Você está na página 1de 12

ano 2, v. 2, n.

1, 2023
Editorial
Pensar o contemporâneo é tarefa árdua e ines- tempos: mensagens instantâneas, selfies, exposição
gotável, a começar pela própria definição do tema. de si, cancelamentos, vídeos cada vez mais curtos,
Giorgio Agamben, filósofo italiano e influente es- a forma de compartilharmos informação, fake news,
tudioso do Contemporâneo, autor de obras como novos modelos de trabalho, novos tipos de lazer,
Estado de exceção (2004) e O uso dos corpos (2017) cansaço constante, o dinheiro que cada vez mais se
pela Boitempo Editorial, em sua publicação O que é torna menos.
o contemporâneo? E outros ensaios, pela Argos, diz que Sabemos que as questões do Contemporâneo
imediato não se encerram nas acima listadas – pro-
a contemporaneidade [...] é uma singular relação va disso é a recente discussão em torno do uso da
com o próprio tempo, que adere a este e, ao mes- inteligência artificial na vida cotidiana, sobretudo
mo tempo, dele toma distâncias; mais precisamen- nos trabalhos que envolvem processo criativo. Nosso
te, essa é a relação com o tempo que a este adere intuito ao trazer uma corujinha toda trabalhada
através de uma dissociação e um anacronismo. na I.A. para ilustrar nosso III Folhetim foi ajudar a
Aqueles que coincidem muito plenamente com fomentar esses questionamentos que nos parecem
a época, que em todos os aspectos a esta aderem essenciais e urgentes.
perfeitamente, não são contemporâneos porque, Esta edição do Folhetim traz três produções lite-
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não rárias, de autoria de Laís Roldan, Bruna Felsmann e
podem manter fixo o olhar sobre ela. (2009, p. 59). Alyne Bettencourt, que nos convidam a olhar para
o tema do contemporâneo através da poesia e da
Olhar a contemporaneidade como esse constante prosa; o III Folhetim traz também uma produção
movimento de aproximação e afastamento do presente acadêmica e crítica de Victor Lopes, que aborda a a
nos permite vivê-lo ao mesmo tempo em que nos tor- questão socioeconômica e como ela interfere na vida
namos conscientes e refletimos sobre suas questões. dos protagonistas de Pessoas normais.
Pensar no Contemporâneo é refletir sobre o mundo Como dissemos anteriormente, sabemos que as
pós-Revolução Industrial, sobre as evoluções tecno- questões do contemporâneo imediato não se esgo-
lógicas e sobre como nosso estilo de vida enquanto tam nas trazidas neste folhetim, mas esperamos que
sociedade mudou nos últimos séculos. esta publicação possa ajudar nas reflexões acerca do
Quando escolhemos o tema da V SAPPLI – O tema, ou, talvez, que as palavras de nossos autores
Contemporâneo Imediato e suas Questões, tínhamos possam servir de companhia enquanto desbravamos
em mente o período que começa com a chegada do o contemporâneo imediato e suas questões.
século XXI e que se estende até os dias atuais e Ana Carolina Spalla e Anna Carolina Pimentel
tudo o que se tornou característico desses últimos (bolsistas)

Corpo Editorial Coruja | Ana Carolina Spalla (bolsista), Ana Clara


Barreiros (bolsista), Anna Carolina Pimentel (bolsista), Emilia
Sandrinelli, Fabiana Prieto (bolsista), Liciane Corrêa (bolsista) e
Ticiane Sousa (bolsista)

>>>>
Ilustradora de capa | Bruna Felsmann
Diagramadora | Liciane Corrêa
Revisoras | Anna Carolina Pimentel, Fabiana Prieto e Ticiane Sousa
Agradecimentos especiais | Profa. Adriana Jordão e Lucas Alves
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado
por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado
por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado
por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
inteligência artificial gerado por inteligência artificial
gerado por inteligência artificial gerado por inteligência
artificial gerado por inteligência artificial gerado por
2
Produção literária

How old is the sea Receita de bem-estar


that we see? Bruna Felsmann
Laís Roldan
Exercite-se 120 minutos na semana (no mínimo).
Três refeições por dia, equilibradas,
Ou equilibre refeições de três em três horas.
Não temos certeza, mas faça.

Pegue dez minutos de sol (no mínimo).


Não vale a luz fluorescente do trabalho, que era pra
ser oito horas,
Que viram dez, doze,
Uma horinha extra pra vestir a camisa da empresa
E ganhar uma pizza pra dividir com o time (mas
não a hora extra).

sereias não se bronzeiam na areia Durma no mínimo oito horas por dia,
não fazem compras no shopping Não contando as doze horas de trabalho,
bebem vinho salgado As duas de academia,
sem queijo para acompanhar Os dez minutos de sol.
tem muitas joias E não leve consigo pra cama todas as coisas que
que não sabem combinar ficaram pro dia seguinte,
suas caudas brilham demais Todas as coisas que ficaram há dez anos atrás.
e às vezes ficam meio espalhafatosas Se não conseguir dormir, tome um remédio.
sereias não conheceram a disco music
e acham que lantejoula é pele Falando nisso, tome todos os seus remédios.
sereias guardam seus acessórios em navios Esse piora o seu fígado,
nos barris vazios de destilados Esse causa alucinações,
que beberam sem gelo Esse talvez resolva o seu problema, talvez não.
sereias não frequentam salões de beleza Pode piorar a depressão, mas pode ajudar a definir
não sabem o que é uma sexta-feira o diagnóstico.
vivem todos os dias assustando piratas Alguma coisa tem, a gente não sabe o que.
não é por mal Ninguém sabe o que, mas tem que tomar.
elas querem distrair eles aos domingos Tipo um ratinho de laboratório.
elas querem alguns amigos Talvez resolva.

3
Médico, problema, tratamento.
Fila, problema, pagamento.
[sem título]
Tentativa, execução, frustração.
Alyne Bittencourt
Inclusive, já pensou em como ir além?
Esse cursinho gratuito, só esse mês. Prazos. Pressão. Exigências. Trabalho. Família.
Palestra foda, tem certificado. Amigos. Sociedade. Academia, com letra maiúscula
Nada disso, vamos empreender. ou minúscula. Prazo, pressão, exigência pela car-
Aprender a fazer dinheiro, a receita mágica pra tudo. reira de sucesso; pelos filhos bem educados; pela
Oportunidade única, só 500 reais pra assistir. vida social agitada; pelas férias perfeitas, com fo-
Dá sim, tem gente que consegue. tos impecáveis; pelo corpo cinzelado; pelos artigos
Isso se você conseguir organizar seus horários, né? publicados. Com tanto prazo, pressão e exigência,
Você sabe que é falta de organização sua. o sono não vem. Então, são remédios para dormir
e, no dia seguinte, café para acordar e se manter
Falando nela, olha essa bagunça. acordada para cumprir os prazos.
Limpe a casa, não deixe a poeira acumular A ansiedade de tantos prazos, pressão e exi-
Em cima de todas as coisas que você comprou por- gências traz a vontade de comer. A foto não parece
que queria fazer. tão boa. “Que bom que criaram um aplicativo para
Os livros que queria ler, isso”. Clica, edita, bota filtro, publica, se compara.
Os jogos que nunca jogou, Mais pressão, mais exigências.
As tintas endurecidas em uma gaveta, Férias. Outros prazos, outras pressões, outras
Cansadas de esperar por aquele um momento (de exigências. Cansaço, fuso, jet lag. Na foto, olhos um
férias, de feriado, de fim de semana) que você vai pouco fechados, sorrisos não tão largos. “Meu Deus,
ser você. ainda bem que inventaram um aplicativo para isso”.
E repete o ritual: clica, edita, publica, se compara
Aliás, esquece: você nunca vai ser você. e fica infeliz.
Vai estar cansado demais de todas as outras funções É tudo instantâneo: nada existe para ser sentido,
Do bom profissional, o bom amigo, o bom qualquer apenas para ser comparado ao outro; é tudo artificial.
coisa que precisar ser no momento. Agora me dê meu calmante, pois preciso dormir.
Ainda não inventaram um aplicativo para isso.
E seja grato, sempre, sempre grato.
Grato por ter emprego, porque podia não ter.
Grato por ter remédio, porque podia não ter.
Grato por ter o mínimo, porque estão tentando
tirar isso de você
E de todo mundo.
Gratiluz. Otimismo. Podia ser pior.
E vai continuar sendo.

4
Produção acadêmica
e crítica

“Isso é dinheiro, a romances Conversas entre amigos (2017), Pessoas nor-


mais (2018) e Belo mundo, onde está você (2021). O
matéria que torna o presente artigo apresenta uma breve análise da
questão de classe abordada em Pessoas normais. O
mundo real. Existe algo romance recebeu uma indicação ao Man Booker
de muito corrupto e Prize e foi vencedor na categoria “Melhor Romance”
da Costa Book Awards em 2018. Não demorou para
sensual nisso”: a questão Pessoas normais receber críticas positivas. Sian Cain,
do The Guardian, escreveu que Pessoas normais é “o
de classe em Pessoas fenômeno literário da década”. Catherine Humble,
normais de Sally Rooney do The Independent, disse que Sally Rooney escreve
a angústia como ninguém. O The New York Times
classificou a escritora como “a primeira grande au-
Victor Soares Lopes tora da geração millennial”, uma classificação que
mais adiante será questionada no artigo.
Resumo: Pessoas normais, segundo romance da es- No Brasil, pesquisadores das obras de Sally
critora irlandesa Sally Rooney, levanta questões Rooney cresceram significativamente. Com exem-
relevantes para se pensar classe social e as suas plos, temos: “Sally Rooney e a identidade dos jovens
complexidades no mundo contemporâneo. A autora irlandeses após a queda do Tigre Celta”, da mestran-
vem sendo bastante aclamada desde a publicação da Bárbara Moreira Bom Angelo, da Universidade
do primeiro romance, Conversas entre amigos, e cada de São Paulo (USP); “Beautiful Houses, Where Are
vez mais os seus livros têm se tornado trabalho You: An Analysis of the space of Houses in Sally
de pesquisa em diversas universidades, inclusive Rooney’s Novels”, da mestranda Gabriela Terezinha
brasileiras. No presente artigo, analisamos, breve- Paulo, da Universidade Federal de Santa Catarina
mente, como a questão de classe é empregada na (UFSC); e “O Romance de Formação no século
história com Marianne e Connell, protagonistas do XXI: Pessoas normais, de Sally Rooney, estudo de
romance e quais consequências o fator econômico caso”, do agora mestre Mauro Athayde Paz, da
traz para o relacionamento dos dois. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS).
As resenhas e pesquisas em torno dos romances
Introdução de Sally Rooney mostram que ela é uma escritora
importante para a nossa contemporaneidade e há
Sally Rooney, escritora irlandesa consolidada na muito o que discutir sobre os seus livros. É impor-
literatura contemporânea, é autora dos aclamados tante mencionar que a história de Pessoas normais

5
vinha sendo desenvolvida há muito tempo. Em 2016, Agora ela está parada na entrada de carros da
Roney publicou o conto At the clinic no The White casa dele, onde o carro está estacionado. Ele
Review. Trata-se de um conto com os personagens mandou o endereço por mensagem, é o número
Marianne e Connell, os mesmos de Pessoas normais, 33: uma casa geminada com paredes de chapisco,
mas são histórias diferentes. cortinas leves, um minúsculo quintal de concreto.
Em Pessoas normais, o romance, temos a histó- Ela vê uma luz acesa na janela do segundo andar.
ria de Marianne Sheridan e Connell Waldron. Na É difícil acreditar que ele mora ali, em uma casa
escola, eles fingem não se conhecer a pedido de na qual ela nunca havia entrado ou visto antes.
Connell por medo do que os colegas da turma irão Ela está de suéter preto, saia cinza, lingerie
achar. Waldron é a estrela do time e Sheridan é preta barata. [...] Ele abre a porta. Antes de
uma menina solitária. Lorraine, a mãe de Connell, pedir que entre, olha por cima do ombro dela,
trabalha como faxineira na casa dos Sheridan e o para se assegurar de que ninguém a viu chegar
jovem sempre busca a mãe depois do expediente. (ROONEY, 2019, p. 24).
Por conta disso, Connell e Marianne compartilham
momentos juntos fora da escola. Assim, os dois No capítulo 04, “Seis semanas depois”, Marianne
passam a viver um relacionamento secreto, mas e Connel vão até o Mountain View, um lugar que
conforme a relação avança, mais estranha e indelével fica atrás da escola onde estudam. Waldron a levou
a conexão entre eles se torna. depois da jovem dizer que nunca havia ido antes (o
O romance é dividido em dezoito seções que que não é nenhuma surpresa, pois Marianne só sai
cobrem o período de quatro anos, de 2011 a 2015. de casa para ir à escola e à igreja). O lugar onde
O livro se passa na cidade fictícia Carricklea, na estavam era abandonado, pois trata-se de um dos
cidade de Sligo, depois em Dublin, mas há alternân- terrenos que não conseguiram ser vendidos após
cias de uma cidade para outra ao longo da história. a crise financeira da Irlanda (ANGELO, 2024). O
Como todo romance de Rooney, a questão social interessante dessa passagem no romance é que o
é fortemente trabalhada, em Pessoas normais não espaço onde estavam foi descrito como o triplo da
seria diferente. No artigo, iremos apresentar como casa dos Waldron: “Deve ter o triplo do tamanho
a questão de classe é abordada nos protagonistas da minha casa, ele disse. O que você acha? [...] É
do livro e como isso afeta cada um deles – com provável, ela disse. Não vi lá em cima, obviamente”
especial interesse em Connell – e na relação que (ROONEY, 2019. p. 39), reforçando mais uma vez
se constrói. a condição de vida de Connell.
Outro elemento crucial na primeira parte do
1. Escola romance é Lorraine Waldron, a mãe de Connell.
Lorraine “engravidou aos dezessete anos e lar-
Os primeiros seis capítulos de Pessoas normais gou a escola para ter o filho” (ROONEY, 2019,
apresentam os protagonistas Marianne Sheridan e p. 37). Além disso, a Sra. Waldron cuida do filho
Connell Waldron no ambiente escolar. Essa primeira sozinha, pois Connell não tem figura paterna
parte do romance é importante porque introduz presente no romance. Com isso, Lorraine tra-
como a realidade financeira dos dois é diferente. balha como faxineira na casa dos Sheridan duas
Essa diferença é um elemento crucial para entender vezes na semana. De acordo com a professora
o relacionamento dos protagonistas, pois é a partir María Amor Barros-Del Río “Não é por acaso
dela que os transtornos serão enfrentados. que a desigualdade do sistema social irlandês é
Marianne é uma jovem inteligente e muito reser- trazida à tona neste romance (Pessoas normais)”
vada. Embora Connell também seja tímido e inteli- (BARROS-DEL RÍO, 2022, p. 181). Isso porque
gente como Marianne, o rapaz é um dos estudantes o livro aborda o contexto do pós-Tigre Celta,
mais famosos da escola por ser um ótimo jogador um período crítico na Irlanda por conta da bolha
do time de futebol da escola. Além disso, a maior imobiliária (ANGELO, 2024).
diferença entre eles talvez seja a questão financeira, Desde o começo do primeiro capítulo, a voz
pois interfere no relacionamento. Sheridan vem de narrativa do romance já revela que “as pessoas
uma família rica e mora em uma “mansão branca” sabem que ela mora na mansão branca com uma
(ROONEY, 2019, p. 8). Waldron, por outro lado, grande entrada para carros e que a mãe de Connell
mora em uma casa bem menor que a de Marianne. é faxineira” (ROONEY, 2019. p. 8). Porém, é só
Na primeira vez que visita a casa de Connell, a no capítulo “Um mês depois”, o terceiro, que o
jovem percebe a estrutura da casa, que é bem dife- leitor se depara com essa prática na escola. Em
rente da dela. uma segunda-feira, Rob, um amigo de Connell,

6
fez perguntas sobre a mãe dele trabalhar na casa 2. Faculdade (antes da bolsa)
de Marianne. As perguntas vinham em forma in-
sultuosa, pois tinham o objetivo de ridicularizar A partir do capítulo 07, os dois protagonistas
Connell e sua mãe. Algumas das perguntas foram: de Pessoas normais passam para a vida universitá-
“Imagino que ela te veja como um mordomo, não? ria. Nessa nova fase temos uma diferença na forma
(...) Mas a sua mãe é empregada dela, não é? (...) como os dois são vistos pelos outros. Enquanto
A Marianne não tem uma sineta que toca para Marianne agora é conhecida e famosa, Connell se
chamar a atenção dela, né?” (ROONEY, 2019, p. sente cada vez mais sozinho na nova cidade. Os
28). As perguntas, mais uma vez, evidenciam como dois fazem faculdade em Trinity, Dublin. A questão
Marianne e Connell eram vistos pelas pessoas financeira fica mais evidente, assim como era em
que os cercam. Sligo, mas Connell precisa enfrentar um grande
Ainda no capítulo três do romance, Connell e desafio dessa vez.
Marianne realizam a inscrição no curso univer- Em uma conversa com Marianne, Connell diz
sitário que eles desejavam. Marianne já estava que: “O pessoal daqui (em Dublin) é muito esnobe.
decidida em cursar História e Ciência Política, Mesmo se gostassem de mim, sinceramente não
enquanto Connell estava com um pé atrás em gostaria de ser amigo deles” (ROONEY, 2019, p. 92).
relação a sua escolha, pois ele havia se inscrito Em Trinity, Connell se depara com uma realidade
no curso de Direito em Galway. Marianne des- diferente de Sligo. Agora ele se sente deslocado, pois
taca que não o vê como estudante de direito e o as pessoas são mais ricas. Esse é um fator que não
recomenda optar por fazer Inglês, já que ele é incomoda Marianne, já que ela faz parte da classe.
excelente na disciplina na escola. Na mesma conversa, Connell diz para Marianne: “É
A questão, porém, é que a escolha de Connell por isso que é fácil pra você, aliás, ele disse. Porque
está baseada na “perspectiva de emprego” (ROO- você é de uma família rica, então as pessoas gostam
NEY, 2019, p. 20), como ele pontua. Isso revela de você” (ROONEY, 2019, p. 92).
que Waldron está mais interessado no salário que Agora em Dublin, Connell precisa dividir um
ele pode receber com a profissão do que no prazer quarto com um colega para conseguir pagar o alu-
em cursar. Enquanto isso, Marianne responde o guel. Niall é quem divide o quarto. Para viver a vida
seguinte: “Ah, quem liga pra isso? A economia está de Dublin, Connell começou um trabalho de verão
ferrada de qualquer jeito” (ROONEY, 2019, p. 20), para pagar as suas despesas. Porém, após algum
o que mostra que ela não precisa se preocupar com tempo, o seu chefe comunica que Waldron terá um
a questão salarial tanto quanto Connell, já que novo horário reduzido, isso faz com que ele passe a
ela é uma jovem rica. Para ela, fazer faculdade é receber um salário menor do que antes. O problema
uma questão de realização pessoal, como veremos dessa mudança é que Connell enfrentaria dificuldade
mais adiante. para arcar com os custos do aluguel, assim como as
Connell não pode se dar ao luxo de pensar a despesas de alimentação etc.
carreira apenas por prazer pessoal, como Marianne. Um dos momentos de clímax do romance é
Mesmo assim, após a sugestão de Marianne, ele quando Connell não tem onde morar em Dublin,
decide se inscrever em cursar Inglês na faculdade. e precisa voltar para a cidade natal porque o preço
A sua própria visão do curso de Inglês é vista com é mais barato. Waldron preferiu não pedir ajuda
desprezo e invisibiliza as diversas oportunidades para Marianne por conta de questões financeiras.
que a carreira em Inglês pode levá-lo. Embora eles tenham uma relação, dinheiro nunca
foi um tópico de assunto para eles, como menciona
Ele vai tentar obter a bolsa de permanência Connell. Waldron sugere que recorrer a Marianne
integral se conseguir entrar, mas mesmo as- para pedir dinheiro é uma das últimas coisas que
sim terá que trabalhar em período integral no ele faria. Esse comportamento é motivado pela
verão e pelo menos meio expediente durante diferença de classe que eles desempenham, princi-
o semestre letivo. Lorraine diz que não quer palmente a mãe de Connell ser a faxineira na casa
que ele trabalhe demais durante a faculdade, dos Sheridan.
quer que se concentre nos estudos. Ele fica se
sentindo mal, porque inglês não é um diploma A realidade era que, de qualquer forma, qua-
de verdade com que se consegue um empre- se sempre passava a noite no apartamento de
go, é tipo uma piada, e então acha que devia Marianne. Poderia simplesmente lhe contar a
ter se inscrito em direito, afinal (ROONEY, situação e perguntar se poderia ficar na casa dela
2019, p. 52). até setembro. Sabia que ela diria que sim. Achava

7
que fosse dizer que sim, era difícil imaginá-la não de reputação. Gostaria que seu intelecto excep-
dizendo sim. Mas se viu adiando a conversa, evi- cional fosse confirmado em público por meio
tando as perguntas de Niall sobre isso, planejando da transferência de grandes somas de dinheiro.
tocar no assunto com ela e não conseguindo no Assim, poderia simular modéstia sem que nin-
último minuto. Pareceria que estava lhe pedin- guém precisasse acreditar nela. A verdade é
do dinheiro. Ele e Marianne nunca falavam de que não se saiu tão mal nas provas. Ela foi bem
dinheiro. Nunca falavam, por exemplo, do fato (ROONEY, 2019, p. 141).
de que a mãe dela pagava à mãe dele para esfre-
gar o chão e pendurar as roupas lavadas, ou do Já para Connell, receber a bolsa é um momento
fato de que esse dinheiro circulava indiretamente de felicidade e tranquilidade, acima de tudo. “Agora,
até Connell, que o gastava, de modo geral, com tudo era possível por causa da bolsa. O aluguel
Marianne. Ele detestava ter que pensar em coisas estava pago, a mensalidade estava coberta, tinha
assim. Sabia que Marianne nunca tinha pensado uma refeição gratuita todos os dias durante o curso”
dessa forma. Ela lhe dava coisas o tempo inteiro, (ROONEY, 2019, p. 161). Ele não mais se preocupava
jantar, ingressos de cinema, coisas que ela pagava como antes em relação aos custos para conseguir
e instantaneamente, permanentemente, esquecia sobreviver em Dublin, já que “para ele, a bolsa é
(ROONEY, 2019, p. 126). um gigantesco fator material, como um imenso
cruzeiro que surgiu do nada e, de repente, pode
Ao revelar para Marianne que iria sair do apar- cursar um programa de pós-graduação de graça se
tamento com Niall, a jovem surpreende Connell por quiser, e morar em Dublin de graça, e não voltar
não convidá-lo para ficar em sua casa. Sheridan não mais a pensar em aluguel até terminar a faculdade”
cogita receber Connell e isso entristece Connell (ROONEY, 2019, p. 161).
profundamente. Essa passagem no romance sugere Além disso, Connell passa a visitar lugares
o quanto a relação deles é conflitada por questões que antes jamais poderia. “Foi por isso que pôde
monetárias, embora ambos nunca tenham comentado passar metade do verão viajando pela Europa, es-
sobre o assunto. palhando moedas com a atitude despreocupada
de uma pessoa rica” (ROONEY, 2019, p. 161). A
3. Faculdade (após a bolsa) nova vida de Connell o permite apreciar galerias
e estar exposto à alta cultura. Agora, finalmente,
Uma grande transição no romance ocorre quan- ele tem uma vida estável.
do Connell recebe uma bolsa muito disputada entre
os universitários em Trinity. Para se candidatar, é De repente, pode passar uma tarde em Viena
preciso participar de uma prova, então, as melho- olhando A arte da pintura, de Vermeer, e faz calor
res notas recebem a tão desejada bolsa: “As bolsas lá fora, e se quiser pode pagar um copo barato
dão direito a cinco anos de mensalidades integrais, de cerveja gelada depois. É como se algo que ele
acomodação gratuita dentro do campus e refeições acreditou a vida inteira ser um cenário tivesse
no restaurante universitário todas as noites, com os se mostrado real: cidades estrangeiras são reais,
outros bolsistas” (ROONEY, 2019, p. 141). e obras de arte famosas, e sistemas de ferrovias
Como Marianne vem de uma família rica, dinhei- subterrâneos, e resquícios do Muro de Berlim.
ro para ela nunca foi uma questão. E mesmo não Isso é dinheiro, a matéria que torna o mundo
precisando de todas as garantias que a bolsa proveria, real. Existe algo de muito corrupto e sensual
ela realiza a prova e é aprovada para recebê-la, assim nisso (ROONEY, 2019, p. 161-162).
como Connell. Há algumas passagens no romance
onde fica evidente como os dois enxergam o que é No capítulo “Seis meses depois”, Connell deixa
receber a bolsa. Marianne vê a aprovação da bolsa evidenciado o seu desconforto em comparecer a
apenas como uma questão de reputação. Para a jo- um jantar organizado pela universidade. Todos
vem, “a bolsa era um incentivo à autoestima, uma os bolsistas deveriam estar presentes, vestidos de
feliz confirmação do que ela sempre achou sobre black tie. Connell precisou pegar emprestado de
si mesma: que era alguém especial” (ROONEY, alguém pois não tinha. Waldron nota que os estu-
2019, p. 161). dantes não bolsistas estavam servindo os bolsistas
e isso o deixou desconfortável, pois antes ele não
Para Marianne, que não paga aluguel, nem a tinha bolsa. Além de que Connell ser servido não
própria mensalidade e não faz nenhuma ideia de é uma realidade para ele, é mais comum o contrá-
quanto essas coisas custam, é só uma questão rio acontecer. Ao falar sobre isso com Marianne,

8
relatando o quão horrível essa estrutura é, a jovem revela que “não pensa em seus romances como li-
responde: vros milenares” (BROCKES, 2021). Ou seja, ela
não deseja representar a voz de uma geração, pois
Claro que é (horrível). A ideia toda de “meri- isso seria algo injusto para uma só pessoa realizar
tocracia” ou sei lá o quê, ela é perversa, você tamanho feito.
sabe que é isso que eu acho. Mas a gente vai A história de Rooney apresenta dois protagonis-
fazer o quê, devolver o dinheiro da bolsa? Não tas de diferentes classes sociais, e portanto, pensam
entendo que bem isso faria. [...] Você tem que diferente um do outro e o mundo ao seu redor. É
entender direitinho como acha que seria uma boa inegável que a questão da classe permeia o livro.
sociedade, disse Marianne. E se você acha que Há uma hierarquia no relacionamento de Connell e
as pessoas deviam ser aptas a fazer faculdade e Marianne, mesmo que a jovem não perceba.
se formar em inglês, não devia sentir culpa por
fazer isso você mesmo, porque você tem todo o O olhar crítico de Sally Rooney para as hie-
direito (ROONEY, 2019, p. 175). rarquias materiais polariza a problemática da
formação da identidade ao testemunhar a de-
Connell é um personagem com bastante cons- sigualdade de classe social e a polarização de
ciência de classe, enquanto que para Marianne a gênero, dois efeitos restritivos e danosos do
classe não parece um grande fator. Pensar sobre capitalismo que se entrelaçam e situam os pro-
dinheiro não faz parte da sua realidade porque ela tagonistas em um ínterim de devir (BARROS-
nunca precisou se preocupar com isso, enquanto DEL RÍO, 2022, p. 187).
Connell enfrentou diversas dificuldades para so-
breviver à vida em Trinity antes de ser bolsista. O romance é muito mais do que uma história de
Em uma conversa entre os dois, Connell acha que amor entre dois jovens. Pessoas normais apresenta
eles são diferentes no que diz respeito à classe, no uma leitura capaz de trazer reflexões sobre classe
que Marianne responde “Não penso muito nisso” para o nosso mundo contemporâneo. Ambientado
(ROONEY, 2019, p. 174), o que mostra a sua limita- em um contexto estudantil, seja na escola ou na
ção em enxergar o mundo capitalista que vivem. E universidade, Sally Rooney soube trabalhar como
isso, evidentemente, afeta o relacionamento dos dois, a relação entre Connell e Marianne pode ser atra-
que estão sempre voltando e terminando. Trata-se vessada por conta da diferença de classe entre eles.
de um relacionamento com uma dinâmica complexa.
Na mesma conversa, Connell revela para Referências
Marianne que a sua mãe “paga uma mixaria”
(ROONEY, 2019, p. 175) para Lorraine como faxi- ANGELO, Bárbara Moreira Bom. Sally Rooney e a
neira. Sheridan fica surpreendida pela colocação, identidade dos jovens irlandeses após a queda do Tigre
pois nunca tinha ouvido Waldron falar sobre isso Celta. Dissertação de mestrado. Universidade
antes. Ao final do romance, o leitor se depara com um de São Paulo, a ser publicada provavelmente em
Connell maduro e cada vez mais crítico em relação ao 2024.
mundo que habitam, enquanto que Marianne ainda BARROS-DEL RÍO, Maria Amor. “Irish Youth,
está começando a deixar de lado a sua ignorância Materialism and Postfeminism: The Critique
em enxergar o seu redor politicamente. behind the Romance in Normal People”. Oceánide,
v. 15, p. 73-80, 2022.
Conclusão BRIGIDA, Marcela Santos. “Resenha: Normal
People”. Literatura Inglesa, 2020. Disponível
Pessoas normais é um romance que evidencia o em: https://literaturainglesa.com.br/resenha-
desconforto sentido não só por Connel e Marianne -normal-people-bbc-hulu-2020/.
como também no leitor do livro: “a voz da autora BROCKES, Emma. “Sally Rooney on the hell of
parece comunicar algo fundamentalmente peculiar fame: ‘It Doesn’t Seem to Work in Any Real Way
ao nosso tempo. Normal People (Pessoas Normais) é for Anyone’” The Guardian, 2021. Disponível em:
desconfortável, constrangedor e inquietante como https://www.theguardian.com/books/2021/
a nossa própria existência no início do século XXI” aug/28/sally-rooney-hell-of-fame-normal-
(BRIGIDA, 2019). Embora Pessoas normais tenha people.
essa conexão com o leitor contemporâneo – inclu- ROONEY, Sally. Pessoas normais. Tradução de
sive, a autora já foi chamada de “a voz da geração Débora Landsberg. São Paulo: Companhia das
do milênio, um Snapchat Salinger” – a escritora Letras, 2019.

9
https://folhetimcorujauerj.blogspot.com

Você também pode gostar