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A OBSCENA SENHORA D: UM MERGULHO NO ROMANCE LÍRICO

Vanessa Borella da Ross (UEM)


A extensa produção literária da escritora brasileira Hilda Hilst, percorreu diversos
gêneros literários (poesia, prosa, teatro, ficção). Com mais de 40 obras publicadas, em
meio século dedicado a escrita literária.

Em 19501, a escritora iniciou sua vida literária, publicando Presságio, livro de


poesia, em 1951, Balada da Alzira; em 1953 Balada do Festival, todos de poesia. Hilst
estava com 25 anos de idade. Seus primeiros livros versam sobre o amor.

Prosseguindo na vida literária, especialmente, nessas primeiras obras, com o


gênero poesia, Hilda lança em 1959 Roteiro do Silêncio. Os temas de seus versos
começam a mudar. A escritora lê Nikos Kazantzakis, escritor grego e o filósofo alemão,
Friedrich Nietzsche, que a influenciam profundamente, no que concerne ao seu
entendimento de mundo e visão sobre as coisas.

Em 1966, Hilda Hilst vai morar em uma fazenda que era de sua mãe. A residência
chama-se “Casa do Sol”, local onde ficará até o fim de sua vida, em 2004. De 1967 até
1969, escreve oito peças teatrais: O visitante, Auto da barca de Camiri, O novo sistema,
As aves da noite, A possessa, O rato no muro, O verdugo e A morte do patriarca.

No ano de 1970, publica a primeira obra em prosa: Fluxo-Floema. Júbilo,


memória, noviciado da paixão, lançado em 1974. Entretanto, o seu tema ou temática se
envereda pelo erotismo. Em 1977, escreve Ficções, que é uma prosa de estilo mais lento.

Durante o ano de 1980, lança três livros: Poesia (1959/1979), Da morte. Odes
mínimas, (que traz cinquenta poemas inéditos) e, Tu não te moves de ti, prosa, com três
novelas.

O livro que será analisado nesse artigo, A obscena senhora D, é do ano de 1982.
Hilst, utilizada a linguagem como artefato para construir uma prosa de cunho lírico, que
será evidenciada posteriormente. Em 1984, publica Poemas malditos, gozosos e devotos,
1986: Sobre a tua grande face, poema compostos em parceira com o músico brasileiro
Zeca Baleiro. Nesse mesmo ano, escreve: Com meus olhos de cão e outras novelas.

1
Segundo, o site oficial da escritora: <http://www.releituras.com/hildahilst_bio.asp>. Acesso: 10 jan.
2016.
Anatol Rosenfeld, crítico literário, elogia a escritora Hilda Hilst, durante a década
de 70, do século XX, quando sua obra, ainda não era bem vista pela crítica, a escritora
não recebia muita atenção por parte dos estudiosos. O crítico exalta as incursões, da
escritora nos três gêneros narrativos e seus respetivos resultados:

É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste


tempo de especializações, que experimentam cultivar os três gêneros
fundamentais da literatura – a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa
narrativa – alcançando resultados notáveis nos três campos.
(ROSENFELD, 1970, p. 10).

O caderno rosa de Lori Lamby é lançado em 1990. Esse livro está escrito em
prosa, como se fosse um diário de uma personagem de oito anos. Contos
d'escárnio/Textos grotescos e Alcoólicos, é desse mesmo ano. Livro de contos com alto
teor satírico.

O livro Cartas de um sedutor é do ano de 1991, com uma tendência


agressivamente erótica. Já no de 1992, lança dois livros: Do desejo e Bufólicas, ambos

são livros de poesias. Rútilo nada: A obscena senhora D ; Qadós é de 1993, uma espécie

de novela. Cantares do sem nome e de partidas é de 1995, são formados por poesias.
Nesse mesmo ano a escritora adoece.

É no ano de 1997, que, Estar sendo. Ter sido, é lançado. O livro está em prosa.
Em 1999, publica: Do amor, antologia poética, coordenada pelo escritor Yuri V. Santos.
Nos anos 2000, é lançado: Teatro reunido (volume 1).

O presente artigo, discorrerá sobre o livro A obscena senhora D, de 1982, de Hilda


Hilst. O livro nos apresenta a protagonista chamada Hillé, com sessenta anos de idade,
que acaba de perder seu querido companheiro, o Ehud. Após, esse acontecimento, Hillé
passa a viver no vão da escada de sua casa e afirma: “Vi-me afastada do centro de alguma
coisa que não sei dar nome...” 2 (AOSD, p. 4). Hillé inicia uma espécie de monólogo, com
pequenas interrupções de seus vizinhos, e ou idas a janela de sua casa para vociferar e
assustar com suas máscaras.

2
Todas as citações do livro “A obscena senhora D.” referem-se a Hilst, Hilda In: A obscena senhora
D.1982, e serão seguidas, apenas no número da página e abreviação do título do livro (AOSD).
Nesse monólogo, a protagonista realiza uma série de profundas reflexões sobre
questões filosóficas e existências que permeiam a história da humanidade e também a
sua.

O romance em análise, possui narração autodiegética, Hillé é narradora e


protagonista da história. Essa personagem, como define Goulart, em seu estudo e
sistematização sobre o romance lírico: “Uma voz que transforma a mensagem romanesca
em canto da subjetividade”. (1990, p. 48). Essa voz subjetiva permeia toda a narrativa, e
é através dela, que o mundo da personagem nos é apresentado, é a sua visão sobre as
coisas. Essa voz é ainda “Egocentralizada [...], especialmente se esta assume
características poéticas, egocentralização que parece arrastar consigo uma inevitável
solidão. ” (GOULART, 1990, p. 41). A mesma Goulart explica de forma mais detalhada
que:

certos constituintes da narrativa adquiriram o relevo que o romance


actual lhes confere [...] como o narrador, com as questões enunciativas
que lhe são inerentes. Introduzido com frequência no próprio texto,
enquanto participante da diegese, ou então deixando marcas
enunciativas no discurso, ele revela-se uma presença constante: narra,
comenta, disserta e, não raro, questiona o seu próprio discurso. E por
esse trabalho de construção/desconstrução vai como que anulando a
narrativa que ele próprio vai construindo”. (GOULART, 1990, p. 27).
É a narradora quem cria o mundo, tudo passa pela sua subjetividade, a relação
sujeito - objeto não apresenta validez para a teoria do romance lírico. É de dentro, do
subjetivo que o mundo aflora, que as coisas significam e possuem importância, pois:

.na autodiegese - e a que nos interessa – é o narrador personagem central


o responsável pela atitude lírica [...] ele não se distancia suficientemente
de um mundo vivido para o perspectivar com relativa objectividade.
Representa-se fundamentalmente neste caso uma experiência artística
em que o dentro e o fora se interpenetram e se confundem. (GOULART,
1990, p. 36).
Hillé, vocifera para o mundo, a gigantesca e desconcertante angustia que sente em
relação a existência. A professora e pesquisadora de romance lírico, Tofalini, afirma: “No
romance lírico a personagem representa o indivíduo na eterna busca de seu ‘eu, de sua
imagem”. (2013, p. 14). Uma característica bem marcante de romance lírico, é a
personagem angustiada em busca constante por respostas, por significações ocultas,
detentora de aguçada sensibilidade. O teórico Freedman explica: “El mundo se reduce a
un punto de vista lírico el equivalente del “Yo” del poeta: el ser lírico.” (p. 21, aspas e
grifos do autor). Hillé testemunha:
Meu nome é Nada, faço caras torcidas, as mãos viradas, vou me
arrastando, capengo, só eu e o ‘Nada do meu nome, minhas
mesquinharias, meu ser i-mundo, um Nada igual ao Teu, repensando
misérias, tentando escapar como Tu mesmo, contornando um vazio,
relembrando. (AOSD, p. 25)
Não há distância entre o eu narrador e o mundo, o que há é uma relação que não
se pode mais desassociar, uma espécie de “simbiose- literária” (permito-me uma
brincadeira com o termo advindo da biologia, “simbiose” como se fosse uma relação, em
que ambos possuem funções) entre o eu e o mundo que está sendo narrado, e o que
sobressai dessa relação é o aspecto lírico e o profundo subjetivismo. Como afirma
Freedman: …”la consciencia de la experiencia humana se funde con sus objeto”. (1972,
p. 15). E, Goulart explica:

.como facilmente se compreende, implicações de maior vulto na


transfiguração poética do mundo narrado, dada a intervenção
participante da instância da narração. Deste modo, não há a separação
entre o mundo em que vivem as personagens e o universo lírico do
discurso que o molda [...] sendo o eu narrante indissociável do eu
narrado, ele não se distancia suficientemente de um mundo vivido para
o perspectivar com relativa objectividade. (GOULART, 1990, p. 36).

A voz que narra esse romance é emotiva, de cunho subjetivo, cravada em uma
busca incessante por respostas. As questões existenciais, por vezes, filosóficas, emanam
as dores e angústias que estão impregnadas no interior dessa voz narrativa. Tofalini,
esclarece:

os romances líricos apresentam fios narrativos rarefeitos e a voz que


narra, justamente por direcionar o olhar para a profundidade do ser
humano – e, nesses casos, geralmente não se tratam de seres humanos
diferenciados, mas do fundo comum do homem na qualidade de ‘ser da-
presença”, cercado por imensas dores e mistérios – é extremamente
interiorizada e, portanto, impregnada de um tom altamente emotivo
(TOFALINI, 2013, p. 121, grifo da autora).
Hillé nocauteada pelas questões existências, em que toda sua vida se debruçou, e
não encontrou respostas. Sua emotividade traz à tona, a dor que essa mortifica seu
interior:

Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem
por isso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também
chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à
procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do
sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição ... (AOSD, p.
4).
Outra categoria do romance, que está liricizada3 no livro em destaque, é o
tempo. Tempo é fundamental para que se possa classificar um gênero como romance.
Pode-se afirmar que sem o tempo não há como definir ou caracterizar o romance, sem
tempo, sem romance. A categoria tempo é essencial, quando se objetiva comprovar o
gênero como romance lírico. O tempo no romance lírico será transfigurado, passando por
um processo. Tofalini (2013, p. 172) assevera que “é necessário revolucionar as
modalidades temporais, transfigurando o tempo e instaurando a presentificação,
elemento essencial na elaboração do poético” (grifos meus). Freedman corrobora:
“Tiempo y acción pueden ser simulados, pela la finalidad del lenguaje del poema es lograr
una intensidad específica por modulación de imágenes.” (1972, p. 20).

A categoria tempo, no romance em análise, visto tratar-se de um romance lírico,


é de cunho psicológico, não corresponde ao tempo linear, do relógio, é um tempo do ser
humano, o tempo presentificado. Meyerhoff, (1976, p. 4): explica, sobre a questão do
tempo, no que concerne ao romance lírico: “A temporalidade psicológica é definida como
privada, pessoal, subjetiva, ‘como tempo experimentado direta ou indiretamente pela
textura das vidas humanas’”. (aspas do autor). Hillé indaga: “Como era isso de estar sendo
hen? isso de estar sendo, tempo vivo, estar sendo...” (AOSD, p. 30). O tempo parece
permanecer estático.

Rosa Maria Goulart, em O trabalho da prosa, estabelece uma definição sobre o


tempo no romance lírico:.. “um tempo polimorfo, feito da convergência do tempo do
presente da enunciação, da contemplação extática, da ressonância emotiva, a que se alia
não raro o tempo primordial, arquetípico, igualmente não evolutivo. ” (1997, p. 20)

O tempo, no romance lírico é presentificado, ou seja, o passado, o presente e o


futuro estão intrincados, embaralhados, o tempo não se encontra em estado cronológico.
É um tempo do interior da voz narrativa, uma espécie de não-tempo (no sentindo de
começo, meio e fim). Goulart, esclarece como se dá essa presença do tempo na
configuração do o romance lírico:

De tudo isso se conclui que o romance lírico combina a linearidade e a


sintagmática narrativa com discursos “verticais” onde o estatismo ou
uma espécie de simultaneidade temporal e a aparente imediatez na
percepção de seres, coisas e espaços, são suficientemente fortes para

3
Os termos “liricizada” e liricização” foram cunhados pela professora pesquisadora da Universidade
Estadual de Maringá: Luzia A. Berloffa Tofalini. Esses termos não se encontram no dicionário.
originarem formas de linguagem, micro-estruturas textuais e figurações
metafórico-simbólicas que se aparentam ao discurso (e à atitude) da
poesia. (GOULART, 1990, p. 36).
Gullón, em estudo sobre as características do romance lírico, disserta sobre o
tempo e a sua simultaneidade com o espaço – estes não se separam – (espaço é o interior,
encontra-se na mente do narrador):

La discontinuidad en lo temporal, la simultaneidad de la experiencia


mental y las dificultades para manejar un material sinfónico en que las
voces y los instrumentos se mezclan, como ocurre en la vida, impulsan
esa energía lectorial. (GULLÓN, 1984, p. 19).
No que tange ao espaço, no romance A obscena Senhora D. Ele está ligado com o
tempo; o espaço é transposto e o tempo é rompido. O caráter desse espaço e altamente
metafórico, devido ao lirismo, a poesia presente nesse tipo de romance. O espaço, nesse
romance é o íntimo da consciência da narradora. Hillé angustiada exprime: “...a vida foi
isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender. porisso
é que me recusava muitas vezes. queria o fio lá de cima, o tenso que o OUTRO segura, o
OUTRO...” (AOSD, p. 29).

Hillé, busca o mistério, o inédito, o inefável, o que está por trás das palavras, o
inaudito, o significado oculto das palavras. O que não está dito, o que está depois do
verbo, além do verbo, a narradora não consegue conformar-se com o limite que as
palavras têm, da impossibilidade da linguagem em exprimir realmente o que o eu lírico
sente: "... porisso4 Falo falo, para te exorcisar, porisso trabalho com as palavras, também
para me exorcisar a mim, quebram-se os duros dos abismos, um nascível irrompe nessa
molhadura de fonemas, silabas um nascível de luz, ausente de angústia". (AOSD, p. 31).

Outra categoria ‘lirizicida’ nesse romance: enredo transfigurado, característica


inerente de um romance lírico, ou seja, o enredo não é uniforme, a própria disposição do
texto reforça o seu caráter lírico. Há linhas que estão salteadas fazendo o texto parecer
mais com poesia. Alguns excertos encontram-se alinhados como poesia. Não se trata de
uma narração com início, meio e fim, como nas definições tradicionais sobre as categorias
da narrativa. Goulart explica detalhadamente, explica:

há efectivamente um problema com que a personagem se debate. Só


que ele é de tal modo plasmado no texto que se não vislumbra um
desenvolvimento, muito menos uma resolução, tomando antes um
caráter obsessivo, redundante e fechado. Parece ter nascido com o herói

4
No presente artigo, foi preservado a ortografia utilizada por Hilda Hilst.
e está vocacionado para morrer com ele [...] Configurando uma história
que tem menos em cota o decurso de um processo de transformação que
o seu resultado e que começa exatamente onde essa transformação
acabou”. (GOULART, 1990, p. 24).
Outro aspecto importante, para ser tratado nessa análise, não falando mais sobre
as categorias da narrativa, visto que, já foram expostas. É a angustia, que a narradora
emana.

Hillé, com suas palavras, nos apresenta de forma íntima e subjetiva sua visão sobre
o mundo e sobre as pessoas. Nos apresenta sua busca por respostas, como algo que
necessita e sem o mesmo não consegue existir no mundo. A narradora, busca por
autenticidade na maneira de viver, de ser. Ao procurar essa autenticidade do ser e das
coisas ela sofre terrivelmente. A angustia que sofre ao procurar a autenticidade pode ser
observada em praticamente todo o romance, tornando-se um dos principais temas do
livro:

Diante da vila, das casas quase coladas, entre as gentes sou como uma
grande porca acinzentada, diante de muitos a quem conheci sou uma
pequena porca ruiva, perguntante, rodeando mesas e cantos, focinhando
carne e ossatura, tentando chegar perto do macio, do esconso, do branco
luzidio do teu osso, diante de minha mãe fui apenas pergunta, altaneria,
paradoxo, Hillé diante do pai foi o segredo, a escuta, a concha, o que é
paixão? o que é sombra?” (AOSD, p. 12).
A angústia que sente Hillé é pujante, visto que, almeja viver de forma autentica.
Buscando as essências das coisas e dos seres. Para viver em autenticidade, a narradora
carrega em si, um alto número de questões complexas e antigas sobre a humanidade. Hillé
não se interessa em quesitos relativos a vida cotidiana, ordinária, aos problemas
domésticos. Sua existência é voltada para a autenticidade do ser. Heidegger, filósofo
alemão, explica:

Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada na


medida em que ela singulariza. Essa singularização retira o ser-aí de sua
decadência, e lhe revela a autenticidade e inautenticidade como
possibilidades de seu ser (HEIDEGGER, 2005, p. 255).

A opção por uma vida autêntica em oposição a uma vida inautêntica, acarretou
problemas a Hillé. Seus vizinhos não conseguiam compreender o modo que escolhera
para viver, eles não compartilhavam as mesmas ideias e angústias existenciais. Hillé é
acusada de ser louca, indecente, entre diversos outros adjetivos de cunho pejorativo. A
narradora profere:
...vi os olhos dos homens, fúria e pompa, e mil perguntas mortas e
pombas rodeando um oco e vi um túnel extenso forrado de penugem,
asas e olhos, caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de
medos garras sangrentas segurando ouro, geografias do nada, frias,
álgidas, vórtices de gentes, os beiços secos, as costelas á mostra, e
rodeando o vórtice homens engalanados fraque e cartola, de seus peitos
duros saíam palavras Mentira, Engodo, Morte, Hipocrisia, vi o Porco-
Menino estremecendo de gozo vendo o Todo, suas mãozinhas moles
reverberavam no cinza oleoso, ele estendia os dedos miúdos para o alto,
procurava quem? (AOSD, p. 13).

Hillé vive para buscar o fundo o oculto das coisas e dos seres, no entanto, seus
vizinhos estão na superfície, no raso, e não compactuam do mesmo sentimento de
inadequação e constante angustia, vividos por ela. Essa angustia é própria de um ser
buscando a autenticidade. O que a narradora pergunta, e não encontra resposta satisfatória
ou simplesmente não consegue encontrar uma resposta, vai deixando como resquício mais
perguntas sem respostas. Hillé vocifera:

Como foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os dedos na matéria
do mundo, e tendo sido, perder essa que era, e ser hoje quem é? Quem
a mim me nomeia o mundo? Estar aqui no existir da Terra, nascer,
decifrar-se, aprender a deles adequada linguagem, estar bem não estou
bem, Ehud ninguém está bem, estamos todos morrendo” (AOSD, p. 9).
O livro em estudo, está permeado por dúvidas teológicos, sobre a existência ou não
existência de Deus ou de um ser supremo, algum arquiteto do universo, que pudesse
responder satisfatoriamente as diversas questões proferidas por Hillé. A narradora
pergunta: “E Deus? Deus entra e sai, Ehud? Isso não sei. O padre diz que Deus está dentro
do coração. Então espia o teu, vê se ele tá lá dentro. Tô espiando. Taí? Não. Deixa eu
escutar o teu coração. Nossa, tá batendo. Claro, o teu também, deixa eu escutar. ” (AOSD,
p. 22).

Junto com essa consciência exacerbada de mundo e angustia, Hillé na busca pela
autenticidade, encontra também a consciência do ser-para-a-morte, ao deparar-se com a
morte, de seu companheiro Ehud. Heidegger explana:

Quanto mais adequada for a apreensão fenomenal do não-mais-estar-


pre-sente do finado, mais clara será a visão de que justamente esse ser-
com o morto não faz a experiência do ter-chegado-ao-fim do finado. A
morte se desentranha como perda e, mais do que isso, como aquela
perda experimentada pelos que ficam. Ao sofrer a perda, não se tem
acesso à perda ontológica como tal ‘sofrida’ por quem morre. Em
sentido genuíno, não fazemos a experiência de morte dos outros. No
máximo, estamos apenas ‘juntos’”. (HEIDEGGER, 2005, p. 19, grifos
e aspas do autor).
É válido, acrescentar nessa análise, a presença de uma certa tensão da linguagem.
A narradora faz uso de uma linguagem vulgar: “... o podre cu de vocês vossas
inimagináveis pestilências...” (AOSD, p. 26). Porém, utiliza em outros trechos, uma
linguagem formal, polida, redundante, padrão: “Tens memória? Nostalgia? Um tempo
foste outro e agora és um que ainda se lembra do que foi e não o é mais? Tiveste
inestimáveis ideias, soterradas hoje, monturo e compaixão? Alguém se dirigiu a Ti com
tais pedidos? ” (AOSD, p. 25). Uma tensão entre a linguagem vulgar e a linguagem
formal, o vulgar versus o rebuscado, tensão que também se faz presente no interior da
narradora.

Outro ponto, a ser destacado nesse estudo é a presença do silêncio adornando todo
o livro. Esse silêncio, como afirma Orlandi:

Assim, pensar o silêncio é pensar a solidão do sujeito em face dos


sentidos, ou melhor, é pensar a história solitária do sujeito em face dos
sentidos. É por aí que se pode fazer intervir as ‘fissuras’ que nos
mostram efeitos de silêncio. O Outro está presente no discurso, de modo
ambíguo (presente e ausente). E os modos de existência (presença) das
personagens do discurso são significativas (ORLANDI, 1997, p. 50,
grifos e aspas da autora).

No discurso da narradora Hillé o silêncio se faz presente e tem imensa


significação. A angústia da personagem, suas dúvidas, o dito e o não dito. A própria
incompletude da linguagem em face do mundo. Segue abaixo um fragmento:

Também não compreendo o corpo, essa armadilha, nem a sangrenta


lógica dos dias, nem os rostos que me olham nesta vila onde moro, o
que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir, para onde
Ehud, o que são essas senhoras velhas, os ganidos da infância, os
homens curvos, o que pensam de si mesmos os tolos, as crianças, o que
é pensar, o que é nítido, sonoro, o que é som, trinado, urro, grito, o que
é asa hen? (AOSD, p. 7).
O silêncio ...é a matéria significante por excelência, um continuum significante.
O real da significação é o silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 29). Esse silêncio aparece e se
esconde, visto que, a significação não se encontra na superfície, é necessário se
aprofundar para adentrar a sua essência e o verdadeiro significado. Hillé, persegue a
significação profunda sobre as coisas, o que ela consegue se exprimir por palavras tem
significação, mas o que realmente significa é o silêncio por trás dessas palavras. O
silêncio produz sentidos e significações maiores que as palavras, mais profundas. Dessa
forma, o silêncio é
é fugaz. O homem não o suporta e assim não lhe permite senão uma
existência efêmera. Pela relação entre múltiplos fragmentos de
linguagem pode-se construir uma certa duração para torna-lo
observável, nas condições em que ele se produz. Ressalta-se assim sua
materialidade histórica. (ORLANDI, 1997, p. 58).
Esse silêncio que permeia o livro, consegue ir além das limitações que as
palavras, o discurso possui. O silêncio transcende esse limite, não pode ser considerado
uma ausência, o silêncio é uma presença que significa, nas reticências do texto, lacunas,
nos espaços em brancos, na forma em que as palavras estão dispostas.

Referências

FREEDMAN, Ralph. La novela lírica: Herman Hesse, André Gide y Virginia Woolf.
Barcelona: Barral Editores, 1972.

GOULART, Rosa Maria. O trabalho da prosa: Narrativa. Ensaio. Epistemologia.


Braga/Coimbra Angelus Novus, 1997.

_____. Romance lírico: O percurso de Vergílio Ferreira. Lisboa: Bertrand, 1990.

GULLÓN, R. La novela lírica. Madrid: Ediciones Cátedra, 1984.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 2005. São Paulo: Editora Vozes, 2005.

HILST, Hilda. A obscena senhora D. 1982.

MEYERHOFF, Hans. O Tempo na Literatura. Tradução de Myriam Campello. São


Paulo: McGaw-Hill do Brasil, 1976.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas:


Unicamp 1997.

TOFALINI, Luzia A. Berloffa. Romance lírico: o processo de “liricização” do romance


de Raul Brandão. Maringá: Eduem, 2013.

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