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Prefácio
“Você deveria ler os textos dele em prosa, são tão belos quanto os
poemas... talvez mais.” Foi isso que me disse o escritor e jornalista
palestino Nafiz Abu Hasna quando lhe contei que o primeiro título de
Mahmud Darwich a ser lançado pela recém-nascida Editora Tabla
seria Da presença da ausência. Nafiz pegou rapidamente seu lápis
amarelo, destacou uma folhinha da caderneta que estava na mesa e
começou a anotar os títulos que julgava importantes — e o porquê —
de serem traduzidos ao português.
Mais tarde, olhando aquele papel, o livro Dhakira lil-Nisyan
chamou a minha atenção; fiquei seduzida pela poesia que pairava
sobre o título, e intrigada com a ambiguidade que carregava, estando
aberto a múltiplas possibilidades de interpretação. Inteirada da
temática da obra, decidi traduzi-la. Voltei a falar com Nafiz, amante e
conhecedor da obra de Darwich, sobre a minha escolha e o que ele
disse foi: “Esse é o texto em prosa mais maduro do nosso poeta”.
Este texto apareceu pela primeira vez em 1986 numa edição
especial que trazia os volumes 21 e 22 da revista Alkarmel — da qual
Darwich era editor chefe —, sob o título: Tempo: Beirute. Lugar: um
dia de agosto de 1982. Em 1987, o texto virou livro e foi publicado no
Marrocos, pela Dar Toubkal, com o título Dhakira lil-Nisyan (Memória
para o esquecimento).
Essa “memória” é o relato de um único longo dia. Darwich
captura, em um estilo simples, mas ao mesmo tempo profundo e
altamente poético, os detalhes do cotidiano sob o cerco israelense a
Beirute. É bem conhecida a passagem onde o poeta descreve sua
amarga luta para se deslocar, sob intenso bombardeio, da sala até a
cozinha, a fim de preparar uma xícara de café, atividade corriqueira,
mas que, nas palavras de Darwich, é transformada em um ritual
humano único e excepcional naquele dia de agosto de 1982. Beirute,
que fora invadida pelo exército israelense em junho daquele ano,
estava sob intenso bombardeio. A invasão tinha como objetivo
principal derrotar a resistência palestina instalada no local e obrigar
seus líderes, e principais vozes, a deixarem a cidade e se
dispersarem em outros e múltiplos exílios.
Safa Jubran
São Paulo, agosto de 2021
Memória para o esquecimento
De um sonho nasce outro sonho:
— Você está bem? Quero dizer: está vivo?
— Como soube que eu estava, neste momento, colocando minha
cabeça sobre seus joelhos para dormir?
— Porque você me acordou quando se mexeu na minha barriga.
Soube então que eu era seu caixão. Você está vivo? Está me ouvindo
bem?
— Acontece muito de eu ser despertado de um sonho por outro
sonho que é a interpretação do primeiro sonho?
— Está acontecendo conosco? Você está vivo?
— Quase.
— Os demônios o enfeitiçaram?
— Não sei, mas há, no tempo, muito espaço para a morte.
— Não morra completamente.
— Tentarei.
— Não morra nunca.
— Tentarei.
— Diga-me, quando aconteceu? Quero dizer, quando nos
conhecemos? Quando nos separamos?
— Há treze anos.
— Nos encontramos muitas vezes?
— Duas vezes: uma, na chuva; outra, na chuva. Na terceira vez,
não nos encontramos. Eu viajei e me esqueci de você. Há pouco
lembrei que tinha me esquecido de você. Eu estava sonhando.
— O mesmo aconteceu comigo. Eu também estava sonhando. Eu
consegui seu número de telefone com uma amiga sueca que o
conheceu em Beirute. Eu desejo a você uma boa noite! Não se
esqueça de não morrer. Eu ainda o quero. E quando voltar à vida,
quero que me ligue. Como o tempo voa! Treze anos! Não. Tudo
aconteceu essa noite. Boa noite...
— Sairemos — dissemos.
— Pelo mar — disseram.
— Pelo mar — concordamos.
Por que então eles estão armando a espuma e as ondas com
esta artilharia pesada? Para apressar nossos passos em direção ao
mar? Primeiro eles precisam acabar com o cerco do mar. Liberar o
último caminho para o último fio do nosso sangue. Mas já que é
assim, nós não vamos embora e eu vou preparar o café...
Os pássaros da vizinhança despertaram às seis da manhã. Eles
mantêm a tradição do canto neutro desde que se viram a sós com a
primeira claridade. Para quem eles cantam nesse tráfego de
foguetes? Cantam para se curar da noite ida. Cantam para si
mesmos, não para nós. Como não percebemos isso antes? Os
pássaros abriram seu espaço particular em meio à fumaça da cidade
em chamas com suas sinuosas flechas de som contornando as
bombas, indicando uma terra segura no céu. O matador mata, o
combatente combate e o pássaro gorjeia. Quanto a mim, encerro a
busca por linguagem figurativa. Paro completamente minha procura
por interpretação, pois a essência da guerra é degradar os símbolos
e levar as relações humanas, o espaço, o tempo e os elementos de
volta a um estado primordial, que faz com que a visão da água
jorrando de um cano quebrado na rua nos deixe felizes, porque aqui
a água chega até nós feito um milagre.
Quem disse que a água não tem cor, nem sabor, nem odor? A
água tem uma cor que se revela no desdobramento da sede. A água
tem a cor dos sons dos pássaros, dos pardais em particular, que não
se importam com a guerra que vem do mar, desde que seu espaço
esteja seguro. E a água tem sabor de água e odor de brisa da
tardezinha soprando de um trigal de espigas fartas que acenam num
campo extenso, como os pontos cintilantes de luz deixados pelas
asas de um pequeno pardal voando baixinho. Nem tudo que voa é
avião (talvez uma das piores palavras árabes seja tá’ira [avião] que é
a forma feminina de tá’ir [ave]). As aves seguem cantando insistentes
em meio ao rugido da artilharia naval. Quem disse que a água não
tem sabor, nem cor, nem odor? E quem disse que esta tá’ira é a
forma feminina deste tá’ir?
Repentinamente, os pássaros se aquietam. Param suas tertúlias
e o rotineiro adejo no ar do amanhecer quando começa a soprar a
tempestade do metal voador. Teriam ficado quietos em razão daquele
rugido de aço ou por conta de uma incongruência entre o nome e a
forma? Duas asas de aço e prata contra duas asas de penas. Um
bico de ferro e de força contra um bico de música. Uma carga de
foguetes contra um grão de trigo e uma palha. Os pássaros param de
cantar e prestam atenção à guerra porque o chão do seu céu não
está mais seguro...
O céu desce, despenca como uma laje de concreto. O mar se
transforma em terra firme e se aproxima. Céu e mar são agora uma
única substância, dificultando minha respiração. Ligo o rádio para me
informar sobre o céu. Nada. O tempo congelou. Assentou-se sobre
mim querendo me sufocar. Os aviões passam entre meus dedos,
perfuram meus pulmões. Como posso alcançar o aroma do café?
Vou morrer seco sem o aroma do café? Eu não quero. Eu não quero.
Onde está minha vontade?
Ela estava lá, parada, do outro lado da rua, no dia em que
gritamos contra a “lenda” que avançava sobre nós a partir do sul. No
dia em que a carne humana cerrou os músculos do espírito e gritou:
“Não passarão! Nós não sairemos!”. A carne se chocou com o metal,
superou a difícil aritmética e fez os invasores pararem na cerca.
Haverá tempo para enterrar os mortos. Haverá tempo para armas. E
haverá tempo para que o tempo passe conforme desejamos, para
que este heroísmo possa continuar, porque, agora, nós somos os
donos do tempo...
O pão brotava do solo e a água jorrava das rochas. Seus
foguetes cavavam poços de água para nós, e a língua da sua matança
nos tentava a cantar: “Não sairemos!”. Assistíamos, nas telas dos
outros, ao nosso rosto fervendo com a grande promessa e rompendo
o cerco com sinais inabaláveis de vitória. De agora em diante, não
teremos nada a perder, enquanto Beirute estiver aqui e enquanto
estivermos em Beirute. No meio deste mar, no portal deste deserto,
seremos nomes de uma pátria diferente, onde os vocábulos
encontrarão novamente seus significados. Aqui, onde estamos, é a
tenda para os significados errantes das palavras perdidas e da
dispersa luz órfã, banida do centro.
Mas eles percebem, esses jovens armados até os dentes de uma
ignorância criativa do equilíbrio de forças e de refrões de canções
antigas, de granadas de mão e garrafas de cerveja inflamadas, da
sofreguidão das meninas nos abrigos e de pedaços de identidades
rasgadas, de um desejo claro de se vingar de pais prudentes, da
loucura de libertar a ideia da senilidade e do que eles desconhecem
dos exercícios da morte ativa... Será? Será que eles sabem que, com
suas feridas e sua imprudência inventiva, corrigem a tinta da língua
que, desde o cerco de Acre, na Idade Média, até o cerco atual de
Beirute — cujo objetivo é vingar toda a história —, tem impulsionado
toda a região a leste do Mediterrâneo em direção a um Ocidente que
da escravidão nada quer senão torná-la mais fácil?1
Será que sabiam que quando trataram de cercar o cerco
estavam substituindo a lenda, resgatando a realidade do
extraordinário para o ordinário, revelando ao equivocado profeta da
perdição os segredos de um heroísmo tecido pelo movimento do
óbvio para o óbvio? Como se um homem devesse ser testado em sua
masculinidade; e uma mulher, em sua feminilidade. Como se a
dignidade pudesse escolher entre autodefesa e suicídio. Como se o
cavaleiro não aceitasse a exigência do seu valor pessoal, moral e
físico com o retorno aos tempos do cavalheirismo oficial, e, sozinho,
abrisse este espaço insolente e limpasse o caminho para o mistério
da motivação. Como se um punhado de seres humanos se rebelasse
contra a ordem das coisas, de modo que este povo, nascido do
temperamento do fogo teimoso, não se tornasse igual ao rebanho de
ovelhas que, através da cerca da cumplicidade, é conduzido pelos
pastores da opressão em conluio com o guardião da lenda.2
Eles não passarão sobre nossas vidas. Que passem, então, caso
consigam, sobre os cadáveres que o espírito venha a expelir.
Onde está minha vontade, então?
Parou ali, na outra calçada da voz coletiva. Mas agora eu não
quero nada além do aroma do café. Sinto vergonha, vergonha do
meu medo diante dos que estão defendendo o aroma da pátria
distante: o aroma que eles nunca sentiram porque não nasceram
nela, mas nasceram dela e longe dela. No entanto, eles a
aprenderam sem interrupção, sem fadiga nem tédio; aprenderam-na
de uma avassaladora memória e constante perseguição:
— Vocês não são daqui — disseram-lhes lá.
— Vocês não são daqui — disseram-lhes aqui.3
Entre aqui e lá, esticaram seus corpos, arcos vibrantes, até que
a morte tomasse neles a forma de celebração. Seus pais foram
expulsos de lá para se tornarem hóspedes aqui, visitantes
temporários, para deixarem os campos de batalha da pátria limpos
de civis e para permitirem que os exércitos regulares expurgassem os
territórios árabes e sua honra da vergonha e da desgraça.
O café não deve ser tomado com afobação. É irmão do tempo e deve
ser bebericado com vagar, lentamente. O café é a voz do sabor, o
som do aroma. É meditar e mergulhar na alma e nas memórias. O
café é um hábito que, além do cigarro, deve ser acompanhado por
outro hábito: o jornal.
Cadê o jornal? São seis horas da manhã e eu estou no epicentro
do inferno. Notícia é o que se lê, não o que se ouve. O evento, antes
de ser redigido, não é um evento. Conheço um pesquisador em
assuntos israelenses que não para de desmentir os “boatos” de que
Beirute está sob cerco, simplesmente porque para ele um fato só é
verdade se estiver escrito em hebraico. Como ainda não recebeu
seus jornais israelenses, não admite que Beirute esteja sob cerco!
Mas não é desse tipo de disparate que eu sofro. Para mim, o jornal
da manhã é um vício. Cadê o jornal?
A histeria dos jatos está aumentando. O céu enlouqueceu.
Completamente. Este amanhecer é um aviso de que hoje será o fim
do mundo. Onde mais vão bombardear? Onde mais não vão
bombardear? Será que a área ao redor do aeroporto comporta todas
essas bombas, capazes de matar um mar? Ligo o rádio e sou forçado
a ouvir comerciais felizes: “Cigarros Merit. Mais aroma, menos
nicotina!”, “Relógio Citizen: para o tempo preciso!”, “Venha para a
terra de Marlboro, venha para onde está o sabor!”, “Água mineral
Suhha é saúde que jorra das altas montanhas!”. Mas onde está a
água? O exagero na sedução praticada pelas locutoras da Rádio
Monte Carlo faz com que pareçam ter acabado de sair do banho ou
de um excitante quarto de dormir: “Intenso bombardeio sobre
Beirute”. Intenso bombardeio sobre Beirute! Isso é transmitido como
uma notícia comum a respeito de um dia comum, em uma guerra
comum, em um noticiário comum? Eu giro o dial para a BBC. As
mesmas vozes mortais e mornas de locutores fumando cachimbo nos
ouvidos dos seus ouvintes. Vozes transmitidas em ondas curtas
ampliadas para uma onda média são transformadas em caricaturas
vocais sinistras: “Nosso correspondente diz que para os
observadores cautelosos a situação parece se tornar gradualmente
mais clara quando o porta-voz consegue, apesar da dificuldade,
entrar em contato com os eventos, o que talvez possa indicar que as
duas partes estão em guerra, no entanto, talvez, sem mencionar uma
certa ambiguidade, a qual poderia ser indicada pelo fato de que
ainda há aviões de combate com pilotos desconhecidos voando alto.
Porém, se quisermos ser precisos, poderia ser confirmado que
algumas pessoas agora aparecem bem vestidas”. Um árabe formal,
com informações corretas, seguidas por uma canção de Muhammad
Abdul-Wahab em árabe coloquial com emoções corretas: Ya tiguini,
ya tu’lli aruh-lak, ya tu’lli aruh-lak minnak fen [Vem me ver, ou me diz
onde te encontrar, ou me diz aonde ir para te deixar em paz].
Vozes idênticas e monótonas. Areia descrevendo o mar. Vozes
eloquentes e imparciais relatam a morte como quem diz a previsão
do tempo, e não como quem narra uma corrida de cavalos ou de
bicicletas. O que procuro? Abro a porta várias vezes, mas não
encontro o jornal. Por que procuro um jornal se os prédios estão
despencando por todo lado? Não me bastaria esta leitura?
Não é bem isso. Quem procura um jornal no meio deste inferno
estaria escapando de uma morte solitária e migrando para uma
morte coletiva. Estaria buscando um par de olhos humanos, um
silêncio compartilhado, uma conversa recíproca, algum tipo de
participação nesta morte, uma testemunha que possa dar
testemunho, uma lápide sobre um cadáver, quem anuncie a queda de
um cavalo, uma língua que fale e se cale, uma espera menos
entediante pela morte certa, pois o que este aço e essas bestas de
ferro informam é que ninguém será deixado em paz, e ninguém vai
contar nossos mortos.
Estou mentindo para mim mesmo: não preciso procurar uma
descrição do que está ao meu redor nem no meu interior que vaza. A
verdade é que tenho medo de cair entre os escombros, vítima de um
gemido que ninguém possa ouvir. E isso é doloroso. Doloroso na
medida em que eu sinto dor, como se o evento tivesse realmente
acontecido: agora estou lá, nos escombros. Sinto a dor do animal
esmagado dentro de mim. Eu grito de dor, mas ninguém me ouve. É
a “dor fantasma”, que vem de uma direção oposta, do que pode vir a
acontecer. Alguns feridos, atingidos na perna, continuam sentindo
dor por vários anos após a amputação. Eles estendem a mão para
tocar a dor em um lugar onde não há mais o membro. Esta dor
fantasma e imaginária pode persegui-los até o fim dos seus dias.
Quanto a mim, sinto a dor de uma lesão que não aconteceu... minhas
pernas foram esmagadas sob os escombros.
Estas são minhas suposições: talvez o míssil não me mate num
piscar de olhos, sem que eu perceba; talvez uma parede caia
lentamente sobre mim e meu sofrimento seja infinito, sem ninguém
para ouvir meus gritos de socorro, enquanto o peso dos escombros
esmaga minha perna, meu braço ou meu crânio, ou talvez repouse
sobre o meu peito e eu fique vivo por vários dias, sendo que ninguém
terá tempo de procurar os restos de outro ser; minha carne talvez
grude no cimento, no ferro ou na terra; por fim, não sobrará nenhum
vestígio de mim; lascas dos meus óculos poderão se alojar nos meus
olhos e me cegar; meu flanco talvez seja perfurado por uma vara de
metal, ou esquecido no acúmulo da carne mutilada deixada para trás
nos escombros. Mas por que estou tão preocupado com o que
aconteceria com meu cadáver e seu destino? Não sei. Eu quero um
funeral organizado, onde meu corpo inteiro, não mutilado, seja
acomodado em um caixão de madeira envolto em uma bandeira com
as quatro cores claramente visíveis (mesmo que tenham sido
adotadas de um verso cujas palavras não remetem a seus
significados),7 carregado sobre os ombros de meus amigos, e de
meus amigos-inimigos.
Quero coroas de rosas vermelhas e amarelas. Eu não quero
nenhuma flor de cor comum, nem violetas, porque elas espalham o
cheiro da morte. Eu quero um locutor de rádio que não seja muito
tagarela, com uma voz não muito rouca e capaz de emular uma
convincente demonstração de tristeza, trazendo de tempos em
tempos gravações da minha voz carregando algumas palavras. Quero
um funeral sereno, ordenado e grande, para que a despedida seja
bonita, diferente da chegada. Que sorte têm os recém-mortos no
primeiro dia de luto, quando os enlutados competem entre si para
elogiá-los! Cavaleiros por um dia, amados por um dia e inocentes
apenas neste dia. Sem falsidade, sem insultos, sem inveja. Ainda
melhor, no meu caso, não tendo esposa nem filhos, eu pouparia os
amigos do esforço de representar, por longo tempo, o papel triste
que só terminaria quando a viúva começasse a sentir dó do
condolente. O fato também preservaria a dignidade do filho de ter
que ficar à porta das instituições administradas por burocracias
tribais. É bom que eu seja só, sozinho. Por essa razão meu funeral
será gratuito, sem a conta da cortesia, de modo que depois do
funeral aqueles que caminharam na procissão possam voltar aos seus
afazeres cotidianos. Eu quero um funeral com um caixão elegante, de
onde possa espiar os enlutados que estão do lado de fora, assim
como queria fazer o dramaturgo Tawfiq Alhakim. Eu quero dar uma
olhada neles, como andam, como param, como reclamam e como
convertem sua saliva em lágrimas. Eu também quero escutar as
zombarias: “Ele era um mulherengo; gastava muito em roupas; a
gente se afunda até os joelhos nos tapetes de sua casa; tinha um
palacete na Riviera Francesa, uma mansão na Espanha e uma conta
bancária secreta em Zurique; mantinha, secretamente, um avião
particular e cinco carros de luxo na garagem de sua casa em Beirute;
não sei se ele tinha um iate na Grécia, mas na sua casa havia tantas
conchas do mar, o suficiente para construir um campo de refugiados
inteiro; ele costumava mentir para as mulheres; o poeta está morto e,
com ele, sua poesia. O que sobrou dele? Sua época findou e sua
lenda acabou. Levou sua poesia com ele e desapareceu. De qualquer
forma, tinha o nariz e a língua compridos”. Ouvirei coisas ainda mais
duras do que isso, quando a imaginação estiver totalmente liberta. Eu
vou sorrir do meu caixão e tentar dizer: “Chega! Voltarei à vida, não
aguento mais!”.
merecia ser revisto, pois já foi dito que Deus (exaltado acima de
seres do mundo, criou uma névoa fina. Agora, sabe-se que não
Cálamo, mas só Deus sabe. Pode ser que nenhuma menção tenha
na água e não criou nada antes da água. E quando Ele quis criar
e quando este atingiu uma posição mais alta ainda, Ele chamou
de Céu; depois, Ele secou a água e fez a terra, que Ele então
Ele criou a Terra sobre uma baleia, e a baleia é a letra nun que
”
lugar .
um dos seis dias em que Deus criou o céu e a terra era como mil
anos.
criado antes de seu par. Alguns disseram que a noite foi criada
só, sem noite nem dia, e que Sua luz iluminava tudo que Ele
dia nem noite. A luz dos céus é a luminância de Seu rosto”. Ubaid
lua, e Ali disse: ‘Era um sinal que foi apagado ’”. Em um longo
rodas, cada uma com 360 alças, puxadas por um número igual de
Vídeo...
Ver o que queremos ver nesse momento em que a condição da
nossa existência se torna essa visão decorrente do grande discurso,
que tenta transformá-la numa perda de consciência, que faz com que
os representantes da maioria se tornem uma minoria sitiada.
Vídeo...
Porque este não é o tempo de profetas, no qual o isolamento se
torna uma bússola para a verdade e essa minoria decantada do
projeto da maioria, uma luz guia.
Vídeo...
Porque a Guerra de Junho, preparada para ser o fim do
arabismo, foi transformada pelos regimes árabes (que inventaram
esse mesmo arabismo) numa desculpa para neutralizar a raiva
incontrolada das ruas, em vez de em estágios iniciais de uma
alternativa baseada na vingança das ruas. Assim, confirmaram sua
opção pelo desvio na direção do regionalismo e do sectarismo.
Vídeo...
Porque o Marquês de Sidon, que aguardava a permissão do
Papa para colocar sua irmã, ou sua sobrinha, debaixo de um
muçulmano, não servia como um verdadeiro aliado contra os ingleses
que estavam cercando Acre.
Vídeo...
Porque a queda do Centro, com a assinatura de um tratado que
garante o fim das guerras, autoriza o ataque contra o “cerne da
questão”, fazendo-o passar de tema de causa a tema de ruptura e
discórdia.13
Vídeo...
A partilha do litoral e da montanha entre os árabes e os
francos,14 nestas condições contemporâneas, não visa garantir que os
árabes mantenham o que restou dos castelos e territórios para
continuar a luta, mas sim dar ao inimigo uma trégua, oferecendo-lhe
a possibilidade de estabelecer modelos que lhe garantam passar da
exceção à regra.
Vídeo...
Porque esta costela da Península, a costela fraturada, está
sendo procurada para ser julgada sob a acusação de atacar o
conforto dos tronos, promovendo palavras que são proibidas de
circular nos países árabes, tais como: mulher, oposição, livro,
partido, parlamento, liberdade, porco, democracia, comunismo e
secularismo.
Vídeo...
Porque a Palestina evoluiu de uma pátria para um slogan criado
não para ser colocado em prática, mas para ser comentado durante
os eventos, para embelezar o discurso do golpe, dissolver partidos,
impedir o cultivo de trigo, substituir a labuta por lucro rápido, e para
o aprimoramento da indústria do golpe, seja a pesada ou a leve, até
que ocorra o casamento da última descendente do califa...
... sozinhos!
... sozinhos!
Sozinhos...
— Adeus, senhor.
— Para onde?
— Para a loucura.
— Que loucura?
— Qualquer uma, pois já me transformei em palavras...
Perto do Hotel Cavalier olhei o relógio: oito horas. Será que o poeta
Y já está acordado?15 Quem pode dormir com o rugir dessas
alcateias de aço? Estava curioso para saber como um poeta
consegue escrever, como consegue encontrar língua para esta língua.
Y escreve diariamente um poema visual, cuidadoso, capaz de
capturar detalhes reveladores de uma essência humana. Ele é um
poeta que pode persuadir a alegria a sair dos escombros e
surpreender. Quando ele escreve, torna-se desnecessário para nós
escrevermos, porque ele diz, em nosso nome, o que gostaríamos de
dizer. Ele me enche de tristeza, cuja pureza desperta em mim a
substância da felicidade. Enquanto este poeta escrever, não serei
capaz de encontrar evidências tangíveis de que a poesia atravessa
uma crise. Resumindo, ele é meu poeta. Encontrei-o pela primeira
vez em Bagdá, e logo ele tentou me matar: toma todas as bebidas
que chegam à mesa, mesmo as que só combinam para discordar! Ele
não reconhece as diferenças entre os diversos tipos. Bebida
alcoólica é bebida alcoólica. Não há diferença entre cerveja, uísque,
vinho, araq e gim. Todas enlouquecem! E quando, no final da noite,
ele me deu carona até o Hotel Bagdá, teria levado o carro e os
ocupantes para nadar no rio Tigre, não fosse por nossos gritos de
alerta.
— Não se preocupem — disse ele, acalmando-nos do susto. —
Sou atualmente um funcionário do Departamento de Irrigação.
— Irrigação?! — gritamos.
— Sim, irrigação, irrigação.
Finalmente, ele se mudou do Departamento de Irrigação em
Bagdá para o Departamento de Sangue em Beirute. Nós nos
reuníamos para ler poesia nas noites de Beirute e de Damasco e,
algumas semanas atrás, nos encontramos em uma base dos fedaíyin
em Tiro. Ontem, eu o vi perto do Hotel Plaza; na escuridão da noite,
lançando a luz da lanterna no meu rosto, ele me reconheceu e
perguntou:
— Por que você está caminhando sozinho, sem guarda-costas?
O que está fazendo aqui?
— Estou esperando um táxi para ir até a sala de comando —
respondi.
caiu a máscara
você não tem irmãos, meu irmão, você não tem amigos
e não tem água, eu lhe digo, e não tem céu, não tem remédio, não
não tem aonde ir, nem para a frente nem para trás
livre
e livre
feridas
como um louco
como um louco
agora é ser
ou não ser
caiu a máscara da máscara
a máscara caiu
caiu a máscara
caiu a máscara
vieram até ele grandes multidões, de modo que entrou num barco
porque a terra não era profunda, mas tendo saído o sol, queimou-
se, e como não tinha raiz, secou. Outra caiu entre os espinhos, e
...e partindo Jesus dali, foi para as terras de Tiro e de Sidon. E eis
”
perdidas da casa de Israel . Então, ela se aproximou e adorou-o,
dizendo: “Senhor, ”
socorre-me . Ele, porém, respondendo, disse:
”
cachorrinhos . E ela disse: “Sim, Senhor, mas os cachorrinhos
”
senhores . Então, disse Jesus: “Ó, mulher, grande é a tua fé. Seja
”
feito a ti, conforme desejas . E, desde aquele momento, sua filha
ficou sã.18
Evangelho de Mateus
Há uma hora que não troco uma palavra com meu amigo Z. Ele está
dirigindo seu carro sem rumo.
— Onde você estava? — um pergunta ao outro.
— Eu sei onde você estava — digo. — Fale a verdade. Você não
estava fazendo algo safado com a mulher do piloto?
— Como você soube? — perguntou surpreso.
— Eu também estou voltando de algo parecido — respondo. — E
por isso sei para onde a morte nos leva.
— É hora de comer — ele diz.
— Sardinhas de novo? — pergunto.
— Qualquer coisa — ele responde.
No entanto, qualquer coisa não era uma coisa qualquer. De
repente, ele para o carro e grita:
— Um cordeiro abatido pendurado no gancho!
Estamos no início da rua Comodoro, que leva à Rauche.
Conhecemos o vendedor. Ele não age como um açougueiro, mas
como um coveiro. Ele se aproxima de qualquer líder em qualquer
funeral, afim de estar na cena e sair na fotografia.
— Quanto paradoxo há no nosso fenômeno! Sorte minha eu não
ser dramaturgo, pois teria que mostrar o outro lado da cena. Você
percebe que o olho do escritor é negativo, assim como o ouvido do
líder? É fascinado pelo contraste: uma ofensiva aqui, uma calúnia ali.
A calúnia se espalhou em nossa vida política de forma maléfica,
acompanhou o fenômeno da autoinflação, do inchaço do corpo, e a
deflação da inquietação das perguntas. Escritórios inteiros, com ar-
condicionado, foram abertos apenas para servirem de sala para as
calúnias e a disseminação de rumores. Além disso, a indústria de
mártires floresceu entre algumas das facções menores: “precisamos
de mais vinte mártires para completar a lista”. Uma luta armada se
deu em torno de um mártir cuja facção não foi identificada. Um
combatente foi executado por ter se recusado a atirar num amigo que
pertencia a outra facção; seu corpo foi jogado num poço abandonado
e lá ficou até ser descoberto por uma mulher que previa o futuro e...
Z me interrompe:
— Hoje à noite eu vou te mostrar o jogo da câmera e da sombra.
— Não estou interessado.
— Onde vamos comer? — pergunta. — Precisamos de um pouco
de carvão e um prédio mais ou menos seguro.
Ficamos surpresos quando vimos o céu azul, claro, sem nenhum
avião. Fazia um minuto que os aviões não passavam. Teriam se
cansado?
O apartamento seguro no prédio mais ou menos seguro, em
Saquiat Eljinzir, se encheu de amigos famintos. As pessoas saíram
dos abrigos.
— Nada de aviões! Nada de aviões!
— Onde estão os livros de Bakhtin? — um deles pergunta.
— O crítico que costumava viver neste apartamento partiu e
levou os livros — alguém responde.
Alguns começam a difamá-lo. Mas logo alguém diz:
— Chega! Estamos precisando de um palestino vivo interessado
em marxismo e em linguística.
Eles consideram isso um bom ensejo para a calúnia e se
preparam, mas uma tempestade de aviões sopra sobre nós, salvando
assim a reputação do crítico ausente e lançando-nos na rua.
E esse barulho? Nunca ouvimos nada igual antes. Baixo,
distante, profundo e subterrâneo, como se tivesse vindo do bojo da
terra, como se fosse o som temeroso do Juízo Final. Todos sentimos
— e já tínhamos nos tornados especialistas na ciência dos sons
assassinos — que algo incomum acontecia nesta guerra nada comum
e que uma nova arma era testada. Quando esse longo dia vai
acabar? Quando vai acabar para sabermos se estamos vivos ou
mortos?!
Aquele que estava carregando o pernil de carneiro questiona: “O
que vamos fazer com isso?”.
Ignoramos sua pergunta gananciosa. Mas ele estupidamente
continuou perguntando, enquanto estávamos ocupados procurando
algo que nos ajudasse a recolher nossas partes cortadas. Ele seguiu
até que eu disse: “Pegue esta carne, leve-a para o abrigo mais
próximo, faça um furo nela, trepe com ela e nos livre dela e de
você!”.
Mas esse barulho distante agitou em nós um medo antigo: o
medo inspirado pelas selvas primitivas. Z e eu caminhamos atrás dos
nossos medos. A cena perto da Hadiqat Assanaí parecia uma visão
do Dia do Juízo Final. Centenas de pessoas apavoradas ao redor de
um imenso caixão de pedra. Um silêncio apreensivo carregava o
peso do metal sob um sol velado por todos os tons de cinza. Nós nos
enfiamos no meio da multidão, procurando um espaço para espiar
por cima dos ombros, atrás da cerca humana unida pelo medo e pela
raiva. Então vimos:
Um prédio engolido pela terra.
Um prédio, sequestrado pelas mãos do monstro cósmico à
espreita do mundo que o homem edifica sobre uma terra que só tem
vista para uma lua, um sol e um abismo; pronto para empurrá-lo num
poço sem fundo no qual, ao chegarmos à beira, percebemos que não
aprendemos a andar, a ler nem a usar nossas mãos, a não ser para
atingir um fim por nós esquecido, apenas para continuar nossa busca
por algo que possa justificar esta comédia, para cortar o fio que ata o
início ao fim, para imaginarmos que somos uma exceção à única
verdade.
Qual é o nome dessa coisa? Bomba de vácuo. Ela cria um
enorme buraco abaixo do alvo, aniquilando sua base, e o vácuo
resultante suga-o para baixo transformando-o em cemitério. Nem
mais, nem menos. E lá embaixo, no novo espaço, o alvo conserva sua
forma. Os moradores do edifício mantêm suas formas anteriores e
seus últimos gestos sufocados. Lá embaixo, abaixo do que estava,
um momento atrás, embaixo deles, transformam-se em estátuas
feitas de carne, sem o mínimo de vida para uma despedida. Assim,
quem estava dormindo continua dormindo. Quem estava carregando
uma bandeja de café ainda a carrega. Quem estava abrindo uma
janela continua a abri-la. Quem estava mamando no peito da mãe
ainda mama, e quem estava dormindo sobre sua mulher vai continuar
dormindo sobre ela. Mas aquele que estava por acaso parado no
telhado do prédio pode sacudir a poeira da roupa e sair andando na
rua sem ter que usar o elevador, já que o teto do prédio agora está
nivelado com o chão. Por esse motivo, os pássaros permaneceram
vivos em suas gaiolas no telhado.
E por que fizeram isso? O comandante esteve ali e acabara de
sair. Mas será que saíra realmente? Nossa dúvida apreensiva o
transformou de uma figura paterna em um filho. Não tivemos sequer
tempo de formular a pergunta: “Ele estava ali. E daí? Isso lhes dá o
direito de exterminar uma centena de pessoas?”. Estávamos
ocupados com outra questão: “Será que ele realmente conseguiu
sobreviver às repetidas tentativas para assassiná-lo com jatos e
armas avançadas como a bomba de vácuo?”. Ontem, ele estava
jogando xadrez na frente das câmeras americanas para enlouquecer
mais ainda o Begin, para não lhe permitir o insulto político e forçá-lo
à vituperação racista: “Esses palestinos não são humanos. São
animais quadrúpedes”. Ele tinha que nos destituir de nossa
humanidade para justificar nossa morte, pois matar animais — exceto
cães — não é proibido pela lei ocidental. Begin estava repetindo a
história de sua loucura e de seus crimes. Imaginou que seus
soldados, os caçadores desses animais, estavam num safári. Mas
centenas de caixões foram jogados na sua cara, levantados por
milhares que gritavam: “Até quando?!”. Nós não somos humanos
porque não permitimos que ele ocupasse uma capital árabe. Porque
ele não consegue acreditar que meros seres humanos possam
impedir a “lenda” de se tornar um tribunal para julgar todos os
valores e toda a humanidade, em todo e qualquer tempo e lugar.
Uma corte absoluta e eterna. Por isso ele quer transformar a
natureza daqueles que resistiram a ele em algo não humano, em uma
natureza bestial. Trancou-se na própria lenda, para a qual acreditava
ter fechado todas as janelas a uma possível pergunta: quem
realmente é o animal? Os fantasmas daqueles que ele aniquilou em
Deir-Yassin, aqueles que ele fez desaparecer do tempo e do lugar, de
modo que, através dessa ausência, pudesse impor as condições de
sua própria presença no tempo e no lugar, estão agora assaltando
seus sonhos e seus devaneios. Esses mesmos fantasmas, que
heroicamente recuperaram sua carne, seus ossos e espírito, agora o
estão cercando em Beirute. O fantasma que foi vítima voltou a ser
um herói. E entre fantasma e herói, o profeta das falácias foi cercado
por uma obsessão que o impediu de recorrer a alguns livros do
Antigo Testamento, que poderiam, por si só, escrever a história da
humanidade.
estão com ela em sua casa serão poupados, pois ela escondeu os
”
Senhor e deverão ser levados ao seu tesouro . Quando soaram as
jumentos, todos os seres vivos que nela havia. Josué disse aos
”
o juramento que fizeram a ela . Então os dois jovens que tinham
”
Jericó .23
Livro de Josué
Pergunta: É um espelho?
Resposta: Na medida em que uma onda esteja apta a ser uma
pedra.
Pergunta: É uma estrada?
Resposta: Na medida em que um poema possa ser uma rua.
Pergunta: Ela conta mentiras?
Resposta: Quando se acredita no que não se pode acreditar.
Então, parecia-me.
Então, parecia-me.
No entanto, o pássaro que se ergueu do sangue de Beirute e das
suas promessas começou a se perguntar: “Estou livre ou numa
gaiola?”.
Ando agora por Beirute. É a primavera de 1980. Vejo uma gaiola
feita de penas das minhas asas. Meu cantar provoca sarcasmo.
É a pátria...
Não há ninguém.
Futebol.
prata, que pesava quarenta ratls sírios, bem como vinte e três
”
pertencemos e a Ele devemos voltar . Porém, de nada adiantou.
a seu redor: “Quero enviar um de vocês com ele até seu patrão . ”
Todos levantaram a cabeça com expectativa. Então, ele disse a
própria garganta e caiu morto. Então, ele disse para outro: “Atire-
”
se daqui . Esse imediatamente se atirou do topo da cidadela, na
”
até sua esposa e filhos , ela disse.
eram doze. Bagdá então ficou enfeitada durante sete dias de uma
com a garota.
mercado. Quando seu feito se tornou conhecido, ela foi morta por
isso.
‘
alguém dizer: Quando três cincos se juntarem, o califa Almuqtafi
”
fingindo a morte . Quando receberam a carta, escreveram uma
resposta rude.
Naquele ano, o rei dos ingleses enviou uma carta para Saladino
enviá-las a ele, mas que estavam muito fracas. Ele pediu algumas
forneceu. Mas esta bondade foi em vão, pois assim que o rei
uma mensagem ao sultão para dizer que se nada fosse feito pela
Naquele ano, uma trégua foi assinada após uma guerra que durou
... os francos não têm nenhum zelo nem dignidade. Um deles pode
homem que a pegue pela mão, e ver esse homem se afastar para
”
dele vai encontrá-lo em tal e tal lugar... . Um dia, este franco, ao
respondeu.
cama!
— Quando encontrei essa cama arrumada, decidi dormir nela —
respondeu.
Outra ilustração:
de Allah repouse sobre sua alma. Este homem contou: “Certa vez
‘
minha virilha e disse: Salem, isso é bom! Pela verdade da minha
’
religião, faça o mesmo para mim . Deitou-se de barriga para cima
e eu vi que naquele lugar ele tinha algo igual à sua barba. Então,
‘
liso, disse: Salem, pela verdade da minha fé, faça o mesmo para
’
al-dama , referindo-se à sua esposa — na língua dele, al-dama
‘ ’
significa a senhora . Ele então disse a um servo: Diga à al-dama ‘
para vir ’
aqui . Assim, o servo foi buscá-la e a conduziu ao
”
serviço .
Considere agora essa grande contradição! Eles não têm nem zelo
dignidade e da altivez.
como um louco
como um louco
agora é ser
ou não ser
— Não me morda como uma maçã. Temos ainda toda esta noite.
Leve-me para a Austrália, onde não há ninguém de nós lá, nem
mesmo eu e você.
Ela colocava lenha no fogo enquanto a canção repetia: “Suzanne
está te levando para a casa dela perto do rio”. A letra da música era
bonita, e a voz mais lia do que cantava um poema que não chegava a
nenhum lugar. Um ser humano sozinho num deserto. Um ser humano
que fala para se manter unido, para se proteger da solidão, para
conseguir se encontrar.
— Quando você vai me beijar?
— Quando eu acreditar que posso acreditar que esses lábios
estão abertos para mim.
— Para quem seria?
— Para uma voz que chega de um planeta distante. Você sabe
que seus olhos são capazes de colorir a noite com qualquer cor que
você deseje?
— Me beije!
Do lado de fora da janela, chuvas; do lado de dentro, brasas.
— Por que está chovendo tanto?
— Para você ficar dentro de mim.
Paixão gerando paixão. Chuva que não parava. Fogo que não se
apagava. Corpo que não acabava. Desejo que iluminou os ossos e a
escuridão. Nós dormimos só para sermos despertados pela sede do
sal, pelo mel e pelo cheiro dos grãos de café levemente queimados,
assando sobre o mármore quente.
Fria e quente é esta noite. Quente e frio, este gemido. Brunido
estou pelo calor de uma seda que não enruga, que se estica ficando
mais tensa conforme se esfrega contra os poros da minha pele, e
grita. O ar, agulhas de saliva quente entre meus dedos. Nos ombros,
uma cobra elétrica desliza e se alonga em direção às brasas. Uma
boca que devora as dádivas do corpo. Nada resta da linguagem
exceto os gritos dos quartos trancados onde animais domésticos
estão em guerra. Então o suor esfria o ar e nos faz tremer.
uma ilha dentro dela, portanto, nós nunca aceitamos que nossa
capa do “nojo ”
da política , ou seja, da luta. Não. Não somos
Além disso, ele tem conseguido puxar outros para suas teses,
da revolução
da revolução...
é a vitória
ou a vitória
da revolução
da revolução...
nascemos em suas mãos
quantas
e quantas vezes
da revolução...
da revolução
o que não se vê
Quem dera.
Quem dera!
Aonde vou nesse pôr do sol? Guiados pela luz das bombas e dos
aviões, meus passos me levaram à casa de B.46 Para aqueles que não
o conhecem pode parecer que ele esteja comandando toda a guerra:
batalhas, negociações e serviços de informação. Animado, jovial e
encrenqueiro, encontrou nesta guerra seu jogo há muito perdido.
Com uma mão no telefone, dá declarações sobre o que sabe e o que
não sabe; com a outra, escreve ordens, instruções ou conselhos. Ele
marca vinte encontros em uma hora, sem se cansar. Uma colmeia em
um homem destinado a zumbir. Um amigo que não estabelece
termos para a amizade. Divertido, inteligente e generoso. Na casa
dele há um ídolo que não fala. Um ídolo cultuado e adorado. Quanto
mais silencioso ele fica, mais a sabedoria de seu silêncio provoca
uma tempestade de aplausos. E na casa há um amigo chamado A,
capaz de imaginar como será o mundo daqui a meio século. Seus
pensamentos, baseados numa lógica formal, despertam uma atração
cinematográfica. Sem que seja perguntado, e sem hesitar, ele fala
dos grandes e pequenos países como se falasse das ruas de Beirute.
Se suas previsões se realizarem, esta região do Oriente estará, num
curto espaço de tempo, sob cerco por dois tipos de sacerdote das
trevas. Concordo com sua previsão sobre as formas de uma
catástrofe anunciada e a fase final da desintegração em curso. Mas
discordamos infinitamente a respeito da alegação de que tal
resultado é tudo o que pode nos salvar, porque uma escuridão é
capaz de triunfar sobre outra e deixar o amanhecer para nós.
Independentemente da extensão em que os slogans da política
moderna são descolados dos seus princípios e seu discurso
esvaziado de conteúdo, eu não acredito, eu não quero acreditar que
a história deste Oriente se repetirá de uma forma mecânica ou
mesmo criativa. Eu não espero uma renovação ou um
desenvolvimento árabe que não venha dos próprios árabes. E não
acho que o modelo criado para tentar os desesperados destes
tempos com um retorno à fé tenha algo a oferecer que não seja o
retorno à luta sobre questões que não são mais as nossas. O que eu
tenho que ver com os erros de Othman Ibn-Affan, já que esta história,
por si só, não é a minha história?47
A e B insistem que não vamos nos retirar, não porque eles não
tenham informação ou não estejam a par dos segredos das
negociações, mas porque a ideia de deixar Beirute é parecida com a
ideia de sair do paraíso, ou da pátria. Era mais difícil para qualquer
um que participou da formação dessa experiência, vendo seu
crescimento inicial acompanhado pelo próprio crescimento, colocar-
se fora dela enquanto visualiza um final que tem cara de calamidade.
Ninguém se preparou, nem mesmo na imaginação, para tal
proposição. Assumindo que o equilíbrio de forças nos obrigará a sair,
que opções preparamos para contrariar tal perspectiva? Como nos
organizamos para lidar com o pior? Que alternativas propusemos a
essa concentração de instituições num só lugar? Fomos acometidos
por um tipo de fatalismo e uma dependência da pura sorte? Já não
nos salvamos mais de uma vez? Por quanto tempo, então, vamos
confiar nesta salvação?
M está quieto, afastado de nós e das lagartas. Introvertido. Ele
vê o mar. Ele nos vê no mar, como se acabasse de sair do meu
pesadelo. Ninguém presta atenção nele, enquanto, coberto de
silêncio, tenta nos proteger das ondas do mar que batem dentro da
sala.
— Você vê algo que não vemos, M? — eu pergunto.
— Você vê algo que eu não vejo, M? — ele responde.
— Estou apavorado. Você viu meu sonho? Você não estava no
meu sonho.
— Eu não estava no seu sonho, mas você vê o que eu não vejo?
Ficaram todos calados, para se assegurar de que não havíamos
enlouquecido.
Ele me levou para a varanda.
— Seu apartamento está seguro?
— O que você quer dizer? — eu pergunto.
— É seguro o suficiente para o comandante pernoitar? Seus
vizinhos estão conosco ou contra nós?
— O mar em si está contra nós — eu respondo.
— Você quer dizer que teme pelo navio dele? — ele pergunta.
— Quero dizer que meu apartamento tem uma fachada de vidro,
exposta ao bombardeio que vem do mar — respondo.
— Então não serve. É melhor ele dormir esta noite numa
garagem ou na rua.
“As brisas do paraíso estão soprando.” Será que ele vai dizer a
verdade? Vai revelar o que realmente pensa? Será? Ele não dirá.
— Qual mar vamos atravessar? — eu pergunto a M.
— O Mediterrâneo, depois o Mar Vermelho.
— Por que você está tão distante? Você estava no meu sonho
ontem à noite?
— Não sei. Que sonho?
— Estávamos nesta mesma sala — eu digo —, tendo a mesma
conversa, o mesmo ídolo, os mesmos ataques aéreos. O guarda veio
nos informar que havia um estranho que dizia ser um velho amigo e
queria nos ver. Cada um de nós levou a mão à pistola, prontos para
qualquer mistério que a porta pudesse revelar. Escondemos o ídolo
no banheiro. Mas o visitante era Izzeddin Qalaq, tenso e sorridente
como de costume.49 “Como você chegou aqui?”, perguntamos a ele.
“Cheguei, da mesma forma que vocês chegaram”, ele respondeu.
Percebemos então que Qalaq não tinha mudado em nada.
Continuava distante e genial. No entanto, ele olhava para cada um de
nós com a cautela de alguém que encontra um estranho pela primeira
vez. “Izz, não se preocupe, M está na sala de comando”, dissemos
para ele. Nós conversamos e ele, sem demonstrar surpresa alguma,
como se fosse um viajante comum que acabara de chegar de Paris,
compartilhava sua presença conosco, participando do descolamento
coletivo deste lugar. Esquecemos que ele havia nos deixado para
sempre dez anos atrás e que os mortos não visitam os vivos, exceto
para levantar dúvidas. No entanto, aqui estava Izzeddin, entre nós,
sem alarde nem medo. Perguntei como era lá no outro mundo. Ele
disse que era normal. Nada novo sob o sol. “Há um sol lá?”, eu
perguntei. “Sim”, ele respondeu, “há um sol lá.” Eu perguntei sobre o
clima, e ele me disse que era quente e úmido, pois o tempo em
agosto é sempre quente e úmido. Perguntei se eles recebiam notícias
nossas lá e se estavam sabendo do cerco. Ele me disse que todos lá
acompanhavam as notícias, hora a hora, na televisão. Sentiam raiva
porque não podiam ajudar. Perguntei quem teria chegado até eles
vindo daqui, pois seriam testemunhas oculares do que estava
acontecendo. “Ninguém”, ele disse. “Eles bombardearam o cemitério
dos mártires. Será que ninguém conseguiu escapar e ir até vocês?”,
eu disse. “Não vimos nenhum deles”, ele respondeu. “Onde você
mora, no paraíso ou no fogo?”, eu perguntei. “O que você quer
dizer?”, ele me perguntou, estranhando meu questionamento. “De
onde você veio, do paraíso ou do inferno?”, eu disse. “Eu vim de lá,
do outro mundo”, ele respondeu. Fitei-o à procura de algum sinal em
seu corpo que pudesse indicar sua morada, mas ele estava normal,
comum, assim como quando nos deixou: sem traços de sofrimento
eterno nem sinais de regozijo. “Isso é tudo, Izzeddin? Isso é tudo?
Você se casou?”, eu perguntei. “Ainda não encontrei a pessoa certa.
Quem não tem sorte neste mundo, no outro também não terá”, ele
disse. “Como você passa o seu tempo lá?”, perguntei. “Como
sempre passei: do meu escritório para meus aposentos na residência
da universidade. Das salas de aula para as moradias dos alunos. Eu
muitas vezes penso em você quando viajo de trem, em pé, desde
Paris, e quando olho para fora e vejo a casa de Picasso e sua cabra
famosa, quando vou para o restaurante que tem todos os tipos de
pão empilhados ao longo das paredes. Nesse momento, eu me
lembro dos estudantes tunisianos que gritaram este slogan quando
celebramos o aniversário da revolução: “Pisoteio, pisoteio, com os
pés / Os que pedem rendição!”, ele disse, e nós repetimos o slogan.
Viramos para olhar para B, mas não conseguimos encontrá-lo. Ele
estava ocupado protegendo o ídolo dos bombardeios. Eu disse a Izz:
“Antes da formação, ainda precisamos de ilusões para sermos
formados?”. “Parece que sim”, ele disse. “E neste período formativo,
em nossa busca por modelos, precisamos de ídolos para venerar?”,
eu continuei. “Parece que sim”, ele disse. “E nesta fase da corrida
entre o nosso sangue e a ideia, entre o Ideal e a Organização, ainda
precisamos de tinta podre e literatura banal para provar que somos
qualificados?”, eu perguntei. “Parece que sim”, ele disse. “Se a
resposta é ‘parece que sim’, eu pergunto a você: por que então
devemos trocar Beirute por desonra e assim por diante?”. “Eu não
sei”, ele disse. “Como as pessoas pensam lá?”, eu perguntei. “Igual a
vocês. Assim como as pessoas aqui”, ele respondeu. “Izzeddin, o que
você está fazendo aqui? Você não foi assassinado? Eu não escrevi
sua elegia? E não fomos ao seu funeral em Damasco? Você está vivo
ou morto?”, eu perguntei. “Como todo mundo aqui”, ele disse.
“Izzeddin, suponha que eu diga a você que somos os vivos; isso
significa que você está morto?”, eu perguntei. “Como todo mundo
aqui”, ele respondeu. “Izzeddin, suponha que eu diga a você que
somos os mortos; isso significa que você está vivo?”, perguntei.
“Como todo mundo aqui”, ele disse. “Izzeddin, o que você quer de
mim?”, eu gritei. “Nada”, ele respondeu. “Nesse caso, deixe-me em
paz”, eu disse. “É hora de ir”, ele disse. “Aonde?”, perguntei. “De
onde eu vim”, respondeu. “Fique mais um pouco; vamos partir
juntos”, eu falei. “Minha licença acabou, devo voltar”, disse. “De
onde você veio?”, perguntei. “Eu não sei”, ele disse. Então, apertou
nossas mãos, um por um, e lançou um olhar para você, M, que o fez
se distrair um pouco. Nós o abraçamos na porta, por onde ele
desapareceu como um pensamento fugaz. Olhei para a escada, mas
ele não estava lá. Olhei para a rua, mas não o vi. Ele se misturou à
chuva dos mísseis. Não o vi em lugar nenhum. Olhei para os
estilhaços dos mísseis, não havia ninguém lá. Izzeddin desapareceu.
— Será que ele realmente tinha que voltar? — pergunto.
— Quem?
— Izzeddin.
— E quem é Izzeddin? — eles zombam.
— O homem que estava aqui agora! — eu grito. — O homem
cujos passos ainda estão na escada.
Eles olham para mim como se eu estivesse possuído, enquanto
eu aponto para o assento do qual o fantasma tinha acabado de se
levantar.
— Aqui, aqui! — digo. — Vocês todos falaram com ele. Vocês o
abraçaram.
Mas eles não acreditaram em mim. Eles me ofereceram um copo
de água e uma xícara de café.
... pois o Monte Karmel, que surge do mar quando sobe para o
céu e do céu quando desce até o mar, desenha um milagre, quero
dizer, a cidade de Haifa: um pescoço constantemente acariciado por
um beijo moldado de pedra e árvores, coroado por um agudo desejo
na forma de um bico de muitas cores que jura ser possível para uma
onda indócil petrificar-se desde o início dos tempos até a eternidade.
E por ser assim, Haifa se assemelha a uma pomba, e cada pomba se
assemelha a Haifa.
Mas o que Kamal não percebeu foi que a cidade voava, voava no
sangue dele.
Kamal guardava seu segredo, fechando-se em memórias que se
transformaram em sonhos. Ele era constante em sua devoção,
afastando de si um tempo que não o atraía e por isso ele não o
reconhecia. O que acontecia nesse tempo eram preocupações dos
outros, grandes ou pequenas. Quatro guerras eclodiram. Não eram
suas guerras, por isso ele não demonstrava nenhuma preocupação,
desde que nenhum estilhaço atingisse sua pomba.
— Sabe por que você não o vê? Porque você vai apenas até a
praia.
— Mas eu vejo o mar.
— Não há duas pessoas que possam conhecer o mar da mesma
maneira. Mas o que aconteceu com Kamal? Ele ainda está olhando
para a pomba?
— Ele voltou para o mar. Ele foi à procura da pomba.
Neste acampamento
A pomba se perde
luz, um brocado.
badalam.
No outono, a pomba murcha.
esquecimento.
Este é o mar?
Sim, este é o mar...
Adentrei a noite azul-escura da cidade. O cansaço e os pesadelos da
vigilância pesavam sobre mim. Minha vida deu voltas bruscas. Eu não
posso mais continuar com essas interrupções do tempo, não posso ir
mais fundo do que o início da noite. Quem me levou para o beco
entre o Mayflower e o Napolion? Eu não vou entrar lá, pois já sei de
cor o que vou ouvir. O bombardeio aéreo ilumina caminhos largos no
beco para os passos que arrasto. Aqui, eu não morri. Aqui, eu ainda
não morri. Tenho arrastado minha sombra por essa calçada nos
últimos dez anos, colocando uma assinatura no meu exílio, com a
certeza de que não ficaria mais do que um ano. Os anos foram se
acumulando, um em cima do outro. Há dez anos que bato nessa
porta, evitando o mar. Eu preferia a rota terrestre, o caminho pelo
qual segui há trinta anos, e pelo qual caminhei novamente para voltar
para lá. Esqueci de voltar, ou esqueci de lembrar? Como era tudo,
qualquer coisa, dez anos atrás? Meus dias marcham diante de mim
como ovelhas que não pertencem ao mesmo rebanho. Eles marcham
como o cheiro de uma rosa em pé contra o vento. Eles marcham
diante de mim, como também marcho em torno deles num jogo de
cadeiras musical liderado por máquinas metálicas. Aqui, eu não
morri. Aqui, ainda não morri. Mas estes gritos que descem do céu e
erguem-se da terra e não param... não param nem permitem que
nenhuma imagem dos meus dias permaneça numa única forma. Não
permitem que meu medo se torne completo ou minha imprudência,
descuidada. “Chega!”, eu movo a mão na escuridão iluminada para
afastar a nuvem de jatos de minha visão como se afastam as moscas.
“Chega!”, eu digo mais alto. Mas a resposta volta mais e mais
intensa. A nuvem cospe massas de labaredas que me trazem de volta
de uma viagem de trem de Haifa para Yafa, e me dou conta de que
agora caminho por outra estrada. “Chega! Eu entendi a mensagem.”
E se eu estivesse aqui? Aqui, eu não morri. Ainda não morri. “Chega!
Vamos sair.” Dissemos que sairíamos, então por que esse delírio
infernal? “Chega!” Quem dera não sair, enquanto continuarem com
esse delírio infernal. “Chega! Filhos de uma cadela, fascinados com
músculos de metal, raios laser, bombas de fragmentação e bombas
de vácuo! Chega dessa demonstração desenfreada de força! Chega
de destrinchar a cidade e os nervos!” A escuridão se espalha
rapidamente numa cidade sem eletricidade. Um único pedaço de
carvão pode dar à luz toda essa escuridão em menos de meia hora. A
primeira parte da noite tem um gosto amargo, azedo, flácido, um
gosto que cria na alma um país de exílio estranho e, na sede do
corpo úmido, um desejo lânguido por uma sede de outro corpo
úmido, e desvia o esquecimento para outro curso: um mataria o outro
do lado de fora da janela. O trem do litoral concorre com o mar à
direita e com as árvores à esquerda. Chuva. Chuva e árvores. Chuva,
árvores e metal. Chuva, árvores, metal e liberdade. Meu amigo
divertido faz piadas sem fim com meu outro amigo magro e sombrio.
Pela primeira vez eles nos deram permissão para deixar Haifa, mas
deveríamos retornar à noite para nos apresentarmos à polícia na
delegacia que ficava do lado do parque municipal. Cada um dizia a
seu modo: “Anote! Eu existo! Anote!” — um ritmo antigo que eu
reconheço! — “Anote: eu sou...”. Eu reconheço essa voz, que tem
vinte e cinco anos de idade. Ó, tempo vivo! Ó, tempo morto! Ó,
tempo vivo, saindo de um tempo morto! “Anote: eu sou árabe!”50 Eu
disse isso a um funcionário do governo cujo filho podia agora estar
pilotando um desses jatos. Eu disse em hebraico para provocá-lo.
Mas quando disse isso num poema em árabe, o público árabe em
Nazaré foi tocado por uma corrente secreta que libertou o gênio da
garrafa. Eu não entendi o segredo dessa descoberta, como se tivesse
arrancado um raio de um campo minado de pólvora da identidade.
Esse grito, então, tornou-se minha identidade poética, que não só
aponta para minha filiação, mas que me persegue.
Eu não sabia que era necessário dizer isso aqui em Beirute:
“Anote: eu sou árabe!”. O árabe tem que dizer aos árabes que é
árabe. Ó, tempo morto! Ó, tempo vivo! Eu olho para o relógio para
descobrir quantos anos tenho agora. Sinto vergonha: uma pessoa
tem que olhar o relógio para saber quanto tempo viveu? Poucas
semanas atrás, meu amigo A armou para mim a emboscada dos
quarenta anos. Na festa de aniversário, Muín51 riu em voz alta e disse:
— Você não é mais um jovem, graças a Deus! Estamos nos
livrando de mais um jovem. Você não é mais um jovem! Você está
agora com quarenta anos de idade!
— Ó, seu velho, isso deixa você feliz? — eu disse.
— O que me deixa feliz — respondeu — é você estar agora com
quarenta anos.
— Você esqueceu que está se aproximando dos sessenta? —
retruquei.
— Não faz nenhuma diferença — ele respondeu. — Todas as
idades são iguais depois dos quarenta. Você agora me alcançou. Faz
vinte anos que espero por você no limiar dos quarenta e agora você
chegou. Bem-vindo! Você não é mais um jovem. Não é mais.
Muín bebeu até delirar, chegou inclusive a pensar que eu
envelhecia, mas ele não. Ele estava totalmente fascinado pela
paridade. “Viva a paridade!”, gritamos e celebramos com ele. Ai do
tempo! O trem corta o mar e as árvores. Árvores e mar fogem do
trem. O trem da idade nos trilhos do tempo. Estávamos realmente
com vinte anos quando minha identidade me levou àquele hino,
formado por cascos de cavalos que desapareciam num horizonte
aberto a outro que, por sua vez, se abria a outro horizonte, que não
sabíamos se estava aberto ou fechado? Estava eu realmente com
vinte e sete anos quando o hino da identidade friccionou o “Cântico
dos Cânticos”, incendiou o lírio e me fez ouvir os últimos gritos de
um cavalo que liderou o caminho do Monte Karmel ao Mediterrâneo?
Até quando a dor vai se lembrar da sua encantadora serpente, e até
quando vamos continuar chegando aos quarenta? Uma coincidência.
Não é mais que coincidência a saída do corpo ter que ser também a
saída do país. Não me lembrava dessa coincidência até este
momento. Trem, chuva, árvores, uma lareira e dois pés brancos
descalços sobre as peles de vinte ovelhas que passaram pelo
“Cântico dos Cânticos”. O cantor cantava para Suzanne, que o levou
até o rio. Ela dizia: “Leve-me para a Austrália”. E eu dizia: “Leve-me
para Jerusalém”. Não, eu não me lembrei de nada, eu estava
sonhando. Será então o sonho a escolha do esquecimento? Mas do
sonho nasce outro sonho.
E aqui, eu não morri. Ainda não morri, aqui. Há dez anos que moro
aqui. Eu nunca vivi dez anos seguidos em nenhum outro lugar. Eu
nunca tinha me acostumado ao cheiro das verduras, aos gritos dos
vendedores, aos ruídos do bar armado, aos problemas da água e do
elevador, como me acostumei aqui. Aqui, eu não morri. Muitas
varandas com vista para muitas outras varandas, abertas na
primavera, no verão e no outono, e no começo e no fim do inverno
também, trocando segredinhos e pequenos escândalos; televisores
com o som alto, cheiro de alho e de grelhados e ruídos de camas
tremendo, de tarde e de noite. Uma pequena rua... pequena com o
nome Yamut [ele morre]. E aqui, eu não morri. Há pouco tempo, na
temporada dos carros-bomba, eu estava andando com um vizinho no
início da noite, quando ouvimos um barulho vindo de um carro. Nós
alertamos as pessoas que era necessário evacuarem as casas até
que um especialista militar chegasse, pois a explosão de um único
carro poderia matar todos os moradores do bairro — que vieram de
todas as zonas de massacres e de todas as seitas, em busca de
abrigo em torno da Universidade Americana. Quando o especialista
militar chegou e inspecionou o carro, não encontrou cem quilos de
dinamite como tínhamos suspeitado, mas um rato faminto roendo as
entranhas do veículo. As pessoas riram quando se deram conta de
que um rato tinha o poder de evacuar um bairro inteiro. Sim, um rato
tem o poder de desolar uma cidade inteira e governar um país!
E aqui, eu não morri. Aqui, ainda não morri. Toda vez que um
avião pousava no aeroporto de Beirute, eu sentia o cheiro do
desconhecido e o aroma da partida que se aproximava. A neblina que
subia da umidade do verão, da forte secura, cortante e breve, da
primavera, despertavam em mim a sensação do temporário. Vamos
ficar aqui? Nós não vamos ficar. Parece que o final das coisas tem
uma forma definida, uma ambiguidade definida, um tipo de
conspiração entre a natureza e a apreensão. E que apreensão!
Especialmente em agosto! Agosto, o mês vil, desprezível, agressivo,
ressentido e traiçoeiro. Agosto, capaz de fornecer ao símbolo todos
os cadáveres de que precisa, e, à lassitude do corpo, aquilo que a
natureza mija sobre ele: uma melancolia fumegante e o prenúncio de
uma umidade congestionada. O rosto de agosto é um rosto pronto
para estourar, mas incapaz de encontrar uma privada ou uma parede
não observada. Agosto, mês sujo, enfadoso, árido e assassino;
adepto a finais de longos começos, finais que não começam nem
terminam. É como se agosto fosse uma seita de muitas estações, que
ainda não encontrou seguidores. Agosto é capaz de provocar até
mesmo o mar... o mar que afasta para o horizonte o gemido das
balas.
O mar anda nas ruas. O mar pende das janelas e dos galhos das
árvores secas. O mar cai do céu e entra na sala: azul, branco,
espuma, ondas. Eu não gosto do mar. Eu não quero o mar, porque
não vejo uma praia, nem uma pomba. Não vejo no mar senão o mar.
8 Fidaí (pl. fidaíyin) é quem sacrifica a vida por alguém ou por algo. O termo foi
popularizado como referência aos combatentes palestinos que se sacrificavam por
sua pátria.
11 Trata-se de Albert Adib e de sua esposa Camille Chalfun. Adib foi um poeta
libanês, nascido no México em 1908. Viveu no Sudão, no Egito e no Líbano, onde
faleceu, em 1985. Foi o fundador da revista Aladib, mencionada por Darwich.
17 Mateus (13:1-9).
18 Mateus (15:22-28).
23 Josué (6:16-26).
28 “Estado de Haddad” refere-se a uma área no sul do Líbano que Israel colocou
sob o controle do Major Saad Haddad, um dissidente do exército libanês. Essa
região foi denominada de “faixa de segurança” e desligada do resto do Líbano após
a invasão de 1978.
36 Este verso se repete toda vez que o poeta relembra a paixão por sua namorada
israelense. Faz parte do poema “Uma bela mulher em Sodoma”.
38 Mais uma vez ele cita um verso do poema “Uma bela mulher em Sodoma”. Aqui,
diferentemente das ocorrências anteriores, “matar” aparece como metáfora do ato
amoroso.
39 Esse texto é parte de um editorial escrito por Darwich para a revista Alkarmel
(1982, 5:4).
40 Referência à tenda que era transportada com o Profeta em suas viagens, aberta
e armada onde fosse se hospedar. Metáfora do zelo pelo qual era rodeado Bachir
Gemayel.
42 Trata-se de Hoda Adib, filha de Albert Adib, citado anteriormente. Ela é poeta e
musicista, autora de mais de uma dezena de livros, e mora na Inglaterra desde
1989.
43 Khalil Hawi foi um poeta libanês que cometeu suicídio no segundo dia da
invasão israelense a Beirute.
47 Othman Ibn-Affan (574–656 d.C.), o terceiro califa. Seu califado trouxe à tona
questões de legitimidade política, provocando desavenças com a comunidade
muçulmana de então.
48 Habbat riyah aljanna, célebre frase proferida por Yasser Arafat e transmitida
entre os combatentes como lema de encorajamento durante os meses de
resistência em Beirute.
52 Estes são os primeiros versos de um poema de Darwich, que faz parte do livro
Hisár li-madaíh albahr (Cerco de elogios ao mar), de 1984.
Agradecimentos da tradutora
Este livro atende às normas do Novo Acordo Ortográfico em vigor desde janeiro de
2009.
ISBN: 978-65-86824-21-6
A primeira edição em árabe foi publicada em 1987, no Marrocos, pela Dar Toubkal.
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