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João Pessoa
2022
THAIZ DE SOUZA RIBEIRO
João Pessoa
2022
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Rinah de Araújo Souto (DLCV/CCHLA/UFPB)
Orientadora
___________________________________________________________
Prof. ª Dr.ª Alyere Silva Farias (DLCV/CCHLA/UFPB)
Examinadora interna
___________________________________________________________
Prof. ª Ma. Maria Gomes de Medeiros
Examinadora externa
Pindorama.
(Graça Graúna)
virou só sentimento.
(Adélia Prado)
RESUMO
Considerando a sanção da lei 11.645/2008 (BRASIL, 2008) e o que prevê a Base Nacional
Comum Curricular (BRASIL, 2017), o trabalho com a leitura literária na escola deve
contemplar a diversidade e as produções afro-brasileiras e indígenas. Esta pesquisa visa
refletir sobre o ensino das literaturas indígenas e a formação do leitor multicultural
fundamentado nos pressupostos de Thiél (2012, 2013). Trata-se de uma pesquisa de caráter
bibliográfico sobre a literatura indígena e ensino e relato de experiência sobre a minha
participação em um projeto de extensão e seus desdobramentos. A partir de minha
experiência extensionista foi elaborada uma proposta de abordagem didática com textos de
autoria indígena e não indígena que versam sobre o tema da natureza com base nas cinco
dimensões do processo de leitura mencionadas por Thiél (2012, 2013), são elas: a leitura
como um processo neurofisiológico, cognitivo, afetivo, argumentativo e simbólico; e na
proposta de abordagem comparativa sugerida pelo professor e pesquisador Hélder Pinheiro
para o ensino da poesia em sala de aula. A proposta objetiva estimular experiências com o
texto poético através das conversas literárias (BAJOUR, 2012) e da escuta de canções,
além de sensibilizar os alunos do Ensino Fundamental II para as formas de ser e estar no
mundo dos povos indígenas e suas relações com a natureza (KRENAK, 2020;
KAMBEBA, 2020). Concluí, ao fim do processo, que o presente trabalho reafirma a
importância do tripé pesquisa-ensino-extensão e contribui para reflexões envolvendo a
poesia na sala de aula e seus impactos na formação do leitor.
REFERÊNCIAS ……………………………………………………………………….. 41
ANEXOS …………………………………………….……………………..…………… 43
INTRODUÇÃO
1
Sobre o direito à literatura indígena em diálogo com a concepção de Candido, ver: TAIGY, Ana Paula;
SOUTO, Rinah de Araújo. Direito à literatura indígena e a pluralização do cânone: um diálogo a partir da
concepção de Candido. In: Revista Leia Escola, vol.22, n.1, abril de 2022. Disponível em:
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/Leia/article/view/2401/pdf_1. Acesso em 15 de maio de 2022.
2
Para os indígenas, antes mesmo da invasão, esse território já tinha nome: Pindorama. Ver em:
https://www.terra.com.br/nos/ativistas-indigenas-desconstroem-o-descobrimento-do-brasil,236e30fdb5fb5bcc
6d358a2801845808q8na0875.html. Acesso em 15 de maio de 2022.
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3
Tal aspecto pode ser encarado como uma consequência do epistemicídio, ou seja, “a supressão dos
conhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena” (SANTOS & MENESES, 2009, p.10).
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Para Graça Graúna (2011) há, no contexto escolar, uma necessidade de dialogar
sobre literatura, educação e direitos humanos. A partir da lei 11.645/08, ela elabora um
questionário realizado com professores indígenas acerca das perspectivas e desafios para o
ensino da história e das culturas dos povos indígenas e da imagem que o livro didático
apresenta desses sujeitos na atualidade. Sua pesquisa constatou que o que mais eles
esperam com a aplicação da lei no âmbito da educação é desconstruir a imagem
estereotipada que a sociedade dominante tem dos povos originários e a possibilidade deles
mesmos poderem contar suas próprias histórias. No que diz respeito aos desafios, foi
destacada a revisão dos materiais didáticos concernentes à temática indígena, a falta de
material para pesquisas, investimento na formação de professores e capacitação dos
profissionais que já atuam na área educacional. Para os pesquisados, os livros didáticos
têm colaborado diretamente para a continuidade do preconceito e para a propagação de
uma imagem romantizada e equivocada dos povos indígenas. Os manuais geralmente
apresentam a existência dos nativos presos, especificamente, a um passado remoto da
história. A visão destacada nas narrativas parte da cultura ocidental, por isso, desconhecem
a diversidade cultural e a pluralidade desses grupos. Como resultado, as comunidades
nativas são inferiorizadas e desvalorizadas socialmente.
Sendo assim, considerando a sanção da lei 11.645/08 e seus desdobramentos na
educação brasileira, este trabalho visa contribuir para o percurso afirmativo da referida lei;
compartilhar reflexões sobre literatura indígena e ensino, muitas delas desencadeadas em
meio a minha própria experiência extensionista; discutir sobre formação do leitor
multicultural (THIÉL, 2013) com apoio no que Hélder Pinheiro (2008) propõe no âmbito
de abordagens do poema em sala de aula e nas relações dos povos originários com a
natureza (KRENAK, 2020; KAMBEBA, 2020).
A pesquisa envolve uma dimensão propositiva, pois retoma abordagem didática
elaborada com poesia indígena e canção, de modo a ressaltar conceitos e metodologias
acessadas durante o percurso no projeto de extensão Escrevivências: formação de
professores para uma mediação decolonial de leitura literária – 3ª edição, coordenado pelas
professoras Rinah Souto e Ana Cristina Marinho Lúcio. A proposta vai ao encontro do que
prevê a Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), que ressalta a importância do
diálogo com essas literaturas e com manifestações artísticas plurais. O documento destaca,
na competência 9, o exercício da
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Irandé Antunes (2009) e Hélder Pinheiro (2021, 2018) apontam que, no contexto da
sala de aula, não há um espaço próprio para o ensino de literatura, um momento dedicado
aos diálogos entre texto e leitor, de conversas sobre experiência literária e aproximações
com o texto. Há, de acordo com Antunes, preferência pelos conteúdos gramaticais em
comparação aos de leitura, e a falta de tempo é usada muitas vezes como justificativa para
abandonar a leitura. Dessa forma, os conteúdos que abordam a literatura, sobretudo o
gênero poesia, se encontram à margem da sala de aula, estando a poesia indígena
duplamente à margem por falta, muitas vezes, de difusão e circulação dessa produção em
espaços escolares.
Do ponto de vista metodológico, o presente trabalho apresenta uma pesquisa de
caráter bibliográfico sobre a literatura indígena e ensino e relato de experiência, de modo
analítico e reflexivo, sobre a elaboração de uma proposta didática4 que se configurou como
desdobramento das conversas literárias realizadas em projeto de extensão. Assim, se
caracteriza também como uma pesquisa de abordagem qualitativa. Em relação a esse
método, Pereira et al. (2018, p. 67) argumentam que os métodos qualitativos exigem “a
interpretação por parte do pesquisador com suas opiniões sobre o fenômeno em estudo”.
Considerando a problemática da ausência da literatura indígena na sala de aula, o
estudo apresenta relevância, pois busca contribuir para a descolonização curricular; a
pluralização do cânone; a aproximação com o gênero poesia e os possíveis encontros do
leitor com o texto literário, sensibilizando-o; para a difusão no chão da escola das
produções indígenas e o contato com a diversidade no campo da leitura literária, visando a
construção de caminhos significativos para o ensino da literatura e a formação leitora na
educação básica. Além de destacar a importância do tripé pesquisa-ensino-extensão para
formação acadêmica, cidadã, decolonial e antirracista.
O trabalho será dividido em três seções. Na primeira, situaremos o projeto de
extensão em causa, abarcando as reflexões e discussões suscitadas nessa experiência sobre
literatura indígena, ensino e suas metodologias. Na segunda, apresentaremos uma proposta
de abordagem didática com poesia indígena e canção popular brasileira, convocando textos
4
Esta proposta foi publicada nos Anais da 23ª Jornada de Estudos Linguísticos e Literários (JELL).
Disponível em: https://server2.midas.unioeste.br/sgev/eventos/23jell/anais. Acesso em 15 de maio de 2022.
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poéticos de Barros (ver anexo A), Kambeba (ver anexo B), Gilberto Gil (ver anexo C) e a
música instrumental de Keko Brandão – Povo em pé/Nação Árvore. Embora já publicada
em anais de evento científico, aqui a proposta será apresentada de modo
descritivo/reflexivo a partir da voz da autora, de modo a ressaltar possíveis impactos na
formação do leitor multicultural em suas múltiplas dimensões em processos de leitura, com
base em Hélder Pinheiro (2008), Graúna (2013) Cecilia Bajour (2012) e Thiél (2013). Ao
fim, serão tecidas as considerações finais de modo a contemplar os impactos da
experiência extensionista no alargamento do repertório teórico, crítico e literário de
literatura indígena contemporânea e da minha própria formação como professora/leitora
multicultural.
5
Todas as publicações mencionadas estão disponíveis em: https://linktr.ee/escrevivencias_ufpb. Acesso em
15 de maio de 2022.
6
Em 2021 também publiquei nos anais do V Colóquio Nacional 15 de outubro e VIII Enlije o artigo “Fala,
tambor: o ressoar de uma experiência no projeto de extensão Escrevivências: formação de professores para
uma mediação decolonial de leitura literária”. Disponível em:
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/view/2126/1502. Acesso em 15 de maio de 2022.
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É experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos
forma e nos transforma.
7
Tal reflexão foi mais amplamente desenvolvida em artigo mencionado em nota anterior, publicado em 2021
e de minha autoria.
17
8
Todas as mesas redondas e conferências do referido evento estão disponíveis no youtube do DLCV/UFPB:
https://www.youtube.com/watch?v=H4uZBrM2oRg. Acesso em 15 de maio de 2022.
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acordo com Daniel Munduruku (2020), essas manifestações tinham, de início, a intenção
de conquistar direitos à demarcação de terras indígenas, à saúde e à uma educação que
considerassem suas singularidades e diferenças étnicas. Posteriormente, os movimentos
indígenas amadureceram e ampliaram para outras discussões e interesses, como a formação
técnica e universitária.
A partir dessas manifestações, a literatura indígena ganha visibilidade na sociedade
brasileira. De acordo com Graúna (2013), Eliane Potiguara inaugurou o movimento
literário com o poema “Identidade indígena”. Em forma de resistência, a voz do poema se
assume no texto como mulher indígena, faz referência às forças ancestrais e às dores de
seus familiares devido ao processo de colonização. Os intelectuais indígenas, como Graúna
(2013) e Dorrico (2018), afirmam que o movimento indígena emergiu em 1970, contudo,
foi a partir da década de 80 e 90 que a literatura indígena se expandiu e se consolidou. Na
última década do século XX, em especial, ela é produzida no Brasil para o público não
indígena. Daniel Munduruku se destaca nesse período com suas produções direcionadas
para o público escolar infantojuvenil.
Graça Graúna (2013) defende que depois da Constituição Federal de 1988 há dois
momentos que marcam a literatura indígena brasileira: o primeiro faz referência à tradição
oral dos povos nativos, neste contexto, a literatura era produzida coletivamente através da
educação escolar indígena, com a finalidade de ensinar a língua materna e portuguesa nas
comunidades, por este motivo é classificado pela autora como período clássico, já o
segundo momento como período contemporâneo, aqui a literatura indígena caracteriza-se
pela autoria coletiva e individual.
No que diz respeito a este segundo momento, Leno Francisco Danner, Julie Dorrico
e Fernando Danner (2018) afirmam que a literatura de autoria indígena está diretamente
vinculada ao movimento indígena, ou seja, às lutas políticas e às causas sociais dos povos
indígenas, logo se caracteriza pela sua autoexpressão e autoafirmação identitária. Graúna
(2013) também a define como uma literatura de “sobrevivência” no sentido que oferece
possibilidades para a retomada da voz e do território indígena no campo literário, este
último é visto como lugar de resistência, que, nesse contexto, se concretiza por meio da
palavra.
No artigo “A estilística da literatura indígena brasileira: a alteridade como crítica
do presente – sobre a noção de eu‑nós lírico‑político”, Danner, Dorrico e Danner (2018)
discutem o conceito de minoria e classificam a literatura indígena como uma literatura de
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9
Sobre os termos “lenda” e “folclore”, comumente associados as narrativas indígenas, a artista Daiara
Tukano apresenta uma visão crítica, sobretudo aos tipos de representação e usos dos saberes indígenas pelos
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autores do movimento modernista no Brasil: “Então, a maneira como eles projetaram essa ideia do folclore
ou do popular, reforçando esse estereótipo, claro que dentro de todo um pensamento crítico e poético
maravilhoso, mas para os povos originários nosso patrimônio cultural, científico, tecnológico nunca foi e
nunca será folclore”. Ver entrevista completa em:
https://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7811-nem-modernista-nem-anti-modernista-a-arte-indigena-contem
poranea-e-cosmopolitica-na-vanguarda-de-um-brasil-que-jamais-foi-moderno. Acesso em 15 de maio de
2022.
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É pertinente ressaltar que, através das narrativas míticas, vínculos são estabelecidos
entre as gerações indígenas. A repetição é considerada um recurso bastante importante no
processo narrativo, pois permite que a construção textual seja atualizada e que a
continuidade do saber ancestral seja assegurada. Nesse sentido, tanto o contador de
histórias quanto o ouvinte são agentes e possuem importância dentro das comunidades,
pois são responsáveis por transmitir a cultura ancestral dos seus povos.
Por pertencerem às culturas orais, suas produções literárias são muitas vezes
desvalorizadas, inferiorizadas e ocupam um lugar à margem na sociedade. Para Daniel
Munduruku (2020), isto é consequência da supervalorização da escrita sob a oralidade,
uma vez que a primeira é considerada como o principal recurso para a comunicação e
expressão.
Ao estudarmos as poéticas indígenas, percebemos que elas apresentam organização
estética-textual, gêneros e escritas diferentes, por esses motivos, elas não devem ser
comparadas e analisadas nos mesmos parâmetros das literaturas canônicas. Ao discutir
sobre a leitura de literaturas indígenas, Janice Thiél (2012) destaca que se trata de uma
produção complexa, com especificidades próprias, construída no “imbricamento de vozes e
gêneros” (THIÉL, 2012, p. 94). É comum, por exemplo, encontrarmos nos textos a
presença do hibridismo literário. O livro O banquete dos deuses: conversa sobre a origem
da cultura brasileira, de Daniel Munduruku (2000), retomado por Thiél, é composto por
essas pluralidades, nele há a presença de mitos, fábulas, relatos históricos, cantos e outros
gêneros.
Pensando no espaço da sala de aula, é necessário que o professor mediador conheça
os referenciais teóricos que norteiam o estudo das textualidades indígenas. A pesquisadora
entende que essas textualidades dizem respeito às características básicas próprias dos
textos indígenas, os grafismos constituem nesse espaço “narrativas e devem ser valorizados
por sua especificidade, podendo inclusive indicar a autoria do texto indígena” (THIÉL,
2013, p. 1178). Assim, é importante que tanto o aluno quanto o professor conheçam as
particularidades dessas literaturas, pois elas determinam os sentidos dos textos. Além
disso, a estudiosa enfatiza que antes de passar à leitura das obras, é necessário fazer a
leitura do outro, ou seja, conhecer quem ocupa o lugar do autor ou narrador, e em que
difere em práticas, crenças e pensamentos.
É válido lembrar que, nas textualidades indígenas, os povos nativos são agentes
principais das narrativas. Elas se destacam por sua heterogeneidade e por sua construção
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como complemento do texto escrito, já na cultura nativa, a escrita dialoga diretamente com
os textos visuais e gráficos, de forma interativa.
Graça Graúna (2013), ao refletir sobre a literatura de autoria indígena, apresenta
alguns conceitos que são importantes de considerar no processo de leitura. Em seu estudo,
ela reflete, fundamentada na noção de deslocamento e diáspora, sobre conceitos como
indianidade e auto-história.
Com base em Stuart Hall, Graúna argumenta que a noção de deslocamento está
relacionada à compreensão do processo diaspórico. Esse conceito, discutido por Hall, nos
lembra da experiência diaspórica que os povos indígenas vivenciaram, por causa de
explorações e violências tiveram que se retirar de seus territórios em busca de outras
alternativas para viver e trabalhar. A diáspora indígena é um tema muito problematizado
pelos autores indígenas, essa causa ganha bastante destaque na literatura indígena brasileira
contemporânea, pois é a partir desse processo que as identidades indígenas são construídas.
Alguns pesquisadores argumentam que o contato entre a cultura indígena e a
colonizadora provocou a desindianização. Graúna (2013) discute sobre esse processo de
contato e, fundamentada em Ortiz, explica que o indivíduo não perde a identidade quando
entra em contato com o outro. Ela enfatiza que, mesmo com a ruptura que a sociedade
ocidental causou nas comunidades originárias, é impossível perder a indianidade ou a
própria cultura. Sendo assim, ela rejeita a ideia de desindianização e afirma:
É possível dizer - dentro da percepção indígena - que o índio não deixa de ser ele
mesmo em contato com o outro (o não índio), ainda que o (a) indígena more
numa cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular; ainda
que uma parabólica pareça, ao outro, um objeto estranho ou incompatível com a
comunidade indígena; ainda que nos deparemos com o indígena nos caminhos da
internet, em plena construção de aldeias (aparentemente) virtuais; mesmo assim,
a indianidade permanece, porque o índio e/ou a índia onde quer que vá, leva
dentro de si a aldeia. (GRAÚNA, 2013, p. 59)
A título de exemplo, Daniel Munduruku (2020) afirma que seu povo foi vítima do
processo de adaptação à cultura ocidental, logo, os hábitos, valores e língua tiveram que
ser submetidos ao poder do colonizador. De acordo com o autor, isso não significou o
abandono da cultura ou da indianidade de seu povo. À medida que teve contato com o
sistema ocidental de ensino, obteve também, como membro de uma comunidade nativa, a
oportunidade de aprender com a floresta, com o rio e com os seus ancestrais, o que
significa ser indígena nesse território chamado Brasil. A partir do domínio da escrita,
aprendeu a manipular a memória ancestral e se tornou um “redator da memória oral” dos
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povos indígenas. Sua autoria, portanto, traz marcas do processo de colonização, mas
também destaca a própria identidade, como integrante do povo Munduruku.
Outro conceito que merece ser destacado é a auto-história, que também é
considerado um elemento importante dentro da autoria indígena. Aqui, o sujeito narra a
história a partir de suas experiências ou das memórias de sua comunidade. Alguns poemas
de Eliane Potiguara ou os cordéis de Auritha Tabajara, por exemplo, são elaborados nessa
perspectiva, portanto, devem ser lidos considerando o viés da auto-história e sua
contribuição na construção dos significados.
Por fim, na literatura indígena contemporânea, o entre-lugar surge como resultado
do processo da diáspora e se relaciona com a experiência de deslocamento das
comunidades. O contexto da diáspora tem reverberado em diversos âmbitos da sociedade
indígena, sobretudo, na literatura. Sendo assim, os autores indígenas escrevem partindo
desse lugar da diáspora e da transição entre espaços diferentes, eles vivem e compartilham
de experiências tanto nos espaços urbanos ou fora deles. O poema “Identidade”10 de
Márcia Kambeba nos mostra um pouco sobre a perspectiva do entre-lugar e seus
desdobramentos:
Minha indianidade,
Meu caminho na cidade,
Meus cabelos longos,
Carregam minha identidade.
10
O tema “identidade” é bastante frequente na literatura indígena contemporânea. Como no poema
“Identidade indígena”, de Eliane Potiguara (2019, p.113-115), escrito em 1975 em memória de seus avós. O
referido texto poético é considerado um marco da literatura indígena contemporânea no Brasil
27
Nos versos acima, podemos perceber que a voz indígena do poema fala de lugares
distintos. Ela conta suas experiências dentro do centro urbano e sua forte ligação com a
aldeia. Portanto, a voz do poema se autofirma e se opõe à negação da identidade indígena e
ao preconceito, para isso, demarca seu lugar de luta e resistência, este que pode ser notado
a partir da escolha das palavras no poema que remetem para esse movimento, por exemplo,
“Com orgulho na minha alma, / Resisto à negação” na segunda estrofe e “Mas a minha
identidade, / Essa ele não conseguiu apagar” na sétima estrofe. Além disso, percebe-se que
a aldeia é mencionada como um lugar de retorno, refúgio e acolhimento. Dessa forma, a
partir desses espaços, no entre-lugar, que as textualidades indígenas transitam, em outras
palavras, é a partir também dessas trocas culturais que emerge a literatura indígena
contemporânea no Brasil.
diálogo nos quais as vozes que foram silenciadas e invisibilizadas historicamente possam,
enfim, nos diversos meios de comunicação, demarcar seus espaços na sociedade. De
acordo com o autor, a decolonialidade assume
(...) uma postura de luta permanente para registrar uma nova história dos
colonizados como personagens sociais participantes do processo e não como
meros agentes moldáveis, subjugados e subalternos. A decolonialidade diz
respeito ao procedimento que almeja superar historicamente a colonialidade (...)
do modelo de poder colonial na atualidade (...). (GONZAGA, 2021, p. 126)
No contexto das culturas indígenas, tal conceito fortalece as lutas dos povos
originários contra a inferiorização, subalternização e silenciamento. Nesse sentido, a
literatura indígena contemporânea dialoga com os pressupostos da decolonialidade, pois
nela os sujeitos indígenas passaram de objetos de representação para sujeitos de
representação, fazendo ecoar suas memórias e histórias, individuais e coletivas.
(...) o trabalho com o poema tende a ser basicamente realizado aos moldes do
livro didático. Ou seja, os poemas, quase sempre poucos, são abordados de uma
perspectiva que privilegia um modelo de interpretação fechado, lançando mão de
questionários, deixando de lado as repercussões que o texto poderia ter entre os
leitores. (PINHEIRO, 2021, p. 620, grifo do autor)
33
didática que contempla a poesia de autoria indígena em diálogo com a autoria não indígena
e a canção popular brasileira. Como foi apontado anteriormente, a proposta foi publicada
nos anais do 23º JELL, em 2021, e pensada, inicialmente, para ao 6º ano do Ensino
Fundamental II. No entanto, é possível adaptar para outros níveis de ensino. Foi imaginada
para ser desenvolvida em 3 a 5 encontros de 60 min, cada. Abaixo segue tabela
sistematizada com as etapas da proposta.
A sala de aula, de acordo com Thiél (2013), deve ser vista como um espaço de
“transformação dos processos interpretativos” e “confronto com o legitimado” (p. 1186).
No contexto do ensino das literaturas indígenas, é importante que o professor tenha em
mente que seu papel é criar oportunidades de encontro e escuta das vozes indígenas, para
isso, deve dispor de “referenciais teóricos para que as textualidades indígenas sejam
interpretadas em sua contextualização cultural e estética” (THIÉL, 2013, p. 1186).
Thiél (2012, 2013) reflete sobre a atividade leitora voltada para o outro e,
fundamentada em Thérien, apresenta as cinco dimensões do processo de leitura, são elas: a
leitura como um processo neurofisiológico; um processo cognitivo; um processo afetivo;
um processo argumentativo e um processo simbólico. Na proposta didática apresentada,
cabe ao professor mediador atentar para tais processos não de maneira estanque, pois todos
podem acontecer de forma simultânea no ato da leitura.
De forma objetiva, Thiél afirma que “a leitura como processo neurofisiológico
mostra que a atividade leitora é desenvolvida por um conjunto de funções cerebrais e pelo
aparelho visual” (THIÉL, 2013, p. 1186). Está relacionada à leitura do outro e como se dá
sua produção literária e cultural. A autora destaca a importância nesse sentido de perceber
os sujeitos, como cada cultura se expressa e como é sua relação com o mundo e com o
outro a fim de que os pontos de vista sejam postos em conflito, questionados e desfeitos.
No percurso didático exposto, sobretudo nas primeiras duas fases, optou-se por escolher
poemas cujas imagens, palavras e relações convidassem o leitor a repensar a noção
dicotômica entre humanos e não humanos, pela ativação de seus repertórios sobre as
conexões que estabelecem com a natureza. São poemas bastante visuais e que, do ponto de
vista do processo neurofisiológico, corroboram o exercício de alteridades pelas imagens
evocadas que entram em confronto com imagens previamente concebidas, questionando-as
e/ou desfazendo-as.
O processo cognitivo implicaria na transformação de significantes em significados
(THIÉL, 2013, p. 1186). A leitura do outro, neste caso, envolveria o desenvolvimento de
competências para a construção de sentidos a partir do que é apresentado pelo outro. A
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abordagem comparativa entre um poema de autoria indígena e não indígena pode estimular
a ultrapassagem do etnocentrismo no ato da leitura, por isso a escolha pelos textos poéticos
de Barros e Kambeba. É um momento, por exemplo, propício para convocar cosmovisões
indígenas sobre as relações de integração com a natureza no ato da mediação, de modo que
os leitores podem acessar um saber mínimo (THIÉL, 2012, p.74) sobre o assunto para
prosseguir a leitura e construir significados.
O processo afetivo está relacionado com a recepção e com as emoções que são
suscitadas através da leitura. Este processo torna-se importante para a sensibilização do
leitor acerca do respeito e valorização do outro, de forma que não só se sensibilize, mas
que também entenda o seu lugar. A abordagem comparativa entre poesia e canção/música
foi uma escolha metodológica realizada pensando, particularmente, no processo afetivo.
Pinheiro (2021, p. 8) destaca que a ideia é que ele, o leitor, “vivencie o texto literário, isto
é, o perceba como algo próximo, que traz a possibilidade de diálogo com sua vida –
questionamentos, descobertas, associações inesperadas, etc”. Como se nota nas perguntas
imaginadas para mediação na tabela acima, o lugar do sentir na experiência de leitura é
estimulado, inclusive pela via da ativação da escuta tanto no ato de realização oral dos
textos selecionados quanto na audição das músicas, uma delas inteiramente instrumental,
tais aspectos podem fazer com que emoções sejam suscitadas no ato da leitura – “com
atitudes de repulsa, rejeição, desprezo, ódio, ou de admiração, respeito, confiança e
tentativa de imitação” (THIÉL, 2012, p.74). Partindo da minha experiência estética com os
textos e com o meu percurso brevemente narrado nos momentos iniciais deste trabalho, a
percepção que tenho sobre a relação entre humanos e não humanos e a integração com a
natureza ganhou novos contornos após o encontro com a poesia indígena, pela via afetiva
da admiração, respeito e desejo de preservação da natureza, pois como diz Krenak: “tudo é
natureza” (KRENAK, 2020, p.17). O contato com a poesia de Márcia Kambeba provocou
em mim diversos sentimentos. Por ela ter vivido tanto na cidade quanto na aldeia, a
escritora compartilha com seus leitores as experiências de uma mulher indígena na
sociedade brasileira no século XXI. Assim, além de conhecer a realidade e as condições de
uma mulher indígena na atualidade, a leitura dos poemas de Kambeba causou em mim
fortes inquietações. Fui provocada a refletir sobre o problema do desmatamento, da queima
das florestas brasileiras e sobre as consequências desses dois fatores para o nosso futuro,
por exemplo.
38
Com base em Jouve, Thiél afirma que no processo argumentativo o texto surge
“como um resultado de uma vontade criadora”. Ele é um discurso que na atividade leitora
está em constante interação, agindo sobre quem o lê. A literatura indígena desafia seu leitor
nos “caminhos interpretativos” e provoca reflexões acerca das concepções sobre as
culturas nativas. Nesse sentido, os textos selecionados para a proposta e os caminhos
metodológicos adotados visam estimular, inclusive, a revisão/ampliação/reavaliação de
conhecimentos sobre a natureza. Uma vez em contato com a voz poética indígena, o leitor
acessa uma visão de mundo sobre o entorno que cerca o autor, de modo que, nessa
interação, espera-se que o leitor seja capaz de enveredar pelos caminhos da interpretação e
argumentação, pois “o outro age sobre quem lê” (THIÉL, 2012, p.75).
Por fim, no processo simbólico, Thiél (2013, 2012) aponta a seguinte afirmação de
Jouve:
O sentido que se tira da leitura (reagindo em face da história, dos argumentos
propostos, do jogo entre os pontos de vista) vai se instalar imediatamente no
contexto cultural onde cada leitor evolui. Toda leitura interage com a cultura e os
esquemas dominantes de um meio e de uma época. (JOUVE, 2002, p. 22 apud
THIÉL, 2013, p. 1187)
A leitura do outro, neste caso, depende do leitor, este constrói sentidos sobre o
outro a partir do seu lugar, identidade e cosmovisão. O contato com a literatura indígena,
segundo a pesquisadora, pode proporcionar para o leitor não indígena uma reflexão sobre a
comunidade interpretativa que faz parte e uma revisão a respeito da sua relação com outros
povos. No encontro com o texto, o leitor pode se deparar com concepções e imagens
pré-definidas sobre o outro. Os textos literários citados na tabela acima buscam confrontar
as cosmovisões concebidas pelo contexto cultural dos leitores em relação às comunidades
nativas e desconstruir, através da leitura literária, estereótipos. Ou seja, são textos que
ampliam o repertório literário e cultural dos leitores e, desse modo, simbolicamente, cabe
verificar, no ato da mediação de leitura, como a voz do outro se manifesta (THIÉL, 2012,
p.75). Buscou-se, nesse sentido, construir um caminho de leitura no qual a voz do outro
passe de algo desconhecido para conhecido, desestabilizando, no campo simbólico, um
olhar sobre o outro por vezes enraizado em estereótipos e preconceitos.
Dessa forma, é a partir das convenções de leitura já conhecidas que os leitores
poderão experimentar as “novas construções discursivas” (THIÉL, 2013, p. 1188). Para o
ensino das literaturas indígenas no contexto da sala de aula, os processos mencionados
acima devem ser ativados com o objetivo de formar leitores multiculturais, competentes,
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, considerando sanção da lei 11.645/2008 e o que ela implica para a
prática de ensino, principalmente para o campo da literatura, o trabalho buscou contribuir,
a partir de uma experiência extensionista, para a reflexão sobre o ensino das literaturas dos
povos indígenas na sala de aula e a formação do leitor multicultural. Nesse percurso, a
memória de experiência extensionista foi ativada, em um primeiro momento, uma vez que
corrobora a dimensão propositiva deste trabalho no contexto da formação de leitores
multiculturais. Dimensão essa que se revela na proposta de abordagem didática
apresentada seguida de discussão e reflexão sobre formação leitora e as dimensões que
atravessam os processos de leitura. Compreendemos que a extensão universitária,
especialmente de caráter emancipatório e decolonial, que busca o diálogo entre o tripé
pesquisa-ensino-extensão, é um “elemento essencial e potencializador” (KOCHHANN,
2017, p. 2160) para a uma formação docente mais crítica e autônoma.
Nesse sentido, a experiência no projeto de extensão @escrevivências_ufpb
colaborou significativamente nesse processo de ampliação do meu repertório teórico,
crítico e literário acerca das literaturas dos povos originários e conhecimento das
pluralidades e textualidades indígenas, para a aproximação com o texto poético e para
minha própria formação como professora/leitora multicultural e cidadã. O trabalho aqui
apresentado é, portanto, uma síntese do que aprendi e realizei durante toda a minha
trajetória de formação docente até o momento, no contexto do referido projeto.
A intenção inicial deste trabalho era apresentar os resultados e as análises do
desenvolvimento da abordagem didática mencionada em seção anterior com uma turma do
Ensino Fundamental II, a mesma em que estou atuando como estagiária no corrente
semestre, 2022.2. No entanto, os trâmites burocráticos que garantem o meu vínculo com a
escola sofreram atrasos e impediram a concretização do plano inicial. Espero, em pesquisas
futuras, realizar a proposta na escola, analisar seus impactos na formação do leitor
multicultural e verificar de que modo as dimensões dos processos de leitura se apresentam
no trato com a poesia indígena em sala de aula em diálogo com a canção popular brasileira.
De toda forma, uma nova rota foi traçada – com a inserção da minha experiência
extensionista e o que aprendi sobre literatura indígena e ensino através dela; a reflexão, de
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forma crítica e situada, sobre as dimensões dos processos de leitura que podem ser ativadas
no campo da proposta didática elaborada durante a minha atuação no
@escrevivencias_ufpb - tornando possível a conclusão deste ciclo, este que é fomentado
por uma percepção de educação que se faz como descolonização, também no âmbito
curricular, aspecto que desejo desenvolver e aprofundar em pesquisas futuras. Esse
princípio de educação “passa pela urgência de desaprender o cânone. Essa
desaprendizagem não perpassa pela negação de determinadas presenças e saberes, mas
pelo destronamento” (RUFINO, 2021, p.23-24). Esse destronamento desafia, pois, as
colonialidades e corrobora a pluralização do cânone. Pressupostos esses que regem o que
aqui disponho e exponho a fim de alcançar os objetivos anteriormente explicitados.
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, Maria Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo:
Parábola Editorial, 2009.
BAJOUR, Cecília. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São
Paulo: Pulo do Gato, 2012.
CANDIDO, A. O direito à literatura. In: CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas
Cidades. p. 169-191, 2004.
JÚNIOR, José Paulo Alexandre de Barros et al.. Coração na aldeia, pés no mundo: a
literatura indígena como articuladora do letramento étnico-racial na educação básica. In:
Anais do V Seminário Internacional Desfazendo Gênero. Campina Grande: Realize
Editora, 2021.
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KAMBEBA, Márcia Whayna. O lugar do saber. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020a.
KAMBEBA, Márcia. Ay kakyri tama. Eu moro na cidade. São Paulo: Jandaíra, 2020b.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2020.
PINHEIRO, Hélder Pinheiro. Poesia e ensino: caminhos de pesquisa. in: PINTO, Francisco
Neto Pereira et al.. Ensino da literatura no contexto contemporâneo. 1. ed, Campinas:
Mercado das Letras, 2021.
POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Rio de Janeiro: Grumin, 2019.
THIÉL, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
THIÉL, Janice. A literatura dos povos indígenas e a formação do leitor multicultural. In:
Educação e Realidade. V.38, n.4, 2013. Disponível em:
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/38161. Acesso em 17 de mai. 2022.
ANEXOS
Urucum, jenipapo
Eu sou esse tronco
Que cresce sereno
Em meio à cidade.
“A árvore me pintou”
Grafismo de alma
De quem tem no peito
A cor do respeito
Que o branco manchou.
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Replantar a floresta
Que o coração não destrói