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PLATÃO. O Banquete. In: ________. Diálogos.

O Banquete – Fédon –
Sofista – Político. Tradução José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e
João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972

Apolodoro1 e um Companheiro

ma APOLODORO continuou, dize-me se tu mesmo esti­


— Creio que a respeito do que que­ veste presente àquele encontro ou
reis saber não estou sem preparo. Com não.” E eu respondi-lhe: “É muitíssimo c
efeito, subia eu há pouco à cidade, provável que nada de claro te contou o
vindo de minha casa em Falero2, teu narrador, se presumes que foi há
quando um conhecido atrás de mim pouco que se realizou esse encontro de
avistou-me e de longe me chamou, que me falas, de modo a também eu
exclamando em tom de brincadeira3: estar presente. Presumo, sim, disse ele.
“Falerino! Eh, tu, Apolodoro! Não De onde, ó Glauco?, tornei-lhe. Não
me esperas?” Parei e esperei. E ele dis­ sabes que há muitos-anos Agatão não
se-me: “Apolodoro, há pouco mesmo está na terra, e desde que eu frequento
eu te procurava, desejando informar- Sócrates e tenho o cuidado de cada dia
me do encontro de Agatão, Sócrates, saber o que ele diz ou faz, ainda não se
b Alcibíades, e dos demais que então passaram três anos5? Anteriormente,
assistiram ao banquete4, e saber dos rodando ao acaso e pensando que fazia ma
seus discursos sobre o amor, como alguma coisa, eu era mais miserável
foram eles. Contou-mos uma outra que qualquer outro, e não menos que
pessoa que os tinha ouvido de Fênix, o tu agora, se crês que tudo se deve fazer
filho de Filipe, e que disse que também de preferência à filosofia”6. “Não fi­
tu sabias. Ele porém nada tinha de ques zombando, tomou ele, mas antes
claro a dizer. Conta-me então, pois és dize-me quando se deu esse encontro”.
o mais apontado a relatar as palavras “Quando éramos crianças ainda, res­
do teu companheiro. E antes de tudo, pondi-lhe, e com sua primeira tragédia
5 Entre a data da realização do banquete (v.
10 interlocutor de Sócrates não está só. infra 173a) e a da sua narração .por Apolodoro
(N. do T.) medeiam portanto muitos anos. Tanto quanto
2 Porto de Atenas, ao sul do Pireu, a menos de um indício cronológico, essa notícia vale como
6 km da cidade. (N. doT.) uma curiosa ilustração da importância da me­
3 A brincadeira consiste no tom solene da inter­ mória na cultura da época. V. infra 173 b e cf.
pelação, dado pelo patronímico e pelo emprego Fédon, 57 a-b (N. do T.)
do demonstrativo em vez do. pronome pessoal. 6 O entusiasmo de Apolodoro, raiando o ridí­
(N. do T.) culo, constitui sem dúvida o primeiro traço do
4 Literalmente, jantar coletivo. Depois da refei­ retrato que o Banquete nos dá de um Sócrates
ção propriamente dita é que havia o simpósio, capaz de suscitar desencontradas adesões, e nes­
i.e., “bebida em conjunto”, acompanhado das se sentido é uma hábil antecipação da atitude
mais variadas diversões, entre as quais as com­ de Alcibíades, também ridícula, mas noutra
petições literárias. (N. doT.) perspectiva. Cf. infra 222 c-d (N. doT.)
14 PLATAO
I

Agatão vencera o concurso7, um dia ro! Sempre te estás maldizendo, assim


depois de ter sacrificado pela vitória, como aos outros; e me pareces que
ele e os coristas8. Faz muito tempo assim sem mais consideras a todos os
então, ao que parece, disse ele. Mas outros infelizes, salvo Sócrates, e a
quem te contou? O próprio Sócrates? começar por ti mesmo. Donde é que
Não, por Zeus, respondi-lhe, mas o pegaste este apelido de mole, não sei
b que justamente contou a Fênix. Foi um eu; pois em tuas conversas és sempre
certo Aristodemo, de Cidateneão, pe­ assim, contigo e com os outros esbra­
queno, sempre descalço9; ele assistira vejas, exceto com Sócrates.
à reunião, amante de Sócrates que era,
APOLODORO
dos mais fervorosos a meu ver. Não — Caríssimo, e é assim tão evi­
deixei todavia de interrogar o próprio dente que, pensando desse modo tanto
Sócrates sobre a narração que llie ouvi, de mim como de ti, estou eu delirando
e este me confirmou o que o outro me e desatinando?
contara. Por que então não me contas­
te? tomou-me ele; perfeitamente apro­ COMPANHEIRO
— Não vale a pena, Apolodoro,
priado é o caminho da cidade a que
brigar por isso agora; ao contrário, o
falem e ouçam os que nele transitam.”
que eu te pedia, não deixes de fazê-lo;
E assim é que, enquanto caminhá-
conta quais foram os discursos.
c vamos, fazíamos nossa conversa girar
sobre isso, de modo que, como disse ao APOLODORO
início, não me encontro sem preparo. — Foram eles em verdade mais ou
Se portanto é preciso que também a menos assim. . . Mas antes é do come- ma
vós vos conte, devo fazê-lo. Eu, aliás, ço, conforme me ia contando Aristo­
quando sobre filosofia digo eu mesmo demo, que também eu tentarei contar-
algumas palavras ou as ouço de outro, vos.
afora o proveito que creio tirar, ale­
gro-me ao extremo; quando, porém, se Disse ele que o encontrara Sócrates,
trata de outros assuntos, sobretudo dos banhado e calçado com as sandálias, o
vossos, de homens ricos e negociantes, que poucas vezes fazia; perguntou-lhe
ã mim mesmo me irrito e de vós me então onde ia assim tão bonito.
apiedo, os meus companheiros, que Respondeu-lhe Sócrates: — Ao jan­
pensais fazer algo quando nada fazeis. tar em casa de Agatão. Ontem eu o
d Talvez também vós me considereis evitei, nas cerimônias da vitória, por
infeliz, e creio que é verdade o que pre­ medo da multidão; mas concordei em
sumis; eu, todavia, quanto a vós, não comparecer hoje. E eis por que me
presumo, mas bem sei. embelezei assim, a fim de ir belo à casa
COMPANHEIRO • de um belo. E tu — disse ele — que tal b
— És sempre o mesmo, Apolodo- te dispores a ir sem convite ao jantar?
7 Em 416, no arcontado de Eufemo. V. supra — Como quiseres — tomou-lhe o
nota 5. (N. do T.)
8 Os que formavam o coro de sua tragédia. outro.
(N. do T.) — Segue-me, então —1 continuou
9 Tal como o próprio Sócrates (v. infra 174a). •Sócrates '— e estraguemos o provér­
Sem dúvida, outra indicação do fascínio que
Sócrates exercia sobre os amigos. (N doT.) bio, alterando-o assim: “A festins de
O BANQUETE 15

bravos10, bravos vão livremente.” ce. Chegado à casa de Agatão, encon- e


Ora, Homero parece não só estragar tra a porta aberta e aí lhe ocorre, dizia
mas até desrespeitar este provérbio; ele, um incidente cômico. Pois logo
pois tendo feito de Agamenão um vem-lhe ao encontro, lá de dentro, um
homem excepcionalmente bravo na dos servos, que o leva onde se recli­
guerra, e de Menelau um “mole lancei- navam1 3 os outros, e assim ele os
ro”, no momento em que Agamenão encontra no momento de se servirem;
fazia um sacrifício e se banqueteava, logo que o viu, Agatão exclamou: —
c ele imaginou Menelau chegado sem Aristodemo ! Em boa hora chegas para
convite, um mais fraco ao festim de um ■jantares conosco ! Se vieste por algum
mais bravo11. outro motivo, deixa-o para depois, pois
Ao ouvir isso o outro disse: — É ontem eu te procurava para te convi­
provável, todavia, ó Sócrates, que não dar e não fui capaz de te ver. Mas. . .
como tu dizes, mas como Homero, eu e Sócrates, como é que não no-lo
esteja para ir como um vulgar ao fes­ trazes?
tim de um sábio, sem convite. Vê — Voltando-me então — prosse­
então, se me levas, o que deves dizer guiu ele — em parte alguma vejo Só­
d por mim, pois não concordarei em che­ crates a me seguir; disse-lhe eu então
gar sem convite, mas sim convidado que vinha com Sócrates, por ele convi­
por ti. dado ao jantar.
— Pondo-nos os dois a caminho12 — Muito bem fizeste — disse Aga­
— disse Sócrates — decidiremos o tão; — mas onde está esse homem?
que dizer. Avante! — Há pouco ele vinha atrás de w a
Após se entreterem em tais conver­ mim; eu próprio pergunto espantado
sas, dizia Aristodemo, eles partem. Só­ onde estaria ele.
crates então, como que ocupando o seu — Não vais procurar Sócrates e
espírito consigo mesmo, caminhava trazê-lo aqui, menino1 4? — exclamou
atrasado, e como o outro se detivesse Agatão. — E tu, Aristodemo, reclina-
para aguardá-lo, ele lhe pede que avan­ te ao lado de Erixímaco.
10 1 liada, XVII, 587, “de bravos” (àya&ãiv') coin­
Enquanto o servo lhe faz ablução
cide com o nome do poeta Agatão (. para que se ponha à mesa, vem um
O provérbio homéricò fica estragado, primeira­ outro anunciar: — Esse Sócrates reti-
mente por se subentender de Agatão, e também
pelo fato de o próprio Sócrates se qualificar de rou-se em frente dos vizinhos e parou;
bravo, contra o hábito de sua irônica modéstia. por mais que eu o chame não quer
(N. do T.)
11A “mais fraco” e “mais bravo” correspondem entrar.
no texto grego simplesmente os comparativos — E estranho o que dizes — excla­
de “ruim” e “bom”. Tal relação deixa-nos ver
assim, sob a capa de uma crítica ao grande poe­ mou Agatão; — vai chamá-lo ! E não
ta, o aspecto fundamental do pensamento de mo largues!
Sócrates, i.e., sua constante referência à idéia do
bem. Outra indicação dramática, sem dúvida, Disse então Aristodemo: Mas não! b
que preludia a doutrina da atração universal do
bom e do belo. V. infra 205d-e. (N. do-T.) 13 Em longos divãs, que geralmente comporta­
12 Outra alteração de um verso homérico tam­ vam dois convivas, às vezes três. (N. do T.)
bém tornado proverbial (Jliada, X, 224), em 14 Agatão está falando a um servo, tal como
que -npò o rov. (= um pelo outro) é substi­ muitas vezes um patrão entre nós fala com em­
tuído por irpò òõoü (= a caminho). (N. doT.) pregado. (N. doT.)
16 PLATÃO

Deixai-o! É um hábito seu esse1 5: às dos copos que pelo fio de lã escorre1 7
vezes retira-se onde quer que se encon­ do mais cheio ao mais vazio. Se é e
tre, e fica parado. Virá logo porém, assim também a sabedoria, muito
segundo creio. Não o incomodeis por­ aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
tanto, mas deixai-o. creio que de ti serei cumulado com
— Pois bem, que assim se faça, se é uma vasta e bela sabedoria. A minha
teu parecer — tornou Agatão. — E seria um tanto ordinária, ou mesmo
vocês, meninos, atendam aos convivas. duvidosa como um sonho, enquanto
Vocês bem servem o que lhes apraz, que a tua é brilhante e muito desenvol­
quando ninguém os vigia, o que jamais vida, ela que de tua mocidade tão
fiz; agora portanto, como se também intensamente brilhou, tornando-se an­
eu fosse por vocês convidado ao jan- teontem manifesta a mais de trinta mil
c tar, como estes outros, sirvam-nos a gregos que a testemunharam.
fim de que os louvemos. — Es um insolente, ó Sócrates —
— Depois disso — continuou Aris- disse Agatão. — Quanto a isso, logo
todemo — puseram-se a jantar, sem mais decidiremos eu e tu da nossa
que Sócrates entrasse. Agatão muitas sabedoria, tomando Dioniso por
vezes manda chamá-lo, mas o. amigo juiz18; agora porém, primeiro apron­
não o deixa. Enfim ele chega, sem ter ta-te para o jantar.
demorado muito como era seu costu­
— Depois disso — continuou Aris- m a
me, mas exatamente quando estavam
todemo — reclinou-se Sócrates e jan­
no meio da refeição. Agatão, que se
tou como os outros; fizeram então
encontrava reclinado sozinho no últi­
libações e, depois dos hinos ao deus e
mo leito1 6, exclama: — Aqui, Sócra-
dos ritos de costume, voltam-se à bebi­
d tes! Reclina-te ao meu lado, a fim de
da. Pausânias então começa a falar
que ao teu contato desfrute eu da sábia
mais ou menos assim: — Bem, senho­
idéia que te ocorreu em frente de casa.
res, qual o modo mais cômodo de
Pois é evidente que a encontraste, e
bebermos? Eu por mim digo-vos que
que a tens, pois não terias desistido
estou muito indisposto com a bebe­
antes.
deira de ontem, e preciso tomar fôlego
Sócrates então senta-se e diz: •—■
— e creio que também a maioria dos
Seria bom, Agatão, se de tal natureza
senhores, pois estáveis lá; vêde então b
fosse a sabedoria que do mais cheio
de que modo poderiamos beber o mais
escorresse ao mais vazio, quando um
comodamente possível.
ao outro nos tocássemos, como a água
Aristófanes disse então: — É bom o
15 É curiosa essa explicação de um hábito so- que dizes, Pausânias, que de qualquer
crático a amigos de Sócrates, tanto mais que, modo arranjemos um meio de facilitar
um pouco abaixo (dl-2), Agatão revela estar
familiarizado com ele. Isso denuncia a ficção
platônica, e em particular a intenção de sugerir 17 Sem dúvida um processo de purificação da
desde já a. capacidade socrática para as longas água. Aristófanes (Vespas, 701-702) refere-se
concentrações de espírito, como a que Alcibía- ao mesmo processo, mas com relação ao óleo.
des contará em seu discurso (220c-d). (N. do T.) (N. do T.)
16 Os divãs do banquete se dispunham em for­ 18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vi­
ma de uma ferradura. No extremo esquerdo fi­ nho, Dioniso é apropriadamente mencionado
cava o anfitrião, que punha à sua direita o hós­ por Agatão como o árbitro natural da próxima
pede de honra. É o lugar que Agatão oferece a competição entre os convivas, no simpósio pro­
Sócrates. (N. doT.) priamente dito. (N. do T.)
O BANQUETE 17

a bebida, pois também eu sou dos que mas bebendo cada um a seu bel-pra­
ontem nela se afogaram. zer2 1.
Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acú- — Como então — continuou Erixí­
meno, e lhes disse: — Tendes razão! maco — é isso que se decide, beber
Mas de um de vós ainda preciso ouvir cada um quanto quiser, sem que nada
como se sente para resistir à bebida; seja forçado, o que sugiro então é que
não é, Agatão? mandemos embora a flautista que aca­
— Absolutamente — disse este — bou de chegar, que ela vá flautear para
também eu não me sinto capaz. si mesma, se quiser, ou para as mulhe­
c — Uma bela ocasião seria para res lá dentro; quanto a nós, com dis­
nós, ao que paréce — continuou Erixí­ cursos devemos fazer nossa reunião
maco — para mim, para Aristodemo, hoje; e que discursos — eis o que, se
Fedro e os outros, se vós os mais capa­ vos apraz, desejo propor-vos.
zes de beber desistis agora; nós, com Todos então declaram que lhes 177 a
efeito, somos sempre incapazes; quan­ apraz e o convidam a fazer a proposi­
to a Sócrates, eu o excetuo do que ção. Disse então Erixímaco: — O
digo, que é ele capaz de ambas as coi­ exórdio de meu discurso é como a
sas e se contentará com o que quer que Melanipa22 de Eurípides; pois não é
fizermos19. Ora, como nenhum dos minha, mas aqui de Fedro a história
presentes parece disposto a beber que vou dizer. Fedro, com efeito,
muito vinho, talvez, se a respeito do frequentemente me diz irritado: —
que é a embriaguez eu dissesse o que Não é estranho, Erixímaco, que para
d ela é, seria menos desagradável. Pois outros deuses haja hinos e peãs, feitos
para mim eis uma evidência que me pelos poetas, enquanto que ao Amor
veio da prática da medicina: é esse um. todavia, um deus tão venerável e tão
mal terrível para os homens, a embria­ grande, jamais um só dos poetas que
guez; e nem eu próprio desejaria beber tanto se engrandeceram fez sequer um
muito nem a outro eu o aconselharia, encômio23? Se queres, observa tam­
sobretudo a quem está com ressaca da bém os bons sofistas: a Hércules e a
véspera. outros eles compõem louvores em
— Na verdade — exclamou a se­ prosa, como o excelente Pródico2 4 —
guir Fedro de Mirrinote20 — eu costu­
mo dar-te atenção, principalmente em 21 Geralmente o uvpmotápyr^ , i.e., o chefe
tudo que dizes de medicina; e agora, se do simpósio, eleito pelos convivas, determinava
o programa da bebida, fixando inclusive o grau
bem decidirem, também estes o farão, de mistura do vinho a ser obrigatoriamente
c Ouvindo isso, concordam todos em ingerido. V. infra 213e, 9-10. (N. do T.)
22 Melanipa, a-Sábia, tragédia perdida de Eurí-
não passar a reunião embriagados, pedes, que também escreveu Melanipa, a Prisio­
neira. Erixímaco refere-se ao verso ovk éqòç ò
19 A aaxppoovup socrática, i.e., o domínio dos pvdo<;, épifc prirpòt; iràpa (frag. 487 Wag­
apetites e sentidos do corpo, resiste tanto à fa­ ner) : não é minha a história, mas de minha
diga e à dor como ao prazer (v. infra 220a), mãe. (N. do/T.)
tal como Platãb queria que fossem os guardiães 23 Isto é, uma composição poética, consagrada
da sua cidade ideal. V. República III, 413d-e. exclusivamente ao louvor de um deus ou de um
(N. do T.) herói. Um elogio poético belíssimo, embora no
20 Um dos numerosos demos (no tempo de espírito da tragédia, encontra-se no famoso 3<?
Heródoto 100), i.e., distritos em que se subdi­ estásimo da Antígona de Sófocles, 783-800.
vidia a população de Ática. (N. doT.) (N. doT.)
18 PLATAO

e isso é menos de admirar, que eu jâ tomo de Dioniso e de Afrodite, nem


me deparei com o livro de um sábio2 5 qualquer outro destes que estou vendo
em que o sal recebe um admirável elo­ aqui. Contudo, não é igual a situação
gio, por sua utilidade; e outras coisas dos que ficamos nos últimos lugares;
desse tipo em grande número poderiam todavia, se os que estão antes falarem
ser elogiadas; assim portanto, en­ de modo suficiente e belo, bastará.
quanto em tais ninharias despendem Vamos pois, que em boa sorte comece
tanto esforço, ao Amor nenhum Fedro e faça o seu elogio do Amor.
homem até o dia de hoje teve a cora­ Estas palavras tiveram a aprovação
gem de celebrá-lo condignamente, a tal de todos os outros, que também aderi- ma
ponto é negligenciado um tão grande ram às exortações de Sócrates. Sem
deus! Ora, tais palavras parece que dúvida, de tudo que cada um deles
Fedro as diz com razão. Assim, não só disse, nem Aristodemo se lembrava
bem, nem por minha vez eu me lembro
eu desejo apresentar-lhe a minha
de tudo o que ele disse; mas o mais
quota2 6 e satisfazê-lo como ao mesmo
tempo, parece-me que nos convém, importante, e daqueles que me pareceu
aqui presentes, venerar o deus. Se que valia a pena lembrar, de c.ada um
deles eu vos direi o seu discurso.
então também a vós vos parece assim,
Primeiramente, tal como agora
poderiamos muito bem entreter nosso
estou dizendo, disse ele que Fedro
tempo em discursos; acho que cada um
começou a falar mais ou menos desse
de nós, da esquerda para a direita, deve
ponto, “que era um grande deus o
fazer um discurso de louvor ao Amor, Amor, e admirado entre homens e deu­
o mais belo que puder, e que Fedro
ses, por muitos outros títulos e sobre­
deve começar primeiro, já que está na
tudo por sua origem. Pois o ser entre b
ponta e é o pai da idéia.
os deuses o mais antigo é honroso,
— Ninguém contra ti votará, ó Eri- dizia ele, e a prova disso é que genito­
xímaco — disse Sócrates. — Pois nem res do Amor não os há, e Hesíodo afir­
certamente me recusaria eu, que afir­ ma que primeiro nasceu o Caos —
mo em nada mais ser entendido senão
nas questões de amor, nem sem dúvida
Agatão e Pausânias, nem tampouco . . .e só depois
Aristófanes, cuja ocupação é toda em Terra de largos seios, de tudo assento
24 Natural de Ceos, nasceu por volta de 465. sempre certo, eAmor. . . 2 7
Preocupou-se especialiiiente com o estudo do
vocabulário. Np Protágoras (315d) Sócrates
chama-o de Tântalo, aludindo ao seu tormento Diz ele então2 8 que, depois do Caos
na procura da expressão exata. (N. doT.)
25 O sábio em questão é talvez Polícrates, o foram estes dois que nasceram, Terra e
mesmo autor do panfleto que justificava a con­
denação de Sócrates e que também escrevera 27 Hesíodo, Teogonia, 116 ss. (N. doT.)
peças retóricas de elogio à panela, aos ratos, 28 Alguns editores, entre os quais Burnet, acham
aos seixos. (N. do T.) que esse comentário de Fedro é ocioso, razão
26 Erixímaco vai atender à queixa de Fedro por que transferem para aqui a primeira frase
com a proposta, de um concurso de discursos, de c (E com Hesíodo também concorda Acusi-
ao qual ele logo se prontifica a dar sua parte lau .. .). Como pondera Robin, de fato ele está
( ilpavov ) como se faz num piquenique, em que “dando uma lição”, atitude perfeitamente con­
cada um traz uma parte da refeição coletiva. forme com a seriedade do seu espírito medío­
(N. do T.) cre (N. doT.')
O BANQUETE 19

Amor. E Parmênides diz da sua ori­ resse de se fazer uma cidade ou uma
gem expedição de amantes e de amados,
não haveria melhor maneira de a cons­
tituírem senão afastando-se eles de
bem antes de todos os deuses pensou22 tudo que é feio e porfiando entre si no
em Amor. apreço à honra; e quando lutassem um 179 a

ao lado do outro, tais soldados vence­


c E com Hesíodo também concorda ríam, por poucos que fossem, por
Acusilau2930. Assim, de muitos lados se assim dizer todos os homens31. Pois
reconhece que Amor é entre os deuses um homem que está amando, se deixou
o mais antigo. E sendo o mais antigo é seu posto ou largou suas armas,^aceita­
para nós a causa dos maiores bens. ria menos sem dúvida a idéia de ter
Não sei eu, com efeito, dizer que haja sido visto pelo amado do que por todos
maior bem para quem entra na moci­ os outros, e a isso preferiría muitas
dade do que um bom amante, e para vezes morrer. E quanto a abandonar o
um amante, do que o seu bem-amado. amado ou não socorrê-lo em perigo,
ninguém hâ tão ruim que o próprio
Aquilo que, com efeito, deve dirigir
Amor não o tome inspirado para a vir­
toda a vida dos homens, dos que estão
tude, a ponto de ficar ele semelhante
prontos a vivê-la nobremente, eis o que
ao mais generoso de natureza; e sem
nem a estirpe pode incutir tão bem,
mais rodeios, o que disse Homero “do b
nem as honras, nem a riqueza, nem ardor que a alguns heróis inspira o
d. nada mais, como o amor. A que é deus”32, eis o que o Amor dá aos
então que me refiro? À vergonha do
amantes, como um dom emanado de si
que é feio e ao apreço do que é belo. mesmo.
Não é com efeito possível, sem isso, E quanto a morrer por outro, só o
nem cidade nem indivíduo produzir, consentem os que amam, não apenas
grandes e belas obras. Afirmo eu então os homens, mas também as mulheres.
que todo homem que ama, se fosse des­ E a esse respeito a filha de Pélias,
coberto a fazer um ato vergonhoso, ou Alceste33, dá aos gregos uma prova
a sofrê-lo de outrem sem se defender 31 Se não é isso uma alusão ao batalhão sagra­
por covardia, visto pelo pai não se do dos tebanos, que se notabilizou em Leutras
(371), uns dez anos depois da provável publi­
envergonharia tanto, nem pelos amigos cação do.Banquete, é, pelo menos um indício de
e nem por ninguém mais, como sé fosse que essa idéia já corria o mundo grego, origi­
nária de cidades dóricas. (N. do T.)
visto pelo bem-amado. E isso mesmo é 32 Homero, llíada, X, 182 tõ> S’ epTiveuoe
o que também no amado nós notamos, lievoc; yXauKôjnK = inspirou-lhe ardor
(a Diomedes) Atena de olhos brilhantes; e XV,
que é sobretudo diante dos amantes 262: cbç ei7rcòp êinrveuae fièvoç péya 7roigét>t
que ele se envergonha, quando sur­ Xaõjp assim tendo dito, inspirou um
grande ardor no pastor de povos. (N. doT.)
preendido em algum ato vergonhoso. 33 Casada com Admeto, rei de Feres, na Tessá-
Se por conseguinte algum meio ocor­ lia, Alceste aceita morrer em lugar do esposo,
quando os próprios pais deste se tinham recusa­
29 Isto é, a deusa Justiça (Simpl. Fís. 39, 18 do ao sacrifício. Mas pouco depois de sua mor­
Diels). (N. do T.) te, Hércules, hospedado por Admeto e informa­
39Natural de Argos (séculp Vla.C.), Acusilau do do ocorrido, desce ao Hades e traz Alceste
escreveu várias genealogias de deuses e homens. de volta. É- o tema da bela tragédia de Eurípe-
(N. doT.) des, que traz o nome da heroína. (N. doT.)
20 PLATÃO-

cabal em favor dessa afirmativa, ela coragem de preferir, ao socorrer seu


que foi a única a consentir em morrer amante Pátroclo e vingá-lo, não ape­
pelo marido, embora tivesse este pai e nas morrer por ele mas sucumbir à sua iso a
c mãe, os quais ela tanto excedeu na morte; assim é que, admirados a mais
afeição do seu amor que os fez apare­ não poder, os deuses excepcionalmente
cer como estranhos ao filho, e parentes o honraram, porque em tanta conta ele
apenas de nome; depois de praticar ela tinha o amante. Que Ésquilo sem dúvi­
esse ato, tão belo pareceu ele não só da fala à toa, quando afirma que Aqui­
aos homens mas até aos deuses que, les era amante de Pátroclo, ele que era
embora muitos tenham feito muitas mais belo não somente do que este
ações belas, foi a um bem’reduzido nú­ como evidentemente do que todos os
mero que os deuses concederam esta heróis, e ainda imberbe, e além disso
honra de fazer do Hades subir nova- muito mais novo, como diz Homero.
d mente sua alma, ao passo que a dela Mas com efeito, o que realmente mais
eles fizeram subir, admirados do seu admiram e honram os deuses é essa
gesto; é assim que até os deuses hon­ virtude que se forma em tomo do
ram ao máximo o zelo e a virtude no amor, porém mais ainda admiram-na e b
amor. A Orfeu, o filho de Eagro, eles o apreciam e recompensam quando é o
fizeram voltar sem o seu objetivo, pois amado que gosta do amante do que
foi um espectro o que eles lhe mostra­ quando é este daquele. Eis por que a
ram da mulher a que vinha, e não lha Aquiles eles honraram mais do que a
deram, por lhes parecer que ele se Alceste, enviando-o às ilhas dos bem-
acovardava, citaredo que era, e não aventurados.
ousava por seu amor morrer como Assim, pois, eu afirmo que o Amor é
Alceste, mas maquinava um meio de dos deuses o mais antigo, o mais hon­
penetrar vivo no Hades34. Foi real­ rado e o mais poderoso para a aquisi­
mente por isso que lhe fizeram justiça, ção da virtude e da felicidade entre os
e e determinaram que sua morte ocor­ homens 3 5, tanto em sua vida como
resse pelas mulheres; não o honraram após sua morte.”
como a Aquiles, o filho de Tétis, nem o De Fedro foi mais ou menos este o »
enviaram às ilhas dos bem-aventu­ discurso que pronunciou, no dizer de
rados; que aquele, informado pela mãe Aristodemo; depois de Fedro houve al­
de que morreria se matasse Heitor, guns outros de que ele não se lembrava
enquanto que se o não matasse voltaria bem, os quais deixou de lado, pas­
à pátria onde morreria velho, teve a sando a contar o de Pausânias. Disse
este: “Não me parece bela, ó Fedro, a
34 Não é essa evidentemente a versão comum da
lenda. Descendo ao Hades para trazer de volta maneira como nos foi proposto o dis­
sua querida Eurídice, Orfeu consegue convencer curso, essa simples prescrição de um
a própria Perséfone, rainha daquele reino, gra­
ças aos doces acentos de sua música. Mas esta elogio ao Amor. Se, com efeito, um só
lhe impõe uma condição: Orfeu não deve olhar fosse o Amor, muito bem estaria; na
para trás, enquanto não subir à região da luz.
Já quase ao fim da jornada, porém, o músico realidade porém, não é ele um só; e
duvida da sinceridade de Perséfone e olha para
trás: logo sua amada desaparece, e para sem­ 35 Confrontar essa peroração com o final do
pre. A lembrança constante de Eurídice faz-lhe discurso de Sócrates, particularmente 212a-b.
esquecer as outras mulheres que, enciumadas, O poder do amor, a virtude e a felicidade têm
matam-no. (N. do T.) conteúdo diferente nos dois discursos. (N. do T.)
O BANQUETE 21

d não sendo um só, é mais acertado pri­ res3 7 que os jovens, e depois o que
meiro dizer qual o que se deve elogiar. neles amam é mais o corpo que a alma,
Tentarei eu portanto corrigir este e ainda dos mais desprovidos de inteli­
senão, e primeiro dizer qual o Amor gência, tendo em mira apenas o efetuar
que se deve elogiar, depois fazer um o ato, sem se preocupar se é decente­
elogio digno do deus. Todos, com efei­ mente ou não; daí resulta então que
to, sabemos que sem Amor não- hâ elès fazem o que lhes ocorre, tanto o c
Afrodite. Se portanto uma só fosse que é bom como o seu contrário. Tra­
esta, um só seria o Amor; como porém ta-se com efeito do amor proveniente
são duas, é forçoso que dois sejam da deusa que é mais jovem que a outra
também os Amores. E como não são e que em sua geração participa da
duas deusas? Uma, a mais velha sem fêmea e do macho. O outro porém é o
dúvida, não tem mãe e é filha de da Urânia, que primeiramente não par­
ticipa da fêmea mas só do macho — e
Urano3 6, e a ela é que chamamos de
é este o amor aos jovens3 8 — e depois
Urânia, a Celestial; a mais nova, filha
e de Zeus e de Dione, chamamo-la de é a mais velha39, isenta de violência;
Pandêmia, a Popular. É forçoso então daí então é que se voltam ao que é
que também o Amor, coadjuvante de másculo os inspirados, deste amor,
afeiçoando-se ao que é de natureza
uma, se chame corretamente Pandê-
mio, o Popular, e o outro Urânio, o mais forte e que tem mais inteligência.
Celestial. Por conseguinte, é sem dúvi­ E ainda, no próprio amor aos jovens
da preciso louvar todos os deuses, mas poder-se-iam reconhecer os que estão d
movidos exclusivamente por esse tipo
o dom que a um e a outro coube deve- de amor 40; não amam eles, com efeito,
se procurar dizer. Toda ação, com efei­ os meninos, mas os que já começam a
to, é assim que se apresenta: em si ter juízo, o que se dá quando lhes vêm
mesma, enquanto simplesmente prati- chegando as barbas. Estão dispostos,
i8i a cada, nem é bela nem feia. Por exem­ penso eu, os que começam desse
plo, o que agora nós fazemos, beber, ponto, a amar para acompanhar toda a
cantar, conversar, nada disso em si é vida e viver em- comum, e não a enga­
belo, mas é na ação, na maneira como nar e, depois de tomar o jovem em sua
é feito, que resulta tal; o que é bela e inocência e ludibriá-lo, partir à procu­
corretamente feito fica belo, o que. não ra de outro. Seria preciso haver uma lei
o é fica feio. Assim é que o amar e o proibindo que se amassem os meninos, e
Amor não é todo ele belo e digno de a fim de que não se perdesse na incer­
ser louvado, mas apenas o que leva a teza tanto esforço; pois é na verdade
amar belamente. incerto o destino dos meninos, a que
Ora pois, o Amor de Afrodite Pan- ponto do vício ou dá virtude eles che-
b dêmia é realmente popular e faz o que 37 Confrontar com 208 e, onde Sócrates encon­
lhe ocorre; é a ele que os homens vul­ tra o grande sentido do amor normal à mulher,
gares amam. E amam tais pessoas, aqui especiosamente confundido como o tipo
inferior do amor. (N. doT.)
primeiramente não menos as mulhe- 38 Muitos editores consideram esta fráse uma
glosa. (N. doT.)
36 Hesíodo, Teogonia, 188-206. Urano foi mu­ 39 Na velhice .domina a razão. Daí é que os
tilado por seu filho Zeus, e o esperma do seu amantes desse amor procuram os que já come­
membro viril, atirado ao mar, espumou sobre çam a ter juízo . . . (N. do T.)
as águas, donde se formou Afrodite. Em Ho­ 40 Confrontar com 210a-b. A progressão do
mero, no entanto, essa deusa é filha de Zeus, amor, segundo Diotima, exige que o amante
e de Dione (Ilíada, V, 370). (N. doT.) largue o amor violento de um só. (N. do T.)
22 PLATÃO

gam em seu corpo e sua alma. Ora, se veita aos seus governantes que nasçam
os bons amantes a si mesmos se grandes idéias entre os governados,
impõem voluntariamente esta lei, de­ nem amizades e associações inabalá­
via-se também a estes amantes popula­ veis, o que justamente, mais do que
res obrigá-los a lei semelhante, assim qualquer outra coisa, costuma o amor
como, com as mulheres de condição inspirar. Por experiência aprenderam
livre41, obrigamo-las na medida do isto os tiranos4 4 desta cidade; pois foi
possível a não manter relações amoro- o amor de Aristogitão e a amizade de
182 a sas. São estes, com efeito, os que justa­ Harmòdio que, afirmando-se, destruí­
mente criaram o descrédito, a ponto de ram-lhes o poder. Assim, onde se esta­
alguns ousarem dizer que é vergonhoso beleceu que é feio o aquiescer aos d
o aquiescer aos amantes; e assim o amantes, é por defeito dos que o esta­
dizem porque são estes os que eles beleceram que assim fica, graças à
consideram, vendo o seu despropósito ambição dos governantes e à covardia
e desregramento, pois não é sem dúvi­ dos governados; e onde simplesmente
da quando feito com moderação e se determinou que é belo, foi em conse­
norma que um ato, seja qual for, incor­ quência. da inércia dos que assim
rería em justa censura. estabeleceram. Aqui porém, muito
Aliás, a lei do amor nas demais mais bela que estas é a norma que se
cidades é fácil de entender, pois é sim­ instituiu e, como eu disse, não é fácil
ples a sua determinação; aqui4 2 porém de entender. A quem, com efeito, tenha
b ela é complexa. Em Élida, com efeito, considerado 4 5 que se diz Ser mais belo
na Lacedemônia, na Beócia, e onde amar claramente que às ocultas, e
não se saiba falar, simplesmente se sobretudo os mais nobres e os melho­
estabeleceu que é belo aquiescer aos res, embora mais feios que outros; que
amantes, e ninguém, jovem ou velho, por outro lado o encorajamento dado
diria que é feio, a fim de não terem difi­ por todos aos amantes é extraordinário
culdades, creio eu, em tentativas de e não como se estivesse a fazer algum
persuadir os jovens com a palavra, ato feio, e se fez ele uma conquista pa­
incapazes que são de falar; na Jônia, rece belo o seu ato, se não, parece feio; e
porém, e em muitas outras partes é e ainda, que em sua tentativa de con­
tido como feio, por quantos habitam quista deu a lei ao amante a possibili­
sob a influência dos bárbaros. Entre os dade de ser louvado na prática de atos
c. bárbaros, com efeito, por causa das i
44 Hípias e Hiparco, filhos de Pisístrato. Numa
tiranias, é uma coisa feia esse amor, primeira conspiração em 514, ao que parece
por -motivos pessoais, Hiparco foi assassinado,
justamente como o da sabedoria e da enquanto Armódio morria na luta e seu' com­
ginástica43; é que, imagino, não apro- panheiro Aristogitão era condenado à morte.
Quatro anos depois Hípias perdia o poder, víti­
41 Isto é, não escravas. (N. do T.) ma de uma nova conspiração (V. Tucídides, VI,
42 Os manuscritos trazem a expressão “e na 54). (N.doT.)
Lacedemônia” depois de . “aqui”, o que não con­ 45 Essa subordinada, iniciando um longo perío­
corda com a notória tendência dos lacedemô- do, não tem seqüência lógica com a sua princi­
nios ao homossexualismo. (N. doT.) pal, formulada em 183c (Poder-se-ia pensar
43 Observar a expressão grega correspondente que. . .). Mesmo à custa da clareza, preferimos
" ( tpiKoaoipia. m ri iptXoyu^vaaía ) e lembrar conservar a mesma articulação ampla e irregu­
que os ginásios eram dos locais prediletos de lar, a fim de permitir uma melhor apreciação
Sócrates (cf. a introd. do Cármides, Lísis, La- do estilo do discurso, geralmente apontado
ques/etc.). (N. doT.) como uma paródia de Isócrates. (N. do T.)
O BANQUETE 23

extravagantes, os quais se alguém amados que conversem com os aman­


ousasse cometer em vista de qualquer tes, e ao pedagogo é prescrita essa
outro objetivo e procurando fazer ordem, e ainda os camaradas e amigos
i83 a qualquer outra coisa fora isso, colheria injuriam se vêem que tal coisa estâ
as maiores censuras da filosofia4 6 — ocorrendo, sem que a esses injuria-
pois se, querendo de uma pessoa ou dores detenham os mais velhos ou os
obter dinheiro ou assumir um coman­ censurem por estarem falando sem
do ou conseguir qualquer outro poder, acerto, depois de por sua vez atentar a
consentisse alguém em fazer justa­ tudo isso, poderia alguém julgar ao
mente o que fazem os amantes para contrário que se considera muito feio
com os amados, fazendo em seus pedi­ aqui esse modo de agir. O que hâ
dos súplicas e prostemações, e em suas porém é, a meu ver, o seguinte: não é
juras protestando deitar-se às portas, e isso uma coisa simples, o que justa­
dispondo-se a subserviências a que se mente se disse desde o começo, que
não sujeitaria nenhum servo, seria não é em si e por si nem belo nem feio,
impedido de agir desse modo, tanto mas se decentemente praticado é belo,
b pelos amigos como pelos inimigos, uns se indecentemente, feio. Ora, é inde­
incriminando-o de adulação e indigni­ centemente quando é a um mau e de
dade, outros admoestando-o e envergo­ modo mau que se aquiesce, e decente­
nhando-se de tais atos — ao amante mente quando é a um bom e de um
porém que faça tudo isso acresce-lhe a modo bom. E é mau aquele amante
graça, e lhe é dado pela lei que ele o popular, que ama o corpo mais que a e
faça sem descrédito, como se estivesse alma; pois não é ele constante, por
praticando uma ação belíssima; e o amar um objeto que também não é
mais estranho é que, como diz o povo, constante48. Com efeito, ao mesmo
quando ele jura, só ele tem o perdão tempo que cessa o viço do corpo, que
dos deuses se perjuraf, pois juramento era o que ele amava, “alça ele o seu
de amor dizem que não é juramento, e vôo” 4 9, sem respeito a muitas palavras
c assim tanto os deuses como os homens e promessas feitas. Ao contrário, o
deram toda liberdade ao amante, como amante do caráter, que é bom, é cons­
diz a lei daqui — por esse lado então tante por toda a vida, porque se fundiu
poder-se-ia pensar que se considera com o que é constante. Ora, são esses
inteiramente belo nesta cidade não só o dois tipos de amantes que pretende a wa
fato de ser amante como também o nossa lei provar bem e devidamente, e
serem os amados amigos dos amantes. que a uns se aquiesça e dos outros se
Quando porém, impondo-lhes um pe­ fuja. Por isso é que uns ela exorta a
dagogo47, os pais não permitem aos perseguir e outros a evitar, arbitrando
46 Por que. da filosofia? Vários críticos tenta­ e aferindo qual é porventura o tipo do
ram corrigir essa lição dos mss. Burnet apôs-lhe amante e qual o do amado. Assim é
o óbelo da suspeita. No entanto, não se deve
entender a palavra no seu conceito platônico, que, por esse motivo, primeiramente o
mas antes na acepção menos específica de cul- se deixar conquistar é tido como feio, a
‘ tura superior, tal comb, por exemplo, a enten­
dia Isócrates, um saber prático que incluía 48 Uma longínqua antecipação da idéia desen­
entre.-_outras coisas o conhecimento das boas volvida pleriamente em 207d-208b. (N. doT.)
normas do cidadão. (N. do T.) 49 Expressão homérica (Ilíada, II, 71), aplicada
47 É o escravo encarregado de acompanhar os a Oneiros, o sonho personificado, que veio • a .
jovens à palestra e à escola. (N. doT.) Agamenão. (N. do T.)
PLATÃO
24
fim de que possa haver tempo, que bem segundo em precisão de adquirir para
parece o mais das vezes ser uma exce­ a sua educação e demais competência,
lente prova; e depois o deixar-se con­ só então, quando ao mesmo objetivo
quistar pelo dinheiro e pelo prestígio convergem essas duas normas, só
político é tido como feio, quer a um então é que coincide ser belo o aquies­
mau trato nos assustemos sem reagir, cer o amado ao amante e em mais
quer beneficiados em dinheiro ou em nenhuma outra ocasião. Nesse caso,
sucesso político não os desprezemos; mesmo o ser enganado não é nada feio;
nenhuma dessas vantagens, com efeito, em todos os outros casos porém é
parece firme ou constante, afora o fato vergonhoso, quer se seja enganado,
de que delas nem mesmo se pode deri­ quer não. Se alguém com efeito, depois 185 a

var uma amizade nobre. Um só cami­ de aquiescer a um amante, na suposi­


nho então resta à nossa norma, se deve ção de ser este rico e em vista de sua
o bem-amado decentemente aquiescer riqueza, fosse a seguir enganado e não
ao amante. Ê com efeito norma entre obtivesse vantagens pecuniárias, por se
nós que, assim como para os amantes, ter revelado pobre o amante, nem por
quando um deles se presta a qualquer isso seria menos vergonhoso; pois pa­
servidão ao amado, não é isso adula- rece tal tipo revelar justamente o que
ção nem um ato censurável, do mesmo tem de seu, que pelo dinheiro ele servi­
modo também só outra única servidão ría em qualquer negócio a qualquer
voluntária resta, não sujeita a tensura: um, e isso não é belo. Pela mesma
a que se aceita pela virtude. Na verda­ razão, também se alguém, tendo
de, estabeleceu-se entre nós que, se aquiescido a um amante considerado
alguém quer servir a um outro por jul­ bom, e para se tornar ele próprio me­
gar que por ele se tomará melhor, ou lhor através da amizade do amante,
em sabedoria ou em qualquer outra fosse a seguir enganado, revelada a
espécie de virtude, também esta volun­ maldade daquele e sua carência de vir­
tária servidão não é feia nem é uma tude, mesmo assim belo51 seria o
adulação 50. É preciso então congraçar engano; pois também nesse caso parer
num mesmo objetivo essas duas nor­ ce este ter deixado presente sua própria
mas, a do amor aos jovens e a do amor tendência: pela virtude e por se tomar
ao saber e às demais virtudes, se deve melhor, a tudo ele se disporia em favor
dar-se o caso de ser belo o aquiescer o de qualquer um, e isso é ao contrário o
amado ao amante. Quando com efeito mais belo de tudo; assim, em tudo por
ao mesmo ponto chegam amante e tudo é belo aquiescer em vista da virtu­
amado, cada um com a sua norma, um de. Este é o amor da deusa celeste, ele
servindo ao amado que lhe aquiesce, mesmo celeste e de muito valor para a
em tudo que for justo servir, e o outro cidade e os cidadãos, porque muito
ajudando ao que o está tornando sábio esforço ele obriga a fazer pela virtude
e bom, em tudo que for justo ajudar, o tanto ao próprio amante como ao
primeiro em condições de contribuir amado; os outros porém são todos da
para a sabedoria e demais virtudes, o 51 Paradoxo tipicamente retórico, bem encaixa­
do na argumentação, e aparentemente resultan­
5° Todo esse detalhe dos casos feios do amor é do em louvor da virtude — a virtude enganada.
ao mesmo tempo caraterístico do realismo prá­ Para Sócrates porém o engano, uma falta de
tico de Pausânias e revela o que para ele é tam­ sabedoria, é, portanto, uma falta de virtude e
bém conteúdo da filosofia. (N. doT.) como tal não é belo. (N. doT.)
O BANQUETE
25
outra deusa, da popular. É essa, ó está ele apenas nas almas dos homens,
Fedro, concluiu ele, a contribuição e para com os belos jovens, mas tam­
que, como de improviso 52, eu te apre­ bém nas outras partes, e para com
sento sobre o Amor”. muitos outros objetos, nos corpos de
Na pausa53 de Pausânias — pois todos os outros animais, nas plantas
assim me ensinam os sábios a falar, em da terra e por assim dizer em todos os
termos iguais — disse Aristodemo que seres é o que creio ter constatado pela
devia falar Aristófanes, mas tendo-lhe prática da medicina, a nossa arte;
ocorrido, por empanturramento ou por grande e admirável é o deus, e a tudo
algum outro motivo, um acesso de se estende ele, tanto na ordem das coi­
d soluço, não podia ele falar; mas disse sas humanas como entre as divinas.
ele ao médico Erixímaco, que se recli­ Ora, eu começarei pela medicina a
nava logo abaixo dele: — ó Erixí­ minha fala, a fim de que também
maco, és indicado para ou fazer parar homenageemos a arte54. A natureza
o meu soluço ou falar em meu lugar, dos corpos, com efeito, comporta esse
até que eu possa parar com ele. E Eri­ duplo Amor; o sadio e o mórbido são
xímaco respondeu-lhe: cada um reconhecidamente um estado
— Farei as duas coisas: falarei em diverso e dessemelhante, e o desseme­
teu lugar e tu, quando acabares com lhante deseja e ama ó dessemelhan­
isso, no meu. E enquanto eu estiver te5 5. Um portanto é o amor no que é
falando, vejamos se, retendo tu o fôle­ sadio, e outro no que é mórbido. E
go por muito tempo, quer parar o teu então, assim como há pouco Pausânias
soluço; senão, gargareja com água. Se dizia que aos homens bons é belo
e então ele é muito forte, toma algo com aquiescer, e aos intemperantes é feio,
que possas coçar o nariz e espirra; se também nos próprios corpos, aos ele­
fizeres isso duas ou três vezes, por mentos bons de cada corpo e sadios é
mais forte que seja, ele cessará. — belo o aquiescer e se deve, e a isso é
Nãõ começarás primeiro o teu discur­ que se dá o nome de medicina,
so, disse Aristófanes; que eu por mim é enquanto que aos maus e mórbidos é
o que farei. feio e se deve contrariar, se se vai ser
Disse então Erixímaco: “Parece-me um técnico. Ê com efeito' a medicina,
em verdade ser necessário, uma vez para falar em resumo, a ciência dos
que Pausânias, apesar de se ter lança- fenômenos de amor, próprios ao corpo,
186 a dq bem ao seu discurso, não o rematou no que se refere à repleção e à evacua-
convenientemente, que eu deva tentar
pôr-lhe um remate. Com efeito, quanto 54 A arte por excelência para esse médico, isto
é, a medicina. A palavra -èx^V indica geral­
a ser duplo o Amor, parece-me que foi mente uma determinada atividade disciplinada
uma bela distinção; que porém não e orientada por um corpo de preceitos e princí­
pios. Assim, a medicina era também uma arte.
52 Num concurso improvisado essa indicação (N. do T.)
inútil seria estranha se não- fosse entendida 55 O contexto manda interpretar a frase de Eri­
como uma alusão irônica ao repertório de luga- xímaco assim: o mórbido (dessemelhante do
res-comuns fornecido pelo ensino formal da sadio) ama o mórbido (dessemelhante do sadio)
retórica. (N. do T.) e vice-versa. No entanto, em d 4 infra, há uma
53 A expressão grega é llauacmou Trauaa/dévov , transição, que não fica muito clara, para a idéia
que na boca de Apolodoro é como um eco dos de atração (identificada ao amor por Erixíma­
desenvolvimentos simétricos e dos paralelismos co) dos contrários no organismo. Tal idéia é
( iáa Xeyógeua ) do discurso de Pausânias. atribuída ao médico Alcmeão de Crotona (fr. 4
(N. do T.) Diels), do começo do século V. (N. do T.)
26 PLATAO

ção, e o que nestes fenômenos reco­ grave, antes discordantes e posterior- t


nhece o belo amor e o feio é o melhor mente combinados, ela resultou, gra­
médico; igualmente, aquele que faz ças à arte musical. Pois não é sem dú­
com que eles se transformem, de modo vida do agudo e do grave ainda em
a que se adquira um em vez do outro, e discordância que pode resultar a har­
que sabe tanto suscitar amor onde não monia; a harmonia é consonância,
há mas deve haver, como eliminar consonância é uma certa combinação
quando hâ, seria um bom profissional. — e combinação de discordantes,
É de fato preciso ser capaz de fazer enquanto discordam, é impossível, e
com que os elementos mais hostis no inversamente o que discorda e não
corpo fiquem amigos e se amem combina é impossível harmonizar —
mutuamente. Ora, os mais hostis são assim como também o ritmo, que
os mais opostos, como o frio ao quen­ resulta do rápido e do lento, antes
te, o amargo ao doce, o seco ao úmido, dissociados e depois combinados. A <=
c e todas as coisas desse tipo; foi por ter combinação em todos esses casos,
entre elas suscitado amor e concórdia assim como lá foi a medicina, aqui é a
que o nosso ancestral Asclépio, como música que estabelece, suscitando5 9
dizem estes poetas aqui5 6 e eu acredi­ amor e concórdia entre uns e outros; e
to, constituiu a nossa arte. A medicina assim, também a música, no tocante à
portanto, como estou dizendo, é toda harmonia e ao ritmo, é ciência dos
187 a ela dirigida nos traços deste deus, fenômenos amorosos. Aliás, na pró­
assim como também a ginástica e a pria constituição de uma harmonia e
agricultura; e quanto à música, é a de um ritmo não é nada difícil reconhe­
todos evidente, por pouco que se lhe cer os sinais do amor, nem de algum
preste atenção, que ela se comporta modo 60 há então o duplo amor; quan­
segundo esses mesmos princípios, do porém for preciso utilizar para o d
como provavelmente parece querer homem uma harmonia ou um ritmo,
dizer Heráclito, que aliás em sua ou fazendo-os, o que chamam compo­
expressão não é feliz. O um, diz ele sição, ou usando corretamente da
com efeito, “discordando em si melodia e dos metros já constituídos, o
mesmo, consigo mesmo concorda, que se chamou educação, então é que é
como numa harmonia de arco e difícil e que se requer um bom profis-
lira” 5 7. Ora, é grande absurdó dizer 59 E assim a arte acaba sendo criadora do
que uma harmonia está discordando amor, e este um mero produto. Erixímaco pa­
ou resulta do que ainda está discordan­ rece não perceber as dificuldades qúe encerra a
relação desses dois elementos, cuja conceitua-
do 5 8. Mas talvez o que ele queria dizer ção rigorosa não lhe importa muito, e conti­
era o seguinte, que do agtido e do nua a fazer com as outras artes o que fez com
a medicina e a música. (N. doT.)
56 Erixímaco refere-se a Aristófanes e Agatão. 60 Essa expressão trai a habilidade retórica do
Asclépio, filho de Apoio e da mortal Coronis, cientista orador: depois de afirmar que há dois
da Tessália, é o herói patrono da medicina. tipos de amor no organismo (v. nota 55), Eri­
(N.doT.) xímaco passa a falar da saúde como o equilí­
.57 Fr. 51, Diels. (N. doT.) brio (isto é, concórdia, amor) dos contrários,
58 No entanto, é bem isso o que Heráclito quer e do mesmo modo da harmonia dos sons, sem
dizer, e não há realmente uma expressão infe­ evidentemente referir-se ao que seria, por exem­
liz da sua p^rte. Convém lembrar que a riqueza plo, o resultado do amor de contrários mórbi­
de particípios na língua grega, e em particular dos. Aqui, porém, no momento de referir-se à
a nítida distinção entre o particípio aoristo utilização humana da harmonia, reaparece-lhe
(pretérito) e o particípio presente, não lhe, per­ a idéia do bom e do mau amor que é preciso
mitiríam perpetrar a confusão -que Erixímaco discernir e que justifica ou não o aquiescimento
lhe atribui. (N. do T.) do bem-amado ao amante . . . (N. do T.)
O BANQUETE 27

sional. Pois de novo revém a mesma cujo conhecimento nas translações dos
idéia, que aos homens moderados, e astros e nas estações do ano chama-se
para que mais moderados se tomem os astronomia. E ainda mais, não só
que ainda não sejam, deve-se aquiescer todos os sacrifícios, como também os
e e conservar o seu amor, que é o belo, o casos a que preside a arte divinatória
celestial, o Amor da musa Urânia; o — e estes são os que constituem o
outro, o de Polímnia61, é o popular, comércio recíproco dos deuses e dos <=
que com precaução se deve trazer homens — sobre nada mais versam
àqueles a quem se traz, a fim de que se senão sobre a conservação e a cura62
colha o seu prazer sem que nenhuma do Amor. Toda impiedade, com efeito,
intemperança ele suscite, tal como em costuma advir, se ao Amor moderado
nossa arte é uma importante tarefa o não se aquiesce nem se lhe tributa
servir-se convenientemente dos apetites honra e respeito em toda ação, e sim
da arte culinária, de modo a que sem ao outro, tanto no tocante aos pais,
doença se colha o seu prazer. Tanto na vivos e mortos, quanto aos deuses; e
música então, como na medicina e em foi nisso que se assinou à arte divina­
todas as outras artes, humanas e divi­ tória o exame dos amores e sua cura, e
nas, na medida do possível, deve-se assim é que por sua vez é a arte divina­
conservar um e outro amor; ambos tória produtora63 de amizade entre
188 a com efeito nelas se encontram. De deuses e homens, graças ao conheci- d
fato, até a constituição das estações do mento de todas as manifestações de
ano está repleta desses dois amores, e amor que, entre os homens, se orien­
quando se tomam de um moderado tam para a justiça divina e a piedade.
amor um pelo outro os contrários de Assim, múltiplo e grande, ou me­
que há pouco eu falava, o quente e o lhor, universal é o poder que em geral
frio, o seco e o úmido, e adquirem uma tem todo o Amor, mas aquele que em
harmonia e uma mistura razoável, che­ tomo do que é bom se consuma com
gam trazendo bonança e saúde aos sabedoria e justiça, entre nós como
homens, aos outros animais e às plan­ entre os deuses, é o que tem o máximo
tas, e nenhuma ofensa fazem; quando
poder e toda felicidade nos prepara,
porém é o Amor casado com a violên­
pondo-nos em condições de não só
cia que se toma mais forte nas estações
entre nós mantermos convívio e amiza­
b do ano, muitos estragos ele faz, e ofen­
de, como também com os que são mais
sas. Tanto as pestes, com efeito, costu­
poderosos que nós, os deuses. Em e
mam resultar de tais causas, como
conclusão, talvez também eu, lon-'
também muitas e várias doenças nos
animais como nas plantas; geadas, vando o Amor, muita coisa estou dei­
granizos e alforras resultam, com efei­ xando de lado, não todavia por minha
to, do excesso e da intemperança vontade. Mas se algo omiti, é tua tare­
fa, ó Aristófanes, completar; ou se um
mútua de tais manifestações do amor,
outro modo tens em mente de elogiar o
61 Padroeira da poesia lírica. Ao contrário de
Pausânias, Erixímaco associou o amor às Mu­ deus, elogia-o, uma vez que o teu solu­
sas e não a Afrodite, o que está de acordo com ço já o fizeste cessar.”
o caráter que seu discur.so lhe empresta: o de
uma força de aglutinação universal, suscetível 62 A assimilação das outras artes à medicina
de ser tratada pela arte. Em lugar de Afrodite tornou-se tão completa que o Amor é conside­
Pandêmia, ele imaginou a Musa da poesia líri­ rado como uma afecção como as outras doen­
ca, a poesia dos sentimentos pessoais e das pai­ ças. (N. doT.)
xões. (N. do T.) 63 v. supra p. 26', nota 59.
28 PLATAO

189 a Tendo então tomado a palavra, con­ sacrifícios lhe fariam, não como agora
tinuou Aristodemo, disse Aristófanes: que nada disso há em sua honra, quan­
— Bem que cessou! Não todavia, é do mais que tudo deve haver. Ê ele d
verdade, antes de lhe ter eu aplicado o com efeito o deus mais amigo do
espirro, a ponto de me admirar que a homem, protetor e médico desses
boa ordem do corpo requeira tais ruí­ males, de cuja cura dependería sem dú­
dos e comichões como é o espirro; pois vida a maior felicidade para o gênero
logo o soluço parou, quando lhe apli- humano. Tentarei eu portanto iniciar-
quei o espirro. vos 6 5 em seu poder, e vós o ensinareis
E Erixímaco lhe disse: — Meu bom aos outros. Mas é preciso primeiro
b Aristófanes, vê o que fazes. Estás a aprenderdes a natureza humana e as
fazer graça, quando vais falar, e me suas vicissitudes. Com efeito, nossa
forças a vigiar o teu discurso, se por­ natureza outrora não era a mesma que
ventura vais dizer algo risível, quando a de agora, mas diferente. Em primeiro
tè é permitido falar em paz. lugar, três eram os gêneros da humani­
Aristófanes riu e retomou: -—■ Tens dade, não dois como agora, o mascu­
razão, Erixímaco! Fique-me o dito lino e o feminino, mas também havia a e
pelo não dito. Mas não me vigies, que mais um terceiro, comum a estes dois,
eu receio, a respeito do que vai ser do qual resta agora um nome, desapa­
dito, que seja não engraçado o que vou
recida a coisa; andrógino era então um
dizer — pois isso seria proveitoso e
gênero distinto, tanto na forma como
próprio da nossa musa — mas ridícu-.
no nome comum aos dois, ao mascu­
Io64.
— Pois sim! ■—■ disse o outro — lino e ao feminino, enquanto agora
lançada a tua seta, Aristófanes, pensas nada mais é que um nome posto em
em fugir; mas toma cuidado e fala desonra. Depois, inteiriça6 6 era a
c como se fosses prestar contas. Talvez forma de cada homem, com o dorso
todavia, se bem me parecer, eu te redondo, os flancos em círculo; quatro
largarei. mãos ele tinha, e as pernas o mesmo
“Na verdade, Erixímaco, disse Aris­ tanto das mãos, dois rostos sobre um m a
tófanes, é de outro modo que tenho a pescoço torneado, semelhantes em
intenção de falar, diferente do teu e do tudo; mas a cabeça sobre os dois ros­
de Pausânias. Com efeito, parece-me tos opostos um ao outro era uma só, e
os homens absplutamente não terem quatro orelhas, dois sexos, e tudo o
percebido o poder do amor, que se o mais como desses exemplos se poderia
percebessem, os maiores templos e supor. E quanto ao seu andar,-era tam­
altares lhe preparariam, e os maiores bém ereto como agora, em qualquer
64 De fato seu discurso é engraçadíssimo. A pre­
das duas direções que quisesse; mas .
caução de Aristófanes faz lembrar o tom e a quando se lançavam a uma rápida cor-
função de uma parábase, na comédia antiga,
onde o poeta, pela voz do coro, explica-se a 65 A palavra é própria da linguagem dos Misté­
respeito de sua peça. V. Os Cavaleiros, 515- rios. Aristófanes não vai explicar as virtudes do
516, e 541-545, onde se sente a mesma nota de Amor, como os dois oradores precedentes, mas
prudência que aqui. Além desse traço de veros­ tentará o acesso direto à sua natureza, como
similhança dramática, Platão estaria insinuan­ numa iniciação. (N. doT.)
do uma alusão à insuficiência da arte de Aris­ 66 Cf. Empédocles, fr. 62, vs. 4 (Diels).oàÀoç?uetç
tófanes, que não tem domínio de seus próprios pèv npãxra rínoc xdovòç èÇavéreXXov : primeiro,
recursos, dependente que é de uma inspiração. tipos inteiriços surgiram da terra. (N. do
(N. do T.) T.)
O BANQUETE 29

rida, como os que cambalhotando e ele, eu os cortarei em dois, e assim


virando as pernas para cima fazem sobre uma só perna eles andarão, salti-
uma roda, do mesmo modo, apoian­ tando.” Logo que o disse pôs-se a cor­
do-se nos seus oito membros de então, tar os homens em dois, como os que
rapidamente eles se locomoviam em cortam as-sorvas 68 para a conserva,
b círculo. Eis por que eram três os gêne­ ou 'como os que cortam ovos com e
ros, e tal a sua constituição, porque o cabelo; a cada um que cortava manda­
masculino de início era descendente do va Apoio voltar-lhe o rosto e á baiida
sol, o feminino da terra, e o que tinha do pescoço para o lado do córte, a fim
de ambos era da lua, pois também a de que, contemplando a própria muti­
lua tem de ambos; e eram assim circu­ lação, fosse mais moderado o homem,
lares, tanto eles próprios como a sua e quanto ao mais ele também mandava
locomoção, por terem semelhantes ge­ curar.' Apoio torcia-lhes o rosto, e
nitores. Eram por conseguinte de uma repuxando a pele de todos os lados
força e de um vigor terríveis, e uma para o que agora se chama o ventre,
grande presunção eles tinham; mas como as bolsas que se entrouxam, ele
voltaram-se contra os deuses, e o que fazia uma só abertura e ligava-a firme­
diz Homero de Efialtes e de Otes 6 7 é a mente no meio do ventre, que é o que
eles que se refere, a tentativa de fazer chamam umbigo. As outras pregas,
c uma escalada ao céu, para investir numerosas, ele se pôs a polir, e a arti- /?/ a
contra os deuses. Zeus então e os de­ cular os peitos, com um instrumento
mais deuses puseram-se a deliberar semelhante ao dos sapateiros quando
sobre o que se devia fazer com eles, e estão polindo na forma as pregas dos
embaraçavam-se; não podiam nem sapatos; umas poucas ele deixou, as
matá-los e, após fulminá-los como aos que estão à volta do próprio ventre é
gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça do umbigo, para lembrança da àntigà
— pois as honras e os templos que lhes condição. Por conseguinte, desde que a
vinham dos homens desapareceríam nossa natureza se mutilou em düaS,
— nem permitir-lhes que conti­ ansiava cada um por sua própria meta­
nuassem na impiedade. Depois de de e a ela se unia,-e envolvendo-se com
laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho as mãos e enlaçahdo-se um ao outro,
que tenho um meio de fazer com que no ardor de se confundirem, morriam
d os homens possam existir, mas parem de fome e de inércia em geral, por nada *
com a intemperança, tomados mais quererem fazer longe um do outro. E
fracos. Agora com efeito, continuou, sempre que morria uma das metades e
eu os cortarei a cada um em dois, e ao a outra ficava, a que ficava procurava
mesmo tempo eles serão mais fracos e outra e com ela se enlaçava, quer se
também mais úteis para nós, pelo fato encontrasse com a metade do todo que
de se terem tornado mais numerosos; e era mulher — o que agora chamamos
andarão eretos, sobre duas pernas. Se mulher — quer com a de um homem; e
ainda pensarem em arrogância e não assim iam-se destruindo. Tomado de
quiserem acomodar-se, de novo, disse 68 Emile Chambry (Platon, Oeuvres completes,
III, p. 577, Garnier) cita o seguinte texto de
67 Os dois gigantes que tentaram pôr sobre o Varrão: “Putant manere sorba quidam dissecta
Olimpo o monte Ossa e sobre este o Pelião, a et in sole macerata, ut pira, et sorba per se ubi-
fim de atingirem o céu e destronarem Zeus. V. cumque sint posita, in arido facile durare” (De
Odisséia, XI, 307-320. (N. doT.) re rústica, L, 60). (N. doT.)
30 PLATAO

compaixão, Zeus consegue outro expe­ uma mulher não dirigem muito sua
diente, e lhes muda o sexo para a frente atenção aos homens, mas antes estão
— pois até então eles o tinham para voltadas para as mulheres e as amigui-
c fora, e geravam e reproduziam não um nhas provêm deste tipo. E todos os que
no outro, mas na terra69, como as são corte de um macho perseguem o
cigarras; pondo assim o sexo na frente macho, e enquanto são crianças, como
deles fez com que através dele se cortículos do macho, gostam dos ho­
processasse a geração um no outro, o mens e se comprazem em deitar-se ma
macho na fêmea, pelo seguinte, para com os homens e a eles se enlaçar, e
que no enlace, se fosse um homem a são estes os melhores meninos e
encontrar uma mulher, que ao mesmo adolescentes, os de natural mais cora­
tempo gerassem e se fosse constituindo joso. Dizem alguns, é verdade, que eles
a raça, mas se fosse um homem com são despudorados, mas estão mentin­
um homem, que pelo menos houvesse do; pois não é por despudor que fazem
saciedade em seu convívio e pudessem isso, mas por audácia, coragem e
repousar, voltar ao trabalho e ocupar- masculinidade, porque acolhem o que
d se do resto da vida. Ê então de há. tanto lhes é semelhante. Uma prova disso é
tempo que o amor de um pelo outro que, uma vez amadurecidos, são os
está implantado nos homens, restau­ únicos que chegam a ser homens para
rador da nossa antiga natureza, em sua a política71, os que são desse tipo. E
tentativa de fazer um só de dois e de quando se tomam homens, são os jo- b
curar a natureza humana. Cada um de vens que eles amam, e a casamentos e
nós portanto é uma téssera comple­ procriação naturalmente eles não lhes
mentar 7 0 de um homem, porque corta­
dão atenção, embora por lei a isso
do como os linguados, de um só em
sejam forçados, mas se contentam em
dois; e procura então cada um o seu
próprio complemento. Por conse­ passar a vida um com o outro, soltei­
ros. Assim é que, em geral, tal tipo tor­
guinte, todos os homens que são um
na-se amante e amigo do amante, por­
corte do tipo comum, o que então se
que está sempre acolhendo o que lhe é
chamava andrógino, gostam de mulhe­
res, e a maioria dos adultérios provém aparentado. Quando então se encontra
com aquele mesmo que é a sua própria
e deste tipo, assim como também todas
metade, tanto o amante do jovem
as- mulheres que gostam de homens e
são adúlteras, é deste tipo que provêm. como qualquer outro, então extraordi- c
Todas as mulheres que são o corte de nárias são as emoções que sentem, de
amizade, intimidade e amor, a ponto
69 No mito do Político (271a), Platão refere-se de não quererem por assim dizer sepa-
a essa geração da terra, e Aristófanes nas Nu­
vens (vs. 853) alude sem dúvida a essa idéja. rar-se um do outro nem por um peque­
(N. doT.) no momento. E os que continuam um
70 No grego aúpjSoXop (de aupjSáXXety , juntar,
fazer conjunto). Era um cubo ou-um osso que com o outro pela vida afora são estes,
se repartia entre dois hóspedes, como sinal de
um compromisso. Transmitindo-se aos descen­ 71A sátira mordaz aos homossexuais comple
dentes de ambos, podiam estes conferir os seus ta-se habilmente com a sua identificação com
“símbolos” e ter assim a prova de antigos lia- os políticos. Comparar essa passagem com 184
mes de hospitalidade. (N. doT.) a-7. (N. doT.)
O BANQUETE 31

os quais nem saberíam dizer o que que­ tanto ao desejo e procura do todo que
rem que lhes venha da parte de um ao se dá o nome de amor. Anteriormente,
outro. A ninguém com efeito parecería como estou dizendo, nós éramos um
que se trata de união sexual72, e que é só, e agora é que, por causa da nossa 193 a
porventura em vista disso que um injustiça, fomos separados pelo deus, e
gosta da companhia do outro assim como o foram os árcades pelos lacede-
com tanto interesse; ao contrário, que mônios 7 4; é de temer então, se não for­
d uma coisa quer a alma de cada um, é mos moderados para com os deuses,
evidente, a qual coisa ela não pode que de novo sejamos fendidos em dois,
dizer, mas adivinha o que quer e o in­ e perambulemos tais quais os que nas
dica por enigmas. Se diante deles, dei­ esteias estão talhados de perfil, serra­
tados no mesmo leito, surgisse Hefes- dos, na linha do nariz, como os ossos
to73 e com seus instrumentos lhes que se fendem7 5. Pois bem, em vista
perguntasse: Que é que quereis, ó dessas eventualidades todo homem
homens, ter um do outro?, e se, diante deve a todos exortar à piedade para
do seu embaraço, de novo lhes pergun­ com os deuses, a fim de que evitemos
tasse: Porventura é isso que desejais, uma e alcancemos a outra, na medida b
ficardes no mesmo lugar o mais possí­ em que o Amor nos dirige e comanda.
vel um para o outro, de modo que nem Que ninguém em sua ação se lhe opo­
de noite nem de dia vos separeis um do nha — e se opõe todo aquele que aos
c outro? Pois se é isso que desejais, deuses se toma odioso — pois amigos
quero fundir-vos e forjar-vos numa do deus e com ele reconciliados desco­
• mesma pessoa, de modo que de dois briremos e conseguiremos o nosso pró­
vos tomeis um só e, enquanto viverdes, prio amado, o que agora poucos
como uma só pessoa, possais viver fazem. E que não me suspeite Erixí­
ambos em comum, e depois que mor­ maco, fazendo comédia de meu discur­
rerdes, lá no Hades, em vez de dois ser so, que é a Pausânias e Agatão que me
um só, mortos os dois numa morte estou referindo — talvez também estes c
comum; mas vede se é isso o vosso se encontrem no número desses e são
amor, e se vos contentais se conse­ ambos de natureza máscula — mas eu
guirdes isso. Depois de ouvir essas no entanto estou dizendo a respeito de
palavras, sabemos que nem um só diria todos, homens e mulheres, que é assim
que não, ou demonstraria querer outra que nossa raça se tornaria feliz, se ple­
coisa, mas simplesmente pensaria ter namente realizássemos o amor, e o seu
ouvido o que há muito estava desejan­ próprio amado cada um encontrasse,
do, sim, unir-se e confundir-se com o tomado à sua primitiva natureza. E se
amado e de dois ficarem um só. O mo­ isso é o melhor, é forçoso que dos
tivo disso é que nossa antiga natureza
era assim e nós éramos um todo; e por- 74 Em 385 os lacedemônios destruíram a cida­
de de Mantinéia, na Arcádia, e dispersaram
72 Observar a facilidade com que o discurso seus habitantes por várias povoações (Xenofon-
muda de tom, atingindo aqui um lirismo saudá­ te, V, 2, 1). É o que os gregos chamavam de
vel que permite a eclosão de uma idéia impor­ ôioc/ítupóç , o contrário de uma colonização,
tante nessa sucessão dialética dos discursos: a isto é, um ovvoiK.i.anó<; .Notar que o diálogo se
de que o sentimento amoroso não é exclusiva­ passa em 416 (v. supra p. 14 nota 7). O ana­
mente sexual. (N. doT.) cronismo é gritante. (N. doT.)
73 O deus do fogo e da metalurgia, o Vulcano 75 Justamente um dos tipos ( Xtaiiai ) dos “sím­
dos latinos. (N. doT.) bolos”, referidos acima, p.30, n .70. (N. do T.)
32 PLATÃO
casos atuais o que mais se lhe avizinha que eu me alvoroce com a idéia de que
é o melhor, e é este o conseguir um o público está em grande expectativa
bem-amado de natureza conforme ao de que eu vá falar bem.
d seu gosto; e se disso fôssemos glorifi­ -- Desmemoriado eu seria, Agatão
car o deus responsável, merecidamente tomou-lhe Sócrates — se depois de b
glorificaríamos o Amor, que agora nos ver tua -coragem e sobranceria, quando
é de máxima utilidade, levando-nos ao subias ao estrado com os atores e
• que nos é familiar, e que para o futuro encaraste de frente uma tão numerosa
nós dá ás maiores esperanças, se for­ platéia, no momento em que ias apre­
mos piedosos para com òs deuses, de sentar uma peça tua, sem de modo
restabelecer-nos em nossa primitiva algum te teres abalado, fosse eu agora
natureza e, depois de nos curar, fazer- imaginar que tu te alvoroçarias por
nos bem-aventurados e felizes. causa delíós, tão poucos.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu dis­ — O quê, Sócrates! — exclamou
curso sobre o' Amor, diferente do teu. Agatão; — não me julgas sem dúvida
Conforme eu te pedi, não faças comé­ tão cheio de teatro que ignore que, a
dia dele, a fim de que possamos ouvir quem tem juízo, poucos sensatos são
e também os restantes, que dirá cada um mais temíveis que uma multidão insen­
deles, ou antes cada um dos dois; pois sata !
restam Agatão e Sócrates.” — Realmente eu não faria bem, c
— Bem, eu te obedecerei — tor­ Agatão — tomou-lhe Sócrates — se a
nou-lhe Erixímaco; ■—• e com efeito teu teu respeito pensasse eu em alguma
discurso foi para mim de um agradável deselegância; ao contrário, bem sei
teor. E se por mim mesmo eu não sou­ que, se te encontrasses com pessoas
besse* que Sócrates e Agatão são terrí­ que considerasses sábias, mais te preo­
veis nas questões do amor, muito teme­ cuparias com elas do que com a multi­
ría que sehtiSsem falta de argumentos, dão. No entanto, é de temer que estas
pelo muito e Variado "que se disse; de não sejamos nós — pois nós estáva­
fato porém eu corifió neles. mos lá e éramos da multidão — mas
a Sócrates então disse: — É que foi se fosse com outros que te encontras­
bela, ó Erixímaco7 6, tua competição! ses, com sábios, sem dúvida tu te
Se porém ficasses na situação em-quê envergonharias deles, se pensasses
agora estou,' ou melhor, em que estarei, estar talvez cometendo algum ato que
depois que Agatão tiver falado, bem fosse vergonhoso; senão, que dizes?
grande seria o teu temor, e em tudo por
— É verdade o que dizes — res­
tudo estarias como eu agora.
pondeu-lhe. i
— Enfeitiçar é o-que me queres, ó
— E dá multidão não te envergo­
Sócrates, disse-lhe Agatão, a fim de
nharias, se pensasses estar fazendo
76 A observação de Sócrates é fina. Comentan­ algo vergonhoso 7 7 ?
do o discurso de Aristófanes, Erixímaco expres­
sava seu receio de que os dois últimos concor­ 77 Esse breve diálogo, aqui interrompido, tem
rentes tivessem dificuldades “pelo muito e va­ um duplo efeito dramático: serve de intervalo
riado que se disse’’ (Isto é, não apenas Aristó­ entre os discursos de dois poetas, tão diferentes
fanes). Sócrates o ajuda então nesse pequeno de método e de espírito, e constitui como um
detalhe e insiste nà sua contribuição. Ao mes­ prelúdio ao discurso especial de Sócrates, que
mo tempo ele tem uma ótima deixa para diri­ vai começar, ao contrário dos outros, por um
gir-se à competência de Agatão. (N. doT.) diálogo. (N. doT.)

I
O ÊANQUETE 33

E eis que Fedro, disse Aristodenio, Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer
interrompeu e exclamou: — Meu caro em vingança80, o mais feliz, porque é
Agatão, se responderes a Sócrates, o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é
nada mais lhe importará do programa, o mais belõ por ser tal como se segue.
como quer que ande e o que quer que Primeiramerite; é o mais jovem dos
resulte, contanto que ele tenha com deuses, ó Fedro. E uma grande prova b

quem dialogue, sobretudo se é com um do que digo ele próprio fornece, quan­
belo. Eu por mim é sem dúvida com do em fuga foge da velhice, que é rápi­
prazer que ouço Sócrates a conversar, da evidentemente, è que em tddtí caso;
mas é-me forçoso cuidar do elogio ao mais rápida do que devia, p'ára nós se
Amor e recolher de cada um de vós o encaminha. De sua natureza Amor a
seu discurso; pague 7 8 então cada um o odeia e nem de longe se lhe aprbxima.
que deve ao deus e assim já pode Com os jovens ele está sempre eih seu
conversar. coiivívio e ao seu lado; está certo, com
e — Muito bem, Fedro! — excla­ efeito, o antigo ditado, que o seme­
mou Agatão — nada me impede de lhante sempre do semelhante se aproxi­
falar, pois com Sócrates depois eu ma. Ora, eu, embora com Fedro con­
poderei ainda conversar muitas vezes. corde em muitos outros pontos, nisso
“Eu então quero primeiro dizer não concordo, em que Amor seja mais
como devo falar, e depois falar. Pare­ antigo que Crono e Japeto,. mas ao c

ce-me com efeito que todos os que contrário afirmo ser éle o mais novo
antes falaram, não era o deus que elo­ dos deuses e sempre jovem, e que as
giavam, mas os homens que felici­ questões entre os deuses, de que falam
tavam pelos bens de que o deus lhes é Hesíodo81 e Parmênides, foi por Ne­
195 a causador; qual porém é a sua natureza, cessidade82 e não por Amor que ocor­
em virtude da qual ele fez tais dons, reram, se é verdade o que aqueles
ninguém o disse. Ora, a única maneira diziam; não haveria, com efeito, muti­
correta de qualquer elogio a qualquer lações nem prisões de uns pelos outros,
um é, no discurso, explicar em virtude e muitas outras violências, se Amor
de que natureza vem a ser causa de tais estivesse entre eles, mas amizade e paz,
efeitos aquele de quem se estiver falan­ como agora, desde que Amor entre os
do79. Assim então com o Amor, é deuses reina. Por conseguinte, jovem
justo que também nós primeiro o lou­ ele é, mas além de jovem ele é delica­
vemos em sua natureza, tal qual ele é, e do; falta-lhe porém um poeta como era
depois os seus dons. Digo eu então que Homero para mostrar sua delicadeza
de todos os deuses, que são felizes, é o de deus. Homero afirma, com efeito, d

78 Como um bom “simposiarca”, Fedro zela 80 Cf. 180e-3. As palavras e os atos humanos
pelo bom andamento do programa estabelecido. podem suscitar a justiça vingativa (neniesis) dos
V. supra p.17 , n. 21. (N. do T.) deuses. (N. do T.)
79 Sócrates louvará mais adiante a excelência 81 Cf. Teogonia, passim. (N.doT.)
desse princípio, que representa uma etapa deci­ 82 É talvez idéia de Parmênides. O que este
siva na progressão dos discursos. Com efeito, escreveu sobre os deuses devia estar na parte
embora não vá acertar na definição da natu­ do seu poema referente às “opiniões” dos mor­
reza do Amor, Agatão traz à baila o problema, tais. Segundo Aécio II, 7, 1. (Díeis 28, A, 37),
possibilitando assim a refutação socrática (189 ele punha lustiça e Necessidade hó nleip de Va-
d-204c) e a definição platônica (201c-204a). iãs esferas concêntricas, cómb bausa de mõvi-
(N. do T.) lento e geração. (N.doT.)
34 PLATÃO

que Ate é uma deusa, e delicada — parte a parte há guerra. Quanto à bele­
que os seus pés em todo caso são deli­ za da sua tez, o seu viver entre flores
cados — quando diz: bem o atesta; pois no que não floresce,
seus pés são delicados; pois não como no que ja floresceu, corpo, alma b
[sobre o sólo ou o que quer que seja, não se assenta
se move, mas sobre as cabeças dos o Amor, mas onde houver lugar bem
[homens ela anda83. florido e bem perfumado, aí ele se
Assim, bela me parece a prova com assenta e fica.
que Homero revela a delicadeza da Sobre a beleza do deus já é isso bas­
deusa: não anda ela sobre o que é tante, e no entanto ainda muita coisa
e duro, mas sobre o que é mole. Pois a resta; sobre a virtude de Amor devo
mesma prova também nós utilizaremos depois disso falar, principalmente que
a respeito do Amor, de que ele é delica­ Amor não comete nem sofre injustiça,
do. Não é com efeito sobre a terra que nem de um deus ou contra um deus,
ele anda, nem sobre cabeças, que não nem de um homem ou contra um
são lá tão moles, mas no que há de homem8 5. À força, com efeito, nem ele
mais brando entre os seres é onde ele cede, se algo cede — pois violência c
anda e reside. Nos costumes, nas não toca em Amor — nem, quando
almas de’ deuses e de homens ele fez age, age, pois todo homem de bom
sua morada, e ainda, não indistinta- grado serve em tudo ao Amor, e o que
mente em todas as almas, mas da que de bom grado reconhece uma parte a
encontre com um costume rude ele se outra, dizem “as leis, rainhas da cida­
afasta, e na que o tenha delicado ele de”8 6, é justo. Além da justiça, da má­
habita. Estando assim sempre em con­ xima temperança ele compartilha. Ê
tato, nos pés como em tudo, com os com efeito a temperança, reconhecida­
que, entre os seres mais brandos, são mente, o domínio sobre prazeres e
os mais brandos, necessariamente é ele desejos; ora, o Amor, nenhum prazer
196 o- o que há de mais delicado. Ê então o lhe é predominante; e se inferiores, se­
mais jovem, o mais delicado, e além riam dominados por Amor, e ele os
dessas qualidades, sua constituição é dominaria, e dominando prazeres e
úmida. Pois não seria ele capaz de se desejos seria o Amor, excepcional­
amoldar de todo jeito, nem de por toda mente temperante. E também quanto à
alma primeiramente entrar, desperce­ coragem, ao Amor “nem Ares se lhe
bido, e depois sair, se fosse ele seco8 4. opõe”8 7. Com efeito, a Amor não pega d
De sua constituição acomodada e Ares, mas Amor a Ares — o de Afro­
úmida é uma grande prova sua bela dite, segundo a lenda — e é mais forte
compleição, o que excepcionalmente o que pega do que é pegado: domi­
todos reconhecem ter o Amor; é que nando assim o mais corajoso de todos,
entre deformidade e amor sempre de
85 Como a seguinte, essa frase, com seus' para-
83 Ilíada, XIX, 92. Ate é a personificação da lelismos exagerados, é típica do maneirismo do
fatalidade. (N. do T.) estilo retórico de Agatão. (N. doT.)
84 Sendo úmido, mole, Amor cede à pressão, 86 Expressão do retórico Alcidamas, aluno de
adapta-se, modela-se; ao contrário, sendo seco, Górgias, citado por Aristóteles, Ret., 1406a.
não se adapta e não adquire forma convenien­ (N. doT.)
te. O argumento é de uma fantasia extrava­ 87Frag. de um Tiestes de Sófocles: Hpòç tt/p
gante, de acordo com o caráter requintado de 'ApávKpp oúS' ”Apr?ç àpía-arai (fr. 235 Nau-
Agatão. (N. doT.) ck2). (N. doT.)
O BANQUETE 35

seria então ele o mais corajoso. Da jus­ evidentemente da beleza — pois no


tiça portanto, da temperança e da feio não se firma Amor92 —, en­
coragem do deus, está dito; da sua quanto que antes, como a princípio
sabedoria porém resta dizer; o quanto disse, muitos casos terríveis se davam
possível então deve-se procurar não ser entre os deuses, ao que se diz, porque
omisso. E em primeiro lugar, para que entre eles a Necessidade reinava; desde
também eu por minha vez honre a porém que este deus existiu, de se ama­
minha arte como Erixímaco a dele, é rem as belas coisas toda espécie de
um poeta o deus, e sábio, tanto que bem surgiu para deuses e homens.
também a outro ele o faz; qualquer um ' Assim é que me parece, ó Fedro, que <=
em todo caso toma-se poeta, “mesmo o Amor, primeiramente por ser em si
que antes seja estranho às Musas”88, mesmo o mais belo e o melhor, depois
desde que lhe toque o Amor. É o que é que é para os outros a causa de ou- -
nos cabe utilizar como testemunho de tros tantos bens. Mas ocorre-me agora
que é um bom poeta o Amor, em geral' também em verso dizer alguma coisa,
em toda criação artística89; pois o que que é ele o que produz
não se tem ou o que não se sabe, tam­
bém a outro não se poderia dar ou paz entre os homens; e no mar
197 a ensinar. E em verdade, a criação90 dos bonança,
animais todos, quem contestará que repouso tranquilo de ventos e
não é sabedoria, do Amor, pela qual sono na dor.
nascem e crescem todos os animais?
Mas, no exercício das artes, não sabe­ É ele que nos tira o sentimento de d

mos que aquele de quem este deus se estranheza e nos enche de familiari­
torna mestre acaba célebre e ilustre, dade, promovendo todas as reuniões
enquanto aquele em quem Amor não deste tipo, para mutuamente nos en­
toque, acaba obscuro? E quanto à arte contrarmos, tornando-se nosso guia
do arqueiro, à medicina, à adivinha­ nas festas, nos coros, nos sacrifícios;
ção, inventou-as Apoio guiado pelo de­ incutindo brandura e excluindo rude­
sejo e pelo amor, de modo que também za; pródigo de bem-querer e incapaz de
Apoio seria discípulo do Amor. Assim mal-querer; propício e bom; contem­
como também as Musas nas belas-ar- plado pelos sábios e admirado pelos
tes, Hefesto na metalurgia, Atena na deuses; invejado pelos desafortunados
tecelagem, e Zeus na arte “de governar e conquistado pelos afortunados; do
os deuses e os,homens”91. E daí é que luxo, do requinte, do brilho, da’s gra­
até as questões dos deuses foram regra­ ças, do ardor e da paixão, pai; dili­
das, quando entre eles surgiu Amor, gente com o que é bom e negligente
88 MouatKÒP S’ òtpa "Epcoç otSáaKei, xav •com o que é mau; no labor, no temor, <
fyiouooç p vo irpiv Eur., Stenobeia (fr. 663 no ardor da paixão, no teor da expres­
Nauck2). (N. do T.)
89 O grego tem ttoÍtjctiç , correspondente a são, piloto e combatente, protetor e
TTOinrpç , ação e agente respectivamente de salvador supremo, adorno de todos os
■noiéii' : fazer, produzir. O sentido lato de
noipoiç presta-se assim muito bem às analo­ deuses e homens, guia belíssimo e
gias que a seguir faz Agatão. Cf. infra 205b-7 excelente, que todo homem deve se-
e ss. (N..doT.) •
90 Também ttoÍijolç . V. nota anterior. (N. do T.) 92 É dessa pequena afirmação que Sócrates par­
91 Fragmento de alguma tragédia, não identifi­ tirá não só para a refutação do poeta como
cada. (N. doT.) para a sua própria definição do Amor.(N. do T.)
36 PLATÃO
guir, celebrando-o èm belos hinos, e quem não se teria perturbado ao ouvi-
compartilhando do canto com ele lo? Eu por mim, considerando que eu
encanta o pensamento de todos os deu­ mesmo não seria capaz de nem de
ses e homens. perto proferir algo tão belo, de vergo- c
Este, ó Fedro, rematou ele, o dis­ nha 'quase me retirava e partia, se
curso que de minha parte quero que tivesse algum meio. Com efeito, vi­
seja ao deus oferecido, em parte joco- nha-me à mente o discurso de Górgias,
só93, em parte, tanto quanto posso, a ponto de realmente eu sentir o que
discretáhiente sério.” disse Homero9 6: temia que, con­
198 a Depois que falou Agatão, continuou
cluindo, Agatão em seu discurso en­
Aristodemo, todos os presentes aplau­
diram, por ter o jovem falado à altura viasse ao meu a cabeça de Górgias,
do seu talento e da dignidade do deus. terrível orador, e de mim mesmo me
Sócrates então olhou para Erixímaco^e fizesse uma pedra, sem voz. Refleti
lhe disse: — Porventura, ó filhó de então que estava evidentemente sendo
Àcúmeno, parece-te que não téní nada ridículo, quando convosco concordava
de temível o temor9 4 que de há muito em fazer na minha vez, depois de vós,
sinto, e que não foi profético 6 que hâ o elogio ao Amor, dizendo ser terrível d
pouco .eu dizia, que Agatão falaria nas questões de amor, quando na ver­
maravilho sãmente, enquanto que eu
dade nada sabia do que se tratava, de
rhè havia de ‘embaraçar? como se devia fazer qualquer elogio.
— Ém parte — respondeu-lhe Eri-
Pois eu achava, por ingenuidade, que
xímaçp — parece-me profético o que
disseste, que Agatão falaria bem; mas se devia dizer a verdade sobre tudo que
quanto, a te embaraçares, não creio. está sendo elogiado, e que isso era
b — E como, ditoso amigo — disse fundamental, da própria verdade se
Sócrates — não vou embaraçar-me, eu escolhendo as mais belas manifesta­
e qualquer outro, quando devo falar ções para dispô-las o mais decente­
depois de proferido um tão belo e colo­ mente possível; e muito me orgulhava
rido discurso? Não é que as suas de­ então, como se eu fosse falar betn,
mais partes não sejam igualmente como se soubesse a verdade em qual­
admiráveis; mas o que está no fim, quer elogio. No entanto, está aí, não *
pela beleza dos termos e das frases9 5, era esse o belo elogio ao que quer que
93 Essa advertência de Agatão atenua, em favor
seja, mas o acrescentar o máximo à
do mérito do seu discurso, o significado que coisa, e o mais belamente possível,
comumente se atribui à extravagância dos seus quer ela seja assim quer não; quanto a
argumentos, tais como o que vimos à página 34,
ri. 84.. Éle tem consciência do caráter leve e ser falso, não tinha nenhuma impor­
fantasioso dos argumentos com que preencheu tância. Foi com efeito combinado
õ'. esquema sério do seu discurso. (N. do T.)
^Èto grégó aSeèç 5éoç um medo que não é como cada um de nós entendería elo­
medo. Como que contagiado pela retórica de giar o Amor, não como cada um o elo­
Agatão, Sócrates 'imita suas aliteraçÕes e para­
doxos. (N.doT.) giaria. Eis por que, pondo em ação
95 Na segunda parte (197c-e) do discurso de
Agatão, a preciosidade do seu estilo atinge 6 96 Odisséia, XI, 633-635: . . . épè ôè -/Xwpov ôéoç
máximo com aquela longa litania de epítetos. fipet, / pd] poi ropyelriv mi<pahriv ôèwoío
Alguns críticos querem ver na palavra p/ipara neXcòpou / éÇ 'AtÔoç nép-n^eiev àyavr]
(que está traduzida por “frases”, mas que em nepae<póveia ,nrá medo esverdeante me tomava,
Platão significa às vezes “verbos”, em oposição não me enviasse do Hades a augusta Perséfone
a “nomes”), uma ambigüidade de sentido que a cabeça de Górgona, “o monstro terríjvel”.
esconde assim uma irônica alusão à ausência O adjetivo ropyeúrjv ( = Górgona) é homófono
de verbos nesse trecho. (N. do T.) de ropylav (= Górgias). (N.doT.) I
O BANQUETE 37

todo argumento, vós o aplicais ao mostrar o próprio Amor, qual a sua


Amor, e dizeis que ele é tal e causa de natureza, e depois as suas obras. Esse
199 a tantos bens, a fim de aparecer9 7 ele começo, muito o admiro. Vamos
como o mais belo e o melhor possível, então, a respeito do Amor, já que em
evidentemente aos que o não conhecem geral explicaste bem e magnificamente
— pois não é aos que o conhecem — e qual é a sua natureza, dize-me também
eis que fica belo, sim, e nobre o elogio. o seguinte: é de tal natureza o Amor d
Mas é que eu não sabia então o modo que é amor de algo ou de nada? Estou
de elogiar, e sem saber concordei, tam­ perguntando, não se é de uma mãe ou
bém eu, em elogiâ-lo na minha vez: “a de um pai — pois ridícula seria essa
língua jurou, mas o meu peito não”97 98; pergunta, se Amor é amor de um pai
que ela se vâ então. Não vou mais elo- ou de uma mãe — mas é como se, a
b giar desse modo, que não o poderia, é respeito disso mesmo, de “pai’^ eu
certo, mas a verdade sim, se vos apraz, perguntasse: “Porventura o pai é pai
quero dizer à minha maneira, e não em de algo ou não? Ter-me-ias sem dúvida
competição com os vossos discursos, respondido, se me quisesses dar uma
para não me prestar ao riso. Vê então, bela resposta, que é de um filho ou de
Fedro, se por acaso há ainda precisão uma filha que o pai é pai9 9; ou não?”
de um tal discurso, de ouvir sobre o. — Exatamente — disse Agatão.
Amor dizer a verdade, mas com nomes — E também a mãe não é assim?
e com a disposição de frases que por — Também — admitiu ele.
acaso me tiver ocorrido. — Responde-me ainda, continuou e
Sócrates, mais um pouco, a fim de me­
c Fedro então, disse Ar isto demo, e os
lhor compreenderes o que quero. Se eu
demais presentes pediram-lhe que,
te perguntasse: “E irmão1 °°, enquanto
como ele próprio entendesse que devia
é justamente isso mesmo que é, é irmão
falar, assim o fizesse.
de algo ou não?”
— Permite-me ainda, Fedro — re­ — É, sim, disse ele.
tornou Sócrates — fazer umas pergun- — De um irmão ou de uma irmã,
tinhas a Agatão, a fim de que tendo não é? Concordou.
obtido o seu acordo, eu já possa assim — Tenta então, continuou Sócra­
falar. tes, também a respeito do Amor dizer-
— Mas sim, permito — disse me: o Amor é amor de nada ou de
Fedro. — Pergunta! — E então, disse algo?
Aristodemo, Sócrates começou mais — De algo, sim.
ou menos por esse ponto: — Isso então, continuou ele, guar- 200 a
— Realmente, caro Agatão, bem da contigo101, lembrando-te de que é
me pareceste iniciar teu discurso, que ele é amor; agora dize-me apenas o
quando dizias que primeiro se devia
99 Entender: Assim como pai é pai com rela­
97 Sócrates critica nos elogios anteriores a preo­ ção a filho, amor é amor com relação a algu­
cupação exclusiva da aparência, em detrimento ma coisa. É por esse objeto específico do amor
da realidade. Como concorrentes, os oradores que Sócrates pergunta. (N. do T.)
agiram como se a máxima beleza dós seus dis­ 100 A repetição dos exemplos numa argumenta­
cursos fosse uma consequência da máxima be­ ção, que muitas vezes nos parece ociosa e ge­
leza atribuída ao Amor. Sócrates evita essa ta­ ralmente nos impacienta é típica dos diálogos,
lha fundamental. (N. do T.) que parecem nesse ponto refletir um hábito da
98 Eurípedes, Hipólito, 612. r? yXcoooa ópcújuox’ época. (N. doT.)
■f] 5è <ppfiv àvúpoTtK. (N. doT.) 101 Para dizê-lo em 201 a 206. (N. doT.)
38 / PLATÃO
seguinte: Será que o Amor, aquilo de za, saúde e fortaleza, o que queres é
que é amor, ele o deseja ou não? também no futuro possuir esses bens,
— Perfeitamente — respondeu o pois no momento, quer queiras quer
outro. não, tu os tens; observa então se, quan­
— E é quando tem isso mesmo que do dizes “desejo o que tenho comigo”,
deseja e ama que ele então deseja e queres dizer outra coisa senão isso:
ama, ou quando não tem? “quero que o que tenho agora comigo,
— Quando não tem, como é bem também no futuro eu o tenha.” Deixa­
provável — disse Agatão. ria ele de admitir?
— Observa bem, continuou Sócra­ Agatão, dizia Aristodemo, estava de
tes, se em vez de uma probabilidade acordo.
não é uma necessidade que seja assim, Disse então Sócrates: — Não é isso
o que deseja deseja aquilo de que é então amar o que ainda não está à mão
b carente, sem o que não deseja, se não nem se tem, o querer que, para o futu­
for carente. Ê espantoso como me ro, seja isso que se tem conservado
parece, Agatão, ser uma necessidade; e consigo e presente?
a ti? — Perfeitamente — disse Agatão.
—- Também a mim — disse ele. — Esse então, como qualquer
— Tens razão. Pois porventura de­ outro que deseja, deseja o que não está
sejaria quem já é grande ser grande, ou à mão nem consigo, o que não tem, o
quem já é forte ser forte? que não é ele próprio e o de que é
— Impossível, pelo que foi admiti­ carente; tais são mais ou menos as coi­
do. sas de que há desejo e amor, não é?
— Com efeito, não seria carente — Perfeitamente — disse Agatão.
disso o que justamente é isso. — Vamos então, continuou Sócra­
— Ê verdade o que dizes. tes, recapitulemos o que foi dito. Não é
— Se, com efeito, mesmo o forte certo que é o Amor, primeiro de certas
c quisesse ser forte, continuou Sócrates, coisas, e depois, daquelas de que ele
e o rápido ser rápido, e o sadio ser tem precisão?
sadio — pois talvez alguém pensasse — Sim — disse o outro.
que nesses e em todos os casos seme­ — Depois disso então; lembr-a-te de
lhantes os que são tais e têm essas qua­ que é que em teu discurso disseste ser o
lidades desejam o que justamente têm, Amor; se preferes, eu te lembrarei.
e é para não nos enganarmos que estou Creio, com efeito, que foi mais ou
dizendo isso — ora, para estes, Aga­ menos assim que disseste, que aos deu­
tão, se atinas bem, é forçoso que te­ ses foram arranjadas suas questões
nham no momento tudo aquilo que através do amor do que é belo, pois do
têm, quer queiram, quer não, e isso que é feio não havia amor1 02. Não era
mesmo, sim, quem é que poderia dese­ mais ou menos assim que dizias?
já-lo? Mas quando alguém diz: “Eu, — Sim, com efeito — disse Aga­
mesmo sadio, desejo ser sadio, e tão.
d mesmo rico, ser rico, e desejo isso — E acertadamente o dizes, amigo,
rnesmo que tenho”, poderiamos dizer- declarou Sócrates; e se é assim, não é
lhe: “ó homem, tu que possuis rique­ 102 v. supra p. 35, n. 92. (N. doT.)
O BANQUETE 39

certo que o Amor seria da beleza, mas discurso que sobre o Amor eu ouvi um
não da feiúra? Concordou. dia, de uma mulher de Mantinéia, Dio-
— Não estâ então admitido que tima, que nesse assunto era entendida e
aquilo de que é carente e que não tem é em muitos outros — foi ela que uma
o que ele ama? vez, porque os atenienses ofereceram
— Sim — disse ele. sacrifícios para conjurar a peste, fez
— Carece então de beleza o Amor, por dez anos1 0 6 recuar a doença, e era
e não a tem? ela que me instruía nas questões de
— É forçoso. amor — o discurso então que me fez
— E então? O que carece de beleza aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a
partir do que foi admitido por mim e
e de modo algum a possui, porventura
por Agatão, com meus próprios recur­
dizes tu que é belo?
sos e como eu puder. É de fato preciso,
— Não, sem dúvida. Agatão, como tu indicaste, primeiro
— Ainda admites por conseguinte discorrer sobre o próprio Amor, quem
que o Amor é belo, se isso é assim? é ele e qual a sua natureza e depois
E Agatão: — É bem provável, ó Só­ sobre as suas obras. Parece-me então f
crates, que nada sei do que então que o mais fácil é proceder como
disse103 ? outrora a estrangeira, que discorria
— E no entanto, prosseguiu Sócra­
interrogando-me107, pois também eu
tes, bem que foi belo o que disseste, quase que lhe dizia outras tantas coi­
Agatão. Mas dize-me ainda uma pe­ sas tais quais agora me diz Agatão,
quena coisa: o que é bom não te parece que era o Amor um grande deus, e era
que também é belo? do que é belo; e ela me refutava, exata­
•— Parece-me, sim. mente com estas palavras, com que eu
— Se portanto o Amor é carente do estou refutando a este, que nem era
que é belo, e o que é bom é belo, tam­ belo segundo minha palavra, nem bom.
bém do que é bom seria ele carente1 0 4 E eu então: — Que dizes, ó Dioti-
— Eu não poderia, ó Sócrates, ma? Ê feio então o Amor, e mau?
disse Agatão, contradizer-te; mas seja E ela: — Não vais te calar? Acaso
assim como tu dizes. pensas que o que não for belo, é forço­
— É à verdade1 0 5, querido Aga­ so ser feio ?
tão, que não podes contradizer, pois a — Exatamente. 202 a
Sócrates não é nada difícil. — E também se não for sábio é
— E a ti eu te deixarei agora; mas o ignorante? Ou não percebeste que exis- .
103 Agatão reage como um discípulo ou um te algo entre sabedoria e ignorância?
amigo de Sócrates, isto é, confessando franca­ — Que é?
mente a ignorância que acaba de descobrir em
si. (N. doT.) i°6 Se se trata da peste que assolou Atenas no
104 Essa associação do bom e do belo, bem fa­ começo da guerra do Peloponeso, Diotima te-
miliar ao grego (ob. o epíteto corrente: KaÀòç ria feito o sacrifício em 440, quando Sócrates
xàvadóç ), e insistentemente defendida na argu­ entrava na casa dos trinta. (N. doT.)
mentação socrática (v. por exemplo, Górgias, 1°7 É estranho que uma sacerdotisa use o mé­
474d-e), será de muita utilidade em 204e. todo de explicação dos sofistas do século V,
(N.doT.) através de perguntas forjadas por ela mesma.
105 Não se trata aqui de refutar a A ou a B. é Esse parece um dos mais fortes indícios de que
o que quer dizer Sócrates; uma vez estabeleci­ o fato contado por Sócrates é fictício, sobretu­
da a veracidade de um argumento, não é mais do se se considera a exata correspondência dos
possível, ou melhor, não é mais questão de diálogos Sócrates-A gatão, Diotima-Sócrates.
contestá-lo. (N.doT.) (N. do T.)
40 PLATÃO.

— O opinar certo, mesmo sem E ela: — É simples. Dize-me, com


poder dar razão, não sabes, dizia-me efeito, todos os deuses não os afirmas
ela, que nem é saber — pois o que é felizes e belos? Ou terias a audácia de
sem razão, como seria ciência? —nem dizer que algum deles não é belo e
é ignorância1 08 — pois o que atinge o feliz?
ser, como seria ignorância? — e que é ■—- Por Zeus, não eu — retomei-
sem dúvida alguma coisa desse tipo a lhe.
opinião certa, um intermediário entre — E os felizes então, não dizes que
entendimento e ignorância. são os que possuem o que é bom e o
— Ê verdade o que dizes, tomei- que é belo?
lhe. — Perfeitamente.
b — Não fiques, portanto, forçando o — Mas no entanto, o Amor, tu d
que nãç> é belo a ser feio, nem o que reconheceste que, por carência do que
não é bom a ser mau. Assim também o é bom e do que é belo, deseja isso
Amor, porque tu mesmo admites108 109 mesmo de que é carente.
que não é bom nem belo, nem por isso — Reconheci, com efeito.
vás imaginar que ele deve ser feio e —- Como então seria deus o que
mau, mas sim algo que está, dizia ela, justamente é desprovido do que é belo
entre esses dois extremos. - e bom?
— E todavia é por todos reconhe­ — De modo algum, pelo menos ao
cido que ele é um grande deus11 0 que parece.
— Todos os que não sabem, é o -—■ Estás vendo então — disse —
que estás dizendo, ou também os que que também tu não julgas o Amor um
sabem? deus?
— Todos eles, sem dúvida. — Que seria então o Amor? —
c E ela sorriu e disse: — E como, ó perguntei-lhe. — Um mortal?
Sócrates, admitiriam ser um grande — Absolutamente.
deus aqueles que afirmam que nem — Mas o quê, ao certo, ó Diotima?
deus ele é? — Como nos casos anteriores — e
— Quem são estes? perguntei-lhe. disse-me ela — algo entre mortal e
— Um és tu — respondeu-me — e imortal.
eu, outra. — O quê, então, ó Diotima?
E eu: — Que queres dizer com isso? — Um grande gênio, ó Sócrates; e
. com efeito, Jtudo o que é gênio está
108 Cf. Menão, 97b-e. (N. doT.) entre um deus e um mortal.
1°9 No Lísis (216d - 221e) Sócrates faz uma
proposição semelhante (é amigo do belo e do — E com que poder? perguntei-lhe.
bom o que não é nem bom nem mau), que ele — O de interpretar e transmitir aos
encaminha para a seguinte aporia: A presença
do mal no que não é bom nem é mau é o que deuses o que vem dos homens, e aos
faz este desejar o belo e o bom, e assim, ausente homens o que vem dos deuses, de uns
p mal, o belo e o bom não seriam capazes de
suscitar o amor. Como se vê trata-se de puras as súplicas e os sacrifícios, e dos ou­
idéias, cuja relação é dificultada na razão di­ tros as ordens e as recompensas pelos
reta da sua exata conceitüação. (N. doT.)
no Essa observação de Sócrates vai determinar sacrifícios; e como está no meio de
a passagem do método dialético para a exposi­ ambos ele os completa, de modo que o
ção alegórica. Demonstrada a natureza inter­
mediária do Amor, Diotima chama-o de gênio, todo fica ligado todo ele a si me>smo.
conta sua origem e traça seü retrato. (N. do T.) Por seu intermédio é que procede não
O BANQUETE 41

só toda arte divinatória, como também sem lar, sempre por terra e sem forro,
a dos sacerdotes que se ocupam dos deitando-se ao desabrigo, às portas e
sacrifícios, das iniciações e dos encan- nos caminhos, porque tem a natureza
203 a tamentos, e enfim de toda adivinhação da mãe, sempre convivendo com a pre­
e magia. Um deus com um homem não cisão. Segundo o pai, porém, ele é insi-
se mistura, mas é através desse ser que dioso com o que é belo e bom, e cora­
se faz todo o convívio e diálogo dos joso, decidido e enérgico, caçador
deuses com os homens, tanto quando terrível, sempre a tecer maquinações,
despertos como quando dormindo; e ávido de sabedoria e cheio de recursos,
aquele que em tais questões é sábio é a filosofar por toda a vida, terrível
um homem de gênio111, enquanto o mago, feiticeiro, sofista112: e nem e
sábio em qualquer outra coisa, arte ou imortal é a sua natureza nem mortal, e
ofício, é um artesão. E esses gênios, é no mesmo dia ora ele germina e vive,
certo, são muitos e diversos, e um deles quando enriquece113; ora morre e de
é justamente o Amor. novo ressuscita, graças à natureza do
— E quem é seu pai ■—■ perguntei- pai; e o que consegue sempre lhe esca­
lhe— e sua mãe? pa, de modo que nem empobrece11 4 o
b — Ê um tanto longo de explicar, Amor nem enriquece, assim como tam­
disse ela; todavia, eu te direi. Quando bém está no meio da sabedoria e da
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os ignorância. Eis com efeito o que se dá. 20^ 0
deuses, e entre os demais se encontrava Nenhum deus filosofa ou deseja ser
também o filho de Prudência, Recurso. sábio — pois já é —11 5, assim como
Depois que acabaram de jantar, veio se alguém mais é sábio, não filosofa.
para esmolar do festim a Pobreza, e Nem também os ignorantes filosofam
ficou pela porta. Ora, Recurso, em­ ou desejam ser sábios; pois é nisso
briagado com o néctar — pois vinho mesmo que está o difícil da ignorância,
ainda não havia — penetrou o jardim no pensar, quem não é um homem dis­
de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza tinto e gentil, nem inteligente, que lhe
então, tramando em sua falta de recur­ basta assim. Não deseja portanto
so engendrar um filho de Recurso, dei- quem não imagina ser deficiente naqui­
lo que não pensa lhe ser preciso.
e ta-se ao seu lado e pronto concebe o
Amor. Eis por que ficou companheiro 112 O epíteto de sofista vem sem dúvida por
associação com os dois anteriores. V. Protágo-
e servo de Afrodite o Amor, gerado em ras, 328d. (N. do T.)
seu natalício, ao mesmo tempo que por 113 No grego euTiopriari (derivado de irópoç
natureza amante do belo, porque tam­ = recurso). A transposição dessa temporal
para depois de “ressuscita”, feita por Wilamo-
bém Afrodite é bela. E por ser filho o vits e adotada por Robin, não nos parece sufi­
Amor de Recurso e de Pobreza foi esta cientemente justificada por razões estilísticas.
Ao contrário do que alegam os seus defenso­
a condição em que ele ficou. Primeira­ res, tal como está o texto dos mss., o período
mente ele é sempre pobre, e longe está mostra-se bem articulado, pela correspondên­
cia dessa temporal com a expressão “graças à
de ser delicado e belo, como a maioria natureza do pai” no seguinte esquema: vive
d imagina, mas é duro, seco, descalço e quando enriquece/ morre/ ressuscita graças à
natureza do pai (N._doT.)
111A expressão grega é Saipóftoç ópt?P , isto 114 No grego ánopei (também derivado de
£, homem marcado pelo gênio, pela divindade Tiópoç ). (N. do T.)
( Saípcop ). Nossos correspondentes “genial” ou 115 Cf. no Lísis um argumento semelhante: o
“de gênio” derivam para a idéia de talento. bom, bastando-se a si mesmo, não é amigo
(N. do T.) (isto é, não ama e não deseja) do bom.(N. do T.)
42 PLATÃO

— Quais então, Diotima — per­ — Mas essa resposta — dizia-me


guntei-lhe — os que filosofam, se não ela — ainda requer118 uma pergunta
são nem os sábios nem os ignorantes? desse tipo: Que terá aquele que ficar
b — É o que é evidente desde já — com o que é belo ?
respondeu-me — até a uma criança: — Absolutamente — expliquei-íhe
são os que estão entre esses dois extre­ — eu não podia mais responder-lhe de
mos, e um deles seria o Amor. Com pronto a essa pergunta.
efeito, uma das coisas mais belas é a — Mas é, disse ela, como se al- e
sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, guém tivesse mudado a questão e,
de modo que é forçoso o Amor ser filó­ usando o bom119 em vez do belo,,
sofo e, sendo filósofo, estar entre o perguntasse: Vamos, Sócrates, ama o
sábio e o ignorante. E a causa dessa amante o que é bom; que é que ele
sua condição é a sua origem: pois é ama?
filho de um pai sábio e rico11 6 e de — Tê-lo consigo — respondi-lhe.
uma mãe que não é sábia, e pobre. É — E que terá aquele que ficar com
essa então, ó Sócrates, a natureza o que é bom?
desse gênio; quanto ao que pensaste — Isso eu posso — disse-lhe —
c ser o Amor, não é nada de espantar o mais facilmente responder: ele será
que tiveste. Pois pensaste, ao que me feliz.
parece a tirar pelo que dizes, que Amor — E com efeito pela aquisição do 205 a
era o amado e não o amante; eis por que é bom, disse ela, que os felizes são
que, segundo penso, pãrecia-te todo felizes, e não mais é preciso ainda per­
belo o Amor. E de fato o que é amável guntar: E para que quer ser feliz aquele
é que é realmente belo, delicado, per­ que o quer? Ao contrário, completa
feito e bem-aventurado11 7; o amante, parece a resposta.
porém é outro o seu caráter, tal qual eu — Ê verdade o que dizes---- tor­
expliquei. nei-lhe.
E eu lhe disse: — Muito bem, — E essa vontade então e esse
estrangeira' É belo o que dizes ! Sendo amor, achas que é comum a todos os
porém tal a natureza do Amor, que homens, e que todos querem ter sempre
proveito ele tem para os homens? consigo o que é bom, ou que dizes?
i — Eis o que depois disso — res­ — Isso — respondi-lhe — é
pondeu-me — tentarei ensinar-te. Tal é comum a todos.
de fato a sua natureza e tal a sua ori­ — E por que então, ó Sócrates, não *
gem; e é do que é belo, como dizes. são todos que dizemos que amam, se é
Ora, se alguém nos perguntasse: Em que todos desejam a mesma coisa1 20 e
que é que é amor do que é belo o sempre, mas sim que uns amam e ou­
Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais tros não?
— Também eu — respondi-lhe —
claramente: Ama o amante o que é admiro-me.
belo; que é que ele ama?
— Tê-lo consigo — respondi-lhe.116117 118 A expressão no grego é pitoresca ( iro&et ,
isto é, deseja), por sua relação com a idéia
discutida no contexto. (N. doT.)
116 No grego ewropoç , assim como infra airopoç 119 V. supra p. 39> n. 104. (N. doT.)
= pobre, ambos derivados de rrópoç (N. do T.) 120 Isto é, o que é bom ou, mais literalmente,
117 Cf. supra 180a-4. (N. doT.) as coisas boas. (N. doT.)
O BANQUETE 43

—Mas não! Não te admires! — — Ê bem provável que estejas


retrucou ela; — pois é porque destaca­ dizendo a verdade — disse-lhe eu.
mos dó amor um certo aspecto e, apli­ — E de fato corre um dito1 23, con­
cando-lhe o nome do todo, chamamo- tinuou ela, segundo o qual são os que
lo de amor, enquanto para os outros procuram a sua própria metade os que
aspectos servimo-nos de outros nomes. amam; o que eu digo porém é que não
— Como, por exemplo? — pergun­ é nem da metade o amor, nem do todo; e
tei-lhe. pelo menos, meu amigo, se não se
— Como o seguinte. Sabes que encontra este em bom estado, pois até
c “poesia”121 é algo de múltiplo; pois os seus próprios pés e mãos querem os
toda causa de qualquer coisa passar do homens cortar, se lhes parece que o
não-ser ao ser é “poesia”, de modo que que é seu está ruim. Não é com efeito o
as confecções de todas as artes são que é seu, penso, que cada um estima,
“poesias”, e todos os seus artesãos a não ser que se chame o bem de pró­
poetas. prio e de seu, e o mal de alheio; pois 200 a
— E verdade o que dizes. nada mais há que amem os homens
— Todavia — continuou ela — tu senão o bem; ou te parece que amam?
sabes que estes não são denominados — Não, por Zeus — respondi-lhe.
poetas, mas têm outros nomes, en­ — Será então — continuou — que
quanto que de toda a “poesia” uma é tão simples1 2 4 assim, dizer que os
única parcela foi destacada, a que se homens amam o bem?
refere à música e aos versos, e com o — Sim — disse-lhe.
nome do todo é denominada. Poesia é — E então? Não se deve acres­
com efeito só isso que se chama, e os centar que é ter consigo o bem que eles
que têm essa parte da poesia, poetas. amam?
— Ê verdade — disse-lhe. — Deve-se.
d — Pois assim também é com o — E sem dúvida — continuou —
amor. Em geral, todo esse desejo do não apenas ter, mas sempre ter?
que é bom e de ser feliz, eis o que é “o — Também isso se deve acrescen­
supremo e insidioso amor, para todo tar.
homem”1 22, no entanto, enquanto uns, — Em resumo então — disse ela
porque se voltam para ele por vários — é o amor amor de consigo ter sem­
outros caminhos, ou pela riqueza ou pre o bem.
pelo amor à ginástica ou à sabedoria, — Certíssimo — afirmei-lhe — o
nem se diz que amam nem que são que dizes.
amantes, outros ao contrário, proce­
123 Essa alusão ao discurso de Aristófanes é,
dendo e empenhando-se numa só como nota Robin em sua introdução ao Ban­
forma, detêm o nome do todo, de quete, um indício habilmente dissimulado na
verossimilhança da narração do' caráter fictício
amor, de amar e de amantes. de Diotima. (N.doT.)
124 O que segue até b deve ser relacionado com
121 rioÍTíotç é no grego ação de noietu = fa­ 200b-e. O desejo de ter para o futuro é o de­
zer, isto é, confecção, produção e num sentido sejo de ter sempre. Daí associar-se a idéia do
mais limitado, poesia. (N.doT.) bem à de continuidade, a qual, logo mais refe­
122 Provavelmente uma citação do verso não rida ao homem, ser mortal, assume a feição de
identificado (N. do T.) imortalidade. (N.doT.)
44 PLATÃO

b — Quando então — continuou ela vista do belo, que de uma grande dor
— é sempre isso o amor, de que modo, liberta o que está prenhe. É com efeito,
nos que o perseguem, e em que ação, o Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
seu zelo e esforço se chamaria amor, como pensas.
amor1 2 5? Que vem a ser essa ativida­ — Mas de que é enfim?
de? Podes dizer-me? — Da geração e da parturição no
— Eu não te admiraria então, ó belo.
Diotima, por tua sabedoria, nem te — Seja-—■ disse-lhe eu.
frequentaria para aprender isso — Perfeitamente — continuou. — 207 4

mesmo. E por que .assim da geração? Porque é


— Mas eu te direi — tornou-me. algo de perpétuo e imortal para um
— Ê isso, com efeito, um parto em mortal, a geração. E é a imortalidade
beleza, tanto no corpo como na alma. que, com o bem, necessariamente se
— É um adivinho — disse-lhe eu deseja, pelo que foi admitido, se é que
— que requer o que estás dizendo: não o amor é amor de sempre ter consigo o
entendo. bem127. Ê.de fato forçoso por esse
c — Pois eu te falarei mais clara­ argumento que também da imortali­
mente, Sócrates, disse-me ela. Com dade seja o amor.
efeito, todos os homens concebem, não Tudo isso ela me ensinava, quando
só no corpo como também na alma, e sobre as questões de amor discorria, e
quando chegam a certa idade, é dar à uma vez ela me perguntou: — Que
luz que deseja a nossa natureza. Mas pensas, ó Sócrates, ser o motivo128
ocorrer isso no que é inadequado é desse amor e desse desejo? Porventura
d impossível. E o feio é inadequado a não percebes como é estranho o com­
tudo o que é divino, enquanto o belo ê portamento de todos os animais quan­
adequado. Moira então e Ilitia1 2 6 do do desejam gerar, tanto dos que andam
nascimento é a Beleza. Por isso, quan­ quanto dos que voam, adoecendo b
do do belo se aproxima o que está em todos em sua disposição amorosa, pri­
concepção, acalma-se, e de júbilo meiro no que concerne à união de um
transborda, e dá à luz e gera; quando com o outro, depois no que diz respeito
porém é do feio que se aproxima, som­ à criação do que nasceu? E como em
brio e aflito contrai-se, afasta-se, reco- vista disso estão prontos para lutar os
e lhe-se e não gera, mas, retendo o que mais fracos contra os mais fortes, e
concebeu, penosamente o carrega. Daí mesmo morrer, não só se torturando
é que ao que está prenhe e já intumes- pela fome a fim de alimentá-los como
cido é grande o alvoroço que lhe vem à tudo o mais fazendo? Ora, os homens,
125 Nova mudança no método de exposição, continuou ela, poder-se-ia pensar que é
que agora passa a ser dircursivo. Assimilando pelo raciocínio que eles agem assim;
abruptamente, à maneira dos profetas, a ativi­
dade amorosa ao processo da geração, Diotima
discorre então sobre o sentido desta, revelan­ 127 206a. V. nota respectiva. (N. doT.)
do-a como uma maneira de participarem os 128 Diotima e Sócrates já se entenderam sobre
seres deste mundo da perene estabilidade do o motivo do amor (206-207a, 207c-8-d). Por
mundo ideal. (N. doT.) conseguinte, sua pergunta agora é apenas para
126 Divindade que preside aos nascimentos, iniciar uma verificação desse motivo, conside-
assim como uma das três Moiras ou Parcas. raudo-o a partir do amor físico, a forma mais
(N. doT.) sensível do amor. V. supra 205b-d. (N. doT.)
O BANQUETE 45

c mas os animais, qual a causa desse seu nascem e outras morrem para nós, e ja­
comportamento amoroso? Podes di­ mais somos os mesmos nas ciências,
zer-me? mas ainda cada uma delas sofre a
De novo eu lhe disse que não sabia; mesma contingência. O que, com efei­
e ela me tomõu: — Imaginas então to, se chama exercitar é como se de nós
algum dia te tomares temível nas ques­ estivesse saindo a ciência; esqueci­
tões do amor, se não refletires nesses mento é escape de ciência, e o exercí­
fatos? cio, introduzindo uma nova lembrança
— Mas é por isso mesmo, Diotima
— como hâ pouco eu te dizia -— que em lugar da que está saindo, salva a
vim a ti, porque reconhecí que preci­ ciência, de modo a parecer ela ser a
sava de mestres. Dize-me então não só mesma. É desse modo que tudo o que é
a causa disso, como de tudo o mais mortal se conserva, e não pelo fato de
que concerne ao amor. . absolutamente ser sempre o mesmo,
— Se de fato — continuou -— crês como o que é divino, mas pelo fato de
d que o amor é por natureza amor daqui­ deixar o que parte e envelhece um
lo que muitas vezes admitimos, mão fi­ outro ser novo, tal qual ele mesmo era.
ques admirado.,Pois aqui, segundo o E por esse meio, ó Sócrates, que o
mesmo argumento que lá, a natureza mortal participa da imortalidade, no
mortal procura, na medida do ppssível, corpo como em tudo mais1 3 0; o imor­
ser sempre e ficar imortal. E ela só tal porém é de outro modo. Não te
pode assim, através da geração, porque admires portanto de que o seu próprio
sempre deixa um outro ser novo em rebento, todo ser por natureza o apre­
lugar do velho129; pois é nisso que se cie: é em virtude da imortalidade que a
diz que cada espécie animal vive e é a todo ser esse zelo e esse amor acompa­
mesma — assim como de criança o nham.
homem se diz o mesmo até se/tornar Depois de ouvir o seu discurso,
velho; este na verdade, apesar de ja­ admirado disse-lhe: — Bem, ó doutís­
mais ter em si as mesmas coisas, diz-se sima Diotima, essas coisas é verdadei­
todavia que é o mesmo, embora sem­ ramente assim que se passam?
pre se renovando e perdendo alguma E ela, como os sofistas consumados,
coisa, nos cabelos, nas carnes, nos tornou-me: -—- Podes estar certo, ó Só­
e ossos, no sangue e em todo o corpo. E crates; o caso é que, mesmo entre os
não é que é só no corpo, mas também homens, se queres atentar à sua ambi­
na alma os modos, os costumes, as ção, admirar-te-ias do seu desarrazoa-
opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais 130 Alguns críticos querem ver nessa passagem
uma contradição com a doutrina da imortali­
permanece o mesmo em cada um de dade da alma, e consequentemente um indício
nós, mas uns nascem, outros morrem. da anterioridade do Banquete ao Fédon, onde
aquela doutrina é longamente exposta. Na ver­
208 a Mas ainda mais estranho do que isso é dade, ela não autoriza a inferência de que a
que até as ciências não é só que umas alma é mortal. Diotima diz que seus afetos e
conhecimentos são passageiros, como os ele­
129 Segue até 208b um quadro muito vivo da mentos do corpo, mas não afirma que a alma
visão heraclitiana da realidade. Mas, sob o são esses affetos e conhecimentos. A idéia de vá­
fluxo desesperador das coisas, Diotima vê em rias encarnações da alma e a do conhecimento-
sua geração, a sua maneira de continuar, o seu reminiscência, exposta também no Fédon, ilus­
modo de participar do ser perene das idéias. tra muito a compatibilidade de uma alma imor­
(N. doT.) tal com acidentes transitórios. (N. doT.)
46
PLATAO

mento, a menos que, a respeito do que estes estão todos os poetas criadores e:
te falei, não reflitas, depois de conside­ todos aqueles artesãos que se diz serem
rares quão estranhamente eles se com­ inventivos; mas a mais importante,
portam com o amor de se tomarem disse ela, e a mais bela forma de pensa­
renomados e de “para sempre uma gló­ mento é a que trata da organização dos
ria imortal se preservarem”, e como negócios da cidade e da família, e cujo
por isso estão prontos a arrostar todos nome é prudência e justiça134 — des­
d. os perigos, ainda mais do que pelos tes por sua vez quando alguém, desde
filhos, a gastar fortuna, a sofrer priva­ cedo fecundado em sua alma, ser divi­
ções, quaisquer que elas sejam, e até a no que é, e chegada a idade oportuna,
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou já está desejando dar à luz e gerar, pro­
ela, que Alceste1 31 morreria por Ad­ cura então-também este, penso eu, à
meto, que Aquiles morreria depois de sua volta o belo em que possa gerar;
Pátroclo, ou o vosso Codro132 morre­ pois no que é feio ele jamais o fará.
ria antes, em favor da realeza dos Assim é que os corpos belos mais que
filhos, se não imaginassem que eterna os feios ele os acolhe, por estar em
seria a memória da sua própria virtu­ concepção; e se encontra uma alma
de, que agora nós conservamos? Longe bela, nobre e bem dotada, é total o seu
disso, disse ela; ao contrário, é, segun­ acolhimento a ambos, e para um
do penso, por uma virtude imortal e homem desses logo ele se enriquece13 5
por tal renome e glória que todos tudo de discursos sobre a virtude, sobre o
fazem, e quanto melhores tanto mais; que deve ser o homem bom e o que
e pois é o imortal que eles amam. Por
deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
conseguinte, continuou ela, aqueles contato sem dúvida do que é belo e em
que estão fecundados em seu corpo sua companhia, o que de há muito ele
voltam-se de preferência para as mu­ concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem
lheres, e é desse modo que são amoro­ o esquecer tanto em sua presença
sos, pela procriação conseguindo para quanto ausente, e o que foi gerado, ele
o alimenta justamente com esse belo,
si imortalidade, memória e bem-aven-
de modo que uma comunidade muito
turança por todos os séculos seguintes,
maior que a dos filhos ficam tais indi­
209 a ao que pensam; aqueles porém que é víduos mantendo entre si, e uma ami­
em sua alma — pois há os que conce­ zade mais firme, por serem mais belos
bem na alma mais do que no corpo, o e mais imortais os filhos que têm em
que convém à alma conceber e gerar; e comum. E qualquer um aceitaria obter -
o que é que lhes convém senão o pen­ tais filhos mais que os humanos, de­
samento e o mais da virtude133 ? Entre pois de considerar Homero e Hesíodo,
131 £ uma referência ao discurso de Fedro, 179 e admirando com inveja os demais
ss. (N.doT.) bons poetas, pelo tipo de descendentes
132 Rei legendário de Atenas. Informado de
que um oráculo prometera vitória aos dórios, que deixam de si, e que uma imortal
se estes não o matassem, disfarça-se em solda­ glória e memória lhes garantem, sendo
do e como tal encontra a morte com que sal­
vou sua pátria. (N.doT.) 134 Prudência ( aaxppoavv-q ) e justiça são aqui
133 Entender .virtude no sentido amplo de exce­ formas do pensamento ( ippóvTqoic; ); como no
lência, tal como o grego àperq . Notar a dis­ Protágoras (361b ss.) elas são, como as de­
tinção feita no Banquete entre <ppót7?atç (de mais virtudes, formas ou aspectos de uma
'ppovéoiiai ) = disposição para a sabedoria, ciência ( èTuorriu-n )■• (N.doT.)
pensamento e aopía , isto é, sabedoria (v. 202) 135 No grego eimopét . V. supra p. 41 , n. 113.
que só os deuses possuem. (N. do T.l (N.doT.) :
O BANQUETE 47

eles mesmos o que são; ou se prefe­ seu dirigente, deve ele amar um só
res13 6, continuou ela, pelos filhos que corpo e então gerar belos discur­
Licurgo deixou na Laced,emônia, sal­ sos139; depois deve ele compreender- b
vadores da Lacedemônia e por assim que a beleza em qualquer corpo é irmã
dizer da Grécia. E honrado entre vós é ’ da que está em qualquer outro, e que,
também Sólon1 3 7 pelas leis que criou, se se deve procurar o belo na forma,
e outros muitos em muitas outras par­ muita tolice seria não considerar uma
tes, tanto entre os gregos como entre os só e a mesma a beleza em todos os cor­
bárbaros, por terem dado à luz muitas pos; e depois de entender isso, deve ele
obras belas e gerado toda espécie de fazer-se amante de todos os belos cor­
virtudes; deles é que jâ se fizeram mui­ pos e largar esse amor violento de um
tos cultos por causa de tais filhos, só, após desprezá-lo e considerá-lo
enquanto que por causa dos humanos mesquinho; depois disso a beleza que
ainda não se fez nenhum. está nas almas deve ele considerar
mais preciosa que a do corpo, de modo
São esses então os casos de amor em
que, mesmo se alguém de uma alma
a- que talvez, ó Sócrates, também tu
gentil tenha todavia um escasso encan­
pudesses ser iniciado138; mas, quanto
to, contente-se ele, ame e se interesse, e ?
à sua perfeita contemplação, em vista produza e procure discursos tais que
da qual é que esses graus existem, .tornem melhores os jovens; para que
quando se procede corretamente, não
então seja obrigado a contemplar o
sei se serias capaz; em todo caso, eu te belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim
direi, continuou, e nenhum esforço que todo ele tem um parentesco
pouparei; tenta então seguir-me se comum1 40, e julgue enfim de pouca
fores capaz: deve com efeito, começou monta o belo no corpo; depois dos ofí­
ela, o que corretamente se encaminha a cios é para as ciências que é preciso
esse fim, começar quando jovem por transportá-lo, a fim de que veja tam­
dirigir-se aos belos corpos, e em pri­ bém a beleza das ciências, e olhando </
meiro lugar, se corretamente o dirige o para ò belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza indivi­
136 A ordem em que aparecem os exemplos da
poesia e da legislação parece sugerir a preemi- dual de um criançola, de um homem
nência da primeira sobre a segunda: Cf. toda­ ou de um só costume, não seja ele,
via República, X, 597 e ss., em que Platão, ao
contrário, explica a superioridade da segunda. nessa escravidão, miserável e um mes­
(N. doT.) quinho discursador, mas voltado ao
137 Em conferência na Associação dos Estudos
Clássicos do Brasil (Seção de São Paulo), so­ vasto oceano do belo e, contemplan­
bre o autocriticismo em Atenas, o Prof. Aubre- do-o, muitos discursos belos e magní-
ton observou com muito acerto os sentimentos
de laconismo qüe revela essa maneira de um 139 Evidentemente não se trata aqui do amor
ateniense citar depois das leis de Licurgo — físico entre o homem e a mulher, que tem a
salvadores da Grécia ... — as leis do seu con­ justificação na procriação (208e), e sim de
terrâneo — e também Sólon . . . (N. do T.) uma primeira etapa do amor entre o amante e
138 Feito o exame das diversas formas da ativi­ o bem-amado, que deve estar condicionado à
dade amorosa (prescrição, poesia, legislação), produção dos belos discursos. Essa etapa ini­
Diotima as considera como estágios prelimina­ cial- corresponde ao que Pausânias, numa pers­
res do supremo ato do amor, que é a conquista pectiva menos clara, afirma ser o nobre amor
da ciência do belo em si. Para dar no entanto de Afrodite Urânia. (N. do T.)
a entender o caráter dessa ciência e de sua 140 Assim como, pouco antes, um belo corpo é
aquisição, ela recorre à alegoria da iniciação irmão de um belo corpo, todos estes por sua
aos mistérios. Compafá-la a esse respeito com vez têm a mesma relação com os belos ofícios
o mito da Caverna na República. (N. do T.) e as belas leis. (N. doT.)
48 PLATÃO

ficos ele produza, e reflexões, em ines­ tudo mais que é belo dele participa, de
gotável amor à sabedoria, até que aí um modo tal que, enquanto nasce e pe­
robustecido e crescido1 41 contemple rece tudo mais que é belo, em nada ele
ele uma certa ciência, única, tal que o fica maior ou menor, nem nada sofre.
seu objeto é o belo seguinte. Tenta Quando então alguém, subindo a partir
agora, disse-me ela, prestar-me a máxi­ do que aqui é belo1 4 4, através do cor­
ma atenção possível. Aquele, pois, que reto amor aos jovens, começa a con­
até esse ponto tiver sido orientado para templar aquele belo, quase que estaria
as coisas do amor, contemplando
seguida e corretamente o que é belo, já a atingir o ponto final. Eis, com efeito, c
chegando ao ápice dos graus do amor, em que consiste o proceder correta­
súbito perceberá algo de maravilhosa­ mente nos caminhos do amor ou por
mente belo em sua natureza, aquilo outro se deixar conduzir: em começar
mesmo1 42, ó Sócrates, a que tendiam do que aqui é belo e, em vista daquele
todas as penas anteriores, primeira­ belo, subir sempre, como que servin-
211 a mente sempre sendo, sem nascer nem do-se de degraus, de um só para dois e
perecer, sem crescer nem decrescer, e de dois para todos os belos corpos, e
depois, não de um jeito belo e de outro dos belos corpos para os belos ofícios,
feio, nem ora sim ora não, nem quanto e dos ofícios para as belas ciências até
a isso belo e quanto àquilo feio, nem que das ciências acabe naquela ciên­
aqui belo ali feio, como se a uns fosse cia, que de nada mais é senão daquele
belo e a outros feio; nem por outro próprio belo, e conheça enfim o que em
lado aparecer-lhe-á o belo como um si é belo. Nesse ponto da vida, meu d
rosto ou mãos, nem como nada que o caro Sócrates, continuou a estrangeira
corpo tem consigo, nem como algum de Mantinéia, se é que em outro mais,
discurso ou alguma ciência, nem certa­ poderia o homem viver, a contemplar o x
mente como a existir em algo mais, próprio belo. Se algum dia o vires, não
b como, por exemplo, em animal da terra
é como ouro1 4 5 ou como roupa que
ou do céu, ou em qualquer outra coisa;
ao contrário, aparecer-lhe-á ele ele te parecerá ser, ou como os belos
mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, jovens adolescentes, a cuja vista ficas
sendo sempre uniforme1 43, enquanto agora aturdido e disposto, tu como ou­
141A abundância é a grandeza dos discursos
tros muitos, contanto que vejam seus
decorrentes da extensão do belo já contempla­ amados e sempre estejam com eles, a
do ( 7rpòç rroÀà 77Ô7? rò KaÀóf ) é condição para nem comer nem beber, se de algum e
atingir a contemplação do próprio belo.
(N. doT.) modo fosse possível, mas a só contem­
142 Observar ro que precede até essa expressão
uma extraordinária técnica de suspense para
plar e estar ao seu lado1 4 6. Que pensa­
preparar o deslumbramento do que segue, isto mos então que aconteceria, disse ela,
é, a descrição do belo em si. Desencantados da se a alguém ocorresse contemplar o
magia desse trecho, podemos perceber que ele
é uma resposta àquela litania final do discurso próprio belo, nítido, puro, simples, e
de Agatão (197d-e), mas quão superior em
emoção e grandeza! (N. doT.) 144 O pronome Tãwôe parece-me aqui refe­
143 Essas expressões, que aparecem freqüente- rir-se claramente à idéia do belo. Assim, tradu-
mente no Fédon para caracterizar as idéias em zimo-lo especificando: “as coisas belas daqui”.
sua pureza essencial, contrapõem-se a fórmulas A menção explícita râjv koKcüv , um pouco
usadas pouco acima (de um jeito ... de ou­ abaixo, explica-se pelo fato de que Diotima
tro . . ., ora. . . ora. . . quanto a isso . .. quanto está resumindo sua lição. (N. doT.)
àquilo . . . etc.) para qualificar as coisas deste 145 Como o sofista Hípias o define para Sócra­
mundo, e que representam por assim dizer os tes. V. Hípias Maior, 289e. (N. doT.)
marcos da argumentação socrática. (N. doT.) 146 Cf. supra 192d-e. (N. doT.)
O BANQUETE 49

não repleto de carnes, humanas, de coisa1 50, que era a ele que aludira Só­
cores e outras muitas ninharias mor­ crates, quando falava de um certo dito;
tais, mas o próprio divino .belo pudesse e súbito a porta do pátio, percutida,
ele em sua forma única contemplar? produz um grande barulho, como de
212 a Porventura pensas, disse, que é vida vã foliões, e ouve-se a voz de uma flautis­
a de um homem a olhar naquela dire­ ta. Agatão exclama: “Servos! Não *
ção e aquele objeto, com aquilo1 4 7 ireis ver? Se for^algum conhecido, cha-
com que deve, quando o contempla e mai-o; se não, dizei que não estamos
com ele convive? Ou não consideras, bebendo, mas já repousamos”.
disse ela, que somente então, quando Não muito depois ouve-se a voz de
vir o belo com aquilo com que este Alcibíades no pátio, bastante embria­
pode ser visto, o.correr-lhe-à produzir gado, e a gritar alto, perguntando onde
não sombras148 de virtude, porque estava Agatão, pedindo que o levassem
não é em sombra que estará tocando, para junto de Agatão. Levam-no então
mas reais virtudes, porque é no real até os convivas a flautista, que o
que estará tocando? tomou sobre si, e alguns outros acom­
b Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro panhantes, e ele se detém à porta, cin-
e demais presentes, e do que estou gido de uma espécie de coroa tufada de e
convencido; e porque estou conven­ hera e violetas, coberta a cabeça de
fitas em profusão, e exclama:
cido, tento convencer também; os ou­ “Senhores! Salve! Um homem em
tros de que para essa aquisição, um completa embriaguez vós o recebereis
colaborador da natureza humana me­ como companheiro de bebida, ou deve­
lhor que o Amor não se encontraria mos partir, tendo apenas coroado Aga­
facilmente. Eis por que eu afirmo que tão, pelo qual viemos? Pois eu, na ver­
deve todo homem honrar o Amor, e dade, continuou, ontem mesmo não fui
que eu próprio prezo o que lhe con­ capaz de vir; agora porém eis-me aqui,
cerne e particularmente o cultivo, e aos com estas fitas sobre a cábeça, a fim de
outros exorto, e agora e sempre elogio passá-las da minha para a cabeça do
o poder e a virilidade do Amor na me- mais sábio e do mais belo, se assim
c dida em que sou capaz. Este discurso, devo dizer. Porventura ireis zombar de
ó Fedro, se queres, considera-o profe­ mim, de minha embriaguez? Ora, eu, 2i3 a
por mais que zombeis, bem sei por­
rido como um encômio1 49 ao Amor; tanto que estou dizendo a verdade.
se não, o que quer que e como quer que Mas dizei-me daí mesmo: com o que
te apraza chamá-lo, assim deves fazê- disse, devo entrar ou não? Bebereis co­
lo. migo ou não?”
Depois que Sócrates assim falou, Todos então o aclamam e convidam
enquanto que uns se põem a louvá-lo, a entrar e a recostar-se, e Agatão o
Aristófanes tenta dizer alguma chama. Vai ele conduzido pelos ho­
147 Isto é, com a inteligência, ou antes, com a mens, e como ao mesmo tempo colhia
própria alma, livre das suas relações com o as fitas para coroar, tendo-as diante b
corpo. V. Fédon, 65b-e. (N.doT.)
148 São as virtudes praticadas pelo comum dos 159 Aristófanes não parece, como os demais
homens, tais como Platão as explica no Fédon, convivas, empolgado com o que foi dito por
68b-69b. (N.doT.) Sócrates, o que bem revela sua pouca predis­
149 Porque foi proferido à maneira socrática. posição para captar o conteúdo do discurso de
V. supra 199b. (N. doT.) Alcibíades. (N.doT.)
50 PLATAO

dos olhos não viu Sócrates, e todavia mitido dirigir nem o olhar nem a
senta-se ao pé de Agatão, entre este e x palavra a nenhum belo jovem, senão
Sócrates, que se afastara de modo a este homem, enciumado e invejoso, faz
que ele se acomodasse. Sentando-se ao coisas extraordinárias, insulta-me e
lado de Agatão ele o abraça e o coroa. mal retém suas mãos da violência. Vê
Disse então Agatão: — Descalçai então se também agora não vai ele
Alcibíades, servos, a fim de que seja o fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
terceiro em nosso leito1 51. ou se ele tentar a violência, defende-
— Perfeitamente — tomou Alci­ me, pois eu da sua fúria e da sua pai­
bíades; — mas quem é este nosso ter­ xão amorosa muito me arreceio.
ceiro companheiro de bebida? E en­ — Não! — disse Alcibíades —
quanto se volta avista Sócrates, e mal entre mim e ti não há reconciliação.
o viu recua em sobressalto e exclama: Mas pelo que disseste depois eu te
Por Hércules! Isso aqui que é? Tu, ó castigarei; agora porém, Agatão, ex­
c Sócrates? Espreitando-me de novo aí clamou ele, passa-me das tuas fitas, a
te deitaste, de súbito aparecendo assim fim de que eu cinja também esta aqui,
como era teu costume, onde eu menos a admirável cabeça deste homem, e
esperava que haverías de estar? E não me censure ele de que a ti eu te
agora, a qüe vieste? E ainda por que coroei, mas a ele, que vence em argu­
foi que aqui te recostaste? Pois não foi mentos todos os homens, não só ontem
junto de Aristófanes1 52, ou de qual­ como tu, mas sempre, nem por isso eu
quer outro que seja ou pretenda ser o coroei. — E ao mesmo tempo ele
engraçado, mas junto do mais belo dos toma das fitas, coroa Sócrates e recos-
que estão aqui dentro que maquinaste ta-se.
te deitar. Depois que se recostou, disse ele: —
E Sócrates: — Agatão, vê se me Bem, senhores! Vós me pareceis em
defendes ! Que o amor deste homem se plena sobriedade. É o que não se deve
me tomou um não pequeno proble­ permitir entre vós, mas beber; pois foi
ma1 53. Desde aquele tempo, com efei- o que foi combinado entre nós. Como
d to, em que o amei, não mais me é per- chefe então da bebedeira, até que tiver­
des suficiehtemente bebido, eu me elejo
151V. supra p. 15 , n. 13, e p. 16 , n. 16. a mim mesmo1 5 4. Eia, Agatão, que a
(N. doT.)
152 Por que essa referência a Aristófanes? Não tragam logo, se houver aí alguma gran­
temos nenhuma outra notícia da predileção de de taça. Melhor ainda, não há nenhu­
Sócrates pelos cômicos, em particular por Aris­
tófanes. Por outro lado é de supor que Alcibía­ ma precisão: vamos, servo, traze-me
des de pronto percebesse a possibilidade de aquele porta-gelo ! exclamou ele, quan­ 214 a
Sócrates ter sido convidado pelo próprio Aga­
tão, como de fato aconteceu. Assim, suas pala­ do viu um com capacidade de máís de
vras devem ser entendidas mais como um arti oito “cótilas”1 5 5. Depois de enchê-lo,
fício dramático para chamar a atenção sobre a primeiro ele bebeu, depois mandou Só­
incapacidade cm Aristófanes de entender o ver­
dadeiro aspecto cômico da atitude de Alcibía­ crates entornar, ao mesmo tempo que
des para com Sócrates. (N. doT.)
153 Essa observação de Sócrates, como a de 454 Alcibíades sente em sua embriaguez que o
Alcibíades logo a seguir, anuncia à maneira de “simposiarca” (v. supra p. 17 , n. 21) não se
um prelúdio as conclusões que vamos tirar do houve bem em sua função e pretende reparar a
discurso de Alcibíades sobre a irresponsabilida­ falta. . . (N. doT.)
de de Sócrates no comportamento de Alcibía­ 155 Uma “cótila” equivalia a pouco mais de
des. ÍN.doT.) um quarto de litro. (N. doT.)
O BANQUETE 51

dizia: — Para Sócrates, senhores, meu amigo, convence-te Sócrates em algo


ardil não é nada: quanto se lhe man­ do que há pouco disse? Ou sabes que é
dar, tanto ele beberá, sem que por isso o contrário de tudo o que afirmou? É
jamais se embriague1 5 6. ele ao contrário que, se em sua pre­
Sócrates então, tendo-lhe entornado sença eu louvar alguém, ou um deus ou
o servo, pôs-se a beber; mas eis que um ouíro homem fora ele, não tirará
Erixímaco exclama: — Que é então suas mãos de mim.
b que fazemos, Alcibíades? Assim nem — Não vais te calar? — disse
dizemos nada nem cantamos de taça à Sócrates.
mão, mas simplesmente iremos beber, — Sim, por Posidão — respon­
como os que têm sede? deu-lhe Alcibíades; nada digas quanto
Alcibíades então exclamou: — Ex­ a isso, que eu nenhum outro mais lou­
celente filho de um excelente e sapien- varia em tua presença.
tíssimo pai, salve! — Pois faze isso então — disse-lhe
— Também tu, salve! — respon­ Erixímaco — se te apraz; louva
deu-lhe Erixímaco; — mas que deve­ Sócrates.
mos fazer? — Que dizes? — tornou-lhe Alci- *
. — O que ordenares! É preciso com bíades; — parece-te necessário, Erixí­
efeito te obedecer: maco? Devo então atacar-me ao
homem e castigá-lo1 58diante de vós?
pois um homem que é médico — Eh ! tu! — disse-lhe Sócrates —
vale que tens em mente? Não é para carre­
muitos outros'' 51 ; gar1 59 no ridículo que vais elogiar-
me? Ou que farás?
ordena então o que queres.
— A verdade eu direi. Vê se acei­
— Ouve então — disse Erixímaco.
tas !
e — Entre nós, antes de chegares, deci­
— Mas sem dúvida! — respon­
dimos que devia cada um à direita pro­
deu-lhe — a verdade sim, eu aceito, e
ferir em seu turno um discurso sobre o
mesmo peço que a digas.
Amor, o mais belo que pudesse, e lhe
— Imediatamente — tornou-lhe
fazer o elogio. Ora, todos nós já fala­
Alcibíades. — Todavia faze o seguin­
mos; tu porém como não o fizeste e jâ
te. Se eu disser algo inverídico, inter-
bebeste tudo, é justo que fales, e que
rompe-me incontinenti, se quiseres, e
depois do teu discurso ordenes a Só­
dize que nisso eu estou falseando; pois 215 «
crates o que quiseres, e este ao da direi­
de minha vontade eu nada falsearei. Se
ta, e assim aos demais.
porém a lembrança de uma coisa me
— Mas, Erixímaco! — tornou-lhe
Alcibíades — é sem dúvida bonito o 158 Contando a decepção que lhe causou o
que dizes, mas um homem embriagado outro como “amante”. O comportamento de
proferir um discurso em confronto Sócrates desfizera seus planos escabrosos, pon­
do a nu suas verdadeiras intenções. Comparar
com os de quem está com sua razão, é essa confissão de Alcibíades com a apologia
de se esperar que não seja de igual de Pausânias. (N. do T.)
159 Sócrates está falando em conhecimento de
d para igual. E ao mesmo tempo, ditoso causa. A experiência de Alcibíades foi ridícula,
e o elogio que este lhe promete fazer vai
156 V. infra 220a. (N. do T.) expô-lo, portanto, a mal-entendidos como os que
157 llíada, XI, 514. (N, doT.) já sofreu por parte de Aristófanes. (N. doT.)
52 PLATÃO

faz dizer outra, não te admires; não é flautista quer uma flautista ordinária,
fácil, a quem está neste estado, da tua são as únicas que nos fazem possessos
singularidade dar uma conta bem feita e revelam os que sentem falta dos deu­
e seguida. ses e das iniciações, porque são divi­
“Louvar Sócrates, senhores, é assim nas. Tu porém dele diferes apenas -
que eu tentarei, através de imagens. Ele nesse pequeno ponto, que sem instru­
certamente pensará talvez que é para mentos, com simples palavras, fazes o
carregar no ridículo, mas será a ima­ mesmo. Nós pelo menos, quando d
gem em vista da verdade, não do ridí­ algum outro ouvimos mesmo que seja
culo. Afirmo eu então que é ele muito um perfeito orador, a falar de outros
b semelhante a esses silenos] 6 0 coloca­ assuntos, absolutamente por assim
dos nas oficinas dos estatuários, que os dizer ninguém se interessa; quando
artistas representam com um pifre ou porém é a ti que alguém ouve, ou pala­
uma flauta, os quais, abertos ao meio, vras tuas referidas por outro, ainda que
vê-se que têm em seu interior estatue­ seja inteiramente vulgar o que está
tas de deuses. Por outro lado, digo falando, mulher, homem ou adoles­
também que ele se assemelha ao sátiro cente, ficamos aturdidos e somos em­
Mársias1 6 1. Que na verdade, em teu polgados. Eu pelo menos, senhores, se
aspecto pelo menos és semelhante a não fosse de todo parecer que estou
esses dois seres, ó Sócrates, nem embriagado, eu vos contaria, sob jura­
mesmo, tu sem dúvida poderías contes­ mento, o que é que eu sofri sob o efeito
tar; que porém também no mais tu te dos discursos deste homem, e sofro
assemelhas, é o que depois disso tens ainda agora. Quando com efeito os *
de ouvir. Ês insolente1 6 2! Não? Pois escuto, muito mais do que aos cori-
se não admitires, apresentarei testemu­ bantes1 6 4 em seus transportes bate-me
nhas. Mas não és flautista? Sim! E o coração, e lágrimas me escorrem sob
muito mais maravilhoso que o sátiro, o efeito dos seus discursos, enquanto
c Este, pelo menos, era através de instru­ que outros muitíssimos eu vejo que
mentos que, com o poder de sua boca, experimentam o mesmo sentimento; ao
encantava os homens como ainda ouvir Péricles porém, e outros bons
agora o que toca as suas melodias — oradores, eu achava que falavam bem
pois as que Olimpo1 6 3 tocava são de sem dúvida, mas nada de semelhante
Mársias, digo eu, por este ensinadas — eu sentia1 6 5, nem minha alma ficava
as dele então, quer as toque um bom perturbada nem se irritava, como se se
encontrasse em condição servil; mas
160 Também chamados sátiros, os silenos eram
divindades campestres que faziam parte do sé- com este Mársias aqui, muitas foram 216«
qtóto de Dioniso. Eram figurados com cauda e as vezes em que de tal modo me sentia
cascos de boi ou de bode e rosto humano, sin­ que me parecia não ser possível viver
gularmente feio. (N.doT.)
161 Exímio flautista, Mársias desafiou Apoio em condições como as minhas. E isso,
com sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus. ó Sócrates, não irás dizer que não é
162 A liberdade espiritual de Sócrates dá-lhe
realmente, em muitas circunstâncias, essa apa­ 164 Sacerdotes de Cibele, da Frigia, que dança­
rência. V. Apol. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. vam freneticamente ao som de flautas, címba-
(N. do T.) les e tamborins. (N.doT.)
163 Em Minos Sócrates cita-o como bem-amado 165 é que não eram estes oradores “homens de
de Mársias. Muitas canções antigas lhe eram gênio”, suscetíveis de uma inspiração divina (v.
atribuídas. (N. do T.) supra 203a). (N.doT.)
O BANQUETE 53

verdade. Ainda agora tenho certeza de Que esta sua atitude não é conforme à
que, se eu quisesse prestar,; ouvidos, dos silenos? E muito mesmo. Pois é
não resistiría, mas experimentaria os aquela com que por fora ele se reveste,
mesmos sentimentos. Pois me força ele como, o sileno esculpido; mas lá den­
a admitir que, embora sendo eu mesmo tro, uma vez aberto, de quanta sabedo­
deficiente em muitos pontos uinda, de ria, imaginais, companheiros de bebida,
mim mesmo me descuido, mas trato estar ele cheio? Sabei que nem a quem
dos negócios de Atenas166.-A custo é belo tem ele a mínima consideração,
então, como se me afastasse das antes despreza tanto quanto ninguém
sereias, eu cerro os ouvidos eime retiro poderia imaginar, nem tampouco a e
em fuga, a fim de não ficar sentado lá e quem é rico, nem a quem tenha qual­
b aos seus pés envelhecer. E senti diante quer outro título de honra, dos que são
deste homem, somente diante dele, o enaltecidos pelo grande número; todos
que ninguém imaginaria haver em esses bens ele julga que nada valem, e
mim, o envergonhar-me de quem quer que nós nada somos — é o que vos
que seja; ora, eu, é diante deste homem digo — e é ironizando e brincando
somente que me envergonho. Com efei­ com os homens que ele passa toda a
to, tenho certeza de que não posso vida. Uma vez porém que fica sério e
contestar-lhe que não se deve fazer o se abre, não sei se alguém já viu as
que ele manda, mas quando me retiro estátuas lá dentro; eu por mim já uma
sou vencido pelo apreço em que me vez as vi, e tão divinas me pareceram
tem o público. Safo-me então de sua elas, com tanto ouro, com uma beleza
presença e fujo, e quando o vejo enver- tão completa e tão extraordinária que 217 a
c gonho-me pelo que admiti. E muitas eu só tinha que fazer imediatamente o
vezes sem dúvida com prazer o veria que me mandasse Sócrates. Julgando
não existir entre os homens; mas se por porém que ele estava interessado em
outro lado tal coisa ocorresse, bem sei minha beleza, considerei um achado e
que muito maior seria a minha dor, de um maravilhoso lance da fortuna,
modo que não sei o que fazer -com es.se como se me estivesse ao alcance, de­
homem. : pois de aquiescer a Sócrates, ouvir
De seus flauteios então, tais foram tudo o que ele sabia; o que, com efeito,
as reações que eu e muitos outros tive­ eu presumia da beleza de minha juven­
mos deste sátiro; mas ouvi-me como tude era extraordinário! Com tais
ele é semelhante àqueles a quem o idéias em meu espírito1 6 8, eu que até
comparei, que poder maravilhoso ele então não costumava sem um acompa­
tem. Pois ficai sabendo que ninguém o nhante ficar só com ele, dessa vez,
d conhece; mas eu o revelarei, já que despachando o acompanhante, encon­
comecei. Estais vendo, com efeito, trei-me a sós — é preciso, com efeito, b
como Sócrates amorosamente se com­ 168 Alcibíades passa a contar os seus esforços
porta com os belos jovens, está sempre para conquistar o amor de Sócrates. Tais esfor­
ços constituem, como observa P_obin em sua
ao redor deles, fica aturdido e como Introdução, uma verdadeira tentação, isto é,
também ignora tudo e nada sabe1 6 7. uma caricatura da iniciação amorosa tal como
é caracterizada por Diotima. Através dessa
166 Cf. Alcibíades, 109d e 113b. (N. doT.) caricatura, Platão pretende ilustrar a qualidade
167 Como numa cilada para atrair os incautos. superior do cômico obtido com uma verdadeira
Cf. supra 203d. (N. doT.) arte. (N. doT.)
54 PLATÃO

dizer-vos toda a verdade;. — prestai dizer se, primeiramente, como diz o


atenção, e se eu estou mentindo, Sócra­ ditado, no vinho, sem as crianças ou
tes, prova — pois encontrei-me, senho­ com elas, não estivesse a verdade1 6 9!; e
res, a sós com ele, e pensava que logo depois, obscurecer um ato excepcional­
ele iria tratar comigo o que um amante mente brilhante de Sócrates, quando se
em segredo trataria com o bem-amado, saiu a elogiâ-lo, parece-me injusto. E
e me rejubilava. Mas não, nada disso ainda mais, o estado do que foi mordi­
absolutamente aconteceu; ao contrá­ do pela víbora é também o meu. Com
rio, como costumava, se por acaso co­ efeito, dizem que quem sofreu tal aci­
migo conversasse e passasse o dia, ele dente não quer dizer como foi senão
retirou-se e foi-se embora. Depois aos que foram mordidos, por serem os 218 a
disso convidei-o a fazer ginástica co­ únicos, dizem eles, que o com­
migo e entreguei-me aos exercícios, preendem e desculpam de tudo que
como se houvesse então de conseguir ousou fazer e dizer sob o efeito da dor.
algo. Exercitou-se ele comigo e comigo Eu então, mordido por algo mais dolo­
lutou muitas vezes sem que ninguém roso, e no ponto mais doloroso em que
nos presenciasse; e que devo dizer? se possa ser mordido — pois foi no
Nada me adiantava. Como por ne­ coração ou na alma, ou no que quer
nhum desses caminhos eu tivesse resul­ que se deva chamá-lo que fui golpeado
tado, decidi que devia atacar-me ao e mordido pelos discursos filosóficos,
homem à força e não largá-lo, uma vez que têm mais virulência que a víbora,
que eu estava com a mão na obra, mas quando pegam de um jovem espírito,
logo saber de que é que se tratava. não sem dotes, e que tudo fazem come­
Convido-o então a jantar comigo, exa­ ter e dizer tudo — e vendo por outro
tamente como um amante armando ci­ lado os Fedros, Agatãos, Erixímacos,
lada ao bem-amado. E nem nisso tam­ os Pausânias, os Aristodemos e os b
bém ele me atendeu logo, mas na Aristófanes; e o próprio Sócrates, é
verdade com o tempo deixou-se con­ preciso mencioná-lo? E quantos
vencer. Quando porém veio à primeira mais. . . Todos vós, com efeito, parti­
vez, depois do jantar queria partir. Eu cipastes em comum1 7 °, do delírio filo­
então, envergonhado, larguei-o; mas sófico e dos seus transportes báquicos
repeti a cilada, e depois que ele estava e por isso todos, ireis ouvir-me; pois
jantado eu me pus a conversar com ele haveis de desculpar-me do que então
noite . adentro, ininterruptamente, e fiz e do que agora digo. Os domésticos,
quando quis partir, observando-lhe que e se mais alguém há profano e inculto,
era tarde, obriguei-o a ficar. Ele des­
cansava então no leito vizinho ao meu, 169 Alusão ao provérbio oípoç ícai vrfttóeç àÀptfeíç
: o vinho e as crianças são verídicas. (N. do
no mesmo em que jantara, e ninguém T.)
mais no compartimento ia dormir 170 Não deixa de ser estranha essa inclusão de
Aristófanes no grupo dos amantes da filosofia.
senão nós. Bem, até esse ponto do meu Como poeta cômico, este devia estar presente
discurso ficaria bem fazê-lo a quem a todas as reuniões desse tipo, e daí poder
Alcibíades confundi-lo naturalmente com! os
quer que seja; mas o que a partir daqui que ardorosamente a defendiam, em oposição
se segue, vós não me teríeis ouvido aos indiferentes. (N. doT.)
O BANQUETE 55

que apliquem aos seus ouvidos portas ser verdade o que dizes a meu respeito,
bem espessas1 7 1. e se há em mim algum poder pelo qual
Como com efeito, senhores, a lâm- tu te poderias tornar melhor; sim, uma
c pada se apagara e os servos estavam irresistível beleza verias em mim, e
fora, decidi que não devia fazer ne­ totalmente diferente da formosura que
nhum floreado com ele, mas franca­ há em ti. Se então, ao contemplá-la,
mente dizer-lhe o que eu pensava; e tentas compartilhá-la comigo e trocar
assim o interpelei, depois de sacudi-lo: beleza por beleza, não é em pouco que
— Sócrates, estás dormindo? pensas me levar vantagens, mas ao 219 a
— Absolutamente — respondeu- contrário, em lugar da aparência é a
i- me. realidade do que é belo que tentas
— Sabes então qual é a minha adquirir, e, realmente é “ouro por
decisão? cobre” 1 7 3 que pensas trocar. No en­
— Qual é exatamente? — tomou- tanto, ditoso amigo, examina melhor;
me. não te passe despercebido que nada
— Tu me pareces — disse-lhe eu sou. Em verdade, a vis.ão do pensa.-
1 — ser um amante digno de mim, o mento começa a enxergar com agude­
único, e te mostras hesitante em decla­ za quando a dos olhos tende a perder
rar-me. Eu porém é assim que me sua força; tu porém e’stás ainda longe
sinto: inteiramente estúpido eu acho disso.
não te aquiescer não só nisso como E eu, depois de ouvi-lo: — Quanto
também em algum caso em que preci­ ao que é de minha parte, eis aí; nada
sasses ou de minha fortuna ou dos do que está dito é diferente do que
d meus amigos. A mim, com efeito, nada
penso; tu porém decide de acordo com
- me é mais digno de respeito dó que o o que julgares ser o melhor para ti e
tomar-me eu o melhor possível, e para para mim.
isso creio que nenhum auxiliar me é — Bem, tomou ele, nisso sim, tens
r mais importante do que tu. Assim é razão; daqui por diante, com efeito,
que eu, a um tal homem recusando decidiremos fazer, a respeito disso
meus favores1 7 2, muito mais me -en­ como do mais, o que a nós dois nos
vergonharia diante da gente ajuizada parecer melhor.
do que se os concedesse, diante da
Eu, então, depois do que vi e disse, e
multidão irrefletida.
E este homem, depois de ouvir-me, que como flechas deixei escapar, ima­
i com a perfeita ironia que é.bem sua e ginei-o ferido; e assim que eu me ergui
do seu hábito, retrucou-me: —: Caro sem ter-lhe permitido dizer-me nada
Alcibíades, é bem provável que real- mais, vesti esta minha túnica — pois
t e . mente não sejas um vulgar, se chega a era inverno — estendi-me por sob o
manto deste homem, e abraçado com c
í 171 Alusão a uma fórmula de iniciação órfica: estas duas mãos a este ser verdadeira­
<p&éy^ofiat oiç flépiç èonv dúpas S’ èmâea&e, péprjXot..
“Falarei àqueles a quem é permitido; aplicai mente divino e admirável fiquei deita-
portas (aos ouvidos), ó profanos.” (N do'
T.) 173 Híada, VI, 236. Enganado por Zeus, Glauco
172 Alcibíades aplicou literalmente a doutrina troca suas armas de ouro pelas de bronze de
de Pausânias. Cf. supra 184d-185b. (N.doT.) Diomedes (N.doT.)
56 PLATAO

do a noite toda. Nem também isso, ó mos ali companheiros de mesa. Antes
Sócrates, irâs dizer que estou falsean­ de tudo, nas fadigas, não só a mim me
do. Ora, não obstante tais esforços superava mas a todos os outros —
meus, tanto mais este homem cresceu e quando isolados em algum ponto,
desprezou minha juventude, ludibriou- como é comum numa expedição, éra- 220 a
a, insultou-a e justamente naquilo é mos forçados a jejuar, nada eram os
que eu pensava ser alguma coisa, outros para resistir — e por outro lado
senhores juizes; sois com efeito juizes nas fartas refeições, era o único a ser
da sobranceria de Sócrates1 74 — pois capaz de aproveitá-las em tudo mais,
ficai sabendo, pelos deuses e pelas deu­ sobretudo quando, embora se recusas­
sas, quando me levantei com Sócrates, se, era forçado a beber, que a todos
foi após um sono em nada mais vencia1 7 6; e o que é mais espantoso de
d extraordinário do que se eu tivesse dor­ tudo é que Sócrates embriagado ne­
mido com meu pai ou um irmão mais nhum homem há que o tenha visto. E
velho. disso, parece-me, logo teremos a
Ora bem, depois disso, que disposi­
ção de espírito pensais que eu tinha, a prova. Também quanto à resistência
julgar-me vilipendiado, a admirar o ao inverno — terríveis são os invernos
caráter deste homem, sua temperança e ali — entre outras façanhas extraordi- b
coragem, eu que tinha encontrado um nárias que fazia, uma vez, durante uma
homem tal como jamais julgava pode­ geada das mais terríveis, quando todos
ría encontrar em sabedoria e fortaleza? ou evitavam sair ou, se alguém saía,
Assim, nem eu podia irritar-me e pri­ era envolto em quanta roupagem estra­
var-me de sua companhia, nem sabia nha, e amarrados os pés em feltros e
e como atraí-lo. Bem sabia eu, com efei­ peles de carneiro, este homem, em tais
to, que ao dinheiro era ele de qualquer circunstâncias, saía com um manto do
modo muito mais invulnerável do que mesmo tipo que ^ntes costumava tra­
Ájax ao ferro, e na única coisa em que zer, e descalço sobre o gelo marchava
eu imaginava ele se deixaria prender, mais à vontade que os outros calçados,
ei-lo que me havia escapado. Embara- enquanto que os soldados o olhavam
çava-me então, e escravizado pelo de soslaio, como se o suspeitassem de
homem como ninguém mais por ne­ estar troçando deles. Quanto a estes
nhum outro, eu rodava à toa. Tudo fatos, ei-los aí:
isso tinha-se sucedido anteriormente; mas também o seguinte, como o c
depois, ocorreu-nos fazer em comum fez
uma expedição em Potidéia1 7 5, e éra- e suportou um bravo 1 7 7
174 Em sua embriaguez, Alcibíades figura mo­ lá na expedição, certa vez, merece ser
mentaneamente um processo em que a acusa­ ouvido. Concentrado numa reflexão,
ção de sobranceria dissimula justamente sua
defesa no processo histórico: a recusa de Só­ logo se detivera desde a madrugada a
crates, um crime de orgulho nessa patuscada, examinar uma idéia, e como esta não
significa de fato sua inocência. (N. doT.) lhe vinha, sem se aborrecer ele se con­
175 Em 432, Potidéia, na Calcídica, recusou-se
a pagar, tributo a Atenas e foi pelos atenienses servara de pé, a procurá-la. Já era
sitiada, capitulando em 430. Essa insurreição
foi uma das causas imediatas da Guerra do 176 V. supra p. 17 , n. 19. (N. do T.)
Peloponeso. (N. doT.) 177 Odisséia, IV, 242.(N. doT.)
O BANQUETE 57

meio-dia, os homens estavam obser­ suas armas de hoplita. Ora, ele se reti­
vando, e cheios de admiração/ diziam rava, quando já tinham debandado os
uns aos outros: Sócrates desde a nossos homens, ao lado de Laques;
madrugada estâ de pé ocupado em acerco-me deles e logo que os vejo
süas reflexões-! Por fim, algüns dos exorto-os à coragem, dizendo-lhes que
jônicos1 7 8 quando já era de tarde, de- os não abandonaria. Foi aí que, me­
d pois de terem jantado — pois era lhor que em Potidéia, eu observei Só­
então o estio — trouxeram para fora crates — pois o meu perigo era menor,
os seus leitos e ao mesmo tempo que por estar eu a cavalo — primeiramente
iam dormir na fresca, observavam-no a quanto ele superava a Laques, em
ver se também a noite ele passaria de domínio de si; e depois, parecia-me, ó
pé. E ele ficou de pé, até que veio a au­
Aristófanes, segundo aquela tua ex­
rora e o sol se ergueu; a seguir foi
pressão1 8 1, que também lá como aqui
embora, depois de fazer uma prece ao
ele se locomovia “impando-se e olhan­
sol. Se quereis saber nos combates —
pois isto é bem justo que se lhe leve em do de través”, calmamente exami­
conta — quando se deu a batalha pela nando de um lado e de outro os amigos
qual chegaram mesmo a me condeco­ e os inimigos, deixando bem claro a
rar os generais, nenhum outro homem todos, mesmo a distância, que se
e me salvou senão este, que não quis alguém tocasse nesse homem, bem
abandonar-me ferido, e até minhas vigorosamente ele se defendería. Eis
armas salvou comigo. Eu então, ó Só­ por que com segurança se retirava, ele
crates, insisti com os generais1/7 9 para e o seu companheiro; pois quase que,
que te conferissem essa honra, e isso nos que assim se comportam na guer­
não vais me censurar nem irás dizer ra, nem se toca, mas é aos que fogem
que estou falseando; todavia, quando em desordem que se persegue.
já os generais consideravam minha Muitas outras virtudes certamente
posição e desejavam conceder-me a podería alguém louvar em Sócrates, e
insigne honra, tu mesmo foste mais admiráveis; todavia, das demais ativi­
solícito que os generais para que fosse dades, talvez também a respeito de al­
eu e não tu que a recebesse. E também, guns outros se pudesse dizer outro
ó senhores, valia a pena observar Só- tanto; o fato porém de a nenhum
22i a crates, quando de Delião1 8 0 batia em homem assemelhar-se ele, antigo ou
retirada o exército; por acaso fiquei ao moderno, eis o que é digno de toda
seu lado, a cavalo, enquanto elé ia com admiração. Com efeito, qual foi Aqui­
178 Robin prefere aqui a lição de Schmidt les, tal poder-se-ia imaginar Brasi-
( rcóv 'iSóvtcüv = dos que o viram) à lição
dos mss. ( rã)v ' ícüvcjv = dos jônicos), sob a das1 8 2e outros, e inversamente, qual
alegação de que não havia tropas da Jônia, e foi Péricles, tal Nestor e Antenor1 8 3
de que a lição dos mss. se compreende dificil­
mente como uma especificação da expressão 181 Nas Nuvens, 362: fipew&vet r’ evrcãs; óSóiç
“homens”, usada pouco acima. Essa última ra­ Kal TcòcpúaÀjUÓj 7rapa|3áXXeiç (N. do T.)
zão absolutamente não convence. (N. doT.) 182 Grande general espartano, vencedor dos ate­
179 Essa batalha, travada em 432, precedeu nienses em Anfípolis (422 a.C.), onde morreu.
imediatamente o cerco de Potidéia. (N. doT.) (N. do T.)
180 Cidade da Beócia, na fronteira da Ática. Os 183 Dois grandes conselheiros, o primeiro dos
atenienses foram aí batidos pelos tebanos, co­ gregos e o segundo dos troianos, durante a
mandados por Pagondas, em 424 a.C. (N. do T.) Guerra de Tróia. (N. do T.)
58 PLATÃO

d' — sem falar de outros — e todos os Eis aí, senhores, o que em Sócrates
demais por esses exemplos se poderia eu louvo; quanto ao que, pelo contrá­
comparar; o que porém é este homem rio, lhe recrimino, eu o pus de permeio
aqui, o que há de desconcertante em e disse os insultos que me fez. E na ver- i>
sua pessoa e em suas palavras, nem de dade não foi só comigo que ele os fez,
perto se poderia encontrar um seme­ mas com Cármides186, o filho de
lhante, quer se procure entre os moder­ Glauco, com Eutidemo, de Díocles, e
nos, quer entre os antigos, a não ser com muitíssimos outros, os quais ele
que se lhe faça a comparação com os engana fazendo-se de amoroso, en­
que eu estou dizendo, não com nenhum quanto é antes na posição de bem-
homem, mas com os silenos e os sáti­ amado que ele mesmo fica, em vez de
ro?, e não só de sua pessoa como de amante. E é nisso que te previno, ó
suas palavras. Agatão, para não te deixares enganar
Na verdade, foi este sem dúvida um por este homem e, por nossas experiên­
ponto em que em minhas palavras eu cias ensinado, te preservares e não
deixei passar, que também os seus dis­ fazeres como o bobo do provérbio, que
cursos são muito semelhantes aos sile- “só depois de sofrer aprende”1 8 7.
e nos que se entreabrem. A quem qui­ Depois destas palavras de Alci- c
sesse ouvir os discursos de Sócrates bíades houve risos por sua franqueza,
pareceriam eles inteiramente ridículos que parecia ele ainda estar amoroso de
à primeira vez: tais são os nomes e fra­ Sócrates. Sócrates então disse-lhe: —
ses de que por fora se revestem eles, Tu me pareces, ó Alcibíades, estar em
como de uma pele de sátiro insolente! teu domínio. Pois de outro modo não
Pois ele fala de bestas de carga, de fer­ te porias, assim tão destramente fazen­
reiros, de sapateiros, de correeiros, e do rodeios, a dissimular o motivo por
sempre parece com as mesmas pala­ que falaste; como que falando acesso-
vras dizer as mesmas coisas, a ponto riamente tu o deixaste para o fim,
de qualquer inexperiente ou imbecil como se tudo o que disseste não tivesse
222 a zombar de seus discursos1 8 4. Quem sido em vista disso, de me indispor
porém os viu entreabrir-se e em seu com Agatão, na idéia de que eu devo d
interior penetra, primeiramente desco­ amar-te e a nenhum outro, e que Aga­
brirá que, no fundo, são os únicos que tão é por ti que deve ser amado, e por
têm inteligência, e depois, que são o nenhum outro. Mas não me escapaste!
quanto possível divinos, e os que o Ao contrário, esse teu drama de sátiros
maior número contêm de imagens de e de silenos ficou transparente1 8 8. Pois
virtude1 8 5, e o mais possível se orien­ 186 Tio materno de Platão, um dos membros
do governo dos Trinta, seu nome intitula um
tam, ou melhor, em tudo se orientam dos diálogos menores do filósofo. Quanto a
para o que convém ter em mira, quan­ Eutidemo, não se trata evidentemente do so­
fista ridicularizado no diálogo do mesmo no­
do se procura ser um distinto e honra­ me, mas sem dúvida do jovem que aparece nas
do cidadão. Memoráveis de Xenofonte, IV, 2-6. (N.doT,)
187 Hesíodo, Trabalhos e Dias, 218: naiíòp 5é
184 Cf. Hípias Maior, 288c-d. (N. doT.) re vp-irioç eyva> : “depois de sofrer é que o
185Tal como os silenos esculpidos (215b) têm tolo aprende”. (N.doT.)
em seu interior estátuas divinas. Confrontar 188 No propósito de insistir na feiúra de Sócra­
com essa a expressão análoga em 213a-5, mas tes e, consequentemente, afastá-lo de Agatão.
num contexto diferente. (N.doT.) (N. do T.)
O BANQUETE 59

bem, caro Agatão, que nada mais haja tar-se ao lado de Sócrates; súbito
para ele, e faze com que comigo nin­ porém uns foliões, em numeroso
guém te indisponha. grupo, chegam à porta e, tendo-a
Agatão respondeu: — De fato, ó encontrado aberta com a saída de
Sócrates, é muito provável que estejas alguém, irrompem eles pela frente em
e dizendo a verdade. E a prova é a direção dos convivas, tomando assento
maneira como justamente ele se recos- nos leitos; um tumulto enche todo o
tou aqui no meio, entre mim e ti, para recinto e, sem mais nenhuma ordem,
nos afastar um do outro. Nada mais é-se forçado a beber vinho em demasia.
ele terá então; eu virei para o teu lado Erixímaco, Fedro e alguns outros,
e me recostarei. disse Aristodemo, retiram-se e partem;
— Muito bem — disse Sócrates — a ele porém o sono o pegou, e dormiu <=
reclina-te aqui, logo abaixo de mim. muitíssimo, que estavam longas as noi­
•— ó Zeus, que tratamento recebo tes; acordou de dia, quando já canta­
ainda desse homem! Acha ele que em vam os galos, e acordado viu que os
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo outros ou dormiam ou estavam ausen­
menos, extraordinária criatura, permi­ tes; Agatão porém, Aristófanes e Só­
te que entre nós se acomode Agatão. crates eram os únicos que ainda esta­
— Impossível! — tomou-lhe Só­ vam despertos, e bebiam de uma
crates. — Pois se tu me elogiaste, devo grande taça que passavam da esquerda
eu por minha vez elogiar o que está à para a direita. Sócrates conversava
minha direita. Ora, se abaixo de ti1 8 9 com eles; dos pormenores da conversa
ficar Agatão, não irá ele por acaso disse Aristodemo que não se lembrava
fazer-me um novo elogio, antes de, — pois não assistira ao começo e
pelo contrário, ser por mim elogiado? ainda estava sonolento — em resumo d
223 a Deixa, divino amigo, e não invejes ao porém, disse ele, forçava-os Sócrates a
jovem o meu elogio, pois é grande o admitir que é de um mesmo homem o
meu desejo de elogiá-lo. saber fazer uma comédia e uma tragé­
— Evoé! — exclamou Agatão; — dia, e que aquele que com arte é um
Alcibíades, não há meio de aqui eu poeta trágico é também um poeta cô­
ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mico. Forçados a isso e sem o seguir
mudarei de lugar, a fim de ser por Só­ com muito rigor eles cochilavam, e pri­
crates elogiado. . meiro adormeceu Aristófanes e, quan­
— Eis aí — comentou Alcibíades do já se fazia dia, Agatão. Sócrates
— a cena de costume: Sócrates presen­ então, depois de acomodá-los ao leito,
te, impossível a um outro conquistar os levantou-se e partiu; Aristodemo,
belos! Ainda agora, como ele soube como costumava, acompanhou-o; che­
facilmente encontrar uma palavra per- gado ao Liceu1 9 0 ele asseou-se e,
suasiva, com o que este belo se vai pôr como em qualquer outra ocasião, pas­
ao seu lado. sou o dia inteiro, depois do que, à
Agatão levanta-se assim para ir dei- tarde, foi repousar em casa.
190 Ginásio dedicado a Apoio, às margens do
189 Isto é, à sua direita, entre ele e Sócrates. Ilisso, mais tarde utilizado por Aristóteles para
Agatão passara para a direita de Sócrates, a sua escola, que ficou com esse nome.
ficando este no meio do divã. (N. do T.) ÍN. doT.)

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