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ratzara

p/ fernanda adamowski
Art. 47. São livres as paráfrases e paródias
que não forem verdadeiras reproduções da
obra originária nem lhe implicarem descrédito.

Lei Nº 9.610, de 19 de Fevereiro de 1998

Depois peguei as palavras prazer (oneg), abundância


(shefa), beleza (shefer) e desejo (ratza), que trocando as
letras ficam praga (nega), lodo (refesh), dejeto (feresh),
crime (fesha) e aflição (tzara)

Shai Agnon por Toba Sender


na base de qualquer comunidade humana, na raiz de
qualquer princípio de civilização, é inevitável encontrarmos
essas concepções e narrativas que, ao olhar moderno –
e, diz-se, civilizado –, soam absurdas, sem fundamento,
muitas vezes grotescas, que formam os mitos. para nós,
em nosso estágio da civilização, esse tipo de história não
passa de uma curiosidade bizarra, e uma palavra como
“mito” é, com muita frequência, empregada pelo sentido
pejorativo de “mentira” ou “crendice”, como se os povos
antigos fossem ignorantes que elaboravam histórias
esdrúxulas para combater o tédio e tentar explicar aquilo
que não entendiam direito || o mito e o ritual (que é
a encenação do mito e a participação da comunidade
nele) não são erros, e os rituais para chuva não servem
para fazer chover, mas como uma forma de marcar algo
como: “agora é a época da chuva”. muito pouco, então, é
o que nos separa das sociedades ditas “primitivas”, mas
há diferenças no estruturamento básico da sociedade
que se refletem talvez não tanto no nível racional quanto
emocional, que é o que permite a elas que retenham os
seus mitos comunitários, ao passo que nós parecemos ter
jogado os nossos fora ao longo do caminho, dos quais só a
superstição acaba permanecendo intocada || cada cultura
constrói os seus mitos com base na própria experiência,
fauna, flora e topologia conhecidos, o que as leva, por
exemplo, a atribuir um estatuto sagrado a certos rios e
montanhas locais. não por acaso, todos os povos parecem
ter mitos associados à terra, e mesmo os mitos de criação
do ser humano com muita frequência tocam nos mesmos
lugares-comuns. alguns elementos em comum, porém,
como a relação com a terra, hão de ser muito próximos
em todas as culturas que tenham desenvolvido algum tipo
de atividade agrícola, que é provavelmente o que está por
trás do mito da criação a partir do barro: plantas brotam da
terra e servem de alimento a nós e aos animais, que, por sua
vez, também podem nos servir de alimento, dependendo
da cultura || nós, quando morremos, tendemos a ser
sepultados, o que é menos uma preocupação higienista
do que um ritual. o corpo é coberto de terra e desaparece
debaixo dela, alimentando-a e estimulando a geração de
outras plantas – da onde se conclui, portanto, que, por
mais que a carne e a terra sejam matérias muito diferentes
aos sentidos, deve haver alguma afinidade entre as duas
coisas. o humano não é algo divorciado da natureza – e
tampouco é a natureza divorciada do divino –, mas um
processo dela própria, e essa é a noção que fica implícita
nessa narrativa, cristalizada na forma do mito || o mesmo
pode ser dito das conotações míticas dos ciclos de dia e
noite, das fases da lua e das quatro estações, pelo menos
para os povos habitantes das latitudes em que as estações
são marcadamente distintas, dentre as quais a primavera
costuma ter o maior destaque, muitas vezes associada a
temas de morte e renascimento, com o fim do inverno e o
desabrochar das flores. é por isso que abril é o mais cruel
dos meses || o pensamento cabalista inseriu o drama
cósmico no cerne da narrativa da criação e do problema
do mal, através da noção do tzimtzum, das sefirót e suas
klipót e a tikkun do mundo || todo fluxo material então
está radicalmente desterritorializado e descodificado
desprovido de sentido || essa falta de sincronia entre o
humano e o natural parece ser sintomática [...] não por
acaso, passa a enxergar a natureza como mero recurso
a ser explorado e gerenciado, e o humano como algo à
parte disso || o corpo é marcado nas culturas primitivas,
signos que marcam o seu pertencimento ao corpo pleno da
terra, o movimento da cultura que se realiza nos corpos, se
inscreve neles, domesticando-os || olhar para a poesia sob
esse viés mítico, levando em consideração como os mitos
podem ou não funcionar em cada etapa da estruturação
das sociedades humanas, que nunca deixam de desejá-los,
ainda que secretamente, e como os poetas lidam com isso, é
importante para repensarmos a partir de um outro ângulo o
problema persistente do espaço do poeta (ou a sua falta de
espaço) na modernidade, que, longe de se resolver, nem que
fosse através de uma resolução aniquilante, como queria
peacock ou como quis adorno, só se torna mais complexo
conforme a história avança || e refletir sobre isso, mais
do que repetir automaticamente os velhos clichês sobre a
herança xamânica da poesia – do poeta como o legislador
não-reconhecido do mundo, antena da raça, aquele que
purifica as palavras da tribo, etc, etc – é a tarefa que, mais
do que nunca, recai sobre o poeta escrevendo hoje

adriano scandolara
why you wanna fly Blackbird?
you ain’t ever gonna fly

Nina Simone

por uma brecha brilha a agonia:


às carnes aradas atado o mundo
de espalhados pastos sem espaços

por uma brecha brilha a agonia:


à noite se bebe se bebe a terra
pelos sulcos escorrem assovios

por uma brecha brilha a agonia:


covas se cavam às cobras sem uso
por uma brecha brilha a agonia

toda dança seu ritmo mantém


no breu dos bosques esconsos
toda dança seu ritmo mantém

e a agonia brilha pela brecha:


se digna opacando-se escurece
por uma brecha brilha a agonia

por uma brecha brilha a agonia:


à noite se come se come a terra
para estralos ouvir o fim da fome:
onde terão curtos bichos sossego
onde será segura a curta vida
onde se deita com folga se deita

por uma brecha brilha a agonia:


tão pequena à noite à terra acolhida
se brinca com ferro com bronze brinca

por uma brecha brilha a agonia:


e num ciclo curto e quase inotável
em calma e clara forma se apresenta

o detalhado desastre da dor


no irreversível instante entreaberto
da natureza mítica das coisas

por uma brecha brilha a agonia:


por uma brecha brilha a agonia
quando em seu bote inflável
enfim ventanias sopraram
e um turbilhão de águas
confundiu seu rosto em
pavor e pranto ela o filho
acolhendo as mãos sobre ele
pousou e assim disse: “filho,
que dor desabou sobre nós!
seu corpo não sabe e você
dorme profundamente neste
mísero bote de preto látex que
sobre o breu-cianuro desliza
nesta noite pobre de brilho
nem tampouco sente o sal
se abater sobre seus cabelos
e à voz do vento permanece
surdo somente se deita sobre
uma sacola um plástico sujo
com tão linda tez pois se
nosso horror em você causar
ainda mais horror cubra os
ouvidinhos amor te peço
que apenas durma te peço
pequeno que também durma
o mar e durma o mal que
estremeça em brilho toda a
mudança vinda de teu gesto
e perdoe por favor qualquer
pecado em nossa fuga” e
contra as rochas se abate à
noite quem buscava refúgio
enquanto dormimos e o fluxo
contínuo das águas de algas o
corpo todo cobre e com ânsia
da costa os cílios cerrados
mantém sem lembrança da
mãe não acordem quem longe
de casa sobre a areia morre
te agrada mesmo costurar-se na própria
mortalha usando os mais estreitos pontos
ou tecer o horror do vazio diariamente
para na sombra desatá-lo em fracasso
(qual é tua espera) prolongando o eco
de algo como é bonito mas a beleza é
só uma parte do processo algo quase
descartável eu quero o travo a ânsia
a dor o eco de sempre faltar qualquer
coisa de corpo em tua busca você não
está pronto é o momento de engolir a
seco o mundo cozinhar uma calma útil
para a velhice constatar a fraqueza ante
o breu (você de fato não o deseja) que
você prolonga com palavras adentrar
como pode o seco escorrer do seco o
áspero brotar do estéril tudo em você
que se faz (de onde vem esse nome
essa memória esquecida essa lembrança
que você espera se abra em lugar muito
longe de você) vai se consumindo num
moroso adiamento é bonito mas não é
bom ou é apenas bonito e o bonito já
não serve a nada eu saio daqui anônimo e
seco anônimo e seco como uma torneira
(algumas palavras e você acredita nisso
te humilham no uso) que alguém já
referiu em algum lugar como uma
imagem possível da impossibilidade da
linguagem é bonito mas em tarde cinza
em que havia chuva sob a tarde cinza
outra imagem continua se perpetuando
em aquarela (até quando) e você resta
p/ ricardo domeneck

caro poeta,

three men walk into a dream1 (não, isso não é uma piada!) e nós os assistimos:
de nomes os três: capitão coronel e suj. desc. e caminham até o pé duma árvore
(enquanto nós os assistimos) o capitão senta numa pedra o suj. desc. em pé dá
as costas ao coronel e olha o nada (o suj. desc. aliás é uma espécie de contorno
ele não tem voz não tem corpo não tem rosto é mais uma presença que deixamos
sentir) o coronel também de pé saca uma arma !tudo isso vemos e não ouvimos!
até que começam as seguintes falas: cor – “[inaudível]” cap – “[inaudível]”
cor – “[inaudível]” cap – “ah, coronel, todos sabemos pra quem você
trabalha” e pronto acabou acendem-se as luzes você olha pra mim e
diz que a poesia é isso: “a fala do coronel representa precisamente
aquilo que entendo por poesia, ou seja, não há nenhuma dificuldade,
para nenhuma pessoa, em compreender o sentido da frase ‘ah, coronel,
todos sabemos pra quem você trabalha’. todavia, pelo modo como é
composta a estrutura do sonho não nos é dado saber a que se refere
esse encadeamento de signos, em qual parte de qual discurso está
inserida esta simples sentença. com isso, quero dizer que à poesia se
assemelha precisamente pelo fato de optar por discurso e conferir a
ele uma potencialidade de sentidos tal que nos permite inferir, porém
nunca precisar, quem é o empregador do coronel. i.e., com isso, o
sentido pleno da frase não possui outro pertencimento que não aquele
do sonho. é preciso ser absolutamente contemporâneo, todavia, e
perceber que essa forma do sonho não uma poética possível mais
(você é pós-utópico? se o é, você é também trans-histórico? que dia é
hoje no seu poema?). digo tão somente sonho em condição de símile,
matéria da qual me aproveito para mostrar que linguagem, seja qual ela,

1 I think it gets funnier start in the language of our saviors


(TRANSLATE, Google. 2016).
nunca é compreendida em sua totalidade e todo discurso, seja qual ele,
mantém um estreito laço com a insuficiência – tanto política quanto
poética – da expressão. graças a deus tudo é mistério (cf. rosa 1937
apud 2014 apud 2016). portanto, para encerrar a questão, quero apenas
ressaltar que o que houve aqui, com essa frase, foi a instauração de um
mundo – um mundo lançado no mundo –, uma brecha lançada, e a
nós fica cabendo apenas duas coisas: 1) interpretar hermeneuticamente
essa promessa do capitão/poeta através de uma contrapromessa sem
fim que funda um sentido no vago e 2) incorporar esse empregador-
obra (ainda desconhecido, pois fragmentário) ao nosso próprio corpo,
assumindo o lugar do próprio capitão (à beira da morte?), entregando
nosso corpo ao risco desse desconhecido. a busca por um sentido pleno
é precisamente referida na presença do suj. desc., ou seja, como algo
que nos vira as costas, que possui apenas uma forma metafísica, uma
presença alheia ao acontecimento e, sobretudo, inalcançável” assim me
disse embora voz alguma atestasse que alguém sobre meu sonho a
outro alguém noturno e miserável em colóquio se estava dirigindo
p/ guilherme gontijo flores

ela de mim o mor carpo das dores colheu,


nada a temer: tudo ceifou-me o pasto das
coisas alegres e o terror mantém vias pra vir.
atroz é temer quando o nada se espera:

who dixit?

[S 422-425]
chaira
tudo isto é monótono eu sei não vai comover ninguém
(Zbigniew Herbert)
p/ rafael falasco

então derrama
o sangue
e ao derramar
o sangue
não muda o rito
o povo clama
então o povo clama
por mais sangue
é sempre assim
o sangue mana
o povo clama
então o povo clama
mais sangue
e me pergunto
não haverá fim
pra tanto sangue
então os estoques
do mundo
não secam
nossos tédios
não sossegam
esse cansaço
II

eu li que prado cerrado soterra não tem corpo que a grama


cresce em fúria que a lama leva e traz um pouco nosso
eu li que a terra não tem cor nem prata brilha sob que
toda presença é um mero mito e que o lirismo devolveria
um pedaço perigoso meu li que a cena acaba serena sem
pergunta completamente induzida pelo desejo sem dor sem
dó ou corpo eu li que ímpio é saber sobre nós o fim o fato
feito eu li tanta coisa e tudo isso fede à paz
III

eu sorvi toda tua cota


teu terror em toda terra
teu mestre em todo canto
e exalo meros nomes sítios
síria senegal beirute bom
sucesso sem sentido mas
a sede segue sua causa se infla
e sedentos sorvem sangue
primeiro o anho novo acossa
aquele que mal manja e mirra
mas enquanto a mão prepara
o rombo bom sucumbe bambo
ao solo e o peito aberto estanca
a sede vira as vísceras vasculha-as
espreme o pus aperta as veias
em busca de mais sangue
omnia nostrum sensere malum
e eu aperto ao peito o grito o gozo
IV

o sangue segue
e o povo exige
então o povo suga
sangue e sangue
ainda tanto sangue
enquanto eu tento toda troca
possível
meu olho pelo seu
meu corpo por outro
minha vez por tua voz
mas não mudam as coisas
o sangue não cessa
e a todo canto arrasta terror & tédio
o povo corre
então o povo corre
tentando afastar-se do entulho daquilo que olha
do dia da própria vida
e ver consigo tudo
con
sumir-se
V

depois o silêncio
o denso o intenso o imenso
p/ ismar tirelli neto

aqui ninguém desemboca ao acaso:


eis a terra dos desolados dos doídos

firmes –
sustém no cinza
qualquer norte possível:

(ver o sol surgir carmim


ver sua seta rasgar o breu
o peito prenhe pelo gozo
saciar a boca com canto)

entre o caco e o retalho


humano é estacar em meio às coisas
sobre minha casa arde a chama da possibilidade
o jardim é incerto
e meu cão azul sem razão dorme ao pé da porta
tudo acontece aqui
meu quarto e minha sala estão no mundo:
sou feliz e a flor da morte curva-se no canto do quintal
às vezes algo imane
pousa sobre a ponta
parca dum alfinete

(eis-te crente aqui


aspirando ao tempo:

nada vasto adentra a vida


sem deixar destroços)

íntimo ao grito
e ao abismo do nada
ao condensar-se em terra o corpo
já que a matéria em tudo compacta
inda que sólido discirna-se ao olho

mudo rarefaz-se em reza e some


(mas o corpo o corpo pode também
brotar do sal ajuntar-se em flores)

e em si mesmo aberto e fechado


aguarda que a angústia então
desapareça em morte dissolva-se

(circundando assim uma casa


estéril com seus jardins carnais)
enquanto estrutura sob a chuva

em desespero as formas o nada


escoar-se pela forma mais básica
passar por fluir cruzar-se
precipitar-se plúvio garoar-se pluvilíneo
manar verter incessantemente
aguar-se envolver encostas encobrir
submergir alastrar-se propagar-se
colonizar perder arrastar perpassar
difundir-se impregnar e repassar
invadir-se penetrar-se dimanar sobre diques
resvalar relvas escorregar mover-se denso
grosseiro trabalhoso demorado moroso
pingar em chuviscar neblinar-se súbito
cristalizar-se em bruma e cerração
reacender-se pelo gume sangrar
esmar-se pela palavra fazer-se do vazio
volver e desvirar-se e tornar a revolver
escavacar a cercania furar o contorno vazar
assilhuetar-se azulado no perfil do branco
enoitar-se tetro na própria boca da noite
serenar sob o seco ramo sáfaro galho
safirizar o tempo depois do tempo próprio
descujar-se a caveira de fulano florescer
desfiar-se recostar a carne lançar-se de si
díade

sobre safo, horácio & catulo


sobre gontijo & gonçalves

I (s.1, h.1.38, c.51)

que sentado sempre diante de ti


venha aqui ó róca-de-ardis eu peço
não procure onde talvez a rosa
dome meu peito

doce e sorridente o que a mim inteiro


mísero me arranca o sentido quando
nem de mim destoa que sob a densa
voz ou palavra

II (s.21, s.23, s.24)

]velhice agora a pele


]circunda
]persegue e voa

até onde o tempo


come
brota sobretudo o espanto

]barranco or]valhado
em
noite aden]tro
nada me espan]to
]você [...]’ [.] me livra
]de meus tormentos todos

bem se faz viver também[


]as coisas belas
t]odas nós em pleno viço[
primeiras noites de lua cheia
e estamos imersos em nudez
damo-nos as mãos ao avesso
vagas sombras de alento

sussurros rondam a cidade


a bordo de taxis noturnos
sempre a mesma viagem
em torno de nós e de tudo

compele-me com teu sopro


apagando-nos sobriamente
em rugas e ano após ano

primeiras noites de lua cheia:


a luz revela-se de um modo
que nunca pensamos precisar
p/ denise levertov & adelaide ivánova

ainda verdes sob a densa ânsia


nossos corpos
dos nossos cenhos e castos

mais em viço que as faces:


mamilos e umbigos e pentelhos
parem um tipo

ao léu de rosto: ou mudam


a sombra roliça ao
seio à bunda às bolas

a dobra da minha pança o


vão da tua
virilha como um chão de estrelas

como da terra à aurora


se curva num gesto de
gozo e

sabida ternura
nada assim vem
passar
em olhos ou lábios
apáticos
eu,
tenho
um rasgo ou um risco que amo
e corta
meu corpo da caixa do peito
à cintura e conta do
anseio e da
lonjura

seu longo dorso


a cor da areia e
como o osso salta dizem

do céu após o poente


quase branco
sobre a funda mata à qual

as gralhas regressam diz


que coisa pode ser mais bonita que a noite
(ou o ter alguém nos braços)

é nisso que a arte nos pega:


nesse parecer preferir (a nós) e permanecer

inda que uma lua besta um lampião


qualquer
derrame uma luzinha –
ou até o breu –
você vira um retrato num quadro
pedregoso com penhascos

e vales cheios de mandacarus & samambaias


respirando e roçando o céu

que ao fim baixa como um lençol anil de tristes ânsias e


devolve a face vista

não precisa panorama nenhum:


somos só um
fumando no pátio complicado do espaço admirando
a arquitetura
dada aos olhos e ao tempo

que nem o sussurro dum “eu sei que vou te amar”

surgido assim
como se nada
no céu cinza
e então sorrimos e então nos unimos

feito dois pirilampos deixando


brilhar a luz por sobre o rio
Antes tinha por ti todo o meu tédio,
hoje é firme a aflição e este desejo atroz

Horácio via Gontijo

nada surpreende a figura dum barco

não consigo escrever sobre o mundo nem tenho a capacidade


de descrever de modo lírico os acontecimentos bárbaros
que o compõem os linchamentos que antropologicamente
compõem o território brasileiro os desastres ambientais
as guerras não consigo escrever não consigo escrever
os acontecimentos se estraçalham com tanta violência
destroem-se em tantos pedaços que se transformam num
vazio áspero em nós

certas belezas se
apagam no breu
ou na pressa

e essa incapacidade de escrever os fenômenos submete-nos à


tortura e converte-nos em museu da desgraça onde habitam
as formas mais domésticas da indiferença ou seja isso
equivale a dizer que vamos nos purificando criando texturas
puras nos destroços do mundo que martirizamos mas toda
pureza implica um aspecto de desumanização é o problema permanente
da pureza ressecando a vida

é preciso sempre de uma voz


de que apanhe esse verso que
ela e o lance a outra de uma voz
que com tantas outras teça a vida

na poesia as coisas se esparramam por excesso e não há


como escrever nada por isso não consigo escrever sobre o
mundo sobre essa forma real que em si mesma divergindo
se repete não posso nada para além de grafar barbárie pedra
amor pátria mas o grão grosso da terra a fibra nativa à pele
do homem só vivem mesmo em composição de ar e vero
sofrimento não consigo escrever sobre nada em verso
porque não posso ensinar à origem a vida da cópia

a vagar taciturno entre o talvez e o se


tudo em volta é só tristeza
pedras em terra destecem
como tecendo se-fossem
todas tetras faces cíclicas
como tecendo se-fossem
sobre o céu de abril – silentes
cábulas – e a mata em flor

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

um corpo sempre é feito


de ciclo assimilado
daquilo que fizeram
com os tecidos fios
de seus vazios internos:
um corpo sempre é feito

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

como se tudo só tecesse


as tão brancas margens do sal
ou um deserto nu de nadas
como tecesse tudo só
um grão de areia entre as próprias
verticais paisagens de morte
ou elementares enigmas
na dita máquina da vida

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos


que o tecer não
é nunca só
de apenas um
fio destecido

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

o que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou
a aparição da arredia face em
úmidas pétalas do negro galho
tudo se acha à meia parte da via
a dura palavra em pedra tecida
que pela escura selva sempre em ciclos
faz levar mas também é conduzida
a essa selva selvagem rude e forte
onde o meio andar refaz-se e não finda

fusos, girai, puxando os fios, girai, ó fusos

não há fugir não há esperança


tudo é mudo e tudo está deserto
como no fim do voo um pássaro
pro passado ao olhar decompõe
as próprias asas e em círculos caindo
ao profundo dum lago tecendo-se
fosse muda sombra nada
Well now that’s done: and I’m glad it’s over.

T.S. Eliot
posfácio
por rodrigo tadeu gonçalves
Mais ainda, em diversos lugares, nos meus próprios versos
vês elementos muitos comuns a muitos dos verbos,
mesmo que entre os versos e verbos, é necessário
admitires que são dissonantes em som e sentido.
Tanto elementos podem, mudadas apenas as ordens.
Mas os que são os primórdios das coisas mais ainda podem
exibir, donde podem criar-se todas as coisas.
(DRN, I, 823-9)
Pois já vês, a partir do que pouco antes eu disse,
que é de grande importância saber desses mesmos primórdios
com quais outros, em quais posições eles sejam dispostos,
quais movimentos entre si recebem-se e dão-se
e que os mesmos entre si um pouco mudados
geram o ígneo e o lígneo? Assim as próprias as palavras
quando entre si têm alguns elementos mudados apenas,
lígneo e ígneo distinguem-se quando um som alteramos.
(DRN, I, 907-14)

E, mais ainda, por todo lugar nesses próprios meus versos,


muitos elementos comuns vês a muitas palavras,
inda que seja mister confessar que, entre si, as palavras
e os versos consistam de elementos diversos;
não que, em comum, poucas letras percorram-nos, ou que,
nenhuma
das palavras se faça com letras iguais entre si, mas
não é comum que se façam idênticas com mesmas letras.
(DRN, II, 688-94)

O poeta romano Lucrécio, em seu materialismo


radical, recuperando o atomismo de Demócrito, Leucipo e,
em especial, Epicuro, reformula poeticamente diversas ideias
filosóficas da Grécia antiga, quase sempre lamentando-se
com a língua na bochecha por conta da pobreza da sua própria
língua (a mesma egestas que me obriga a decalcar tongue in cheek
em vez de “piscadela”, algo feioso). O longo poema épico-
didático De Rerum Natura, que não poucos traduziram como
Sobre o universo ou Sobre a natureza, apresenta-nos tantas ideias
radicalmente subversivas que até hoje pode ser usado como
antídoto a ideias obscuras como medo da morte, pavor dos
deuses, submissão aos fados, ao determinismo, à superstição,
à religião. As ideias da física de Epicuro/Lucrécio tomam
forma de poesia em DRN de uma forma profundamente
simples: tudo é feito de átomos minúsculos, eternos, aos
quais se opõem apenas os vazios. Átomos e vazio, em uma
dança poética multiforme, geram todas as coisas. Nada,
portanto, vem do nada, nem, uma vez destruído, volta ao
nada. Ao morrermos, nossos corpos, almas e espíritos (anima
atque animum/anim-ânimo) dissolvem-se em seus corpos
primevos originais, em suas sementes primitivas, em seus
primórdios, em seus elementos (inúmeros são em Lucrécio,
também, os modos de evitar usar o termo grego átomoi). E o
mesmo ocorre com todas as coisas.
Juntei aqui as quatro ocasiões em que o atomismo
de Lucrécio é visto de forma análoga ao processo a partir
do qual os elementos da linguagem, também eternos e
indestrutíveis (as letras, os sons, os fonemas, em seus
inventários fechados) geram infinitas palavras, expressões,
frases, textos. Como na Biblioteca de Babel de Borges ou como
no teorema do macaco infinito, não há como provar que,
em algum dos infinitos universos possíveis já previstos pela
cosmologia lucreciana, outra pessoa (ou macaco em uma
máquina de escrever) não acabará por escrever novamente,
reescrever, citar, parafrasear, plagiar, este exato mesmo
texto. Como não há como provar que eu mesmo não esteja
plagiando algum macaco ancestral.
Assim procede Sergio Maciel neste seu belo
volume de estreia (Adelaide Ivánova revolta-se, e faço
coro: ele é de 1992!). As referências são inúmeras. Cabe
a nós decifrá-las. Citações diretas, recontextualizações,
alusões, intertextualidades, remendos, arremedos, mosaicos,
reordenações aleatórias de passagens conhecidas ou
desconhecidas se produzem de forma desconcertante e
atordoante. Eu mesmo sou ali plagiado com descaramento,
para meu grande prazer. Mas não fui exatamente eu o plagiado,
pois se trata de passagem minha vertendo/redizendo/
reescrevendo Catulo. Assim, se um único primórdio/átomo
pode fazer a diferença entre fogo e lenha (ignis e lignum, DRN
I 912, 914), uma única letra faz a diferença entre lígneo e ígneo.
Como se as letras produzissem as chamas (e quem dirá que
não?), como no ardor poético somatizado ou no auto-da-fé.
Sergio reescreve Drummond, Sêneca, João Cabral, Catulo-
João Angelo Oliva Neto, Catulo-eu, Safo-Guilherme Flores,
Ricardo Domeneck, Antonio Candido, Simônides, Anne
Carson, e (muitos) outros.
Mas não se trata apenas de malabarismo com
elementos da linguagem. A desestabilização a que são
forçados os contextos de partida por Maciel operam rasgos
lancinantes nas sensibilidades. Num mundo steineriano
pós-tragédia, como voltar a sentir? Num mundo em que
a imagem compartilhada aos bilhões nos obriga a ver o
menino que dorme com ondas batendo em seu rosto, como
é que e o que é que se pode sentir? Dessacralizamos a tragédia
greco-humana, sofisticamos nossos mecanismos de lidar
com desgraças. Precisamos de açoites poéticos como os
de Sergio Maciel (“mãe não acordem quem / longe de casa
sobre a areia / morre”, “eu li tanta coisa e tudo isso fede à
paz”) ou os de Guilherme Gontijo Flores em suas Troiades
– remix para o próximo milênio (“A morte é a primeira / a fugir
dos desgraçados”).

Se já não for clichê reafirmar a etimolóbvia origem de texto
– de texo, -ere, -ui, -tus, “tecer” –, deixo o próprio Sergio nos
apresentar sua variação sobre o tema (sendo lucreciano,
cabralino, sem saber, sabendo):

como se tudo só tecesse


as tão brancas margens do sal
ou um deserto nu de nadas
como tecesse tudo só
um grão de areia entre as próprias
verticais paisagens de morte
ou elementares enigmas
na dita máquina da vida

Como acusá-lo de falta de inspiração, quando um


mosaico vertiginoso de referências dança no ar como os
grãos de poeira de Lucrécio vistos em um facho de luz?
Como acusar o arquiteto quase-surrealista que ajuda a tirar
do universo brega as colunas greco-romanas e as inscreve
em sua recepção mais afinada com a poética sincrônica?
Como não respeitar aqueles que percebem, como Terêncio
já percebera ao reclamar em um prólogo de uma de suas
peças, no século II a.C., que tudo já foi dito? Ao invés de
paralisia, criação – como etimológica eleição, como (re)
criação, recreação, como diversão poético-tradutória: dou-me
por satisfeito – pilhei Gontijo Flores.

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