regime salazarista nos tempos de Faculdade. Este desalento, a nosso ver,
potencializa-se quando João ouve o discurso de ideologia vazia de Guida,
como se tivesse culpa por ter legado às gerações seguintes um país ainda em
ditadura: “[Diz João à Guida:] Por nada. Talvez me sinta um pouco culpado por
si. É possível. Nesta altura tinha eu vinte e poucos anos.”

O final do romance é como resumo do descaso, da alienação e da perda de


sensibilidade humana de João e Guida (em analogia à burguesia portuguesa)
em relação aos habitantes de São Romão numa cena impactante, rápida, seca:
“No automóvel, a caminho de Lisboa: ‘Que faz você amanhã?' ‘Não sei. E
você?' O carro mordia a estrada, aos uivos nas curvas.”

No segundo grupo abordaremos o que chamamos de “os outros”. Os


habitantes das falésias são: o “cão”, o velho, o menino, o dono da taberna,
Ernestina, sua mãe e seu marido. Todos lutam pela sobrevivência, vivendo em
condições de inércia e pobreza em clara oposição aos da Casa da Parede,
principalmente, Gatucha, a dona da casa, e o escultor-crocodilo. Ambos
representantes da burguesia de Lisboa, fúteis, de discurso exagerado e sem
base ideológica, mas, ainda assim, sendo o escultor-crocodilo dono de um
registo bem mais politizado.

Nos habitantes de São Romão reparamos na pobreza, no abandono, na


estagnação reforçada pela situação social de Portugal simbolizada
metonimicamente na região erma das falésias, sem atrativo algum além da
pesca marítima.
Espaço

 cidade, correspondente a João e Guida


 aldeia (velho, menino e rendeira, basicamente)

Um grupo (Guida e João) invade os limites geográficos do outro (dos aldeões).

O espaço, portanto, é resinificado e valorizado, não se apresenta apenas como


mero pano de fundo da narrativa, antes é um ambiente “extraliterário da
história.”

O reduzido espaço geográfico em que se passa a narrativa de O anjo


ancorado (tanto a cidadezinha de São Romão quanto a Casa da Parede) é
figura de linguagem, metonímia, referente a um Portugal “pequeno” para os
que pretendem a liberdade e o trânsito livre, “virado de costas” para a
modernidade e fechado em suas fronteiras, o que, sobretudo, reforça a
condição social dos “ancorados” agora também presos a um espaço mínimo e
opressor. Deste modo, ancorados estão os habitantes de São Romão à miséria
e à paralisação; bem como os convidados da Casa da Parede estão presos à
alienação e à futilidade.
Tempo

O tempo é “curto” (não perpassa mais que uma tarde): “‘Que faz você
amanhã?' Não sei. E você?’”; “subjetivo” e “poli-temporal”, dado que por muitas
vezes aparece na narrativa de acordo com os desígnios dos diversos
personagens, por “flash backs”, por lembranças ao acaso, etc.

Exemplo:

“[Guida] passeando ia esmiuçando recordações, e esmiuçando recordações


surgiam-lhe, entre várias, a do companheiro depois do serão de amigos, na
Parede. Revia-se ao lado dele, no mesmo carro aberto que estava ali agora
encalhado entre cardos e ventania. (...) Já tinham distanciado um bom par de
léguas da casa dos tais amigos e Guida ainda continuava revoltada com o dito
do escultor-crocodilo.”

Os burgueses estavam refastelados e seguros do dia de amanhã. Tinham o


tempo a favor deles.
Notas

Capítulo 1

 Conhecemos as personagens através da informação que o narrador dá


e do que uma personagem diz da outra.
 A focalização utilizada no início da história é externa.
 João- sabe olhar a realidade social e económica que o rodeia,
consciente disso. Mas prefere fechar os olhos e ignorar.

Capítulo 7

 Perspetiva interna, olhamos para Guida através do olhar de João


 Analepse- retrospetiva/ andar para trás no tempo
 Momento em que João viu a Guida (Focalização interna do João)

Capítulo 11

 Alegoria da morte do regime. Discurso politico-ideológico. Critica ao


regime, desigualdade social
Excertos da obra

“Porque é que as casa não hão de estar de mal com o mundo, como as
pessoas?” perguntou então a jovem. Observando com mais demora percebeu
que sim, que estavam. Estas pelo menos. De mal com a terra, pior ainda, com
o mar.”

Nota-se que o “tom” de Guida persiste na sequência da narrativa,


desvalorizando, por meio do discurso indireto livre, a possível voz absoluta de
um narrador onisciente (característico, aliás, do pragmático início do
Neorrealismo português em 40 e negado por Cardoso Pires) e criticando, por
conseguinte, a voz estabelecida e opressora da ditadura. Além disso o
monólogo solitário ou o olhar específico do narrador sobre dado personagem
potencializam suas situações de alienação e abandono.

Na Casa da Parede, a situação é de pretensa festa, de encontro social; porém


o que se vê é, por meio do discurso prolixo “o esvaziamento da palavra”, a
alienação e a falta de interação entre os participantes: “[A João] acontecia-lhe
deixar de os ouvir por momentos e então apanhava-os como vultos no aquário,
envolvidos numa fumarada de cigarros”. O escultor-crocodilo por meio da
fábula do bode e do crocodilo em óbvia referência a forte censura salazarista
direcionada aos que se manifestavam contra o regime: “[Diz o bode ao
crocodilo:] – Pois é verdade. Vão lançar uma lei que manda matar todos os
animais de boca grande.”

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