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Quando a editora me convidou para escrever este texto de orelha,

quase recusei o convite. Eu sabia que tornaria a leitura de Memória


para o esquecimento uma prioridade — como tenho feito com
Mahmud Darwich — e o tempo era curto, e eu precisava acabar a
leitura de um pequeno romance, e eu tinha que dar aulas... Mas,
antes de desistir, fui dar uma olhadinha no texto. Só consegui largar
quando virei a última página.

Encontrei aqui o que faz de Darwich um dos principais escritores das


últimas décadas: imagens fortes e construídas com precisão, um
texto cadenciado e, ainda assim, livre de amarras, e o compromisso
político sem ambiguidades. Tudo isso aparece em sua poesia, muito
bem traduzida no Brasil. Agora, em prosa, Darwich além de tudo
estabelece reflexões significativas: se o flaneur de James Joyce
passeia em um dia comum por uma cidade conturbada, mas pacífica,
do início do século XX, aqui, 60 anos depois, o giro se dá em meio a
um feroz bombardeio que destrói uma das mais belas metrópoles do
Oriente Médio. O recado é claro: o Modernismo precisa rever alguns
de seus pressupostos. Darwich faz isso. Em Memória para o
esquecimento, o narrador tem a mesma identidade do nome que
assina a obra, e a colagem de citações — que vão da literatura
clássica a artigos de jornal — serve não para criar um panorama, e
sim para claramente tapar os buracos que as bombas vão abrindo.
A Nakba palestina, o autor-narrador-personagem nos adverte, é bem
mais ampla do que os limites geográficos podem, de início, deixar
parecer.
Memória para o esquecimento ganhou um sentido especial para mim.
O enredo se passa em um único dia de 1982, durante o bombardeio
israelense a Beirute. Nesse ano, eu era muito novo, mas me lembro
até hoje: meu bisavô, que tinha vindo com a família do Líbano para o
Brasil justamente na época em que Joyce redigia o Ulysses,
telefonou para cada um dos filhos, todos já idosos, para justificar sua
opção. Em casa, eu perguntava sobre os bombardeios e não entendia
muito bem a explicação da minha mãe. Mas ali mesmo compreendi
por que os velhos da minha família pareciam ter um buraco por
dentro.
Ricardo Lísias

Mahmud Darwich nasceu na aldeia de Al-Birwe, na Galileia, em 13 de


março de 1941. Foi, e ainda é, mesmo depois de sua morte em 2008,
o poeta nacional da Palestina. Poeta da solidão, do exílio, da
interioridade, da transcendência, mas também da resistência.
Considerado um dos maiores escritores de língua árabe, Darwich foi
amado e admirado também em muitos países onde sua extensa obra
foi traduzida. Memória para o esquecimento e é o terceiro livro de
Darwich publicado pela editora Tabla. O primeiro foi Da presença da
ausência (traduzido por Marco Calil) e o segundo, Onze astros
(traduzido por Michel Sleiman).

Safa Jubran nasceu em Marjeyoun, no Líbano, em 1962, e chegou ao


Brasil em 1982. É professora livre-docente na Universidade de São
Paulo, onde leciona língua e literatura árabes, desde 1992. Em 2019,
recebeu, pelo conjunto da obra traduzida, o Sheikh Hamad Award for
Translation and International Understanding. Traduziu para a Tabla
Correio noturno, O arador das águas, ambos de Hoda Barakat, e
Memória para o esquecimento, de Mahmud Darwich.
Sumário

Prefácio

Memória para o esquecimento


Esta edição brasileira é dedicada ao amigo,
jornalista e escritor palestino Nafiz Abu Hasna,
cuja memória não é para o esquecimento.
Prefácio

“Você deveria ler os textos dele em prosa, são tão belos quanto os
poemas... talvez mais.” Foi isso que me disse o escritor e jornalista
palestino Nafiz Abu Hasna quando lhe contei que o primeiro título de
Mahmud Darwich a ser lançado pela recém-nascida Editora Tabla
seria Da presença da ausência. Nafiz pegou rapidamente seu lápis
amarelo, destacou uma folhinha da caderneta que estava na mesa e
começou a anotar os títulos que julgava importantes — e o porquê —
de serem traduzidos ao português.
Mais tarde, olhando aquele papel, o livro Dhakira lil-Nisyan
chamou a minha atenção; fiquei seduzida pela poesia que pairava
sobre o título, e intrigada com a ambiguidade que carregava, estando
aberto a múltiplas possibilidades de interpretação. Inteirada da
temática da obra, decidi traduzi-la. Voltei a falar com Nafiz, amante e
conhecedor da obra de Darwich, sobre a minha escolha e o que ele
disse foi: “Esse é o texto em prosa mais maduro do nosso poeta”.
Este texto apareceu pela primeira vez em 1986 numa edição
especial que trazia os volumes 21 e 22 da revista Alkarmel — da qual
Darwich era editor chefe —, sob o título: Tempo: Beirute. Lugar: um
dia de agosto de 1982. Em 1987, o texto virou livro e foi publicado no
Marrocos, pela Dar Toubkal, com o título Dhakira lil-Nisyan (Memória
para o esquecimento).
Essa “memória” é o relato de um único longo dia. Darwich
captura, em um estilo simples, mas ao mesmo tempo profundo e
altamente poético, os detalhes do cotidiano sob o cerco israelense a
Beirute. É bem conhecida a passagem onde o poeta descreve sua
amarga luta para se deslocar, sob intenso bombardeio, da sala até a
cozinha, a fim de preparar uma xícara de café, atividade corriqueira,
mas que, nas palavras de Darwich, é transformada em um ritual
humano único e excepcional naquele dia de agosto de 1982. Beirute,
que fora invadida pelo exército israelense em junho daquele ano,
estava sob intenso bombardeio. A invasão tinha como objetivo
principal derrotar a resistência palestina instalada no local e obrigar
seus líderes, e principais vozes, a deixarem a cidade e se
dispersarem em outros e múltiplos exílios.

Em dezembro de 1982 eu cheguei ao Brasil, tendo vivenciado o


início da invasão e apenas escutado falar do “cerco a Beirute”, já que
a região onde eu morava estava separada do resto do Líbano.
Marjeyoun, minha cidade natal, localizava-se dentro da “faixa de
segurança” — criada, definida e assim denominada por Israel —, e
estava sob controle de um dissidente do exército libanês desde 1978.
Naquele tempo, aos dezenove anos, eu não tinha consciência das
dimensões dos acontecimentos.
Décadas depois, conheci este texto de Darwich e tomei ciência
de sua importância tanto para a literatura árabe como para a história.
São escritos que combinam testemunho, memórias, autobiografia,
crítica literária e jornalismo. Recuperam textos bíblicos, crônicas
medievais, mitos e têm a intertextualidade como pilar de sua
composição. Vários textos tecidos num único texto, alinhavados pela
poesia, que, além de refletir e meditar sobre aquela invasão e suas
dimensões política e histórica, é uma jornada na memória pessoal e
coletiva, fazendo emergir diversas questões, entre elas: o significado
do exílio; o papel do escritor e do poeta em tempos de guerra; e a
relação da escrita — que registra uma memória — com a história —
que tenta relegar essa memória ao esquecimento.
No registro desta memória, Darwich revela plena consciência do
evento trágico e por isso o coloca em destaque, deixando que todo o
resto gire em torno dele, inclusive os participantes, companheiros
daquele dia fatídico de agosto de 1982, referidos por Darwich apenas
pela primeira letra do nome — talvez para valorizar o evento em
detrimento dos coadjuvantes, ou quem sabe para preservar suas
identidades, evitando que fossem perseguidos ou assassinados. Para
esta tradução pesquisei essas identidades e incluí em notas aquelas
que foram possíveis de serem identificadas.
É preciso ainda destacar que essa memória, embora com um
significado coletivo, não deixa de ser particular, está embebida de
pessoalidade e é incandescente, recusando-se a esquecer. Por isso,
o poeta se descreve e se relata dentro de Beirute, nas suas ruas e
diante de seu mar. Afinal, “sem a memória não existe uma relação
verdadeira com o lugar”.
Para além das múltiplas interpretações do título, para além de
todos os temas, textos e contextos, pessoas, eventos, paixões,
relações passageiras, presenças de ausências, para além da precisão
com que Darwich detalhou seu relembrar, para além de todos os
símbolos, um destaque se faz necessário: o “mar”, símbolo do
desconhecido sombrio, que se tornou, nesta mémoire, uma metáfora
histórica do deslocamento e do exílio, no sentido individual e
coletivo. O poeta desabafa: “Eu não gosto do mar. Eu não quero o
mar, porque não vejo uma praia nem uma pomba. Não vejo no mar
senão o mar”.
Outro destaque que se impõe nesta memória pessoal e coletiva
refere-se ao tempo presente em que ela começa e termina (ou não!):
o mês de agosto, “mês vil, desprezível, agressivo, ressentido e
traiçoeiro. Agosto, capaz de fornecer ao símbolo todos os cadáveres
de que precisa (...). Agosto, mês sujo, enfadoso, árido e assassino;
adepto a finais de longos começos, finais que não começam nem
terminam. (...) Agosto é capaz de provocar até mesmo o mar...” Pois
é, agosto provocou o mar outra vez, explodindo-o, em 2020, no rosto
de Beirute — “pequena ilha da alma”. O mesmo agosto que, em
2008, ya mawlana Darwich, registrou tua ausência, eternamente
presente.

Safa Jubran
São Paulo, agosto de 2021
Memória para o esquecimento
De um sonho nasce outro sonho:
— Você está bem? Quero dizer: está vivo?
— Como soube que eu estava, neste momento, colocando minha
cabeça sobre seus joelhos para dormir?
— Porque você me acordou quando se mexeu na minha barriga.
Soube então que eu era seu caixão. Você está vivo? Está me ouvindo
bem?
— Acontece muito de eu ser despertado de um sonho por outro
sonho que é a interpretação do primeiro sonho?
— Está acontecendo conosco? Você está vivo?
— Quase.
— Os demônios o enfeitiçaram?
— Não sei, mas há, no tempo, muito espaço para a morte.
— Não morra completamente.
— Tentarei.
— Não morra nunca.
— Tentarei.
— Diga-me, quando aconteceu? Quero dizer, quando nos
conhecemos? Quando nos separamos?
— Há treze anos.
— Nos encontramos muitas vezes?
— Duas vezes: uma, na chuva; outra, na chuva. Na terceira vez,
não nos encontramos. Eu viajei e me esqueci de você. Há pouco
lembrei que tinha me esquecido de você. Eu estava sonhando.
— O mesmo aconteceu comigo. Eu também estava sonhando. Eu
consegui seu número de telefone com uma amiga sueca que o
conheceu em Beirute. Eu desejo a você uma boa noite! Não se
esqueça de não morrer. Eu ainda o quero. E quando voltar à vida,
quero que me ligue. Como o tempo voa! Treze anos! Não. Tudo
aconteceu essa noite. Boa noite...

Três horas. Um amanhecer montado no fogo. Um pesadelo vindo


do mar. Galos de metal. Fumaça. Ferro preparando um banquete
para o Ferro-Mestre e uma alvorada que irrompe em todos os
sentidos antes de romper. Um rugido me expulsa da cama e me joga
neste corredor estreito. Nada quero e nada desejo. Não consigo
ordenar meus membros neste tumulto. Não há tempo para a cautela,
nem tempo para o tempo. Se eu soubesse... se eu soubesse como
organizar o acúmulo desta morte derramada. Se ao menos eu
soubesse como libertar o grito contido num corpo que não é mais
meu corpo, de tanto esforço despendido para se salvar da
perseguição do caos ininterrupto das bombas. “Chega”, sussurro
apenas para verificar se ainda consigo fazer alguma coisa que me
guie e aponte para o abismo aberto em seis direções. Não posso me
render a tal destino. E não posso resistir a ele. Um ferro late; outro,
para ele, uiva. A febre do metal é o cântico deste amanhecer. Que
esse inferno faça uma pausa de cinco minutos... depois, seja o que
for! Apenas cinco minutos! Eu quase digo: “Cinco minutos apenas.
Para que eu possa preparar minha única ferramenta e, em seguida,
organizar minha morte ou minha vida”. Mas será que cinco minutos
são suficientes? Sim, bastam para eu me esgueirar por este corredor
estreito que dá para o quarto de dormir, que dá para o escritório, que
dá para o banheiro sem água, que dá para a cozinha, onde estou
tentando chegar faz uma hora, mas não consigo, nunca consigo.
Duas horas atrás eu fui dormir. Tapei meus ouvidos com algodão
e adormeci, depois de ouvir o último noticiário, o qual não informou
sobre minha morte. Portanto, ainda estou vivo. Examinei as partes do
meu corpo e estavam todas ali: dez dedos embaixo, dez em cima,
dois olhos, duas orelhas, um nariz comprido, um dedo no meio.
Quanto ao coração, ele não pode ser visto e eu não encontro nada
que ateste sua existência, exceto minha formidável capacidade de
contar meus membros e a arma que descansa numa das prateleiras
da estante: um revólver elegante, limpo, brilhoso, pequeno e sem
balas. Há dois anos, ganhei-o de presente junto com uma caixa de
munição que não sei onde escondi temendo uma loucura, uma
explosão de raiva irrefletida ou até mesmo uma bala perdida.
Conclusão: estou vivo, ou, para ser mais preciso, existo.
Ninguém escuta a súplica carregada pela fumaça: necessito de
cinco minutos para colocar este amanhecer, ou a parte que dele me
cabe, de pé e me preparar para adentrar este dia nascido de
lamúrias. Estamos em agosto? Sim, estamos em agosto. A guerra
virou cerco. Procuro no rádio, transformado em terceira mão, o que
estaria acontecendo agora, mas nenhum testemunho, nenhuma
notícia. O rádio, ao que parece, está dormindo.
Não me pergunto mais quando o uivo do mar de aço vai parar.
Eu moro no oitavo andar, em um edifício que pode ser uma tentação
para qualquer atirador, imagine então para uma frota que transforma
o mar em uma das fontes do inferno! A face norte do prédio oferecia
aos moradores uma visão agradável do telhado enrugado do mar.
Agora, a fachada de vidro do apartamento se transformou em morte
nua. Por que escolhi morar aqui? Que pergunta estúpida! Faz dez
anos que vivo neste prédio sem me queixar do escândalo do vidro.
Mas como chegar à cozinha?
Eu quero o aroma do café. Nada além do aroma do café. De
cada dia, não quero nada além do aroma do café para me manter
unido, me erguer, passar de algo que rasteja a um ser ereto, colocar
de pé o que me cabe deste amanhecer, para que possamos sair à
rua, este dia e eu, à procura de outro lugar.
Como posso lavrar o aroma do café em minhas células,
enquanto as bombas avançam pela fachada da cozinha que fica de
frente para o mar, espalhando o cheiro de pólvora e o gosto do nada?
Começo a medir o tempo entre duas bombas. Um segundo. Um
segundo é mais breve que o tempo entre inspirar e expirar, entre dois
batimentos cardíacos. Um segundo não é tempo suficiente para eu
me colocar diante do fogão, perto da fachada de vidro com vista para
o mar. Um segundo não é suficiente para eu abrir a garrafa de água e
despejar seu conteúdo no bule. Um segundo não é tempo suficiente
para acender um fósforo, mas é suficiente para eu me queimar.
Desliguei o rádio, não pensei mais se a parede deste corredor
estreito me protegeria realmente da chuva de mísseis. O que importa
é que haja uma parede que impeça o ar fundido em metal de
alcançar diretamente a carne humana, ou de chegar sufocando ou
espalhando estilhaços. Assim, uma simples cortina escura ofereceria
um escudo imaginário de segurança, pois a morte é você ver a
morte.
Eu quero sentir o aroma do café durante cinco minutos. Uma
trégua de cinco minutos em nome do café. Não tenho mais nenhum
desejo pessoal além de preparar uma xícara de café. Com essa
obsessão, defini minha missão e meu objetivo. Todos os sentidos
reunidos em uma só súplica, sedentos, alongam-se em direção ao
seu único fim: o café.
E o café, para quem como eu nele se viciou, é a chave do dia.
E o café, para quem como eu o conhece, significa fazê-lo com as
próprias mãos, e não recebê-lo numa bandeja, pois quem traz a
bandeja traz junto a conversa, e a primeira xícara de café, a virgem
da manhã silenciosa, é arruinada pela conversa. O amanhecer, o meu
amanhecer, é avesso à fala. O aroma do café pode absorver sons —
mesmo um animado e gentil “Bom dia!”— e rançar.
Por isso, o café é este silêncio matinal, adiantado, circunspecto;
o único silêncio em que você pode ficar de pé, sozinho, com um
pouco de água que você mesmo escolhe, estando em paz consigo
mesmo e com as coisas numa solidão preguiçosa, e derrama num
pequeno bule de cobre de brilho misterioso, entre o dourado e o
marrom, que você leva ao fogo baixo. Ah, se fosse na brasa!
Afaste-se do fogo baixo um pouco para dar uma olhadela na rua
que desperta e vai em busca do pão, desde que o símio se complicou
e desceu da árvore para caminhar sobre dois pés. Uma rua com seus
carrinhos carregados de legumes, frutas e os gritos de vendedores,
caracterizados por fracos elogios que transformam o produto em
mero atributo do preço. Respire o ar vindo da noite fria. Então
retorne ao fogo baixo — ah, se fosse na brasa! — e assista com afeto
e vagareza ao contato entre os dois elementos: o fogo que se pinta
de verde e azul e a água que se enruga e respira minúsculos grânulos
brancos, formando uma pele macia, lentamente se expandindo em
bolhas que crescem cada vez mais rápido até estourar, já sedentas
por duas colheres de açúcar cristal, e que após a rápida penetração
e um leve assobio serenam para depois crescer em gritos circulares
clamando por outra substância que nada mais é do que o pó do café
— um galo gritante de aroma e de masculinidade oriental.
Retire o bule do fogo baixo para que o diálogo da mão, livre do
cheiro de tabaco e da tinta, prossiga com sua criatividade primeira
em direção ao engenho inicial que, a partir deste instante,
determinará o sabor do seu dia e o arco da sua sorte: se você deve
trabalhar ou evitar o contato com qualquer pessoa. Emergirá deste
primeiro movimento, do seu ritmo, aquilo que agita o mundo que
desperta do sono da noite passada e revela os mistérios que
formarão a identidade do novo dia.
Porque o café, a primeira xícara de café é o espelho da mão. E a
mão que faz o café revela o espírito de quem o mexe. Assim, o café é
a leitura pública do livro aberto da alma. Ele é a vidente que revela os
segredos que o dia carregará.

O amanhecer plúmbeo segue avançando a partir do mar,


carregado de sons que eu nunca ouvi. O mar inteiro é embalado por
bombas perdidas, mudando sua natureza marítima e se metalizando.
A morte tem todos esses nomes? Dissemos que iríamos embora. Por
que então essa chuva rubro-negro-cinzenta continua a se derramar
sobre o que fica e o que vai, sejam pessoas, árvores ou pedras?

— Sairemos — dissemos.
— Pelo mar — disseram.
— Pelo mar — concordamos.
Por que então eles estão armando a espuma e as ondas com
esta artilharia pesada? Para apressar nossos passos em direção ao
mar? Primeiro eles precisam acabar com o cerco do mar. Liberar o
último caminho para o último fio do nosso sangue. Mas já que é
assim, nós não vamos embora e eu vou preparar o café...
Os pássaros da vizinhança despertaram às seis da manhã. Eles
mantêm a tradição do canto neutro desde que se viram a sós com a
primeira claridade. Para quem eles cantam nesse tráfego de
foguetes? Cantam para se curar da noite ida. Cantam para si
mesmos, não para nós. Como não percebemos isso antes? Os
pássaros abriram seu espaço particular em meio à fumaça da cidade
em chamas com suas sinuosas flechas de som contornando as
bombas, indicando uma terra segura no céu. O matador mata, o
combatente combate e o pássaro gorjeia. Quanto a mim, encerro a
busca por linguagem figurativa. Paro completamente minha procura
por interpretação, pois a essência da guerra é degradar os símbolos
e levar as relações humanas, o espaço, o tempo e os elementos de
volta a um estado primordial, que faz com que a visão da água
jorrando de um cano quebrado na rua nos deixe felizes, porque aqui
a água chega até nós feito um milagre.
Quem disse que a água não tem cor, nem sabor, nem odor? A
água tem uma cor que se revela no desdobramento da sede. A água
tem a cor dos sons dos pássaros, dos pardais em particular, que não
se importam com a guerra que vem do mar, desde que seu espaço
esteja seguro. E a água tem sabor de água e odor de brisa da
tardezinha soprando de um trigal de espigas fartas que acenam num
campo extenso, como os pontos cintilantes de luz deixados pelas
asas de um pequeno pardal voando baixinho. Nem tudo que voa é
avião (talvez uma das piores palavras árabes seja tá’ira [avião] que é
a forma feminina de tá’ir [ave]). As aves seguem cantando insistentes
em meio ao rugido da artilharia naval. Quem disse que a água não
tem sabor, nem cor, nem odor? E quem disse que esta tá’ira é a
forma feminina deste tá’ir?
Repentinamente, os pássaros se aquietam. Param suas tertúlias
e o rotineiro adejo no ar do amanhecer quando começa a soprar a
tempestade do metal voador. Teriam ficado quietos em razão daquele
rugido de aço ou por conta de uma incongruência entre o nome e a
forma? Duas asas de aço e prata contra duas asas de penas. Um
bico de ferro e de força contra um bico de música. Uma carga de
foguetes contra um grão de trigo e uma palha. Os pássaros param de
cantar e prestam atenção à guerra porque o chão do seu céu não
está mais seguro...
O céu desce, despenca como uma laje de concreto. O mar se
transforma em terra firme e se aproxima. Céu e mar são agora uma
única substância, dificultando minha respiração. Ligo o rádio para me
informar sobre o céu. Nada. O tempo congelou. Assentou-se sobre
mim querendo me sufocar. Os aviões passam entre meus dedos,
perfuram meus pulmões. Como posso alcançar o aroma do café?
Vou morrer seco sem o aroma do café? Eu não quero. Eu não quero.
Onde está minha vontade?
Ela estava lá, parada, do outro lado da rua, no dia em que
gritamos contra a “lenda” que avançava sobre nós a partir do sul. No
dia em que a carne humana cerrou os músculos do espírito e gritou:
“Não passarão! Nós não sairemos!”. A carne se chocou com o metal,
superou a difícil aritmética e fez os invasores pararem na cerca.
Haverá tempo para enterrar os mortos. Haverá tempo para armas. E
haverá tempo para que o tempo passe conforme desejamos, para
que este heroísmo possa continuar, porque, agora, nós somos os
donos do tempo...
O pão brotava do solo e a água jorrava das rochas. Seus
foguetes cavavam poços de água para nós, e a língua da sua matança
nos tentava a cantar: “Não sairemos!”. Assistíamos, nas telas dos
outros, ao nosso rosto fervendo com a grande promessa e rompendo
o cerco com sinais inabaláveis de vitória. De agora em diante, não
teremos nada a perder, enquanto Beirute estiver aqui e enquanto
estivermos em Beirute. No meio deste mar, no portal deste deserto,
seremos nomes de uma pátria diferente, onde os vocábulos
encontrarão novamente seus significados. Aqui, onde estamos, é a
tenda para os significados errantes das palavras perdidas e da
dispersa luz órfã, banida do centro.
Mas eles percebem, esses jovens armados até os dentes de uma
ignorância criativa do equilíbrio de forças e de refrões de canções
antigas, de granadas de mão e garrafas de cerveja inflamadas, da
sofreguidão das meninas nos abrigos e de pedaços de identidades
rasgadas, de um desejo claro de se vingar de pais prudentes, da
loucura de libertar a ideia da senilidade e do que eles desconhecem
dos exercícios da morte ativa... Será? Será que eles sabem que, com
suas feridas e sua imprudência inventiva, corrigem a tinta da língua
que, desde o cerco de Acre, na Idade Média, até o cerco atual de
Beirute — cujo objetivo é vingar toda a história —, tem impulsionado
toda a região a leste do Mediterrâneo em direção a um Ocidente que
da escravidão nada quer senão torná-la mais fácil?1
Será que sabiam que quando trataram de cercar o cerco
estavam substituindo a lenda, resgatando a realidade do
extraordinário para o ordinário, revelando ao equivocado profeta da
perdição os segredos de um heroísmo tecido pelo movimento do
óbvio para o óbvio? Como se um homem devesse ser testado em sua
masculinidade; e uma mulher, em sua feminilidade. Como se a
dignidade pudesse escolher entre autodefesa e suicídio. Como se o
cavaleiro não aceitasse a exigência do seu valor pessoal, moral e
físico com o retorno aos tempos do cavalheirismo oficial, e, sozinho,
abrisse este espaço insolente e limpasse o caminho para o mistério
da motivação. Como se um punhado de seres humanos se rebelasse
contra a ordem das coisas, de modo que este povo, nascido do
temperamento do fogo teimoso, não se tornasse igual ao rebanho de
ovelhas que, através da cerca da cumplicidade, é conduzido pelos
pastores da opressão em conluio com o guardião da lenda.2
Eles não passarão sobre nossas vidas. Que passem, então, caso
consigam, sobre os cadáveres que o espírito venha a expelir.
Onde está minha vontade, então?
Parou ali, na outra calçada da voz coletiva. Mas agora eu não
quero nada além do aroma do café. Sinto vergonha, vergonha do
meu medo diante dos que estão defendendo o aroma da pátria
distante: o aroma que eles nunca sentiram porque não nasceram
nela, mas nasceram dela e longe dela. No entanto, eles a
aprenderam sem interrupção, sem fadiga nem tédio; aprenderam-na
de uma avassaladora memória e constante perseguição:
— Vocês não são daqui — disseram-lhes lá.
— Vocês não são daqui — disseram-lhes aqui.3
Entre aqui e lá, esticaram seus corpos, arcos vibrantes, até que
a morte tomasse neles a forma de celebração. Seus pais foram
expulsos de lá para se tornarem hóspedes aqui, visitantes
temporários, para deixarem os campos de batalha da pátria limpos
de civis e para permitirem que os exércitos regulares expurgassem os
territórios árabes e sua honra da vergonha e da desgraça.

Irmão, os opressores ousaram ultrapassar todos os limites.

Temos direito, então, de lutar e nos sacrificar.

De súbito, qual morte, contra eles nos lançamos.

Em vão lutaram e nada se tornaram.4

E à medida que canções antigas como essa perseguiam os


invasores remanescentes e seguiam libertando o território linha por
linha, esses jovens nasciam aqui, de qualquer jeito, sem um berço,
sobre uma esteira de palha, em folhas de bananeira ou cestos de
bambu, sem alegria nem festejo, sem certidão de nascimento ou
registro de nome. Eram um fardo para os pais e para os vizinhos de
tenda. Em suma: eram nascimentos excedentes, não tinham
identidade.
No final, deu no que deu. Os exércitos regulares recuaram e
esses jovens continuaram nascendo sem razão, crescendo sem
razão, recordando sem razão e sitiados sem razão. Todos eles
conhecem essa história — uma história muito parecida com a de um
acidente de trânsito cósmico ou de uma catástrofe natural —, leram
muito nos livros de seus corpos e de suas tendas. Leram sua
segregação e o discurso árabe-nacionalista. Leram as publicações da
Agência de Assistência5 e os chicotes da polícia. No entanto, foram
crescendo para além dos limites do campo de refugiados e dos
centros de detenção. Leram também a história das fortalezas e
cidadelas usadas pelos invasores como assinaturas para manter seus
nomes vivos em terras que não lhes pertenciam e para adulterar a
identidade das pedras e das laranjas, por exemplo. A história não é
subornável? Por que, então, muitos lugares — lagos, montanhas,
cidades — carregam, ainda hoje, nomes de líderes militares ou a
primeira impressão expressada por eles? “Oh, rid! [Que lindo!]” Foi
isso que um general romano gritou quando viu pela primeira vez
aquele lago na Macedônia. Sua surpresa deu nome ao lago. Usamos
centenas de nomes para nos referirmos a determinadas localidades,
apontadas um dia por algum conquistador, o que torna difícil
desatrelar a identidade do lugar de sua derrota. Fortalezas e
cidadelas que nada são além de meras tentativas de proteger um
nome que não confiou no tempo para preservá-lo do esquecimento.
Guerras antiesquecimento; pedras antiesquecimento. Ninguém quer
esquecer; mais precisamente, ninguém quer ser esquecido e, assim,
de forma pacífica, as pessoas têm filhos para carregarem seu nome,
ou para confiarem a eles o peso do nome e da sua glória. É um longo
histórico de um processo de busca por assinar o tempo e o lugar, e
por desatar o nó do nome, enfrentando as longas caravanas do
esquecimento...
Por que aqueles lançados pelas ondas do esquecimento no
litoral de Beirute deveriam fugir à regra da natureza humana? Por
que esperar deles tanto esquecimento? E quem será capaz de
moldar para eles uma memória nova, cujo conteúdo não seja apenas
a sombra partida de uma vida distante num barraco de zinco
barulhento?
Há esquecimento suficiente para eles esquecerem?
E quem, em meio a esta humilhação que insiste em lembrá-los
da sua alienação tanto do lugar como da sociedade, vai ajudá-los a
esquecer? Quem os aceitará como cidadãos? Quem os protegerá
contra os chicotes da perseguição e da discriminação: “Vocês não
são daqui!”.
Nas fronteiras, eles apresentam uma identidade que soa como
um alarme de doenças contagiosas, que devem ser mantidas sob
controle, ao mesmo tempo que observam quão habilmente essa
mesma identidade é usada para elevar o espírito nacionalista. Esses
esquecidos, expulsos do tecido social, banidos e privados do
trabalho e da igualdade de direitos são, ao mesmo tempo, aqueles de
quem se espera aplausos para a própria opressão sofrida porque
lhes proporciona as bênçãos da memória. Assim, aquele de quem se
espera que se esqueça de sua condição humana é forçado a aceitar a
sua exclusão dos direitos humanos como um exercício de libertação
do mal do esquecimento da pátria. Ele deve contrair tuberculose para
não esquecer que possui pulmões. Deve dormir em campo aberto
para não esquecer que há outro céu. Deve trabalhar como
empregado para não esquecer que possui um dever nacional. A ele é
negado o privilégio de se estabelecer para que assim não se esqueça
da Palestina. Em suma, ele deve permanecer o “outro” para seus
irmãos árabes porque está comprometido com a libertação.
Tudo bem, tudo bem. Ele entendeu o seu dever: “minha
identidade é minha arma”. Por que então eles lhe atiram inúmeras
acusações: causar problemas, violar as regras da hospitalidade,
envolver os outros e espalhar o contágio das armas? Quando ele se
apaziguou, sua alma foi atirada aos cães de rua; e quando se
orientou para a pátria, seu corpo foi arremessado aos cães de rua.
Os intelectuais, capazes de usar os mais recentes modelitos teóricos,
convenceram-no de que ele é a única alternativa para o status quo;
exigiram que fizesse autocrítica por ter ido longe demais em seu
patriotismo: longe a ponto de se colocar além do curral do status
quo. As condições não amadureceram ainda. As condições ainda não
estão maduras. Ele tinha que esperar. O que ele devia fazer?
Tagarelar nos cafés de Beirute? Ele tagarelou tanto que lhe disseram
que Beirute o corrompeu. As damas da sociedade, portando armas
automáticas em meio ao tilintar de suas joias, levantaram-se para
discursar nas festas organizadas pela defesa das origens nacionais
da mjaddara. No entanto, quando ele se sentiu envergonhado por
isso e disse algo como: “a pátria não é um prato de arroz e lentilhas”,
e quando ele pegou em armas para usá-las nas fronteiras, fora da
festa, eles disseram: “Isso é ultrapassar os limites”. E quando ele
usou armas para se defender internamente contra os agentes locais
do sionismo, disseram: “Isso é interferência em nossos assuntos
locais”. O que deve ser feito então? O que ele pode fazer para
acabar com o processo de autocrítica, além de pedir desculpas por
uma existência que ainda não surgiu? “Você não vai para lá e não é
daqui.” Entre duas negativas, esta geração nasceu defendendo um
receptáculo físico para o espírito, no qual pendura a fragrância da
terra que ela nunca conheceu. Ela leu o que leu, viu o que viu e não
acreditou que a derrota fosse algo inevitável. Seguiu então o rastro
dessa fragrância...
Envergonhado estou. Sem saber, sinto vergonha diante deles. O
obscuro se amontoa sobre o escuro, friccionam-se e faz-se a clareza.
Os invasores podem tudo. Podem lançar o mar, o céu e a terra
contra mim, mas não podem arrancar de mim o aroma do café. Vou
fazer meu café agora. Vou tomar meu café agora. Vou me preencher
do aroma do café agora. Para que eu possa, pelo menos, me
distinguir de um carneiro, e viver mais um dia, ou morrer, rodeado
pelo aroma do café...

Afaste o recipiente do fogo baixo para que a mão realize sua


primeira invenção do dia. Não preste atenção aos foguetes, às
bombas ou aos jatos. Esta é a minha vontade: espalhar o aroma do
café para possuir o amanhecer. Não olhe para a montanha que cospe
bolas de fogo na direção da sua mão. Infelizmente, você não pode
esquecer que ali, em Achrafiye, eles estão dançando extasiados. Os
jornais de ontem mostraram as Damas do Cravo se jogando nos
tanques dos invasores, tendo as partes mais altas de seus peitos e as
mais baixas de suas coxas despidas pelo verão e pelo prazer, prontas
para receber os salvadores: “Me beije, Chlomo! Me beije na boca!
Diga-me seu nome, meu amor, para que eu possa chamá-lo pelo
nome, meu querido. Chlomo, meu coração tem ansiado
apaixonadamente por você. Entre, Chlomo, entre devagar na minha
casa, devagar, devagar, ou, se quiser, entre de uma vez, para que eu
possa sentir sua força, e como eu amo a força, meu querido!
Bombardeie-os, meu amor, massacre-os, mate-os com tudo que
existe de espera em nós. Que Nossa Senhora do Líbano o proteja, sr.
Chlomo! Bombardeie-os, querido, enquanto eu preparo um copo de
araq e seu almoço. Em quantas horas você vai acabar com eles, meu
querido? Quantas horas vai demorar? Essa operação está levando
muito tempo, Chlomo, muito! Por que vocês são tão lentos, meu
amor? Dois meses! Por que não estão avançando? E Chlomo, você
está fedendo! Não faz mal! É o calor e o suor. Vou lavá-lo com água
de jasmim, meu amor. Por que você está mijando na rua? Você fala
francês? Não? Onde você nasceu? Em Ta’ez? Onde fica essa Ta’ez?
No Iêmen? Não importa. Não importa. Eu pensei que você fosse
outra coisa. Não importa, Chlomo. Apenas bombardeie ali, por mim,
ali!”.6
Coloque delicadamente uma colher cheia de café moído, e
intensificado com o aroma de cardamomo, na superfície ondulada da
água quente. Em seguida, mexa lentamente, primeiro no sentido
horário; depois, para cima e para baixo. Adicione a segunda colher e
mexa para cima e para baixo; em seguida, no sentido anti-horário.
Agora adicione a terceira, sendo que entre uma colher e outra, afaste
o recipiente do fogo e traga-o de volta. Para o toque final, “alimente”
o café, isto é, mergulhe a colher no pó em fusão, encha-a e levante-a
um pouco sobre a caneca, em seguida, devolva-a. Repita isso várias
vezes até que a água ferva novamente e uma pequena massa de café
loiro se mantenha na superfície, onde ondula, preparando-se para
afundar. Não a deixe afundar. Desligue o fogo e não preste atenção
aos mísseis. Leve o café até o corredor estreito e verta-o, com afeto
e encanto, numa xícara branca, pois xícaras escuras frustram a
liberdade do café. Observe os caminhos do vapor e a tenda do
aroma que se levanta. Acenda seu primeiro cigarro, feito para esta
xícara de café, cigarro com sabor da própria existência, comparável
apenas àquele que se sucede ao ato amoroso, quando a mulher fuma
o último suor e o desvanecimento da voz...
Agora nasço! Minhas veias estão saturadas de anestesia
estimulante. Logo após o contato com as molas da vida, a cafeína e a
nicotina, no ritual desse encontro criado por minha mão, eu me
pergunto: “Como pode uma mão escrever, se não é criativa ao fazer
café?”. Quantas vezes os cardiologistas me disseram, enquanto
fumavam: “Não fume nem tome café!”. E quantas vezes, brincando,
eu retruquei: “O burro não fuma, não toma café e não escreve!”.
Eu conheço meu café, o café da minha mãe e o café dos meus
amigos. Reconheço cada um de longe e sei o que os distingue.
Nenhum café é como outro. Minha defesa do café é a defesa da
peculiaridade, do diferencial. Não há um sabor que possa ser
rotulado como “o sabor” do café, porque o café não é um conceito,
uma substância única ou algo absoluto. Cada um tem seu café
próprio, tão próprio que eu consigo reconhecer o gosto e a elegância
do espírito de quem o prepara quando bebo o café. Há café com
sabor de coentro, o que significa que a cozinha da mulher não é
organizada. Há café com sabor de suco de alfarroba, o que significa
que o dono da casa é mesquinho. Já o café com aroma de perfume
significa que a senhora está muito preocupada com a aparência. Há o
café que deixa um toque de musgo na boca, isso significa que seu
preparador é um esquerdista infantil. E existe aquele café com gosto
de velho, de tanto virar o pó na água quente, o que significa que
quem o preparou é de extrema-direita. E há ainda o café com o sabor
avassalador do cardamomo, o que significa que a senhora é nouveau
riche...
Não há um café igual ao outro. Toda casa e toda mão têm seu
próprio café, porque nenhuma alma é como a outra. Eu conheço o
café de longe: ele se move em uma linha reta no início, em seguida
serpenteia, se contorce, se curva, dobra, suspira e dá voltas em torno
de superfícies planas, rochosas e encostas; prende-se a um carvalho,
depois se desvencilha e desce para um vale, olha para trás, derrete-
se de nostalgia ao escalar uma montanha, onde sobe e se dispersa
nos fios de uma flauta que o leva de volta à sua primeira casa...
O aroma do café é um retorno, um trazer de volta as primeiras
coisas, porque descende do local primordial. É uma jornada, iniciada
há milhares de anos, que continua recomeçando. O café é um lugar.
O café são poros que deixam o dentro vazar para fora. É uma
separação que une o que não poderia ser unido senão por seu
aroma. É o contrário do desmamar. É um peito que nutre
profundamente os homens. Manhã nascida de um gosto amargo, leite
da masculinidade. O café é geografia.

Quem é esta que do meu sonho se levanta?


Ela realmente falou comigo antes do amanhecer ou eu estava
delirando, sonhando enquanto acordava?
Só nos encontramos duas vezes. Na primeira vez, ela aprendeu
meu nome; na segunda, eu aprendi o dela. Na terceira vez, não nos
encontramos. Então por que agora ela me chama de um sonho no
qual eu dormia sobre seu joelho? Da primeira vez, eu não disse a ela
“eu te amo”; da segunda, ela não me disse “eu te amo”. E nunca
tomamos café juntos...

Eu me acostumei a contar o número de carunchos no prato de sopa


de lentilha servido diariamente nas prisões. Eu me acostumei a
superar minha aversão porque o apetite se adapta e a fome é mais
forte que o apetite. Nunca me acostumei com a ausência do café
matinal e, em seu lugar, ter que tomar lavagem de chá. Será que foi
por isso que nunca me adaptei à vida na prisão? Uma amiga me
perguntou depois da minha primeira saída da cadeia:
— Você se divertiu?
— Não — eu disse. — Eles não servem café.
— Isso é terrível! — ela exclamou. — Apesar de eu não tomar
café.
— Não conheço muitas mulheres obcecadas por café pela
manhã — respondi. — Os homens abrem o dia com café; as mulheres
preferem a maquiagem!
No entanto, não foi isso que me entristeceu. Certa manhã, um
colega prisioneiro conseguiu me trazer um copo de café. Eu agarrei o
copo com tesão, mas me dei tempo para contemplá-lo, o que levou
outro prisioneiro a lançar olhares de súplica na direção do copo,
olhares que eu ignorei para ficar a sós com minha posse. Ignorei-o e
tomei o café com um prazer sádico, o que, mais tarde, despertou em
mim um sentimento de culpa. Isso foi há vinte anos, mas aquele olhar
suplicante ainda me assombra, sempre me insta a reexaminar e
corrigir meu comportamento, porque dar e compartilhar as coisas na
prisão é sinal de generosidade sincera. Eu nunca me livrei dessa
culpa, por mais que eu tenha dado muitas metades de cigarros como
tentativa de subornar meu equilíbrio psicológico. Que egoísmo! Eu
privei um companheiro prisioneiro de meio copo de café, mas o
destino me puniu. Uma semana depois, quando minha mãe veio me
visitar e trouxe um bule cheio de café, o guarda o derramou todo na
grama...

O café não deve ser tomado com afobação. É irmão do tempo e deve
ser bebericado com vagar, lentamente. O café é a voz do sabor, o
som do aroma. É meditar e mergulhar na alma e nas memórias. O
café é um hábito que, além do cigarro, deve ser acompanhado por
outro hábito: o jornal.
Cadê o jornal? São seis horas da manhã e eu estou no epicentro
do inferno. Notícia é o que se lê, não o que se ouve. O evento, antes
de ser redigido, não é um evento. Conheço um pesquisador em
assuntos israelenses que não para de desmentir os “boatos” de que
Beirute está sob cerco, simplesmente porque para ele um fato só é
verdade se estiver escrito em hebraico. Como ainda não recebeu
seus jornais israelenses, não admite que Beirute esteja sob cerco!
Mas não é desse tipo de disparate que eu sofro. Para mim, o jornal
da manhã é um vício. Cadê o jornal?
A histeria dos jatos está aumentando. O céu enlouqueceu.
Completamente. Este amanhecer é um aviso de que hoje será o fim
do mundo. Onde mais vão bombardear? Onde mais não vão
bombardear? Será que a área ao redor do aeroporto comporta todas
essas bombas, capazes de matar um mar? Ligo o rádio e sou forçado
a ouvir comerciais felizes: “Cigarros Merit. Mais aroma, menos
nicotina!”, “Relógio Citizen: para o tempo preciso!”, “Venha para a
terra de Marlboro, venha para onde está o sabor!”, “Água mineral
Suhha é saúde que jorra das altas montanhas!”. Mas onde está a
água? O exagero na sedução praticada pelas locutoras da Rádio
Monte Carlo faz com que pareçam ter acabado de sair do banho ou
de um excitante quarto de dormir: “Intenso bombardeio sobre
Beirute”. Intenso bombardeio sobre Beirute! Isso é transmitido como
uma notícia comum a respeito de um dia comum, em uma guerra
comum, em um noticiário comum? Eu giro o dial para a BBC. As
mesmas vozes mortais e mornas de locutores fumando cachimbo nos
ouvidos dos seus ouvintes. Vozes transmitidas em ondas curtas
ampliadas para uma onda média são transformadas em caricaturas
vocais sinistras: “Nosso correspondente diz que para os
observadores cautelosos a situação parece se tornar gradualmente
mais clara quando o porta-voz consegue, apesar da dificuldade,
entrar em contato com os eventos, o que talvez possa indicar que as
duas partes estão em guerra, no entanto, talvez, sem mencionar uma
certa ambiguidade, a qual poderia ser indicada pelo fato de que
ainda há aviões de combate com pilotos desconhecidos voando alto.
Porém, se quisermos ser precisos, poderia ser confirmado que
algumas pessoas agora aparecem bem vestidas”. Um árabe formal,
com informações corretas, seguidas por uma canção de Muhammad
Abdul-Wahab em árabe coloquial com emoções corretas: Ya tiguini,
ya tu’lli aruh-lak, ya tu’lli aruh-lak minnak fen [Vem me ver, ou me diz
onde te encontrar, ou me diz aonde ir para te deixar em paz].
Vozes idênticas e monótonas. Areia descrevendo o mar. Vozes
eloquentes e imparciais relatam a morte como quem diz a previsão
do tempo, e não como quem narra uma corrida de cavalos ou de
bicicletas. O que procuro? Abro a porta várias vezes, mas não
encontro o jornal. Por que procuro um jornal se os prédios estão
despencando por todo lado? Não me bastaria esta leitura?
Não é bem isso. Quem procura um jornal no meio deste inferno
estaria escapando de uma morte solitária e migrando para uma
morte coletiva. Estaria buscando um par de olhos humanos, um
silêncio compartilhado, uma conversa recíproca, algum tipo de
participação nesta morte, uma testemunha que possa dar
testemunho, uma lápide sobre um cadáver, quem anuncie a queda de
um cavalo, uma língua que fale e se cale, uma espera menos
entediante pela morte certa, pois o que este aço e essas bestas de
ferro informam é que ninguém será deixado em paz, e ninguém vai
contar nossos mortos.
Estou mentindo para mim mesmo: não preciso procurar uma
descrição do que está ao meu redor nem no meu interior que vaza. A
verdade é que tenho medo de cair entre os escombros, vítima de um
gemido que ninguém possa ouvir. E isso é doloroso. Doloroso na
medida em que eu sinto dor, como se o evento tivesse realmente
acontecido: agora estou lá, nos escombros. Sinto a dor do animal
esmagado dentro de mim. Eu grito de dor, mas ninguém me ouve. É
a “dor fantasma”, que vem de uma direção oposta, do que pode vir a
acontecer. Alguns feridos, atingidos na perna, continuam sentindo
dor por vários anos após a amputação. Eles estendem a mão para
tocar a dor em um lugar onde não há mais o membro. Esta dor
fantasma e imaginária pode persegui-los até o fim dos seus dias.
Quanto a mim, sinto a dor de uma lesão que não aconteceu... minhas
pernas foram esmagadas sob os escombros.
Estas são minhas suposições: talvez o míssil não me mate num
piscar de olhos, sem que eu perceba; talvez uma parede caia
lentamente sobre mim e meu sofrimento seja infinito, sem ninguém
para ouvir meus gritos de socorro, enquanto o peso dos escombros
esmaga minha perna, meu braço ou meu crânio, ou talvez repouse
sobre o meu peito e eu fique vivo por vários dias, sendo que ninguém
terá tempo de procurar os restos de outro ser; minha carne talvez
grude no cimento, no ferro ou na terra; por fim, não sobrará nenhum
vestígio de mim; lascas dos meus óculos poderão se alojar nos meus
olhos e me cegar; meu flanco talvez seja perfurado por uma vara de
metal, ou esquecido no acúmulo da carne mutilada deixada para trás
nos escombros. Mas por que estou tão preocupado com o que
aconteceria com meu cadáver e seu destino? Não sei. Eu quero um
funeral organizado, onde meu corpo inteiro, não mutilado, seja
acomodado em um caixão de madeira envolto em uma bandeira com
as quatro cores claramente visíveis (mesmo que tenham sido
adotadas de um verso cujas palavras não remetem a seus
significados),7 carregado sobre os ombros de meus amigos, e de
meus amigos-inimigos.
Quero coroas de rosas vermelhas e amarelas. Eu não quero
nenhuma flor de cor comum, nem violetas, porque elas espalham o
cheiro da morte. Eu quero um locutor de rádio que não seja muito
tagarela, com uma voz não muito rouca e capaz de emular uma
convincente demonstração de tristeza, trazendo de tempos em
tempos gravações da minha voz carregando algumas palavras. Quero
um funeral sereno, ordenado e grande, para que a despedida seja
bonita, diferente da chegada. Que sorte têm os recém-mortos no
primeiro dia de luto, quando os enlutados competem entre si para
elogiá-los! Cavaleiros por um dia, amados por um dia e inocentes
apenas neste dia. Sem falsidade, sem insultos, sem inveja. Ainda
melhor, no meu caso, não tendo esposa nem filhos, eu pouparia os
amigos do esforço de representar, por longo tempo, o papel triste
que só terminaria quando a viúva começasse a sentir dó do
condolente. O fato também preservaria a dignidade do filho de ter
que ficar à porta das instituições administradas por burocracias
tribais. É bom que eu seja só, sozinho. Por essa razão meu funeral
será gratuito, sem a conta da cortesia, de modo que depois do
funeral aqueles que caminharam na procissão possam voltar aos seus
afazeres cotidianos. Eu quero um funeral com um caixão elegante, de
onde possa espiar os enlutados que estão do lado de fora, assim
como queria fazer o dramaturgo Tawfiq Alhakim. Eu quero dar uma
olhada neles, como andam, como param, como reclamam e como
convertem sua saliva em lágrimas. Eu também quero escutar as
zombarias: “Ele era um mulherengo; gastava muito em roupas; a
gente se afunda até os joelhos nos tapetes de sua casa; tinha um
palacete na Riviera Francesa, uma mansão na Espanha e uma conta
bancária secreta em Zurique; mantinha, secretamente, um avião
particular e cinco carros de luxo na garagem de sua casa em Beirute;
não sei se ele tinha um iate na Grécia, mas na sua casa havia tantas
conchas do mar, o suficiente para construir um campo de refugiados
inteiro; ele costumava mentir para as mulheres; o poeta está morto e,
com ele, sua poesia. O que sobrou dele? Sua época findou e sua
lenda acabou. Levou sua poesia com ele e desapareceu. De qualquer
forma, tinha o nariz e a língua compridos”. Ouvirei coisas ainda mais
duras do que isso, quando a imaginação estiver totalmente liberta. Eu
vou sorrir do meu caixão e tentar dizer: “Chega! Voltarei à vida, não
aguento mais!”.

Mas morrer aqui... não! Não quero morrer sob os escombros.


Vou fingir para mim mesmo que vou à rua procurar um jornal. O
medo é uma vergonha diante dessa febre de heroísmo que acometeu
toda a gente — aqueles que estão na linha de frente cujos nomes não
sabemos, bem como as almas simples que optaram por ficar em
Beirute, para dedicar seus dias à busca de uma lata de água no meio
dessa cascata de bombas, para prolongar o instante do desafio e da
resistência dentro da história, os que decidiram pagar o preço com a
sua carne na batalha contra o metal que explode. O heroísmo está
aqui nesta parte amputada de Beirute, neste verão ardente. O
heroísmo é a Beirute Ocidental. Quem morre aqui não morre por
acaso, mas quem vive, vive por acaso, porque nenhum pedaço de
chão foi poupado pelos foguetes e nenhum lugar onde se possa pisar
foi salvo das explosões. Mas eu não quero morrer sob os escombros.
Quero morrer na rua.
De repente, os vermes descritos num certo romance
espalharam-se diante de mim. Vermes que se alinham, numa ordem
rígida, por cor e tipo, para consumirem o cadáver, retirando a carne
dos ossos em poucos minutos. Uma incursão, ou duas, e nada sobra
da gente exceto o esqueleto. Vermes que vêm do nada, da terra, do
próprio cadáver. O cadáver é consumido por um exército organizado
que brota de dentro, em segundos. Certamente, é uma imagem que
esvazia o homem do seu heroísmo e da sua carne, empurrando-o
para a nudez do destino absurdo, o mais absoluto absurdo, o
completo nada. Uma imagem que despe as canções da louvação à
morte e da fuga para outra fuga. Foi para superar a feiura dessa
realidade que a imaginação humana — a habitante do cadáver —
abriu um espaço para salvar o espírito desse nada? É esta a solução
proposta pela religião e pela poesia? Talvez, talvez...

E como eu conhecia Samir desde a infância, não fui ao hospital


quando ele estava em coma. Os jatos mutilaram suas pernas e seus
braços, rasgaram sua barriga e dilaceraram seus olhos, enquanto ele
retirava os feridos da praça da Cidade Esportiva. O que restou dele?
Quero dizer, o que sobrou de uma beleza que fazia as meninas
pegarem fogo por debaixo das saias? Estudávamos na mesma escola
em Kafar-Yassif. Ele não frequentava muito as aulas. Sempre
distraído e ausente, em vez dos livros, preferia o mar e caçar
passarinhos. Nunca participava das brincadeiras estudantis. Tinha a
beleza de José e uma timidez nada devota. Olhos azul-claros, da cor
do mar de Acre e dos olhos da sua mãe, dona de uma beleza tirânica.
Cabelo castanho, encaracolado, e uma testa larga comandando uma
visão acima de nós. Era muito distante e fisicamente forte. Nós nunca
soubemos por que decidiu deixar a escola, a família e a pátria até ele
deflagrar a Guerra de Junho. Pelo menos era o que os jornais
israelenses alegavam em manchetes enormes: “Preso um fidaí8 que
se infiltrou pela fronteira para explodir Haifa”. Era a véspera da
Guerra de 1967 e a propaganda israelense estava empenhada em
preparar o terreno para o conflito. Como ele nunca tinha participado
do nosso ativismo não acreditamos que Samir fosse um fidaí até ele
aparecer nos jornais, com sua estatura alta e fortemente algemado.
O pai dele, meu primo, me contou como a polícia o obrigava a
escutar através da parede os gemidos de Samir sob contínua tortura.
Um bando de lobos atacando uma gazela no cativeiro. O pai ficou
completamente destruído após ouvir o som lento da morte emergir
do corpo do filho mimado, elegante e bonito, criado no conforto e na
fartura. Já sua mãe, uma mulher de impressionante beleza, foi capaz
de acalmar os nervos e preservar o equilíbrio psicológico. Ao ver o
filho se tornar homem e desafiar um Estado que derrotou outros
Estados, uma vaidade maternal despertou nela, transformando a
tristeza em orgulho. Eles condenaram Samir à prisão perpétua. Na
prisão, ele agiu como colaborador, aguentando a humilhação de seus
companheiros fidaíyin, para assim colocar seu plano em ação.
Trabalhou na cozinha da prisão, onde conseguiu ferramentas afiadas
e, por meses, dedicou-se a cortar as barras de ferro de sua cela, até
chegar a hora certa, quando foi inclusive capaz de libertar alguns de
seus companheiros. Porém, como ele insistiu em ser o último a
escapar, os guardas conseguiram puxá-lo de volta pela janela. Mais
uma vez eles o condenaram à prisão perpétua. Depois, após uma
terceira tentativa, deram-lhe uma terceira sentença de prisão
perpétua. Portanto, ele teria que viver três vidas para ganhar sua
liberdade. Quando, após uma troca de prisioneiros, Samir finalmente
saiu para a luz da grande Pátria Árabe, não podia acreditar na
diferença entre a ideia e sua expressão, nem aceitar a contradição
entre o sonho e seu veículo; assim, ele recorreu à comparação
tradicional que os prisioneiros fazem entre a liberdade exterior
aparente e a liberdade interior, imaginada, liberdade que brota de
convicções firmes, da paz de espírito que surge de uma ligação ideal
com o mundo exterior. Acostumamo-nos às queixas daqueles que
saíam de sua liberdade interior para nossa liberdade distorcida, e,
também, à sua decepção com tudo o que alterava as ideias que
tinham de nós, e a imagem que tinham do exterior. Quando eu o
encontrei em Damasco, vinte anos depois, Samir disse: “É esta a
situação? Não foi por isso que eu entrei, e não foi por isso que eu
saí!”. No entanto, a lealdade ao elo da estrutura com seu ideal o
impediu de levar a desilusão ao extremo, ao substituir a estrutura e o
veículo por uma forma mais equilibrada e harmoniosa. Ele estava
muito decepcionado com a instituição e muito ligado a ela. “Um
homem como eu não pode mudar sua pele”, ele disse. “Não por
medo do terrorismo corporativo, mas por medo do colapso de um
elemento de equilíbrio. Se eu quero servir à ideia da Palestina e do
seu povo, independentemente de estar nesta organização ou naquela,
tenho que aceitar ser arrastado para o conflito das organizações e
enganá-las com uma suposta subordinação a elas, sem me incluir
neste ou naquele regime.” Ele se cercava, e cercava a sua distinção,
com a parte absoluta do ideal. Temia que qualquer alteração
desafiasse a sinceridade de sua história e o calor de seu sacrifício,
porque a objeção, na ausência da pátria, da sociedade e dos valores
cristalizados, seria questionada e suspeitada em guerras narrativas
que não são controladas por regulamentos morais ou patrióticos.
Este tipo de “diálogo nacional” não resultou em nada a não ser em
assassinato. Nenhum de nós ficou livre da troca de acusações. Samir
permaneceu em Beirute apenas para continuar fazendo suas
perguntas doídas sobre a liberdade na prisão e a prisão de uma
liberdade exposta à corrupção e à suspensão do regime disciplinar,
de modo que, por exemplo, um porta-voz dessa “liberdade”, que
derruba um edifício sobre seus habitantes apenas para acertar
contas com outro membro da sua facção, não perde sua posição,
nem o direito de representar este ou aquele regime árabe na
liderança! Talvez o julgamento que a revolução palestina mereça
receber é o de não ter criado a tradição de julgar seus líderes por
cometerem crimes flagrantes. Até agora, os únicos julgamentos que
aconteceram foram por “crimes contra a moralidade”, cometidos por
jovens, futuros mártires que buscavam prazer num cigarro de
maconha ou nos braços de uma mulher sedutora antes de serem
transformados em discursos nos palanques. Foi difícil para Samir e
outros que, como ele, tinham saído das prisões israelenses, entender
como representantes dos serviços secretos árabes poderiam se
tornar líderes no movimento nacional com o pretexto de que essa
escalada garantiria um “equilíbrio” no trato com as outras nações.
Quem somos nós, a Liga Árabe? Ele nunca foi capaz de se
acostumar com essas tradições confusas porque nunca amadureceu
a ponto de alcançar o grau de “realismo” adquirido apenas através
do conhecimento dos grandes passos que o discurso político
palestino tomou em suas relações complexas com a base árabe e
com a Cúpula dos Países Árabes, que seguiam em direções opostas.
O resultado foi que a nossa “unidade nacional” teve como um de
seus elementos constitutivos a solidariedade dos governos árabes,
não com a Organização, mas com seus membros. No entanto, Samir,
que foi massacrado com perguntas sobre a liberdade na prisão e a
prisão em liberdade, mergulhou de cabeça numa onda de indulgência
geral que varreu todos nós para as margens do fatalismo.

... e como eu o conhecia desde a infância, não fui visitá-lo no


Hospital Barbir. “Você não vai reconhecê-lo”, disseram. “E se o ama”,
acrescentaram, “reze para que ele morra, porque a morte é sua única
libertação. Ele entrou em coma. Ele entrou vivo na morte.”
Afinal, eles não o tinham libertado. Seguiram-no até Beirute,
trocaram uma sentença de prisão perpétua por uma execução por
bombardeio aéreo. Samir está morto. O manjericão da família está
morto.

Não quero morrer desfigurado sob os escombros. Quero ser atingido


no meio da rua, de repente. Quero queimar completamente, virar
carvão, de modo que nem mesmo os vermes daquele romance
possam fazer seu eterno dever em mim: vermes não comem carvão.
Assim, vou dizer para mim mesmo que estou procurando um
jornal, para justificar meu vagar numa rua vazia até de cães e gatos.
Não me importo com o que acontece para além da janela.
Bombas, foguetes, navios, jatos, artilharia, todos soprando no meu
caminho feito um vento furioso, caindo qual chuva, sacudindo o lugar
como um terremoto. A vontade humana não pode fazer nada contra
isso, como um destino impossível de mudar. Todas as invenções
inimaginavelmente malignas que a criatividade humana produziu,
com todos os avanços que a tecnologia alcançou, está, hoje, tendo
sua eficácia testada em nossos corpos. Será este dia o mais longo da
história? Ninguém está lavando os corpos dos mortos, pois então que
os mortos lavem seus próprios corpos, quero dizer, com sangue
fluindo mais livremente do que a água. Eu guardo meu tesouro de
água e uso cada gota com parcimônia. Cada gota tem uma função.
Eu quase conto as gotas: quinhentas para lavar o cabelo; duas mil
para o corpo; cem para a boca; e outras cem para fazer a barba;
vinte para cada orelha; cinquenta para cada axila e... e... para cada
gota há uma parte correspondente do corpo.
O que é água? Quem disse que não tem cor, sabor ou odor? O
que é água? Quimicamente, é H2O. Mas só isso? O que é, então,
este arrebatamento que abre a pele e nos conduz a um banquete lá
na vastidão do corpo e seus aposentos até quase assumirmos a
natureza das borboletas? A água é a alegria dos sentidos e do ar em
volta. Água é ar destilado, tangível, perceptível, imerso na luz. Por
essa razão, os profetas instavam sua gente a gostar de água: “E da
água Nós fizemos cada coisa viva”. Lembro-me da Epístola de Ibn-
Fadlan e me sinto enojado com aquele vaso de água usado para lavar
um exército inteiro. Os representantes das Cruzadas cortavam nossa
água, mas Saladino costumava enviar gelo e frutas para os inimigos
na esperança de “amolecer seus corações”, como costumava dizer.
De repente, começo a rir, ao lembrar de uma canção que diz: “A
água sacia a sede de quem tem sede”. Como o cantor chegou a essa
descoberta impressionante?! Eu me admiro. Em Tall-Azaatar, os
assassinos costumavam caçar mulheres palestinas nos poços de
água, perto de um cano quebrado, como se caçam gazelas sedentas.
Água assassina. Água misturada com o sangue dos sedentos que
arriscaram a vida por um copo d’água. Água que deflagrou guerras
entre os beduínos em tempos idos. Água que serve para melhorar as
condições de negociação daqueles cuja humanidade seca nunca foi
tocada pela água. Água que mobilizou os reis árabes, que se deram
ao trabalho de entrar em contato com o presidente americano por
telefone para fazer um negócio lucrativo: tome o sangue, dê-nos a
água; leve o petróleo, dê-nos a água; leve-nos, mas dê-nos a água.
O barulho da água tem o agito de uma festa de casamento e é
muito, muito mais forte que o rugido destes jatos. O som da água é
espelho para as raízes da terra viva. O som da água é liberdade, é a
própria humanidade.
E assim que a Casa Branca, em Washington, anuncia que a água
voltou a Beirute Ocidental, todas as pessoas correm para suas
torneiras, exceto nós, os inquilinos deste edifício alto, tão alto quanto
o apelo da sede. Seu proprietário nos colocou sob cerco há vários
anos, bem antes de Beirute ser sitiada. Quando a autoridade no país
entrou em colapso, ele enlouqueceu com sua própria autoridade: o
poder sobre a água. Sempre que tinha uma desavença com a esposa,
com os inquilinos ou com a sua conta bancária, ele corria e cortava a
água de todos. Por essa razão, incutiu em nós, e não é de hoje, a
paciência com a água. Nos ensinou a louvá-la e a sentir uma grande
alegria quando ela jorra durante uma hora, algo nunca vivido pelas
tribos Dahis.9 Ele nos transformou em vigilantes dos canos, atentos
desde o amanhecer ao som da tão aguardada água. Bastava
escutarmos seu gargarejar para decretarmos feriado. Corríamos para
encher potes e panelas, garrafas e pratos, copos e cálices, até
mesmo os bolsos dos casacos de couro, pois a água neste prédio é
um tesouro a ser celebrado com rituais e discutido nas reuniões
noturnas. Falar de água nos uniu, nos transformou em uma família.
Morávamos em um prédio no qual o dono tinha inveja de Ariel
Sharon, com quem competia no sadismo. Quando Beirute Ocidental
se alegrou com a liberação da água, tivemos que nos contentar com
a mera solidariedade, porque essa água não chegou até nós e a
alegria não nos incluiu. Nós somos os últimos prisioneiros. “Ei,
senhor proprietário. Ei, Abu-Rabí, perdoe os pecados que jamais
cometemos. Há uma guerra em curso. Ei, Abu-Rabí. Seja
magnânimo. Ei, Abu-Rabí! Dê-nos a água nossa de cada dia. Ei, Abu-
Rabí.” Ninguém nos ouviu, ninguém intercedeu por nós. Acabei
obrigado a recorrer aos comitês das milícias, que vieram e liberaram
a água à força; e esquecemos a guerra e o cerco de tanto que nos
alegramos com a água.
Para mim e outros que, como eu, sofreram com as feridas
causadas pela falta de água, Ibn-Sida elaborou uma lista de termos
referentes a este precioso líquido. O que se segue é apenas uma
gota daquela enxurrada:

água, aguaceira, aluvião, bica, cachoeira, cascata, catarata,

chuva, chuvisco, corredeira, córrego, corrente, dilúvio, enchente,

enxurrada, fonte, garoa, gelo, gota, gotejo, gotícula, granizo,

inundação, lago, lagoa, mar, neve, névoa, nuvem, oceano, olho,


onda, orvalho, piscina, poça, poço, redemoinho, remanso,

respingo, riacho, rio, toró, torrente, vapor...

E muito, muito mais.

... desço a longa escada de pedra, pisando no vidro quebrado.


Eu não sei se os andares inferiores foram atingidos. O que vou fazer
se um cadáver cair em cima de mim? Como vou carregá-lo? Para
quem devo levá-lo? O que farei se não encontrar ninguém com quem
conversar? A quem dirigirei minhas palavras, com quem partilharei
meu silêncio? Vou assobiar uma melodia, das muitas canções
compostas para Beirute e que explodiram nesta guerra. Beirute não é
para ser cantada. A poesia libanesa não usou a palavra “Beirute”,
apesar de se encaixar em todas as métricas. Um nome musical que
pode fluir suavemente numa prosa poética ou num poema... O que
farei se não encontrar uma gata para acariciar? E o que vou fazer se
não encontrar nada para fazer?
No quarto andar, uma porta aberta.
— Bom dia, mestre!
Há dez anos que eu o cumprimento assim. Oitenta anos de
idade. Apessoado, calmo, como se fosse um coração andando sobre
duas pernas. Mudou-se de sua casa na linha de demarcação10 depois
que três paredes desabaram sobre ele. Ficou no meu apartamento
durante seis meses, quando eu estava sumido na Europa. Em
seguida, foi para o apartamento da filha. Eu o visitava diariamente,
ajudando-o a carregar o fardo da guerra, levando-lhe um jornal e uma
broa de gergelim. Foi um poeta inovador; talvez o primeiro a usar a
forma da prosa poética. Então, parou completamente de escrever
poesia. Passou a dedicar-se em tempo integral a uma revista literária
semanal, da qual era editor, leitor de manuscritos, administrador,
preparador e distribuidor. Nada se comparava às suas queixas contra
a selvageria do bombardeio, a não ser suas reclamações do
proprietário e da água. Ele gosta da minha companhia e da de seus
netos, aceita a tirania da esposa dominadora com um sorriso que se
desculpa por algo que ele não fez.11 Quando seus nervos estão no
limite, devido à insistência dos jatos de ataque, ele grita de dor:
— Chega! O que vocês querem de nós? Sabemos que vocês são
mais fortes e que têm aviões mais novos e armas mais destrutivas.
Então, o que querem de nós? Chega!
— Deixe-os! — sua esposa o repreende. — Eles querem
bombardear, o que você tem a ver com isso? — diz em dialeto
egípcio. — Querem bombardear os palestinos — ela fala, sem se
acanhar com a minha presença.
— É verdade, por que você quer atrapalhar esses pilotos? —
brinco, tentando amenizar o clima carregado.
Ele ri, mas ela não. Criada para se sentir hostil a qualquer coisa
fora de sua seita, ela aplaudia o serviço gratuito oferecido pelos
israelenses ao único herói de seus sonhos: Bachir Gemayel.12 Ela
acreditava que esta guerra não era nada mais do que um serviço
voluntário que os israelenses prestavam ao Líbano, limpando-o dos
estrangeiros e dos muçulmanos. E quando a missão estivesse
concluída, já com o príncipe de seus sonhos na presidência da
república e todos os estrangeiros expulsos, os israelenses voltariam
de onde vieram sem cobrar nenhum pagamento. Era possível discutir
tranquilamente com ela sobre a vida de Jesus Cristo, sobre a Virgem
Maria e as Epístolas de Paulo, mas sobre Bachir... ela cercava aquele
nome com uma aura de tabu sacrossanto. “Ó, Senhora do Líbano,
proteja-o pelo nosso bem!”, ela dizia.
Mesmo assim eu não sentia raiva dela; em vez disso, tinha pena
de quão fundo havia mergulhado no preconceito e na recusa ao
“outro”. Eu não guardava nenhum rancor; ao contrário, levava para
ela o que conseguia arranjar com os vendedores de pães e de uvas.
Diante de uma mente tão fechada, tão completamente formada,
todas as tentativas de argumentação estancam. Seu marido, de
histórico secular, em vão tentava convencê-la de que os israelenses
não amavam o Líbano e não estavam ali para defendê-lo. Afinal,
segundo ele, bastava um míssil de seus jatos para que todos nós,
sentados naquele apartamento, muçulmanos e maronitas, fôssemos
transformados em kafta. Quanto a ela, totalmente convicta, mantinha-
se apegada a uma discussão estéril. Na tentativa de tomar meu
partido, seu marido, ocasionalmente, solicitava minha opinião. Por
fim, evitando as provocações e tudo que ela poderia lançar sobre
mim, eu disse:
— Isso não é problema meu — comentário que bastou para
agitar as águas plácidas.
— Qual é o seu problema, então? — ela perguntou.
— Meu problema é saber qual é o meu problema. A propósito, o
proprietário liberou a água? — perguntei numa pequena manobra.
— Não fuja do assunto. Você sabe que não há nenhum problema
entre maronitas e judeus — ela disse.
— Eu não sei disso.
— Você sabe que somos aliados.
— Eu não sei disso.
— O que você sabe então?
— Eu sei que a água tem cor, sabor e odor.
— Por que vocês palestinos não voltam para o seu país? Assim
acaba o problema.
— Assim? Tão simples? Voltamos para o nosso país e o
problema some?
— Sim.
— Você não sabe que eles não vão nos deixar voltar para o
nosso país?
— Nesse caso, lutem com eles!
— Aqui estamos nós, lutando com eles. Não estamos em guerra?
— Vocês estão lutando para ficar aqui. Vocês não estão lutando
para voltar.
— Para voltarmos para lá, devemos estar em algum lugar;
porque aquele que volta, se voltar, não o faz a partir do nada.
— Por que não ficam nos países árabes e lutam desde lá?
— Eles nos disseram o que você está dizendo agora. Eles nos
expulsaram. E aqui estamos nós, lutando junto com os libaneses em
defesa de Beirute e da nossa própria existência.
— Sua guerra é inútil e não vai levar a lugar nenhum.
— Talvez não nos leve a lugar nenhum, mas o objetivo é a
autodefesa.
— Vocês devem ir embora.
— Já concordamos em sair. Nós vamos embora. E aqui estão
eles, impedindo-nos de sair. E você não se importa para onde
iremos?
— Não é da minha conta.
De repente, a voz de Fairuz chega pelo rádio, bhebbak ya Libnan
[Líbano, eu te amo]. A canção chega simultaneamente de duas
estações em conflito.
— Você não gosta desta música?
— Gosto. E você?
— Amo, e me dói.
— Com que direito você a ama? Você não vê até que ponto
ultrapassaram os limites?
— É uma linda canção e o Líbano é lindo. É só isso.
— Você tem é que amar Jerusalém.
— Eu amo Jerusalém. Os israelenses amam Jerusalém e cantam
para ela. Você ama Jerusalém, Fairuz canta para Jerusalém. E
Ricardo, Coração de Leão, amava Jerusalém. E...
— Eu não amo Jerusalém — ela disse.

A rua. Sete horas. O horizonte, um enorme ovo feito de aço. A quem


ofereço meu silêncio inocente? A rua está mais larga. Eu ando
devagar. Devagar, ando. Ando lentamente, para que o avião não me
erre. O vazio abre suas mandíbulas, mas não me engole. Eu me movo
sem rumo, como se passasse nessas ruas pela primeira vez, e como
se caminhasse nelas pela última vez. Uma despedida unilateral. Eu
sou o único que caminha neste funeral que é meu. Não há uma gata
sequer — ah, se eu encontrasse uma gata. Sem tristeza. Sem alegria.
Sem começo. Sem raiva. Sem contentamento. Sem memória. Sem
sonho. Sem passado. Sem amanhã. Sem som. Sem silêncio. Sem
guerra. Sem paz. Sem vida. Sem morte. Sem sim, sem não. As ondas
se casaram com os musgos de uma rocha numa praia distante.
Acabo de emergir deste casamento, que durou um milhão de anos.
Emergi, sem saber onde estava. Sem saber quem era. Sem saber
meu nome nem o nome deste lugar. Eu não sabia que tinha o poder
de desembainhar uma das minhas costelas e encontrar nela um
diálogo deste silêncio absoluto. Qual o meu nome? Quem me deu o
nome? Quem me chamará de Adão?

... então Deus, tendo criado o Cálamo e ordenado que ele

escrevesse tudo o que existiria até o Dia do Juízo Final, criou

nuvens delicadas, que são as névoas mencionadas pelo Profeta

(que Deus o abençoe e conceda-lhe a salvação) quando

perguntado por Abu-Ruzain Aluqaili onde estava nosso Senhor

antes de criar a criação: “Em uma névoa fina, tendo ar em cima e


em baixo. Então Ele criou seu Trono na água”. Eu disse que isso

merecia ser revisto, pois já foi dito que Deus (exaltado acima de

tudo) primeiro criou o Cálamo e ordenou: “Escreva!”, e o Cálamo

começou a escrever naquele momento. Também foi dito que

Deus, depois de ter criado o Cálamo, e este ter escrito todos os

seres do mundo, criou uma névoa fina. Agora, sabe-se que não

pode haver escrita sem a existência de um instrumento para

escrever, que é o Cálamo, e sem ter algo no qual seja possível

escrever, que é a Tábua Preservada. Parece, portanto, que a

Tábua Preservada deveria ter sido mencionada depois do

Cálamo, mas só Deus sabe. Pode ser que nenhuma menção tenha

sido feita a ela porque sua existência estaria subentendida como

uma parte necessária da expressão.

Os sábios discordaram sobre o que Deus criou após a névoa.

Addahhak relatou que ouviu de Ibn-Mazahim, o qual, por sua vez,

ouviu de Ibn-Abbas, que Deus primeiro criou o Trono e sentou-se


nele. Mas outros disseram que Deus criou a água antes de criar o

Trono; então, Ele criou o Trono, colocando-o sobre a água.

Foi dito que Deus (exaltado acima de tudo), depois do Cálamo,

criou o Trono e, em seguida, o ar, depois, a escuridão, e então, a

água, sobre a qual Ele colocou o Trono.

Disse: “E disseram que a declaração de que a criação da água

veio antes da criação do Trono — derivada de um hadith de Abu-

Ruzain sobre o Profeta (Deus o abençoe e conceda-lhe a

salvação) — é a mais correta. A água estava montada no vento

quando o Trono foi criado, segundo Saad Ibn-Jubair, que

transmitiu o relato a partir de Ibn-Abbas. Se for esse o caso,

então eles foram criados antes do Trono . ”


Outro disse que Deus criou o Cálamo mil anos antes de criar

qualquer outra coisa.

Discorda-se também em relação ao dia da semana em que Deus

(exaltado acima de tudo) iniciou a criação do Céu e da Terra.

Abdallah Ibn-Salam, Kaab, Addahhak e Mujahid dizem que a

criação foi iniciada no domingo. Muhammad Ibn-Ishaq afirma (e

Abu Huraira concorda) que a criação foi iniciada no sábado.

E eles também divergem sobre o que foi criado em cada dia.

Assim, Abdallah Ibn-Salam diz que Deus (exaltado acima de

tudo) começou a criação no domingo, criando os planetas no

domingo e na segunda-feira; então, Ele criou os alimentos e as

montanhas altas na terça e na quarta-feira; e os céus, na quinta e

na sexta-feira; e concluiu sua criação na última hora de sexta-

feira — que também será a hora do Juízo Final —, quando criou

Adão (a paz esteja com ele).


De acordo com Akramah, Ibn-Abbas sustentou que Deus

(exaltado acima de tudo) colocou o firmamento em quatro cantos,

sobre a água, dois mil anos antes de criar o mundo; depois a

Terra foi rolada para seu lugar sob o firmamento.

De acordo com Assariy, que ouviu de Abu-Salih, que ouviu de

Abu-Malik, que ouviu de Ibn-Abbas, e de Murrah Alhamadhani e

de Ibn-Massúd: “Deus (exaltado acima de tudo) tinha seu Trono

na água e não criou nada antes da água. E quando Ele quis criar

os seres, retirou vapor de dentro da água e o fez subir acima dela,

e quando este atingiu uma posição mais alta ainda, Ele chamou

de Céu; depois, Ele secou a água e fez a terra, que Ele então

dividiu em sete planetas em dois dias, domingo e segunda-feira.

Ele criou a Terra sobre uma baleia, e a baleia é a letra nun que

Ele (exaltado acima de tudo) menciona no Alcorão quando diz:

‘Nun e o Cálamo’. A baleia estava na água, e a água estava sobre


uma pedra larga e lisa, e a pedra estava nas costas de um anjo, e

o anjo estava sobre uma rocha, e a rocha, ao vento. E é esta a

rocha que Luqman menciona, dizendo que não estava nem no

Céu nem na Terra. A baleia se moveu, e a Terra se abalou e

balançou. Deus então posicionou sobre a superfície da Terra as

montanhas, o que lhe deu firmeza, permanecendo assim no


lugar .

Ibn-Abbas, Addahhak, Mujahid, Kaab e outros disseram que cada

um dos seis dias em que Deus criou o céu e a terra era como mil

anos.

... os sábios também divergem quanto ao dia e à noite: qual foi

criado antes de seu par. Alguns disseram que a noite foi criada

antes do dia. Outros disseram que o dia veio antes da noite. O


raciocínio é de que Deus (exaltado acima de tudo) estava por si

só, sem noite nem dia, e que Sua luz iluminava tudo que Ele

“O Senhor não tem


criava até Ele criar a noite. Ibn Massúd disse:

dia nem noite. A luz dos céus é a luminância de Seu rosto”. Ubaid

Ibn-Umair Alharithi relatou: “Uma vez eu estava visitando Ali

quando Ibn-Alkawwa lhe perguntou a respeito do ponto escuro na

lua, e Ali disse: ‘Era um sinal que foi apagado ’”. Em um longo

discurso que ouvira de Ibn-Abbas, que ouvira do Profeta (Deus o

abençoe e conceda-lhe a salvação), Abu-Jaafar falou da criação

do Sol e da Lua e de seus movimentos: “Eles estão sobre duas

rodas, cada uma com 360 alças, puxadas por um número igual de

anjos. O Sol e a Lua ocasionalmente caem da roda em um mar

entre o Céu e a Terra, e esse é o seu eclipse. Os anjos, então,

tiram-nos dali, e essa é sua revelação após o eclipse . ”

Ibn-Alathir, em Alkamil Fi Attarikh


[O livro completo da História]

Eu ando bem no meio da rua, sem me importar em saber para onde


vou, como um sonâmbulo. Não saio de nada e não entro em nada. O
barulho das minhas emoções conflitantes se eleva mais do que o
rugido dos jatos, que eu ignoro.
Não entendemos o Líbano. Nunca entendemos o Líbano. Não
entenderemos o Líbano. Nunca entenderemos o Líbano.
Do Líbano, vimos apenas nossa própria imagem na pedra polida.
Uma imaginação que recria o mundo à sua forma, não porque está
iludida, mas porque precisa de um lugar para a fantasia colocar o pé.
É como fazer um vídeo: escrevemos o roteiro e o diálogo; projetamos
o cenário; escolhemos os atores, o cinegrafista, o diretor e o
produtor; e distribuímos os papéis sem perceber que os personagens
da trama somos nós. Quando vemos nosso rosto e nosso sangue na
tela, aplaudimos a imagem, esquecendo que aquilo é resultado da
nossa própria fabricação. E quando o vídeo entra na fase de
reprodução, começamos a acreditar que o “outro” é aquele que
aponta para nós.
Teríamos tido a capacidade de ver, de modo diferente, algo que
nos facilitaria montar uma realidade contrária à sua própria
materialidade? Nossa moral é nossa infraestrutura. Em outras
palavras: Marx, de cabeça para baixo, colocando Hegel de pé
novamente, usando as ferramentas de Maquiavel, que abraçou o Islã
na entrada de uma das tendas de Saladino.
Seria o Líbano assim: simplesmente difícil de estudar e de
entender? Ou será que não tínhamos ferramentas para conhecer o
Líbano além dessa forma de conciliação?
Não estou caindo na armadilha de tentar responder, não mais do
que estou me forçando a um dilema: ninguém entende o Líbano, nem
seus supostos donos nem seus fabricantes, nem seus destruidores
nem seus construtores, nem seus aliados nem seus amigos, nem
aqueles que vêm até ele e nem aqueles que o deixam. Seria em
razão da realidade desarticulada não poder ser compreendida ou em
função da consciência desarticulada ser incompreensível?
E não quero uma resposta correta, não mais do que quero uma
pergunta correta.
Não vimos nada no Líbano, além de uma língua que propalou
dentro de nós um instinto de sobrevivência e uma relação de
parentesco elevada ao nível do discurso nacionalista proferido por
aquele grande egípcio, Gamal Abdel Nasser, ao se dirigir ao povo
deste continente árabe, agora transformado em mosaico, apelando à
sua aguda sensação de ausência, nomeando as margens do rio de
modo a disfarçar a lama que nele havia: seitas e escórias dos
cruzados voltando à vida na escuridão, sob os discursos
retumbantes. Mas quando a tese nacionalista ruiu, tais seitas
apresentaram seu próprio discurso, compartilhado parcialmente
entre todas.

Vídeo...
Ver o que queremos ver nesse momento em que a condição da
nossa existência se torna essa visão decorrente do grande discurso,
que tenta transformá-la numa perda de consciência, que faz com que
os representantes da maioria se tornem uma minoria sitiada.

Vídeo...
Porque este não é o tempo de profetas, no qual o isolamento se
torna uma bússola para a verdade e essa minoria decantada do
projeto da maioria, uma luz guia.

Vídeo...
Porque a Guerra de Junho, preparada para ser o fim do
arabismo, foi transformada pelos regimes árabes (que inventaram
esse mesmo arabismo) numa desculpa para neutralizar a raiva
incontrolada das ruas, em vez de em estágios iniciais de uma
alternativa baseada na vingança das ruas. Assim, confirmaram sua
opção pelo desvio na direção do regionalismo e do sectarismo.
Vídeo...
Porque o Marquês de Sidon, que aguardava a permissão do
Papa para colocar sua irmã, ou sua sobrinha, debaixo de um
muçulmano, não servia como um verdadeiro aliado contra os ingleses
que estavam cercando Acre.

Vídeo...
Porque a queda do Centro, com a assinatura de um tratado que
garante o fim das guerras, autoriza o ataque contra o “cerne da
questão”, fazendo-o passar de tema de causa a tema de ruptura e
discórdia.13

Vídeo...
A partilha do litoral e da montanha entre os árabes e os
francos,14 nestas condições contemporâneas, não visa garantir que os
árabes mantenham o que restou dos castelos e territórios para
continuar a luta, mas sim dar ao inimigo uma trégua, oferecendo-lhe
a possibilidade de estabelecer modelos que lhe garantam passar da
exceção à regra.

Vídeo...
Porque esta costela da Península, a costela fraturada, está
sendo procurada para ser julgada sob a acusação de atacar o
conforto dos tronos, promovendo palavras que são proibidas de
circular nos países árabes, tais como: mulher, oposição, livro,
partido, parlamento, liberdade, porco, democracia, comunismo e
secularismo.
Vídeo...
Porque a Palestina evoluiu de uma pátria para um slogan criado
não para ser colocado em prática, mas para ser comentado durante
os eventos, para embelezar o discurso do golpe, dissolver partidos,
impedir o cultivo de trigo, substituir a labuta por lucro rápido, e para
o aprimoramento da indústria do golpe, seja a pesada ou a leve, até
que ocorra o casamento da última descendente do califa...

E, na fronteira, uma guerra está sendo declarada.


Portanto, deveríamos ter visto no Líbano algo que a indústria da
esperança nos mostrou: os rostos radiantes e explosivos do heroísmo
daqueles que defendem seu grande desespero diante da esperança
da concha impenetrável e do ataque do mar do deserto contra a
pequena ilha da alma. Os topônimos vão se estreitando, se
estreitando e encolhendo. Da pátria que se estende do Oceano ao
Golfo e aos lugares mais estreitos — Charm-Alcheikh, Jabal-Alcheikh,
margem oeste do rio Jordão, Escola das Meninas em Nablus, o
bairro de Alchijaíyya em Gaza, Galeria Simão, Rua Asaad Alassaad
em Beirute, Taba Hotel no Sinai, Campo Bír-Alabd aqui, Campo
Chatila, Rotunda do Aeroporto — até a última barricada, atrás da
qual estará o deserto ou o mar.

Santificadas sejam as suas mãos, vocês que seguram a última pedra


e as últimas brasas.
Santificadas sejam as suas mãos, que sozinhas erguem montanhas
das ruínas da ideia órfã.
Que suas sombras queimadas se transformem nas cinzas de
uma fênix que os renove para que consigam construir, a partir dela e
de vocês, um presépio de uma criança por nascer.
Que seus nomes façam brotar alfavaca e manjericão numa
planície que se estende sob seus pés, uma planície onde um grão de
trigo pode encontrar o caminho de volta até seu solo roubado.
Vocês que brilham em nós, luas cheias moldadas com um
sangue generoso que chama os guardas do forte que fogem para se
juntarem às fileiras dos inimigos, sem resposta a não ser um eco
sarcástico: “Estão sozinhos!”.
De seus passos, que só marcham por cima ou por baixo, vamos
apanhar as ilhas que voam desarmônicas, como o poeta apanha os
raios espalhados, deixados na pedra pelos cascos de cavalos e pelas
penas metálicas dos gaviões que agora caem sobre nós, vamos
mostrar às tribos os limites de seus nomes...

... sozinhos!

Protejam, então, a lâmina do hino, como protegem o que corta o


coração neste deserto estreito, tão estreito quanto o espaço que não
dá de frente para a janela...

... sozinhos!

O mar está atrás de vocês, diante de vocês está o mar; o mar


está à sua direita, e à sua esquerda também está, e não há nada
firme exceto esta mão que segura uma pedra que é a terra...
... sozinhos!

Levantem cem outras cidades neste gatilho, para que as cidades


antigas deixem seus estábulos e o poder dos gafanhotos que
proliferam nas tendas de pele no deserto.
Guiem-nos, a fim de nos livrarmos dos cadáveres que
carregamos dentro de nós, e que não são nossos, e dos frutos podres
de uma língua que não é nossa. Vamos continuar seguindo nossos
passos, não os passos de César, que nos roubou a identidade e o
caminho...
Da morte nada restou a não ser a morte da própria morte.

Sozinhos...

Vocês que protegem a dinastia desta costa da confusão dos


significados, para que a história não seja dócil, nem o lugar seja um
legado a ser herdado. Santificadas sejam suas mãos! Vocês que
seguram a última pedra e a última brasa.

— Adeus, senhor.
— Para onde?
— Para a loucura.
— Que loucura?
— Qualquer uma, pois já me transformei em palavras...

... fui acometido por um fervor patriótico. Enquanto isso, o céu


ocupado, o mar ocupado e a montanha de pinheiros ocupada
continuam a bombardear os medos originais e a saga da saída de
Adão do Paraíso, multiplicada em intermináveis sagas de êxodo. Eu
não tenho mais país. Eu não tenho mais corpo. O bombardeio
continua a atingir as canções de louvor e o diálogo da morte que se
move no sangue, feito luz que consome as perguntas insípidas. O que
estou procurando? Uma plenitude de pólvora, uma indigestão de ira
da alma. Os mísseis penetram meus poros e saem intactos. Quão
poderosos são! Eu não sinto mais o inferno propagado pelo ar, já que
respiro as trevas e suo a geena. E quero cantar. Sim, quero cantar
para este dia esturricado. Quero cantar. Quero encontrar uma língua
que transforme a própria língua em aço para o espírito. Uma língua
anti-jatos, anti-insetos brilhantes de prata. Quero cantar. Quero uma
língua que me escore e que escore a si mesma, que eu possa apelar
ao seu testemunho e ela, ao meu, do poder que há em nós para
superar esse isolamento cósmico. E sigo andando...
Ando para me ver andando, com passos firmes. Eu, livre até de
mim, no meio da rua, exatamente no meio. Os monstros voadores
latem para mim, cospem fogo, mas sigo indiferente. Nada escuto
além do ritmo dos meus passos no asfalto esburacado. Não vejo
ninguém. O que estou procurando? Nada. Talvez seja a teimosia do
desafio o que esconde o medo da solidão; ou o receio de morrer nos
escombros, o que segura meus pés, fazendo-os pisarem firmes na
rua adormecida. Nunca vi Beirute num sono matinal tão profundo.
Pela primeira vez, vejo as calçadas, calçadas nítidas. Pela primeira
vez, vejo árvores, árvores visíveis com troncos, galhos e folhas de um
verde perene. Beirute é bonita em si mesma? O movimento, a
conversa, a multidão e o burburinho do comércio costumavam
esconder esta percepção, transformando Beirute em um conceito,
um significado, uma expressão, um significante. Esta cidade imprimiu
livros, distribuiu jornais, realizou seminários e conferências para
resolver os problemas do mundo, mas não prestou atenção a si
mesma. Estava sempre ocupada mostrando a língua, zombando da
areia e da repressão ao seu redor. Era uma oficina para a liberdade.
Suas paredes carregavam a enciclopédia do mundo moderno: era
uma fábrica de cartazes. Talvez tenha sido a primeira cidade do
mundo a alçar a fabricação de cartazes ao nível de jornal diário.
Talvez seus diversos poderes expressivos, formados de uma mescla
de morte, caos, liberdade, estranhamento, migrações e gente,
tenham ficado tão cheios a ponto de transbordar todas as formas
conhecidas de expressão, encontrando no cartaz um meio de
explicitar o que ia além do meramente cotidiano. Assim, o cartaz se
tornou um termo recorrente em poemas e histórias para indicar algo
especial. Rostos nas paredes: mártires recém-saídos da vida e das
gráficas, uma morte reproduzindo a si mesma, um mártir substituindo
o rosto de outro, tomando seu lugar na parede, até ser removido por
um terceiro, ou pela chuva. Lemas apagando lemas, mudando lemas,
eliminando lemas. Lemas que organizavam as prioridades nacionais e
os deveres cotidianos internacionais. Tudo o que se passa no mundo
também se passa por aqui. Às vezes, como reflexo; outras, como
modelo. Se dois intelectuais entram numa discussão num café em
Paris, sua disputa verbal pode se transformar, aqui, num duelo
armado. Porque Beirute tem que ser solidária e estar atualizada com
todas as novidades, com todas as antiguidades que se modernizam,
com cada novo movimento e nova teoria. Cinema de revoluções em
movimento acelerado. Filme para aplicação imediata. Um novo líder
ou uma nova estrela em qualquer campo são candidatos a serem
nomeados o líder ou a estrela de Beirute. Suas paredes estão
cobertas de imagens e palavras e os transeuntes correm ofegantes
atrás de uma consciência em contínua mutação; portanto, aqui é
breve o reinado de estrelas e de líderes, não porque o público fique
facilmente entediado, pois seu público não está realmente aqui, mas
porque a corrida se faz no padrão americano, mesmo que seus
objetivos sejam antiamericanos. Assim, temos aqui representantes
permanentes de cada nova consciência, de cada batida nova e de
cada nova tendência: desde a menina de jeans com um isqueiro
pendurado numa corrente em volta do pescoço, indicando ser da
esquerda nada moderada; ao véu cobrindo o rosto e as mãos,
indicando autenticidade; e à adoção de qualquer citação que coloque
Karl Marx no índice do Orientalismo, indicando que o vento sopra do
Leste. Esta é Beirute: a estação global da transformação de qualquer
desvio da norma em um programa de ação para um público ocupado
em garantir água e pão, e em enterrar seus mortos.
Caminho numa rua na qual ninguém está caminhando. Lembro
que caminhei antes numa rua na qual ninguém mais caminhava.
Lembro que alguém que não estava comigo me disse:
— Pare com esse diálogo e me siga.
— Para quê?
— Para ver esse homem.
— O que ele está fazendo?
— Indo para casa.
— Mas ele caminha para a frente, depois para trás.
— Esse é seu jeito de andar.
— Ele não anda. Ele balança. Ele dança.
— Observe-o de perto. Conte seus passos: um, dois, quatro,
sete, nove para frente. Um, dois, três, sete, oito para trás.
— O que isso significa?
— Que está andando. Esta é a única maneira que ele conhece de
chegar em casa: dez passos para a frente e nove para trás. Ou seja,
ele avança um passo.
— E se ele se distrair e errar a conta?
— Nesse caso, não chega em casa.
— Você está querendo dizer alguma coisa com isso?
— Não, nada...

Perto do Hotel Cavalier olhei o relógio: oito horas. Será que o poeta
Y já está acordado?15 Quem pode dormir com o rugir dessas
alcateias de aço? Estava curioso para saber como um poeta
consegue escrever, como consegue encontrar língua para esta língua.
Y escreve diariamente um poema visual, cuidadoso, capaz de
capturar detalhes reveladores de uma essência humana. Ele é um
poeta que pode persuadir a alegria a sair dos escombros e
surpreender. Quando ele escreve, torna-se desnecessário para nós
escrevermos, porque ele diz, em nosso nome, o que gostaríamos de
dizer. Ele me enche de tristeza, cuja pureza desperta em mim a
substância da felicidade. Enquanto este poeta escrever, não serei
capaz de encontrar evidências tangíveis de que a poesia atravessa
uma crise. Resumindo, ele é meu poeta. Encontrei-o pela primeira
vez em Bagdá, e logo ele tentou me matar: toma todas as bebidas
que chegam à mesa, mesmo as que só combinam para discordar! Ele
não reconhece as diferenças entre os diversos tipos. Bebida
alcoólica é bebida alcoólica. Não há diferença entre cerveja, uísque,
vinho, araq e gim. Todas enlouquecem! E quando, no final da noite,
ele me deu carona até o Hotel Bagdá, teria levado o carro e os
ocupantes para nadar no rio Tigre, não fosse por nossos gritos de
alerta.
— Não se preocupem — disse ele, acalmando-nos do susto. —
Sou atualmente um funcionário do Departamento de Irrigação.
— Irrigação?! — gritamos.
— Sim, irrigação, irrigação.
Finalmente, ele se mudou do Departamento de Irrigação em
Bagdá para o Departamento de Sangue em Beirute. Nós nos
reuníamos para ler poesia nas noites de Beirute e de Damasco e,
algumas semanas atrás, nos encontramos em uma base dos fedaíyin
em Tiro. Ontem, eu o vi perto do Hotel Plaza; na escuridão da noite,
lançando a luz da lanterna no meu rosto, ele me reconheceu e
perguntou:
— Por que você está caminhando sozinho, sem guarda-costas?
O que está fazendo aqui?
— Estou esperando um táxi para ir até a sala de comando —
respondi.

Espero pelo poeta no saguão do hotel.


Mas por que esse caracol aparece diante de mim? Um caracol
comprido. Um caracol que não hesita em mostrar sua forma flácida.
Ele brinca no sofá e nas paredes, derrama sua saliva verde sobre
uma jovem tocando piano. Um caracol que chora. Um caracol que ri.
Um caracol que se embriaga. Um caracol que entra na tela, que sai
da tela, fixa seu olhar errante em nada. Um caracol que não olha, que
desaba, balança, respira, suspira, desconjunta, vagueia. Um caracol
que se move sobre pés de borracha que flutuam. E por que este
caracol aparece para mim nesta manhã? Deus nos proteja da feiura
de tal visão!
O poeta desce de seu quarto apoiado numa sirigaita... O quê!?
Essa também! Por que eu vim até aqui? Nos abraçamos e eu dou
uma batidinha no seu ombro, para afastar dele os ares do sono.
Pergunto:
— Como você está?
— Pessimista. É um dia estranho, irmão! Inacreditável! O
bombardeio não parou um único segundo. Eles estão arando a
cidade. Onde você estava?
— No meu apartamento.
— Louco. Você é maluco, meu amigo, como você pode dormir
lá?
— Amanhã eu vou dormir aqui. Mas será que era só isso que nos
faltava, termos como resultados deste bombardeio um caracol e uma
sirigaita?
— O que você quer dizer?
— Eu não quero dizer nada.
Dez passos para a frente e nove para trás. O resultado é um
passo para a frente. Bom, isso é bom!
Outra sirigaita, assustada, pousa no meu colo, tomada por um ar
de castidade provocado pelo medo dos jatos. Assim, ela foi se
esfregando em tudo que pode ser esfregado. Eu lhe disse, brincando:
— Este será um dia longo! Eles têm mil jatos que podem fazer
dez mil ataques. Se você continuar respondendo a cada ataque com
esta esfregação, vou ficar seco, vou ficar gasto.
— Diga-me — perguntei ao poeta —, por que as garotas ficam
excitadas nas piores situações? É tempo de amor?! Não é tempo de
amor. É tempo de um desejo fugaz, quando dois corpos efêmeros
cooperam para afastar uma morte passageira com outra morte: uma
morte adocicada.
Nosso grande amigo F vem me ajudar a tirar o poeta de cima da
seguinte frase que dele caiu:16
— Irmão, isso é inacreditável. Inacreditável, irmão, isso é
absolutamente inacreditável.
Ele e esta frase se pegaram, ele a sufocou e se jogou em cima
dela.
— Ajude-me, F, ajude-me a libertar a frase da gagueira de Y —
rimos, rimos tanto que perturbamos a moça ao piano.
— Não é tempo de piano, nem de riso, nem de poesia —
dissemos a ela. — É tempo de jatos. É tempo de caracóis.
— Vocês dois estão escrevendo? — F pergunta.
— Y escreve todos os dias.
Então, ele lê para nós uma das fotos de sua câmera interna
sensível, da qual não abre mão.
— E você? — eles me perguntam.
— Estou estocando — eu digo. — Estou a ponto de sufocar.
Com isso, provoquei a ironia dos amigos que dizem:
— De que adianta a poesia... de que vai adiantar depois que a
guerra terminar?
— Eu grito num momento em que os gritos não chegam a lugar
nenhum. Eu acredito que a língua não deve entrar à força numa
batalha, onde as vozes são desiguais. Sua voz suave é melhor, Y.
— Mas o que você está escrevendo?
— Estou gaguejando um grito:

Nossas feridas são nossos nomes, é assim mesmo

caiu a máscara da máscara da máscara

caiu a máscara

você não tem irmãos, meu irmão, você não tem amigos

meu amigo, não tem um forte

e não tem água, eu lhe digo, e não tem céu, não tem remédio, não

tem lágrima, não tem velas

não tem aonde ir, nem para a frente nem para trás

cerque seu cerco, é assim mesmo

se seu braço cair, pegue-o

e bata com ele em seu inimigo, é assim mesmo

e se eu cair perto de você, pegue-me

e bata comigo em seu inimigo, agora você está livre

livre

e livre

suas feridas e partes caídas são sua munição

bata com elas em seu inimigo, é assim mesmo, eu lhe digo

Nossas feridas são nossos nomes. Nossos nomes são nossas

feridas

faça seu cerco como um louco

como um louco

como um louco

foram-se os que amamos, foram-se

agora é ser

ou não ser
caiu a máscara da máscara

caiu a máscara, e não há ninguém

além de você neste campo aberto aos inimigos e ao esquecimento

faça de cada barricada um país

não, não há mais ninguém

a máscara caiu

árabes obedeceram aos estrangeiros

árabes, e venderam suas almas

árabes, eu lhe digo, e se perderam

caiu a máscara

caiu a máscara

— Aonde vocês dois vão? — F pergunta.


— Vou para o Áden — diz Y.
— E você?
— Não sei.
Silêncio. Pesado feito metal. Éramos três, mas agora nos
tornamos um, enquanto o mundo desaba ao nosso redor. É como se
estivéssemos aqui zelando por materiais frágeis ao passo que nos
preparamos para assimilar a operação de deslocar nossa realidade,
em sua totalidade, para o domínio das lembranças que se formam
diante de nós. E à medida que nos afastamos, podemos ver nossa
transformação em lembranças. Somos essa memória. A partir deste
momento, recordaremos uns dos outros como recordamos um
mundo distante que desaparece num azul mais azul do que era antes.
Vamos nos separar no auge da apreensão. Nós três sabemos a
verdade: vamos partir. Temos ciência também de uma crueldade
ainda maior, mas que ninguém tem coragem de ser visto olhando
para ela: as pessoas estão conosco precisamente porque estamos
partindo.
— Eu não vou embora porque não sei para onde ir. Como não
sei para onde irei, não vou partir. E você? — pergunto a F.
— Eu fico. Sou libanês. Aqui é o meu país. Para onde iria?
Fiquei envergonhado da minha pergunta e do tanto que Beirute
tinha se tornado meu hino e o de todos os apátridas. Me senti
envergonhado pela grande ambiguidade da ideia.

... naquele dia, saindo Jesus de casa, sentou-se junto ao mar;

vieram até ele grandes multidões, de modo que entrou num barco

e se acomodou; e todo o povo ficou em pé na praia. Muitas coisas

ele lhes falou em parábolas. Disse: “O semeador saiu para

semear. Quando semeava, uma parte da semente caiu à beira do

caminho, e vieram as aves e a comeram. Outra parte caiu nos

lugares pedregosos, onde não havia muita terra; logo brotou,

porque a terra não era profunda, mas tendo saído o sol, queimou-

se, e como não tinha raiz, secou. Outra caiu entre os espinhos, e

os espinhos cresceram e a sufocaram. Outra caiu na boa terra e

deu fruto, havendo grãos que rendiam cem, outros sessenta,

outros trinta por um. Quem tem ouvidos, ouça .17 ”

...e partindo Jesus dali, foi para as terras de Tiro e de Sidon. E eis

que uma mulher cananeia, que saíra daquelas cercanias, clamou,

dizendo: “Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de mim, que

minha filha está miseravelmente endemoninhada . Mas ele não ”


lhe respondeu. E seus discípulos, chegando ao pé dele, rogaram-

lhe: “Despede-a, que vem gritando atrás de ”


nós . E ele,
respondendo, disse: “Eu não fui enviado senão às ovelhas


perdidas da casa de Israel . Então, ela se aproximou e adorou-o,

dizendo: “Senhor, ”
socorre-me . Ele, porém, respondendo, disse:

“Não é bom pegar o pão dos filhos e entregá-lo aos


cachorrinhos . E ela disse: “Sim, Senhor, mas os cachorrinhos

também comem das migalhas que caem da mesa dos seus


senhores . Então, disse Jesus: “Ó, mulher, grande é a tua fé. Seja

feito a ti, conforme desejas . E, desde aquele momento, sua filha

ficou sã.18

Evangelho de Mateus

E no Hotel Comodoro, o reduto dos correspondentes estrangeiros,


um jornalista americano me pergunta:
— O que você está escrevendo nesta guerra, poeta?
— Estou escrevendo meu silêncio.
— Você quer dizer que agora são as armas que devem falar?
— Sim. Sua voz é mais alta que qualquer outra.
— O que está fazendo então?
— Estou clamando pela resistência.
— Vocês vão ganhar esta guerra?
— Não. O importante é permanecer. Nossa permanência é uma
vitória.
— E depois disso?
— Uma nova era vai começar.
— E quando você vai voltar a escrever poesia?
— Quando os canhões se acalmarem um pouco. Quando eu
explodir meu silêncio repleto de todas essas vozes. Quando eu
encontrar a língua apropriada.
— Não há nenhum papel para você, então?
— Não. Não há papel para mim na poesia agora. Meu papel está
fora do poema. Meu papel é estar aqui, com os cidadãos e os
combatentes.
Alguns intelectuais encontraram no cerco um momento
apropriado para acertar pequenas contas e apontaram suas canetas
venenosas para o peito de seus colegas. Em vão gritamos:
— Larguem dessas mesquinharias! Nenhum escritor está
cercando Beirute. Não é sua frouxidão ou fuga o que está
derrubando esses edifícios sobre seus moradores. Na pior das
hipóteses, esses seus escritos não são literatura; na melhor, não são
armas antiaéreas eficazes.
— Não — eles disseram. — Este é o primeiro e o último teste
para verificar se um escritor ou um poeta é revolucionário. Ou o
poema nasce agora, ou perde seu direito de nascer.
— Então como vocês permitiram que Homero escrevesse a Ilíada
e a Odisseia? — nós zombávamos deles. — E como permitiram a
Ésquilo, a Eurípides, a Aristófanes, a Tolstói e a outros que
escrevessem? Nem todos reagem da mesma maneira, senhores
escritores! Aquele que pode escrever agora, que escreva! E aquele
que pode escrever depois, que escreva mais tarde! Se vocês me
permitem uma opinião, digo, sem acusar ninguém, que os feridos, os
sedentos e aqueles que estão em busca de água, pão ou abrigo não
lhes pedem poesia. E os combatentes não ligam para seus poemas.
Cantem se quiserem ou se calem se preferirem, pois, na guerra,
somos marginais. Podemos oferecer às pessoas outros serviços: uma
lata de vinte litros de água é mais valiosa que o próprio Vale Abqar.19
O que se espera de nós agora é o compromisso humano, não a
expressão criativa. Portanto, chega de assassinatos de caráter! Qual
o problema se um crítico tiver um colapso nervoso e deixar Beirute?
E se um dramaturgo ficar incapaz, de tanto medo, de atravessar a
rua? E se um poeta perder um pouco o ritmo? É porque o crítico não
admira sua poesia e suas peças que vocês o colocam sob cerco e o
bombardeiam com calúnias?
O meio literário árabe estava acostumado a colocar a questão
da poesia no meio de uma guerra furiosa, como resposta ao resíduo
cultural sedimentado em nós que liga o grito de guerra ao verso
comovido, considerando que o poeta tem o papel de um
comentarista dos eventos, um instigador da jihad ou um
correspondente de guerra. Em cada batalha eles clamam: “Onde está
o poema?”. A noção política da poesia se confundiu com a noção de
evento isolado do contexto histórico.
E, neste momento em particular, com os jatos arando nossos
corpos, esses intelectuais, rodeando um corpo ausente, exigem
poemas que correspondam aos ataques aéreos ou que, pelo menos,
perturbem o equilíbrio de forças. Se o poema não nasce “agora”,
então quando nascerá? E se for para nascer mais tarde, que valor ele
tem “agora”? Uma pergunta fácil e complicada, que pede uma
resposta complexa, como dizer que um poema nasce agora, num
certo lugar, numa determinada língua e num dado corpo, mas não
chega à garganta ou ao papel. Uma pergunta inocente, que exige
uma resposta inocente, exceto que, neste momento, está carregada
do desejo de assassinar o poeta que ousa anunciar que está
escrevendo seu silêncio.
É amargo ter que arrancar do tempo dos ataques aéreos esse
tempo de tagarelice, defendendo o papel do poeta cuja escrita é
única, enraizada em sua relação com a realidade conforme ela se
desenvolve. Ter que fazer isso quando tudo deixa de falar, num
momento em que o épico do povo molda sua história na criatividade
coletiva. Beirute é a escrita, criativa e estimulante. Seus verdadeiros
poetas e cantadores são combatentes, e sua gente não precisa ser
entretida ou estimulada por um alaúde de cordas partidas. Sua gente
é a verdadeira fundadora de uma escrita que, por um longo, longo
tempo, terá que procurar um equivalente linguístico ao seu heroísmo
e às suas admiráveis vidas. Como, então, a escrita nova, que
necessita do ócio, pode se cristalizar e tomar forma no auge de uma
batalha que tem o ritmo dos mísseis? E como pode o verso
tradicional — e todo verso é tradicional neste momento — definir
essa poesia nova que fermenta no ventre do vulcão? Paciência,
intelectuais! Pois a questão da vida e da morte, que agora é
suprema, a questão da vontade que empurra todas as suas armas
para este campo de batalha e a questão da existência que está
moldando sua forma divina e material são mais importantes que a
questão ética sobre o papel da poesia e do poeta. É apropriado que
honremos a reverência que esses tempos impõem; tempos que
assistem à existência humana se deslocar de uma margem para
outra, de um ciclo para outro. É adequado também que a poesia
tradicional saiba como se calar, humildemente, na presença deste
recém-nascido. E se for necessário que os intelectuais se
transformem em franco-atiradores, pois que atirem apontando para
seus velhos conceitos, suas velhas perguntas e sua velha ética. Não
estamos agora para descrever tanto quanto devemos ser descritos.
Estamos nascendo totalmente, ou morrendo totalmente...
No entanto, nosso grande amigo paquistanês, Fayiz Ahmad
Fayiz, está ocupado com outra questão:
— Onde estão os artistas?
— Quais artistas, Fayiz? — eu pergunto.
— Os artistas de Beirute.
— O que quer deles?
— Que desenhem esta guerra nos muros da cidade.
— O que você tem, Fayiz? Não vê os muros desabando? —
exclamo.

Por que vejo o pavão, esse pavão envelhecido, cambaleando com


seu bastão de marfim, armado com dois revólveres, cheio de
empáfia, bêbado de desprezo e fascinado por uma coroa de escarro?

Por que vejo esse pavão envelhecido, ladrão de penas coloridas,


me subornando com um sorriso frenético enquanto planta uma adaga
na minha medula?

Por que vejo esse pavão envelhecido arremessando sobre mim o


cheiro de suor e araq, tentando beijar meu sapato para encaixar
debaixo dele um túmulo para mim?

Por que vejo esse pavão envelhecido querendo alcançar uma


cadeira e a parede, para conseguir ver meu coração, roubar a
tristeza do limão e contrabandeá-lo para o capitão de um navio que
nunca chega, confundindo-o com a arca de Noé, que ainda não
chegou?

Por que vejo esse pavão envelhecido adornado com a ferradura


de um cavalo abatido, tomando-a por uma medalha de honra?

Por que vejo esse pavão envelhecido armado com dois


revólveres: um para me matar; outro para seu próprio traseiro
ganancioso?

Por que vejo o pavão envelhecido?


Por que vejo o pavão?
Por que vejo?
Por quê?

Meu escritório pegou fogo. Um morteiro lançado do mar o


transformou num depósito de carvão. O incêndio o destruiu algumas
horas antes de chegarmos. Onde acharemos outro lugar para
continuar a nossa conversa fiada? Nossa eterna profissão na guerra e
na trégua: a conversa. Onde podemos continuar com: vamos nos
retirar ou não? Os intelectuais, entregues ao trabalho da admirável
resistência, considerando-a sua questão, acreditam que têm o direito
de vetar a decisão política. Alguns deles estão convencidos de que a
edição do Almaaraka decidirá o destino desta batalha.20 Eles
decidiram que este púlpito valente será testemunha para a História
de que são eles que controlam sua reviravolta. Quão bonitos eles
são, quão bonitos!
São onze horas, vinte mil bombas e trinta segundos. Nós saímos
do escritório queimado, para um céu em chamas. O céu envolve a
terra com um abraço esfumaçado; pende, pesado como chumbo
derretido, um cinza-escuro cuja nulidade só é penetrada pela cor
laranja que vaza de jatos de prata que tendem para a brancura
brilhante. Aviões ágeis, ligeiros, montando com segurança o ar
franzido.
— Vamos! — diz Z.
— Aonde? — pergunto.
— Procurar alguma coisa; almoço, por exemplo.
— Qual é a situação?
— Uma lástima. As condições para a retirada são humilhantes, e
enquanto isso, fazemos manobras, tentando ganhar tempo.
— A que preço?
— A qualquer preço. Com armas antiaéreas sem munição. Com
o heroísmo de jovens que confundiram a ciência militar e
conturbaram a loucura.
— Mas até quando?
— Até que aconteça algo que não pode acontecer. Nada mudou.
Ainda estamos sozinhos.
— Adentrarão Beirute?
— Não, não vão entrar. Eles sofrerão perdas tão pesadas que
não serão capazes de suportar as consequências. Mas estão
tentando morder as bordas da cidade. Tentaram perto do museu e
falharam. O moral dos defensores está alto, muito alto. São como
demônios. Não esperam mais por ajuda de fora, não têm esperança
de uma atuação do mundo árabe e já desistiram do equilíbrio
estratégico.21 Por isso, lutam como loucos. Se a conversa sobre a
retirada já chegou até eles? Sim, mas eles não acreditam. É apenas
uma manobra, comentam e seguem lutando e percebem que o
silêncio que agora está coroando o mundo lhes oferece um palanque
a partir do qual falarão. Seu sangue, e apenas seu sangue, é o que
fala hoje em dia.
— O que devemos escrever no Almaaraka a respeito dessa
conversa de negociações e da retirada?
— Convocaremos à luta e à resistência. Convocaremos à
resistência e à luta.
Beirute de fora está cercada por tanques israelenses e pela
paralisia árabe oficial. Está mergulhada na escuridão e na
chantagem. Está com sede.
Beirute de dentro, porém, prepara sua outra realidade. Mantém-
se firme e levanta suas armas para proteger o brilho de seu
significado: capital da esperança árabe.
“Salve Beirute!”, com esse lema demoníaco, dócil e fatal como
um suave veneno, espera-se que a esperança se mate em uma
Massada22 árabe, copiada da história daqueles que estão indo para o
suicídio no auge de sua vitória. A única condição dos inventores do
slogan “Salve Beirute!” é a rendição. A rendição de uma história de
significados regados a sangue. Rendição de toda a ira. Rendição de
todas as armas. Rendição sem nenhum custo.
Mas os especialistas na indústria da chantagem sabem o
significado desse desespero e que consequências terá? Não estamos
falando aqui de uma contrachantagem. Não estamos ameaçando
derrubar o templo sobre nós mesmos, sobre nossos inimigos e
nossos aliados, mas estamos colocando na mesa de negociação
nossa única liberdade e nossa única condição: lutar.
Beirute não é refém. E em Beirute, atrás de nossas barricadas,
estamos apostando nossa vida apenas no futuro e na renovação do
sangue que circula nas veias de todas as gerações. Portanto, não
temos escolha, exceto insistir na condição atual de nossa existência:
nossas armas. Entregá-las nos desarmaria dos implementos da nossa
existência, da tutela de uma chama que acendemos em uma floresta
de nosso sangue e de continuar despertando este continente árabe
que dorme sob regimes repressivos.
Nossa resistência na inabalável fortaleza de Beirute é o único
meio para despertar o gigante árabe deitado entre as margens de
dois oceanos. É o único horizonte que surge do cano de um fuzil, do
furo na bota de um combatente e de uma ferida que ilumina essa
idade das trevas.
Assim e só assim levantaremos o cerco imposto a Beirute: com a
ira de milhões. E só assim a Beirute vista de dentro será oposta à
Beirute vista de fora. Assim e só assim costumávamos escrever, mas
o que devemos escrever agora?
— As mesmas palavras — disse Z, sem hesitação.
— Mas o que a população em geral pensa, o povo de Beirute?
— Estão com a resistência — respondeu.
— Eles estão a favor da resistência até nos retirarmos —
comentei — Podemos ignorar esse fato?
— Não — ele disse. — Não podemos ignorá-lo, mas o que
podemos fazer? O que podemos fazer?
Um som incomum, não porque é mais poderoso que outros sons,
mas porque é diferente e distante. Um som que arrebata o lugar e
corre. Um som que rasga o espaço e esburaca a luz.
— Vamos!
Há dias não passamos pela Rauche. Uma avenida larga, deserta,
dá a impressão de ser mais ampla em razão da ausência de passos.
Parece uma propriedade particular do mar. Prédios fumando. Fogo
caindo de cima para baixo. Um incêndio ao contrário. Janelas que
envelhecem e caem lentamente. Gritos de socorro dos andares
superiores chegam até nós, intensos e perfurantes. Seres humanos
sitiados pelo fogo e pelos escombros do edifício que desmorona
gradualmente depois do choque inicial. Os homens da Defesa Civil
estão ali, tentando salvar a carne humana esmagada pela hecatombe
de aço, cimento e vidro.
Não posso desviar o rosto do local ferido. O sangue no chão e
as paredes têm uma atração selvagem. Não posso ir embora nem
abafar o sentimento de impotência. Congestionamento. Os homens
da Defesa Civil pedem que nos afastemos porque estamos
dificultando seu trabalho e porque os aviões voltarão para abocanhar
esta multidão apetitosa. A água quente, dos poços de raiva retida,
molha meu rosto. Meu amigo me pega pelo braço:
— Venha! Vamos sair daqui!
Atacaram de novo. Mais uma vez, atacaram. Que dia é esse? É o
dia mais longo da história? Olho para o prédio em frente e para meu
pequeno escritório, um olhar de despedida final.
Uma onda do mar. Eu costumava acompanhá-la com o olhar, desta
varanda, enquanto se quebrava no rochedo da Rauche, famoso pelos
suicídios dos amantes.
Uma onda do mar. Carrega algumas mensagens derradeiras e
retorna para o noroeste azul e para o sudoeste azul-celeste. Retorna
às margens após ter bordado suas pregas com algodão branco.
Uma onda do mar. Eu a reconheço e a sigo com apreensão.
Vejo-a se cansar antes de alcançar Haifa ou Alandalus. Ela se cansa
e então descansa nas margens da ilha de Chipre.
Uma onda do mar. Ela não será eu. E eu, eu não serei uma onda
do mar.

Como eu amava este lugar, ameaçado de destruição desde o


início! O que você quer de presente? Plantas e rosas. Flores e
plantas. Eu fiz desse lugar uma espécie de ninho. Eu queria que fosse
como um texto numa revista: letras marrons impressas em papel
amarelo e com vista para o mar. Eu queria que fosse um vaso de
flores fixado no dorso de um cavalo indomado. Eu queria que fosse
como um poema. Mas assim que pendurava um quadro, um carro-
bomba explodia lá fora, destruindo todos os arranjos. E assim que
apoiei a cabeça na mão esquerda, esperando pelo café, o rugido de
uma explosão me levantou na posição em que eu estava —
segurando uma caneta e um cigarro — e me deixou em segurança na
frente do elevador, do lado de fora do escritório. Encontrei uma rosa
na minha camisa. Um minuto depois, tentei voltar para o escritório,
que agora, sem suas portas, tinha se transformado num espaço cheio
de vidro quebrado e papéis que voavam, mas a força da segunda
explosão me manteve perto do elevador. O jovem vigia reagiu à
explosão com tiros de sua pistola.
— O que você está fazendo? — perguntei.
— Estou disparando minha arma — respondeu.
— No que você está atirando? E em qual direção?
Talvez ninguém nunca tivesse lhe feito essa pergunta antes e foi
por isso que ele estranhou. Mas sempre foi assim! Nossa resposta
imediata, espontânea e talvez até mesmo instintiva, a qualquer
evento ou sentimento violento, seja uma notícia ou uma bola que nos
atinge, é dar tiros para o ar.
Um novo massacre perto da Rauche: mais vinte mortos, vítimas
desta nova febre, o carro-bomba, aperfeiçoado pelo Mossad e por
seus agentes locais. Esses carros pavimentaram o caminho para a
invasão. Eles prepararam o terreno psicológico para transformar este
cerco em um evento natural. Modernos Cavalos de Troia,
resmungando para o consciente coletivo que não havia segurança
nem sossego em Beirute Ocidental. Cada carro estacionado numa
calçada é uma promessa de morte. Deixe os bárbaros entrarem,
então!

Uma onda do mar na minha mão. Ela se infiltra e escorre,


escapando. Faz manobras em torno da rocha do meu peito, se
aproxima, relaxa e se rende. E para não voltar à sua natureza, agarra-
se nos pelos do meu peito. Está quente e úmido. Uma onda como
uma gata mastigando uma maçã. Ela então me beija com a
frivolidade de uma devassa:
— Eu tenho o direito de te amar e você tem o direito de me
amar.
— O amor não é um direito, gatinha, e eu tenho exatamente
quarenta anos.
— E eu sou uma meia-lua feminina seguindo um macho — ela se
retira e fica num canto.
Está quente e úmido. Mas o pequeno corpo está condicionado:
quente no inverno e frio no verão. Um corpo fresco como a praia de
um mar novo, cujo musgo ainda não foi tocado pelos pequenos
animais. Ele escorrega e se afasta; queima e se aproxima. O que me
afasta dele é o aroma do leite.
— Por que não largamos agosto sobre uma cadeira? Por que
não nadamos na brancura do sono? — ela cobre os olhos que brilham
na noite.
— Porque você é jovem.
— Eu não sou jovem — ela ruge. — Sou uma meia-lua feminina
seguindo um macho, seguindo um aroma de cardamomo. Eu não
tenho o direito de nadar?
— Mas essa brancura não é um mar.
Ela fica brava, morde uma maçã e as unhas. Eu junto os dois
lábios com meus dedos para que fiquem maiores e se tornem um
beijo.
— Aí está! Você me ama. Confesse que você me ama! Diga que
me ama! Por que então não bebe meu sal?
— Porque a sede quebra a elegância do meu espírito.
Ela fica mais brava, e volta para o canto.
— Eu não quero poesia. Eu não gosto de poesia. Eu quero um
corpo. Quero um pedaço de corpo. Covarde! Covarde!
— Eu sou um covarde pelo seu bem, não pelo meu.
— O que você tem que ver com o que me pertence? Eu sou livre
para fazer o que quero com o que tenho.
Ela para. Aproxima-se. Seu miado torna-se mais áspero:
— Dê-me algo para brincar! Dê-me um brinquedo! Qualquer
brinquedo. Um gatinho, tenso e firme, no qual possa deslizar minhas
mãos suavemente até a saliva dele escorrer sobre meu peito.
A onda estava prestes a se afogar, mas uma violenta explosão
sacudiu as rochas no mar. A onda voou para a rua, e eu voei para a
cama.

Há uma hora que não troco uma palavra com meu amigo Z. Ele está
dirigindo seu carro sem rumo.
— Onde você estava? — um pergunta ao outro.
— Eu sei onde você estava — digo. — Fale a verdade. Você não
estava fazendo algo safado com a mulher do piloto?
— Como você soube? — perguntou surpreso.
— Eu também estou voltando de algo parecido — respondo. — E
por isso sei para onde a morte nos leva.
— É hora de comer — ele diz.
— Sardinhas de novo? — pergunto.
— Qualquer coisa — ele responde.
No entanto, qualquer coisa não era uma coisa qualquer. De
repente, ele para o carro e grita:
— Um cordeiro abatido pendurado no gancho!
Estamos no início da rua Comodoro, que leva à Rauche.
Conhecemos o vendedor. Ele não age como um açougueiro, mas
como um coveiro. Ele se aproxima de qualquer líder em qualquer
funeral, afim de estar na cena e sair na fotografia.
— Quanto paradoxo há no nosso fenômeno! Sorte minha eu não
ser dramaturgo, pois teria que mostrar o outro lado da cena. Você
percebe que o olho do escritor é negativo, assim como o ouvido do
líder? É fascinado pelo contraste: uma ofensiva aqui, uma calúnia ali.
A calúnia se espalhou em nossa vida política de forma maléfica,
acompanhou o fenômeno da autoinflação, do inchaço do corpo, e a
deflação da inquietação das perguntas. Escritórios inteiros, com ar-
condicionado, foram abertos apenas para servirem de sala para as
calúnias e a disseminação de rumores. Além disso, a indústria de
mártires floresceu entre algumas das facções menores: “precisamos
de mais vinte mártires para completar a lista”. Uma luta armada se
deu em torno de um mártir cuja facção não foi identificada. Um
combatente foi executado por ter se recusado a atirar num amigo que
pertencia a outra facção; seu corpo foi jogado num poço abandonado
e lá ficou até ser descoberto por uma mulher que previa o futuro e...
Z me interrompe:
— Hoje à noite eu vou te mostrar o jogo da câmera e da sombra.
— Não estou interessado.
— Onde vamos comer? — pergunta. — Precisamos de um pouco
de carvão e um prédio mais ou menos seguro.
Ficamos surpresos quando vimos o céu azul, claro, sem nenhum
avião. Fazia um minuto que os aviões não passavam. Teriam se
cansado?
O apartamento seguro no prédio mais ou menos seguro, em
Saquiat Eljinzir, se encheu de amigos famintos. As pessoas saíram
dos abrigos.
— Nada de aviões! Nada de aviões!
— Onde estão os livros de Bakhtin? — um deles pergunta.
— O crítico que costumava viver neste apartamento partiu e
levou os livros — alguém responde.
Alguns começam a difamá-lo. Mas logo alguém diz:
— Chega! Estamos precisando de um palestino vivo interessado
em marxismo e em linguística.
Eles consideram isso um bom ensejo para a calúnia e se
preparam, mas uma tempestade de aviões sopra sobre nós, salvando
assim a reputação do crítico ausente e lançando-nos na rua.
E esse barulho? Nunca ouvimos nada igual antes. Baixo,
distante, profundo e subterrâneo, como se tivesse vindo do bojo da
terra, como se fosse o som temeroso do Juízo Final. Todos sentimos
— e já tínhamos nos tornados especialistas na ciência dos sons
assassinos — que algo incomum acontecia nesta guerra nada comum
e que uma nova arma era testada. Quando esse longo dia vai
acabar? Quando vai acabar para sabermos se estamos vivos ou
mortos?!
Aquele que estava carregando o pernil de carneiro questiona: “O
que vamos fazer com isso?”.
Ignoramos sua pergunta gananciosa. Mas ele estupidamente
continuou perguntando, enquanto estávamos ocupados procurando
algo que nos ajudasse a recolher nossas partes cortadas. Ele seguiu
até que eu disse: “Pegue esta carne, leve-a para o abrigo mais
próximo, faça um furo nela, trepe com ela e nos livre dela e de
você!”.
Mas esse barulho distante agitou em nós um medo antigo: o
medo inspirado pelas selvas primitivas. Z e eu caminhamos atrás dos
nossos medos. A cena perto da Hadiqat Assanaí parecia uma visão
do Dia do Juízo Final. Centenas de pessoas apavoradas ao redor de
um imenso caixão de pedra. Um silêncio apreensivo carregava o
peso do metal sob um sol velado por todos os tons de cinza. Nós nos
enfiamos no meio da multidão, procurando um espaço para espiar
por cima dos ombros, atrás da cerca humana unida pelo medo e pela
raiva. Então vimos:
Um prédio engolido pela terra.
Um prédio, sequestrado pelas mãos do monstro cósmico à
espreita do mundo que o homem edifica sobre uma terra que só tem
vista para uma lua, um sol e um abismo; pronto para empurrá-lo num
poço sem fundo no qual, ao chegarmos à beira, percebemos que não
aprendemos a andar, a ler nem a usar nossas mãos, a não ser para
atingir um fim por nós esquecido, apenas para continuar nossa busca
por algo que possa justificar esta comédia, para cortar o fio que ata o
início ao fim, para imaginarmos que somos uma exceção à única
verdade.
Qual é o nome dessa coisa? Bomba de vácuo. Ela cria um
enorme buraco abaixo do alvo, aniquilando sua base, e o vácuo
resultante suga-o para baixo transformando-o em cemitério. Nem
mais, nem menos. E lá embaixo, no novo espaço, o alvo conserva sua
forma. Os moradores do edifício mantêm suas formas anteriores e
seus últimos gestos sufocados. Lá embaixo, abaixo do que estava,
um momento atrás, embaixo deles, transformam-se em estátuas
feitas de carne, sem o mínimo de vida para uma despedida. Assim,
quem estava dormindo continua dormindo. Quem estava carregando
uma bandeja de café ainda a carrega. Quem estava abrindo uma
janela continua a abri-la. Quem estava mamando no peito da mãe
ainda mama, e quem estava dormindo sobre sua mulher vai continuar
dormindo sobre ela. Mas aquele que estava por acaso parado no
telhado do prédio pode sacudir a poeira da roupa e sair andando na
rua sem ter que usar o elevador, já que o teto do prédio agora está
nivelado com o chão. Por esse motivo, os pássaros permaneceram
vivos em suas gaiolas no telhado.
E por que fizeram isso? O comandante esteve ali e acabara de
sair. Mas será que saíra realmente? Nossa dúvida apreensiva o
transformou de uma figura paterna em um filho. Não tivemos sequer
tempo de formular a pergunta: “Ele estava ali. E daí? Isso lhes dá o
direito de exterminar uma centena de pessoas?”. Estávamos
ocupados com outra questão: “Será que ele realmente conseguiu
sobreviver às repetidas tentativas para assassiná-lo com jatos e
armas avançadas como a bomba de vácuo?”. Ontem, ele estava
jogando xadrez na frente das câmeras americanas para enlouquecer
mais ainda o Begin, para não lhe permitir o insulto político e forçá-lo
à vituperação racista: “Esses palestinos não são humanos. São
animais quadrúpedes”. Ele tinha que nos destituir de nossa
humanidade para justificar nossa morte, pois matar animais — exceto
cães — não é proibido pela lei ocidental. Begin estava repetindo a
história de sua loucura e de seus crimes. Imaginou que seus
soldados, os caçadores desses animais, estavam num safári. Mas
centenas de caixões foram jogados na sua cara, levantados por
milhares que gritavam: “Até quando?!”. Nós não somos humanos
porque não permitimos que ele ocupasse uma capital árabe. Porque
ele não consegue acreditar que meros seres humanos possam
impedir a “lenda” de se tornar um tribunal para julgar todos os
valores e toda a humanidade, em todo e qualquer tempo e lugar.
Uma corte absoluta e eterna. Por isso ele quer transformar a
natureza daqueles que resistiram a ele em algo não humano, em uma
natureza bestial. Trancou-se na própria lenda, para a qual acreditava
ter fechado todas as janelas a uma possível pergunta: quem
realmente é o animal? Os fantasmas daqueles que ele aniquilou em
Deir-Yassin, aqueles que ele fez desaparecer do tempo e do lugar, de
modo que, através dessa ausência, pudesse impor as condições de
sua própria presença no tempo e no lugar, estão agora assaltando
seus sonhos e seus devaneios. Esses mesmos fantasmas, que
heroicamente recuperaram sua carne, seus ossos e espírito, agora o
estão cercando em Beirute. O fantasma que foi vítima voltou a ser
um herói. E entre fantasma e herói, o profeta das falácias foi cercado
por uma obsessão que o impediu de recorrer a alguns livros do
Antigo Testamento, que poderiam, por si só, escrever a história da
humanidade.

Na sétima vez, quando os sacerdotes soaram as trombetas, Josué

ordenou ao povo: “Gritem! O Senhor lhes entregou a cidade! A

cidade, com tudo o que nela existe, será consagrada ao Senhor

para a destruição. Somente a prostituta Rahab e todos os que

estão com ela em sua casa serão poupados, pois ela escondeu os

dois homens que enviamos. Mas fiquem longe das coisas

consagradas, não se apossem de nenhuma delas, para que não

sejam destruídos. Do contrário trarão destruição e desgraça ao

acampamento de Israel. Toda a prata, todo o ouro e todos os

utensílios de bronze e de ferro são sagrados e pertencem ao


Senhor e deverão ser levados ao seu tesouro . Quando soaram as

trombetas, o povo gritou. Ao som das trombetas, e do forte grito,


o muro caiu. Cada um atacou do lugar onde estava, e tomaram a

cidade. Consagraram a cidade ao Senhor, destruindo, no fio da

espada, homens, mulheres, jovens, velhos, bois, ovelhas e

jumentos, todos os seres vivos que nela havia. Josué disse aos

dois homens que tinham espionado a terra: “Entrem na casa da

prostituta e tirem-na de lá com todos os seus parentes, conforme


o juramento que fizeram a ela . Então os dois jovens que tinham

espionado a terra entraram e trouxeram Rahab, seu pai, sua mãe,

seus irmãos e todos os seus parentes. Tiraram de lá todos os de

sua família e os deixaram num local fora do acampamento de

Israel. Depois incendiaram a cidade inteira e tudo o que nela

havia, mas entregaram a prata, o ouro e os utensílios de bronze e

de ferro ao tesouro do santuário do Senhor. Josué poupou a

prostituta Rahab, sua família e todos os seus pertences, pois ela

escondeu os dois jovens que Josué tinha enviado a Jericó como

espiões. E Rahab vive entre os israelitas até hoje. Naquela

ocasião Josué pronunciou este juramento solene: “Maldito seja

diante do Senhor o homem que reconstruir esta cidade de


Jericó .23

Livro de Josué

O comandante jogava xadrez. Ele já dominava o jogo brincando com


os nervos de Begin que balançavam como cabos elétricos suspensos
sobre o lixão do Euzaí. O que o homem cercado em Beirute cercava,
no tabuleiro de xadrez, ele não dizia. Da forma como interpretamos,
o comandante cercava mais do que um rei que estava fora do jogo e
mais do que uma peça no tabuleiro. Usando figuras de linguagem, ele
adiava os discursos fúnebres, cheios de lágrimas — reais,
democráticas e das massas —, preparados há um mês, desde que o
avanço israelense tranquilizara nossos oradores oficiais quanto ao
alcance de uma invasão, abençoada pelo silêncio sublime, proposta
para garantir a segurança da Galileia contra o desejo armado que os
filhos da Galileia carregam pela terra da Galileia.
— Ele esteve aqui há pouco tempo? Deixou o lugar?
Avistei um membro de sua comitiva que não tinha o hábito de
mentir para mim e fiquei mais preocupado.
— Ele não está aqui — sussurrou. — Foi embora. Aliás, você
também deve sair imediatamente. Uma multidão como esta só vai
atrair os caçadores aéreos para uma nova investida.
Este era o mesmo jovem que havia me encontrado alguns dias
atrás num dos escritórios da Organização e sussurrado em meu
ouvido: “Venha comigo”. Entendi o sinal e não perguntei aonde
íamos. Eu esperava qualquer coisa, exceto ver-me cara a cara com
aquele homem de feições germânicas sentado ao lado do
comandante.
— Você se lembra de mim? Eu sou Uri.24
Fiquei bravo, mas disse em tom de brincadeira:
— O quê! Vocês já entraram em Beirute, ou você foi capturado?
— Nenhum dos dois — ele respondeu. — Eu vim de Achrafiye
para entrevistar o sr. Arafat.
Fiquei ainda mais bravo, mas não fiz nenhum comentário.
Beirute estava cheia de jornalistas da imprensa mundial. Uma
entrevista para este jornalista em particular, justo agora, seria
necessária? Para cada contexto há um texto. Este não era o contexto
para tal texto. Arafat, porém, tinha outra perspectiva sobre como
gerenciar informações. Talvez ele quisesse enviar uma mensagem
direta ou fazer Begin chafurdar numa loucura mais profunda. Abu-
Ammar25 era muito mais calmo do que a mensagem que ele queria
enviar para a confusa opinião pública israelense. Quando o jornalista
lhe perguntou para onde iria após deixar Beirute, ele respondeu sem
hesitação:
— Vou para meu país. Vou para Jerusalém.
Esta frase não me afetou tanto como ao jornalista israelense,
que ficou com os olhos marejados, com lágrimas de vergonha.
— Por que não? — Abu-Ammar acrescentou. — Por que eu não
deveria ir para o meu próprio país? Por que você tem o direito de ir
para o meu país e eu não tenho o direito de ir para o meu país?
Silêncio. O diálogo terminou. A fotógrafa e a assistente do
jornalista olharam mais atentamente para o rosto do inimigo lendário.
Uma delas me perguntou:
— Onde está o seu famoso kuffiye?
— Está em todo lugar, mas agora ele está usando seu boné
militar porque está em batalha — respondi.
Ela chegou ainda mais perto dele.
— Você o acha atraente? — perguntei. — Ele é solteiro.
— Sim — ela respondeu. — Ele é muito atraente.
Quanto a mim, não gostei da entrevista, nem da frivolidade do
dono do apartamento, que empurrou sua família para a frente da
câmera israelense por nenhuma outra razão a não ser deixar sua
gente, lá, ver a imagem de sua felicidade aqui! Eu pensei comigo
mesmo: “É nosso dever saber do que sentimos saudade. Se é do
país, ou da nossa imagem fora do país, ou ainda da imagem de nossa
saudade do país, para ser vista dentro do país”.
Onde está S, o eloquente galo do bairro?26 Amante de pistolas, da
língua e da carne exposta. Não o vejo há dois dias. Teria conseguido
encontrar comida e água? Esta era minha preocupação. Desde que o
adotei, mesmo quando estamos sozinhos, ele raramente fala comigo.
Talvez acredite que eu seja seu pai. Ele deixou o bairro onde vivia
antes do cerco para dividir uma casa aqui com um rapaz libanês, de
origem siríaca. Onde está o sujeito siríaco e onde está S, o curdo?
Eles se tornaram amigos no primeiro dia do cerco. Um é tenso feito
músculo; o outro, frio como a lua. S está sempre procurando J,
enquanto J, por sua vez, busca uma maneira de desaparecer, de
transformar-se em mártir. Quando eles se encontram, se xingam e
logo saem andando pelas ruas de Hamra armados até os dentes e
cheios de si, como se protegessem o ar de ser penetrado,
defendendo-o de uma contrarrevolução. Gosto de S desde que o
encontrei há vários anos em estado de alerta contra o desconhecido.
Muito tímido para falar, fica nervoso quando se aventura numa
conversa. Decisivo, severo, não barganha nada, nem a opinião. Ele
não revela o mundo estranho dentro de si, exceto para o papel
colocado sobre um travesseiro, num mundo maravilhoso, fantasioso,
que transborda eloquência. Eu ainda não sei onde começa o
romancista e termina o poeta. Ele sacudiu a vida cultural de Beirute
como uma inesperada explosão. Defende sua escrita com unhas,
dentes e punhos também; não acredita no diálogo entre intelectuais,
considera-o baboseira. Pega sua pistola e seus músculos vistosos e
vai para o café apropriado, fica à espera de críticos menores que
escrevem nas páginas de cultura dos jornais diários; quando se
depara com um deles, repreende o sujeito pelo que escreveu contra
ele. Uma vez eu lhe disse:
— Vladimir Maiakovski costumava tratar seus críticos da mesma
forma na rua Gorky.
— Esta é a única crítica verdadeira à crítica — ele respondeu.
S estava eufórico por causa da guerra. Ela permitiu que sua
violência reprimida emergisse e se aliasse ao caos. Na guerra, ele
solta as rédeas de seus cavalos, desembainhando os cascos de um
poema que não espalha poeira, mas balas. Na guerra, ele retorna à
era das montanhas antigas, às flautas que fazem o distante dançar,
ao cavalheirismo, ao tilintar da presunção e à beleza da juventude.
Em suma, ele encontra, na guerra, um campo de batalha de ventos
que o arrebatam, como uma espada nova num duelo contra inimigos
que já passaram. Ele não entende, nunca entende, por que os
escritores escrevem na guerra. Quem lhes daria qualquer atenção
quando só o poder fala? Bate na sua pistola e ameaça: “Nós vamos
ganhar! Vamos esfregar o nariz deles na terra!”.
Na verdade, não sabia se iria ganhar de fato ou não, pois é filho
de batalhas perdidas. Nasceu contrariando o cálculo. O que importa
para ele é o desafio, o duelo. S está em algum lugar entre Dom
Quixote e Sancho, transformando inimigos em abstrações prontas, ao
alcance da mão. Ele sopra com fervor, enrola-se, estica-se, fica tenso
e bate em qualquer coisa. Então, se deixa levar pela sabedoria de J,
o cauteloso que busca filosofia na poesia e é inimigo do lirismo. S
encontrou a “mulher de beleza incomparável” em meio à falta geral
de água, carne e mulheres.
Tome cuidado, S, pois ela é criada por seu avô Dom Quixote,
descendente de lagartos que aparecem no calor, nos sulcos de uma
alma rachada de sede. Sua voz semelha à das plantas secas no
deserto das ruínas.
No entanto, S deu um grande e irreversível salto na direção de
uma autotransformação apartada de sua própria verdade,
mergulhando profundamente na comédia, a fim de conseguir o que
lhe faltava para alcançar o heroísmo: uma mulher! Onde está S
agora? Será que foi caçado por estilhaços ou foi ele quem caçou
uma galinha para dar de presente à “mulher de beleza
incomparável”?

A bomba de vácuo. Hiroshima. Um homem caçado por jatos.


Remanescentes vencidos do exército nazista em Berlim. O
acirramento do conflito pessoal entre Begin e Nabucodonosor.
Manchetes que misturam passado e presente, instando o presente a
se apressar. Um futuro vendido em bilhetes de loteria. Um destino
grego à espera de jovens heróis. Uma história comunitária, sem
donos, pronta para quem desejar herdá-la. Neste dia, aniversário da
bomba de Hiroshima, eles estão testando a bomba de vácuo em
nossa carne e o experimento é bem-sucedido.
O que me lembro de Hiroshima é a tentativa americana de fazer
Hiroshima esquecer-se de seu nome. Eu conheço Hiroshima. Eu
estive lá, nove anos atrás. Em uma de suas praças, falei de sua
memória. Quem faz Hiroshima se lembrar de que Hiroshima esteve
aqui? A intérprete japonesa me perguntou se eu tinha visto o famoso
filme, Hiroshima mon amour. Eu respondi:
— Eu posso amar uma mulher de Sodoma, por amor ou
diversão. Eu posso amar um corpo cujos guardiões podem me matar
através da janela.
— Eu não entendo — ela disse.
— São apenas ideias poéticas — falei. — Mas onde está
Hiroshima?
— Hiroshima está aqui — ela respondeu. — Você está em
Hiroshima.
— Eu não a vejo — eu disse. — Por que vocês cobriram o nome
do corpo dela com flores? Porque o piloto americano chorou mais
tarde? Ele apertou um botão e não viu nada além de uma nuvem.
Mas, posteriormente, ao ver as fotografias, ele chorou.
— Assim é a vida — disse ela.
— Mas a América não chorou — eu falei. — Ela não ficou com
raiva de si mesma. Ela estava irritada com o equilíbrio de poder.
Hiroshima é o dia seguinte. Hiroshima é o amanhã.
Não há nada no museu do crime que aponte para o nome do
assassino: “O avião veio deste lado, de uma base qualquer no
Pacífico”. Isso é conspiração ou submissão? Quanto às vítimas, elas
não precisam de nomes: esqueletos humanos despidos de folhagem.
Ramos enormes, pura forma. Formas pro forma. Algumas mechas de
cabelo indicam que ali havia uma mulher. Inscrições na parede
explicam a graduação da morte, por queimadura, fumaça, veneno ou
radiação. Exercícios preliminares para uma matança global mais
abrangente. Um plano inicial para o fim. Hoje em dia, o poder
destrutivo da bomba de Hiroshima parece um armamento nuclear
primitivo. No entanto, permitiu à imaginação científica escrever o
cenário do fim do mundo: uma enorme explosão, uma explosão
gigantesca semelhante ao início da formação do planeta, com seu
caos organizado: montanhas, vales, planícies, desertos, rios, mares,
encostas, lagos, ondulações, rochas, além de todas as belas
variações de uma terra aclamada em consagrações poéticas e
cerimônias religiosas. Depois da explosão gigante, um grande
incêndio a consumir tudo que pode servir de alimento para o fogo —
seres humanos, árvores, pedras e outras coisas incineráveis —,
dando origem a uma fumaça densa que cobre o sol por muitos dias
até que o céu comece a chorar uma chuva negra, chamada de chuva
nuclear, que envenenará tudo o que é vivo. A terra então esfriará e
voltará à Era Glacial, sendo que durante o período dessa transição
rápida para a Idade do Gelo nada permanecerá vivo, exceto ratos e
certos tipos de insetos. Uma manhã o rato vai acordar e descobrir
que ele é o ser humano que governa a terra. Um Kafka ao contrário.
E pergunto: o que é mais cruel, um humano acordar e descobrir que
é um inseto gigante ou um inseto acordar e se ver transformado num
ser humano que brinca com uma bomba atômica pensando que ela
nada mais é que uma bola de futebol?!

O céu de Beirute é uma enorme abóbada feita de chapas


escuras de metal. O meio-dia sufocante espalha sua moleza nos
ossos. O horizonte, um quadro cinza-claro, colorido apenas pelas
brincadeiras dos jatos. Um céu de Hiroshima. Eu posso, se quiser,
tomar um giz na mão e escrever o que bem entender no quadro. Um
capricho toma conta de mim. O que eu escreveria se fosse até o
telhado de um prédio alto? “Não passarão”? Mas isso já foi escrito.
“Morramos para que a pátria viva”? Isso também foi escrito antes.
“Hiroshima”? Também... Todas as letras se esquivavam da minha
memória e dos meus dedos. Esqueci o alfabeto. Lembrei apenas
dessas sete letras: B-E-I-R-U-T-E.
Vim para Beirute há 34 anos. Eu tinha seis anos à época. Eles
colocaram um boné na minha cabeça e me deixaram na Sahet-Alburj,
onde peguei um bonde. O bonde corria sobre duas linhas paralelas
feitas de ferro. Foi subindo não sei para onde. Corria nas duas linhas
de ferro. Seguia em frente. Eu não sabia dizer o que movia aquele
grande e barulhento brinquedo: se eram as linhas de ferro fixadas no
chão ou as rodas que rolavam em cima delas. Olhei pela janela do
bonde. Vi muitos edifícios com muitas janelas e muitos olhos olhando
para fora. Eu vi muitas árvores. O bonde andava, os edifícios
andavam e com eles as árvores. Tudo. Tudo ao redor do bonde se
movia enquanto ele se movia. O bonde voltou para o lugar onde
colocaram o boné na minha cabeça. Meu avô me pegou, colocou-me
depressa num carro e fomos para Damur. Damur era menor e mais
bonita que Beirute porque lá o mar era maior. Mas não tinha bonde.
“Leve-me para o bonde!” Então eles me levaram para onde tinha
bonde. Eu não me lembro de nada de Damur, exceto do mar e dos
bananais — como as folhas de banana eram grandes! Como elas
eram grandes! —, e das flores vermelhas que escalavam as paredes
das casas.
Quando voltei para Beirute há dez anos, a primeira coisa que fiz
foi parar um táxi e dizer ao motorista: “Leve-me para Damur”. Eu
vinha do Cairo e procurava os pequenos passos de um menino que
tinha dado passos maiores que ele, que sua idade e que seus pés. O
que eu estava procurando? Os passos ou o garoto? Ou os passos
das pessoas que tinham atravessado um deserto rochoso apenas
para alcançar o que eles não encontraram, assim como Kaváfis, que
não encontrou sua Ítaca? O mar estava no lugar. Empurrava Damur
fazendo-a crescer a leste. Eu tinha crescido também. Eu tinha me
tornado um poeta à procura do menino que costumava estar dentro
dele, mas que acabou largando-o em algum lugar, esquecendo-se. O
poeta envelhecia, mas não permitia que o menino esquecido
crescesse. Foi aqui que colhi as primeiras impressões. Foi aqui que
aprendi as primeiras lições, e onde a dona do pomar me beijou, e
onde furtei as primeiras rosas. Foi aqui que meu avô esperou pelo
anúncio do retorno nos jornais, que nunca aconteceu. Viemos das
aldeias da Galileia. Dormimos uma noite no charco imundo de
Rmeich, ao lado de porcos e vacas. Na manhã seguinte, caminhamos
na direção norte. Eu peguei amoras em Tiro. Então nossa jornada
terminou em Jizzin. Eu nunca tinha visto neve antes. Jizzin era uma
fazenda de neve e cachoeiras. Eu nunca tinha visto uma cachoeira
antes. Eu não sabia que as maçãs cresciam em árvores, penduradas
em galhos; eu achava que brotavam em caixas. Pegávamos pequenas
cestas de bambu e as colhíamos das macieiras. “Eu quero esta”, “Eu
quero aquela”. Eu as lavava na água dos riachos que desciam pelas
encostas das montanhas para encontrar seus caminhos entre as
pequenas casas de telhados vermelhos. No inverno, não
conseguíamos suportar o vento frio, então nos mudamos para Damur.
O pôr do sol roubava o tempo do próprio tempo. O mar contorcia-se
como o corpo de uma mulher apaixonada, até que seu grito fosse
ouvido na noite. O menino voltou para sua família lá longe, um longe
no qual ele não encontrou o lá, ao longe. Meu avô morreu com o
olhar fixo num solo aprisionado atrás de uma cerca. Um solo cuja
pele foi trocada: era de trigo, de gergelim, de milho, de melão e
melancia e se tornou de maçãs ásperas. Meu avô morreu contando
ausências, estações e batimentos cardíacos nos dedos de suas mãos
murchas. Ele caiu como um fruto proibido de um galho que escorava
sua vida. Eles destruíram seu coração. Cansou de esperar aqui em
Damur, despediu-se dos amigos, do seu narguilé, dos filhos e me
levou com ele. Voltou, mas não encontrou o lá. Enquanto, no aqui, os
estrangeiros aumentavam de número e os campos de refugiados
cresciam. Então uma guerra passou, depois duas, três e quatro. A
pátria foi ficando mais distante e os filhos e as crianças cada vez
mais longe do leite materno após terem se acostumado com o leite
da UNRWA. Então compraram armas para se aproximarem de uma
pátria que escapava de suas mãos. Recuperaram sua identidade,
recriaram a pátria e seguiram o caminho até serem barrados pelos
guardiões das guerras civis. No entanto, defenderam seus passos;
mas depois o caminho desviou-se do caminho, o órfão habitou a pele
do órfão e um campo de refugiados entrou em outro.

Não posso gravar meu nome numa pedra em Damur, mesmo


naquela usada como barricada por atiradores que queriam tirar-me a
vida. Eu não posso, eu não posso; portanto, afastem este fotógrafo
da face da pedra. Mantenham esse tipo de discurso longe de um mar
que ainda está no lugar. Eu não posso levantar o corpo do meu mártir
nos ombros de um cadáver pendente de uma bananeira. Não, eu não
posso. “Guerra é guerra” não é a minha língua. Eu não vou dizer
poesia em Damur. “O que fazer diante da separação de um campo
de refugiados do outro?” Essa pergunta não é minha. Não tenho
interesse em esculpir meu nome numa pedra em Damur, porque
estou procurando um garoto, não um país.27
Nos escombros de Damur, filhos de mártires e sobreviventes de
Tall-Azaatar encontraram mais um refúgio na cadeia de abrigos em
movimento. Eles trouxeram sua fadiga, sua decepção, as partes de
seus corpos que as facas tinham se esquecido de cortar, e vieram
para Damur. Vieram em busca de um lugar para dormir, num metro
quadrado aberto ao vento e canções patrióticas. Mas o que os
punhais primitivos esqueceram de fazer foi feito por aviões de
combate, que não pararam de bombardear essa permanência
humana. Para onde tudo isso leva? Para onde? Do massacre para o
abate, meu povo tem sido conduzido, e levado a procriar nas paradas
das ruínas, a levantar os dedos com sinal de vitória e a celebrar
casamentos.
— Têm netos, as bombas?
— Sim, nós.
— Têm avós, os estilhaços?
— Sim, nós.

Há dez anos moro em Beirute, num lugar temporário de cimento.


Tento entender Beirute, mas só consigo ficar mais ignorante de mim
mesmo. Será ela uma cidade ou uma máscara? Um exílio ou uma
pátria? Quão rápido ela começa! Quão rápido ela termina! E o
contrário é verdadeiro também.
Em outras cidades, a memória pode se apoiar num pedaço de
papel. Você aguarda num vazio branco até que uma ideia, de
passagem, pousa e você a pega antes de ela escapar. Após um
tempo, você a encontra novamente, reconhece sua fonte e agradece
a cidade que lhe deu este presente. Mas em Beirute você flui e se
dispersa. O único recipiente é a água em si. A memória assume a
forma do caos da cidade e você adota um discurso que o faz
esquecer palavras ditas anteriormente.
Raramente você nota que Beirute é linda.
Raramente, em Beirute, você precisa distinguir entre forma e
conteúdo.
Não é velha e não é nova.
Eles perguntam: “Você a ama”?
Você fica surpreso e se questiona: “Por que não prestei
atenção? Eu a amo?”.
Então, procura por uma emoção apropriada para ela. Daí você
sente tontura ou estupor. Raramente precisa ter certeza de que está
em Beirute: você está nela sem precisar de evidências e ela está em
você sem necessidade de provas. Você lembra que, no Cairo, tal
pergunta o teria levado até a varanda para verificar se o Nilo estava
lá. Após vê-lo, você saberia que estava no Cairo. Aqui, é o som das
balas que diz que você está em Beirute. O som das balas e o grito
dos slogans nas paredes.
É uma cidade ou um campo de ruas árabes montado sem
nenhum planejamento? Ou é outra coisa? Uma condição, um
conceito, uma referência, uma flor nascida de um texto, uma garota
que perturba a imaginação?
É por essa razão que ninguém foi capaz de compor uma canção
para Beirute?
Como parece fácil!
Ao mesmo tempo, como parece resistir à combinação de
palavras, até mesmo aquelas que com ela acordam e rimam: Bairut,
yaqut, tabut! [Beirute, rubi, caixão!].
Ou é porque ela se oferece para qualquer passante, o qual então
sente que ela é seu prazer particular? Apenas sua gente e os que têm
os nomes esquecidos são privados da maravilha que espanta os
outros.
Eu não conheço Beirute. Não sei se a amo ou não.
Para um político refugiado, há uma cadeira que não pode ser
trocada ou substituída. Ou, para ser mais preciso, a cadeira tem um
refugiado político que não pode trocá-la.
Para o comerciante refugiado, há uma oportunidade de
descobrir que os ventos dos anos 1950, que prometeram algo aos
pobres árabes, não vão soprar por aqui.
Para o escritor que não se encaixa mais em seu país, ou cujo
país não se encaixa mais nele, há toda a liberdade para acreditar que
é livre, sem saber em qual frente está lutando.
O ex-poeta tem a possibilidade de ter uma pistola, um guarda-
costas e uma verba, tornando-se assim chefe de gangue. Assassina
um crítico aqui, suborna outro acolá.
A jovem conservadora tem o poder de fazer seu véu desaparecer
na bolsa na rampa do avião. Depois, desaparece num quarto de hotel
com seu amante.
E o contrabandista tem que contrabandear.
E o pobre tem que ficar mais pobre.
Quem visita Beirute encontra nela sua cidade particular, e nós
não sabemos, aliás ninguém sabe, em que medida todas essas
cidades compõem a cidade de Beirute, pela qual ninguém chora —
por suas próprias memórias e interesses particulares é que todos
choram.
Talvez dessa maneira, a maneira como os árabes buscaram o
que lhes faltava nos seus países, este local de encontro de contrários
tenha se transformado nessa nomenclatura obscura, ou num pulmão
pelo qual respiram pessoas díspares, entre as quais estão o
assassino e a vítima. Foi isto que fez de Beirute o lugar do diferente,
onde muitos de seus amantes nunca se perguntaram se estavam
realmente vivendo em Beirute ou em seus próprios sonhos.
Contudo, ninguém conhece Beirute. Ninguém está procurando
por ela. E talvez ela nem esteja aqui. Foi só na guerra que todos se
deram conta de que não a conheciam, e também quando Beirute
percebeu que não era uma única cidade, uma única pátria, nem o
ponto de encontro de países vizinhos, que a contradição entre uma
janela qualquer e uma janela frontal é maior que aquela que existe
entre nós e Washington, e que a rivalidade entre uma rua e outra
paralela é mais intensa que aquela entre um sionista e um árabe
nacionalista.
Só na guerra os combatentes perceberam que a paz de Beirute
com Beirute era impossível.
E só na trégua, combatentes e observadores perceberam que
esta guerra era interminável e que a vitória, fora do equilíbrio da
derrota, era impossível.
Talvez todos tenham percebido que não havia uma Beirute em
Beirute: esta senhora sentada numa pedra é a imagem de um
girassol que segue o que não lhe pertence, arrastando igualmente
amantes e inimigos a um ciclo de ilusão de ótica, e ficando, ora do
seu lado, ora contra eles.
Ela é a forma de uma forma que ainda não se formou, porque a
guerra dentro dela, quero dizer, em torno dela, é uma competição e
porque nela o constante é variável e o permanente, transitório.
Ou: pegue uma onda, coloque-a no rochedo da Rauche e a
decomponha. Tudo o que você terá serão suas mãos imersas num
jogo mágico sem começo nem fim.

Pergunta: É um espelho?
Resposta: Na medida em que uma onda esteja apta a ser uma
pedra.
Pergunta: É uma estrada?
Resposta: Na medida em que um poema possa ser uma rua.
Pergunta: Ela conta mentiras?
Resposta: Quando se acredita no que não se pode acreditar.

Durante a longa guerra, ela esteve evidente. Parecia-me, então,


que além do sangue e do fogo, esses rostos, como aqueles refletidos
num espelho, veriam o que eles não tinham visto antes e mudariam a
fonte do seu reflexo. Parecia-me que Beirute poderia ser uma ilha no
meio da água ou do deserto, que as tribos formando um anel ao
redor da dança do fogo substituiriam a fidelidade da linhagem tribal
pela da pátria, que a ideia de pátria se tornaria parte da ideia de
nação, que a nação iria descobrir a condição óbvia da sua existência,
como se conhecesse quem é ou onde está o inimigo. Parecia-me que
esses mártires, esta nova língua e esta grande pilha de cinzas
criariam, pelo menos para nós, um sinal. Parecia-me que a
transformação começara, que a concha do regionalismo fora
quebrada e a pérola, a essência, tinha se revelado.

Então, parecia-me.
Então, parecia-me.
No entanto, o pássaro que se ergueu do sangue de Beirute e das
suas promessas começou a se perguntar: “Estou livre ou numa
gaiola?”.
Ando agora por Beirute. É a primavera de 1980. Vejo uma gaiola
feita de penas das minhas asas. Meu cantar provoca sarcasmo.

Eu me tornei o único estranho.


— Eu cometi erros?
— Sim, muitos. Saia daqui!
— A guerra acabou?
— Todos os invasores se foram, e a pátria nasceu de novo.
— Para onde devo voltar?
— Para seu país.
— Onde está meu país?
— Dentro da nação árabe.
— E a Palestina?
— A paz a engoliu.

Eu me tornei o único estranho.


— O que farei em Paris?
— O que você faz em Beirute.
— Quanto tempo vou ficar em Londres?
— Quanto tempo vai ficar em Beirute?
— Diga-me: o que aconteceu com Beirute?
— Tornou-se forte.
— O arabismo saiu vitorioso ali, ou...?
— Nem isso nem aquilo. Foram os ventos soprando que
ganharam, porque ela não foi capaz de ser uma ilha no mar ou um
oásis no deserto. Volte de onde você veio porque as ruas aqui o
rejeitam.

E eu me tornei o único estranho. Quantas vezes tenho que calar


a minha queixa: por que a pátria libanesa deve ser incompatível com
a Palestina? Por que o pão egípcio deve ser incompatível com a
Palestina? Por que o teto sírio deve ser incompatível com a
Palestina? Por que deve a Palestina ser incompatível com a
Palestina?
Como me sinto um estranho aqui, na primavera de 1980! O vento
adverte de algo, a estrada do aeroporto adverte de algo e o mar
adverte de algo. E eu me tornei o único estranho.
E nas paredes, cartazes oficiais mordiscam ainda mais
fotografias de mártires e palavras, que mantinham a pátria unida nas
novas placas de trânsito. Beirute passou por aqui. Beirute passou por
aqui. Procurei pela garota do sul que comeu sua carteira de
identidade oficial; encontrei-a praticando o hino oficial, à espera de
um veículo blindado para lhe trazer a celebração.

É a pátria...

Beirute, coroada com os artifícios da beleza, da oratória dos


protocolos contra os quais Beirute que passou por aqui rebelou-se.
Um retorno às disparidades que eclodiram a guerra dos quatro anos
torna-se agora a aspiração comum. Beirute é mais uma vez a pátria
de uma língua contra a qual havia se rebelado. Por que não? Por que
não? Por que não? E agora, de repente, a paz reina no sul, exceto
por algumas áreas ligadas à Palestina por um fio de sangue. A paz
reinaria no sul, não fosse a Palestina.
Eu vi Beirute chorar pelo sul. Quero dizer, eu vi intelectuais e
oficiais chorarem pelo sul. De repente, eles se lembraram que
Beirute é a capital do Líbano, e que o sul pertencia ao Líbano.
Lembro-me de como costumavam esquecer do sul quando os jatos o
estavam torrando. Antes do estabelecimento do Estado de Haddad,28
eles costumavam frequentar cafés e bares, bebiam cerveja e
lamentavam o sofrimento em Biafra. Naqueles dias o conceito de
pátria incomodava os israelenses, que não reconheciam uma pátria
nas fronteiras. A pátria significava, então, o dever, e o dever
significava proteger o sul dos tanques e dos jatos israelenses. O
conceito de pátria, portanto, não estava precisando de uma pátria.

— O que mudou, meu amigo?


— Os prédios luxuosos cheios de refugiados do sul, e os
refugiados não pagam aluguel.
— O que mudou, meu amigo?
— A dor nova expulsa a dor antiga, e o novo problema coloca de
lado o velho problema. E você é o último estranho.

Essas perguntas despertam o sarcasmo de uma Beirute à


procura de um novo equilíbrio para substituir o velho, e uma velha
pátria para substituir a nova. As correntes buscam as conchas das
quais saíram. Ninguém tem o direito de culpá-los a não ser na
medida em que se tem o direito de acreditar no que se acreditou.
Eles afirmam que a guerra de promessas acabou e a construção da
autoridade começou. O espelho não reflete mais nada além daquilo
que está bem na frente dele.

E este céu é uma jaula...

... que mais?


— Você tem que ser branco, pois há algo mais precioso do que a
liberdade e a própria vida.
— O quê?
— A brancura.

Contam os naturalistas que o arminho é um animalzinho de pelo

alvíssimo e que os caçadores, para capturá-lo, usam do seguinte

artifício: inteirados dos locais por onde os arminhos costumam

passar e aparecer, sujam tudo com lodo, depois acossam o bicho

naquelas mesmas direções; o animalzinho, ao perceber o lodo,

estaca, e, tomado pelo medo e o horror de se enxovalhar, deixa-se

apanhar, porque a liberdade e a vida valem para ele menos do

que sua nativa candidez.

Cervantes, da novela “O curioso impertinente”29

E o silêncio, o silêncio dos espectadores, transformou-se em tédio.


Quando o herói será quebrado? Quando será quebrado para quebrar
a sucessão do extraordinário ao ordinário? O heroísmo também leva
ao tédio quando a cena se prolonga; o entusiasmo inicial desaparece.
Aliás, esta questão do heroísmo, em si, já não teria sido empurrada
até às raias do tédio, tornando-se uma fonte de aborrecimento no
contexto de uma vida que ansiava apenas pelo comum, livre de
causas e de fortes aplausos? Talvez para que os líderes árabes
pudessem, perante tal heroísmo, declarar as causas da miséria: a
Palestina é a responsável pelo sumiço do trigo nos campos, pelo
florescimento de uma arquitetura coroada por prisões e pela
transformação da agricultura numa indústria que só produz barrigas
de uma nova classe, recém-enriquecida, preocupada com o consumo
individual, sobrecarregando o Estado com dívidas que o cidadão
comum precisaria de duas vidas para quitar. O Egito experimentou
esse ambiente de felicidade. A miragem da paz lhe prometeu que o
pão seria liberado do imposto da Palestina, que ocorreria o retorno
seguro dos mártires para suas famílias e que haveria uma refeição de
favas mais satisfatória. O luxo floresceu e os anos de noivado se
prolongaram por tempo indefinido, até a busca impossível por um
ninho de casamento chegar ao fim, e o faminto ficar mais faminto.
Sadat colocou na prisão qualquer um que perguntasse: “Qual é o
preço dessa paz?”. Até que um jovem saiu das fileiras dos próprios
seguranças para atirar no Faraó, naquela paz e naquela miragem. E
os outros? Os outros aprenderam, dispensaram a paixão de Sadat
pelo discurso e introduziram, paciente e metodicamente, a paz do
fato consumado, que exigia a vinculação do estômago árabe às
condições da benção americana. Transformaram o estômago árabe
em refém e declararam guerra, com armas e silêncio, contra o tema
do heroísmo. E, um pouco constrangidos, esperaram que os
israelenses queimassem, em nome de todos, o palco deste heroísmo
e o pódio do discurso alternativo. O heroísmo também convida ao
tédio. “Chega, chega!” E eles discordaram sobre como comercializar
esse tédio: alguns defendiam a espera de uma etapa histórica,
quando o equilíbrio de forças se colocaria em nosso favor, por meio
de uma varinha mágica, vinda de fora, o que nos garantiria o direito
de ditar condições para a guerra ou a paz; outros, querendo apressar
o fim, nos aconselhavam a ir embora, a bordo de navios americanos,
imediata e incondicionalmente; outros, também querendo apressar o
fim, instavam-nos a cometer suicídio coletivo para que eles
pudessem dominar nosso palco e o deles. “Chega! Quanto tempo
eles vão resistir? Ou morrem ou saem de Beirute. Até quando
continuarão estragando as noites dos árabes com cadáveres que
interrompem os seriados americanos que estes mesmos árabes
assistem na televisão? Quanto tempo continuarão lutando, quando
estamos no auge das férias, da Copa do Mundo e da temporada de
criação de rãs? Deixe-os limpar o caminho para nossas paixões e
nossa vergonha! Que essa comédia acabe!” Quanto a seus sábios
reverenciados com a simpatia da compaixão, eles dão ao tédio um
toque mais interessante. “É hora de perceberem que não há
esperança. Não esperar nada dos árabes. Uma nação que não
merece viver! Uma nação à imagem de seus líderes! Esta é uma
batalha perdida, que guardem seu sangue para uma outra história.”

Um silêncio coroado com tudo que esvazia a história de louros.


Cavalos ornamentais em campos de batalha acostumados às
temporadas de conquista. Um discurso imutável que anseia pela
alienação das palavras, pelo que há por trás delas. Um discurso
imutável que compõe a ferrugem acumulada na linguagem desde que
o orador subiu ao pódio. Um discurso imutável proferido por aqueles
que se dividiram e lutavam entre si por um discurso. Será que uma
cidade deste tamanho, no caos em que se encontra, tem o direito de
atribuir outro nome ao tempo? Será que tem o direito de rabiscar
sobre uma pintura pronta com todas as cores? Será que tem o direito
de se aproximar da cerca de um conflito bem cercado e definir
regras diferentes para os vizinhos do inimigo? Este é o nome e o
título deles: “os vizinhos do inimigo”. Nesse caso, “Morte a Beirute!”
significa: morte à derradeira rua fora da geometria da obediência.

Eles ficaram entediados. Entediados. Prolongou-se o prazo


estipulado para a queda do último significado, que pende como um
fruto maduro da palmeira seca dos árabes, diante de quem herda
para enterrar, não para anunciar o benefício de acumular e guardar.
“Quando eles vão parar essa loucura? Quando vão embora? Quando
eles vão desaparecer na obscuridade da areia? Quando eles vão cair,
como nós caímos, mas com uma diferença saudável: nós caímos por
cima de um trono, de tantas derrotas retumbantes para o trono,
enquanto eles caem no caixão, do heroísmo diretamente para o
caixão?”
Na algibeira do tédio há algo parecido com a sabedoria: nós, nós
somos os únicos a determinar o local e o horário da batalha, e seu
resultado. E nós não vamos lançar mão desta arma, exceto em
tempos de dureza. Quem sabe como são os tempos de dureza e de
onde vem a dureza nesta prosperidade luxuosa? Eles mesmos sabem
melhor do que nós. Pode vir de uma viela ou de uma rua que se
revolta. Mas quem vai provocar a ira dessas pessoas, cujos líderes,
viciamo-nos em difamar, inocentando-os de sua indiferença, na
esperança de curarmos a própria esperança de uma doença
incurável? Não há ninguém neste continente que saiba dizer não?
Ninguém?

Não há ninguém.

Os ministros da Defesa estavam se divertindo com a espuma do


champanhe, na companhia dos assassinos, quando as notícias
chegaram anunciando o aperto do cerco em torno de Tall-Azaatar.
Com o que estão se divertindo agora enquanto o cerco em torno de
Beirute se aperta? Nós vimos suas fotografias nas piscinas: o mês de
agosto não é quente? E vimos a fadiga de seus guardas, fortemente
armados, colhendo os sorrisos de seus senhores, que derretidos
chegavam até os joelhos, tentando devolvê-los ilesos para suas bocas
abertas, protegidas do olhar dos transeuntes e do cerco de Beirute.

Eu não fiquei aborrecido, como os outros ficaram, com as


tumultuadas demonstrações árabes de protesto que irromperam em
razão de uma arbitragem tendenciosa numa partida de futebol, nem
com o fato de o futebol provocar mais entusiasmo do que esta longa
resistência em Beirute, mas sim porque o que está reprimido no
peito árabe, e que tem múltiplas origens, encontrou uma válvula de
escape.30 No futebol eles têm a oportunidade de expressar uma raiva
crônica numa guerra moral que não ameaça materialmente a nação e
que, com certeza, após quarenta e cinco minutos, termina em trégua,
quando aqueles que lutam em lados opostos (tendo preenchido seu
arsenal com o moral necessário e o apoio público) reorganizam suas
fileiras, replanejam as linhas de defesa e de ataque, e retomam a luta
sob a supervisão de forças internacionais que proíbem o uso de
armas proscritas pela comunidade mundial. Esta guerra limitada, sob
controle rigoroso, no campo de batalha e em outros lugares, termina
então sem chegar às fronteiras de nenhum dos dois países, exceto
em casos raros, como aconteceu entre El Salvador e Honduras. Mas,
nesse caso, o Conselho de Segurança, mantendo um delicado
equilíbrio internacional, emitiu uma resolução aplicável!
E porque eu gosto de futebol, o contraste não me aborreceu
como fez com os outros. O cerco de Beirute não produziu nenhuma
manifestação árabe, enquanto os jogos de futebol deram origem a
muitas, durante o cerco. Por que não deveria ser assim? O futebol é
o campo de expressão oferecido pela cumplicidade entre governante
e governado, na cela da prisão da democracia árabe, ameaçada de
sufocar a ambos, guardas e prisioneiros. O jogo é o respiradouro,
permitindo à pátria fragmentada uma oportunidade de se juntar em
torno de algo em comum, um consenso em que, para cada equipe, o
limite das linhas e as condições do relacionamento são claramente
definidas, por mais que algumas dicas astutas escapem e por mais
que os espectadores possam projetar no jogo significados
reprimidos. Uma pátria, ou uma manifestação de seu espírito,
defendendo sua dignidade ou sua liderança diante do outro, sem que
o arranjo interno de forças perca nada de sua coesão virtual. Os
espectadores assumem seus papéis orientados a um objetivo: mirar e
marcar. E o governante que se nomeou como expressão do espírito
da nação revela uma vitória que é o produto de sua sábia política e
da energização da vontade e da disposição. Talvez seja ele, não o
jogador, o mais capaz de interpretar eventos porque ele é dono e
patrono da nação, que gasta do seu próprio bolso para incentivar os
esportes. No entanto, a situação é invertida se o resultado se desvia
do desejado e do esperado, por exemplo, quando o país é derrotado
jogando contra outro. Nesse caso, o líder nega a responsabilidade
pela derrota, ora culpando os times e a tradição, ora o treinador, ou a
má sorte dos jogadores-combatentes, ou ainda as forças externas
tendenciosas, muitas vezes representadas pelo árbitro.
Não, não, a derrota tem mais de um pai. Na política, punir o
líder por uma derrota não tem sido a tradição árabe moderna. Ele
recorre às massas para obter sua compaixão e o consolo coletivo,
implorando para permanecer no trono com o objetivo de driblar o
inimigo. Afinal, não é isso que o inimigo deseja? Que o líder caia
para que sejamos resgatados da bênção de sua presença? Vamos,
portanto, derrotar o inimigo e alcançar uma vitória sobre nós mesmos
mantendo o líder derrotado como nosso carrasco.31
No futebol, a situação é diferente. O público pode expressar sua
raiva contra os jogadores, contra o treinador e contra o árbitro
estrangeiro: os jogadores traíram o espírito da nação; o treinador
estabeleceu um plano de jogo ruim; o árbitro foi tendencioso. Quanto
ao líder, ele não será, em nenhum caso, culpado pela derrota, porque
está ocupado com outros assuntos mais, muito mais, importantes.
Por isso, a multidão com raiva, provavelmente, tomaria as ruas,
levantaria sua imagem muito, muito alto e, por debaixo dela,
escorregaria alguma liberdade de expressão: amaldiçoar o Ocidente
o quanto quiser, e acenar levemente para dentro. Isso é tudo o que
nos resta de liberdade. Vamos então renunciar a ela tão facilmente?
Isso é tudo o que nos sobra de prazer; vamos, portanto, aplaudir
esses sinais de bonança! A nação está bem, desde que seja capaz de
tal ânimo. O jogo de futebol nos diz isso. Nos diz que a emoção
coletiva não ficou atrofiada, que ainda é possível despertar as ruas
para um jogo que não cause tédio. Não era a Palestina, no passado,
quem ocupava esta mesma posição, gerando emoção e fervor
patriótico? Não foi tudo feito em seu nome, para ela, e por causa
dela?
Tudo que tocava a Palestina costumava tocar a população árabe
com tristeza, tumulto e ira; o povo derrubaria o líder por qualquer
violência feita a este coração coletivo. Mas agora os governantes
estão em uma corrida para subornar a população e forçá-la a desistir
desse consenso. O estabelecimento militar árabe se posicionou
abertamente contra a ação e a ideia palestinas, culpando os
palestinos pela miséria da nação árabe e por sua servidão. “Se não
fosse pela Palestina, a difícil de alcançar, a elusiva, a imaginada, a
que chegou cedo para o encontro distante, a que está à frente da
unidade árabe... se não fosse pela Palestina, agora teríamos mais
liberdade, mais conforto e mais luxo.” Assim, o discurso árabe oficial
transmite rumores que inspiram o tédio. Mas o povo sabe como
manobrar, ler eventos, interpretar e usar linguagem figurativa. As
prisões não são uma condição para a libertação da Palestina. Já o
slogan “Nenhuma voz pode subir acima da voz da batalha!” trouxe
apenas um significado: “Sem Palestina, sem batalha e sem voz. Viva
o chicote!”. Portanto, a questão do pão e da liberdade se infiltrou na
questão da libertação infalível, até o momento no qual os
governantes árabes traíram seu jogo ambíguo, banindo a Palestina,
mantendo-a fora da arena nacional e removendo a questão das
condições sociais do discurso da nação árabe.
A margem do futebol é a antiga margem palestina; deixe as ruas
ficarem com raiva, assim sua pergunta reprimida escapará para um
jogo que não provoca tédio ou que não dá ao governante a
oportunidade, até este instante, de fechar os portões do estádio.

Um silêncio coroado com as ilusões daqueles que até agora


foram capazes de dividir todos os lados e todas as cores em duas.
Um silêncio coroado com as ilusões daqueles que ainda
conseguem esperar por ajuda.
Um silêncio dourado com esperança vinda do lado de fora.
O silêncio daqueles que guiam a retórica da revolução para fora
de suas fontes: retórica da subserviência, controlada e
profundamente arraigada, que trocou as ruas pela capital, acusando
as outras capitais em nome das ruas, enquanto isenta sua própria
capital (o próprio limite de seu conhecimento). Uma retórica que
atribui uma capital ao mal absoluto e outra ao bem absoluto,
substituindo, sempre que precisar, sua capital por outra, sem deixar
de lado o jorro da frase revolucionária que é sinônimo da capital: “É
necessária uma capital. Uma capital é necessária!”.

Por que o Ídolo está tremendo tanto? Por que treme?


Ele dirá o oposto do que é.
Ele dirá o contrário do silêncio que o envolve.
Continuará repetindo a lição inicial.
Glorificará o fato de que a história, com seus massacres e
torturas, cumpriu suas previsões. “Eu não lhes disse?”
Mas você não disse nada, Senhor Ídolo.
Ele se infiltra no governo para ser oposição; e na oposição, para
ser governo. Ele luta contra a autoridade por meio de outra
autoridade. Ninguém o segue, de tanto que ele segue.
Esta é sua hora, Senhor Ídolo. Diga algo para continuar sendo
ídolo para sempre.
Ele dirá outra coisa depois de qualquer outra coisa.
Ele dirá que não concordou em sair de Beirute.
Ele dirá que nos disse.
Mas ele não disse nada.
Por que estou vendo o Ídolo pela décima vez? Por que estou
vendo o Ídolo?32

Um silêncio feito de ouro. Um silêncio feito de deboche. É por isso


que fiquei impressionado com a ira popular contra a conspiração
ocidental racista frente à ascensão árabe na Copa do Mundo. Foi o
único sinal de que algo se movia fora de nossas cercas de mísseis, o
único indicador de que a nação não permite ao estrangeiro ferir seu
espírito. Foi uma resposta irônica aos ministros das Relações
Exteriores árabes, chamados para uma reunião na Tunísia para
analisar a “possibilidade” de realizar uma conferência da Cúpula
Árabe para discutir a invasão israelense. Foi também uma resposta
irônica ao Estado libanês por não ter protestado contra esta invasão,
limitando-se ao papel de mediador entre o enviado especial
americano e a liderança palestina. Nós, portanto, nos perguntávamos
por que deveriam os mestres da “Cúpula do Abismo” árabe se
apressar para salvar a comida e correr o risco também de queimar os
dedos. Não há tempo suficiente para mais invasões, para engolir
mais terras e pessoas? Só faz um mês desde o início da invasão. Na
história do glorioso domínio árabe, um mês não é nada, momento
fugaz, tempo insuficiente até mesmo para formular uma resposta!
Por que então os Estados árabes deveriam se apressar — afinal, o
provérbio já dizia: “a pressa é do amaldiçoado diabo” — a entregar a
tal resposta a seus ministros das Relações Exteriores para que
passem horas difíceis em Túnis discutindo a respeito dos objetivos e
da extensão do ataque israelense? Questionarão: “Este ataque é
dirigido apenas a palestinos e libaneses ou a todos os árabes? Será
que irá além dos objetivos israelenses anunciados?”. Debaterão
também a definição de petróleo, se é uma mercadoria ou uma arma
política. Mais uma vez, acabariam entediados porque as notícias
esperadas não seriam anunciadas. A resistência ainda não morreu.
Ainda há combustível nos tanques dos aviões e há armas suficientes
para matar cinquenta mil crianças libanesas e palestinas. E ainda há,
nos depósitos americanos, um arsenal militar convencional suficiente
para aniquilar todas as cidades. E ainda há, em Beirute, água,
comida enlatada e oxigênio suficiente para manter o Movimento de
Resistência. E ainda há espaço suficiente nos céus árabes para a
passagem de lançadores de bombas israelenses. E ainda há espaço
suficiente no Mediterrâneo para mais submarinos, porta-aviões e
tratados internacionais. E ainda há muitos alvos civis em Beirute que
não foram atingidos. Portanto, para que a pressa, para quê?
E nós também gostamos de futebol. Nós também temos o direito
de gostar do jogo e direito de assistir ao jogo. Por que não? Por que
não deveríamos sair da rotina da morte por um momento? Em um
dos abrigos antibombas, fomos capazes de puxar energia elétrica de
uma bateria de carro e, em segundos, Paolo Rossi nos transportou
para uma alegria que não tínhamos. Você nunca o vê em nenhum
lugar no campo, exceto onde ele deve estar. Um diabo delgado que
só é visto depois que marca o gol. Exatamente como um avião de
caça, invisível até a explosão de seu alvo. E onde Paolo Rossi estiver
haverá gols e aplausos. Depois ele desaparece ou se desfaz, para
abrir caminhos no ar para seus pés, ocupados em inventar
oportunidades, amadurecendo-as, para então enviá-las ao auge do
desejo realizado. Não se sabe se ele está num jogo de futebol ou
num jogo de amor com a rede. A rede resiste, mas ele a seduz,
atraindo-a com cavalheirismo italiano e elegância, num quente
gramado espanhol. Ele a enfeitiça com o deslizamento de
movimentos de um gato despertado por gritos de desejo. E bem à
vista dos guardiões de sua castidade, depois que estes resselam sua
virgindade com uma membrana de dez homens, Paolo Rossi, cheio
de paixão, avança para penetrar a rede, disposta a ser tomada por
um músculo tenso no ar, ao qual ela não consegue resistir. Rende-se,
assim, a um belo arrebatamento!

Futebol.

O que é essa loucura encantadora, esse inocente prazer, que


consegue declarar trégua? O que é essa insanidade capaz de aliviar
a selvageria da guerra e transformar mísseis em moscas irritantes? E
o que é esse delírio que suspende o medo por uma hora e meia,
correndo pelo corpo e pela alma, mais arrebatador que a poesia, que
o vinho, ou que o primeiro encontro com uma mulher desconhecida?
Foi uma partida de futebol que operou o milagre quando, fora do
cerco, movimentou ruas que julgávamos mortas de medo e tédio.
No entanto, não fiquei contente com as manifestações em Tel
Aviv, que roubaram todos os nossos papéis. O assassino é deles e
deles é a vítima; eles causam a ferida e a choram também; apontam
a espada e oferecem a rosa. Deles provém a vitória e a derrota
também. Eu não fiquei contente porque sua intenção era retirar os
heróis do palco. Estavam acostumados às guerras fáceis e às vitórias
fáceis. A rivalidade entre os dois grandes partidos políticos facilitou a
tomada das ruas de Tel Aviv por dezenas de milhares de
manifestantes. E o número de baixas em suas fileiras os despertou, a
ponto de um oficial do alto escalão renunciar. Eu escutava a rádio
deles, mas não compreendia o motivo do choro. O vitorioso estava
sendo derrotado em casa. O vitorioso teme perder sua identidade
como vítima. Ninguém mais tinha o direito de alcançar tal realização
— ser a vítima — porque a inversão de papéis perturbaria uma
balança de justiça feita de areia. Em nosso lugar, eles gritaram; por
nossa causa, choraram. Ganharam guerras em razão de seu próprio
valor. Há algo mais cruel do que esta ausência: que você não deva
ser o único a celebrar sua vitória ou a lamentar sua derrota? Que
deva ficar fora do palco e nunca aparecer nele, ser apenas um tema
para outros interpretarem como bem desejarem. “Se tiverem
disposição, então não é um mito”, é o slogan sionista que Theodor
Herzl33 lançou para o estabelecimento de “uma pátria para um povo
sem terra, em uma terra sem povo”. Foi durante o cerco de Beirute,
que testemunhou a existência de um povo com uma terra
confrontando invasores que a tinham roubado dele, que Nathan Zach,
um poeta da modernidade hebraica, com ironia brilhante, modificou
o slogan de Herzl: “A vitória de Israel não decepciona, mas não vai
durar o suficiente para falhar”. Dezenas de poemas em hebraico,
porém nenhum poema árabe, tentavam expressar o cerco de Beirute
e protestar contra o massacre. Eles são os donos do pecado e do
perdão. Derramam o sangue e depois as lágrimas. Cometem os
massacres e presidem os Tribunais de Justiça.

Então, um ano chegou...

Naquele ano, os francos tomaram Jerusalém e mataram mais de

sessenta mil muçulmanos. Eles arrombaram casas, causando

estragos por onde quer que passassem. Da Cúpula da Rocha,

levaram quarenta e dois lampiões de prata, cada um pesando

mais de três mil e seiscentos dirhams. Tomaram um caldeirão de

prata, que pesava quarenta ratls sírios, bem como vinte e três

lâmpadas de ouro. Em seguida, o povo fugiu da Síria para o

Iraque, pedindo amparo ao governante supremo, o califa, contra

os francos. Quando as pessoas souberam desses eventos graves,

ficaram aterrorizadas e lamentaram. Em seguida, o califa

solicitou aos teólogos que saíssem a exortar os reis à jihad.

Assim, Ibn-Uqail e muitos outros, dentre os teólogos mais

importantes, saíram pregando entre as pessoas: “A Deus


pertencemos e a Ele devemos voltar . Porém, de nada adiantou.

Sobre este tópico, Abu-Almudhaffar Alabiury escreveu: “A pior

arma que um homem pode empunhar é uma lágrima vertida/

Quando espadas de fogo ateiam a guerra . ”

Naquele ano, o sultão Muhammad Ibn-Melkchah foi para Rai e lá

encontrou a senhora Zubaida, mãe de seu irmão Barkiariq.

Ordenou que fosse enforcada. Ela tinha quarenta e dois anos.


Naquele ano, o sultão Melkchah enviou uma carta a Alhassan Ibn-

Sabbah, um pregador da doutrina esotérica e, citando os decretos

dos juristas, o ameaçou, proibindo-o de praticar sua crença.

Quando leu a carta na presença do mensageiro, disse aos jovens

a seu redor: “Quero enviar um de vocês com ele até seu patrão . ”
Todos levantaram a cabeça com expectativa. Então, ele disse a

um deles: “Mate-se”. O jovem pegou uma faca, enfiou-a na

própria garganta e caiu morto. Então, ele disse para outro: “Atire-

se daqui . Esse imediatamente se atirou do topo da cidadela, na

trincheira, onde seu corpo foi esmagado. Então, ele disse ao

mensageiro: “Esta é a sua resposta”.

Naquele ano, os francos tomaram muitos fortes, inclusive

Cesareia e Sarruj. O rei dos francos, Kandar — que tomou

Jerusalém —, marchou para Acre, colocando-a sob cerco.

Naquele ano, um homem das cercanias de Nahawand alegou ser

um profeta e deu a cada um de seus quatro amigos o nome de um

dos quatro califas.

Naquele ano, apareceu uma garota cega que revelava os

segredos das pessoas e seus mais íntimos desejos e intenções. As

pessoas fizeram de tudo para tentar descobrir seu segredo, mas

nunca conseguiram. Testaram-na perguntando a respeito de

desenhos invertidos nos selos, de diferentes tipos de pedras e das

qualidades das pessoas. Indagaram sobre o que se encontrava

dentro de armadilhas de pássaros — as feitas de cera ou de


diferentes tipos de argila e trapos — e ela respondia a tudo

corretamente. Até que, um dia, um homem colocou a mão sobre

seu próprio membro e perguntou-lhe o que era. “Leve-o com você


até sua esposa e filhos , ela disse.

Naquele ano, Khatun, filha do rei Melkchah e esposa do califa,

visitou Bagdá e hospedou-se na casa de seu irmão, o sultão

Muhammad. Seu enxoval foi trazido no dorso de duzentos e

sessenta e dois camelos e vinte e sete mulas. E os francos

conquistaram muitas cidades, inclusive Sidon.

Naquele ano, eles lutaram na Síria e recuperaram muitos fortes

dos francos. E quando entraram em Damasco, Maudud, príncipe

de Mossul, entrou na mesquita para rezar. Ele foi abordado por

um crente da doutrina esotérica, que estava vestido como um

mendigo e lhe pediu uma esmola. Quando o príncipe estava

prestes a lhe entregar algo, o homem se aproximou e o esfaqueou

no coração; ele morreu instantaneamente.

Naquele ano, os francos enviaram uma carta na qual se lia: “É


bastante apropriado que Deus destrua uma nação que mata seu

líder na casa de adoração no dia de sua celebração . ”

Naquele ano, o califa decidiu circuncidar os filhos de seu irmão,

eram doze. Bagdá então ficou enfeitada durante sete dias de uma

maneira nunca vista antes.


Naquele ano, na terra de Mossul, caiu uma chuva magnífica,

parte da qual era um fogo ardente que queimou muitas casas. E

em Bagdá, escorpiões voadores com dois ferrões apareceram, e

as pessoas ficaram muito assustadas.

Naquele ano, um homem foi encontrado sodomizando um menino

e foi jogado do topo de um minarete. Os francos tomaram muitos

fortes na península de Alandalus. O rei Nur-Addin Ibn-Mahmud

Zanki recuperou, dos francos, muitos fortes na costa marítima. E

Saif-Addin Ghazi casou-se com a filha de Sahib Mardin Husam-

Addin Tamartach Ibn-Artaq, depois de tê-lo colocado sob cerco,

selando a paz com o casamento. A garota foi levada para Mossul

dois anos depois, mas encontrou seu marido no leito de morte.

Ele morreu sem que o casamento fosse consumado. Após sua

morte, seu irmão Qutb Ibn-Maudud assumiu o trono. Ele se casou

com a garota.

Naquele ano, uma chuva de sangue caiu no Iêmen e chegou a

tingir as vestes das pessoas.

Naquele ano, um galo botou um ovo, um falcão botou dois e uma

fêmea de avestruz botou um ovo sem ter tido um macho. Houve

também uma grande batalha entre Nur-Addin Achahidi e os

francos. Ele os derrotou, matando muitos deles.

Naquele ano, um forte vento com fogo soprou após a oração da

noite, e as pessoas ficaram preocupadas que a hora final tivesse


chegado. Houve um terremoto. A água do rio Tigre ficou

vermelha. Na terra de Wassit, um sangue, de origem

desconhecida, apareceu. E os francos tomaram Asqalan.

Naquele ano, o custo de vida aumentou vertiginosamente em

Khorassan, e as pessoas se alimentavam até de insetos. Uma

delas matou um alauita, cozinhou-o e vendeu sua carne no

mercado. Quando seu feito se tornou conhecido, ela foi morta por

isso.

Naquele ano, enormes pedras de granizo caíram no Iraque, cada

uma pesando quase cinco ratls. Algumas chegavam a nove ratls,

pela escala de Bagdá. As sepulturas cederam e os mortos

flutuaram sobre a água. O rei dos francos veio marchando na

direção de Damasco com muitas legiões, mas Deus o fez

regressar de mãos vazias.

Naquele ano, também, Afif Annasikh falou: “Eu vi em sonho


alguém dizer: Quando três cincos se juntarem, o califa Almuqtafi

morrerá ’”. Isto é, quinhentos e cinquenta e cinco.

Naquele ano, Saladino escreveu aos vários príncipes, culpando-

os por firmar tréguas com os francos, pagando-lhes tributos,

apesar de eles serem inferiores e servis. Ele os comunicou sua

intenção de ir à Síria para protegê-la dos francos; e eles lhe

responderam com uma carta grosseira e palavras rudes, mas ele

não lhes deu atenção.


Naquele ano, o honorável juiz Alfadil também enviou, pelo

pregador Chams-Addin, uma carta aos príncipes em nome do

sultão, uma carta extraordinária, eloquente, de bom tom, na qual

afirmava: “Somos nós que seguramos o fogo em nossas mãos,

enquanto outros se beneficiam da luz. Somos nós que

encontramos água, enquanto outros dela se saciam. E nós

recebemos as flechas em nossa garganta, enquanto eles caem


fingindo a morte . Quando receberam a carta, escreveram uma

resposta rude.

Naquele ano, o rei dos ingleses enviou uma carta para Saladino

dizendo ter trazido aves de rapina do exterior, com a intenção de

enviá-las a ele, mas que estavam muito fracas. Ele pediu algumas

galinhas e outras aves para alimentar as suas aves, para que

pudessem recuperar a força. Saladino entendeu que ele estava

pedindo essas coisas para aliviar sua própria fome. Então,

generosamente, enviou-lhe uma grande quantidade de aves. Em

seguida, o rei inglês pediu frutas e gelo, que Saladino também

forneceu. Mas esta bondade foi em vão, pois assim que o rei

inglês se recuperou, voltou à maldade de antes. O cerco de Acre

se intensificou, noite e dia. Os habitantes da cidade enviaram

uma mensagem ao sultão para dizer que se nada fosse feito pela

manhã eles pediriam trégua e segurança aos francos. Foi difícil

para o sultão aceitar isso.

Naquele ano, uma trégua foi assinada após uma guerra que durou

trinta anos e seis meses. Os francos manteriam as terras


costeiras, e os muçulmanos, as montanhesas, enquanto os

distritos entre ambas seriam divididos meio a meio.

Ibn-Kathir, em Albidaya wa annihaya


[O início e o fim]34

... os francos não têm nenhum zelo nem dignidade. Um deles pode

estar caminhando ao lado de sua mulher, encontrar com um

homem que a pegue pela mão, e ver esse homem se afastar para

conversar com ela. O marido fica parado, de lado, esperando sua

esposa concluir a conversa. Se ela demorar, ele a deixa sozinha

com o sujeito e vai embora.

Aqui está a ilustração de um fato que eu mesmo testemunhei:

Quando eu visitava Nablus, sempre me hospedava em um

alojamento para muçulmanos, que ficava na casa de um homem

chamado Muazz. A casa tinha janelas que abriam para a rua. Do

outro lado da rua morava um franco que vendia vinho aos

mercadores. Ele colocava um pouco de vinho numa garrafa e

anunciava gritando: “O comerciante fulano de tal acaba de abrir

um barril cheio deste vinho. Aquele que quiser comprar um pouco


dele vai encontrá-lo em tal e tal lugar... . Um dia, este franco, ao

chegar em casa, encontrou um homem com sua esposa na cama.

Ele então perguntou ao intruso:

— Por que motivo entrou no quarto da minha esposa?


— Eu estava cansado, então decidi descansar — o homem

respondeu.

— Como assim? — perguntou ele. — Você está deitado na minha

cama!
— Quando encontrei essa cama arrumada, decidi dormir nela —
respondeu.

— Mas minha esposa está dormindo com você! — disse o franco.


— Bem, a cama é dela. Como eu poderia impedi-la de usar a
própria cama? — disse o homem.

— Juro pela verdade da minha fé — falou o franco —, que se você


fizer isso de novo, nós brigaremos.

Esse foi o máximo de sua desaprovação e o limite de seu ciúme.

Outra ilustração:

Tivemos conosco um habitante de Almarra que tomava conta dos

hammam e cuidava do hammam de meu pai, que a misericórdia

de Allah repouse sobre sua alma. Este homem contou: “Certa vez

abri um hammam em Almarra para ganhar a vida. Um cavaleiro

franco entrou. Os francos desaprovam quem coloca um pano em

torno da cintura enquanto está no hammam. Então este franco

estendeu o braço e arrancou meu pano, atirando-o longe. Ele

olhou e viu que eu tinha recentemente raspado meus pelos. Então

gritou: ‘Salem!’. Quando me aproximei dele, ele apontou até


minha virilha e disse: Salem, isso é bom! Pela verdade da minha


religião, faça o mesmo para mim . Deitou-se de barriga para cima

e eu vi que naquele lugar ele tinha algo igual à sua barba. Então,

raspei tudo. Quando ele passou a mão no lugar, encontrando-o


liso, disse: Salem, pela verdade da minha fé, faça o mesmo para


al-dama , referindo-se à sua esposa — na língua dele, al-dama

‘ ’
significa a senhora . Ele então disse a um servo: Diga à al-dama ‘
para vir ’
aqui . Assim, o servo foi buscá-la e a conduziu ao

hammam. Ela também deitou-se de barriga para cima. O

cavaleiro repetiu: ‘Faça o mesmo que fez para mim . Então eu ’


raspei todo aquele pelo enquanto o marido, sentado, me olhava.

Por fim, ele me agradeceu e me entregou o pagamento pelo


serviço .

Considere agora essa grande contradição! Eles não têm nem zelo

nem dignidade, mas têm enorme coragem, a qual só provém da

dignidade e da altivez.

Ussama Ibn-Munqith, em Kitab ali‘tibar


[Livro dos exemplos]35

As horas da tarde. Cinzas feitas de vapor e vapor feito de cinzas. O


metal é o senhor do tempo; nada corta o metal, exceto outro que
forjará uma história diferente. O bombardeio atinge tudo e parece
não haver fim para este dia. Agosto é o mês mais cruel. Agosto é o
mês mais longo. E hoje é o dia mais cruel, o mais longo de agosto.
Este dia não vai terminar? Eu não sei o que está acontecendo nos
arredores da cidade, porque o rugido do metal colocou uma barreira
entre nós e o silêncio ensurdecedor de nossos irmãos árabes. Uma
barreira entre nós e o silêncio dos reis, dos presidentes e dos
ministros da Defesa, que estão ocupados em não ler o que leem.
Nada mais temos, exceto a arma da loucura. Ser ou não ser. Ser ou
ser. Não ser ou não ser. Nada resta, exceto a loucura.

faça seu cerco como um louco

como um louco

como um louco

foram-se os que amamos, foram-se

agora é ser
ou não ser

Uma história cuja forma e cujos cronistas estão mudando. Uma


história que escreve a imagem de um rio. Quem, então, escreverá a
história do fundo, a história do musgo? Quem escreverá a história do
nascimento do inimigo a partir do irmão e a entrada do irmão no
inimigo? O que faz esse caracol aparecer na minha cara de novo?
Um caracol carregando o fardo de sua saliva verde. Um caracol
segurando uma parede e impedindo-nos de nos aproximarmos de
outra parede regada com nosso sangue, para que ele — o caracol —
possa subir ao trono. Nós, os fartos do excesso da morte que não é
nossa, estamos mesmo agora defendendo o que não nos pertence. E
essa estrada que leva à montanha não é nossa, nem é este o
palanque que será ocupado pelo caracol para se vangloriar diante de
outras nações de uma história que não é dele — uma história
roubada do herói que precisava de um lugar sobre o qual pudesse
pôr o pé. Por que o caracol apareceu na minha cara de novo hoje?
Que sucumba este dia! Que termine!

... sentado num canto distante, longe dos outros e de mim


mesmo, pensando no que me chegou do sonho que nasceu de um
sonho. “Você ainda está vivo?” Quando isso aconteceu? A memória
me protegerá dessa ameaça? Será que o Lírio do passado será
capaz de quebrar esta espada adornada de bombas? E por que ela?
Por que ela? Por que o Lírio-do-vale saiu do “Cântico dos Cânticos”,
tendo feito o sol e a lua estacionarem sobre os muros de Jericó, para
que os tempos de abate, de matança, se estendessem?
Um tanto para a infância e outro tanto para a luxúria. Um corpo
feito para o perdão e um corpo feito para a lascívia. O mármore da
fala derrete para polir o louvor de pernas que dividem o cemitério em
dois jardins: um para o passado; outro para o sonho. O primeiro
relâmpago reluz nos ossos jovens. Quantas mulheres é você, ó
aglomerado celestial descalço? Quantas mulheres há em você, para
que eu possa despencar no congestionamento da minha alma e ser
salvo no nascimento de um instante? Quantas mulheres é você para
que o tempo entre no tempo e retire um fio de seda que me escolha
para as forcas do sangue? Quantas mulheres há em você, para que o
momento possa, em dois pés — selos do céu e do inferno —, tomar a
forma de uma história de oração e luxúria? Quantas mulheres é você,
para que a história deste ventre, amaciado com a fragrância de
jasmim e a cor perdida entre a luz e o leite, possa se tornar a história
de batalhas travadas para defender a juventude e os quarenta anos?
Quantas mulheres é você, para que eu possa trazer de volta um
inverno já passado com tudo que carrega de chuva, para que das
suas gotas eu possa coletar algo daquilo que conheci e, assim, ser
capaz de comparar um prazer ao outro? Estávamos realmente juntos,
deitados na lã daquela terra? Eu trago de volta o que não foi
desperdiçado de um tremor que abala os quartos, quando o que
pode ser renovado dentro de nós me une ao pensamento de que
estou com você. E eu não disse “eu te amo” porque não sabia se eu
te amava tanto, já que continuava escondendo meu sangue sob sua
pele e derramando o tolo mel de abelhas nos capilares do santo
sacramento — sacramento que me absorveu até eu ver que meu
corpo estava em um momento de nascimento contínuo. E você não
me disse “eu te amo” porque eu não acreditaria que todas as
mulheres nascidas no Monte Gilead, na Suméria e no Vale dos Reis,
tenham vindo se juntar a mim nesta noite. Quantas mulheres há em
você, para que meus sonhos possam prantear o que as nações
perderam, um inverno de quem você merece ser mãe e senhora? Em
cada mulher bonita há uma dádiva de mandamentos dos teus pés
para a terra e uma herança que não deixa de abastecer as florestas
com a histeria das ervas. Quem dera um de nós odiasse o outro para
que o amor fosse acometido pelo amor! Quem dera apenas um de
nós se esquecesse do outro para que o esquecimento fosse
acometido pela memória! Quem dera um de nós morresse antes do
outro para que a loucura fosse acometida pela loucura!

“Leve-me para a Austrália”, disse ela. Percebi então que tinha


chegado a hora de nos afastarmos da discórdia e da guerra. “Leve-
me para a Austrália” foi porque eu não podia ir para Jerusalém. Eu
havia saído da Guerra de Junho com uma determinação que não teve
dó de mim: derrotar exércitos, fazer a abelha em meu coração
permanecer firme para que o espírito fosse vitorioso sobre mim e
meus inimigos. A mocidade e o lirismo me abriam outra trilha numa
montanha com vista para os campos da história: ossos de cavalos,
armaduras perfuradas e ervas. A partir dessa vista, o real diminuiu e
a onda não servia mais como endereço para o mar; então eu protegi
a mim mesmo, e talvez a outros, do tumulto do momento, ao passar
de mártir a testemunha.

Mas por que estou me lembrando dela neste inferno e a esta


hora da tarde, e neste bar-abrigo? Seria em razão de a mulher
sentada na minha frente estar reencenando a cena do grito? Será
que um sonho a tirou do meu sonho ao amanhecer? Eu não sei;
exatamente da mesma forma como não sei por que me lembro da
minha mãe, da primeira lição de leitura, da minha primeira garota sob
o pinheiro, e do nó da flauta que me perseguiu por vinte e cinco
anos. O círculo retorna ao seu ponto de partida.

Um mataria o outro do lado de fora da janela.36

— Não me morda como uma maçã. Temos ainda toda esta noite.
Leve-me para a Austrália, onde não há ninguém de nós lá, nem
mesmo eu e você.
Ela colocava lenha no fogo enquanto a canção repetia: “Suzanne
está te levando para a casa dela perto do rio”. A letra da música era
bonita, e a voz mais lia do que cantava um poema que não chegava a
nenhum lugar. Um ser humano sozinho num deserto. Um ser humano
que fala para se manter unido, para se proteger da solidão, para
conseguir se encontrar.
— Quando você vai me beijar?
— Quando eu acreditar que posso acreditar que esses lábios
estão abertos para mim.
— Para quem seria?
— Para uma voz que chega de um planeta distante. Você sabe
que seus olhos são capazes de colorir a noite com qualquer cor que
você deseje?
— Me beije!
Do lado de fora da janela, chuvas; do lado de dentro, brasas.
— Por que está chovendo tanto?
— Para você ficar dentro de mim.
Paixão gerando paixão. Chuva que não parava. Fogo que não se
apagava. Corpo que não acabava. Desejo que iluminou os ossos e a
escuridão. Nós dormimos só para sermos despertados pela sede do
sal, pelo mel e pelo cheiro dos grãos de café levemente queimados,
assando sobre o mármore quente.
Fria e quente é esta noite. Quente e frio, este gemido. Brunido
estou pelo calor de uma seda que não enruga, que se estica ficando
mais tensa conforme se esfrega contra os poros da minha pele, e
grita. O ar, agulhas de saliva quente entre meus dedos. Nos ombros,
uma cobra elétrica desliza e se alonga em direção às brasas. Uma
boca que devora as dádivas do corpo. Nada resta da linguagem
exceto os gritos dos quartos trancados onde animais domésticos
estão em guerra. Então o suor esfria o ar e nos faz tremer.

Um mataria o outro do lado de fora da janela.

São cinco da tarde. Chamo o garçom:


— Mais cerveja! S passou por aqui?
— Não o vejo há dois dias.
— E a lagarta?
— Ela perguntou por ele e foi embora.
— E o professor de línguas semíticas antigas?
— Não passou ainda.
— E o poeta cheio de eloquência vazia?
— Saiu há pouco tempo.
— E o professor de inglês da Universidade Americana?
— Veio de manhã.
— E o líder aposentado?
— Não apareceu.
— E a delegação internacional do Crescente Vermelho?
— Eles vêm e vão.
— Me dê um pouco mais de cerveja! Onde está o garçom
paquistanês?
— Ele só vem à noite.37

Talvez a mulher sentada à minha frente tenha notado o que eu


furtava de suas pernas e por isso as esticou, forçando-as sobre meu
desejo sedento. Peço mais cerveja.

— São cinco da manhã, minha cara.


— E será que o árabe sente sono? — ela perguntou brincando.
— Quanto a mim, não quero dormir.
— Sim. O árabe fica com sono e está tentando dormir —
respondi.
— Durma, então. Eu vou guardar seu sono.
— O lilás de seus olhos claros vai me acordar. Você percebe que
seus olhos podem levar qualquer menino irrequieto a adorar a
quietude?
— E o que fariam a um homem?
— O levariam ao cavalheirismo.
— Durma — repetiu.
— A polícia sabe o endereço desta casa? — eu perguntei.
— Acho que não, mas as forças de segurança, sim. Você odeia
judeus?
— Eu te amo agora — eu disse.
— Essa não é uma resposta clara — ela afirmou.
— A pergunta em si não foi clara. É como se eu perguntasse:
“Você ama árabes?” — respondi.
— Isso não é uma pergunta — ela disse.
— E por que a sua pergunta é uma pergunta? — perguntei.
— Porque nós temos um complexo. Temos mais necessidade de
respostas do que vocês — ela disse.
— Você é tola?
— Um pouco. Mas você não me disse se ama ou odeia judeus —
ela disse.
— Não sei e não quero saber. Mas eu sei que gosto das peças
de Eurípides e de Shakespeare. Eu gosto de peixe frito, de batatas
cozidas, da música de Mozart e da cidade de Haifa. Gosto de uvas,
de conversa inteligente, de outono e da fase azul de Picasso. E eu
gosto de vinho e da ambiguidade da poesia madura. Quanto aos
judeus, eles não são uma questão de amor ou ódio.
— Você é tolo? — ela perguntou.
— Um pouco — respondi.
— Você gosta de café? — perguntou.
— Eu amo café e o aroma do café — respondi.
Ela se levantou nua, até mesmo de mim. Senti a mesma dor de
quem tem um membro arrancado.
Silêncio.
— Volte rápido! Volte do aroma do café! Algo de mim falta. E eu
não posso. Não posso.
— O que deu em você?
— Tudo terminou?
— O que deu em você?
— Não consigo voltar a mim mesmo.

Um mataria o outro do lado de fora da janela.

— Leve-me para a Austrália.


— Leve-me para Jerusalém.
— Eu não posso.
— E eu não posso voltar para Haifa. Com o que você costuma
sonhar?
— Eu geralmente não sonho. E você? Com o que você sonha?
— Sonho deixar de te amar.
— Você me ama?
— Não, eu não te amo. Sabia que sua mãe, Sarah, levou minha
mãe, Hagar, para o deserto?
— Que culpa eu tenho? É por isso então que você não me ama?
— Não. Você não tem culpa e por isso eu não te amo. Ou, eu te
amo, minha cara, minha linda, minha rainha! Agora são cinco e meia
da manhã, eu tenho que voltar para eles.
— Para quem?
— Para a polícia de Haifa. Preciso provar que existo às oito da
manhã.
— Provar que você existe?
— E às quatro da tarde.
— E à noite?
— À noite, eles vêm sem hora marcada, só para ter certeza de
que eu existo.
— E se você não estiver em casa?
— Serei responsabilizado por qualquer incidente que vier a
ocorrer no país, desde as colinas do Golã até o Canal de Suez.
— E qual é a punição?
— Só minha ausência da casa à noite significa uma sentença de
cinco anos pelo menos. Mas se ocorrer um incidente maior durante
tal ausência, a punição será uma sentença de prisão perpétua.
— E o que você vai dizer no tribunal?
— Eu vou dizer que eu estava aqui, revivendo o “Cântico dos
Cânticos”.
— Você é louco?
— Louco...
— E você não me ama?
— Eu não sei.

E um mataria o outro do lado de dentro da janela.38

E lá, no canto mais distante, vejo a égua nascida da poesia


panegírica dos árabes. Uma égua desafiando o desconhecido, uma
égua desafiando a língua. Uma égua emana da gota de luz cintilando
sobre um campo aberto pela vibração de duas cordas de um violão,
anunciando a união festiva dos cavaleiros mortos. Cúpulas,
minaretes, torres e o próprio infinito seguem a sombra da mulher
apaixonada — uma sombra que se move em direção à lança trêmula.
Vou virar as costas para as adagas e acariciar o musgo da manga.
Em seguida, vou cair da grande altura da morte, guardado por
hortelã e estilhaços que não permitem que ninguém se aproxime,
nem que seja por dois passos, do espaço aberto: o amor é você
hesitar. O amor é ser mais generoso ao dar vitalidade ao espírito. E o
amor é não escutar de você nada além do gemido. O ar pode ficar
sólido, o mar pode fazer ameaças e você pode arremessar a munição
de um corpo extremamente temeroso para firmar esta porta frágil de
madeira. Suba cento e doze degraus, deixe sua respiração ofegante
derramar-se num relinchar exausto. Deixe-me limpar seu suor com
minha pele designada a cumprir este dever apenas. Vou chamá-la de
P, porque você é o prelúdio da precipitação, o prelúdio do profundo,
o prelúdio do paraíso e de todas as paixões que podem ganhar a
guerra com um ato de amor que só se dá no medo da morte. Deixe
sua filha brincar com o professor de química e venha para este
observatório de mísseis. Vamos vigiar os felinos que há em nossos
corpos. Seu pé é polido como uma pedra na chuva de inverno nas
montanhas, uma pedra que perfura minha cintura, levando-me a
querer gritar como grita o vinho nos porões dos mosteiros. Ainda
assim eu não grito, para que você não pense que existe outra coisa
além do cerco que dói em mim. Eu não respondo sua saudação
porque conspirei com minha história contra a minha paixão pela
primeira mecha de cabelo que me quebrou. E porque o desejo
também usa máscara, porque o jogo precisa durar mais um ano. Eu
me cansei da minha máscara, do meu jogo e da sua fadiga, portanto,
pare de bater as pedras da rua com um relinchar que cava fundo
dentro de mim. Cansei de acidentes de trânsito inapropriados para
esta guerra, como o esbarrão do meu ombro esquerdo contra o seu
ombro esquerdo em uma cena infantil. É uma vergonha morrermos
de amor em tempos de guerra. Se eu a amo? Eu não a amo se o
amor durar mais do que o disparo de um tiro numa medula espinhal.
E eu a amo se o amor é a rendição à tempestade de raios que me
atinge de repente. Venha, vamos tentar achar a resposta. Venha,
vamos fazer a pergunta. Nada foi deixado para quem está sob cerco
neste último canto do mundo, a não ser soltar o gênio da volúpia da
prisão das palavras e do ouro. É totalmente injusto partirmos sem
termos aderido um ao outro. E é injusto devolver o olhar no meio do
caminho para olhos que derramam mel sobre o fogo. Seus olhos são
capazes de ferir uma pedra e no meu sangue eles espalham a
sensação de formigas andando. Quando então vou reunir essas
formigas e devolvê-las a você, à casa das formigas, para que eu
possa parar de coçar o meu sangue com a visão de uma perna em
cima de outra. Saia pela porta e vá para a esquerda, depois, vire à
direita. Ali vai encontrar um enorme cinamomo, uma árvore solitária
que a levará a uma pequena praça. Atravesse-a e siga o aroma do
cardamomo até a entrada do edifício, como um tubarão segue o
cheiro do sangue. Siga os gritos do meu sangue e suba cento e doze
degraus. Você vai encontrar a porta aberta, eu estarei do outro lado,
torrado pela espera e pronto para morrer de pé com você, de pé em
você, até que um míssil nos separe. Só assim, então, nos
sentaremos. Bata na pedra dos degraus com seus passos, como seu
salto alto faz com as bordas do meu coração, deixando um pequeno
pedaço para os cães na rua. Como gosto dos saltos altos! Porque
esticam as pernas na totalidade de uma feminilidade pronta para se
abrasar. O salto alto contrai a barriga e abre uma curva para outra
barriga se encolher de sede. O salto alto levanta os seios,
arredondando-os, empurrando-os para a frente sobre os passantes
privados daquilo que reivindicam. Saltos altos lançam os pés numa
prontidão para dançar sobre a fumaça que sobe do desejo tórrido.
Saltos altos esticam o colo como quando os cavalos se lançam num
abismo. E saltos altos fazem a lança ficar ereta em um púlpito de ar
sólido. Pise as pedras da rua com a cautela de uma gazela que não
espera ser recebida nos braços de alguém ou por suas palavras. E
lentamente, lentamente, materialize-se em frente à porta fechada.
Atrás dela há uma poltrona de couro, que vai nos aguentar e onde
nós caberemos. Eu me sento primeiro, depois você. O quarto está
exposto ao mar que nos vê, ameaça e bombardeia. A sala de estar e
a biblioteca estão abertas para o mar. Só nos resta esta pequena
poltrona, portanto trema, sacuda-se e desmorone, e não tire suas
roupas, para que a morte não nos veja nus. Uma égua no colo de um
homem. Não há tempo, exceto para um amor rápido e uma erupção
de eternidade transitória. Não há tempo para o amor numa guerra da
qual nada furtamos exceto o sorver das fontes da própria vida. Faz
parte da natureza da guerra criar essa lascívia? Faz parte do medo
da morte que essa tensão se tensione tanto? Mãos que arranham a
parede para impedir que os felinos fujam. E uma boca aberta aos
sons dos desertos ermos para seduzir os lobos. Eu amo esse amor
em que não há tagarelice nem palavras elegantes, nem um lento
colocar de roupas; amor no qual não há tempo para o ritual que cria
a separação e o desengajamento lento do abraço, e enfim a
escapada para o cigarro e o fingimento de assistir a seus círculos de
fumaça azul, verificando o relógio, não para ver o tempo, mas para
descobrir quando um deve se retirar do outro. Eu amo esse amor que
não deixa dor na memória nem cicatrizes na alma. Um amor que
abastece a alma com o adejo das borboletas em direção à rosa do
espírito. Um instante fugaz que é mais duradouro e mais puro em sua
beleza que a burocracia de um amor demorado que necessita
gerenciar encontros e manter o desejo em forma. Um ímpeto que é o
espaço onde o poeta pode confundir a semelhança entre mulher e
canção. Um ímpeto que é a liberdade de um silêncio desvinculado da
outra pessoa, com quem o silêncio, se compartilhado, pode se tornar
solidão. Dois mundos que não se entrelaçam, exceto por meio da
repressão. Na emoção, não há barganha. Dois mundos que retornam,
quando se silenciam, às memórias que estão mais em conflito do que
em harmonia. E eu gosto do amor nesta poltrona que nem precisa ser
arrumada porque não enruga. Da mesma forma como eu gostava de
fazer amor numa rocha à beira-mar à noite, num carro escondido em
um bosque de salgueiros, num trem noturno em que os nomes não
são conhecidos, durante um longo voo noturno, ou na cerca de um
campo em que a multidão aplaude um discurso enquanto os amantes
passageiros também dançam e aplaudem, porém no clamor de um
clímax diferente. Eu gosto desses momentos, rompantes livres de
palavras e obrigações. Mas a guerra investe um misticismo
voluptuoso nessa furtividade sublime. Como é bonito superar a
guerra dentro de nós com esse medo que une dois corpos! E como é
bonito despedir-se dos nossos dias com o desabrochar de uma rosa
que transpira, geme e se desfaz com o atrito de orvalho e sal, sob o
bombardeio vindo do céu, do mar e da terra, no qual guiamos o
caminho do prazer que sobe reto, zombando do latido do metal com
os uivos da carne, do sangue e dos nervos tensos! Portanto, não me
pergunte se eu te amo, égua nascida dos panegíricos árabes! Égua
que desce do colo de seu cavaleiro para voltar à potrinha que pasta
no meio dos mísseis, dos copos de cerveja, do professor de química
e das nobres enfermeiras que vêm da Escandinávia para trocar a
morte por tédio e frustração pela morte por uma causa. Não me
pergunte se eu te amo porque você sabe que meu corpo, ao buscar
garantia em outro corpo, adora o seu. Pegue um pouco de pão e uma
garrafa d’água para justificar sua ausência. Você visitará minha
poesia, P, porque não ficou comigo, como fez Lírio-do-vale, nascida
do “Cântico dos Cânticos”. Você vai visitar minha poesia porque você
foi embora como ela foi também. E você vai irromper de um sonho
que nasce de um sonho, como o Lírio-do-vale irrompeu com este
amanhecer.

O bombardeio bombardeia tudo, até mesmo o medo. Neste canto


distante onde estou, penso naquele jovem paquistanês ausente. O
que o trouxe desde a longínqua Ásia para esta cidade? Ele estava
perseguindo o pão, que o capturou neste cerco. O pão o atraiu desde
Lahore, fez ele correr milhares de quilômetros para tocar este
milagre humano: o pão. Um pedaço de pão que pode matá-lo numa
guerra que não é dele e impedi-lo de voltar para qualquer lugar,
morto ou vivo, até mesmo para um túmulo. “Vaidade das vaidades,
tudo é vaidade.” Eu penso nas várias maneiras de fenecimento de um
corpo que lutou para alcançar a maturidade apenas para queimar ou
sufocar. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” Conviver com a
morte nos ensinou que o fim da vida não tem som. Se você ouvir o
ruído do míssil, então está vivo; o míssil errou você e atingiu outro, o
trabalhador paquistanês, por exemplo. O foguete é mais rápido do
que o som. Se você não ouvir o barulho, saiba que já está morto.
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” Mas qual é o segredo dessa
imunidade? Eu sinto um sono irresistível. Sono mais poderoso do que
qualquer poder. Um sono sultão.
S me acorda. Está armado com um revólver comprido e
debruçado na sua boneca passional.
— Onde você esteve?
— Onde você esteve?
Sente-se comigo se puder fazer esta senhora parar de tagarelar,
ou então mande-a para qualquer inferno.
— Onde você desapareceu?
— Numa das linhas de frente.
— Quais são as novidades dos rapazes?
— Firmes. Não estou preocupado com o resultado da batalha.
Eles estão resistindo e lutando, mas as pessoas se cansaram, dizem
que sua resistência está ligada à nossa partida. Vamos mesmo
embora?
— Claro que sim. Não sabia que estávamos indo embora?
— Eu achei que estávamos apenas manobrando. Vamos mesmo
embora?
— Nós vamos mesmo sair.
— Para onde?
— Para qualquer lugar árabe que nos aceite.
— Mas eles não aceitarão nos receber nem mesmo quando
formos sair?
— Alguns deles não aceitam nem nossos cadáveres. Os Estados
Unidos estão pedindo para alguns deles concordarem em nos aceitar.
— Os Estados Unidos?
— Sim, sim. Os Estados Unidos.
— Você quer dizer que alguns deles querem que fiquemos em
Beirute e cometamos suicídio?
— Estes são os que não são capazes de aceitar nossa
resistência, mas eles não estão nos pedindo para cometermos
suicídio, como disse o coronel líbio. Eles não querem que fiquemos
em Beirute ou em qualquer outro lugar na Terra. Eles querem que
saiamos: do arabismo e da vida.
— Para onde então?
— Para o nada.
— E quando vamos embora?
— Após conseguirmos alguns endereços para os quais possamos
ir. E depois que conseguirmos também algumas garantias para
proteger os civis aqui e os campos de refugiados.
— Mas tais garantias existem?
— Há garantias. Uma força internacional chegará para proteger
os campos. Mas o embaixador italiano ontem disse algo muito
preocupante: que ninguém pode garantir que os israelenses não vão
entrar em Beirute no momento seguinte à partida dos combatentes.
— Dá para ocultar a ideia da partida? Porque isso pode afetar o
moral dos combatentes.
— Vai ser difícil, porque os negociadores já estão anunciando. E
o prório Estado libanês está impaciente, desculpando-se com a
necessidade de acalmar as pessoas.
— Mas por que estamos indo embora?
— Porque ninguém concorda com a nossa permanência: nem os
de dentro, nem os de fora. Não se esqueça, o país não é nosso e o
período de hospitalidade expirou. Mesmo algumas facções do
Movimento Nacional Libanês estão nos ameaçando. Não sobrou
nada com que possamos contar; estamos sem recursos internos e
sem apoio externo.
De todas as pessoas, S era o mais preocupado com a ideia de
partir. Ele tinha medo de se tornar órfão novamente. Temia que
esquecêssemos dele na pressa desses finais. Fazia parte das
centenas de escritores que emigraram para se unir ao projeto da
revolução, o qual se tornou um lar e uma identidade. Ele não tinha
nada que pudesse identificá-lo: carteira de identidade, passaporte ou
certidão de nascimento. Por isso encontrava em nós, que não temos
pátria nem ninguém, uma família e uma pátria. Como os imigrantes
sírios, iraquianos, egípcios e palestinos, ele tinha projetado em
Beirute um sentido definitivo, que atribuía à relação ambígua com a
cidade os direitos legítimos de um cidadão, a ponto de assustar
muitos libaneses, que conheciam sua cidade e sua sociedade melhor
do que nós. Eles sabiam que Beirute não poderia aguentar toda esta
projeção. Alguns deles já tinham notado que a sensação de trato fácil
que a cidade inspirava, como um texto aberto à escrita e à luta, já
tinha atingido um grau de fragilidade que exigia cautela. No entanto,
Beirute foi o lugar onde a informação política e a expressão
palestinas floresceram. Beirute foi o local de nascimento de milhares
de palestinos que não conheciam outro berço. Beirute foi uma ilha
até a qual os imigrantes árabes nadaram, sonhando com um novo
mundo. Foi a mãe adotiva de uma mitologia heroica que poderia
oferecer aos árabes uma promessa diferente daquilo que nasceu da
Guerra de Junho. Cada um apegou-se ao que mais prezava em sua
Beirute ideal, cidade que fascinou a todos, a ponto de cometermos
erros dos quais ninguém escapou, sem que ninguém conseguisse
definir um significado abrangente para tal fascínio. Assim, na
ausência de um Estado que oprimia seus cidadãos em todos os
outros lugares, a relação com Beirute tornou-se um vício de
linguagem tão metafórica a ponto de se reivindicar uma cidadania, o
que permitiu o aparecimento de qualquer estado dentro desse
Estado como uma forma de exercício árabe para a democracia
imaginada. Beirute tornou-se portanto, propriedade de qualquer um
que sonhasse com uma ordem política diferente num lugar diferente,
capaz de acomodar o caos, e que acabou resolvendo o complexo de
exílio para cada exilado. Pertencer a Beirute tornou-se, assim, um
reflexo de legítima oposição à repressão árabe. Quem se refugiava
na cidade já não sentia a necessidade de se preocupar com seu
regime desestruturado; em vez disso, permitia a si mesmo o direito
de formar alianças internas, a serviço de um programa democrático
que dialogava mais com as forças de fora do que com as forças de
dentro, o que acabou ajudando a acelerar tal desestruturação.
Consequentemente, aqueles que viviam em Beirute, aliando-se às
forças conflitantes internas, sentiram que um novo padrão para medir
cidadania e exílio emergiu, um padrão que fora definido para os
libaneses e com seu apoio, o grau do direito deles a seu país, porque
sua pátria tinha sido transformada de república a um conjunto de
posições. Na poesia, também, aqueles que expressaram seu amor
por Beirute não eram libaneses. Quando os irmãos Rahbani
cantaram para a pátria, eles não cantaram para Beirute. Na canção
nascida da guerra civil, Bhebbak ya Libnan!, Beirute foi excluída
porque deixou de ser a Beirute do Líbano. Na visão sectária, Beirute
não era mais do Líbano; ela tinha se tornado árabe, era cantada
pelos árabes. Tornou-se possível para Saíd Aql, o poeta do Líbano,
empurrar a poética libanesa para os limites da estética racista ao
escrever que a guerra estava sendo travada não entre o exército do
Líbano e o exército da Palestina, mas contra um povo inteiro: “A
criança palestina é um inimigo”.
S e outros criaram sua própria Beirute. Eles a moldaram à sua
própria imagem. Eles, sem pedir licença, entraram no tecido interno
da luta cultural e, quando seus aliados culturais os largaram, viram-se
abandonados.
Antes da invasão israelense, muitos intelectuais, diante da
iminente derrota, refugiaram-se em suas seitas, retirando-se para
suas conchas regionais, como expressão do colapso do projeto
secular. Houve um realinhamento de forças ao longo das linhas
sectárias, e a seita líder assumiu a posição de criadora de padrões.
O herói da seita, emergindo das profundezas do crime, tornou-se o
modelo declarado para os representantes de outras seitas que
imitavam sua pilhagem. Os poetas do status quo correram, em
seguida, para os salões de Beirute Oriental para obter uma
indulgência de seu amor-pelo-Líbano daqueles que usavam a
máscara fascinante de “vamos limpar o Líbano de estrangeiros”. A
destruição estava precisando de um Estado, e os que tinham medo
estavam precisando de qualquer Estado. Assim, a vida cultural
florescia no lado leste da cidade, agora assumindo o papel de
unificar o país. Com uma programação de apresentações artísticas, o
Casino du Liban floresceu. A única apresentação que faltava era a do
grupo de dança líbia, cuja chegada foi acompanhada por uma
publicidade ensurdecedora. Ninguém questionou o significado
político do clamor falangista pelas danças líbias, pois era irônico e
muito claro.
Quando S, nas páginas do jornal literário palestino Alkarmel,
questionou alguns intelectuais por desistirem do programa
democrático e voltarem às conchas sectárias, eles nos acusaram de
termos nos tornado uma seita sunita. Poetas, pintores e homens
armados caíram sobre nós — os representantes da seita — com
ameaças e abusos, porque eles consideraram nossa crítica ao
retorno dos intelectuais ao sectarismo uma calúnia contra suas
doutrinas. E quando jurei que nunca soube qual era minha seita,
ninguém acreditou em mim, porque a epidemia sectária já havia se
espalhado, e qualquer tentativa de entender o que acontecia no
Líbano, fora dos limites sectários, era falha. S costumava defender
seus escritos com os próprios músculos. Ele continuou a visitar os
cafés de Hamra, e respondia aos argumentos apalpando a pistola.
Quanto a mim, exposto às campanhas da imprensa, nunca consegui
provar minha inocência do crime de ter dito que nós somos uma
parte... não somos uma ilha.

O experimento está aberto ao diálogo entre pensamento e

criatividade. Ainda estamos tentando tatear uma aplicação

prática da única escolha que temos: criatividade na revolução e

revolução na criatividade. Queremos evitar a tendência atual de

separação entre revolução e criatividade ou de conflito entre os

dois conceitos, revolução e criatividade, onde uma parte tenta

divorciar a expressão literária da realidade, a fim de chegar a

uma “literatura pura . ” Enquanto isso, a outra parte força a

literatura a prestar serviços diários ao programa político. Nós

somos um produto desta realidade e deste tempo, em que

colapsos evidentes se misturam a nascimentos obscuros. Nós não

vamos desistir de nossos sonhos, independentemente de quantas

vezes forem quebrados. Não vamos enfrentar as crises que nos


rodeiam, deixando a ideia cair ou nos entregando a um passeio

agradável no passado e na herança cultural, porque apenas o

estabelecimento da área entre o sangue e o petróleo bruto não

nos satisfaz, pois escolhemos acreditar, somente na medida em

que ajudamos na operação de mudança, que o futuro nasce do

presente, não do passado, onde o tempo de crise é elevado ao

grau de autoridade inquestionável. E quando notamos que a

revolução ainda não escreveu sua literatura, exceto com o sangue,

percebemos que a equação “ações-palavras”, ligada ao contexto

do experimento, amadurecerá para produzir a nova literatura.

Percebemos que somos parte da cultura nacional árabe e não

uma ilha dentro dela, portanto, nós nunca aceitamos que nossa

voz fosse a de uma identidade estreita, mas sim o ponto de

encontro para uma relação mais profunda entre o escritor árabe e

seu tempo, em que a revolução palestina vai se tornar uma senha

aberta, até a explosão geral. Nós não estamos tentando formar

um novo movimento na literatura, tanto quanto estamos

chamando a atenção para um contexto mais amplo, ou para uma

estratégia que daria à ideia de unidade cultural árabe uma de

suas formas possíveis, pois a cultura árabe está aberta à sua

diversificada e multifacetada história, num momento em que a

literatura está sendo exposta a mais de uma tentativa de

fragmentação ou sufocamento ao nascer. Assim, não dizemos que

culturalmente o Oriente é totalmente oriental e o Ocidente é

totalmente ocidental porque nós não reconhecemos apenas um

único Oriente nem um único Ocidente; e nós não queremos

acabar aprisionados nessas ilusões. Portanto, não negociamos

com aqueles por trás da campanha de resistência à invasão


cultural ocidental em voga nos dias de hoje e lançada por uma ou

duas cartilhas, a menos que tal campanha possa distinguir entre

os termos, evitar a nossa queda num poço que feche totalmente o

horizonte e ser colocada no contexto de uma busca por

independência que rejeita ao mesmo tempo a sujeição e o

desgaste. Quando vemos o baixo nível ao qual alguns aspectos

da cultura chegaram e observamos o controle dos parasitas

sectários, dos ineficientes e sem talento, sobre o pão, sua ação

diária, semanal e mensal, não comentamos apenas: “É uma crise;



melhor correr . Na verdade, atribuímos ao fenômeno um endereço

político adequado e prestamos atenção; prestamos atenção às

armas da literatura, que são poderosas o suficiente para esconder

sua traição, alegando santidade e fragilidade dos sonhos, sob a

capa do “nojo ”
da política , ou seja, da luta. Não. Não somos

estranhos em nenhuma terra árabe. Os estranhos são aqueles

que apontam para o nosso exílio com dedo de acusação, porque

eles são alheios à própria história e ao significado de sua

existência, alheios numa onda passageira, em que o ladrão não

vê nada além do rosto de outros ladrões. No entanto, se não

conseguimos lisonjear o tradicionalismo, também não estamos

contentes em nos estabelecermos no caos de um

experimentalismo que não tem nada a dizer além de declarar sua

modernidade. E se reclamarmos da incapacidade de falar a

língua das pessoas na expressão criativa, isso não deve nos

impedir de insistir em falar para elas até o momento em que a

literatura possa realizar sua grande celebração, quando a voz

particular e a voz pública se tornarem uma. Sim, a literatura tem

um papel. Cortar a relação entre o texto e aqueles para quem ele


se transforma em poder, significa chegar à alienação da literatura

que os profetas da derrota final agora anunciam e para a qual

batem palmas. Neste momento, invocamos a crítica. Nós a

invocamos para recuperar sua fé em sua coragem e utilidade. Nós

a invocamos para entrar no campo aberto ao despojo e para

estabelecer normas, cuja ausência permitiu aos ignorantes e aos

antirrevolucionários a alegação de serem modernos. Nós

invocamos a crítica para reconsiderar, por exemplo, o movimento

moderno na poesia árabe, que ofereceu espaço para todo tipo de

guerra, mas agora chegou a uma encruzilhada que levou, no

mínimo, à perda da ilusão de sua unidade anterior. E nós

invocamos a crítica para rejeitar a inviolabilidade de um texto

poético que não permita, na sua análise, outra ferramenta que

não seja a autorreferência e, ao mesmo tempo, reserve para si o

exclusivo direito de carregar toda a ideologia exterior que

monopoliza seu disfarce enquanto nega ao crítico, ou ao leitor, o

direito de revelar isso. Deixe-nos então questionar a ditadura do

texto. A timidez ou a ignorância nos levaram ao ponto onde o

progresso teme se declarar. Pior: atualmente, a língua correta é

considerada uma forma de atraso; a métrica correta, reacionária;

a clareza, defeito; e ter uma mensagem e comunicá-la, uma

barbárie. Em suma, o conservadorismo foi capaz de se manter à

esquerda, equipado com todas as ferramentas do modernismo

formal, e avançar carregado de significados ultraconservadores.

Além disso, ele tem conseguido puxar outros para suas teses,

nesta era em que os grandes significados árabes estão sendo

abalados, em que as ovelhas perdidas estão voltando para suas

seitas, ou suas crenças místicas e símbolos, confessando seu


arrependimento por uma vida perdida nos movimentos de

libertação, que deram origem a nada mais do que dificuldades

inesperadas, e, em particular, na revolução palestina, cujos custos

se mostraram exorbitantes durante este período em que a

“cultura” do petróleo — não preocupada em revelar a diferença

entre seus padrões e a ideologia de suas fontes — invadiu todas

as plataformas e instituições culturais e de comunicação. Em

última análise, a destruição da cultura e dos intelectuais é o único

resultado claro do fenômeno do “patrocínio” do petróleo à cultura.


É assim que se define a dificuldade da batalha que estamos

travando com relação à literatura; ela é um reflexo direto, ou

indireto, dos ataques do conservadorismo político e intelectual,

para o qual não faltam razões para se beneficiarem do fracasso

dos regimes “progressistas reacionários”. E quando escrevemos e


convocamos outros a escrever, em nome da liberdade criativa,

nada fazemos além de atrair os pontos de luz e os primeiros

esforços espalhados pela dissidência em torno de uma ideia

fundada sobre esta simples afirmação: queremos nos libertar,

libertar nosso país e nossa mente, e viver na era moderna com

competência e orgulho. Enquanto escrevermos, estaremos

expressando a nossa crença na potência da escrita. A partir desta

perspectiva, nós não sentimos que somos uma minoria, mas

declaramos que somos a minoria-majoritária e estamos chegando

deste tempo e não do passado ou do futuro.39

Por que esse discurso despertou a histeria deles? Porque eles


queriam que nós fossemos uma ilha cercada.
S me pergunta pela décima vez:
— Para onde vamos?
— Eu não sei — digo. — Há um oficial na sala de comando
responsável por decidir quem tem que ir e aonde.
— Eles podem esquecer de mim — ele diz.
— Podem... — eu respondo.
Ele ficou com medo, tanto que repreendeu sua mulher tagarela e
sabe-tudo, que tinha uma resposta para cada pergunta. “Cale-se!”,
disse num inglês curdo. Ela se calou durante vinte segundos inteiros,
depois seguiu tagarelando. É um rádio ligado, indiferente aos
ouvintes. Ela é pior que um cerco. Ele apagava as perguntas geradas
pelo sentimento de errância na ilusão da estranheza dela. Ele a
tomava por um barco ou um abrigo. Com ela, tinha a sensação de
pertencimento àquilo que escorava o estranhamento com o
estranhamento, enquanto não conseguia descobrir onde se
encontrava.
— Eu achei uma solução para você: fique comigo.
— Onde? — ele pergunta, já animado com a notícia.
— Aqui, em Beirute.
— Você vai ficar?! — ele grita.
— Sim. Eu vou ficar.
— Mas eu não tenho passaporte nem carteira de identidade.
Todos os meus documentos são falsificados. Como posso ficar? E
para onde eu vou? — ele pergunta.
— Para onde você gostaria de ir? Sudão, Iêmen, Síria, Argélia?
— retruco e ele então escolhe a Argélia. — Então, você vai para a
Argélia — digo.
— Sabe, eu nunca viajei — ele diz.
— Você vai viajar muito, meu filho. Você vai viajar muito.
Costumávamos beber nesse barzinho nos últimos anos. Durante
o cerco, bebemos uma quantidade tão grande de suco de cevada que
faria um burro declamar poesia.
— A propósito, onde estão os intelectuais que têm raiva de nós?
Não ouvimos suas vozes desde o início da invasão.
— Eles foram para o sul.
— Para lutar contra os invasores?
— Eles sentiram falta de suas famílias. Alguns deles podem se
tornar poetas de uma terra ocupada ou poetas da resistência.
— Eles ainda sofrem desse complexo?
— Eles nunca vão se livrar dele.
— Por que querem se livrar do modelo, então?
— Para crescerem. Para matarem o “pai” e ficarem
independentes.
— Você espera alguma mudança na escrita deles?
— Eu não espero nada.
— Mas eles são inocentes e bem-intencionados.
— E cativos de dois modelos contraditórios.
— Eles vão crescer quando tiverem mais experiência.
— Ninguém cresce no sectarismo.
— Eles não são sectários. São órfãos e estão com medo. O
sectarismo é uma onda passageira de defesa.
— Por que eles estão nos intimidando, então?
— Porque somos estrangeiros. E porque o Estado iniciou o
processo de formação. Os israelenses vão eleger Bachir Gemayel
presidente do Estado.
“Nossa Senhora do Líbano, proteja-o para o bem de todo o Líbano!”
A oração quase inaudível se espalha como a tenda do Profeta,40 um
teto levantado pelas torres dos tanques israelenses. O hábito secreto
praticado pelos israelenses já é agora um casamento aberto.
Soldados israelenses deitam-se nas praias de Junieh. E Begin
devora, em seu aniversário, um bolo inteiro no formato de um tanque.
Pede para assinar um tratado de paz ou para renovar o antigo tratado
entre Israel e Líbano. E repreende a América: “Nós demos o Líbano
de presente para vocês”.
O que é esse velho tratado, candidato à renovação agora?
É fato que Begin não vive neste tempo e nem fala uma língua
moderna. Ele é um fantasma vindo dos tempos do rei Salomão, que
representa a era de ouro na história efêmera dos judeus na terra da
Palestina. Em Jerusalém, “ele fez as moedas serem tão comuns
quanto seixos e construiu, em uma colina, um templo luxuoso
decorado com cedro, sândalo, prata, ouro e pedras esculpidas; fez o
trono real de marfim dourado; selou um pacto com Hiram, rei de
Tiro, que lhe forneceu metais, artesãos e pescou com ele no
Mediterrâneo. Salomão construiu os barcos e Hiram lhe forneceu os
marinheiros; ele construiu o templo e governou quando se tornou rei.
Seu povo aprendeu a metalurgia e a fabricação de armas com os
filisteus, a navegação com os fenícios, e a agricultura, a construção
de casas, a ler e escrever com os cananeus”.
Begin assumiu a persona de Salomão, mas deixando de lado a
sabedoria de Salomão, seus cânticos e suas fontes culturais. Tomou
dele apenas a era de ouro, içada sobre um tanque de combate. De
Salomão, não aprendeu a lição sobre a queda do reino, quando os
pobres se tornaram mais pobres e os ricos, mais ricos. Sua única
preocupação era procurar o rei de Tiro para assinar um tratado de
paz. Onde está o rei de Tiro? Onde está o rei de Achrafiye? Begin
congela a história neste momento e não termina o templo, do qual
nada restou a não ser um muro para lamentar — um muro que a
arqueologia não conseguiu provar que fora construído por Salomão.
Mas o que temos que ver com uma história que saiu da História?
Na consciência do rei da lenda, tudo se congelou naquele momento
e, desde aquele tempo, a História nada fez na Palestina nem na costa
leste do Mediterrâneo, exceto esperar pelo novo rei da lenda,
Menahem, filho de Sarah, filho de Begin, que protegerá o Terceiro
Templo da ira interna e da ira externa, em aliança com o rei da
Achrafiye — Bachir, filho de Pierre, filho de Gemayel.

Fedaíyin — manjericão e alforria


prometidos para a brasa

nas telhas da cantoria

numa lenda livre

da revolução

da revolução...

o vento do mar é trincheira

com sombras racham as pedras

cantam um mesmo canto

é a vitória

ou a vitória

e geram esta ideia

da revolução

da revolução...
nascemos em suas mãos

como flor que se abre

quantas

e quantas vezes

o pai há de nascer no filho?

e uma semente carregará um bosque

da revolução...

da revolução

E nestas horas da tarde o céu pende mais com o peso da umidade,


do aço e da fumaça. Um céu que se torna chão. A competição das
rádios pela voz de Fairuz, o único vestígio de uma nação em comum,
sinaliza o nada, ou o nada compartilhado, porque a voz foi separada
completamente de sua fonte. Ela partiu de seu lugar para um azul
abstrato que não fala com os sentimentos de um momento em que a
guerra transformou tudo em detalhes. Bhebbak ya Libnan! Uma
declaração não ovacionada por uma Beirute preocupada com suas
ruas bombardeadas, agora reduzidas a três ruas apenas. Beirute não
se esmera em seu cantar, pois os selvagens lobos de metal uivam em
todas as direções e a beleza cantada, o objeto de adoração, desloca-
se para uma memória que agora trava uma batalha contra os tubos
metálicos do esquecimento. A memória não rememora, apenas aceita
a história derramada sobre ela. É isso? É assim que a beleza passada
— que volta à vida numa canção não adequada ao contexto da hora
— torna-se trágica? Uma pátria que desaba e se reforma no diálogo
entre a vontade humana e o aço; uma pátria que se levanta com uma
voz que olha para nós a partir do céu, uma voz única que une o que
não pode ser unido e reúne o que não pode ser reunido. O discurso
correu para longe, muito longe. Pegou suas palavras e voou. Esta voz
não é a voz de nossa angústia, não é a voz da loucura.
Nestas horas da tarde, o corpo não consegue se sustentar, a
alma não pode voar; amontoa-se sobre os bancos do medo e da
indiferença, incapaz de se expressar, enquanto nos sentamos
impotentes até mesmo para trocar olhares. Beirute em agosto não
precisa de novos incêndios. Atrás de nós há uma escola, agora
transformada em hospital. Os jatos sobrevoam o lugar com
ferocidade. O professor de ciências políticas, que veio dos Estados
Unidos, diz: “Seremos atingidos com certeza; vamos descer para o
térreo”.41
É difícil acordar G, que está dormindo há um mês. Cheguei a
pensar que ela sofria do fígado, mas me disseram que o medo
extremo causa, a quem dele sofre, um sono profundo e contínuo. Ela
dorme dormindo; acorda dormindo; caminha dormindo e, dormindo,
ela come. Nós a invejamos por esse sistema de autodefesa. O térreo
não é mais seguro do que o sexto andar: se o prédio for atingido,
ficaremos presos sob os escombros. A passagem dos jatos está mais
frequente e os voos, mais baixos. Apenas para mudar de assunto, eu
digo ao professor de ciências políticas:
— Imagino, doutor, que o diálogo sobre a Universidade Aberta já
está acabado.
— Sim, e toda uma fase da ação nacional palestina e libanesa
também acabou. Da mesma forma, a experiência de uma nova
sociedade palestina no Líbano está prestes a chegar ao fim — ele
diz.
— Onde então começar a nova fase? — eu pergunto.
— Não do zero, como dirão, não de uma folha em branco, mas
do acúmulo da experiência. Nós alcançamos muito e devemos agora
desenvolver o que vale a pena desenvolver — responde com firmeza.
Não estamos mais em posição de formular uma sentença
completa, era preciso reformular os elementos de uma experiência
que pode desmoronar a qualquer momento. O homem não estava
despreocupado. Ele se preocupava muito com suas origens, tendo
orgulho das raízes arrancadas há quarenta anos. Vinha de Chicago
uma vez por ano, para sentir o calor do renascimento de seu povo.
Lá, estava entediado com o exílio prolongado, num departamento de
ciências políticas, e era obcecado pela ideia de fundar uma
Universidade Aberta no Líbano para estudantes palestinos que vivem
no Oriente Médio. Criticar a validade dessa ideia e sua eficácia era
atacar seu sonho mais precioso e transformá-lo numa massa de
nervos, capaz de defender aquele projeto a qualquer custo. O nível
acadêmico ficava cada vez mais baixo nas universidades locais. Para
melhorar as notas, alguns alunos não hesitavam em ameaçar seus
professores com armas. Eles entravam nas salas de aula armados até
os dentes, carregando suas pistolas. Recebíamos muitas queixas,
mas ninguém era capaz de resolver o problema por causa da
confusão sobre a identidade das facções. Antes disso, a vida já
estava difícil para os alunos que não conseguiam encontrar
universidades árabes que os aceitassem. Eu costumava provocar o
doutor: “É nesta atmosfera, onde não podemos sequer controlar as
condições em que uma prova é feita, que você realmente pretende
começar uma Universidade Aberta, que precisa de estabilidade
social e outro nível educacional?”. Mas o doutor acreditava piamente
na ideia e na sua viabilidade. Ele olhava nossa realidade de longe, e
de longe os fenômenos escondem os detalhes, mostrando apenas o
brilho.

— Qual é o seu projeto agora?


— Vou voltar para Chicago.
— E a Universidade Aberta?
— Está fechada.

Então, baixa o americano, que aparece quando ele deveria


desaparecer. Um americano eufórico pelo que está vendo, uma
testemunha feliz das experiências indisponíveis aos outros. Guerra e
cerco. Para um americano que corre atrás de qualquer tragédia com
uma câmera, um caderno e uma esposa, há algo mais emocionante
do que esta morte? Eu o chamo de “Cause-Man”, porque é
aficionado por causas quentes. Nunca me agradou seu fascínio por
uma guerra que o supra com riqueza de material. Um número maior
de nós precisaria morrer para que ele trabalhasse mais e tivesse mais
prazer de conviver com as vítimas. Ele veio de Nova Iorque só para
nos assistir. Não era um jornalista profissional que corria atrás de
notícias a serviço da profissão. Era um amador que gravava tragédias
em fita pelas lentes de uma câmera de vídeo.

— Como você está se sentindo?


— O oposto de você.
— O que quer dizer?
— O que você quer dizer?
— Vocês vão reconhecer Israel?
— Não.

O doutor foi convidado pela liderança para participar da


formulação de expressões legais vagas para contornar essa pergunta
que acompanhava o bombardeio. Expressões vagas em relação às
resoluções das Nações Unidas. Era exigido da vítima que admitisse o
direito de seu assassino de matá-la, e dos enterrados sob os
escombros que declarassem a legitimidade de terem sido
massacrados. Não era a oportunidade certa para esse tipo de
estupro político, tanto quanto era para o sadismo em forma de
esquadrões aéreos. Pela primeira vez na nossa história, nossa
ausência está condicionada à nossa presença total. A presença para
fazer a própria ausência, para pedir desculpas pela ideia de
liberdade, e admitir que a nossa ausência é um direito que concede
ao Outro o direito de decidir nosso destino. O Outro, presente com
todos os seus instrumentos de matança, exige nossa presença por
um tempo, para anunciar seu direito de nos empurrar para a ausência
final.

— Por que exigem esse reconhecimento de nós agora?


— Para a segurança deles e a do mundo.
— Um homem se afogando não precisa cuidar para que a água
continue a fluir. Um homem em chamas não precisa cuidar para que
o fogo continue aceso. E um homem enforcado não tem que garantir
a firmeza da corda.
Estou segurando um cacho de uvas e dois jornais. H, cheia de medo,
me abordou.42 Ela está sempre com medo, na paz e na guerra. Medo
de tudo: de uma noite sem um amante, um ano sem um novo livro,
uma casa sem piano, um mês sem dinheiro, um caminho sem
namorilho. Lançou-se sobre mim, feito uma acusação sobre um
ladrão e disse:
— Quando vão se retirar? Quando vocês vão se retirar? Estão
destruindo Beirute com esse absurdo heroico.
— Você quer dizer heroísmo absurdo? — eu respondi.
— Não há diferença. Você ainda acredita? — ela pergunta.
— Acreditar em quê?
— Qualquer coisa — ela diz. — Saiam... Saiam, para que a água
possa voltar aos canos de Beirute!
Ela é sempre assim. Nervosa, difícil, inteligente, estúpida e
atraente como um pardal. Considera a água e o perfume sagrados.
Ela é o primeiro amor de todos os amantes, tão dócil e frágil que é.
Virgem dos inícios, há vinte anos, que cultiva os movimentos
ondulantes de sua barriga para seduzir revoadas de pombos. Avança,
depois recua. Lambe o pé do amante, lava suas meias e suas costas,
faz-lhe a barba, oferece-lhe o dia num prato de castanhas e a noite
numa cama de jasmim. Mas logo ela mesma zomba da própria
impetuosidade e de suas ilusões: “Eu cometi um erro. Ele não vale
nada”. Nós costumávamos provocá-la, sua família e eu, referindo-nos
a este humor de frustração como Jorge: “Você se lembra do Jorge?”.
Aí ela saltava de seu rosto infantil para nos morder um por um.
Continuávamos a rir, enquanto ela quebrava os pratos. Eu amava
aquele carrossel de emoções, sua inocência diabólica e seu medo
dos jatos, quando eles a faziam pular sobre os móveis como um grilo
e gritar: “Chega! Chega!”.
O pai dela chorava por qualquer ser humano que morresse em
qualquer lugar. Sua mãe rezava para que Nossa Senhora do Líbano
protegesse seu herói para o bem de todo o Líbano. A irmã dela
preparava a comida para um menino que nunca ficava satisfeito, e
esperava ao telefone notícias de um certo jovem francês. Eu seguia
pedindo desculpas por nossa presença em Beirute.
— Quando vocês vão embora?
— Quando eles pararem os bombardeios e a estrada para o
porto estiver segura. Acalme-se, H. Não somos nós os donos desses
jatos.
— Até quando vão ficar insistindo numa coisa que não vai dar
em nada?
— Pegue esse cacho de uvas e procure nos jornais os nomes
dos mortos. Eles estão bombardeando as casas dos idosos. Eles
estão bombardeando até mesmo os nossos mártires no cemitério,
para reproduzir as nossas mortes.
— Vocês vão embora e vão nos deixar seus mártires?
— Se você puder me devolver o que há no seu sangue do meu,
levaremos nossos mártires conosco para o mar.
— Não quis... não quis ofendê-los.
— E vamos levar a névoa de espelhos, os sonhos da meia-noite e
as canções de Fairuz sobre Bissan.
— Não quis... não quis ofendê-los.
— E vamos levar o pão feito de palavras.
— Não quis ofendê-los.
— E vamos levar a fumaça de corações queimados.
— Não quis ofendê-los.
— E vamos levar o silêncio de onde nascem os poemas.
— Eu não quis...
— E vamos levar os vestígios da chuva enrugada nas pegadas
dos que tentaram nomear estes tempos.
— Não quis ofendê-los.
— E vamos levar o que pudermos ver do mar. Vamos levá-lo para
o mar conosco.
— Eu não quis...
— E vamos levar o aroma de café, o pó do manjericão esfregado
e a obsessão da tinta.
— Não quis ofendê-los.
— E vamos levar as sombras dos jatos e o rugido da artilharia
em sacos cheios de furos.
— Não quis ofendê-los.
— E vamos levar o que conseguirmos carregar de memórias, de
títulos lendários, de aberturas para as orações.
— Não quis ofendê-los.
— E não vamos levar nada. Não vamos levar nada.
— Não quis ofendê-los.
— Não vamos levar nada conosco. Pegue minha cama, meus
livros e meus comprimidos para dormir. Fique com toda minha
ausência, fique com minha ausência da poltrona atrás da porta.
Pegue a ausência.

Se chorei? Eu sangrei o sal líquido, o sal das sardinhas que têm


sido meu único alimento há dias. Os jatos não me assustam mais,
assim como o heroísmo não me encanta mais. Não amo ninguém e
não odeio ninguém. Eu não quero ninguém e não sinto nada, nem
ninguém. Sem passado e sem futuro. Sem raízes e sem galhos.
Sozinho, como uma árvore na tempestade numa planície deserta. Eu
não posso mais sentir vergonha das lágrimas de minha mãe nem
estremecer pelo cruzamento de dois sonhos nascidos juntos ao
amanhecer...

Que Beirute seja o que quiser ser:

este é nosso sangue elevado para ela,

árvore que não dobra. Quem dera, quem dera

saber agora de onde o coração vai embora,

para arremessar a ela o coração, pássaro,

para me libertar do corpo.

Não morri ainda e não sei se vou crescer

mais um dia sequer, para ver

o que não se vê

das minhas cidades.

Que Beirute seja o que quiser ser:

este é nosso sangue elevado para ela,

uma parede que me separa da minha dor.

Se ela quiser, é nosso o mar.

Se ela quiser, não há mar no mar.

Aqui, dentro dela, eu habito,

faixa da minha própria mortalha.

Aqui, eu deixo o que não é meu.

Aqui, na minha própria alma, mergulho

para meu tempo começar em mim.

Que Beirute seja o que quiser.


Ela vai me esquecer

para que eu a esqueça.

Eu vou esquecer? Quem dera, quem dera

trazer de volta de mim a minha terra.

Quem dera saber o que desejar agora.

Quem dera.

Quem dera!

Um crepúsculo para o crepúsculo. Massas escuras de nuvens


saturadas com pólvora movem-se em direção à beira do mar.
Pássaros carregam seu cansaço e circulam no espaço à procura de
uma concha segura, fora do alcance das asas dos jatos. Um pôr do
sol que indica o que há em nós de fadiga. Noite, carvão e bombas
caem sobre nós, para que o corpo apeteça outro corpo, acenda um
desejo, sem tensão nem morte; desejo mecânico, metálico, não
penetrado por pássaros secretos nem por melodia distante, um
anseio esculpido na árvore do imprevisto, assim como o tempo morto
anseia por um amendoim salgado ou por uma voz que deslize numa
onda de rádio.

Aonde vou nesse pôr do sol? Cansei-me dessa escadaria.


Cansei-me da conversa ali. Lá estava a varanda do poeta que previu
a queda de tudo e fixou uma data para seu próprio fim. Khalil Hawi
pegou um rifle de caça e caçou a si mesmo, não porque não quisesse
presenciar nada, mas porque não queria testemunhar nem a favor
nem contra nada. Cansou-se desse estado de decadência, cansou-se
de olhar para um abismo sem fundo.43 O que é poesia? Poesia é
escrever esse silêncio cósmico, final e total. Ele estava sozinho, sem
ideia, sem mulher, sem poema, sem promessa. O que vai ser depois
que Beirute cair sob cerco? Algum horizonte? Alguma música?
Joguei gamão com ele há mais de um mês e ele não me disse nada.
Eu também não lhe disse nada. Nós apenas nos sentamos e jogamos.
Um jogo que não exige inteligência nem estratégia. A sorte é quem
joga. E a sorte tinha que obedecer a Khalil Hawi, caso contrário, ele
ficava com raiva tanto da sorte como de quem estava jogando contra
ele. Ganhar lhe importava muito, ao contrário do poeta A, que sorria
quando ganhava e quando perdia, porque tudo o que lhe importava e
no que apostava estava fora do jogo.44 Portanto, jogar com ele era
maçante, ao contrário de jogar com Khalil Hawi, que sempre foi
entusiasmado, inquieto, sarcástico. Não quero olhar para a varanda
dele. Eu não quero ver o que ele fez a si mesmo em meu nome. A
mesma ideia me ocorreu muitas vezes, mas ela recuava, ou eu. E
perto desta varanda, quatro ruas abaixo, outro poeta caiu pouco
tempo atrás. Um poeta que chamou a si mesmo de Lobo, de Cigano
e de Senhor da Calçada. Ele estava distribuindo sua identidade
poética, Arrasíf [A calçada], quando foi atingido. Ele era hostil às
instituições, a qualquer instituição, construindo sua própria
instituição, Arrasíf. Mas seu rival na Calçada, seu inimigo teimoso, R,
disse com orgulho:
— Eu matei Ali Fudeh.
— Como foi que você o matou? — perguntamos.
— Eu concentrei meu ódio nele. Meu ódio guiou aquela granada
até sua barriga. Fui eu quem o matou — ele disse, calma e
racionalmente.
— Você não lamenta? — perguntamos.
— Não. Eu o odeio vivo ou morto e mereço ser parabenizado por
isso.45

Aonde vou nesse pôr do sol? Guiados pela luz das bombas e dos
aviões, meus passos me levaram à casa de B.46 Para aqueles que não
o conhecem pode parecer que ele esteja comandando toda a guerra:
batalhas, negociações e serviços de informação. Animado, jovial e
encrenqueiro, encontrou nesta guerra seu jogo há muito perdido.
Com uma mão no telefone, dá declarações sobre o que sabe e o que
não sabe; com a outra, escreve ordens, instruções ou conselhos. Ele
marca vinte encontros em uma hora, sem se cansar. Uma colmeia em
um homem destinado a zumbir. Um amigo que não estabelece
termos para a amizade. Divertido, inteligente e generoso. Na casa
dele há um ídolo que não fala. Um ídolo cultuado e adorado. Quanto
mais silencioso ele fica, mais a sabedoria de seu silêncio provoca
uma tempestade de aplausos. E na casa há um amigo chamado A,
capaz de imaginar como será o mundo daqui a meio século. Seus
pensamentos, baseados numa lógica formal, despertam uma atração
cinematográfica. Sem que seja perguntado, e sem hesitar, ele fala
dos grandes e pequenos países como se falasse das ruas de Beirute.
Se suas previsões se realizarem, esta região do Oriente estará, num
curto espaço de tempo, sob cerco por dois tipos de sacerdote das
trevas. Concordo com sua previsão sobre as formas de uma
catástrofe anunciada e a fase final da desintegração em curso. Mas
discordamos infinitamente a respeito da alegação de que tal
resultado é tudo o que pode nos salvar, porque uma escuridão é
capaz de triunfar sobre outra e deixar o amanhecer para nós.
Independentemente da extensão em que os slogans da política
moderna são descolados dos seus princípios e seu discurso
esvaziado de conteúdo, eu não acredito, eu não quero acreditar que
a história deste Oriente se repetirá de uma forma mecânica ou
mesmo criativa. Eu não espero uma renovação ou um
desenvolvimento árabe que não venha dos próprios árabes. E não
acho que o modelo criado para tentar os desesperados destes
tempos com um retorno à fé tenha algo a oferecer que não seja o
retorno à luta sobre questões que não são mais as nossas. O que eu
tenho que ver com os erros de Othman Ibn-Affan, já que esta história,
por si só, não é a minha história?47

A e B insistem que não vamos nos retirar, não porque eles não
tenham informação ou não estejam a par dos segredos das
negociações, mas porque a ideia de deixar Beirute é parecida com a
ideia de sair do paraíso, ou da pátria. Era mais difícil para qualquer
um que participou da formação dessa experiência, vendo seu
crescimento inicial acompanhado pelo próprio crescimento, colocar-
se fora dela enquanto visualiza um final que tem cara de calamidade.
Ninguém se preparou, nem mesmo na imaginação, para tal
proposição. Assumindo que o equilíbrio de forças nos obrigará a sair,
que opções preparamos para contrariar tal perspectiva? Como nos
organizamos para lidar com o pior? Que alternativas propusemos a
essa concentração de instituições num só lugar? Fomos acometidos
por um tipo de fatalismo e uma dependência da pura sorte? Já não
nos salvamos mais de uma vez? Por quanto tempo, então, vamos
confiar nesta salvação?
M está quieto, afastado de nós e das lagartas. Introvertido. Ele
vê o mar. Ele nos vê no mar, como se acabasse de sair do meu
pesadelo. Ninguém presta atenção nele, enquanto, coberto de
silêncio, tenta nos proteger das ondas do mar que batem dentro da
sala.
— Você vê algo que não vemos, M? — eu pergunto.
— Você vê algo que eu não vejo, M? — ele responde.
— Estou apavorado. Você viu meu sonho? Você não estava no
meu sonho.
— Eu não estava no seu sonho, mas você vê o que eu não vejo?
Ficaram todos calados, para se assegurar de que não havíamos
enlouquecido.
Ele me levou para a varanda.
— Seu apartamento está seguro?
— O que você quer dizer? — eu pergunto.
— É seguro o suficiente para o comandante pernoitar? Seus
vizinhos estão conosco ou contra nós?
— O mar em si está contra nós — eu respondo.
— Você quer dizer que teme pelo navio dele? — ele pergunta.
— Quero dizer que meu apartamento tem uma fachada de vidro,
exposta ao bombardeio que vem do mar — respondo.
— Então não serve. É melhor ele dormir esta noite numa
garagem ou na rua.

“As brisas do paraíso estão soprando.”48 Ele se preparou para


tudo e revogou todos os compromissos. Não havia mais a menor
chance de novos personagens subirem ao palco. Estava cara a cara
com o destino. É tragédia grega ou shakespeariana? Todos os
elementos do teatro foram enfiados nesta longa cena. Irá então
sacrificar Beirute, a criança que foi feita refém, ou decidirá partir
sem saber para onde? Ele morrerá aqui numa grande explosão para
que a ideia e sua profecia possam se tornar conhecidas, ou ele vai
resgatar a estrutura, levando-a para o mar? Nada sobrou aqui capaz
de afetar o que está além do mar e do cerco. O mundo inteiro se
dispersou da cena. Sozinho. Solidão sem fim. Será que estava
sozinho desde o início sem saber disso? Ele chegou cedo ou tarde,
este portador de um palito de fósforo nos campos de petróleo?
Sozinho, como a estrofe de uma canção sem prólogo nem epílogo.
Sozinho, como o grito de um coração no deserto.
Algumas organizações internacionais já prepararam tendas para
enfrentarmos o longo inverno vindouro. Para eles, ainda somos
refugiados que inspiram piedade e temem o frio. E a América precisa
um pouco de nós. Precisa que admitamos a legitimidade de nossa
degola. Precisa que cometamos suicídio por ela, na frente dela, por
causa dela. Enquanto isso, as tribos árabes nos oferecem orações
silenciosas em vez de espadas. Algumas capitais glorificam seu
heroísmo em nós, mas negam nosso sangue, pois quem combate na
linha do aeroporto de Beirute não tem nome! Algumas capitais já
prepararam seus discursos fúnebres para nós.

“As brisas do paraíso estão soprando.” Será que ele vai dizer a
verdade? Vai revelar o que realmente pensa? Será? Ele não dirá.
— Qual mar vamos atravessar? — eu pergunto a M.
— O Mediterrâneo, depois o Mar Vermelho.
— Por que você está tão distante? Você estava no meu sonho
ontem à noite?
— Não sei. Que sonho?
— Estávamos nesta mesma sala — eu digo —, tendo a mesma
conversa, o mesmo ídolo, os mesmos ataques aéreos. O guarda veio
nos informar que havia um estranho que dizia ser um velho amigo e
queria nos ver. Cada um de nós levou a mão à pistola, prontos para
qualquer mistério que a porta pudesse revelar. Escondemos o ídolo
no banheiro. Mas o visitante era Izzeddin Qalaq, tenso e sorridente
como de costume.49 “Como você chegou aqui?”, perguntamos a ele.
“Cheguei, da mesma forma que vocês chegaram”, ele respondeu.
Percebemos então que Qalaq não tinha mudado em nada.
Continuava distante e genial. No entanto, ele olhava para cada um de
nós com a cautela de alguém que encontra um estranho pela primeira
vez. “Izz, não se preocupe, M está na sala de comando”, dissemos
para ele. Nós conversamos e ele, sem demonstrar surpresa alguma,
como se fosse um viajante comum que acabara de chegar de Paris,
compartilhava sua presença conosco, participando do descolamento
coletivo deste lugar. Esquecemos que ele havia nos deixado para
sempre dez anos atrás e que os mortos não visitam os vivos, exceto
para levantar dúvidas. No entanto, aqui estava Izzeddin, entre nós,
sem alarde nem medo. Perguntei como era lá no outro mundo. Ele
disse que era normal. Nada novo sob o sol. “Há um sol lá?”, eu
perguntei. “Sim”, ele respondeu, “há um sol lá.” Eu perguntei sobre o
clima, e ele me disse que era quente e úmido, pois o tempo em
agosto é sempre quente e úmido. Perguntei se eles recebiam notícias
nossas lá e se estavam sabendo do cerco. Ele me disse que todos lá
acompanhavam as notícias, hora a hora, na televisão. Sentiam raiva
porque não podiam ajudar. Perguntei quem teria chegado até eles
vindo daqui, pois seriam testemunhas oculares do que estava
acontecendo. “Ninguém”, ele disse. “Eles bombardearam o cemitério
dos mártires. Será que ninguém conseguiu escapar e ir até vocês?”,
eu disse. “Não vimos nenhum deles”, ele respondeu. “Onde você
mora, no paraíso ou no fogo?”, eu perguntei. “O que você quer
dizer?”, ele me perguntou, estranhando meu questionamento. “De
onde você veio, do paraíso ou do inferno?”, eu disse. “Eu vim de lá,
do outro mundo”, ele respondeu. Fitei-o à procura de algum sinal em
seu corpo que pudesse indicar sua morada, mas ele estava normal,
comum, assim como quando nos deixou: sem traços de sofrimento
eterno nem sinais de regozijo. “Isso é tudo, Izzeddin? Isso é tudo?
Você se casou?”, eu perguntei. “Ainda não encontrei a pessoa certa.
Quem não tem sorte neste mundo, no outro também não terá”, ele
disse. “Como você passa o seu tempo lá?”, perguntei. “Como
sempre passei: do meu escritório para meus aposentos na residência
da universidade. Das salas de aula para as moradias dos alunos. Eu
muitas vezes penso em você quando viajo de trem, em pé, desde
Paris, e quando olho para fora e vejo a casa de Picasso e sua cabra
famosa, quando vou para o restaurante que tem todos os tipos de
pão empilhados ao longo das paredes. Nesse momento, eu me
lembro dos estudantes tunisianos que gritaram este slogan quando
celebramos o aniversário da revolução: “Pisoteio, pisoteio, com os
pés / Os que pedem rendição!”, ele disse, e nós repetimos o slogan.
Viramos para olhar para B, mas não conseguimos encontrá-lo. Ele
estava ocupado protegendo o ídolo dos bombardeios. Eu disse a Izz:
“Antes da formação, ainda precisamos de ilusões para sermos
formados?”. “Parece que sim”, ele disse. “E neste período formativo,
em nossa busca por modelos, precisamos de ídolos para venerar?”,
eu continuei. “Parece que sim”, ele disse. “E nesta fase da corrida
entre o nosso sangue e a ideia, entre o Ideal e a Organização, ainda
precisamos de tinta podre e literatura banal para provar que somos
qualificados?”, eu perguntei. “Parece que sim”, ele disse. “Se a
resposta é ‘parece que sim’, eu pergunto a você: por que então
devemos trocar Beirute por desonra e assim por diante?”. “Eu não
sei”, ele disse. “Como as pessoas pensam lá?”, eu perguntei. “Igual a
vocês. Assim como as pessoas aqui”, ele respondeu. “Izzeddin, o que
você está fazendo aqui? Você não foi assassinado? Eu não escrevi
sua elegia? E não fomos ao seu funeral em Damasco? Você está vivo
ou morto?”, eu perguntei. “Como todo mundo aqui”, ele disse.
“Izzeddin, suponha que eu diga a você que somos os vivos; isso
significa que você está morto?”, eu perguntei. “Como todo mundo
aqui”, ele respondeu. “Izzeddin, suponha que eu diga a você que
somos os mortos; isso significa que você está vivo?”, perguntei.
“Como todo mundo aqui”, ele disse. “Izzeddin, o que você quer de
mim?”, eu gritei. “Nada”, ele respondeu. “Nesse caso, deixe-me em
paz”, eu disse. “É hora de ir”, ele disse. “Aonde?”, perguntei. “De
onde eu vim”, respondeu. “Fique mais um pouco; vamos partir
juntos”, eu falei. “Minha licença acabou, devo voltar”, disse. “De
onde você veio?”, perguntei. “Eu não sei”, ele disse. Então, apertou
nossas mãos, um por um, e lançou um olhar para você, M, que o fez
se distrair um pouco. Nós o abraçamos na porta, por onde ele
desapareceu como um pensamento fugaz. Olhei para a escada, mas
ele não estava lá. Olhei para a rua, mas não o vi. Ele se misturou à
chuva dos mísseis. Não o vi em lugar nenhum. Olhei para os
estilhaços dos mísseis, não havia ninguém lá. Izzeddin desapareceu.
— Será que ele realmente tinha que voltar? — pergunto.
— Quem?
— Izzeddin.
— E quem é Izzeddin? — eles zombam.
— O homem que estava aqui agora! — eu grito. — O homem
cujos passos ainda estão na escada.
Eles olham para mim como se eu estivesse possuído, enquanto
eu aponto para o assento do qual o fantasma tinha acabado de se
levantar.
— Aqui, aqui! — digo. — Vocês todos falaram com ele. Vocês o
abraçaram.
Mas eles não acreditaram em mim. Eles me ofereceram um copo
de água e uma xícara de café.

Um homem pode sonhar na companhia de outros?


Um homem pode sonhar enquanto conversa?

O mar se aproxima de nós. O outono se aproxima do mar. Agosto


nos entrega ao outono. Aonde, então, nos levará o mar?
É a mesma história. Não a escrevo nem a esqueço. A agonia da
escrita e sua interminável privação: a história do homem que se
sentou sobre uma rocha na praia de Tiro durante vinte e sete anos.
Já não seria hora de me libertar? Não seria hora de me levar com ela
para o mar? Mas quem pode pensar em escrever algo hoje? Vou
copiá-la mais uma vez, apenas para praticar a escrita, apenas para
encontrar o meu caminho para o mar. Já me cansei de tanto
perguntar ao Hani:
— Que nome devemos dar ao homem cujo nome nós
esquecemos? E quando você vai me levar para a rocha de onde
Kamal desceu para o mar?
— Quem é Kamal? — Hani pergunta.
— É o homem cujo nome, há três anos, eu pergunto a você —
digo. — O homem que se sentava numa rocha na praia de Tiro,
esperando uma pomba aparecer do sudoeste, quando o céu
estivesse claro e o mar calmo. Ele não conhecia nada, nada, exceto a
pomba que ninguém mais conhecia. Era seu segredo eterno. Se seus
amigos no campo de refugiados saíam vivos das tentativas de se
infiltrar através da fronteira, ou se morriam, esse heroísmo em nada
lhe importava. Sentava-se sobre sua rocha, esperando a hora certa
de ser levado pelo mar, para a pomba. Nem os jatos que
sobrevoavam nem os funerais dos mártires podiam afastá-lo daquela
rocha. Apenas a neblina e o poente levavam Kamal de volta para a
sua família.
— Pode uma pomba viver vinte e sete anos? — perguntei.
— Kamal acreditava que poderia viver do início dos tempos até a
eternidade — Hani respondeu.
— Por que ele não a caçou, então? — perguntei.
— Porque ela não voa. E porque ele não conseguia alcançar seu
ninho — respondeu.
Finalmente, Hani colocou as mãos sobre a mesa e as abriu, para
verter o segredo de uma vez:
— Por que estou torturando nós dois? Não há necessidade de
todas essas perguntas: a pomba é Haifa.

... pois o Monte Karmel, que surge do mar quando sobe para o
céu e do céu quando desce até o mar, desenha um milagre, quero
dizer, a cidade de Haifa: um pescoço constantemente acariciado por
um beijo moldado de pedra e árvores, coroado por um agudo desejo
na forma de um bico de muitas cores que jura ser possível para uma
onda indócil petrificar-se desde o início dos tempos até a eternidade.
E por ser assim, Haifa se assemelha a uma pomba, e cada pomba se
assemelha a Haifa.
Mas o que Kamal não percebeu foi que a cidade voava, voava no
sangue dele.
Kamal guardava seu segredo, fechando-se em memórias que se
transformaram em sonhos. Ele era constante em sua devoção,
afastando de si um tempo que não o atraía e por isso ele não o
reconhecia. O que acontecia nesse tempo eram preocupações dos
outros, grandes ou pequenas. Quatro guerras eclodiram. Não eram
suas guerras, por isso ele não demonstrava nenhuma preocupação,
desde que nenhum estilhaço atingisse sua pomba.

— Dê-me mais detalhes sobre Kamal, Hani! Você o conhecia


pessoalmente? Você o viu em Tiro?
Hani hesitou em dar uma resposta, e logo eu soube que ele não
tinha nenhuma, mas disse:
— Quem observa o mar não conhece o mar. Aquele que se senta
na praia não conhece o mar, e aquele que chega só para contemplar
não conhece o mar. Só quem mergulha conhece o mar. Ele corre
riscos. Ele esquece o mar no mar. Ele se dissolve no desconhecido,
como faz o amor numa mulher. Nada separa o azul da água. Lá, você
encontra um mundo que as palavras não podem dele se apossar. Ele
não pode ser visto ou tocado, exceto nas profundezas do mar. O mar
é o mar.
— Eu não gosto da sua poesia, Hani. Não me fale de você. Fale-
me de Kamal!
Ele não conseguia. Faz três anos que conta sua própria história
do mar em Tiro, e nada de Kamal. Nada além do lugar.
— Diga-me, qual é a história de Kamal?
— Eu contei que ele chamou Haifa de sua pomba, que ele era
um pescador. À noite, ele pescava; de dia, para a pomba olhava.

... ninguém pode perseguir uma onda que afundou no mar.


Quando o amante sem sorte sai de sua primeira experiência amorosa
e de sua primeira tentativa de suicídio, é difícil para ele, e igualmente
para o juiz, aceitar ou negar sua inocência. Porque o amante sem
sorte prefere a punição a uma confissão que provoque chacota. Terá
que ir para sua primeira prisão e seguir um caminho diferente
quando dela sair. E se eu dissesse: “Quando atravessei a rua, não
estava carregando uma bomba e não estava ciente da placa que dizia
‘Área Fechada’. Eu só estava carregando espinhos do meu coração
para jogar no mar, porque minha amada ia se casar naquela noite”?
Ou se eu dissesse: “Meritíssimo, eu queria cometer suicídio no
desconhecido aquático que não avisa da dor. Mas a lua brilhou e eu
vi as bordas irregulares das pedras sob a superfície clara da água e
fiquei assustado. Retrocedi porque seria obviamente uma morte
cheia de escoriações e muito dolorosa. Ao diabo com aqueles que
marcaram a data do casamento numa noite enluarada!”?
Se eu tivesse dito o que era preciso para me salvar da prisão,
será que o juiz teria aceitado minha narrativa? Teria acreditado que
eu atravessava esta estrada para cometer suicídio por causa de uma
mulher, e não de um país?
Desta forma, o juiz me mostrou que havia outra estrada para o
mar. Que o mar tinha outro segredo. Desde aquele dia, vou até o
mar, mas não o vejo.

— Sabe por que você não o vê? Porque você vai apenas até a
praia.
— Mas eu vejo o mar.
— Não há duas pessoas que possam conhecer o mar da mesma
maneira. Mas o que aconteceu com Kamal? Ele ainda está olhando
para a pomba?
— Ele voltou para o mar. Ele foi à procura da pomba.

... Kamal era um homem de poucas palavras. Quase mudo.


Talvez ele acreditasse que as palavras estragavam a visão e
perturbavam a pomba. Mesmo assim, uma vez ele cantou:

Neste acampamento

Uma rosa nasce

Se ela viver muito tempo

A pomba se perde

— O que ele quis dizer?


— Eu não sei, não sei. Ele era obscuro. Como se não fosse um
de nós. Como se não compartilhasse conosco o retorno.

No outono, o mar não é como o mar. É um tapete de água; e a

luz, um brocado.

No outono, os sinos do mar se calam e os sinos de sangue

badalam.
No outono, a pomba murcha.

No outono, o coração se torna maçã madura.

No outono, a memória se despedaça e o vinho flui do

esquecimento.

No outono, o mudo fala:

Queria tanto poder espalhar meus passos

Numa trilha de espuma!

Queria tanto poder espalhar meus passos,

Para dormir numa cama de espuma!

Haifa! Por que não voou como uma pomba?

Haifa! Por que não voo nem durmo?

Haifa! Por que não diz a verdade?

Você é uma ave ou uma cidade?

Quem dera espalhasse meus passos,

E então descansasse para sempre...

... e Kamal roubou um barco...


Ele remou na direção da pomba. Quando dela se aproximou, era
o sol que luzia. As penas da pomba, bordadas com álamos brancos e
nuvens, eram visíveis. A guarda costeira também era visível. Ele
voltou para o mar aberto e fingiu pescar, até o pôr do sol, quando
poderia saltar para o colar da pomba, adormecida nas ondas a dois
minutos de distância.
Encontrou sua onda perdida e a reconheceu: quando, vinte e
sete anos atrás, despertou ao som de balas vindo das cercanias da
prefeitura, abriu a janela e viu pessoas correndo até o porto. Desceu
a Rua Abbas e, junto àqueles que seguiam em direção ao porto de
Acre, que ainda não tinha sido ocupado, entrou no mar. Foi nessa
mesma onda que ele chegou a Tiro.
Parece que Kamal estava feliz com a forma como ele tomou
posse total de seu destino. Possuiu o momento que separa dois
tempos que não se encontram. Dominou a onda que o levou para o
exílio e estava lhe trazendo de volta agora, como um sonhador que
foi capaz de acordar no momento certo para colocar todo o sonho no
papel. Houve alguma vez um marinheiro que tivesse voltado na
mesma onda que o levara ao exílio e depois desaparecido? Será que
já aconteceu de aquele que foi morto matar seu assassino com o
mesmo golpe da adaga? Já aconteceu de alguém voltar pelo mesmo
caminho pelo qual partira? Ele nunca conseguiu disfarçar seu
desrespeito pelo caminho que os outros tomaram para chegar. Ele
não estava em peregrinação. Ele queria infligir a punição mais severa
a um tempo que o quebrou. Remaria calmamente. Atracaria perto da
primeira pedra. Carregaria o barco nos braços e o enterraria na areia
com toda a força das pombas que trazia dentro dele e que havia visto
em outros céus. Beijaria a terra e colheria dela o aroma de uma
juventude que se partiu e dispersou. Pegaria a chave de sua mãe,
que ele havia recuperado de seu túmulo. Caminharia na Avenida dos
Reis, paralela ao mar, e se lembraria dos primeiros anos de
pescador. Subiria a antiga escadaria de pedras, a começar pelos
Degraus dos Maronitas, e terminaria na Rua Khuri. Viraria para olhar
as janelas diante das quais aprendera o mal de fumar e os primeiros
assobios; depois, dobraria à esquerda em direção à praça cheia de
gatos, a partir da qual desceria cinco estreitos degraus e passaria
por um beco ainda mais estreito para, em seguida, abrir-se diante
dele a vista do Wadi-Annisnas, com suas varandas que davam para a
Igreja Ortodoxa. Evitaria olhar em direção à esquina, a leste, onde é
possível ver um conjunto de edifícios largos que levavam ao bairro
dos judeus. Compraria um pão fresco na padaria em frente ao Wadi.
Subiria uma longa escada à direita e cumprimentaria as pessoas
sentadas em suas sacadas térreas na entrada da Rua Haddad.
Chegando ao local onde três ruas ascendentes se cruzavam, uma
delas o levaria à Rua Abbas; ele subiria e subiria e não ficaria
ofegante. Pararia bastante tempo em frente à ponte, enchendo seus
pulmões com o aroma do carvalho e da ínula. Daria então três
passos, e o porto e o mar apareceriam na sua frente. Ele se sentaria
no banco de madeira e acariciaria imagens que veria pela primeira
vez de longe e se apaixonaria por elas pela primeira vez. Colocaria a
chave na fechadura, que não abriria em razão da ferrugem, bateria
então à porta dos vizinhos, que o cumprimentariam e com ele
compartilhariam a alegria por seu retorno em segurança. Antes de
mais nada, ele lhes pediria desculpas por sua partida, abriria a porta
de sua casa e correria até a torneira para regar as plantas que
estariam com sede. Ele se deitaria no assoalho da casa e dormiria
por horas, horas, horas; dormiria para sempre.
Kamal acordou de seu breve cochilo. O mar estava cheio de
alegria. Ele se sentia tão livre quanto um grão de trigo, o mar era um
solo fértil e as ondas, espigas de trigo.
Olhou para o litoral, que se desdobrava na direção de sua mão
estendida. Viu um diamante cortando a montanha, moldando-lhe um
berço às pressas. Ele dormiria um pouco mais alto que o mar, mais
alto que o próprio sono. O mar o desejaria e o transformaria num
pássaro feito de pedra. Ele dormiria dentro em pouco.
Ao cair da noite, Kamal remou com um entusiasmo nunca
experimentado. Quando chegou perto da praia, os holofotes da
pomba lançaram suas luzes para ele. Levou algum tempo para
perceber que estava cercado pelos barcos da guarda costeira, com
armas apontadas de todas as direções, e que não era a luz da pomba
que o deslumbrava.
A onda se enrugou.
O coração se enrugou.

— Você tem alguma arma com você?


— Eu tenho uma saudade que me mata.
— De onde você é?
— Da pomba.
— Para onde você está indo?
— Para a pomba.
— O que é essa pomba?
— Haifa.
— Quem te mandou?
— O fio de sangue.
— Quantos anos você tem?
— Uma onda que retorna e se perde.
— Onde você mora?
— Em Tiro.
— O que você faz lá?
— Eu fabrico deuses.
— Quais são os nomes dos seus deuses?
— A pomba.
— Você é um fedaí?
— Não.
— O que você quer?
— Quero enterrar meu corpo com minhas próprias mãos sob o
colar da pomba.
Os homens da guarda costeira não entenderam e nem
acreditaram no que ele dizia. Pensaram que ele estava enrolando.
Com muita cautela, subiram no barco de Kamal, amarraram-no e
arrancaram suas roupas. Mas nada encontraram. Sem armas, sem
documentos. Perguntaram então se ele era um pescador que tinha se
perdido no mar.
— Não — disse. — Não, eu não me perco. Eu conheço muito
bem a pomba e vim para ver a pomba.
Eles não entenderam. Eram de Haifa e não sabiam o que era
uma pomba.
— É só isso? Você só quer ver a pomba?
— Sim, sim.
— Então você verá a pomba!
Eles pregaram suas mãos, seus pés e seus ombros na madeira
do barco e disseram:
— Fique aqui e olhe para a pomba. A pomba está na sua frente.
Ele sangrava enquanto a pomba crescia e diminuía.
Uma semana depois, o mar trouxe seu corpo de volta para o
litoral de Tiro, de volta para a rocha de onde ele costumava olhar
para a pomba.

Este é o mar?
Sim, este é o mar...
Adentrei a noite azul-escura da cidade. O cansaço e os pesadelos da
vigilância pesavam sobre mim. Minha vida deu voltas bruscas. Eu não
posso mais continuar com essas interrupções do tempo, não posso ir
mais fundo do que o início da noite. Quem me levou para o beco
entre o Mayflower e o Napolion? Eu não vou entrar lá, pois já sei de
cor o que vou ouvir. O bombardeio aéreo ilumina caminhos largos no
beco para os passos que arrasto. Aqui, eu não morri. Aqui, eu ainda
não morri. Tenho arrastado minha sombra por essa calçada nos
últimos dez anos, colocando uma assinatura no meu exílio, com a
certeza de que não ficaria mais do que um ano. Os anos foram se
acumulando, um em cima do outro. Há dez anos que bato nessa
porta, evitando o mar. Eu preferia a rota terrestre, o caminho pelo
qual segui há trinta anos, e pelo qual caminhei novamente para voltar
para lá. Esqueci de voltar, ou esqueci de lembrar? Como era tudo,
qualquer coisa, dez anos atrás? Meus dias marcham diante de mim
como ovelhas que não pertencem ao mesmo rebanho. Eles marcham
como o cheiro de uma rosa em pé contra o vento. Eles marcham
diante de mim, como também marcho em torno deles num jogo de
cadeiras musical liderado por máquinas metálicas. Aqui, eu não
morri. Aqui, ainda não morri. Mas estes gritos que descem do céu e
erguem-se da terra e não param... não param nem permitem que
nenhuma imagem dos meus dias permaneça numa única forma. Não
permitem que meu medo se torne completo ou minha imprudência,
descuidada. “Chega!”, eu movo a mão na escuridão iluminada para
afastar a nuvem de jatos de minha visão como se afastam as moscas.
“Chega!”, eu digo mais alto. Mas a resposta volta mais e mais
intensa. A nuvem cospe massas de labaredas que me trazem de volta
de uma viagem de trem de Haifa para Yafa, e me dou conta de que
agora caminho por outra estrada. “Chega! Eu entendi a mensagem.”
E se eu estivesse aqui? Aqui, eu não morri. Ainda não morri. “Chega!
Vamos sair.” Dissemos que sairíamos, então por que esse delírio
infernal? “Chega!” Quem dera não sair, enquanto continuarem com
esse delírio infernal. “Chega! Filhos de uma cadela, fascinados com
músculos de metal, raios laser, bombas de fragmentação e bombas
de vácuo! Chega dessa demonstração desenfreada de força! Chega
de destrinchar a cidade e os nervos!” A escuridão se espalha
rapidamente numa cidade sem eletricidade. Um único pedaço de
carvão pode dar à luz toda essa escuridão em menos de meia hora. A
primeira parte da noite tem um gosto amargo, azedo, flácido, um
gosto que cria na alma um país de exílio estranho e, na sede do
corpo úmido, um desejo lânguido por uma sede de outro corpo
úmido, e desvia o esquecimento para outro curso: um mataria o outro
do lado de fora da janela. O trem do litoral concorre com o mar à
direita e com as árvores à esquerda. Chuva. Chuva e árvores. Chuva,
árvores e metal. Chuva, árvores, metal e liberdade. Meu amigo
divertido faz piadas sem fim com meu outro amigo magro e sombrio.
Pela primeira vez eles nos deram permissão para deixar Haifa, mas
deveríamos retornar à noite para nos apresentarmos à polícia na
delegacia que ficava do lado do parque municipal. Cada um dizia a
seu modo: “Anote! Eu existo! Anote!” — um ritmo antigo que eu
reconheço! — “Anote: eu sou...”. Eu reconheço essa voz, que tem
vinte e cinco anos de idade. Ó, tempo vivo! Ó, tempo morto! Ó,
tempo vivo, saindo de um tempo morto! “Anote: eu sou árabe!”50 Eu
disse isso a um funcionário do governo cujo filho podia agora estar
pilotando um desses jatos. Eu disse em hebraico para provocá-lo.
Mas quando disse isso num poema em árabe, o público árabe em
Nazaré foi tocado por uma corrente secreta que libertou o gênio da
garrafa. Eu não entendi o segredo dessa descoberta, como se tivesse
arrancado um raio de um campo minado de pólvora da identidade.
Esse grito, então, tornou-se minha identidade poética, que não só
aponta para minha filiação, mas que me persegue.
Eu não sabia que era necessário dizer isso aqui em Beirute:
“Anote: eu sou árabe!”. O árabe tem que dizer aos árabes que é
árabe. Ó, tempo morto! Ó, tempo vivo! Eu olho para o relógio para
descobrir quantos anos tenho agora. Sinto vergonha: uma pessoa
tem que olhar o relógio para saber quanto tempo viveu? Poucas
semanas atrás, meu amigo A armou para mim a emboscada dos
quarenta anos. Na festa de aniversário, Muín51 riu em voz alta e disse:
— Você não é mais um jovem, graças a Deus! Estamos nos
livrando de mais um jovem. Você não é mais um jovem! Você está
agora com quarenta anos de idade!
— Ó, seu velho, isso deixa você feliz? — eu disse.
— O que me deixa feliz — respondeu — é você estar agora com
quarenta anos.
— Você esqueceu que está se aproximando dos sessenta? —
retruquei.
— Não faz nenhuma diferença — ele respondeu. — Todas as
idades são iguais depois dos quarenta. Você agora me alcançou. Faz
vinte anos que espero por você no limiar dos quarenta e agora você
chegou. Bem-vindo! Você não é mais um jovem. Não é mais.
Muín bebeu até delirar, chegou inclusive a pensar que eu
envelhecia, mas ele não. Ele estava totalmente fascinado pela
paridade. “Viva a paridade!”, gritamos e celebramos com ele. Ai do
tempo! O trem corta o mar e as árvores. Árvores e mar fogem do
trem. O trem da idade nos trilhos do tempo. Estávamos realmente
com vinte anos quando minha identidade me levou àquele hino,
formado por cascos de cavalos que desapareciam num horizonte
aberto a outro que, por sua vez, se abria a outro horizonte, que não
sabíamos se estava aberto ou fechado? Estava eu realmente com
vinte e sete anos quando o hino da identidade friccionou o “Cântico
dos Cânticos”, incendiou o lírio e me fez ouvir os últimos gritos de
um cavalo que liderou o caminho do Monte Karmel ao Mediterrâneo?
Até quando a dor vai se lembrar da sua encantadora serpente, e até
quando vamos continuar chegando aos quarenta? Uma coincidência.
Não é mais que coincidência a saída do corpo ter que ser também a
saída do país. Não me lembrava dessa coincidência até este
momento. Trem, chuva, árvores, uma lareira e dois pés brancos
descalços sobre as peles de vinte ovelhas que passaram pelo
“Cântico dos Cânticos”. O cantor cantava para Suzanne, que o levou
até o rio. Ela dizia: “Leve-me para a Austrália”. E eu dizia: “Leve-me
para Jerusalém”. Não, eu não me lembrei de nada, eu estava
sonhando. Será então o sonho a escolha do esquecimento? Mas do
sonho nasce outro sonho.

— Você está vivo?

Ó, tempo vivo! Ó, tempo morto! O círculo está completo. Minha


mãe distante abre a porta do meu quarto e me oferece um café na
bandeja do seu coração. Eu brinco com ela: “Por que me deixou
colocar o joelho na faca e pressionar, para que eu ficasse com essa
cicatriz? E por que me deixou montar o cavalo com a sela frouxa,
para que eu fosse derrubado, deixando esta cicatriz na minha testa?”.
A noite azul-escura está abrindo, clareando, ficando branca. A
escuridão é branca, branca. Eu me encontro sentado num sofá de
couro confortável, ouvindo a tríade harmoniosa da morte: jatos,
navios e artilharia. Acendo o lampião para preparar os ritos do final.
Ainda são dez horas. Carreguei o lampião com o seu ronco familiar e
caminhei até o escritório para escrever meu testamento. Não
encontrei nada para legar. Não há segredo na minha vida, nenhum
manuscrito secreto, nem cartas pessoais. Meu editor é conhecido.
Minha vida é o escândalo da minha poesia, e minha poesia é o
escândalo da minha vida. A abertura de um poema voa dos telhados
dos vizinhos e chega a mim: “A pomba voa. A pomba pousa. A
pomba está voando. A pomba está pousando”.52 Gostei da ideia de
morrer aos quarenta anos, nem antes nem depois.
Ouvi duas batidas na porta. Ela está lá, tensa, como no último
chamado — ela, a obcecada por apagar o sal que se inflama no seu
sangue. Eu a chamo por outro nome.
— Quem é essa? — ela pergunta.
— Ninguém — eu respondo.
Ela pega o lampião e vai procurar pelo outro nome em cada
canto da casa e na varanda. Não encontra ninguém.
— Você está delirando ou sonhando?
— Um pouco disso, um pouco daquilo.
— Quem é ela?
— Ninguém.
— Você delira?
— Às vezes.
Ela se aproxima de mim e deflagra o fogo de sua barriga macia,
fogo azul e branco. Um silvo. Sibilo de sal. Gemido reprimido de
gatos. Um desejo por uma morte diferente.
— Todos os dias? — pergunto.
— Todos os dias, até o cerco acabar. Então, eu vou para casa e
você sai de Beirute. Seja meu caixão, para que eu seja o seu.
— Na varanda, então. Eu quero erguer o meu caixão na varanda,
à vista de seus jatos, navios e artilharia. À vista das luzes de
Achrafiye.
— Você está louco?
— Enlouquecido pela vida.
— Não, na varanda não.
— Na varanda você vai erguer seu caixão. A varanda é a
agressão da vida à morte. É a resistência ao medo da guerra. Não
quero ter medo. Não quero ter vergonha.
— Mas como posso gritar na varanda?
— Você precisa sempre gritar?
— Os homens não entendem as mulheres.
— As mulheres não entendem os homens...

E aqui, eu não morri. Ainda não morri, aqui. Há dez anos que moro
aqui. Eu nunca vivi dez anos seguidos em nenhum outro lugar. Eu
nunca tinha me acostumado ao cheiro das verduras, aos gritos dos
vendedores, aos ruídos do bar armado, aos problemas da água e do
elevador, como me acostumei aqui. Aqui, eu não morri. Muitas
varandas com vista para muitas outras varandas, abertas na
primavera, no verão e no outono, e no começo e no fim do inverno
também, trocando segredinhos e pequenos escândalos; televisores
com o som alto, cheiro de alho e de grelhados e ruídos de camas
tremendo, de tarde e de noite. Uma pequena rua... pequena com o
nome Yamut [ele morre]. E aqui, eu não morri. Há pouco tempo, na
temporada dos carros-bomba, eu estava andando com um vizinho no
início da noite, quando ouvimos um barulho vindo de um carro. Nós
alertamos as pessoas que era necessário evacuarem as casas até
que um especialista militar chegasse, pois a explosão de um único
carro poderia matar todos os moradores do bairro — que vieram de
todas as zonas de massacres e de todas as seitas, em busca de
abrigo em torno da Universidade Americana. Quando o especialista
militar chegou e inspecionou o carro, não encontrou cem quilos de
dinamite como tínhamos suspeitado, mas um rato faminto roendo as
entranhas do veículo. As pessoas riram quando se deram conta de
que um rato tinha o poder de evacuar um bairro inteiro. Sim, um rato
tem o poder de desolar uma cidade inteira e governar um país!

E aqui, eu não morri. Aqui, ainda não morri. Toda vez que um
avião pousava no aeroporto de Beirute, eu sentia o cheiro do
desconhecido e o aroma da partida que se aproximava. A neblina que
subia da umidade do verão, da forte secura, cortante e breve, da
primavera, despertavam em mim a sensação do temporário. Vamos
ficar aqui? Nós não vamos ficar. Parece que o final das coisas tem
uma forma definida, uma ambiguidade definida, um tipo de
conspiração entre a natureza e a apreensão. E que apreensão!
Especialmente em agosto! Agosto, o mês vil, desprezível, agressivo,
ressentido e traiçoeiro. Agosto, capaz de fornecer ao símbolo todos
os cadáveres de que precisa, e, à lassitude do corpo, aquilo que a
natureza mija sobre ele: uma melancolia fumegante e o prenúncio de
uma umidade congestionada. O rosto de agosto é um rosto pronto
para estourar, mas incapaz de encontrar uma privada ou uma parede
não observada. Agosto, mês sujo, enfadoso, árido e assassino;
adepto a finais de longos começos, finais que não começam nem
terminam. É como se agosto fosse uma seita de muitas estações, que
ainda não encontrou seguidores. Agosto é capaz de provocar até
mesmo o mar... o mar que afasta para o horizonte o gemido das
balas.

— Diga-me, irmão Mahmud, o que quer dizer com mar? Qual é o


significado de mar, quando você diz “o mar é minha última bala”?
— De onde você é, irmão?
— De Haifa.
— De Haifa! E não sabe o significado de mar?
— Eu não nasci lá. Eu nasci aqui, no campo de refugiados.
— Você nasceu aqui, no acampamento, e ainda não conhece o
mar?
— Sim, eu conheço o mar. O que eu quero saber é qual o
significado de mar na poesia?
— O significado de mar na poesia é o mesmo que seu
significado na beirada da terra.
— O mar na poesia é o mesmo que o mar no mar?
— Sim, sim. O mar é o mar, na poesia, na prosa e na beirada da
terra.
— Mas me disseram que você é um poeta simbolista, transborda
símbolos. Por isso pensei que o seu mar não era o mesmo mar que
conhecemos, que era um mar diferente do nosso mar.
— Não, irmão. Eles o enganaram. Meu mar é o seu mar, e o seu
mar é o meu mar. Nós viemos do mesmo mar e estamos indo para o
mesmo mar. O mar é o mar.
O combatente se surpreendeu com a incapacidade do poeta de
explicar sua poesia. Ou talvez com a simplicidade da poesia, desde
que o mar seja o mar. Ou quem sabe com o fato de que os fatos
simples têm o direito de falar.
— Não é você, irmão, que traz o mar para a poesia quando o
carrega nos ombros e o coloca onde bem entende? Não é você quem
abre em nós o mar de palavras? Não é você mesmo o mar da poesia
e a poesia do mar?
— Eu sou inocente. Estou apenas defendendo meu direito, a
memória do meu pai, e estou lutando contra o deserto.
— Eu também. Mas o mar, irmão, é o mar.
E até ele, iremos daqui a pouco, em arcas de Noé modernas,
num azul que revela uma brancura interminável, que não nos mostra
nenhuma costa. Para onde? Para onde o mar nos levará no mar? E
aqui, eu não morri. Ainda não morri. Vou dormir. O que é o sono? O
que é essa morte mágica adornada com os nomes das uvas? Um
corpo, pesado feito chumbo, é jogado pelo sono numa nuvem de
algodão. Um corpo que sorve o sono como uma planta abandonada
sorve o cheiro do orvalho.
Adentro o sono devagar, lentamente, ao ritmo de sons distantes,
sons que chegam de um passado disperso sobre a cama amassada e
os dias enrugados. Eu bato na porta do sono com músculos ora
tensos ora frouxos. Ele abre os braços para mim. Peço permissão
para entrar e me é concedida. Eu entro. Eu agradeço. Eu o elogio, o
louvo. O sono me chama e eu chamo o sono. O sono é uma
escuridão que desmorona gradualmente em branco e cinza. O sono é
branco. É separação, e é branco. É independência, e é branco.
Macio, forte, e é branco. O sono é o despertar da fadiga e seu último
gemido, e é branco. O sono tem uma terra branca, um céu branco e
um mar branco; músculos fortes e músculos feitos de flores de
jasmim. O sono é mestre, é príncipe, é rei, é anjo, é sultão e é deus.
Eu me entrego a ele como faz um amante aos elogios de sua primeira
amada. O sono é um corcel branco voando sobre uma nuvem branca.
O sono é paz. O sono é um sonho nascido de um sonho.

— Você está vivo?


— Numa região intermediária entre a vida e a morte.
— Você está vivo?
— Como soube que eu estava, neste momento, colocando minha
cabeça sobre seus joelhos para dormir?
— Porque você me acordou agora, quando se mexeu na minha
barriga. Você está vivo?
— Eu não sei. Eu não quero saber. Acontece muitas vezes de
sermos despertados do sonho por um outro sonho que é por sua vez
a interpretação do sonho?
— Isso é o que está acontecendo agora. Você está vivo?
— Enquanto eu estiver sonhando, estou vivo. Os mortos não
sonham.
— Você sonha muito?
— Quando estou me aproximando da morte.
— Você está vivo?
— Quase, mas há, no tempo, muito espaço para a morte.
— Não morra.
— Tentarei.
— Você me amou?
— Eu não sei.
— Você me ama agora?
— Não.
— O homem não entende a mulher.
— E a mulher não entende o homem.

Ninguém entende ninguém.


E ninguém entende ninguém.
Ninguém entende.
Ninguém...
Ninguém...

O mar anda nas ruas. O mar pende das janelas e dos galhos das
árvores secas. O mar cai do céu e entra na sala: azul, branco,
espuma, ondas. Eu não gosto do mar. Eu não quero o mar, porque
não vejo uma praia, nem uma pomba. Não vejo no mar senão o mar.

Não vejo uma praia.


Não vejo uma pomba.
Notas

1 Referência aos jovens palestinos nascidos nos campos de refugiados do Líbano e


à sua heróica participação na resistência à invasão israelense. (Todas as notas são
da tradutora, exceto a nota 30)

2 A “lenda”, ao longo do texto, é uma referência ao exército israelense; “profeta da


perdição” é provavelmente uma alusão ao então ministro da Defesa israelense,
Ariel Sharon, que ordenou a invasão do Líbano em 1982; os “pastores da opressão”
são os líderes árabes; e o “guardião da lenda” é Menahem Begin, o primeiro-
ministro israelense na época. Este último será mencionado várias vezes mais
adiante, principalmente quando Darwich alude à sua atuação no massacre de mais
de 250 habitantes da aldeia árabe de Deir-Yassin, ocorrido em 9 de abril de 1948,
pelas mãos de grupos paramilitares israelenses.

3 Uso recorrente, o “aqui” se refere a Beirute e o “lá”, à Palestina.

4 Trata-se de uma canção que ficou famosa na voz de Muhammad Abdul-Wahab.


São versos de uma qasida (forma clássica do poema árabe) escrita pelo poeta
egípcio Ali Mahmud Taha.

5 Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, mais


conhecida pela sigla, em inglês, UNRWA.

6 Esta passagem sarcástica refere-se à acolhida dada ao exército israelense por


membros da comunidade maronita libanesa, em Achrafiye, reduto da milícia
falangista.
7 Referência às cores da bandeira palestina (branco, preto, verde e vermelho). O
verso mencionado é: “Brancos são nossos atos, negras, nossas batalhas; verdes
são nossos pastos, e vermelhas, nossas espadas”.

8 Fidaí (pl. fidaíyin) é quem sacrifica a vida por alguém ou por algo. O termo foi
popularizado como referência aos combatentes palestinos que se sacrificavam por
sua pátria.

9 Referência às tribos árabes pré-islâmicas. Dahis era o nome de um cavalo


pertencente a uma tribo que entrou em guerra com outra, cujo cavalo mais famoso
era Ghabra. O nome desta guerra tribal foi inspirado no nome dos dois cavalos,
Dahis e Ghabra.

10 Linha que dividia Beirute em duas cidades durante a guerra civil.

11 Trata-se de Albert Adib e de sua esposa Camille Chalfun. Adib foi um poeta
libanês, nascido no México em 1908. Viveu no Sudão, no Egito e no Líbano, onde
faleceu, em 1985. Foi o fundador da revista Aladib, mencionada por Darwich.

12 Comandante das Forças Cristãs Libanesas e pró-Israel, Bachir Gemayel foi


eleito presidente do Líbano em 1982 e foi assassinado alguns dias após sua eleição.
Ele morreu em um atentado à bomba hoje atribuído à Síria. Em retaliação à morte
de Gemayel, milícias cristãs libanesas invadiram os campos de refugiados de
Sabra e Chatila e massacraram centenas de civis, também em 1982.

13 Referência ao Egito, o qual, após a assinatura do acordo de Camp David, foi


considerado por muitos o Centro dos países árabes. Os palestinos, por sua vez,
são o “cerne da questão”.

14 Em árabe Ifranj, termo que designa os “europeus”. Sua adoção remonta


provavelmente aos tempos das Cruzadas. O termo é bastante presente neste texto
e, mais adiante, é usado como metáfora para a ocupação estrangeira dos
territórios árabes.

15 Y é o poeta iraquiano Yussif Assayigh, que morava em Beirute na época.


16 F é o jornalista e historiador libanês Fawwaz Trabulsi. Durante o cerco de
Beirute, conviveu com Darwich quase diariamente.

17 Mateus (13:1-9).

18 Mateus (15:22-28).

19 Abqar, segundo a lenda da mitologia árabe, é o nome do gênio da poesia que


habitava esse profundo Vale.

20 Almaaraka (A Batalha) foi um jornal publicado em Beirute durante o cerco.


Serviu como registro cultural e político diário da guerra e de seus eventos. Ziad
Abdul-Fattah, citado em seguida como Z, foi o editor desse jornal.

21 Foi Hafez Alassad, o presidente sírio de então, quem apresentou a ideia de


estabelecer um equilíbrio estratégico antes de lutar com Israel, isto é, construir um
poder militar e econômico sírio, equiparado às capacidades de Israel. Darwich aqui
critica tal ideia, argumentando que só justificaria a perpetuação do status quo.

22 Alusão ao Cerco de Massada, ocorrido entre 73 e 74 d.C.. Massada é um


planalto escarpado situado na região desértica do Mar Morto. O local sofreu longo
cerco pelas tropas romanas, o qual teria levado ao suicídio em massa dos judeus
que viviam na fortaleza de Massada.

23 Josué (6:16-26).

24 Uri Avnery, jornalista, militante pacifista e político ligado à esquerda israelense.


Avnery, então trabalhando para a revista HaOlam HaZeh, entrevistou Arafat em
Beirute, durante o cerco do exército israelense.

25 Nome pelo qual Yasser Arafat também era conhecido.

26 Referência a Salim Barakat, romancista e poeta curdo-sírio que vivia em Beirute


à época do cerco. Foi também diretor da revista Alkarmel, da qual Drawich foi
editor. Quanto a J, citado mais adiante neste parágrafo, não foi possível descobrir
sua identidade.
27 Após a devastação do campo de refugiados Tall-Azaatar, a cidade litorânea de
Damur caiu nas mãos das forças palestinas. Aqui, além do poeta criticar
severamente o que essas forças fizeram nessa cidade, cometendo a atrocidade de
matar pessoas e dependurar seus corpos nas bananeiras, ele recusa o lema
“guerra é guerra”, usado como justificativa para tais atos.

28 “Estado de Haddad” refere-se a uma área no sul do Líbano que Israel colocou
sob o controle do Major Saad Haddad, um dissidente do exército libanês. Essa
região foi denominada de “faixa de segurança” e desligada do resto do Líbano após
a invasão de 1978.

29 Trecho da obra Dom Quixote de La Mancha, presente no capítulo XXXIII “Onde


se conta a novela do curioso impertinente”.

30 Em 1982, na fase de grupos da Copa do Mundo da Espanha, a seleção da


Argélia venceu a poderosa Alemanha Ocidental de Rummenigge —campeã da
Europa — por 2 a 1. Esse grupo, formado também por Chile e Áustria, teria um
desfecho lamentável. Nos jogos desta chave, todas as equipes venceram o Chile. A
Argélia venceu a Alemanha, mas perdeu para a Áustria. Então, na última partida do
grupo, austríacos e alemães combinaram o resultado — 1 a 0 para a Alemanha —
que classificaria as duas equipes e eliminaria os argelinos. No fatídico jogo entre
os dois times europeus, após o gol da Alemanha, aos onze minutos do primeiro
tempo, as duas seleções passaram a tocar a bola de forma displicente e sem
nenhum interesse em alterar o placar. Esse acordo entre as duas equipes
europeias, que ficou conhecido como “pacto da vergonha”, retirou a Argélia de
Madjer, Belloumi, Assad e Kourichi da Copa da Espanha e produziu manifestações
maciças em algumas capitais árabes. Depois dessa farsa, a FIFA passou a fazer os
jogos das últimas rodadas da fase de grupos da Copa do Mundo no mesmo horário
para evitar novos vexames. (N. do E.)

31 Referência ao presidente Gamal Abdel Nasser, o qual apelou ao povo para


apoiá-lo a permanecer no poder depois da derrota na Guerra de Junho, em 1967,
com o argumento de que os israelenses queriam sua renúncia.

32 Referência a uma liderança palestina. Muito provavelmente, Ahmad Jibril,


conhecido como Abu-Jihad.
33 Theodor Herzl (1860-1904), jornalista austro-húngaro considerado o fundador
do sionismo.

34 Ibn-Kathir foi um historiador do séc. XIV, autor de Albidaya wa annihaya, um


livro de história universal. A obra, em dez volumes, cobre o período que vai desde
a Criação até os tempos de Ibn-Kathir.

35 Ussama Ibn-Munqith, historiador do século XII, foi um dos mais importantes


cronistas da Idade Média, tendo reportado as Cruzadas a partir da perspectiva dos
povos invadidos.

36 Este verso se repete toda vez que o poeta relembra a paixão por sua namorada
israelense. Faz parte do poema “Uma bela mulher em Sodoma”.

37 O professor de línguas semíticas é o intelectual e professor universitário


libanês, Anis Fraiha (1903-1993). O professor de inglês é Suhail Badí Buchruí,
escritor, poeta e crítico, nascido na palestina, com cidadania libanesa, e grande
estudioso da obra de Gibran Kahlil Gibran.

38 Mais uma vez ele cita um verso do poema “Uma bela mulher em Sodoma”. Aqui,
diferentemente das ocorrências anteriores, “matar” aparece como metáfora do ato
amoroso.

39 Esse texto é parte de um editorial escrito por Darwich para a revista Alkarmel
(1982, 5:4).

40 Referência à tenda que era transportada com o Profeta em suas viagens, aberta
e armada onde fosse se hospedar. Metáfora do zelo pelo qual era rodeado Bachir
Gemayel.

41 Trata-se do historiador palestino-americano Rachid Alkhalidi.

42 Trata-se de Hoda Adib, filha de Albert Adib, citado anteriormente. Ela é poeta e
musicista, autora de mais de uma dezena de livros, e mora na Inglaterra desde
1989.
43 Khalil Hawi foi um poeta libanês que cometeu suicídio no segundo dia da
invasão israelense a Beirute.

44 Trata-se do poeta sírio Adonis.

45 Trata-se de Rasmi Abu-Ali, escritor e jornalista jordaniano de origem palestina.


Foi um dos editores da Arrasíf.

46 Trata-se de Bassam Abu-Charif, ex-consultor sênior de Yasser Arafat e líder da


Organização de Libertação da Palestina.

47 Othman Ibn-Affan (574–656 d.C.), o terceiro califa. Seu califado trouxe à tona
questões de legitimidade política, provocando desavenças com a comunidade
muçulmana de então.

48 Habbat riyah aljanna, célebre frase proferida por Yasser Arafat e transmitida
entre os combatentes como lema de encorajamento durante os meses de
resistência em Beirute.

49 Izzeddin Qalaq foi um intelectual palestino e representante da OLP na França.


Foi assassinado em agosto de 1987, presumidamente por Israel.

50 Sajjil ana arabi é o primeiro verso do famoso poema de Darwich intitulado


“Bitaqat Huwiyyah” (Carteira de identidade), de seu primeiro livro de poesia,
Awraq azzaitun (Folhas das oliveiras), de 1967.

51 Muín Bseisso, poeta e líder comunista palestino.

52 Estes são os primeiros versos de um poema de Darwich, que faz parte do livro
Hisár li-madaíh albahr (Cerco de elogios ao mar), de 1984.
Agradecimentos da tradutora

Gostaria de agradecer a Ahmed Abu Hasna, Daniela


Zannini, Felipe Benjamin Francisco, Jemima Alves, Michel
Sleiman, Mostafa Yousef, Murad Sudani, Saqr Abu Fakhr,
Siham Dawud e aos editores Renato Roschel e Laura Di
Pietro, que me encorajaram, me inspiraram e me
ajudaram a trazer para o português, e para o público
brasileiro, esta prosa poética do poeta palestino Mahmud
Darwich.
Título original
‫ذاكرة للنسيان‬ | Dhakira lil-Nisyan

© Mahmoud Darwish Foundation, 2020.

Editores Laura Di Pietro e Renato Roschel


Revisão Leandro Durazzo
Capa e Projeto Gráfico Marcelo Pereira | Tecnopop
Diagramação Valquíria Palma
Produção do arquivo ePub Rejane Megale

Este livro atende às normas do Novo Acordo Ortográfico em vigor desde janeiro de
2009.

ISBN: 978-65-86824-21-6

A primeira edição em árabe foi publicada em 1987, no Marrocos, pela Dar Toubkal.

[2021]

Todos os direitos desta edição reservados à


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