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Concordância do verbo ser

Por Cláudio Moreno

Prezado professor, sempre me confundo com o verbo ser: “As lembranças É tudo o que
fica na memória” ou “As lembranças SÃO tudo o que fica na memória”? Quando eu
uso É ou SÃO? Tenho de concordar com o que vem antes ou com o que vem depois do
verbo? Para mim é a maior confusão; já tentaram me explicar, mas nunca entendi.
Rubem Paes

Meu caro Rubem, se te serve de consolo, fica sabendo que determinar o sujeito do
verbo ser não é fácil para ninguém. Numa frase como “O pinheiro é muito alto”, não há
dúvida alguma quanto às funções sintáticas: o pinheiro é o sujeito e muito alto é o
predicativo. No entanto, numa frase como “A responsável é ela“, já não temos certeza
de qual dos dois termos em destaque funciona como sujeito (e, portanto, comanda a
concordância do verbo).

Se nos apegarmos à ideia de que o sujeito é o que fica à esquerda do verbo, diremos
que o sujeito é A RESPONSÁVEL — o que se revela um palpite infeliz assim que
fazemos uma simples alteração na frase: “*A RESPONSÁVEL é tu”. Essa frase é
inaceitável. No Português culto, o verbo ser deve concordar com tu; a forma correta
será “A responsável és TU”.

Alguns autores afirmam que, aqui, “o verbo está concordando com o predicativo”! — o
que faria do verbo ser uma verdadeira atração de circo: “Vejam! Vejam! O único verbo
que consegue concordar com outra coisa que não o sujeito da frase!”. Pelo tom que
adotei, percebes que não julgo ser essa uma boa interpretação do fenômeno. Acho que é
muito mais adequado dizer que o sujeito do verbo ser ora pode vir antes, ora depois do
verbo; em cada frase específica, tu deverás, então, para fazer a concordância, decidir
qual é o sujeito, qual é o predicativo. Para tanto, nota que as pessoas que escrevem
bem em nossa língua seguem, geralmente, uma ordem de precedência que vai depender
dos elementos que estiverem de um lado e do outro do verbo ser — mais ou menos
similar àquele código de boa conduta que todo jovem devia seguir, nos anos 70, ao
embarcar num ônibus ou qualquer transporte coletivo. Vamos recordar a cena: todos os
assentos do ônibus estão tomados, exceto um. Sobem dois passageiros, uma velhinha
coroca e um jovem atleta. A quem pertence o assento vago, no código da etiqueta e da
educação? É claro que à velhinha. E se os dois novos passageiros fosse uma jovem de
perna quebrada e uma velhinha de cabelo grisalho? Eu diria que à jovem de perna
quebrada, que tem mais dificuldade de se manter de pé (embora, no meu tempo de
faculdade, quatro ou cinco dos passageiros que estavam sentados levantariam e
começariam a brigar pelo privilégio de ceder o seu lugar à vovozinha; hoje…). E se
fosse uma jovem de perna quebrada e uma jovem grávida de oito meses? E se fosse uma
velhinha de perna quebrada e uma velhinha grávida? E assim por diante, dois a dois, os
passageiros iriam subindo neste nosso ônibus virtual, e nós iríamos decidindo de acordo
com os códigos não-escritos da grande tribo em que vivemos. Assim é com o nosso
verbo ser: para decidir quem vai ocupar o lugar do sujeito, temos de comparar os dois
candidatos ao cobiçado assento:
(1) substantivo humano + SER + substantivo não humano — O sujeito será o
substantivo com traço humano, qualquer que seja sua posição na frase: “O pior são os
vizinhos“; “O inferno são os outros“; “Minha filha é meus cuidados”.

(2) substantivo (qualquer) + SER + pronome pessoal reto — O sujeito será o


pronome reto, que, como você já viu, sempre exerce a função de sujeito: “A
responsável és tu”; “O responsável sou eu“; “Os interessados somos nós“.

(3) substantivo no singular + SER + substantivo no plural — A preferência é


normalmente dada ao substantivo com o traço plural: “Meu problema são os dentes“;
“Os tijolos são um material barato”.

4) substantivo + SER + pronomes não-pessoais (quem, que, isto, aquilo, tudo, nada)
— Neste caso, o mais aconselhável é considerar sujeito o substantivo: “Tudo são
mentiras“; “Aquilo são invenções“. Isso esclarece a forma correta da frase que você
menciona: “As lembranças são tudo o que fica na memória”.

Quando se trata de concordar com quantias, distâncias, horas, etc., o verbo ser deverá
concordar com a expressão numérica: se ela for igual ou maior do que 2, usa o plural:
“São quase duas horas“; “É uma e meia“; “Daqui ao centro são três quilômetros“;
“Aqui está a conta: são dois mil reais“.

Com datas, alguns autores querem que se mantenha essa concordância com o numeral:
“Eram dez de setembro”; “São dois de julho”. O uso moderno, no entanto, não aceita
essa forma, preferindo “Era [o dia] dez de setembro”; “É [o dia] dois de julho”. No caso
de prestar um concurso público, cabe a ti, com um pouco de discernimento, distinguir a
qual das duas correntes se filia a banca examinadora. Em caso de dúvida, faz a
concordância são, eram, etc., pois esta é uma posição que encontra muitos adeptos
entre os gramáticos conservadores, os quais, por uma ironia do destino (ou não?)
constituem a bibliografia básica da maioria das bancas. Abraço. Prof. Moreno

Artigo originalmente publicado no site Sua Língua.

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