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FUNDAMENTAIS
DA LITERATURA
UNIVERSAL
ISBN 978-85-9502-172-3
CDU 82-7
Introdução
Gustave Flaubert escreveu um livro que causou uma grande comoção
na época da sua publicação. O escritor chegou a ser acusado na justiça
francesa por supostamente ter concebido um romance obsceno, que
ofendia a moral pública e os bons costumes. Esse romance era Madame
Bovary, de 1856.
Neste capítulo, você vai descobrir que história esse romance conta
e qual é o motivo de ele ter sido tão polêmico no século XIX. Também
vai relacionar essa obra e outras de Flaubert com as características do
Realismo, que serão contrastadas com as do Romantismo, escola artística
que veio logo antes.
Eram esses fatos que o Realismo procurava retratar fielmente. Dessa forma,
você pode notar que esse movimento se preocupou bastante com as questões
sociais e possuía uma forte tendência à crítica dos valores estabelecidos: eles
criticavam a forma como a burguesia vivia; criticavam o casamento como
instituição; criticavam uma vida levada apenas pelas aparências e o artifi-
cialismo das relações; apresentavam, em contraste, a forma como as pessoas
mais humildes viviam.
Em segundo lugar, você precisa entender o que os realistas concebiam por
copiar a realidade. Nesse sentido, há um conceito que é chave para a compre-
ensão dessa questão: mimesis. Esse conceito é importante para a literatura desde
Aristóteles (2008), que explica, na sua obra Poética, que a mimesis é a represen-
tação do mundo sensível. Algumas palavras ou expressões que se relacionam
com a mimesis são mímica, imitação, representação ou ato de se assemelhar.
O teórico francês Antoine Compagon, na obra O demônio da teoria: li-
teratura e senso comum, explica a busca pela mimesis como a ambição dos
escritores de “[...] relatar de maneira cada vez mais autêntica a verdadeira
experiência dos indivíduos, divisões e conflitos opondo o indivíduo à expe-
riência comum” (COMPAGNON, 2006, p. 107). Nesse excerto, é importante
destacar os adjetivos autêntica e verdadeira para qualificar essa representação
da realidade ambicionada pelos realistas. Aqui, não conta tanto a forma como
o personagem se sente e como sente, consequentemente, o mundo ao seu
redor. O que conta mais é o que existe independentemente de opiniões e de
subjetivismos — o que conta é a realidade objetiva.
Nesse sentido, uma corrente filosófica foi bastante importante para a cons-
tituição do Realismo: o Positivismo. O Positivismo surgiu na França, no século
XIX, e os seus principais pensadores e idealizadores foram Augusto Comte e
John Stuart Mill. Para eles, o conhecimento científico é a única forma válida
de se conhecer a realidade. Eles se preocupavam em encontrar tendências e leis
para os fenômenos naturais e procuravam ser sempre o mais objetivo possível.
Dessa forma, você pode perceber as semelhanças entre o que os positivistas
afirmavam e a busca dos realistas pela representação fiel da realidade.
Se a realidade não é idealizada, os personagens dos textos literários ro-
mânticos igualmente não são. Assim, os protagonistas não são heróis solares e
imaculados — eles não são perfeitos e não possuem apenas sentimentos elevados
de bondade e amor pelo próximo. Eles são heróis problemáticos e complexos.
Eles também podem se constituir como seres insignificantes e medíocres. Tudo
depende de qual realidade é retratada no romance. Além do herói, a figura
da mulher, tomada como angelical no Romantismo, não é mais idealizada,
aproximando-se de possíveis mulheres reais, com qualidades e defeitos.
E no porto, em meio aos carroções e aos barris, e nas ruas, nos marcos
das encruzilhadas, os burgueses esbugalhavam os olhos assombrados
diante daquela coisa tão extraordinária na província, uma carruagem com
os estores fechados e que aparecia assim continuamente, mais fechada
do que um túmulo e sacudida como um navio.
Uma vez, pela metade do dia, em pleno campo, no momento em que o sol
dardejava seus raios com maior força contra as velhas lanternas prateadas,
uma mão nua passou sob as pequenas cortinas de fazenda amarela e
lançou pedaços de papel, que se dispersaram no vento e caíram mais
longe como borboletas brancas num campo de trevos vermelhos floridos.
Mais tarde, pelas seis horas, a carruagem deteve-se numa ruazinha do
bairro Beauvoisine e uma mulher desceu, caminhando com o véu abai-
xado e sem virar a cabeça (FLAUBERT, 2010, p. 304-306).
Com Walter Scott, mais tarde, apaixonou-se por coisas históricas, sonhou
com arcas, salas da guarda e menestréis. Teria desejado viver em algum
velho solar como aquelas castelãs de longos corpetes que, sob o trifólio
das ogivas, passavam seus dias com o cotovelo apoiado na pedra e o
queixo na mão a olhar um cavaleiro de pluma branca, vindo do fundo
dos campos galopando um cavalo negro (FLAUBERT, 2010, p. 54-55)
Mas era sobretudo nas horas das refeições que ela não aguentava mais,
naquela pequena sala do andar térreo, com a estufa que fumegava, a
porta que rangia, os muros que transmudavam, as lajes úmidas; toda a
amargura da existência parecia-lhe servida em seu prato e, com a fumaça
do cozido, ela sentia do fundo de sua alma outras lufadas de enfado.
Preste atenção na imagem criada aqui: como a rotina é o que leva Emma a
esse estado de apatia, o narrador diz que a sua amargura parecia ser servida no
prato e que, com a fumaça desse cozido de amargura, vinha o cheiro de mais e
mais enfado. Uma das coisas que mais marca a nossa rotina são justamente as
refeições e, portanto, até a comida se reveste de tédio aos olhos de Emma. Até
mesmo a lentidão de Charles ao comer e o brincar de Emma com a faca dão a
sensação de tédio. O leitor é contagiado por essa atmosfera de marasmo e de
tristeza. A decrepitude da casa também não é escondida ou amenizada — é
apresentada em toda a sua crueza ao leitor. Em outros trechos, o narrador ainda
descreve a situação a que chega Emma, sem cuidar de si mesma ou da casa,
sofrendo de distúrbios psicológicos e de um desespero sem fim.
Tudo isso, somado às dívidas que contrai e que não consegue pagar, levam
Emma ao suicídio. A cena da sua morte, após ter tomado veneno, também é
bastante crua:
Essa não é uma morte tranquila e poética. É uma morte bastante terrível,
e o narrador não poupa o seu leitor dos detalhes mais horrorosos.
A história de Emma Bovary serviu como inspiração para inúmeras criações
artísticas posteriores. Só de produções cinematográficas, é possível contar
mais de cinco. As desventuras dessa personagem ainda foram analisadas
pelo filósofo francês Jules de Gaultier, que criou o termo “bovarismo” para se
referir a uma condição psicológica que torna o sujeito eternamente insatisfeito
com todos os aspectos da sua vida — exatamente como Emma em Madame
Bovary. É também por essa continuidade da obra ao longo do tempo que ela
é considerada um clássico.