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Antonio Donizeti da Cruz

Alexandra Santos Pinheiro


Encarnación Medina Arjona
(Organizadores)

INTERCULTURALIDADE E ESCRITA
FEMININA LATINO-AMERICANA:
Imaginário e Memória

Cascavel
Unioeste
2016
2

Imagem da capa: "Boceto Tres Mujeres" (“Esboço Três Mulheres”) - oleo sobre tela -
dimenciones, 0,89m x 1,23 m
Mirta Córdoba (Artista plástica e Escritora) - Neuquén – Patagonia – Argentina
http://artemirtacordoba.blogspot.com.br/2016/06/boceto-tres-mujeres.html

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Sistema de Bibliotecas da UNIOESTE)

I61 Interculturalidade e escrita feminina Latino-Americana:


imaginário e memória. / Organização de Antonio Donizeti da
Cruz, Alexandra Santos Pinheiro, Encarnación Medina
Arjona. – Cascavel: Unioeste, 2016.
Online.

ISBN: 978-85-68205-12-9
Disponível:
http://midas.unioeste.br/sgev/eventos/interculturalidade-
e-escrita-feminina

1. Mulheres - Escrita. 2. Mulheres na Literatura. 3.


Literatura latino-americana. 4. Memória na literatura. I. Cruz,
Antonio Donizeti da, (org.). II. Pinheiro, Alexandra Santos
(org.). III. Medina Arjona, Encarnación (org.).

CDD 20. ed. – 305.40952

Sandra Regina Mendonça CRB – 9/1090


3

CONSELHO CIENTÍFICO:

Acir Dias da Silva (UNIOESTE)


Alexandra Santos Pinheiro (UFGD)
Antonio Donizeti da Cruz (UNIOESTE)
Beatriz Helena Dal Molin (UNIOESTE)
Berta Lucía Estrada Estrada (Colômbia/França)
Encarnación Medina Arjona (Universidad de Jaén – Jaén – Espanha)
Claudia Macías de Yoon (Seoul National University – Seul, Coreia do Sul)
Carmen Luna Sellés (Universidad de Vigo – Vigo – Espanha)
Clarice Lottermann (UNIOESTE)
Denise Scolari Vieria (UNIOESTE)
Genoveva Verónica Ponce Naranjo (Universidad Nacional de Chimborazo – Equador)
Lilibeth Zambrano (Universidad de Los Andes – Mérida – Venezuela)
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)
Losandro Antonio Tedeschi (UFGD)
Luísa Cristina dos Santos Fontes (UEPG)
Maria de Fátima Gonçalves Lima (PUC-GO)
María del Carmen Taconi (Universidad de Tucumán – San Miguel de Tucumán –
Argentina)
María Helena Giraldo Gonzáles (Colômbia)
Marly Catarina Soares (UEPG)
Mirta Córdoba (Neuquén – Patagonia – Argentina)
Narlan Matos (Washington, D.C. – EUA)
Regina Coeli Machado e Silva (UNIOESTE)
Rita Felix Fortes (UNIOESTE)
Ruth Ceccon Barreiros (UNIOESTE)
Shiva Durga (GLA University – Mathura – India)
Suzy Delgado (Assunção – Paraguai)
Ximena Antonia Díaz Merino (UFFRJ)
4

SUMÁRIO

07 APRESENTAÇÃO

12 PARTE I
ESCRITURA DE MULHERES: LITERATURA E RESISTÊNCIA
13 Escritura de mujeres, ¿mito reparador y/o función artística?
Encarnación Medina Arjona
26 O “menor” como potência para se pensar a histórias das mulheres
Losandro Antonio Tedeschi
40 Lúcia Miguel Pereira: inaugurando linhagens na crítica literária escrita por mulheres
no Brasil
Lourdes Kaminski Alves
55 Memória e imagem da mulher nas crônicas de Julia Lopes de Almeida
Elenita Conegero Pastor Manchope
70 As grades e as vozes: memória e identidade de mulheres presas
Maria Aparecida de Barros

82 PARTE II
LITERATURA E VOZES FEMININAS: ESCRITA E CONSTRUÇÕES DE
SABERES
83 A ditadura em O novo sistema de Hilda Hilst
Johnny dos Santos Lima
96 A presença da mulher na literatura paranaense do século XX
Vanderlei Kroin
109 A imagem do fogo e a memória na poética de Susy Delgado
Leda Aquino

122 PARTE III


ESCRITA FEMININA: MEMÓRIA E IDENTIDADE
123 Literatura infantil e juvenil afro-brasileira: memoria e identidade
Ruth Ceccon Barreiros
5

138 Memória e identidade da escrita feminina contemporânea no Brasil: estudo


comparado em Nísia Floresta e Adélia Prado
Simone Maria Martins
146 A América Latina em Bel Canto: uma comunidade imaginada
Alvina Lúcia Guilherme
156 Clarice Lispector: entre a pena e o pincel, as palavras e as tintas
Neurivaldo Campos Pedroso Junior

172 PARTE IV
VOZES FEMININAS, ESCRITA E RESISTÊNCIA
173 Escolher ou ser escolhida? A imagem da mulher em Um judeu na minha cama
Job Lopes
184 As pulsões do eu, entre a necessidade e o desejo: escrita e resistência feminina
na obra O Sonho de Electra, de Bidisha Bandyopadhyay
Claudiane Prass
199 A redefinição dos papéis sociais da mulher na contemporaneidade:
O Bildungsroman feminino em Lygia Bojunga
Vanessa Borella da Ross

215 PARTE V
POÉTICAS DO IMAGINÁRIO E MEMÓRIA: VOZES FEMININAS
216 A poética do imaginário de Cora Coralina e Lêda Selma
Maria de Fátima Gonçalves Lima
227 Das interfaces da escrita feminina às imagens dos desdobramentos do eu na lírica
de Lila Ripoll
Antonio Donizeti da Cruz
Bruno Weber
236 A voz do Ditador e a ironia de um narrador: literatura e história em Renée
Ferrer
Alexandra Santos Pinheiro
251 Inventário geopoético da cidade da Bahia, com Ana Miranda
Denise Scolari Vieira
6

262 PARTE VI
VOZES FEMININAS – ESCRITA FEMININA
263 Do claustro ao pátio profano
Beatriz Helena Dal Molin
Julia Cristina Granetto Moreira
274 Imagem, dor e feminismo em O Diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo
e em Frida: A Biografia, de Hayden Herrera
Paulo Cesar Fachin
Acir Dias da Silva
290 Poesia e memória em Virgínia Vendramini
Lucilaine Tavares da Silva Anschau

305 PARTE VII


VOZES FEMININAS: MEMÓRIA E NARRATIVA LÍRICA
306 Vozes líricas e narrativas de mulheres sensíveis à sociedade na América Latina –
Poesia, música e romance como expressões de crítica-social
Gilmei Francisco Fleck
Cristian Javier Lopez
319 Da teoria à poesia de Ana Cristina Cesar
Dhandara Capitani
336 A saga de Malinche em Xicoténcatl (1826): das ações históricas
à ficcionalização romanesca
Leila Shai Del Pozo Gonzalez
346 Memória e escrita de autoria feminina: uma leitura de Tantos Anos
Janieli Salgueiro da Silva

357 ÍNDICE REMISSIVO


7

APRESENTAÇÃO

Este livro intitulado INTERCULTURALIDADE E ESCRITA FEMININA LATINO-


AMERICANA: Imaginário e Memória” é resultado do Simpósio Internacional realizado
nos dias 08 e 09 de setembro de 2016, na UNIOESTE – Campus de Cascavel. Pelo
segundo ano consecutivo, reunimos os grupos de pesquisa “Poéticas do imaginário e
memória”, da UNIOESTE e ”Núcleo de estudos literários e culturais”, da UFGD.
Registramos os agradecimentos ao Programa de Pós-graduação em Letras da
UNIOESTE, à Pró-reitoria de Extensão e à Fundação Araucária (PR), pelo apoio ao
evento. A Universidad de Jaén, Espanha, é a parceira internacional do evento,
representada pela professora Encarnación Medina Arjona. Interculturalidade e escrita
feminina latino-americana são as temáticas geradoras dos capítulos reunidos aqui, com
ênfase em construções do imaginário e memória.
A presente obra, portanto, materializa as discussões. Ao analisar o texto literário
de autoria feminina, os capítulos aqui publicados dão a conhecer distintas representações
sobre a maneira com que mulheres latino-americanas traduziram a si e à sociedade que
as cercavam. O leitor encontra aqui a representação de mulheres de distintas localidades:
Renée Ferrer; Marceline Desbordes-Valmore; Virgínia Vendramini; Ana Cristina Cesar;
Frida Kahlo; Júlia da Costa; Ana Miranda; Cora Coralina; Lêda Selma; Bidisha
Bandyopadhyay; Lygia Bojunga; Lila Ripoll; Clarice Lispector; Sor Juana Inés de la
Cruz; Lília Aparecida Pereira da Silva; Adélia Prado; Nísia Floresta; Susy Delgado; Hilda
Hilst; Lúcia Miguel Pereira; Julia Lopes de Almeida; Helena Kolody, Idea Vilariño; Ann
Patchett; Nilma Lino Gomes; Arlette Farge; Isabel Allende (e outras); escritoras que se
diferenciam por seu local de nascimento, mas que se aproximam pelo desejo de imprimir
o seu ponto de vista em relação a temas políticos, econômicos, sociais, domésticos ou
religiosos. Devido ao significativo número de capítulos, o livro foi dividido em sete
partes, além da apresentação e índice remissivo.
A primeira parte intitula-se “Escritura de Mulheres: Literatura e Resistência” e
inicia-se com o capítulo (conferência) intitulado “Escritura de mujeres, ¿mito reparador
y/o función artística?”, de Encarnación Medina Arjona. A autora tece reflexões sobre o
“valor reparador” da escritura feminina e busca explicar como tem sido a recepção crítica
do texto de autoria feminina em relação ao conceito de “função artística”. O segundo
capítulo denomina-se “O ‘menor’ como potência para se pensar a histórias das mulheres”,
de Losandro Antonio Tedeschi. O professor e historiador dialoga com Deleuze e Guattari
8

para compreender como as narrativas femininas, marcadas por recortes memoriais, ao


serem contadas, narradas e descritas, possibilitam o surgimento de discursos
marginalizados e invisibilizados pela história tradicional. A história do feminino, ao ser
entendida como uma história menor, teria a força de produzir, através de linhas de fuga
que ela própria constrói, descontinuidades na história oficial. No terceiro capítulo, “Lúcia
Miguel Pereira: inaugurando linhagens na crítica literária escrita por mulheres no Brasil”,
Lourdes Kaminski Alves analisa como a romancista, ensaísta e crítica literária Lúcia
Miguel Pereira encontra no romance e no ensaio crítico um canal para questionar a
censura, os preconceitos e as diversas manifestações discriminatórias responsáveis pela
segregação baseada em questões de gênero. Elenita Conegero Pastor Manchope é a autora
do capítulo “Memória e imagem da mulher nas crônicas de Julia Lopes de Almeida”, que
busca, na obra de Julia Lopes de Almeida, compreender que papel era atribuído à mulher
na vida pública e na vida privada, naquele período.A primeira parte da obra é encerrada
por Maria Aparecida de Barros, com o capítulo “As grades e as vozes: memória e
identidade de mulheres presas”. A autora analisa os testemunhos orais apresentados por
mulheres que estão, temporariamente, privadas de liberdade, cumprindo pena em uma
penitenciária feminina do estado do Mato Grosso do Sul.
A segunda parte intitula-se “Literatura e vozes femininas: escrita e construções de
saberes” é composta pelos capítulos “A ditadura em O novo sistema de Hilda Hilst”, de
Johnny dos Santos Lima. O autor analisa a peça teatral “ O novo sistema”, de Hilda Hilst.
Trata-se de uma autora humana e que esteve em confronto também com o momento
histórico em que viveu e que resiste ao período da ditadura através da escrita, sendo a
consciência que a autora tem da realidade observada neste trabalho. O capítulo “A
presença da mulher na literatura paranaense do século XX”, de Vanderlei Kroin, aborda
aspectos da participação da mulher no cenário literário e artístico do Paraná, destacando
algumas escritoras surgidas em território paranaense no século XX, a fim de demonstrar
que a figura feminina se fez presente e contribuiu para com a formação e consolidação
das letras e literatura no estado. O capítulo que encerra esta parte, “A imagem do fogo e
a memória na poética de Susy Delgado”, é assinado por Leda Aquino, que analisa a
imagem do fogo na poética bilíngue da escritora e poeta paraguaia Susy Delgado.
Na terceira parte intitulada “Escrita feminina: memória e identidade”, temos o
capítulo “Literatura infantil e juvenil afro-brasileira: memoria e identidade”, de Ruth
Ceccon Barreiros, que toma como referência a obra literária infantil “Betina”, de Nilma
Lino Gomes, para apresentar reflexões sobre memória e identidade reveladas na obra
9

eleita. Em “Memória e identidade da escrita feminina contemporânea no Brasil: estudo


comparado em Nísia Floresta e Adélia Prado”, Simone Maria Martins dá destaque à Nísia
Floresta, considerada a primeira feminista e escritora no Brasil, e para Adélia Prado, que
destaca o campo, a religiosidade e a simplicidade da vida. O capítulo “A América Latina
em Bel Canto: uma comunidade imaginada”, Alvina Lúcia Guilherme aborda as
representações metafóricas da América Latina no romance Bel Canto de Ann Patchett. A
quarta parte é encerrada com o capítulo “Clarice Lispector: entre a pena e o pincel, as
palavras e as tintas”. Neurivaldo Campos Pedroso Junior realiza uma leitura crítico-
comparativa entre as telas de Clarice Lispector e dois de seus romances, Água viva (1973)
e Um sopro de vida (1978), lidos como uma “teoria” da/sobre a pintura clariciana.
A quarta parte, “Vozes femininas, escrita e resistência”, é iniciada com o texto
“Escolher ou ser escolhida?: a imagem da mulher em Um judeu na minha cama”, de Job
Lopes. O autor analisa a obra Um judeu na minha cama, de Lília Aparecida Pereira da
Silva e busca compreender como a protagonista está à frente do tempo e se opõe ao
casamento e as regras impostas pela sociedade patriarcal de época. Claudiane Prass assina
o capítulo “As pulsões do eu, entre a necessidade e o desejo: escrita e resistência feminina
na obra O Sonho de Electra, de Bidisha Bandyopadhyay”. O texto analisa como a autora
Bidisha recorre à intertextualidade para discutir a naturalidade dada à um mito: o Mito de
Electra, abordando questões de gênero. O capítulo “A redefinição dos papéis sociais da
mulher na contemporaneidade: O Bildungsroman feminino em Lygia Bojunga”, de
Vanessa Borella da Ross, encerra o bloco de análise. A pesquisadora apresenta os
elementos que caracterizam o Bildungsroman feminino contemporâneo de escrita
feminina lançado após o ano 2000 da escritora brasileira Lygia Bojunga.
A quinta parte denominada “Poéticas do imaginário e memória: vozes femininas”
é inaugurada pelo capítulo “A poética do imaginário de Cora Coralina e Lêda Selma”, de
Maria de Fátima Gonçalves Lima. A autora defende que a poesia de Cora Coralina e de
Lêda Selma ilustra a Poética do Imaginário e Memória do chão goiano. O capítulo “Das
interfaces da escrita feminina às imagens dos desdobramentos do eu na lírica de Lila
Ripoll”, de Antonio Donizeti da Cruz e Bruno Weber, destaca a lírica de Lila Ripoll e a
maneira como a elaborou ao longo de sua trajetória uma lírica intimista que evoluiu para
uma concepção dilacerada da existência. Alexandra Santos Pinheiro é a autora do capítulo
“A voz do Ditador e a ironia de um narrador: literatura e história em Renée Ferrer”, que
analisar a construção da personagem do ditador, na obra La Querida, da escritora
paraguaia Renée Ferrer. O capítulo “Inventário geopoético da cidade da Bahia, com Ana
10

Miranda”, de Denise Scolari Vieira se propõe a analisar a obra de Boca do Inferno¸ de


Ana Miranda, observando como a literata recupera questões sociais e políticas advindas
do período colonial, no espaço urbano de trânsito, de passagem
A sexta parte intitula-se “Vozes femininas – escrita feminina” e é iniciada com o
capítulo “Do claustro ao pátio profano”, de Beatriz Helena Dal Molin e Julia Cristina
Granetto Moreira. O texto tece uma reflexão sobre a escrita feminina de Sor Juana Inés
de la Cruz, uma escritora mexicana, dramaturga, filósofa e monja. O capítulo “Imagem,
dor e feminismo em O Diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo e em Frida: A
Biografia, de Hayden Herrera”, assinado por Paulo Cesar Fachin e Acir Dias da Silva
discute questões relacionadas às vozes femininas e à escrita feminina, levando em
consideração El Diario de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato (1995) e Frida: a biografia
de Hayden Herrera (2011). O capítulo “Poesia e memória em Virgínia Vendramini”, de
Lucilaine Tavares da Silva Anschau busca evidenciar os contextos da memória que a
artista Virgínia Vendramini retrata em sua produção artística, que remetem
constantemente à infância, reconhecendo que as lembranças armazenadas na memória
são evocadas do passado, mas revividas no presente.
A sétima e última desta obra, Vozes femininas: memória e narrativa lírica, é
composta pelo capítulo “Vozes líricas e narrativas de mulheres sensíveis à sociedade na
América Latina – Poesia, música e romance como expressões de crítica-social”, de Gilmei
Francisco Fleck e Cristian Javier Lopez. Os autores defendem que a escrita de autoria
feminina atual evidencia não apenas a existência à margem de mulheres vitais na história,
mas, também, o inigualável talento literário do qual as sociedades se privaram durante
séculos. Dhandara Capitani é a autora de “Da teoria à poesia de Ana Cristina Cesar”, que
analisa poemas da Ana Cristina Cesar em conjunto a alguns de seus textos teóricos, com
o objetivo de verificar de que forma as ideias expostas se concretizam na obra poética.
Leila Shai Del Pozo Gonzalez assina “A saga de Malinche em Xicoténcatl (1826): das
ações históricas à ficcionalização romanesca”, destacando que Malinche, a intérprete e
colaboradora de Hernán Cortés na conquista do México, é uma das figuras emblemáticas de
nossa história. A esta autóctone atribui-se a culpa pela queda do Império Asteca. O último
capítulo “Memória e escrita de autoria feminina: uma leitura de Tantos Anos”, é de
autoria de Janieli Salgueiro da Silva. A pesquisadora analisa o livro Tantos anos (1998),
de Rachel de Queiroz e Maria Luíza de Queiroz, sob a perspectiva dos estudos de
memória e de escrita feminina, bem como das reflexões em torno da escrita de si como
parte constituinte do gênero íntimo.
11

Os leitores do presente livro podem constatar a diversidade de vozes que emergem


destes textos. Escritoras conhecidas e consagradas pelo cânone literário e escritoras que
ainda carecem de visibilidade são descortinadas e imprimem seus pontos de vidas em
relação à história e à vida.

Alexandra Santos Pinheiro


Antonio Donizeti da Cruz
Encarnación Medina Arjona
12

PARTE I
ESCRITURA DE MULHERES: LITERATURA E
RESISTÊNCIA
13

ESCRITURA DE MUJERES, ¿MITO REPARADOR Y/O FUNCIÓN


ARTÍSTICA?

Encarnación Medina Arjona


Universidad de Jaén (España)

El capítulo XIII de la segunda parte del Quijote, refiriéndose a un pasaje en el que


se está bebiendo vino, dice así:

–Por mi fe, hermano ―replicó el del Bosque―, que yo no tengo hecho


el estómago a tagarninas, ni a piruétanos, ni a raíces de los montes. Allá
se lo hayan con sus opiniones y leyes caballerescas nuestros amos, y
coman lo que ellos mandaren. Fiambreras traigo, y esta bota colgando
del arzón de la silla, por sí o por no; y es tan devota mía y quiérola tanto,
que pocos ratos se pasan sin que la dé mil besos y mil abrazos.
Y, diciendo esto, se la puso en las manos a Sancho, el cual,
empinándola, puesta a la boca, estuvo mirando las estrellas un cuarto
de hora, y, en acabando de beber, dejó caer la cabeza a un lado, y, dando
un gran suspiro, dijo:
–¡Oh hideputa bellaco, y cómo es católico!
–¿Veis ahí —dijo el del Bosque, en oyendo el hideputa de Sancho—,
cómo habéis alabado este vino llamándole hideputa?
–Digo —respondió Sancho—, que confieso que conozco que no es
deshonra llamar hijo de puta a nadie, cuando cae debajo del
entendimiento de alabarle. Pero dígame, señor, por el siglo de lo que
más quiere: ¿este vino es de Ciudad Real?
–¡Bravo mojón! —respondió el del Bosque—. En verdad que no es de
otra parte, y que tiene algunos años de ancianidad.
–¡A mí con eso! —dijo Sancho—. No toméis menos, sino que se me
fuera a mí por alto dar alcance a su conocimiento. ¿No será bueno, señor
escudero, que tenga yo un instinto tan grande y tan natural, en esto de
conocer vinos, que, en dándome a oler cualquiera, acierto la patria, el
linaje, el sabor, y la dura, y las vueltas que ha de dar, con todas las
circunstancias al vino atañederas? Pero no hay de qué maravillarse, si
tuve en mi linaje por parte de mi padre los dos más excelentes mojones
que en luengos años conoció la Mancha; para prueba de lo cual les
sucedió lo que ahora diré: «Diéronles a los dos a probar del vino de una
cuba, pidiéndoles su parecer del estado, cualidad, bondad o malicia del
vino. El uno lo probó con la punta de la lengua, el otro no hizo más de
llegarlo a las narices. El primero dijo que aquel vino sabía a hierro, el
segundo dijo que más sabía a cordobán. El dueño dijo que la cuba estaba
limpia, y que el tal vino no tenía adobo alguno por donde hubiese
tomado sabor de hierro ni de cordobán. Con todo eso, los dos famosos
mojones se afirmaron en lo que habían dicho. Anduvo el tiempo,
vendióse el vino, y al limpiar de la cuba hallaron en ella una llave
pequeña, pendiente de una correa de cordobán.» Porque vea vuestra
merced si quien viene desta ralea podrá dar su parecer en semejantes
causas.
14

Escapar al relativismo, en materia de apreciación estética, es casi imposible. Para


Kant el juicio sobre el gusto es la propia estética; el juicio estético es la estética; la estética
es un juicio cuyo principio determinante no puede ser de otro modo que subjetivo. Como
en el caso de los vinos en el capítulo de Cervantes, los hay mayores jueces que otros, la
confirmación está al final del tonel, pero la apreciación está al principio. Incluso la
ausencia de la llave no habría disminuido la capacidad de catar de los personajes. Podían
incluso haberse equivocado, y que no apareciera la confirmación de la llave al final del
tonel; podrían haber sido errores de juicio, pero no dejaban de ser las valoraciones
personales. El gusto es un hecho psicológico. No se puede influir en el gusto. Quizá la
educación, la experiencia y la edad influyen, pero nadie puede modificar el gusto.
Si he querido recordar esta premisa es en un acto de rebeldía y de exhortación de
la obra de escritoras que no encontraron su espacio en la literatura de su época, que la
historia de la literatura relegó al olvido y que la crítica feminista actual tampoco ha
apreciado. Quisiera lanzar la reflexión sobre en qué elementos estéticos basarse para
otorgar a la escritura de las mujeres su valor estético frente a la consideración de mera
necesidad de expresión de la sensibilidad o de la necesidad de una escritura reparadora
de dicha sensibilidad.
Gérard Genette, en su libro La relation esthétique1, utiliza la idea de los predicados
artísticos. Puesto que el efecto estético es asunto del juicio, es útil considerar cómo se
opera la conjunción de estética y de técnica en los juicios de apreciación relativos a las
obras de arte ―es decir, en qué consiste la lógica específica de los “juicios de valor
artístico”, y así pues necesariamente los predicados artísticos. Genette toma prestada la
idea de un estudio de Mark Sagoff sobre “El estatus estético de los plagios2” cuyas
implicaciones sobrepasan el objeto específico que anuncian. Dicho objeto es la cuestión
siempre lancinante: ¿entre un cuadro (por ejemplo) y su copia perceptualmente
indiscernible, pero identificada como tal por otras vías, hay alguna diferencia estética? La
respuesta, según Sagoff (y es lo que amplía el interés de su asunto), debe buscarse en la
naturaleza lógica de los predicados en cuestión. Él mismo se apoya sobre un estudio de
Samuel Weehler que muestra que ciertos adjetivos, que este autor califica de atributos y
que su gramática de superficie presenta como predicados “monádicos”, o predicados con
una única posición, funcionan en realidad como predicados relacionales de dos

1
Gérard Genette, La relation esthétique, Paris, Seuil, 1997.
2
Mark Sagoff, “The Aesthetic Status of Forgeries”, JAAC 35-2, 1976 y “Historical Authenticity”,
Erkenntnis 12-1, 1978.
15

posiciones3. En “Claudia Schiffer es top model”, top model es un predicado monádico,


que asigna simplemente a dicha persona una clase de pertenencia; en “Claudia Schiffer
es hermosa”, el predicado hermosa (estético, se puede decir, aunque mezclado aquí de
“atracción” física) implica una clase de referencia que lo especifica, y que es
evidentemente top model, e incluso mujer: Claudia es, según una opinión muy general,
bella como una mujer. El adjetivo no tiene la misma significación según que se aplique a
una mujer o a una catedral: una catedral que se parezca a Claudia Schiffer no sería quizá
bella, o al menos no sería como una bella catedral, y recíprocamente. Bello, como
generalmente ocurre con los predicados estéticos, es, en este sentido, un predicado de dos
lugares, cuya aplicación depende en cada ocurrencia de la clase de referencia,
generalmente implícita porque es la evidente: Claudia es una bella mujer. Notre-Dame de
Chartres es una bella catedral, y la relación entre los dos predicados descansa sobre el
grado de implicación acordado a cada uno de ellos. “Le Déjeuner des canotiers es
brillante”, la clase de referencia implícita es cuadro, o cuadro impresionista, o cuadro de
Renoir, pero podríamos imaginar una situación en la que el predicado brillante sería el
implicado, y el predicado Renoir adelantado; si, por ejemplo, habiendo solicitado ver un
cuadro brillante, me dieran a elegir entre Le Déjeuner des canotiers o Les Noces de Cana.
En principio es desde un punto de vista lógico, el objeto estéticamente predicado está en
la intersección de dos clases, una perteneciente a la categoría supuesta (histórica,
genérica, autorial, etc.) y la otra de apreciación estética. Es el uso práctico y su orientación
intencional la que nos llevan generalmente a privilegiar como más pertinente el primer
tipo de relación, y así a especificar los bellos Renoir como subclase en la clase de los
Renoir más bien que en la de los hermosos cuadros. Los predicados estéticos, y más
particularmente los predicados artísticos (o predicados estéticos aplicados a obras de
arte), que son en general las más fuertemente categorizadas, presentan constantemente las
configuraciones orientadas: de la categoría de referencia, a menudo compleja, hacia el
predicado de apreciación. Sagoff establece que las apreciaciones artísticas reenvían
generalmente a (y dependen de) ciertas categorías o ciertos “marcos conceptuales”
(conceptual frameworks) preexistentes, que especifican el sentido y la amplitud.
Sobre la importancia de estos “marcos conceptuales” en los juicios artísticos, citamos
Jean-Marie Schaeffer: “La estructura proposicional retenida por Kant, a saber “a es
bello”, simplifica abusivamente la estructura efectiva de los juicios estéticos, sobre todo

3
Samuel Wheeler, “Attributives and Their Modifiers”, Nous 6-4, 1972.
16

cuando se emiten sobre obras de arte. Dicha estructura es más bien “a es un X en cuanto
bello”. Dicho de otro modo, es raro que un objeto sea calificado de bello en el absoluto:
es más bien en relación a un campo contextual o categorial específico4”.
Quiero por ahora condensar la proposición de Walton5 bajo esta forma sintética,
pero, espero fiel: “las propiedades estéticas de una obra no dependen únicamente des sus
propiedades no-estéticas, sino también del carácter standard, variable o contra-standard
de estas últimas en la categoría genérica asignada a esta obra”. Walton califica de standard
todo rasgo que sea inherente (por razones de médium, como la bidimensionalidad de un
cuadro, o a las convenciones genéricas, como los catorce versos de un soneto) en la
categoría genérica asignada.
Pero un rasgo que no es estándar puede además, según los casos, ser definido
ya sea como variable, ya como contra-standard. “Un rasgo es variable en relación a una
categoría si, y sólo si, no está ligado con el hecho que la obra pertenece a esa categoría:
la presencia o ausencia de dicho rasgo son no pertinentes en cuanto a saber si una obra
cumple las condiciones para pertenecer a la categoría en cuestión”. Representar un ser
humano, un paisaje o un tarro de mermelada son rasgos variables en la categoría genérica
cuadro; estar en alejandrinos o en octosílabos en la categoría poema. En fin, “un rasgo
contra-standard, en relación a una categoría, reside en la ausencia de un rasgo estándar en
relación a ella —es decir que se trata de un rasgo cuya presencia en la obra la hace
impropia de ser miembro de la categoría en cuestión”: ser bidimensional es contra-
standard en escultura, consistir en un volumen enteramente lleno lo es en arquitectura, no
llevar ningún enunciado lingüístico lo es en literatura. Tomando al pie de la letra la
definición de Walton, percibimos que los rasgos estándar y contra-standard son
rigurosamente antitéticos y contradictorios, puesto que la presencia de uno de estos
últimos equivale a la ausencia de uno de los primeros; y puesto que la presencia de uno
de los último o, lo que es lo mismo, a ausencia de uno de los primeros basta, o al menos
contribuye, a excluir una obra de la categoría en cuestión, se deduce evidentemente que
los rasgos estándar son, relativamente a dicha categoría, condiciones necesarias6. “Estar
en una lengua” es en poesía un rasgo estándar, necesario pero no suficiente si se considera
que otros rasgos, igualmente estándar, como pueden ser en versos, son también
necesarios; ser bidimensional es un rasgo estándar, pero no suficiente en pintura, en donde

4
Jean-Marie Shaeffer, L’Art de l’âge moderne, Paris, Gallimard, 1992, p. 81.
5
Kendall Walton, “Categories of art”, The philosophical review, 1970, 334-367.
6
Gérard Genette, op. cit, p. 204.
17

es mejor presentar el rasgo “superficie coloreada”. El rasgo estándar que es en principio


estéticamente inerte en la categoría, no es genéricamente inerte, puesto que contribuye al
menos a determinar la pertenencia genérica. Walton contesta la idea de que sea
estéticamente totalmente inerte, en la medida en la que la percepción del género, y de la
ilustración de sus normas en la obra considerada. Los rasgos contra-estándar son pues de
hecho rasgos de innovación susceptibles de poner en cuestión un paradigma genérico
existente y de provocar, ya sea una ruptura conducente a la apertura de una nueva
categoría, ya a la ampliación de la categoría antigua. La asignación inicial al Cid del
género tragicomedia parece, paradójicamente, un ejemplo del primer caso: la catástrofe
final hacía muy esencialmente parte de la definición de la tragedia para que se pudiera en
1637 admitir como simple “variable” en este tipo de desenlaces (relativamente) felices de
esta obra, de ahí el recurso de Corneille a esta indicación genérica entonces corriente,
pero a la cual da un nuevo sentido, el de tragedia con final feliz o, como diría más
valientemente en su Discours du poème dramatique, de “tragédie heureuse”. Recurso
muy provisional además, puesto que en 1648 Corneille vuelve a la indicación tradicional,
el tiempo habiendo hecho su obra y la categoría de tragedia ya era capaz de soportar
como variable este hecho original de contra-estándar. Pero la innovación que justificaría
en 1650 la apertura del género comédie héroïque para Don Sanche d’Aragon (acción no
trágica en medio noble; asignación retomada en 1671 para Pulchérie y en 1672 para Tite
et Bérénice) no será aparentemente, si nos fiamos de los títulos de Corneille, jamás
“digerida”. Y se sabe que en el siglo XVIII todavía el drama romántico, cuyas
desviaciones son sin duda más importantes, preferirá reivindicar su plena autonomía más
que apuntar la ampliación de una categoría hasta ese momento depreciada, esperando la
disolución general de las categorías genéricas que caracteriza en nuestros días al teatro.
El otro tipo de reestructuración consiste pues en la ampliación de una categoría genérica
existente por abandono de un criterio de definición, y el que testimonia la admisión, hoy,
corrientemente, de subcategorías tales como pintura o escultura abstracta, música atonal,
música concreta, nouveau roman, non fiction novel, que testimonia lógicamente (como
ya poème en prose) de la capacidad de las categorías genéricas en cuestión (acabar por)
aceptar las modulaciones que indican esos adjetivos, y que son generalmente
modulaciones negativas o sustractivas.
Este segundo tipo de acomodación parece más expandido que el otro, por una
razón histórica bastante clara: las categorías rígidas, que no aceptan ampliaciones por
innovación negativa y que condenan pues a los novadores a unas rupturas francas, son
18

características de las épocas “clásicas”, cuando los artistas son ellos mismos poco
proclives a la innovación (Corneille, último gran “barroco” francés, siendo tan poco
típico), si bien que en general la cuestión de rasgos contra-estándar no se oponen en
absoluto. Inversamente, la época moderna y contemporánea, más proclive a las
innovaciones, y a la vez más moldeable en sus categorías, y por ende más capaz de
integrar los rasgos contra-estándar por vía de ampliaciones genéricas. Las categorías
radicalmente nuevas, como la fotografía y el cine, procede mayormente de innovaciones
tecnológicas tan marcadas que la cuestión de la relación genérica con las prácticas
anteriores no se plantea como problema.
Cuando un rasgo contra-estándar, en lugar de abrir, aunque fuera
provisionalmente, una nueva categoría, determina la amplitud de la categoría existente,
deviene entonces, en esta categoría, no estándar, sino verdaderamente variable, y así pues
estéticamente activo: una vez adquirida la amplitud de la categoría música o pintura, el
hecho de ser tonal o atonal, figurativa o no figurativa, predica estéticamente, en esta clase,
una obra dada. Esta dimensión cultural (de la que habla Walton), inevitablemente variable
según las épocas o los individuos, llega a un final tipo Hume, en la que Walton se esfuerza
de escapar al relativismo categorial que parece desprenderse de su análisis, buscando los
criterios susceptibles de repartir en “verdaderos” y “fasos”, correctos e incorrectos, las
asignaciones genéricas que no dejan de gobernar nuestras interpretaciones y nuestras
apreciaciones de obras de arte.
Estos criterios de corrección son, según él, de cuatro tipo: el primero consiste en
asignar a una obra la categoría que responde al máximo de rasgos estándar; la segunda,
asignarle la que le da la mayor valor estético; la tercera, la más conforme a las intenciones
del artista; la cuarta, la más conforme a las normas clasificatorias de su tiempo.
Ahora bien, el segundo “criterio” de Walton no es necesariamente, como él desea,
un criterio de validez o de “corrección” de asignaciones que le valdrían otras tantas
pertenencias efectivas, sino un motivo de recepción eminentemente subjetivo, en el plano
individual y/o colectivo, que se preocupa poco de “verdad” histórica, sino que desvela
más bien, entre otras, lo que se llama hoy historia del gusto, y de la recepción. Pero la
ambigüedad categorial no afecta sólo a casos límites: se presenta cada vez que dos
receptores, “movilizando” propiedades diferentes de la misma obra, las asignan a
categorías, por ejemplo, estilísticas o expresivas, diferentes, como Arthur Danto7, Afred

7
Arthur Danto, Embodied Meanings, New York, Farar, Straus, Giroux, 1994.
19

Barr y Leo Steinberg frente a las Demoiselles d’Avignon, en la que el primero veía “una
composición puramente formal” y el segundo “un ras de marea de agresividad hembra”
—preguntando no sin razón: “Puede ser que miremos la misma tela?”. Es que en realidad
esta “misma tela” conlleva varios rasgos o haces de rasgos, que pueden conducir a varias
asignaciones, y así pues a varias interpretaciones no inciertas, pero igualmente plausibles,
fundadas sobre “percepciones” igualmente correctas, aunque sin duda incompatibles en
el instante.
La función de la estética no es repartir las interpretaciones, las apreciaciones, ni
las asignaciones, genéricas u otras, en “estéticamente correctas” e incorrectas. Más o
menos conformes a tal o tal realidad histórica, pues, más o menos históricamente
correctas, pueden serlo, y a veces demostrarlas sería cuestión de historia del gusto.
Los juicios de gusto son, con toda evidencia, fisiológicamente, psicológicamente,
sociológicamente, culturalmente, históricamente determinados, y estas determinaciones
merecen ser estudiadas, entre otras por la estética; pero lo que no podría ser determinado,
ni consecuentemente estudiado, es su “validez estética” —expresión que sigo juzgando
contradictoria.
Genette resume que la relación estética en general consiste en una respuesta
afectiva (de apreciación) a un objeto que llama nuestra atención sea cual sea, considerado
en su aspecto —o más bien: a un objeto que llama nuestra atención que es el aspecto de
un objeto cualquiera. Ese objeto puede ser natural o “producido” por el hombre, es decir
resultante de una actividad humana de manipulación y/o de transformación. Cuando el
sujeto de esa relación, erróneamente o con razón, y en el grado que sea, considera dicho
objeto como un producto humano y presta a su productor una “intención estética”, es
decir el objetivo de un efecto o la “candidatura” a una recepción estética, el objeto es
recibido como obra de arte, y la relación se especifica en relación, o función, artística. La
relación estética a una obra de arte (que generalmente llama a otras), cuando su carácter
artístico no es percibido, puede ser una simple relación estética, como la que suscitan
eventualmente los objetos ordinarios —naturales o producidos por el hombre.
Aplicando el concepto de función estética analizado por Gérard Genette,
queremos reivindicar aquí el espacio límbico de indeterminación en el que han quedado
y siguen relegadas algunas escritoras por la presencia del “yo” en su escritura. Se ha
etiquetado, por ejemplo, a Marguerite Yourcenar como modelo de escritura viril por su
eliminación del “yo”, por su menosprecio manifiesto hacia la escritura del sentimiento
femenino. En este sentido otras autoras como Luce Amy (“una sobriedad, una nitidez,
20

una firmeza viril”), Mme Vaucienne (unas estrofas “casi viriles por la construcción y el
aliento”), Martine Cadieu (“una fuerza y una precisión viriles”) fueron saludadas por
Montherlant. ¿Existe una escritura femenina? ¿Por qué una mujer no puede tener una
escritura viril? ¿Puede ser que sea lo que uno recibe lo que es masculino o femenino?
Quizá la escritura femenina dependa de la sensualidad. Colette tiene escritura femenina,
sensualidad femenina. Seguramente nuestro cuerpo pasa a través de nuestra escritura.
El cuerpo de cualquiera que escribe se entiende que debe pasar a través de su escritura. A
no ser que tenga una gran cabeza y nada de sensualidad. Y será una escritura de cabeza,
pero depende del individuo. Colette, por ejemplo, ha hablado bien de su cuerpo.
Siempre se ha hablado del cuerpo, pero cierto feminismo se ha saltado las reglas de la
apreciación estética como lo ha hecho la crítica literaria patriarcal.
Marceline Desbordes-Valmore que nació en 1786, algunos años antes que la
Revolución Francesa y murió en 1859, fue una musa romántica, la mujer y la poeta que
Nadar fotografió en 1854. Fue la contemporánea de Lamartine, y también de Flaubert. Su
obra muestra un Romanticismo8 muy próximo a la Modernidad.

Les roses de Saadi


J'ai voulu ce matin te rapporter des roses ;
Mais j'en avais tant pris dans mes ceintures closes
Que les nœuds trop serrés n'ont pu les contenir.
Les nœuds ont éclaté. Les roses envolées
Dans le vent, à la mer s'en sont toutes allées.
Elles ont suivi l'eau pour ne plus revenir ;
La vague en a paru rouge et comme enflammée.
Ce soir, ma robe encore en est tout embaumée...
Respires-en sur moi l'odorant souvenir9.

En tal poema se puede percibir como manifestación por excelencia de la palabra


lírica, incluida en lo que escapa a las leyes ordinarias de la comunicación y de la
racionalidad.
Nos podemos emocionar también ante estos versos de una sensualidad amorosa
que invita a situarlos en la línea de la poesía femenina que llevaría hasta Anna de Noailles.
Sin embargo, hay que subrayar, y como indica su título “Saadi” el nombre de un autor

8
Chantal Bertrand-Jennings, Un autre mal du siècle. Le romantisme des romancières (1800-1846).
Toulouse, Presses Universitaires du Mirail, 2005.
9
Marceline Desbordes-Valmore, Poésies, prólogo de Yves Bonnefoy, Paris, Gallimard, 1983, p. 181.
Véase también Francis Ambrière, Francis, Le siècle des Valmore. Marceline Desbordes-Valmore et les
siens. Paris, Seuil, 1987; Jenine Moulin, Jeanine, Marceline Desbordes-Valmore, Paris, Pierre Seghers,
1955; Christine Planté, Christine, Marceline Desbordes-Valmore, L’Aurore en fuite. Poèmes choisis. Paris,
Points, 2010.
21

persa. El vestido al que se refiere es el de un sabio y no de una mujer. Es decir que llama
también a otras lecturas, más metafóricas. Notaremos además si volvemos a leer el texto
con atención que no lleva ninguna marca de concordancia en femenino.
Bonnefoy dice, siguiendo a Baudelaire: un impulso que lleva hacia el otro,
una transitividad que lo estructura.
Más allá de la sensualidad que de él emana, se puede considerar que este poema
manifiesta una paradoja central en la poética de Desbordes-Valmore: hace ‘don’ de lo que
la poeta no tiene. Aquí, de lo que el ‘yo’ ya no tiene por haberlo perdido: la rosa.
Esta fábula puede resumir un itinerario poético que, ciertamente, se origina en la pérdida,
pero pérdida remontada de manera siempre frágil, intermitente, siempre por volver a
conseguir, mediante el movimiento de la palabra.
En el artículo “Marceline Desbordes-Valmore” aparecido en la Revue fantaisiste
en 1861, junto a las palabras elogiosas a la obra de la autora, Baudelaire subraya el
carácter sacrílego, de manera general, de la mujer autora: “Parmi le personnel assez
nombreux des femmes qui se sont de nos jours jetées dans le travail littéraire, […] et nos
yeux, amoureux du beau, n’ont jamais pu s’accoutumer à toutes ces laideurs compassées,
[…] à tous ces sacrilèges pastiches de l’esprit mâle” (Baudelaire, 1976: 146). La tarea era
muy complicada para nuestra autora, “[…] puisque ce serait rencontrer plus directement
encore le grand obstacle des femmes qui est, tout simplement, le langage. Dans notre
société, les hommes […] n’en ont pas moins décidé entre eux des valeurs, des idées, des
perceptions, des projets qui donnent structure à la langue ; […] où la femme n’est qu’un
objet10”. Yves Bonnefoy había comprendido y manifestado el carácter patriarcal que regía
la lengua y los estudios sobre la lengua y su utilización, la escritura.
Evidentemente, como tantas otras escritoras, Marceline Desbordes-Valmore era
la presa de un problema de concepción del lenguaje. Si nos acercamos a las referencias a
lo sagrado y al trabajo de creación, vemos que la idea de pecado y la de poder del lenguaje,
dos conceptos presentes en las discusiones sobre la elocuencia durante el siglo XVII,
cuando los tratados desarrollaban las diferencias entre la elocuencia sagrada y la profana,
entre la debida a la inspiración divina y la que nacía del trabajo del orador y los pecados
de la oratoria o lo que se llamó los pecados del púlpito. Porque “les termes formant
l’entour lexical au développement de la notion de sublime ont ceci de commun qu’ils
appartiennent pour l’essentiel au registre des passions : “fureur”, “enthousiasme” ou

10
Yves Bonnefoy, op. cit., p. 10.
22

“véhémence” du côté du locuteur, “ravissement” et “pathétique” pour le récepteur11”;


expresión y recepción que encuentran en el marco de la retórica sagrada una resonancia
específica puesto que para ser inspiración divina la vehemencia del locutor debe
necesariamente ser garantizada en sus principios y ser reconocida como buena por
esencia, lo que dirigió la reflexión hacia los problemas de la noción de voz. Pero la
retórica del púlpito sólo era una noción aplicada a la voz masculina.
Aunque excluyendo a Marcelina de la violencia de la elocuencia o de los bastos
intentos de las mujeres autoras, como lo hace Baudelaire12, es cierto que la escritura de
las mujeres de la época no deja de tener sus eventuales peligros en relación al lenguaje
creador. Si en la cultura occidental el pecado de la mujer fue considerado como la
imprudencia de hablar, fue fundamentalmente, a nuestro parecer, en función del carácter
sagrado de la voz. Numerosos tratados del siglo XVII muestran cómo la asamblea se
conmueve con el discurso que recibe. En estos casos, la “retórica de las pasiones” se
cumple en cuanto que provoca la pasión, o más exactamente, la emoción que siente el
público es el signo del cumplimento de la elocuencia. Estamos pues en el mismo esquema
que plantea Gérard Genette en cuanto a la función estética.
Si bien nos parece que lo que Baudelaire señala en la escritura de Marceline
Desbordes-Valmore es la elocuencia de la Naturaleza, aunque lo enlace con la voz
sagrada y su importancia en el triunfo de la escritura, e incluso aunque subraye en la
autora una cierta falta de trabajo y de elaboración (“[…] Si le cri, si le soupir naturel d’une
âme d’élite, si l’ambition désespérée du cœur, si les facultés soudaines, irréfléchies, si
tout ce qui est gratuit et vient de Dieu, suffisent à faire le grand poète, Marceline Valmore
est et sera toujours un grand poète”) el autor de Las flores del mal sigue diciendo: “Jamais
aucun poète ne fut plus naturel ; aucun ne fut jamais moins artificiel. Personne n’a pu
imiter ce charme, parce qu’il est tout original et natif”.
Si bien Marceline Desbordes-Valmore no está totalmente olvidada. Se puede leer
su obra sin dificultad en ediciones actuales, de bolsillo (lo que supone una consagración),
sin embargo tendremos que convenir que no se le ha atribuido un lugar principal en el
plano de la poesía del siglo XIX.

11
Sophie Hache, La langue du ciel. Le sublime en France au XVIIe siècle, Paris, Honoré Champion, 2000,
p. 146.
12
Charles Baudelaire, Œuvres Complètes, vol. 2, Paris, Gallimard, « Bibliothèque de la Pléiade », 1976,
p. 146.
23

Y cuando figura en las historias literarias, lo que no se da siempre, es la mayoría


de las veces bajo el signo de ‘femenina’. En su caso, la condición de femenina, lejos de
constituir un impedimento, le lleva al reconocimiento, parece ser el motivo principal de
dicho reconocimiento y un motivo de alabanza. Y esto bajo las plumas las menos
sospechosas de complacencia, como la de Barbey d’Aurevilly, gran destructor de bas-
bleu. La de Baudelaire que sin embargo notaba en sus cuadernos íntimos: “la mujer es
natural, es decir, abominable”. Veamos, sin embargo, a Baudelaire hablando de
Desbordes-Valmore, en un artículo aparecido poco después de la muerte de ésta y
recogido posteriormente en L’Art romantique: “Si le cri, si le soupir naturel d’une âme
d’élite, si l’ambition désespérée du cœur, si les facultés soudaines, irréfléchies, si tout ce
qui est gratuit et vient de Dieu, suffisent à faire le grand poète, Marceline Valmore est et
sera toujours un grand poète”. Dicho reconocimiento, este tratamiento de excepción, a
pesar, o, más bien aquí, a través esta identificación a lo femenino, no llega sin
controversia. La tradición literaria francesa reconoce pocas mujeres poetas, ni siquiera,
incluso menos aún, cuando hablamos de periodos mayores de la invención poética:
por ejemplo, el Renacimiento, el siglo XIX, gran parte del siglo XX. Se exceptúan
nombres como Louise Labé, Marceline Desbordes-Valmore, Anna de Noailles, Marie
Noël. ¿Acaso verdaderamente las mujeres son incapaces de escribir? Siendo la poesía
considerada la forma más elevada, la más exigente. Mallarmé, por su parte, hablaría de
poesía como de “un arte que traiciona al sexo”. Entonces, interesarse por Marceline
Desbordes-Valmore, la siguiente mujer poeta, constituye una cierta forma de responder a
esta cuestión. La propia Marceline dedicó un poema a Louise Labé. Además, fue
percibida por sus contemporáneos como una voz que recordaba la de Louise Labé.
¿Mujer-Poeta? En la fortuna de la obra de Desbordes-Valmore, vemos un primer
tiempo ambivalente: Baudelaire elogia lo femenino en ella, pero no exento de reticencias,
y no sin rechazos feos sobre su recepción de obras posteriores. La recepción misógina
que sufrió la obra de Marceline Desbordes-Valmore en su época no debe alejarnos de otra
recepción más preocupante. Efectivamente, no parece más preocupante aún el juicio de
mujeres escritoras del siglo XX: Monique Wittig, saludando a una novelista que ella
tradujo en 1982, Djuna Barnes, La Passion, saludando su capacidad para universalizar lo
femenino retirando a este género “femenino” su “odeur à couvée”, precisando que la
fórmula es de Baudelaire. Lo que hace es transformar la expresión de Baudelaire “chaleur
de couvée”, que el escritor utilizó como indignación de ver a la mujer reducida a una
especie de maternidad instintiva y animal. Una indignación compartida doce años después
24

en el prólogo a una Anthologie de femmes poètes, Lilianne Giraudon y Henri Deluy dicen
“nous sommes bien loin de cette odeur de couvée qu’appréciait Baudelaire chez
Marceline Desbordes-Valmore” para recusar la tesis de una poesía femenina. En cuanto
a Nathalie Sarraute, ésta siente de niña, rememorando un poema de Desbordes-Valmore,
un horror tal que cuando lo evoca dice en uno de los capítulos de Enfance: sentimiento
de abyección y de vergüenza, y calla el nombre de la escritora (se refiere al
poema“Oreiller d’une petite fille” o “Oreiller d’un enfant”).
Existen también apropiaciones de mujeres más positivas. La de Françoise Mallet-
Joris en La Double confidence que dedica la mayor parte a la relación madre-hija, relación
con su madre escritora. Sin embargo, hay que reconocer que en el caso de Desbordes-
Valmore, el reconocimiento a la mujer ha valido el desconocimiento, incluso el rechazo
de la poeta.
Baudelaire, Rimbaud, Verlaine y Aragon (sus pares) elogian la obra de la autora.
Barthes, sin embargo, es cruel en La Chambre claire: “Marceline Desbordes-
Valmore reproduit sur son visage la bonté un peu niaise de ses vers”. Por esta razón, hoy,
insistiendo sobre la posición de mujer de Desbordes-Valmore y lo que su práctica de la
poesía da a esta posición, quisiera no reducirla a esta determinación ni hacer de
“femenino” el nombre dado por comodidad a lo que se percibe en esta obra de
desconcertante, de singular. Es decir, no encerrarla en una convención. Según una
fórmula de Mallarmé, se es iniciador no sólo cuando se dicen cosas nuevas, sino también
cuando se utilizan nuevos medios para decirlo. Esta perspectiva lleva una elección de
formulación, de la que es mejor especificar algunas palabras.
Poetisa: con el uso, ha tomado una coloración sentimental y reductora en el que no es
justo encerrarla.
El doble nombre de Desbordes-Valmore consagra muy fielmente la relación al
mundo y a la escritura de la que así firmaba. Casi toda una parte de la tradición lírica se
juega en la inscripción y en el elogio del nombre. Puesto que inscribirse en la historia
literaria es triunfar al olvido inscribiendo un nombre, es preciso recordar aquí que
Marceline Desbordes-Valmore no publicó bajo seudónimo. No hay anonimato en sus
publicaciones, excepto en algunos poemas del principio. Ella empieza a firmar con su
apellido familiar Desbordes, que ya era conocido por su actividad como actriz de teatro.
Luego utiliza el doble nombre: Valmore es el nombre artístico de su marido, que lo
llevaba de su padre también actor. Firma con sus dos apellidos porque se lo pide su
marido. Con esto queremos señalar que la escritura no es para ella una ruptura con la vida
25

sino una continuidad fuerte y durante toda la vida, en sus más diversos momentos y
aspectos. Todo está asumido, nada es renegado. Ni su edad, ni su físico, ni su historia.
Como delante del objetivo de Nadar. Sin embargo su identidad como autora no coincide
exactamente con su identidad de esposa o actriz. Después de su matrimonio, lleva en los
carteles de los teatros: Valmore-Desbordes. Pero las colecciones de poemas señalan
Desbordes-Valmore que da preferencia al nombre del padre, de la infancia, de la familia,
de los recuerdos de los lugares natales. Teatro y poética antes de conocer a Prosper
Valmore y de casarse con él. Un espacio diferente, relativamente nuevo, en el que
Marceline Desbordes-Valmore vive un nombre dado. Un nombre que la define en su
relación a los demás. Característica suya frente al Romanticismo más exacerbado
exaltando el yo individual.
Desbordes-Valmore no habla nunca sola. Dice que existe al mundo y al lenguaje
más que por el tejido de las relaciones con los demás. Para Desbordes, su propio nombre
es el que le devuelven las voces de los que la han amado y la han llamado. Además, están
los nombres importantes para ella, de escritores, etc. Y los nombres de los amigos, de las
personas más cercanas, de su amiga Albertine por ejemplo. Pero ¿es necesario saber de
su biografía para leer? ¿Es indispensable? No. Sus poemas están sometidos a experiencias
vividas, pero éstos no cuentan su vida. El yo lírico no es un yo autobiográfico, y no hay
que someterlo al examen de la sinceridad ni a encontrar en el texto ninguna confidencia.
Escritura de Mujeres, ¿Mito Reparador y/o Función Artística? Todo dependerá de
cómo queramos leer hoy en día las obras de las escritoras. Hemos visto al comienzo de
este trabajo que Cervantes señalaba la libertad de juicio; hemos seguido el desarrollo de
Gérard Genette sobre los conceptos de predicados estéticos; hemos expuesto los vaivenes
de una recepción estética que a veces cambia cuando cambia la óptica crítica desde la
historia patriarcal de la literatura hasta la crítica feminista en la versión menos
complaciente. La función reparadora de la escritura es inherente al acto de escribir,
masculino o femenino; la función artística dependerá del lector y de su voluntad o
sensibilidad para colaborar en el paso de la relación artística a la función estética.
26

O “MENOR” COMO POTÊNCIA PARA SE PENSAR A HISTÓRIAS


DAS MULHERES

Losandro Antonio Tedeschi / Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD

Doutor em História Latino Americana, coordenador da Cátedra UNESCO “Diversidade


Cultural, Gênero e Fronteiras”. e-mail: tedeschils@hotmail.com

1 - A história menor como potência na História das Mulheres.

Ao aventurar-me a fazer um deslocamento do conceito “literatura menor” para


“história menor”, no sentido deleuzo-guattariano, proponho um exercício que funciona
como um devir, como uma criação, numa reflexão sobre a história das mulheres. Ao
ampliar o sentido de “menor”13, indo além da condição de inferioridade e desvalorização
das mulheres, estamos desconstruindo as noções essencialistas acerca dos gêneros na
história. As grandes narrativas, os grandes textos da historiografia tradicional foram
“canonizados e fecundados”, bem como integrados pela posteridade a uma longa cadeia
evolutiva e linear descrita/escrita no masculino, em nome da razão, da consciência, do
poder, da colonização e da conquista.
Durante muito tempo, foram negadas às mulheres a autonomia e a subjetividade
necessárias à criação, consequência da manipulação e do controle tanto da palavra quanto
da escrita. Isso assegurou a instalação do poder, da lei e do imaginário social na História
(com H maiúsculo) e trouxe, como consequência, a legitimação de uma minoria social
que assegurou, determinou e confinou as ferramentas do pensar, vedando às mulheres o
livre exercício da autonomia do narrar e do escrever. O patriarcado teve, como uma de
suas funções na história, a construção e a reprodução de uma memória implacável,
imóvel, endurecida e controladora da episteme historiográfica.

13
“Menor” é aquela prática que assume sua marginalidade em relação aos papéis representativos e
ideológicos da língua e que aceita o exílio no interior das práticas discursivas majoritárias, formulando-se
como estrangeira na própria língua, gaguejando e deixando emergir o sotaque e o estranhamento de quem
fala fora do lugar ou de quem aceita e assume o não lugar como seu deserto, na impossibilidade de uma
origem. Assim, o escritor ou o artista não precisa efetivamente formar parte de uma minoria, basta
“encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu
próprio deserto” (DELEUZE, GUATTARI, 1977, p. 28-29) para assumir a prática menor. A dimensão
positiva desta prática é que ela carrega em si uma comunidade possível ou um “povo por vir”, segundo a
formulação enigmática de Deleuze e Guattari. Ver: Karl Erik Schollhammer. As práticas de uma língua
menor: reflexões sobre um tema de Deleuze e Guattari. Ipotesi, revista de estudos literários Juiz de Fora,
v. 5, n. 2, 2009, p. 59 a 70.
27

A história oficial construiu uma narrativa legitimista sobre os conceitos de


maior/menor, intimamente vinculados aos mecanismos de seleção e exclusão operados
pelas instâncias de legitimação da “verdade”. Por conseguinte, os critérios balizadores
dessa seleção são predominantemente históricos, contingenciais, ocorridos em um
determinado tempo e lugar. A história das mulheres, por sua vez, narra e revela uma
“história menor”, do silêncio14, uma história do confinamento, arbitrária, cercada de
mistérios e zonas de sombra.
O exercício que faremos aqui é subverter o conceito de “menor”, tornando-o
potente, e compreendê-lo na história das mulheres como aquele que está abaixo da palavra
de ordem e que se localiza fora das imagens impostas pela maioria. Salientamos que não
se trata de uma ideia e de um exercício hermenêutico fundado no binarismo maior/menor,
pois, na concepção deleuziana, o “menor” se realiza sempre dentro do maior,
constituindo-se como estratégia geradora de tensão na língua maior.
Em Kafka: por uma literatura menor Gilles Deleuze e Felix Guattari (2014)
realizam uma inversão do conceito “menor”, entendendo “literatura menor” não como
uma literatura de valor diminuído, mas como a língua de uma minoria diante de uma
língua maior. Os autores, ao definirem sua motivação pela obra de Kafka, fazem-no
procurando realizar uma leitura que se pretende estratégica. Por esse motivo, desmontam,
como a uma máquina, a narrativa kafkiana, para logo remontá-la teoricamente, numa
espécie de exercício hermenêutico cujo intuito é descobrir e articular seus meandros,
agenciamentos e conexões.
Os autores franceses apontam três características principais a serem observadas
para que possamos identificar uma “literatura menor”. Uso-as aqui como base para a
análise que pretendo realizar.
A primeira delas é o componente de “desterritorialização”. Sobre isso, afirmam:

[...] a impossibilidade de escrever de outro modo que não em alemão é


para os judeus de praga o sentimento de uma irredutível distancia com
a territorialidade primitiva tcheca. E a impossibilidade de escrever em
alemão é a desterritorialização da própria população alemã, minoria
opressiva que fala uma língua cortada das massas, como uma
“linguagem de papel” ou de artificio; com mais forte razão os judeus
que, a um só tempo, fazem parte dessa minoria e são dela excluídos,
tais como “ciganos tendo roubado a criança alemã no berço.
(DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35-36)

14
Na acepção de Michele Perrot.
28

A ação de desterritorializar associa-se à problemática da literatura “menor”, pois


implica um deslocamento provocado pela descaracterização cultural em função do espaço
e da língua falada por grupos ou subgrupos étnicos, raciais, sexuais ou culturais que, em
dado momento histórico, acham-se submetidos a um processo de marginalização. Silvio
Gallo (2002), a partir da concepção engendrada por Gilles Deleuze e Felix Guattari, ajuda
a compreender que,

Toda língua tem sua territorialidade, está em certo território físico, em


certa tradição, em certa cultura. Toda língua é imanente a uma
realidade. A literatura menor subverte essa realidade, desintegra esse
real, nos arranca desse território, dessa tradição, dessa cultura. Uma
literatura menor faz com que as raízes aflorem e flutuem, escapando
desta territorialidade forçada. Ela nos remete a buscas, a novos
encontros e novas fugas. A literatura menor nos leva sempre a novos
agenciamentos. (GALLO, 2002, p. 172.)

A desterritorialização é o movimento pelo qual se abandona o território, “é a


operação da linha de fuga”, e a reterritorialização é o movimento de construção do
território (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 224). Abandonar o território é ir ao
encontro do inesperado, do novo. Nesse sentido, tomando como exemplo essa primeira
característica, pensar uma história menor é se desviar do padrão, extrapolar o critério de
medida já conhecido. É criar o novo, de modo que impere a ausência de talentos, de
cânones ou de qualquer tradição balizadora com a qual o/a historiador/a tenha de dialogar.

Jamais nos desterritorializamos sozinhos, mas no mínimo com dois


termos: mão-objeto de uso, boca-seio, rosto-paisagem. E cada um dos
dois termos se reterritorializa sobre o outro. De forma que não se deve
confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade
primitiva ou mais antiga: ela implica necessariamente um conjunto de
artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve
de territorialidade para termos fundamentais como “corpos” e “atos”
nova ao outro que também perdeu a sua. Daí todo um sistema de
reterritorializações horizontais e complementares, entre a mão e a
ferramenta, a boca e o seio. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 41)

Assim, “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes o que uma
minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 35). Ou seja, a
história menor não seria a renúncia ao uso da história “maior”, a oficial — e,
consequentemente, a adoção da história das minorias, que seriam as narrativas das
mulheres, negros, índios, à história padrão —, mas sim o que essa minoria faz dentro do
instituído. A criação de uma sub-versão, de uma contestação, de uma fuga. Trata-se de
29

diferenciar essa história oficial, comprometida com as representações de uma sociedade


sexista e disciplinar, fazendo dela um uso menor. É desterritorializar a história maior,
fugir, escapar do território oficializado, promovendo distorções dentro do código/norma,
desnudando os silêncios, criando torções, deslizamentos, ruídos; enfim, entrando pelas
fissuras.
Uma história menor e desterritorializada no feminino levanta as raízes que a
prendem nas grandes políticas, nos grandes acontecimentos, de fatos históricos
canonizados como verdadeiros. Ela age como uma história menor no território amplo da
história; ela é essa intensidade que atravessa, que cruza um modelo maior e re-cria, na
história oficial, essa história que faz sub-verter e verter novas possibilidades de invenção:
“ir sempre mais longe na desterritorialização [...] por força de sobriedade. Já que o
vocabulário está dissecado, fazê-lo vibrar em intensidade”. (DELEUZE; GUATTARI,
2014, p. 39) A história das mulheres é uma fuga, “uma fuga é uma espécie de delírio.
Delirar é exatamente sair dos eixos, como ‘pirar’”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 51).
É livrar-se da carcaça de uma sociedade disciplinar.

A linha de fuga é uma desterritorialização. O Grande erro. O único erro


seria acreditar que uma linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga
para o imaginário ou para a arte. Fugir, porém ao contrário, é produzir
algo real, criar vida, encontrar uma arma [...]. Fugir não é absolutamente
renunciar a ações, nada maus ativo que uma fuga. É o contrário do
imaginário. È igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros,
mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se arrebenta um
tubo...fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia (DELEUZE;
PARNET, 1998, p. 40).

Construir linhas de fuga, fugir, seria

[...] perder sua estanqueidade ou sua clausura; esquivar, escapar. Se fugir


é fazer fugir, é porque a fuga não consiste em sair da situação para ir
embora, mudar de vida, evadir-se pelo sonho ou ainda transformar a
situação (este último caso é mais complexo, pois fazer a situação fugir
implica obrigatoriamente uma redistribuição dos possíveis que
desemboca — salvo repressão obtusa — numa transformação ao menos
parcial, perfeitamente improgramável, ligada à imprevisível criação de
novos espaços-tempos, de agenciamentos institucionais inéditos; em todo
caso, o problema está na fuga, no percurso de um processo desejante, não
na transformação cujo resultado só valerá, por sua vez, por suas linhas de
fuga, e assim por diante). Portanto, trata-se de fato de uma saída, mas esta
é paradoxal. (ZOURABICHIVILLI, François, 2004, p. 30)
30

A obra Um teto todo seu de Virginia Woolf (1989), propõe “linhas de fuga” aos
padrões do período, negando a dicotomia metafísica entre masculino e feminino, assim
como procurando desconstruir os conceitos já estabelecidos e hierarquizados pelo
eurocentrismo e pelo sexismo masculino. Woolf desconstrói, no que diz respeito ao sexo
feminino, a crença acerca de uma verdade absoluta e universal. A desconstrução15 atua,
justamente, sobre esses conceitos “universais”, através, por exemplo, do esforço para
fazer com que sua plateia e seus leitores entendam que tudo o que foi dito e o que está
sendo dito é, na realidade, uma verdade provisória e localizada, inscrita como opinião.
Arlette Farge (2011), ao falar sobre a história das mulheres, refere que em vários
lugares — nos discursos, nas falas singulares, nas práticas sociais ou por baixo dos
discursos — se encontram embutidas falas (ou a própria oralidade) cujo intuito não é
ilustrar, mas provocar problemas, incitando a busca por outras fontes que se relacionem
com o descontínuo (e, poder-se-ia dizer, com o menor, com uma história menor). A
história deve fomentar novas questões, permitindo assim a observação da dor, do medo,
dos sentimentos, das subjetividades (coisas consideradas como pertencentes ao campo da
literatura). A opinião é um emaranhado de memórias, informações e saberes fabricados
pelas falas, pelos ritos e mesmo pelo silêncio. Farge propõe o estudo da história a partir
de suas descontinuidades, de seus fragmentos:

[...] e se parece existir assim uma cadeia de palavras, esta nada


tem de linear nem de liso; é antes da ordem do esquartejamento,
da individuação, tecendo uma estrutura trágica, dispersa nos
acontecimentos e de falas de que podemos encontrar as condições
de emergência. (FARGE, 2011, p. 89.)

A segunda característica de uma “literatura menor” é o seu componente político,


que se relaciona com o povo. Segundo Gallo (2002) “sua existência é política, seu ato de
ser é antes de tudo um ato político em essência [...] para a literatura menor o próprio ato
de existir é um ato político, revolucionário: um desafio ao sistema instituído” (GALLO,

15
De acordo com o livro De que amanhã... Diálogo, publicado por Jacques Derrida e Elizabeth Roudinesco,
o termo desconstrução foi utilizado pela primeira vez por Derrida em 1967 em Da gramatologia, tendo sido
tomado da arquitetura. “Significa a deposição ou decomposição de uma estrutura. Em sua definição
derridiana, remete a um trabalho do pensamento inconsciente (“isso se desconstrói”), e que consiste em
desfazer, sem nunca destruir um sistema de pensamento hegemônico ou dominante. Desconstruir é, de certo
modo, resistir à tirania do Um, do logos da metafisica (ocidental) na própria linguagem que é enunciada,
com a ajuda do próprio material deslocado, movido com fins de reconstruções cambiantes”. Ver:
DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elizabeth. De que amanhã... Diálogo. Rio de janeiro: Jorge Zahar
2004, p. 9.
31

2002, p.172), a partir do qual “seu espaço exíguo faz de cada caso individual seja
imediatamente ligado à política”. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 36).
Como componente político, uma história menor está associada a um
agenciamento, a um devir-minoritário, que, ao traçar linhas de fuga, implica a
desvalorização, a ausência, a marginalização e, consequentemente, como contraponto, a
valorização de outras estéticas, ideias, narrativas ou, ainda, de outros/as autores/as. Aí
reside a dimensão política que Deleuze e Guattari lhe atribuem: escapa de uma
territorialidade forçada pelas relações de poder, levando a buscas, fissuras e fugas,
possibilitando a invenção de novas forças e adquirindo um estatuto coletivo e público.
Ao falar sobre a história das mulheres, e seus contextos de emergência e
valorização no cenário atual, Françoise Thébaud (2013, p. 58) nos adverte que,

Durante mucho tiempo la história, incluso la relacionada con la


Escuela de Annales, se há descrito en masculino. Confundiendo,
de buena fé, el hombre como ser sexuado (vir em latín) y el
hombre como ser humano (homo), ésta se há presentado como
uma historia general, como un discurso de universalidade. El
historiador-filósofo no há percebido la importância y efectos de
la diferencia de los sexos. El historiador ciudadano no há
concedido lugar alguno a las que, durante mucho tiempo, fueron
consideradas inaptas para la cidadania.

Para a história oficial, o acontecimento histórico que envolvia o feminino estava


em segundo plano, já que vinculado aos afetos, ao privado e ao subjetivo. Essa memória,
essa experiência feminina, transmitida mesmo em silêncio, escapou de uma
territorialidade marcada pelo poder masculino e possibilitou que essas narrativas menores
pudessem construir um devir político, engendrando a construção de uma enunciação
coletiva que se fez não por questões de consciência nacional, mas sim por múltiplas
solidariedades entre as solitárias, as renegadas e as não cidadãs.
Margareth Rago (2015, p. 05) pontua, a partir da historiografia feminista, que se
iniciou uma operação e uma desierarquização dos acontecimentos:

[...] todos se tornam passíveis de serem historicizados, e não apenas as


ações de determinados sujeitos sociais, sexuais e étnicos das elites
econômicas e políticas, ou de outros setores sociais, como o
proletariado-masculino branco, tido como sujeito privilegiado por
longo tempo, na produção acadêmica. Aliás, as práticas passam a ser
privilegiadas em relação aos sujeitos sociais, num movimento que me
parece bastante democratizador.
32

Como afirmam Deleuze e Guattari, Kafka, ao ampliar a narrativa para além de um


narrador ou um personagem — estendendo-a a um grupo de solitários —, escreve para
“esse povo que falta” (DELEUZE, 1993, p. 15), esse grupo reunido sob fronteiras que se
dilatam e se estendem pelo tempo e pelo espaço. Tratam assim os autores das diferenças
produzidas na e pela escrita de Kafka.
Ao trazermos essa análise para o campo das narrativas femininas, vamos aos
poucos mostrando que as suas histórias não dizem respeito somente ao espaço privado,
aos casos de amor, aos cuidados da família, ao servir, ao nutrir e às regras de etiqueta.
Não; há uma outra história agitando-se dentro de uma história maior; uma condição de
invisibilidade e de miséria (seja ela qual for); uma condição política, cultural, econômica,
social, sexual, dentre outras. Há uma potencialidade política, um devir político, uma
história menor que, quando vista pelo microscópico, não revela apenas casos universais,
mas conflitos de gênero que envolvem, de forma complexa, as representações sociais que
produziram seus corpos e suas subjetividades no decorrer da história.
As mulheres, ao escreverem sua história, sendo ousadas e recatadas, desbocadas
e pudicas, sexuais e etéreas, passam a desenhar um devir político como potência. Usam
seus lugares como potência inventiva — a potência de um pensamento “nômade”, aberto
às conexões, que se desvia dos processos de subjetivação manipulantes e ditantes de
regras e condutas do patriarcado. São gestos e movimentos políticos que, por menores
que sejam, escapam pelas frestas e pelos desvios de que nos fala Kafka, e insistem em
produzir novos modos de se conduzirem, de se governarem a si mesmas, de criarem
estratégias como ato político. Funda-se assim um pensamento menor feminino, isto é, um
pensamento da resistência, que se inventa no imprevisível, numa história menor de fugas-
intensivas.
A história menor torna imprescindíveis os pequenos artifícios, as proposições
menores e — por que não? — as inutilidades dadas pelo discurso hegemônico. Esse
processo de singularização, derivado de um todo, faz explodir narrativas, bem como
memórias menores, subalternas16 e múltiplas, quando vistas segundo a perspectiva de
outros sujeitos.
Como é possível pensar, criar, fazer e existir uma outra história que está encoberta
pela história universal? O que pode a história das mulheres? Pensar pelas vias de uma
história menor é atentar para as possibilidades, transformando as pequenas

16
Na perspectiva de: SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2010.
33

experimentações em resistências femininas que subvertem as relações de poder. Deleuze


aponta que o desvio diante do que é majoritário é a vantagem que se apresenta ao menor.
Aí está a importância qualitativa da minoria: desviar-se do padrão, desrespeitar o critério
de medida estabelecido e interiorizado historicamente como natural. É criar o novo e
promover o deslocamento.
Deleuze e Guattari (2012), em Mil platôs, aponta-nos que o micropolítico como
resistência é a vantagem que se apresenta ao menor. O qualitativo menor reside
exatamente nos desvios em relação ao padrão, ao institucionalizado e àquilo que se
estabeleceu como sendo “natural” na relação entre os sexos. O silêncio, neste contexto,
seria então uma maneira de “desterritorialização” que irrompe na história e se impõe
como fundamental na produção e na opção de uma estética do “menor”, trazendo para o
cotidiano a sensibilidade de uma micropolítica, de uma microrrevolução expressa nos
gestos singulares do cotidiano de milhares de mulheres que lutam por respeito e dignidade
em relação a seus corpos e suas mentes.17
A terceira característica do “menor”, para Deleuze e Guattari (2014, p. 38) é o seu
valor coletivo:

Não há sujeito, há apenas agenciamentos coletivos de enunciação — e


a literatura exprime esses agenciamentos, nas condições em que eles
não estão dados fora dela, e em que eles existem somente como
potencias diabólicas porvir ou como forças revolucionárias a construir.

A história das mulheres, como uma história menor, é caracterizada pela partilha
das multiplicidades. “Mesmo um agenciamento singular, fruto de um escritor, não pode
ser visto como individual, pois o um que aí se expressa faz parte de muitos, e só pode ser
visto como um se for identificado também como parte do todo coletivo”, afirma Gallo
(2008, p. 63). E vai além: “[...] os valores deixam de pertencer e influenciar única e
exclusivamente ao artista, para tomar conta de toda uma comunidade. O menor não fala
por si mesmo, mas fala por milhares, por toda a coletividade. Os agenciamentos são
coletivos”.

17
Na atualidade, há uma nova cartografia de inquietudes que buscam repensar as temáticas clássicas do
feminismo — o aborto, a sexualidade, o corpo, a violência, o acesso ao mercado de trabalho ou o trabalho
do lar — em relação a outras problemáticas que antes não existiam. Assim, esses “novos” feminismos
apontam para algumas das novas formas de dominação produzidas pelo patriarcado, assim como para a
necessidade de colocar em marcha outras formas de expressão política e de resistência. Mostram ainda, por
outro lado, que o hiato da falta de memória histórica pode produzir grandes problemas ou ainda mais
lacunas nos movimentos de mulheres ou nos novos feminismos.
34

As mulheres na história, ao falarem sobre si, sobre a morte, sobre a doença, sobre
o amor, sobre a exclusão e as proibições, não escreveram sob categorias universais.
Escreveram sobre um processo múltiplo, que fez ligações com outros modos de vida de
outras mulheres. Singularidades que, ao serem visibilizadas na lente do microscópio,
possibilitam enxergar as complexas relações de gênero em que viviam. Elas não falam de
si, mas sim a partir de situações compostas pelas multiplicidades de um contexto
histórico, de uma situação, ou ainda a partir de seus mundos e de suas circunstâncias. O
sujeito dessa enunciação não está representado somente por elas, mas por várias, e por
isso aquilo que escrevem e dizem assume um valor coletivo.
No prefácio à edição italiana de Mil platôs, Deleuze e Guattari (2012, p. 10)
escreveram o seguinte:

[...] as multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma


unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um
sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao
contrário, processos que se produzem e aparecem nas multiplicidades.
Os princípios característicos das multiplicidades concernem a seus
elementos, que são singularidades; a suas relações, que são devires; a
seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer, individuações
sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a
seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da
árvore); a seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de
intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem
territórios e graus de desterritorialização.

A história das mulheres, pensada como uma história menor, é uma aposta nas
múltiplas formas de narrar o feminino / a história como um rizoma que se conecta e se
interconecta, gerando novas expressões múltiplas. Michelle Perrot (1995, p. 15), ao falar
sobre a história feminina, pontua que

[...] tratava-se inicialmente de tornar visível o que estava escondido, de


reencontrar traços e de se questionar sobre as razões do silêncio que
envolvia as mulheres enquanto sujeitos da história. Isso conduziu a uma
reflexão em torno da história enquanto produto da dominação
masculina, a qual atuava em dois níveis: nível dos próprios
acontecimentos e nível da elaboração deles empreendida pelo relato
(story e history).

Uma história menor é um ato de resistência que tem, no coletivo, o seu valor. As
mulheres, principalmente aquelas que ousaram/ousam, através do movimento feminista
e de outros movimentos, experimentar acontecimentos e vivencias no campo da
35

micropolítica — isto é, no campo do desejo, da autonomia, das linhas de fuga do


instituído, da produção de novas subjetividades/subjetivações — não se sujeitam ao
modelo binário ou patriarcal. Confrontam-se, pelo contrário, com uma outra história, uma
nova fronteira, com linhas de fuga que traçam caminhos novos e inesperados no campo
do desejo e da autonomia: uma espécie de devir-minoritário.
A história das mulheres como uma história menor seria uma espécie de lugar, de
território, marcado por processos de invenção ou experimentação, de movimentos de fuga
às situações impostas pelo patriarcado, que se materializam em ocorrências históricas
individuais ou coletivas. O “menor” na história das mulheres é esse abrir-se às forças e
linhas do devir que nos atravessam e que não têm princípio nem fim. Devir é estar “entre”,
é nomadizar, é sempre uma multiplicidade de fuga e, como tal, é uma “experimentação
vida”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 61.)

FINALIZANDO

Não foi objetivo desse ensaio passar em revista o conceito de “literatura menor”,18
mas promover um exercício de deslocamento conceitual, operando com a noção de
história menor como dispositivo que permitisse pensar a história das mulheres. O termo
“menor”, uma criação da filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2014) é uma espécie
de “conceito-adjetivo”, usado em suas obras como uma ferramenta de análise.
Uma história menor é plural, múltipla. Ela não é única, são várias. Busca, em
lugares diferentes, novas fontes e novas conexões, não se limitando a uma definição
única. Deleuze e Guattari (2014, p.45) apontam que

Trata-se de um devir que compreende, ao contrário, o máximo da


diferença, como diferença de intensidade, atravessamento de um
limiar, elevação ou queda, baixa ou ereção, acento de palavra.
[...] não há mais sujeito de enunciação nem sujeito de enunciado:
não é mais o sujeito de enunciado que é um cão, o sujeito de
enunciação permanecendo um “como” um homem [...] mas um
circuito de estados que forma um devir mútuo, no seio de um
agenciamento necessariamente múltiplo ou coletivo.

A história das mulheres é marcada pelo movimento e tem, por referência, a não
fixidez. Não é possível falar de uma história menor sob a perspectiva de uma totalidade,

O/A leitor/a interessado/a na “literatura menor” pode recorrer ao próprio livro de Gilles Deleuze e Felix
18

Guattari: Kafka por uma literatura menor. Belo Horizonte: Ed Autentica, 2014.
36

nem mesmo por mera transposição de algumas características do que possa vir a ser uma
história das mulheres. É, pelo contrário, no campo dos usos e dos significados que a
história precisa ser problematizada. O que é a história para as mulheres? Se torna para
quem é a história? O que é a história para mim, para o outro?
A história das mulheres como uma história menor toma em conta que o devir
histórico não é processo de homogeneização, mas um discurso emaranhado de
diferenciações, no qual cada fio segue, quebra, enreda, se perde em outro, mistura-se,
“[...] como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E para isso, encontrar
seus próprios pontos de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro
mundo, seu próprio deserto”. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 17)
Pensar a história das mulheres como uma história menor é buscar a des-totalização
das experiências do sujeito universalizante masculino. Ser “menor” ser é plural, múltiplo.
As práticas menores na história das mulheres não querem a oficialização, não querem o
modelo. Elas estão mais voltadas para o campo das possibilidades, desiquilibrando-se,
marcadas por indecisões, rupturas e intervalos: o que pode alguma coisa?
O “menor” na história se exprime na multidão, nas fissuras do possível, e existe
como força subterrânea, subalterna, marginal, caraterizada por fluxos contraditórios,
divergentes, que proliferam e resistem à imposição de um discurso único sobre a verdade.
Podemos supor que a histórias das mulheres, pensada na perspectiva do menor
deleuziano, rompe com os muros do castelo de uma sociedade disciplinar, sexista e
falogocêntrica.
É preciso fazermos experimentações na história das mulheres, com base naquilo
que Deleuze e Guattari chamam de “pensamento nômade” (DELEUZE; GUATTARI,
2012) um pensar associado ao movimento fugidio, a uma história menor que escorrega,
desvia e desliza, e que nos convida à vulnerabilidade de se largar o corpo e o pensamento,
de deixar o pensamento alargar-se, para que se possa pensar de modo diferente em relação
à forma como se pensa. Deleuze nos desafia, a nós, historiadores/as, sobretudo no que
tange à criação, à experimentação e à invenção de [im]possibilidades. Convida-nos,
assim, a construir uma história que veja o passado como capacidade inventiva a partir de
outros sujeitos.
Nessa perspectiva, deve-se pensar a história menor não no sentido de um grupo
excluído da maioria ou subordinado a outro — por um padrão que define que a tal minoria
sejam os negros, as mulheres ou os homossexuais —, mas no sentido de uma variação,
escapando assim do sistema de poder pertencente à maioria. O menor seria então “um
37

devir no qual nos engajamos”, e cujo potencial criador e irruptivo estaria ligado à sua
capacidade de não se render aos mecanismos de poder e de controle. Em suma, a
resistência: manter-se vivo no deserto, como uma máquina de resistência.
A história das mulheres como história menor é a linha de fuga que impede que
sejamos cooptados pelo poder. A opção pelo menor revela uma estratégia afirmativa,
positiva e transformadora, com ênfase nas intensidades e nas fissuras da história.
Compreendê-la, no seu potencial libertário, não apenas permite a autonomia, mas
reafirma práticas que sempre foram, na história das mulheres, o reflexo de uma arte
revolucionária, inventiva e, dentro das suas possibilidades, um importante marco de
resistência.
A história das mulheres como uma história menor é, enfim, uma desbravadora de
caminhos: abre brechas, fissuras e saliências; torna-nos revolucionários/as, conectando-
nos, conjugando-nos, reinventando-nos como sujeitos da história, com autonomia para
além da moral, da opinião e dos poderes que nos produzem. A história das mulheres
ocupa, dessa forma, esse lugar “impróprio”, tolerado, conquistado, que escorrega pelos
labirintos através do fio que conduz nossas vidas e memórias por caminhos até então
inexistentes. É nessa potência do inexistente que reside a história das mulheres na
perspectiva deleuziana, sempre por fazer-se, experimentando-se, recriando-se,
resistindo-se.

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(Versão eletrônica)
40

LÚCIA MIGUEL PEREIRA: INAUGURANDO LINHAGENS NA CRÍTICA


LITERÁRIA ESCRITA POR MULHERES NO BRASIL

Lourdes Kaminski Alves (Unioeste)

O ensaio, esse gênero híbrido e variável tem uma grande relevância para a
configuração da consciência crítica em nosso país. Se o entendermos como uma força de
argumentação que, em última análise, visa questionar, derrubar, neutralizar determinadas
representações que circulam na sociedade, a questão da forma se torna ambivalente.
Contudo, poderíamos dizer que um dos pendores desse gênero está calcado na
possibilidade epistolar, na qual uma voz se dirige a uma escuta. Lembremos de Michel
de Montaigne (1533-1592), cujos ensaios inauguram um novo gênero literário para a
época, uma das obras fundadoras da filosofia moderna. Montaigne e sua escrita ensaística
iniciam um método que passará a ser seguido: a do escritor não especializado que tece, a
partir da experiência de sua vivência, suas reflexões sobre o homem e o mundo. É possível
dizer que aí, encontra-se o ensaio como gênero literário e o ensaio como experiência de
uma escrita de si.
Citamos aqui Montaigne como precursor deste gênero, contudo, é importante
referenciar os ensaios de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), por abordarem temas caros
ao campo das artes, em especial da literatura e sua relação com o social, saber histórico e
visão poética.
São muitos os escritores deste gênero, sobretudo, no campo da sociocrática. Vale
lembrar que o gênero foi eleito por teóricos como Georg Luckács, Theodor Adorno,
Raymond Williams, Walter Benjamin, Roland Barthes, apenas para citar alguns. Georg
Luckács (1968) propunha pensar o ensaio como forma, por outro lado, Theodor Adorno
(2003) afirmava que a lei mais íntima do ensaio é a heresia, sob a concepção do ensaio
vinculado à interpretação ativa e ao discurso crítico.
O discurso ensaístico, por reunir as categorias de vontade de estilo (intenção
estética) e uso pragmático da língua será o grande viés pelo qual circularão as idéias
críticas acerca dos fenômenos ou objetos apreciados. No caso da crítica literária, a
vertente ensaística em vários países tem atingido uma característica peculiar, pelo modo
como autores ao refletirem sobre sua própria obra e sobre a literatura, realizam, ao mesmo
tempo, uma escrita crítica e uma escrita criativa, em que muitas vezes estas duas
atividades se fundem em uma única, deixando aparecer um texto híbrido.
41

De acordo com Silvio Mattoni (2003) o ensaio literário ao se instalar em um lugar


de interferência, entre as impressões subjetivas e os domínios positivos do saber, oferece
a possibilidade de exercer uma crítica cultural que questiona a ordem do conhecimento e
das formas discursivas de sua transmissão, reativando os conflitos e debates culturais sob
a perspectiva particular do escritor.
Atualmente, os textos ensaísticos têm merecido reflexões sobre sua proficuidade
e perenidade, visando reconhecer sua contribuição na vasta produção contemporânea. Ao
debruçarmo-nos sobre escritores e o gênero, constatamos uma quase ausência de
mulheres na atividade da crítica literária ensaística, no Brasil e América Latina.
Desde o século XIX, sempre em contínua reflexão, o discurso crítico brasileiro
permeou dissensões e defesas, se evidenciou por tentativas de atualizações
metodológicas, se embrenhou por constantes caminhos que iam desde a crítica de
costumes a um discurso hermeticamente fechado, contudo sem perder a dicção ensaística
quando a tarefa era a intervenção na esfera pública, razão de ser do intelectual.
Na segunda metade do século XX, no Brasil, vamos encontrar Lúcia Miguel
Pereira (1901-1959)19,precursora de uma crítica literária escrita por mulheres. Em seus
ensaios Lúcia Miguel Pereira, muito ativa politicamente, reflete sobre o papel de escritora
na construção de opinião, como formadora de um pensamento crítico articulando obra,
vida social e práticas culturais contemporâneas.
Nascida em Barbacena, carioca por formação, Lúcia Miguel Pereira foi
colaboradora em diversos jornais e revistas. Expressou, por meio do ensaio, suas
observações acerca das relações entre arte, política e sociedade, distinguindo as reflexões
sobre arte e cultura entre duas guerras, a exemplo dos ensaios - “Tempos de Violência”,
“Duas Gerações”, Espírito Europeu”, “O sonho e a Máquina”, “crise da Europa ou Crise
do Espírito?”. Destacam-se ainda escritos em que reflete sobre vida e tendências literárias,
os escritores e seu ofício e por aí segue, estudando escritores que fizeram poesia e a ficção
brasileira na primeira metade do século XX.

19
Maria Luísa (1933); Em Surdina (1933). Machado de Assis (Estudo Crítico-biográfico) (1936);
Amanhecer (1938); O Livro do Centenário de Eça de Queiroz (1945); História da Literatura Brasileira -
Prosa de Ficção - de 1870 a 1920 (1950); "Prefácio". In: PAIVA, Manuel de Oliveira. Dona Guidinha do
Poço (1951); A Vida de Gonçalves Dias (1952); "Prefácio". In: ASSIS, Machado de. Relíquias da Casa
Velha (1952); Cinquenta Anos de Literatura (1952); Cabra Cega (1954); "Prefácio". In: BARRETO,
Afonso Henriques de Lima. Histórias e Sonhos (1956); Textos escolhidos de Adolfo Caminha (org.) (1960);
"Prefácio". In: PAIVA, Manuel de Oliveira. A Afilhada (1961); "A valorização da mulher na sociologia
histórica de Gilberto Freyre". In: Gilberto Freyre: Sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte (1962). A leitora e
seus personagens (1992); Escritos da maturidade (1995).
42

As observações sobre o ensaísmo em Lúcia Miguel Pereira devem ser


compreendidas como uma constante labuta por parte da autora, que colocou sua visão de
intelectual tanto em ensaios rápidos quanto em livros que tinham como objetivo estudos
mais aprofundados, como Machado de Assis, (Estudo Crítico-Biográfico), (1936), A vida
de Gonçalves Dias (1942), História da Literatura Brasileira: Prosa de Ficção (1870-
1920), publicado em 1950. Escreveu ainda três livros de ficção, sendo eles Maria Luiza
e Em Surdina de 1933; Amanhecer de 1938 e Cabra Cega de 1954. Livros surgidos entre
a composição dos ensaios periódicos, constante trabalho expresso em diversos jornais e
revistas que colaborou, de maneira quase que ininterrupta, por vinte e oito anos.
Essa trajetória crítica de quase três décadas só foi interrompida pela catástrofe de
sua morte, que tirou de cena além de uma voz da intelectualidade feminina de nosso país,
uma pensadora que ajudou a traçar os rumos da crítica literária do Brasil pela sua posição
firme e contundente da nossa ficção e poesia, bem como pelo olhar humano que deu sobre
os temas ao quais ensaiou.
Nos últimos anos, a obra de Lúcia vem sendo recuperada, a exemplo do livro O
Século de Camus – Novos Escritos de Lúcia Miguel Pereira (2015), organizado por
Luciana Viegas, em que a pesquisadora organiza 218 textos inéditos de Lúcia Miguel
Pereira, referentes ao período entre 1947 e 1955. A pesquisadora destaca o texto “As
mulheres da literatura brasileira”, que remete a um projeto nunca concluído de Lúcia
Miguel Pereira, um ensaio sobre a condição da mulher no Brasil. No artigo, Lúcia evoca
escritoras esquecidas e personagens femininas para falar da situação das mulheres no
Brasil colonial e imperial, dos preconceitos que as silenciavam. Lúcia Miguel Pereira
acreditava que o lugar da mulher ainda não estava conquistado na sociedade brasileira e
nisto tinha consciência de seu papel como escritora. Também é importante mencionar o
livro escrito por Edwirgens A. Ribeiro Lopes de Almeida, intitulado O legado ficcional
de Lúcia Miguel Pereira: Escritos da Tradição (2011), em que Edwirgens analisa os
escritos da autora sob o viés da história e das marcas da tradição, sobretudo, configuradas
no tecido narrativo das obras de ficção de Lúcia.
Recentemente, destaca-se a pesquisa de doutorado intitulada Ficção e crítica de
Lucia Miguel Pereira: a literatura como formação (2012), de Juliana Santos. De acordo
com esta pesquisadora, um dos fatores que pode ter contribuído para o pouco destaque
dos romances de Lúcia Miguel Pereira no Brasil é o fato de terem sido publicados em
meio a uma grande valorização de obras que se propunham a denunciar os problemas e a
injustiça na estrutura social, focalizando principalmente as condições de vida miseráveis,
43

seja nos grandes centros urbanos, seja nos confins do Brasil. Assim, uma narrativa que
tematizava os conflitos íntimos e familiares vivenciados no interior de famílias burguesas
do Rio de Janeiro não se enquadrava bem nessas tendências, o que acabou lançando os
seus romances na sombra, ainda que também sejam bastante voltados para questões
sociais, como a discussão acerca do espaço social da mulher ou o confronto entre ideais
conservadores ou de esquerda.
Lucia Miguel Pereira escreveu desvinculada de instituições acadêmicas e
costumava dizer que “Se a Academia não quer saber das mulheres, eu também não quero
saber dela. Para mim, portanto, a Academia não existe”. (SENNA, 1996, p. 44).
Entre os historiadores e críticos literários brasileiros, a produção crítica literária
de Lúcia Miguel Pereira, alcançou merecido reconhecimento, como é possível confirmar
vendo o aproveitamento que muitos críticos e historiadores fizeram de sua produção.
Podemos tomar como exemplos Nelson Werneck Sodré, que recorreu seguidamente às
análises de Lúcia para fundamentar a sua História da Literatura brasileira (1938), ou
ainda Sérgio Milliet, que, no seu Diário crítico, organizado em 10 volumes,
compreendendo suas reflexões de 1940 a 1956, destaca e comenta a ensaísta em diversas
passagens. Estes não são casos isolados, praticamente todos os trabalhos de caráter
historiográfico e analítico da literatura brasileira recorrem às contribuições críticas de
Lúcia Miguel, especialmente às suas análises em Prosa de ficção e nas biografias de
Machado de Assis e de Gonçalves Dias.
No artigo "As mulheres na literatura brasileira", publicado na revista Anhembi, em
dezembro de 1954, Lúcia Miguel Pereira mostra o número quase insignificante de
mulheres que atuaram no terreno das letras brasileiras nos séculos anteriores e o quanto
eram limitadas as suas oportunidades e, mais ainda, a divulgação de suas produções.
Acaba mostrando também o quanto as mulheres de gerações passadas, que apresentavam
muitas semelhanças com as personagens representadas na produção ficcional de sua
época, estavam distantes das mulheres, e das autoras, "numerosas e de valor", de sua
geração, que surgiam num momento em que "ninguém acredita mais na inferioridade
intelectual da mulher" (PEREIRA, 1954b, p. 24-25).
Os papéis sociais de filha casadoura, esposa e mãe fiel começam a ser
questionados em nossa literatura nas décadas de 40 e 50, período em que a romancista,
ensaísta e crítica literária Lúcia Miguel Pereira encontra no romance e no ensaio crítico,
um canal para questionar a censura, os preconceitos e as diversas manifestações
discriminatórias responsáveis pela segregação baseada em questões de gênero. Lúcia
44

Miguel Pereira descobre nas letras um caminho para a militância política feminina,
sobretudo, no exercício da crítica literária, papel social, sobretudo, destinado à figura
masculina nas letras brasileiras.
Em seu ensaio para a coletânea comemorativa dos 25 anos de Casa-grande &
senzala, intitulado "A valorização da mulher na sociologia histórica de Gilberto Freyre",
Lúcia retoma considerações de Freyre acerca da importância da mulher no
estabelecimento das relações e na formação da sociedade brasileira.
Esses artigos e também outros textos da autora, como os publicados na "Crônica
feminina" da revista A Ordem, que não constam nas coletâneas de sua produção crítica,
dão mostras do interesse de Lúcia pela questão da mulher e dos diferentes ângulos de
visão sobre o assunto, tanto no plano político-social quanto no de sua representação
histórica e literária, indicando a importância dessa questão na produção da autora,
conforme demonstram os estudos de Almeida (2011).
Porém, o seu olhar sobre a questão do feminismo e sobre a situação das mulheres
de sua geração não se enquadra perfeitamente nos moldes de uma atitude de luta pelos
direitos da mulher. A ensaísta parece vincular essa discussão a outras que lhe são
complementares, como as reflexões em torno das diferenças sociais, da busca pelas
liberdades individuais, entre outras.
Ela considera as reivindicações feministas como direitos humanos de uma forma
geral, direitos de liberdade e de sobrevivência material, fugindo do debate feminista mais
direto. Ainda que Lúcia não assuma uma defesa da luta feminista, ela ironiza claramente
o ponto de vista de algumas mulheres que não percebem o valor dessas conquistas e que
defendem os antigos moldes de vida da mulher, também ironiza o modo como certos
escritores homens se dirigiam a escrita de mulheres. “[e]nada prova melhor quando somos
toleradas como intrusas na literatura do que o supremo elogio feito a um trabalho
feminino: consiste em dizer-se que até parece escrito por homens” (PEREIRA, 1954,
p. 24).
O argumento expressa uma realidade vivenciada pela própria autora, que, em
muitos momentos, recebeu esse tipo de "elogio". É possível verificarmos isso, por
exemplo, em uma avaliação de Agrippino Grieco, em Evolução da prosa brasileira
(1947), quando caracteriza a ensaísta em meio a um conjunto de críticos brasileiros:
"Lúcia Miguel Pereira, que pensa como um homem e como um homem inteligentíssimo"
(1947, p. 175). A erudição de Lúcia e a forma direta de expressar suas idéias e convicções,
45

assumindo um diálogo em pé de igualdade com seus pares, parecem ser razões para a
forma como foi avaliada enquanto crítica.
Almeida (2911) observa que o próprio fato de ser a única mulher a figurar na lista
de Agrippino Grieco dá mostras do ineditismo dessa presença e explica o desconforto e a
forma como é feita a sua apreciação. O "elogio" recebido por Lúcia também foi destinado
à sua grande amiga e companheira de letras, Rachel de Queiroz.
A dificuldade em se lidar com uma obra de autoria feminina em meio a um
universo quase que exclusivamente masculino também marca a trajetória de Rachel. A
autora, que, juntamente com Lúcia Miguel e Adalgisa Nery, participava dos debates
literários na Livraria José Olympio, causava desconforto à crítica por apresentar uma
ficção que se inseria de igual para igual no universo literário da época, protagonizado até
aquele momento quase que exclusivamente por homens, já que a produção feminina, mais
restrita e associada ao gênero poético e sentimental, não circulava nos grandes debates
culturais. Graciliano Ramos (1970, p. 167) chega a declarar publicamente a sua surpresa
e incredulidade ao descobrir que O quinze era obra de mulher, "e de mulher nova":

O quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos


estragos maiores que o romance de José Américo, por ser livro de
mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria
realmente de mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no
jornal, balancei a cabeça: – Não há ninguém com esse nome. É pilhéria.
Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito
barbado. Depois conheci João Miguel e conheci Raquel de Queirós,
mas ficou-me muito tempo a idéia idiota de que ela era homem, tão
forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura.
Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João
Miguel e O quinze não me parecia natural (RAMOS, 1970, p. 167).

O fato é que, com O quinze, Rachel de Queiroz se apresenta inteiramente afinada


com a produção ficcional da época e surpreende os homens de letras. Já a narrativa
produzida por Lúcia não conhece a mesma apreciação. Se, como ensaísta, é equiparada
aos homens de letras, como romancista, é enfatizada a sua condição de mulher. Isso pode
ter ocorrido, porque a autora, além de focalizar personagens femininas, discute
abertamente questões ligadas à introspecção e à formação moral dessas personagens,
ainda que também revele muitos aspectos da realidade brasileira.
Almeida (2011), observa que Lucia Miguel Pereira costumava repudiar a imagem
cristalizada do juízo e do rigor críticos como atributos masculinos. “Pensar ainda é a
melhor forma de viver” (PEREIRA, 1954, 24), sentenciou, ecoando Pessoa e Valéry.
46

Contra o preconceito e o sexismo, o legado de Lúcia Miguel Pereira é valioso e ainda está
para ser explorado pelas novas gerações de escritores e leitores.
Seria então o romance, gênero próprio para a escrita feminina e o ensaio crítico,
lugar reservado para a escritura masculina? Contudo, Lúcia Miguel Pereira abre espaço
nesta seara e faz uma aproximação entre a face masculina da crítica e a face feminina da
ficcionista, sendo, pois precursora do ensaísmo crítico literário brasileiro escrito por
mulheres, motivando a escritura deste gênero entre mulheres que, na esteira de seus textos
seguiram esta linhagem, a exemplo da ensaísta e ficcionista Flora Süssekind, reconhecida
pelos ensaios sobre a formação de João Cabral de Melo Neto, por meio da sua
correspondência, nos anos 40 e 50, com Manuel Bandeira e Carlos Drummond de
Andrade, sobre o método serial de Jorge Luis Borges e a conceituação literária latino-
americana, entre outros.
Destacam-se na produção de Flora Süssekind (1998), textos críticos em torno da
voz e da seriação, voltado, principalmente, para um motivo temporal comum, para a
preocupação com os modos de (em)formar o tempo, com a relação entre experiência
pessoal, experiência histórica e figurações temporais, com as tensões entre a
narrativizacão e especialização, sequência e série, unidade e heterogeneidade, ritmo e
medidas, extensão e simultaneidade, no interior de alguns exemplos da produção cultural,
sobretudo, moderna e contemporânea.
Na esteira das ensaístas brasileiras, no campo dos estudos da crítica literária, ainda
podemos citar Tânia Pellegrini, cujos ensaios refletem sobre nosso quotidiano povoado
de imagens sedutoras e cambiantes, por meio das quais milhares de informações são
transmitidas com frequência e velocidade inimagináveis. Autora do livro Gavetas vazias
(1996), focaliza as relações ente ficção e política nos anos 70, período marcado pela
repressão e pela censura. Somam-se aos ensaios que focalizam a relação entre literatura
e política, nos anos 70, os ensaios de Walnice Nogueira Galvão (1998). Assim, mesmo
na versão ficcional, o passado de novo se faz presente, impondo-se como necessidade de
reflexão e debate, para não sucumbir, como fato a fugacidade de ser, entre tantas outras,
apenas mais uma versão.
Do conjunto de mulheres escritoras e ensaístas brasileiras, cuja consciência de seu
papel como escritoras e intelectuais é notadamente expresso em suas reflexões,
destacamos Luiza Lobo, autora do conhecido ensaio “A Literatura de Autoria Feminina
na América Latina”. Editora do projeto on-line Literatura e Cultura, contendo a Revista
Mulheres e Literatura, onde se pode consultar um conjunto de ensaios advindos de
47

Projetos de pesquisa como: Autorías femeninas en el campo literario brasileño (siglo


XX). Projeto Integrado de Pesquisa Afro-descendências: raça, etnia na cultura brasileira.
Escritoras cariocas do século XX. Imagens da cidade na ficção de Sonia Coutinho -
Estudo da obra da autora, desde as primeiras obras ficcionais escritas e publicadas na
Bahia, até os livros publicados no Rio de Janeiro e traduzidos para línguas estrangeiras,
tendo como foco o feminismo contido nas propostas da escritora. Destacam-se ainda,
projetos sobre a teoria feminista em face de obras literárias de escritoras brasileiras, como
Rachel de Queiroz, e da literatura de mulheres do ponto de vista da literatura popular e
da história das mentalidades.
Por aí, seguimos com um nome destacado dos estudos de Literatura Comparada
no Brasil, Tânia Franco Carvalhal, que em um dos seus últimos livros O Próprio e o
Alheio (2003), amplia o olhar sobre o comparativismo, investindo reflexões pelos estudos
sobre fronteiras disciplinares, geográficas ou textuais, nos convidando por meio dos
estudos comparados a fazermos a travessia, pensarmos a mobilidade das fronteiras, que
uma vez atravessadas modificam as experiências dos sujeitos enraizados.
O leque de ensaístas, é crescente nas letras brasileiras, a exemplo de Berta
Waldman, citamos, aqui, o Entre Passos e Rastros (2002), obra em que a autora reflete
sobre pontos de intersecção de identidades, línguas, culturas, tradições e imaginários
relacionados à inserção do judeu no país. Desenvolve estudos sobre autores brasileiros
de raízes judaicas, como Clarice Lispector, Samuel Rawet e Moacyr Scliar, entre outros,
completando traços às vezes encobertos da composição da personalidade cultural do
Brasil no século XX.
Preocupada com a questão de uma história de formações da literatura brasileira e
da formação leitora, Regina Zilberman, em seu livro de ensaios A Literatura e o Ensino
da Literatura (2010), reflete sobre os motivos históricos, políticos e socioeconômicos e
o baixo nível de leitura no Brasil. Reconhece a importância de o professor investir no
despertamento do aluno pela leitura, mas, examinando todos os aspectos históricos e
culturais que abarcam questões identitárias.
Outra ensaísta, comprometida em trazer para o debate acadêmico os temas de
literatura e processos identitários é Zilá Bernd. Autora de diversos livros, artigos e ensaios
publicados no país e no exterior, reflete sobre fronteiras da transnacionalidade à
transculturalidade.
48

Estamos aqui diante do questionamento da impossibilidade, em um


mundo globalizado, onde as mobilidades, os trânsitos, os fluxos
migratórios e culturais são constantes, de se pensar as literaturas de
forma estanque, como fazíamos até bem recentemente, e de
estruturar os cursos de letras de nossas universidades, segmentando
(e confinando) as literaturas ao espaço nacional ou linguístico. Diante
do ritmo vertiginoso com que proliferam as transferências culturais,
sobretudo com o advento da internet e de novas formas de comunicação
via redes sociais, urge que (1) enfrentemos as questões ligadas ao
alargamento das fronteiras, que colocam em xeque o conceito de
identidade nacional; (2) repensemos conceitos e práticas da Literatura
Comparada (BERND, 2013, p.213).

Autora considera que o atual contexto das constantes mobilidades étnicas e


culturais nos obriga a repensar o conceito estável de Literatura Comparada, à luz de
conceitos de multi, inter e trans-disciplinaridade e multi, inter e trans-culturalidade.
Nesta linha de pensamento encontra-se Ligia Chiapini (2011), com seus estudos
atuais sobre fronteiras e suas barreiras físicas e simbólicas – problematizando o mercosul
cultural e identidade, refletindo sobre trocas culturais na America Latina.
Para Lúcia Miguel Pereira (1992), a função da crítica é a de esclarecer, divulgar a
produção e incentivar a leitura, mostrar as suas concepções literárias, o seu desejo de
promover a literatura nacional e o debate de idéias, o desejo de conquistar novos leitores
e de contribuir para a sua formação.
As autoras brasileiras aqui citadas constituem apenas um recorte, a fazer coro ao
lado de reconhecidas ensaísta latino americanas a exemplo de: Ana Pizarro, Beatriz Sarlo,
Zulma Palermo, entre outras vozes da intelectualidade crítica feminina a figurar ao lado
de importantes nomes do ensaísmo crítico latino americano.
Estas autoras defendem a proposta de refletir sobre a produção do ensaio como
gênero literário e lugar para elaboração conceitual de uma nova episteme20.
Por exemplo, a pesquisadora chilena Ana Pizarro, professora da Universidade de
Santiago volta seus estudos sobre a situação cultural e a modernidade tardia na América
Latina, ensaios importantes sobre esta problemática encontram-se no livro El Sur y los
Trópicos: Ensayos de cultura latinoamericana (2004). Em 2015, em uma estada no

20
No pensamento de Foucault 1926-1984, o paradigma geral segundo o qual se estruturam, em uma
determinada época, os múltiplos saberes científicos, que por esta razão compartilham, a despeito de suas
especificidades e diferentes objetos, determinadas formas ou características gerais [...]. O surgimento de
uma nova episteme estabelece uma drástica ruptura epistemológica que abole a totalidade dos métodos e
pressupostos cognitivos anteriores, o que implica uma concepção fragmentária e não evolucionista da
história da ciência.
49

Brasil, a pesquisadora palestrou sobre arquivos literários, não como monumentos, mas
como possibilidades para revisão da história.

[...]. Mas os documentos são importantes porque permitem que os


novos críticos os revisem para verificar se são mesmo monumentos, se
aquilo que canonizou determinado autor é definitivamente um clássico.
Estabelecer cânones, ou seja os escritores consagrados, envolve
questões de poderio político e econômico ou impostas por um grupo
social. Durante as ditaduras latino-americanas, nem todos os autores
puderam vir a público. Ou estavam fora do país, ou foram exilados. O
poder instala sua própria narrativa (PIZARRO, 2016).

Ana Pizarro defende que devemos lutar pela memória e que os arquivos literários
são capazes de reunir a memória coletiva, mas também servem aos estudos sobre a criação
artística, podendo também contribuir para a reconstituição histórica.
Soma-se a esta reflexão, os estudos de Beatriz Sarlo, professora e escritora
argentina, uma das mais proeminentes críticas da sociedade e da literatura de seu país,
fundadoras da revista Punto de Vista, em que publicou ensaios sobre literatura e cultura.
Seus ensaios constituem um ensinamento teórico-metodológico para compreensão do
presente. De acordo com Beatriz Sarlo a escrita da história do tempo presente tem como
uma de suas especificidades a presença de uma memória viva que carrega consigo
sua complexidade e diversidade, muitas vezes transformando a memória em algo mais
importante que a reflexão, transformando-a em monumento. Este é um tema trabalhado
em seu livro Tiempo presente (2001).

Pensar o presente nos leva a um exame detalhado e rigoroso sobre


algumas questões gerais que envolvem este ofício no século XXI. I. A
relação entre memória e história; II. O lugar de fala dos historiadores e
intelectuais de modo geral; III. O papel das mídias; IV. A relação entre
contemporaneidade e tempo presente; V. As ciências sociais e o tempo
presente; VI. As relações temporais passado/presente; passado/passado;
presente/presente e presente/futuro. (seria o tempo presente uma lacuna
histórica entre passado e futuro? (SARLO, 2001, p. 102).

Para Beatriz Sarlo, entender e recordar são partes integrantes do ofício do


intelectual do presente. Refletir sobre a história do tempo presente é, em larga medida,
construir uma visão com relação a certa idéia de passado – espaço de experiências –
ou em relação ao futuro – horizonte de expectativas. Para Beatriz Sarlo a aceleração do
tempo produz um vazio do passado que o estudo da memória tenta compensar.
50

Neste sentido, Zulma Palermo, professora emérita da Universidade Nacional de


Salta, Argentina, integrante do Grupo Modernidad/Colonialidad/Descolonialidad21,
propõe refletir sobre a importância de a universidade buscar formas de desarticulação da
colonialidade do saber. Para isto é necessário atentar para três componentes do fazer
acadêmico: sua localização, sua finalidade e aqueles a quem se destina.

Una aproximación a la problemática de la Universidad


Latinoamericana de nuestro tiempo requiere de una condición previa:
La disponibilidad para pensar los estudios universitarios desde un lugar
‘outro’, distinto pero no excluyente del que diseñó el modelo de
conocimiento y la estructura de la universidad centroccidental desde
su fundación en América Latina. [...] Cuestión de fundamental
importancia es la relativa al lugar socio-histórico (la territorialidad)
en el que se encuentran radicadas las universidades en cuestión pues
todo conocimiento supone no sólo un espacio físico sino –y sobre todo
- una experiencia común que define la forma de habitar un territorio
(PALERMO, 2009, p. 229).

Palermo chama a atenção para que fiquemos atentos para a formação de um


discurso que vem sendo gestado pelo “pensamiento decolonial”, orientado a dar forma a
uma “epistemologia de fronteira”, na América Latina, como uma aposta alternativa à
lógica monotópica da modernidade, cuja retórica oculta sua outra face, a da colonialidade.
Em seu livro Desde la otra orilla (2005), encontramos uma sólida reflexão
sobre o pensamento crítico e políticas culturais na América Latina.
Fazendo eco à proposição de Zulma Palermo sobre a formação de um pensamento
decolonial, citamos os estudos de Catherine Walsh, professora da Universidade Andina
Simon Bolivar, Equador, diretora da Cátedra de Estudos da Diáspora Afro-Andina,
estuda as práticas e os saberes das comunidades indígenas e africanas no Equador.
Segundo esta pesquisadora:

La fluida relación entre cultura-identidad-política que manifiesta el


movimiento indígena así como la producción y uso de conocimiento
en dicha relación, por lo general, continúan fuera de los confines
de las instituciones académicas (WALSH, 2006, p. 71 ).

21
“O Grupo Modernidad/Colonialidad/Descolonialidad, constituído no final dos anos 1990 é formado por
intelectuais latino-americanos situados em diversas universidades das Américas, o coletivo realizou um
movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na América
Latina no século XXI: a radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de ‘giro
decolonial’ [...] Defende a ‘opção decolonial’- epistêmica, teórica e política para compreender e atuar no
mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva”
(BALLESTRIN, Luciana. 2013, p. 89).
51

No livro Interculturalidad crítica y (des)colonialidad: Ensayos desde Abya Yala


(2012), a autora reflete sobre as lutas, avanços e desafios de interculturalizar e decolonizar
as instituições e as estruturas do Estado, dando ênfase nas insurgências sociais, políticas
e epistêmicas dos movimentos sociais, povos indígenas, afrodescendentes e outras
minorias do Equador e América Latina, que exigem reconhecimento das diversidades.
Muitos ensaios produzidos por escritoras latino americanas desenham-se como
mapas literários nômades que abandonam o localismo e dialogam com processos
dinâmicos de ressignificação cultural, desestabilizando pressupostos positivos de uma
identidade latino-americana. Para além desses mapas de leitura, em alguns de seus
ensaios, essas escritoras abordam o tema e refletem criticamente sobre as condições de
possibilidade da literatura latino americana no contexto de processos culturais
globalizadores que desestabilizam a demarcação de fronteiras e suas referências
identitárias.
A forma do ensaio como espaço para o desenvolvimento de uma escrita crítica e
criativa tem sido explorada, cada vez mais entre as escritoras e críticas literárias no Brasil
e na América Latina. Neste sentido, a forma do ensaio tem se demonstrado como uma
vigorosa estratégia para pensar e para criar, devido ao seu caráter híbrido, considerando-
se que muitas escritoras encontram no ensaio um lugar para a autobiografia, para
memórias, para o ato criativo e reflexivo e para a construção de um pensamento literário
inserido na temporalidade histórica.
No Brasil é cada vez mais crescente o número de autoras que passam a pensar
sua obra como meio para desenvolver formulações de novas abordagens críticas sobre a
literatura em contextos pós-coloniais, tal como o fez Lúcia Miguel Pereira, para quem “A
pedra de toque da boa crítica é obrigar a refletir, é ser atual como um estimulante do
raciocínio; o seu domínio próprio é a controvérsia” (PEREIRA, 1992, p. 68). Por esse
motivo a construção literária destas escritoras está diretamente ligada a suas vidas e a
práticas culturais contemporâneas, destacando-se a reflexão sobre o papel da autoria e da
profissão de escritoras diante das demandas sociais e políticas da contemporaneidade.
Ao finalizar, proponho duas questões para reflexão. Considerando nossos temas
de pesquisa para quais direções apontam as escolhas teóricas e críticas que iluminam as
obras que estudamos? Quais temáticas são problematizadas nos ensaios literários escritos
por mulheres no Brasil e na América Latina?
52

Referências

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Jorge de Almeida. Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2003, p. 15-46.

ALMEIDA, Edwirgens, A. Ribeiro Lopes de. O legado ficcional de Lúcia Miguel


Pereira: Escritos da Tradição. Santa Catarina: Editora Mulheres, 2011.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. In.: Revista Brasileira de


Ciência Política, n. 11, Brasília, maio-agosto de 2013, p. 88-117.

BERND, Zilá. Afrontando fronteiras da literatura comparada: da transnacionalidade à


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CARVALHAL, Tânia Franco. O Próprio e o Alheio: Ensaios de literatura comparada.


São Leopoldo, Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2003.

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MEMÓRIA E IMAGEM DA MULHER NAS CRÔNICAS DE JULIA LOPES


DE ALMEIDA

Elenita Conegero Pastor Manchope


Doutorado em Letras- Unioeste

Memória e imagem da mulher nas crônicas de Julia Lopes de Almeida

No decorrer dos estudos realizados nesta pesquisa, buscamos compreender a


imagem da mulher nas obras literárias de Julia Lopes de Almeida. Neste capítulo,
apresentamos a coletânea de crônicas intitulada Livro das donas e donzelas (1906), por
meio da qual se pretende rememorar, perceber e destacar os costumes em relação ao
casamento e à educação das mulheres, nas primeiras décadas do século XX, mais
precisamente entre os anos de 1900 e 1910, na consideração dos elementos históricos e
sociais do período.
Partimos do pressuposto de que a memória individual se compõe na interação com
a memória histórica e coletiva. Compreendemos que as crônicas de Julia Lopes de
Almeida apresentam os hábitos e costumes da época, registrados nesse lócus de memória
que são suas narrativas. Stallybrass, analisando as memórias a partir dos vestígios
deixados por objetos pessoais, afirma que os mortos “nos habitam através dos hábitos que
nos legam” (STALLYBRASS, 2008, p. 10). Ao reler as obras de Julia Lopes de Almeida,
trazemos para o presente rastros e vestígios do que essa escritora pensava e como entendia
a mulher no fim do século XIX, na transição para o século XX.
Os estudos de Flusser (1985), Guattari e Rolnik (1986), Barthes (1984) e
Benjamin (1989; 1994) também serão subsídios para a análise das crônicas da autora em
tela. O amparo nesse referencial teórico objetiva fugir a modelos estruturais fechados, ou
seja, explorar novos sentidos, novos significados das obras de Julia Lopes de Almeida.
Dessa forma, reafirma-se a necessidade de dar continuidade ao movimento de
ressignificá-las. Neste estudo, pretende-se olhar para a obra de Julia Lopes de Almeida
em busca da imagem descrita na narrativa e na ilustração para compreender que papel
era atribuído à mulher na vida pública e na vida privada.
O estudo analisa os interstícios das memórias individuais, coletivas e históricas,
presentes nas obras analisadas, a compreensão da imagem da mulher no entrelaçamento
da subjetividade e da singularidade, bem como sua interlocução com a sociedade. Suely
56

Rolnik e Félix Guattari (1986), em Micropolíticas: cartografias do desejo, ao tratarem de


subjetividades e singularidades, afirmam que:

[...] agenciamentos coletivos de subjetividades, que, em algumas


circunstâncias, em alguns contextos sociais, podem se individuar. [...]
Existe a linguagem como fato social e existe o indivíduo falante. A
mesma coisa acontece com todos os fatos de subjetividade. A
subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes
tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por
indivíduos em suas existências particulares. O modo como os
indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma
relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à
subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de
criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da
subjetividade, produzindo um processo que se chamaria de
singularização (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 33).

As tessituras de Julia Lopes de Almeida produzem subjetividades na medida em


que apresentam traços de uma nova mulher como a necessária na sociedade brasileira da
primeira década do século XX. As ideias presentes em suas crônicas tanto podem produzir
subjetividades como singularidades. O que diferencia tais ideias é o modo como cada
mulher as recepciona. Algumas irão recebê-las e as incorporar sem questionamentos, sem
reflexão, o que representa apenas uma subjetividade. Outras terão uma relação com essas
ideias, com seus componentes, de reapropriação, de expressão e recriação, o que as dotará
de uma singularidade. As diferentes mulheres, com diferentes percepções, vivem numa
mesma sociedade, que em tempos de mudanças, num movimento dialético, constrói e
reconstrói a imagem de mulheres.
Para auxiliar na compreensão da história da sociedade brasileira, no momento
em que a autora publica a coletânea de crônicas, recorremos a Needeel (1993), que na
obra Belle époque tropical apresenta alguns aspectos desse período da sociedade
brasileira. Destacamos a questão da educação, a qual o autor considera um importante
elemento para a formação dos sujeitos na reconfiguração da sociedade brasileira na
transição da Monarquia para a República.
A opção pela crônica se justifica pelo fato de que na crônica “tudo é vida, tudo é
motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento
momentâneo de nós mesmos”. E tudo porque “a crônica está sempre ajudando a
estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas”, não necessitando, para
tal, de nenhum cenário especial, já que a perspectiva do cronista “não é a dos que
57

escrevem do alto da montanha, mas do simples rés do chão” (CANDIDO, 1992, p. 14 e


20).
Nas palavras de Candido (1992), a crônica “pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”. Assim, é possível afirmar que
a crônica pode nos auxiliar a compreender a percepção da escritora Julia Lopes de
Almeida, sobre, entre tantos outros temas, o casamento e a educação da mulher naquele
momento histórico.
No decorrer das análises serão incorporadas algumas imagens presentes na
coletânea Livro das donas e donzelas, como forma de captar a imagem da mulher não
apenas a partir da linguagem oral e escrita, mas também da linguagem iconográfica.
Essa possibilidade de leitura por meio da linguagem iconográfica remete à
compreensão de que uma fotografia, ainda que possa ser interpretada apenas como uma
“mera transparência seletiva”, possui elementos que podem ser analisados a depender dos
olhos que a veem. Isso é o que nos ensina Sontag:

Enquanto uma pintura ou descrição em prosa nunca podem ser mais do


que uma simples interpretação seletiva, uma fotografia pode ser
encarada como uma simples transparência seletiva. Mas, apesar da
prescrição de veracidade que confere à fotografia a sua autoridade,
interesse e sedução, o trabalho do fotógrafo não é uma exceção genérica
às relações habitualmente equívocas entre arte e verdade. Mesmo
quando os fotógrafos se propõem sobretudo refletir a realidade, estão
ainda constrangidos por imperativos tácitos de gosto e de consciência.
[...] as fotografias são tanto uma interpretação do mundo como as
pinturas ou os desenhos (SONTAG, 2004, p. 3).

As imagens são fontes de análises das questões pertinentes à mulher. Por essa
razão, são aqui compreendidas como mais uma possibilidade de leitura da realidade.
Destacamos, nesse sentido, que o conteúdo da imagem é mediado pelo olhar do leitor e
por sua interpretação.
Flusser (1985), ao tratar das imagens fotográficas, afirma que imagens são
conjuntos de símbolos com sentidos figurados que podem ser interpretados. O olhar dá
significados de acordo com os fenômenos culturais e sociais que ocorrem através do
tempo. O olhar estabelece relações temporais entre os elementos da imagem, ou seja, um
elemento é visto após o outro. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Imagens
são mediações entre o homem e o mundo.
Almeida, ao tratar do cinema como arte da memória, entende que as imagens
reconstroem à sua maneira a história de homens e sociedades. São imagens e sons da
58

língua escrita da realidade, são também artefatos da memória (ALMEIDA, 1999, p. 9-


10). As imagens trazem da realidade a ambiguidade, a mistura, o conflito, a história.
A coletânea de crônicas de Julia Lopes de Almeida, traz uma imagem da mulher
do século XIX na transição para o século XX, tanto na narrativa quanto nas ilustrações.
A imagem ilustrada na coletânea reforça as ideias da autora ao mesmo tempo em que
possibilita inúmeras interpretações no tempo presente. Nesse sentido, a literatura
possibilita, no presente, a reconstrução da memória, trazendo um novo olhar para a
representação da mulher daquele contexto histórico.
Entre as crônicas presentes na obra, selecionamos aquelas que tratam, direta ou
indiretamente: a imagem da mulher no que diz respeito ao casamento, ao lar e à educação,
usos e costumes, no final do século XIX e no início do século XX.
Nesse período, com a chegada dos imigrantes ao Brasil, houve uma
recomposição das classes sociais. Segundo Needeel (1993), as famílias estrangeiras
francesas e portuguesas, entre outras, uniam seus filhos por meio do matrimônio com os
latifundiários brasileiros e, assim, formavam-se novas alianças.
Nesse período, as famílias cafeeiras passavam por sérias dificuldades,
principalmente a partir de 1880, momento em que as plantações, no Rio de Janeiro,
estavam decaídas, os campos exauridos, restando apenas as lembranças das grandes
riquezas.
Uma alternativa encontrada foi o casamento, meio pelo qual as famílias da elite
procuravam se proteger da decadência econômica. A cidade do Rio de Janeiro passava
por um momento de transição, tanto econômica como cultural. A elite carioca
experimentava novos ares e desejava uma sociedade cada vez mais “civilizada”; seguia
as referências estéticas, culturais e literárias que vislumbrava na Europa. Alguns
acontecimentos seguiam mudando os rumos da vida social, como o surgimento dos
movimentos sociais, as descobertas da medicina e da astronomia, novas diversões, entre
outros. O estilo francês passa a influir na literatura, na educação, e até mesmo a maneira
de se vestir e de se comportar altera-se (NEEDELL, 1993, p. 146).
Revistas e jornais também criavam colunas para tratar especificamente dos
novos costumes, das novas regras sociais. No jornal A gazeta de notícias, havia uma
coluna intitulada “Binóculo”, publicada entre 1907 e 1914, que orientava grande parte da
sociedade quanto às regras de conduta social. Figueiredo Pimentel, autor dessa coluna,
apresenta sua opinião sobre diversos temas: moda, vestuário, comportamento público e
privado, refeições e festas familiares. Na maioria das vezes, as orientações de Pimentel
59

eram seguidas religiosamente. Para Pimentel, o mais importante não era ser rico, ter
posses, mas sim ser uma pessoa bem educada (NEEDEELL, 1993, p. 154).
A coluna publicada no semanário Rua do Ouvidor (1898-1913) também
orientava as pessoas quanto às regras sociais. Tinham acesso a ela leitores ansiosos em se
adequar às mudanças da Belle Époque, geralmente mulheres das novas camadas, média e
alta, da sociedade urbana. Além de apresentar informações relativas às celebridades, à
ópera, aos salões, informavam também normas de polidez. Dentre as normas havia a
orientação de como administrar um lar de elite, etiqueta para receber visitas, oferecer
jantares, servir à francesa ou à britânica, o traje adequado para cada ocasião.
É também nesse contexto que Julia Lopes de Almeida produz suas crônicas, as
quais guardam memórias sobre o casamento, a educação da mulher e a importante tarefa
como educadora dos filhos. Suas ideias a esse respeito serão disseminadas em vários
pontos do país e até mesmo em outros países, como Portugal, França e Argentina22.
Julia Lopes de Almeida interage com as subjetividades produzidas no contexto
histórico, social e político daquele momento de transição da sociedade brasileira e, no
processo de singularização, observa a realidade e a recria em suas crônicas. Num
movimento expressivo, apresenta para a mulher o que lhe cabe, segundo a sua
singularidade: ser uma mulher educada como a época exigia, para ter elementos que
subsidiassem a formação das futuras gerações.
Miriam Moreira Leite, em A condição feminina no Rio de Janeiro: século XIX,
ao tratar das atividades laborais do Brasil, no século XIX, traz informações sobre que
profissões as mulheres estavam desempenhando na sociedade. A autora afirma que:

Existem algumas mulheres profissionais que, sem qualquer ostentação


de ‘idéias avançadas’ estão, pouco a pouco, abrindo caminho na
dianteira. São Paulo tem uma médica bem sucedida e existem duas, com
boa clientela, no Rio de janeiro. Na carreira Jurídica, existem
promotoras que gozam de posição assegurada entre os melhores. As
representantes da ‘nova mulher’ no Brasil não são tão agressivas quanto
as de outros países e não existem Sociedades Sufragistas ou Ligas de
Direitos Femininos, mas a autoridade da mulher brasileira nos ‘direitos
domésticos’ não corresponde mais à criaturinha meiga, que a ficção
pinta, sempre sujeita à vontade soberana de seu amo e senhor (LEITE,
1984, p. 138).

22
Informação retirada do acervo pessoal da autora, em recortes de jornais que noticiavam palestras
ministradas e homenagens recebidas. Como já foi anunciado no primeiro capítulo, até um busto foi erguido
em sua homenagem em Portugal, tendo em vista a importância de seu trabalho na formação das mulheres
portuguesas.
60

Desde o final do século XIX, temos exemplos de mulheres que se libertaram do


jugo masculino, mas parece que são ainda apenas algumas exceções. No entanto, Julia
Lopes parece estar sempre um passo à frente, na luta pela igualdade entre homens e
mulheres, ainda que cada um desempenhe uma função diferente.
A autora, ao introduzir a primeira crônica, denominada “Minhas amigas”,
conversa com as leitoras em um tom de intimidade e uma forma próxima de se relacionar,
o que sugere uma identificação destas com suas obras:

Minhas boas amigas, donas e donzellas, velhas e meninas, perdi o


endereço de algumas de vós; outras... rezemos-lhes por alma, estão
mortas; de sorte que esta carta, de incerta direção, pretende ir até as
portas do céu, na ondulação do acaso e da saudade (ALMEIDA, 1906,
p. 2).

A forma como compõe as personagens da crônica é como se tivesse conversando


com cada uma delas. Até mesmo com o tema da morte sabe lidar com naturalidade,
quando pede orações pelas que partiram desta vida.
As formosuras e as virtudes das amigas, conforme registro das memórias da
autora, receberiam como nome Mocidade ou Primavera e teriam como adjetivos aquilo
que se destacava em cada uma delas:

Para ser suprema a sua formosura ella terá os teus dôces olhos azues,
tão cedo fechados, Elvira; e o teu riso alegre, Maria Laura; e a tua voz,
Janan; e a tua bondade adorável, Marie; e as linhas do teu corpo, Alice;
e doçura da tua tez, Carlota! Terá da negra Josepha, tão triste por não
ser branca, a branca innocencia; e de vós todas, com que topei na minha
infância, a garrula alegria e a trefega imaginação (ALMEIDA, 1906,
p. 9).

No entanto, na crônica “Minhas amigas”, a escritora fala de outro lugar que, como
expressão do mesmo sentimento em relação às amigas, encontra abrigo em suas
memórias. Em tom de confidência, a uma amiga diz:

Crêde, esta carta é um desabafo. Não só voz, minhas queridas, voltejaes


na minha memoria, como nas rondas do collegio; há outros amigos
adorados, invisíveis, de poderosa influencia, a que me lanço com
significativa gratidão: os autores. O primeiro livro lido; as paginas mais
vezes relidas; as musicas que melhor interpretei; os versos que me
fizeram estremecer ou sonhar; singulares sensibilidades, acordadas por
extranhos que amei como amo o sol que me aquece, ou a flor que me
61

inebria, – tudo renasce e passa pelo meu pensamento, numa irradiação


purissima, de devaneio... (ALMEIDA, 1906, p. 9-10).

Na coletânea de crônicas, outro tema abordado são os conventos. Nos fios dessa
tessitura, a autora mostra que o convento nem sempre foi um local apenas de castidade.

Houve tempo em que o convento tinha, como todos os rigores, certos


attactivos, como tudo que é forte e que dominam. Tempos houve
tambem em que elle era menos o logar de reclusão que de galanteio;
então bilhetes amorosos e versos dos torneios perpassavam por entre
aquellas paredes severas, como revoadas de mariposa tontas; e havia
freiras, como a freira Serafina, que, escrevendo a respeito da abadessa
de Santo André, deixava transparecer a convicção de que não é o amor
divino, mas o humano, a melhor e a maior preoccupação de toda a gente,
tanto de lá de dentro como de cá de fora [...] Depois, a mulher não tinha
outros destinos: ou elle ou o casamento (ALMEIDA, 1906, p.18-19).

Para além de apresentar a função do convento, nessa crônica é possível perceber


que a autora faz uma crítica a esse espaço. O que se demonstra é que a função dos
conventos se altera e as freiras podem ser úteis e ser religiosas sem se afastar do convívio
social. A religião deve estar presente nos espaços sociais e não fechada em conventos.

Este egoísmo de esconder as feridas da paixão em logar imperscrutável


ao olhar humano não é digno d’este tempo, em que as almas se
desnudam para o combate, porque hoje não ha santos, ha heroes; não
ha milagres, ha virtudes (ALMEIDA, 1906, p. 22).

Com esta ideia, Julia Lopes de Almeida mostra que está em conexão com as
mudanças em trânsito, já quase fim da primeira década do século XX, quando a sociedade
brasileira entra no clima das ideias de desenvolvimento e progresso, desvinculando-se
das premissas conservadoras, quase sempre fundamentadas pela igreja católica, que,
durante muito tempo, exerceu influência na formação das moças. Mesmo durante o
período da Monarquia, o Estado já debate a desvinculação da religião.
Outra crônica destacada na coletânea Livro das donas e donzelas é a intitulada
“Em guarda”. Nela encontramos um conceito de história e o reconhecimento da
importância de se conhecer o passado dos grandes homens da antiguidade. Observamos,
numa cena do cotidiano, que a responsabilidade pela formação/educação da criança passa
pela ação da mãe. Julia Lopes de Almeida inicia a crônica relatando o episódio que ocorria
entre mãe e filho:
62

Quando, ao cair da noite, a mãe senta nos joelhos o filho amado e o


interroga sobre os feitos do seu dia, para censurá-lo ou aplaudi-lo, como
é feliz quando tem, para fortalecer a sua consciência, e conta-lhe um
fato heroico ou sentimento sublime, documentados por uma simples
noticia de jornal ou uma audição de acaso! A sua alma profética
adivinha que coisa alguma comoverá mais profunda e utilmente o seu
rapazinho do que o saber que no seu tempo, na sua cidade mesmo, à
hora em que ele brincava com o seu pião, ou escrevia os seus temas, ou
dormia regaladamente o seu sono, havia um homem da mesma raça, da
mesma língua, seu semelhante em tudo, que arriscava a sua vida para
salvar a vida de um estranho, escalando janelas incendiadas, atirando-
se às ondas impetuosas, atrevendo-se, enfim, aos perigos de uma morte
horrível e quase inevitável! (ALMEIDA, 1906, p. 53).

Figura 01 Mãe e filho – Gravura do século XVIII23

A autora continua comentando sobre a importância de mostrar para a criança os


feitos dos grandes homens da antiguidade e argumenta que esse conhecimento alimentará
o espírito, no entanto, não tem certeza se terá a mesma utilidade para despertar

23
Fonte: <http://estudodainfancia.blogspot.com.br/2012/08/o-traje-das-criancas.html>. Acesso em: 6 jul.
2016.
63

sentimentos. Nessa passagem, remonta-se à imagem da mulher como a boa mãe, que
conta a história e como isso vai formando o caráter da criança.
A imagem presente na Figura 01 sugere que a mulher deve ser responsável pela
educação dos filhos, no que diz respeito, principalmente, ao despertar para a leitura.
Portanto, podemos inferir que a mãe tem grande influência na formação da criança.
Outra crônica que apresenta vestígios e rastros sobre a imagem da mulher na
sociedade daquela época é “O vestuário feminino”. Nela a autora tece uma crítica sutil ao
movimento feminista e defende a ideia de que a mulher não precisa do figurino masculino
para expressar sua individualidade e sua competência profissional na sociedade:

Basta ver um jornal feminista para toparmos logo com muitos retratos
de mulheres celebres, cujos paletos, coletes e colarinhos de homem,
parece quererem mostrar ao mundo que está ali dentro de um caracter
viril e um espirito de atrevidos impulsos. Cabellos sacrificados à
tesoura, lapelas (sem flôr!), de casacos escuros, saias esguias e murchas,
afeiam corpos que a natureza talhou para os altos destinos da graça e da
beleza (ALMEIDA, 1906, p. 24).

A autora entende que existam profissões em que a mulher necessita de um traje


mais apropriado e que este muitas vezes se aproxima daquele utilizado por homens. Ela
está se referindo às exploradoras, mas demonstra entendimento de que em certas
atividades “as saias impediriam a passadas e os saltos, no labyrinto enredado de cipoaes,
entre todos os obstáculos das florestas erriçadas de espinhos e cortadas de vallos a
transpor” (ALMEIDA, 1906, p. 25).

As calças grossas e as altas polainas são para ellas, portanto, não objeto
de fantasia, mas de comodidade e salvamento. O panno fluctuante do
vestido prendel-as-ia de instante a instante aos troncos e ás arestas do
caminho, e, quando molhado, pesar-lhes-ia no corpo como chumbo
(ALMEIDA, 1906, p. 25-26).

De acordo com Julia Lopes de Almeida, a reprodução do vestuário masculino, que


poderia representar socialmente a “superioridade” em relação a uma fragilidade do sexo
feminino, era desnecessária tanto para atestar as suas qualidades pessoais como
profissional. Nesse posicionamento, a autora demonstra ser uma mulher que luta
cotidianamente por uma valorização das mulheres. No seu pensamento, a mulher deveria
se vestir como mulher até como condição para ser vista, considerada e respeitada em suas
funções fora de casa.\
64

Figura 02 Vestuário feminino24

A Figura 02 apresenta uma fotografia de duas mulheres vestidas elegantemente e


com roupas próprias do vestuário feminino: vestido com cintura bem delineada e
acessórios como cinto e chapéu. Por outro lado, ela ilustra a crônica com mulheres
trajadas com peças masculinas e não deixa de tecer a crítica:

É uma excquisitice muito comum entre senhoras intellectuaes,


envergarem paletot, colete e colarinho de homem, ao apresentarem-se
em público, procurando confundir-se, no aspecto physico, com os
homens, como se lhes não bastassem as aproximações egualitarias do
espirito (ALMEIDA, 1906, p. 23).

24
Fonte: ALMEIDA, 1906, p. 23.
65

Figura 03 Homem e mulher – trajes semelhantes25

A autora não concorda com essa atitude, de usar roupas semelhantes às


vestimentas masculinas, e afirma que o desprezo pelas mulheres que o fazem se deve ao
fato de que destas consideram que são melhores do que aquelas que não são intelectuais
nem profissionais fora do lar ou querem apenas se impor. Para Julia Lopes de Almeida,
toda vez que a mulher tiver que estar em público, deve apresentar-se como mulher.
E continua afirmando:

medicas, engenheiras, advogadas, pharmaceuticas, escriptoras,


pintoras, etc., por amarem e se devotarem ás ciências e ás artes, por que
hão de desdenhar em absoluto a elegancia feminina e procurar nos
figurinos dos homens a expressão da sua individualidade? (ALMEIDA,
1906, p. 24).

O questionamento da autora nos possibilita pensar que, independente dos motivos


que levam as mulheres profissionais a se vestirem semelhante aos homens, a mulher deve
mostrar sua individualidade, se permitindo explorar o mundo masculino, sem
necessariamente anular sua identidade. A roupa pode dizer muitas coisas. O homem26

25
Fonte: ALMEIDA, 1906, p. 25.
26
“Homem”, nesse contexto, compreendido como “ser humano” e não como gênero masculino.
66

pode atribuir diferentes sentidos a este acessório chamado roupa. Stalybrass, em O casaco
de Marx, colabora com essa reflexão quando trata do valor das coisas, mais
especificamente das roupas. Para tanto, o autor trabalha com o conceito de memória no
sentido de que as roupas, além de serem coisas penhoráveis para atender a necessidades
domésticas e símbolo de realização e sucesso, são também o repositório da memória.
Segundo Stallybrass,

Pensar sobre a roupa, sobre roupas, significa pensar sobre memória,


mas também sobre poder e posse. [...] Ser um membro de uma casa
aristocrática, ser um membro de uma guilda, significava vestir-se de
libré, significava ser pago, sobretudo, em roupas. E quando um
membro de uma guilda tornava-se livre, dizia-se dele, ou mais
raramente dela, que tinha sido "vestido" (STALLBRASS, 2008, p. 12).

Olhando por essa perspectiva, podemos afirmar que a mulher vestir-se com trajes
que se aproximavam dos modelos masculinos significava, de certa maneira, também uma
sobrevivência social. A autoridade, o respeito e o valor das pessoas, de certa maneira,
eram medidos conforme o vestuário. Logo, o reconhecimento da mulher, frente às funções
desenvolvidas na vida profissional, fora de casa, dependia da maneira como se vestia.
Dependia ainda de como as pessoas viam e eram vistas pelas outras na vida social.
Ao tecer a crônica sobre a mulher brasileira, Julia Lopes, mesmo ao fazer a crítica
àqueles que julgam que a mulher nasceu apenas para o amor, reconstrói a ideia da dona
de casa, mãe cuidadosa e esposa dedicada. Pelo menos é o que a figura nos possibilita
inferir. A imagem presente na coletânea de crônicas reforça essa ideia tão recente na
época. Dias afirma que as imagens trazem consigo experiências humanas e reconstroem
sentidos ao conjunto da sociedade, quando analisadas em tempos históricos distintos
(SILVA, 2013, p. 24). O pesquisador está se referindo às imagens do cinema, no entanto,
se transpormos para as imagens que ilustram narrativas, dependendo do olhar e do edifício
simbólico presente nas narrações, estas também podem representar determinados modos
da vida social.
Para Dias,

Na obra de arte, as manifestações do passado aparecem como


testemunhas e incorporam diálogos implícitos, citações, evocações,
estilizações, alusões, bem como cruzamentos de experiências estéticas
materializadas numa polifonia de discursos que retêm o tempo e a
história (DIAS, 2013, p. 26).
67

Nesse sentido, as imagens nos levam ao passado, mas não são mais a pura
representação do passado, elas se mesclam com as experiências do historiador, ou do
pesquisador, com as inquietações do presente. Nesse caso, a análise das narrativas da
escritora Julia Lopes de Almeida está permeada pelas inquietações da pesquisadora.
A escritora segue afirmando que a mulher deve ter a alma sã e ser virtuosa para,
dessa forma, salvar homens, filhos e irmãos dos males da sociedade. Para ela, a melhor
forma de manter uma alma sã é por meio do trabalho. As mocinhas pobres são
consideradas moças de sorte, pois desde cedo são obrigadas a usar a inteligência para o
trabalho e o estudo (ALMEIDA, 1906, p. 38). Essa premissa faz parte do ideário
republicano, na transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Após o país sair de
quase quatrocentos anos de escravidão, é necessário disseminar a ideia do trabalho como
algo positivo para o homem livre.
Ainda na crônica “A mulher brasileira”, a autora denuncia que não há
reconhecimento da participação da mulher nos grandes acontecimentos da história
brasileira tais como: independência do Brasil, abolição dos escravos e proclamação da
República. A autora finaliza a crônica demonstrando certa frustração causada por esse
desprezo quanto ao papel da mulher nas transformações sociais.
No entanto, para a formação da nova geração de brasileiros, reafirmamos que,
inclusive a importância dos estudos para a mulher, ocorre em função do enaltecimento do
papel da mulher na formação das crianças, pois, mais que o amor, ela também deveria
dar-lhes a instrução.
No decorrer da pesquisa encontramos indícios de como era entendida a mulher,
ou melhor, o espaço da mulher na sociedade da época. Esposa por amor, por missão
sublime e não por imposição. A própria mulher incorpora a ideia de que a melhor forma
de se realizar como mulher é servir a casa com amor.
Vejamos o que diz José de Alencar no romance As minas de prata:

A mulher é sempre mulher; mudam os usos, as modas, os costumes e


as línguas; mudam os tempos e com eles nós os homens; porém o anjo
frágil e delicado que Deus prendeu à terra é a fênix moral, que
renovando-se em todos os séculos e em todas as eras, remoça a
humanidade, e a purifica (ALENCAR, s/d, p. 21-22).

Apesar de considerarmos e utilizarmos a crônica “Folhas de uma carteira” como


aquela que enfatiza a categoria educação, no seu desenvolvimento, a autora apresenta
68

temáticas relacionadas também a usos e costumes da época. Nesse sentido, ela chama
atenção para o que representa e simboliza o uso do lenço.
O que historicamente se afirmou sobre a submissão da mulher, Julia Lopes de
Almeida, com algumas sutilezas, mostra de maneira diferente. A autora descreve uma
mulher que, sob o nosso olhar, faz um sutil jogo de sedução quando orienta as moças a
não mostrarem os tacões e as botinas, teme o olhar deles para os seus e ironicamente
afirma: “Os homens são terríveis” (ALMEIDA, 1906, p. 97).
Na coletânea de crônicas Livro das donas e donzelas, Julia Lopes de Almeida
apresenta uma coletânea de mulheres, com os temas mais variados possíveis. Podemos
dizer que, desde a criada até a burguesa, a mulher está sendo sempre destacada pela autora
devido à sua capacidade de contribuir no processo formativo dos sujeitos que por ela
passam ao longo da vida. Os usos, costumes, os hábitos e a educação são abordados de
maneira a mostrar o quanto a brasileira tem de qualidades e o quanto estas devem ser
evidenciadas, seja aos olhos do europeu, seja aos olhos do universo masculino brasileiro.
Para a autora, a mulher do século XIX, na virada para o século XX, tem muitas qualidades
ao mesmo tempo em que ainda tem muitas potencialidades a serem exploradas via
educação.
De acordo com Marilena Chauí (1998 apud NOVAIS, 1998, p. 33), “o olhar é, ao
mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para si”, não é o que se vê à primeira vista, mas
o que está dentro do próprio visível. A escolha por fazer a releitura do Livro das donas e
donzelas tinha uma intencionalidade primeira, no entanto, após a leitura e análise
alcançaram-se outros objetivos. Não é mais possível dizer que se trata de um manual de
civilidade. Fomos além e verificamos controvérsias entre o que buscávamos e o que de
fato encontramos. Para olhar para as crônicas, foi preciso despir-se dos valores e
preconceitos próprios do nosso presente e perseguir os passos de Julia Lopes de Almeida.
Saímos do nosso presente, fomos ao passado e trouxemos de volta para o presente uma
nova maneira de ver a mulher na sociedade do final do século XIX e início do século XX.
Olhar para a imagem da mulher, a partir das crônicas de Julia Lopes de Almeida,
possibilitou visualizar as experiências cotidianas, os anseios, os costumes e os papéis
sociais a ela atribuídos. A crônica foi compreendida como um gênero que traz a vida à
tona, com experiência e reflexão. O cronista, conforme vimos em Candido (1992),
descreve os fatos de maneira simples e realista, no entanto, não permanece no simples.
Ele é capaz de sair de uma cena pequena e expandir para singularidades inimagináveis.
69

A subjetividade da escritora cronista interage com as singularidades sociais e


enriquece o olhar do leitor com as relações que estabelece entre a cena particular e a vida
social.

Referências

ALENCAR, José de. As minas de prata. São Paulo: Piratininga, s/d.

ALMEIDA, Julia Lopes. Livro das donas e donzelas. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1906.

ALMEIDA, Milton José. Cinema arte da memória. Campinas, SP: Autores Associados,
1999.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:


Vozes, 1986.

LEITE, Miriam Moreira. (org.) A condição feminina no Rio de Janeiro, século XIX:
antologia de textos de viajantes estrangeiros. São Paulo: Hucitec, 1984.

NEEDELL, Jeffrey D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de


Janeiro na virada do século. Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.

NOVAIS, Fernando A; SEVCENKO, Nicolau. História da Vida Privada no Brasil 3:


República – da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SILVA, Acir Dias da. Tessituras do tempo e a arte da memória. Revista Travessias, vol
7, número 2, 18 edicão/2013. www.unioeste.br/travessias, p. 24-38.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória e dor. Tradução de Tomaz


Tadeu. 3. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
70

AS GRADES E AS VOZES: MEMÓRIA E IDENTIDADE DE


MULHERES PRESAS27

Maria Aparecida de Barros28 (UFGD)

Histórias sempre me encantaram.


O encanto pelas narrativas e a arte de narrar acompanham a espécie humana a
milênios. Em 1936, Benjamin teceu famosas considerações acerca do narrador, e da
possibilidade da extinção da narrativa. Em tempos de pós-guerra, quando a crença na
modernidade e nos avanços tecnológicos se apresentava como uma tábua de salvação,
Benjamin apontou a figura do narrador como alguém capaz de traduzir experiências por
meio da contação de histórias, e também por meio delas, aconselhar e sugerir
comportamentos. A narrativa, que, para Benjamin, teria florescido de forma artesanal,
retrata as características das artes manuais, tecida sem pressa e avessa a impaciência,
sendo assinalada pelo narrador, como um oleiro que deixa a sua marca nas peças que
produz.
Nas narrativas orais partilhadas por mulheres em situação de prisão, meu objeto
de análise durante os estudos do mestrado, foi possível observar o quanto a marca de cada
uma estava presente na narrativa. O ambiente prisional, o cheiro do cárcere se faziam
presentes, mesmo ao narrar as lembranças da infância, as alegrias e as dificuldades da
vida, anteriormente em liberdade. Ouvimos os relatos de dez mulheres que cumpriam
pena na Penitenciária Feminina de Rio Brilhante entre os anos de 2014 e 2015. Entre elas,
oito praticaram tráfico de entorpecentes e duas, homicídio. O critério para a escolha das
entrevistadas foi a frequência na escola, que funciona na Unidade Penal, oferecendo
Ensino Fundamental.
Para realizar a análises das histórias utilizamos a metodologia proposta pela
moderna História Oral. Considerando que a História Oral transforma pessoas simples,
pertencentes às minorias, em personagens importantes e com vivências dignas de serem
partilhadas, entendemos que as histórias vividas pelas narradoras também são
merecedoras de consideração. As experiências relatadas contribuem para que mais
estudos sejam realizados acerca de homens e mulheres pertencentes a grupos sociais

27
Comunicação apresentada ao Simpósio Internacional “INTERCULTURALIDADE E ESCRITA
FEMININA LATINO-AMERICANA: Imaginário e Memória” - Unioeste – Campus de Cascavel.
28
Mestre em Letras- Literatura e Práticas Culturais / UFGD.
71

pouco valorizados, tidos como invisíveis ou desprovidos de registros escritos sobre suas
existências.
Por meio das narrativas orais de história de vida é possível obter outros olhares
sobre algo já acontecido, uma vez que cada pessoa narra tal acontecido a partir da sua
subjetividade, e de seu lugar no espaço social. A construção da narrativa possui as marcas
dessa posição, assim como da percepção que o narrador tem de si e do mundo a sua volta.
Portanto, ao narrar suas memórias atrás das grades, elas voltam o olhar para o passado de
mulher livre, mas não deixam, porém, de considerar situação atual. Ao falar de si, a
depoente tem a oportunidade de se revisitar, fazer uma releitura, e, se julgar necessárias,
projetar alterações em sua trajetória futura.
Nesta comunicação queremos refletir sobre a presença feminina nas memórias que
sobreviveram ao encarceramento e ao processo de mortificação e ao “apagamento do eu”
que ainda resistem nas prisões. A vida na prisão é um constante desafio para manter-se
com lucidez. Nesse sentido, preservar memórias e fatos, é também preservar a história
individual de cada mulher. A memória narrada, ainda que, construída socialmente, parte
da singularidade de cada trajetória.

1. Memória e identidade

A identidade da mulher, privada de sua liberdade, sofre inúmeras mudanças:


precisa se conformar com a distância da família, amigos e de relações sociais importantes
para sua vida, e conformar-se com o isolamento. Tudo é mudado, desde a sua forma de
se vestir, falar, se comportar e sentir. É necessário se adequar à nova realidade, seguir os
padrões de comportamentos já existentes dentro da prisão. Essa atitude, visando à
sobrevivência no cárcere, ocorre muitas vezes de forma inconsciente. Muitas das
mulheres não percebem que estão mudando ao assimilar a cultura da prisão. Com essa
atitude, distanciam-se cada vez mais da cultura da vida em liberdade e os efeitos da
prisionização29 lhes perseguirão pela vida afora, causando danos psicológicos e sociais,
inúmeros e irreparáveis.

29
Por prisionização entende-se os valores, atitudes, bem como os costumes impostos dentro do ambiente
prisional e que são aprendidos e assimilados pelos reclusos como uma forma natural de adaptação e de
sobrevivência ao rígido sistema prisional, incluindo aí as formas de comer, falar, vestir-se, o que pode variar
em diversos níveis, dependendo do tempo de prisão e da aceitação da pena. Essa mudança comportamental,
muitas vezes, acontece de forma inconsciente. Mais sobre o tema podemos ver em BITENCOURT,
C. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. São Paulo: Ed Revistas dos Tribunais LTDA,
1993.
72

Nesse espaço de trocas e negociações, as identidades são permanentemente


desconstruídas, por que não dizer, destruídas e coladas, como cacos de uma peça que se
despedaça violentamente. A identidade da mulher encarcerada nunca mais será a mesma.
Ao rememorar fatos, bem como ao darem para si uma identidade, foi no contexto
social em que elas estiveram inseridas que buscaram as suas referências e não a do
contexto do cárcere. Selecionando, em suas lembranças, algo que as identificasse, o grupo
social foi a base para responderem a essa questão. Como afirma Henry Rousso:

A memória, no sentido básico do termo, é a presença do passado. [...] a


memória, para prolongar essa definição lapidar, é uma reconstrução
psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva
do passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um
indivíduo inserido em um contexto familiar, social, nacional
(ROUSSO, 2006, p. 94).

Durante o processo de esquecimento e rememoração do passado, permanece


apenas aquilo que é importante para cada indivíduo. Em nossa pesquisa, percebemos que
os relatos sobre a presença feminina, em diversas situações da vida das entrevistadas é
frequente. A presença da mãe, ora como mediadora de conflitos ou como refúgio nas
dificuldades, ora como pessoa omissa diante das situações, é um ponto relevante em
diversas narrativas. Entre as questões da entrevista, uma delas perguntava sobre a
presença de adultos contadores de histórias durante a infância das apenadas. Foi notável
a presença de mulheres contadoras de histórias, especialmente as avós.

2. A voz feminina nas memórias abafadas

Nas mãos e nas vozes das mulheres que as criaram, ou de alguma forma fizeram
parte do percurso das narradoras, estava preservada a tradição de seus ascendentes. Essas
anciãs tiveram a missão de legar a cultura familiar, os “causos”, as receitas de família, os
remédios medicinais. Para Mirtha, as lembranças da avó contando histórias estão sempre
presente.

Ela contava as histórias mais tristes, mais como que ela foi criada, por
pessoas estranhas, que naquela época era bem recente que passo uma
das guerra do Paraguai, então era [...] escasso o alimento, eles
acordavam três hora da manhã pra comprá carne, que naquele frio ela
andava descalça, que a mulher que cuidava ela não dava nada pra ela,
ela vivia bem assim no dizê no “alento”, mais sempre contô, sempre
73

ensinô nóis a trabalhá, minha mãe, minhas tias foram criadas por ela
né? Porque o meu avô dexô ela cum quatro criança cedo, e, a vida dela
foi bem triste [...] (MIRTHA, 2014).

As memórias narradas pela avó de Mirtha apresentam tanto a riqueza cultural, ao


falar sobre as lendas e mitos paraguaios, quanto histórica, ao relembrar o modo de vida
durante os períodos críticos em que o Paraguai esteve em guerra. As dificuldades trazidas
pela guerra, a escassez de alimentos e de recursos são marcas que ficaram preservadas na
memória da avó, e que ela rememora junto a sua família. Informações que não são
encontradas nos registros oficiais, relatos abafados pela história escrita.
Também na infância de Arlete a voz feminina da avó lhe contou história de fugas
na guerra30:

Ela contô muito como que eles passava, vinha, se escondendo, veio cum
bando de mulher, ela contava [...], isso aí ela contô bastante pra nós,
como é que era a vida depois da fugida da guerra. Meu pai fugiu, disse
que da guerra [...]. Aí ela contava que [...]quando sabia que vinha os
homi pra atacá, eles curria, se escondia numa casa só, aquele bando de
mulhé, e, fugia, ichi! Muito feio aquilo lá, hein?!
E: Passou necessidades?
Arlete: Hunhum. É, porque tinha que ficá escondida né? Um bando de
muié, ficava tudo junta assim, se escondendo [...]
E: Dentro do Paraguai?
Arlete: É.
E: Ou aqui no Mato Grosso do Sul?
Arlete: Lá no Paraguai. Depois que eles vieram embora pra cá. Aí
contava o que a mãe dela passou. A mãe dela da parte dela eu já não
conheci mais, nem o pai, nem a mãe, só do [...], do finado meu pai que
eu conheci, morô um tempo com nóis ainda, a veia, o veio já tinha
morrido também. Contava, só que eu num lembro direito aquilo lá, eu
era nova ainda, né? Eu num lembro direito dela, eu só lembro o que
minha avó contava, meu pai também, quando tava de boa, contava,
como é que ele fugiu da guerra a cavalo pelos mato. Tudo era de cavalo
naquela época, meu pai dixe que nem existia direito carro, sei lá. Sei
que minha mãe acabô vindo já do Cati [...], do tal do Cativi pra cá.[...]
Sofreram. Do jeito que ela conta sofreram muito viu? Ela falô que
ficava dia, da quando discubria que ia pra’quele lado eles tinha que i
pra otro canto. Ela falô que chegava gente batendo assim na porta, era
cum arma, e, eles tinha que fugi (ARLETE, 2015).

30
É possível que a avó da entrevistada tenha se referido ao conflito armado que ficou conhecido como a
Guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, de 1932 até 1935. Foi o maior conflito armado da América do
Sul no século XX, deixando um saldo de 60 mil bolivianos e 30 mil paraguaios mortos, sendo que a Bolívia
foi derrotada e perdeu parte de seu território.
74

A fuga da guerra a cavalo, pelos matos, revela o medo da morte, o desejo de estar
em paz, o instinto de sobrevivência. A cada vez que as histórias são contadas, são também
revividas. Sentimentos do passado são evocados. A memória ganha novo ânimo.
A mãe de Arlete faleceu aos 98 anos, sob os seus cuidados. A imagem materna
que Arlete traz consigo é de uma mãe severa, rígida na educação e nos costumes, mas que
a defendia dos maus tratos paternos:

Ela me defendia, ela sempre me defendia, meu pai que era muito bravo,
era muito bravo, quarqué coisinha, já vivia cum reião pindurado assim,
se corria dele, era laçado pela perna. Minha mãe me defendia, vixe! [...]
É, sempre a minha mãe me ajudo (ARLETE, 2015).

Adiante, Arlete relata que a mãe também foi uma vítima da violência física e
psicológica do patriarca da família: “Tardão da noite quando ele loqueava, nos surrava
ele, minha mãe levantava, brigava com ele, aí ele brigava com a minha mãe, e assim era”
(Ibidem). A agressão era justificava porque o pai era tomado por uma “loucura”. Também
era a mãe quem lhe contava histórias sobre o passado da família, e quem lhe deu auxílio
com os filhos. A imagem que Arlete constrói de sua mãe e que está presente em suas
lembranças condiz com o que é socialmente esperado para o papel materno: presente,
prestativa, severa, defensora, e Arlete a retribui como uma filha dedicada, que está
próxima até os últimos momentos de vida de seus pais.
Já, nas memórias da narradora Vanuza, a avó conta histórias sobre os costumes e
as comidas típicas de sua cultura:

Lembro. Da minha finada avó. A vida dela era contá história, de quando
morava na Bahia, que é assim, a minha famía é toda misturada, índio,
baiano, minero, é uma mistura, sabe?, então, minha vó era baiana, ela
sempre contava que o pai dela, das comida que ela aprendia a fazê
naquelas tacha de barro, várias coisas assim, que marcô a vida dela e
que ela aprendeu ela ia contando pra gente. Aí pra mim e pros meus
otro irmão que ela contava (VANUZA, 2014).

É importante ressaltar que as memórias que Vanuza guarda de sua avó trazem
presente a história da formação de sua família, o que ela denomina como uma mistura.
Esta miscigenação de culturas comum ao povo brasileiro é bastante rica em costumes,
hábitos alimentares, entre outros e foi esta riqueza de saberes que a avó de Vanuza
transmitiu aos netos. Da mesma maneira, no relato de Rosa, a presença da avó indígena
que lhe ensina os saberes das plantas medicinais, é marcante:
75

Rosa: [...] as muié que se benzia cum ela, era tipo assim, pra dor de
cabeça, pra dor é [...] dor no rim, muié que dizia desregulada tamém,
mulher que passo pobrema de coisa assim por dento, umas coisa lá num
sei como é que ela falava, intão, ela me falava as coisa no mato, isso
aqui é pra tal coisa, isso aqui é pra tal, isso aqui é pra tal coisa.
E: Ela era indígena?
Rosa: Minha vó era indígena pura, aí ela falava pra mim assim, então
quando passo muita gente em casa, e eu pidi pra você um remédio, o
remédio é esse [...] intão, o nome do remédio é tudo em guarani, eu num
sei nenhuma em português. Ela falava esse aqui é tal, esse aqui é tal,
esse aqui é tal, esse aqui é tal, aí quando chegava uma pessoa em casa
assim, falava assim dona A, por isso que eu ponhei o nome da minha
fia de A, dona A eu tô assim, assim, assim, ela vai lá minha fia buscá
aquele remédio assim, assim e eu ia, busca pra ela, né?, aí ela fazia o
benzimento dela, ela fazia o benzimento dela assim, no entardecê do
sol, e, dia de sexta-fera, benzimento [incompreensível] era com ela,
benzia só uma veiz e já sarava, intão minha vó era muito [...], e minha
vó era partera tamém, a minha finada avó, intão [...] ela assim, eu
mesma assim quando tinha alguma eu num procuro muito remédio eu
tomo [...] um remédio assim pra dor de cabeça, se não tive eu procuro
assim, eu vô mais nos remédio jujo sabe? Que ela me passo, que eu sei
que é bom.
E: Remédio o quê?
Rosa: Remédio jujo que a gente fala.
E: Jujo?
Rosa: É. Aí a gente faz um tereré, que a gente toma muito tereré, põe
no tereré ou põe no chimarrão, fai um chá né? Agripinça e tal.
E: E ela passava um raminho?
Rosa: É, ela passava um raminho na cabeça, aí tipo assim, ela dava um
nozinho e jogava pra trás e num olhava, dava um nozinho, jogava pa
trás e num olhava, fazia assim três veiz, aí a pessoa virava de costa, ela
benzia de costa aí fala “agora cê pode i”, era, minha vó era benzedera,
melhor benzedera que existia era ela e ela morreu de câncer, a minha
finada vó (ROSA, 2015).

Falar da avó e das suas qualidades, do seu poder de curar por meio dos
benzimentos, é motivo de orgulho para Rosa, pois a sua avó era alguém que detinha
conhecimentos importantes e capazes restaurar a saúde das pessoas, fato que a torna
alguém especial. Rememorar algo bom do passado dá a ela a oportunidade de trazer a
avó, já falecida, para perto de si, por meio de suas lembranças.
Para Luísa, quando descobriu que era portadora do vírus HIV, era como se tivesse
uma sentença de morte com data marcada, aos quinze anos de idade. A presença da mãe,
a compreensão e carinho da parte de seus familiares foram fundamentais nesse momento
de extremo desespero. Os gritos aflitos e a autoagressão foram formas de punir-se na hora
da angústia.
76

Tereza, na infância, sofreu abusos por parte de seu padrasto, e o silêncio de sua
mãe perante tais abusos foi o motivador para a sua revolta. Ao afirmar: “minha mãe, por
tê filhos, preferiu ficá com o marido”, procura desculpar a mãe, por não ter tomado a sua
defesa, ou seja, foi para garantir o sustento dos filhos que ela optou pelo marido. No
entanto, Tereza também é filha, e é uma filha que foi agredida e precisava do apoio
materno. Ainda que encontre uma justificativa para tal atitude, Tereza se revolta diante
do desdém materno para com a sua dor. Ao ser questionada se mudaria alguma coisa no
seu passado, ela respondeu:

Se eu pudesse mudá, acho que quase tudo, quase tudo eu mudava. Eu


ia cobrá o passado da minha mãe, se eu pudesse voltá lá atrás, eu ia
cobrá dela pa ela sê mais mãe, porque a parte dela foi só por no mundo
né? Intão eu ia falá pa ela sê mais mãe, tomá as responsabilidade de
inducá, dá conselho, pra ela melhorá isso daí, pra que hoje se fosse uma
coisa diferente. Porque se ela tivesse feito isso lá atrás, talvez a nossa
história de vida teria sido otra (TEREZA, 2014, grifo nosso).

O desejo de Tereza é de que sua mãe fosse “mais mãe”, assumisse a


responsabilidade pelos filhos. Nesse sentido, supomos que para ela a imagem de “ser
mãe” é a imagem que a sociedade patriarcal impõe. Em sua voz, ouvimos as vozes que
ditam que a mulher é a principal responsável pela criação, educação e o futuro dos filhos,
tirando do papel paterno tais responsabilidades. Ela reflete também que a vida poderia ter
sido diferente se a mãe tivesse tomado atitudes diferentes, e sobre a mãe recai toda a
responsabilidade pela sua infelicidade. E diante dos maus tratos do padrasto, revela que
a mãe permanecia omissa:

ele não batia de tapa, era um[...] ele puxava meu cabelo, me jogava no
chão, dava chute, murro, é[...] esses tipo de situação que eu passei, que
é uma coisa assim[...] tem hora que doi só de lembrá, que eu num tive
a mãe que chegasse assim e falasse: — Não, você tá errado em fazê isso
com a minha filha [...] Ela concordava. Falava que ele tava me
inducandu, mais eu acho que na situação ali que eu vivia ele já não tava
mais me inducandu, a revolta tava ficando pior (Ibidem, grifo nosso).

Além da mãe não protegê-la das agressões feitas pelo padrasto, elas eram feitas
sob seu consentimento e ainda eram justificadas. O entendimento materno era de que as
punições físicas tinham o propósito de educar. Já para Tereza, só restavam revolta e, hoje,
a dor ao recordar os espancamentos. É a dor pela negligência, pela omissão daquela que
deveria lhe dar amor e acolhimento. Revisitar o passado leva Tereza a refletir sobre o
77

perdão: “hoje eu perdoei, até uns ano atrás eu não perdoei, eu não tinha perdoado, mais
num dianta cê tê tanta mágoa no coração” (ibidem, grifo nosso). Para Paul Ricoeur, o
perdão tem um poder curativo, pois depois dele é possível esquecer, nesse sentido “o
perdão dirige-se não aos acontecimentos cujas marcas devem ser protegidas, mas à dívida
cuja carga paralisa a memória e, por extensão, a capacidade de se projetar de forma
criadora no porvir” (RICOEUR, 1995, p. 7). Perdoar é permitir-se seguirem frente. Tão
importante quanto o ato de perdoar, é o de pedir o perdão, pois quem se dispõe a pedi-lo,
deve estar preparado também para ser rejeitado, para conhecer e conviver com o
imperdoável. Perdoar é saldar uma dívida, para haver a reconciliação e a lembrança sem
a dor.
Mais adiante em sua narrativa, Tereza nos surpreende e revela outra imagem da
mãe, que está presente em um momento de necessidades: “minha mãe foi pra longe, aí
devido ao meu sofrimento de vida cum marido, minha mãe voltô pra perto e, ela voltô
pra perto de mim de novo” (Tereza, 2014, grifo nosso). Podemos notar que o
relacionamento de Tereza com a mãe se mostra conturbado, ainda que ela demonstre
reprovação pelos posicionamentos da mãe, também revela uma face materna preocupada
e solidária que estava próxima de si quando ela, mais adiante, sofreu com o marido.
Na vida de Flora, que também sofreu abusos por parte de um primo, a presença
materna foi essencial, defendendo-a do agressor. Desde a morte de seu pai, a mãe, grávida
de oito meses, criou os quatro filhos trabalhando muito, sem deixar que nada faltasse, e
embora Flora tenha fugido de casa para casar-se, é para a casa materna que ela retorna,
em busca de refúgio quando o seu casamento torna-se inviável. E também depois, quando
presa, a sua mãe está sempre próxima, visitando-a, sempre que possível. Mesmo que dois
dos quatro filhos estejam presos, a imagem materna, para Flora, é a de uma mãe exemplar.
Para Vanda, as poucas lembranças que tem da mãe são da infância numa fazenda,
onde a mãe trabalhava e convivia com o padrasto. Os maus-tratos à mãe eram frequentes,
até que ela faleceu vítima de hemorragia devido a um suposto aborto. A narrativa da morte
da mãe de Vanda é carregada de dor e sofrimentos, elaborada a partir de fragmentos da
memória de uma criança de oito anos, que via a mãe ser espancada constantemente. Ainda
após a morte, foi caluniada pela cunhada que disse ter sido sua mãe quem provocou o
aborto, quando, na realidade, o aborto foi causada por agressões do padrasto:

Ele batia muito na minha mãe de chute na barriga dela, de soco, eu vi


isso daí. Às vezes assim eu penso comigo, eu quiria encontrá e falá pra
78

ela que ela falô isso da minha mãe porque ela tava defendendo o irmão
dela, mais minha mãe, minha mãe, eu acredito que não fez isso, jamais.
Também não sei, eu tinha apenas oito anos, mas eu prefiro acreditá que
não, eu acredito que foi ele que matô a criança dentro dela (VANDA,
2014).

Mesmo que tenha se passado muitos anos, as lembranças dolorosas ainda estão
presentes na memória de Vanda. Este fato aconteceu num passado distante, quando ela
tinha “apenas oito anos”, ela pondera que, talvez até tenha acontecido diferente, ao
justificar-se: “também não sei”, mas, em seu íntimo acredita que a mãe tenha sido
assassinada. Seu processo de rememoração recorre aos sentimentos para narrar algo que
mudou o seu destino. Notamos que a mágoa pela calúnia sofrida pela mãe não cicatrizou,
pois ainda deseja fazer justiça à memória da mãe falecida revelando a verdade por detrás
da morte materna, assim como, do bebê que ela gestava. Ao ser questionada sobre
lembranças do pai, de quem a mãe se separou, se ele agredia a sua mãe, ela revela: “Não.
Não me lembro de nenhum momento o meu pai batendo nela, não me lembro. O meu pai
era uma pessoa muito calma e boa”(Vanda, 2014). O carinho que ficou nas lembranças
de Vanda, em relação ao pai, se contrapõe à mágoa do padrasto, preservada na memória.
Pelo ouvir, a sabedoria e tradição cultural da família é assimilada, e
posteriormente transmitida. A oralidade, segundo Le Goff (2003), consiste na forma
como uma pessoa expressa as suas lembranças, aciona a sua capacidade psíquica para
rememorar, e entrar em contato com o passado (LE GOFF, 2003).
É importante ressaltar também o caráter da união que está presente no conceito de
oralidade, pois essa transmissão de conhecimentos só é possível se os atores estiverem
próximos. Só é possível ouvir se houver tempo, disponibilidade e vontade para abrir os
ouvidos, para sentar junto, para a escuta atenta, seja ela em meio aos trabalhos da lida
diária ou ao final do dia. Escutar requer atenção, intimidade. As diversas histórias fazem
parte do repertório familiar, e de geração em geração, são transmitidas no ambiente
doméstico. Ao falar sobre as dificuldades da vida após a guerra que dizimou o Paraguai,
sobre benzimentos, receitas culinárias ou “causos” de assombração, estas mulheres não
contam apenas histórias, mas, também, reforçam as crenças e os valores que norteiam
suas famílias.
Contar e recontar é um exercício de rejuvenescimento das lembranças, colocando-
as sempre em movimento. Para a Ecleia Bosi, a memória possui um caráter mutante, ao
afirmar que:
79

A memória não é um sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da


sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente
de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais
que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que
povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a
lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que
experimentamos na nossa infância, porque nós não somos os mesmos
de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias,
nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o
passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de
outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI,
1994, p. 55).

O presente, o momento da lembrança, implica na maneira como o fato acontecido


é recordado, as inúmeras experiências vivenciadas após o fato rememorado serão
determinantes na maneira de recordar, pois “já não somos os mesmos”. A narrativa, nesse
sentido, é um reflexo do seu meio social, permeada por diversas vozes, que ajudam a
compor o seu relato.
Estudos de Maurice Halbwachs (1990), sociólogo da tradição da sociologia
francesa, defendem a ideia de memória coletiva, que se forma a partir de influências do
meio social ao qual o indivíduo está inserido; estes estudos não se detêm apenas na
memória em si, como também nos quadros sociais da memória. As experiências do
passado são reconstruídas com as imagens que temos hoje. Destarte, para Halbwachs, a
memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, aquela criada a partir
das relações sociais e do reconhecimento do que cada indivíduo faz dessas relações. Nesse
sentido, a memória narrada possui suas bases no meio social, no qual ela está inserida, ou
seja, a coletividade contribui com os alicerces para que essa memória não se perca.

Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,


que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que
este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros
meios. [...] Todavia quando tentamos explicar essa diversidade,
voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de
natureza social. Dessas combinações, algumas são extremamente
complexas. É por isso que não depende de nós fazê-las reaparecer. É
preciso confiar no acaso [...] a sucessão de lembranças [...] explica-se
sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os
diversos meios coletivos (HALBWACHS, 1990, p. 77).

Considerando que o nosso ponto de vista é mutante, conforme o lugar que


ocupamos e as nossas relações com o meio, é possível afirmar que, o espaço prisional
onde as narradoras se encontram, e, as suas relações com este espaço, são fatores que
80

influenciam na maneira como as memórias são revisitadas, assim como, na maneira como
as vozes femininas são trazidas para as narrativas atrás das grades.

Considerações Finais

As narrativas orais de vida são um instrumento, por meio do qual, as narradoras


podem partilhar as suas vivências. A narrativa, da qual são protagonistas, assume
importância para ser testemunhada. Nesse ato, a mulher, antes invisível e sem valor,
assume a autoria de sua história, e ao contá-la, deixa a sua marca, como o oleiro deixa no
vaso, afinal, são as suas experiências. A presença feminina na memória das narradoras
revisitadas durantes as entrevistas revela o olhar para as marcas maternais que
sobreviveram ora como alento, ora como ressentimento.
É pela memória que se pode saber quem somos, e, construirmos nossa identidade.
As narradoras se encontram privadas de liberdade, contudo, por meio de suas experiências
de vida, são livres ao conceberem uma consciência da identidade que constroem para si.
O passado é como uma tatuagem, relembrando-as de suas origens, de suas histórias e das
vivencias que foram construídas ao longo da vida. Ao revisitarem o passado, revisitam
também as dores das violências, das exclusões e rejeições, e trazem o presente, com a
violência silenciosa de todos os dias atrás das grades e das altas muralhas.
A oralidade, a voz, torna essas narrativas possíveis. Nesse sentido, concordamos
com Hannah Arendt (2010) ao afirmar que, as penas, sejam elas quais forem, tornam-se
suportáveis, se as narrarmos, ou fizermos delas uma história. Nas memórias emergidas
durante as entrevistas, encontramos mulheres, que são mães, filhas e esposas, com
algumas alegrias e diversos sofrimentos, mas que apesar das angústias da prisão, ainda
sonham. Hoje as guerras que elas travam são outras, mas, não menos penosas. Lutam por,
um dia, serem, de fato, livres. Para elas, sair da marginalidade e encontrar saídas para não
retornar à prática de delitos é a grande batalha, para isso contam com os ecos de um
passado, não tão distante, que ensinam a lição da superação.

Referências

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81

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THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992
82

PARTE III
LITERATURA E VOZES FEMININAS: ESCRITA E
CONSTRUÇÕES DE SABERES
83

A DITADURA EM O NOVO SISTEMA DE HILDA HILST

Johnny dos Santos Lima31 - FACALE/UFGD

INTRODUÇÃO

Com o presente trabalho “A Ditadura em O Novo Sistema de Hilst”, buscamos


comparar as marcas da ditadura em sua peça teatral O novo sistema, escrita em 1968,
período em que já estava instaurado o regime militar no Brasil e o mundo vivia em um
momento de guerra, “numa época de busca da brasilidade e estreita vinculação entre arte
e política, que marcou um florescimento cultural até o final de 1968, com a edição do Ato
Institucional nº5 (AI-5)” (RIDENTI, 2003, p.138). É à luz da Literatura Comparada e dos
elos culturais que mostraremos a maneira pela qual a autora utiliza a intertextualidade e
a interdisciplinaridade para contrapor seus pensamentos e reflexão, marcando
culturalmente (na história) seu registro sobre o período militar. Para isso, é preciso ter em
mente que o texto teatral é diferente do texto narrativo, tem suas particularidades, “o
teatro participa das expressões literárias na medida em que adota a palavra como veículo
de comunicação, mas extrapola das fronteiras quando se cumpre sobre o palco”
(MOISÉS, 1981, p. 203). Sendo assim, devemos ter uma nova postura ao fazer a leitura
de um texto teatral para que as significações e as descrições sejam corretamente
interpretadas; é preciso fazer “uma inversão gramatical muito importante: a literatura
teatral transforma-se em teatro literário: o teatro é substantivo; literário, apenas adjetivo,
um elemento, entre outros mais” (ROSENFELD, 2009, p.14). Entretanto, aqui iremos
“assentar que a análise convergirá primordialmente para aspectos literários da peça, ou
seja, encarará a peça enquanto texto” (MOISÉS, 1981, p. 203, grifos do autor), porém,
sem deixar de lado esse olhar específico que o teatro possui. A escolha da análise partindo
dos elementos que compõem a Literatura Comparada é legitimo porque “o Teatro
caracteriza-se por sua ambiguidade, por um hibridismo que deve ser levado em conta
sempre que analisarmos uma peça” (MOISÉS, 1981, p. 203). Assim, o olhar de diversos
diálogos (sociais, culturais, históricos, políticos, literários e etc.) na escrita teatral, deve

31
Aluno regularmente matriculado no Programa de Pós–Graduação em Letras da Faculdade de
Comunicação Artes e Letras, da Universidade Federal da Grande Dourados. Bolsista CAPES/CNPq. Artigo
apresentado como finalização da disciplina de Literatura Compara e Crítica Cultura, ministrada pelo Prof.
Dr. Paulo Bungart Neto.
84

permanecer durante todo o processo de análise. Só assim, perceberemos através da peça


O Novo Sistema que “talvez os anos 1960 tenham sido o momento da história republicana
mais marcada pela convergência revolucionária entre a política, cultura, vida pública e
privada, sobretudo entre a intelectualidade” (RIDENTI, 2003, p. 135), e que talvez por
isso, Hilst escreva uma peça que contrapõe a ciência e o conhecimento.

HILDA HILST E O MOMENTO HISTÓRICO

Destacaremos neste artigo um pouco da vida e obra da autora focada em suas


produções teatrais, com o interesse de ressaltar seu curto, porém, intenso período de
produção no gênero dramático. Hilda Hilst nasceu na cidade de Jaú, interior de São Paulo,
formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), publicou seu primeiro livro
de poesias em 1950 enquanto cursava o bacharelado, atuou em um escritório de
advocacia, mas abandonou a profissão e fez carreira como escritora. Recebeu o Prêmio
Pen Clube de São Paulo, em 1962; durante sua vida como escritora residiu na cidade de
Campinas, onde construiu uma casa que chamou de Casa do Sol, hoje Instituto Hilda
Hilst. Nos anos de 1967 a 1969 a poetisa se aventura na escrita teatral com uma produção
de oito peças, gênero que não escreverá novamente em sua carreira. Em 1967 escreve A
empresa (A possessa) e O rato no muro, encenadas em 1968 no Teatro Anchieta pelos
alunos da Escola de Arte Dramática (EAD/USP) em São Paulo, ano em que escreve O
visitante, Auto da barca de Camiri, O novo sistema e dá inicio As aves da noite, que será
finalizada em 1969, onde escreverá O verdugo (neste mesmo ano receberá o Prêmio
Anchieta de Teatro com a peça, na qual permanecerá inédita em livro até o ano 2000) e
A morte do patriarca, além de ter a peça O rato no muro, encenada no Festival de Teatro
de Manizales, na Colômbia. Percebemos até o momento que Hilst começa uma produção
teatral intensa, a qual a levou a ser reconhecida em pouco tempo também pelo Teatro. Em
1970 acontece a encenação da peça O novo sistema, em São Paulo, no Teatro Veredas.
No ano de 1972, O verdugo é encenado em Londrina-PR e, no ano seguinte, no Teatro
Oficina32, em São Paulo. A partir daí, suas peças serão encenadas em São Paulo, Rio de
Janeiro e Paraná. Depois do período em que experimenta a Dramaturgia, Hilst se aventura
pela ficção e ganha muitos prêmios, por volta dos anos 90 conseguiu fama e repercussão

32
O Teatro Oficina é conhecido pelo diretor/ator/dramaturgo José Celso Martinez Correa (Zé Celso),
fundado em 1958 juntamente com Amir Haddad e Carlos Queiroz Telles, na Faculdade de Direito da USP.
Hoje localizado em São Paulo no bairro do Bixiga e dirigido por Zé Celso.
85

com a escrita erótica, que também lhe rendeu muitos prêmios. Nos anos seguintes, suas
obras de ficção ganham adaptações para o teatro, dando ainda mais destaque à escrita
erótica da autora, na qual ficou mais conhecida. Faleceu em 2004, no Hospital das
Clínicas da Universidade de Campinas (UNICAMP), no entanto, continua sendo
encenada por diversos grupos, não com os textos próprios da autora, escritos para o teatro,
mas com as obras ficcionais que cada vez mais ganham adaptações para o mundo do
teatro.
Diante de toda essa trajetória, é importante ressaltar que as peças que Hilst escreve
estão inseridas no contexto histórico/cultural da ditadura militar, tornando-se essencial
levantarmos alguns pontos específicos desses anos:
Em 1967, “as denúncias de torturas são 50. Um desaparecido, dois mortos em
quartéis. Um deles, dado por suicida, enforcado na cela” (GASPARI, 2002, p.386). Neste
ano é promulgada a nova Constituição, o general Costa e Silva toma posse da Presidência
da República, acontece o XXIX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE)
clandestinamente. Os Estados Unidos da América tem cerca de 500 milhões de homens
na guerra do Vietnã, mesmo com o manifesto dos americanos contra a guerra. Este é um
período marcado pelas manifestações literárias na América Latina como resposta ao que
acontecia no mundo e no continente latino-americano, como exemplo temos Gabriel
García Marquez que publica Cem anos de Solidão.
No ano seguinte, 1968, o estudante Edson Luis de Souto é morto no Rio de
Janeiro por um Policial Militar, desencadeando uma marcha com cerca de 50 mil pessoas
em repudio a ação violenta dos policias a mando do governo, as greves se instauram pelo
país, há a passeata dos 100 mil, começam os atentados aos teatros, os atores de Roda Vida
são espancados e tem o teatro depredado, o teatro Opinião é destruído, cerca de 920
estudantes que participavam clandestinamente do XXX Congresso da UNE em Ibiúna
são presos, com a instauração da censura pelo AI-5: “o regime instituiu rígida censura a
todos os meios de comunicação, colocando um fim à agitação política e cultural do
período” (RIDENTI, 2003, p.152), artistas como Caetano Veloso e Gilberto Gil são
presos. Geraldo Vandré atrai multidões no Maracanãzinho com a música “Para não dizer
que não falei das flores”. “O ano termina com 85 denúncias de torturas. Morreram 12
manifestantes nas ruas, e o terrorismo matou seis militares e dois civis” (GASPARI, 2002,
p. 388).
Em 1969, ano conturbado, com a reorganização da UNE e o decreto de Lei N.477
que dispunha de infrações disciplinares para serem praticadas em alunos, professores,
86

funcionários e empregados da educação, que poderiam sofrer penalidades. Costa e Silva


é diagnosticado doente e a Junta Militar assume o poder e impede que o vice – presidente
tome posse. O embaixador americano Charles Burke Elbrick, foi sequestrado no Rio de
Janeiro, em 04 de setembro. O Ato Institucional N.14 prevê a pena de morte. O General
Emílio Garrastazu Médici é empossado Presidente da República.
Diante do cenário em que o país se encontrava, podemos perceber que Hilst foi
também audaciosa, sinônimo de resistência e ainda assim conseguiu ser premiada pela
sua escrita teatral, para Anatol Rosenfeld (2009) “é um teatro diferente do que se fez/faz
aqui” (p.389), como afirmaremos mais adiante.
Para a realização do trabalho de pesquisa “A Ditadura em O Novo Sistema de
Hilst”, passaremos pelos conceitos de intertextualidade, interdisciplinaridade, dentro da
área da Literatura Comparada, que percorrem também os estudos culturais como base
teórica, a fim de pensar como a escrita teatral da autora perpassa esses campos da teoria
literária. Para isso é preciso entender que “os textos funcionam, então, como unidades
necessárias à própria existência da rede cultural. São recortes que se fazem, e aos quais
se atribuem uma integridade, um sentido, uma função” (CURY, PAULINO, WALTY,
1995, p. 15). A colocação se faz jus, quando pensamos que a autora escreve seus textos
no período de ditadura militar, fazendo com que suas peças ganhem uma função social e
cultural na época. Desta maneira, “a literatura nasce da literatura; cada obra nova é uma
continuação, por consentimento ou contestação, das obras anteriores, dos gêneros e temas
já existentes. Escrever é, pois, com a literatura anterior e com a contemporânea”
(PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94). Hilst escreve além do seu tempo por fazer uso da
intertextualidade, termo empregado por Julia Kristeva que, segundo Perrone-Moisés
(1990), retoma as propostas de Bakhtin, conceito que afirma que “todo texto seria
construído por um mosaico de citações, com absorções e transformações”, sendo uma
escritura – réplica de outros textos (p. 94). Contudo, não há como falar em teatro sem
falar em interdisciplinaridade, uma vez que o teatro faz uso de várias outras artes para se
compor enquanto arte legítima, assim:

[...] interdisciplinares são aqueles saberes que, a exemplo dos estudos


literários e culturais, se constituem na mobilidade de um espaço
intervelar, nos interstícios e bordas das disciplinas positivas e
consolidadas. São saberes forjados num “entre-lugar” epistemológico,
marcado pela impossibilidade daquele fechamento absoluto almejado
pelo campo disciplinar cientificista. Dessa forma, os estudos literários,
em particular os da literatura comparada, e os estudos culturais
87

evidenciam o caráter fluido e esgarçado das fronteiras que delimitam os


espaços disciplinares, que se apresentam não mais como territórios
onde se fixar e enrijecer, dentro da lógica de um pensamento identitário
substancialista, mas como territórios a serem atravessados, cruzados e
rasurados por novos sujeitos do conhecimento. (MARQUES, 1999,
p. 67)

Então, a interdisciplinaridade está relacionada à intertextualidade na peça O novo


sistema, por trabalhar com a ideia da Física enquanto disciplina, mas que terá outro
significado para o texto teatral, estabelecendo o intertexto e gerando um novo
conhecimento que cruza e perpassa os espaços definidos e estabelecidos pelo texto
dramático que se reafirma como obra cultural.

O NOVO SISTEMA

Conta a história do Menino que obtém a nota mais alta de física, assim como
outros meninos, seus pais são jovens. Numa tarde, mãe e filho estão caminhando, começa
a chover, eles param em um praça. Nela há dois postes, onde homens são colocados sobre
eles. A Mãe e o Menino esperam pelo Pai, enquanto isso o garoto observa os homens no
poste e questiona a mãe. Nessa praça existe um pipoqueiro e dois escudeiros que trocam
os corpos que vão ao poste. Em alguns momentos, em meio às cenas, escuta-se como um
aviso/comunicado que é preciso estudar física. A Mãe e o Pai ficam angustiados com o
Menino que quer saber o porquê de pessoas serem colocadas nos postes, eles não
entendem o interesse do garoto, já que ele é um aluno de nota mais alta em física. Os
escudeiros e o pipoqueiro elogiam os pais, por terem instruídos bem o garoto a se tornar
um aluno nota alta em física, porém, os pais temem que a percepção do garoto sobre os
homens no poste seja descoberta. O que de fato acontece. Como castigo seus pais são
levados e o Menino acaba sozinho na praça. A Menina, que é filha do Escudeiro-Mor, o
encontra e começa a conversar com ele sobre o novo sistema, do qual o menino não
entende, ela fica inconformada com o garoto, porque sendo ele um aluno nota alta em
física, deveria entender o novo sistema. A menina parece apaixonada pelo menino, mas
ele pede que ela bata nele, para que ele aprenda o sistema, ela o agride até que ele
reproduza corretamente a frase slogan do novo sistema. Com isso, a menina explica para
o menino como o sistema funciona, o menino não acredita, revolta-se contra ela e mata-
a. Com a morte da menina, o Escudeiro-Mor manda chamar o Menino, porque nenhum
aluno nota alta pode sofrer agressão física. Os pais do menino são colocados no poste, os
88

alto-falantes continuam a falar sobre física. Ao final, os atores reconhecem o medo ao


novo sistema.
Este resumo da peça é bem sucinto, todavia, faz-se necessário para entendermos
melhor os recortes que analisaremos a seguir. Hilst faz uma analogia e cria sentido às
explicações de física, que são o código para aqueles que obedecem ao sistema. Cria uma
intertextualidade entre a física e o sistema recriando o sentido narrativo, a fim de
estabelecer a ordem, todos devem ter filhos nota alta em física. Os filhos nota alta em
física são os que compreendem o sistema, estão dentro do regime, os que não estão, vão
para o poste, servem como exemplos de que todos devem seguir esse modelo. Estudando
essas relações vemos que “a literatura comparada não só admite, mas comprova que a
literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e
trocas.” (PERRONE, 1990, p. 94). Com este diálogo percebemos os contrapontos do
termo “o novo sistema” que se faz como uma referência à própria ditadura militar. E a
utilização interdisciplinar e intertextual analógica ao uso dos termos de física é justificada
com o novo significado da repressão que foi instaurada pelo período da ditadura militar.
No inicio da peça ouve-se a voz do Escudeiro-Mor que diz: “A coletividade deve abrir a
página 208 do livro A evolução da física, de Albert Einstein e Leopold Infeld” (HILST,
2008, p. 305), que traz uma referência exata ao uso da disciplina de física, em que começa
a ser colocado em prática o exame do poder, como podemos perceber neste trecho:

Voz do Escudeiro-Mor: Página 17: todo corpo permanece em seu


estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, (voz
violenta) se não for obrigado a mudar de estado por forças nele
aplicadas. Se não for obrigado a mudar de estado por forças neles
aplicadas. A coletividade entendeu?
Vozes das Crianças: He! Há! (três vezes)
Voz do Escudeiro-Mor: Uma força imprimida é uma ação exercida
sobre um corpo a fim de modificar o seu estado. (lentamente) A força
consiste somente na ação. (destaca) Ação. (pausa) E tudo isso quer dizer
no Novo Sistema... tudo isso quer dizer...
Início da peça. (HILST, 2008, p. 307)

Vemos aqui que as premissas de leitura são verdadeiras, exatamente como no livro
de física que o Escudeiro-Mor indica, porém com a intertextualidade ganha um novo
sentido, no qual segundo Perrone-Moisés (1990), “o objetivo dos estudos de
intertextualidade é examinar de que modo ocorre essa produção do novo texto, os
processos de rapto, absorção e integração de elementos alheios na criação da obra nova”
(p. 94). Fica claro que existe um sistema típico militar estabelecido pelas vozes das
89

crianças que sempre respondem como se respondessem a um grito de guerra. No trecho


abaixo, temos mais uma vez claramente o sentido de intertexto, quando o menino explica
para mãe o que aprendeu:

Menino: (Lentamente) Primeiro: “De todas as órbitas circulares e


elípticas mecanicamente possíveis para os elétrons que se movem em
torno do núcleo atômico (Levanta a voz) apenas umas poucas órbitas
altamente restritas são ‘permitidas’ e a seleção dessas órbitas permitidas
faz-se com observância de certas regras especiais.” (Diminui a voz)
Segundo: “Ao girar ao longo dessas órbitas em torno do núcleo,
(Levanta a voz) os elétrons são ‘proibidos’ de emitir quaisquer ondas
eletromagnéticas, embora a eletrodinâmica convencional afirme o
contrário.” (HILST, 2008, p. 313)

Neste recorte, o aluno reproduz apenas o sentido da disciplina de física enquanto


matéria, já para mãe é um signo de representação onde o menino teria entendido a
analogia de aprender física. Quando a mãe se dá conta de que o menino não compreendeu
o que deveria com a física, cria uma tensão no texto.

Mãe: Mas você viu o jeito que ele olhou? Rapidamente, muito
rapidamente, apenas um instante.
Menino: Mas o que é que tem olhar bastante para os homens, mamãe?
Eu não posso nem olhar como quiser?
Mãe: Oh, menino! Você já se esqueceu dos postulados? Como é? Como
é mesmo? “apenas”... “apenas”...
Menino: “Apenas umas poucas órbitas altamente restritas são
permitidas...”
Mãe: E depois? E depois?
Menino: “E a seleção dessas órbitas permitidas faz-se com observância
de certas regras especiais”
Mãe: Então, mocinho, então?
Menino: Mas isso é Física, mamãe!
Mãe: (Desesperada) Fale baixo. Oh senhor! Eu já estou cansada de dizer
ao seu pai que tudo isso não vai adiantar. Eles não estão sendo claros!
Não estão sendo nada claros! (Afasta-se u pouco do menino e fala
consigo mesma) Ele não compreende a relação da Física com tudo o
que é preciso aprender agora. Todos dizem que este é o novo método
indireto, e esse método ia resolver tudo, que as autoridades sabem o que
fazem, que ia adiantar, que ia adiantar... Adiantou nada, as perguntas
são as mesmas de sempre... (Olha para o menino, de longe) O meu
menino não entendeu, oh, estou exausta e inquieta, lógico... (Para o
menino) Pára de olhar os homens, sim? (Aproxima-se do menino).
(HILST, 2008, p. 316)

O menino não consegue entender o porquê de os homens estarem expostos no


poste, a mãe tenta desconversar, fazendo com que ele relembre as lições de física, que
90

para o garoto é apenas mais uma disciplina que deveria aprender. Vemos como o medo
da violência é instaurado pela mãe através de sua fala. Comparando claramente com o
período da ditadura militar, que na peça é representado pelos homens que são expostos
aos postes por não se adaptarem ao regime imposto, para servir como exemplo e reafirmar
o novo sistema, então a violência aqui “cumpre uma função central: ela constitui a base a
qual opera a violência institucionalizada, visível, e pelo menos ‘útil’ ou vista como ‘mal
necessário’ (por ambas as partes)” (FERNANDES, 1982, p. 134).
Para afirmar esse regime do novo sistema, é estabelecida uma nova forma de
ensino:

Escudeiro 2: Pois o escudeiro-mor pediu com muita delicadeza, como


sempre aliás, para os tais da física, que eles aplicassem esse princípio
ao Novo Sistema. Assim, quase como um lembrete. Antes de começar
cada aula, eles diriam: Não somos uma estrutura rígida. Antes um
sistema dinâmico. E isso já está sendo? Em grandes faixas por toda a
cidade. E gravações também repetindo o mesmo princípio, e em seguida
ouviremos a voz do Escudeiro-mor. (HILST, 2008, p. 330)

Esta forma de ensino reafirma a instauração do regime ditatorial empenhado pelo


Escudeiro-mor, através dos professores e do ensino de física. O que caracteriza o novo
sistema, assim como na ditadura onde “as pressões do topo da sociedade conferem,
portanto, um amplo espaço político à ditadura, no qual ela pode movimentar-se, defender-
se e até ganhar elasticidade para parecer ser o que não é” (FERNANDES, 1982, p. 11).
Diante dessa premissa estabelecida, os escudeiros percebem que o Menino
descumpre as ordens do sistema, mesmo sendo um aluno nota alta em física, o regime
estabelece que quem se enquadrar no padrão de notas do novo sistema, não poderá sofrer
nenhuma agressão física, mas não estabelece nada quanto aos pais, que devem ser
punidos: “Escudeiro Positivo (Para o 1 e o 2): Vocês já sabem... olhar demorado para o
poste... sintomas de agitação... interrogar os pais imediatamente. Sem o máximo de
rendimento a criança vai para o Instituto Pedagógico. Lá é diferente” (HISLT, 2008, p.
336).
É notável que o Menino sente-se curioso em querer compreender porque os
homens são colocados nos postes, os pais tentam de toda forma esconder a verdade do
filho, que percebe que os presos estão mortos no poste, gerando certa insegurança dos
pais que ficam agitados com a situação porque sabem que podem esperar punição dos
escudeiros se o garoto for descoberto descumprindo o sistema, visto que “é na esfera
91

militar e nesta, especialmente entre os oficiais e chefes militares, que tanto o desfecho
quanto o processo apresentam uma transparência inacreditável” (FERNANDES, 1982,
p. 30). Depois da prisão dos pais, que futuramente também terão seus corpos expostos ao
poste, a Menina aparece para tentar fazer com que o Menino entenda o sentido que o
sistema deu ao estudo de física.

Menina: Ainda é uma ilusão perniciosa do Sistema. Eu sei que os pais


nunca saberão colaborar. Você não vê que é impossível? Ou você pensa
que eles realmente se alegram com a tua nota mais alta, pela tua nota
mais alta? A alegria desses pais não tem nada da minha alegria por
exemplo. Eu me alegro porque sou o Novo Sistema. Eu sou a
coletividade. Os pais se alegram porque, através de crianças lúcidas do
Novo Sistema, estão escapando da morte. Você sabe que a morte não
será situação do Novo Sistema. Não para nós. Mas os pais carregam a
morte porque já são muito velhos para se esquecerem dela. E você, se
continuar assim, você vai para o Instituto. Lá, as notas mais altas
adquirem em pouco tempo a consciência total do ser... O ser da
coletividade. É como uma ressurreição. Como Lázaro (ri). Olha, eu
posso ainda te dar algum tempo. Você vai compreender. Aliás, é um
dos exemplos mais fáceis para se fazer analogia. Eu vou te fazer uma
pergunta e você vai responder. É uma pergunta irrisória para quem é a
nota mais alta, mas é só para ficar bem claro para você. Está bem?
(HILST, 2008, p. 346).

A Menina é filha do Escudeiro-Mor, moldada pelo fascismo do novo sistema e


quer que o Menino perceba que ser a nota mais alta, poderia poupar seus pais, seu papel
é denunciar o menino, mas por algum motivo ela tenta ajudá-lo. No entanto, ela não
consegue fazê-lo entender e o drama ganha seu clímax:

Menino: Olha, eu repetirei em voz alta enquanto você estiver me


batendo: “O meu ser é o ser da coletividade, o meu ser é o ser da
coletividade.” Você não permita que eu deixe de repetir. Compreender?
Menina: Eu acho que o Novo Sistema é um método perfeito. E o que
você quer fazer é um reforço desnecessário.
Menino: Faça. Pense que eu sou como um bicho... E que só entendo
essa dor.
Menina: Está bem. Então tire o casaco. (O menino está de pé. A menina
começa a bater pausadamente nas costas do menino enquanto ele
repete: “O meu ser é o ser da coletividade” algumas vezes. Aos poucos,
gradativamente, ouvem-se vozes de muitas crianças e exclamações He!
Ha! muitas vezes. É uma manifestação popular na praça contígua à
praça onde estão o menino e a menina. Ouve-se também a voz do
escudeiro-mor dizendo: “Como o quê? Como o quê?” E as crianças
respondendo: “Como o núcleo atômico” (3 vezes).
Durante esta cena, o menino e a menina devem movimentar-se. Ela vai
até o obelisco, ele olha para os homens. Há angústia e uma certa
delicadeza entre os dois (HILST, 2008, p. 349).
92

Dessa forma, vemos um sentimento que se estabelece da menina pelo menino, que
embora acredite por convencimento dele, demonstra estado de confusão. Podemos
entender um movimento de desespero do Menino, como se a agressão fosse melhor do
que a própria realidade em que ele se encontra como dor interna, na qual a Menina mesmo
tendo consciência do sistema, sabe o que ele sente, porque como diria Fernandes (1982)
“o clímax da violência, quando atinge um patamar tão alto e repetitivo, desorienta as
mentes e os corações” (p.158).
De alguma forma, o menino tenta convencer a menina de que ela está errada, quer
mostrar a ela que ela tem coração, que pode se compadecer, quer dar um ar humano a ela,
porque é isso que o menino representa durante toda a peça: a humanidade, a esperança.
Porém, a menina acaba irritando-se com o menino e algo inesperado acontece:

Menina: Sim. Eu fui avisada. Uma das minhas tarefas é essa, não
permitir que as crianças iguais a você perturbem o trajeto de seus pais
anêmicos para a morte.
Menino: (Com extrema gravidade) E é isso que você fez comigo até
agora. Você simplesmente ganhou tempo? (Pausa) (Desesperado)
Enquanto meus pais... Eu compreendi... Eu compreendi.
Menina: Mas você não parece contente. E você devia estar contente.
Menino: Por quê?
Menina: Por ter compreendido. A nossa única alegria é o entendimento.
Menino: E tudo será sempre assim? O entendimento sem amor? Sem
amor?
Menina: Sempre. (O menino aproxima-se da menina. Num gesto rápido
pega o cinto que estava no chão e o coloca no pescoço da menina) É
tolice você fazer isso. Você está me machucando. (Rapidamente) Não
adianta, minha morte não te salvará do Instituto e nem salvará teus pais
da morte. Eles já estão mortos. Não adianta. Pare. Não adianta...
O menino mata a menina. Começa a arrastar o corpo para fora da cena.
O palco vai escurecendo até ficar black-out total. O menino também sai
da cena. Fica apenas o obelisco iluminado girando lentamente. Entram
depois de um instante os quatro escudeiros. Holofotes violentos sobre a
cena. O escudeiro número três e o positivo trazem os corpos da mãe e
do pai do menino. Todos começam a desamarrar os outros corpos e
começam a amarrar os novos corpos nos postes. Serviços rapidíssimos.
(HILST, 2008, p. 355)

O menino perde a razão como em uma guerra onde é preciso sobreviver quem é
mais forte, ele se depara com um ato de atrocidade e mata a menina em nome do amor,
da dor, da esperança; não restam dúvidas da forte influência de violência e mortes, que
era o que o país e o mundo passavam em 1968. Hilst constrói essa passagem de maneira
poética, sem que se possa criar juízo de valor sobre a atitude do menino, sendo sua
93

desgraça também sua redenção, esta seria então, “a violência crua, que perturba toda a
sociedade e se manifesta principalmente por uma onda crescente de crimes de várias
proporções e natureza” (FERNANDES, 1982, p.157).
Contudo, Hilst termina a peça questionando o espectador/leitor, afirmando o medo
do sistema, estabelecendo a relação interdisciplinar entre a ciência e a humanidade,
questionando também o conhecimento:

Todos: (dirigindo-se ao público) Nós temos medo, sim/ Nós temos


muito medo/ Esse nosso tempo de feridas abertas/ Este Velho Sistema
em que vivemos (Apontando para o público)/ Tu, esse homem/ Que
deseja agora ser o centro de todo o universo, (Apontando para o
público)/ Tu, esse homem que usa de si mesmo Com infinita torpeza/
Tu, que estás aí, e que nos viste/ Pensa: o que fizemos que não foi
advertência?/ Nós temos medo sim. Nós temos medo de que o Velho
Sistema, este em que vivemos, /Pelas chagas abertas, pela treva/ Nos
atire Para um Novo Sistema de igual vileza./ Ah! Nosso tempo de fúria!
Ah! Nosso tempo de treva! (Abrindo os braços para o público) /Dá-me
a tua mão. Dá-me a tua mão. (O elenco de mãos dadas) Que os nossos
homens se deem as mãos. Que a poesia, a filosofia e a ciência /Através
de uma lúcida alquimia/ Nos prepare uma transmutação: Asa de amor/
Asa de esperança/ Asa de espanto (Pequena pausa)/ Do conhecimento
(HILST, 2008, p. 362).

Está é a fala que fecha o texto dramático, evidenciando a esperança de dias


melhores, que só é praticável pela união dos homens, da poesia, filosofia, ciência, do
conhecimento do “novo sistema”, quando todos tiverem o mesmo olhar menino e
puderem questionar de mãos dadas, será possível resistir.
Portanto, a peça escrita em 1968 tem uma ligação com o contexto histórico em
que estudantes são mortos por não se adequarem ao sistema instaurado, sendo o
personagem principal da peça um estudante que não compreende o sistema, é proibida a
aglomeração de pessoas em praças públicas, a peça toda acontece em uma praça, os
artistas e o teatro sofrem a repressão com violência e a autora escreve teatro, percebido
aqui como um afrontamento à ditadura militar, audacioso assim como Hilda Hilst, uma
resistente ao sistema, tanto quanto o Menino.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que é significante a escrita de Hilda Hilst para o teatro. A autora


consegue passar rapidamente pelo gênero teatral com maestria, apropriando-se da escrita,
94

descrevendo muito bem seus personagens, suas intenções e estabelecendo a relação na


qual ela imaginou as personagens. Em O novo sistema, conseguimos identificar as marcas
da ditadura militar e do período de guerra em que a autora escreve, sendo ela também
uma resistente, escrevendo no tempo em que os artistas e poetas são marcados pela
perseguição.
Torna-se possível identificarmos elementos dos estudos culturais que percorrem
a literatura comparada, como o intertexto e a interdisciplinaridade, assim como este artigo
que trabalha também com a perspectiva do texto teatral escrito, com o olhar da literatura
e suas possibilidades interpretativas, fazendo a ponte intertextual entre teoria literária e o
gênero teatral escrito.
Portanto, não podemos deixar de concluir que a autora é autêntica em sua escrita
e está também escrevendo os preceitos, a realidade de seu tempo, suas angústias e, de
certa maneira, sua forma peculiar de ver o momento histórico-social em que estava
inserida naquela circunstância dos anos 60, não obstante em ter como ponto de partida a
esperança de dias melhores, ao perceber o fascismo e a violência causada pela ditadura,
à perseguição aos estudantes e artistas e a tudo o elo de comunicação, O novo sistema
consegue transgredir entre a criação poética e os fluxos referências de realidade que
identificamos.

Referências

CURY, PAULINHO e WALTY. Maria Zilda, Graça e Ivete. Intertextualidades: teoria e


prática. Belo Horizonte, Editora Lê, 1995.

FERNANDES, Florestan. A ditadura em questão. São Paulo: T.A Queiroz, 1982.

GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

HILST, Hilda. O Novo Sistema. In: Teatro Completo; posfácio Renata Pallottini. São
Paulo: Globo, 2008.

MARQUES, Reinaldo. Literatura comparada e estudos culturais: diálogos


interdisciplinares. In: Culturas, contextos e discursos: limiares críticos no comparatismo/
Tania Franco Carvalhal (Org.). Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1999.

MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 1981. 6º, Ed.

PALLOTINI, Renata. Do Teatro. In: HILST, Hilda. Teatro Completo. São Paulo: Globo,
2008.
95

PERRONE MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.

RIDENTI, Marcelo. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins


do século XX / Lucilia de Almeida Neves Delgado e Jorge Ferreira (Orgs.). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.v4.

ROSENFELD, Anatol. A Arte do Teatro: aulas de Anatol Rosenfeld / Registradas por


Neusa Martins. São Paulo: Publifolha, 2009.
96

A PRESENÇA DA MULHER NA LITERATURA PARANAENSE DO


SÉCULO XX

Vanderlei Kroin33 (PG/UNIOESTE/CAPES)

Introdução

Estudar a escrita de autoria feminina e delegar ações no sentido de resgatar os


escritos, investigar as mulheres como sujeitos ativos das sociedades em todos os campos
do saber implica escavar também os meandros da própria construção da história,
observando-a sobre nova visada, pautada no discurso da diferença, contrapondo-se ao
vigente discurso etnocêntrico masculino. Reportando-se, mais especificamente ao campo
literário significar questionar a constituição e condição do cânone, bem como a própria
ideia de valor em relação às produções literárias produzidas ao longo do tempo.
Debatida mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XX, com o
avanço dos estudos feministas e pós-estruturalistas, a condição da mulher como autora de
sua própria história ganha força, principalmente entre as próprias mulheres que investem
na empreitada de estudar e falar sobre as escrituras de suas congêneres.
Nessa perspectiva, este trabalho se propõe a fazer um resgate e registrar a voz e a
presença de escritora mulher no cenário literário paranaense no século XX. Em um espaço
literário predominado pela figura masculina a mulher teve presença. Embora em menor
número ela veio pouco a pouco conquistando espaço, contribuindo também para com a
formação e consolidação da literatura no estado do Paraná.

A escrita feminina como afirmação identitária e resistência

De início deve-se registrar que o discurso ficcional não se desgarra inteiramente


do real que o cerca e de certa forma o condiciona. A escrita literária também é um meio
de marcar território e impetrar a presença do sujeito nos interstícios da história, por isso
a literatura também pode ser considerada uma prática social.

33
Mestrando em Letras, Área de Concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná/UNIOESTE. Este artigo é trabalho inicial, fruto de participação no Projeto de Pesquisa
“Diálogos interculturais e multiplicidade de vozes femininas na literatura e nas artes: linguagens,
alteridade e memória”, desenvolvido na UNIOESTE, sob coordenação do Prof. Dr. Antonio Donizeti da
Cruz.
97

[...] O fenômeno literário tomado como conjunto de elementos


interdependentes, que agem em interação, desenvolve-se
historicamente dentro de um outro sistema maior, revelando todas as
nuances da cultura e recriando aspectos da realidade. Inquestionável,
portanto, a contribuição de tais vivencias, cujos relatos, através da
literatura, são convertidos em documentos escritos e publicados,
legados ao que serão vindouros. (TEIXEIRA, 2008, p. 22).

Assim como os fatos da história foram registrados ao longo dos séculos


eminentemente por uma perspectiva etnocentrista, escrita por homens, na literatura a voz
masculina também sempre predominou. Poucas foram as mulheres que conseguiram ter
alguma expressão no cenário da literatura mundial ao longo da história se comparado
estaticamente em relação aos homens. No entanto, com o passar do tempo a inserção da
figura feminina no campo literário vem crescendo, de maneira tímida é verdade, mas a
mulher tem buscado seu espaço social e consequentemente também o registro de sua
própria história e vivências, escrevendo sobre si e sobre o mundo, sobre sua própria
perspectiva também na ficção.
Na literatura a mulher sempre foi vista e descrita em prosa ou em versos sob a
ótica masculina, de modo que a representação feminina (personagens) no texto literário
escrita por homens se caracterizava pela exclusão e enclausuramento. Tal
condicionamento de representação da personagem feminina no campo literário reflete a
condição da mulher na sociedade. A partir do surgimento do feminismo, por exemplo,
que irradiou a ideia da mulher como sujeito da história, ela passa a ter consciência de sua
participação na história e a lutar por igualdade de direitos, inclusive ao de escrever e
produzir literatura.
O direito à escrita é a ação de escrever a própria história, deixar a passividade e
inserir-se como sujeito ativo, projetando-se desta maneira como também sujeito
construtor da sociedade e estabelecendo igualdades por meio das diferenças. Nesta
perspectiva, a escrita ficcional de autoria feminina não significa apenas a conquista do
acesso à escrita, mas caracteriza também emancipação social da mulher.

Ao representar, a figura feminina, constrói-se, projeta-se e estabiliza-se


a identidade social, em processos definidos histórica e culturalmente.
As práticas sociais de representação vigentes de uma certa época se
cristalizam em formas textuais. É possível associar as representações às
ordens de discursos a que estão genealogicamente relacionadas e,
também, a outros discursos que circulam na sociedade. As práticas
discursivas, além de sua dimensão constitutiva na construção social da
98

realidade, constituem também ação social. (TEIXEIRA, 2008, p. 28).

O ato de escrever delega ação, que por sua vez implica luta e resistência, que se
torna emancipação e visibilidade identitária, e, a posteriori, se reflete como resultado na
escrita desenvolvida pela mulher. É necessário escrever para se ter visibilidade. O registro
escrito se perpetua e, desta maneira, a escrita literária feminina promove e emancipa a
mulher. Segundo Araujo (2012) a literatura produzida por mulheres é a representação de
conquistas bem como a busca por direitos.

A literatura de autoria feminina, portanto, tem se caracterizado ao longo


e sua trajetória, timidamente iniciada em meados do século XIX e se
avolumado no decorrer do século XX, pela ênfase na representação das
conquistas das mulheres, pelo repúdio à objetificação e aos
silenciamentos históricos a elas conferidas, bem como pela busca do
direito de se autorrepresentar, representando assim, não identidade
fixas, desenhadas pela ideologia patriarcal, mas identidades múltiplas,
heterogêneas, como são múltiplas e heterogêneas as vocações
humanas. (ARAUJO, 2012, p. 34-35).

A escrita indicia visibilidade, registro de participação na história. O discurso


delegado à escrita delas (as mulheres) se pretende combativo, engajado e político, se
pensado, principalmente sob o prisma do feminismo. Salienta as diferenças e prega a
igualdade de condições ao resgatar e implementar esforços no sentido de combater a
própria concepção de cânone literário e, mais largamente, os ideais logo e falocêntrico.

Historicamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar


conjunto de obras-primas representativas de determinadas cultura local,
sempre foi constituído pelo homem ocidental, branco, de classe
média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos
das mulheres, das etnias não-brancas, das chamadas minorias sexuais,
dos segmentos sociais menos favorecidos etc. Para a mulher inserir-se
neste universo, foram precisos uma ruptura e o anúncio de uma
alteridade em relação a essa visão de mundo centrada no logocentrismo
e no falocentrismo. (ZOLIN, 2009a, p. 327).

Segundo Zolin (2009a) o cânone se caracteriza pela exclusão da escrita feminina


e de minorias e é marcado pelo repúdio às diferenças. Romper essas barreiras de escrever,
participar de academias e da vida pública, enfim, obter visibilidade social é uma luta que
a mulher deflagra cotidianamente. Esta luta foi instigada pela bandeira do feminismo e
tem um ideário político, porque busca por direitos de igualdade, o que não pode ser
conseguido pacificamente. Trata-se de evidenciar a alteridade e abalar paradigmas
99

patriarcais, atuando pela quebra das tradicionais relações de gênero e intercambiando


novas relações, pautadas, como já dito anteriormente, na igualdade pela diferença.

Se as relações entre os sexos se desenvolvem segundo uma orientação


política e de poder, também a crítica feminista é profundamente política
na medida em que trabalha no sentido de interferir na ordem social.
Trata-se de um modo de ler a literatura confessadamente empenhado,
voltado para a desconstrução do caráter discriminatório das ideologias
de gênero, construídas ao longo do tempo, pela cultura. Ler, portanto,
um texto literário tomando como instrumentos os conceitos operatórios
fornecidos pela crítica feminista implica investigar o modo pelo qual tal
texto está marcado pela diferença de gênero, num processo de
desnudamento que visa despertar o senso crítico e promover mudanças
de mentalidades ou, por outro lado, divulgar posturas críticas por parte
dos(as) escritores (as) em relação às convenções sociais que,
historicamente, tem aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos.
(ZOLIN, 2009b, p. 218).

Como a literatura é também fruto das relações sociais e apresenta estética e


linguisticamente a tessitura social de determinada época, é justo que ela reflita essas
agruras da mulher e é essa a proposta da crítica literária feminista e do feminismo em si,
conforme salienta Cortez no excerto acima: operar a mudança de mentalidades e romper
convenções sociais excludentes arraigadas na sociedade por séculos.
O feminismo que faz por promover a emancipação da mulher é por vezes tolhido
como um movimento corruptivo e por muitas vezes refutado enquanto ideal pelas próprias
mulheres, conforme se nota no excerto abaixo.

Ao feminismo associou-se uma ideia pejorativa, que vê a mulher com


o estereótipo de mulher “macho”, revoltada, infeliz, desprovida de
atributos de beleza e de feminilidade. Esse atributo tem levado muitas
escritoras brasileiras e estudiosas a refutar o título de feminista para se
proteger e não terem suas imagens associadas a esses referentes.
(ZANQUETA, 2011, p. 14).

Evidentemente o feminismo foi e é um movimento de embate ideológico e, com


isso não escapa à críticas, inclusive por parte das próprias mulheres, às vezes avessas a
rotulações como as de “feminista”. Deve-se salientar ainda que a escrita feminina não é
de todo feminista, o que significa dizer que a literatura feita por mulheres não é
homogênea enquanto conjunto. Como sujeitos singulares e diferentes, cada escritora
mulher tem suas particularidades, suas vivencias, estilo, etc, de modo que muitas não se
consideram feministas na forma estrita do termo.
100

De qualquer modo o feminismo foi um movimento crítico, social e político que,


surgido no século XIX outorgou à mulher maior espaço e gana de lutar pelos seus direitos,
alavancando ideais que permitiram a mulher emancipar-se em vários sentidos e a ser vista
com sujeito atuante de sua própria história. Esta corrente emancipatória se incutiu também
no campo literário, surgiu então a crítica literária feminista, por volta da década de 70 do
século XX, que, segundo Zolin (2009a), possibilitou, por meio de desenvolvimentos de
estudo teórico/críticos a dar visibilidade a uma tradição de escrita literária feminina
subjugada na história do cânone e, por consequência resgatar obras e autoras
desconhecidas.

A presença da mulher na literatura paranaense do século XX

Assim como em outros lugares do mundo, no Brasil e no Paraná, a figura feminina


também esteve ofuscada dentro das premissas e estruturas sociais patriarcalistas. O estado
que separou-se de São Paulo em 1853 e tornou-se definitivamente estado em 1889,
essencialmente agrário, tinha nesse sistema, a mulher sujeita aos desmando masculinos.
Em se tratando mais particularmente do campo literário, poucas foram as figuras
femininas que sobressaíram-se e ganharam algum destaque no século XX no Paraná, o
que não significa descartar a presença de escritoras e intelectuais atuantes no cenário
literário e artístico paranaense no referido século. Ao contrário, se necessita de estudos
mais profundos e sistemáticos que venham a registrar a participação e produção de
escritoras paranaenses no século XX.
Deve-se dizer que há vários trabalhos acadêmicos e científicos, tais como projetos
de pesquisa, teses e dissertações, bem como publicação de artigos e livros que vêm a esse
encontro, ou seja, o de resgatar e registrar a literatura paranaense de autoria feminina,
bem como registrar a mulheres intelectuais atuantes do estado, o que corrobora a ideia de
uma literatura feminina paranaense que carece de mais estudos.
Quanto ao objetivo deste trabalho não é o de registrar sistematicamente todas as autoras
mulheres paranaense do século XX, tampouco esgotar as questões em relação ao assunto,
mas, apenas demonstrar, por meio de alguns nomes, que a mulher literata, embora em
proporção muito menor que os escritores homens, se fez presente no cenário literário do
Paraná do século XX e contribuiu para com a formação da literatura no estado.
No século XIX o estado já contava com as escritoras mulheres. Exemplos desse
período, tem-se a poeta Júlia da Costa e a professora e poeta feminista Mariana Coelho.
101

A primeira, poeta romântica. Publicou dois livros de poemas: Flores dispersas (1867),
Buquê de violetas (1868). A segunda, segundo Teixeira (2013)

[...] se dedicou à escrita de textos ensaísticos nos quais refletiu a


condição da mulher. Publicou a obra A evolução do feminismo em 1933
[...] em que apresenta uma coletânea de informações sobre fatos, dados
científicos e pessoas que, de alguma forma, por meio de suas ações, de
produções literárias, de projetos de lei e de atitudes puderam subsidiar
a defesa da tese feminista, da igualdade intelectual e de direitos entre
homens e mulheres. (TEIXEIRA, 2013, p. 57).

Júlia da Costa faleceu em 1911, já Mariana Coelho, que era portuguesa, segundo
Ganz (1994) chegou ao Paraná em 1902 e fundou o colégio Santos Dumont, para a
educação de meninas, o qual dirigiu por 16 anos. A professora, ainda segundo Ganz, lutou
pelos direitos emancipatórios da mulher paranaense, defendendo o direito da mulher ao
trabalho público, à equiparação dos vencimentos e ao voto. Escreveu duas obras
importantes nesse sentido: O Paraná mental (1908) e A evolução do feminismo (1933).
Na primeira, segundo Ganz (1994) argumenta em relação ao desenvolvimento das artes
e da literatura paranaense, bem como faz um adendo sobre a poupa participação social da
mulher paranaense. No segundo livro ela defende mais enfaticamente a emancipação
feminina.
Nesse contexto da luta feminista de Mariana Coelho, o século XX, o estado do
Paraná do século XX, principalmente a capital, Curitiba, nas décadas de 20 e 30 passava
por um processo de urbanização. Seixas (2011) observa que na década de 30 do século
XX, a capital já contava com 111 mil habitantes. Segundo a autora,

[...] a cidade vinha sofrendo um paulatino processo de urbanização,


apreendido pelo desenvolvimento inicial de indústrias, do comércio,
dos transportes e por um aumento significativo da população no
período, como resultado do grande número de imigrantes europeus que
ali se instalaram. Em face dessas novas condições sociais, teve também
o início de um incremento na oferta de escolarização, o que propiciou
melhores condições para o desenvolvimento de uma vida cultual na
capital do Paraná [...]. (SEIXAS, 2011, p. 63).

Este crescimento permitiu também à mulher curitibana, maior participação da vida


social e cultural. Elas passaram a participar de academias e associações que promoviam
atividades culturais. Ressalve-se que essas figuras femininas que participavam dessa vida
cultural eram das classes média e alta, mesmo assim significava importante indício de
102

participação da mulher no cenário cultural e artístico, conforme salienta a autora acima


citada:

Nessa primeira metade do século XX Curitiba crescia e cresciam


também as oportunidades para as mulheres que ali habitavam,
especialmente para as mais favorecidas social e economicamente. A
vida pública da cidade começou a contar cada vez mais com a presença
feminina, fosse nos meios educacionais, nas atividades sociais, no
exercício do trabalho ou nas iniciativas de caráter cultural [...].
(SEIXAS, 2011, p. 64).

As mulheres começam a conquistar também seu espaço na literatura. No século


XX surgem nomes como Helena Kolody, Leonor Castellano, Adélia Maria Woellner,
Ilnah Pacheco Secundino, Chloris Casagrande Justen, Pompília Lopes dos Santos, Ada
Macaggi, Flora Munhoz da Rocha, Alice Ruiz, Graciette Salmon, Regina Benitez, Luci
Collin e inúmeras outras. Muitas delas participantes ativas de Centros e Academias de
letras surgidos no Paraná, inclusive no papel de fundadoras e/ou idealizadoras.
Exemplo de instituição idealizada, formada e dirigida essencialmente por
mulheres foi o caso do Centro Paranaense Feminino de Cultura, fundado em Curitiba.
Tal Centro surgiu da ideia em comum de três mulheres, as advogadas Ilnah Pacheco
Secundino e Rosy Pinheiro Lima e Deloé Scalco, que com outras cinquenta e uma
mulheres fundaram o Centro em 05 de dezembro de 1933. O objetivo principal dessa
instituição

Era criar um ponto de encontro onde elas poderiam ter palestras sobre
assuntos gerais e também um reduto para programarem excursões a
outras cidades [...] Era um meio para que estivessem atentas ao mundo
cultural e artístico e promovessem novos acontecimentos para a
sociedade [...]. (ZOMER, 2011, p. 137).

As três mulheres que estavam à frente do Centro Paranaense Feminino de Cultura


não se diziam feministas, apenas faziam um esforço conjunto para lutar por seus direitos,
como se pode verificar nas palavras de uma das fundadoras, a advogada Rosy Pinheiro
Lima proferidas na inauguração do Centro:

Não somos feministas de colarinho e gravata. Não há entre nós, aquele


antagonismo acentuado para com o homem, que em geral, caracteriza a
feminista. Somos mulheres e portanto temos um dever sagrado entre
todos, maior do que todos. O de transformar a mulher num ser
consciente, numa vontade forte, que pugne pelos seus ideais e defenda
103

seus direitos [...]. (LIMA apud SEIXAS, 2011, p. 110).

Como se vê nas palavras acima, a intenção era construir um espaço para debater
questões relacionadas à mulher e, a partir dessa iniciativa irradiar os ideais de
emancipação feminina a outros lugares. Segundo Seixas (2011) a instituição foi ativa nos
anos subsequentes à sua fundação, desenvolvendo ações que tinham por objetivo dar
visibilidade e valorizar as manifestações culturais das mulheres, promovendo eventos,
como a organização do 1º Salão Feminino de Pintura em 1947, por exemplo. Também,
ainda segundo Seixas, organizavam passeios a pontos geográficos, à fabricas e museus
de Curitiba, além de promover cursos e outras atividades artísticas.
Além do Centro Paranaense Feminino de Cultura havia outras instituições
literárias no Paraná do século XX, como o Centro de letras do Paraná, fundado em 19
de dezembro de 1912; a Academia Paranaense de Letras, fundada em 26 de setembro de
1936 e que substituiu a antiga Academia de Letras do Paraná, criada em 1922. Havia
também a Academia de Letras José de Alencar, inaugurada em 04 de outubro de 1939.
No Centro de Letras do Paraná, fundado em 1912, teve participação atuante
Leonor Castellano. Ela adentrou ao Centro na década de 30 e tornou-se a primeira
presidente mulher da instituição. Segundo Zomer (2013), Castellano foi atuante durante
o tempo em que permaneceu na instituição, articulando esforços no sentido de continuar
a política de valorização das letras no estado. Foi assim que em sua gestão conseguiu
ajuda do governo do estado e da prefeitura de Curitiba para a construção da sede do Centro
de Letras.
Feminista, Castellano defendeu a emancipação feminina e segundo Zomer (2011)
pela sua vigorosa atividade intelectual “[...] contribuiu para que os lugares públicos
fossem reconhecidos como pertencentes também às mulheres [...].” (ZOMER, 2011,
p. 152).

[...] Em suas ideias, as mulheres poderiam ter uma independência


financeira, uma profissão e a emancipação intelectual, mas
continuariam a perpetuar os “privilégios” de serem mães e donas de
casa. Para Castellano, a pátria dependia de mulheres bem informadas e
educadas para melhor educar os filhos, ao mesmo tempo em que a
própria Pátria e seu discurso abriam o leque de oportunidades para as
gerações posteriores. (ZOMER, 2011, p. 152).

Pelas palavras de Zomer pode-se observar a tarefa de emancipação feminina


pregada por Castellano no meio intelectual curitibano e paranaense do século XX. Além
104

de participar ativamente do Centro de Letras ela também participou de outras instituições,


como o Centro Paranaense Feminino de Cultura, já mencionado.
Intelectual ativa, Castellano não se casou e não teve filhos, assim como duas das
fundadoras do Centro Paranaense Feminino de Cultura, Ilnah Secundino e Rosy Pinheiro
Lima, o que evidencia uma mudança comportamental contrária à sociedade patriarcal da
época, que via a figura feminina nascida par ser esposa, mãe e do lar. Ambas também
eram nascidas em famílias abastadas, por isso maior possibilidade de estudos e inserção
no espaço social masculino. Secundino e Rosy Pinheiro eram advogadas, Castellano
funcionária pública. Como se vê a condição econômica permitiu a elas uma formação e
desenvolvimento de profissões no campo de domínio masculino na época e propiciou, da
mesma maneira a integração à intelectualidade.
Os Centros de que participavam as três escritoras mencionadas, além de outras
mulheres, evidentemente, serviram como que de “modelo” para que outras mulheres
buscassem imersão no espaço público e almejassem outras profissões, além do
magistério, profissão na qual havia grande quantidade de mulheres atuando. Nesse
sentido, conforme infere Zomer (2011), pode-se dizer que as instituições como o Centro
Paranaense Feminino de Cultura eram de utilidade pública, constituindo-se como
redutos onde as integrantes mulheres incitavam a emancipação de outras.

O CPFC [Centro Paranaense Feminino de Cultura] não foi um local


em que Castellano e as demais “centristas” utilizaram para recitar
poemas, pois em meio à declamações ocorreram publicações de livros,
gerenciamento de gastos e objetivos de empreendedorismo, decididos
por elas. Reuniões e encontros com autoridades governamentais e,
principalmente, a criação de um Centro de Puericultura – arduamente
dirigido por Castellano durante dez anos – o qual foi um ponto onde as
mulheres puderam desempenhar um trabalho de utilidade pública,
sendo assim reconhecidas como colaboradoras da Pátria. Porém não foi
só isso que as tornou tão importante para a História das Mulheres e até
mesmo do feminismo, as associações há muito já se mostravam como
redutos de onde as mulheres inspiraram-se para ocupar lugares na
medicina, assistência social, enfermaria, entre tantos outros. (ZOMER,
2011, p. 151. Grifo nosso).

A articulação feminina nos Centros e Academias, como visto, foi muito além de
encontros para debater e falar sobre cultura e literatura. Pode-se dizer que a figura
feminina foi atuante em sua participação como integrante desses locais, realizando
trabalho social para o bem comum, principalmente para com as mulheres, irradiando
105

ideias que viessem a despertar o senso e consciência feminina para a busca pelo seu
espaço social.
Na segunda metade do século XX, a mulher continua ativa no cenário artístico,
intelectual e literário paranaense. Surge a Academia Feminina de Letras do Paraná,
inaugurada em 25 de novembro de 1970 e a Sala do Poeta, inaugurada em 1973 e que se
tornaria em 2002 a Academia Paranaense de Poesia. A primeira foi idealizada pelo
jornalista e escritor Raul Rodrigues Gomes e teve como primeira presidente Pompília
Lopes dos Santos, tendo ainda como integrantes, entre outras, Adélia Maria Woellner,
Chloris Casagrande Justen, Escolástica Vellozo, Hellê Vellozo Fernandes, Nair Cravo
Westphalen. A Sala do Poeta, por sua vez teve como fundadora a poeta Pompília Lopes
dos Santos, que foi também a primeira presidente da instituição.
Em relação à Academia Paranaense de Letras (APL), a mais importante do estado,
desde a sua fundação à atualidade apenas onze mulheres ocuparam cadeiras. Por várias
décadas não havia a presença feminina nesta academia. A primeira mulher a ocupar uma
cadeira na APL foi Pompília Lopes dos Santos e somente na última década do século XX,
no ano de 1991. Seguiram-na as poetas Helena Kolody, ingressante em 1992; Adélia
Maria Woellner (1996); Chloris Casagrande Justen e Hellê Vellozo Fernandes (1997).
As outras seis escritoras mulheres que chegaram à APL, já no s´culo XXI foram
Leonilda Hilgenberg Justus (2001); Flora Munhoz da Rocha (2008); Clotilde de Lourdes
Branco Germiniani (2010); Cecília Vieira Helm (2011); Maria José Justino e Marta
Morais da Costa (2014).
As poucas representantes femininas na APL reflete a própria visibilidade da
produção literária de mulheres no Paraná. A modesta participação das escritoras no
cenário literário do estado, principalmente no século passado está condicionada, segundo
Teixeira (2013) também a falta de espaço regular para publicação e à remuneração pelo
ofício. As publicações literárias das mulheres circulavam geralmente dentro do próprio
estado, raramente ultrapassando as fronteiras deste. Isto ocorria segundo Zolin (2012)
devido à pouca visibilidade das próprias editoras que eram de pequeno porte e a logística,
portanto, não facilitava a própria circulação de livros. Deve-se salientar que muitas
autoras publicaram livros às próprias custas, é o caso, por exemplo de Helena Kolody, o
que também acabava restringindo a circulação das obras e consequentemente a
visibilidade das escritoras.
Essa restrição de circulação de obras e visibilidade das escritoras, no entanto não
significa a não presença das mulheres como literatas no Paraná do século XX. Elas
106

estiveram presentes, com publicações de livros de poesia, contos, romances, crônicas, etc.
dentre várias, tem-se exemplos, como Ada Macaggi, nascida em Paranaguá, no dia 29 de
março de 1906 e falecida no Rio de Janeiro no dia 12 de novembro de1947 e publicou as
obras: Vozes Efêmeras (1927); Taça (prosa, 1933), Êxtase (poesia), Arco-
Íris (romance), Sangue Rico (poesia), Ímpetos (contos e poesia, 1947).
Outra escritora, que publicou a partir da segunda metade do século XX foi
Graciette Salmon, que escreveu as obras: Caminhos de ontem (poesia, 1953); A vida por
dentro (poesias, 1956); Vão clamor; À beira do tempo (1958); Enquanto houver caminho,
(poesias, 1958); Cantinho de poesia (crônicas, 1964); Dona vida, (poesias, 1964);
Pássaro perdido, (poesias, 1967); Estrela sozinha, (poesias, 1969); Vitral iluminado,
(poesias, 1971); Ciranda, (poesias, 1982).
Além dessas duas escritoras há várias outras, reconhecidas hoje para além das
fronteiras do estado, como as poetas Helena Kolody, já falecida e Adélia Maria Woellner,
o que evidencia que a mulher não esteve ausente do cenário literário paranaense do século
passado. As produções fictícias femininas foram ganhando mais espaço no Paraná com o
passar dos anos e estudos no sentido tanto de dar mais visibilidade à escrita das que já
tem algum destaque hoje quando de trazer a lume as mais esquecidas é reinterpretar
também a formação da literatura paranaense como um todo.

Considerações finais

Este trabalho procurou apontar alguns nomes de escritoras paranaenses que


contribuíram para com a formação da literatura no estado, participando de Centros e
Academias de forma atuante, evidenciando, desta maneira que a presença da mulher no
quadro da literatura do Paraná no século XX, apesar de quantitativamente inferior em
relação aos homens não pode ser negligenciada.
O resgate dessas escritoras e das suas obras se torna profícuo na medida em que
se acentuam os debates na contemporaneidade acerca das escrituras das minorias étnicas
e sexuais, bem como das mulheres, que passam a ser vistas e estudadas como sujeitos
ativos da história. Isso se evidencia na história de muitas escritoras citadas neste trabalho,
como Leonor Castellano, integrante do centro de Letras do Paraná, sendo inclusive sua
presidente; Ilnah Secundino, uma das fundadoras do Centro Paranaense Feminino de
Cultura, e também Pompília Lopes dos Santos atuante na fundação da Academia
Feminina de Letras do Paraná e da Sala do Poeta, na década de 70 do século XX.
107

Reforça-se, portanto, a necessidade de se resgatar a história das mulheres no


cenário literário paranaense e observar esses estudos dentro de um contexto maior, aquele
que busca a emancipação feminina por meio da escrita. O texto escrito é um modo de
poder, de deixar marcadas as presenças e a literatura de autoria feminina pode ser
considerada um esforço ou movimento de afirmação identitária, porque a figura feminina
passa de personagem à autora de sua história, contando-a sob perspectiva própria.
Correcionalmente, dando visibilidade à escrita e voz feminina no campo literário,
passa-se também a lançar questionamentos sobre o próprio conceito de valor e construção
do cânone, por tanto tempo excludente, primando pelas obras masculinas em detrimentos
da feminina, relegada a de valor inferior. No caso da literatura paranaense do século XX
onde também predominou a voz masculina, algumas mulheres mostraram força e ímpeto
inovador para estarem inseridas, o que evidencia o anseio de emancipação e liberdade,
pioneirismo que foram exemplos e modelos para gerações posteriores. Se muitas não
conseguiram notoriedade artística, deve-se fazer o esforço de ao menos resgatá-las, se
não para colocá-las no rol das obras canônicas, ao menos não negligenciá-las enquanto
sujeitos presentes na história literária paranaense.

Referências

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autoria feminina paranaense. Dissertação. (Metrado em letras). Universidade Estadual
de Maringá: Maringá, PR, 2012.

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Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná: Curitiba, 1994.

SEIXAS, Larissa Selhorst. “O feminismo no bom sentido”: o Centro Paranaense


Feminino de Cultura e o lugar das mulheres no mundo público (Curitiba, 1933-1958).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná: Curitiba, 2011.

TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges. Escrita de mulheres e a (des)construção doa


cânone literário na pós-modernidade: cenas paranaenses. Guarapuava, PR: Unicentro,
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ZANQUETA, Fabiana dos Santos. A representação da mulher na ficção de autoria


feminina paranaense: Pompília Lopes dos Santos (1900–1993). Dissertação (Mestrado
em Letras). Universidade Estadual de Maringá: Maringá/PR, 2011.
108

ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: Thomas Bonnici e Lúcia Osana
Zolin (Org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed.
rev. e ampl. Maringá: Eduem, 2009a. (p. 327- 336).

______. Crítica feminista. In: Thomas Bonnici e Lúcia Osana Zolin (Org.). Teoria
literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. e ampl.
Maringá: Eduem, 2009b (p. 217 – 242).

______. A literatura escrita por mulheres no Paraná: tradição e ruptura. Revista Glauks,
v. 12, n. 2, p. 158-168, 2012.

ZOMER, Lorena. Centro de Letras do Paraná e a atuação intelectual de Leonor


Castellano. Revista TEL, Tempo, Espaço e Linguagem. Ponta Grossa, PR, v. 4, n. 2, p. 46
– 66, mai./ago. 2013.

______. História de uma “boa feminista”: trajetória intelectual de Leonor Castellano em


Curitiba, 1924-1967. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Santa
Catarina: Florianópolis, SC, 2011.
109

A IMAGEM DO FOGO E A MEMÓRIA NA POÉTICA DE SUSY DELGADO

Leda Aquino34

Susy Delgado nasceu em San Lorenzo, Paraguai, no ano de 1949, possui uma
ampla trajetória como jornalista, escritora e poeta; já publicou mais de 20 livros, entre
eles várias antologias como: Amandayvi (2013) em que resume o trabalho poético
desenvolvido em castelhano e guarani desde 1986 até 2012. Em maio de 2016 lançou
mais um livro de poesias Viento viejo/Yvytu Yma .
Susy Delgado desenvolveu uma trajetória de quase 40 anos como jornalista
cultural. Dirigiu a revista cultural Takuapu e a oficina Literária Ara Satï. Atualmente
trabalha na Secretaria Nacional de Cultura. Alguns de seus livros foram traduzidos para
o inglês, português, alemão e para o galego.
De acordo com Tadeo Zarratea (1946), Susy foi a primeira poeta paraguaia que
decidiu publicar todas as suas obras em versão bilíngue. Quando publicou seus primeiros
livros dessa forma, como por exemplo, Tataypýpe – Junto al fuego; Tesarái mboyve –
Antes del olvido, o escritor e crítico achou uma prática inapropriada e assumiu uma atitude
muito radical com relação a mesma. Eram os tempos em que ele (Tadeo Zaratea) escrevia
seus contos em guarani e proibia expressamente no prólogo do livro a tradução a qualquer
outra língua, argumentando que compunha somente para o povo paraguaio e para nenhum
outro povo do mundo35.
A poeta Susy Delgado não se incomodou com a crítica e continuou publicando
suas obras em edições bilíngue guarani e castelhano. Hoje é elogiada pela crítica de seu
país e do exterior, elogiada inclusive por Zarratea que a criticava no início. Com essa
atitude de Susy Delgado hoje podemos conhecer um pouco mais da literatura paraguaia
e da cultura através do olhar feminino.
Com a metáfora, Isla rodeada de tierra, o escritor Augusto Roa Bastos (917-2005)
chama a atenção para o desconhecimento das práticas culturais do Paraguai. Durante
nossa pesquisa descobrimos o quanto essa cultura é rica. Isso nos motivou a analisar a
imagem do fogo presente nos poemas do livro Junto al fuego – Tataypýpe, da poeta Susy
Delgado.

34
Mestre em Letras pela Unioeste.
35
Informação extraída do site: http://mbatovi.blogspot.com.br/.
110

No interior do Paraguai ao redor do fogo os jovens e as crianças ficam conhecendo


as lendas e os mitos, essas histórias permanecem no imaginário infantil e, mesmo depois,
na fase adulta, muitos acreditam que realmente esses personagens existem e assim vão
repassando para as novas gerações.
No poema 4 do livro Junto al fuego (2013), encontramos o eu-lírico voltando ao
passado para nos mostrar que em casa, ao redor do fogo, é onde a semente do guarani
germina, enraíza-se e cresce.

Y allí, Ha upépe,
junto al fuego, tataypýpe,
al abrigo de la casa vieja, óga tuja ahojaguýpe,
donde bajan las estrellas, pe mbyja oguejyhápe
con las llamas, a brillar… tatarendý ndie ojajái…
Suavemente, Mbeguemi,
en mi alma, che py’ápe,
germina y se enraíza, heñói ha oñembohapo,
Crece, okakuaa,
una llama, mba’erendy,
la lengua. Peñe’e.
(DELGADO 94). (DELGADO 95).

O poema reflete a realidade da grande maioria das crianças paraguaias do interior;


essas crianças têm a língua guarani como primeira língua e somente na idade escolar elas
aprendem o espanhol. Esse fato pode ser observado no poema, no verso seguinte:
“Suavemente, en mi alma, germina y se enraíza, cresce una llama, La lengua”. Essa
chama que cresce é a língua guarani, que é a identidade do povo paraguaio.
Buscando analisar a imagem do fogo, encontramos no poema abaixo, um ponto
que nos chama a atenção, pois é o fogo que transforma, não só a mandioca, a batata doce
e a água. Assim como as palavras do avô, a língua guarani, e as histórias que são contadas,
o fogo tem a função de recriar esse universo guarani.
De acordo com Meliá, “Es el fuego guaraní que un día el sapo les robó a los
cuervos y está guardado para siempre en el tronco del pindó, memoria perenne entre tierra
y cielo”. (MELIÁ, apud DELGADO, 1992, p. 141). Esse é o fogo que aquece a alma do
povo nativo, o fogo mítico dos índios guarani o camponês é o tronco do pindó que guarda
a chama da língua.
Podemos observar a importância do fogo no dia a dia do camponês paraguaio nos
versos abaixo, o poema a seguir se encontra no livro Junto al fuego:
111

Vengan, siéntense, Peju, peguapy


acérquense al fuego. Pejatata ypýpe.
Mandiocas, batatas; Hu’umbaraíma
ya están casi blandas; Mandi’o, jety,
el mate caliente; Ka’ayhakúma
ya va a amanecer. Ko’êmbotaite
Mamá, junto al fuego, Che sy, tataypýpe,
ya está en su trajín. oñetrahina.
Papá, en su regazo, Che rurupa’úme,
acoge al hambriento mitãvare’a.
Vengan, siéntense, Peju, peguapy
para despertar. pepaypahagguã.
Junto al fuego hay ya tataypýpeoima
algo que comer ja’umivaerã,
lo que nos dará ñanemoko’e
grato despertar . porávaerã…
(DELGADO 92) (DELGADO 93)

O poema discorre sobre o fogo e o início do dia em uma casa camponesa paraguaia
com mandioca, batata doce e o chimarrão ao amanhecer. Este é o momento de reunir a
família ao redor do fogo e comer o que a terra oferece. O fogo também é um símbolo da
cultura paraguaia de expressão guarani e tem a função de aquecer e iluminar a vida de
seus descendentes e é no tataypy, na cozinha, onde se guarda o fogo que nunca se apaga.
A afirmação acima pode ser confirmada nos versos do poema de Susy Delgado.
Esse fogo que nunca se apaga está presente na poesia e ficou marcado na memória da
poeta que teve sua infância vivida no interior do Paraguai e viu essa realidade de perto.

Un tizón Tata’y
busco aheka
en la ceniza del olvido. tesaráitanimbúpe.
En el hueco del tizón ausente, Tata’yrendaguépe
revuelvo, escarbo, aipyvu, ahavicha,
Esparzo amosarambi
ceniza fría, tanimburo’y,
ceniza oscura, tanimbupytu,
ceniza… tanimbu…
Un tizón busco Tata’y
para encender el fuego. Ahekaajatapymihaguã…
(DELGADO 96-98). (DELGADO 97-99)

Nesses versos, percebemos que o fogo nunca se apaga, sempre há uma brasa
dormindo em meio à cinza fria, a qual se abana e logo se aviva novamente. Podemos
comparar essa brasa adormecida à memória, assim quando precisamos de uma
informação ela pode ser buscada, acessada no passado para se fazer viva novamente no
presente.
112

A memória no poema, representada metaforicamente pela brasa, é a memória de


um povo que não se apaga, basta alguém assoprá-la para reavivá-la. Para isso é preciso
que alguém seja o responsável, o guardião dessa memória, pode ser um poeta ou um
contador de histórias, pois a memória está ligada às preservações, à identidade, às origens,
aos mitos.
Nas palavras de Octavio Paz “Los poetas han sido la memoria de sus pueblos”.
(PAZ, 1990, p. 101). É justamente isso que vemos em Susy Delgado. Nos poemas do
livro Tataypýpe, a poeta se torna a portadora da memória, repassando ou relembrando o
que muitos se esqueceram da cultura guarani.
Jacques Le Goff, em História e Memória (1996), comenta a valor dos poetas na
Grécia Antiga, atribuindo a eles a importância de preservadores da memória e da cultura
grega. Assim, o poeta era considerado quase um ser divino que mantinha em seu poder o
dom de lembrar e cantar aos ouvintes as histórias dos mitos e dos heróis de seu povo.
Acreditava-se que o aedo era uma pessoa abençoada por Mnemosine, a deusa protetora
da memória.
Levando em conta que a tradição das epopeias gregas pertence à oralidade e a
cultura guarani também é de uma vertente oral, a poeta Susy Delgado exerce similarmente
essa função de guardiã da memória guarani no Paraguai. A vantagem da poeta está no
fato de que domina a escrita e, com isso, pode preservar duplamente a memória guarani.
Conforme Octavio Paz: “La poesía es la memoria hecha imagen y la imagen
convertida en voz. La otra voz no es la voz de ultratumba: es la del hombre que está
dormido en el fondo de cada hombre”. (PAZ, 1990, p. 136)
É exatamente essa memória feita imagem que vemos nos poemas de Susy
Delgado, a imagem do fogo, as marcas da voz do abuelo e a língua guarani.

La chamusquina del fuego tata rovere


dejó sus huellas oñembopere
en la memoria del niño. Mitãmandu’ápe.
y la marca del fuego Tata rendague
me siguió en la vida. Ohochendive.
Lo que no se borra, Oje’ove’yva
bendición del fuego, tata rovasa,
quemó entonces ohapyvaekue
mi palabra. cheñe’e.
(DELGADO 96). (DELGADO 97).

Nos versos acima, a memória aparece como rastro deixado pelas faíscas que
voaram do fogo de chão e deixaram marcas na vida. A criança que senta ao redor do fogo,
113

escuta as histórias e aprende a língua guarani leva consigo, para sempre, as cinzas de uma
antiga cultura, aqui percebemos o sentimento de identidade, por meio da marca que é
levada para sempre.
Para Pollak, a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual quanto coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo
na reconstrução de si. (POLLAK, 1992, p. 5)
No poema abaixo, mais uma vez temos o convite para nos aproximarmos e
sentarmos ao redor do fogo. Sentem e façam silêncio, histórias antigas serão contadas,
histórias que causam arrepio, e também felicidade.

Vengan, siéntense, Peju, peguapy,


acérquense al fuego pejatataypýpe
y se despejarán. Pejerahaguã.
Vengan, siéntense, peju, peguapy,
y hagan silencio pekiririmba,
y escúchenlo bien. Pejapysaka.
Aquí, junto al fuego Tataypýpeoúma
ya vino a sentarse, oñemboapyka
en un haz, reunido, ymaguareita,
lo que desde antaño, mombe’upyrã.
se ha de contar. Tataypýpeoúva
Lo que ha venido oñehenduka,
para hacerse oír, ñanemopiri,
nos da escalofrío ñanembovy’a
y felicidad.
(DELGADO 92) (DELGADO 93)

Nos poemas do livro Junto al fuego-Tataypýpe, encontramos a figura do avô, esse


é o personagem invocado para contar as histórias, lembrar dos mitos, da cultura guarani
e chamar pelos personagens do folclore para assustar as crianças. Nesse livro, a poeta
Susy Delgado mantém acesa a chama da tradição oral guarani, dedicando a obra toda à
imagem do fogo, símbolo da cultura.

Ya casi amanece, Ko’embotaitéma,


Abuelo. Aguélo.
Tu canción pequeña Chemombayraíma
me está despertando ndepuraheimi,
desde el fondo tataypyruguáguive.
en que arde el fuego del hogar. Taguapýna ápe,
Déjame sentarme neretymakuápe,
aquí, entre tus piernas, ha tacheañua
deja que me abrace neñe’e tuja.
114

tu voz hecha de tiempo. Epuraheive,


Sigue cantando, chemokunu’u,
mímame haejatapy
y enciende kakuaaporã,
un fuego grande y bueno, taiko’eporã
que amanezca ñandéve…
un buen día .
(DELGADO 102) (DELGADO 103)

No livro Jevyko’e /Día Del regreso (2007), também encontramos poemas que se
reportam ao fogo como memória, ou que deixa sua marca na memória, o poema se chama
Fuego del agua.

Fuego del agua Y tata

Memoria Mandu’a
chamusquina del fuego tata rovere
huella del fuego tata pypore
donde pasaron yvytuaku
el huracán de las llamas tata sapukái
el grito del fuego. rendague.
Que nos había Ñanderovapete
abofeteado ñanembotyryry
arrastrado ñanemombo
tirado ñanderapy
quemado ñandejuka
matado. va’ekue.
[...] [...]
Grito del fuego Tata sapukái
canción del agua purahéi
cópula de la vida teko ha árañeporeno
[y del tiempo]
fuego del agua y tata
memoria. Mandu’a.
(DELGADO 111) (DELGADO 110)

Nas palavras de Wolf Lusting (2001):

A nivel del significado se observa como el tataypy ya no es sólo el lugar


del fuego sino también el asentamiento de la palabra - el ayvurapyta,
para hablar en términos de "teología" indígena guaraní. (LUSTING,
apud DELGADO, 2001, p.145).

Percebemos nas palavras de Lusting que, ao redor do fogo, se realizam a


comunicação e o intercâmbio entre as gerações em forma de vozes, relatos e histórias,
repassando-se, assim, um pouco da cultura oral guarani.
115

Essa observação feita por Lusting pode ser confirmada na estrofe a seguir, em que
encontramos mais uma vez o sujeito da enunciação se reportando à figura do avô:

Que vengan todos Toupáke


los que han resucitado chaguéloñe’eme
en la voz del abuelo. oikovejeýva.
Que traigan Toguerúkehikuái
sus historias hembiasakue,
y las desparramen junto al fuego tomyasãitataypýpe,
para que nos asusten, tañanemomdýi
nos desperecen tañanemombáy,
Que vengan, toñembosaráianendive
se sienten y se queden Toúkehikuái,
y que abran sus ojos los niños, toguapy, topyta,
que tengan escalofrío ha mitãtoipe’akehesa,
y que rían, taipiri,
Y que amanezca en el topuka.
de su memoria, Taiko’ekemitãakãruguápe,
la palabra . Ñe’e.
(DELGADO, 2013, p. 100-102) (DELGADO, 2013, p.101-103)

Observamos que no livro Junto al fuego está presente a memória de um povo, a


alma dos antepassados, a lembrança da infância da poeta vivida no interior do Paraguai
em meio a mitos e folclores. Esses são fatos importantes na hora de escrever poemas,
principalmente na poética guarani de Susy Delgado.
O Paraguai possui um rico folclore, para Lusting esse era transmitido de forma
oral:

Lo más valioso de la expresión artística en lengua guaraní — casos,


canciones, proverbios — no había entrado en el universo de las palabras
escritas y de la cultura libresca, sino que permanecía confinado al
mundo de la tradición popular y folklórica (LUSTING, 1997, p. 01).

Rubén Bareiro Saguier considera que a falta de escrita na civilização guarani não
significa uma ausência de literatura, uma vez que a tradição oral era suficiente para
transmitir a memória do povo:

Es preciso recordar aquí que la civilización guaraní no conoció la


escritura, hecho que, como lo demuestra la etnología contemporánea,
no constituye un rasgo de inferioridad ni de lo contrario. Significa, más
sencillamente, que la tradición oral era suficiente para las necesidades
de transmitir la memoria colectiva, de la misma manera que las escasas
116

cifras que utilizaban bastaban en el sistema de una sociedad no


mercantilista (SAGUIER, 1990, p. XIX).

Como vimos na citação de Bareiro Saguier, na tradição oral guarani, a memória


social cumpria a função de guardar o conhecimento dos antepassados e de as tradições
orais e repassá-la oralmente às futuras gerações.
Na cultura guarani, a tradição oral bastava para repassar os mitos, as lendas e o
folclore. No artigo “Algunos datos sobre La recuperación antropológica europea de las
literaturas indígenas”, Jacqueline Baldran discorre sobre a tradição oral como memória
coletiva:

La tradición oral es la memoria colectiva, transmite la tradición, la


historia, la cultura. Como una cadena ritual va actualizando, en función
de situaciones concretas en la vida del grupo, los antiguos mitos
fundacionales, adaptándose inclusive a los mitos aparecidos en el
proceso de aculturación. (BALDRAN, 1994, p. 435)

Na tradição oral se transmite a memória coletiva de um povo. Os guarani não


precisavam da escrita para transmitir a cultura, os mitos e a história de seus ancestrais
para as futuras gerações.
Em guarani se cantou a existência e a busca da Terra sem mal, a terra prometida.
E a poeta assim canta:

¿Dónde estabas
Dónde estás
Dónde estarás?
Tierra sin mal…
(DELGADO; 2013, p. 301)

O fragmento citado é a parte final do poema Desalma. Susy Delgado, neste longo
poema, do qual citamos apenas fragmentos, expressa uma preocupação com a perda de
identidade. As pessoas já não se reconhecem como paraguaias, pois perderam a referência
da língua e da cultura de seus antepassados.
Nos versos seguintes o eu-lírico diz:

¿Dónde estabas
dónde estás
donde estarás?
117

Útero
del principio
y el final
memoria del regazo
soporte de mis pies
inaugurando el mundo
utopía del regreso.
¿Dónde?
[...] Mi historia
Mi familia
Mi infancia
Mi lengua […]
(DELGADO, 2013, p. 290-291).

A história, a família, e a língua aprendida na infância tudo ficou no esquecimento,


agora o eu-lírico está à procura de sua identidade sem saber qual é sua terra verdadeira,
sua terra sem mal.
A memória também é um fator de identidade, ter um passado ao qual se referir, é
uma forma de não perder sua origem. Portanto, ter memória é saber quem se é em meio
a uma sociedade em constantes mudanças:
A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e
das sociedades de hoje, na febre e na angústia (LE GOFF, 2013, p. 435).
Por isso, a memória está ligada à identidade do sujeito, à necessidade que este tem
de dar sentido à sua vida. Essa noção de que o sujeito tem uma história de vida, leva-o a
ter uma crise sobre sua identidade neste mundo, por buscar a unidade, o início e o fim, a
razão de sua existência.

[...] o fato de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e


orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de
uma ‘intenção’ objetiva e subjetiva de um projeto: a noção sartriana de
um ‘projeto original’ somente coloca de modo explícito o que está
implícito nos “já”, “desde então”, “desde pequeno”, etc. das biografias
comuns ou nos “sempre” (sempre gostei de música) das histórias de
vida (BOURDIEU, 1986, p.63).

Portanto, a memória está relacionada aos rituais de organização da vida pessoal


de cada sujeito que compõe uma sociedade. Justamente, porque se transportou para a vida
a noção de história e como esta sempre tem um sentido, a vida do sujeito também se vê
obrigada a ganhar um sentido. Por isso, é tão importante para o indivíduo pertencer a um
grupo e, consequentemente, participar da memória do mesmo.
118

Nos poemas do livro Tataypype - Junto al fuego (1992), de Susy Delgado,


encontramos a memória cultural do povo guarani que, para muitos paraguaios, ficou no
esquecimento. Os poemas do livro Tataypýpe/junto al fuego foram escritos originalmente
em guarani. Logo, a poeta traduziu para o castelhano, utilizando-se, assim, de ambas as
línguas oficiais, com o objetivo de levar sua obra para um número maior de leitores.
A poeta demonstra a importância do fogo na cultura paraguaia de expressão
guarani em ambas as línguas oficiais.

Y cuando llega el atardecer ha ika’arupávo


a tu voz vieja, neñe’e tuya,
cuando se asoma la oscuridad pytumbyoguãhevo
en la punta de la capuera, ndekokueru’ãme,
cuando el cansancio se sienta kane’õoguapývo
en el lecho de la casa, ogaguyrupápe,
viene junto al fuego, tataypýpeoúma
la gente pobre, a buscar mboriahuoheka
la luz de las llamas. tatarendymi
Se acurruca Iñakuruchi
y cabecea, ha hopevymi
se abriga ne ñe’eratápe
al calor de tu voz Ojeaho’i
y cierra los ojos ha osapymi
para escuchar ohenduhaguã,
cómo se apaga, oguévo,
lentamente mbeguekatumi
el fuego de tu voz… ne ñe’erendy…
(DELGADO, 2013, p. 102) (DELGADO, 2013, p. 104)

A respeito da publicação bilíngue dos poemas, BartomeuMeliá afirma que:

[…] considero que la publicación de estos poemas en guaraní y


castellano en la forma en que se hace, supera la malhadada relación
diglósica que afecta generalmente la producción llamada bilingüe de
muchos autores paraguayos. Aquí un solo fuego llamea en lenguas
diferentes, que no se funden ni se confunden [...] (MELIÁ, 1992,
p. 142).

No poema Tataypýpe, o eu-lírico começa com um convite para nos sentarmos e


nos aproximarmos do fogo e ouvir as histórias. Na cozinha do camponês paraguaio não
há fogão, e sim fogo no chão com um gancho para pendurar a panela.
Apropriando-nos desta metáfora de sentar junto ao fogo e conhecer um pouco
mais da cultura e do folclore guarani, acreditamos com essa pesquisa termos reduzido um
pouco mais o Pozo cultural, que separa a cultura paraguaia do resto da América Latina, e
119

adentramos a ilha cercada de terra do escritor Augusto Roa Bastos. Estudar a escrita
bilíngue de Susy Delgado e a literatura paraguaia nos fez refletir sobre o quanto a
literatura do país é rica.
Nesta pesquisa, também, observamos como a escrita bilíngue ajuda na divulgação
da língua e da cultura guarani e como essa cultura sofreu com as influências de outras,
chegando ao ponto de ficar quase esquecida totalmente. Quando nos referimos à cultura,
estamos falamos de tudo o que é repassado para as gerações seguintes, a qual vai se
transformando, perdendo-se e incorporando outros aspectos que procuram, assim,
melhorar a vivência das novas gerações. Assim, quando falamos que a cultura guarani
ficou esquecida estamos nos referindo a alguns aspectos como religião, rituais, músicas,
comida e até instrumentos utilizados pelos antepassados.
Susy Delgado, além de realizar um trabalho de preservação da língua e da cultura
guarani, também faz uma crítica em relação à situação marginal da mulher. Para a poeta,
escrever em guarani e em espanhol é uma forma de correlacionar os dois idiomas e, assim,
ambas as línguas dialogam entre si. Observamos que, para a escritora, não há uma disputa
entre as duas línguas nacionais. O guarani é a língua do colonizado que enfrentou o
idioma falado pelo colonizador espanhol; o guarani é a língua que a mãe ensinou aos
filhos e venceu a luta pela alma do mestiço. Tanto que, até hoje, o guarani é falado no
país mesmo tendo caído o número de falantes da língua indígena.
Através dos estudos do corpus selecionado e das teorias apresentadas pelos
estudiosos da memória, observamos que essa seja ela coletiva seja ela individual se forma
através dos sentidos sensoriais. Na tradição oral guarani os ouvidos são os responsáveis
pela captação das imagens do universo, introduzindo essas percepções na mente, que com
o tempo se convertem em memória afetiva. Como no poema do livroTataypýpe no verso
que diz: La chamusquina del fuego/dejó sus huellas/en la memoria del niño/. Junto ao
fogo as palavras do avô deixaram suas marcas, a faísca da palavra, da língua guarani
lançada pela tradição oral marca profundamente a vida de quem a escuta.
Nessa obra, Susy Delgado lembra o ritual primitivo, o momento do eterno retorno,
o roubo do fogo dos deuses pelo sapo, o raio que originou e iluminou a história guarani.
No Tataypýpe, recuperou também o idioma autóctone, o guarani, para salvá-lo do
esquecimento. A poeta é a guardiã da memória, da palavra surgida das cinzas, evitando,
assim, que se apague a vivacidade da voz, da palavra, do Abuelo.
No livro Cuando se apaga El takuá, encontramos a homenagem à cultura e à
mulher guarani. Assim como na obra o som do takuá foi se apagando lentamente, a cultura
120

guarani aos poucos também se apagou com a entrada de outras culturas, ficando no
esquecimento da grande maioria da população paraguaia.
Nas obras Cuando se apaga eltakuá, Junto al fuego e El patio de los duendes, de
Susy Delgado encontramos a imaginação e a memória como base da obra. Assim, temos
a passagem da memória oral para a escrita, pois, como vimos a cultura guarani não
conhecia a escrita, mas a oralidade bastava para transmitir a literatura e a cultura aos mais
jovens.
A literatura paraguaia é rica e possui uma variedade temática muito grande. Em
nossa pesquisa fizemos um pequeno estudo a respeito da literatura, principalmente a de
escrita feminina, na qual há uma aproximação da temática.
Ainda há muito que se estudar na literatura paraguaia, principalmente a bilíngue.
Portanto, o presente estudo buscou trazer uma pequena contribuição a esse cenário
poético espanhol-guarani, mostrando como as duas culturas se imbricam e se
(re)desenham permanentemente, num conflito social, cultural e político que vive o
Paraguai até os dias atuais. Além disso, acreditamos que estudar a literatura produzida
nesse país é uma forma de mostrar que se antes, na guerra, as mulheres foram as
responsáveis por sustentar o país, novamente elas dão impulso ao povo, agora no sentido
cultural, tomando a frente da produção literária, representando fortemente o Paraguai no
contexto da literatura latino-americana.

Referências

BALDRAN, Jacqueline; PIZARRO, Ana (Org.), América Latina: palavra, literatura e


cultura. Emancipação do discurso, São Paulo, Memorial; Campinas, Unicamp, 1995, vol.
2.

BOURDIEU, Pierre. L'illusionbiographique. Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales


(62/63):69-72, juin 1986.

DELGADO, Susy. Amandayvi: Antología poética castellano-guaraní 1986-2012


Asunción: Editorial Arandurã, 2013.

______. Antologia Primeriza. Asunción: Arandurã Editorial, 2001

LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.

WOLF, Lustig. Ñandereko y modernidad: Hacia una nueva poesía en guaraní. Disponível
em: http://www.staff.uni-mainz.de/lustig/guarani/art/neepoty2.htm. Acessoem 12 junho
2013.
121

PAZ, Octavio. La otra voz Poesía y fin de siglo. México: Editorial Seix Barral, 1990.

POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos. Rio


de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992.
Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewArticle
/1941> Acesso em 11 jul 2014.

ROA BASTOS, Augusto. Paraguay, una isla rodeada de tierra. Escrito para El Correo de
la UNESCO. 1977 Disponível em: <www.lacult.unesco.org/docc/oralidad_06_07_56-59-
paraguay.pdf > Acesso em 15 jan. 2014
122

PARTE IV
ESCRITA FEMININA: MEMÓRIA E IDENTIDADE
123

LITERATURA INFANTIL E JUVENIL AFRO-BRASILEIRA:


MEMORIA E IDENTIDADE

Ruth Ceccon Barreiros (UNIOESTE/Cascavel)

A literatura infantil e juvenil que traz como tema as africanidades e as


afrobrasilidades cumpre um papel importante ao trazer informações das Áfricas, bem
como dos africanos aqui aportados desde o período do Brasil colônia. Essas narrativas
possibilitam ao leitor em construção conhecer aspectos do seu próprio contexto social,
visto que essa cultura integra a identidade brasileira. Partindo desse princípio, este
trabalho toma como referência a obra literária infantil e juvenil “Betina”, de Nilma Lino
Gomes, para apresentar reflexões sobre memória e identidade. Admitimos essa
possibilidade em função de a literatura infantil e juvenil aguçar, por meio do imaginário,
a sensibilidade do leitor, colocando imagens produzidas por sua humanidade na dimensão
tanto histórica quanto cultural.
Na construção da nossa essência, ou seja, da nossa identidade, estão as histórias
presentes nas memórias, ligando o passado ao presente, assim como imagens que delas
são decorrentes. É nesse viés que se insere grande parte das narrativas infantis e juvenis,
da atualidade, que versam sobre as africanidades e afrobrasilidades.
Na visão de Candau, “o ponto de origem não é suficiente para que a memória
possa organizar as representações identitárias” (CANDAU, 2011, p. 98). Conforme o
autor, é preciso considerar um eixo temporal, um trajeto que apresente referências, sendo
que essas referências dizem respeito aos acontecimentos, ou seja, “cada memória é um
museu de acontecimentos singulares aos quais está associado certo nível de
memorabilidade” (CANDAU, 2011, p. 98). Esses fatos representam marcos de um trajeto
individual ou coletivo e encontram lógica e coerência nesses limites.
Assim, ao transferir tal entendimento para as reflexões sobre a cultura africana ou
afro-brasileira consideramos, neste trabalho, como acontecimentos singulares todos os
costumes e hábitos trazidos de Áfricas, que constituem o legado cultural brasileiro. Na
literatura infantil e juvenil, esses aspectos são percebidos nos enredos, possibilitando aos
leitores mirins conhecer essa herança.
Vale salientar que percebemos a expressão cultura, neste estudo, em duas
perspectivas: tanto como um modo de vida que identifica costumes e crenças de um povo
bem como estética, que se apresenta como produção artística de uma sociedade e, nessa
124

direção, estão inseridas as obras literárias infantis e juvenis.

Representações: os fios da cultura

A literatura que tem como público crianças e jovens conquistou, nas últimas
décadas, um espaço considerável no nosso contexto social. Muito disso, deve-se ao
estímulo das mídias e ao entendimento, especialmente da escola e das famílias, de que
formar leitores proficientes é fundamental para que se possa pensar no desenvolvimento
da nação. Neste viés, estão também as questões relacionadas com a indústria cultural que
vê no público infantil e juvenil um especial nicho de mercado.
Neste contexto, pode-se constatar que a literatura infantil e juvenil que traz como
tema a cultura africana e afro-brasileira, antes desconhecida, ganha destaque a partir da
promulgação da Lei nº 10.639/200336, figurando como mais um recurso que visa
colaborar com as propostas de formação leitora, a divulgação da cultura e a valorização
da etnia africana na composição da identidade brasileira. Essa literatura mostra-se
fecunda para os estudos de memória e de identidade, levando-se em conta o vasto legado
da etnia africana que integra a nossa cultura. Na visão de Candau (2011), a memória
possibilita reunir aquilo que fomos ao que somos e, ainda, ao que podemos vir a ser.
Assim, para o autor, “a perda de memória é, (...) uma perda de identidade” (CANDAU,
2011, p. 59)
A literatura infantil, juvenil e até a literatura adulta de temática afro-brasileira é
marcada pela memória, sendo assim revela traços da identidade negra nessas produções.
Significa dizer que essa literatura apresenta-se como um espaço para manifestar não
apenas a cultura, como também as mazelas que afetaram/afetam, desde muito tempo, os
africanos e seus descendentes no Brasil. Para Bernd,

A literatura negra, tomando a si a tarefa de protestar contra as


complicadas e sutis formas de racismo que perduram até hoje na
sociedade brasileira, que ainda vê nos descendentes de africanos as
marcas de mais de trezentos anos de escravidão, tende a construir-se
muito mais próxima destes referentes, perdendo, por vezes, sua força
poética (BERND, 2003, p. 114)

36
A Lei nº 10.639/2003 propõe, “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo
negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (BRASIL, 2003, não
paginado).
125

Algumas das obras que versam sobre as africanidades e afrobrasilidades assumem


um caráter de denúncia, em função dos séculos de silenciamento a que foram expostos os
negros e afrodescendentes e, com isso, acabam destacando em seu discurso muito mais o
lado pedagógico do que o estético. Essa predominância do viés pedagógico na literatura
infantil e juvenil pode não despertar o interesse do leitor. Além disso, deve-se destacar
também que a literatura temática, objeto deste estudo, por apresentar especificidades da
cultura africana, oferecendo assim alguma dificuldade de leitura, especialmente para
aquele leitor que não conhece minimamente a cultura afro-brasileira.
No Brasil, após a implementação da Lei nº 10.639/2003 e suas resoluções,
algumas obras de literatura infantil e juvenil que tematizam as africanidades e
afrobrasilidades foram reeditadas, traduzidas ou, ainda, criadas, visando atender à
demanda, especialmente educacional, sobre o tema. Essas produções figuram em
pesquisas, que, em geral, buscam compreender a representação do negro nelas veiculadas,
sendo pesquisas dedicadas tanto às obras didáticas e paradidáticas quanto às literárias.
Interesse fomentado pelas lutas empreendidas pelos movimentos negros, surgindo, então,
estudos que se debruçam sobre as representações e as especificidades relativas às questões
africanas e afrodescendentes.
Entretanto, vale lembrar que, conhecer o aspecto da gênese cultural brasileira e
nela perceber a participação da cultura africana em sua composição, é condição
relativamente recente na literatura. Isso nos possibilita inferir que essa literatura, literatura
negra como denomina Bernd (2003), apresenta-se em fase de construção, especialmente
as obras que exibem a cultura africana ou afro-brasileira de maneira afirmativa.
A expressão cultura sempre esteve na pauta das discussões de diversas áreas do
conhecimento. Assim, em relação aos deslocamentos teóricos sobre o termo cultura,
Eagleton (2011) assevera que o termo integra ideias pré-modernas e pós-modernas em
vez de uma ideia apenas moderna. Isso porque ela aparece na era da modernidade como
uma marca do passado e também como uma antecipação do futuro. O que há de
semelhante entre essas duas vertentes é que para ambas, ainda que por diferentes razões,
a cultura é concebida como um nível dominante da vida social. Para Eagleton,

[...] no mundo pós-moderno, a cultura e a vida social estão mais uma


vez estreitamente aliadas, mas agora na forma da estética da
126

mercadoria, da espetacularização da política, do consumismo do estilo


de vida, da centralidade da imagem, e da integração final da cultura
dentro da produção de mercadorias em geral. A estética originalmente
um termo para a experiência perceptiva cotidiana e que só mais tarde se
tornou especializado para a arte, tinha agora completado um círculo e
retornado à sua origem mundana, assim como dois sentidos de cultura
– as artes e a vida comum – tinham sido agora combinados no estilo,
moda, propaganda, mídia e assim por diante (EAGLETON, 2011,
p. 48).

A visão de Eagleton permite-nos perceber que o termo cultura foi gradativamente


ajustado, ao longo do tempo, na sua abrangência semântica, para uma realidade
contemporânea, de maneira que passa a contemplar tanto os aspectos sociais quanto os
da arte. Essa transformação, pelo viés social, colocou em evidência os grupos
minoritários, até então relegados à sombra, bem como permitiu maior espaço e
reconhecimento de manifestações artísticas produzidas por essa população.
É possível, assim, compreender que a cultura, um termo em evidência há séculos,
abrange, nos dias de hoje, a vida de modo crucial. Contudo, o termo ainda torna ativas
imagens e mitos dos tempos passados, dentre elas a arte relacionada com a cultura, “a
referência a cultura vem sendo cada vez mais comum, não só nos setores específicos que
lidam com as artes, mas também nas áreas mais distintas da vida social” (SOUZA, 2008,
p. 14). Dessa forma, e com base em Souza (2008), concebemos a expressão cultura, neste
estudo, em duas faces: como um modo de vida que identifica costumes e crenças de um
povo e também estética, que representa a produção artística de uma sociedade.
O termo cultura associado à identidade cultural também é relevante para as nossas
reflexões, pois quando se trata da literatura infantil e juvenil temática é importante que
ela contemple, dentre os aspectos culturais, as questões identitárias, relacionadas com a
cultura referenciada. Haja vista, que age no processo de leitura, ou seja, tem efeitos sobre
o leitor, possibilitando-lhe maior ou menor envolvimento com o tema lido. Além disso, é
possível observar também que a leitura, enquanto processo de interação, o contexto
cultural de produção, assim como a temática exibida na obra são importantes para
proporcionar ao leitor a catarse, ou seja, uma identificação com aquilo que a obra literária
traz como representação. Nesta perspectiva, a literatura possibilita ao leitor construir uma
identidade, quando este se compreende como parte da cultura, por ela, veiculada.
Na visão de Hall (2006), a identidade cultural surge da sensação de pertencimento
a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, sobretudo, nacionais. O autor alerta
para dois fatos importantes: o primeiro diz respeito às identidades que, em tempo
127

presente, mostram-se descentradas, deslocadas ou fragmentadas; o segundo insinua que


o conceito de identidade é bastante complexo e pouco desenvolvido na Ciência Social
contemporânea. Isso sugere que os estudos sobre a identidade não apresentam conclusões,
pois estão em contínuo processo de construção. O descentramento das identidades é
atribuído às mudanças estruturais das sociedades modernas, ao fim do século XX, as quais
vêm fragmentando “as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como
indivíduos sociais” (HALL, 2006, p. 9). O pesquisador aponta, como causa desses
deslocamentos e fragmentações das identidades culturais, a globalização.
No que se refere à identidade nacional, Hall (2006) reconhece que muitos aspectos
estão implícitos, um deles é a condição de que as culturas nacionais constituem uma das
principais fontes de identidade cultural. Isso em função de que, ao identificarmo-nos
como sendo brasileiros ou afro-brasileiros, como é o foco desse estudo, estamos nos
expressando de forma metafórica, visto que essa identidade não se apresenta marcada em
nossos genes, mas ocorre como parte da nossa natureza essencial. Essa ideia serve-nos
para inferir, mais especificamente, sobre a condição do indivíduo afro-brasileiro, tendo
em conta todo um percurso de marginalização a que estiveram (ou estão) expostos os
africanos e seus descendentes no Brasil. As possibilidades de se reconhecerem como
membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação, identificada como sendo seu
próprio lugar eram parcas ou inexistentes, quando considerado o período de escravatura.
Nessa direção, inserem-se as manifestações de resistência, as quais permitiram/permitem
aos africanos vivenciar, divulgar e propagar muitos dos aspectos de suas culturas. Assim,
“a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema
de representação cultural” (HALL, 2006, p. 49, grifos do autor).
Nesta direção, consideramos que a literatura infantil e juvenil da atualidade, que
tematiza as Áfricas e a Afrobrasilidade, busca promover aspectos afirmativos dessas
culturas, revelando memórias e edificando identidades. De acordo com Coelho (2000),
“para além do prazer/emoção estéticos, a literatura contemporânea visa alertar ou
transformar a consciência crítica de seu leitor” (COELHO, 2000, p. 29). O intuito é que
as obras literárias ao recuperarem memórias atuem na formação das mentalidades.
Podemos afirmar, portanto, que a literatura, por apresentar fenômenos humanos, mostra-
se complexa e fascinante, atuando nas transformações sociológicas, éticas, políticas e
culturais. No contexto em que se inserem as nossas crianças e jovens, no qual inúmeras
transformações sociais e culturais acontecem, essas mudanças ecoam, também, na criação
128

literária, sobre o aspecto ideológico, alterando profundamente a matéria da literatura,


assim como a função dela como produto literário.
Cademartori (2009), ao referir-se às obras literárias infantis e juvenis deste tempo,
assegura que as temáticas inovadoras movimentam, no espaço e no tempo, elementos das
mais variadas culturas. Dessa forma, as referências políticas, sociais e culturais adquirem
complexidade e variedade, afirmando as diferenças e o lugar do outro. Ao combinar
elementos de diferentes culturas, institui diálogos que podem romper com o
condicionamento, que, por acaso, se tem para compreender algo sempre da mesma
maneira. Esse olhar deslocado, possibilitado pelas trocas simbólicas na cultura, leva o
sujeito a perceber que seu mundo não é o único, e que o outro, o diferente, não se constitui
objeto, mas também sujeito. O outro passa, então, a ser um interlocutor e, assim, ambas
as partes se dão a conhecer, e esse contato resulta em influências mútuas.
Nessa tendência a literatura se volta para o reconhecimento de diferentes grupos
sociais como sujeitos possuidores de cultura. Assim, a literatura infantil e juvenil
distancia-se da proposta tradicional, não apenas nas temáticas, mas também porque
estimula a imaginação por meio do lúdico, transformando a maneira de pensar, de sentir
e de compreender a vida. Isso possibilita o confronto entre razão e imaginação, sugerindo
ao leitor em formação caminhos para lidar, de forma dialética, com essas duas forças.
A literatura veicula ideologias, por meio das representações construídas, a partir
da linguagem. Dessa forma, a literatura torna-se campo que permite aos leitores
construírem significações. A língua, como instrumento de comunicação entre os
indivíduos, traduz as representações sócio-históricas e culturais de uma sociedade. De
acordo com Woodward (2000), as representações, oriundas de um processo de base
cultural, instituem identidades individuais e coletivas. Já os sistemas simbólicos, que
fundamentam as representações, auxiliam na busca de respostas para perguntas como:
quem sou, ou o que eu poderia ser, ou ainda, quem eu quero ser. Nesse sentido, ‘os
discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os
indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar” (WOODWARD, 2000,
p. 17).
Fica evidenciado que as identidades são construídas, tendo como referência o
discurso. Nessa perspectiva, a produção literária, especialmente as de temática africana e
afro-brasileira, oferece elementos culturais, sendo que tais elementos configuram-se em
representações, nunca diretas, que expressam o ponto de vista do outro. Chartier (1990)
afirma que as representações sociais são práticas culturais, estratégias que possibilitam
129

pensar a realidade e edificá-la. Ainda para Chartier, as representações conjeturam um


campo de concorrências e de competições: “as lutas de representações têm tanta
importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um
grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os
seus, e o seu domínio.” (CHARTIER, 1990, p. 17).
A literatura, como um objeto de linguagem, não apenas propaga ideologias
correntes, como também atua no sujeito leitor, inquietando-lhe a mente, uma vez
constituída em crítica e a mentalidade renovada, este coopera para modificar conceitos
primeiro individuais e depois sociais. Deste modo, a literatura com temas voltados para
as minorias, ressaltando que o termo minoria não pode ser interpretado em uma relação
numérica, pode trazer visibilidade para os grupos que têm histórias de discriminação,
contrariando os detentores do poder.
As representações veiculadas nas obras que tematizam as Áfricas e a
Afrobrasilidades permitem conhecer resquícios da memória e, ainda, levam a pensar
sobre a formação identitária, não apenas marcada pela aceitação da própria origem, mas
também pela aceitação e respeito ao outro. As representações suscitadas pela literatura
infantil e juvenil instigam à formação leitora e cultural em crianças e jovens, seja qual for
a etnia a que pertençam. As obras cujos os temas estejam voltados para as questões étnico-
raciais podem fomentar reflexões e discussões sobre a História da África e dos africanos,
sobre a luta dos negros no Brasil, sobre a cultura negra brasileira e sobre o negro na
formação da sociedade nacional, como prevê a Lei nº 10.639/03. Podemos considerar que
a literatura, pelo seu caráter simbólico, mostra-se indispensável para reflexões que
rompam com uma visão construída sob o fundamento das desigualdades, construindo uma
visão sob uma base de valorização da diversidade, além de propagar memórias e modelar
identidades.

1. BETINA: memória e identidade

Betina, obra literária infantil e juvenil, de autoria de Nilma Lino Gomes, tem como
ilustradora Denise Nascimento. A publicação, em 2009, foi feita pela Editora Mazza.
Tanto autora como ilustradora são negras. Nilma é uma pesquisadora da etnia africana e
afro-brasileira. Essas informações tornam-se relevantes para as nossas reflexões, tendo
em vista que buscamos apresentar na obra literária em tela elementos que possam estar
130

associados à memória e à identidade cultural, partindo-se do princípio de que não há


discursos que não sejam marcados ideologicamente. Conforme Chartier, “as
representações sociais não são de forma alguma discursos neutros (...) tendem a impor
uma autoridade (...) a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas (CHARTIER, 1990, p. 17).
Nesse sentido, o arranjo textual da história possibilita inferências acerca de
memória e de identidade tanto pelo ponto de vista da narrativa como pelo autoral,
considerando-se que a autora e ilustradora são representantes da cultura. Essa relação
pode ser percebida na obra, na apresentação da autora, “Gosto muito de ler e contar
histórias. Aprendi com minha mãe, uma sábia mulher negra nascida no interior das Gerais
(...) descobri que contar histórias é uma prática ancestral” (p.24). Assim, a protagonista
da história, Betina, representa o ideal autoral de afirmação da identidade Afro-Brasileira.
Além dos aspectos identitários, observados nessa literatura, ganha destaque também
símbolos e ritos que traduzem a memória ancestral negra. Essa perspectiva revela-se na
apresentação da ilustradora, “vira e mexe, tenho a felicidade de reverenciar a memória e
de ajudar a espalhar pelo mundo as belezas que moram nela” (p. 24).
É possível, desse modo, afirmar que, na contemporaneidade, são muitos os
discursos que buscam, na revisão do passado, compreender o momento presente. Neste
contexto, a literatura infantil e juvenil também tem se transformado e se ajustado às novas
condições sócio-históricas e culturais. Esse entendimento considera os estudos realizados
por Coelho (2000). Para ele, a arte é um evento de criatividade, no qual o mundo, a vida
e o homem se veem representados. Pela arte é possível incorporar sonho e vida prática, o
imaginário ao real, os ideais e as possibilidades ou as impossibilidades de realizá-lo.
No que tange as especificidades de uma obra literária, Betina apresenta um enredo
rico em aspectos culturais africanos e afrodescendentes e uma ilustração primorosa. Nas
primeiras páginas destaca-se uma ilustração na qual se pode ver três imagens de meninas,
que aparentam ter em torno de dez anos, pulando corda. (p. 1). Nessa figura, deduz-se
que a menina que pula corda é Betina. Na ilustração seguinte, observamos a figura de
Betina em uma página inteira e a corda cortando duas páginas. A forma como essas
imagens estão dispostas suscita a impressão de envolvimento do leitor no movimento da
brincadeira de pular corda. Para enfatizar essa emoção, aparecem, ao longo da corda, as
palavras que embalam a brincadeira, são as parlendas, tão familiar às crianças, “senhoras
e senhores, pulem num pé só... senhoras e senhores, dêem uma rodadinha... e vão para o
olho da rua!!!” (p. 2-3).
131

Na página que segue, encontramos de um lado Betina pulando e cantando outra


parlenda, agora na rua, “Menina, minha menina, quem te fez tão bonitinha: foi o sol, foi
a lua ou as estrelas miudinhas?”. Chama a atenção do leitor nessa mesma página, uma
placa em azul com a inscrição “rua Minervina”. A placa se destaca no fundo rosa da
página. O nome na placa possibilita-nos pressupor ser o nome da avó de Betina, uma
brincadeira da ilustradora, pois as crianças, ainda com pouco conhecimento sobre os
nomes das vias, por certo acreditam que aquela rua chama-se Minervina porque é nela
que mora a avó da menina. Na página ao lado pode-se observar a figura da avó na janela.
As cores usadas na ilustração são vibrantes, realçando a cor negra das personagens.
Acreditamos que a escolha das cores quentes faz também uma alusão às cores preferidas
pela maioria das crianças em seus desenhos, além das cores que colorem as Áfricas.
O início do texto verbal aparece na sequência, situado na folha da esquerda e
ilustração na página da direita. Tanto a imagem como o texto escrito referem-se ao
momento de interação entre avó e neta, em que a avó está cuidando dos cabelos da neta.
“Enquanto trançava, avó e neta conversavam, cantavam e contavam histórias” (p.6). A
ilustração da avó, fazendo tranças em Betina, põe em foco o cabelo, principal tema da
história, destacando um elemento de preocupação da maioria das mulheres, e neste
contexto, põe-se em evidência o cabelo da mulher negra.
Nessa perspectiva, o momento revela além dos laços afetivos, nuances da cultura
africana, bem como a vaidade feminina em relação aos cabelos. Significa dizer que tanto
o texto verbal quanto o não verbal aludem ao tema. A avó tem os cabelos trançados e
arrumados em forma de coque, a menina com as tranças enfeitadas pela avó e a boneca,
com a qual a Betina brinca, também tem os cabelos trançados. O cabelo figura nessa parte
da história como um traço étnico, de maneira afirmativa, e isso se apresenta também no
texto verbal, “era um conjunto de tranças tão artisticamente realizadas que mais pareciam
uma renda” (p. 6). O cabelo, nessa situação, propõe uma afirmação étnico-racial, pois se
liga as questões de autoestima quando provoca a transformação estética. Ressaltamos
ainda que o cabelo como elemento biotípico reúne representações no corpo social como
expressão e símbolo da identidade cultural.
É importante lembrar que esse tema é recorrente em outras histórias infantis e
juvenis, como “O cabelo de Lelê”, de Valéria Belém; “As tranças de Bintou”, de Silviane
A. Diouf; “Chico Juba”, de Gustavo Gaivota; “O mundo começa na cabeça”, de Prisca
Agustoni.
132

O enredo desenvolve-se e o leitor percebe que a relação de avó e neta é muito mais
que apenas um momento de arranjar os cabelos. Existe entre elas uma grande amizade,
um grande amor, uma cumplicidade. A menina gostava das tranças que a avó fazia,
“quando a avó terminava o penteado, Betina dava um pulo e corria para o espelho. Ela
sempre gostava do que via” (p. 8). As tranças da garota faziam também sucesso na escola,
“No recreio, várias coleguinhas perguntavam como as tranças eram feitas e Betina dava
explicações toda cheia de pose” (p. 12). Mas se alguém não gostasse das tranças, “Betina
respondia, de forma enérgica, não deixava passar nada: – Para com isso! Tá com inveja
é? Se quiser, peço a minha avó para fazer trancinha no seu cabelo também” (p. 12). O
fato de a protagonista responder sem medo as possíveis críticas ao seu penteado, reagindo
com a certeza de que o cabelo é bonito, demonstra uma autoestima elevada. Isso pode se
refletir na emoção do leitor, ajudando-o a (re)pensar situações similares que por ventura
ele tenha passado, no caso do leitor afrodescendente. Este é também um aspecto
favorável, apresentado pela obra literária, no que se refere à valorização da etnia africana
ou afro-brasileira, marcando, positivamente, o processo de construção da identidade
cultural desse leitor.
“O tempo foi passando e Betina foi crescendo. Sua avó foi envelhecendo...” (p.
14). A passagem do tempo cronológico aproxima a avó da morte e, mais uma vez na
história, percebemos a preocupação da avó em dar a Betina informações sobre os
ancestrais. São os vestígios da memória, dando a conhecer as questões culturais que forjou
a individualidade da avó e que, agora, deve fazer parte da construção da individualidade
da neta. “Betina, sinto que, daqui a pouco tempo, vou me encontrar com os nossos
ancestrais” (p. 14). E, diante do pouco entendimento da menina em relação ao termo
ancestral a avó complementa,

[...] São pessoas que nasceram bem antes de nós e já morreram.


Algumas nasceram aqui mesmo, no Brasil, e outras viviam numa terra
bem longe, chamada África. Elas nos deixaram ensinamentos e muita
história de luta. A força e a coragem dessas pessoas continuam até hoje
em nossas vidas e na história de cada um de nós (GOMES, 2009, p. 14).

A memória recobra as histórias de luta e de coragem que fizeram parte da vida


dos antepassados da avó. Betina precisa conhecer e compreender essa história e a avó é
quem pode ensinar-lhe sobre a necessidade de coragem para outras tantas lutas. Essa parte
da história expõe outro aspecto da cultura africana: os mais velhos ensinam as crianças
sobre muitas coisas, por meio da oralidade. Neste sentido, Bosi (1979), ao se referir as
133

questões de “Memória e socialização”, esclarece, “a criança recebe do passado não só os


dados da história escrita; mergulha suas raízes na história vivida, ou melhor, sobrevivida,
das pessoas de idade que tomaram parte da sua socialização (BOSI, 1979, p. 31).
Na opinião da avó, Betina não deve apenas saber como foram as histórias de luta
dos seus antepassados, a avó quer deixar-lhe muito mais do que isso, “Mas, antes de
partir, eu quero lhe deixar um presente. (...) Vou ensinar-lhe a fazer tranças” (p.16). A
menina comemora essa possibilidade, mas a avó apresenta uma condição, “você vai
trançar o cabelo de toda a gente, ajudando cada pessoa que chegar até você a se sentir
bem, gostar mais de si, sentir-se feliz de ser como é, com seu cabelo e a sua aparência”
(p.16). Na proposta feita pela avó podemos inferir que há pessoas que não gostam delas
mesmas, que não são felizes com o cabelo que têm. O cabelo afro-brasileiro, como traço
identitário, é alvo, não raras vezes, de chacotas e zombarias, o que se reflete de forma
negativa na autoestima do indivíduo. Nessa direção, a neta é convocada pela avó a
restabelecer, por meio do efeito estético na lida com o cabelo, a autoestima das pessoas
dessa mesma etnia.
O resgate da autoestima e da valorização das origens é também endereçada ao
leitor que pode ter ou estar vivenciando situação similar. Desta forma, num processo
catártico, sente-se como fazendo parte das pessoas que não se aceitam como são. Essa é
uma das possibilidades do efeito estético (ISER, 1996). Porém podemos supor que não
sendo o leitor um afrodescendente a história poderá levá-lo a pensar criticamente sobre a
condição do outro, isto porque a literatura contribui para a formação da criança e do
jovem, oportunizando condições para refletir sobre os próprios valores e crenças.
“O tempo voou mais um pouco” (p. 18). E Betina foi crescendo e tornou-se uma
mulher cheia de energia, todavia, além de crescer,

Betina-menina-trançadeira virou Betina-mulher-cabelereira. Ela


montou um salão de beleza que cuidava, trançava e penteava todos os
tipos de cabelos e de todo tipo de gente. Mas seu salão tinha algo
especial: era um dos poucos na cidade que sabia pentear e trançar com
muito charme e beleza os cabelos crespos (GOMES, 2009, p. 18).

A relação identitária com o trançar cabelo, uma herança deixada pela avó,
influencia na escolha profissional de Betina, depois de adulta. Essa condição da
protagonista é bastante inspiradora, pois a maneira afirmativa como ela se apresenta no
enredo permite ao leitor reconhecer a valorização não apenas do traço étnico cabelo, mas
de toda a cultura que dele subjaz. Como uma profissional bem sucedida, a neta Betina
134

recobra a memória para buscar as suas origens, “Betina pensava: ´se minha avó estivesse
aqui, ela ia ficar orgulhosa!´, e os seus olhos derramavam lembranças” (p.18). A
poeticidade da expressão “seus olhos derramavam lembranças” possibilita ao leitor
dimensionar a importância dessas memórias para Betina. Dependendo do envolvimento
do leitor com a obra, também as suas memórias serão reavivadas e com elas a sua própria
cultura. De acordo com Bosi, “uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de
convivência familiar, escolares, profissionais (...). Vivendo no interior de um grupo, sofre
as vicissitudes da evolução de seus membros e depende de sua interação” (BOSI, 1979,
p. 332-333). Podemos depreender que a memória torna-se então fundamental para a
manutenção da cultura e, por conseqüência, para a solidificação de uma identidade étnica.
Até essa parte da história as ilustrações fazem referência quase que direta ao texto
escrito. Mostram Betina abraçada à avó, imagens que fazem alusão às brincadeiras de
Betina, alguns cabelos trançados no salão de beleza, tranças coloridas expostas em uma
página inteira e, ainda, uma espécie de pássaros de madeira que aparecem soltos em
algumas páginas, sugerindo, em nossa opinião, a liberdade. A liberdade da criança, a
liberdade almejada durante tanto tempo pelos africanos e, porque não, a liberdade para
trazer a tona e vivenciar as memórias e a identidade da cultura negra.
O enredo apresenta em outros momentos resíduos da memória. Betina foi
convidada para fazer uma palestra na Escola Municipal Pixinguinha sobre a arte de
pentear e trançar cabelos. “Ao sentar-se numa cadeira, em frente de um grande grupo de
crianças e adolescentes, viu, também, algumas crianças negras com cabelos muito bem
penteados que a fizeram relembrar a sua infância” (p.20). O nome eleito para denominar
a escola já é bastante sugestivo para pensar a negritude de forma muito positiva, uma vez
que se trata de uma das maiores personalidades da música popular brasileira. Além disso,
as crianças negras estão muito bem penteadas. Percebemos nessa parte da história a
valorização das crianças negras bem como da profissional no meio educativo, por ter sido
convidada a fazer palestra. O texto mostra que esse saber é relevante e transformou a vida
de Betina, ficando implícito que ele pode transformar, também, a vida daqueles que estão
ali para ouvi-la, alcançando, pelo processo da catarse também o leitor. Parece pertinente,
ainda, inferir que este gesto aplica uma valoração construtiva para a identidade das
crianças negras que, quando leitoras dessa história, se vêem nela representada, de maneira
afirmativa.
“Ao invés de falar, ela preferiu ouvir as crianças e os adolescentes em primeiro
lugar (...) – quero saber se alguém gostaria de me perguntar alguma coisa” (p.20). Essa
135

parte do enredo expressa uma identificação da protagonista com as crianças negras,


permitindo-lhe rememorar a própria infância.

Lá no fundo, uma menina negra, com bochechas salientes e olhos


pretos, levantou a mão e disse: – Betina, quem ensinou você a trançar
cabelo? (...) – Foi a minha avó – e seus olhos se encheram de saudade.
E quem ensinou a sua avó? – Perguntou um menino negro de olhos cor
de mel. – A mãe dela (...) (GOMES, 2009, p. 22).

Os ensinamentos passados de avó para netos, de pai para filhos, mostram-se, nesse
enredo, como um traço importante na cultura africana, além de salientar a memória como
um recurso apropriado de reprodução dos saberes. Essa ideia é enfatizada na última
sequência,

É isso mesmo! Na história da minha família, a arte das tranças foi


ensinada de mãe para filha, de tia para sobrinha, de avó para neta e
assim por diante. É uma forma muito comum de ensinar e aprender
presente na história de muitas famílias brasileiras (e também de outros
países), principalmente, as negras. Em nosso país, muito do que
sabermos hoje, tem sido comunicado dessa maneira – explicou a
cabeleireira emocionada (GOMES, 2009, p. 22).

Ao inserir as famílias brasileiras no contexto de aquisição de conhecimentos, por


meio da herança cultural, a história provoca o leitor a pensar na miscigenação própria da
cultura afro-brasileira, um legado que depende, em muito, das memórias, e que se efetiva
na identidade do povo brasileiro. ”A memória é a identidade em ação”, na visão de
Candau (2011, p. 18). O jogo da memória, que fundamenta a identidade étnica, pauta-se
em lembranças e esquecimentos. Nessa perspectiva, a obra literária infantil e juvenil,
Betina, mostra-se produtiva para os estudos voltados para a cultura Africana e Afro-
Brasileira, bem como para as reflexões acerca da memória e da identidade negra ou afro-
brasileira.
A linguagem utilizada na obra é outro aspecto importante que deve ser destacado
nesta análise. Pautada na oralidade, ela aproxima o leitor dessa literatura, pois, conforme
Lajolo e Zilberman, “a oralização do discurso nos textos para crianças (e jovens) torna-
se bastante coerente com o projeto de trazer para as histórias [...] o heterogêneo universo
de crianças (e jovens) marginalizadas, de pobres, de índios” (LAJOLO; ZILBERMAN,
1991, p. 153). A criança ou o jovem sentindo-se representado na obra em leitura, no caso
o público africano ou afrodescendente, de maneira positiva, suscita o pertencimento e este
136

é um fator relevante em contexto mestiço como o nosso. Considerando-se, ainda, que esse
pertencimento oportuniza ao leitor reconhecer-se e isso se reflete na sua identidade
cultural. Para Palo e Oliveira (2006) narrar, tendo por base a oralidade, é desestabilizar o
discurso literário tradicional, isso significa inovar. Na perspectiva dessas estudiosas,
trata-se de um “escreviver”, visto que se encurta a distância entre quem narra e quem lê.
Para finalizar podemos entender que, ao explorar o imaginário e a fantasia da
criança e do jovem, por meio de recursos estilísticos, tanto no texto verbal como no não
verbal, autora e ilustradora deixam o texto mais criativo e com capacidade de estimular a
imaginação dos leitores, além de oferecer-lhes condições de refletirem sobre questões
sociais e culturais relevantes, como é o caso das africanidades e das afrobrasilidades. É
esse tipo de literatura que podem apurar-lhes o senso crítico. Nesse sentido, Zilberman
(2003), esclarece que a base da literariedade é o arranjo textual e, consequentemente, este
é o locus da sua esteticidade. Assim, a literatura infantil e juvenil contemporânea oferece
temáticas que possibilitam reviver memórias e construir identidades, além de
contribuírem para o rompimento de diferentes preconceitos sociais.

Referências

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2003.

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BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei


nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 8 de ago.
2012.

CADEMARTORI, Ligia. O professor e a literatura: para pequenos, médios e grandes.


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2011.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa. Difel,


1990.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. 1. ed., São Paulo:
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137

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco. 2. ed. São
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GOMES, Nilma Lino. Betina. Ilustrado por Denise Nascimento. Belo Horizonte: Mazza
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da


Silva, Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes
Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996. v. 1

_____. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes Kretschmer.
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SOUZA, Valmir. Cultura e literatura: diálogos. São Paulo: Ed. do Autor, 2008.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:


ZILBEMAN, Regina. A literatura infantil brasileira: como e por que ler. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2000.
138

MEMÓRIA E IDENTIDADE DA ESCRITA FEMININA CONTEMPORÂNEA


NO BRASIL: ESTUDO COMPARADO EM NÍSIA FLORESTA E
ADÉLIA PRADO

Profª Ms. Simone Maria Martins37 (UNIOESTE)

Introdução

O início do século XX foi marcado por grandes mudanças e transformações, seja


no Brasil e no mundo, um reflexo do modernismo que não vingou, abrimos as portas da
contemporaneidade com inúmeras pendências no campo dos ideais da igualdade, ou seja,
ainda havia muitas mulheres, índios e negros com uma lacuna imensa para alcançar seus
direitos e construir sua identidade, voltada para a conquista da liberdade. Neste momento
inicial do Brasil contemporâneo, temos a presença da família real no poder, logo na
segunda década e que percorreu até o país se tornar república.
Na primeira década deste século, nasceu em 1810 Dionísia Gonçalves Pinto,
(Nísia Floresta) justamente quando o Brasil se tornava império, Dionísia estava com treze
anos de idade foi obrigada ao matrimônio, que em menos de um ano acabou fugindo e já
rompendo a primeira condição da mulher daquele tempo, qual estava confinada ao
casamento. Esta pioneira na escrita feminina, rompeu novamente pela segunda vez a
sociedade extremamente aristocrática da época, ao publicar suas poesias no jornal da
capital de Pernambuco.
Neste sentido, nossa primeira poetisa em estudo, pode ser considerada a escritora
que abriu as portas para a mulher conquistar seu espaço na sociedade, não somente como
uma esposa e dona de casa. Nísia Floresta defendeu o direito da mulher conquistar seu
seu espaço no mundo do trabalho. Acreditava que a mulher seria capaz de conciliar a vida
familiar e profissional. Além disso, foi considerada um escândalo para a sociedade
imperial, quando casou-se pela segunda vez, defendendo também o direito de escolha da
mulher ao casamento, movida pelo sentimento de amor.
Contudo, o histórico desta escritora levantado somente na década de oitenta já no
século XXI, por Constância Lima Duarte, seus estudos resgatam a memória e a identidade
desta poeta contemporânea brasileira, que por meio da escrita rompeu o modelo da

37
Doutoranda em Letras – Linguagem e Sociedade/UNIOESTE. Orientador Prof. Dr. Antonio Donizeti da
Cruz (UNIOESTE).
139

mulher de seu tempo, não deixou de lado sua preocupação com a mulher e a família. Por
isso, neste breve estudo será destacado sua obra intitulada “Cintilações de uma Alma
Brasileira”, livro escrito por Nísia Floresta, publicado na Itália em 1859 e em Londres em
1865.
Este artigo selecionou um dos cinco ensaios do livro, intitulado “A Mulher”,
traduzido por sua filha em português, obra somente publicada no Brasil em 1997. Neste
ensaio Nísia Floresta esboça claramente sua visão quanto a condição da mulher francesa,
movida pelo impacto da Revolução Industrial, se viu obrigada a deixar seus filhos e
confinar-se no trabalho, sem tempo para educá-los. A escritora faz neste ensaio duras
críticas a esta situação, afirmando que a mulher não deveria deixar de lado, nem a
amamentação muito menos a educação de seus filhos, finaliza sua obra com um poema
de aclamação as mulheres, em sua condição de esposa, mãe e trabalhadora.
Com intuito de fazer um estudo comparado entre dois grandes destaques da escrita
feminina contemporânea, este artigo buscou trazer uma escritora entre as poetas da
atualidade, que se aproxima em alguns traços com Nísia Floresta. Neste ínterim a escritora
Adélia Prado, traz alguns aspectos que serão destacados neste trabalho, quais se conciliam
com a história e a memória da escrita deixada por Nísia Floresta. Ambas poetisas e
professoras, dotadas de uma linguagem voltada para a mulher, tanto na educação quanto
na poesia.
Encontrou-se no livro “Bagagem”de Adélia Prado, uma memória que identifica-
se sua própria condição como mulher desde a infância. Inicialmente abre o livro com o
poema intitulado “Com licença poética”, qual será destaque neste estudo, pela
proximidade com a condição da mulher revelada nas entrelinhas de sua prosa,
contrapondo e reescrevendo o poema “Sete Faces” de Drummond, na voz da feminina.
O objetivo deste estudo, estará voltado primeiramente em trazer um breve paralelo
biográfico entre as duas escritoras, no que as aproximam diante a escrita poética feminina
e a função de professoras na formação de mulheres. Em seguida, analise dos poemas que
encontrou-se maior aproximação, diante a tríade da mulher: esposa, mãe e trabalhadora.
Finalizando nas considerações com algumas reflexões quanto a memória e a identidade
das escritoras, quais a literatura comparada busca apontar e evidenciar.
140

Um breve paralelo biográfico

Nísia Floresta nasceu por volta de 1810 e até sua morte em 1885, viveu 75 anos
marcados pela coragem e sensibilidade poética, conseguiu por meio de seu pensamento,
registrar na escrita toda sua indignação quanto à forma em que a mulher se condicionava
a viver. Marcou o século XIX de forma a impulsionar no século XX, a construção da
identidade da mulher contemporânea brasileira na vida social, política e profissional.
Nísia Floresta deixou um legado imenso sobre a condição da mulher brasileira,
além de seus estudos diante a mulher européia, já em sua primeira obra publicada
“Direitos das mulheres e injustiça dos homens” (tradução de Mary Wollstonecraft –
1759/1797 escrita por Mary Wortley Montagu – 1689/1762), tratava sobre o conceito de
que os homens faziam das mulheres, a questão da inferioridade feminina quanto aos
homens, e, defendia a capacidade das mulheres de ensinar ciências.
Nísia Floresta deixou sua imensa marca no Brasil, desde a sua obra “Opúsculo
Humanitário” (1853/1989), em que destaca duras críticas ao modelo de educação
brasileira no período imperial, que educava as mulheres somente para os afazeres
domésticos. Desde a fundação do Colégio Augusto no Rio de Janeiro, voltado para a
formação da mulher, que tinha uma proposta pedagógica diferenciada, com o ensino de
línguas estrangeiras, estudos das ciências e literatura, principalmente no campo da poesia,
tanto que publicou livros de poesias para suas alunas, com a proposta de propagar a
concepção desse novo modelo de mulher, nesta tríade entre esposa, mãe e trabalhadora.
Aos 50 anos, Nísia Floresta morou em Florença publicado em 1867 em Londres
a tradução inglesa de um dos ensaios de “Scintille: La donna”, em que abordava o ensaio
“The Woman”, texto que será destaque neste estudo. Neste ensaio “A Mulher”, será
analisado alguns excertos finais de sua poesia e o poema de Giacomo Leopardi, qual ela
finaliza seu ensaio, destacando a função da mulher na sociedade diante da condição de
esposa, mãe e profissional, totalmente capaz de assumir suas funções, num apelo de
esquecerem de si mesmas, em nome do progresso dos homens e da humanidade.
Após sessenta anos da morte de Nísia Floresta, nasceu em 1935 em Diviniópolis
(MG), a escritora Adélia Luzia Prado de Freitas, poeta e professora. Escreveu seus
primeiros versos em 1950, aos 15 anos, após a morte da mãe. Iniciou sua carreira como
professora em 1955. Em 1973, é graduada em filosofia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Divinópolis. Publicou em 1969 “A Lapinha de Jesus”, em parceria
com o escritor Lázaro Barreto (1934).
141

Desde seu primeiro livro “Bagagem” (1976), vieram outras obras, tais como: “O
Coração Disparado” (1978), “Solte os Cachorros” (1979), “Cacos para um Vitral” (1980).
Atuou na Prefeitura de Divinópolis, como professora, chefe da Divisão Cultural e
integrante da equipe de orientação pedagógica. Em 2006, publicou seu primeiro trabalho
dedicado ao público infantil intitulado “Quando Eu Era Pequena”. Sua última obra
intitulada “Misere”, foi publicada em 2013, composta de trinta e oito poemas, voltados
ao profundo sentimento místico e religioso.
Percebe-se que ambas identidades se revelam por um eu-lírico voltado para a
questão da mulher, que embora permeia a condição da mulher e sua liberdade, tem
profunda conotação tradicional, em que a mulher deve conquistar seu espaço profissional,
mas que para isso, não perca o direito de ser esposa, mãe, muito menos sua feminilidade.
Neste sentido, será exposto em seguida, as impressões deixadas nas poesias “A Mulher”
(Nísia Floresta) e “Com Licença Poética” (Adélia Prado).

“Cintilações de uma Alma Brasileira” de Nísia Floresta

O livro “Cintilações de uma Alma Brasileira” de Nísia Floresta, publicado em


Florença em 1859, reúne cinco ensaios: “O Brasil”, “O Abismo sob as Flores da
Civilização”, “A Mulher”, “Viagem Magnética” e “Passeio ao Jardim de Luxemburgo”.
Os temas retratam desde as questões do preconceito que os europeus tinham do Brasil,
aos desvios sociais com ênfase a condição das prostitutas francesas, o hibridismo de
gênero contido na condição da mulher e suas funções sociais, as memórias cotidianas de
seu país de origem, finalizando com traços da filosofia positivista, considerando que Nísia
Floresta era defensora do fim da monarquia e a constituição da república no Brasil.
Ao ler o ensaio “A Mulher”, percebe-se que Nísia Floresta inicia como se estivesse
escrevendo um conto, transformando-o em seguida, numa narrativa reflexiva de cunho
sociológico e filosófico. Destacava a construção da identidade feminina, passando por
seus aspectos biológicos, que junto a família deveria desempenhar seu papel de mãe. Na
defesa de um “novo comportamento”, tornando-a capaz de ser útil a sociedade, sem
perder sua função na formação da família. Finaliza seu ensaio por meio da poesia,
clamando todas as mulheres:

Resguardai-vos de dar ouvidos a este fraudulento linguajar;


caminhar com firme e seguro passo,
142

com amor e a fé no peito,


com a energia do espírito,
para a bela aurora que,
mediante vossos nobres esforços,
deverá surgir no horizonte da humanidade.
(FLORESTA, 1997)

Fica perceptível sua defesa no potencial da mulher para melhorar a humanidade,


pois cabe a ela, a principal função de educar seus filhos, como ela mencionava, desde a
amamentação. Em suas palavras, é notável sua preocupação com a pressão que a mulher
teria que enfrentar, ao assumir uma vida de nobres esforços.
Nísia Floresta deixou registrado em suas últimas palavras deste ensaio, uma
imensurável e profunda crença no poder que as mulheres teriam para mudar a sociedade,
conforme declamava em seu poema final:

Esquecei de vós mesmas,


dignas mãe de todas as nações,
e de todas as classes!
Esquecei de vós mesmas
no cumrpimento de vossa sublime tarefa;
e a sociedade, por vós regenerada,
oferecerá ao mundo no vosso amor,
e na vossa abnegação,
o compêndio de todas as belas virtudes da mulher ,
e o arquétipo da verdadeira e santa caridade.
(FLORESTA, 1997)

Fica evidente o quanto Nísia Floresta, era uma entusiasta da importância da


mulher na sociedade, desde suas primeiras obras que destacava o direito das mulheres, a
vida profissional, até mesmo sua preocupação em não deixar o matrimônio e a educação
dos filhos. Percebe-se nitidamente que defendia a própria abnegação da mulher, em
detrimento ao seu poder de regenerar a sociedade.
Ao finalizar o ensaio, convida a meditar e guardar em nossa memória, um poema
de Giacomo Leopardi, que menciona em seu trecho introdutório:

Mulheres, de vós não pouco


A pátria espera; e não em dano
e escárnio. Da humana
progênie, ao doce raio. Das
vossas pupilas o ferro e o fogo.
Poder domar foi dado. A um sinal
vosso o sábio.
(LEOPARDI, apud FLORESTA, 1997)
143

Nas palavras do poeta, destacou novamente o poder de domar da mulher, do poder


de humanizar da mulher. Considerando a mulher como peça fundamental para a
construção de uma nova pátria, que nascia emergida de uma nova identidade, tal qual
pode-se revelar por meio da escrita feminina, na identidade e memória das seguintes
poetas que foram nascendo de nossa contemporaneidade, tais como, Adélia Prado se
destaca em seguida.

“Bagagem” de Adélia Prado

O livro “Bagagem” de Adélia Prado, é composto por cinco partes, quais se


dividem em: “O Modo Poético”, “Um Jeito de Amor”, “A Sarça Ardente I”, “A Sarça
Ardente II” e “Alfândega”. Todos os temas retratam a condição feminina, sendo o amor
a temática central, além da presença constante do cotidiano, das relações familiares.
Neste livro Adélia Prado, destaca a questão da memória, quais relembram
acontecimentos vividos por suas gerações anteriores e também elementos
autobiográficos. Além disso, trata a questão da religiosidade numa relação com o
sobrenatural, de forma lírica e suave.
Ao ler o primeiro poema “Com Licença Poética”, encontra-se em suas
entrelinhas, a descrição do retrato da condição da mulher, bem como maior aproximação
com as palavras de Nísia Floresta, que também retratou a condição de mulher, que embora
temporalmente distante, ganham um linear contexto, conforme podemos analisar o
poema:

Quando nasci um anjo esbelto,


desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura)
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
144

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.


Mulher é desdobrável. Eu sou.
(PRADO, 1993)

Adélia Prado, traz em sua escrita uma intertextualidade com Drummond, numa
linguagem feminina revela o poder desdobrável da mulher, que mesmo diante a
fragilidade e suas múltiplas funções, será capaz de assumir seu papel de esposa, mãe e
poeta.

Considerações finais

Diante da análise da memória e identidade da escrita feminina, por meio de estudo


comparado entre Nísia Floresta e Adélia Prado, foi possível destacar os principais
aspectos quanto ao perfil das escritoras, a questão de gênero abordada e a posição
tradicional quais defendiam por meio de suas poesias, uma proposta de emancipação
feminina.
O perfil histórico de ambas foi marcado pela poesia, docência, bom como,
difusoras da poesia em jornal. Cada uma em seu tempo, consagram-se diante a posição
da mulher contemporânea dentro da literatura brasileira.
No tocante das poesias em destarte, evidencia-se a presença de um discurso que
contempla a mulher, sua vida cotidiana e seus desafios diante a sociedade que tanto limita
mas depende da ação da mulher para a humanização social.
Ambas poetas em estudo, deixam para a memória da literatura feminina, a
construção da identidade da mulher contemporânea, que permeia no tempo, conquistando
seu espaço, ocupando seu papel e propondo uma sociedade mais humana.
Para finalizar, propomos uma reflexão na poesia “Senha” de Adélia Prado,
publicada em seu último livro Misere (2013), que traz seu atual pensamento quanto o
papel da mulher:

Eu sou uma mulher sem nenhum mel


eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.
(PRADO, 2013)
145

Referências

DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta/Constância Lima Duarte. Recife: Fundação


Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Disponível em:
www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2
05214. Acesso em: Ago 2016.

FLORESTA, Nísia. Cintilações de uma Alma Brasileira. Tradução de Michele Vartulli.


Santa Cruz do Sul: EDUNISC, Florianópolis: Editora Mulheres, 1997.

PRADO, Adélia. Bagagem. São Paulo: Siciliano, 1993.

PRADO, Adélia. Miserere. São Paulo: Editora Record, 2013.

UNSER, Noeli Teresinha. Adélia Prado: lírica e imaginário. Dissertação Mestrado em


Letras -Linguagem e Sociedade. Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOESTE,
2005.
146

A AMÉRICA LATINA EM BEL CANTO: UMA COMUNIDADE IMAGINADA38

Alvina Lúcia Guilherme39

1. Introdução

Pensar a América Latina como conjunto de países ligados histórica, social e


culturalmente por motivos que lhes permitem fazer parte de um mesmo grupo, não se
configura uma tarefa simples. A primeira questão de entrave seria a espacial, pois o que
se convencionou América Latina até os anos de 1960, não aceitava limites territoriais40,
dado que nem todos os países situavam-se ao sul. Quanto à língua, a qual, talvez, estivesse
ligada o nome, “latina”, isto é, com origens no latim, nunca foi critério de unidade, porque
dentre os países que compõem o grupo tem-se a inclusão da Jamaica, Barbados, Trinidad
e Tobago e Guiana, que foram colonizados pelos ingleses.
A unidade firmada por questões culturais é que permite aproximá-los
historicamente. São países que se “encontram relacionados por sua história, por sua raça,
por sua língua e por sua religião ou por pactos políticos econômicos, mas não é frequente
que coincidam todos estes vínculos” (MARTÍNEZ, 1979, p.62), o que os mantêm com
histórias paralelas é o processo conjuntamente vivenciado, a colonização, elemento
identificador e contribuidor da não especificidade de cada local.
Não há como negar que a América, conquistada no século XVI por espanhóis e
portugueses, possuía “populações e culturas autóctones e condições geográficas
peculiares” (MATÍNEZ, 1979, p.62), mas, acima dos nativos e das culturas estava a
imposição hispânica e/ou ibérica dos colonizadores41 que favoreceram a mestiçagem
como mais um dos processos unificadores. A mescla racial tem ainda, segundo Pozo

38
Artigo elaborado para apresentação oral no 3º Simpósio Internacional “Interculturalidade e Escrita
Feminina Latino-Americana: Imaginário e Memória”, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste), campus de Cascavel..
39
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras, na Faculdade de Comunicação, Artes e
Letras (FACALE), da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na área de literatura e Práticas
Culturais, em Dourados. E-mail: luciaguilherme@yahoo.com.br
O conjunto original de vinte e um países mantém-se (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica,
Cuba, Chile, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicaragua, Panamá,
Paraguai, Peru, Porto Rico, El Salvador, Uruguai e Venezuela) (MATÍNEZ, 1979, p.62).
40
O conjunto original de vinte e um países mantém-se (Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica,
Cuba, Chile, República Dominicana, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicaragua, Panamá,
Paraguai, Peru, Porto Rico, El Salvador, Uruguai e Venezuela) (MATÍNEZ, 1979, p.62).
41
Além dos colonizadores espanhóis, ingleses, holandeses e franceses ocuparam também diversas regiões.
147

(2009), a participação da África, pois foi com a chegada de escravos negros que a fusão
conhecida na América Latina, se complementou. “Nesse sentido, a América é também
um projeto de sociedade. Ela postula uma sociedade não elitista, popular e democrática
e, sobretudo, inclusiva, porque inclui negros, mulatos, índios” (FIGUEIREDO, 2010, p.
51). No entanto, a singularidade que residia nos novos, indivíduos híbridos e por isso
“marginais”, era também um dos motivos dos entraves entre colonizados e colonizadores,
havia entre eles a segregação racial: um dos estopins no processo de independência das
colônias latino-americanas.
Embora ainda precisasse romper com o modelo católico europeu que o vestia, o
homem latino-americano passou a modificar a sua cultura após a independência.

Em meio desse caminho cheio de dilaceração, o homem se desloca e se


perde procurando encontrar-se consigo mesmo. Uma cultura de séculos
fê-lo comunitário; uma cultura de conquista e de transculturação
europeia procurou imprimir-lhe o selo de seu individualismo. Debaixo
de uma impressionante camada de catolicismo, o corpo se agita sob os
antigos signos (VARGAS, 1979, p. 460).

Tentando se distanciar do modelo europeu, o latino-americano convive com “a


cultura da personalidade transmitida como herança” (SANTIAGO, 2006, p.21) pelos
colonizadores e com sua tradição histórica. Nasce desta amálgama, sujeitos que por terem
vivido um processo de transculturação42, criam uma nova identidade ou múltiplas. Para
Silviano Santiago, em As raízes da América Latina, a identidade latino-americana, guarda
um pouco de contradição:

A identidade latino-americana não mais se define por uma única


máquina textual de diferenciação, cujo norte é a nossa origem europeia,
trabalho histórico e canônico a que, entre muitos outros, se dedicou
Sérgio Buarque. As raízes. Começa-se também a imaginar miticamente
a diferença (ou inventá-la poeticamente, como prefere Octavio Paz),
através da observação amorosa dum inusitado subgrupo social latino-
americano (SANTIAGO, 2006, p.34).

Em seu texto Silviano aborda a questão da identidade de dois personagens latino-


americanos, o barão de Raízes do Brasil43 e o pachuco de El labirinto de la soledad44,

42
Transculturação é uma palavra-chave pertinente aos encontros coloniais e envolve os fenômenos da zona
de contato, diálogos culturais, transformação e hibridização, ou seja, toda e qualquer experiência vivenciada
pelo sujeito colonizado perante seu encontro com o colonizador europeu (BARZOTTO, 2011, p. 35).
43
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda.
44
El labirinto de la soledad (1950), de Octavio Paz.
148

com eles se tem um panorama da “produção semântica duma máquina textual da


diferenciação” (SANTIAGO, 2006, p. 34). Quando o sujeito latino-americano busca uma
identidade nova, diferente do modelo europeu, ele acaba por referenciá-la, pois a usa
como critério de negação/comparação imediata, imprime em si um pouco da cultura
alheia. É, portanto, um sujeito híbrido que convive com as tradições (passado), tenta
retomá-las para se constituir íntegro no presente, mas se abre para o moderno (futuro),
diferente do ofertado pelo colonizador.
Considerando algumas das possíveis interpretações sobre uma identidade firmada
na diferenciação, ainda há que se pensar o lugar habitado pelo latino-americano: um
espaço que “fica entre a metrópole e a colônia, entre a colônia e as demais nações do
planeta” (SANTIAGO, 2006, p. 37). É claro, que a identidade conta também com as
características e história desse espaço para se construir.
A América Latina está no espaço entre que Silviano Santiago destaca, ela faz parte
do “Novo Mundo” que quer se firmar como nação, mas segundo Lilia Schwarcz na
apresentação de Comunidades Imaginadas, de Benedct Anderson (2008, p. 16):

Nações são imaginadas, mas não é fácil imaginar. Não se imagina no


vazio e com base em nada. Os símbolos são eficientes quando se
afirmam no interior de uma lógica comunitária afetiva de sentidos e
quando fazem da língua e da história dados “naturais e essenciais”;
pouco passíveis de dúvida e de questionamento.

Pensar uma nação latino-americana é presenciar um ambiente integrante do velho


e do novo, que sofreu com a colonização e, que manteve sua tradição pela negociação. A
língua, a cultura e a religião, não são únicas, são várias, pois as herdadas do colonizador
já foram ressignificadas pelo colonizado gerando uma terceira. Estão todas as três
amalgamadas nesse sujeito miscigenado que tenta se projetar, legitimar-se em um espaço-
nação.
E nesse contexto latino-americano, pensando a América Latina como o cosmos
que abarca múltiplas línguas, culturas e as ressiginifica, que se pretende verificar em Bel
Canto uma comunidade imaginada dentro da casa, que serviu de cativeiro para os reféns
do sequestro ocorrido em Lima-Peru.
149

2. A nação Bel Canto

A literatura como representação da realidade fica “a serviço da sociedade”, não


que ela seja devedora da história ou reflexo de eventos sublinhados no âmbito coletivo e
por isso deva registrar fatos e eleger mitos que comporão o imaginário de seus leitores. O
que se estabelece entre a realidade latino-americana e a literatura é uma relação em que
“a vida e a letra de Nossa América se servem mutuamente, se estreitam e se confundem
continuamente em infrangível unidade” (PORTUONDO, 1979, p. 403). No romance Bel
Canto, esta unidade será representada por uma autoria não latina, logo a metáfora da
América Latina que se constrói será um terceiro espaço diante dos olhos de um narrador
e autora oniscientes.
A obra Bel Canto é a ficcionalização da invasão terrorista comandada pelo grupo
MTRA45 à casa do embaixador japonês, Morihisa Aoki, em Lima, Peru. O rompante tinha
a intenção de barganhar a soltura de 442 correligionários detidos em cadeias peruanas.
No momento da invasão estavam presentes vários diplomatas, políticos, empresários e o
próprio irmão do presidente Alberto Fujimori, esses últimos de ascendência japonesa.
Comemoravam, no dia, o aniversário do imperador japonês. No momento da ocupação
eram 490 pessoas, mas com as negociações intermediadas pela Cruz Vermelha e pela
Igreja, restaram 72 reféns que foram mantidos em cativeiro, por 14 guerrilheiros e duas
guerrilheiras durante 126 dias. O fato histórico supracitado seria o suficiente para pontuar
figuras históricas em um romance muito elaborado e envolvente, visto que esses registros
são verídicos, mas Patchett incluiu no enredo da trama uma soprano lírica como ponto
instigador e, compõe na ficção a convivência de vítimas e terroristas bem mais humanos
que os governantes do país em questão.
Na fala do personagem Joachin Messner, representante da Cruz Vermelha46,
responsável pelas negociações de soltura, a sobriedade dos sequestradores é corroborada:
“Vocês já estão no controle da propriedade há doze horas. Ninguém está morto, está?

45
O grupo peruano Tupac Amaru nasceu em 1780 como “grande rebelião indígena liderada por José Gabriel
Condorcanqui” (POZO, 2009, p.20) com caráter emancipatório e de protesto social, o se desarticulou quase
em sua totalidade depois da morte do Líder José Gabriel e um novo com bases nos mesmos ideias surgiu
por volta de 1980 com o nome de Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA). c.f.
<http://mitakuye-oyasinbrasil.blogspot.com.br/2008/10/sobre-o-mrta-movimento-revolucionrio.html>.
Acesso em: 11 ago. 2016.
46
Cruz Vermelha é um movimento humanitário neutro, não está vinculado a nenhum Estado. Presente em
vários países e com milhões de voluntários pelo mundo. Seu objetivo é proteger a vida e/ou aliviar o
sofrimento humano, independente de ideologias e/ou nacionalidade. c.f.<https://www.icrc.org/pt/o-cicv/o-
movimento>. Acesso em 11 ago. 2016.
150

(...)– Isso faz com vocês sejam razoáveis, na minha avaliação” (PATCHETT, 2005, p.
11). Em outro momento, liberam alguns reféns “- Deixaremos que vocês fiquem com as
mulheres – respondeu o general. – Não temos nenhum interesse em machucar mulheres.
(...) Em troca, queremos mantimentos” (PATCHETT, 2005, p. 76).
Ann Patchett47 é uma escritora norte-americana nascida em Los Angeles, a autora
também atua na mídia impressa escrevendo para vários jornais e revistas, como Elle, The
Paris Review and Vogue. Seu livro Bel Canto ganhou vários prêmios, em destaque está
o Orange Prize48, tem grande aceitação por parte dos leitores e dividi opiniões da crítica
por mesclar terrorismo e muita sensibilidade, como características de personagens
terroristas. Sabendo-se que o premiado livro não é o primeiro e também não é o único da
autora a ser agraciado, aumenta-se a curiosidade dos amantes de literatura e da crítica em
especial, uma vez que o romance não pode ser classificado como memória, autoficcção
ou como romance pós-moderno, já que a autora não é peruana e tão pouco viveu como
estrangeira no país do qual fala. Assim, uma das hipóteses que se tem é que a escritora
teve contato com o evento histórico pelas mídias, televisiva e/ou jornalística, fez suas
leituras e pesquisas historiográficas e lançou um olhar diferenciado para o fato.
É natural que o maior interesse da autora não seja a invasão em si ou o modus
operandi dos terroristas, do governo, da mídia e/ou de imprensa internacional, dado que,
para o ficcionista, o detalhe, um objeto fora do lugar, a ausência de alguém em um
momento importante, um comportamento extraordinário diante da perda, da dor, do terror
e de qualquer das fraquezas humanas não poderiam passar incólumes; são de significativa
importância e podem ganhar papel de destaque, porque “diferentemente do historiador,
por entre os dados da realidade imediata ou histórica que registrou, o escritor de ficções
exerce a paixão de sua liberdade” (PIZZARRO, 2006, p. 48). De posse dessa licença
criadora, Ann “entra” na casa/cativeiro, interessa-se então pelo convívio entre reféns e
terroristas (esses últimos carregados de sensibilidade e bastante humanizados) e pela
manutenção da harmonia do ambiente pela presença da música. O leitor se envolve em
uma narrativa fluida, em terceira pessoa, que o coloca no papel de observador, como se

47
Ann Patchett nasceu em Los Angeles, Califórnia, EUA, no dia 02 de janeiro de 1963. Filha da romancista
Jeanne Ray e de um policial, Frank Patchett, mudou-se ainda criança para a Nashiville, Tennessee, onde
vive até hoje.
48
The Orange Prize for Fiction é um dos mais prestigiados prêmios do Reino Unido. Ele é concedido
anualmente a autoras de romances escritos em língua Inglesa e publicados no Reino Unido, mas é restrito
a autoria feminina.
151

estivesse em uma das janelas da casa, buscando, juntamente com a autora, mais um
detalhe para o final da trama.
A ficção se passa na casa do vice-presidente de um país indeterminado da América
do Sul. O evento tinha motivações políticas e econômicas, por isso contava com a
presença de pessoas ilustres que de alguma maneira estavam envolvidas ou tinham
interesses comerciais/financeiros a firmar em tal reunião, “o ar naquela sala estava
adocicado de tantas esperanças. Representantes de mais de doze países” (PATCHETT,
2005, p. 11) compunham um ambiente bastante heterogêneo cultural, político e
economicamente interessante. O convidado mais importante do evento era o senhor
Katsumi Hosokawa, “fundador e presidente da Nansei, a maior corporação de produtos
eletrônicos do Japão” (PATCHETT, 2005, p. 11), pois o país anfitrião queria atrair
investimentos para si, e caso o presidente de uma empresa japonesa o visse com bons
olhos, haveria grandes chances de fundarem ali uma indústria.
Embora a cautela japonesa e a pouca inclinação em firmar contratos com tal país
impedissem a aceitação de convites anteriores, o senhor Hosokawa não pode negar a
cortesia, uma vez que, em virtude do seu 53º aniversário e para atraí-lo, contrataram uma
soprano lírica, norte-americana, Roxane Coss, para se apresentar durante a festa. Ele,
amante de ópera e admirador da cantora, se rendeu ao convite. Também estavam na festa
o tradutor do senhor Hosokawa, Gen, e um jovem padre, este último apaixonado por
ópera.
A invasão ocorreu em não mais que um minuto, durante um apagão. Tempo
suficiente para que os terroristas se instalassem em locais estratégicos. Em seguida as
luzes foram acesas e diante do fato “os 191 convidados, os vinte garçons, os sete
cozinheiros iniciantes e os chefs” (PATCHETT, 2005, p. 31) ficaram assustados. O grupo
invasor, composto por três generais e quinze soldados com idades entre quatorze e vinte
anos, tinham como propósito sequestrar o presidente do país, mas o mesmo não estava
presente na festa. Os planos mudaram e iniciou-se um sequestro coletivo, pois os reféns,
na grande maioria pessoas importantes, valeriam no mínimo um bom resgate em dinheiro.
Diante deste cenário, em um país não identificado da América do Sul, tem-se, na
obra ficcional, a metáfora de um continente miscigenado. A partir da invasão, pessoas de
doze países diferentes, com línguas, histórias e culturas diversas passam a ressignificar
suas vidas. A casa, dominada pelos terroristas que negociam a soltura de seus
companheiros presos, passa a ser vista como uma nova comunidade, uma nação, pois
segundo Anderson (2008, p. 32) a definição de nação “dentro de um espírito
152

antropológico” é “uma comunidade política imaginada- e imaginada como sendo


intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”.
Na introdução de seu livro, Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson cita
Ernest Renan, dizendo que para ser nação, os indivíduos que a compõem precisam ter
coisas em comum e também coisas a esquecer. Neste sentido, pode se dizer que os
sequestradores juntamente com os reféns construíram uma “comunidade imaginada”. Um
bom exemplo encontra-se no momento em que o tradutor, Gen, sabendo da possível
tomada do cativeiro, imagina como seria a continuação daquela vida começada na casa.

No entanto, esses últimos meses o tinham transformado, e agora Gen


percebia que esquecer o que se sabia tinha tanto mérito quanto estar
sempre coletando informações novas. Esforçava-se para esquecer tanto
quanto tinha se esforçado para aprender. Conseguia esquecer que
Carmen era um soldado em uma organização terrorista que o tinha
sequestrado. Isso não era uma tarefa fácil. Todos os dias, obrigava-se a
praticar o esquecimento, até que foi capaz de olhar para Carmen e só
ver a mulher que amava. Esqueceu o futuro e o passado. Esqueceu seu
país, seu trabalho, o que aconteceria com ele quando tudo isso tivesse
terminado. E Gen não era o único a esquecer. Carmen havia esquecido
também. Não se lembrava das ordens para não se envolver
emocionalmente com os reféns. Quando achava difícil demais deixar
uma informação assim tão importante fugir de sua memória, os outros
soldados a ajudavam a esquecer (PATCHETT, 2005, p. 341).

A vida, na casa, para muitos dos sequestrados/hospedes e para os sequestradores


era muito melhor do que fora dela: para os terroristas o alimento e as práticas sociais eram
engrandecedoras; para alguns reféns os relacionamento eram de grande significado e para
todos o prazer da arte era unificador. A música de Roxane Coss, que aparece no romance
como uma das protagonistas do evento que reuniu sujeitos de várias nações, pode ser
considerada como a língua comum de todos os envolvidos no sequestro. A própria
soprano, a única mulher refém a ser mantida na casa até o final da narrativa, tem seu papel
de destaque. Ela consegue negociar regalias, com os sequestradores, que os demais reféns
jamais conseguiriam. Tudo em benefício de sua música, que era a mesma que servia a
todos.
Neste cativeiro, os reféns, mantidos presos por quatro meses e meio, começam a
orquestrar uma vida diferente da que levavam fora dali, criam laços afetuosos: O vice-
presidente “adota” um dos jovens terroristas e passa a fazer planos para o futuro do moço.
O próprio rapaz já se sente filho e se esquece que não o é, “Ishmael esqueceu porque
queria ser o outro filho de Ruben Iglesias e um empregado de Oscar Mendoza. Podia se
153

imaginar dividindo um quarto com Marco, filho de Ruben, Marco, e sendo um irmão mais
velho camarada para o menino” (PATCHETT, 2005, p. 341); reféns e terroristas viram
colegas de jogo de xadrez e/ou futebol “Os soldados jogavam futebol com a bola que
encontraram no porão e às vezes jogavam até uma partida de verdade, terroristas contra
reféns” (PATCHETT, 2005, p.331). Relacionamentos amorosos nascem: Gen, o tradutor
do senhor Hosokawa, e Carmem, uma das terroristas; Hosokawa e Roxane “Gen
encontrou Roxane e o sr. Hosokawa andando de mãos dadas, como isso fosse um outro
jardim qualquer e estivessem sozinhos. Pareciam diferentes aquela manhã, não pareciam
tão improváveis juntos” (PATCHETT, 2005, p. 318).
Todas essas relações só faziam sentido dentro daquele ambiente criado, híbrido,
como a América Latina, entre todas as nações, aquela, com a língua e costumes
indeterminados, em uma casa que era a comunidade que imaginaram por um determinado
tempo.
A literatura, como representação, como uma arte expressiva da sociedade, tende a
trabalhar temas que impulsionados pelo interior do artista articula através da ficção uma
posição simbólica e social de um determinado grupo, comunidade ou época. Segundo
Candido (2000, p. 49) “a criação literária corresponde a certas necessidades de
representação do mundo, às vezes como preâmbulo a uma práxis socialmente
condicionada”.

Considerações finais

A pesquisa apresentada expôs um breve levantamento da formação latino-


americana, partindo da questão territorial não limítrofe, passeando por ambientes
culturais que se não aproximam alguns países latino-americanos por não se tocarem em
suas fronteiras ao menos os tocam diante das singularidades de suas histórias de
colononizados e culminando na análise da obra ficcional Bel Canto como microcosmo da
América Latina.
A partir desses dados levantados foi possível verificar quão cheios de aporias são
os conceitos de América Latina e de identidade latino-americana. Percebeu-se que o
indivíduo miscigenado, formado de várias culturas: a do indivíduo autóctone, a do
colonizador, a do negro, a do imigrante, a da sua própria cultura por tradição e aquela
outra que se deseja construir como negação da opressora, produz também uma cultura
154

também miscigenada, que não poderá possuir uma identidade única, porque em sua
formação, tornou-se múltipla.
Quando se aproximou a casa/cativeiro no romance de Ann Patchett do ambiente
amalgamado latino-americano, observou-se que tanto na obra ficcional quanto na História
dos países que compõem a América Latina, as comunidades sempre estiveram, segundo
Silviano Santiago (2006), em um lugar “entre” as metrópoles e a colônia; produziram
uma cultura “entre” a europeia e não-europeia e uma língua imaginada em uma
comunidade que assim também o era ou é.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão


do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: companhia das Letras, 2008.

A sociedade Peruana no Século XVIII. <http://mitakuye-


oyasinbrasil.blogspot.com.br/2008/10/sobre-o-mrta-movimento-revolucionrio.html>.
Acesso em: 11 ago. 2016.

BARZOTTO, Leoné Astride. Interfaces culturais: The Ventriloquist’s tale &


Macunaíma. Dourados- MS: Ed. UFGD,2011.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. - 8ª ed.- São Paulo: T.A. Queiroz, 2000.

Comitê Internacional da Cruz Vermelha: O movimento c.f.< https://www.icrc.org/pt/o-


cicv/o-movimento>. Acesso em 11 ago.2016.

FIGUEIREDO, Eurídice. Representações de Etnicidade: perspectivas interamericanas de


literatura e cultura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

MATÍNEZ, José Luis. Unidade e Diversidade. In: MORENO, César Fernández. (Org.
Coord.) América latina em sua Literatura. UNESCO. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.
61- 81.

PATCHETT, Ann. Bel Canto. Trad. Vera Joscelyne. São Paulo: Francis, 2005.

PIZZARO, Ana. O sul e os trópico: ensaios de cultura latino-americana. Trad. Irene


Kallina, Liege Rinaldi. Niteroi: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2006.

PORTUONDO, José Antonio. Literatura e Sociedade. In: MORENO, César Fernández.


(Org. Coord.) América latina em sua Literatura. UNESCO. São Paulo: Perspectiva, 1979,
p. 403- 418.

POZO, José del. História da América Latina e do Caribe: dos processos de independência
aos dias atuais. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
155

SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro: Rocco,


2006.

VARGAS, Augusto Tamayo. Interpretações da América Latina. In: MORENO, César


Fernández. (Org. Coord.) América latina em sua Literatura. UNESCO. São Paulo:
Perspectiva, 1979, p. 455-485.
156

CLARICE LISPECTOR: ENTRE A PENA E O PINCEL, AS PALAVRAS E


AS TINTAS

Prof. Dr. Neurivaldo Campos Pedroso Junior (UEMS)

Tente entender o que pinto e o que escrevo agora. Vou


explicar: na pintura como na escritura procuro ver
estritamente no momento em que vejo – e não ver através
da memória de ter visto num instante passado. O instante
é este. O instante é de uma iminência que me tira o folego.
(Clarice Lispector. Água viva, 1998, p. 75).

Uma coisa é certa e é inútil tentar modificar: é que Ângela


herdou de mim o desejo de escrever e de pintar. E se
herdou esta parte minha, é que não consigo imaginar uma
vida sem a arte de escrever ou de pintar ou de fazer música.
O que quer Ângela da vida? Aos poucos descobrirei.
(Clarice Lispector. Um sopro de vida, 1999, p. 83).

Passados quase quarenta anos da morte de Clarice Lispector, muita tinta ainda
corre no papel sobre a produção literária da autora. As análises da obra clariciana abarcam
as perspectivas mais tradicionais da teoria da narrativa, com ênfase na narrativa do fluxo
da consciência e do monólogo interior, passando pela crítica feminista e, mais
recentemente, abordagens centradas na crítica biográfica e cultural. Nos últimos anos,
contudo, a crítica tem se voltado para uma outra Clarice Lispector: a pintora. A produção
pictural clariciana foi realizada, em sua maioria, entre os anos de 1975 e 1976, totalizando
vinte e duas telas. Dezoito das telas assinadas por Clarice estão depositadas na Fundação
Casa de Rui Barbosa, enquanto outras duas foram presenteadas a Autran Dourado e
Nélida Piñon e, por fim, duas pertencem ao Acervo do Instituto Moreira Salles (IMS).
Nossa proposta neste texto é realizar uma leitura crítico-comparativa entre as telas de
Clarice Lispector e dois de seus romances, Água viva e Um sopro de vida49, uma vez que
estes podem ser lidos como uma “teoria” da/sobre a pintura clariciana. Já nas páginas
inicias de Água viva, podemos ler a seguinte passagem:

Escrevo-te inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti abstrato como


o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na
tela fixo o incorpóreo, eu corpo o corpo comigo mesma. Não se
compreende música: ouve-se. Ouve-me então com o teu corpo inteiro.
Quando vieres a me ler perguntarás por que não me restrinjo à pintura

49
Água viva foi publicado originalmente em 1973 e Um sopro de vida é um livro póstumo, organizado por
Olga Borelli e publicado em 1978.
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e às minhas exposições, já que escrevo tosco e sem ordem. É que agora


sinto a necessidade de palavras – e é novo para mim o que escrevo
porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada. A palavra é
minha quarta dimensão (LISPECTOR, 1998, p. 10).

Em sua maioria, as telas de Clarice foram produzidas ao longo do ano de 1975, o


que pode ser confirmado pela datação nas telas, quando tal especificação ocorre. É
interessante ressaltar, ainda, que os meses, quando registrados, vão de março a setembro,
o que evidencia a rapidez com que Clarice se lançou à execução de suas telas. Algumas
destas, contudo, não apresentam data. É o caso, por exemplo, de “Mandala”, “Nélida
Piñon Madeira feita cruz” e duas telas sem título. As demais são: “Interior de gruta” –
1960; “Gruta” – 07 de março de 1975”; “Escuridão e luz: centro da vida” – 19 de abril de
1975”; “Raiva e rei[ndifi]ção” – 28 de abril de 1975; “Cérebro adormecido” – 13 de maio
de 1975; “Eu te pergunto por quê?” – 13 de maio de 1975; “Perdida na vaguidão” – 13
de maio de 1975; “Tentativa de ser alegre” – 15 de maio de 1975; “Medo” – 16 maio de
1975; “Luta sangrenta pela paz” – 20 de maio de 1975; “Sem título (figuração do yin e
yang em fundo preto)” – 28 de maio de 1975; “Pássaro da liberdade” – 05 de junho de
1975; “Caos, metamorfose, sem sentido” – 13 de maio de 1975; “Ao amanhecer” –
setembro de 1975; “Explosão” – 1975; “Sol da meia-noite” – 1975; “Volumes” – 1975;
“Sem título” – 07 de maio de 1975. É importante destacar, ainda, que Clarice Lispector
segue à risca os protocolos tradicionais de identificação – a data, a assinatura e a inscrição
do título, elementos esses que aparecem quase sempre numa esquadria, no canto inferior
direito do quadro, além disso, para Carlos Mendes de Souza, “a presença do título no
próprio quadro, por vezes com marcas de acréscimo ou de rasuras, mostra um cruzamento
de caminhos ou uma natural contaminação com os lugares da literatura” (SOUZA, 2013,
p. 151).
Pensando nessa “natural” e mútua contaminação entre a literatura e as telas de
Clarice Lispector, entendemos que tentar discutir e analisar, no âmbito deste texto, todas
as telas claricianas, seria um projeto presunçoso, para não dizer impossível. Por isso,
procedemos à escolha de um corpus pictórico que será composto basicamente por telas
que são referidas/mencionadas ao longo das narrativas de Água viva e Um sopro de vida.
Esses dois romances, aliás, são exemplos de textos intermídias, de acordo com a
conceituação proposta por Irina O. Rajwesky em “Intermidialidade, Intertextualidade e
‘Remediação’: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade”. A comparatista russa
adverte ser bastante amplo o conceito de intermidialidade e propõe, então, que se
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verifique, em textos considerados intermídias, a existência das seguintes subcategorias, a


intermidialidade no sentido mais restrito de transposição midiática; de combinação de
mídias e de referências intermidiáticas. Interessa-nos, neste artigo, esta última
subcategoria, já que ela compreende, por exemplo, as “referências, em um texto literário,
a um filme, através da evocação ou imitação de certas técnicas cinematográficas como
tomadas em zoom, dissolvências, fades e edição de montagem” (RAJEWESKY, 2012, p.
25). O mesmo pode-se afirmar sobre as referências, em um texto literário, a pinturas
específicas e/ou às suas respectivas técnicas e metodologias. É o que ocorre em Água viva
e Um sopro de vida em que são encontradas não apenas referências às telas pintadas por
Clarice como também uma reflexão mais pontual sobre o modo clariciano de pintar.
Em um primeiro momento, não se pode ignorar o fato de que em ambos os
romances há a presença de uma pintora, seja como narradora-pintora, no caso de Água
viva, seja como a personagem-pintora Ângela Pralini em Um sopro de vida. A inserção
dessas duas pintoras nas narrativas claricianas não pode ser lida como algo incidental ou
aleatório, na verdade, acreditamos que, ao fazê-lo, Clarice acaba por promover uma
reflexão centrada no próprio ato de pintar, incluindo aqui preocupações técnicas, como,
por exemplo, a utilização das cores, a necessidade de se manter a unidade, o equilíbrio
das massas e também a oposição claro/escuro e que, em certa medida, podem ser
empregadas para uma melhor compreensão da “técnica” de pintura clariciana, mesmo que
esta seja marcada, em um primeiro momento, por uma falta de técnica. Ou, nas palavras
de Clarice:

O que me ‘descontrai’, por incrível que pareça é pintar. Sem ser pintora
de forma alguma e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que
dá gosto e não mostro meus, entre aspas, ‘quadros’ a ninguém. É
relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas sem
compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço.
Acho que o processo criador de um pintor e do escritor são da mesma
fonte.
O texto deve se exprimir através de imagens e as imagens são feitas de
luz, cores, figuras, perspectivas, volumes e sensações (LISPECTOR
apud BORELLI, 1987, p. 70).

Com a atenção voltada para o excerto acima, podemos afirmar que Clarice
Lispector é um exemplo de artista multimídia do qual nos fala Marc Jimenez em La
querelle de l’art contemporain, quando, ao discorrer sobre a atuação dos artistas
contemporâneos, registrará que, atualmente, os artistas não se prendem mais aos seus
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“médios” e procedem à obliteração das fronteiras interartísticas em nome de uma


produtiva interlocução:

De nos jours, l’artiste contemporain ne se limite plus à un seul médium.


Peintre ou sculpteur, il peut aussi cumuler les fonctions de perfomeur,
d’instalateur, de cinéaste, de musicien, etc. La fin de l’unité des beuax-
arts se caractérise effectivement par la dissémination des modes de
création à partir de formes, de matériaux, d’objets ou d’actions
hétérogènes que l’expression “art contemporain” définit
imparfaitement (JIMENEZ, 2005, p. 28).50

Em Água viva, vemos a primeira referência à tela “Interior de gruta” (figura 01),
pintada por Clarice Lispector em 1960.

E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra,
escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza – grutas
extravagantes e perigosas, talismã da Terra, onde se unem estalactites,
fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria
natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. Gruta
sempre sonhadora com suas névoas, lembrança ou saudade? espantosa,
espantosa, esotérica, esverdeada pelo limo do tempo (LISPECTOR,
1998, p. 15).

50
“Em nossos dias, o artista contemporâneo não se limita mais a um único media. Pintor ou escultor, ele
pode acumular as funções, de performancer, de instalador, de cineasta, de músico, etc. O fim da unidade
das Belas-Artes se caracteriza efetivamente pela disseminação dos modos de criação a partir das formas,
de materiais, de objetos, ou de ações heterogêneas que a expressão ‘arte contemporânea’ define
imperfeitamente”. Tradução nossa.
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Figura 01

Mais adiante, ainda em Água viva, há outra passagem com referência à tela
“Interior de gruta” (figura 01):

Quero pôr em palavras mas sem descrição a existência da gruta que faz
algum tempo pintei – e não sei como. Só repetindo o seu doce horror,
caverna de terror e das maravilhas, lugar de almas aflitas, inverno e
inferno, substrato imprevisível do mal que está dentro de uma terra que
não é fértil. Chamo a gruta pelo seu nome e ela passa a viver com seu
miasma. Tenho medo então de mim que seu pintar o horror, eu, bicho
de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e também o
seu eco (LISPECTOR, 1998, p. 16).

A tela de 1960 (figura 01) é constituída por raízes expostas e aéreos entrelaçados,
com predominância do verde-musgo, tons de marrons e vermelho. Além disso, as
nervuras do pinho-de-riga são contornadas tanto com pincel quanto com canetas
coloridas, o que acaba por realçar os sulcos no compensado e, dessa forma, enfatiza o
desenho da profundeza oculta de uma caverna. Neste ponto, devemos atentar para a
escolha de Clarice de empregar o pinho-de-riga como suporte material em suas telas. São
esclarecedoras as palavras da pintora-personagem Ângela Pralini, de Um sopro de vida,
e funcionam como uma “teoria” em torno do modo clariciano de pintar:
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Vivo tão atribulada que não aperfeiçoei o que inventei em matéria de


pintura. Ou pelo menos nunca ouvi falar desse modo de pintar: consiste
em pegar uma tela de madeira – pinho-de-riga é a melhor – e prestar
atenção às suas nervuras. De súbito, então vem do subconsciente uma
onda de criatividade e a gente se jogas nas nervuras acompanhando-as
um pouco – mas mantendo a liberdade (LISPECTOR, 1999, p. 53).

A escolha das placas de madeira como suporte para as telas de Clarice Lispector
e, consequentemente, a atenção especial aos contornos do pinho-de-riga, demonstra o
respeito de Clarice pelo material empregado na realização de suas obras, seja a madeira,
na pintura, seja a palavra, no texto literário. Se o fragmento acima ressalta o respeito pelo
“material” pinho-de-riga, a passagem a seguir demonstra o quanto a escritora brasileira
tinha um enorme respeito e cuidado com a palavras. Para a Clarice:

É tão curioso ter substituído as tintas por essa coisa estranha que é a
palavra. Palavras – movo-me com cuidado entre elas que podem se
tornar ameaçadoras; posso ter a liberdade de escrever o seguinte:
“peregrinos, mercadores e pastores guiavam suas caravanas rumo ao
Tibet e os caminhos eram difíceis e primitivos”. Com esta frase fiz uma
cena nascer, como num flash fotográfico (LISPECTOR, 1998, p. 23).

O que se percebe, a partir dos fragmentos acima, é que Clarice traz para o plano
da reflexão uma questão nodal da Crítica de Arte Contemporânea, a saber, a escolha de
determinados materiais em detrimento de outros por parte dos artistas. Em outras
palavras, haveria uma interdependência entre os elementos de determinada matéria
e/ou material escolhidos com os propósitos do artista. Logo, se o artista elege uma
matéria, no caso das telas claricianas, o pinho-de-riga, em detrimento de outras é,
talvez, porque saiba transitar e trabalhar melhor dentro dos limites específicos do
material eleito, pois os diferentes materiais também impõem suas regras aos artistas,
ou seja, cada matéria exigiria comportamentos e disciplinas específicos. Tal
preocupação pode ser sintetizada nas palavras da crítica de arte brasileira Fayga Ostrower:

(...) cada materialidade abrange certas possibilidades de ação e outras


tantas impossibilidades. Se as vemos como limitadoras para o curso
criador, devem ser reconhecidas também como orientadoras, pois
dentro das delimitações, através delas, é que surgem sugestões para se
prosseguir um trabalho e mesmo ampliá-lo em direções novas
(OSTROWER, 2001, p. 32).

Retomando as referências às telas de Clarice Lispector disseminadas na ficção da


autora, vemos que o fascínio por grutas aparecerá em seu livro póstumo, Um sopro de
162

vida, no qual encontramos menção à tela “Gruta” (figura 02), composta em 07 de maio
de 1975. Na narrativa clariciana, lemos a seguinte passagem: “Fiz um quadro que saiu
assim: um vigoroso cavalo com longa e vasta cabeleira loura no meio de estalactites de
uma gruta. É um modo genérico de pintar. E, inclusive, não se precisa saber pintar”
(LISPECTOR, 1999, p. 53). A tela apresenta uma geometria ímpar: círculos alongados e
irregulares, como cristal de rocha. Tanto o cavalo e quanto gruta só mesmo prefigurados,
no plano da idealização desse desenho que converge para cores brancas e preta, verde-
azul e tons de vermelho e amarelo.

Figura 02

Nesta e em outras telas de Clarice Lispector, vemos uma tônica que estará presente
na pintura cubista: a destruição, na superfície da tela, do objeto retratado. Tal destruição
implica certa relação amorosa entre o pintor e o objeto a ser “destruído”. Com base nessa
ideia, acreditamos serem significativas as palavras do pintor Pablo Picasso, quando
afirma que: “Não existe uma coisa chamada arte abstrata. Precisa-se sempre começar com
alguma coisa. Depois, pode-se remover todos os vestígios da realidade. De qualquer
modo não haverá perigo algum, pois a idéia do objeto terá deixado sua marca indelével”
(PICASSO apud SYPHER, 1980, p. 198).
163

Mais uma vez, destacamos que Água viva e Um sopro de vida são, não apenas
uma “teoria” sobre o modo clariciano de pintar, uma vez que suas telas se aproximam da
arte abstrata não-figurativa, mas podem ser lidos também como uma profunda reflexão
sobre a teoria e crítica das Artes Visuais de um modo geral, pois, às palavras de Picasso,
citadas anteriormente, poderíamos facilmente acrescentar as de Clarice, extraídas de Água
viva, quando a narradora-pintora afirma “quero escrever-te como quem aprende.
Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que o objeto,
a sua sombra” (LISPECTOR, 1998, p. 14. Grifo nosso).
Clarice Lispector, seja em seus livros seja em suas telas, reforça, de certa forma,
a ideia segundo de que o processo de produção de sentidos no qual a formação de imagens
pode ocorrer nas mais diversas artes, não apenas naquelas intituladas “Artes Visuais”,
mas passa a incluir a Literatura, a Música e a Dança, evidenciando que “o processo criador
de um pintor e do escritor são da mesma fonte”. Na verdade, vemos que, na literatura, a
linguagem longe de apenas apresentar imagens, torna-se ela própria uma imagem. Nesse
sentido, é Maurice Blanchot quem observa que “pensa-se de bom grado que a poesia é
uma linguagem que, mais do que as outras, abriga e legitima as imagens (BLANCHOT,
1987, p. 80)”.
A escritora brasileira, em Água viva e Um sopro de vida, ao ordenar, na página
em branco, os recursos linguísticos utilizados na construção do discurso poético, tais
como, as metáforas, metonímias, supressões, condensações, potencializa o poder da
palavra de evocar e legitimar as imagens. Assim, salvaguardando as diferenças entre o
material empregado pela pintora e pela escritora Clarice Lispector para evocar imagens,
constatamos que, enquanto a primeira pode utilizar-se das “coisas mesmas” e colocá-las
diante dos nossos olhos, a escritora produz o mesmo efeito ao utilizar-se, na composição
textual, de metáforas, metonímias e outros recursos linguísticos. E assim, a narrativa
clariciana, ao proporcionar os deslocamentos bem como as condensações daqueles
recursos, pode “até prescindir da imagem propriamente dita no sentido em que cria
imagem com palavra. A imagem verbal, evidenciando o corte entre o signo e o referente,
aumenta sua potencialidade de significações” (WALTY; FONSECA & CURY, 2000,
p. 51). Entretanto, não podemos crer que o fim de toda obra literária circunscreva-se
apenas a evocar imagens; talvez a obra literária seja esse espaço em que a linguagem, que
agora já abandonou seu caráter de representação fiel do real, torna-se, ela própria, uma
imagem.
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Em Um sopro de vida, a personagem Ângela Pralini tem um cão chamado Ulisses


e que, por sinal, era o mesmo nome do cachorro de Clarice Lispector, que acompanhou a
escritora em seus últimos meses de vida. Uma passagem da narrativa é significativa para
ilustrar a relação que a personagem Ângela tinha como seu cão Ulisses:

O cão é um bicho misterioso porque ele quase para que pensa, sem falar
que sente tudo menos a noção do futuro. O cavalo, a menos que seja
alado, tem seu mistério resolvido em nobreza e o tigre é um grau mais
misterioso porque seu jeito é mais primitivo ainda.
O cão – este ser incompreendido que faz o possível para participar aos
homens o que ele é...
Eu e meu cachorro Ulisses somos vira-latas (LISPECTOR, 1999, p. 60).

Nas páginas finais daquele romance, publicado postumamente em 1978, uma certa
melancolia toma conta da personagem Ângela e ela cria uma cena post mortem em que,
ao descrever a casa vazia após a sua morte, o cachorro é que se destaca. Ângela Pralini
(ou seria Clarice Lispector) assim escreve: “Eu quase que já sei como será depois da
minha morte. A sala vazia o cachorro a ponto de morrer de saudade. Os vitrais da minha
casa. Tudo vazio e calmo (LISPECTOR, 1999, p. 156)”. Essa passagem pode ser lida
como uma referência à tela “Tentativa de ser alegre” (figura 03), pintada por Clarice em
15 de maio de 1975. Nesta tela, notamos a figura de um animal, composta por grossas
camadas salmão e contornada por um fundo preto. Vemos, nessa atitude da pintora
Clarice Lispector no emprego das cores, o gesto de traduzir para a pintura o sentimento
de luto presente nas linhas finais de Um sopro de vida. O emprego dos materiais para a
composição da “Tentativa de ser alegre” pode ser assim ser sintetizado “o bicho que se
encontra deitado tem a parte interior do corpo torneada com cola líquida, decalcando
expressivos zigue-zagues em alto-relevos. Os filetes de cola preenchem linhas antes
delineadas de caneta vermelha” (IANNACE, 2009, p. 65). Pensando mais
especificamente em analogias estruturais entre o romance Um sopro de vida e a tela
“Tentativa de ser alegre” (figura 03), cumpre destacar que, na superfície da tela, o gesto
de preencher o interior do animal com cola e caneta vermelha é análogo, na superfície da
página, à tentativa de descrever e aproximar-se da vida interior de um cachorro: “se eu
pudesse descrever a vida interior de um cachorro eu teria atingido um cume. Ângela
também quer entrar no ser-vivo de seu Ulisses (LISPECTOR, 1999, p. 64).
165

Figura 03

Em 1975, Clarice recebe um convite para participar de um Congresso de Bruxaria,


na Colômbia, para a ocasião, escreve um texto chamado “Magia”, mas não o lê, optando
pela narrativa “O ovo e a galinha”. É interessante registrar que no texto escrito para aquele
evento havia a referência a um de seus quadros mais emblemáticos – Medo (figura 04).

[...] Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque
me faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama medo eu
conseguira pôr pra fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o
medo pânico de um ser no mundo.
É uma tela pintada de preto tendo mais ou menos ao centro uma mancha
terrivelmente amarelo-escuro. Parece uma boca sem dentes tentando
gritar e não conseguindo. Perto dessa massa amarela, em cima do preto,
duas manchas totalmente brancas que são talvez a promessa de um
alívio. Faz mal olhar este quadro (LISPECTOR apud BORELLI, 1987,
p. 57).
166

Figura 04

Das telas de Clarice, “Medo” (figura 04) é a que mais causa desconforto e
estranheza, posto que a “massa amarela” ao centro insinua certa aberração da natureza,
“organismo desfigurado, anômalo, espécie de disco viscoso apavorando no escuro”
(IANNACE, 2009, p.67). O fundo negro que realça a mancha amarelo-escuro é pastoso,
assim também é a consistência da tinta esparramada sem nenhuma ordem ou linearidade
no pinho-de-riga. É interessante registar que os quadros de Clarice podem produzir o
mesmo estranhamento que a obra literária da autora, que muitas vezes foi acusada de ser
hermética, de difícil compreensão. Nádia Batella Gotlib, ao fazer uma das primeiras
análises das telas claricianas, enfatiza que

[...] não são quadros agradáveis de se olhar. Também eles causam mal-
estar. As cores são lúgubres e distribuem-se num feio carregado. Nem
atraem pela combinação das cores ou pelo ritmo do traçado das linhas.
Impressiona a carga pesada, funesta, lúgubre (GOTLIB, 1995, p. 477)

Em Um sopro de vida, organizado por Olga Borelli e publicado postumamente


em 1978, há uma retomada ou uma variação (procedimento muito clariciano) do tema do
medo, presente na tela de 1975 (figura 04). A passagem, ainda que extensa, deve ser
trazida para o plano de nossa reflexão, uma vez que enfatiza, de um lado, a recorrência
167

de certas imagens na literatura tanto quanto na pintura de Clarice Lispector e, de outro,


permite-nos investigar a forma como a artista Clarice, utilizando suportes materiais
distintos, constrói aquelas imagens. Não se trata aqui de forjar apenas semelhanças entre
livros e telas, mas também em destacar as diferenças entre um e outro. Retomemos, então,
Um sopro de vida, onde encontramos uma das traduções mais viscerais do medo presente
na tela de 1975 (figura 04):

Tenho medo de escrever. É tao perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de


mexer no que está oculto – e o mundo não está à tona, está oculto em
suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho
que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas
é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue. Sou um escritor
que tem medo da cilada das palavras: as palavras que digo escondem
outras – quais? talvez as diga. Escrever é uma pedra lançada no poço
fundo.
Paciência de aranha formando a teia. Ademais fico perturbada por
enxergar mal no claro-escuro da criação. Fico assustadiça com o
relâmpago da inspiração. Eu sou medo puro (LISPECTOR, 1999, pp.
15, 63).

Longe de pretendermos “classificar” tanto a obra literária quanto a obra pictórica


de Clarice Lispector, cumpre ressaltar que em ambas há uma forte tendência à abstração.
Seja em seus livros seja em suas telas, como já procuramos demonstrar anteriormente,
percebemos que há em Clarice “uma tendência para deslocar-se cada vez mais do
figurativo, aproximando-se do ritmo e dos sons puros, desvinculados de compromissos
com a linha contínua do discurso e da história” (GOTLIB, 1995, p. 477). Dentro dessa
linha de raciocínio, é significativo resgatar a epígrafe de Michel Seuphor que abre a Água
viva:

Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura


– o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta
uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os
reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento,
onde o traço se torna existência (SEUPHOR apud LISPECTOR, 1998.
Epígrafe).

Lúcia Helena Viana, ao analisar os quadros de Clarice Lispector, atenta para o


fato de que a pintura e a escritura claricianas buscam cada vez mais libertar-se da
dependência do objeto, caminhando assim, para a abstração. Se, na pintura, esta tendência
pode ser evidenciada pela eliminação da figurativização, na literatura, ela compreende a
eliminação do enredo tradicional, cujo objetivo era o de contar uma história. A vertente
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abstracionista pode ser observada em expressões como “pinto ideias”, “pinto o indizível”,
“pinto pintura”. De acordo com Lúcia Helena Viana,

Em Água viva (1973) os procedimentos de experimentação se tornam


radicais. A narrativa se desliga do mito, do acontecimento, dos motivos
que tradicionalmente sustentam a ficção, voltando-se para si mesma e
produzindo, como viu Benedito Nunes, o esvaziamento do romanesco
que marca a literatura contemporânea (VIANA, 1998, p. 50).

Uma análise atenta tanto dos romances de Clarice Lispector e de suas tela,
permite-nos estabelecer analogia entre o romance e a pintura moderna; à eliminação do
espaço, ou da ilusão do espaço sofrida pela pintura moderna, parece corresponder, no
romance, à eliminação da sucessão temporal; a “cronologia, a continuidade temporal
foram abaladas, ‘os relógios foram destruídos’. O romance moderno nasceu no momento
em que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica, fundindo
presente, passado e futuro” (ROSENFELD, 1996, p. 80). Assim, a narrativa que se
dispuser a representar esses movimentos da consciência acabará colocando em questão
as noções de tempo e espaço como formas relativas e subjetivas. A atitude de Clarice
Lispector frente ao texto literário nos remete, também, àquelas empregadas pelos pintores
impressionistas, pois, tanto na superfície da página quanto na superfície da tela ocorrerá
o desaparecimento de uma realidade objetiva, que possa ser perfeitamente dominada pelo
escritor ou pelo pintor; o que se vê, agora, é o surgimento de uma posição adotada pelo
escritor, que até então não parecia ser possível, a de um sujeito que duvida, interroga e
procura alguma coisa. Assim, trata-se agora da “posição do escritor diante da realidade
que representa”, distanciando da realidade objetiva, procura-se, de certa forma,
“reproduzir o vaguear e o jogar da consciência, que se deixa impelir pela mudança das
impressões” (AUERBACH, 1987, p. 483). Consequentemente, haverá uma modificação
na estrutura do romance e até mesmo da própria frase, já que esta:

(...) ao acolher o denso tecido das associações com sua carga de


emoções, se estende, decompõe e amorfiza ao extremo, confundindo e
misturando, como no próprio fluxo da consciência, fragmentos atuais
de objetos ou pessoas presentes e agora percebidos com desejos e
angústias abarcando o futuro ou ainda experiências vividas há muito
tempo e se impondo talvez com força e realidade maiores do que as
percepções reais (ROSENFELD, 1980, p. 83).
169

Nesse contexto, podemos recorrer a Giulio C. Argan quando registra que o fato
que separa “nitidamente, com um autêntico salto qualitativo, a arte do nosso século de
toda a arte do passado, pelo menos na área da cultura ocidental, é a passagem do carácter
figurativo ao não figurativo, ou como é corrente dizer-se, à abstracção” (ARGAN, 1995,
p. 105). Pensamos que a pintura abstrata, mais especificamente as telas de Clarice
Lispector, coloca em discussão, de maneira singular, menos a questão da figurativização,
mas sim, seu próprio médium pictórico, ou seja, o objetivo da arte abstrata é tornar
“visível não a relação entre o objeto pictórico e as coisas do mundo, mas as possibilidades
de codificação de seu próprio código, a sua realidade plástica” (OLIVEIRA, 2004,
p. 117). Com isso, assistimos, por parte dos pintores, à uma reflexão mais sistemática de
seu oficio, de seu trabalho, reflexão esta que será transposta para a superfície da tela, ou
melhor, a reflexão sobre a pintura será, agora, tema para os pintores. Assim,

Quando a obra de arte começa a libertar-se da tarefa de registrar, de


representar, a realidade exterior a ela mesma e volta-se para seus
próprios elementos constitutivos, buscando realizar-se como objeto
autônomo e auto-reflexivo, a negação do caráter mimético como
essencial à arte domina progressivamente o pensamento filosófico
(SQUEFF, 2003, p. 100).

Com efeito, a análise de Água viva e Um sopro de vida, bem como das telas
compostas por Clarice Lispector, permite-nos afirmar que em suas obras, literárias e
pictóricas, a artista problematiza questões relacionadas ao processo de escrita, a
transmigração de imagens que perpassam vários textos da escritora, os visíveis diálogos
entre a Literatura e a Pintura, a personalidade do artista, o problema da mimese e da arte
abstrata, a leitura interpretativa e ideológica da obra. Logo, tentar apreendê-los, por meio
de uma leitura, que se quer última e totalizante, é um projeto no mínimo ambicioso, ou
presunçoso. Por isso, evocamos, aqui, as palavras finais da narradora/feiticeira de Água
viva:

Tudo acaba mas o que te escrevo continua, o que é bom, muito bom. O
melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.
O que te escrevo é um “isto”. Não vai parar: continua.
Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te ama. É o que está
certo.
O que te escrevo continua e eu estou enfeitiçada (LISPECTOR, 1998,
p. 95).
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Sim Clarice: o que escreveste continua e continuará – hoje, amanhã e sempre. E


nós também estamos enfeitiçados. Resta-nos, então, tentar desvendar teu enigma, tanto
na superfície da tela quanto na superfície da página, antes que estas, assim como
a esfinge, nos devorem.

Referências

AUERBACH, Eric. “A meia marrom”. In: ______. Mimesis: a representação da realidade


na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva,1987.

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,
1987.

BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987.

IANNACE, Ricardo. Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia. Belo


Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

JIMENEZ, Marc. La querelle de l’art contemporain. Paris: Gallimard, 2005.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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SOUZA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector: pinturas. Rio de Janeiro: Rocco, 2013.

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171

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WALTY, Ivete; FONSECA, Maria Nazareth Soares & CURY, Maria Zilda Ferreira.
Palavra e imagem: leituras cruzadas. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
172

PARTE V
VOZES FEMININAS, ESCRITA E RESISTÊNCIA
173

ESCOLHER OU SER ESCOLHIDA? A IMAGEM DA MULHER EM


UM JUDEU NA MINHA CAMA

Job Lopes51

Introdução

O artigo busca uma análise da imagem feminina na obra Um judeu na minha cama,
de 1976, escrito pela poeta Lília Aparecida Pereira da Silva. O texto dramatúrgico
apresenta a relação conturbada entre Luana e Gad. Um “casal” que vive uma relação
adultera, pois Gad é casado e mantém uma amante – Luana, na tentativa de sanar seus
abismos interiores. Porém, essa ideia deturpada se desfaz ao longo dos diálogos, nos quais
Luana se apresenta uma mulher fria, ambiciosa, que busca o amor, mas acima dele, o
poder e o sucesso profissional. Ela utiliza o amante como um degrau para alcançar os seus
objetivos. A personagem é constituída por elementos sensuais, mas também, de
persuasão, egoísmo e dissimulação. Talvez, a frieza do caráter de Luana seja uma forma
de defesa – contra as mazelas da vida, o amor, os homens ou especificamente Gad.
A personagem Luana ficcionalmente possui uma vida confortável, de artista sem
inspiração, que vivencia o drama do vazio imaginário. Uma mulher com mais de trinta
anos e com certa experiência de amores passados, que faz de Gad, seu sustento, seu lucro,
seu parceiro e amante, na busca de torná-lo o seu marido, ela usufrui de todas as
oportunidades que esse relacionamento conflitante pode te trazer. Com uma perspectiva
contemporânea a protagonista deixa de lado a opção de ser escolhida (pelos homens) para
poder escolher, decidir seus atos e suas acepções. A análise parte de um prisma
existencialista para se aprofundar em questionamentos inerentes ao ser humano, que se
constituem na imagem de Luana; poder, liberdade, ambição, infelicidade. Os autores
elencados para fundamentar a interpretação da obra correspondem aos estudos de
Mendlowicz (2009), Rocha-coutinho (1994), Ghilardi-lucena (2002), Kierkegaard
(2014).

Doutorando em Letras – estudos literários/UNIOESTE. Bolsista CAPES. Orientador Prof. Dr. Antonio
51

Donizeti da Cruz (UNIOESTE).


174

Luana: uma mulher sem romantismos

Luana diferentemente de seu amado compreende a liberdade por outra ótica,


conforme a cena, “Luana – O pensamento é sempre nosso, Gad. DEMAIS nosso. Em todo
o resto, tentamos também a liberdade. É o mais gostoso caramelo do século. Gad –
Liberdade é palavra feliz ou triste? Tantas vezes somos livres e solitários!” (SILVA, 1997,
p. 21). A protagonista tem uma ideologia mais realista em relação à liberdade, segundo
ela, o indivíduo é responsável pelo que pensa, logo por suas ações e atos. Dessa forma, a
liberdade está nas tentativas do homem de se realizar.
Seguindo uma perspectiva existencialista, a angústia leva o sujeito a tomar
consciência de sua liberdade, isto é, a angústia é uma das consequências de ser livre. A
liberdade precede a existência humana, pois é sua essência. A liberdade não é um
sentimento possível ou uma emoção a ser alcançada, mas o ser individual como projeto a
realizar-se. O indivíduo vivencia inúmeras possibilidades, porém essas decisões devem
ser tomadas unicamente por ele, dessa forma, a solidão e a melancolia se abatem como
forma de isolamento, afim de que ele reflita sobre si e suas escolhas.
Segundo o autor, “nós somos liberdade e liberdade não é arbítrio, mas opção e
escolha de nós mesmos” (JASPERS, 1993, p. 361). A liberdade encontra-se na essência
da existência. O que move a liberdade é a racionalização do homem, o fato de questionar
algo. O indivíduo vive de dualidades e paradoxos, por esta razão, que há liberdade, pois
o homem vive cercado de imposições e limitações. Diante dessas barreiras politicas,
sociais e culturais, a liberdade jamais pode ser dada em sua totalidade, mas vivenciada
constantemente em fragmentos.
Gad e Luana são dois sujeitos livres, mas que compartilham dessa liberdade de
formas distintas. Gad é o patriarca de uma família de classe média alta e constantemente
tenta alimentar essa posição patriarcal. Ele buscar ser o bom marido e o pai atencioso para
seus filhos. Porém, essa linearidade entre o trabalho e a casa o leva ao desgaste emocional,
o que leva ele a ter uma relação com Luana, pois essa seria sua liberdade, sua fuga e seu
refugio dos conflitos cotidianos. No entanto, com o decorrer do tempo, Gad percebe que
a liberdade também não está nessa segunda relação, e que os afetos são muito mais
contundentes com Luana do que com sua esposa.
Luana é uma artista que se frustra pela falta de dinheiro para investir em sua
carreira. É uma mulher bonita e sensual, que se vale de sua beleza para seduzir os homens.
Interessa-se por Gad, pois acredita que seu dinheiro a fará realizar-se como escritora.
175

Entretanto, o caso se arrasta sem corresponder as suas expectativas. Diferentemente do


jovem, ela compreende a liberdade como inerente à existência e um ato de escolhas. Dessa
maneira, Luana sofre menos por ter consciência de que sua condição de amante é uma
escolha sua e não um fardo – como o casamento de Gad. O que pode ser analisado na
cena abaixo,

Luana – Eu o transformei em meu prisioneiro. Você gostou da prisão.


Gad – Todos nós somos cobaias de alguém. E você, de quem é?
Luana – De mim própria. Agora pode me dizer que sou minha glória e
minha frustração... (SILVA, 1997, p. 55).

O diálogo apresenta duas visões sobre a liberdade: Luana possui a consciência de


que aprisionou o jovem aos seus sentimentos. Pretenciosa e astuta, ela acredita que Gad
perdeu sua liberdade ao se apaixonar por ela. Além disso, a protagonista não se sente
presa a ninguém a não ser aos seus afetos. Já, Gad tem uma ideia de dependência – ao
acreditar que está “acorrentado” ao convívio com a amante, o que fortalece o domínio da
amante sobre ele. Luana escolheu abdicar de uma vida de casada, de senhora do lar, de
mãe, esposa, para permanecer como amante, uma vez que, essa posição à torna livre de
obrigações matrimoniais, afetivas e morais. Luana se isola em seu apartamento como se
ele fosse o seu mundo. E nesse universo entre paredes, ela se exime de culpas morais, por
não ter constituído uma família ou laços duradouros. Gad é sua única referência afetiva,
ainda que ele tenha sido sua ascensão, mas ele é também suas emoções – o lado romântico
que se esconde no coração de uma mulher que busca o sucesso profissional, mais que
amoroso. O que ela quer é torna-se uma artista reconhecida, ter seus livros vendidos, suas
obras de arte aplaudidas, o que alimenta sua existência é a vontade de realizar-se
profissionalmente e não afetivamente. A psicanalista Eliane Mendlowicz expõe uma
breve síntese sobre as transformações conjugais e o papel da mulher,

No século XIX, difundiu-se a ideia do amor romântico. Como


consequência, gradativamente, começaram a ser valorizados nos laços
matrimoniais, além da posição social e financeira do futuro cônjuge,
aspectos afetivos, emocionais e sexuais. Essa tendência foi
extremamente intensificada no século XX, chegando a ponto de o casal
valorizar mais a questão amorosa do que as responsabilidades com os
filhos. Com o passar dos tempos, a estrutura familiar modificou-se. As
mulheres passaram a ter um papel mais importante na educação dos
filhos, já que as famílias diminuíram consideravelmente de tamanho, e
passou-se a valorizar a vulnerabilidade infantil, sendo a mãe a grande
responsável pelo respaldo emocional das crianças. O foco central
familiar deslocou-se da “autoridade patriarcal para a afeição maternal”,
176

como escreveu Mary Ryan (1981, p.102). Até muito recentemente, as


mulheres deixavam a casa paterna somente para casarem-se. Nesta
última geração, é que as mulheres passaram a valorizar sua
independência financeira (MENDLOWICZ, 2009, p. 48-49).

Com os avanços da modernidade, o intercâmbio de culturas, o cosmopolitismo –


o sujeito tornou-se independente, e assim, a mulher, figura historicamente submissa e
dependente passou por modificações ideológicas com o decorrer do tempo. E atualmente,
ainda que haja diversas mulheres voltadas exclusivamente ao matrimônio e à vida
doméstica, se vislumbra também um elevado número que subvertem os moldes
patriarcais. E como exemplo dessas novas mudanças, se caracteriza a personagem de
Luana – poeta, pintora, musicista que se submete a ser amante e se aproveita da relação
para viver confortavelmente.
Luana descontrói a imagem de mulher romântica, de idealizações amorosas e
afetivas, pois se configura como uma mulher em busca de sua realização própria, e não,
de uma realização pautada em um homem, ou em um casamento feliz.

Gad – Não! Você ama a si própria.


Luana – Discordo. Ajo de acordo com meu instinto de conservação.
Torno-me individual por isso. Também para viver preciso de dinheiro,
tendo empregado tudo que tive em imóveis. Para mim, mais que
dinheiro, vale o tempo. É dele que preciso para me realizar. Resultado:
vivo com você para que me propicie o tempo. É bem isso e nada mais
(SILVA, 1997, p. 68).

De acordo com Ghilardi-Lucena (2002), a ideia patriarcal de que a mulher tem


que ser bela ou deve ser com o propósito de arrumar um companheiro (namorado, marido,
amante) é uma concepção ultrapassada socialmente, pois vestir-se belamente não é um
ato necessariamente de busca sexual ou afetiva, mas de um estar bem consigo mesmo, de
ser admirada, elogiada. Nos séculos anteriores, tradicionalmente, a mulher apenas
tornava-se atraente para ser conquistada. Na contemporaneidade, ela é quem conquista.
“A imagem de moça comportada está dando lugar à de mulher liberada. De conquistada
a conquistadora” (GHILARDI-LUCENA, p. 85, 2002.).
Luana é uma mulher que se caracteriza por sua beleza, mas também pela forma
realista e sem máscaras de enxergar a vida. Uma das razões que a tornam “fria” e cética
diante dos acontecimentos pode ser justificado por sua travessia infeliz no âmbito pessoal
e profissional. A protagonista diferente das mulheres da década de setenta optou por não
se casar e o que se refere ao campo profissional, ela sonhava em ser uma artista, publicar
177

poemas e expor seus quadros, porém pela falta de dinheiro jamais conseguiu levar a diante
suas pretensões.
Com uma trajetória conturbada e de inúmeras frustrações, a personagem se
configura uma mulher sem grandes expectativas em relação ao futuro, pois compreende
que a felicidade em sua plenitude é uma busca ilusória dos sujeitos. Essa consciência de
Luana se dá pela sua maturidade e também por seu conhecimento existencial adquirido
pela vida de escritora e artista plástica. A personagem se posiciona diante da vida com
uma ótica pessimista, mas sem deixar que as ilusões sociais a corrompam.

Luana – E faz de conta que não sei disso! Redundância! Prolixidade


sua... Entenda, Gad, todos dizem que a vida é uma merda, mas acho que
ela serve para sacudir a alma dos indivíduos lúcidos. Viver é uma praga,
mas tem lá seus encantos. (SILVA, 1997, p. 62).

A imagem feminina que se constitui na obra Um judeu na minha cama é de uma


mulher com autonomia em seus pensamentos, que não se deixa levar pelas opiniões e
moralismos de uma sociedade ditada por homens. A protagonista ao contrário das
princesas dos contos de fadas clássicos vive os desencantos da realidade e sabe lidar com
firmeza e sabedoria diante dos obstáculos interiores que atormentam os seres reais.
Luana não se destaca apenas pela condição de amante que exerce no drama, mas também
pela riqueza de sua alma de artista e pelo seu talento de poeta que se intensifica nos
diálogos ficcionais. No desabafo com sua amiga Mayla, a protagonista manifesta a
consciência de sua vida infeliz e de um futuro melancólico ao lado de Gad. Quando ela
se questiona, “Pondere comigo, Mayla: qual pode ser o caminho de uma mulher que se
apegou a um homem casado a não ser o próprio sofrimento? E por que mais esse destino
para mim?” (SILVA, 1997, p. 142), pode-se observar uma percepção reflexiva da
personagem, sobre um futuro pungente ao lado do amante. Consciente do porvir, Luana
busca uma maneira de desemaranhar dos conflitos afetivos, ainda que sofra no findar.
A escritora constrói uma personagem com elementos artísticos o que torna ainda
mais profundo os seus diálogos. A protagonista tem um olhar crítico diante dos laços
sentimentais e uma postura que transcende os padrões patriarcalistas. Luana concebe uma
visão realista do universo, um pouco amargurada, mas resultado das suas experiências.
“Por essa razão, a gente deve ser como as borboletas, passar além do chão, pelas coisas,
sem se demorar nelas” (SILVA, 1997, p. 142). A protagonista tece um enunciado
178

conotativo, que por meio da comparação, manifesta um desprendimento dos objetos, o


que torna sua vivencia menos excruciante.
O papel de amante que Luana exerce faz uma subversão do arquétipo que a
sociedade constitui. Luana não se tornou amante movida pelo amor por Gad e pela busca
de um futuro ao seu lado. A protagonista se prendeu ao judeu, em razão, da vida
confortável e ociosa que ele a propiciaria. Dessa forma, ela poderia ter tempo para se
dedicar às artes e à literatura. Porém, com o decorrer dos anos, ela também se envolve
afetivamente, e ainda, que se afaste dos conflitos emocionais, já se encontra enredada por
esses sentimentos. “Luana – O pouco que me dá NÃO PAGA A GUERRA ESPIRITUAL
A QUE ME SUBMETE” (SILVA, 1997, p. 173 – grifo da autora). Para ela o que há de
nocivo na relação dos dois, não está relacionado aos sentimentos de Gad, mas a
perturbação interior que ele causa nela.

Luana – Precisei do seu dinheiro, porque estava a nenhum. E você


jamais precisou do meu... Essa é a simples verdade da nossa estória. Ou
pensa, que uma escritora, uma pintora não precisa de tempo para
realizar a sua arte? Ou julga que fui ociosa durante esses anos e não
procurei ir ao encontro do meu ideal o mais possível? E ainda mais:
estou-me lembrando de que você não cobriu meu último cheque e me
cortaram pela terceira vez no banco (SILVA, 1997, p. 173).

Em um melancólico diálogo com o amante, Luana objetivamente expressa sua


face fria e impassível em relação aos laços que os unem. Para ela, o que define sua estória
com Gad está ancorada no dinheiro e nas facilidades que sua vida com ele a
proporcionaria. O texto dramatúrgico apresenta o sujeito masculino como um ser
fragilizado, subjugado e tolerante, dessa maneira promove uma inversão de gêneros e
demonstra uma mulher racional e objetiva diante de um homem sensível. Lília Silva
apresenta personagens transcendentes que acompanham as mudanças da
contemporaneidade. Gad, ainda que permaneça num papel patriarcal – sendo o provedor
da família e da amante, sofre desesperadamente pela infelicidade que o assola e pela
solidão que o corrói. Sobrejacente a esse sofrimento se encontra Luana, que se une ao
jovem pelo dinheiro e ao ser mais racional que ele, passa pelos conflitos de forma mais
amena. Há, nessa condução do drama, uma perspectiva inovadora quanto aos papéis de
gênero, uma negação da ‘virtuosa’ fragilidade feminina e da “viril” força masculina.
O papel que a protagonista exerce na obra Um judeu na minha cama, se torna
transgressor na medida em que a personagem desempenha uma posição ativa no drama.
179

Luana é independente em suas ações e não deixa se levar pela opinião de seus amigos ou
do amante. Ainda que os dois sofram, o jovem é que se abala mais com os conflitos entre
ambos. Segundo a autora,

As mulheres têm sido levadas, nos últimos anos, assim, a buscar um


novo entendimento do seu papel. Querem pensar e agir por conta
própria, mas seu planejamento de vida ainda inclui a antiga identidade
feminina, o que faz com que sua vida se realize no conflito de
expectativas contraditórias como ter uma formação profissional e uma
carreira ou adaptar-se ao ciclo familiar, ter ou não ter filhos, entre outras
(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 62).

A mulher contemporânea está inserida em conflitos distantes dos séculos XVIII e


XIX. Hodierno, o papel feminino está transitando entre a dualidade do lar e do trabalho,
da casa e da rua, do matrimônio e da autonomia. Luana se apresenta como reflexo dessas
mudanças atuais – ela guia sua vida conforme suas acepções e objetivos, dessa maneira
se posiciona muito mais realista e racional que o personagem masculino. Conforme
Luana, “Nossa frustração vai-se acumulando no subconsciente e conservamos sempre
uma ilusão de encontrarmos o perfeito. Então, nem que ela não nos traga JAMAIS A
FELICIDADE, empenhamo-nos de corpo e alma a realizá-la” (SILVA, 1997, p. 184).
Observa-se, uma ideia aplicável à vida social sem resquícios de fantasia, um pensamento
sólido que expressa a sabedoria de uma mulher experiente/madura que conhece as
mazelas e dissabores da existência.

A liberdade idealizada

A obra Um judeu na minha cama, apresenta uma relação marcada pelos


sentimentos e conflitos afetivos. O que caracteriza a existência individual são as emoções
peculiares vivenciadas por cada ser. O indivíduo constrói o seu destino a partir das suas
escolhas e dos seus afetos, pois é um sujeito consciente, capaz de fazer escolhas livres e
intencionais, ou seja, escolhas nas quais irão definir seu futuro e suas ações. A escolha é
um processo natural da existência humana e a liberdade de escolher é um ato que
preocupa, angustia e inquieta, uma vez que gera responsabilidade pela autoria do seu
destino e compromisso com as suas consequências. A liberdade de escolha não é
meramente uma parte da vida, mas um reflexo dela, dessa forma a identidade e as
características do indivíduo seriam consequências das suas próprias escolhas.
180

Gad e Luana vivem um relacionamento adúltero, uma união contundente que ora
se coloca no campo amoroso, ora se manifesta como um jogo de poderes – ele busca o
prazer, ela busca o conforto financeiro. Gad vivencia a rotina de um casamento
desgastado pela monotonia do cotidiano e encontra em sua amante a liberdade – uma
possibilidade de se expressar sem receios e sem máscaras. Porém, será que essa liberdade
existe? E ao deparar-se com uma nova prisão – o relacionamento com Luana, o
protagonista se angustia pela falta de liberdade, de poder se revelar sem disfarces. O que
pode ser observado no diálogo a seguir,

Gad – Liberdade! Liberdade!... Procuro-te e não te encontro! Andei


pelas estradas e vislumbrei angústia, só sofrimento. A escuridão não me
deixava ver, somente apalpar as paredes frias... Como é frio este
mundo!... Oh, quem poderá libertar-me? Sofrimento atroz que me
persegue! Espero o raiar do dia para encontrar a luz da esperança
(SILVA, 1997, p. 20).

A angústia encontra-se vinculada à possibilidade. Ou seja, ela está alojada no


oculto, no indefinível, naquilo que não se pode tocar ou ver. É uma incerteza que constitui
junto de si outras variáveis indefinidas. Entre as inúmeras possibilidades, a que aflige o
sujeito desde seu nascimento é a “liberdade”, que é almejada em toda sua existência.
Porém, ela se constrói apenas como possibilidade. O homem através de seu
posicionamento no universo tem a oportunidade de moldar seu destino, mediante suas
escolhas. Essa liberdade possibilita contribuir para a própria realização, mas também
poder negá-la. O mistério diante da vida e a subjetividade em relação aos acontecimentos
expõe a fragilidade humana, na qual um dos maiores sintomas é a angústia existencial e
a realização da existência como possibilidade.
Gad busca uma liberdade idealizada, uma maneira de ser livre, de consequências,
culpas, uma forma de viver sem preocupações. Porém, ele já é livre, sua liberdade está
nas suas escolhas e estar com Luana se torna uma opção. O jovem não necessita ter uma
amante em sua vida, mas se possui é devido ao seu direito de escolha. “Gad – Liberdade
é a palavra feliz ou triste? Tantas vezes somos livres e solitários!” (SILVA, 1997, p. 21).
Segundo os estudos de Jean-Paul Sartre (1997), o ato da escolha revela a
responsabilidade, o homem se constitui em um mundo configurado por decisões. Dessa
maneira, ele deve optar por uma alternativa e por um critério pelo qual essa alternativa
foi escolhida. A angústia significa: optar, decidir, escolher, entre alternativas que não
possuem critérios externos. É necessário escolher para que o indivíduo possa ser livre.
181

Assim, sempre que está diante de uma ação, o sujeito se torna responsável por tudo o que
escolhe, porque não há outra opção que não seja exercer a liberdade.
A cena apresenta um personagem frustrado, pois almejou alcançar a liberdade –
que para ele se encontrava no convívio com Luana e se deparou com o sofrimento da
desilusão. Gad se encontra deprimido diante de uma busca impossível o que torna sua
vida obscura. A partir do momento que suas ideias se diluem se desfazem com elas
também, sua alegria e seu deleite pela existência. Assim, o protagonista se encontra em
uma escuridão psíquica, onde somente a possibilidade poderá reabrir novos horizontes.
O homem é movido pela esperança, pela vontade de buscar algo, e quando esse desejo
acaba, se finda com ele também a existência. O seguinte fragmento apresenta essa ideia,
“Espero o raiar do dia para encontrar a luz da esperança” (SILVA, 1997, p. 20). Gad ainda
que esteja desapontado com a ausência de liberdade, não consegue deixar de acreditar na
possibilidade de encontrá-la, como se o futuro pudesse trazer respostas que o presente
não possui.
Segundo Kierkegaard, o passado não pode desenvolver no homem a angústia, para
que isso ocorra é necessário que haja uma relação com o futuro ou quando um evento
passado – tragédia, trauma ou perda é posto em relação dialética com a culpa. Assim, o
indivíduo se angustia diante da possibilidade e diante do futuro.

O passado, pelo qual eu deveria angustiar-me, deve estar numa relação


de possibilidade para mim. Se me angustio por um infortúnio passado,
não é por aquilo que passou, mas sim por algo que pode vir a repetir-
se, isto é, vir a ser futuro. Se ela é mesmo realmente passada, então não
posso me angustiar, mas somente me arrepender. Se eu não o faço,
então eu me permiti antes fazer minha relação com ela dialética, mas
com isso, a infração se tornou ela mesma uma possibilidade e não algo
passado. Se me angustio diante do castigo, então este é posto somente,
tão logo, numa relação dialética com a infração (caso contrário, carrego
meu castigo) e, então, eu me angustio diante da possibilidade e diante
do futuro (KIERKEGAARD, 2014, p.98).

Gad buscou em sua amante a liberdade que não possuía com sua família. Porém,
ao longo do tempo foi se sentindo só, distante dos seus filhos e de sua esposa, pelos quais
não se importava mais. E com Luana ainda que a convivência fosse frequente, era como
se ele não tivesse segurança, já que compartilhavam uma relação oculta. O que o trecho
seguinte apresenta, “Gad – Você representa minha fuga, minha frustração, meu amparo
e, pior de tudo, minha maior angústia. E pensar que, apesar disso, nossa convivência é
nossa solidão...” (SILVA, 1997, p. 21). O personagem se angustia por buscar na amante
182

uma liberdade inexistente, e essa inquietude aumenta com o vazio que se abre em sua
existência, pois ainda que tenha duas mulheres, é como se não tivesse nenhuma, já que
ambas não preenchem as lacunas de sua vida.

Considerações Finais

Luana e Gad vivem os dois lados da escolha, ele se sente preso pelo matrimônio
e por esta razão sem liberdade, ela por não ter filhos e nem compromissos conjugais seria
aparentemente “livre”, mas opta por se prender ao dinheiro e as regalias que sua relação
incompleta com Gad pode oferecer. Os personagens ao fazerem suas escolhas apresentam
as opções que consideram mais viáveis, seja por medo ou por necessidade. A liberdade
une os indivíduos à sociedade, os tornando responsável por seus atos e pelo tipo de sujeito
que desejam ser. As escolhas do homem geram um sentimento de responsabilidade.
Diante desse peso que o homem carrega por cada decisão tomada – surge a angústia pela
inquietação da escolha.
A escolha de Luana em permanecer durante anos como amante de Gad, não é
somente pelas condições financeiras propiciadas por ele, mas uma consciência realista
diante da existência. Luana não quer permanecer sozinha, dessa forma, passa a prezar
pelo relacionamento com Gad. Mas também, não quer viver atrelada as obrigações
matrimoniais, o que justifica o seu convívio com o judeu – uma forma de não ser nem
esposa, nem mãe, mas apenas uma mulher sem moralismos disposta a realizar os seus
sonhos individuais.

Referências

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masculino: mídia, literatura e sociedade. Campinas, SP: Alínea, 2008.

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Octanny Mota. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 140-160.

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Petrópolis: Vozes, 2014.

MENDLOWICZ, Eliane. A sociedade contemporânea e a depressão. São Paulo: Trivium,


2009.

ROCHA-COUTINHO, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas


relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
183

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de fenomenologia ontológica. Tradução de


Paulo Perdigão. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

SILVA, Lília A. Pereira da. Um judeu na minha cama. São Paulo: João Scortecci, 1997.
184

AS PULSÕES DO EU, ENTRE A NECESSIDADE E O DESEJO:


ESCRITA E RESISTÊNCIA FEMININA NA OBRA O SONHO DE ELECTRA,
DE BIDISHA BANDYOPADHYAY

Claudiane Prass52

No romance da autora Bidisha Bandyopadhyay, intitulada pela tradução em


português de O Sonho de Electra é possível encontrar marcas da releitura do enredo da
mitologia da tragédia grega. Na versão original, o título em inglês é Seahorses, que
traduzindo significa cavalos marinhos, não há nada nesse nome que corresponda ao título
na versão brasileira - O sonho de Electra. Segundo o que a própria autora explicou em
correspondência eletrônica é de que o nome original tenha sido selecionado, pois, na
espécie dos cavalos marinhos, o macho cuida de sua prole, como no caso da narrativa, na
qual a adolescente mora sozinha com o pai (Valium), desde sua infância, porque sua mãe
falecera, portanto, restava ao pai a responsabilidade da criação e cuidados para com a sua
filha. Já na tradução ao português, o título encontra-se voltado à temática do incesto entre
pai e filha, que engloba a obra, vale frisar que a tradutora Lídia Cavalcante-Luther já
traduziu inúmeros romances do inglês para o português, sendo pós-graduada lato sensu
em tradução comentada53.
No romance, o Mito de Electra se faz presente no enredo, sendo que a personagem
central, Pale, se apaixona pelo cineasta Will Corrin de 38 anos, diretor do filme que,
justamente, é também intitulado de O sonho de Electra. Enquanto ela ainda era uma
menina, sentia-se desintegrada do mundo dos adultos, frágil como uma boneca de
porcelana. Entretanto, seu desejo era quebrar a linha divisória imaginária para integrar
esse universo ao qual, ainda, não pertencia:

Ela achava que não tinha nada de atraente. Dura e fria como cristal de
rocha, com olhos cor de carvão e pele clara e lisa, porém, opaca como
ardósia, ela estava longe do que se podia chamar de ideal. Seu rosto, da
consistência de argila, não tinha expressão nenhuma. Via as mulheres
ao seu redor e se perguntava o que precisava para rebentar a casca de
boneca e se infiltrar na vida delas; havia alguma coisa que a separava
delas, mais fina que uma cortina de tule, e no entanto mais

52
Mestra pelo Programa Strictu Sensu Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa Linguagem Literária e
Interfaces Sociais: Estudos Comparados, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE,
Cascavel - Pr (2016). claudianeprass@yahoo.com.br. Este artigo é resultado de parte da Dissertação de
Mestrado orientada pelo professor Dr. Antonio Donizeti da Cruz.
53
A tradução do poema da página 90 é de Maysa Monção Gabrielli e, da página 92, de José Paulo Brait.
185

inquebrantável que mil elos de uma corrente de ferro, que ela sentia
barrar-lhe a entrada. [...] tudo era na verdade desejo, tudo era sensação
física; ela existia apenas para sentir. E sentia que era inocente demais.
(BIDISHA, 1998, p. 15-16).

Para isso, precisava passar pelo ritual ou rito de passagem da adolescência para a
vida adulta, “quebrar sua fina cortina de tule”, e Will representava uma oportunidade para
romper com essa incógnita frustrante, instigada pela curiosidade e desejo físico, o que
induz a adolescente de quinze anos a manter sua primeira relação amorosa íntima com o
personagem Will, de trinta e oito anos, apenas três anos mais novo que Valium, seu pai.
A garota conhece seu pretendente em uma livraria, ambos se cruzam ao acaso.
Ao ser questionado sobre seu novo envolvimento pessoal, o cineasta relata a idade
da garota para seu amigo, o compositor Juliane Morgan, que o ironiza. Irritado Will
contesta que não foi sua escolha e que Nabokov (escritor russo que escreveu o livro
“Lolita”, o qual narra a história de um professor de música que se apaixona por sua
enteada de apenas doze anos) estivesse completamente enganado e talvez Freud
(precursor da psicanálise, estudou o complexo de Édipo – paixão do filho pela mãe, teoria
oposta ao complexo de Electra - paixão da filha pelo pai) também estivesse:

[...] Juliane disse:


- Está bem. E os detalhes? Quero fatos concretos. Idade, nome,
endereço.
- Pale Jesson. Tem quinze anos...
- Perfeito!
- Cale a boca. Não foi uma escolha minha. Nabokov estava
completamente enganado. E talvez Freud também...
- Mesmo assim você vai esmiuçar todos esses mitos de mocinhas no seu
novo filme?
(BIDISHA,1998, p. 111).

No início do livro, nas páginas nove e dez, Will é descrito pela autora como um
ex-jornalista que escrevia sobre a moda e filmes; experiente em propaganda e desenho
gráfico; produzira, ainda, resenhas sobre exposições de arte e óperas; e, inclusive, atuara
como modelo em afortunados tempos. Entretanto, agora aos seus 38 anos, sentia-se
cansado, precisando acalmar seu estado de ritmo de vida, havia envelhecido, porém,
influenciado pelos romances que lera, abrigara algumas fantasias românticas: “Em algum
canto na sua cabeça havia um jardim mitológico de contentamento onde meninas-moças
de cabelos longos vestidas de algodão branco jogavam tênis e bebiam chá o dia inteiro,
enquanto os cisnes navegavam as águas impassíveis de lagos repletos de Evian”.
186

(BIDISHA, 1998, p. 9). Nesse trecho, ao oposto da linguagem utilizada pela autora na
maior parte da escrita de sua narrativa, constata-se uma certa poeticidade, recorrendo-se
ao imaginário simbólico de imagens mitológicas que repassam, justamente, essa busca
pela tranquilidade na vida deste personagem, como os cisnes e lagos de Evian. O cisne é
considerado uma ave imaculada e é o símbolo do primeiro desejo que é o desejo sexual,
enquanto os lagos podem representar um paraíso ilusório, sendo que, simbolizam as
criações da imaginação exaltada. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2012, p. 257 -258;
533). Portanto, nota-se a relação da ave cisne com a pureza, inocência, castidade,
características que Will encontrará em sua nova conquista amorosa, Pale.
A narradora ao continuar a descrevê-lo recorre à palavras ásperas, até de certo
modo grotescas, para frisar seu envelhecimento, “[...] com seu rosto acabado e os
músculos atrofiados, seus pés doloridos e joelhos reumáticos, as nádegas moles e a
virilidade ressequida, com seu cérebro de lata enferrujada chocalhando com os feijões
torrados da memória”. (BIDISHA, 1998, p. 9). Em outro momento, durante o diálogo
acima citado, Juliane comenta sobre a beleza física de ambos, “Isso também. Quero dizer,
não sejamos modestos somos bonitos pra caralho”. (BIDISHA, 1998, p. 107). Para o
músico, a beleza é um privilégio e teria ajudado Will em diversas vezes, pois, em sua
opinião, não haveria tanta tolerância em relação à constante troca de profissões, caso seu
amigo não fosse tão charmoso. Will retruca a afirmação do compositor, “Então, não acha
que está jogando fora sua beleza? Ficando aqui sozinho?” Obtém porém, a seguinte
réplica: “Não sou como você. A beleza física não quer dizer nada para mim. Prefiro o
intelecto essencial. A inteligência sem alarde. A presunção me irrita”. (BIDISHA, 1998,
p. 107).
Pale durante a conversa com sua amiga Holly pelo telefone afirma que, “Ele pode
ser mais experiente que eu. Mas sou mais inteligente. O momento em que ele abre a boca
é o começo do fim” (BIDISHA, 1998, p. 83), ou seja, Will não era visto como um
intelectual ou alguém de conhecimento notório. Ao contrário de Juliane, 39 anos, que era
inteligente, ligeiro, astuto, rico, bonito, compositor de sucesso, tinha bom gosto, cuidava
de sua aparência, de seu comportamento, gestos, lia muito. Havia em sua casa prateleiras
repletas de romances e livros das diversas ciências, de autores renomados, aparentando
serem de uso constante. Apesar disso, vivia totalmente isolado, morava em lugar nobre
da cidade, em Hertfordshire, numa mansão enorme. Ian Litner, 27 anos, residente em
Turnpike, morador da periferia da capital, localizada ao norte de Londres, era o secretário
do compositor e também, amigo de Will. Tinha olhos azul acinzentados e, às vezes, verde
187

alga, era rechonchudo: “Seu corpo era vigoroso. Vinte e sete anos de idade, forte: ancas
de búfalo, braços macios como pele de pantera, o peito largo como de um alazão, uma
espinha de jibóia [...]” (BIDISHA, 1998, p. 20). Sua mãe falecera de câncer quando ele
tinha 21 anos de idade, mas não ficara sozinho, tinha uma irmã por parte de mãe, Sophie
Litner, vinte e cinco anos de idade, casada com Jhon Brown que morava no sul de
Londres. Depois de muito tempo sem se verem, recebe uma carta de Sophie pedindo a
ajuda para seu irmão, pois seu casamento não estava bem. Jhon a espancara, proibi-a de
ler, de sair, policiava-a em tudo, “Casei com dezenove anos. Que tolice. Ele me espancou,
é claro. Mesmo sabendo que isso iria acontecer, já esperando, mesmo assim me
surpreendi. Posso ir aí te ver? Sabe que não pediria se não fosse uma emergência [...]”
(BIDISHA, 1998, p. 50).
A carta perturbara a mente de Ian, não poderia negar ajuda à sua irmã, no entanto,
estava apreensivo, queria esquivar-se dessa responsabilidade, sem saber como. Em
desabafo ao seu amigo Will, comenta: “[...] Li sua carta e uma parte de mim tem pena
dela, vejo alguma coisa muito patética no seu pedido de ajuda, e ao mesmo tempo uma
outra parte de mim não quer saber não dar a mínima”. (BIDISHA, 1998, p. 61). Em
contrapartida, Ian ouve de Will que deveria ajudá-la sim, “Estou surpreso. É como se você
não estivesse ligando muito por ele a estar maltratando”. (BIDISHA, 1998, p. 61).
Tentando justificar o que estava sentindo, Ian compara o caso de Sophie às cenas de
violência vistas na televisão, como se fosse algo distante e um fato que não lhe dizia nada
a respeito. Dias após, recebe um telefonema, é sua irmã avisando que o visitará durante
um período de duas semanas, às vésperas das comemorações natalinas.
Após os encontros casuais e de alguma resistência, Will passa a procurar Pale, liga
para ela, falam sobre coisas banais, entre uma ligação e outra, o cineasta resolve investir
e a convida passar o domingo à tarde com ele, a garota entusiasmada e apaixonada, aceita
o convite. Após alguns dias, semanas de espera, não conseguia tirá-lo de seus
pensamentos, “Will era um símbolo do mundo exterior: tudo nele a provoca, seu peso,
sua completa existência e a responsabilidade que isso a envolvia”. (BIDISHA, 1998, p.
54).
Chega o domingo, um dia cinzento e triste será marcado pelo seu primeiro
encontro amoroso, “Estava indo ao encontro de Will, seu namorado, seu homem, um
cineasta quase famoso, um intelectual. Sabia muito bem o que ia fazer esperava
pacientemente [...]” (BIDISHA, 1998, p. 87). Depois de umas canecas de chás e algum
tempo com conversas corriqueiras no apartamento de Will, ele se aproxima e
188

“Ajoelhando-se à sua frente, inclinou-se e tocou a face dela com seus lábios. A pessoa no
apartamento de cima tinha desligado a televisão. Will se levantou [...] Pegou seu pulso e
levou-a através do corredor curto”. (BIDISHA, 1998, p. 87). Em seguida, no quarto
pequeno, quadrado e vazio, sucede-se o ato nada delicado, muito distante de algo próximo
ao romântico ou imaginado pela adolescente, tornar-se-á posteriormente uma lembrança
negra em sua memória, marcada pela decepção, sofrimento e arrependimento.

Ele a instruiu no que fazer, como se deitar. O silêncio chegou a galope,


em redemoinhos, ondas, circulando pelo quarto e dentro de sua cabeça,
porque não havia nada a dizer. Sentiu como se estivesse sendo rasgada
por fora, fechou os olhos; agora devia estar partida em duas, ela pensou.
Nessa dor, sentiu todos os tipos de dor, a que rasga rápida e feroz, os
trovões infinitos e explosivos, a implosão de contrações ocasionais [...]
Foi ao banheiro mas não ascendeu a luz. Sentou-se no tampo do assento
do sanitário abaixado com as pernas cruzadas, esperando para ver se
ainda sentia dor. Levantando o cotovelo para se apoiar na pia, encostou
a fronte na junta do braço com antebraço, ouvindo o sangue pulsar nas
têmporas, movendo-se devagar pelo seu corpo, que não mais
pertenciam somente a ela, nem o sangue nem o corpo. Alguma coisa a
deixou para sempre. (BIDISHA, 1998, p. 89).

Enquanto seu parceiro dormia, a garota veste-se e vai embora. Ao chegar à sua
casa, desliga o telefone e vai para cama dormir, acordando somente na segunda pela
manhã. Pale não vai ao colégio, marca uma consulta com seu médico para obter pílulas
que induzem a menstruação, as pílulas do “dia seguinte”, e assim, evitar uma possível
gravidez.
O assunto, quando mencionado pela amiga, é ignorado por ela, resume apenas
como uma experiência ruim e evita falar no assunto, entretanto, essa experiência lhe
incomoda por muito tempo, “Não gostava da ideia de que sua experiência com Will, que
ela acabou tentando transformar em algo entre farsa e comédia para as conversas de suas
amigas da escola, ainda pairasse sobre sua cabeça em casa”. (BIDISHA, 1998, p. 130).
Por mais que desejasse, tentasse reprimir seus sentimentos, seus pensamentos se voltavam
a todo instante para ele. Na quinta-feira da mesma semana do primeiro encontro, escolhe
o poema “Decepções” de Philip Larkin, para escrever um ensaio sobre o assunto, mas
está evasiva, sonolenta e não consegue desenvolver suas ideias, procura alguma citação
para fundamentar seu argumento, buscava algo sobre arrependimento:

Ainda que distante, sorvo a dor


Amarga e pungente, que ele, sôfrego, te infligiu
A mácula ocasional do sol, o breve fulgor
189

Cerne de círculos pelas ruas


Onde o véu de Londres oprime a via,
E a luz inconteste e incidente como luas
Proíbe a cura da ferida e liberta
O pudor do ocaso. Por todo longo dia
Sua mente descansa como faqueiro aberto.
(BIDISHA, 1998, p. 90)54.

Tentando escrever seu ensaio sobre o autor “Larkin”, compreende que estava não
mais se importando com mais nada, desejava apenas escrever a conclusão do ensaio, mas,
distraída não conseguia encontrá-lo, tudo lhe parecia ambíguo e se questionava “Se
Larkin é sentimental? Às vezes, não sempre. Se Larkin é melancólico? Às vezes, não
sempre. Se Larkin é satírico? Às vezes, não sempre”. (BIDISHA, 1998, p. 91). E assim,
com dois volumes de antologias, com uma coleção de poemas em suas mãos, continuava
a procurar até, finalmente, encontrar o que queria, um poema que também lhe dissesse
algo sobre arrependimento, citado na metade do livro “Salomão e a Bruxa”, de Yeats:

E quando, por fim, se consome aquela morte,


Talvez a noiva, na cama, se consuma em desespero,
Pois quem ama leva consigo a ilusão de sua sorte
E nela encontra a visão do que é verdadeiro.
(BIDISHA, 1998, p. 92)55.

Pale encontra-se nesse verso, o que considera como verdade absoluta, após lê-lo,
perde seus sentidos por alguns segundos, ao recordar-se da causa de seu sofrimento,
“Aquele maldito e sangrento domingo, ela queria extirpá-lo de suas entranhas, removê-lo
de sua história [...] Ela trepou com ele, foi ao médico. Um ato estéril seguido de outro”.
(BIDISHA, 1998, p. 92).
Porém, após algumas semanas, Will torna a ligar para Pale, procura saber como
está e a chama para assistir seus ensaios. Ela vai ao ensaio uma vez, e lá conhece o
compositor, amigo de Will, Juliane Morgan. Para se despedir da namorada, Will lhe dá
um beijo, a partir desse dia acabam não se reencontrando mais, apesar de manterem
contato, conversando algumas vezes por telefone. O caso termina com a promessa de
retornarem a se ver depois da estreia do filme, a pedido da garota, em julho, depois de
seus exames escolares finais.

54
Poema “Decepções”, de Philip Larkin. Tradução do poema: Maysa Monção Gabriell.
55
Tradução do poema: José Paulo Brait.
190

De aluna exemplar, a personagem passa a não se preocupar mais com as aulas,


possui muitas atividades em atraso, falta às aulas, dispersa não consegue se organizar e
produzir algo, recebe um chamado da diretora que lhe insulta, questionando: “– Por que
você vem à escola? Por que se dá ao trabalho? Não acha mais fácil dedicar-se aos seus
interesses extracurriculares ficando em casa de uma vez” (BIDISHA, 1998, p. 169).
Acreditando estar ajudando, chama a atenção de Pale, sem sequer ouvir ou preocupar-se
com o que pudesse estar acontecendo com a adolescente, não buscou encontrar quais os
fatores que a deixavam desmotivada para a mudança radical de comportamento, para
compreender o porquê dela não mais se importar com tudo, escola, aulas, conteúdos,
professores e, consequentemente, com seu futuro profissional que estava em jogo com a
sua falta de dedicação. A diretora decide enviar uma carta para o pai da aluna, porém, a
garota parte às pressas para casa para impedir que ela chegue ao destinatário, “Ela matou
as aulas do resto da tarde e foi para casa mais cedo para interceptar a carta para o seu pai.
Era boa nisso: rasgá-la em pedacinhos, segurar os restos de papel embaixo de uma torneira
até virar massa mole, enrolar no papel higiênico. Dar descarga”. (BIDISHA, 1998, p. 170-
171).
E assim, de nada irão contribuir as palavras da diretora, passam-se os meses,
quando chegar junho e as avaliações finais do colegial, a adolescente irá mal em todas as
provas, em todas as disciplinas e com nada disso irá se importar. Dez dias antes de
terminar o ano letivo do colegial, a garota confirmara sua gravidez, “Assim, na última
gaveta de sua cômoda em casa repousa a embalagem de tese rasgada, com a bula
desdobrada freneticamente; o resto foi jogado fora, depois que os dois pequenos pontos
do bastão mudaram e ela descobriu – oh, não! – que suas suspeitas se haviam
confirmado”. (BIDISHA, 1998, p. 209). Seus enjoos durante as madrugadas, o cansaço
inesperado, o aperto no intestino não eram mais apenas suspeitas, agora sabia “Que há
uma larva translúcida de pele frágil dentro dela, uma bolinha de carne viscosa se
desenvolvendo”. (BIDISHA, 1998, p. 209). O seu anseio era de querer livrar-se disso,
gostaria de poder “Enfiar um braço em si mesma e arrancá-lo dali, jogar a geleia nojenta
no triturador da cozinha e transformá-lo numa musse de DNA”. (BIDISHA, 1998, p. 209).
No entanto, sabe que nada disso acontecerá, será impossível tirar o bebê dali dessa forma,
precisa aceitar a ideia de que será mãe, a não ser que recorra a algum outro meio. O texto
dá prováveis indícios de que seu pai também é o pai de seu filho, na saída da escola, após
se despedir de sua amiga Holly que embarcava no metrô, a narradora frisa “O verão está
esgotando. Precisa ir para casa. Papai está esperando” (BIDISHA, 1998, p. 209), a
191

narrativa continua, entretanto o enredo sobre a trama dessa personagem fecha aí. Contudo,
a frase papai está esperando, é ambígua, a quem se refere? Ao seu pai ou a seu pai que
também é o pai do bebê?
Chega o dia da estreia da nova produção artística de Will, “O sonho de Electra
está pronto, O sonho de Electra existe, um bebê de olhinhos miúdos formados pelo sonho
escorregadio e massas de dinheiro, derrapando no fluido lamacento de seu suposto
controle. O momento está ali, está aqui, Will sabe o quanto é breve”. (BIDISHA, 1998,
p. 217). Sim, O Sonho de Electra está completo, não somente a obra do cineasta, mas
também na vida da protagonista grávida.

ADMIRAÇÃO E AMOR INCONDICIONAL AO PAI OU À SIMBOLOGIA DO


PHALLUS?

Na obra de Bidisha escrita em 1997, não ocorre o matricídio, pois a imagem da


mulher-mãe inexiste, o pai advogado ficou viúvo quando a filha, Pale Jesson, tinha
somente quatro anos de idade, havia um sentimento de vazio na garota em relação a sua
mãe, “[...] quando ela completara quatro, sua mãe havia morrido e sua imagem esmaecera,
não deixando nenhuma impressão, nenhuma memória de um doce toque no rosto [...]”
(BIDISHA, 1998, p. 13). Sem lembranças de sua genitora, sem irmãos, com seu pai
devotado ao trabalho, sentia-se solitária, sem importância, “Pale considerava as lojas da
Oxford Street e de Covent Garden e os decadentes cinemas da Leicester Square sua
própria casa. Ela caminhava pelas ruas de Londres, sentindo a indiferença da cidade, e
imaginava que seu desaparecimento não importaria a ninguém”. (BIDISHA, 1998, p.
13).
Seu pai se ausentava com frequência, a garota o admirava, para ela seu pai não
envelhecia, era esbelto, altivo e sereno, tinha a pele macia, porém, lembrava-se
constantemente que ele tinha quarenta e um anos e ela quinze, seu pai “era, sob muitos
aspectos, um estranho, um companheiro de casa e nada mais; era bonito, tinha consciência
disso e também que ele sabia disso”. (BIDISHA, 1998, p. 97). Valium não apenas sabia
que sua filha lhe admirava e sentia um determinado desejo por ele, como também,
instigava esta admiração e considerava, do mesmo modo, sua filha bonita. Com o passar
do tempo, esse amor e/ ou desejo carnal da protagonista com o seu progenitor não são
reprimidos, tornando-se uma realidade evidenciada, consentida por ambos:
192

Seu pai gritou da sala:


- Adoro quando você toma banho de banheira. Parece que a casa vira
uma quitanda de frutas exóticas.
- Você me quer?
- Desça aqui antes de trocar, se quiser.
Ela desceu para vê-lo e, durante meia hora, deixou seus pensamentos
serem bombardeados para fora de sua cabeça enquanto os dois, deitados
no sofá, em explosões violentas de prazer machucavam-se e mordiam-
se, entre gemidos, falta de ar, suspiros, todas as variações de palavras
não-pronunciadas, de expressões não reveladas, mudanças bruscas de
posição e calor, cujo ardor varria o passado e o futuro e tornava a jarra
de sua mente mais vazia do que infinitos quilômetros de praias desertas
[...] (BIDISCHA, 1998, p. 182).

Enquanto neste enredo a relação de incesto entre pai e filha é admitido, apesar de
ficar restrito ao ambiente familiar, no mito a filha é privada de manifestar seu desejo
vinculado ao arquetípico originado já na infância, no qual a mãe representa uma
adversária, impedindo a atenção paterna exclusiva para si. Porém, apresentada num revés,
a vulnerabilidade da garota, sem a interferência da proteção de um adulto, acaba se
tornando vítima do seu próprio desejo.
Constata-se, no trecho acima descrito, a presença da simbologia cultural do
elemento água, quando Valium chama sua filha para descer as escadas e ir junto a ele
dizendo que adora quando ela toma banho de banheira, pois, para ele a casa parecia que
se tornava uma quitanda de frutas exóticas. A simbologia aqui, encontra-se voltada a
deusa do amor Afrodite que nasce dos mares.
A autora Bidisha Bandyopadhyay apresenta em seu livro outro caso incestuoso,
no entanto, de irmãos. Sophie procura o irmão Ian, visita-o e, durante sua permanência
com o irmão, acabam por se relacionarem além do esperado. Após, abraçar seu irmão e
consolá-lo por ele ter perdido seu emprego, ocorre a pulsão de desejos em seu irmão que
a leva sentir-se impotente diante da força física, acaba consentindo a relação, embalados
pelo impulso físico como descreve a própria personagem: “Não se podia dizer não a uma
força como esta, não se negar algo tão primitivo. Não chamaria de estupro, porque posso
compreender agora – e até mesmo compartilhar – o que está dentro deles e que faz nos
querer machucar”. (BIDISHA, 1998, p. 194).
Para Lacan, esse desejo incondicional de amor ao pai, ou ao universo masculino,
e até mesmo para com o irmão, está relacionado à simbologia do phallus. Segundo os
autores Tomaz Tadeu da Silva, Stuart Hall e Kathryn Woodward, o phallus para Lacan
representaria o poder e valor do pai ou pai simbólico, e apenas parece ter poder e valor
por causa do peso positivo da masculinidade no dualismo masculino/feminino, cuja
193

criança reconhece nele, tanto o poder como a diferença. O termo masculino é privilegiado
em relação ao feminino, o que faz com que a entrada das garotas para a linguagem, seria
totalmente diferente dos garotos, nos quais, “As garotas são posicionadas negativamente
– como “faltante”. Mesmo que o poder do phallus seja ilusório, os garotos entram na
ordem simbólica positivamente valorizados e como sujeitos desejantes. As garotas têm a
posição negativa, passiva – são simplesmente desejadas”. (SILVA; HALL;
WOODEWARD, 2000, p. 65).
A autora Bidisha faz duras críticas ao sistema patriarcal que também vitima as
mulheres dos países considerados de primeiro mundo. Sendo que, no enredo há a
personagem Sophie que relata sofrer agressões físicas e psicológicas de seu marido, presa
à situação de dependência financeira, esta figura dramática descreve em uma carta seu
sentimento de injustiça e denúncia, generalizando o seu caso: “Toda mulher em todo lugar
está sendo maltratada, estuprada, está limpando a sujeira de merda no banheiro, lavando
manchas de gordura e as marcas marrons de cuecas, está sendo usada de alguma maneira.
Toda mulher está sonhando em fugir, mas não há para onde ir”. (BIDISHA, 1998, p. 206).
Percebe-se aí, outra característica do romance pós-moderno, o questionamento das
estruturas das ordens sociais vigentes, as quais são construtos do homem.
A autora narra o contraste da cidade de Londres, descreve que enquanto o norte
“está em sua cama de beliche ouvindo estranhos chamados de adolescentes explorando
os becos” o bairro de Kensington, ao contrário, por ser rico é considerado um local seguro,
“Nenhum maluco de olhos drogados e boné de beisebol se esgueira pelas calçadas aqui,
não há nenhuma ameaça de negros arruaceiros saindo como tigres de esconderijos nunca
antes notados [...]” (BIDISHA, 1998, p. 216), contudo, o perigo não mora ao lado, mas
nesse lugar aparentemente seguro, sendo que ele encontra-se mascarado pela aparência
de uma classe social:

Os estupradores aqui usam jaquetas sociais cor-de-vinho e pijamas de


seda e violentam as próprias esposas; os rostos dos assassinos estão
marcados com barbas bem feitas e um penteado elegante; os ladrões
estão de olho muito mais do que de bolsas descuidadas, e utilizam-se
de telefones celulares para fazer seu “trabalho”. Os viciados fungam
cocaína em cima das mesas de marca Philippe Starck. Os homens
casados não vão ao Virgin´s Armas ou ao Beacon à procura de casos;
em vez disso acostam suas empregadas na sala de verão e abafam
suavemente seus gritos chineses. (BIDISHA, 1998, p. 216).
194

A crítica vai além da discussão do gênero, ela atinge também as estratificações


sociais. Demonstra como a elite social é vista e como ela vê quem não usufrui deste
mesmo privilégio social. Porém, integrar-se à esta classe social não significa
necessariamente uma isenção de alguns problemas sociais, como no caso da violência às
mulheres. A autora cita alguns exemplos ao descrever que os estupradores usam jaquetas
sociais ou pijamas de seda e abusam suas próprias esposas ou empregadas. Detalhe, a
narradora ainda caracteriza as domésticas como sendo estrangeiras, de origem chinesa,
quer dizer, usa-se também do poder social (patrão) para “abafar os gritos”, ou seja, para
coagir a vítima, pertencente à outra classe social menos privilegiada (empregada
estrangeira).
Na narrativa, as duas personagens (Pale e Sophie) acabam se tornando vítimas da
situação fragilizada em que se encontram. A protagonista do enredo acaba sendo
reprovada nas provas finais e está grávida, ou seja, muito provavelmente não retornará
tão cedo à escola, isso se voltar a estudar. Já Sophie, quando jovem, justamente se
arrepende de ter abandonado o colegial por estar sofrendo as consequências posteriores,
como anteriormente citado. Apesar de parecer algo fácil a se resolver, Sophie relata ao
seu irmão que não é tão simples como as pessoas acreditam ser, pois, quando fora
adolescente, tudo era muito intenso, o mundo era pequeno, acreditava ser sua única
chance, estava apaixonada, acreditava que ele era bom, acreditava no que ele dizia, de
que cuidaria dela, etc. Quando de repente acordou, percebeu que a vida não era mais sua,
não havia espaço nem mesmo em sua cabeça. No início pensara em suicídio, agora estava
aí contando sua vida ao seu irmão Ian.
Na obra, ambas as personagens apresentam ao leitor duas histórias de vida
ficcionais que questionam a situação feminina no contexto social na atualidade. A autora
recorre ao passado para desconstruir um mito, cria a personagem Pale que se relaciona
com o pai e com outros adultos muito mais velhos que ela - Will e Juliane - que se
aproveitam da sua ingenuidade, para eles a garota é apenas uma nova possibilidade de
atender aos seus instintos sexuais. A outra personagem, Sophie, sofre agressões físicas de
seu marido e recorre ao seu irmão, porém este não age como no mito, não se une com a
irmã para libertá-la do opressor, ele isenta-se e vê nela apenas um corpo feminino
desejável sem vínculo afetivo.
Sophie é apenas um caso citado pela ficção, porém, dados estatísticos comprovam
que uso da violência é, ainda, com frequência uma das armas usadas pelos homens para
deixarem marcas sobre a mulher, sendo em muitos lugares uma prática instituída, “Abuso
195

tras abuso, golpe tras golpe, piedra tras piedra, balazo tras balazo, puñalada tras
punhalada, hablan de la impotência del uso repetitivo del uno-fálico para dejar uma huella
infame en un cuerpo de mujer”. (BARROS, 2011, p. 99)56, E, assim, muitos homens ainda
na contemporaneidade, a exemplo do marido da personagem ficcional de Bidisha, vão
perpetuando essa violência por meio da força física ou pelo abuso sexual, até porque “Los
hombres marcan a la mujer con la violência cuando han sido impotentes para dejar outro
tipo de marca”57. (BARROS, 2011, p. 99). Portanto, seja pelo discurso institucionalizado
como na tragédia grega, em que a literatura reafirma os padrões sociais a serem
internalizados pelas mulheres, ou pelo ato em si da violência, busca-se lamentavelmente
manter o poder masculino sobre o feminino, interferindo no controle do corpo58.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No caso do romance O Sonho de Electra, além deste beber na fonte da mitologia,


tem-se um carácter auto reflexivo da própria obra e de algumas outras produções
artísticas, como o cinema e a música. Existindo um diálogo com o mito de Electra e com
a própria literatura. A narrativa escrita por Bidisha após um processo em que a literatura
consagra o mito de Electra, a autora irá inseri-lo em seu romance no contexto pós-
moderno, como se realmente fosse um processo de questionamento ao que se viu ou se
disse até o momento, não aceitando-o como natural, mas como construto histórico cultural
do mito, mudando a perspectiva do olhar do leitor, ao voltar-se para a própria narrativa e
às produções artísticas com espírito crítico, até mesmo porque, “Os discursos pós-
modernistas - tanto teóricos como práticos – precisam dos próprios mitos e convenções a
que contestam e reduzem”. (WALKINS apud HUTCHEON, 1991, p. 73). E no mais,
“Os mitos e as convenções existem por um motivo, e o pós-modernismo investiga esse
motivo. O impulso pós-moderno não é buscar nenhuma visão total. Ele se limita a
questionar”. (HUTCHEON, 1991, p. 73). É o que a autora propõe, o questionamento ao
mito, se é nato ou é um construto histórico, acreditarmos que realmente a menina passa a
odiar a mãe e amar a imagem do pai. Apesar de apresentar uma personagem que admira

56
Um abuso após outro abuso, um golpe após outro golpe, uma pedra após outra pedra, uma bala após outra
bala, uma punhalada após outra apunhalada, falam da impotência do uso repetitivo do falo para deixar uma
cicatriz infame em um corpo de mulher.
57
Os homens marcam a mulher com a violência quando foram impotentes para deixar outro tipo de marca.
58
No Brasil, no dia 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha, Lei nᵒ 11.340 em que institui-
se a punição para os agressores com objetivo de prevenir e punir a violência contra as mulheres. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 03 fev 2016.
196

o progenitor Valium e, sendo seduzida por ele, envolve-se intimamente com este, e não
somente com este, primeiro apaixona-se pelo cineasta Will, com idade aproximada se seu
pai, depois com o compositor Juliane, também, muito mais velho que ela. O pai, ao
conversar com a filha, afirma inclusive que não havia se surpreendido quando ela
escolheu alguém daquela idade para se relacionar primeiro, nem se admirou por ele tê-la
escolhido (BIDISHA, 1998, p. 98), induz a adolescente a não levar em consideração a
idade quando ela comenta seu caso com Will já havia acabado. “– Ele é vinte e três anos
mais velho que eu. Ele deu de ombros, fez mais um gesto introvertido, conhecedor,
intraduzível, e disse: – E daí? Não faz diferença nenhuma. Você se preocupa com isso?”.
(BIDISHA, 1998, p. 97).
Milietinski esclarece o que acontece quando se recorre ao mito tradicional em
outro estágio do desenvolvimento histórico, “[...] seu próprio sentido modifica-se
acentuadamente, sendo substituídos por um diametralmente oposto”. (1987, p. 441).
Sendo que, as interferências das mudanças sociais, em face às novas realidades, não
devem ser ignoradas, “A linguagem do mitologismo do século XX, entretanto, está longe
de coincidir com a linguagem dos mitos antigos, pois não se pode colocar sinal de
igualdade entre a inseparabilidade do indivíduo face à comunidade e à sua degradação na
sociedade industrial moderna, o nivelamento, a alienação, etc.” (MILIETINSKI, 1987, p.
440).
Realmente, o indivíduo não é mais o mesmo, sofreu um processo de mudanças
consideráveis e a função social feminina se transforma, deixa de ser um sujeito à margem
para ser um sujeito histórico-cultural-social, passando não somente à integrar-se à
literatura, como também, a escrevê-la, liberta-se de determinadas amarras sociais e passa
a exprimir a própria opressão sofrida, e assim, transmiti-la à cultura e ao pensamento
coletivo, como ponderou Calvino.
O discurso pode ter sofrido mudanças assim como o escritor enquanto sujeito, mas
isso não significa que a ordem social tenha realmente se transformado. Nota-se que a
temática do incesto, apesar das diferentes realidades, de épocas distintas e da mudanças
sociais ocorridas, não deixou de ser inquestionavelmente um tabu, pois, se o incesto ou
violação da exogamia conduz invariavelmente nos mitos à violação dos contatos sociais
e naturais necessários. (MIELIETINSKI, 1987, p. 234). Na obra de Bidisha, a violação
da regra ainda choca o seu leitor por questões morais e éticas, além de também violar os
contatos sociais e naturais necessários para a manutenção das redes sociais de trocas entre
os indivíduos. Pois, como explica o autor Claude Lévi-Strauss, a lei do incesto propicia
197

uma troca entre os grupos sociais, desse modo “[...] a proibição do incesto consegue tecer
redes de afinidade que dão às sociedades a armação sem a qual nenhuma delas se
manteria”. (1983, p. 89). Assim, “Para nos assegurarmos de que as famílias biológicas
não se fecharão sobre si mesmas e não constituirão outras tantas células isoladas, basta-
nos proibir o casamento entre parentes próximos”. (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 89). Vale
lembrar que o parentesco é definido pelas regras de filiação que, em muitas sociedades,
não são definidas pela consanguidade, mas por outras regras, sejam elas econômicas ou
sociais.
Não somente a temática do incesto continua muito próxima a dos nossos
precursores gregos, como os vários aspectos ligados a sua simbologia e à questão da
posição social do feminino e do masculino, “Desde os gregos até nós, tais categorias da
identidade sexual têm modificado muito pouco – porque o processo de dominação
masculina encontrou, na aparente fixidez e na naturalização dos papéis e dos símbolos
sociais de gênero, um de seus trunfos, um meio de “des-historicizar” o que é histórico: as
categorias de gênero”. (SILVA, 2011, p. 110).
Nesse sentido, acontece uma autorreflexão do cânone, questionando valores
históricos e ideológicos, implicando num discurso pós-moderno que, por si só, é
contraditório, pois, “É esse tipo de contradição que caracteriza a arte pós-moderna, que
atua no sentido de subverter os discursos dominantes, mas depende desses mesmos
discursos para a sua própria existência física: aquilo que já foi dito”. (HUTCHEON, 1991,
p. 67).

Referências

BANDYOPADHYAY, Bidisha. O Sonho de Electra. Trad. Lídia Cavalcante Luther. São


Paulo: Scipione, 1998.

BARROS, Marcelo. La condición femenina. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2011.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. SILVA, V. C. et al.;
SUSSEKIND, C. (Org). 26. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LÉVI-STRAUSS. O olhar distanciado. Trad. Carmen de Carvalho. São Paulo: Edições


70, 1983.
198

MILIETINSKI, E. M. A poética do mito. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense –


Universitária, 1987.

SILVA, Luiz Carlos Mangia. O masculino e o feminino no epigrama grego: estudo dos
livros 5 e 12 da Antologia Palatina. São Paulo; Unesp, 2011.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais/ Tomaz
Tadeu da Silva (org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
199

A REDEFINIÇÃO DOS PAPÉIS SOCIAIS DA MULHER NA


CONTEMPORANEIDADE: O BILDUNGSROMAN FEMININO EM LYGIA
BOJUNGA

Vanessa Borella da Ross


Universidade Estadual de Maringá - UEM

O romance de formação

O romance de formação Bildungsroman no original alemão, surge a partir da


publicação de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister lançado entre os anos de 1795
e 1796 por Johann Wolfgang Von Goethe.
O escritor alemão utilizava a palavra “Bildung”, que significa formação, ao
referir-se ao personagem da narrativa, Wilhelm. No entanto, o criador do termo
Bildungsroman, foi Karl Morgenstern, no ano de 1810, que, após a leitura do livro de
Goethe, cunhou esse termo. Esse novo termo foi retomado pelo filósofo Wilhelm Dilthey
em 1870. Dilthey utilizou o termo de Bildungsroman para analisar Das Leben
Scheiermachers (A vida de Schleiermacher). O filósofo explica a formação de um
indivíduo em diferentes níveis e etapas de sua vida. Esse indivíduo representa um ser
jovem, do gênero masculino, que se aventura no mundo em busca de sua formação. Para
o filósofo essa formação pode ser vista como “a estrada que o homem originalmente
ingênuo e simples percorre até a completa Bildung é essencialmente igual para qualquer
indivíduo” (DILTHEY, 1988 p. 121). Sobre o livro de Goethe, Dilthey em sua análise,
enfatizou a oposição entre o que ele denominou de “inclinações interiores” do indivíduo
e “influências exteriores” da sociedade.
No entanto, a definição do termo Bildungsroman ainda pode trazer impasses e
gerar inúmeras discussões entre a crítica literária especializada. Lothar Kohn apresentou
em 1988 um estudo sobre Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe, e
afirmou que todavia há problemas com a definição e o conceito de Bildungsroman, assim
como na delimitação de seus limites e fronteiras.
O livro em destaque apresenta a história em oito capítulos, intitulados pelo autor
como “livros”, 1 ao 8, narrando o trajeto cursado pelo protagonista Wilhelm desde a
adolescência à idade adulta, especialmente, no que diz respeito à sua formação. Sob o
significado de formação na obra Goethe afirma: “Para dizer-te em uma palavra: formar-
200

me plenamente, tomando-me tal como existo, isto sempre foi, desde a primeira juventude
e de maneira pouco clara, o meu desejo e a minha intenção” (GOETHE, 2006, p. 286).
Marcus Vinicius Mazzari para a apresentação desse livro de Goethe, aponta sobre
a definição do escritor alemão sobre o conceito de formação fundamental para o
Bildungsroman:

Autonomia (formar-se a si mesmo), Totalidade (formação plena) e [...]


Harmonia (a “inclinação irresistível” por formação harmônica). A
expansão plena e harmoniosa das potencialidades do herói (artísticas,
intelectuais e também físicas), a realização efetiva de sua totalidade
humana é projetada no futuro e sua existência apresenta-se assim como
um “estar a caminho” rumo a uma maestria ou sabedoria de vida
(MAZZARI, 2006, p. 14, aspas do autor).

O Romance de formação feminino

O surgimento do romance de formação evidenciava o mundo burguês da Europa


do século XVIII com visão de mundo e protagonismo masculino. Como já foi explicado
o gênero ou subgênero passou por transformações concernentes às mudanças históricas
para acompanhar o período histórico que representa. A pesquisadora brasileira Wilma
Patrícia Maas afirma “o reconhecimento da existência do Bildungsroman como um
gênero literário faz pressupor o reconhecimento de uma tradição literária gerada dentro
dos limites históricos e nacionais bastante específicos, os últimos trinta anos do século
XVIII na Alemanha ” (MAAS, 2000, p. 133).
Ao gênero masculino era permitido ocupar inúmeros papéis sociais desde aquela
época o século XVIII sem prévias delimitações (havia limitações aos papéis sociais para
quem não era parte da aristocracia). Em relação ao gênero feminino esses papéis sociais
eram restritos, como explica a estudiosa Flora: “às mulheres não era, na época, possível
a liberdade de movimentos que permite ao herói o contacto com múltiplas experiências
sociais decisivas no percurso de autoconhecimento” (FLORA, 2005).
Nesse sentido, Cristina Ferreira Pinto, em pesquisa inédita realizada no Brasil
intitulada O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros (1990), aponta as
transformações que ocorreram no Brasil e com a mulher brasileira, para isto analisa quatro
romances de autoras femininas pertencentes à primeira metade do século XX: Amanhecer
(1938), de Lúcia Miguel Pereira, As três Marias (1939), de Raquel de Queiroz, Perto do
Coração selvagem (1944), de Clarice Lispector, e Ciranda de Pedra (1954), de Lygia
201

Fagundes Telles. A estudiosa demonstrou uma certa correspondência entre o


Bildungsroman tradicional e o Bildungsroman escrito por essas autoras.
Por isso em relação ao gênero feminino uma questão proposta por Pinto se faz
essencial. Por que essa quase total ausência da mulher como personagem central no
“Bildungsroman”? (PINTO, 1990, p. 12). É necessário apontar que essa questão foi
formulada pela primeira vez em 1972, por Ellen Morgan crítica feminista que declara “O
Bildungsroman é um assunto masculino”59 (MORGAN, 1972, p. 184) (Tradução da
autora). No início de seu artigo “Humanbecoming: Form and Focus in the Neo-Feminist
Novel” presente no livro Images of Women in Fiction: Feminist Perspectives, editado por
Susan Koppelman, Morgan aponta “novas formas [...] estão começando a refletir na
literatura a influência do neo-feminismo - o Bildungsroman”60 (MORGAN, 1972, p. 183)
(Tradução da autora).
Para empreender essa análise Morgan utilizou para seu corpus o romance anglo-
americano de escrita feminina. Declarou que na história desse gênero já havia romances
de aprendizagem. Ela cita Dorothy Richardson’s Pilgrimage, (1938), como exemplo para
“romances femininos de aprendizagem”61 (MORGAN, 1972, p. 184) (Tradução da
autora). No entanto, essa aprendizagem geralmente se pautava em “casamento e
maternidade”62 (MORGAN, 1972, p. 184) (Tradução da autora). Nesses romances o foco
se encontrava no crescimento da menina que entra na adolescência e já tem possibilidade
biológica de ter filhos após a menarca: “sua aprendizagem objetiva prepará-la para
cumprir papéis sociais predeterminados e seu desenvolvimento é interrompido uma vez
chegada à maturidade física ” (PINTO, 1990, p. 16). Dessa maneira, a formação da
mulher estava voltada para as preferências patriarcais, servir o homem durante o
casamento e gerar filhos. Outras capacidades femininas eram silenciadas ou não
desenvolvidas. Pinto reforça “a adaptação aos papéis que lhe reserva a sociedade implica
aceitar uma posição dependente, submissa” (PINTO, 1990, p. 14) De modo, que a mulher
não poderia aventurar-se no mundo em busca de sua formação assim como era possível
ao gênero masculino, como explica Morgan:

as protagonistas do sexo feminino que cresceram como seres eram


geralmente interrompidas e derrotadas antes de encontrarem a sua

59
No original: The Bildungsroman is a male affair.
60
No original: new forms [...] are beginning to reflected in literature the influence of neo-feminism - the
Bildungsroman.
61
No original: female novels of apprenticeship.
62
No original: marriage and motherhood.
202

individualidade . Elas cometeram suicídio ou morreram; elas se


comprometiam pelo casamento dedicando-se aos homens simpáticos;
elas enlouqueciam ou se isolavam em algum tipo de retiro excluidas do
mundo (MORGAN, 1972 , 184)63 (Tradução da autora)

Às mulheres não era permitido serem ativas no mundo e buscar a própria


autonomia, a passividade era o que lhes cabia no papel social que lhes havia sido imposto:
“de um modo geral o Bildungsroman tem sido uma forma masculina, porque as mulheres
tendem a serem vistas tradicionalmente como estáticas ao invés de dinâmicas, como
exemplos de feminilidade considerados essenciais em vez de existenciais”64 (MORGAN,
1972, p. 184, grifo da autora) (Tradução da autora).
Pinto que utilizou o artigo de Morgan como uma de suas bases teóricas para a
pesquisa e escrita do livro concorda com essa autora pois

enquanto o herói do Bildungsroman passa por um processo no qual se


educa, descobre uma vocação na vida e a realiza, a protagonista
feminina que tentasse o mesmo caminho tornava-se uma ameaça ao
status quo, colocando-se em uma posição marginal” (PINTO, 1990, p.
13)

A pesquisadora brasileira afirma que as questões relativas ao não aparecimento da


mulher como protagonistas na tradição dos romances de formação são de caráter
“histórico, cultural e socioliterário” (PINTO, 1990, p. 12).
Nesse sentido, o romance de formação do século XXI acompanhado as mudanças
históricas apresenta protagonista do gênero feminino, por isso, uma questão se faz
necessária. De que forma um gênero romanesco que é tradicionalmente masculino se
adapta e se inova para abarcar outros conceitos que situem o gênero feminino como
protagonista de sua própria narrativa? A pesquisadora Wilma Patricia Maas observa que
“o que possibilita a abordagem ao Bildungsroman é a compreensão de sua diversidade,
de seu estatuto híbrido entre constructo literário e projeção discursiva ” (MAAS, 2000, p.
263).
Nessa perspectiva, o romance de formação feminino seria “revisão, variante,
subgênero, expansão ou impossibilidade ” (FUDERER, 1990, p. 6). Nesse

63
No original: the female protagonists who did grow as selves were generally halted and defeated before
they reached selfhood. They committed suicide or died; they compromised by marrying and devoting
themselves to sympathetic men; they went mad or into some kind of retreat and seclusion from the world.
64
No original: by and large the Bildungsroman has been a male form because women have tended to be
viewed traditionally as static rather than dynamic, as instances of femaleness considered essential rather
than existential.
203

Bildungsroman a personagem feminina é protagonista e sobre sua formação tratará a


narrativa. Os estudos sobre o Bildungsroman feminino “surgem dentro de um
determinado contexto sócio-histórico-cultural que permite uma revisão da literatura
escrita por mulheres a partir de uma perspectiva feminista, num processo de reavaliação
e revalorização da experiência feminina ” (PINTO, 1990, p. 17).
A partir dessa concepção, o Bildungsroman segundo a pesquisadora deve ser
explicado pelas características de seu conteúdo e hibridismo, visto que esse gênero ou
subgênero possui dinamismo histórico. Maas afirma

A história da continuidade do Bildungsroman no século XX reitera o


caráter dinâmico e empírico do gênero, na medida em que se estabelece
uma tradição consciente do Bildungsroman. [...]. É certo que tais
subversões se devem necessariamente ao dinamismo do gênero em meio
às diferentes constelações histórico literárias. No século XX, desaparece
a idéia do homem como ser psicológica e historicamente
indecomponível. A representação do desenvolvimento individual como
um processo linear em direção ao equilíbrio das tendências individuais
no enfrentamento com a sociedade torna-se então uma aporia (MAAS,
2000, p. 81, grifos da autora).

Em consequência de acontecimentos históricos no século XX o conceito


teleológico de formação é quebrado. O século XX, cenário de duas guerras mundiais,
nascimento e eclosão das teorias da psicanálise, não concebia mais um indivíduo
proporcional e harmônico, pois a própria condição do indivíduo quebra-se, fragmenta-se.
Maas explica como ocorreu esse processo de fragmentação da sociedade e do indivíduo:

Sob a égide da "crise do romance" configurou-se, nas primeiras


décadas do século XX, uma concepção que reconhece a dissolução
dos pressupostos que sustentaram o romance burguês realista, e, por
conseguinte, do modelo teleológico de desenvolvimento e formação.
O pressuposto fundamental para a idéia da existência de um processo
evolutivo, de um processo de formação e desenvolvimento do
indivíduo, herança do racionalismo do século XVIII e do
cientificismo do século XIX, é interrompido no momento em que se
abandona a idéia de uma consciência una, passível de se amoldar e se
formar por meio de um processo linear da experiência; o indivíduo é
fragmentário, assim como sua "formação" também deverá sê-lo
(MAAS, 2000, p. 209-210, grifos da autora).

Contudo, o gênero ou subgênero Bildungsroman se mantém na tradição literária


pois acompanha as mudanças históricas modificando-se através delas. Em vista disso, o
romance de formação extrapola os atributos típicos ao livro de Goethe e período histórico
204

especifico (O século XVIII), adequando-se aos novos contextos de produção. Mazzari em


Romance de Formação em Perspectiva Histórica. O Tambor de Lata de Günter Grass
confirma

Os sucessivos desvios que o Bildungsroman vem apresentando em


relação ao seu protótipo Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister
mostram-se como reflexos das transformações políticas e econômicas
ocorridas nas estruturas da sociedade em que o herói em formação
busca integrar-se (MAZZARI, 1999, p. 85).

Nessa perspectiva romance de formação feminino “mostrar-se-ia como um vetor


revolucionário subversivo, pela subversão ao próprio modelo textual ao qual recorre”
(MAAS, 2000, p. 247). Pinto corrobora o caráter subversivo do Bildungsroman feminino
que intitula de transgressão. Essa transgressão, segundo a autora, consiste em apresentar
protagonistas mulheres com desenvolvimentos que não são lineares e com os finais que
não são necessariamente felizes. Já no Bildungsroman tradicional masculino o
protagonista se desenvolve satisfatoriamente com narrativa linear até formar parte ativa
da sociedade, que de acordo com Pinto:

O “Bildungsroman” feminino é uma forma de realizar essa dupla


revisão literária e histórica, pois utiliza em gênero tradicionalmente
masculino para registrar uma determinada perspectiva, normalmente
não levada em consideração, da realidade. Ao nível do gênero, o
“romance de aprendizagem” feminino distancia-se do modelo
masculino principalmente quanto ao desfecho da narrativa. Enquanto
em “Bildungsroman” masculinos – mesmo em exemplos modernos – o
protagonista alcança integração social e um certo nível de coerência, o
final da narrativa feminina resulta sempre ou no fracasso ou, quando
muito, em um sentido de coerência pessoal que se torna possível
somente com a não integração da personagem no grupo social (PINTO,
1990, p. 27, grifos da autora).

Dessa maneira a concepção de Bildung é essencial para as análises dos


Bildungsroman femininos e como “o conceito de formação, sob influxo de novas
experiências históricas, sofre transformações essenciais” (MAZZARI, 1999, p. 83). É
necessária uma teoria apta a evidenciar essas diferenças da concepção de Bildung
feminino entre os séculos XX e XXI, e em vista disso, “torna-se ainda mais importante
colocar a discussão das obras em seu devido contexto” (PINTO, 1990, p. 25).
No Bildungsroman feminino há diferença no tipo de busca empreendidas pelas
protagonistas em relação à busca dos personagens de um Bildungsroman tradicional. Para
205

as narrativas de formação femininas as personagens protagonistas estão passando por um


processo de sofrimento emocional, por isso, atribuem pouco valor a si mesmas,
encontram-se em crises existenciais e questionando sobre a própria formação de sua
identidade. Essas personagens buscam primeiramente o resgate de suas identidades e a
reparação da autoestima.
Em contrapartida, nas narrativas de formação tradicional os protagonistas estão
vivenciando divergências entre si e o mundo, entre o que eles almejam para si versus o
que o mundo poderia proporcionar-lhes. Nessas narrativas o protagonista passa por uma
série de aventuras, em que poderá demonstrar sua coragem e finalmente obter o sucesso:
os tipos de busca empreendidos pelos personagens do Bildungsroman feminino e do
Bildungsroman tradicional divergem. O gênero feminino busca em primeiro lugar
resgatar-se, encontrar seu eu como indivíduo; o gênero masculino busca enfrentar seus
problemas com o mundo afim de obter aquilo que deseja.
Como já foi mencionado anteriormente a crítica feminista preocupou-se em
verificar o motivo da ausência de personagens femininas como protagonistas em
romances de formação. Um dos motivos para essa revisão histórica de acordo com
Morgan, “ é que permite que as mulheres vejam seu passado de uma maneira própria,
removendo aspectos de que o condicionamento feminino é resultado do foco da história
criado exclusivamente a partir dos propósitos masculinos"65 (MORGAN, 1972, p. 187)
(Tradução da autora).
Nessa perspectiva, Morgan nomeia as precursoras de uma literatura de autoria
feminina com início de uma abordagem sobre a representação das mulheres que
influenciaram gerações. De acordo com a autora, essas mulheres foram: Virginia Woolf
com Orlando (1928) e June Arnold com Appliance (1966) "são romances fantásticos
apesar de realísticos, embora cada um seja um Bildungsroman”66 (MORGAN, 1972, p,
189) (Tradução da autora).
No prefácio do livro Images of Women in Fiction: Feminist Perspectives (1972)
Susan Koppelman Cornilion afirma que este é resultado de pesquisa e

representando os papéis que as mulheres foram forçadas a


assumir na sociedade e agora estão começando a ocupar,
começando com os estereótipos tradicionais mais ressecados e

65
No original: Most significantly of all it enables living women to view women’s past in their owns terms,
thus clearing away that part of women’s conditioning which has resulted from the focus of history on
exclusively male pursuits.
66
No original: are fantastic rather realistic novels although each is a bildungsroman.
206

sem vida da mulher como heroína, e é uma pessoa invisível,


progredindo através de um despertar para a realidade, em que as
mulheres são tratadas como pessoa, e finalizando com a mais
recente insistência da mulher que somos iguais que os homens
em todos os aspectos67 (1972, p. 12) (Tradução da autora)

Essa crítica buscou recapitular conceitos do Bildungsroman tradicional para que


também houvessem livros de escritoras que retratassem a formação feminina a partir de
uma perspectiva própria e dessa maneira, auxilia-r no aumento da representatividade do
Bildungsroman feminino, uma vez que, se há maior representatividade de livros escritos
sob a perspectiva feminina, pode contribuir para “construção de imagens de
transcendência e autenticidade para as mulheres”68 (MORGAN, 1972, p. 185) (Tradução
da autora).
No Bildungsroman tradicional e no Bildungsroman feminino, segundo Pinto,
existem certas proximidades. No romance de formação feminino há narrativa de um ser
em desenvolvimento que passará por grandes problemas, envolvendo variados setores da
vida, (amorosa, financeira, acadêmica). Pinto lista esses problemas nomeando-os de
“características” gerais do Bildungsroman como a:

infância da personagem, conflito de gerações, provincianismo ou


limitação do meio de origem, o mundo exterior (the larger Society),
autoeducação, alienação, problemas amorosos, busca de uma vocação
e de uma filosofia de trabalho que podem levar a personagem a
abandonar seu ambiente de origem e tentar uma vida independente
(PINTO, 1990, p. 14).

Porém, no que tange à inserção de forma satisfatória dessa personagem no mundo


contata-se um quadro de destinos pouco favoráveis. Essas personagens não alcançam
integração positiva com o mundo, revelando a sua fragmentação interior representada
através do mundo caótico em que habitam. Nesse sentido, Morgan observa que no final
de cada narrativa:

Existem protagonistas do sexo feminino que "crescem para baixo", que


se deparam com a oposição insuperável e não obtiveram sucesso no
entendimento e transcendência da sua condição como mulher. Há
àquelas cujas histórias terminam com dúvida, incerteza e sem

67
No original: depicting the roles women have been forced to assume in society and are now beginning to
occupy, beginning with the most desiccated and lifeless traditional stereotypes of woman as heroine, and
is invisible person, progressing through an awakening to reality, wherein the woman us treated as person,
and ending with the newest insistence by woman that we are equal in all respects to men.
68
No original: construction of images of transcendence and authenticity for women.
207

conclusão, as quais são a experiência de muitas mulheres69 (MORGAN,


1972, p. 185) (Tradução da autora).

Na pesquisa de Pinto (1990) a autora afirma que nos desfechos dos romances de
formação feminino do século XIX, alguns comportamentos considerados limítrofes e
atitudes mais radicais eram adotados pelas personagens visto que

a morte como a loucura podem ser entendidas como uma forma de


punição da mulher que tentou ir além dos limites sociais normalmente
aceitos, ou como a única forma de rejeição desses mesmo limites; como
tentativas fracassadas de escapar às imposições do grupo social, ou
como fugar realizadas com êxitos, recusas que se afirmam através dos
únicos canais de expressão que a mulher (escritora e personagens) via
abertos (PINTO, 1990, p. 18, grifo da autora)

Nessa perspectiva, as personagens que viviam no contexto social do século XIX


não possuíam liberdade para conduzir suas vidas segundo suas vontades e necessidades.
Se elas destoassem do comportamento social esperado haveria as consequências e na
maioria das vezes não seriam consequências satisfatórias para a personagem. Desde morte
à loucura, também isolamento, castigos. A respeito desse assunto a pesquisadora Cíntia
Schwantes (2007) tece considerações sobre os papéis de gênero observados nos romances
de formação:

os Bildungsromane femininos do século XVII apresentem uma


protagonista que não sofre modificação, cuja única experiência é
aprender, mais ou menos mecanicamente, a se mover dentro dos
meandros da sociedade, e que não empreende nenhuma reflexão digna
de nota sobre o que aprende. Afinal, esta é a maneira pela qual elas
poderiam atravessar uma trajetória, supostamente de aprendizado,
intocadas (SCHWANTES, 2007, p. grifo da autora).

Referente a essa questão Pinto afirma que “No Brasil da primeira metade do século
XIX a condição da mulher era de quase total reclusão, na casa do pai ou marido” (PINTO,
1990, p. 35). No entanto na segunda metade desse século algumas transformações
ocorrem. Havia o movimento pelos direitos das mulheres que buscava “o direito à
educação e ao voto” (PINTO, 1990, p. 35). Nessa concepção “a melhora do nível do
ensino oferecido às mulheres brasileiras objetivava [...] o benefício da família e da pátria”

69
No original: The are female protagonists who “grow down,” who run into insuperable opposition and do
not succeed in understanding and transcending their condition as women. There are those whose stories end
with the doubt, uncertainty, and inconclusiveness which are the experience of many woman.
208

(PINTO, 1990, p. 37). A pesquisadora declara que essas concepções permaneceram no


século XIX estendendo-se ao século XX.
As mulheres brasileiras começam a ingressar de forma mais numerosa nas Escolas
Superiores em 1930, contudo, o seu foco deveria necessariamente permanecer na família
e no cuidado com o lar. Desse modo, Pinto observa que “no contexto da sociedade
brasileira [...], o feminino representa a expressão do que tem sido sempre subjugado,
silenciado, colocado em uma posição secundária em termos culturais” (PINTO, 1990, p.
26). Em contrapartida a autora cita o nome de Júlia Lopes de Almeida (1862 – 1934)
como uma expoente escritora desse período. Entretanto, a pesquisadora afirma que o
ofício de escrita para as mulheres não possuía status social “a atividade literária da mulher
era aceita desde que ela não levasse seu ofício de escritora muito a sério” (PINTO, 1990,
p. 41).
Além da escritora Júlia Lopes de Almeida, a poetisa Francisca Júlia tornou-se
“marco para a mulher no panorama da literatura nacional” (PINTO, 1990, p. 42-43).
Nesse sentido, a partir da década de 30 do século XX “a literatura feminina brasileira
cresce significativamente em termos de qualidade e de número de escritoras e obras”
(PINTO, 1990, p. 43). E o tema das narrativas “gira em torno de figuras de mulheres e
trata de temas que dizem respeito à condição às experiências femininas na sociedade”
(PINTO, 1990, p. 43).
Tendo em vista o caráter dinâmico apresentado pelo Bildungsroman que
acompanha as mudanças históricas os romances femininos brasileiros lançados até a
primeira metade do século XX, os dois primeiros exemplos citados por Pinto em seu
estudo são Amanhecer (1938), de Lúcia Miguel Pereira e As Três Marias (1939), de
Raquel de Queiroz, iniciam as discussões sobre “a posição social da mulher e os
problemas resultados dessa posição” (PINTO, 1990, p. 44). Esses romances foram
importantes para marcar o início dos debates sobre os interesses feministas e explorar as
mudanças sociais que estavam ocorrendo no Brasil desse período, referentes à posição
ocupada pela mulher na sociedade. De acordo com a autora esses dois romances

Retratam o choque de duas ideologias antagônicas: uma que defende o


direito da mulher à realização pessoal em atividades várias e coloca sua
independência econômica como elemento essencial para essa
realização; outra que limita a mulher à esfera familiar e permite sua
realização somente nos papéis de filha, esposa e mãe (PINTO, 1990, p.
44).
209

Por conseguinte, as protagonistas dessas narrativas encontram-se” divididas entre


as duas posições sociais” (PINTO, 1990, p. 44). (Aquela que a sociedade espera da mulher
e aquela almejada por ela). Os temas apresentados nessas obras recaem em “trabalho
como base de emancipação feminina e os problemas gerados por uma educação ainda
deficiente e preconceituosa” (PINTO, 1990, p. 44). A pesquisadora atesta que as duas
narrativas “assumem a forma de ‘Bildungsromane’ femininos ou ‘romances de
aprendizagem’” (PINTO, 1990, p. 44, grifos da autora) com base nas seguintes
características apresentadas:

relações da protagonista com a família e seu meio ambiente; o desejo


da protagonista de abandonar um ambiente provinciano por outro mais
receptivo a seus anseios existenciais e intelectuais; e o processo de
educação e conscientização da protagonista, o qual serve também a uma
intenção educar a leitora ou leitor, função didática característica do
‘Bildungsroman’ (PINTO, 1990, p. 45, grifo da autora).

A pesquisadora conclui a análise desses dois livros e declara que “levantam uma
série de questões importantes para a mulher, sem oferecer soluções para os problemas
apresentados” (PINTO, 1990, p. 75). Entretanto, as duas narrativas são expoentes no
“processo de discussão sobre a questão feminina no Brasil” (PINTO, 1990, p. 75).
Na sequência de sua a pesquisa Pinto tece considerações sobre o livro de Clarice
Lispector Perto do Coração Selvagem (1944), umas das principais características dessa
narrativa “é o conflito interno que resulta das relações sociais afetivas da personagem, de
sua condição de mulher numa sociedade patriarcal” (PINTO, 1990, p. 79). A respeito do
período histórico em que a obra foi lançada (1944) as feministas haviam conquistados:
“direito da mulher à educação e superior e dos direitos políticos” (PINTO, 1990, p. 77).
Apesar disso, entre os anos de 1940 e 1950: “a atuação social da mulher está muito
subordinada ao papel feminino dentro da família, como zeladora do bem-estar do marido
e dos filhos” (PINTO, 1990, p. 78). As mulheres dessa época haviam conquistado direitos,
contudo, os papéis sociais femininos continuavam restritivos, como declara Pinto:

Em Perto do Coração Selvagem a narrativa é, portanto, a preparação


mesma da protagonista para a realização do seu destino [...]
correspondendo então à aprendizagem da personagem que, nos
exemplos de ‘Bildunsgromane’ mais próximo do modelo clássico. [...].
Seu ‘Bildung’ é todo interiorizado e engloba a luta pelo domínio da
expressão, embora seja, é claro, resultado da relação protagonista-
realidade exterior e de sua percepção dessa realidade e de si mesma
(PINTO, 1990, p. 89, grifos da autora).
210

O último livro do corpus da pesquisa de Pinto: Ciranda de Pedra (1954) de Lygia


Fagundes Telles, apresenta protagonistas que:

estão sempre à procura de respostas que expliquem sua situação frente


ao seu meio social, assim como buscam maneiras de solucionar o
conflito realidade exterior-verdade interior, resultado do choque entre
os anseios e desejos da personagem e as limitações impostas pela
sociedade (PINTO, 1990, p. 111).

No que concerne ao contexto histórico de 1954, data de lançamento do livro em


questão a pesquisadora afirma

A II Guerra Mundial e o desenvolvimento da indústria, iniciado por


Vargas, criam diferentes hábitos e necessidades. A família já não vive
fechada sobre si mesma, mas expõe-se agora a costumes que entram em
conflito com as tradições sociais (PINTO, 1990, p. 118).

Pinto demonstra que o livro de Fagundes Telles possui características que o


assemelham ao conceito de “Bildungroman” clássico, com diferença em relação aos
desfechos apresentados pelo romance de formação clássico. A personagem feminina não
alcança “integração ao seu grupo social” (PINTO, 1990, p. 123). Apesar da não
incorporação ao meio social a protagonista

representa assim uma ênfase no feminino e um repúdio das instituições


patriarcais opressoras. A protagonista chega ao término de seu
‘Bildung’ tendo encontrado a verdade de si e do Outro, tornando-se
capaz de aceitar-se com todo o seu passado e suas contradições [...]
modelos valiosos a partir dos quais pode traçar seu caminho futuro e
alcançar a realização e afirmação do EU (PINTO, 1990, p.144-145,
grifos da autora).

No que tange ao conceito de Bildungsroman Maas, já citada nesse trabalho afirma


que

no Brasil é ainda recente. O termo integra o Dicionário de termos


literários de Massaud Moisés [...] representado por um verbete que se
reproduz a seguir: Bildungsroman - Alemão Bildung, formação,
Roman, romance. Francês: roman de formation. Português: romance de
formação. Também se pode empregar, como sinônimo, o termo alemão
Erziehungsroman (Erziehung, educação, Roman, romance) (MAAS,
2000, p. 243).
211

Do mesmo modo, a pesquisadora tece considerações sobre longevidade do gênero


Romance de formação na história da literatura assim como sobre o caráter vigoroso e ao
mesmo tempo adaptável que apresenta

no caso brasileiro é possível identificar na primeira metade da década


de 1990, um crescente interesse pelo gênero, manifestado por uma
dinâmica que ao mesmo tempo em que assimila, já se apropria, de
maneira peculiar, do termo Bildungsroman, adaptando-o a contextos
particulares da literatura brasileira e de outros países em
desenvolvimento (MAAS, 2000, p. 243).

Nesse sentido, a literatura brasileira contemporânea incorpora elementos do


Bildungsroman para representar nas narrativas a trajetória de formação das personagens.
Essa literatura feminina que de acordo com Pinto:

se caracteriza também como subversiva ao adaptar ou reescrever temas


e enredos tradicionalmente masculinos, invertendo a relação entre
personagens, jogando o foco narrativo sobre um aspecto novo,
estabelecendo perspectivas incomuns ou oferecendo uma visão
alternativa da realidade: ou seja, a narrativa feminina, numa prática
subversiva, apresenta uma revisão de gêneros masculinos e uma revisão
da história, escrevendo-a de um ponto de vista marginal (PINTO, 1990,
p. 27).

Retratos de Carolina (2002)

O livro de Lygia Bojunga que será analisado intitula-se Retratos de Carolina


(200270). É o décimo oitavo livro em sua carreira literária.
O primeiro retrato apresentado com o título de “Carolina aos seis”, narra o dia em
que Carolina conhece Priscilla a nova colega da escola. De imediato a protagonista
encanta-se por Priscilla considerando-a como melhor amiga. No entanto, Priscilla
considera a protagonista como apenas “mais uma amiga” (RC, p. 14, grifo da autora).
Deste modo, ao ser enganada pela amiga Carolina sofre a primeira decepção de sua vida.
Neste capítulo, também há menção do forte relacionamento de amor, amizade e
cumplicidade de pai e filha, entre Carolina e seu pai: “Mas melhor de tudo, ah, nem se
fala, melhor que tudo é sentir a mão do Pai apertando firme a mão dela” (RC, p. 45).
No segundo capítulo - retrato, intitulado “Carolina aos quinze anos”, apresenta a
viagem de férias da protagonista com sua família para a Europa. Carolina adolescente é

70
Serão utilizadas as iniciais RC e número da página para referência ao livro analisado.
212

arrebatada por Londres apaixona-se pela cidade “Londres foi a grande paixão que
Carolina sentiu” (RC, p. 45). O narrador descreve a cidade demonstrando familiaridade
com os lugares, nomeia as ruas, cita nomes de locais histórico e explica sobre a arquitetura
da capital. Um episódio significativo nesse capítulo é o momento em que a protagonista
vê em uma vitrine de loja um vestido. “Primeira vez na vida que eu me apaixono por um
vestido. Eu nem sabia que a gente podia se apaixonar por uma roupa” (RC, p. 59). A loja
de roupas estava fechada pois o horário de atendimento havia terminado, deste modo, a
personagem que desejava adquirir esse vestido para ter uma lembrança de Londres não
consegue adquiri-lo e por conseguinte sente grande frustração, logo após a viagem chega
ao fim.
O terceiro retrato é de “Carolina aos vinte anos”: a jovem ingressa na universidade
está cursando arquitetura “Carolina magra, alta e sempre de livro na mão” (RC, p. 45). A
protagonista é apaixonada por arquitetura “O que sempre despertava a curiosidade dela
era o espaço onde eles iam” (RC, p. 65, grifos da autora). Neste capítulo, Carolina
conhece o homem pelo qual se apaixona e reencontra com o vestido que havia visto em
Londres.
Nos seguintes capítulos, o relacionamento entre Carolina e o Homem Certo será
apresentado; “Carolina aos vinte e um anos, junto da escrivaninha do Pai”, anuncia o
casamento de Carolina com o Homem Certo; quinto retrato: “Carolina aos vinte e dois
anos”, conta a seu pai que trancou a faculdade e está enfrentando problemas com seu
marido. No sexto, “Carolina aos vinte e três anos”, a tristeza da personagem causada pelo
casamento problemático, e o sentimento de estar vivendo em uma prisão. O narrador
fornece indícios de que o pai de Carolina está com problemas de saúde “O Pai se senta
com certo esforço. Um esforço que Carolina não chega a notar (RC, p. 108). No sétimo
retrato, “Carolina aos vinte e quatro anos” é narrado o momento em que o pai de Carolina
anuncia sua grave doença que o leva a morte. Na sequência a protagonista decide romper
com o casamento. E para finalizar a primeira parte do livro, o oitavo retrato, “Carolina
aos vinte e cinco anos”, apresenta o começo de uma nova etapa na vida da protagonista.
Fim do casamento, e a opção de morar sozinha para reconstruir sua vida.
Os retratos que compõe a primeira parte do livro se encontram em ordem
cronológica acompanhando o crescimento físico e emocional da protagonista.
A segunda parte do livro, se apresenta dividida em duas partes Pra você que me
lê, e o derradeiro retrato da protagonista Carolina aos vinte e nove anos. Bojunga propõe
uma conversa com o leitor, e com a personagem Carolina. A escritora afirma
213

eu uso um espaço diferente (justo quando o livro vai acabando é que eu


começo o papo) pra te contar a hesitação que me perseguiu até
conseguir botar um ponto final na Carolina. Só que, desta vez, eu
converso com você em feitio de história-que-continua (RC, p. 163).

O retrato “Carolina aos 25 anos” representa o renascimento da personagem em


relação ao cumprimento de seus ideias e anseios. Carolina decide divorciar-se para
retomar o mando de sua própria vida e para isto opta em morar sozinha: “ a busca de uma
vocação e uma filosofia de trabalho que podem levar a personagem a abandonar seu
ambiente de origem e tentar uma vida independente” (PINTO, 1990, p. 14).
O primeiro passo da protagonista é reencontrar a sua individualidade, seu eu como
pessoa, que foi debilitado no relacionamento conturbado em que viveu com o ex marido.
Pinto (1990, p. 148) aponta que “Enquanto o herói busca uma filosofia de vida e uma
vocação, a mulher procura uma identidade, a realização a afirmação do EU em seus
próprios termos”. A personagem busca redescobrir sua identidade, por isso inicia um
longo processo de reflexão sobre si mesma e a posição que ocupa no mundo para afirmar-
se como indivíduo e mentor de seu próprio destino. Após resgate de sua individualidade,
Carolina retoma o curso de arquitetura e consegue um trabalho para manter-se pois está
vivendo sozinha.
É válido acrescentar nesse trabalho o fato que Carolina era muito próxima de seu
Pai, com quem conversava de forma honesta sobre suas dúvidas e problemas encontrando
carinho e compreensão. No entanto, com sua mãe o relacionamento é mais distante. A
mãe de Carolina acredita que uma mulher casada deve permanecer com seu esposo, e ser
sustentada por ele; não aceita que sua filha tenha dado um fim ao casamento mesmo tendo
sofrido uma série de abusos por parte do marido. Nesse sentido, Pinto aponta que

Enquanto no “romance de aprendizagem” masculino o conflito da


personagem é normalmente com o pai, o conflito da protagonista
feminina envolve a figura materna, em geral física e/ou
emocionalmente ausente, distante da filha (PINTO, 1990, p. 148, aspas
da autora)

O percurso que Carolina atravessa é marcado por aprendizagens, perdas, ritos de


passagem, dúvidas e reconstituição de sua própria identidade. No episódio em que se
apaixona perdidamente pelo Homem certo e se casa em um curto período de tempo, o seu
Pai aconselha a viver intensamente essa paixão pelo Homem certo até que se apague. É
214

durante o casamento que Carolina passa por diversos problemas: sua liberdade de ir e vir
é condicionada pelo esposo, ele a convence a deixar a faculdade e no momento que a
personagem decide se separar o Homem certo não aceita e violenta a protagonista;
Carolina engravida e decide abortar o feto. Seu Pai não a recrimina pela atitude, entende
que ela não havia planejado essa gravidez e estava prestes a divorciar-se pare retomar seu
próprio caminho, a Mãe de Carolina a acusa de assassinato e não entende a violência
sexual sofrida por ela. Porém, Carolina está reconstituindo seu eu para gerenciar sua vida.
A personagem afirma que após tudo que aconteceu voltará a “Ser dona da minha vida...
Com essa minha mão aqui... eu vou fazer” (RC, p. 158/159).

Referências

BOJUNGA, Lygia. Retratos de Carolina. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2002.

DILTHEY, Wilhelm. Der Bildungsroman .In Selbmann, Rolf (Org.): Zur Geschichte des
deutschen Bildungsroman. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, p. 120‐122,
1988.

FLORA, L. M. R. Bildungsroman. In: CEIA, Carlos (Coord.) E-Dicionário de Termos


Literários. 2005. Disponível em: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl>. Acesso em: 10 abr. 2016.

FUDERER, L. S. The Female Bildungsroman in English: an Annotated Bibliography of


Criticism. New York: The Modern Language Association of America, 1990.

GOETHE, Johann Wolfgang Von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Tradução


de Nicolino Simone Neto. Ed. 34: São Paulo, 2006.

KÖHN, Lothar. Entwicklungs — und Bildungsroman. Ein Forschungsbericht. In:


Selbmann, Rolf (Org.). Zur Geschichte des deutschen Bildungsroman. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, p.291‐373, 1988.

MAAS, Patricia. Wilma. O Cânone Mínimo: o bildungsroman na história da literatura.


São Paulo: Editora UNESP, 2000.

MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de Formação em Perspectiva Histórica. O


Tambor de Lata de Günter Grass. Ateliê Editorial: São Paulo, 1999.

PINTO, Cristina Ferreira. O bildungsroman feminino: quatro exemplos brasileiros. São


Paulo: Perspectiva, 1990.

SCHWANTES, Cíntia. Narrativas de formação contemporânea: uma questão de gênero.


Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 30, p. 53-62, jul-dez 2007.
215

PARTE VI
POÉTICAS DO IMAGINÁRIO E MEMÓRIA:
VOZES FEMININAS
216

A POÉTICA DO IMAGINÁRIO DE CORA CORALINA E LÊDA SELMA

Maria de Fátima Gonçalves Lima71 (PUC-GO)

Para tecer aspectos da poética do imaginário de Cora Coralina e Lêda Selma,


considerei que nas abordagens críticas do Imaginário, alguns trajetos e traçados das
escritoras, embora não seja considerada determinante, não é ignorada, pois, de acordo
com Gilbert Durand, o trajeto antropológico é dado “pela incessante troca que existe ao
nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas
que emanam do meio cósmico e social.” (1997, p. 41). Assim, na produção de uma obra
entram em cena concomitantemente aspectos conscientes e inconscientes do artista e
influência do contexto em que ele vive ou viveu.
Nessa perspectiva, escolhi o poema “Todas as vidas”que abre o livro Poemas dos
becos de Goiás e Estórias mais de Cora Coralina, por possuir traçados da experiência da
poetisa, transfigurada em poesia, que transbordam o imaginário e a memória de uma voz
feminina:

Todas as vidas

Cora Coralina

Vive dentro de mim


uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim


a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

71
Doutora em Teoria Literária pela UNESP – São José do Rio Preto; Pós Doutora pela PUC Rio de
Janeiro; Pós-doutora pela PUC São Paulo. Coordenadora do Programa– Mestrado em Letras PUC/Goiás,
crítica literária, ensaísta e escritora de obras infantis. (fatimma@terra.com.br).
217

Vive dentro de mim


a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim


a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim


a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim


a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

A poesia (como toda a Literatura) não “reflete” o real, pois ela é o real desse
reflexo, pois ela o recria e se torna a parte dolorosa dele. No entanto, a poetisa, da casa
da ponte da Cidade de Goiás, se imerge no mundo circundante, da mulher que vive no
espaço do sertão goiano, brasileiro ou qualquer outro lugar, no qual a mulher cintila as
características sua feminilidade, (entendida pela antropologia, como indicadora de
218

comportamentos considerados por uma determinada cultura por ser associados ou


apropriados a mulheres) e transfigura suas experiências em forma de poesia. As mulheres
referidas são: uma cabocla velha/ de mau-olhado, / acocorada ao pé do
borralho,/olhando pra o fogo. (...) a lavadeira do Rio Vermelho,/ Seu cheiro gostoso/
d’água e sabão. / Rodilha de pano. /Trouxa de roupa, / pedra de anil./ (...) a mulher
cozinheira. / Pimenta e cebola./ Quitute bem feito./ Panela de barro./ Taipa de lenha.
/Cozinha antiga/ toda pretinha. /Bem cacheada de picumã. Pedra pontuda. /Cumbuco de
coco. /Pisando alho-sal. (...)a mulher do povo. /Bem proletária. Bem linguaruda,
/desabusada, sem preconceitos,/ de casca-grossa, /de chinelinha, /e filharada. (...)a
mulher roceira. /– Enxerto da terra, /meio casmurra./Trabalhadeira. /Madrugadeira.
/Analfabeta. De pé no chão. / Bem parideira. / Bem criadeira. /Seus doze filhos. /Seus
vinte netos. (...) a mulher da vida. / Minha irmãzinha... /tão desprezada,/tão murmurada...
/Fingindo alegre seu triste fado. /Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – a vida
mera das obscuras.
A partir do conhecimento do mundo, todas mulheres são consubstanciadas na
poesia de Cora Coralina: /Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – a vida mera
das obscuras.
O contato com o mundo mágico dos livros e com palavra poética, a mulher Anna
Lins dos Guimarães Peixoto Bretas recria por meio de metáforas, imagens, signos
em cena e símbolos do universo das mulheres que conheceu. Suas palavras soam de forma
mágica e duradouras, cúmplices de uma diuturna e convivência com o verbo.
Considerada uma das mais importantes escritoras brasileiras, Cora Coralina
nasceu na Cidade de Goiás em 20 de agosto de 1889 e faleceu em 10 de abril de 1985 aos
95 anos. Iniciou sua trajetória literária com o livro Poemas dos Becos de Goiás e os
Estórias Mais, aos 76 anos de idade. Era uma mulher muito simples, doceira e a vivia em
torno poesia da sua terra natal, cidade histórica, de serras, rios, pedras e memória.
Da vivencia com a natureza da sua terra e conhecimento do da poder da palavra
poética, nasce a poetisa, que descobre a cada dia os mistérios do ser do poema, com
seus ritmos, movimentos e o seu árido cantável.
O som da palavra que amplia a poeticidade do texto poético transforma a
realidade objetiva da artista (as pedras do beco de Goiás, a paisagem, as cores, os sons,
os alimentos como o milho, o doce, todos sabores da terras, as mulheres, o ser humano
em geral), em poesia. A sua vivência e suas memórias funcionam como matéria para o
poético e atuam como estímulo que desperta emoções, sentimentos, opiniões, reflexões.
219

Agem como um contínuo latejar composto pela a mola mestra de seu lirismo, que busca,
no concreto da realidade circundante, o engenho dos fios imaginativos da voz do próprio
“eu”, que não se constitui como uma unidade de voz, mas um canto apropriado para
traduzir várias vozes; ou ainda, calidoscópio de imagens que refletem muitas vidas,
todas as vidas do universo e imaginário feminino.
A poesia de Cora Coralina situa-se na perspectiva do lirismo que nasce a partir
da captação da realidade exterior e da desintegração de amarras que impediam a
alargamento do imaginário, ou para busca do próprio reconhecimento do mundo e de si
mesma.
O imaginário, segundo Gilbert Durand é acapacidade individual e coletiva de dar
sentido ao mundo. É também, o conjunto relacional de imagens que dá significado a tudo
o que existe. Uma resposta à angústia existencial frente à experiência "negativa" da
passagem do tempo.
A poetisa vive em consonância com o universo e procura ver mais intensamente
as coisas palavras. Desta forma, atua como uma espécie de porta voz do mundo que
representa. Sua poesia é voz, ação, movimento, canto, o arco e a lira, para citar Octavio
Paz:

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz


de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por
natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A
poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito.
Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. (...) Regresso à
infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo,
trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão,
música, símbolo. (p. 15)

A poetisa da Cidade de Goiás é uma mulher que sente a vida com mais
intensidade. É, ao mesmo tempo, sonhadora e racional; ao mesmo tempo, chora e
denuncia. Como porta voz, tem o dom de palavra e a coragem de censurar e de denunciar
a tempo os infortúnios e as catástrofes. Como poeta, pode censura os erros passados e os
presentes, e também profetizar o futuro.
Como poeta, a artista da palavra dá voz às mulheres do povo: uma cabocla velha,
com seu de mau-olhado; a lavadeira do Rio Vermelho, com sua / Rodilha de pano.
/Trouxa de roupa, / pedra de anil./ ;
(...) a mulher cozinheira. / Pimenta e cebola/ Panela de barro./ Taipa de lenha.
/Cozinha antiga/ Pedra pontuda. /Cumbuco de coco. /Pisando alho-sal; (...)a mulher do
220

povo. /Bem proletária. Bem linguaruda, /desabusada, sem preconceitos,/ de casca-


grossa, /de chinelinha, /e filharada. (...)a mulher roceira. /– Enxerto da terra,
/Trabalhadeira. /Madrugadeira. /Analfabeta. De pé no chão. / Bem parideira. / Bem
criadeira. /Seus doze filhos. /Seus vinte netos. (...) a mulher da vida. / Minha irmãzinha...
/tão desprezada,/tão murmurada... /Todas as vidas dentro de mim: Na minha vida – a
vida mera das obscuras.
A voz poética apresenta o perfil de varias mulheres com o cotidiano de suas
vidas, usos, costumes, seus gestos e vivencias. A artista da palavra converte todas as
vidas que estão dentro dela em páginas e da sua construção poética, de imagens, ritmos
e vidas delineadas na construção imaginária e ao mesmo tempo concreta do poema, com
a sua significação pluriforme, rica e eterna. O poema surge pelas ondas da linguagem e
deixa visível a memória que trazem as imagens, que de segundo Durant, são matéria
de todo o processo de simbolização, fundamento da consciência na percepção do mundo.
Para Octavio Paz (1982), o vocábulo imagem possui múltiplas definições, entre
elas um valor psicológico, pois elas são produto do imaginário. A imagem é toda forma
verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que interligadas entre si compõem
o poema. Toda imagem, ou cada poema composto de imagens, enquanto “cifra da
condição humana”, contém um número extraordinário de significados contrários ou
díspares, sendo que “[...] toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas,
indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real”.
Para Gaston Bachelard, a imaginação não é, como sugere a etimologia, “a
faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que
ultrapassam a realidade, que cantam a realidade”. Mais do que inventar coisas e dramas,
a imaginação “inventa vida” e “mente novas”. O filósofo define a imaginação como uma
potência máxima da natureza humana. A imaginação, com sua “atividade viva”,
desvincula-se, simultaneamente, do passado e da realidade, direcionando-se para o para
o futuro. Nesse sentido, a “fenomenologia da imaginação” não se contenta “com uma
redução que transforma as imagens em meios subalternos de expressão”. Ela “exige que
vivamos diretamente as imagens, que as consideremos como acontecimentos súbitos da
vida.
Outra voz poética de ermos goianos, Lêda Selma de Alencar, é uma baiana de
Urandi que adotou Goiás como berço para sua Literatura. Hoje é a atual presidente da
Academia Goiana de Letras. A sua incursão pela literatura começa no ano de 1986, com
o livro de poesia intitulado Das Sendas à Travessia. Dentre obras, são destaques: Erro
221

Médico, A dor da gente, Pois é filho, Fuligens do sonho, Migrações das Horas, Nem te
conto, À deriva e Hum sei não!,entre outras. Embora seja exímia cronista, sua poesia
releva uma artista apaixonada pelas palavras. Este amor se torna mais forte à medida que
as imagens da poesia se tornam mais nítidas. Seus poemas transbordam poesia e como
tal, seus textos poéticos não precisam de definição, exprimem estado de alma. A escritora
leva muito a sério seu trabalho com a arte da palavra e tem consciência que o ato criador
é duplo: intuição e ao mesmo tempo reflexão.
A autora é atuante, como Presidente da AGL, como cronista, como poetisa, como
artista da palavra. E aqui lembramos que a palavra Arte provém do termo Aretê dos
gregos, o qual significa “fazer o melhor que se pode”.
Para essa reflexão lembraremos as ponderações de Edgar Allan Poe, para quem
“Num poema nada se deve ao Acaso.Tudo funciona como a rígida precisão de um
problema matemático”. E nas de Baudelaire, que escreveu: “Tenho dó do poeta que não
conhece a sua arte”. O mesmo se dá nas artes plásticas, pois, para Rodin (escultura), é
preciso “Apoderar-se das regras e da técnica e só depois, esquecidas, ceder à
inspiração”. Este pensamento remonta à idéia de W. Wordsworth, para quem “Poetry is
emotion recolected in tranquility”.
A poetisa também tem consciência que o poema, pode ter ou não poesia, não
nasce pronto. Por isso, o texto poético necessita ser feito e criado pelo artista da palavra,
pois o poema é um objeto verbal. É possível que a idéia do poema ou o tema do poema
esteja na sua cabeça, aí o que ela faz é expressar esse tema de maneira artística, a melhor
que puder fazer (Aretê). Por isso, às vezes faz da primeira vez, outras — e é o comum
— precisam de várias versões, olhares, revisões, até que a poeta fique contente com o
que escreveu ou ainda fica contrariada com uma licença poética que não estava nos
cálculos inicias da criação.
A Poesia (com P maiúsculo) é uma linguagem especial, encantatória e lúdica,
abstrata na sua essência e concreta na estrutura artística do poema. Uma de suas funções
é a de pôr à mostra aquilo que, por muito simples e pequeno, se torna invisível e vai
passando despercebido no turbilhão e na intensidade da vida comum. Por intermédio da
língua e do conhecimento de sua Arte o poeta constrói a sua linguagem, o seu poema. O
texto poético de Lêda Selma está inserido na poesia (com P maiúsculo) que uma
linguagem especial, encantatória e lúdica, abstrata na sua essência e concreta na estrutura
artística do poema.
222

O poema “Travo”, do livro À deriva (2005), é um exemplo de que a poesia de


poemas põe à mostra aquilo que, por muito simples e pequeno, se torna invisível e vai
passando despercebido no turbilhão e na intensidade da vida comum:

Este amargo no meu verso


é dor deixada ao relento,
é mofo de amor arredio,
resto de coisa estragada.
Este cheiro no meu verso
é hálito de beijo dormido,
é suor de desejo magro,
sobra de amor confinado.
Este frio no meu verso
é saudade amanhecida,
é silêncio a mascar vazios,
restolho de amor puído.
Este travo no meu verso
é mofo, é hálito, é frio,
revés, avessos, saudades,
despojos de amor sozinho.

As imagens expressas nos versos de Lêda Selma são sinestésicas, pois envolvem
os sentidos o gustativo (amargo), olfativo (cheiro) e tato (frio) auditivo ( travo). Todos,
(de forma mais profunda o ultimo) remetem à profunda sobre a amargura, ausência de
liberdade, de alegria, de amor, pois o vocábulo travo além de significar o sabor
adstringente de qualquer comida ou bebida ou amargor, nos tem relação sêmica com os
termos “trava”, “trinco”, “prisão”, “escuridão”, “medo” e “silencio”.
O poema é formado por quatro blocos de imagens que são reiteradas em três outras
imagens:

Este amargo no meu verso / é dor deixada ao relento,/ é mofo de amor


arredio,/ resto de coisa estragada.
Este cheiro no meu verso/ é hálito de beijo dormido,/ é suor de desejo
magro,sobra de amor confinado.
Este frio no meu verso/ é saudade amanhecida,/é silêncio a mascar
vazios,/restolho de amor puído.
Este travo no meu verso / é mofo, é hálito, é frio,/ revés, avessos,
saudades,/ despojos de amor sozinho.

O desagradável sabor do travo, logo em seguida, é apresentado de forma


sinestésica como Este cheiro no meu verso/ é hálito de beijo dormido,/ é suor de desejo
magro,/ sobra de amor confinado.
223

Para Octavio Paz (1982), o vocábulo imagem possui múltiplas definições, entre
elas um valor psicológico, pois elas são produto do imaginário. A imagem é toda forma
verbal, frase ou conjunto de frases, que o poeta diz e que interligadas entre si compõem
o poema. Toda imagem, ou cada poema composto de imagens, enquanto “cifra da
condição humana”, contém um número extraordinário de significados contrários ou
díspares, sendo que “[...] toda imagem aproxima ou conjuga realidades opostas,
indiferentes ou distanciadas entre si. Isto é, submete à unidade a pluralidade do real”.
(p.102)
Gaston Bachelard (1988) assevera que, a imaginação não é, como sugere a
etimologia, “a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens
que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade” (p.33). Mais do que inventar coisas
e dramas, a imaginação “inventa vida” e “mente novas”. O filósofo define a imaginação
como uma potência máxima da natureza humana. A imaginação, com sua “atividade
viva”, desvincula-se, simultaneamente, do passado e da realidade, direcionando-se para
o para o futuro.
Bachelard (1988) afirma ainda que a verdadeira imagem, quando é vivida
primeiramente na imaginação, “deixa o mundo real e passa para o mundo imaginado,
imaginário. Através da imagem imaginada, conhecemos esta fantasia absoluta que é a
fantasia poética” (46). No dizer do filósofo, quando alguma imagem “assume um valor
cósmico, produz o efeito de um pensamento vertiginoso. Uma tal imagem-pensamento,
um tal pensamento-imagem não tem necessidade de contexto”. As proezas das palavras
vão além da expressão do pensamento.
Outro poema que elucida liricamente valorização da imaginação como matéria
para do processo criativo e reflexão sobre o sentimento e saber humano, exercida pela
poetisa é poema “Faz de conta”:

A mim, não pertence


Teu sonho inteiro.
Só tenho a tua metade.
E, por sabê-lo, me dói longe
a verdade que é a dor
De não ter-te.

Inteira, sei, não me queres,


E me divido para dar-te
só a metade.
Mas a outra, sozinha, adoece,
morre solidária comigo,
224

e meu sonho, de sonhar, se esquece.

Por meios caminhos andamos,


Com meios sonhos nos amamos
Num voo pequeno, rasante...
E quando o infinito se alonga,
Nossas fantasias infantes,
Só brincam de faz de conta.

No poema “Faz de contas”, o eu-lírico, para viver plenamente um seu amor


platônico, concede asas ao sonho. No devaneio mundo do imaginário se realiza muito
longe das amarras da realidade. O sonho não está preso ao medos que marcam a vida e
a morte, da asas à imaginação.
Gilbert Durand que avalia a imaginação uma forma de pensamento, ao qual não
necessita de um processo descritivo. Ela se utiliza da lógica dos símbolos, isto é, a mente
se utiliza de imagens quando não consegue representar de maneira direta o mundo por
meio de uma percepção simples ou sensação. E ainda, a imaginação se define como uma
reação defensiva da natureza contra a representação da inevitabilidade da morte, por meio
da inteligência.
Esta teoria, aplicada ao poema de Lêda Selma, está evidenciada na sutileza das
imagens que poetizam a impossibilidade do encontro dos apaixonados e da iminente
proximidade da total separação, a impossibilidade de realização do amor no plano da
realidade. O rito de morte (Tânatos) – separação – está presente em todos os mitos de
amor, que são formados pelo triângulo: Psique, Eros e Tânatos. O amor e a morte estão
interligados no erotismo. No poema está clara a ideia de morte, mas a impossibilidade
da realização do amor. Nesse caso, não existirá vida em comum, mas ausência, desejo de
estar, existência que se realiza pela metade: Inteira, sei, não me queres,/E me divido para
dar-te/só a metade./Mas a outra, sozinha, adoece,/morre solidária comigo,/e meu sonho,
de sonhar, se esquece.
O poema revela uma metade enferma, morrendo solitária. Nesse caso, morte é
encarada sob o seu aspecto desagregador, marcada pela ruptura. No entanto, é vista,
sobretudo, como a possibilidade de expressão do ser da poesia que exprime o “Faz de
contas”, do poesia que vivifica o desejo reprimido. Diante do exposto, para chegar ao
poético, o eu lírico conheceu a ausência, a falta, a negação, o vazio, atingir o não-ser. Só
o encontro com o nada dá a dimensão do ser para o homem e permite sua percepção do
mundo real e do imaginário.
225

Se a imaginação é a força dinâmica pela qual o homem consegue imaginar mundos


e dar sentido à vida através de imagens, a poesia é o vetor de operacionalização dos
instantes vividos, das transmutações da linguagem, da valorização dos sentimentos e das
coisas mais simples. É por meio da imaginação e da concretização da poesia que o ser
humano consegue dar forma às coisas mais tênues, evanescentes e se autoafirmar. Sendo
assim, a poesia é transcendência, contemplação, força que edifica e revigora o homem
frente às vicissitudes da vida. É também “milagre” da linguagem.
Cora Coralina e Lêda Selma são duas vozes femininas que ilustram a Poética do
Imaginário e Memória do chão goiano. Seus textos estão na perspectiva do lirismo que
nasce a partir da captação de uma possível realidade exterior e da desintegração de
amarras que impediam a alargamento do imaginário. Da procura do próprio
reconhecimento do mundo e de si mesma, nasce o poético sublime, plural, fascinante e
sem fronteiras.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BRIK, O. “Ritmo de sintaxe”. In: EIKH ENBAUM, B. et. Al. Teoria da


Literatura:formalistas russos. Trad. A. M. Ribeiro. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 131-
139.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e Estórias mais.21ª ed. São
Paulo: Global, 2003.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 24ª ed. Rio de janeiro: José Olympio,
2009.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad. Hélder Godinho.


São Paulo: Martins Fontes, 2012.

GOLDBERG, Roselee. A arte da performance. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Martins


Fontes, 2006

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica Moderna; da metade do século XIX a meados do


século XX. Trad. Marise M. Curiori. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

LEFEBVE, Maurice Jean. Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa. Coimbra:


Livraria Almeida, 1980.

PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. Col. Logos.
Trad.de Olga Savary
226

POUD, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo:
Cultrix, 2002.

SELMA, Lêda. À deriva. 2ª ed. Goiânia: Kelpes, 2008.

______. Migração das horas. Goiânia, Ed. Cartográfica, 1991.

ZUNTHOR, Paul. A Letra e a Voz: A “literatura” medieval. Trad.Amálio Pinheiro,


Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

______. Performance, Recepção e Leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Suely Fenerich.
São Paulo: EDUC, 2000.

______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria
Inês de Almeida. Belo Horizonte; Ed. UFMG, 2010.
227

DAS INTERFACES DA ESCRITA FEMININA ÀS IMAGENS DOS


DESDOBRAMENTOS DO EU NA LÍRICA DE LILA RIPOLL

Antonio Donizeti da Cruz (UNIOESTE)


Bruno Weber (Doutorando/UNIOESTE)

A lírica de Lila Ripoll apresenta temas que se intercruzam numa rede de sentidos.
A poeta desenvolve em sua obra poética o mito (mais precisamente o mito de Narciso,
com ênfase no tema do duplo, nas imagens do desdobramento do eu, no tema do espelho,
retrato, reflexos, sombras, entre outros).
Lila Ripoll nasceu em Quaraí, RS, no ano de 1905 e faleceu em 1967, em Porto
Alegre, RS. A obra poética publicada pela poeta entre 1938 a 1961, compõe-se de sete
livros, de que foi realizada somente uma edição: De mãos postas (1938), Céu vazio
(1941), Por quê? (1947), Novos poemas (1951), Primeiro de Maio (1954), Poemas e
canções (1957) e Coração descoberto (1961).
Em 1954, Ripoll presidiu a seção regional da União Brasileira dos Escritores e
organizou em Porto Alegre o 4º Congresso Brasileiro de Escritores. No ano seguinte a
Poeta recebe o Prêmio Pablo Neruda da Paz. Cumpre destacar que a lírica de Lila Ripoll
se aproxima em muito com a poesia de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Helena
Kolody, entre outras vozes da lírica brasileira.
Na obra Lila Ripoll: obra completa, as imagens do desdobramento do eu aparecem
de maneira nítida. Há, também, um entrelaçamento de temáticas: a religiosidade enquanto
experiência de vida, a infância, o tempo, a solidão, a memória, o humor, a ironia, entre
outras. O fazer poético também fica notório no realce ao amor às palavras, à metapoesia,
ao diálogo com o leitor, à comunicação literária.
Para Alice Campos Moreira, Lila Ripoll, laureada com dois relevantes prêmios de
poesia, é uma das mais autênticas vozes líricas da literatura sul-rio-grandense. E salienta:

A ela se deve a elevação do nível estético do discurso poético feminino,


presente desde as primeiras manifestações literárias do Sul do País. Os
efeitos líricos que emanam da musicalidade e da simplicidade temática
de seus versos, de comunicação imediata, permitem aproximá-la dos
mais altos representantes da poesia brasileira” (MOREIRA. In: Lila
Ripoll, 1998, p 11).
228

No dizer de Maria da Glória Bordini, a lírica ripolleana percorre caminhos


palmilhados pela lírica mundial, evidenciando temas como o amor, o compromisso social,
o memorialismo fixado na infância, entre outros. Para a autora,

A poesia de Lila Ripoll hiperatrofia o Eu em relação ao mundo, bem ao


estilo dos neo-simbolistas do Sul dos anos 30 e 40. A corrente
simbolista que perpassa a poesia rio-grandense desde o início do século,
cultivando o intimismo doméstico e a solidão mórbida, antes que
simples escapismo, numa época de convulsões políticas e sociais que o
romance se encarregaria de denunciar, parece representar a negação
dessa espécie de mundo injusto, ao qual não se permite que ingresse
sequer nos limiares do poema. (BORDINI. In: Ilha difícil, 1987, p. 11-
12).

Nesse sentido, Bordini observa que na lírica de Ripoll a negação não se efetiva
“pela ausência das questões sociais, mas pela impossibilidade de conviver com o
transitório e as perdas que atingem todos os homens e que levam o sujeito lírico a
identificar-se com os pequenos, os despossuídos, em virtude da magnificação dessa dor
de existir que afeta para além de sua capacidade de resistência” (BORDINI. In: Ilha
difícil, 1987, p. 11-12).
Através do ato de nomear, de poetizar o mundo e de dar sentido às coisas, o poeta
faz da linguagem uma viagem em versos. Mediante os desdobramentos do eu e da
atividade criadora, o “artífice da palavra”,

Poesia

Toda a poesia do poema


não vale a outra – a verdadeira.
A que não consegue transpor
a face fria, que ficou ignorada.
A que não pode ser desprendimento,
mas apenas subir como perfume...

A palavras estão gastas


e sem cor. As palavras
são suspiros ritmados,
benevolentes fantasmas
bem vestidos.

A verdadeira poesia – a invisível,


toca de leve a fímbria
dos meus versos. Mas permanece
intacta no meu mundo.
(1998, p. 274)
229

Na poesia, o tempo implica na questão ontológica. Ele é como que uma


descontinuidade ritmada da espiral, do círculo e do eterno retorno. Mas também há os
momentos únicos do poeta perante o fazer poético e o exercício da linguagem revelando-
se em canções, mesmo que os questionamentos remetam para à indagação, tal como os
versos do poema “Canção da dúvida”, de Lila Ripoll:

Canção da dúvida

Tua palavra é forte.


Teu rosto, inquieto.

Eu acompanho o movimento
do rosto e das palavras.

Eu acompanho o movimento
das nuvens e do vento.

Mas onde vão as nuvens?


E qual a direção... do vento?
(1998, p. 238).

Os questionamentos do eu-lírico sobressaem no texto. Já o fazer poético de Ripoll


apresenta como marcas de humanização, ou seja, uma construção textual embasada no
projeto de valorização da natureza e no olhar atento da poeta que faz de sua lírica uma
forma de projetar o pensamento e (re)invenção das relações entre o eu e o mundo. Sua
arte poética reside no diálogo com a inconstância das coisas e dos acontecimentos
exteriores frente à paisagem natureza-mundo.
A poesia ripolleana está alicerçada na busca memorável e densa das palavras e na
concretização de um fazer poético centrado na força do lirismo nostálgico. Assim, o fazer
poético ripolleano tem suas bases principalmente na procura da palavra exata para efetivar
a comunicabilidade lírica.
Os versos singelos do poema “Esboço”, de Lila Ripoll, apresentam pinceladas
leves, rápidas, com um lirismo intenso:

Esboço

Um leve traço
de luz, ligeiro.
Um sol escasso,
meu rosto inteiro.
(1998, p. 227).
230

Tal como o rosto que se mostra por inteiro, a poesia é força transformadora e
energia vital. Assim, a lírica de Ripoll é marcada pela rapidez, pelos traços ligeiros, que
revelam a exaltação intensa da vida e a constante interrogação do sentido da vida. Já o
ato criador é uma luta de corpo a corpo com as palavras em que a poeta se dedica sem
tréguas ao seu ofício de lapidar as palavras. Através do fazer poético e da força das
palavras, Ripoll realiza o poema – ser de palavras – enquanto experiência humana
concreta de busca de liberdade e revelação.
O tema do desdobramento, a princípio, se refere à existência do outro, que duplica
a existência do sujeito lírico. O tema do eu e o outro, são regidos por uma coerência que
lhes confere unidade, relacionado ao tema do duplo, no qual reflete uma inquietude
metafísica, que aponta para uma profunda reflexão sobre a vida e a literatura.
No texto “Retorno”, o eu-lírico (re)memora o passado e centra a enunciação no
memorialismo fixado na infância e na indagação frente as solicitudes da vida:

Retorno

Diante do velho poço,


fiquei olhando as datas
que só eu conhecia.

Andei, depois, pelo quintal.


O arvoredo tocava-me de sombras
e o parreiral caía sobre mim.

As uvas maduras tinham sabor de infância


nos meus lábios
e as árvores me estendiam os braços enrugados.

Com elas conversei quase em surdina.


Lembramos a menina de riso difícil,
de fala escondida.

Que sonhos trazia!

Ai! que sonhos, os meus sonhos!

– Onde terá perdido a face


daquele tempo?
(1998, p. 228).

A indagação do eu poético é uma constante na lírica ripolleana. A linguagem


metafórica, o mito de Narciso redivivo no ato de olhar para o “velho poço”, o diálogo do
231

sujeito lírico com as árvores e a visão onírica, são elementos de integração do eu com a
natureza.
Em “Quatro poemas de amor”, o eu-lírico declara:

Eu te amo com uma intensidade


que me assusta em me perturba.
Tu vives em todos os meus sentidos,
e na forma dos meus pensamentos.
[...]
Sou como uma fonte clara e simples
que reflete, no fundo, a mesma imagem.
[...]
Eu vivo porque tu existes em todos os meus sentidos
e na forma dos meus pensamentos.
(1998, p.132).

Na passagem ocorre a confissão amorosa do eu-lírico para com as palavras e as


reflexões sobre o tempo: “[...] É tempo de pensamento e solidão./ Tempo de procurar em
mim./ Tempo de me ver inteira num espelho” (“Estrelas e areias”, 1998, p. 272).
A medula das grandes constelações da poesia de Lila Ripoll é o problema do
duplo, que desempenha um papel de destaque na literatura, nas mais diversas associações,
como a sombra, espelhos, o sócia, gêmeos, reflexos, mito de Narciso, entre outros.
O tema do duplo tem sido recorrente na literatura ocidental, aparecendo sob as
mais diversas formas. Na história da literatura uma das primeiras manifestações do duplo
aparece no mito de Anfitrião quando o deus Júpiter toma a aparência física de Anfitrião,
enquanto este estava no campo de batalha, adentra no palácio e seduz Alcmena, esposa
de Anfitrião. Na obra Anfitrião, de Plauto, tem-se a versão conservada do mito. Já nas
versões posteriores, tais como a de Molière, Juan de Timoneda, entre outros, caracteriza-
se o aspecto cômico.
Segundo Juan Bargalló Carreté, o tema do duplo faz parte de toda a estrutura da
literatura ocidental. Ele tem despertado interesse de investigadores e especialistas nas
mais diversas áreas do saber, como a filosofia, a ciência da comunicação, a sociologia, a
história da arte e de maneira especial, as literaturas dos diferentes países. A questão da
oposição de contrários, no dizer de Dênis de Rougemont, citado por Carreté, encontra-se
nos pressupostos básicos da doutrina dos mais antigos pensadores do ocidente, como
Heráclito e Platão. Está latente no mito de Édipo, manifesta-se nas mais diferentes formas
da literatura de todos os tempos, e determina um dos pontos básicos da crítica moderna,
232

da sociocrítica, da psicocrítica freudiana e da mitocrítica de Gilbert Durand, sob o


denominado “regime da antítese”.
Para Carreté, o desdobramento (duplo) é uma metáfora dessa antítese, ou dessa
oposição de contrários, em que cada um encontra no outro seu próprio complemento. O
tipo de duplo que Carreté chama desdobramento e que Dolezel denomina duplo se produz
quando “duas encarnações alternativas de um só e mesmo indivíduo coexistem em um só
e mesmo mundo de ficção” (CARRETÉ, 1994, p. 15). Neste sentido, o referido conceito
de duplo, de Carreté, ocupa o espaço central do campo temático do desdobramento.
Para Lubomír Dolezel, o tema do duplo goza de uma popularidade constante, tanto
na tradição oral como na literatura da antigüidade, até na contemporaneidade, uma vez
que sua permanência é plenamente evidenciada pela temática seletiva. Além disso,
mesmo que a importância do tema do duplo na literatura e na temática tradicional possa
justificar por ela mesma sua escolha para um reexame, numa perspectiva estrutural, tem-
se uma justificativa especial: o tema do duplo está intimamente ligado a uma teoria
semântica que fornece um quadro estimulante para a “semântica dos mundos possíveis”,
que é um princípio de raciocínio e de imaginação que dá a cada indivíduo um inumerável
conjunto de duplos (DOLEZEL, 1985, p. 464).
O desdobramento e a imagem devem ser considerados como os dois pólos de uma
mesma realidade. Para Isabelle Tiret, a imagem torna-se qualidade mágica do duplo, por
ela representar uma qualidade latente do tempo reencontrado. O duplo detém a força
mágica. A simples imagem material produzida fisicamente por reflexão e que nós
nomeamos reflexo detém a mesma qualidade. É o duplo ele-mesmo que está presente no
reflexo da água ou do espelho. A magia universal do espelho não é outra que a do duplo.
No reflexo, o duplo se localiza nestas formas naturais e impalpáveis que constituem o
outro. O outro sempre nos persegue, manifesta a evidente exterioridade do duplo no
mesmo tempo que sua cotidiana e permanente presença (TIRET, 1995, p. 249-253).
Segundo Gilbert Durand, o espelho é parte do “processo de desdobramento das
imagens do eu, e assim símbolo do duplicado tenebroso da consciência, como também se
liga à coqueteria, e a água, constitui, parece, o espelho originário” (DURAND, 1997, p.
100). O tema do espelho remete para dois mitos da antigüidade clássica: o mito de Narciso
e o de Acteão.
Já o mito de Narciso tem uma relevância muito grande na nossa época. Ele alude
à difícil tarefa de relacionamento com o outro, pois este é um elemento fundamental na
constituição do sujeito. Para Raïssa Cavalcanti, o mito de Narciso narra o surgimento da
233

consciência, o seu desenvolvimento e a ampliação no processo do conhecimento. Ele


expressa o “arquétipo” do nascimento da consciência a partir do artifício de mitificação
do herói Narciso, no qual se encontram “o despertar da consciência, o nascimento do ego,
da identidade e a ampliação da consciência e do conhecimento na busca da individuação”
(CAVALCANTI, 1992, p. 12).
Em “Retrato”, os versos registram a sutileza de um fazer poético alicerçado na
força da linguagem e no tema especular, em que o eu-lírico declara:

Retrato

Chego junto do espelho. Olho meu rosto.


Retrato de uma moça sem beleza.
Dois grandes olhos tristes de agosto,
olhando para tudo com tristeza.

Pequeno rosto oval. Lábios fechados


Para não revelar o meu segredo...
Os cabelos mostrando, sem cuidados,
Uns fios brancos que chegaram cedo.
[...]
Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho.
O espelho é meu amigo. Nunca mente.
No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.

E sabe desde quando estou descrente!...


(1998, p. 40)

Note-se, nos versos, a capacidade criadora da poeta em dar sentido à sua


construção lírica. Tal como Narciso busca a fonte, o sujeito lírico mira o próprio rosto no
cristal do espelho. O espelho, aferidor de verdades, tem a capacidade de demarcar
fronteiras entre o simbólico e o imaginário. No texto, o sujeito lírico trata o espelho como
“amigo” pelo fato de ele não mentir e “saber” o sentimento de tristeza ou descrença que
toma conta desse Eu que se desdobra.
Na lírica de Ripoll, há também o aspecto lúdico da linguagem, tais como nos
versos do poema: “Canção de esconde, esconde”, em que o eu-lírico declara:

Solidão brinca comigo


um jogo de esconde,esconde.
Desaparece um momento
e surge não sei de onde.

Parece espelho partido


pelo chão esparramado.
234

Mesmo que não pareça


há o reflexo a meu lado.
[...]
(1998, p. 225).

O recurso dos desdobramentos do eu e do mito de Narciso para alicerçar um


poema e, ao mesmo tempo, dar consistência a um elemento imaginário totalmente
inusitado, são evidenciados na lírica de Ripoll. A criatividade da poeta está, também, no
exercício de encontrar um suporte imagético ao recorrer à mitologia, por exemplo, quando
trata em sua obra poética sobre o mito de Narciso. O tema do desdobramento de eu
aparece sob as mais diversas formas na poesia ripolleana. Assim, poeticamente, cada
verso reflete a imagem do eu poético feminino na amplidão do espelho, no reflexo, na
sombra, entre outras formas de duplicação que o universo poético possibilita centrado nas
semânticas dos mundos possíveis que a literatura possibilita na reflexão social e na
construção edificadora da vida.

Referências

BORDINI, Maria da Glória. Apresentação. In: ILHA difícil: antologia poética. Seleção e
apresentação de Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1987.

CAVALCANTI, Raïssa. O mito de Narciso: o herói da consciência. São Paulo: Cultrix,


1992.

CARRETÉ, Juan Bargalló (Org.). Hacia una tipología del doble: el doble por fusión, por
fisión y por metamorfosis. In: __. Identidad y alteridad: aproximación al tema del double.
Sevilha: Ediciones Alfar, 1994 (Colección Alfar Universidad, 80. Série investigación y
ensayo).

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro:


José Olympio, 1993.

DOLEZEL, Lubomír. Le triangle du double: un champ thématique. Poétique, Seuil, n.


64, p. 463- 472, nov. 1985.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à


arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Ensino
Superior).

ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

LILA Ripoll: obra completa. Alice Campos Moreira (Org). Porto Alegre: IEL:
Movimento, 1998.
235

MOREIRA, Alice Campos. Apresentação. In: LILA Ripoll: obra completa. Organização
de Alice Campos Moreira. Porto Alegre: IEL: Movimento, 1998.

TIRET, Isabelle. Le réel et l’imaginaire ou la traversée du miroir. Sociétés. Revue des


Sciences Humaines et Sociales. Paris, Dunod Reveues, n. 49. 1995. p. 249-253
236

A VOZ DO DITADOR E A IRONIA DE UM NARRADOR: LITERATURA E


HISTÓRIA EM RENÉE FERRER

Profa. Dra. Alexandra Santos Pinheiro

Renée Ferrer e a representação da ditadura de Alfredo Stroessner

Neste texto, analisamos a atuação do narrador na construção da personagem do


ditador, na obra La Querida (2008), da escritora paraguaia Renée Ferrer. Na narrativa,
que mescla um narrador-onisciente em terceira pessoa com o discurso direto, o narrador
procede ao julgamento do general. O ditador, que se manteve por 35 anos no poder
(embora a narrativa não cite seu nome, sabemos que se trata de Alfredo Stroessner),
encontra-se destituído do cargo, encurralado em um pequeno porão à espera da sentença
que será aplicada a ele. É, portanto, ao ditador vencido que a obra La Querida empresta
a voz, mas não o deixa livre para imprimir o seu ponto de vista: as reminiscências do
ditador são ironizadas, questionadas e depreciadas pelo narrador. A obra em análise soma-
se a um conjunto de textos literários voltados à representação das ditaduras sofridas na
América Latina. Para recordar de alguns exemplos, citamos Ricardo Piglia, Martin
Kohan, Andrés Neuman e Oswaldo Soriano, na Argentina; Alejandro Zambra, no Chile;
Frei Beto e Fábio Campana, no Brasil; e Augusto Roa Bastos no Paraguai.
Estes, e outros tantos escritores, recriam a ditadura militar, dão visibilidade às
vítimas e aos algozes e, na multiplicação das vozes, configuram-se como registros
memorialísticos, confrontando valores e permitindo, ao leitor, problematizar temas
cotidianos ou grandes acontecimentos históricos, como defende Ligia Chiappini,

Não é de hoje tampouco que a arte e a literatura são vistas como formas
de conhecimento, como testemunhos sobre fatos e processos históricos,
como intérpretes e produtoras de opinião, contraditórias e
comprometidas com grupos dominantes ou dominados, com maiorias e
minorias sociais, étnicas, culturais. Mas diversos estudos já
demonstraram que as obras de alta elaboração estética confrontam e
contrastam dialogicamente os valores e, como tal, permite ao leitor
problematizá-los (CHIAPPINI, 2000, p. 23).

A literatura é, assim como indicado na citação acima, uma forma de


conhecimento. Ao descortinar a ditadura militar, a literatura latino-americana assume a
responsabilidade de recompor o passado por meio de personagens inventadas ou
237

reinventadas, e convida à reflexão sobre os anos de silenciamento, de opressão e de


atrocidades em nome da “ordem” de uma nação. Em La Querida (2008), o tempo
cronológico dos 35 anos de ditadura de Alfredo Stroessner (Encarnación-Paraguai,
1912 — Brasília- Brasil, 2006) ocorre em poucas horas. Nele, vale o tempo de
rememoração das personagens principais (Dalila e o Ditador). Neste curto tempo
cronológico, ganha ênfase os distintos testemunhos: o do Ditador72, cuja voz é
acompanhada sempre por um narrador questionador, irônico e desafiador; o do insurgente
Marcos, irmão de Dalila, que deixa em seu diário o registro de sua prisão e de sua tortura;
o de Dalila, La Querida, que depois de quase 30 anos presa ao Ditador, ingressa em um
processo memorialístico; e pelas vozes de personagens secundários que aparecem ao
longo do enredo para reforçar ou refutar o poder do ditador.
De todas as vozes, as mais marcantes são a de Dalila e a do Ditador. As
reminiscências de ambos conduzem o enredo, dividido em 60 capítulos. Dalila está em
um cemitério, ela procura pelos túmulos do irmão Marcos e do soldado Inocêncio, único
homem com quem se relacionou enquanto esteve com o Ditador. Ela busca pelo vestígio
do irmão e do amigo, mas também deseja recuperar o que já não existe nela: a menina
que aos 16 anos entregou-se por livre e espontânea vontade ao Ditador porque
ambicionava, ao lado do homem mais importante de seu país, ser detentora do poder. O
Ditador, por sua vez, está preso em um porão. Destituído de seu cargo, o General tece as
suas memórias, mas este processo memorialístico não conta com a liberdade dada a
Dalila. As suas reminiscências são questionadas, refutadas e ironizadas por um narrador
que já não teme aquele que por 35 anos silenciou a tudo e a todos.
Historiadora e literata, Renée Ferrer é apresentada em dois livros importantes da
história literatura Paraguaia: Proceso de la literatura paraguaya (2011), de Victorio V.
Suárez e Antología de la literatura paraguaya (2004), de Teresa Méndez-Faith. No mais
recente, encontramos: “Poetisa y novelista. Es doctora en Historia por la Universidad
Nacional de Asunción. Ganadora de importantes premios nacionales e internacionales, se
ha dedicado con notable constancia a las letras” (SUÁREZ, 2011, p. 190). Na mesma
obra, há a transcrição de uma pequena entrevista realizada por Victorio V. Suárez, em
que se pode conhecer um pouco o pensamento da escritora. Da entrevista, duas questões
chamam a atenção. A primeira refere-se à resposta dada às perguntas: “¿Se puede decir
que actualmente las mujeres asumen de manera muy decidida el trabajo literário? ¿Se

72
Assim como na narrativa, vamos manter Ditador sempre com a inicial em maiúsculo.
238

trata de la escritura de la “transición”? ¿De qué manera te toca ese compromiso?”. Ao


refletir acerca destes questionamentos, a autora afirma:

- Creo que el despertar de la mujer llega de la concienciación del propio


valor. La mujer se da cuenta de lo que vale y puede decir. El auge se da
específicamente en la narrativa, en la poesía siempre aparecieron las
mujeres, independientemente de la situación del país. En poesía las
mujeres hemos dicho muchas cosas. La gran eclosión en la narrativa se
da desde los años 80. Yo no la relaciono con la “transición” porque
simplemente la mujer dice su verdad, cuestiona el entorno y comienza
a desenmascarar (FERRER, apud. SUÁREZ, 2011, p. 386).

A própria autora é um exemplo de narrativa de autoria feminina que ousa


questionar o seu entorno e oferecer uma versão para aquilo que observa. A ditadura de
Stroessner esteve presente em seu livro mais premiado, Los nudos del silencio, de 1988.
Nesta obra, um casal formado por uma jovem rica e submissa e por um homem pobre e
ambicioso vive, sem que ela saiba, pelas graças do ditador, a quem o marido serve
cegamente. Em uma viagem a Paris, assistem a uma apresentação lesbiana entre uma
bailarina francesa e uma bailarina vietnamita que conduz Malena, a esposa, ao
autoconhecimento. Vinte anos depois, os 35 anos de Stroessner é revisitado pela autora
na obra La Querida. Memória, autoconhecimento e testemunho marcam o ponto de vista
construído nesta narrativa, em que até mesmo o Ditador ganha voz.
Victorio V. Suárez insere Renée Ferrer à geração de 60 da Literatura Paraguaia:

Los integrantes de la generación del 60 no solamente se dedicaron a la


poesía o a la narrativa, también desplegaron una inusual acción en el
campo de la crítica. Los poetas del 60 tenían la expresión triste, patética,
como presagiando la larga noche dictatorial que comenzó a madurar. El
desafío al sistema vigente y hasta al mismo Dios fue síntoma del
descontento político y metafísico que esgrimó esta fecundación de
escritores contra la violencia y la injustiça (SUAREZ, 2011, p. 92).

La Querida pode ser o resultado da “larga noche dictatorial que comenzó a


madurar”. Distante no tempo, Ferrer revisita o período histórico que exilou, prendeu e
torturou quem ousou se pronunciar. Sua obra é marcada pela mediação de um narrador
que faz uso da liberdade de expressão. Ele não é o narrador “que reproduz” (SANTIAGO,
2002, p. 60), mas aquele que sabe “intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994,
p.197). Na obra em análise, o narrador cumpre dois papeis: o de mediar os testemunhos
daqueles que experimentaram os anos de crueldade, soberba e queda do ditador; e o de
239

acompanhar as reminiscências do general. Quando se refere aos demais personagens ou


dá voz a eles, o narrador é um mero observador. Em contrapartida, quando a voz é dada
ao ditador, ele lança reflexões e guia o leitor por aquilo que deseja: desmascarar o homem
que, depois de mais de três décadas de mando, chega ao fim, encurralado em um quartinho
de porão, prestes a ser exilado do país que ele julgou ser sempre seu. A voz já não é mais
do ditador e o narrador, portanto, pode desconstruí-la.

A voz do Ditador e a ironia de um narrador

Gustave Flaubert, em Cartas Exemplares, afirma que “O autor, em sua obra, deve
ser como Deus no universo, presente em toda parte, e visível em parte nenhuma. [...]. Que
se sinta em todos os átomos, em todos os aspectos, uma impassibilidade escondida e
infinita” (FLAUBERT, 2005, p. 83). Todorov também reforça esta presença do autor-
narrador que: “dispõe certas descrições antes das outras, desobedecendo eventualmente a
linearidade do tempo da história; faz ver a ação pelos olhos de uma personagem, ou por
seus próprios olhos” (TODOROV, 1976, p. 245). Em La Querida, há a presença de dois
narradores, o onisciente e o narrador-autor. O primeiro é o responsável pela mediação da
narrativa. Ele está em todos os lugares, inclusive, na consciência das personagens. O
narrador-autor, por sua vez, se faz presente em algumas observações marcadas entre
parênteses. Trata-se de uma espécie de complemento ao que está sendo narrado. No
capítulo quatro, “La incredualidad del poderoso”, o narrador explicita o processo
memorialístico do Ditador “Él también va pateando las reminiscencias sobre el descanso
de la memoria” e, em parênteses e itálico encontra-se o complemento (hasta llegar al
infierno, supongo) (FERRER, 2008, p. 31). A ironia do narrador em La Querida é, como
defende Linda Hutcheon, “um caso de interpretação e atribuição” (2000, p.74). Ou, como
compreende Beth Brait:

[...] a ideia de contradição, de duplicidade como traço essencial a um


modo de discurso dialeticamente articulado; o distanciamento entre o
que é dito e o que o enunciador pretende que seja entendido; a
expectativa da existência de um leitor capaz de captar a ambiguidade
propositalmente contraditória desse discurso (1996, p. 29).

Em La Querida, estamos diante do que Bakhtin (1981), ao analisar a literatura de


Dostoiévski, chama de romance polifônico, dada a partir de uma multiplicação de vozes,
guiadas pela perspectiva do narrador: “Não é a multiplicidade de caracteres e destinos
240

que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos
seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus
mundos [...] (BAKHTIN, 2010, p.4-5). O narrador-onisciente dá a voz às personagens,
mas imprime o seu ponto de vista diante das afirmações trazidas. Quando o enredo se
refere ao Ditador, ele conta com o narrador-autor para a desconstrução daquele que nunca
admitiu ser contrariado. Quando a narração diz respeito à Dalila ou às demais
personagens, o narrador-onisciente atua sozinha. Nestes casos, ele é mais brando, a
exemplo do momento em que ela descobre que o soldado Inocencio havia sido preso sob
a ordem do ditador “a veces el sueño es tan profundo como placentera la ignorância”
(FERRER, 2008, p. 12).
Reforçamos que é na condição de vencido que o Ditador se pronuncia, mas todas
as vezes que a narrativa se refere ao general, o tratamento se faz em maiúsculo: Yo, Me,
Dictador, General. A marca, do ponto de vista do Ditador, é inerente ao que ele representa:

Poder, puedo, poderío, potentado, apoderarse […] Yo soy el poder y


todo lo puedo. […] Me lo deben todo; yo les di cuánto son y cuánto
tienen y lo que nunca soñaron tener, y dejaron de ser y aspiran a seguir
siendo; todo Me lo deben a Mí, y ahora se desbandan de las filas como
ratas asustadas (FERRER, 2008, p. 19).

Por outro lado, do ponto de vista do narrador, que traz para o enredo a
representação de um chefe destituído, a marca do substantivo próprio ocorre pela ironia,
uma maneira de ridicularizar aquele que, por quase 35 anos, julgou estar por cima de
todos. No fragmento acima, destaca-se a ideia de um chefe de estado absoluto, com o
poder de alterar sonhos e comandar a vida civil, religiosa e familiar de seus subordinados:
“¿Cómo se van a levantar contra Mi? ¿Por qué demonios no llegan? Llame otra vez al
General Gutiérrez. Que venga inmediatamente a sacarme de aquí a cualquier precio”
(FERRER, 2008, p. 19). O General Gutiérrez, na ficção de Ferrer, representa o general
Andrés Rodríguez Pedotti, amigo íntimo de Stroessner e o principal conspirador
do golpe que o derrubou: “El paso a retiro forzoso de los más altos cargos del
Ejército, incluyendo al general Andrés Rodríguez Pedotti, fue la última decisión
desacertada que tomó Stroessner” (LOPEZ, 2012. In:
http://200.74.222.178/index.php/espacio/article/view/1697/1698. Acesso em 20 de
setembro de 2016).
A primeira vez que a voz do Ditador aparece é para expressar a sua surpresa diante
de uma traição: “¡Como se les pudo ocurrir semejante idea!” (FERRER, 2008, p. 16). O
241

narrador busca sentidos para a exclamação, e relembra aos leitores que se trata do
“General”, sendo, portanto, um absurdo a ideia de que alguém ousou colocá-lo na situação
de preso. O narrador-onisciente, que tudo sabe e tudo vê, adentra no pensamento do “todo-
poderoso” e capta os projetos de vingança e de castigo para os traidores: “Imbéciles si
creen que no Me doy cuenta” (FERRER, 2008, p. 18). Sim, o Ditador se dá conta e sente
medo. O narrador descortina aos leitores os sentimentos múltiplos que explodem do
Ditador: “El miedo extiende sus tentáculos estrangulando cada aliento. En los ojos del
General, a pesar de la perplejidad ante el peligro de la situación, bailotea un dejo de ironía
[…] Nadie sacude décadas de obediencia como si fuera una alfombra gastada” (FERRER,
2008, p. 17).
Não foi a população oprimida que derrotou o General, ele caiu pelas mãos de seus
aliados. Se por um lado é evidenciada neste caso a impotência da população e a falta de
forças dos opositores, como está registrado nos diários de Marcos, por outro lado,
sobressai o fato de que, entre ditadores, não há amigos, apenas interesses a serem
executados. Ao se dar conta da traição, o ditador desabafa:

¡Cómo se atreven estos idiotas a maliciar una perrada semejante de


parte de Gutiérrez! ¡Atribuirle a él, mi camarada de juventud, una
sombra al amparo de Mi persona, la responsabilidad de acorralarme
como si Yo fuera un delincuente! Yo no estoy acostumbrado al ruego
sino a la fuerza, y la fuerza es y será siempre Mi voluntad. ¿Acaso no
soy el máximo Líder de un país que limpié de revueltas y de ultrajes
cuando estaba ensangrentado? ¿Acaso no instituí Yo el orden y la paz
y la abundancia, prometiendo zapatos a los pobres y prebendas a la
generalidad? […] Y no me vengan ahora, después de añares de mamar
de las tetas del Estado, con que no me deben la leche (FERRER, 2008,
p. 20-21).

Às palavras do general, o narrador acrescenta: “utilizándolos a todos en su


provecho, por supuesto” (p. 21). Na voz do narrador encontra-se uma autodenominação
que o caracteriza ora como rei, ora como o próprio Deus. Os horrores da tortura presentes
no diário de Marcos desconstroem os atributos que o Ditador dá a si mesmo e, na condição
de destituído do poder e encarcerado em um pequeno porão, a sua voz assemelha-se a de
uma criança mimada, desacostumada a perder. Na narrativa de Renée Ferrer, o ditador
fala, grita e ordena pela perspectiva daquele que nada mais possui. Por 35 anos, ele agiu
como um Deus diante de sua nação: “Verdaderamente justa y necesaria es la adoración,
porque Yo Soy el árbitro de lo justo y lo necesario, Yo les ortogo la vida o los destierro a
la muerte, Yo les doy de comer o los consumo de hambre […] (FERRER, 2008, p. 22).
242

A obra de Ferrer, ao revisitar a ditadura de Stroessner, busca abordar a história por


distintos pontos de vista, mas o leitor identifica a intenção do narrador em ridicularizá-lo.
Já não é mais possível ao general decidir sobre a vida e a morte da população e, assim, a
autodenominação que faz de si apenas confirma os anos em que o país esteve nas mãos
de um homem prepotente e egocêntrico, que se julgava acima de tudo e de todos:

Cómo van a rebelarse si eso significa expedir su pase al otro mundo; la


represión es cuestión de horas, de estrategias, de paciencia: entonces
sabrán quién da las órdenes; entonces será el castigo y el rechinar de
diente, e irán pareciendo las hilachas de la verdad, más tarde, las bajas
deshonrosas, la condena, la muerte súbita (FERRER, 2008, p. 30).

O narrador-autor complementa o discurso do ditador “(¿Por qué entonces no


acuden a una orden del Comandante en Jefe del Ejército?)” A pregunta é irônica, porque
o narrador sabe que, neste momento, ele é mais poderoso do que o Ditador: ele sabe o que
se passa, enquanto o general ainda se crê senhor absoluto da nação. Vale lembrar que
ditador significava, inicialmente, o “magistrado romano que era investido pelo Senado do
poder de ditar leis e as fazer cumprir por um período de seis meses se, por algum motivo,
as instituições nacionais estivessem em perigo”. Para as ditaduras que marcaram a
América do Sul, a acepção correta a ser utilizada é “autoridade máxima de um país que
concentra todos os poderes do Estado e exerce poder absoluto, durante uma ditadura”
(https://www.dicio.com.br/houaiss/. Acesso em 20 de setembro de 2016). De dentro do
porão, o ditador, sempre acompanhado de perto pelo narrador, rememora seus anos de
governo e a sua relação com as mulheres: sua madrinha; Dalila; a vidente Zoraida e as
meninas de 13 ou 14 anos que ele escolhia nos eventos militares das escolas com o
objetivo de desvirginá-las.
Uma das cenas mais impactantes da narrativa ocorre em uma das noites em que o
Ditador escolhe a jovem que será desvirginada. Neste dia, ele leva a sua amante Dalila,
La Querida, que há tempo implorava para ser a sua esposa ou para que, pelo menos, ele
a levasse aos seus compromissos oficiais. O pedido é atendido, o General a leva para um
de seus mais “sérios” compromissos. Pela primeira vez, em anos, Dalila estava ao lado
de seu amante em uma solenidade. Ao final, descobre que o compromisso importante era
o de assistir, junto aos oficiais, ao desfile de jovens entre 13 e 14 anos, nuas73. Uma delas
seria a escolhida da noite para “ter a honra” de ser desvirginada pelo senhor da nação:

73
Em “Memórias de histórias de violação dos direitos humanos durante as ditaduras militares no Brasil e
no Cone Sul”, de Anna Flávia Arruda Lanna Barreto, consta a seguinte afirmação: “Segundo dados da
243

A medida que el desfile prospera, el rostro de Dalila se contrae pasando


de rojo intenso a una palidez funerária. La ultima muchacha no puede
dejar de llorar y recibe la orden de esperar la segunda ronda junto a las
otras, que se mueven con manifiesto nerviosismo. Finalmente, a la vista
las posibles cualidades amatorias de las seleccionadas, el General se
decide, retirándose con la más pequeña a un aposento invisible, desde
el cual se escuchan los inúteles forcejeos de la niña, los reclamos de la
pasión, el llanto agónico y, después, el silencio (FERRER, 2008, p.
155).

Na autoridade daquele que deflora a ingenuidade das jovens, é possível comparar


o corpo feminino possuído como à apropriação da pátria. Numa demonstração de que o
Ditador acreditava ser o dono de tudo ou talvez, confiava que ele e toda a nação fossem
um mesmo corpo: “[…]. Para eso usufructúo el poder, Soy el poder y la Patria, […], y
Mis obras de gobierno esparcen mi nombre por todas partes, como recordatário a la
población de quién es su padre y su dueño (FERRER, 2008, p. 31). O narrador-autor
complementa a autodenominação do general “(como lo hacen los dioses del Olimpo o los
verdugos de la tierra, digo)” (FERRER, 2008, p. 31).
É por saber da real situação do General, que o narrador lhe permite falar, porque
o poder absoluto a ele já não existe mais. O Ditador é agora uma página da história da
nação que, livre, pode reclamar pelos seus familiares desaparecidos e pedir justiça aos
que foram mortos. Mas ainda que não haja nenhuma relação de simpatia entre narrador e
Ditador, como um bom contador de história, o narrador busca compreender as motivações
para que um homem se torne um carrasco. E é na infância do general que a narrativa
encontra explicações para as suas atrocidades. A sua relação com as mulheres, por
exemplo, “[…]. Yo puedo hacer con ellas lo que me plazca, y me importa un bledo todo
lo demás” (FERRER, 2008, p. 142), é relacionada ao convívio com o seu pai e com a sua
madrinha.
As horas preso em um porão já deram ao general a certeza de que ele havia sido
traído, já não resta esperança ao comandante da nação. E, assim, o ditador se transporta

Comisión da Verdad y Justicia do Paraguai, dos 2059 testemunhos recolhidos, 15,7% correspondem a filhos
e filhas de militantes políticos que sofreram violações de seus direitos humanos. Desses testemunhos 56%
correspondem a homens e 44% a mulheres. Importante destacar a estigmatização dessas meninas, muitas
vítimas de violência sexual, que até a idade adulta mantiveram um sentimento de culpa e vergonha pelo
que passaram”. Para comprovar, recupera o seguinte testemunho: “Ya tenía 12 años cuando eso… después
a las niñas que sacaron... una es mi prima, y que dicen que fue violada, yo no sabía cuando eso que le
sucedió, pero vi que sangraba y vinieron a meterla otra vez con el grupo” (Ver artigo completo em
Seminário 1964-2014: um olhar crítico para não esquecer. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2014. https://www.aacademica.org/anna.flavia.arruda.lanna.barreto/2.pdf. Acesso em 22 de
setembro de 2016).
244

em “una película en blanco y negro” (p. 147) ao passado e recupera a criança que um dia
teve o sonho de ser “un dueño de circo”. O sonho é duramente contestado por seu pai,
mas, pelo ponto de vista do narrador, Mazorca74, como era chamado pelos familiares,
transforma o seu país em um circo de três pitas: “uma para los devotos de su persona, otra
para los envidiosos o envilecidos por la traición, y la tercera a los contrários a su
gobierno” (p. 150). Assim, nem mesmo as memórias mais remotas do general são
poupadas pelo narrador. A sua voz faz-se mais forte que a do ditador e, ao final, sobressai
a imagem de um homem que logrou realizar o seu sonho, fazendo de seu país um grande
circo.
As memórias do ditador caminham entre o passado recente e o distante, numa
tentativa de compreender a si e de preservar um resto de esperança em relação ao seu
destino: ainda reluta em acreditar que as suas três décadas de governo tenham chegado
ao fim. Recorda-se de Dalila, a amante que por mais tempo esteve junto de si. Rememora
a insistência de Dalila para se tornar oficialmente a sua esposa e das inúmeras vezes que
ela se recusou assumir matrimônio com os homens elegidos por ele: “Soltero y solitario
siempre fui, aunque dado a la farra y la licencia, no lo niego; no cumplo regla alguna ni
me importa el protocolo” (p. 132). Não se pode negar que, de alguma maneira, ele foi
honesto com Dalila. Ao General somente importava “la permanencia en el sillón
presidencial” (p. 132). O chefe da nação não necessita de uma família, porque, ao que se
compreende de suas palavras, ele é o patriarca único do país: “Yo Soy el amo servidor de
toda la nación, […] y premio si quiero y me acuesto con quien se me antoja (p. 132). Mais
uma vez, o narrador insere o seu ponto de vista: “Al Dictador las palabras de Dalila
sobrecargadas de rencor lo dejan insensible, pero reconoce cuán cerca está de la verdad
esa mujer tan sensual como inteligente” (p. 135).
E para esclarecer ao leitor sobre a “verdade”, o narrador acompanha o General até
a sua adolescência, quando convivia com a sua madrinha. Rememora o dia em que
descobriu que ela ganhava a vida transformando meninas pobres e desamparadas em
prostitutas de luxo. Uma das jovens é Rosalba, que se torna o seu grande amor de
juventude. Mas um dia, ela também é levada pela madrinha e Mazorca decide segui-las.
Encontra as duas em uma casa luxuosa, cercada por homens bem vestidos. A virgindade

74
Espiga de milho em português. O apelido lhe foi dado porque “era rubio y erguido y los mechones de
pelo lácio lecaían a los costados de la cara semejantes a chalas ressecas desprendidas em desorden” (p.
198).
245

de Rosalba é leiloada e, ao final, ele a vê sendo conduzida pelo homem que deu o maior
lance:

Ya se está enjuagando la luna los últimos restos de noche, cuando el


Dictador ve desaparecer a Rosalba delante del vencedor, quien, orondo
tras su presa, se pierde en la oscuridad creciente del corredor. No
entiende por qué le lloran los ojos se le está mojando el pantalón.
Recuerda las tardes soleadas robadas al trabajo de la chica, cuando la
llevaba a cazar gorriones antes de la vuelta de la señora, ahora sabía de
dónde. En su pecho, una jauría de perros se disputa las ansias de entrar
para derribar al intruso de un sopado y ser él quien la aprisione entre las
piernas; mas la determinación de convertirse él también en un Principal
algún día, con posibilidades de hacer su voluntad e imponerse a
cualquiera a toda costa, lo detiene (FERRER, 2008, p. 203).

O narrador não consegue distinguir o jovem que se decepciona com a


madrinha e com o seu primeiro grande amor do sanguinário ditador. Na realidade,
não é o ditador, mas o narrador quem tece a interpretação de que foi este fato que
deu ao ditador o desejo e a inspiração de se converter em o dono de todas as jovens
virgens e bonitas do país: “la determinación de convertirse él también en un
Principal algún día, con posibilidades de hacer su voluntad e imponerse a
cualquiera a toda costa, lo detiene”. O narrador não permite que o ditador encontre
o perdão ou que ao menos justifique os seus atos. Por isto ele o acompanha na
visita ao passado, impedindo que a dureza de seu pai ou a venda da virgindade de
seu primeiro amor amenizem as atrocidades que cometeu ao longo de suas três
décadas de poder.
Outra mulher importante na vida do comandante é a vidente Zoraida. Ela
o acompanha durante todo o seu governo, sempre recompensada por trazer boas
notícias e a certeza de que a nação estava bem controlada por seu senhor.
Encurralado em sua pequena prisão, sem ter notícia dos acontecimentos externos,
o General relembra de que a submissa Zoraida tentou alertá-lo do perigo que corria
e recorda-se do discurso emblemático que fez a ela. A citação abaixo é longa, mas
necessária porque se encontra aqui um dos mais intensos jogos de vozes entre
narrador e ditador:

¡Un Jefe de Gobierno debe tener en cuenta tantas cosas! El Estado


gendarme no descansa, y Yo tampoco. El Estado soy Yo, repite
complacido. Más me hubiera gustado ser un rey absoluto, naturalmente,
pero me viene como anillo al dedo la dichosa frasecita del Rey Sol, por
que quién otro podría ser el Estado sino Yo mismo. (El General se cree
246

realmente la encarnación de la nación; el país es su feudo, la república


su estandarte). No entiendo por qué me echarían, si represento la
reconstrucción y custodio la tranquilidad y el orden en todo el territorio
nacional (y la quietud de las tumbas sin nombre y la supresión de la
alegría en las reuniones y la suspensión de la libertad de prensa, y el
silencio mantenidos por obra y gracia del Estado de Sitio prorrogable
ad infinitum, porque un estado sitiado es más fácil de manejar, a todas
sombras), y conservo muy en alto el ánimo de los correligionarios (a
quienes sin ninguna complicación les duerme la hipotética conciencia).
Por qué me querrían sacar, si doté al país de obras modernas y analizo
meticulosamente los informes precisos (infames) de los informantes
(respetuosos de la versión oficial, obviamente, y carentes del sentido de
verdad), y decido quién merece respirar y quién viajar con saco de
madera (o de arpillera, digo) al otro mundo, conservando de esa manera
la paz y la felicidad de mi pueblo (dichoso comodín de las palabras)
(FERRER, 2008, p. 49. Itálico nosso).

No fragmento acima, o narrador-autor apresenta outra interpretação a cada


autoafirmação do Ditador. Nação e ditador seriam, na visão do narrador, uma mesma
entidade. Benedict Andersen contribui para o debate. Na visão do Ditador, a sua nação
não era vista pelas desigualdades ou pelas atrocidades que ele cometia. Sobressaiu a
“camaradagem horizontal”, em nome da qual valia a pena morrer ou matar. A Nação, para
Anderson,

[...] é imaginada como uma comunidade por que independente da


desigualdade e da exploração que possam existir dentro dela, a nação
sempre é concebida como uma profunda camaradagem horizontal. No
fundo foi essa fraternidade que tornou possível, nestes últimos dois
séculos, que tantos milhões de pessoas matassem e morressem por essas
criações imaginárias e limitadas. Essas mortes nos levam a pensar no
problema central posto pelo nacionalismo: o que faz com que parcas
criações imaginativas de pouco mais de dois séculos gerem sacrifícios
tão descomunais? A resposta está nas raízes culturais do nacionalismo
(ANDERSON, 2008, p. 34).

A tranquilidade que o general acredita ter trazido ao país foi às custas da morte ou
do desaparecimento de todos que ousaram contrariá-lo “Durante a Ditadura Militar e
personalista do general Alfredo Stroessner, dezenas de milhares de paraguaios e
paraguaias foram detidos, torturados e levados ao exílio” (BORGES, 2012, s/p). O ditador
verdadeiramente acredita que seu governo trouxe o melhor à nação. Sente-se injustiçado
por ser retirado do poder, uma vez que, por quase 35 anos doou seu tempo, sua energia,
suas emoções e ambições: “[…]. Pienso, luego ordeno; pienso luego atesoro; pienso luego
me excedo; y quién me va a discutir si el poder, el dinero y las mujeres son el móvil de
247

mi pensamiento” (FERRER, 2008, p. 59). De fato, na cabeça do ditador, ele e a nação,


por quase 35 anos, foram uma mesma entidade.
Apesar da maneira enérgica com que punia os insubordinados, nem todos eram
contrários ao ditador. O soldado Ramón, por exemplo, sabia do poder de seu chefe “[…].
El señor Presidente está siempre en todas partes, como Dios, señorita, y no necesita
molestarse en ir al lugar preciso para saber si pasa algo” (FERRER, 2008, p. 83). Ele fala
do ditador com o sentimento de um filho grato, o teme e o ama com a mesma intensidade:
“Cansinamente volvió a la cocina, sacó del bolsillo una foto del General y, como todas
las noches, le agradeció haberle impedido ejecutar la sentencia dictada el día anterior al
Coronel Malcom75” (FERRER, 2008, p. 87). O ditador sabia da fidelidade de muitos de
seus súditos, que o obedeciam não apenas pelo medo, mas também por acreditar em seu
governo: “[…]. Para eso tengo los hijos de esta tierra confiada a Mi mando y toda la prole
de la gente que me sigue y come de Mi mano, a quienes les doy el trato de un padre
benefactor y dadivoso. No necesito nada más” (FERRER, 2008, p. 283).
Ao transitar entre o presente das personagens e as suas reminiscências, o narrador
permite acompanhar os protagonistas em suas reflexões e em suas ações. Dalila rememora
de dentro de um cemitério, em busca dos túmulos de seu irmão e do soldado Inocencio.
Ela não nega as ambições que moveram o seu envolvimento com o ditador e tem
consciência que, por quase 30 anos, não passou de uma prisioneira. O ditador, por sua
vez, recupera a sua trajetória para reafirmar o seu poder “Pienso, luego porfío. Pienso,
luego reprimo”. Por fim, aceita que foi traído e que o seu futuro independe dele: “No
puedo más, se confesa a si mismo”. E mesmo quando o general admite a sua derrota, o
narrador não o perdoa e, ironicamente pergunta ao vencido: “¿Como será moverse sin el
andamiaje del poder después de tres décadas de reconstrucción y sacrificio, de
pacificación y acérrima defensa de una ideología fiadora de su gobierno?” (FERRER,
2008, p. 117).
Como na história oficial, o ditador é punido com o exílio. Na obra de Ferrer, não
se explicita para que país será levado. Ele apenas é retirado do porão e encaminhado a um
avião que o levará a um destino desconhecido a ele. A caminho, a voz firme fraqueja e, a
seu modo, pede ajuda: “[…]. No me abandones, suerte; no me bajes del pedestal ni me
entregues a una vida desprovista de mando; devuélveme el poder para vengarme
haciéndoles pagar con sangre esta osadía” (p. 314). A sorte não o atende e o ditador

75
A ordem era a de eliminar um grande grupo de rebeldes.
248

assume a narrativa final, expondo aquilo que as reflexões do general não foram capazes
de expressar:

Entre tanto la tropa avanza, las neuronas del Dictador se lanzan unas a
otras los crímenes secretos: aquel disparo dado a un prisionero en el
medio de la frente, las prebendas-compra-venta otorgadas a la masa
partidaria para sustentar su poder, los cargos regalados a los suyos por
acciones indignas, el embargo del pan a los disidentes, las
expropiaciones, el sonido de los pasos engrillados suplicando piedad.
Por todas partes, en lugar de los objetos comunes y las caras conocidas,
El Dictador ve figuras arrastrándose, cuerpos convulsionados tirados en
el suelo, apropiaciones ilícitas, sumarios fingidos, confiscaciones
provechosas, adulación y reparto, amputación y degüello (FERRER,
2008, p. 329).

Ao final, tem-se a representação da ditadura paraguaia imprimida por Alfredo


Stroessner sob o ponto de vista de quem deseja incriminar os 35 anos de mando do
General. A representação, conforme defende Chartier, não é neutra e está intimamente
relacionada com “poder e dominação”:

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem


a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre
determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada
caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a
posição de quem os utiliza. As percepções do social não são, de forma
alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais,
escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de
outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou
a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.
Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como
estando sempre colocadas num campo de concorrências e de
competições cujos desafios se anunciam em termos de poder e de
dominação (CHARTIER, 1990, p. 17).
.
La Querida empresta a voz ao Ditador com a intenção de desmoraliza-lo. Afinal,
não se trata mais do “todo poderoso”, mas do derrotado. O poder, nesta representação,
está com o narrador, que pode se expressar e adentrar, inclusive, na mente do General. A
relação, nesta obra, é invertida: aquele que antes era silenciado tem a fala e o que
silenciava emudece.
249

Conclusão

Quando a literatura representa as ditaduras que marcaram a América Latina no


século XX, deixa transparecer múltiplas vozes, sensibilizando os que ignoram as torturas,
os assassinatos e os exílios de quem se opôs a ela. Outras vezes, forçam a reflexão
daqueles que, por convicção, no auge do século XXI, pedem pela volta da ditadura militar.
No ano de 2016, no Brasil, acompanhamos as manifestações em prol do impeachment de
Dilma Rousseff, presidente eleita para seu segundo mandato em 2014. Em meio à
multidão, muitos cartazes pediam pela intervenção militar, com frases emblemáticas:
“Dilma, que pena que não te enforcaram na doi-codi76”; “o povo é soberano! Intervenção
militar não é crime”77. Pessoas de diferentes idades seguravam as legendas. Crianças,
jovens, senhores e senhoras. No momento em que erguiam as suas faixas e clamavam
pela volta dos militares, provavam que as marcas da ditadura não atingiram a muitos e
que, para um grupo significativo, o número deixado pelos governos militares na América
Latina ainda é ignorado ou defendido78.
Quem convoca a volta da ditadura militar incorre em uma violação da memória
daqueles que brutalmente foram mortos, torturados ou obrigados a saírem de seu país.
Sem dúvida, de alguma maneira, ao pedir pela intervenção militar, legitima-se a repressão
e o cerceamento da liberdade e prova-se que não aprendemos com as memórias dos
torturados ou dos familiares que foram mortos, testemunhos registrados nas narrativas
históricas e nas narrativas literárias. A característica mais marcante de La Querida é a
polifonia das vozes: testemunhos de torturados, de Dalila, do Ditador e daqueles que
acreditaram nele. Assim, Renée Ferrer, silenciada na ditadura de Stroessner, cria uma
narrativa que permite a todas o direito à fala e dá ao narrador a tarefa de descontruir a voz
daquele que, por três décadas, calou uma nação.
Um narrador questionador ridiculariza a voz de um ditador que se julgou acima
do bem e do mal. Aquele que perseguiu, na narrativa de Ferrer é controlado, vigiado e
contestado. La Querida soma-se, sem dúvida, às obras literárias que tematizaram as
ditaduras militares vivenciadas na América Latina. Nela, se encontra o olhar da

76
Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI).
77
Retirado do site: http://www.bigbangnews.com/comunidad/Carteles-Insolitos-en-la-manifestacion-anti-
Dilma-20150817-0021.html. Acesso em 8 de agosto de 2016.
78
para citar alguns exemplos, temos: em torno de 40 mil mortos no Chile; 50 mil na Argentina; 434 mortos
no Brasil e dois mil no Paraguai (Consultado em http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia-
brasil/operacao-condor-ditaduras-se-uniram-para-perseguir-adversarios.htm acesso em 8 de agosto de
2016.). Nestes números, vale destacar, não estão contabilizados os exilados e presos.
250

historiadora Renée Ferrer, que recupera uma história de opressão. Mas a obra também é
marcada pelo talento de uma escritora que rompe com a linearidade do tempo para
construir a sua versão literária do governo ditatorial de Stroessner.

Referências

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do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro,


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TODOROV, Tzvetan. “As categorias da narrativa literária”. In.: Análise estrutural a


narrativa. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1976.
251

INVENTÁRIO GEOPOÉTICO DA CIDADE DA BAHIA,


COM ANA MIRANDA

Denise Scolari Vieira


UNIOESTE- Campus de Marechal Cândido Rondon
deniseantonia@hotmail.com

As circunstâncias...

Estudar o percurso da Leitura da Literatura e sua recepção crítica significa


mobilizar perguntas que ainda seguem abertas, quando se pretende mencionar práticas
culturais.
Por um lado, durante longo período, a valorização hierárquica do pensamento
esteve comprometida, a fim de fundar o conhecimento por meio de uma funcionalidade
lógico-racional, convertendo-a na matriz teórica ocidental para vitalizar a razão
etnocêntrica de suposta verdade única.
Por outro lado, no transcurso de sua própria história surgiram outros paradigmas
capazes de modificar as maneiras de ler a obra de arte, ler a literatura, ler a paisagem,
desde uma ênfase emocional, ou seja, desde a esfera sensível.
Frente a essa evocação emergem imagens de teóricos nomeados, a partir de cenas
discursivas que constituem a chamada virada afetiva, pela qual é possível anunciar o
conceito formulado por Raymond Williams, das estruturas do sentir, no âmbito cultural,
distanciadas de funcionalismos e idealismos. (WILLIAMS, 1979).
Assim, o que se tem proposto nas argumentações, a respeito das sensibilidades,
da cultura, dos afetos, das poéticas, das paisagens conduz à ordem de conceitos que
fundamentam os parâmetros das questões sobre a experiência, a memória, a leitura, os
lugares de pertencimento, os mundos ficcionais.
Temos o começo de novas propostas pedagógicas e de intervenção dialógica, pelas
quais, o caráter de incompletude, do Ser, do Espaço e da História tem sido efetuado em
contestação às totalidades. Por essa razão, é possível pensar a Geopoética, quando, no
trabalho investigativo aplicado à Literatura, pretende-se criar formas subjetivas de
resistência, por meio das quais serão estimuladas outras relações sensíveis com os lugares,
através de novas abstrações. (BESSE, 2006).
252

Tais percepções de espaço-tempo podem ser incentivadas, mediante um trabalho


transdisciplinar, neste caso, pelo estudo de obras da escritora Ana Miranda, articulada
com os pressupostos teóricos da Teoria Literária, a História Cultural e a Geografia
Cultural.
A reivindicação pela liberdade da forma obtém uma expressiva popularidade nas
obras artísticas elaboradas pela densidade em seu compromisso estético e político. Esse
movimento evidencia o lugar do intelectual/escritor que é a voz da coletividade, aquela
instância de enfrentamento aos reducionismos, cujo fluxo de regulamentação dos modos
de dizer a história, a memória, a cultura têm se imposto há longo tempo, quando se quer
pensar a construção das subjetividades em Latino-América.
Portanto, as obras que assumem os “interstícios”, os “vazios”, as “zonas cinza” da
existência silenciada, produzem a escuta de outras formações simbólicas que se deslocam
nas zonas fronteiriças, sempre abertas à instalação de outros saberes. Dessa maneira, é
possível a apreensão da perspectiva dos Outros, por meio de uma potência discursiva
capaz de romper o pacto de amnésia imposto pela pretendida constituição hegemônica da
memória cultural. Razão pela qual, o relato que reinterpreta o fato, ganha também, na
obra ficcional, um estatuto de espaço nômade do saber, aquele que admite a releitura, a
reatualização da relação saber/poder, cujo esboço também se vislumbra mediante a
memória e o esquecimento. (SOUZA, 2002).
Tal prática faz com que o intelectual/escritor questione os limites da própria
linguagem, porque pressupõe, na escrita da crítica cultural, a derrocada do silêncio, pois
fala de temas complexos, desvela os abusos, mostra as manobras, potencializa as vozes
oblíquas, os interditos, os atos de fala paradoxais, falseiam os sentimentos, arma jogos de
simulacros, justapõe as vozes temporais, convida o leitor a que seja astuto, porque a
Literatura e a História também podem estruturar-se através de canais discursivos pouco
usuais. Nesse trajeto sempre é recorrente a questão: qual é o locus do escritor/intelectual
hoje? Parece ser um caminho mostrado pelas vias duplas, entre o sentimentalismo e o
terror, já que uma das situações que sobrepassam a derrota dos sonhos de mudança, o
desencanto, a desilusão e até mesmo, o cinismo tem que ver com o assombro frente à
fratura da identidade, pela qual se altera o passado, o presente e o futuro.
(COMPAGNON, 2009).
A partir dessa perspectiva, não há como recobrar a historicidade do Eu, devido às
circunstâncias que impõem a violência, a perda, o impedimento físico e emocional. Então,
se configura um destino inesperado.
253

A configuração da escrita baseada em analogias, similitudes, derivações pouco a


pouco passa pela transgressão em direção às descontinuidades, às diferenças, à
fragmentação. Dessa forma, o ponto de vista se desloca. Em Boca do Inferno (1990), Ana
Miranda anuncia personagens ilustres e anônimos imersos na fragmentação identitária,
no local, cuja organização social e política, do Brasil, do século XVII, se configurava uma
expansão da colônia portuguesa no Atlântico Sul. (ALENCASTRO, 2000).
Sente-se, na obra, a vitalidade dos fluxos por trás da maneira de conceber os
fragmentos que são “eco de paisagem”, pois o narrador apresenta a experiência comum
surgida na rua, na esquina, na casa, nos expedientes da vida pública. Em Boca do Inferno
(1990) as palavras atribuem sentidos às realidades díspares, uma vez que põem em
confronto, às vezes sutil, às vezes evidente, os personagens em sua experimentação do
sentido da extraterritorialidade. Então, instalam-se, no texto, elementos relacionais
daqueles que formalizaram travessias, de língua, de cultura, de lugar de pertencimento, o
que provoca novos pontos de vista sobre a cidade da Bahia, apreendida de forma distinta,
tanto para Gregório de Matos, Antonio Vieira, Bernardo Ravasco, Antonio de Sousa de
Menezes, quanto para Anica de Melo, Maria Berco, o Molecote, etc.
Essa transposição intelectual efetivada por Ana Miranda parece descartar a ideia
de totalidade ao mencionar a história, a ficção e o território, pois as relações discursivas
estabelecidas entre os personagens mobilizam diálogos nunca acabados e enfatizam
articulações dos espaços e culturas na cidade, enquanto montagens de partes distanciadas
de uma pretensa narrativa totalizante, vista como orgânica, coerente, unificada. Nesse
sentido, o ponto de vista acentua interações polêmicas entre o nível estético e as instâncias
políticas, econômicas e sociais. (SERRES, 2001).
Ana Miranda, ao revisitar a escrita da História, redimensiona percepções,
sensibilidades, que emergem de variadas redes de sociabilidade cotidiana, por meio de
um sentido móvel, inusitado, para transgredir aquela ordem que remonta ao Brasil
Colônia, na costa baiana. Assim, é com o olhar posto em fragmentos discursivos da
história nacional, que a escritura de Boca do Inferno vai esboçar relações identitárias num
espaço de enorme plasticidade, já que, para a caracterização das formações sociais,
discute-se o enfrentamento entre o poder político, o poder eclesiástico e o poder
econômico. Ao lado do eixo hegemônico estão representados o governador Antonio de
Sousa, o chamado “Braço de Prata”, também o alcaide Teles de Menezes e os
desembargadores Palma e Góis. Estes são confrontados pela família Ravasco, da qual
254

pertence o Padre Antônio Vieira, Gregório de Matos, Maria Berco e vários Outros. Na
extrema marginalidade estão as mulheres, os revolucionários, as prostitutas, os bêbados.
Contudo, Ana Miranda, ao mesclar história e ficção, ao entrecruzar tempos e
espaços, ao marcar a disposição de fala àqueles silenciados inspira-se, sob nova postura
estética, e desestabiliza sínteses oficiais. A narrativa de Miranda retira do anonimato
aqueles saberes perdidos ao atribuir sentido às experiências íntimas relacionadas ao
conhecimento do lugar social, bem como evidenciar possibilidades de subversão, o que
conduz à inclusão, em termos de percepção de Si no Outro. (ONFRAY, 2016b).
Talvez embriagar-se de contestação à hierarquia tradicional desses lugares
signifique concentrar-se numa cumplicidade paradoxal, porque sutil e, ao mesmo tempo,
expansiva, mas, na mesma medida, limitada. Contudo, negá-la completamente, seria a
equivalência de antecipada derrota. Portanto, observa-se, no percurso empreendido pelos
personagens, aquela fatal condição de ora ocupar o território de exíguos escrúpulos, ora
alimentar o motim, a revolta e, na ânsia pela independência, protelar o desengano.
Frente à consideração das experiências humanas que se transformam em
sensações, mediante o contato com o mundo, propõe-se a reflexão sobre o olhar, o ouvir,
o sentir peculiar desses personagens, todos distintos nas mais diversas formas de captar,
resignar-se, maravilhar-se, lutar contra as prerrogativas de sua condição humana, diante
das estruturas que tiveram nos espaços de vivência. (DARDEL, 2011).

Interações geopoéticas: personagens e espaços construídos em declives e flutuações.

Para pensar sobre os sentidos simbólicos que adquirem um lugar central na


configuração de cada personagem buscamos as considerações relevantes formuladas pela
Geopoética. Esse interesse reavalia as relações entre Literatura e Geografia, pois evoca
os fundamentos teóricos de um encontro próspero, capaz de suscitar perspectivas de
estudo muito estimulantes. A constituição desse percurso integrado já foi desenhada há
muito tempo e, uma cartografia dessa conexão, apontaria um roteiro de sentidos muito
amplo. Para comentar sobre o trabalho de deslocamento produzido pelas representações
de mundo marcadas pela derrota política, por exemplo, em Gregório de Matos e Padre
Antonio Vieira, recuperam-se, no relato, algumas citações que mostram, apesar das
diferentes conjunturas, de que maneira ambos tiveram que enfrentar as novas “regras do
jogo” ao constatar a condição (ex) cêntrica, na tessitura que urdiu o sistema local, na
255

cidade de Salvador, a Bahia, em 1694, quando foram contemporâneos e, igualmente,


perseguidos, pelo “Braço de Prata”, devido ao envolvimento no crime do alcaide-mor.
O narrador empenha-se em formular com vários requisitos de perda, ao reiterar,
no espaço de sombras, esquivo, o personagem Gregório de Matos, de magistrado a
prófugo e, Padre Antonio Vieira, distante do púlpito, convertido em satírico, mas também
ligado a referenciais existenciais significativos. Então, a partir de um deslocamento nada
corriqueiro, ao mencionar os personagens mais ilustres de então, a narrativa provoca
mudanças do gesto de habitar o lugar. O leitor é afetado pelo embaralhamento dos
sentidos através de um jogo intertextual, neste caso, centrado na experiência sensorial dos
vários episódios que alternam a vida familiar de Vieira e a errância de Matos, pelas ruas
da cidade.
A modo de exemplo, uma primeira alusão à vivência espacial:

‘Esta cidade acabou-se’, pensou Gregório de Matos, olhando pela janela


do sobrado no terreiro de Jesus. ‘Não é mais a Bahia. Antigamente
havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria,
nas bochechas dos granachas, na frente da forca fazem assaltos à vista’.
(MIRANDA, 1990, p. 13, grifos da autora).

Observam-se, na fala, os vestígios de lugares hostis, neles só vemos restos de vida


devastada, cujas constelações de sentidos, difundem a dificuldade, tão frequentemente
demonstrada nos distintos matizes dominantes no cotidiano das gentes.
Aprendemos, desde a primeira linha, como a voz narrativa pergunta pelo porquê
da total inércia forçada no excesso de caprichos da lei, enquanto tais declarações
anunciam a total inépcia de sua execução. Ambas, inércia/inépcia, surgem nos mesmos
lugares, nos quais se sobressaem, nas mais íntimas esquinas, a indicação de que este local,
estriado, já tem dono e, os instrumentos pelos quais se vale para vistoriar suas posses não
se apagam ou submergem, ao contrário, estão ali, impostos nas performances da vigília
constante, capazes de auscultar indícios desse espaço reconhecível, de flutuações e
declives. Ali, na cidade barroca desenham-se longas horas desse entrelaçamento
complexo, tortuoso, descritos de tantas maneiras:

Da janela, Gregório de Matos acompanhou com os olhos a passagem


do governador entre pessoas de diversos mundos e reinos diferentes.
Reinóis que chamavam de maganos, fugidos de seus pais ou degredados
de seus reinos por terem cometido crimes, pobres que não tinham o que
comer em sua terra, ambiciosos, aventureiros, ingênuos, desonestos,
desesperançados, saltavam sem cessar no cais da colônia. Alguns
256

chegavam em extrema miséria, descalços, rotos, despidos, e pouco


tempo depois retornavam ricos, com casas alugadas, dinheiro e navios.
Mesmo os que não tinham eira nem beira, nem engenho, nem amiga,
vestiam seda, punham polvilhos. Eram esses os cristãos que vinham, na
maior parte, e esses os que caminhavam por ali tirando o chapéu e
curvando-se à passagem do governador. (MIRANDA, 1990, p. 14).

Considerações, no plano da escrita, capazes de acentuar a dimensão normativa dos


problemas advindos da lógica econômica imposta no contexto da dominação e exploração
colonial perpetrada pela Coroa Portuguesa, na África e no Brasil. Uma demanda hostil de
manobras políticas em curso, cuja potência, através da ironia, a voz narrativa ressalta.
Em tal território, grave e melancólico, há, nas falas dos personagens, a nítida
exploração predatória da colonização sistematizada e descrita, por aqueles que ali
circularam. Eles também aprenderam a ler a teatralidade das cenas. A propósito, o
pesquisador argentino José Luis Romero, em sua obra La ciudad occidental: culturas
urbanas en Europa y América (2013) se refere aos componentes culturais, cujas
circunstâncias cotidianas, oportunas ou dramáticas alinharam essa rede híbrida que se
exibe esparsa, na cidade barroca dual, de estilos de vida dissociados.
Eis o postulado formulado pelo estudioso, por meio do anúncio de variáveis
conexas capazes de expor o sistema social de cidades europeias, e que, subentendidas as
objeções advindas da comparação à situação escravista sul-americana, caberiam para
chamar a atenção da conjuntura muito semelhante a nossa história colonial, pois, no
mesmo século XVII foram incrementadas as relações comerciais, cuja repercussão
econômica e social eclodiu nos dois lados do Atlântico, nos gestos, nos olhares, nas
sensibilidades. O autor relata que: “La protagonista de la ciudad barroca fue una sociedad
escindida. El escenario de la sociedad barroca fue una ciudad escindida. Los sistemas de
las ideas y de las formas de vida también fueron escindidos.” (ROMERO, 2013, p.167).
Assim, nesta perspectiva, parece oportuno, dada a divisão social que altera a
lógica da dinâmica cultural da metrópole portuguesa, observar inclusive, nos declives da
topografia de Salvador a amplitude de tal separação aqui transposta. Se a característica
geomorfológica distingue a cidade alta da cidade baixa, nesse sentido apresentam-se
fluxos vitais de distinto mapeamento, mediante as metáforas recorrentes na narrativa,
enquanto um amplo manancial imagético, sobretudo, devido a este jogo perceptível nas
entrelinhas. Então, diante do quadro referencial capaz de forjar domínios sociais típicos
vai sendo delineado um Inventário Geopoético na obra Boca do Inferno.
257

Essa rede hipotética passa a fomentar o percurso dos personagens na topografia


(Cosmos), suas relações de paixão e/ou deriva (Eros) e suas possibilidades de
impedimento, cujos efeitos de resistência ao degredo podem ativar diversos aspectos na
vida cotidiana (Logos). (WHITE, 2014).

Cartografia simbólica surgida das entranhas da cidade barroca.

Os mapeamentos realizados, no âmbito simbólico, reúnem em torno de si a


mobilização específica dos perímetros e de seus ocupantes, pois no espaço urbano local
são claramente desenhadas tais estruturas, como é possível ler no seguinte fragmento,
quando Maria Berco79, pertencente ao eixo subalterno, chega ao território da família
Ravasco80:

Maria Berco entrou na casa dos Ravasco, agitada. Como a maioria das
casas da cidade alta, o solar dos Ravasco era amplo, de três andares,
cada qual com quatro sacadas, no estilo dos velhos palácios da
Alfama81. Nos aposentos quase não havia móveis, porém muitos
quadros se espalhavam pelas paredes. (MIRANDA, 1990, p. 32).

Mesmo que estas relações estivessem mergulhadas em segmentação, na narrativa,


vários personagens se interligam, em bloco, entre eles estão Gregório de Matos, os
Ravasco, Antonio Vieira, Anica de Melo, José Soares o amigo fiel de Vieira, o Molecote,
de quinze anos, participante na conspiração contra o alcaide-mor, entre vários outros. Eles
fomentaram relações de forte dinamismo espacial e confrontaram o modo restritivo do
poder colonial local. Suas ações representam um mapa e uma trama que organizou a
contestação da cartografia imposta. Estiveram envolvidos em conflitos diversos e, cada
um se tornou expoente particular da geografia cultural à qual pertenceu, outra razão pela
qual a obra de Ana Miranda estende suas redes de sociabilidades, capazes de ampliar
aquelas memórias que são evocadas ali.
Assim, a univocidade bifurca-se e, a construção do espaço vivido, se realiza pelo
deslocamento e, com base nessa ênfase, depreendem-se algumas constatações fornecidas
pela percepção das formas, relacionadas a Antonio Vieira, já maduro e enfermo. O jesuíta

79
Maria Berco “esperou em vão que Gregório de Matos a procurasse, de volta à Bahia, após a partida do
Braço de Prata [...]” (MIRANDA, 1990, 325).
80
Bernardo Ravasco ocupava a posição de secretário-geral, seu irmão, Padre Antonio Vieira, sempre
doente, prosseguia no trabalho dos sermões. (MIRANDA, 1990, p.319).
81
Alfama faz alusão ao centro primitivo da cidade de Lisboa.
258

vivia na quinta do Tanque, em tempos de perseguição a sua família, cujo irmão Bernardo
Ravasco era acusado da morte de Braço de Prata – o alcaide-mor. Todos estavam
mobilizados pela medida instaurada, a fim de apurar as investigações sobre tal delito.
Então, a despeito de suas limitações físicas, o velho jesuíta, ardendo em febre, conversava
com seu amigo José Soares:

‘Deus seja louvado, Rocha Pita está do nosso lado’, disse Vieira.
‘Relata-me, padre Soares, com detalhes’. ‘Feita a diligência a vosso
rogo’, disse padre Soares, ‘o governador cometeu o procedimento da
devassa’. Padre Soares relatou a Vieira os procedimentos legais de
Rocha Pita. ‘E Bernardo?’, disse Vieira, ansioso. ‘Um instante, padre
Vieira, que chego lá [...]. (MIRANDA, 1990, p. 282, grifos da autora).

Em linhas gerais, o mundo vivido, surge nas falas de cada um deles. Observam-
se valores, percepções, sentimentos e experiências, pelo fato de mostrarem, também, uma
explícita posição social, a partir da elaboração sobre esse espaço. Nesse processo, as
descrições se dispõem, enquanto esboço desse palco de encenação individual e coletivo.
Outro recorte escolhido faz referência à concepção barroca da sociedade e ao
âmbito físico da cidade:

Na rua já se ouvia o rumor da reunião quando o alcaide Teles passou


pelo porto do palácio do governador, entre soldados armados com
bacamartes, que não permitiam a entrada de quem não tivesse um
convite. Um fidalgo com o rosto pintado entrou à frente, jogando
moedas para os populares que disputavam aos gritos e empurrões as
peças, jogando-se ao chão uns sobre os outros. Bastardos! São estes
roncolhos que governamos, pensou o alcaide. Liteiras com brasões
estacionavam nos jardins, carregadas por escravos vestidos de librés de
veludo ou largas túnicas de algodão alvo. Fidalgos e gente rica
caminhavam até o salão, que tinha as portas abertas. Todos pareciam
apreensivos e apressados. (MIRANDA, 1990, p. 283).

A apropriação dos territórios inspira a configuração, a projeção e o significado


construídos pelo individuo das práticas sociais. Possivelmente, os efeitos daí resultantes,
tenham sido uma das principais fontes da Geopoética, pois esse acervo simbólico esboça
percursos movidos pela complexidade da condição humana e, nos labirintos inusitados
da cidade barroca, a cidade da Bahia, em Boca do Inferno (1990) de Ana Miranda, surgem
diferentes dimensões, social, política, cultural, econômica. Nesse caso, a linguagem
literária, expressa maneiras de habitar os lugares e cria um imaginário que incorpora
categorias geográficas, para que justifique pertencimentos e/ou derivas. Nesse sentido,
259

nota-se que aqueles contextos históricos, com lugares concretos e impregnados de


relações de poder estão subsumidos na narrativa, na qual, o leitor é convidado a vivenciar,
experimentar, (des) vincular-se. Para tanto, é preciso estar atento, pois a voz narrativa
direciona o olhar do leitor para além das fronteiras territoriais e desloca as experiências
dos personagens, na errância, alem do cotidiano estável. Tal percepção parece
desenvolver uma territorialidade árida, uma vez que está fundamentada nas trilhas que
vão movimentar uma modalidade de aniquilamento de Si. (WHITE, 2014).
Nesse cenário, a evidência mais explícita resulta em dilemas e impasses, em quase
todos os personagens. O relato de Ana Miranda guarda imagens recorrentes de nossa
formação cultural, num país exposto ao jogo político encenado no teatro bélico europeu
do século XVII, que levaria aos “novos pactos entre a corte e os guerreiros ultramarinos”
(ALENCASTRO, 2000, p. 302). Tal vulnerabilidade impôs a desfiguração mediada pela
exploração predatória na colônia bahiana, portanto, em nome dessa metódica constituição
da fisionomia local é possível perceber algo comum, lá e cá, a premissa barroca, que José
Luis Romero apresenta:

Una sociedad escindida, con aristocracias que adquirieron caracteres de


inmutabilidad y quisieron revestirse de un tipo de ornato y de lujo que
probara de manera inmediata su superioridad, estaba naturalmente
condenada a transformar a las clases no privilegiadas en espectadoras
de las privilegiadas. La ciudad barroca fue pensada –al igual que la corte
barroca –como un vasto escenario, y casi todos los elementos que
podemos usar para definir esta sociedad, como los que usaremos
inmediatamente para definir el ámbito físico y la transformación de la
ciudad barroca, revelan esa vocación por el espectáculo. (ROMERO,
2013, p. 161).

Então, em consonância com essas observações é significativo assinalar o impacto


dessa organização, cujos precedentes também se fizeram sentir fortemente sobre os
itinerários, lugares, regiões de além-mar. Portanto, há na narrativa, os passos já dados por
aqueles que fizeram este percurso, contudo, está ali, na linha e na entrelinha outra
mobilização engendrada por Ana Miranda. No final, aquele movimento europeu iniciado
longe repercute no Brasil pelas vozes, que registraram e vociferaram contrárias à rapina,
aos desmandos e que, do interior da topografia real, imaginaram modos muito
significativos de reescrever a própria história, pois seus olhares e gestos modificaram o
pulsar sobre o sentimento do mundo.
260

Referências

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Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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262

PARTE VII
VOZES FEMININAS – ESCRITA FEMININA
263

DO CLAUSTRO AO PÁTIO PROFANO

Beatriz Helena Dal Molin


Julia Cristina Granetto Moreira
Universidade Estadual do Oeste do Paraná/ PPGL/UNIOESTE

INTRODUÇÃO

Sor Juana termina siendo, sin darse cuenta, una feminista que pide que
haya mujeres que puedan enseñar a las otras 'las ciencias terrestres'
como condición para que puedan acceder a las celestes (Octavio
Paz,1982).82

A escrita feminina tem nos encantado desde muito tempo, embora tenhamos
apenas percorrido caladamente este território de curvas, desvios e silêncios, mirados deste
uma perspectiva que estamos aprendendo com Deleuze e Guattari em suas várias obras.
Muitas são as escritas femininas que nos chamam atenção, mas, sobremaneira uma delas
nos atrai porque traz muitas marcas e tons que ficam entre o grito e o silêncio, as cores as
quais se compõem o universo feminino, e o sombrio do claustro, entre a réstia do sol que
violenta as sombras do mosteiro e as próprias sombras-palavra.
Talvez o nosso interesse pelo desvelamento da escrita feminina venha pela
necessidade de juntar nossa voz a tantas outras que já fizeram esta incursão pelos textos
de muitas escritoras femininas, até pormos fim a este silenciamento que tem, ao longo de
séculos, encoberto e calado as mulheres escritoras do Brasil, da América Latina e do
mundo.
Para este artigo escolhemos a escrita feminina de Sor Juana Inés de la Cruz, por
tudo o que ela possa revelar de gritos silenciados, e de silêncios reveladores, de marcas
que pertencem ao universo e à anima de muitas mulheres.
Escolhemos entrar em um mosteiro e dele sair com algumas palavras-ensaio,
palavras-balbucio, palavras-encontro, palavras-tentativa, palavras-mulher, trazendo para
o pátio “profano”, nosso encontro com Sor Juana Inés de la Cruz, que viveu no México
entre os anos 1651-1695, tendo sido um expoente feminino literário de sua época. Uma
menina prodígio que já lia e escrevia aos três anos. Foi batizada com o nome de Juana

82
Sor Juana termina sendo, sem dar conta, uma feminista que pede que tenha mulheres que possam ensinar
a outras 'as ciências terrestres' como condição para que possam ascender as celestes.
264

Inés de Asbaje y Ramírez. Nascida em doze de novembro de 1651, na cidade de San


Miguel de Nepantla, atual Cidade de México, foi uma mulher admirada por seu talento e
pela precocidade intelectual. Aos catorze foi dama de honra de Leonor Carreto, esposa
do vice rei Antonio Sebastián de Toledo, tendo sido apadrinhada pelos marqueses de
Mancera, e brilhado, por sua erudição e habilidade poética, na corte da Nova Espanha.
Cada escrita feminina que trazemos à cena emprestamos nossa vez e nossa voz às
diversas mulheres de muitas gerações e que, por muitas gerações ainda tentarão avançar
pelas margens e pelos umbrais de sua época, rompendo etiquetas, escancarando
machismos, denunciando a discriminação, mostrando o saldo dos prejuízos culturais, da
inércia intelectual de uma sociedade que custa reconhecer o valor da escrita feminina e,
portanto, da mulher.
Temos como modo de ser e de sensoriar o mundo, as linhas da heterogeneidade,
da multiplicidade, de fuga e, nesta via de mil tons e de monocromias necessárias está a
literatura, a poesia o encantamento pela palavra que quase nunca é somente palavra, mas
desejo, alegria, fé, frustração, morte, sangue, vida, mulher e devir.
Nosso primeiro encontro com a escrita de Sor Juana é, de fato, um encontro tímido
de quem se move pela vontade de novas descobertas e aprendizados, que são índices de
um tempo que se pereniza e marca a escrita feminina, ainda nos dias de hoje.
Ancoramos nosso aporte teórico em Deleuze e Guattari, Octavio Paz, Sor Juana e
Menendez y Pelayo, entre outros.

DO CLAUSTRO

Yo de mí puedo asegurar que las calumnias algunas veces me han


mortificado, pero nunca me han hecho daño, porque yo tengo por muy
necio al que teniendo ocasión de merecer, pasa el trabajo y pierde el
mérito, que es como los que no quieren conformarse al morir y al fin
mueren sin servir su resistencia de excusar la muerte, sino de quitarles
el mérito de la conformidad, y de hacer mala muerte la muerte que
podía ser bien.83
(Sor Juana Ines de la Cruz in Respuesta de la poetisa a la muy ilustre
Sor Filotea de la Cruz, 1951)

83
De minha parte posso assegurar que as calúnias algumas vezes me mortificaram, mas nunca me causaram
dano, porque eu tenho por muito néscio aquele que, tendo ocasião de merecer, dispensa o trabalho e perde
o mérito, que é como os que não querem conformar-se com a morte e ao fim morrem sem que tenha servido
sua resistência para evitar a morte mas, ao contrário, para roubar-lhe o mérito da conformidade e de tornar
triste a morte, a morte que podia ser boa. (Sor Juana Ines de la Cruz in Respuesta de la poetisa a la muy
ilustre Sor Filotea de la Cruz, 1951).
265

Quando mencionamos a palavra claustro nos vem à mente um convento, um


mosteiro, mas também, imensos corredores cobertos, construídos em torno do pátio de
um monastério, ou de um colégio. O claustro é um local coberto, cercado, mas dá suas
faces a um pátio cujo sol e chuva podem tocar o solo que, geralmente, abriga jardins,
árvores e espaços livres para os pássaros romperem os silêncios com seus cantos vindos
do céu aberto, dando um sinal de que há sempre uma brecha para “perturbar”, “rasgar”,
“macular”, ainda que seja um limitado território monasterial.
A partir da obra de Foucault, Deleuze percebe que a operação fundamental da
sociedade disciplinar é o aprisionamento, a repartição do espaço em meios fechados,
como exemplo: a escola, o hospital, a prisão e a indústria, assim como um estabelecimento
de um tempo de estadia ou trabalho nestes espaços. Modelagens fixas, portanto, que
poderiam ser aplicadas em diversos contextos, como o caso do mosteiro (DELEUZE,
1996).
Foi, porém, pela sua opção de viver no mosteiro que Sor Juana Inés de la Cruz
pode mostrar toda a potência que contem a imagem do claustro cercando um pátio à céu
aberto. Fazendo daquele espaço um lugar de libertação, de acontecimentos e de devir.
É forte a marca e a “coragem” de Sor Juana Inés de la Cruz nos seus escritos, no
seu modo de vida, nas suas escolhas que enfrentaram um tempo tão masculino, tão
escancaradamente cheio de ferrolhos para tudo o que viesse da mulher, menos para o
matrimônio, para os filhos, para os afazeres domésticos e para a submissão total. Ela
preferiu o monastério como ela mesma confessa: “Vivir sola, no tener ocupación alguna
obligatoria que embarazarse la libertad de mi estudio, ni rumor de comunidad que
impidiese el sosegado silencio de mis libros” (1669).84
Octavio Paz (1982, p 42), um dos principais críticos das obras e da vida de Sor
Juana Inéz de la Cruz, ao mencionar o contexto da sociedade na época dos escritos de
autora, afirma que: "hay que añadir que se trata de una sociedad de valores culturales
masculinos, lo que le obliga a neutralizar su sexo para poder acceder a ese privilegio
masculino que es, en ese momento, el conocimiento"85
Uma sociedade que ainda hoje carrega ranços do masculino se sobrepondo ao
feminino, ao invés de ambos caminharem lado a lado, cada qual com seu valor e

84
“Viver sozinha... não ter ocupação alguma obrigatória que atrapalhasse a liberdade dos meus estudos,
nem rumor da comunidade que impedisse o sossegado silêncio de meus livros.
85
Há que acrescentar que se trata de uma sociedade de valores culturais masculinos, o que obriga a
neutralizar seu sexo para poder ascender a esse privilégio masculino que é, em esse momento, o
conhecimento”.
266

reconhecimento. Nos recortes de textos de Sor Juana desvelamos traços nos quais ela
conclamava as mulheres a assumirem seus papéis femininos, enquanto seres de
importância social e cultural em uma sociedade de sua época e para qualquer tempo.
Octavio Paz (1990) demonstra as dificuldades pelas quais Sor Juana Inés
enfrentou, para poder assumir seu gosto pelo conhecimento e pela cultura letrada, sendo
mulher, uma vez que foram estes os caminhos que ela, sem pejo algum percorreu,
caminhando da corte ao monastério.

La única posibilidad que ellas [las mujeres] tenían de penetrar en el


mundo cerrado de la cultura masculina era deslizarse por la puerta
entreabierta de la corte y la Iglesia. [...] los lugares en que los dos sexos
podían unirse con los propósitos de comunicación intelectual y estética
eran el locutorio del convento y los estrados del palacio. Sor Juana
combinó ambos modos, el religioso y el palaciego (PAZ, 1990, p. 69).86

Pretendemos apontar nos escritos de Sor Juana o quanto pode, ao expressar-se em


versos ou em proza, ora de modo mais velado, ora escancarando seus pensamentos sem
temor, de modo que sua rostidade e sua marca de mulher ficasse, como via para que outras
mulheres de seu tempo, ousassem demonstrar sua condição de direito ao conhecimento e
a igualdade em sentido geral.
Neste empreendimento de desvelar rastros, rostos e rostidades, cantos e gritos
deixados nas trilhas da escrita feminina de Sor Juana, Gilles Deleuze (1993 p.11.12), ao
tratar sobre a ideia de rosto esclarece que:

O rosto constrói o muro do qual o significante necessita para


ricochetear, constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto
escava o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a
câmera, o terceiro olho. Ou será preciso dizer as coisas de outro modo?
Não é exatamente o rosto que constitui o muro do significante, nem o
buraco da subjetividade. O rosto, pelo menos o rosto concreto,
começaria a se esboçar vagamente sobre o muro branco. Começaria a
aparecer vagamente no buraco negro. [...] E nesse sistema muitas
combinações já seriam possíveis: ou os buracos negros se distribuem
no muro branco, ou o muro branco se afila e vai em direção a um buraco
negro que os reúne todos, precipita-os ou ‘aglutina-os’. Ora rostos
aparecem no muro, com seus buracos; ora aparecem no buraco, com seu
muro linearizado, espiralado” (DELEUZE, 1996, p. 32-33).

86
A única possibilidade que elas [as mulheres] tinham de penetrar no mundo fechado da cultura masculina
era deslizar-se pela porta entreaberta da corte e da Igreja. [...] os lugares em que os dois sexos podiam unir-
se com os propósitos de comunicação intelectual e estética eram o locutório do convento e os estrados do
palácio. Sor Juana combino ambos modos, o religioso e o palaciano. Tradução das autoras.
267

Na carta resposta que Sor Juana (1994) escreve a Sor Filotea87, encontramos
marcas que nos levam a inferir o que Deleuze afirma sobre o rosto e o devir (1993) uma
vez que Sor Juana escreve sem receio e ao fazê-lo se faz devir-mulher. Sobre o devir,
Deleuze esclarece:

A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher,


devimos-animal ou vegetal, devimos-molécula até devir-imperceptível.
Estes devires encadeiam-se uns com os outros segundo uma linha
particular, como num romance de Le Clézio, ou então coexistem em
todos os níveis, por intermédio de portas, entradas e zonas que
compõem o universo inteiro, como na poderosa obra de Lovecraft. O
devir não vai noutro sentido: não devimos Homem, mesmo que o
homem se apresente como uma forma de expressão dominante que
pretenda impor-se a toda a matéria; ao passo que mulher, animal ou
molécula têm uma componente de fuga que se descarta à sua própria
formalização. A vergonha de se ser um homem: haverá melhor razão de
escrever? Mesmo quando é uma mulher que devém, ela tem de devir-
mulher, e este devir nada tem que ver com um estado de qual poderia
vir a reclamar-se. Devir não é atingir uma forma (identificação,
imitação, Mimésis), mas é encontrar a zona de vizinhança, de
indiscernibilidade ou de diferenciação, de maneira que já não nos
podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula:
e que não são nem imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-
preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais
singularizados numa população (DELEUZE, 1993. p. 11.12).

A escritora afirma na carta resposta que: “desde que me rayó la primera luz de la
razón, fue tan vehemente y poderosa la inclinación a las letras, que ni ajenas reprensiones
-que he tenido muchas-, ni propias reflejas -que he hecho no pocas88”. Pode-se bem
sensoriar pelo trecho selecionado o devir-mulher, que escreve em uma sociedade cujo
direito ao conhecimento, era privilégio masculino. Como boa escritora que era, Sor Juana
revela nas linhas “ajenas reprensiones -que he tenido muchas- e ni propias reflejas – que
he hecho no pocas, que sua “ inclinación a las letras” e o simples ato de desejar dominar
o conhecimento, lhe custara muito, é quase um ato de auto penitência, de resignação e
aceite das repressões que lhe faziam.
Pode-se, no entanto, conferir que o devir-mulher-escritora de Sor Juana se
manifesta de modo firme em muitos de seus escritos, como neste trecho do poema de

87
Pseudônimo usado pelo bispo de Puebla, intelocutor intelectual, de Sor Juana, Manuel Fernández de
Santa Cruz.
88
Desde que me raiou a primeira luz da razão, foi tão veeemente e poderosa a inclinação as letras, que nem
distantes repreensões -que tive muitas-, nem próprias reflexas –que não fiz poucas.
268

1689: “ Dice que yo soy la Fênix que, burlando las edades, ya se vive, ya se muere, ya se
entiera, ya se nace”89
O erudito e historiador espanhol Marcelino Menendez y Pelayo (1958), primeiro
crítico que valorizou os escritos de Sor Juana, comenta sobre ela, nas páginas de sua obra
Historia de la poesía hispano-americana, sobre a obra da monja, o devir-mulher
escritora:

El ejemplo de curiosidad científica, universal y avasalladora, que desde


sus primeros años dominó a sor Juana, y la hizo atropellar y vencer
hasta el fin de sus días cuantos obstáculos le puso delante la
preocupación o la costumbre, sin que fuesen parte a entibiarla, ni ajenas
reprensiones, ni escrúpulos propios, ni fervores ascéticos, ni disciplinas
y cilicios después que entró en religión, ni el tumulto y pompa de la
vida mundana que llevó en su juventud, ni la nube de esperanzas y
deseos que arrastraba detrás de sí en la corte virreinal de México, ni el
amor humano que tan hondamente parece haber sentido, porque hay
acentos en sus versos que no pueden venir de imitación literaria, ni el
amor divino, único que finalmente bastó a llenar la inmensa capacidad
de su alma; es algo tan nuevo, tan anormal y peregrino, que a no tener
sus propias confesiones escritas con tal candor y sencillez, parecería
hipérbole desmedida de sus panegiristas. (MENÉNDEZ Y PELAYO,
1958, p. 60).90

Sor Juana Inés de la Cruz não se limitou apenas a escrever sobre a dificuldade de
ser mulher, de amar e desejar o conhecimento, ela sofreu em seu cotidiano os martírios
desta escolha e suportou as renuncias para que pudesse amar, ler, estudar e escrever ao
ponto de ter que escolher o monastério, para continuar no caminho de suas escolhas:

El convento no era escala hacia Dios, sino refugio de una mujer que
estaba sola en el mundo. El claustro conventual es el equivalente de la
una biblioteca. Sor Juana estudió sola, no tuvo maestros, sus únicos y
mudos confidentes fueron los libros (OCTAVIO PAZ,1982).91

89
Dizem que sou a Fênix que, enganando as idades, já se vive, já se morre, já se enterra, já se nasce.
Tradução das autoras.
90
O exemplo de curiosidade científica, universal e avassaladora, que desde seus primeiros anos dominou a
Sor Juana, la hizo atropellar y vencer hasta el fin de sus días cuantos obstáculos le puso delante la
preocupación o la costumbre, sin que fuesen parte a entibiarla, ni ajenas reprensiones, ni escrúpulos propios,
ni fervores ascéticos, ni disciplinas y cilicios después que entró en religión, ni el tumulto y pompa de la
vida mundana que llevó en su juventud, ni la nube de esperanzas y deseos que arrastraba detrás de sí en la
corte virreinal de México, ni el amor humano que tan hondamente parece haber sentido, porque hay acentos
en sus versos que no pueden venir de imitación literaria, ni el amor divino, único que finalmente bastó a
llenar la inmensa capacidad de su alma; es algo tan nuevo, tan anormal y peregrino, que a no tener sus
propias confesiones escritas con tal candor y sencillez, parecería hipérbole desmedida de sus panegiristas.
(MENÉNDEZ Y PELAYO, 1958, p. 60).90
91
O convento não era escala para Deus, mas sim refugio de uma mulher que estava sozinha no mundo. A
clausura é o equivalente a uma biblioteca. Sor Juana estudou sozinha, não teve professores, seus únicos e
mudos confidentes foram os livros. Tradução das autoras.
269

Podemos afirmar pelas leituras dos textos de Sor Juana e, também, pelas leituras
que realizamos dos estudiosos que se debruçaram a estudá-la, que sua escrita feminina
foi um marco essencial para a escrita de outras mulheres, ainda que tenhamos que admitir
que tal escrita tenha surtido poucos efeitos de “conversão” de ideias que aceitem o valor
do ser-mulher do século XVII ao século XXI, no entanto a escrita feminina continua sua
via-crúcis, tendo por premissa que:

É a literatura que se encontra carregada positivamente desse papel e


dessa função de enunciação coletiva e mesmo revolucionária: a
literatura é que produz solidariedade ativa apesar de cepticismo; esse o
escritor está à margem ou à distância de sua própria comunidade, a
situação coloca-o mais à medida de exprimir uma outra comunidade
potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra
sensibilidade (DELEUZE, 2002, p.40).

Não é intensão deste artigo esgotar um dado tema a partir dos escritos de Sor
Juana, mas apresentar vários textos da autora que apontem a força de sua escrita e o
quanto o devir-mulher-escritora se revela em cada linha escrita ou em cada linha de fuga
que os textos nos levam a sensoriar o peso de uma época, de um território monasterial,
ou palaciano ou ainda de um pátio profano.
Para Deleuze, Guattari (1997):

Devir nunca é imitar. O devir nada produz por filiação; toda filiação
seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação.
Ele é da ordem da aliança. Se a evolução comporta verdadeiros devires,
é no vasto domínio das simbioses que coloca em jogo seres de escalas
e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível. Há um
bloco de devir que toma a vespa e a orquídea, mas do qual nenhuma
vespa-orquídea pode descender.) DELEUZE, GUATTARI, 1997, p.7-
18).

Sor Juana Inés de la Cruz não imitou. Foi sempre movida pela curiosidade que
cedo se transforma em paixão pelo conhecimento tornando-se uma curiosa sobre o seu
entorno, sobre o mundo, sobre si mesma e sobre o que acontecia em seu âmago e, esta foi
sua sina, seu signo, seu decreto. No texto Respuesta a sor Filotea Cruz, encontramos as
perguntas: O que é? e Como é? Perguntas que repetiu durante toda a sua vida.
Entendemos que um estudo mais demorado sobre os escritos de Sor Juana nos
mostrará que ela caminhou pelas vias de uma literatura menor, no dizer de Deleuze e
270

Guattari (1977) quando se referem à literatura kafkiana, e nos ensinam desterritorializar


a arte e a escrita do regime da interpretação, apresentando-nos uma concepção
completamente nova da literatura. Assim, analisar os textos de Sor Juana, especialmente
sua resposta à carta de Sor Filotea é perceber o quanto de toca, de espaço de habitação,
de deambulação e de reserva nutritiva há nestes escritos. É perceber o quanto a literatura
menor, ou seja, a literatura como potência e subversão se realiza dentro e a partir de uma
literatura maior, nos escritos de Sor Filotea que apresentam uma visão sacralizada por
princípios religiosos e masculinos. Também é possível perceber como o discurso de Sor
Juana transita entre o que diz e o que finge aceitar e ironicamente rebate do discurso do
outro, como uma metamorfose, uma produção de sentido, uma cartografia dos signos que,
vai se construindo.
Perceber e evidenciar que contra toda a hermenêutica do imaginário e do
simbólico, a máquina literária menor não reproduz os códigos estabelecidos, mas faz
passar algo do real através da escrita, para transformar nossas maneiras de ver e de sentir.
A literatura não tem nada de um lazer inofensivo, mas é uma máquina de guerra, uma
experimentação política.
Neste trecho da Resposta da Sor Juana a carta de Sor Filotea podemos sentir como
a literatura menor estende suas linhas de fuga, suas multiplicidades, sua singularidade ao
nos permitir que sintamos que a autora abre o coração para também denunciar sua “via
crucis” em palavras-mulher, palavras-conhecimento, palavras-revelação, palavras-dor,
palavras devir-mulher, devir-conhecimento:

Quién no creerá, viendo tan generales aplausos, que he navegado viento


en popa y mar en leche, sobre las palmas de las aclamaciones comunes?
Pues Dios sabe que no ha sido muy así, porque entre las flores de esas
mismas aclamaciones se han levantado y despertado tales áspides de
emulaciones y persecuciones, cuantas no podré contar, y los que más
nocivos y sensibles para mí han sido, no son aquéllos que con declarado
odio y malevolencia me han perseguido, sino los que amándome y
deseando mi bien (y por ventura, mereciendo mucho con Dios por la
buena intención), me han mortificado y atormentado más que los otros,
con aquel: “No conviene a la santa ignorancia que deben, este estudio;
se ha de perder, se ha de desvanecer en tanta altura con su misma
perspicacia y agudeza”. ¿Qué me habrá costado resistir esto? ¡Rara
especie de martirio donde yo era el mártir y me era el verdugo92 (Sor
Juana de la Cruz, 1951).

92
Quem não acreditará, vendo tão generalizados aplausos, que tenho navegado de vento em popa e em mar
de leite, sobre as palmas de tão comuns aclamações? Pois Deus sabe que não tem sido bem assim, porque
entre as flores dessas mesmas aclamações se têm levantado e despertado as tais víboras de emulações e
perseguições, quantas eu não poderei contar, mas para mim as mais nocivas e sensíveis, não são aquelas que
271

Mas não é somente na proza que Sor Juana provoca rizomas e aponta
multiplicidades e deslocamentos. Sua poesia é uma cartografia, um mapa aberto a
percepção de acontecimentos e devires, como é o caso do poema “A uma Rosa”, onde
podemos tanto inferir que se destina a uma mulher especial que não é a autora, ou a uma
outra mulher a quem a autora se refere ou a uma rosa enquanto flor e elemento da natureza
ou mesmo e por final a própria Sor Juana, por tudo o que se possa conhecer de sua vida e
por tudo o que sobre ela foi dito. Assim:

A una Rosa

Rosa divina, que en gentil cultura


Eres con tu fragante sutileza
Magisterio purpúreo en la belleza,
Enseñanza nevada a la hermosura.

Amago de la humana arquitectura,


Ejemplo de la vana gentileza,
En cuyo ser unió naturaleza
La cuna alegre y triste sepultura.

¡Cuán altiva en tu pompa, presumida


soberbia, el riesgo de morir desdeñas,
y luego desmayada y encogida.

De tu caduco ser das mustias señas!


Que con docta muerte y necia vida,
Viviendo engañas y muriendo enseñas93.
(Juana, 1667-1680)

PATIO PROFANO

Deambulando pelos textos de Sor Juana, desterritorializamos marcas que ainda


hoje acompanham a escrita feminina e nos reterritorializamos nas vias do entendimento

com declarado ódio e maldade me têm perseguido, mas sim aquelas que, me amando e desejando meu bem
(e quem sabe, tenham muito merecimento ante Deus pela boa intenção), me tem mortificado e atormentado
mais que os outros, com o seguinte: “Não convém à santa ignorância que faça este estudo; se há de perder,
se há de desvanecer em tanta altura com sua mesma perspicácia e agudeza” ¿Quanto me haverá custado
resistir a isso? ! Rara espécie de martírio, onde eu era o mártir e o meu próprio verdugo! Tradução das
autoras.
93
A Uma rosa/ Rosa divina, que em gentil cultura/ És com tua fragrante sutileza/ Magistério purpúreo na
beleza/ Ensino nevado ao encanto/ Amago da humana arquitetura/Exemplo da vã gentileza/ Em cujo ser
uniu natureza/ O berço alegre e triste sepultura/ Quanto altiva em tua pompa, presumida/ Soberba, o risco
de morrer desdenha/ e logo desmaiada e encolhida/ De teu decrépito ser os melancólicos sinais! / Que com
douta morte e néscia vida/ Vivendo enganas e morrendo ensina. Tradução das autoras.
272

e da aprendizagem que a literatura menor nos ensina a não ver apenas os resultados, mas
sim todo o processo:

Aprender vem a ser tão-somente o intermediário entre não-saber e


saber, a passagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que aprender,
afinal de contas, é uma tarefa infinita, mas esta não deixa de ser
rejeitada para o lado das circunstâncias e da aquisição, posta para fora
da essência supostamente simples do saber como inatismo, elemento a
priori ou mesmo Idéia reguladora. E, finalmente, a aprendizagem está,
antes de mais nada, do lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo
fora da caverna considera somente o resultado – o saber – para dele
extrair os princípios transcendentais (DELEUZE, 1988, p. 270).

A escrita feminina de Sor Juana em sua variedade de gêneros nos aponta que as
multiplicidades em seus princípios são singularidades e estão intimamente relacionados
com os devires, com os acontecimentos, com as individualizações sem sujeito, pois pode
ser Sor Juana ou todas as mulheres em seus espaços-tempo, avançando feito erva daninha
nos espaços permitidos e negados, na corte ou no monastério, na sala de uma escola ou
no púlpito de um altar, nas linhas de um texto ou nos versos de um poema. “Escrever
como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontrar seus
próprios pontos de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo,
seu próprio deserto” (DELEUZE e GUATTARI, 1977, p. 28-29). Rizoma,
multiplicidades, que atravessam e constituem territórios e graus de desterritorializações.

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México. 1990.
274

IMAGEM, DOR E FEMINISMO EM O DIÁRIO DE FRIDA KAHLO: UM


AUTORRETRATO ÍNTIMO E EM FRIDA: A BIOGRAFIA, DE
HAYDEN HERRERA

Paulo Cesar Fachin


Acir Dias da Silva

Frida Kahlo foi uma das personagens mais marcantes da história mexicana. Teve
sua existência marcada pela dor (dor, esta, que só terminou com sua morte), pelo
sofrimento e pela paixão, sentimentos refletidos em sua obra (escrita e pictórica), por
meio da qual ficou conhecida mundialmente como sendo uma das maiores artistas do
século passado. Declarada, definitivamente, como uma comunista, uma revolucionária e
patriota, a imagem dessa artista, socialmente construída, é da mulher engajada com a
política, revolucionária, livre e à frente do seu tempo, além de muito apaixonada por
Diego Rivera e por sua arte, deixando um legado de dezenas de obras pictóricas que
falavam sobre si, seus autorretratos. As reflexões deste capítulo buscam discutir sobre
questões relacionadas às vozes femininas e escrita feminina levando em consideração as
seguintes obras de Frida: Autorretrato con traje de terciopelo (1926), Autorretrato
(1929), Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos (1932), Las dos Fridas
(1939) e La columna rota (1944), arte presente em seu Diário Íntimo ou em sua biografia
produzida por Herrera.
A trajetória histórica de Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón, mais
conhecida como Frida Kahlo (1907-1954) tem seu começo e término no mesmo lugar (A
Casa Azul), conquistando um espaço na história mexicana e no mundo, tornando-a
conhecida, estudada e interpretada por muitos após a sua morte, sendo um mito que não
se esgota jamais.
Carlos Fuentes, na introdução do Diário escrito pela artista mexicana e publicado
em 1995 na Cidade do México, compara Frida Kahlo a várias Deusas astecas e mexicanas,
que era anunciada pelos rumores das joias que ela portava ou por seu magnetismo
silencioso. E, pergunta ele: ¿Un árbol de navidad94? ¿Una piñata95? Definindo-a a partir
de sua enfermidade e sua dor.

94
Uma árvore de natal?
95
Uma pinhata.
275

Frida Kahlo era una Cleopatra quebrada que escondía su cuerpo


torturado, su pierna seca, su piel baldado, sus corsés ortopédicos, bajo
sus lujos espectaculares de las campesinas mexicanas, que durante
siglos han escondido celosamente las antiguas joyas, protegiéndolas de
la pobreza, mostrándolas sólo en las grandes fiestas de las comunidades
agrarias. Los encajes, los listones, las rumorosas enaguas, las trenzas,
los huipiles, los tocados tehuanos enmarcando como lunas ese rostro de
mariposa oscura, dándole alas: Frida Kahlo, diciéndonos a todos […]
que el sufrimiento no marchitaría, ni la enfermedad haría rancia, su
infinita vanidad femenina96. (FUENTES, 1995, p. 8).

A ilusão de escrever e, às vezes, de viver, tanto para Frida, como para outras
escritoras, é um mecanismo assegurado por elas contra a solidão, a favor da ambição,
como forma de eternizar momentos sublimes e, ainda, a por meio da esperança, unindo
os momentos cujos significados são muito importantes aos momentos insignificantes. No
caso de Frida, houve outra forma de narrar parte de sua existência, pois antes de seu diário,
ela já traduzia seus sentimentos e estados de ânimo por meio de sua obra pictórica, pois
há várias telas que denunciam sua intimidade e seus sentimentos, principalmente seus
vários (dezenas de) autorretratos.
Segundo Assunção (2013), em obras como os autorretratos, mesmo tendo o
próprio artista como tema central, a sua produção não pode ser pensada como uma
transposição direta da figura do pintor, pois esta análise seria muito simples, além de ser
um entendimento empobrecido. Nesta forma de arte, o autor não busca se descrever de
forma subjetiva ao pintar-se imaginando sua tela como um espelho. “Há inegavelmente a
criação de um personagem, de uma imagem dada a ver, de uma identidade pública. No
caso de Frida Kahlo, a criação deste personagem transpõe as telas e pode ser percebida
também na representação que a pintora criou através de si mesma.” (ASSUNÇÃO, 2013,
p. 46). E, talvez devamos partir da ideia de que toda e qualquer obra de arte é um
autorretrato, pois reflete a personalidade de quem a produziu e, na maior parte das vezes,
segundo Calero (1994, p. 289), “[…] el autorretrato se revaloriza tras la muerte del
autor97”.

96
Frida Kahlo era uma Cleópatra quebrada que escondia seu corpo torturado, sua perna seca, seu pé
fraturado, seus espartilhos ortopédicos, sob os luxos espetaculares das camponesas mexicanas, que durante
séculos esconderam, de forma cuidadosa e ciumenta, as antigas joias, protegendo-as da pobreza, mostrando-
as somente nas grandes festas das comunidades agrárias. As rendas, cintos, rumorosas anáguas, as tranças,
os vestidos ou blusas enfeitadas, os cocares tehuanos marcando como luas esse rosto de borboleta escura,
dando-lhe asas: Frida Kahlo, dizendo-nos a todos [...] que o sofrimento não murcharia, nem a doença a faria
rançosa, sua infinita vaidade feminina.
97
[...] O autorretrato se revaloriza após a morte do autor.
276

Para Lejeune (2008), um autorretrato é uma centelha, um romance, uma fantasia,


pois depende da visão do espectador, um entendimento que vai muito além da etiqueta de
identificação que acompanha a uma obra de arte em um museu, por exemplo.

Se eu imaginar que a tela é um espelho, ela desaparece como pintura. O


autorretratista via em seu espelho um quadro (por fazer); eu vejo em
seu quadro (feito) um espelho. O quadro é como um espelho, sem aço:
o pintor está atrás (do outro lado em relação a mim), e eu o surpreendo
se olhando. Com isso, nos tornamos... contemporâneos. O autorretrato
é o único gênero pictórico que despertou em mim o sentimento
pungente [...] (LEJEUNE, 2008, p. 245-246).

E, talvez, o mesmo sentimento fora despertado em Frida ao produzir cada um de


seus autorretratos e ao escrever seu diário íntimo, manifestando suas angústias (física e
emocional) e seus sofrimentos. Pois, segundo Herrera (2011), os autorretratos, trazendo
uma Frida ferida, doente e mutilada pela vida e pelo acidente que sofreu ainda na
adolescência, eram a forma que a artista mexicana encontrou para gritar, para manifestar
esta dor, porém de forma silenciosa.

Em imagens de si mesma descalça, sem cabeça, rachada, aberta,


sangrando, ela transformava a dor em imagens mais dramáticas
possíveis, de modo a imprimir nos outros a intensidade de seu próprio
sofrimento. E, ao projetar para fora de si e para dentro das telas a sua
dor, ela também a extirpava de seu corpo. Os autorretratos eram réplicas
fixas e imutáveis de sua imagem refletida, e nem os reflexos nem as
telas sentiam dor. [...] A imagem do espelho é assombrosa – ela se
parece conosco, mas não partilha da nossa dor. (HERRERA, 2011, p.
420).

Ao buscar e analisar os autorretratos produzidos e deixados por Frida Kahlo é


possível, por meio deles, contar a sua história de vida. Sua produção pictórica e
autobiográfica inicia com seu primeiro autorretrato pintado em 1926 para seu namorado
Alejandro e só termina com a sua morte.
Pierre Bourdieu (1998) manifestou uma crítica à ideia de que a vida do indivíduo
pode ser vista como linearidade, ordem e coerência, no retrospecto da sua história,
desconsiderando-se as descontinuidades e fragmentações nos atos e acontecimentos que
marcam o seu passado. Para ele:

Essa vida organizada como uma história transcorre, segundo uma


ordem cronológica que também é uma ordem lógica, desde um começo,
uma origem, no duplo sentido de ponto de partida, de início, mas
277

também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu


término, que também é um objetivo. (BOURDIEU, 1998, p. 184).

Seria a consideração da vida como relato histórico ou a aceitação da “filosofia da


história no sentido de sucessão de acontecimentos históricos”. (BOURDIEU, 1998,
p.184).
Entretanto, sabemos que nessa suposta sucessão linear, ocorrem quebras e
rupturas que fragmentam a vida do indivíduo. Há um ordenamento nesses relatos,
biográficos ou autobiográficos, seja na narrativa em prosa ou na pintura, em que o
elemento da recriação, do improviso e da recomposição assume um papel de destaque.
Devemos considerar então, que o relato de vida de um entrevistado ou de um
escritor que escreve sobre si, é ordenado a partir de certos pressupostos e de certas visões
que o mesmo constrói sobre seu ser.

Pude perceber essa força da memória coletiva, trabalhada pela


ideologia, sobre a memória individual do recordador, o que ocorreu
mesmo quando este participou e testemunhou os fatos e poderia,
portanto, dar-nos uma descrição diferenciada da vida. Parece que há
sempre uma narrativa coletiva privilegiada no interior de um mito ou
de uma ideologia. E, essa narrativa explicadora e legitimadora, serve ao
poder que a transmite e a difunde. (BOSI, 2003, p. 17-18).

Assim, a memória é a forma viva da preservação do passado, e ela não se faz


somente através do indivíduo a qual pertence, mas tem uma dependência com tudo o que
compõe o seu ciclo social, como a sua família, amigos, espaço e tempo, entre outros
fenômenos que poderão influenciar na formação da memória e identidade do indivíduo,
questões evidentes na obra de Frida ao pintar a si, seus amores e seus familiares.
E, para a produção deste trabalho e análise referente à memória, à imaginação, à
dor, à imagem e a voz feminina presentes em parte do trabalho produzido por Frida Kahlo
após o acidente de 1925, elegemos as seguintes obras: Autorretrato con traje de
terciopelo (1926), El tiempo vuela (1929), Autorretrato en la frontera entre México y
Estados Unidos (1932), Las dos Fridas (1939) e La columna rota (1944).
278

Disponível em: <https://tomandolugar.wordpress.com/2014/07/26/mulheres-da-


historia-obras-de-frida-kahlo/> Acesso em: 18 de setembro de 2016.

Em Autorretrato con traje de terciopelo98 (1926), considerado como o primeiro


trabalho de destaque feito pela artista e foi pintado para o seu namorado Alejandro Gómez
Arias, pois eles tinham terminado o relacionamento, mas Frida não aceitava e tinha
esperanças de reconquistá-lo. E, por meio desta obra, Diergo Rivera teve contato e se
interessou pelo trabalho de Frida.

Este autorretrato, influido por la pintura del Parmigianino o Modigliani,


constituye el primer cuadro profesional de la artista. Lo pintó para su
novio, Alejandro Gómez, que la había abandonado y a quien pretendía
recuperar de esta forma. Le explicó que el mar de fondo es ‘un símbolo
de la vida’ y le pidió que lo colocase a baja altura a fin de poder mirarle
a los ojos. Con una postura a medio camino entre la artificiosidad y la
decoración, Frida, en correspondencia con el escenario que constituye
su rostro, se presenta en medio cuerpo, un tanto hierática en su posición
y con una expresión llena de enigmas. Al dorso de este lienzo escribió

98
Autorretrato com vestido de veludo (1926). (Tradução noss).
279

en alemán: ‘Hoy sigo, siempre, todavía’, indicio inequívoco de que no


había olvidado a Gómez Arias99. (SÁNCHEZ, 2008, p. 36-37).

Na obra, encontramos uma Frida séria, relaxada, tranquila e serena, buscando unir
ou ligar seu grande amor daquele período a ela. E, de acordo com Herrera (2011), uma
forma de súplica visual, uma oferenda de seu amor, reflexo de um momento em que ela
teve a sensação de que havia perdido a pessoa a quem mais amava (naquele momento).
“Uma obra sombria e melancólica, em que ela conseguiu pintar uma imagem de si mesma
a um só tempo bonita, frágil e vibrante. (HERRERA, 2011, p. 82).
Ao pintar este quadro, Frida tinha somente 19 anos de idade e era como ela se via
naquele momento, apesar de que estava passando por um período muito difícil, ou seja, a
alteridade de Frida se dá a partir de um espelho. A artista pintava a sua vida, a sua
realidade e as suas dores e buscava ser reconhecida por esta identidade, era a sua simples
forma de expressão, de “se mostrar” para o mundo.

Surge una doble presión: un espejo que, por encima de su cabeza, la


hostiga, y el fondo de dolor en ella se sube a la superficie. Dos
elementos esenciales conjugados… y aparece en la pintura. […]
Cuidadosamente ejecutado, ese primer autorretrato da de ella la imagen
de una chica perfecta. Bella, impasible, pero presente con un vestido de
color malva con el cuello bordado, mira directamente a los ojos del que
la contempla. Su mano derecha, fina, alargada, destaca delante del
cuadro, liso como el marfil. Parece que Frida la ofrezca al que quiera
tomarla. Una invitación a Alejandro. […] Alejandro mira ese cuadro
poco ordinario, donación total; le emociona, lo adopta. La mano
ofrecida es tomada por el destinatario.100 (JAMÍS, 1985, p. 111-112).

Possivelmente, a obra tenha feito Alejandro repensar sobre seu sentimento por
Frida e, não muito tempo depois de receber “o espelho” produzido pela artista, eles se

99
Este autorretrato, influenciado pela pintura de Parmigianino ou Modigliani, constitui o primeiro quadro
profissional da artista. Pintou-o para seu namorado, Alejandro Gómez, que a havia abandonado e a quem
ela pretendia, desta forma, recuperar. Explicou-lhe que o mar ao fundo é ‘um símbolo da vida” e lhe pediu
que o colocasse a uma altura baixa a fim de poder mirar-lhe nos olhos. Com uma postura a meio caminho
entre a artificialidade e a decoração, Frida, em correspondência com o cenário que constitui seu rosto,
apresenta-se de meio corpo, um tanto sagrada em sua posição e com uma expressão cheia de enigmas. No
dorso desta tela, escreveu em língua alemã: ‘Hoje continuo, sempre, ainda’, indício inequívoco de que não
havia esquecido a Gómez Arias. (Tradução nossa).
100
Surge uma dupla pressão: um espelho que, acima de sua cabeça, a importuna, e no fundo a dor de Frida
que sobe à superfície. Dois elementos essenciais conjugados... e aparece a pintura. [...] Cuidadosamente
produzido, esse primeiro autorretrato faz dela a imagem de uma garota perfeita. Bela, impassível, mas
presente, com um vestido cor de vinho com a gola bordada, olha diretamente nos olhos de quem a
contempla. Sua mão direita, fina, alongada, destaca-se diante do quadro, lisa como marfim. Parece que
Frida a oferece a quem queira pegá-la. Um convite a Alejandro. [...] Alejandro olha para esse quadro pouco
comum, doação total; ele o emociona, aceita-o. A mão oferecida é aceita pelo destinatário. (Tradução
nossa).
280

reconciliaram. Na verdade, Frida se identificava muito com o seu primeiro autorretrato,


pois este mostrava a si e, também, a uma outra Frida. E, ainda segundo Herrera (2011, p.
83), “o retrato era como um eu alternativo, que compartilhava e refletia os sentimentos
da artista, afim, em certo sentido, à menina de quem Frida ficou amiga nos sonhos de
infância”.
Sartre (2003) nos coloca que o outro existe originariamente em cada indivíduo, ou
seja, ele é o que esse indivíduo não é, sendo que esse outro reflete a única possibilidade
de assimilação do indivíduo, entendendo ser impossível a uma consciência ser
consciência dela mesma.
Em seu segundo autorretrato, El tiempo vuela101 (1929), Frida Kahlo se mostra
uma artista com evidente progresso estilístico. Na verdade, este foi o seu primeiro
autorretrato após o início de seu romance com o muralista, em que aquela Frida
melancólica, triste, pálida, ou seja, aquela mexicana adolescente, apaixonada, apresentada
a Alejandro, desapareceu. Herrera (2011) coloca que nesta obra aparece uma Frida com
características e traços mais contemporâneos.

Agora, vemos uma moça contemporânea de bochechas rosadas


emoldurada por cortinas – acessório adotado por artistas populares e
retratistas coloniais e recurso que servia muito bem aos pintores naïf
(incluindo Frida), já que eliminava o problema de situar de maneira
convincente a figura do cenário. Frida parece viçosa em vários sentidos
da palavra. Ela encara o observador com uma intensidade tão
imperturbável que levou uma pessoa que a conheceu nessa época a
descrevê-la como “fulgurante como uma águia”. (HERRERA, 2011, p.
126-127).

101
O tempo voa (1929). (Tradução nossa).
281

Disponível em: <http://www.iocomunica.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Auto-


Retrato-O-tempo-voa-1929-Frida-Kahlo.jpg> Acesso em: 22 de setembro de 2016.

Na obra, a blusa branca em algodão e de aspecto simples, substitui o elegante e


refinado vestido, assim como outros elementos do primeiro autorretrato são substituídos
neste segundo. Nele, o avião e o relógio trazem a ideia de que realmente “o tempo passa
voando”.

Orgullosa tanto de sus raíces precolombinas como de las criollas,


simbolizadas respectivamente por el collar de jade y los aretes de oro
con piedras de aguazul y amatista, Frida dispuso tras de sí dos símbolos
de inequívoca modernidad. El reloj quizá hace referencia a la época de
su convalecencia, aludiendo a quien sufrió un calvario mayor, a la vez
que actúa a modo de símbolo del ciclo metafórico de muerte y
resurrección. El avión anuncia un futuro promisorio102. (SÁNCHEZ,
2008, p. 53).

102
Orgulhosa tanto de suas raízes pré-colombianas como das criollas, simbolizadas, respectivamente, pelo
colar de jade e os brincos de ouro com pedras de azul água e ametista, Frida dispôs atrás de si, dois símbolos
de uma modernidade inequívoca. O relógio, talvez, faz referência à época de sua convalescência, aludindo
a quem sofreu um calvário maior, ao mesmo tempo em que atua em forma de símbolo do ciclo metafórico
de morte e ressurreição. O avião anuncia um futuro promissor. (Tradução nossa).
282

Nesta segunda obra autobiográfica, com o objetivo de passar uma identidade de


uma Frida alegre, mexicana e independente de seu primeiro relacionamento, ela aparece
de forma impetuosa e segura o bastante para “mandar” que o pintor mexicano descesse
do andaime, até o térreo da escola preparatória onde ele estava trabalhando para atendê-
la. Porém, ela trazia consigo um encanto para que ele o tenha feito com tanta boa vontade
e entusiasmo. Frida Kahlo tinha um comportamento característico e que a diferenciava:
criava e se recriava.
Para Ostrover (2002) a percepção de si mesmo é um traço característico da
criatividade humana e o potencial de criador do homem pode ser encontrado na história
como um fator de transformação e de realização, sempre motivado por necessidades
concretas e novos desafios. Assim, este potencial criado inerente ao seu humano, afeta o
mundo físico, a própria condição humana e os contextos culturais, sendo os processos de
criação ocorrem no imaginário, no âmbito da intuição humana.
Frida Kahlo percebia a si como mulher latina e como sujeito inserido em sua
cultura e, neste caso, a mexicana, questão encontrada na obra, cujo título é Autorretrato
en la frontera entre México y Estados Unidos (1932), em que a pintora reconhece o valor
que o seu país tem para ela, mostrando a saudade que está sentindo de sua família e de
seu lugar de origem. Por conta destas questões, Herrera (2011) nos mostra Frida em um
estado de espírito mais crítico e rompendo determinados padrões relacionados ao gênero
feminino para a época.

Aqui sua espirituosidade, embora não seja menos evidente, é incisiva.


Por exemplo: ela está usando um vestido cor-de-rosa e antiquadas luvas
de renda, traje “adequado” para uma noite de festa de Grosse Pointe; na
mão esquerda, desafiando o decoro, ela segura um cigarro; na mão
direita, uma pequena bandeira do México. (HERRERA, 2011, p. 191).
283

Disponível em:
<http://www.creativoshoy.com/wp-
content/uploads/2015/01/KQT2ZAS6dtHRD5rSRCLDWB8D.jpeg> Acesso em: 22 de
setembro de 2016.

Pela primeira vez em suas obras, Frida coloca lua e sol juntos no céu, sendo o
mesmo céu para o México e para os Estados Unidos é noção do povo asteca (e mexicano)
de guerra entre a luz e as trevas, abordando a preocupação com sua cultura mexicana de
vida e morte.

A la luz del día, el cuadro tomaba forma, desvelando su mundo de


entonces, ordenándolo. A la izquierda, Estados Unidos, quizá sólo
Detroit: tuberías, aparatos e hilos eléctricos, al fondo, una fábrica en
cuya chimenea está escrito el nombre FORD y el humo forma una nube,
edificios. A la derecha, un templo azteca, restos precolombinos, en el
cielo, el sol y la luna, y sobre todo, plantas y flores cuyas raíces están
pintadas en sección. De pie entre esos dos mundos tan opuestos, aquel
en el que ella tiene sus raíces y aquel que está unido al primero tan sólo
por el contacto eléctrico. […] Frida siempre seria.103 (JAMÍS, 1985, p.
175).

103
À luz do dia, o quadro tomava forma, desvelando seu mundo de então, ordenando-o. À esquerda, Estados
Unidos, talvez somente Detroit: canalizações, aparelhos e fio elétricos; ao fundo, uma fábrica cuja chaminé
está escrito FORD e a fumaça forma uma nuvem, edifícios. À direita, um templo asteca, restos pré-
284

Seu desejo era voltar para casa, para o México. Vestida como se estivesse pronta
para uma festa, comemorando o regresso ao seu país. Parece que voará, questão
identificada por suas sobrancelhas negras (símbolo do rosto de Frida), unidas em sua testa,
como as asas de um pássaro.
A mesma valorização de si e de sua cultura é possível encontrar em Las dos
Fridas104 (1939), autorretrato composto por duas personalidades que se diferenciam, em
que há uma Frida dividida entre sua dor (física e emocional) e a falta que ela sentia de
Rivera, mas ao mesmo tempo, outra Frida (seu duplo), corajosa, determinada, apaixonada
e esperançosa.
A identidade do duplo nada mais é do que o sentido do paradoxo verbal que a sua
presença representa em um relato ou em uma obra de arte, assim com esta produzida pela
artista mexicana, em que revela uma Frida mais sensível, emotiva, frágil e outra mais
forte, resistente.

El dolor que causó en Frida su separación legal de Diego tuvo su


correspondencia en este significativo lienzo, formado por un mismo
sentir de doble personalidad. Adorada y querida en su parte mexicana,
la Frida europea perdió también una parte de sí misma: del corte en la
arteria brota un hilo de sangre a duras penas contenido por una pinza de
un cirujano. […] La Frida tehuana tiene la mano derecha entrelazada
con la mano de la Frida europea, y en la izquierda sostiene una pequeña
imagen infantil de Diego. Una larga vena roja sale de su marco carmesí.
El retrato del pintor representa, al parecer, la pérdida de un niño y de un
amante. Para ella, eran ambas cosas.105 (SÁNCHEZ, 2008, p. 159-161).

colombianos; no céu, o sol e a lua e, sobretudo, plantas e flores cujas raízes estão pintadas de perfil. De pé
entre esses dois mundos tão opostos, aquele em que ela tem raízes e aquele que está unido ao primeiro
apenas pelo contato elétrico. [...] Frida sempre seria. (Tradução nossa).
104
As duas Fridas (1939). (Tradução nossa).
105
A dor que causou, em Frida, sua separação legal de Diego, teve sua correspondência nesta significativa
tela, formada por um mesmo sentido de dupla personalidade. Adorada e querida em sua parte mexicana, a
Frida europeia perdeu, também, uma parte de si mesma: do corte na artéria brota um fio de sangue a duras
penas contido por uma pinça de um cirurgião [...] A Frida tehuana tem a mão direita entrelaçada com a
mão da Frida europeia e, na esquerda, sustenta uma pequena imagem infantil de Diego. Uma longa veia
vermelha sai de seu marco carmesim. O retrato do pintor representa, ao parecer, a perda de um menino e
de um amante. Para ela, eram ambas as coisas. (Tradução nossa).
285

Disponível em:
<http://www.piscatawaylibrary.org/sites/default/files/Two%20Fridas.jpg> Acesso
em: 23 de setembro de 2016.

A obra Las dos Fridas (1939), terminado logo após o divórcio de Rivera e Kahlo,
encerra em si as emoções que estavam ao redor da crise existente no casamento, crise que
resulta na separação do casal.

A parte da sua pessoa que foi respeitada e amada por Diego Rivera, a
Frida mexicana com o vestido tehuana, tem na mão um amuleto com a
fotografia do marido enquanto criança. [...] Ao lado dela está sentado o
seu alter ego, uma Frida europeia, com um vestido branco de renda. Os
corações das duas mulheres estão à vista, ligados apenas por uma frágil
artéria. [...] Com a perda de seu amado, porém, a Frida europeia perdeu
parte de si. [...] A Frida rejeitada corre o perigo de se esvair em sangue
até a morte. (KETTENMANN, 2015, p. 54).

Frida levou três meses para concluir essa obra que, na verdade, são dois
autorretratos, sendo que um deles representa a mulher mexicana que Rivera tinha amado
e a outra, a Frida que o muralista não queria e não amava mais. Ambas estão com a mão
286

pousada sobre o órgão sexual e o retrato de Diego em formato de óvulo parece representar
a perda de seu grande amor e, ainda, um de seus abortos e a perda de um filho.
Segundo Mayayo (2008) que cita Herrera (2011), a Frida que Diego não quer mais
usa um vestido branco e a outra com roupa das índias tehuanas e sua face um pouco mais
morena que a face de sua companheira, que parece espanhola, indicando a herança dupla,
indígena e mexicana, além de europeia.
Ao produzir essa tela, Frida Kahlo nos mostra sua personalidade dupla,
protegendo-se e se confortando (uma Frida sustentando e cuidando de outra), lutando
contra a sua dor emocional e contra o abandono, assim como a sua batalha buscando
minimizar a dor física que a acompanhou desde o acidente sofrido aos 18 anos até a sua
morte. Dor, mutilação e sofrimento representados na obra La coluna rota106 (1944), por
exemplo.

Cuentan sus alumnos que este cuadro no tenía inicialmente la sábana


que envuelve la parte inferior del torso, pero Frida corrigió la pintura al
pensar que el pubis desnudo podía desviar la atención del mensaje de
dolor de su rostro. Los surcos del árido paisaje y los múltiples clavos
hincados en su cuerpo expresan de forma contundente su dolor físico y
moral. […] El sentimiento de angustia y soledad de la artista aparece
acentuado por los clavos que atraviesan su cara y su cuerpo, que
representan su suplicio vital debido a las innumerables operaciones
quirúrgicas a las que fue sometida. Las lágrimas, por su parte, aluden
tanto a su dolor físico como psicológico107. (SÁNCHEZ, 2008, p. 207 e
2011).

106
A coluna partida (1944). (Tradução nossa).
107
Contam seus alunos que este quadro não tinha, inicialmente, o lençol que envolve a parte inferior do
torso, mas Frida corrigiu a pintura ao pensar que a púbis desnuda poderia desviar a atenção da mensagem
de dor de seu rosto. As estrias da árida paisagem e os múltiplos pregos fincados em seu corpo expressam
de forma contundente a sua dor física e moral. [...] O sofrimento de angústia e solidão da artista aparece
acentuado pelos pregos que atravessam sua cara e seu corpo, que representam seu suplício vital devido às
inúmeras cirurgias, as quais fora submetida. As lágrimas, por sua parte, aludem tanto a sua dor física como
psicológica. (Tradução nossa).
287

Disponível em:
<http://paintingandframe.com/uploadpic/frida_kahlo/big/the_broken_column_1944.jpg>
Acesso em: 23 de setembro de 2016.

Em seu imaginário, Frida entendia que estava aprisionada, por conta do colete de
aço que vestira, após mais uma cirurgia, considerava-se inválida. Uma grande força
interior e o destaque dado ao sofrimento permeiam toda obra pictórica e escrita da artista.

Para retratar a solidão do sofrimento físico e emocional, Frida se pintou


isolada, tendo ao fundo uma planície imensa e árida. As ravinas
cortando a paisagem são uma metáfora do seu corpo ferido, como o
deserto privado de sua capacidade de gerar a vida. Ao longe, uma nesga
de mar azul sob um céu sem nuvens. Na tela, A coluna partida, o mar
parece representar a esperança de outras possibilidades, mas está muito
longe, e Frida está tão alquebrada que o oceano está totalmente fora de
alcance. (HERRERA, 2011, p. 102).

E, para intensificar a dor e a angústia presentes nesse autorretrato, há pregos


torturando o seu corpo nu e exposto, lágrimas em seu rosto com características indígenas,
mas parece não chorar. Possivelmente, a obra produzida por Kahlo que mais se
288

relacionada com estas questões é La columna rota (1944), pois, nela, há um sentimento
de paralisia que acompanha e atormenta Frida. Herrera (2011, p. 100), coloca que “é a
mistura de franqueza e artifício, integridade e autoinvenção que dá aos autorretratos sua
urgência, sua força de aço imediatamente reconhecível”.
A produção de Frida Kahlo analisada neste capítulo faz parte de uma imensidão
de autorretratos produzidos pela artista após o acidente sofrido em sua adolescência,
evento que mudou toda a trajetória de vida da pintora mexicana.
Nas obras Autorretrato con traje de terciopelo (1926), El tiempo vuela (1929),
Autorretrato en la frontera entre México y Estados Unidos (1932), Las dos Fridas (1939)
e La coluna rota (1944) é possível identificar traços do sofrimento, do trágico e da dor de
uma mulher que se tornou referência em arte e sentimento para seu tempo. E, segundo
Viné-Krupa (2014), “a memória é, em sua obra um lugar de encontro entre ela e o outro,
a fim de construir sua história, sua identidade”.

Referências

ASSUNÇÃO, Fernanda Rodrigues de. O universo de Frida Kahlo à sombra da


experiência revolucionária mexicana: pintura, corpo e identidades, das décadas de 1920
a 1950. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação da
Universidade Federal de Goiás, sob a orientação da Professora Doutora Fabiana de Souza
Fredrigo, 2013.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.

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Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

FUENTES, Carlos. Introducción. In: El Diario de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato.


Cidade do México: La Vaca Independiente, 1995.

HERRERA, Hayden. Frida: a biografia. Tradução de Renato Marques. São Paulo: Globo,
2011.

KAHLO, Frida. El Diario de Frida Kahlo: un íntimo autorretrato. Cidade do México: La


Vaca Independiente, 1995.

LEJEUNE, Phillipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria


Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

MAYAYO, Patricia. Frida Kahlo Contra el mito. Madrid: Ediciones Cátedra, 2008.
289

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 16. ed. Petrópolis: Editora


Vozes, 2002.

SÁNCHEZ, Laura García. Frida Kahlo. Madrid: Tikal Ediciones, 2008.

SARTE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. Paulo


Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2003.

VINÉ-KRUPA, Rachel. Autobiografia e memórias na pintura e no Diário de Frida Kahlo.


In: FUKELMAN, Clarice (Org.). Eu assino embaixo: biografia, memória e cultura. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 2014.
290

POESIA E MEMÓRIA EM VIRGÍNIA VENDRAMINI

Lucilaine Tavares da Silva Anschau108

Introdução

Virgínia Celeste Vendramini nasceu no ano de 1945 em Presidente Prudente no


Estado de São Paulo. Aos 16 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro onde cursou a
faculdade de Língua Portuguesa e Literatura. Exerceu o magistério durante 28 anos.
Iniciou sua trajetória de criação poética ainda na adolescência, quando escreveu
seu primeiro poema. Desde então, publicou cinco livros de poesia: Rosas não (1995);
Primavera urbana (1997); Matizes (1999); Trajetória (2004) e Hora do Arco-íris (1998).
No entanto, a autora não escreve continuadamente, desenvolveu a construção poética e
as artes plásticas de forma intercalada. Dedicou-se à escrita de poemas na década de 70,
depois, na década de 90, retornando em 2004.
No campo das artes plásticas, executa a tecelagem de tapetes, pintura com os
dedos e as mãos, as esculturas e moldagens em cerâmica e, recentemente, as esculturas
em bronze. Aprendeu a arte de tecer telas e tapetes em 1973, que idealiza e executa,
segundo técnica própria: conta cada quadrado que compõem a tela com rigor acurado e
começa o trabalho a partir dos cantos externos para o centro da peça, sem um desenho
prévio.
Virgínia Vendramini recebeu os prêmios: Murilo Mendes, com a obra Hora do
Arco-íris (1998) no Concurso Livros Inéditos, realizado pela Editora Alba, e a obra
Matizes foi vencedora do II Concurso Blocos de poesia em 1999. Além disso, uma série
de trabalhos em tapeçaria intitulada Caleidoscópio – elaborados entre 1998 e 2000 –
ilustra a capa da antologia poética e o livro de contos Mato, Mar e Asfalto, de João Delduk
(1999).
A partir de 1994, Virgínia Vendramini começou a expor sua arte em tela e tapetes
em amostras individuais e coletivas, apresentando-as nos Estados de Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Rio de Janeiro. Em 1999, recebeu o convite para que seus trabalhos de
tecelagem fossem retratados nos cartões da empresa carioca de telefonia – Telemar –
fazendo parte da Coleção Tapetes e Poemas, estampando uma tapeçaria na frente do

108
O presente texto é parte de minha dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação
em Letras da Unioeste, sob orientação do Professor Antonio Donizeti da Cruz (Unioeste).
291

cartão e, no verso, um poema. Em 2000, iniciou seu trabalho com tinta acrílica, utilizando
os dedos e as mãos para pintar. No entanto, não prosseguiu nesta técnica por muito tempo,
pois, segundo a artista, faltou-lhe a mão do mestre, o ambiente propício, o estímulo da
comparação e a troca de experiências.
Para a compreensão de sua produção artística, deve-se considerar sua história de
vida: Virgínia Vendramini nasceu com menos de 10% da visão por causa de um glaucoma
congênito e grave lesão no nervo ótico, cresceu enxergando pouco, um pequeno resíduo
visual. Ficou totalmente cega aos 16 anos e, desde então, se utiliza da memória de cores
e formas como fonte para sua criação artística nos diversos tipos e estilos de arte.
A perda da visão pode ser verificada como um fator de essencial importância para
o delineamento de pontos comuns na construção de imagens poéticas e da sua criação na
tecelagem, que serão evidenciadas neste estudo. A partir do conhecimento da sua história
de vida, é possível uma reflexão acerca de sua produção centrada nas vivências infantis.
Nesta perspectiva, pretende-se evidenciar que, tanto a criação poética como as
obras de tecelagem, de Virgínia Vendramini, as artes retratam, intuitivamente, contextos
da memória que a artista guarda de sua infância, reconhecendo que as lembranças
armazenadas na memória são evocadas do passado, mas revividas no presente.

Poesia: Traços da Memória

A palavra poesia tem origem no termo “poiesis”, entendido como o belo que existe
nas coisas. Etimologicamente, a palavra “poiesis” deriva do vocábulo grego “poien”que
carrega o significado de fazer, produzir e criar (SÁ, 2014).
Decorrentes desta análise etimológica, surgiram muitas tentativas de definição da
poesia, com a pretensão de delimitar sua abrangência, profundidade e entendimento. No
entanto, a poesia é um termo de difícil conceituação e delineamento. A poesia é a palavra
que se reveste de sentidos que não ficam inscritos em universos meramente linguísticos.
Alfredo Bosi (2000), estudioso da linguagem poética, afirma que a poesia é um
tesouro das experiências humanas, sendo a forma pela qual é conservada, dialetizada e
levada à frente. A poesia, além de atividade comunicativa, é uma atividade de expressão
do espírito, que nasceu com características formais que se mantêm, como o ritmo, as
repetições, as figuras, as melodias e as metáforas.
Octavio Paz (2012, p. 19), em sua obra “O arco e a lira”, afirma que a “poesia é
metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso faz fronteira com a magia, a
292

religião e com outras tentativas de transformar o homem e fazer deste e daquele o outro
que é ele mesmo”.
A escolha de uma palavra e não de outra, de um traço, e não de outro, responde
ora a determinações do estilo da época (a face cultural do gosto), da ideologia e da moda,
ora a necessidades profundas de raiz afetiva ou uma percepção original da realidade. A
sonoridade da palavra compreende as conotações existenciais difusas quando são
reproduzidas pela voz do narrador ou leitor, tomando assim, uma infinidade de traduções.
(BOSI, 2000).
Em “A poética do devaneio”, Bachelard (2009, p. 96) afirma que “somente pela
narração dos outros é que conhecemos a nossa unidade. No fio de nossa história contada
pelos outros, acabamos, ano após ano, por parecer-nos com nós mesmos.” Também as
palavras, segundo o filósofo, “foram tão amiúde definidas e redefinidas, ordenadas com
tamanha precisão em nossos dicionários que acabaram se tornando verdadeiros
instrumentos do pensamento.” (BACHELARD, 2009, p. 33).
A poesia é uma das produções humanas que testemunha, da melhor maneira, a
intensidade do homem ser no mundo. A criação poética se tornaria eterna não apenas pelo
fato de ressignificar e reencantar o homem continuadamente, mas pela característica de
“recolher-se em si mesma, palavra que se dobra sobre palavra.” (BOSI, 1996, p. 260).
Para Cruz (2012, p. 26), “o poeta se volta à experiência poética no afã de atingir
o equilíbrio e a contenção da linguagem, pois na procura mais essencial da palavra para
transmitir uma emoção, ele nomeia as coisas criando uma nova realidade” que pode
revelar uma nova condição humana pela imaginação que se origina na busca interior.
A poesia é uma forma de expressão que possibilita manter a eficiência da
linguagem carregada de intencionalidade, diversidade, densidade e significados que
combinam palavras, sons e ritmos. No ato de escrever poesias, o poeta revela seu estado
emocional que pode (e deve) ser decifrado, mesmo que imbricados de subjetividade
própria, condicionam formas únicas de expressão pela condição de visão e sentimento de
mundo, dando contornos particulares aos sentimentos e vivências experimentadas ou
imaginadas.
Richter (2013) considera a poesia uma das produções humanas que melhor
testemunha o modo pelo qual os afetos impulsionam os movimentos do homem para a
produção de saberes. Desta forma, torna-se imprescindível ao poeta observar o papel da
lembrança na tarefa de expressar a afetividade humana no texto poético. A criação
poética, que acontece na construção de uma poesia, deixa transparecer as características
293

psicológicas do poeta.
Portanto, o poeta trabalha com a palavra, frase, interpreta, transforma e
ressignifica de forma que, ao final do trabalho, a imagem produzida possa ser entendida
pelo leitor da maneira pensada por ele, e que possibilite, também, a cada um construir sua
própria imagem e interpretá-la de acordo com as suas referências. Neste sentido, na
reflexão referente à criação poética, a poesia pode ser entendida, antes de mais nada, como
o lugar da memória.

A Criação Poética pela Experiência e Memória

A memória é considerada uma faculdade humana encarregada de reter


conhecimentos adquiridos previamente. O objeto é designado por um “antes”
experimentado pelo indivíduo, que o armazena em algum lugar do cérebro, recorrendo a
ele quando necessário. Esse objeto pode apresentar um valor sentimental, intelectual ou
profissional, de modo que a memória pode remeter a uma lembrança ou recordação; mas
não se limita a isso, porque compete àquela faculdade o acúmulo de um determinado
saber, a que se recorre quando necessário (ZILBERMAN, 2006).
Em sua obra “Matéria e Memória”, Bergson (1990) discursa com riqueza de
detalhes sobre a memória. O estudioso classifica a memória de dois modos: a memória
que se aplica ao hábito e a que se aplica de forma espontânea como o trabalho do espírito.
O primeiro modo representa a memória que é apresentada repetidas vezes com a
percepção de que a memória, se ausenta na medida que não é necessária, apresentando-
se de forma automática. Este tipo de memória é utilizado, por exemplo, no ato de dirigir
um automóvel. O segundo modo é próprio da memória espontânea, apresenta-se como
“um trabalho do espírito que irá buscar no passado, para dirigi-las, apresente as
representações mais capazes de se inserirem na situação atual.” (BERGSON, 1990,
p. 82).
Pelo fato de o passado não se conservar plenamente no decorrer do tempo, a
memória torna-se um retorno a acontecimentos, lugares e sensações que se distanciam
cada vez mais. O passado é restaurado no presente, a memória pode ir e vir, atendendo às
solicitações do presente. O passado não pode ser considerado um tempo estanque, pois
não se conserva inteiro no decorrer do tempo nem com a totalidade da consciência do
espaço.
294

Para Walter Benjamin (1994), o passado é sempre uma elaboração do presente. O


passado, ao pulsar involuntariamente a memória, atinge o presente sem ser convidado,
produz a possibilidade de recriar ao acaso o passado. Trata-se da memória que se apossa
do indivíduo arbitrariamente e que permite um processo de reconstrução do passado no
presente.
É sob este prisma que se tenciona apontar aqui a memória em Benjamin (1994) e
relacioná-la com a infância. Na visão deste autor, a infância não é tomada como um
passado distante e uma visão de mundo limitada, mas, ao contrário, é repleta de um saber
onde a sensibilidade e a racionalidade operam lado a lado.
Neste contexto, a criação poética é fruto da memória, é originada pela memória
que se demonstra como um terreno fecundo para o desenvolvimento da criação poética.
A prática da linguagem poética apresenta uma essencialidade, visto que, limpa a palavra
de vulgaridades linguísticas, do desgaste habitual e proporciona a continuidade de
ressignificações e da potencialização do som (BOSI, 2000).
A linguagem torna-se um elemento fundamental para a organização da memória,
é o elemento que baseia a identificação social da memória individual. Pode-se dizer que
a poesia torna-se uma linguagem reflexiva, as palavras, as metáforas, as interpolações, as
nuances, os adjuntos, os apostos, os vocativos; formam um conjunto reflexivo que
pressupõe muito mais que pensar, torna-se significativo a tal ponto que o leitor, relembra,
revive o que está escrito, tornando-se parte da poesia. O ato de evocar memórias e
ressignificá-las constitui uma ação comprometida com experiências construídas no
presente. Dando ao leitor a oportunidade de interpretar as experiências sob um novo olhar,
fundamentado em novas intervenções, com novos sentidos que podem influenciar
significativamente os caminhos do presente.

Virgínia Vendramini - Construção Poético-Plástica

Neste estudo, pretende-se focar na revisitação às memórias e lembranças da


infância de Virgínia Vendramini, visto que a temática é recorrente em sua produção
poética. No decorrer de alguns poemas de Virgínia, pode-se perceber o resgate de
personagens, ambientes e cenas de infância que estruturam sua obra tanto poética como
na tecelagem. Estas lembranças pertencem tanto ao universo mágico e mítico quanto à
sua vivência real, onde a memória mostra o que há de mais profundo e nunca esquecido
de sua infância. O constante aceno ao passado, distante de sua realidade adulta, permite
295

que o vivido e o imaginário infantil sejam reavaliados, materializando-se no poema,


revelando fragmentos de experiências vividas e histórias condicionadas conscientemente
e /ou inconscientemente de fatos passados.
Desta forma, optou-se pela análise superficial de algumas obras da produção
artística de Virgínia Vendramini e as relações que as artes estabelecem com a infância da
autora. As produções escolhidas para este estudo foram os poemas: “A casa”, “Trens” e
“Gula”, e as tecelagens intituladas “Elos”, “Renascer” e “Matizes”.
Nos versos do poema “A Casa”, que se apresenta a seguir, a imagem da casa tem
um significado muito importante, e isso nos mostra que a imaginação está impregnada de
realizações que, mesmo adormecidas ou escondidas, continuam vivas na memória.

A CASA

Tenho-a bem nítida na memória.


Já era velha quando eu a conheci.
Construída rusticamente,
Com tábuas mal alinhadas,
Suas paredes mostravam em cada mancha,
Camadas da pintura
Tantas vezes renovadas

Tinha, contudo, uma aparência alegre,


Com ampla varanda na frente,
Toda cercada de plantas.
À direita uma amoreira,
Do lado oposto,
Uma latada de maracujá,
Oferecendo frutos e sombra amena.

Maltratada pelo tempo,


Sem nenhum conforto,
Para mim, no entanto, era encantadora.
Tenho-a tão clara na lembrança...,
Com seus ruídos e odores.

Era em tudo diferente


Do meu mundo confortável.
Tinha goteiras cantando nos baldes
Nas noites de chuva forte,
Canções de galos madrugadores
Anunciando a manhã,
Colchões de palha de milho,
Travesseiros fofos de penas,
Roupas de cama grosseiras
Cheirando a ervas e alfazema.

Sobre o fogão de lenha, sempre aceso,


O bule de ágata azul com flores desbotadas,
296

O café sempre quente,


Torrado e moído em casa,
Seu aroma invadindo tudo,
Misturado ao cheiro acre da fumaça.

O quintal enorme, o galinheiro,


A horta, a parreira, o poço,
A roupa lavada coarando ao sol sobre a grama...,
O banho morno na bacia grande,
O almoço na cozinha clara...

Tenho saudade dessa casa


E do carinho que nela morava,
Da figura miúda e zangada de minha avó...
De gênio difícil, mas coração terno,
Econômica nos afagos,
Tinha um sorriso sempre escondido
Atrás do rosto moreno e enrugado.
(VENDRAMINI, 1995, p. 21-22).

Figura 1 – Elos
Fonte: VENDRAMINI

O resgate acerca das memórias de infância com olhar cuidadoso sobre suas
lembranças foram rememorados pela escrita de Virgínia Vendramini, fazendo-nos
perceber a importância de conhecer e refletir sobre as memórias e histórias de cada um
que constrói e dá significado à própria vida. As recordações de infância são resgatadas
pela autora que recupera e organiza as vivências do seu eu-criança, como no trecho “com
297

seus ruídos e odores”, procurando compreender quem foi e quem é, num processo de
individuação. Ao narrar os primeiros momentos da vida, retorna à infância para
rememorar vivências e situações pessoais e familiares que dela fizeram parte, convivem
e constituem o eu-lírico.
O eu-lírico refere-se ao passo como se estivesse revivendo os fatos e as situações
tão interiorizadas em seu ser, com a descrição das características dos objetos envoltos em
precisos adjetivos que podem ser verificados pelos versos “Colchões de palha de milho,
travesseiros fofos de penas”, os quais são vivenciados nitidamente em sua memória. O
poema também alcança objetos, pessoas, eventos, situações e lugares para retratar
momentos de saudades e mais saudades, inclusive “Da figura miúda e zangada de minha
avó”.
Estes momentos transbordam de seu interior, desde a velha casa onde viveu seus
primeiros momentos de vida, até o cheiro de ervas e o aroma do café. Tudo isso nos
mostra como o universo infantil é retratado com riqueza dos detalhes a partir de
rememorações reconstituídas através da memória. O eu-lírico que se desdobra no sujeito
criança em sua ingenuidade e despropósito com que descreve o objeto, aguçado pela
observação dos cenários que abstrai episódios cotidianos da vida simples durante a
rememoração, demonstrando que todo ser humano, ao construir sua história, interioriza
imagens internas particulares que são instauradas a partir das experiências vividas.
A obra de tapeçaria “Elos” reproduz uma perspectiva de proteção e alguma coisa,
assim como a casa sugere, resguardando algo muito valioso, que deve ser muito bem
cuidado, preciosidade a ser conservada, inscrita em tracejados tal como cercas. As linhas
representam delimitações e contornos que demonstram a lei da pregnância, que Alfredo
Bosi (1996, p. 23) afirma ser um princípio pelo qual “as forças em campo acabam se
compondo em um mínimo ou em um máximo de simplicidade. No primeiro caso, a
imagem parece uniforme. No segundo, mostra-se um todo que o integra”.
No diálogo com a poesia contemporânea brasileira de autoria feminina, torna-se
improcedente separar tempo e espaço, já que se recriam de diferentes maneiras a
espacialização do tempo na memória. Por outro lado, o mais importante é a capacidade
para criar algo que, ganhando forma, se torna possível, pois há uma força prospectiva na
imaginação, mantendo a presentificação do ausente a partir do percebido ou vivenciado.
Partindo da obra de Virgínia, podemos citar o poema intitulado “Trens” que
possibilita, através das lembranças armazenadas no passado, a figura do trem que aguça
o imaginário de muitas crianças, inclusive o da autora.
298

TRENS

O trem da memória
Correndo nos trilhos
De velhas histórias
Repete o estribilho:

Tem gente chegando,


Tem gente partindo,
Tem gente voltando,
Tem gente fugindo...

Para frente, para longe,


Para o mundo além do monte,
Passa pasto, passa poste,
Passa mato, passa ponte...

Correndo no escuro,
O trem do futuro
Guardando segredos
Nos túneis do medo...

Corre o vento, passa o tempo,


Vai cidade, vem saudade,
Vem vontade de voltar
Para onde já não há.

O trem da memória
Nos trilhos da vida
Repete as histórias
Há tanto esquecidas...
(VENDRAMINI, 2004, p. 15).

Figura 2 – Renascer
Fonte: VENDRAMINI
299

A poesia Trens deixa claro que a memória repete “velhas histórias” que se
pressupõe vividas na infância que desperta, incontáveis vezes, a “vontade de voltar/ para
onde já não há”, para um tempo e um lugar que não existe mais concretamente, mas que
podem ser re-vivenciados tantas vezes quantas possíveis. A conjunção do tempo e do
espaço é verificada no poema pela expressão “o trem da memória” que está presente no
início e no final do poema, sendo essencial e permanente.
Analisa-se, na produção poética de Vendramini, que a linguagem é empregada
como ferramenta, como meio de construção de espaços possíveis. Dessa forma, os versos,
ao desnudarem as imagens da vida cotidiana, tornam-se instrumento de lembranças de
um momento em que a memória “repete as histórias,/ há tanto esquecidas”. Constata-se
que os poemas da autora possibilitam uma viagem ao mundo criado pela linguagem
poética, evidenciando o passado e suas memórias na representação de um tempo perdido.
O poema lembra o balanço de um trem que se limita a registrar tudo o que vê,
onde as imagens, mais uma vez, aparecem de forma significativa e concreta. A
musicalidade também é algo que chama a atenção por conta dos sons poéticos que as
palavras representam em sua organização. Ilustremos com um exemplo: “Tem gente
chegando/Tem gente partindo/Tem gente voltando/Tem gente fugindo”.
A criação de imagens acústicas que remetem aos sons produzidos por um trem em
movimento, como também a musicalidade criada pela métrica livre, nos faz lembrar do
poema “Trem de ferro” de Manuel Bandeira. É interessante observar, também, repetições
de alguns versos que, colocados propositalmente, enfatizam e parecem instigar o leitor a
encontrar a criança que há dentro de si, independente de sua idade, conduzindo-o a uma
viagem de trem. O ritmo, que é comum a toda expressão verbal, é transformado, na
poesia, em elemento cheio de significado e, aquilo que é normalmente despercebido,
torna-se matéria da escrita poética. Dessa forma, o poema nos leva a viajar no trem, não
só pelo seu conteúdo, mas principalmente pela sua forma sonora.
A tecelagem com o nome “Renascer” apresenta um traçado duplo que corta o
desenho diagonalmente, lembrando os trilhos do trem, retilíneos e intercalados por
pequenos riscos que representam os dormentes (travessas em que se assentam os trilhos
de estrada de ferro). O canto inferior esquerdo e superior direito do tapete apresentam
construções similares que podem representar o passado e o presente, a partida e a chegada,
e a repetição de histórias como reveladas no poema.
300

Nesse sentido, o processo de criação literária procura reconstruir conscientemente


as marcas de um percurso de momentos vividos pela criança de ontem, no adulto de hoje,
como se fossem retalhos daquilo que ficou retido na lembrança da escritora. Estas
lembranças a acompanham e constituem a presença do ontem dentro do presente, é a
própria memória pulsando em formas diversas. É, dessa forma, que Virgínia sustenta
lembranças de um passado tão significativo, onde consegue resgatar rastros da infância
através de imagens perpassadas pela memória.
O rememorar torna-se uma ação diferenciada de lembrar e memorizar, visto que
a rememoração exige a transfiguração do cenário e a reconstrução dos significados.
Vendramini opta por uma retrospectiva aos momentos que despertam saudade, em que
revive cada minuciosidade e a descreve com riqueza de detalhes. Dessa forma, pela
imagem, o passado, o presente e o futuro se reconfiguram a partir das poesias, por possuir
uma temporalidade própria, dinâmica. Por isso, a poesia de Virgínia Vendramini não deve
ser tomada pelo leitor como estanque, visto que a revisitação ao passado é alterada com
as descrições do presente, que denota que a confluência entre passado e presente é natural.
Pela análise, as palavras poéticas e as tramas coloridas de Virgínia Vendramini no
Poema “Trens” e no Tapete “Renascer” traduzem a força da memória contida em seu ser
e a constância classificada neste estudo pela rememoração poética que instigam o
momento criador. As palavras levam ao ato de rememoração, o qual origina a construção
das imagens poéticas. A compreensão do significado de rememoração poética pode ser
sustentada pelo princípio de que o saber humano é fragmentado.
O poema “A Gula” da obra “Matizes”, de Virgínia, também retrata os rastros da
infância enfatizados anteriormente na citação de Santo Agostinho. Por estes rastros dos
tempos vividos, os momentos mágicos da infância são resgatados através da gula que é
algo típico da criança. Depara-se, mais uma vez, ante a incontestável sensibilidade, como
uma característica básica de seus versos advindos do lirismo que permite o sentimento
profundo de todas as coisas, Virgínia ilustra imagens ricas, profundas e simples:

A GULA

Ainda guardo na boca


O gosto de fruta verde
Comida quente do sol.

Apenas um pouco de pó...


Bicadas de passarinhos...

Ainda guardo a cobiça


301

Pelas mangas e goiabas


Distante de minha gula.
Belas, nos galhos mais altos...
E guardo no corpo inteiro
Fome e sede insaciáveis
Das coisas doces da infância,
Delícias que são saudade.
(VENDRAMINI, 1999, p. 14).

Figura 3 – Quatro Estações


Fonte: VENDRAMINI

O poema lembra o sabor, o desejo, e as delícias das frutas são referenciadas com
saudade pela memorialista, que recria essas passagens reconstruindo para o leitor
momentos que fizeram parte de sua vida e, ao narrar essas vivências, resgata experiências
marcantes atribuindo-lhes um significado ao vivido.
As poesias de Virgínia Vendramini apresentam uma confluência de imagens que
sugerem o retorno ao passado pelas lembranças e rememorações de eventos, apresentando
temáticas significativas que podem ser visualizadas: “Ainda guardo na boca/O gosto de
fruta verde/Comida quente do sol/Não havia defensivos...”
Percebe-se que a imagem se alicerça nas vivências “Das coisas doces da infância”
que são rememoradas no tempo presente com sentimento de nostalgia. Fenômenos como
o cheiro da terra, calor, palmeira verde, pés descalços na areia, ondas do mar, aroma das
frutas “Belas, nos galhos mais altos...”. Nesses versos, as experiências visual, tátil e
gustativa são presentificadas para compor uma cena repleta de simplicidade, gerada a
partir de um momento cotidiano, no caso, os sabores das frutas vinculadas às memórias
302

que o eu lírico recupera. Estes traquejos despontam como “Delícias que são saudade”.
Por vezes, ao relembrar todo esse universo, a autora parece querer dividir tais
momentos com o leitor, a fim de aproximá-lo de suas recordações da infância. Assim,
através do verso “das coisas doces da infância”, surge conferindo, nessa pequena
composição lírica, um sentimento de ternura e delicadeza na expressão poética
Quando o leitor demonstra percepção de um objeto qualquer como a fruta, a
comida, a boca, a gula e outros elementos que se apresentam no poema, as qualidades,
sensações e significados formam o sentido. Para Paz (2012, p. 114), “o sentido não apenas
é o fundamento da linguagem, mas também de toda e qualquer apreensão da realidade.”
É quase impossível que o leitor não compartilhe com o eu-lírico o prazer pelo
contato com a natureza envolvendo frutos, pássaros, comida e tudo mais. Até porque,
podemos observar em tais fragmentos que, gula, imagem, sabor e perfume se combinam
e completam ao tornar vivo, por meio da lembrança, o apreciado objeto da vida passada.
Ao adentrar nesse universo de recordações, volta-se à poesia que sensibiliza, emociona e
potencializa a riqueza poética que transpassa significados e valores perdidos. Portanto, “o
poema nos faz lembrar o que esquecemos: o que somos realmente.” (PAZ, 2012, p. 115).
As imagens do passado percorrem as poesias de Virgínia Vendramini, sempre
carregadas de sentimentos puros e inocentes, singulares e significativos que evidenciam
uma riqueza de detalhes situando o eu-lírico de forma plena. Esta proposta poética, cria
no leitor a possibilidade e a capacidade de olhar com seus olhos através do olhar da
poetisa.
O colorido da tapeçaria “Quatro Estações” orienta para as significações do
poema, uma vez que na imagem as figuras não são harmônicas e nem assimétricas tal
como as estações, e expressam uma ampliação de alternativas pelo fato de não haver uma
delimitação traçada para o eu-lírico, materializando uma busca incansável. Demonstra
também certa liberdade que pode ser comparada à liberdade vivenciada na infância.
A nomenclatura da peça artesanal remete as mudanças que as estações provocam
que encenam a primavera como início de novo ciclo; o verão é considerado o momento
de plenitude; o outono simboliza o declínio e o inverno um momento de introspecção e
recolhimento. Portanto, considerando ainda as definições de Paz (2012, p. 113) “imagens
poéticas nos dizem algo sobre o mundo e sobre nós mesmos, e que esse algo, embora
pareça um disparate, nos revela quem somos de verdade”.
Por esta perspectiva, as imagens criadas pelo poema tornam-se representação da
identidade de significados e de uma energia de metamorfose em infindável transformação
303

que inter-relaciona todos os saberes, os quais extrapolam, ligam e abrangem a todos os


conhecimentos pela interdisciplinaridade. Esta abrangência interdisciplinar leva à
sensação de pertencimento do leitor, esta identificação individual com as obras artísticas
que remetem a coisas tão conhecidas como se fossem suas, representam a repercussão e
ressonância que estas artes suscitaram.

Considerações Finais

A exaltação da infância nos versos de Virgínia Vendramini não só reconstrói a sua


infância no presente da recordação, como também resgata os tempos passados nas
imagens rememoradas e expressadas artisticamente em suas obras. Pode-se supor que a
artista, pelo fato de manter a visão de forma parcial na infância, possibilitou o
conhecimento e assimilação de formas e cores. Leva a crer que, na fase adulta, sua criação
poética e plástica volta-se, principalmente, a adoção de uma conotação mais intensa aos
assuntos da meninice, quando ainda podia ver, resultando do seu interesse pelo mundo
colorido e cheio de tonalidades que conheceu quando criança.
Das criações poéticas fundadas nas recordações de Virgínia Vendramini,
emergem sentimentos que marcaram sua infância: alegrias, prazer, contemplação,
entretenimento e tristezas. Na leitura das poesias, proporciona ao leitor uma volta ao
passado, fazendo-o recordar de fatos guardados na memória que, com a passagem do
tempo, são deixados de lado e, ao serem lembrados, despertam saudades e histórias.
O universo artístico de Virgínia, mesmo sendo retratado com palavras e traçados
simples, apresenta algo novo que concede às palavras a condição de dizer e revelar ao
mundo suas experiências e vivências de um passado que se faz tão presente. Em diversos
poemas de Virgínia Vendramini, o retorno ao passado, localizado na infância distante,
costuma ser tema recorrente. Portanto, podemos dizer que Virgínia busca resgatar de
forma intensa um passado vivido e ainda vivo, que permanece atuante no presente,
permitindo que ele resgate, mesmo que momentaneamente, momentos perdidos, capaz de
desviar o tempo presente.
304

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BENJAMIN, Walter. Infância em Berlin por volta de 1900. In: Obras Escolhidas II.
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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São Paulo: Martins e Fontes, 1990.

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Artística. In: CRUZ, Antonio Donizeti da; LIMA, Maria de F. G. (Org). Literatura e
poética do imaginário. Cascavel: EDUNIOESTE, 2012.

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RICHTER, Marcela Wanglon. A sedução do sonhar: Os caminhos do devaneio poético


em dois poetas Sul-rio-grandenses. 2013. Disponível em: <http://repositorio.pucrs.br/
dspace/ handle/10923/5539>. Acesso em: 02 set. 2015.

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entre fotografia no cinema e artes plásticas. 2014. Disponível em:
http://repositorio.unb.br/ handle/10482/17151. Acesso em: 02 set. 2015.

TEDESCO, João Carlos. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e


narração. Passo Fundo: UPF Editora, Caxias do Sul: EDUCS, 2004.

VENDRAMINI, Virgínia. Rosas não. Rio de Janeiro, 1995.

________. Matizes. Rio de Janeiro: Blocos, 1999.

________. Trajetória. Rio de Janeiro: Folha Carioca Editora Ltda., 2004.

ZILBERMAN, Regina. Memória entre oralidade e escrita. Letras de Hoje. Porto Alegre,
v. 41, n. 3, p. 117-132, setembro, 2006. Disponível em: <http://revistaseletronicas.ucrs.br/
ojs/index.php/fale/article/viewFile/621/452>. Acesso em: 03 out. 2015.
305

PARTE VIII
VOZES FEMININAS: MEMÓRIA E NARRATIVA
LÍRICA
306

VOZES LÍRICAS E NARRATIVAS DE MULHERES SENSÍVEIS À


SOCIEDADE NA AMÉRICA LATINA – POESIA, MÚSICA E ROMANCE
COMO EXPRESSÕES DE CRÍTICA-SOCIAL

Gilmei Francisco Fleck - UNIOESTE


Cristian Javier Lopez - UVIGO/UNIOESTE

A história de subordinação das mulheres na América Latina tem seu início junto
à própria história de colonização do continente. O silenciamento, a exclusão e o
anonimato a que foram submetidas às vozes femininas ao longo do exercício do
patriarcalismo reinante desde esse tempo tem cedido, na contemporaneidade, alguns
espaços para a expressão de experiências sufocadas, porém guardadas na memória. Por
meio da lírica, da música e do romance algumas mulheres têm alcançado postos de
destaque na Literatura latino-americana e, nesse espaço de representação, vêm
promovendo uma revisitação do passado histórico, com produções romanescas que
evidencia a atuação feminina crucial no passado, e com obras poéticas socialmente
engajadas que revelam a atuação militante e crítica das mulheres frente às mazelas sociais.
A escrita de autoria feminina atual evidencia, pois, não apenas a existência à margem de
mulheres vitais na história, mas, também, o inigualável talento literário do qual as
sociedades se privaram durante séculos.
A história da América é, segundo os compêndios da historiografia, a era de
grandes heróis e feitos admiráveis. Fatos que se encontram registrados nos anais das
diferentes fases da história do descobrimento, conquista, colonização e, mais tarde, das
independências nesse continente. Figuras femininas relevantes nesses processos ficam à
margem dos registros oficiais. Mencionadas são apenas aquelas de ações imprescindíveis
aos anais da história, como, por exemplo, a atuação da rainha Isabel, ao conceder a
Colombo os meios necessários para realizar a sua inusitada viagem: mas, e as outras
mulheres importantes na vida desse marinheiro? Sua esposa portuguesa: Felipa Moniz
Perestrello – sem dúvida apoio incondicional à formulação e posta em prática desse seu
projeto pela posição que esta ocupava na corte portuguesa... tão raros são os registros que,
embora pertencente à nobreza – mesmo que decadente – não há registros precisos sobre
que fim levou essa senhora. Outra personagem central nesse projeto é Beatriz Henríquez
de Arana – mãe do segundo filho de Colombo – cordobesa que acolheu Colombo durante
toda a sua trajetória em busca do apoio que buscada por parte dos reis católicos. Seu nome
307

nem sequer é mencionada na primeira biografia de Colombo que escreveu seu próprio
filho, Fernando Colombo.
Desse período histórico há ressonâncias do nome da nativa taina Anacaona, esposa
do chefe da tribo Taina que habitava a ilha de Guanahaní onde aportou Colombo em 12
de outubro de 1492. Após a prisão de seu marido pelos espanhóis, pois fora acusado pelo
ataque ao Fuerte Navidad e o extermínio dos 39 espanhóis aí deixados por Colombo
quando de sua primeira viagem, bem como a morte do seu irmão – outro importante
cacique taino –, ela assume o comando da tribo e, em certa ocasião de comemoração das
tribos – é acusada de conspiração pelos conquistadores e é, junto a vários nobres de sua
tribo Taina, executada pelos espanhóis, aos seus 29 anos.
Quando se passa à história da conquista da América, outra vez ressaltam nomes
como os de Hernán Cortés, Francisco Pizaro, Pedro de Valdivia, Nuñes Cabeza de Vaca
e muitos “ilustres conquistadores” e cronistas das Índias. Nome feminino de destaque
nesse período é a da nativa Malintzin, Malinche, ou ainda Doña Marina, dada de presente
à comitiva de Hernán Cortés em sua trajetória rumo à conquista do maior império da
América pré-colombiana: o império asteca. Seu relevante papel como intérprete,
negociadora e, por que não dizer, conselheira cultural para Cortés, não pôde deixar de ser
mencionado entre as narrativas heroicas dos espanhóis em seus procedimentos de
conquista, como também é o nome da nativa Inca a princesa Palla Chimpu Ocllo, que se
casou com o conquistador Sebastián Garcilaso de la Vega y Vargas e tornou-se, assim,
mãe do renomado Inca Garcilaso de la Veja, considerado o primeiro escritor mestiço da
América hispânica.
É interessante considerar, no que se refere ao período do descobrimento da
América e a participação das mulheres nesse episódio, o que expõe Manuel Fernández
Álvarez, em Casadas, monjas, rameras, y brujas: la olvidada historia de la mujer
española en el Renacimiento (2002), um estudo que analisa a situação da mulher no
período em que viveram essas importantes mulheres acima citadas. O que se pode
perceber ao ler esta obra é que o Renascimento foi, especialmente na Espanha, um tempo
em que a mulher permaneceu na sombra, aparecendo somente em casos excepcionais,
como o de Isabel, a Católica, e os de outras poucas senhoras de feitos extraordinários.
Mas elas estavam, em geral, destinadas ao silêncio, à exclusão e ao descaso, pois o espaço
público era exclusivamente masculino, cabendo a elas o recato, quando casadas ou
reclusas em algum convento, ou transitar às margens do sistema altamente discriminador.
Quando sua situação era semelhante à da segunda companheira de Colombo – a judia
308

conversa Beatriz Henríquez de Arana, de Córdoba, com quem Colombo nunca chegou a
se casar, embora também tenha tido com ela um filho, Fernando Colombo –, as
possibilidades de alcançar alguma notoriedade estavam totalmente excluídas. Contudo,
conforme registra Salvador de Madariaga, um dos mais importantes biógrafos de
Colombo: “Beatriz fué la única flor en su espinoso caminho”. (MADARIAGA, 1947, p.
229). Jacob Wasserman (1930, p. 52), que afirma: “[...] de ella recibió, sin duda, Colón
alientos y cuidados; su corazón fué quizá el único que realmente poseyó en aquel período
sombrío, porque en su mismo testamento la recomienda encarecidamente a sus herederos
como a persona a la que está muy obligado.”
Nessa época, a mulher era ainda celebrada na literatura como a musa dos heróis
dos romances de cavalaria, aparecendo como ideal de perfeição e, sob todos os aspectos,
idealizada. Ou, ao contrário, era vista como uma das criaturas mais temíveis e
abomináveis, como as bruxas, que também merecem destaque em boa parte das obras
literárias desse período. Se nos reportarmos a Fernández Álvarez para situar melhor neste
sistema as personagens Isabel, Felipa e Beatriz, vemos que existiam, para a mulher, “dos
valoraciones distintas, porque hay dos varas de medir también distintas: frente a las
damas encumbradas (las grandes señoras de la Corte), las mujeres sencillas de la vida
corriente. Frente a la rendida admiración, el brutal desprecio.” (2002, p. 77). Um sistema
como este excluía a mulher da atuação pública, do acesso ao conhecimento, das
possibilidades de se desenvolver intelectualmente ou mesmo de estabelecer relações por
si só, condicionando-a à servidão, seja dos pais, dos irmãos ou dos maridos que lhes
fossem designados.
Quanto ao período da Conquista da América, tal situação não mudou em muito,
sendo o “Novo Mundo” um espaço de conquista para os homens. As poucas mulheres
que aqui chegaram, foram, em sua grande maioria, enviadas para constituírem famílias
cristãs nessas terras “selvagens”, seguindo, pois as mesmas normas rígidas de conduta
servil e cristã que levavam na Espanha ou Portugal daquela época.
No espaço ficcional, a situação nunca foi muito diferente, pois, segundo menciona
Lucía Guerra (2007, p. 7), até a década de setenta do século passado existia, na cultura
ocidental, um preconceito com relação à literatura de autoria feminina. Muitas mulheres,
quando escreviam, faziam-no sob algum pseudônimo masculino, pois, a crítica não
prestava muita atenção às escritas de autoria feminina.
De acordo com Lucía Guerra, “dentro de una estructura patriarcal que la limita
al único papel de madre y esposa, la mujer, sin alternativas en el mundo de afuera,
309

depende económicamente del hombre, dependencia que se extiende a la esfera de lo legal


y lo emocional.” (GUERRA, 2007, p. 15). Tal limitação acompanhou a mulher ao longo
de muitos séculos.
Nesse sentido, a pesquisadora comenta, na introdução à obra Splintering darkness
– Latin America women writers in search os themselves (1990, p. 05):

Como em outras criações culturais claramente marcadas pela


hegemonia patriarcal, a literatura tem sido tradicionalmente um
território onde a imaginação masculina prevaleceu. Suas vozes e suas
perspectivas produziram modelos literários dominantes em que as
experiências das mulheres, assim como em outros sistemas, como na
política e na filosofia, têm sido relegadas ao silencio. Portanto, em uma
sociedade dramaticamente dividida por questões de gênero, escritoras
foram forçadas a se disfarçar o que permitiu a imitação e a ardilosa
invasão de um terreno inexplorado. Nesse sentido, pseudônimos
masculinos de escritoras como George Sand, George Elliot ou Fernán
Caballero deveriam ser considerados mais significantes do que apenas
um malicioso truque que permitiu que as mulheres ingressassem na
esfera das publicações. Esses pseudônimos são, na verdade, um
poderoso sinal da complexidade intrínseca da literatura das mulheres
dentro do contexto social onde a linguagem e as diferentes
interpretações do mundo eram manufaturadas principalmente por
homens. (Nossa tradução).

No nosso continente, mulheres, nativos e afrodescendentes foram oprimidos e


uniram-se em sua subalternidade devido à manutenção, na América, de uma estrutura
social em que o detentor do poder era o homem branco, assim como já o era na Europa.
Perpetuou-se por muito tempo (quiçá até os dias atuais), em solos americanos, um modelo
de família que tinha na figura do pai uma espécie de rei que governava os domínios do
lar, trabalhando e trazendo sustento à mulher e aos filhos, enquanto a esposa se restringia
a limpar, cozinhar, lavar, passar e educar as crianças. De acordo com Guerra (2007, p.
11-12), a mulher foi

[…] víctima de una hegemonía patriarcal que desfiguraba su


subordinación con eufemismos resumidos en el tema de las virtudes
femeninas, a la mujer le ha sido difícil tomar conciencia política de su
situación. En el extraño papel de un subalterno que es también sublime,
según las mistificaciones que la califican como el suplemento espiritual
para la ardua vida de los hombres dedicados al trabajo y la política.

Contudo, devido às circunstâncias excepcionais da colonização nesse continente


algumas mulheres acabaram vivendo um destino diferente. Conforme registra Rosa María
Rojo (2007), em sua edição da Obra Lucía Miranda, de Eduarda Mansilla ao comentar a
310

importância da retomada dessas escritas de autoria feminina do século XIX, e em especial


sobre a trajetória histórica dessa mulher – Lucía Miranda – na Argentina, e a sua
significativa recriação na ficção de Eduarda Mansilla e outras escritoras, destacando:

Con ‘Lucía’, la ‘Cautiva blanca’, la prenda codiciada por dos caciques


indígenas, se pone de escena un verdadero ‘mito de origen’
protonacional, que intenta explicar o justificar con matices diversos,
en sus distintas recreaciones, la posibilidad de integrar o no a las etnias
originarias, el papel de las mujeres en la fundación de la sociedad y su
carácter de forzosas mediadoras entre mundos heterogéneos, o entre
Naturaleza y Cultura. (LOJO, 2007, p. 11).

Em outro sentido é fácil compreender que o âmbito de produção do discurso


historiográfico, imbuído do teor de veracidade que se buscava, especialmente em sua fase
rankeana-tradicional, por meio de seu método científico ancorado na objetividade e no
respaldo da certificação das fontes, nunca chegou a ser um ambiente no qual a autoria
feminina encontrasse algum espaço de manifestação, pois este território sempre fora de
domínio exclusivo da autoridade centrada na voz masculina.
A crítica feminista, surgida como consequência do novo movimento feminista que
ocorreu ao redor da década de sessenta do século passado, especialmente nos Estados
Unidos e na França, dedica-se, na contemporaneidade, entre outras importantes
atividades, a realizar uma série de pesquisas que revelem as tantas injustiças sofridas pelas
mulheres durante a vigência quase exclusiva do poder patriarcal nas áreas da esfera
pública até poucas décadas passadas. Com relação à escrita de autoria feminina, estas
pesquisas buscam, num primeiro momento, resgatar textos nunca valorizados pela crítica
de caráter androcêntrico e torná-los conhecidos do público leitor e, em segundo lugar,
evidenciar a densidade e complexidade destes textos, elaborados, conforme comenta
Guerra, “desde un sítio otro: el de la subordinación de la mujer” (2007, p. 8).
Se pensarmos na escrita híbrida de história e ficção na qual se constitui o romance
histórico sob esta perspectiva da crítica feminista, não será difícil imaginar o árduo
caminho percorrido pelas escritoras para que suas obras, inscritas especialmente neste
contexto de expressão do romance, viessem a ter o merecido reconhecimento. Apesar de
contarmos hoje com um considerável corpus teórico sobre o romance histórico, pouco se
tem escrito sobre a autoria feminina neste universo ficcional. Segundo comenta Cunha,
nesta vasta produção crítica, “sorprende el descuido casi total en que se halla la narrativa
histórica de las escritoras ya que, aunque el número de obras indique el contrario,
311

parecería que aún prevalece la opinión de que la historia no es uno de sus temas
predilectos” (2004, p. 12).
Neste contexto já desfavorável, cabe lembrar que, em especial, as narrativas de
autoria feminina sobre o descobrimento e conquista da América não chegaram a ocupar
qualquer espaço de destaque em suas primeiras tentativas. A primeira obra escrita por
uma mulher que trata dessa temática é o romance norte americano Columbus and Beatriz
(1892), de Constance DuBois, escrito no simbólico ano de 1892, comemorações do quarto
centenário das aventuras de Colombo. Uma escrita de autoria feminina que declara, no
prefácio:

O propósito deste trabalho é tentar reparar a injustiça que a história


cometeu com relação a uma mulher nobre e de prolongado sofrimento.
Negou-se a Beatriz Enríquez sua posição de direito como esposa de
Colombo nos escritos de Humboldt e Irving até aos do turista que
publicou suas impressões de uma estadia de duas semanas na Espanha;
discorreu-se muito sobre a relação ilícita de Colombo com uma senhora
de Córdoba em narrativas imparciais e com relatos zombeteiros.
(DuBOIS, 1892, p. 4 – nossa tradução).

Na contemporaneidade, contudo, vê-se a retomada desses períodos históricos,


com destaque às “desconhecidas” protagonistas femininas e suas ações relevantes nessa
empreitada. Exemplos dessas escritas femininas no universo literário latino-americano
podem ser as obras de Eduarda Mansilla, com Lucía Miranda (1860), reeditada por María
Rosa Lojo em 2007; Ana Miranda, com Desmundo (1996), Isabel Allende, com Inés del
Alma mía (2006); Laura Esquivel, com Malinche, (2006), María Rosa Lojo, com Amores
insólitos de nuestra historia (2011), entre tantas outras.
Se nos registros históricos não houve espaço para a expressão da voz feminina, no
território da arte ficcional contemporânea, contudo, tais vozes se manifestam de forma
aberta e liberal, como faz a personagem de Isabel Allende, Inés Suares – protagonista do
romance Inés del alma mía – ao revelar que antes de vir à América “[…] vivia rabiosa
conmigo y con el mundo por haber nascido mujer y estar condenada a la prisión de las
costumbres.” (ALLENDE, 2008, p. 28). Esta prisão à qual se refere a personagem começa
a dar, na contemporaneidade alguns sinais de ruptura e as mulheres começam a alçar altos
voos na expressão literária do nosso continente.
Na narrativa de Isabel Allende, a personagem de extração histórica Inés Suares,
nas lembranças que registra à filha de criação, mostra-se uma mulher guerreira que
rompeu com diversos paradigmas de sua época por ser aventureira e possuir ideais
312

libertários. Contrariamente às normas impostas pela sociedade de então, a personagem


relata que ela perdeu sua virgindade antes do casamento e mesmo sendo católica não
sentiu remorsos por isso. A personagem, pois, busca liberdade e autonomia ao
economizar dinheiro e partir para o Novo Mundo, a princípio, em busca do marido,
porém, ao saber da morte desse, acaba vivenciando um dos mais marcantes episódios da
conquista da América. Não apenas a confluência da história e da literatura passou a ser
espaço dominado pela escrita de autoria feminina, mas, também, a conjunção da literatura
com outras formas de expressão artística entre elas a milenar inter-relação da poesia com
a música.
A Literatura e a Música, como meios de expressão, estiveram unidas desde as suas
origens, compartilhando um espaço representativo dentro das sociedades. Todos os povos
do mundo se valeram desta confluência entre a língua e sua musicalidade e a própria arte
musical com o afã de comunicar sua subjetividade. Refletir sobre esta convergência
interartística desde o nosso espaço enunciativo da América Latina é fundamental para o
conhecimento e a valorização das produções criadas em nosso continente, assim como
para dar relevância ao que se refere às criações híbridas que se valem da Música e da
Literatura para ampliar seu campo de atuação nesse contesto.
Como exemplo disso, podemos mencionar as obras poéticas das autoras sul
americanas Idea Vilariño (Uruguai) e Helena Kolody (Brasil), que em suas produções
exploram a confluência entre a poesia e a música que é una característica de ambas as
poetisas.
A arte literária sempre inspirou diferentes artistas ao longo da história. Esses,
apoiados na musicalidade inata da língua e na cadência dos versos líricos, são capazes de
dar melodia e imprimir tons às palavras que, graças a essa confluência artística, adquirem
novas e profundas formas de expressão, fato que se percebe na produção lírica das
poetisas mencionadas que souberam explorar tal conjunção na sua arte literária.
Neste caso, as artes operam em benefício de um objetivo comum: transmitir e
resguardar conhecimentos, tradições, memórias e expressões. Na antiguidade, a tradição
oral esteve encarregada de manter vivos os costumes e transmitir as memórias às gerações
vindouras.
Luísa Villalta, em sua obra O outro lado da música, a poesía (1999), expõe a
possibilidade da união da música com a linguagem desde os começos da história da
humanidade. Para a autora, o uso da voz, por exemplo, foi o começo desta comunhão e
313

um elemento que o sujeito utilizou com diferentes finalidades. Conforme expressa


Villalta (1999, p. 10),

[…] el sistema máxico-religioso que é a música nas civilizacións


primitivas corrobora a relación orixinaria da voz coa música: desde a
voz como expresión humana […] até a imitación da voz animal,
pasando polo grito emocional codificado e repetido para provocar esa
mesma emoción.

Seguindo esta ideia, a confluência da linguagem oral com a Música se percebe na


poesia. De acordo com a autora, estes dois campos evoluíram paralelamente, mas
obedecem a uma mesma origem, pois,

[...] seguramente o que entendemos por lingua e por música non define
máis que dúas formas de evolución simétrica e contraria a partir dun
mesmo exercício da voz. Mentres a lingua se converteu nun sistema con
unidades significativas referenciais (ao que chamamos realidade, con
un nome para cada cousa), na música, entendida como melodía con
todas as posibilidades e complexidades derivadas, evolucionouse cara
a un sistema con unidades significativas non referenciais (emocions,
sensacións, ideas, proporcións) pero non por iso menos plenas de
sentido. Na nosa cultura occidental unha e outra discorreron ben
unidas nunha mesma forma artística: a poesía. Até hai apenas
quiñentos anos a poesía constitúe un único fenómeno onde a palabra e
a música Forman as dúas caras da mesma moeda. (VILLALTA, 1999,
p. 11).

Como expressa Luisa Villalta, estes dois sistemas são materializados na poesia,
na sua estrutura. Essas duas linguagens específicas – literatura e música – não
representam só a junção de duas artes distintas, mas todo um complexo de inter-relações
e interdisciplinaridades que oferecem inúmeras possibilidades de criação e interpretação.
As autoras selecionadas revelam nas suas composições a convergência destas artes e o
pensamento social por meio de criações de obras de carácter híbrido.
Idea Vilariño nasceu em Montevideo, no 18 de agosto de 1920, e foi a segunda
das filhas do casamento entre Leandro Vilariño, de origem galega, e Josefina Romani. A
conexão de Idea com a poesia e a música se deu desde seu nascimento. Criada no seio de
uma família de classe média culta, seus pais incentivaram a todos os filhos o estudo da
poesia e da música. Seus irmãos, Poema, Azul, Alma, e Numen, foram músicos. Idea
Vilariño estudou violino e piano e sua relação com a poesia esteve presente desde a sua
infância. Segundo as palavras da própria poetisa, registradas em uma entrevista realizada
por Ignacio Cirio, para Radio CX36:
314

[…] yo, digamos, hacía versos o poemas o algo parecido desde antes
de saber escribir. Seguro, muchas cosas le modelan el oído a uno aun
cuando no sabe escribir ni componer nada, pero yo antes de saber
escribir hacía cositas perfectamente rimadas y medidas. Yo no sabía
qué rimaba y qué medía, pero era así.

Entre as múltiplas facetas que Idea Vilariño explora na sua poética está fortemente
marcada a função social da poesia.
Seu compromisso social pode ver-se expressado no poema “A una paloma” que
nasceu como uma vidalita, ritmo musical característico da região norte da Argentina,
oriundo da tradição do povo colla. Nela a poetisa expressa uma dura crítica à repressão
de parte do governo contra o povo.

A una Paloma

Palomita flaca,
Vidalitá,
De piquito hambriento,
Todas las plumitas,
Vidalitá,
Te las llevó el viento.

Es un viento malo,
Vidalitá,
Es un viento frío,
Te dejó sin plumas,
Vidalitá,
Y el buche vacío.

Palomita zonza,
Vidalitá,
De piquito bobo,
Cuidá de tu nido,
Vidalitá,
Que anda suelto el lobo.

Pobre palomita,
Vidalitá,
De vuelo perdido,
Si no le hacés frente,
Vidalitá,
Te deshace el nido.

Palomita linda,
Vidalitá,
Palomita fea,
Aprontá el piquito,
Vidalitá,
315

Para la pelea.

Crecé tus alitas,


Vidalitá,
Crecé el corazón,
Crecé, palomita,
Vidalitá,
Y volvete halcón (VILARIÑO, 2003, p. 47)

A composição de Idea Vilariño se vale do género musical popular para representar


o sentir do povo, metaforizado em uma pomba, e sua luta contra o poder, “un viento frío”,
“un lobo”. Percebe-se, pois, que o eu lírico se vale da estrutura musical e usa o vocativo
“vitalitá” para convocar a sua gente para “cuida de tu nido”, ou seja, para que a nação não
fique sem cuidado, pois “anda suelto el lobo”.
A poetização dessa situação social e política de sofrimento e limitação do povo
evoca imagens da natureza. Segundo o exposto pelo etnomusicólogo Blacking (2015, p.
21) “la función de la música es reforzar ciertas experiencias que han resultado
significativas para la vida social, vinculando más estrechamente a la gente con ellas.”
De acordo com esta ideia, a canção só cobrará um sentido de acordo ao grau de
identificação que a sociedade tenha com o tema ou a música tratados. Já o estudioso
Hormigos Ruiz (2008) nos comenta que:

[…] una determinada música sólo puede entenderse en un contexto


social que le confiere un valor y que genera un abanico de emociones
inseparables de las vinculaciones sociales. Las relaciones que se
establecen entre los sonidos y la sociedad que los crea o los recoge
pueden ser primordiales a la hora de comprender qué nos quiere decir
una música determinada. Ningún estilo musical se construye con
características exclusivas, sus dimensiones son las que quiera darle su
sociedad y su cultura. (HORMIGOS RUIZ, 2008, p. 20-21).

A consciência do eu lírico se manifesta na poesia e reflete sobre quem é que sofre


e deve fortalecer-se para lutar. Assim, podemos encontrar também na poesia citada, por
meio do uso de metáforas, como se intensifica a sensação do perigo que corre a
“palomita”, pois este se metaforiza primeiro em “viento” e logo em “viento malo” – no
contexto da abstração – para converter-se, logo, em “lobo” – no âmbito da materialização
concreta. E a “paloma” – símbolo do povo sofrido, vai também passando por um processo
de intensificação, primeiro para revelá-lo ao nível da exploração – na expressão “flaca”,
sinal de carência e fraqueza e, depois, na expressão “sin plumas” e “de buche vacío”,
signos que trazem a ideia de falta de proteção e de abrigo, de sustento.
316

Porém essa “palomita zonza” é também ambivalente: palomita linda – palomita


fea” e consciente desta ambiguidade a “palomita” deve preparar-se para a “luta”. Desse
elemento surge a esperança, a força motriz capaz da superação e a transformação
reveladas no signo “crescer” presente nos últimos versos. Este, por sua vez será capaz de
operar a metamorfose da “Pobre palomita” no esplendor de um “halcón [falcão]”, ave
forte, robusta e símbolo de liberdade em outras culturas. A composição poética revela,
assim, seu intenso chamado social à conscientização, primeiro, e à ação, em seguida.
Já Helena Kolody, a poeta paranaense, é descendente de ucranianos. Ela, por sua
vez, mostra sua faceta híbrida em produções poéticas que introduziram o Haikai no Brasil
e em alguns casos que foram objeto de musicalização. Esta conjunção artística se encontra
muito presente na obra da poetisa que se inspira na música para obter a intensidade da
sua lírica expressiva. A criação poética de Kolody foi amplamente estudada por Antonio
Donizeti da Cruz, na sua obra Helena Kolody: a poesia da inquietação (2010). O
pesquisador opta por explorar o universo poético da paranaense desde o signo da
“inquietação”.
Desde a óptica de Donizeti, se vê que a inquietação é um elemento constante na
poesia de Kolody, que, em várias oportunidades, consegue a sublimação deste elemento
por meio da evocação da música como energia propulsora da sua produção poética.
Encontram-se presentes nas formas de expressão do subjetivismo kolodyano elementos e
fatos da vida cotidiana, impregnados da inquietação à qual se refere Donizeti da Cruz
(2010), transformados e sublimados em canções e cantigas, ou seja, expressões poéticas
em forma de música.
A ação criativa que se mostra quando a música, valendo-se da poesia, dá voz à
criação como se pode comprovar com o músico erudito brasileiro Henrique de Curitiba,
que, em 1999, compôs seis cantos baseados em seis poemas de Helena Kolody. Na sua
obra musical Henrique de Curitiba elege os poemas “Voz da Noite”, “Viagem Infinita”,
“Cantar”, “Cantiga de Roda”, “Âmago” e “Nunca e Sempre”, pertencentes às obras
Ontem Agora (1991), Poesia Mínima (1986), Sempre Palavra (1985) e Vida Breve
(1964), respetivamente. Henrique cria música para estes poemas, cujos conteúdos
poéticos se veem plasmados nas melodias e harmonias que cada uma das composições
musicais recebeu no processo de confluência de artes.
O teórico Zamacois (1997) nos expõe, entre outras possibilidades de origens para
o ato da composição, que a influência do meio e fundamental no processo criativo.
Segundo o estudioso:
317

El temperamento y la sensibilidad influyen grandemente en la labor


creativa del compositor. Entre éstos los hay de estilo grandilocuente y
de expresión austera, tímida; de vuelo largo y de vuelo corto; que
precisan de excitantes extramusicales para que su imaginación rinda,
y que tan sólo en el regazo de la música pura saben expresarse […].
(ZAMACOIS, 1997, p. 19).

Desse modo, vemos que as vozes femininas na América contemporânea


demonstram conhecimento e domínio das confluências interartísticas que lhes permitem
ampliar o alcance das suas vozes por produções híbridas que revitalizam ambas as artes
que confluem em um mesmo produto híbrido. Do mesmo modo ocorre com aquelas
produções que se valem da relação entre Literatura e História. Uma nova era de
reconhecimento para a produção poética – tanto lírica como romanesca – já se iniciou no
espaço híbrido e mestiço da América Latina para as mulheres. Cabe a nós agora seu
estudo, divulgação e apreciação.

Referências

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Vilariño. Revista de la Biblioteca Nacional. Montevideo, v. 6, nº 9, p. 261-278, 2014.

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Curitiba: Ed. UFPR, 2003.

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historia de la mujer española en el renacimiento. Madrid: Espasa Calpe, 2002.

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ZAMACOIS, J. Temas de estética y de historia de la música. España: SpanPress, 1997.


319

DA TEORIA À POESIA DE ANA CRISTINA CESAR

Dhandara Capitani109 (UNIOESTE)

Tudo pode ser dito no poema, mas na realidade nem tudo pode ser dito.
CESAR (1999)

Ana Cristina Cesar é uma das mais importantes autoras da poesia marginal
brasileira, a chamada geração mimeógrafo, em referência ao modo de reprodução e
publicação dos artistas que não queriam ou não podiam ter suas obras comercializadas
através de editoras. Mesmo assim, a autora em destaque neste trabalho não pode ser
considerada como uma autora “clássica” do período, uma vez que sua obra ocupa um
lugar individual no grupo de artistas de que escolheu fazer parte.
Com cada vez maior frequência, especialmente desde o ano 2000, novas
perspectivas têm sido adotadas para analisar a poesia de Ana C., como costumava assinar
seus trabalhos e como é canônico que a autora seja chamada. Por um tempo, sua obra foi
estudada a partir de uma perspectiva biográfica ou apenas como mais uma representante
da poesia que era produzida no Brasil naquele determinado momento histórico.
Neste trabalho, privilegiamos a leitura da teoria e das concepções acerca de
literatura e de poesia deixadas por Ana Cristina Cesar em seus textos teóricos, ensaios e
entrevistas. Com isso, tentaremos demonstrar como a autora se diferenciou de seus
colegas marginais, valorizando a qualidade de sua poesia e também os escritos teóricos
de uma autora mulher e brasileira. Mais do que valorizar a autora em si, pesquisas como
esta se fazem importantes porque também destacam a construção teórica de uma escritora
mulher e brasileira, em consonância com as tendências de desmarginalização da voz
feminina em contextos acadêmicos.
Inicialmente, traçamos um panorama do período histórico em que a autora
produziu sua obra, caracterizando a poesia marginal com o que lhe é peculiar; depois, um
panorama biográfico de Ana Cristina Cesar é apresentado, de caráter introdutório. Então,
passamos a comentários sobre alguns dos pontos teóricos mais importantes na obra de

109
Professora de Língua e Literatura de Língua Inglesa no curso de Licenciatura em Letras Português/Inglês
e Respectivas Literaturas na UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutoranda em
Letras (Literatura e Sociedade: Estudos Comparados). Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da UNIOESTE. Avaliadora oral dos exames internacionais de Cambridge/ESOL. Tradutora e
revisora de línguas portuguesa e inglesa. Trabalho ligado ao grupo de pesquisa “Mapas da imaginação e da
memória em narrativas líricas e textos poético-plásticos: interseções entre literatura, pintura e as artes
visuais”. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6015422207393688.
320

Ana C. e, na sequência, ao confrontamento entre os poemas e os ideiais estéticos


perceptíveis de sua concepção sobre o fazer poético, traduzidos nos poemas.

O contexto histórico da poesia marginal

Ana Cristina Cesar (ou Ana C., como costumava assinar seus trabalhos e como
também convencionou chamá-la) foi uma das principais autoras da chamada “geração
mimeógrafo” brasileira, que surgiu no Brasil nas décadas de 1970 e 80. A alcunha refere-
se à tecnologia de que dispunham, na época, para reproduzirem em escala seus trabalhos
e, assim, divulgá-los.
Pertencem à geração mimeógrafo os artistas (principalmente literários) que,
devido à repressão do governo militar e à censura imposta na época, encarregavam-se da
divulgação da arte produzida no Brasil sem o consentimento governamental. Quando
tratando desse período, não se deve relegar o fato de que “tanto a violência visível quanto
a invisível restringiram ao mínimo o universo de pensamento e o campo de ação dos
cidadãos inconformados (e, entre estes, o do artista)” (2002, p. 19), como destaca Silviano
Santiago. Também por isso, esse momento na historiografia literária brasileira ficou
conhecido como a época da “poesia marginal”, uma vez que seus artistas se encontravam
à margem do mercado editorial e da divulgação rádio-televisiva.
Ana C. compreendia essa marginalidade como uma forma de demonstração de
insatisfação política. Sua decisão de se expressar através da literatura “marginal” foi
certamente deliberada e significativa. Em alguns momentos em seus textos teóricos, a
poeta comenta sobre o que representava fazer parte desse grupo:

a marginalidade é tomada não como saída alternativa mas sim como


ameaça ao sistema, como possibilidade de agressão e transgressão. A
contestação é assumida conscientemente. O uso de tóxicos, a
bissexualidade, o comportamento exótico são vividos e sentidos como
gestos perigosos, ilegais e portanto assumidos como contestação de
caráter político. (CESAR, 1999b, p. 123) (sic)

Rodrigues (2011) acrescenta ainda que “a marginalidade (aqui entendida nesta


ampla perspectiva) e as suas dinâmicas próprias são consideradas como possibilidade de
agressão e transgressão ao sistema de valores ‘oficial’” (p. 4).
Ana C. foi uma autora de fato em contato com seu momento histórico, discutindo,
em seus textos críticos, a questão da transgressão política e como o contexto da ditadura
321

militar influenciava os artistas em suas obras. Em geral, a autora não problematizava as


próprias questões políticas, mas a resposta artística que estas causavam. A maioria destes
textos encontra-se na compilação Crítica e tradução (1999b). Rodrigues comenta que:

trata-se da emergência de um novo sistema cultural, no qual a produção


artística do momento era feita não apenas através das obras de arte em
si, mas também pela própria vivência desses artistas – a vida se tornou
um poderoso “veículo semântico” que refletia o conjunto de todas essas
mudanças que o próprio contexto histórico preconizava.
(RODRIGUES, 2011, p. 5)

Este é um momento de grande importância para a literatura brasileira, tendo sido


uma época de intensa atividade poética, independentemente de financiamento empresarial
ou de divulgação por meios “oficiais”. Em Poesia jovem anos 70, Carlos Alberto
Messeder Pereira e Heloísa Buarque de Hollanda afirmam que:

No caso do boom poético da década de 70, não seria correto classificá-


lo como um movimento. Ao contrário, o que se verifica em meio a uma
enorme efervescência de poetas e poemas é a emergência de tendências,
as mais heterogêneas, unidas apenas pela bandeira comum da postura
anárquica e vitalista na defesa do direito de se agitar a poesia como
forma de resistência ao “sufoco” do momento. (1982, p. 4)

De fato, Ana C. teve a intenção deliberada de pertencer a este momento, mas


talvez, tal participação na geração “marginal” tenha sido uma das razões para a poesia de
Ana C. ter sido lida a partir de um viés biográfico por tanto tempo. O presente trabalho
vem ao encontro disso, com a intenção de romper com tais leituras (como tem acontecido
nos anos recentes), contribuindo para situar a autora em seu lugar único e merecido nas
letras brasileiras.
Sobre isso, Malufe comenta que:

[...] é certo que Ana C. não fez poemas-minuto, não buscou uma escrita
escrachada, desavisada, não fez piada com a poesia. Tampouco era
“inocente” em seu fazer poético: pensou sua poesia, refletiu sobre
literatura, fez critica, estudou tradução e, como podemos notar no
conjunto de seus escritos, isso tudo participava, e muito, da sua criação
literária. (2006, p. 22)

Ana C. mantinha intensa atividade artística e acadêmica e gozou de


reconhecimento artístico em sua época e alguns de seus poemas fizeram parte de uma das
mais importantes publicações daquele momento: a coletânea organizada por Heloísa
322

Buarque de Holanda, chamada 26 poetas hoje, publicada em 1975. Além de Ana Cristina
Cesar, a obra contava com poemas de Chacal, Waly Salomão, Charles, Torquato Neto,
Carlos Saldanha, Cacaso, Ronaldo Santos, Geraldo Carneiro, Leila Miccholis, Bernardo
Vilhena, Francisco Alvim, entre outros. Como citamos anteriormente, o grande elo que
conectava os artistas da época era, de fato, uma atitude de descontentamento político e
uma vontade de fazer sua arte mesmo em face das dificuldades que lhes eram impostas.
Mesmo assim, vários destes apresentavam características semelhantes em suas obras e
em seu conjunto artístico, tal como ensinam os estudiosos desse momento da literatura
brasileira.
Podemos começar citando a aproximação entre eu-lírico e poeta:

O fazer poético de tal grupo teve como característica principal uma


tentativa de unir vivência e expressão poética, ao ponto de haver uma
simbiose entre essas duas esferas. Para atingir esse objetivo, a revelação
de intimidades e a aproximação biográfica entre poeta e eu-lírico foi um
artifício bastante utilizado. (MARCHI; FRANCHETTI, 2009, p. 387)

Essa “simbiose”, como disseram Marchi e Franchetti, é uma das características


mais marcantes da expressão artística dessa geração. Rodrigues (2011) também aponta
que a coloquialidade, o tom confessional e íntimo e uma poesia “despoetizada”, mais
próxima do cotidiano do que das bibliotecas e da academia, foram características da
geração em que Ana C. se incluía.
Como escrevem Pereira e Hollanda (1982), usava-se a “experiência pessoal como
espaço da crítica social” (p. 54), diminuindo os limites entre vida e obra:

Assim, o foco da crítica social passa do plano mais abstrato das idéias
para o interior da vivência cotidiana sentida na riqueza de sua dimensão
política. O sentimento de asfixia experimentado no dia-a-dia é trabalho
com amor e humor. (PEREIRA; HOLLANDA, 1982, p. 54)

Toda essa atmosfera de conexão absolutamente pessoal com a arte literária


acabava por acarretar certas características à poesia escrita na época, como “a mescla de
estilos, a valorização do coloquialismo, a recuperação do verbal em oposição ao
experimentalismo visual – desdobramentos da poética pós-modernista” (p. 55), como
forma de alcançar uma “desierarquização do tom nobre da poesia”, na prática de
estabelecimento de uma “relação propriamente afetiva com a prática literária” (p. 55)
323

Segundo Rodrigues, o “descuido” com a linguagem e a “ausência de rigor formal”


também se destacam na literatura da época. Mais que isso,

os marginais buscavam uma espécie de ‘casamento’ entre as


experiências do cotidiano e a poesia por eles produzida, acreditando ser
possível o aniquilamento das barreiras que separavam o receptor do
autor e da literatura. (RODRIGUES, 2011, p. 8).

Porém, Maria Lucia de Barros Camargo (2003) refuta tal descrição ao apontar
para o fato de que diversos autores que tornaram-se consagrados por seu rigor e valor
artístico, como Alice Ruiz e a própria Ana C., também faziam parte dessa geração.
Comentando um depoimento escrito por Chacal para a revista Escrita (número 19, de abril
de 1977 (apud CAMARGO, 2003)), Camargo afirma:

Este depoimento é elucidativo de uma postura antiintelectual, de


“rebaixamento” do poeta e do poético, postura que tem sido estendida,
erroneamente e de modo generalizado, aos poetas desta geração.
(CAMARGO, 2003, p. 31)

De fato, grande parte dos autores prezavam uma literatura “imediata”, livre de
qualquer rigor formal. De certa forma, diferentes formas escritas eram consideradas
literatura e distribuídas como obras literárias. Carlos A. M. Pereira (1998) afirma que:

As pessoas responsáveis por sua produção não necessariamente se


pensavam enquanto ‘produtores literários’ [...]. Estes livros – e aí a
palavra livro engloba desde livros ‘de fato’ até envelopes contendo
folhas soltas, ou mesmo outros objetos com as mais diferentes formas
e apresentando desde textos e fotos ou desenhos até conteúdos os mais
diferentes – apresentavam um forte caráter de improviso e de
precariedade; o padrão de impressão, o padrão gráfico em geral não
estavam, absolutamente, de acordo com os padrões nacionais e
internacionais de ‘qualidade’ e ‘bom gosto’. (p. 37-8) (grifos nossos)

Quanto a isso, Heloísa B. de Hollanda (2011) escreve que:

Ao contrário, marcavam sua posição ao não explicitar qualquer projeto


literário ou político e ao apresentar-se claramente como não-
programática, mostrando-se avessa à escolas e a enquadramentos
formais. Neste sentido, poderíamos considerar hoje os marginais como
estruturalmente marcados por experiências que refletem uma quebra
geral de certezas e fórmulas sejam elas políticas, literárias ou
existenciais, tornando-se, na realidade, mais off literários do que anti-
literários. Através do uso irreverente da linguagem poética e da
324

afirmação de um desempenho ironicamente fora do sistema, os poetas


marginais sinalizavam em sua textualidade e atitudes uma aproximação
radical entre arte & vida. (HOLLANDA, 2011, s/p) (sic)

Fica claro, a partir desse trecho, que os autores da época de fato se envolviam
pessoalmente em sua obra estética: a aproximação radical de que fala Hollanda demonstra
esse vínculo direto entre autor e texto.
As próprias experiências pessoais e individuais servem de mote e conteúdo para
o trabalho literário:

Essa volta à primeira pessoa, à escrita da paixão e do medo enquanto


resposta crítica, mostra-se um caminho eficaz no sentido de romper o
silêncio e a perplexidade que tomaram de assalto a produção cultural
do início da década. (PEREIRA; HOLLANDA, 1982, p. 54)

O que Heloísa de Hollanda chama de “uso irreverente da linguagem poética”,


contudo, não é tão bem aceito por diversos outros críticos. Maria Lucia Camargo (2003)
comenta:

Acredito que já se tornou um lugar-comum dizer que os poetas dos anos


70, assumindo uma postura antiintelectual, produziram uma poesia do
cotidiano e do desimportante, de baixa qualidade estética, porque
constituem uma geração desinformada, de escritores sem leitura, sem
conhecimento da tradição literária. (CAMARGO, 2003, p. 37)

Mas, assim como acontece com basicamente qualquer momento literário, sempre
há autores que não devem ser lidos apenas como reprodutores das tendências de seu
tempo. Na literatura brasileira, podemos citar como um exemplo (entre diversos) o caso
de Augusto dos Anjos, que escreveu no momento simbolista da historiografia literária do
país e que, mesmo apresentando alguns traços de simbolismo em sua poética, não pode
ser simplesmente rotulado como simbolista. Camargo continua: “Talvez seja verdade em
relação a muitos daqueles jovens autores, mas sem dúvida não é uma afirmativa válida
para o conjunto de poetas.” (CAMARGO, 2003, p. 37)
Sendo estas características de toda a geração ou apenas de alguns, ou mesmo da
maioria, de seus poetas, é fato que a poesia da década de 1970 e 1980 do Brasil foi
registrada na história como a nossa época marginal, de autores “desinformados” e de
“baixa qualidade estética” (como dito através de Camargo (2003), anteriormente). Pereira
também comenta este fato: “Em vários momentos, inclusive, falou-se de uma ‘literatura
325

pobre’, de uma ‘literatura do lixo’ ou mesmo de uma ‘lixeratura’ com referência a estes
novos produtos que surgiam com frequência cada vez maior” (1998, p. 38).
Tais afirmações são bastante enfáticas e consideravelmente depreciativas.
Desconsiderando possíveis diferenças de opiniões que a fortuna crítica sobre os poetas
marginais apresente, é essencial que se compreenda a importância que o trabalho e a
atividade dos autores tiveram em seu contexto histórico: “Às severas restrições de que foi
objeto, principalmente quanto ao seu ‘estatuto literário’, responde com um substancial
acréscimo do número de poetas, poemas e leitores” (PEREIRA; HOLLANDA, 1982, p.
77). Até mesmo o “desleixo formal”, alvo de críticas de alguns exegetas, desempenha
função eloquente face à situação em que escreviam os autores daquele momento:

Do ponto de vista literário, os textos trabalham coloquial e ludicamente


a linguagem, voltando-se agora para a realidade mais imediata do
poeta: o cotidiano próximo, o gesto, o registro bruto do momento.
Reivindicam-se o descompromisso, a gratuidade e a brincadeira como
bandeiras da prática poética e como “bandeira” de uma postura crítica
frente à ordem moral e institucional. O culto do instante e do “aqui e
agora” – outro eixo fundamental da nova poesia – evidencia, não raro,
certos traços do projeto ideológico que norteou a política de resistência
na linha das sugestões da contracultura do início da década. (PEREIRA;
HOLLANDA, 1982, p. 77) (grifos nossos)

De fato, a grande relevância da produção cultural daquele momento era manter a


cultura brasileira viva e ativa:

O movimento cultural pós-64 se caracteriza por duas vertentes que não


são excludentes: por um lado se define pela repressão ideológica e
política; por outro, é um momento da história brasileira onde mais são
produzidos e difundidos os bens culturais. (ORTIZ, 1998, p. 61)

O “projeto ideológico” de uma “política de resistência”, como destacam Pereira e


Hollanda, foi de grande importância para o Brasil no momento. Grupos de poetas por
todo o país se organizavam e promoviam eventos e “happenings” para a divulgação de
sua obra e, não menos importante, como forma de preservarem um espírito de resistência
cultural.

[...] ignorando as tertúlias acadêmicas, a poesia, na contramão, ainda


que de conjunto bastante desigual, oscilando entre um resultado de
valor propriamente literário e aquele cujo interesse se limita a sua
qualidade de sintoma de um fenômeno de peso sociológico, constitui-
326

se como um “acontecimento” insofismável do interior da produção


cultural jovem pós-AI-5. (PEREIRA; HOLLANDA, 1982, p. 77) (sic)

Os autores finalizam, com um sutil toque de ironia: “a década de 70 foi tomada de


assalto pela palavra do poeta. Há, entretanto, quem tenha declarado que nada de novo
aconteceu no reino da poesia” (1982, p. 77).
Neste trabalho procuraremos demonstrar que a poesia de Ana C. se difere em
vários destes pontos que são considerados como característicos da época em que escreveu,
principalmente quanto ao aspecto da conexão entre vida pessoal e obra literária, assim
como nas atitudes da autora para com essa arte, tal que o fato Ana Cristina ser não apenas
produtora, mas estudiosa de literatura. Na sequência, passamos a uma revisão biográfica
da autora em tela, para, depois, realizar uma revisão de seus principais conceitos estéticos,
juntamente com a análise de poemas em que esses conceitos transpareçam.

Ana C. e sua individualidade como artista

Ana Cristina César (1952-1983) nasceu e viveu no Rio de Janeiro, mas fez
diversas viagens para diferentes lugares, tendo morado inclusive fora do Brasil, na
Inglaterra, em razão de seu mestrado. Ela escreveu e publicou diversas coletâneas de
poemas, assim como livros sobre estudos literários e tradutológicos e artigos de opinião.
Sua vida encontrou um fim talvez prematuro, com seu suicídio, aos 31 anos.
Além de ser poeta e escritora, Ana Cristina Cesar também foi uma conhecedora
de literatura. Ela se formou em Letras pela PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro), cursou mestrado em “Theory and Practice of Literary Translation” na
University of Essex, na Inglaterra, e mestrado em Comunicação pela UFRJ (Universidade
Federal do Rio de Janeiro) – tudo isso entre 1975 e 1980, o que demonstra intensa
atividade acadêmica. Também interessava-se e estudou o tema da condição social
feminina e do estatuto da escritura feminina. Acredita-se, até mesmo, que Ana C. se
encontrava em processo de pesquisa e escrita de um livro acerca da temática da escrita
feminina na época que antecedeu a sua morte (CAMARGO, 2003).
Entre suas obras estão: Cenas de Abril (1979), Correspondência completa (1979),
Luvas de pelica (1980), Literatura não é documento (1980) e A teus pés (1983), o último
que publicaria em vida. Outras coletâneas foram publicadas postumamente, tal como ela
“previu” em Luvas de pelica: “Quando você morrer os caderninhos vão todos para a
327

vitrine de exposição póstuma. Relíquias”. Entre as mais significativas, podem ser citadas:
Inéditos e dispersos (1985), Escritos na Inglaterra (1988), Escritos no Rio (1993) – todas
organizadas pelo amigo de Ana C., Armando Freitas e, mais recentemente, em 2008,
Antigos e soltos, organizada por Viviana Bosi.
Tendo participado da coletânea 26 poetas hoje, organizada Heloísa Buarque de
Hollanda (2007), sua poesia ganhou reconhecimento no meio intelectual em sua própria
época. Depois disso, publicou seus poemas em edição independente e, no contexto da
repressão política e “marginalidade” artística em que vivia, devido à ditadura militar,
lançou através de uma editora apenas seu último livro.
Contudo, cada vez mais estudos, na atualidade, tratam de como seu projeto poético
não se limita aos preceitos "marginais" e como sua obra se diferencia da de outros autores
reconhecidos da época. Sobre isso, Ivan Junqueira (1987) afirma que:

Enganam-se os que supõem haver desleixo formal ou discursivismo no


verso da autora. Tais características são antes atributos da má poesia
que escreveram quase todos os seus companheiros de geração. Esse
aparente desleixo nada mais é que uma estratégia destinada a impedir
que se coagulem a fluência do discurso e o ritmo do verso.
(JUNQUEIRA, 1987, p. 1)

Como já foi discutido, o modo de produzir e a liberdade de criação que os autores


conferiam aos seus versos servia também como uma forma de protestação política, como
um posicionamento ideológico. Mesmo assim, é certo que alguns críticos desconsideram
tais fatores e acabam por classificar, de forma simplificada, a obra daquela época como
“má poesia”. De qualquer maneira, Ana C. reconhecidamente difere-se dos outros de sua
época, principalmente nessa despreocupação que seus colegas pareciam ter para com o
texto, a informalidade da escrita e, principalmente, a aproximação (ou fusão) entre autor
e eu-lírico podiam ser partilhadas por seus contemporâneos, mas não por Ana Cristina.
Mesmo assim, de forma geral, por muito tempo sua obra foi estudada a partir de
dois prismas principais: seu contexto histórico ou sua morte trágica. Isso acaba sendo uma
simplificação de sua produção literária, que é bem mais complexa do que isso – e de que
esta pesquisa se ocupou em demonstrar, através de um viés possível de leitura. Em uma
carta a um amigo, Ana C. deixou o seguinte pedido:

Navarro, te deixo meus textos póstumos. Só te peço isto: não permitas


que digam que são produtos de uma mente doentia! Posso tolerar tudo
menos esse obscurantismo biografílico. Ratazanas esses psicólogos
328

da literatura – roem o que encontram com o fio e o ranço de suas


analogias baratas. Já basta o que fizeram ao Pessoa. (CESAR apud
MALUFE, 2006, p. 17) (grifos nossos)

Para a autora, “intimidade” e história pessoal basicamente não são relacionadas à


literatura produzida – como será discutido mais adiante.
Ainda que tenha, de fato, compartilhado em alguns aspectos e contribuído com a
estética de seus contemporâneos, cada vez mais estudos mostram como grande parte de
sua obra diferiu da dos outros escritores e artistas de seu tempo. Ana Cristina Cesar,
portanto, não pode ser tomada apenas como uma representante das características
estéticas da época em que escreveu, mas como uma artista de variadas facetas e expressão
estética significativa, que, principalmente, não seguiu nem apenas os modelos clássicos
nem unicamente as tendências momentâneas.
Alguns estudiosos são enfáticos:

O fato de Ana Cristina ter aparecido em edições independentes e de ter


mantido relações até mesmo de amizade com alguns dos poetas
tradicionalmente ligados à Poesia Marginal não bastam para classificá-
la entre eles. Sua arte tem, no quadro da época, uma posição
bastante independente. É mais intelectualizada, auto-crítica e cônscia
dos próprios limites. (SALVINO, 2002, p. 64) (grifos nossos)

De fato, a obra de Ana C. é intelectualizada. Embora seus contemporâneos


praticassem uma literatura “off literária”, sem ocuparem-se de conhecer a tradição
literária ou dialogar com esta e, de certa forma, uma obra mais próxima das suas vidas e
mais distante das bibliotecas, Ana C. não compartilhava dessa atitude. Como já foi
mencionado, ela era uma estudiosa de literatura e de assuntos relacionados às Letras,
como tradução e comunicação. Desta forma, Ana Cristina preocupava-se com a qualidade
da literatura. Como podemos inferir de um de seus poemas, desconfia da poesia
"inspirada", uma vez que "a gente sempre acha que é / Fernando Pessoa" (CESAR, 1985,
p. 182). Isso se reflete em sua obra e em sua crítica. Em um depoimento dado no curso
Literatura de mulheres no Brasil, quando perguntada “A sua poesia, ela flui
naturalmente?”, Ana C. responde: “De jeito nenhum. (risos)” (CESAR, 1985, p. 271).
Tal declaração nos permite perceber que o modo de produzir literatura da autora
se diferencia daquele partilhado por seus companheiros de época, que prezava por uma
poesia “instantânea” e “despoetizada”, “off literária” e “cotidiana”, como já discutido.
329

Tendo situado Ana C. em seu contexto artístico e mencionado um dos principais


pontos que a difere de seus contemporâneos, ou seja, seus estudo e conhecimento de
literatura, a seguir, aprofundaremos nosso estudo acerca das concepções poéticas de Ana
Cristina, ilustrando tais conceitos com análises de poemas de sua autoria em que estes se
reflitam.

A teoria de Ana Cristina Cesar

Inicialmente, é importante notar que o foco deste trabalho é entender e analisar o


pensamento crítico e teórico da autora Ana Cristina Cesar e, por uma questão de
manutenção de perspectiva, outros autores e outros teóricos serão mencionados apenas
quando fundamentalmente necessários, mesmo que a análise contrastiva dos conceitos
apresentados pela autora seja uma proposta de trabalho igualmente válida, assim como
uma possibilidade para estudos posteriores.
Comecemos pela reflexão pelo ponto de que Ana C. expressou sua poética tanto
em língua portuguesa quanto em inglesa, mesmo que predominantemente na primeira,
inclusive misturando os dois idiomas. Desta maneira, demonstra perícia também em
manipular outras formas de linguagem, assim como utiliza de seus estudos para a
produção poética.
De fato, a manipulação linguística é um dos temas caros à autora, uma vez que ela
expressa acreditar que a poesia se faz exatamente a partir da manipulação de palavras e
de ritmos. Ana Cristina preocupava-se com a qualidade da literatura. Como podemos
inferir de um de seus poemas, desconfia da poesia "inspirada", uma vez que "a gente
sempre acha que é / Fernando Pessoa" (CESAR, 1985, p. 182). Assim, a poeta questiona
sua própria produção, o que nos aponta para uma preocupação com seu fazer poético e
mostra uma "desconfiança" da poeta em relação ao verso "fácil" e é um sinal de que
podemos classificar Ana C. como uma poeta artesã, em contraponto ao poeta inspirado,
como classificou Duffrenne (1969). Para este teórico, o primeiro é o “artesão da
linguagem” (1969, p. 124), que constrói o poema de forma deliberada e calculada. O poeta
inspirado, por sua vez, “é menos cioso de seu ato do que propriamente de seu estado”
(1969, p. 219), ou seja, ocupa-se do “estado poético” mais do que da construção do
poema.
330

Annita C. Malufe (2006) discorre sobre as acepções de Ana Cristina sobre as


relações entre a intimidade do poeta (pessoa de carne e osso) e a produção da poesia.
Assim, a estudiosa sintetiza alguns conceitos importantes à nossa pesquisa:

para se produzir literatura, Ana C. acredita ser possível partir de uma


emoção, um sentimento. Contudo, essa intimidade só é apropriada pelo
escritor enquanto uma espécie de material bruto, inicial, sobre o qual
será necessário trabalhar, empregando o que ela chama de "olhar
estetizante". (MALUFE, 2006, p. 56-7)

Desenvolvendo essa acepção, para Ana C., a criação do poema é um trabalho


intelectual e não emocional. A emoção não tem lugar no fazer poético. Malufe,
interpretando declarações e textos de Ana C., afirma que:

segundo ela [Ana], nesta operação obrigatória para se produzir o texto


literário, poético, não há como ser fiel ao sentimento inicial, ainda que
assim o desejasse. Neste sentido, não haveria como fugir do fingimento.
(MALUFE, 2006, p. 56-7)

Assim, o trabalho intelectual é a parte mais importante da criação poética. Um dos


poemas de Ana C. que bem ilustra esse conceito é o Poema Óbvio:

POEMA ÓBVIO

Não sou idêntica a mim mesmo


Sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo
[ponto-de-
vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante.

Neste primeiro, podemos perceber a coexistência de diferentes eu-poéticos que se


sobrepõem no momento da escritura poética, ou seja, a possibilidade do poeta se expressar
através de diferentes "identidades" poéticas – como os heterônimos de Pessoa. Isso se dá,
de fato, porque a biografia não tem relação com a escrita poética, no conceito de Ana C.
Em toda a sua obra, Ana C. deixa pistas de como sua literatura é forjada e pensada,
pesada e analisada antes de ser escrita. Longe da escrita “instantânea” e “natural”
produzida pelos colegas de geração, a sua obra é fruto de cuidadosa elaboração artística.
A criação literária de Ana C. acabou tão ligada à de seus contemporâneos que, de certa
forma, foi pouco ou mal compreendida por décadas. Os seus “diários” e “cartas”, mesmo
331

que absolutamente inventados e nada íntimos, foram tomados como puros exemplos da
poesia da época.
Outros fatores, como o próprio gênero feminino de Ana e o fim trágico e
inesperado de sua vida acabaram causando que as leituras da obra da poeta fossem
limitadas e, de certa forma, repetitivas, enfocando na análise dos textos da autora como
sendo simples exemplares da poesia produzida na época ou uma escavação em busca de
traços de depressão ou sinais de um futuro suicídio.

Todos estes pontos tornam-se mais relevantes se tivermos em mente o


quanto a questão da escrita feminina, tida simplificadamente pelo senso
comum enquanto uma escrita de intimidade, de confissões, e o quanto
a ideia de depressão, angustia ou desequilíbrio participaram das leituras
de identificação romântica da vida de Ana C. e sua obra que perduram
até hoje. (MALUFE, 2006, p. 96)

Apenas no século seguinte, quase vinte anos depois de sua morte e da publicação
dessas obras que seus textos começaram a ser compreendidos como criação literária e não
pura literatura confessional. De fato, somente tanto tempo depois é que as “leituras de
identificação romântica”, como postulou Malufe, perdem a vez. Compreende-se agora
que “olhando de viés para seu próprio tempo, Ana Cristina cria seus ‘diários mentirosos’,
num pastiche irônico dessa poesia de ‘papo-geracional’.” (CAMARGO, 2003, p. 44)
(grifos nossos)
Para Flora Süssekind, “como voz, e não propriamente como personagem, auto-
retrato, emblema geracional ou figura com máscaras ou contornos fixos, é que se define
o sujeito nos textos de Ana Cristina Cesar.” (SÜSSEKIND, 2007, p. 12-3)
De fato, a criação da autora “ironizava” a premissa de o autor despejar sua
subjetividade em forma de texto e, também, com o fato de o leitor buscar algo de pessoal
e íntimo na escrita literária. O que temos nos diários e nas cartas escritas por Ana C. é,
realmente, inventado:

Os diários que encontramos em Luvas de pelica ou Cenas de abril são


falsos, mas não apenas isto, são diários desmontados, destorcidos onde
quem fala não é mais Ana C., mas sim, em que a própria linguagem se
fala. Muitas coisas passam por ali, infinitas conexões, para além da
autora e os fatos de sua vida íntima. (MALUFE, 2006, p. 70-1) (grifos
nossos)
332

A respeito de Ana Cristina ter também escrito gêneros (como diários e cartas)
populares entre os artistas da época, Süssekind analisa que:

Isso não significou, como se sabe, no caso de Ana Cristina Cesar, a


opção por textos-retratos ou pelo puro e simples diário de uma “vida
real” ou uma geração. Percebida a “lei do grupo”, Ana Cristina,
ainda em meados dos anos 70, ficcionalizaria correspondências e
jornais íntimos [...] guardados na pasta rosa de “inacabados, soltos ou
rejeitados”, nas quais brinca diretamente com o que chama de
“obscurantismo biografílico”. (2007, p. 41) (grifos nossos)

Nas palavras da própria poeta: “não quero transmitir pra você uma verdade acerca
da minha subjetividade. É uma impossibilidade até.” (CESAR, 1999b, p. 273). Anchyses
Jobim Lopes teoriza isso que Ana chama de “impossibilidade” de transmitir a
subjetividade individual, a “intimidade”: “Sendo todo ‘eu’ lírico uma construção
dramática o poeta jamais fala em nome de sua identidade e individualidade empíricas”
(LOPES, 1996, p. 160). Realmente, qualquer tentativa de encontrar alguma intimidade na
obra de Ana C. (deixando-se levar pelo que Süssekind chama de “sedução voyerística”
(2007, p. 13)) que o leitor chegue a empreender acaba frustrada. Outra frase da autora
completa isso: “percebi que no ato de escrever a intimidade ia se perder mesmo” (p. 270).

Aqui é fingido, é inventado, certo? Não são realmente fatos da minha


vida. É uma construção. Mas há muitos autores que publicam diário.
Quando você ler o diário do autor, de verdade, que ele escreveu sem
uma intenção propriamente de fingimento, você vai procurar a
intimidade dele. Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra
intimidade aí. Escapa… Então, exatamente o que é colocado como uma
crítica é, na verdade, a intenção do texto. (CESAR, 1985, p. 256)
(Grifos nossos)

Como fica claro, não é espaço para a intimidade da “pessoa civil” e “onírica” nos
textos poéticos que Ana Cristina Cesar produz (emprestando os termos utilizados por
Lopes (1996)). Malufe, interpretando declarações e textos de Ana C., afirma que:

segundo ela [Ana], nesta operação obrigatória para se produzir o texto


literário, poético, não há como ser fiel ao sentimento inicial, ainda que
assim o desejasse. Neste sentido, não haveria como fugir do fingimento.
(MALUFE, 2006, p. 56-7)

Como é possível perceber, a construção do texto poético, para Ana Cristina Cesar,
significava um processo intelectual. Em outro texto, ela afirma: “arte implica trabalho,
333

elaboração estética [...]” (CESAR, 1985, p. 159); “É nessa intervenção realizada pelo
artista que reside o seu interesse literário, e não na fidelidade da ‘transposição’ de uma
determinada realidade para o literário.” (CESAR, 1985, p. 156, grifos nossos).
No poema abaixo, Ana C. demonstra sutilmente o modo como emoção pessoal e
escritura poética são separados:

imagino como seria te amar

teria o gosto estranho das palavras


que brincamos
e a seriedade de quando esquecemos
quais palavras

imagino como seria te amar:


desisto da ideia numa verbal volúpia
e recomeço a escrever
poemas
(CESAR, 1999b, p. 87)

É interessante percebermos que a voz poética separa os momentos de imaginar e


escrever. Na verdade, é como se o início do poema fosse o começo de uma pausa na
atividade, um breve momento em que o eu-lírico abandona-se em pensamentos e se deixa
levar pela imaginação, em uma espécie de “day dream”, como que sonhando acordado.
Tanto que, no quinto verso, “palavras” são esquecidas, restando apenas o “quais
palavras”, como uma pergunta sem de fato perguntar nada. O poema todo só possui um
sinal gráfico de pontuação, os dois pontos no primeiro verso da terceira estrofe, que
parece o momento em que a voz poemática “retorna” à sua atividade de escrita,
exatamente quando desiste de pensar e recomeça a escrever, poemas, ou não: a palavra
“poemas”, também, acaba “abandonada” no último verso, sem sinal de pontuação que
marque um final distinto. A falta de pontuação transmite uma atmosfera de abandono ao
poema, como se, mal tendo começado, nunca realmente terminasse.
Isso pode ser compreendido à luz de outra declaração de Ana Cristina: “a poesia
[...] tem um universo próprio” (CESAR, 1999b, p. 264). Ou seja, através da poesia cria-
se – o “universo” poético de que fala Ana tem seu próprio estatuto. Um trabalho que
ilustra esta concepção poética da autora é o metapoema Como rasurar a paisagem, em
que Ana C. tematiza a impossibilidade de refletir a realidade através de literatura:

a fotografia
é um tempo morto
334

fictício retorno à simetria

secreto desejo do poema


censura impossível
do poeta
(CESAR, 1999b, p. 77)

Neste poema, percebe-se claramente que a transposição do real para o poema é


impossível e que esta impossibilidade é causada pelo poeta. O poema, contudo, tem o
“secreto desejo” de ser, de fato, como uma fotografia. Podemos interpretar que isso se dá
devido ao fato de que a função principal do poema é transmitir e reproduzir no eventual
leitor o “efeito poético”, como explica Dufrenne (1969). A fotografia, por sua vez, é um
retorno, através da ficção, ou seja, através de um construto humano, à simetria original,
ao mundo real, onde se inspirou e onde se iniciou. Porém, para que isso seja possível, é
um “tempo morto”. A autora, construindo uma relação entre as duas formas artísticas, ao
definir a fotografia como um tempo morto, exclui a poesia dessa paralisação temporal e,
consequentemente, subentende que a poesia pertence a um tempo “vivo”, em constante
movimento e mudança.

REFLEXÕES FINAIS

Neste artigo, procuramos analisar alguns dos principais conceitos teóricos e


estéticos da poeta carioca contemporânea Ana Cristina Cesar e de que forma conseguimos
percebê-los em sua produção artística.
A autora, diferentemente de grande parte de seus contemporâneos marginais, foi
tradutora, estudiosa de literatura e de teorias sobre literatura, comunicação, assim como
possuía vasta leitura dos cânones, tendo escrito poemas e ensaios sobre poesia, arte e
literatura. Dedicou também poemas ao fazer poético, metapoemas, o que mostra que
refletia sobre seu ofício.
Esta pesquisa não teve foco quantitativo nem teve a intenção de contrastar os
conceitos de Ana C. com os de outros teóricos, ainda que tais perspectivas possam ser
caminhos interessantes e produtivos. Contudo, esperamos que este trabalho contribua
para pesquisas futuras, assim como divulgue a poesia e a teoria de Ana Cristina Cesar,
demonstrando também sua importância para a literatura de expressão em língua
portuguesa.
335

Referências

CAMARGO, M. L. de B. Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia de Ana Cristina
Cesar. Capecó: Argos, 2003.

CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Editora Ática, 1998.

CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999.

CESAR, Ana Cristina. Inéditos e dispersos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

DUFRENNE, M. O poético. Trad. Nunes, Luiz Artur; SOUZA, Reasylvia Kroeff de.
Porto Alegre: Editora Globo, 1969.

HOLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). 26 poetas hoje. Rio de Janeiro: Editora


Aeroplano, 2007.

HOLLANDA, H. B. de. A poesia marginal. 2011. Disponível em:


<http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/?p=559> Acesso em: 5 ago. 2016.

HOLLANDA, H. B. de; PEREIRA, C. A. M. Poesia jovem anos 70. São Paulo: Abril
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JUNQUEIRA, I. Ana Cristina Cesar: a vocação do abismo. In: O Estado de S. Paulo, São
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MALUFE, Annita Costa. Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar. São
Paulo: Annablume, FAPESP, 2006.

MARCHI, Tatiane; FRANCHETTI, Paulo. Ana Cristina Cesar e a poesia marginal.


Revista Língua, Literatura e Ensino, v. IV. Maio/2009. p. 385-94.

ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1998.

PEREIRA, C. A. M. Poesia marginal: literatura e cultura nos anos 70. In: Em busca do
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RODRIGUES, L. G. Ana Cristina Cesar: não tão marginal assim. Diálogo e interação,
Cornélio Procopio, v. 5, 2011. ISSN 2175-368.

SALVINO, R. V. Ana Cristina Cesar: entre o eu e o outro. Estudos de literatura brasileira


contemporânea, Brasília, n. 19. Maio/Jun. 2002. ISSN 1518-0158.

SANTIAGO, S. Poder e alegria: a literatura brasileira pós-64 – reflexões. In: Nas malhas
da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

SÜSSEKIND, F. Até segunda ordem não me risque nada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
336

A SAGA DE MALINCHE EM XICOTÉNCATL (1826): DAS AÇÕES


HISTÓRICAS À FICCIONALIZAÇÃO ROMANESCA

Leila Shaí Del Pozo González110 (PG - CAPES, UNIOESTE)

Malinche, Malintzin, Malinalli ou doña Marina seriam os nomes que


referenciam a única personagem histórica feminina autóctone relevante na conquista da
Nueva España. Ela serviu como tradutora, guia, conselheira estratégica, amante e
confidente de Hernán Cortes, porém não teve voz própria. Somente cronistas como
Francisco López de Gómara e Bernal Díaz del Castillo, cada um com seus
posicionamentos com respeito a ela, a mencionam e descrevem seus atos. Outro nicho de
informação sobre a sua participação na história encontra-se nas ilustrações do Códice
Florentino encomendadas por autoridades coloniais e feitas por indígenas. Neles podemos
percebê-la como personagem central e ativa na conquista, como na iconografia a seguir:

Figura. Recorte do Códice de Tizatlan111.

110
Leila Shaí Del Pozo González – Formada em Letras Português – Espanhol pela UNIOESTE (Campus
Cascavel-PR). Bolsista CAPES. Participante do programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE/Cascavel-Brasil), com menção em Linguagem
Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, PPGL/2015. Integrante do grupo de pesquisa
“Ressignificações do passado na América Latina: leitura, escrita e tradução de gêneros híbridos de história
e ficção – vias para a descolonização”, coordenado pelo Prof. Dr. Gilmei Francisco Fleck. Colaboradora
dos projetos de extensão “Estudos das teorias contemporâneas de análise literária - segunda fase” e
“Literatura, História, Memória e Sociedade: estudos das inter-relações e suas dinâmicas – segunda fase”,
vinculado ao PELCA – Programa de Ensino de Literatura e Cultura/PROEX-Unioeste-Cascavel. E-mail:
leilashai@hotmail.com.
111
Malinche encontra-se na base/centro da pintura. Benson Latin American Collection, University of Texas,
Austin, USA. Disponível em:
<http://www.smith.edu/vistas/vistas_web/gallery/detail/tlaxcala_det.htm>. Acesso em: 12 jul. 2016.
337

O problema está em que as representações pictográficas, em geral, trazem


problemas de interpretação posterior, pois se faz necessário que alguém explicite112 o que
foi representado na cena da pintura. Porém, pela presença sempre centralizada da imagem
de Malinche nos registros pictográficos coloniais, não há dúvidas de que esta personagem
tenha sido alguém de importância.
As suas origens, no entanto, não foram completamente comprovadas pelos seus
biógrafos. Alguns dizem, baseados nas crónicas de López de Gómara, admirador da
personagem, que ela foi uma princesa vendida pela própria mãe (HERREN, 1993). Mas
com o que todos os estudiosos concordam é que ela, definitivamente, não foi mexica
(asteca), mas da etnia da região de Coatzacoalcos. Além do mais, no contexto da
conquista, não existia ainda a nação mexicana tal qual hoje, pois a península de Yucatán
estava povoada por varias culturas, dentre as quais, além da confederação mexica,
moravam tlaxcaltecas, zapotecas, cempoalas etc. Não era um conjunto homogêneo como
pensamos hoje.
Malinche chegou a Cortés como uma entre o grupo de vinte escravas que o povo
Totonaca presenteou-lhe. Portanto, segundo Taylor (2000), tratava-se de uma mulher
treinada para ser submissa em todo momento a quem seja que fosse o seu dono. Ela
rapidamente destacou-se pela inteligência, domínio de línguas nativas e facilidade em
aprender o castelhano (HERREN, 1993).
Um dos pontos interessantes na pesquisa sobre esta personagem é que chamada
Malintzin pelos nativos, uma demonstração de apreço por parte dos seus conterrâneos,
prontamente designaram o nome Malinche para Cortés (HERREN, 1993). O vocábulo
Malinche significa “o amo de Marina”. Para termos uma ideia da importância desta
mulher, esta seria a primeira vez na história registrada do nosso continente que é utilizado
o nome de uma mulher para fazer referência a um homem (o nome de uma escrava
autóctone para referenciar seu amo europeu).
O período de conquista da Nueva Espanha se deu entre 1519 a 1521. Neste período
Cortés silenciou a importância de Malinche, como mostramos a seguir:

Y estando algo perplejo en esto, á la lengua que yo tengo, que es una


india desta tierra, que hobe en Putunchan, que es el rio grande de que
ya en la primera relación á V. M. hice memoria, le dijo otra, natural

112
[…] el problema no es la representación de la escritura por medio de dibujos, sino la interpretación
posterior de las imágenes. Hay que tener en cuenta que los códices —y sus asemejados— no solo conservan
una parte pequeña de la historia, sino que, además, requieren un narrador que explique la escena.
(BALADÃO DE AGUIAR, 2013, p. 139 - grifo nosso).
338

desta ciudad, como muy cerquita de allí estaba mucha gente de


Muteczuma junta, y que los de la ciudad tenían fuera sus mujeres é hijos
y toda su ropa, y que hablan de dar sobre nosotros para nos matar á
todos; é si ella se queria salvar, que se fuese con ella, que ella la
guarecería; la cual lo dijo á aquel Jerónimo de Aguilar, lengua que yo
hobe en Yucatán, de que asimismo á Y. A. hobe escrito, y me lo hizo
saber; é yo tuve uno de los naturales de la dicha ciudad, que por allí
andaba, y le aparté secretamente, que nadie lo vio, y le interrogué, y
confirmo con lo que la india y los naturales de Tascaltecal me habían
dicho; é así por esto como por las señales que para ello había, acordé
de prevenir antes de ser prevenido, é hice llamar á algunos de los
señores de la ciudad, [...] (CORTÉS, 1866, p. 73 - grifo nosso).

Nas Cartas de Relación, Cortés apenas a menciona em três momentos. Nos dois
primeiros, como no exemplo acima citado, o capitão estremenho utiliza: lengua, india
desta tierra, ella, lengua, mas não seu nome. A única vez que se refere a ela pelo nome é
quando Cortés, finalmente, não precisa mais dela, segundo o biógrafo Herren (1993).
No espaço dos séculos XVII a XVIII, segundo Francis Karttunen (1997), a
imagem de Malintzin foi muito positiva nos livros da história. A Eva-Malinche, de acordo
com a estudiosa, nasce configurada pelo movimento nacionalista mexicano pós-
independentista ao lhe serem atribuídas acusações caluniosas de traição, deslealdade e
vende-pátria, numa operação orquestrada conjuntamente não somente por nacionalistas,
mas, também, por artistas, pintores e escritores (KARTTUNEN, 1997).
Conforme Taylor (2000, s.p.), entre os historiadores encarregados de formar a
nova imagem de Malinche estão Octavio Paz e Frans Blom. Em 1936, explica, Blom teria
afirmado que “se não tivesse sido pela sua devoção a Cortés, ela poderia ter conseguido
a total destruição da pequena armada espanhola ao incitar seus conterrâneos a resistir e
atacá-los.” Já Karttunen (1997, p. 297) agrega que Octavio Paz em seu Labirinto da
solidão teria descrito a Malinalli como a chingada original e chamado à nação mexicana
de hijos de la chingada. Por último, quem, nesse sentido, aportou à atual imagem desta
personagem histórica foi Carlos Fuentes quem no seu livro O espelho enterrado descreve
a La Malinche como: “La intérprete, pero también la amante, la mujer de Cortés, la
Malinche estableció el hecho central de nuestra civilización multirracial, mezclando el
sexo con el lenguaje”. (FUENTES, 1992, p. 124-125).
Malinche hoje ainda é considerada como o “símbolo materno de la realidad
interétnica de la nación y puente entre culturas, o alegoría de la claudicación ante el
conquistador: la Malinche traidora a su pueblo.” (MARTIN, 2007, p. 5). Igualmente, é
chamada de “la Eva-Malinche en palabras de Sonia Montecino, y […] la ‘madre y puta,
339

traidora y útero simbólico de la nación mexicana’ en la conocida frase de Fernanda


Núñez Becerra” (MARTIN, 2007, p. 11).
Para termos uma ideia do imaginário coletivo mexicano hoje sobre Malintzin,
tomamos como exemplo uma música que ilustra com sua letra esta configuração negativa
de Malinche. Esta música se intitula “Maldición de Malinche”, gravada em 1975, do autor
Gabino Palomares (os grifos são nossos):

Del mar los vieron llegar /mis hermanos emplumados eran los hombres
barbados de la profecía esperada. [...] Porque los dioses ni comen /ni
gozan con lo robado /y cuando nos dimos cuenta /ya todo estaba
acabado. En ese error entregamos /la grandeza del pasado /y en ese
error nos quedamos /300 años esclavos. Se nos quedó el maleficio /de
brindar al extranjero /nuestra fe nuestra cultura /nuestro pan nuestro
dinero /hoy les seguimos cambiando /oro por cuentas de vidrios /y
damos nuestra riquezas /por sus espejos con brillos. Hoy en pleno
siglo 20 /nos siguen llegando rubios /y les abrimos la casa /y los
llamamos amigos. Pero si llega cansado /un indio de andar la sierra
/lo humillamos y lo vemos /como extraño por su tierra /Tú, /hipócrita
que te muestras /humilde ante el extranjero pero te vuelves soberbio
/con tus hermanos del pueblo. Oh /maldición de malinche /enfermedad
del presente /cuándo dejarás mi tierra /cuándo harás libre a mi gente.

A letra da música mostra claramente como se atribui à Malinche a maldição que


faz com que o povo deseje ofertar tudo ao estrangeiro em detrimento dos próprios
compatriotas, diminuindo a própria cultura, favorecendo tudo o que vem de fora. O
ideário indigenista, iniciado no século XIX, fala dessa maldição. Segundo esta posição,
“a Malinchista”113 is a person who disdains the native ways of life and always favors the
foreigner for profit or because of a feeling of inferiority.” (TAYLOR, 2000, s.p.)
Outro termo utilizado é “La chingada”114 (TAYLOR, 2000), termo que referencia
até hoje a Malinche como a estuprada que, seduzida pelo estrangeiro, submissa se entrega
a ele. Desse modo, segundo Taylor (2000), a ideologia indigenista nacionalista
recomenda Malinche como “o modelo feminino que nunca deverá ser seguido pelas
mulheres mexicanas”. Frances Karttunen (1997, p. 297, tradução nossa) menciona: “num
abrir e fechar de olhos, ela teria sido rebaixada de uma personagem-chave como intérprete

113
Nossa tradução: “um Malinchista é a pessoa que despreza o modo de vida autóctone e favorece tudo o
estrangeiro devido ao seu sentimento de inferioridade.” (TAYLOR, 2000, s.p.).
114
“La Chingada (a term which is still used today in reference to her, and which literally means she’s
“fucked”)”. (TAYLOR, 2000, s.p.).
340

e conselheira (tal qual representada nas crónicas) a amante e concubina de Cortés, traidora
de sua raça e mãe dos mestiços”115.
Não devemos esquecer que a noção de raça implica uma população homogênea,
porém, como já foi indicado acima, o território que hoje conhecemos por México não era
povoado somente por uma etnia. Malinche é nativa de somente uma dessas etnias e, na
sua época, não existia ainda essa consciência de nação. Assim, na prática, Malinche não
traiu o império asteca, pois ela não era parte dele. Comprova-se desse modo que a ideia
de “traidora de sua raça” foi um construto ideológico criado durante o movimento
indigenista mexicano.

Sobre nossa pesquisa

O romance Xicoténcatl (1826), de autor anônimo, apresenta um contexto de


publicação interessante: a obra é publicada com autoria anônima, na língua espanhola,
em Filadélfia, Estados Unidos (1826). Constitui-se no primeiro romance histórico Latino
Americano (UREÑA, 1991). Até o momento esta importante obra apresenta apenas duas
traduções: a de Guillermo Castillo-Feliú (1999), versão ao inglês que foi realizada como
parte de um projeto da Texas University. A segunda versão foi elaborada ao português
por Anthoni Cley Sobierai e Gilmei Francisco Fleck (2013) na Unioeste/Cascavel – PR.
O objetivo da nossa pesquisa está em verificar a configuração da personagem doña
Marina nesse primeiro romance histórico latino-americano e compará-la com as imagens
presentes nas traduções da obra. Da mesma forma, pretendemos verificar se essas
imagens contribuíram ou não para a formação atual da imagem de Malinche no
imaginário mexicano.
Xicoténcatl (1826) trás a primeira configuração da personagem Malinche na
literatura, dai o nosso interesse por estudar a configuração ficcional adjudicada à
personagem histórica. Em tese, ao apresentar a primeira configuração ficcional da
personagem histórica, no contexto de independência das nações que foram parte das terras
coloniais reclamadas pela Espanha, esta seria o modelo tomado como base para a
formação do mito da Eva-Malinche que hoje se apresenta no imaginário coletivo
mexicano.

115
“in a wink she was demoted [after independence] from crucial interpreter and counselor to lover and
wily mistress of Cortés, traitor to her race, mother of mestizos.” (KARTTUNEN, 1997, p. 297).
341

A obra de 1826 narra a história de Xicoténcatl o jovem, o único nativo tlaxcalteca


a perceber o perigo de se aliar aos espanhóis e que morre numa cilada preparada por
Cortés. Temos configurados nesse romance dois grupos bem definidos entre as
personagens: os protagonistas/heróis, que são os autóctones e os antagonistas, que são os
europeus encabeçados por Cortés e seus colaboradores europeus e autóctones.
Percebemos, portanto, que a obra expõe os eventos históricos da conquista do México por
meio da perspectiva do conquistado. Desse modo, o romance Xicoténcatl é o modelo
fundador do enfrentamento da literatura latino-americana com o cânone europeu na
condição de embrião do Novo Romance Histórico Hispano-americano.
Por outro lado, o romance expõe uma ruptura em relação ao Romance Histórico
Clássico (scottiano), como primeira produção latino-americana crítica no âmbito do
romance histórico. Desse modo, Xicoténcatl (1826) apresenta um discurso intencional
declarado na obra, um projeto político de crítica ao status quo da Nova Espanha (México):
um claro chamado à luta pela independência.
A seguir, apresentamos recortes do romance Xicoténcatl (1826) para ilustrar e
demostrar como a configuração adjudicada a Malinche não é a mesma da configuração
dada pelo movimento indigenista nacionalista mexicano, cuja imagem cultivada da nativa
é bastante negativa. Trazemos, assim, a princípio, um fragmento no qual outra
personagem se refere a Doña Marina, como podemos constatar abaixo:

[Ordaz sobre Cortés e Malinche] Su conducta en Santiago de Cuba pasó


por una galantería; pero, desde que ha empuñado el mando, se ha
quitado la máscara y, sin consideración a su carácter ni a la religión
que propala, casi hace ostentación de sus amores adúlteros con esa
india, quizá víctima de su seducción. [...] (ANÓNIMO, 1964, p. 85 -
grifo nosso).

Na conversa que introduz a personagem ficcional de Malinche no romance,


mostrada acima, a personagem Ordaz, desde a sua posição de impoluto, opina que: talvez
Malinche seja vítima da sedução de Cortés. No seguinte trecho vemos uma nova
configuração para Malinche, na voz do narrador: “Esta astuta sierpe tuvo la destreza de
tocar las fibras enfermas del corazón del honrado Ordaz, que, agradecido a sus útiles
consejos, comenzó a compadecerla por sus extravíos. (ANÓNIMO, 1964, p. 102, grifo
nosso). Dessa maneira a personagem Malinche é configurada como uma cobra astuta,
como maluca. Porém, à medida em que avançam as ações no romance vemos outra
configuração dada à personagem Malinche:
342

[…] —No, padre mío —decía a su confesor—; no hay remedio para


mí. Yo soy una grande pecadora y es menester que todo el Universo
conozca mis culpas y vea mis remordimientos, que el martirio que
sufro sirva de ejemplo y de escarmiento a los que, como yo, abandonan
la senda de la virtud. (ANÓNIMO, [1826] 1964, p. 139 - grifo nosso).

Na citação anterior, a personagem Malinche se arrepende da sua conduta e


confessa ser pecadora. Ela mesma declara ser justo que o universo todo saiba das suas
culpas e que veja seu remorso e aprenda com ela. A personagem espera que seu
sofrimento sirva de exemplo e dê lição para aqueles que abandonam o caminho da virtude.
No seguinte recorte a voz narrativa já muda de tom com respeito à personagem:

Violenta en sus pasiones, y viva y traviesa en sus talentos, esta


americana hubiera podido ser una mujer apreciable sin la corrupción
a que se la adiestró desde que ser reunió a los españoles. Sin embargo,
el tierno amor maternal derramó una dulce tinta sobre sus
sentimientos. (ANÓNIMO, [1826] 1964, p. 139 - grifo nosso).

No fragmento acima exposto podemos apreciar que a voz narrativa opina sobre a
personagem Malinche e declara que esta americana poderia ter sido uma mulher notável
sem a corrupção a que fora adestrada ao se unir aos espanhóis. Em outro momento,
Malinche mostra as suas convicções:

[…] cuando yo era una idólatra, según tú me llamabas, yo fui una


mujer virtuosa y mi humilde y desgraciada fortuna me tenían muy
lejos del heroísmo de esa matrona respetable que tienes a la vista; pero,
desde que fui cristiana, mis progresos en la carrera del crimen fueron
más grandes que las hermosas virtudes de Teutila. Abjuro para
siempre de una religión que me habéis enseñado con la mentira, con
la intriga, con la codicia, con la destemplanza y, sobre todo, con la
indiferencia a los crímenes más atroces. […] Di a Hernán Cortés que
su esclava amasará su pan, que lavará sus ropas, pero que no volverá
a ser la cooperadora de sus planes ambiciosos ni su cómplice en sus
desórdenes. (ANÓNIMO, [1826] 1964, p. 139 – grifos nossos).

Observamos nesse trecho citado a discussão entre as personagens Malinche e o


frei, representante da igreja católica. Malintzin critica a religião tal qual foi imposta
durante a conquista. Ela relata ao frei que era virtuosa quando idolatra, mas corrupta
quando cristã. Ela renuncia a fé imposta na qual foi batizada e volta a abraçar a sua
cultura. Finalmente, a personagem mostra-se virtuosa ao se arrepender e voltar,
efetivamente, aos seus costumes e valores autóctones.
343

Conclusões

Como apontado ao longo deste artigo, observamos a presença ativa de Malinche


na “conquista” de México através dos vários códices da época que a retratam no centro
da ação, ao lado de Cortés. Distinguimos que, igualmente, alguns cronistas tais como
Bernal Díaz e López de Gómara escrevem sobre ela e seus atos. Em contrapartida, Cortés
tenta, ao máximo, não mencioná-la e prefere silenciá-la da história como parte de sua
política de escrever de acordo com seus interesses políticos (PRIETO, 2003).
Apresentamos a obra Xicoténcatl (1826), o primeiro romance histórico latino-
americano, que carrega em seu discurso uma forma aberta de confrontação com o cânone
europeu da época instituído por Walter Scott e seus romances históricos clássicos. A
proposta do autor anónimo é de enaltecer os povos indígenas. Para tal, no final do
romance, todos os indígenas são bons e inclusive os inicialmente configurados como
vilões se redimem. Neste romance, observamos que a personagem ficcional Malinche é
configurada como uma personagem circular que inicia como vítima da alienação europeia
(o ‘Bom selvagem” de Rosseau), que é corrompida e que, porém, recebe a graça de se
arrepender, justificando o projeto político do romance em que os autóctones são todos
bons.
Por outro lado, antes do movimento nacionalista mexicano (séc. XIX) não se
considerava a figura da personagem histórica Malinche de maneira tão negativa. O
romance Xicoténcatl (1826) é prova daquilo, pois apresenta uma primeira configuração
de Malinche na literatura que, no final do romance, volta às suas raízes.
Ricoeur (2014) afirma que a história não pode tomar a memória como um
testemunho documental, e que, da mesma maneira que documentos não são neutros, esta
é só mais uma versão dos fatos. Vimos como Cortés deixa de escrever sobre a sua
intérprete e como ela não deixa registros próprios de sua história. Nesse ponto, a literatura
torna-se um elemento emancipador que possibilita o preenchimento dos vazios deixados
na historiografia. Tal qual Albuquerque e Fleck (2015, p. 30) apontam sobre os
silenciados da história, somente na arte ficcional que estes tantos seres podem ganhar voz
para manifestar as “verdades” das “mentiras” de nossa história oficial.
Nesse sentido, apontamos à importância de obras como Xicoténcatl (1826) na qual
são revividos e encenados momentos inenarráveis, mantendo viva a memória dos
silenciados, como La Malinche, a mulher autóctone, escrava, intérprete, amante e
344

conselheira política de Cortés, que não deixou registros escritos de próprio punho e letra
para desmentir as ditas ‘verdades’ que cada ciclo histórico atribuiu a ela de acordo com a
política vigente do momento.

Referências

ALBUQUERQUE, Adenilson; FLECK, Gilmei F. Canudos. Entre o multiperspectivismo


de Vargas Llosa (1981) e a mediação de Ailton Fonseca (2009). Curitiba, PR Editora:
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doutorado em Letras pela UFRGS. 2013.

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345

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Bauru: EDUSC, 2005.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François [et.


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UREÑA, Pedro. Henriquez. Las Corrientes Literarias en la América Hispánica. México:


Ed. Fondo de Cultura Económica, 1994.
346

MEMÓRIA E ESCRITA DE AUTORIA FEMININA: UMA LEITURA DE


TANTOS ANOS

Janieli Salgueiro da Silva116

Introdução

A obra Tantos anos (1998), das irmãs Queiroz, é uma autobiografia conjunta.
Segundo Lejeune (2008, p. 1), a autobiografia se caracteriza como “uma massa de textos
publicados, cujo tema comum é contar a vida de alguém”. O livro de Rachel de Queiroz,
com a participação de sua irmã Maria Luiza de Queiroz, tenta recuperar as memórias da
infância e da trajetória da escritora brasileira. A narrativa é desenvolvida a partir da
inquietação de Maria Luiza, que não compreendia a negação de sua irmã em falar do
passado. Além de trazer fatos do passado da autora - como os lugares em que viveram na
infância e na juventude, como e quando Rachel começou a escrever e ser reconhecida
nacionalmente -, a narrativa ressalta também momentos importantes da história brasileira,
principalmente os de cunho político, bem como costumes da época, se constituindo,
assim, como obra que contribui para a construção da memória do país. Vale lembrar que
a autora era bastante ativa politicamente, chegando a ser presa lutando pelos seus ideais.
De acordo com Lejeune (2008, p. 15), um dos principais assuntos em uma obra
autobiográfica é a “vida individual” do autor, mas assuntos como a “crônica e a história
social podem também ocupar um certo espaço” na narrativa. A diegese da obra é marcada
principalmente pela escritora Rachel de Queiroz, uma mulher que nasceu em uma família
liberal, mas que, ainda assim, necessitou lutar para conquistar seus diretos. Em sua
memória, sobressaem vários momentos de pré-conceito vivido por ser mulher e também
por não seguir padrões pré-estabelecidos por uma sociedade em que o casamento era uma
forma de “passagem” dos valores patriarcais, pai – marido.
Tendo em vista o tipo de análise que aqui se opera e pela própria compreensão do
objeto sobre o qual nos voltamos, o artigo se divide em duas partes, a saber: “Dos
fragmentos da memória à escrita de autoria feminina”, essa parte diz respeito à reflexão
acerca da autobiografia enquanto gênero da literatura íntima, bem como de sua relação
com a memória e a escrita feminina. Na segunda parte, “Tantos anos: uma leitura

Mestranda do PPG-Letras/UFGD, bolsista da CAPES, desenvolve a pesquisa intitulada “Literatura e


116

memória: a vida recontada pelas irmãs Queiroz”, sob a orientação da Prof.ª Drª Alexandra Santos Pinheiro.
347

possível” diz respeito às discussões acerca do aporte teórico e de sua contribuição para a
abordagem crítica do corpus.

Dos fragmentos da memória à escrita de autoria feminina

[...] as mulheres, desde sempre destituídas da


condição de sujeitos históricos, políticos e culturais,
jamais foram imaginadas e sequer convidadas a se
imaginarem como parte da irmandade horizontal da
nação e, tendo seu valor atrelado a sua capacidade
reprodutora, permaneceram precariamente outras
para a nação (SCHMIDT, 2000, p. 86).

A epígrafe acima demostra o que a história sempre deixou visível, o lugar que a
muito a mulher ocupou na sociedade patriarcalista. Lugar esse em que lhes eram negados
os direitos igualitários entre homens e mulheres. Muitas delas permaneceram caladas,
outras escondidas por detrás de pseudônimos, silenciadas pelo tempo. Todavia, essas
mulheres que fizeram a diferença, mesmo apagadas, nunca desistiram de lutar por seu
espaço.
Essa luta de persistência garantiu à mulher a voz. A memória, nesse sentido,
também contribuiu para que ela ganhasse um lugar nesse espaço centralizado na figura
do masculino, por meio de textos autobiográficos e memorialísticos como: o diário, as
correspondências, elas conseguiram, com muita dificuldade, adentrar no mundo
intelectual. Várias mulheres não ganharam reconhecimento vivas, precisou de um longo
tempo para que toda a sua conquista se fizesse notória. É por uma história de lutas de
mulheres que hoje outras têm a oportunidade de se “igualar” aos direitos considerados
antes somente para homens.
A escrita de gêneros que se enquadram na “literatura íntima” se constitui, desde
há muito, como uma prática intrinsecamente feminina, principalmente os diários, embora
não seja exclusivamente um gênero escrito por mulheres. A escrita feminina surge com o
intuito de dar voz àquelas destituídas do poder de opinar, ficando sempre às margens da
sociedade e em silêncio. Diante de tal situação, percebe-se logo o lugar que a mulher
ocupava no século XIX, em uma sociedade patriarcalista, que relegava à mulher a
condição de mera “reprodutora”117 e um status de marginalização, de modo que lhe era

117
As mulheres eram destituídas de poder, ficando a cargo do masculino, decidir por tudo. Segundo
Schmidt, “[...] as mulheres, desde sempre destituídas da condição de sujeitos históricos, políticos e
culturais, jamais foram imaginadas e sequer convidadas a se imaginarem como parte da irmandade
348

negado, inclusive, o direito à escrita, embora fossem incentivadas a escrever diários


íntimos, sem que ninguém tomasse nota. Tanto a escrita como a leitura, de acordo com
Perrot (2005), se constituíam como “um fruto proibido” para as mulheres. Não era
permitido a elas o acesso aos clássicos (por exemplo, Madame Bovary) e a escrita de
romances (ou qualquer outra forma de dar voz à mulher). Assim, a marginalização da
mulher se efetivava na forma desigual de acesso a “direitos” concebidos por homens,
ficando, a cargo desses, o controle daquelas, primeiro através da figura do pai e, depois,
na transmissão do controle ao marido. Situação esta que vem se modificando ao longo
dos tempos, com a conquista de direitos que visam a diminuir a relação desigual entre os
gêneros, através do questionamento de uma herança patriarcalista, muito embora, faz-se
necessário notar que, ainda hoje, é possível encontrar mulheres perfeitamente
conformadas com o servilismo do lar.
Os textos classificados por Lejeune como “gêneros da literatura íntima” ajudaram
a à mulher a conquistar a sua voz outrora silenciada. Por meio da escrita de si, a mulher,
de um modo particular, deu a sua vida uma nova possibilidade de ver o mundo, com uma
visão de quem observa e escreve, através da memória, suas lembranças. Nesse sentido, a
escrita do íntimo pressupõe a materialização de algo que se quer lembrar no futuro, ou
mesmo, o anseio de quem não quer passar em branco na história de seu grupo, sociedade.
O escritor, a partir do olhar de seu olhar, introduz o leitor aos hábitos cotidianos de uma
família, “no modo como são vivenciadas as relações familiares e constituídas suas
práticas de sociabilidade” (LIMA, 2013, p. 31). Por meio da escrita de si, são apresentados
acontecimentos já vivenciados, hábitos de épocas passadas, testemunhos de fatos
históricos que marcaram um dado período.
Por conseguinte, é válido ressaltar que, a escrita do íntimo, prática recorrente às
mulheres e comuns aos gêneros da literatura íntima, demanda tempo e é acionando a
memória de um tempo, curto ou longo, que esse tipo de escrita sobrevive. Segundo
Bungart Neto:

[...] o ato de lembrar somente se torna possível à medida que o tempo


passa, sendo que a evocação perpetrada pela memória percorre certo
intervalo de tempo, curto ou longo, entre a primeira impressão e seu
retorno, fato que estreita ainda mais a relação complementar e ‘fraterna’
entre memória e tempo (Mnemósine e Cronos), comprovando que
aquela depende da passagem deste. (BUNGART NETO, 2014, p. 49).

horizontal da nação e, tendo seu valor atrelado a sua capacidade reprodutora, permaneceram precariamente
outras para a nação” (SCHMIDT, 2000, p. 86).
349

Dessa forma, a memória e o tempo sempre estiveram ligados, acionados por


diaristas, biógrafos e autobiógrafos, ao colocarem no papel ou num documento de word,
suas vivências, lembranças, tudo que a sua memória quer resgatar. A escrita de si se
constitui como um meio pelo qual o indivíduo sobrevive depois da morte, além de
permitir a construção de um mundo a partir de vivências e da visão que o sujeito tem de
si e da realidade que o cerca. Várias mulheres preferiram continuar no silêncio, a
contribuir para construção do pensamento histórico social, muitas das vezes, por medo se
exporem e de serem ridicularizadas.
De acordo com Rocha Júnior, o texto autobiográfico, além de assegurar uma vida
após a morte, seria, também, uma “garantia para a memória” (ROCHA Jr., 2013, p. 78).
Segundo o autor, a escrita do íntimo pode ser considerada um refúgio para a memória,
pois a qualquer instante o indivíduo pode recorrer aos seus escritos e rememorar
momentos que talvez queira eternizar. Para Lejeune, a prática de escrever sobre si, ou
seja, sobre a sua vida, “constrói a memória”:

[...] a anotação quotidiana, mesmo que não seja relida, constrói a


memória: escrever uma entrada pressupõe fazer uma triagem do vivido
e organizá-lo segundo eixos, ou seja, dar-lhe uma ‘identidade narrativa’
que tornará minha vida memoriável. É a versão moderna das ‘artes da
memória’, cultivadas na Antiguidade. (LEJEUNE, 2008, p. 303).

Nessa perspectiva, textos que se enquadram no gênero íntimo, ganha ares de


confissão, lugar/espaço que transmite segurança, onde aquilo que a “cronista” diz/escreve
não vai enfrentar uma situação de censura, nem tão pouco interditos, libertando-se, assim,
do social e se abrindo para as lembranças, sejam elas boas ou ruins, bem como para a
imaginação, visto que o que se tem é o olhar de quem está escrevendo (lugar onde ela
pode ser e ver o que ela desejar). Destaca-se também o seu caráter terapêutico, fazendo
com que o indivíduo, ao escrever, saia do mundo opressor e adentre no espaço da
imaginação/ memória enquanto fuga da realidade, se desvencilhando das preocupações.
Segundo Schüler, a Memória, por ser dotada de imaginação, “liberta das prisões da
insignificância cotidiana, tão frágil que parece ao acontecer” (SCHÜLER apud
BUNGART NETO, 2014, p. 43). A memória faz com que o indivíduo escolha suas
próprias concepções de mundo, eternizando fatos, acontecimentos que marcaram a sua
vida.
350

Dessa maneira, o texto autobiográfico pode ser uma contribuição para a memória
coletiva, ou seja, “é apelo a uma leitura posterior: transmissão a algum alter ego perdido
no futuro, ou modesta contribuição para a memória coletiva” (LEJEUNE, 2008, p. 303).
Ao tomar as folhas de um livro, a autobiografia passa ao nível do coletivo, contribuindo
assim para a história. Como é o caso do corpus deste artigo, a obra Tantos Anos. Sabe-se
que em composições de obras autobiográficas, a memória se constitui como o principal
meio pelo qual o indivíduo se remete ao passado, assim “a narrativa constitui, pois o
espaço em que a memória se manifesta, tomando toda recordação a forma de um relato
retrospecto” (ZILBERMAM, 2010, p. 28), a partir da autobiografia, o indivíduo revisita
o seu passado e o reelabora dando a sua visão de mundo.
A memória está ligada ao passado, remetendo a momentos que permaneceram na
lembrança e, muitas vezes, tomam forma em obras literárias. A mulher, ao optar por
escrever sobre si, aciona a memória, recordando momentos vivenciados por ela.
Assunção, em artigo intitulado “Memórias em ebulição em tempo de liquidez”, afirma
que “não se pode apagar aquilo que se acumula, os resíduos que as experiências, como
ferrugem nos metais, se juntam e corroem a experiência revivida na rememoração”
(ASSUNÇÃO, 2013, p. 113). As experiências vivenciadas pelos indivíduos, sempre
estarão lá, na memória, esperando o momento certo para entrar em estado de “ebulição”,
esse instante pode ser a hora em que o indivíduo encontra uma “pena”, “caneta” ou
“teclado”, ou até mesmo um interlocutor, através da oralidade, e a transforma em algo
memorável, instrumento de rememoração.
O ato de rememorar está ligado também à imaginação, memória enquanto
recordação daquilo que já se viveu. A memória não está na mente, e sim nas coisas. Ela
se materializa nas imagens, lugares e pessoas, é seletiva, “involuntária” e “espontânea”,
isto é, algo cuja natureza não se pode de todo controlar, conforme aponta Bungart Neto:

[...] a mémoire-souvenir, a despeito de seu reconhecimento


“inteligente”, “intelectual”, volta-se mais para o caráter espontâneo, até
mesmo “involuntário”, das evocações feitas, [...] se caracteriza
justamente pelo caráter original de sua aparição, isto é, por sua
rememoração espontânea (“le souvenir spontané”), recriação de atos e
acontecimentos “desnaturalizados” e distantes de suas características
primordiais (BUNGART NETO, 2014, p. 113).

Neste contexto, a escritura de obras memorialísticas permite, ao autor, recuperar,


através dos cinco sentidos: visão, audição, paladar, tato e olfato, suas memórias guardadas
351

no mais íntimo de sua vida. A necessidade de escrever sobre si e sobre o outro se constitui
como marca maior do projeto artístico-literário de obras autobiográficas, principalmente,
a das irmãs Queiroz, que ao retomar o passado, revisitam períodos tanto da vida quanto
da época em que viveram as autoras. Por meio de escritos de Rachel e gravações, Maria
Luíza reuniu todos os documentos. De um modo particular, as autoras brincam com suas
memórias, pois cada uma traz uma visão diferente dos mesmos fatos, ora em letras em
itálico (Maria Luiza), ora em letras normais (Raquel de Queiroz).
Com efeito, a prática da escrita do íntimo permeia discussões sobre o feminino e
sobre a memória. A autobiografia permite verificar/observar/analisar, sob o viés da
memória, uma época, um espaço, pessoas que não são de nossa convivência, mas sim das
autoras que as compuseram. As várias fases da vida apresentada ao leitor, entretanto, não
se encerra nos sentimentos que marcam as suas vivências, a escrita de si permite
identificar outros sujeitos e compor um espaço, uma cultura e as relações de uma época e
de um determinado espaço geográfico.

Tantos anos: uma leitura possível

É, portanto, confiando na memória fantástica de


Rachel que, daqui por diante, vou deixar suas
lembranças fluírem (QUEIROZ, 1998, p. 24).

A obra Tantos anos foi escrita durante vários anos, mas a publicação só veio em
1998, quando Rachel tinha oitenta e oito anos e sua irmã sessenta e dois. A narrativa se
passa na infância, adolescência e fase adulta de Rachel e de Maria Luíza. As mesmas
histórias que Rachel conta (a partir de sua visão), Maria Luíza reconta, dando a sua
versão. Dessa forma, nota-se um contraste entre a mais nova e a mais velha, visões
diferenciadas dos mesmos lugares e dos fatos ocorridos na vida das autoras. Maria Luíza,
por ser mais nova, não vivenciou tudo que a irmã viveu. Em vários momentos, é possível
perceber que o que Maria Luíza recorda, é aquilo que lhe é passado pela oralidade, pelo
ato de contar histórias (os causos familiares). Enquanto Rachel conta a sua experiência,
Maria Luíza, também conta as dela, entretanto, ela mais reproduz aquilo que lhe
contaram, como é possível de se verificar no trecho: “mas pela história que eu
entreouvia”. Isso faz parte do caráter coletivo da memória. Para Halbwachs “se pode falar
de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida de nosso
grupo e que víamos, que vemos ainda agora no momento em que o recordamos, do ponto
352

de vista desse grupo” (HALBWACHS, 2006, p. 41). A memória coletiva contribui para
a perpetuação e permanência das relações de um grupo, mesmo que não se tenha
vivenciado essas recordações, elas farão parte da memória de uma comunidade.
Tantos Anos é composta por uma memória dúbia, são duas mulheres que se
permitem revisitarem o passado, cada uma a seu modo particular, de acordo com suas
experiências de vida. A epígrafe que abre este tópico põem em evidencia o papel de Maria
Luíza ao contribuir para a memória da irmã, na medida em que se propõe a fazer com que
Rachel se abra a uma nova experiência, a de narrar a sua história. Essa memória permiti-
nos revisitar espaços, costumes de pessoas e épocas que não conhecemos.
A personagem protagonista do livro, Rachel de Queiroz, desde muito moça, já se
destacava dentre os membros de sua família. Sempre teve uma visão crítica e
questionadora, o que a fez assumir, ainda muito jovem, os ideais comunistas. Ela gostava
muito de ler, e sua mãe a incentivava nessa prática. Mas foi uma carta, escrita para uma
amiga de escola, que a levou a um patamar que ela não estava esperando na época, como
ela mesma menciona: com “gozações ingênuas” e que fez “um barulho danado”. A carta
teve grande repercussão, o que deu a ela um emprego em um jornal importante em
Fortaleza, O Ceará. Rachel tinha dezesseis anos de idade, e já estava começando a sua
carreira de escritora. Como se observa na passagem a seguir:

Suzana foi eleita a primeira Rainha dos Estudantes e eu, que estava
morando no Junco nesse tempo (tinha dezesseis anos), escrevi uma
carta aberta para ela, fazendo brincadeiras, rainha em tempo de
república!, enfim, gozações ingênuas, mas gozações. Foi a primeira
coisa que escrevi; assiei com pseudônimo, Rita de Queluz. Mandei a
carta para O Ceará, em Fortaleza, a pequena Fortaleza daquele tempo,
e a tal carta fez um barulho danado. O jornal a publicou, Suzana a
mostrava para todo mundo e começou então a maior curiosidade,
descobrir quem a escrevera – foi fulano, foi beltrano e, afinal, chegaram
perto: “Foi Daniel de Queiroz ou Clotilde”. Outros diziam que era um
rapaz não se sabia de onde, que assinara com pseudônimo feminino.
Mas Jáder de Carvalho, poeta e jornalista, que já me conhecia (era ainda
nosso parente distante), opinou: “Isso é coisa de Rachelzinha, filha de
Daniel. Sei muito quem é, só pode ser ela”. [...] E acabaram apurando
que tinha sido mesmo eu. Então recebo uma carta do diretor do Ceará
me convidando para ir a Fortaleza, conhecê-los e ficar sendo
colaboradora efetiva do jornal. Isso foi no ano de 1927 e eu, como já
disse, tinha dezesseis anos. Mandei logo umas croniquinhas e, na minha
primeira ida a Fortaleza, fui visitar o jornal. Ibiapina me recebeu muito
bem e me entregou a página literária do Ceará (ganhando cem mil réis
por mês).
[...]
353

Contudo, em vista da amizade de papai com Ibiapina, continuei a


escrever no jornal, onde fiquei até 1928. Mas eis que no início de 1928
saiu um artigo de fundo do Nordeste a meu respeito:
“Como é que a família permite a uma jovem pura, recém-saída de um
colégio de freiras, escrever para O Condenado?” E terminava:
“Tememos pelo futuro dessa jovem!” (QUEIROZ, 1998, p. 26).

A partir do trecho acima, é possível perceber que Rachel já era reconhecida por
seu jeito diferente, não foi por acaso que as pessoas que a conheciam já palpitavam que
seria ela a autora da tal carta. Em pleno século XX, as mulheres ainda não eram livres
para ter suas posições políticas. Queiroz passou por uma curiosa situação no início de sua
carreira como jornalista e escritora, ela foi advertida publicamente por outro jornal, o
Nordeste. O jornal ao qual a jovem escritora começara a trabalhar era comunista, e a
sociedade ainda não aceitava que a mulher se posicionasse politicamente, a favor ou
contra dada posição política, principalmente, os de cunho comunista. Rachel, mesmo com
os afrontes denegrindo a sua imagem enquanto mulher, permanece no jornal por mais um
ano e depois recebe uma proposta melhor de salário e vai para o jornal O Povo.
Rachel, além de chamar a atenção na escrita, também ganhou destaque em suas
atitudes enquanto segura de seus escritos. Ao mostrar o rascunho de seu livro João Miguel
para os dirigentes do Partido comunista, foi bem ousada, frente ao pedido para que ela
mudasse alguns trechos do livro, ao que Rachel se recusa a fazer, como podemos ler no
trecho a seguir: “Eu não reconheço nos companheiros condições literárias para opinarem
sobre minha obra. Não vou fazer correção nenhuma. E passar bem!”. Rachel enfrentava
quem fosse pelo seu posicionamento. Nesse episódio, ela “fora ‘irradiada’ (expulsa) do
Partido por ideologia fascista, trotskista e inimiga do proletariado” (QUEIROZ, 1998, p.
41). A jovem escritora, mesmo com opinião contrária a de seus companheiros de partido,
publica o livro. Em vários momentos da narrativa Rachel deixa transparecer essa aversão
à figura da mulher. Fato evidenciado no trecho em que a jornalista afirma que uma mulher
não poderia entrar no apartamento de um amigo solteiro sozinha, ela teria que sempre
estar acompanhada. Rachel vivia rodeada de homens, escritores renomados e engajados
na política, o que não era comum para mulheres de seu tempo, ela infligia as regras da
sociedade, construindo o seu próprio caminho enquanto mulher.
Esses trechos apontam, sobretudo, para o contexto político-social da época em que
viveu a autora. Vale ressaltar que a obra trata de um período de aproximadamente sessenta
anos. Dessa forma, vários acontecimentos importantes vão sendo retratados,
reconstruídos ao longo da narrativa das irmãs Queiroz. Os momentos políticos são os
354

mais enfatizados pela autora, visto que ela era uma espécie de ativista política, fatos como
a Revolução de 1930 e 1932, a Segunda Guerra Mundial, a que a autora intitula como
Guerra, a Revolução de 1964, são alguns dos episódios a que a escritora dá ênfase em
sua obra, apresentando ao leitor um panorama da época.
Rachel e Maria Luiza de Queiroz se utilizam da memória como forma de dar voz
ao passado, às representações sociais, ao lugar da mulher no início do século XX, além
de perceber como o cenário da época era composto. Vale ressaltar aqui a escolha de uma
obra de autoria feminina, em consonância com os estudos de gênero e com os estudos que
se ocupam da escrita do íntimo, da escrita de si, do caráter cotidiano e da vida íntima dos
escritores.
Como vimos, marcas do pensamento feminista estão presentes na obra das irmãs
Queiroz, que romperam com as barreiras da época, início do século XX, e cujas escritas
são dotadas de inegável valor estético e histórico contribuindo, desse modo, para a
compreensão do contexto sócio-cultural do Brasil, parte da história política do Brasil de
1920-1990. A escritora brasileira se posicionou como uma mulher à frente do seu tempo.
Rachel começou a mostrar o seu caráter emancipador ao se envolver, ativamente, com as
questões políticas de seu tempo, chegando a ser presa, também escreveu para vários
jornais nesse mesmo momento (crônicas) antes de publicar seu primeiro livro O Quinze.
A autora defendeu com “unhas e dentes” o que acreditava ser o melhor para o Brasil.
Nesse sentido, pode-se dizer que a autora contribuiu, mesmo sem a pretensão de tal
propósito, para a emergência de um pensamento e de uma luta cuja culminância resulta
nas discussões sobre gêneros e a igualdade de direitos e oportunidades entre homens e
mulheres. Rachel, ao invés de impor seu discurso, fez a diferença em suas atitudes.
É possível perceber a importância do relato das autoras para a construção de um
documentário que engloba as práticas sociais e culturais de sua época e região, tornando
possível a reflexão, à luz do cotejamento da história e da memória, sobre como os papéis
sociais são determinados por fatores socioculturais. Além de ressaltar como o indivíduo
a partir de suas lembranças pode contribuir para a construção da memória coletiva do
país. Rachel contribuiu para uma leitura, a partir de seu olhar, da história política
brasileira, mesmo tomando outros rumos, a escritora faz com que o leitor conheça os dois
lados da história. Nesse sentido, cabe ao leitor interpretar suas atitudes e ideologias.
355

Considerações Finais

A leitura de permitiu-nos perceber a riqueza cultural presente em Tantos anos


(1998), contribuição ímpar para os estudos da memória e da escrita feminina. A narrativa
que as irmãs Queiroz constroem é uma “reprodução” da infância, da adolescência, e fase
adulta. A obra apresenta um memorial de sua família, com uma “escrita descontraída”
marcada pelos costumes da época e das regiões percorrida pelas autoras, Nordeste, Rio
de Janeiro, Pará, entre outros, bem como por relações de gêneros “recriadas pela
memória” (PINHEIRO, 2008 p. 9), evidenciando assim, seu caráter memorável. As
marcas culturais contribuem tanto para a memória coletiva de um país, quanto para os
estudos relacionados às teorias voltadas para a escrita de si.
A memória se constitui como uma ferramenta para a vida, se materializando em
documentos, como o diário, a autobiografia, ou permanecendo na oralidade. É a partir
dela que o indivíduo permanece ligado a um passado, mais ou menos, distante. Sendo
assim, a escrita do íntimo toma a memória como instrumento de perpetuação e liberdade,
garantindo a existência do sujeito. Dessa forma, a escrita de si, juntamente com a
memória, passa a ser um meio pelo qual o indivíduo sobrevive à realidade e adentra um
mundo “todo seu”118.

Referências

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Eneida Maria de. et al (org.). Figurações do íntimo: ensaios. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013, p. 111-126.

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eu. Campo Grande, MS: Ed. UFMS; Dourados, MS: Ed. UFGD, 2014.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. (trad. Beatriz Sidou) São Paulo: Centauro,
2006.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rousseau à internet. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2008. Tradução: Jovita Maria Gerhein Noronha e Maria Inês Coimbra
Guedes.

LIMA, Raquel Esteves. A máquina da memória em movimento. In: SOUZA, Eneida


Maria de. et al. (org.). Figurações do íntimo: ensaios. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2013, p. 31-44.

118
Faço referência ao ensaio de Virginia Woolf, Um teto todo seu (1985).
356

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Tradução de Viviane


Ribeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

PINHEIRO, Mariza, de Oliveira; ASSIS, Geisa Melo Silva de. Minha vida de menina, o
diário clássico de Diamantina como prática cultural da escrita de si. In: CBHE. O ensino
e a pesquisa em história da educação: 5. Congresso Brasileiro de História da Educação.
São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe; Aracaju: Universidade Tiradentes,
2008. Disponível em: <http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe5/pdf/776.pdf>
Acesso em 30 jul. 2015.

QUEIROZ, Rachel de, QUEIROZ, Maria Luiza de. Tantos anos. São Paulo: Siciliano,
1998.

ROCHA JÚNIOR, Alberto Ferreira da. Zona da intimidade: diário enquanto espectro e
suplemento do eu. IN: SOUZA, Eneida Maria de. et al. (org.) Figurações do íntimo:
ensaios. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 73-83.

SCHMIDT, Rita, Terezinha. Mulheres reescrevendo a nação. Revista Estudos Feministas,


Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 84-97, 2000. Disponível em
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9858/9091> Acesso em 29 de jul.
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ZILBERMAN, Regina. Práticas narrativas, oralidade e memória. In: TETTAMANZY,


Ana Lúcia Liberato (org) et al. Sobre as poéticas do dizer: pesquisas e reflexões em
oralidade. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
357

ÍNDICE REMISSIVO

A
A saga de Malinche,
Adélia Prado,
Africanidades,
Afrobrasilidades,
Água viva,
América Latina,
Ana Cristina Cesar,
Ana Miranda,
Ann Patchett,
Antropologia,
Autoria feminina,
Autorretrato,
B
Bahia,
Bel Canto,
Bidisha Bandyopadhyay,
Bildungsroman feminino,
C
Clarice Lispector,
Claustro,
Confluências da ficção,
Confluências da literatura,
Construções de saberes,
Cora Coralina,
Crítica literária escrita por mulheres,
Crônicas,
Cultura,
D
Desterritorialização,
Diáspora,
Ditadura,
358

Diversidade cultural,
E
Escrita de autoria feminina,
Escrita feminina latino-americana,
Escritura de Mujeres,
Escrituras e fronteiras,
Escrituras em diálogos,
F
Ficcionalização romanesca,
Frida Kahlo,
Frida: A Biografia,
Fronteiras da transnacionalidade,
Función Artística
G
Gênero,
Gilles Deleuze,
H
Hayden Herrera,
Hilda Hilst,
História,
Histórias das Mulheres,
I
Idea Vilariño,
Identidades,
Imagem do fogo,
Imagem,
Imagens dos desdobramentos do eu,
Imaginário,
Interculturalidade,
Intertextualidades,
Inventário geopoético,
Isabel Allende,
J
Júlia da Costa,
359

Julia Lopes de Almeida,


K
Kafka: por uma literatura menor,
L
Lêda Selma,
Lila Ripoll,
Lília Aparecida Pereira da Silva,
Literatura infantil e juvenil afro-brasileira,
Literatura,
Lúcia Miguel Pereira,
Lugar da história,
Lygia Bojunga
M
Marceline Desbordes-Valmore,
Memória,
Mito e história,
Mito reparador,
Mobilidades culturais,
Mulher,
Mulheres presas,
Música,
N
Narrativa Lírica,
Narrativas de mulheres,
Nilma Lino Gomes,
Nísia Floresta,
O
O Diário de Frida Kahlo,
O novo sistema,
O Sonho de Electra,
Octavio Paz,
P
Pátio profano,
Performance,
360

Poesia,
Poética,
Poéticas do imaginário,
Q
Questões de gênero,
R
Relações de Gênero,
Renée Ferrer,
Resistência,
Romance,
S
Saberes em diálogos,
Sociedade,
Sor Juana Inés de la Cruz,
Susy Delgado,
T
Tantos Anos,
Transculturação,
Transculturalidade,
U
Um judeu na minha cama,
Um sopro de vida,
V
Virgínia Vendramini,
Vozes femininas,
Vozes líricas,
W
Walter Benjamin
X
Xicoténcatl
Y
Yo autobiográfico,
Z
Zilá Bernd,
361

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