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TEXTOS

FUNDAMENTAIS DE
FICÇÃO EM LÍNGUA
PORTUGUESA
Patrícia Hoff
Principais autores da
ficção brasileira
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

n Relacionar os diferentes estilos da historiografia literária brasileira.


n Identificar temas recorrentes nas obras de ficção brasileiras.
n Diferenciar aspectos da produção de alguns dos principais autores
da ficção brasileira.

Introdução
Você conhece bem a literatura brasileira? Sabe apontar e caracterizar
os estilos de época que se sucederam nas nossas letras? Conhece a
produção literária de nossos grandes escritores? Sem dúvida, aprender a
fundo sobre tudo isso é um trabalho que exige muita leitura e a consulta
a inúmeras fontes.
Neste texto, você terá uma introdução a esses temas a partir do estudo
de um panorama da periodização da literatura brasileira e de aspectos
da vida e obra de alguns de nossos principais autores.

Breviário sobre a literatura brasileira


A literatura produzida em solo brasileiro tem pouco mais de cinco séculos de
história. Sua origem remonta, possivelmente, à Carta de Pero Vaz de Caminha.
Ela constitui o primeiro registro histórico – mas recheado de comentários
curiosos e informações equivocadas – escrito no território recém-descoberto
pelos portugueses, inaugurando a literatura informativa sobre o Brasil. De lá
para cá, a literatura brasileira se alinhou a diferentes movimentos e dependeu
da influência, principalmente, das literaturas portuguesa, francesa e inglesa,
até que adquiriu maturidade e passou a criar contornos próprios e singulares.
Estudar a trajetória da literatura brasileira implica, portanto, o reconhecimento

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de muitos caminhos e bifurcações que vão de movimentos e estilos literários


mais definidos a tendências indóceis de pensamento e postura. Tarefa difícil
é percorrer esse trajeto em poucas linhas, mas há nele alguns pontos sobre
os quais os historiadores e críticos da literatura brasileira concordam e que
podem ser mencionados aqui.
No início, a produção literária no Brasil, como não poderia deixar de ser,
é bastante pobre. Nos primeiros momentos da colonização portuguesa, nada
existe além de crônicas históricas e informativas, resultantes dos contatos
iniciais dos colonizadores com a nova realidade da terra, e de uma poesia
de pouco relevo estético. São expoentes desse tempo o já citado Pero Vaz de
Caminha (1450-1500) e Pero de Magalhães Gandavo (1540-1580), na crônica
histórica, e padre José de Anchieta (1534-1597), na poesia.
O cenário literário e intelectual brasileiro começa a mudar na virada para
o século XVIII, quando se tornou comum o intercâmbio cultural com a Eu-
ropa, via Portugal, sobretudo em função da decisão da burguesia brasileira
ascendente de enviar seus filhos para estudar em Coimbra. A partir desse
movimento, surgem as primeiras manifestações no estilo Barroco escritas no
Brasil, que, embora canalizadas pela tradição europeia, já exprimem certos
traços do ambiente local. Assim, é comum considerar o Barroco como o
primeiro estilo artístico a ganhar expressividade no Brasil.
Dois aspectos, portanto, podem auxiliar o seu estudo sobre o percurso
histórico da literatura brasileira: o critério cronológico e os estilos de época.
Embora os estilos de época possam se estender para além de determinados
períodos históricos, é comum haver na historiografia literária brasileira a
sucessão de diferentes concepções artísticas, com características próprias. Tais
estilos fazem parte da tradição literária de origem europeia, à qual a literatura
brasileira se filiou – algumas vezes, com algum atraso em relação à época
em que os estilos se instalaram na Europa e, geralmente, com o acréscimo
de temas nacionais.
Na Tabela 1, baseada em Jobim e Souza (1987), você encontra um resumo
dos estilos presentes na literatura brasileira, seus períodos históricos, suas
principais características e seus autores e obras de maior destaque:

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Principais autores da ficção brasileira 87

Tabela 1. Literatura brasileira: principais estilos, períodos, características e autores.

Estilo Período Características gerais Autores e obras


Barroco Todo o Estilo com tendências Antônio Vieira (Lisboa,
séc. XVII ereligiosas e filosóficas, 1608 – Salvador/BA,
primeira tendo por tema principal 1697), com sua oratória
metade do a divisão do ser humano religiosa e cartas.
séc. XVIII entre o gozo da vida na Gregório de Matos,
terra e a esperança da chamado de Boca
eternidade no paraíso. do inferno (Salvador/
Isso se reflete no gosto do BA, 1636 – Recife/PE,
estilo pelos ornamentos 1696) e seus poemas
e pela ênfase, cultivando (satíricos, amorosos,
figuras de linguagem de reflexivos e religiosos).
todo tipo, especialmente
hipérboles, antíteses
e paradoxos (as quais
expressam ideias de
sentidos opostos).
Neoclas- Da segunda Estilo que reage à linguagem Cláudio Manoel da Costa
sicismo metade do ornamentada e difícil do (Mariana/MG, 1729 –
ou Arca- séc. XVIII Barroco, se propondo a Ouro Preto/MG, 1789) e
dismo até meados restaurar a simplicidade seus poemas pastoris.
da década da poesia clássica (daí o Tomás Antônio Gonzaga
de 1830 nome Neoclassicismo). (Portugal, 1744 –
Como se entendia então Moçambique, 1810) e
que a natureza era o suas liras, especialmente
modelo da simplicidade a obra Marília de Dirceu.
por excelência, a poesia José Basílio da Gama
neoclássica privilegia os (Tiradentes/MG, 1741 –
chamados temas bucólicos, Portugal, 1795), cuja obra
isto é, campestres, pastoris principal é o poema
(de onde vem o nome épico O Uraguai.
alternativo Arcadismo,
derivado da Arcádia,
o paraíso bucólico da
mitologia grega). Outra
característica do estilo
é a valorização da razão
na linguagem poética, o
que aproximou os poetas
árcades dos filósofos do
Iluminismo. Também se
nota uma maior valorização
poética da paisagem e
da vida brasileiras, em
comparação com o Barroco.
(Continua)

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(Continuação)

Tabela 1. Literatura brasileira: principais estilos, períodos, características e autores.

Estilo Período Características gerais Autores e obras


Roman- De meados Estilo que teve início Primeiro grupo:
tismo da década nas literaturas inglesa e Joaquim Manuel de
de 1830 alemã. Se desdobra em Macedo (Itaboraí/RJ,
até fins da três grupos de escritores, 1820 – Rio de Janeiro/RJ,
década cada qual com um traço 1882), autor do primeiro
de 1880 característico. O primeiro romance de relevância
grupo surge nas décadas no Brasil, A Moreninha.
de 1830 e 1840 e explora Gonçalves Dias (Caxias/
as criações indianistas e MA, 1823 – Guimarães/
nacionalistas. O segundo MA, 1864), que escreveu o
grupo marca a década de poema épico I-Juca-Pirama
1850. Em poesia, aborda e a “Canção do exílio”, um
tanto temas sentimentais, dos mais famosos poemas
de cunho confessional, da literatura brasileira.
quanto humorísticos e José de Alencar
irreverentes, de cunho (Fortaleza/CE, 1829 – Rio
satírico e crítico; na prosa de Janeiro/RJ, 1877) e
de ficção, promove a sua prosa indianista,
afirmação do romance, com os romances O
cujas temáticas foram Guarani e Iracema.
do urbano ao regional.
O terceiro grupo assinala Segundo grupo:
as décadas de 1860 e Álvares de Azevedo
1870, se empenhando no (São Paulo/SP, 1831 – Rio
engajamento da literatura de Janeiro/RJ, 1852), com
nas grandes lutas sociais uma obra permeada
e políticas da época pelos temas da morte e
(liberalismo econômico, pela angústia existencial,
abolição da escravatura, com destaque para
transição para república). Noite na Taverna e
Lira dos Vinte Anos.
José de Alencar
novamente, agora com
os romances urbanos,
com seus tipos marcantes
(Lucíola, Senhora), bem
como os romances
regionalistas (Til, O Gaúcho).

Terceiro grupo:
Castro Alves, o poeta
dos escravos (Curralinho,
atual Castro Alves/BA,
1847 – Salvador/BA, 1871),
autor de Navio Negreiro.

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(Continuação)

Tabela 1. Literatura brasileira: principais estilos, períodos, características e autores.

Estilo Período Características gerais Autores e obras

Realismo, Da década Tendências que tinham Realismo e Naturalismo:


Natura- de 1880 em comum a rejeição Aluísio Azevedo
lismo e até o início ao sentimentalismo, (São Luís/MA, 1857 –
Parnasia- da década ao subjetivismo e Argentina, 1913) e seus
nismo de 1920 ao espiritualismo romances Os romances
românticos. O Realismo e O Mulato e O Cortiço.
o Naturalismo buscavam Raul Pompeia (Angra
reproduzir, na literatura em dos Reis/RJ, 1863 – Rio
prosa, a realidade social de Janeiro/RJ, 1895),
ou biológica do homem. autor de O Ateneu.
O Realismo era voltado Machado de Assis (Rio
para a realidade, entendida de Janeiro, 1839 – 1908),
como o conjunto de fatos com obras essenciais para
e relações concretas, o Realismo brasileiro, como
materiais, observáveis Memórias Póstumas de Brás
pelos sentidos. O Cubas e Dom Casmurro.
Naturalismo submetia
as artes da época aos Parnasianismo:
conceitos das ciências Olavo Bilac (Rio de
naturais, tomando o Janeiro/RJ, 1865 – 1918),
ser humano como um autor de Poesias, no
animal condicionado qual consta o famoso
por mecanismos físicos, conjunto de sonetos
químicos e biológicos intitulado “Via Láctea”.
cientificamente
determináveis. Já o
Parnasianismo é tido como
a expressão dos ideais
antirromânticos na poesia.
A poesia parnasiana é
predominantemente
descritiva, interessada em
representar plasticamente
paisagens e ambientes.
O termo é inspirado
no monte Parnaso, o
local onde, conforme a
mitologia grega, moravam
Apolo e as Musas,
divindades protetoras
das artes e da poesia.

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(Continuação)

Tabela 1. Literatura brasileira: principais estilos, períodos, características e autores.

Estilo Período Características gerais Autores e obras

Simbolismo Da década Estilo, surgido na França, Cruz e Souza (Desterro,


de 1890 que demonstrava apreço atual Florianópolis/SC,
até o início pelos temas vagos e 1861 – Antônio Carlos/MG,
da década nebulosos da existência 1898), poeta conhecido
de 1920 humana. Contrariando a como Dante Negro, com
objetividade descritiva do duas obras lançadas em
Realismo, do Naturalismo 1893: Missal e Broqueis.
e do Parnasianismo, o
Simbolismo ganha esse
nome graças ao seu intento
de evitar a descrição ou a
nomeação direta de fatos e
relações reais. Recorre, então,
a símbolos poéticos – meios
indiretos de apreender
aspectos vagos, fugidios
ou espirituais da realidade.
Sincretismo Duas Tendência que tem Augusto dos Anjos (Sapé/
primeiras por características a PB, 1884 – Leopoldina/
décadas coexistência e a frequente MG, 1914) e sua poesia
do séc. convergência de estilos com influências
XX (1900 provenientes do século parnasianas, simbolistas
a 1910) XIX (Realismo, Naturalismo, e expressionistas.
Parnasianismo, Simbolismo, Lima Barreto (Rio de
Impressionismo) e de Janeiro/RJ, 1881 – 1922),
vanguardas artísticas autor do romance com um
surgidas na Europa no narrador debochado Triste
começo do século XX Fim de Policarpo Quaresma.
(Futurismo, Cubismo, Euclides da Cunha
Expressionismo, Dadaísmo, (Cantagalo/RJ, 1866 – Rio
Surrealismo). Caracteriza-se, de Janeiro/RJ, 1909), que
acima de tudo, por não em Os Sertões transporta
poder ser resumido em a forma jornalística
uma única proposta, sendo para a prosa literária.
compreendido como um
conjunto de expressões
resultantes de um momento
artístico de transição. O
estilo, embora não unificado,
traz inquietações que
serão combustível para o
Modernismo, sendo por isso
também designado como
o período pré-modernista.

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Principais autores da ficção brasileira 91

(Continuação)

Tabela 1. Literatura brasileira: principais estilos, períodos, características e autores.

Estilo Período Características gerais Autores e obras


Moder- Do início Trata-se de um movimento Primeira fase:
nismo da década artístico plural, motivado Oswald de Andrade (São
de 1920 até por diferentes propostas, Paulo/SP, 1890 – 1954),
a década mas que tinham em autor de Pau-Brasil (poesia)
de 1960 comum o desejo pela e Memórias Sentimentais de
mudança face ao desgaste João Miramar (romance),
dos hábitos e das fórmulas bem como de manifestos
literárias praticadas até que guiaram as ações
então. Foi um movimento iniciais do movimento.
extremamente dinâmico, Mário de Andrade (São
que gerou expressões Paulo/SP, 1893 – 1945),
variadas desenvolvidas em que escreveu Paulicéia
simultâneo e em muitos Desvairada (poesia) e Amar,
pontos do País. Tem Verbo Intransitivo (romance).
como marco inaugural no
Brasil a Semana de Arte Segunda fase:
Moderna, realizada em Graciliano Ramos
1922, em São Paulo, com a (Quebrangulo/AL,
presença de importantes 1892 – Rio de Janeiro/
artistas do período, RJ, 1953), autor de Vidas
entre eles escritores, Secas e São Bernardo.
pintores e músicos. Na Erico Verissimo (Cruz
historiografia literária Alta/RS, 1905 – Porto
brasileira, geralmente são Alegre/RS, 1975), com
apontados três momentos sua obra monumental
do movimento: o primeiro, O Tempo e o Vento.
de 1922 a 1930, conhecido Cecília Meireles (Rio de
como o momento mais Janeiro/RJ, 1901 – 1964),
reativo e “destruidor”; o poetisa, autora de Viagem e
segundo, de 1930 a 1945, Romanceiro da Inconfidência.
que aproveita a libertação Carlos Drummond de
da linguagem alcançada Andrade (Itabira/MG,
no período anterior em 1902 – Rio de Janeiro/RJ,
obras tanto urbanas 1987), poeta que publicou
quanto regionalistas; no período Alguma Poesia
e o terceiro, de 1945 e Sentimento do Mundo.
a 1956, caracterizado
pela literatura intimista Terceira fase:
e introspectiva, pela João Cabral de Melo
experimentação linguística Neto (Recife/PE, 1920
e pela afirmação do – Rio de Janeiro/RJ,
teatro e da crônica. 1999) e sua poesia, com
Morte e Vida Severina e A
Educação pela Pedra.

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(Continuação)

Tabela 1. Literatura brasileira: principais estilos, períodos, características e autores.

Estilo Período Características gerais Autores e obras


Guimarães Rosa
(Cordisburgo/MG, 1908 –
Rio de Janeiro/RJ, 1967),
autor do romance Grande
Sertão: Veredas e dos contos
de Primeiras Estórias.
Clarice Lispector (Ucrânia,
1920 – Rio de Janeiro/RJ,
1977), que escreveu Perto
do Coração Selvagem e
A paixão Segundo G.H.
Nelson Rodrigues
(Recife/PE, 1912 – Rio
de Janeiro/RJ, 1980) e o
teatro, com Vestido de
Noiva e A Vida como Ela é.
Rubem Braga (Cachoeiro
de Itapemirim/ES, 1913 –
Rio de Janeiro/RJ, 1990) e
a crônica, em livros como
O Conde e o Passarinho e
Ai de Ti, Copacabana.

Fonte: Adaptada de Jobim e Souza (1987).

Conforme você pôde ver na Tabela 1, a periodização literária brasileira


geralmente vai até o movimento modernista. Desse período em diante, ou seja,
da década de 1960 até os dias atuais, a literatura brasileira está ambientada
em um cenário de grande variedade de gêneros e estilos literários, que são
desenvolvidos simultaneamente. Isso torna ainda mais difícil definir estilos
de época e estabelecer limites entre um estilo e outro.
Além disso, sequer há um consenso sobre como deve se chamar esse
momento: ou como um Modernismo estendido, ou como um período de depen-
dência e superação em relação ao Modernismo (o dito Pós-Modernismo), ou,
simplesmente, como o período contemporâneo. Tal “indefinição” tem relação
com o fato de que a historiografia literária é um campo aberto de estudo, não
cabendo aos pesquisadores, sobretudo nos dias de hoje, estabelecer fases e
estilos em sentido perpétuo.

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Atualmente, novas teorias têm anunciado a urgência de se repensar os câno-


nes e os discursos, desconstruindo paradigmas e reformulando as identidades,
inclusive nas representações artísticas. Um exemplo interessante para se repensar
a historiografia literária brasileira é o livro Escritoras Brasileiras do Século
XIX. Em 2 mil páginas distribuídas em dois volumes, a obra traz informações
biográficas, de temas e estilo, bem como trechos de obras de 105 escritoras de
todas as partes do Brasil. Essas escritoras são estudadas, sobretudo, para reforçar
a ideia de uma nova leitura da história literária brasileira do século XIX.

Figura 1. Capa do Volume II de Escritoras Brasileiras do Século XIX.


Fonte: Livrarias Curitiba (c2017).

As dificuldades em definir estilos e períodos literários, porém, não devem


ser vistas como dificuldades para se apreciar a obra. Afinal, as obras literárias
existem para serem lidas e analisadas, e não para serem enquadradas mecani-
camente num estilo de época. Inclusive porque, além dos grandes escritores
comumente relacionados ao Modernismo, que demonstraram no decorrer dos
anos admirável capacidade de renovação, a literatura contemporânea conta com
muitos nomes relevantes e com posturas e conteúdos bem diferentes entre si.
Feito esse panorama, você passará, agora, a estudar com mais detalhes
a vida e as obras de cinco autores fundamentais da literatura nacional. No
entanto, uma escolha sempre resulta de um recorte. Você precisa levar em
conta, portanto, que inúmeros outros autores, aqui não citados, também fazem
parte da riquíssima literatura brasileira.

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Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis nasce na cidade do Rio de Janeiro em 21
de junho de 1839. Vive seus primeiros anos no morro do Livramento, filho do
pintor de paredes Francisco José de Assis (um mulato de pele muito escura,
descendente de escravos, mas de pai forro) e da açoriana Maria Leopoldina
Machado da Câmara (uma branca da ilha de São Miguel). Aos 16 anos, se
afasta da família e estreia oficialmente no mundo das letras com o seu primeiro
texto poético (“A palmeira”), publicado na Marmota Fluminense. A partir de
1855, Machado fixa sua carreira no ambiente urbano e passa a se consolidar
como um profissional da imprensa.

Figura 2. Machado de Assis.


Fonte: Magnani (2012)

A década seguinte é marcada pela escrita de textos em colaboração aos


jornais O Paraíba, de Petrópolis, e Correio Mercantil, do Rio de Janeiro,
bem como pela criação do efêmero Espelho, no qual publica textos críti-
cos e teóricos que falavam, especialmente, sobre o teatro. A essa altura,
Machado também já é um nome importante da crônica brasileira (esse
gênero que, embora tenha se afirmado anteriormente pelas penas de José
de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, se eleva à verdadeira dignidade
literária apenas no decorrer do século XX – graças, sobretudo, às crônicas
de Machado republicadas). Ainda na década de 1860, vêm a lume algumas
peças de teatro e os primeiros de seus famosos contos, veiculados de 1863

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em diante no Jornal das Famílias. Em 1864, nasce o primeiro livro de


poesia, Crisálidas.
No ano de 1869, Machado se casa com a culta portuguesa Carolina Augusta
Xavier de Novais. Esse casamento durou até a morte, não obstante a ausência
de filhos e a enfermidade – epilepsia – que sempre o torturou. Em 1873, assume
o primeiro de seus cargos públicos, o que fará dele, por 35 anos, um burocrata
sereno, em consonância com a imagem de intelectual discreto.
Os anos de 1870 iniciam com o lançamento do primeiro volume de contos,
sob o título de Contos Fluminenses. Em 1872, aos 33 anos de idade, Machado
lança seu primeiro romance, Ressurreição – uma obra escrita em meio ao
ímpeto romântico, mas que não se vale dos sentimentalismos, das reviravoltas
e do final feliz típicos dos romances folhetinescos. É considerado um romance
psicológico, que explora o caráter e os comportamentos das personagens.
O próprio Machado quisera pontuar essa diferença, como é possível ler na
“Advertência da primeira edição” da obra (ASSIS, 1905):

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação


e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei
o interesse do livro.

Três outros romances surgem na década de 1870: A Mão e a Luva (1874),


Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Embora essas obras tenham conferido
certa notoriedade a Machado junto aos leitores da época, grande parte
da crítica contemporânea costuma incluir esses quatro romances na dita
primeira fase da obra machadiana, unindo-os pelo critério da filiação à
escola romântica.

A fase romântica é considerada pelos críticos a fase de menor alcance na produção


literária machadiana. Ela muitas vezes é referida como a fase de “preparação”,
uma vez que somente na fase seguinte Machado teria atingido a “realização” de
seu grandioso projeto literário, com a publicação dos romances pertencentes ao
Realismo. Contudo, também é comum que Machado de Assis seja considerado
como um autor de estilo único, não estando fielmente filiado a nenhuma tendência
definida. Exemplo disso é que mesmo em suas obras vinculadas ao estilo romântico
o autor realizava análise psicológica e crítica social, se mostrando atípico entre os
demais autores do Romantismo.

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O romance que inaugura o suposto segundo momento da obra machadiana,


chamado de fase realista, é Memórias Póstumas de Brás Cubas, lançado em
1881. Essa obra traz como protagonista o costumeiro homem médio macha-
diano, que leva uma vida cinzenta e insignificante, entretecida de alguns
amores – o solteiro Brás Cubas, de família burguesa, doutor em leis como
todos. Mas é um romance que torna mais grave o tom melancólico da produção
machadiana, permeada desde o começo pelas incertezas e ambivalências da
existência. Um divisor de águas não apenas dentro da produção de Machado,
mas na literatura brasileira do século XIX, Memórias Póstumas aprofunda
o desprezo às idealizações românticas e desestabiliza o mito do narrador
onisciente, que tudo vê e tudo julga. Ao delegar a Brás Cubas morto o posto
de defunto-autor, a obra deixa emergir a consciência nua do indivíduo, fraco
e incoerente, contada pelas memórias de um homem igual a tantos outros.
Depois das Memórias Póstumas, Machado lança outros dois grandes ro-
mances: Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Segundo Alfredo Bosi
(2006), as três obras, já completamente afastadas da idealização romântica,
compartilham a visão aguda de Machado sobre os diversos elementos, so-
bretudo os mais desdenháveis, que perfazem a natureza humana. Bosi (2006,
p. 191) acrescenta:

Da história vulgar de adultério de Brás Cubas-Virgínia-Lobo Neves à triste


comédia de equívocos de Rubião-Sofia-Palha (Quincas Borba), e desta à
tragédia perfeita de Bentinho-Capitu-Escobar (Dom Casmurro) só aparecem
variantes de uma só e mesma lei: não há mais heróis a cumprir missões ou
a afirmar a própria vontade; há apenas destinos, destinos sem grandeza.

Os dois últimos romances de Machado de Assis são Esaú e Jacó (1904)


e Memorial de Aires (1908). O Memorial traz como personagem principal o
conselheiro Aires, que já é personagem em Esaú e Jacó, livro em que há a
referência à escrita esporádica de um memorial. Pulicado no ano da morte de
Machado, Memorial de Aires apresenta um viés mais cansado e pessimista
para aquela visão de um mundo incerto que se fez presente desde Memórias
Póstumas.

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Também nos contos se estendeu o itinerário das dúvidas do narrador machadiano,


a exemplo de “O alienista”, “O espelho”, “A sereníssima república” e “Missa do Galo”.

Machado de Assis se imortalizou na literatura brasileira e como fundador


da cadeira de número 23 da Academia Brasileira de Letras, da qual fora pre-
sidente da sua criação, em 1897, até o dia de sua morte. Vítima de uma úlcera
cancerosa na boca, Machado morre aos 69 anos de idade, em 29 de setembro
de 1908, na casa da rua Cosme Velho, no Rio de Janeiro.

Carlos Drummond de Andrade


Carlos Drummond de Andrade nasce em Itabira, Minas Gerais, em 31
de outubro de 1902. Filho de famílias estabelecidas há bastante tempo nas
Gerais, Drummond passa toda a sua infância em uma fazenda de Itabira.
Posteriormente, faz os estudos secundários em Belo Horizonte e em Nova
Friburgo. Estuda Farmácia na Universidade Federal de Minas Gerais, onde,
em 1925, ao lado de Emílio Moura e de outros escritores mineiros, funda
A Revista, o veículo mais importante de divulgação do Modernismo no estado.
No mesmo ano, se casa com Dolores Dutra de Morais. Tiveram dois filhos,
Carlos Flávio, morto logo após o nascimento (a quem é dedicado o poema
“O que viveu meia hora”, presente em Poesia Completa), e a também escritora
Maria Julieta Drummond de Andrade.
Divide sua vida entre a poesia, o jornalismo e os cargos de servidor público
(transfere-se para o Rio de Janeiro em 1934, atuando até 1945 no gabinete
de Gustavo Capanema junto ao Ministério de Educação e Saúde). Também
cronista e contista, Drummond é autor de uma obra vasta, sendo ícone dos
poetas que têm como qualidade o ceticismo diante do mundo, diante de si e
diante da própria obra.

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Figura 3. Carlos Drummond de Andrade.


Fonte: Pensador (c2005-2017).

Nos anos 1920, ainda em Belo Horizonte, Drummond tem sua primeira
inserção significativa nas letras brasileiras. Contribui para a Revista de An-
tropofagia, na qual publica seu famoso poema “No meio do caminho”, em
julho de 1928 (ANDRADE, 1930):

No meio do caminho tinha uma pedra


Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento


Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

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Segundo Luciana Stegagno-Picchio (2004, p. 554), esse poema condensa


os elementos fundantes da vanguarda modernista. Nos seus conteúdos, o
poema traz a provocação ao bom senso burguês feita pelo nonsense moder-
nista; a alusão a uma vida estupidamente cotidiana, sem glória e sem alegoria;
a obsessão existencial daquela pedra, obstáculo insuperável, ridículo, no
meio do caminho do homem comum, cansado e de olhos fatigados. No seu
aspecto formal, o poema exprime a compulsão pela repetição, com a intenção
irônica e desmistificadora que será própria de tanta poesia modernista e
pós-modernista.
“No meio do caminho” causou reações divergentes no público, em grande
parte ainda resistente à novidade modernista. Tal repercussão deixou o poeta
subitamente conhecido, uma vez que fora ao mesmo tempo admirado e ridi-
cularizado por causa desse poema-escândalo. Quase quatro décadas depois
da primeira publicação, Drummond chegou, inclusive, a organizar, em 1967,
a antologia Uma Pedra no Meio do Caminho – Biografia de um Poema,
reunindo várias paródias, paráfrases e comentários positivos e negativos
acerca do poema.

Figura 4. Capa da antologia Uma Pedra no Meio do Caminho.


Fonte: Loja do IMS (c2017).

Alguma Poesia, de 1930, é o livro de estreia de Drummond. Foi escrito


sob o ímpeto da revolução literária de 1922, tendo por características a
prática do poema-piada, o uso dos coloquialismos apregoados pela esté-
tica e o cultivo da poesia do cotidiano. Ele repudia, enfim, as tendências
parnasiano-simbolistas que dominaram a poesia até então. Estão reunidos

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100 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

nesse livro, além de “No meio do caminho”, poemas como “Poema de sete
faces”, “Quadrilha” e “Sentimental”. Já aqui surge o gauche drummondiano,
que irá percorrer toda a sua produção discorrendo com amargor, pessimismo,
ironia e humor sobre o que esse atento observador capta de si mesmo e das
coisas que o rodeiam.
As transformações do mundo ameaçado pela guerra e do Brasil fragili-
zado pela ditadura varguista repercutem na voz mais madura e preocupada
de Sentimento do Mundo, de 1940. Nesse conjunto de poemas, Drummond
observa as tensões cotidianas e se lança a novas dimensões temáticas: a po-
lítica e a social. Tais dimensões amadurecem em Rosa do Povo, de 1954, que
condensa a expressão da sua breve mas intensa militância esquerdista, que
buscava traduzir a esperança nascida da resistência do mundo livre à fúria
nazifascista. É uma expressão direta e transparente, como você pode ler nos
primeiros versos de “A flor e a náusea” (ANDRADE, 1989):

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Com o fim da Segunda Guerra e o avanço da Guerra Fria, a retração da


esperança libertária e o desencanto de Drummond com o regime soviético dão
o tom para a poesia publicada em Claro Enigma (1951) e em algumas obras
subsequentes. São transversais em muitos desses poemas os sentimentos de
desânimo, incerteza e negação, codificando na poesia um existencialismo
niilista, a exemplo de “A ingaia ciência”, “Memória”, “Remissão” e “O en-
terrado vivo”.
Na virada para os anos 1960, Drummond retorna à oficina poética, expri-
mindo a tentação do mundo por meio da palavra. São desse tempo os poemas
de Lição de Coisas (1962), em que o processo básico é a linguagem nominal,
que gere o mundo no verso. Depois as temáticas se voltam para a infância
rural do poeta itabirano, presente nos três volumes de Boitempo (Boitempo
I), de 1968, Menino Antigo (Boitempo II), de 1973, e Esquecer para Lembrar
(Boitempo III), de 1979.
Nos seus anos finais, o poeta aborda um erotismo malicioso e despreocu-
pado, uma ironia festiva, um autobiografismo lírico e uma consciência dos
recursos poéticos da atualidade. Desse momento saem obras como A Paixão
Medida (1980), Nova Reunião (1982), Corpo (1984), bem como as póstumas
Amor Natural (1992) e Farewell (1996).

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Principais autores da ficção brasileira 101

Voz única na vida literária brasileira do século XX, Carlos Drummond


de Andrade falece em 17 de agosto de 1987, vítima de insuficiência respi-
ratória, duas semanas depois da morte da filha Maria Julieta, acometida
por um câncer.

Cecília Meireles
Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasce em 7 de novembro de 1901,
no Rio de Janeiro. Órfã de pai e mãe, passa a infância no Rio junto à avó
materna, a viúva açoriana Jacinta Garcia Benevides. Desde cedo tem a vida
marcada pela solidão e pelo silêncio, que se refletem na sua requintada poesia
de ascendência simbolista. É considerada uma das grandes vozes poéticas da
língua portuguesa contemporânea, com seu nome comumente vinculado à
segunda geração do Modernismo brasileiro.

Figura 5. Cecília Meireles.


Fonte: Alecrim (2011).

Em 1917, aos 16 anos de idade, se forma professora primária. Dois anos


depois, antes mesmo da Semana de 1922, publica seu primeiro livro de poesia:

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102 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

o conjunto de sonetos, de sondagem parnasiana, intitulado Espectro (1919).


Nessa época, Cecília se aproxima do grupo de escritores que publicavam na
revista Festa, dirigida por Tasso de Oliveira.
Em 1922, se casa com o artista plástico português Fernando Correia
Dias, com quem tem três filhas: Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria
Fernanda. Seu casamento termina tragicamente em 1935, quando Dias
comete suicídio, vítima de depressão. O segundo casamento ocorre cinco
anos depois, com o professor e engenheiro agrônomo Heitor Grilo, seu
companheiro até a morte.
Ainda nos anos 1920, Cecília lança outros dois livros de poemas, Nunca
Mais... e Poema dos Poemas, de 1923, e Baladas para El-Rei, de 1925, em
que também se nota a sólida influência do subjetivismo metafísico, na esteira
do simbolismo. Em ambas as obras, atravessam o tema da intrínseca relação
entre o eu e o cosmos e a melancolia como o sentimento que deflagra uma
problemática existencial, como nos seguintes versos de “Panorama além...”
(MEIRELES, 2015):

Silêncio. Eternidade. Infinito. Segredo


Onde, as almas irmãs? Onde, Deus? Que degredo!
Ninguém... O ermo atrás do ermo: – é a paisagem daqui.

Tudo opaco... E sem luz... E sem treva... O ar absorto...


Tudo em paz... Tudo só... Tudo irreal... Tudo morto...
Por que foi que eu morri? Quando foi que eu morri?

Na década de 1930, Cecília deixa o Rio para trilhar caminhos próprios.


Ensina literatura brasileira nas Universidades do Distrito Federal (de 1936
a 1938) e do Texas, nos Estados Unidos (em 1940), bem como visita muitos
países, como México, Índia e, sobretudo, Portugal. Em 1939, em Lisboa, Ce-
cília lança Viagem, com poemas que cobrem o período de 1929 a 1937. Esse
livro lhe confere bastante notoriedade em Portugal – antes mesmo do que no
Brasil. Viagem é composto por 99 poemas, entre os quais 13 são epigramas
(um tipo de poema curto, nascido na Antiguidade Clássica, caracterizado pelo
estilo mordaz, picante ou satírico). Nos epigramas de Viagem, a mordacidade
é mais aproveitada, e os temas abordados são a felicidade, a própria poesia,
o amor e a morte. No livro como um todo, permanecem, por um lado, a sim-
plicidade das trovas de gosto arcaizante. Por outro, há uma condensação dos
temas existenciais, reproduzidos em meio às indagações e negações comuns
à mais bem construída lírica moderna. Entre os poemas, o de título “Destino”

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Principais autores da ficção brasileira 103

lança a alcunha “Pastora das nuvens”, que acompanha a poeta dali para frente
(MEIRELES, 1939):

Pastora das nuvens, fui posta a serviço


por uma campina tão desamparada
que não principia nem também termina,
e onde nunca é noite e nunca madrugada.

Viagem também dá destaque a um tema que permeará toda a obra po-


ética da autora: o mar. A imagem do mar na poesia ceciliana representa
o mesmo mar da tradição poética portuguesa, que desafia os sentidos e
carrega os sonhos e as desventuras daqueles que o enfrentam, mas também,
segundo Stegagno-Picchio (2004, p. 559), “[...] é um símbolo moderno da
autossuficiência da expressão.”. Nesse sentido, o mar se identifica com o
poeta, como pode ser lido alegoricamente no poema “Mar absoluto” – que
dá título ao livro de mesmo nome, de 1945 –, em que o mar, assim como o
poeta (MEIRELES, 1945),

Não precisa do destino fixo da terra


ele que, ao mesmo tempo, é o dançarino e sua dança.

Nos livros da década de 1940, como Vaga Música (1944) e Mar Absoluto
(1945), afloram a experiência da escritora nos países que visitou. Seus poe-
mas recebem, além da sabedoria ibérica e da identificação cultural europeia,
elementos do folclore mexicano e da mística de Gandhi.
Em Romanceiro da Inconfidência (1953) e Canções (1956), Cecília se
mantém atenta à riqueza do léxico e dos ritmos portugueses, de metros breves.
O Romanceiro da Inconfidência, em especial, constitui um livro singular na
produção ceciliana, no qual a perfeição formal se coloca a serviço do gosto
mais popular. A obra repropõe o motivo da civilização do ouro e dos dia-
mantes, contando a história de Minas, que vai dos inícios da colonização, no
século XVII, até a Inconfidência Mineira, revolta ocorrida em fins do século
XVIII na então Capitania de Minas Gerais. Os 85 poemas (enumerados como
“romances”), em grande parte dedicados ao destino dos heróis do levante
mineiro, evidenciam um eu lírico que se alinha ideologicamente ao lado do
oprimido contra o opressor, ao lado do povo escravo contra os governantes,
denunciando o sistema colonial que favorece a exploração dos desvalidos. Veja
alguns belos versos do “Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência”
(MEIRELES, 1965):

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104 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

Atrás de portas fechadas,


à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
“Escreva-me aquela letra
do versinho de Vergílio...”
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
“Tenha meus dedos cortados
antes que tal verso escrevam...”
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

Esses versos do Romanceiro da Inconfidência reproduzem o momento


de criação da bandeira dos inconfidentes, que se tornou a bandeira do es-
tado brasileiro de Minas Gerais. Assim como os versos, a bandeira é rica em
símbolos. Seu triângulo representa ao mesmo tempo a Santíssima Trindade
e a razão defendida pelos filósofos iluministas, em quem os heróis mineiros
se inspiraram. A cor vermelha do triângulo remete à revolução, e os dizeres
“libertas quæ sera tamen” foram tirados das Bucólicas, do poeta latino Virgílio,
comumente traduzidos como “Liberdade ainda que tardia”.

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Principais autores da ficção brasileira 105

Figura 6. Bandeira de Minas Gerais.


Fonte: Shutterstock/Jiri Flogel.

Cecília Meireles também fez uma saborosa contribuição à literatura infantil. Desse
espectro, Ou Isto ou Aquilo (1964) se destaca. O livro reúne poemas elaborados de um
modo que privilegia o olhar e os sentimentos da criança. Nos textos, Cecília aborda
a dificuldade de fazer escolhas, tanto em relação aos assuntos menores do cotidiano
quanto na dimensão mais ampla, dos caminhos da vida.

Voz de uma experiência poética ímpar em meio aos demais escritores


modernistas, Cecília Meireles se consagrou nas letras brasileiras com seus
versos ao mesmo tempo fluidos e exatos. Falece aos 63 anos de idade no dia
9 de novembro de 1964, na sua cidade natal, vítima de câncer, após longa
enfermidade.

Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa nasce em 27 de junho de 1908, na cidade de Cor-
disburgo, Minas Gerais. Filho de um pequeno comerciante estabelecido na

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106 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

zona pastoril do centro-norte de Minas, aprende as primeiras letras na cidade


natal. Faz o curso secundário em Belo Horizonte, se revelando desde cedo
apaixonado por línguas. Também em Belo Horizonte, em 1925, com apenas
16 anos, se matricula no curso de medicina da então Universidade de Minas
Gerais. Depois de formado, exerce a profissão em cidades do interior mineiro,
como Itaúna e Barbacena. Nesse período, estuda sozinho alemão e russo. Em
1934, faz concurso para o Ministério do Exterior, dando início à carreira de
diplomata. Atua na Alemanha, na Colômbia e na França e, em 1958, de volta
ao Brasil, ascende ao cargo de ministro.

Figura 7. Guimarães Rosa.


Fonte: Estante Virtual (c2017).

O outro Rosa – o Rosa escritor, e não mais o médico e diplomata – passa


grande parte da vida afastado da cena literária. Seu primeiro livro, escrito
em 1936, é o conjunto de poemas intitulado Magma. Contudo, e apesar de
ter ganhado no ano de seu lançamento o Prêmio da Academia Brasileira de
Letras, o livro sempre foi considerado uma obra menor pelo próprio autor, que
se recusa depois a publicá-lo (a edição conhecida é de 1997, pela Editora Nova
Fronteira). Alguns anos mais tarde, Rosa escreve os contos de Sagarana (1946)

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Principais autores da ficção brasileira 107

e Com o Vaqueiro Mariano (1947) e as novelas de Corpo de Baile: Noites do


Sertão (1956). Mas é somente com a publicação de sua obra maior, Grande
Sertão: Veredas, de 1956, que o escritor mineiro obtém o reconhecimento
geral, chegando até a aclamação internacional (com traduções de suas obras
para o francês, o italiano, o espanhol, o inglês e o alemão).
Rosa ocupa o posto de um dos maiores autores da ficção brasileira. Sua
obra é expressionista como poucas, inteiramente baseada na invenção e na
surpresa lexical. Mas seu exercício extraordinário com a linguagem não
é um fim em si mesmo. Rosa coloca a linguagem a serviço da temática e
vice-versa: não narra o sertão mineiro num impulso sociológico-descritivo
(como outros narradores do sertão que o precederam), mas inventa o sertão
por meio da linguagem.

Ainda que tenha o “sertão” de Minas como o ambiente de suas histórias, é um equívoco
tomar Rosa apenas pelo seu regionalismo. Nas palavras de Stegagno-Picchio (2004,
p. 605), “[...] além de ser um extraordinário inventor de linguagem, ele é também
inventor de histórias paradigmáticas apresentadas em roupagem regionalista, mas
que de repente se elevam à universalidade, revelando a sua natureza de apólogo e
fascinando o leitor.”. Em sua maciça obra, Rosa trata como assuntos muitas coisas da
“travessia” humana pela vida, esse trânsito pelas extremidades – entre a alegria do ser
e do conhecer e a angústia do não ser e do incognoscível.

O livro de contos Sagarana, de 1946, já traz algumas características que


viriam a marcar a obra roseana. Os nove contos do volume são atravessados
pelo mundo campesino e boiadeiro das Gerais, com seus ódios e vinganças
e sua língua saborosa. Segundo Bosi (2006, p. 469), Sagarana é uma obra
dedicada à experimentação da musicalidade da fala sertaneja, na qual soam
cadências populares e medievais. Numa escrita que torna embaraçosa aquela
distinção didática entre lírica e narrativa, é possível ler em Sagarana o exemplo
de “O Burrinho Pedrês”, que reproduz a sonoridade da marcha da boiada por
meio das aliterações (ROSA, 2001):

As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo


com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de
couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso

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108 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos


campos, querência dos pastos de lá do sertão...

‘Um boi preto, um boi pintado,


cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.’

Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá
de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não
volta, vai varando...

Uma década depois de Sagarana, nas novelas de Corpo de Baile (1956),


o relato se enxuga e a pesquisa com a linguagem se torna mais intensa. O
sertão passa a ser o protagonista, adquirindo um sentido enigmático, que
inunda a vida dos homens de cansaço, perigo e rancor. Mas há também espaço
para histórias comoventes, como a do menino Miguilim, que é tratado com
desprezo pelos irmãos, tomado por deficiente. Só mais tarde é que Miguilim
se descobre míope, quando a infância já está perdida.
A obra maior de Rosa é, contudo, Grande Sertão: Veredas, também de
1956. É o relato em primeira pessoa de Riobaldo, um velho chefe de bando,
que já foi jagunço, mas agora está retirado na fazenda. Com a chegada de um
jovem “doutor” que planeja atravessar o sertão, Riobaldo encontra nova função:
narrar ao forasteiro a aventura de sua vida. Essa aventura inclui o pacto com
o diabo, as histórias do sertão percorrido em atos de vingança e, sobretudo, a
camaradagem ambiguamente afetuosa com Diadorim, o misterioso rapaz de
olhos verdes que só no final, ante sua morte, se revela donzela. A narrativa
consiste em um longo diálogo/monólogo de Riobaldo, havendo apenas pistas
sobre as reações do ouvinte-doutor, que não emite fala.
Riobaldo é quase como um herói de epopeia: dividido entre Deus e o
Diabo, o destino e o livre-arbítrio, a coragem e o medo, o amor íntegro e o
amor tortuoso. Transita entre homens bons e homens maus, e vive em um
ambiente que é o “sertão”, ao mesmo tempo realidade e metáfora do mundo.
Sempre repete coisas como (ROSA, 2006):

Sertão: estes seus vazios

Lugar sertão se divulga... O sertão está em toda a parte

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Principais autores da ficção brasileira 109

O sertão é do tamanho do mundo

Sertão é o sozinho

Sertão: é dentro da gente.

De acordo com Bosi (2006, p. 460), a narrativa constrói Riobaldo como


“[...] um homem que busca, no vaivém das suas memórias e ref lexões,
negar a existência real do demônio (‘o que-não-há’) com quem fez um
pacto quando se propôs vencer Hermógenes.”. E, numa dentre as muitas
leituras possíveis dessa obra, Bosi (2006) entende que Riobaldo “[...]
parece concluir que o mal é um atributo do ser, um acidente que vicia o
coração dos homens, uma fatalidade que se deve enfrentar com paciência
e vida justa.”.
Já no que diz respeito especificamente aos elementos da linguagem
inventiva roseana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas são obras
que incluem e revitalizam inúmeros recursos da expressão poética: células
rítmicas, aliterações, onomatopeias, rimas internas, ousadias mórficas,
elipses, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico
ou de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias,
fusão de estilos, coralidade.

Algumas das ousadas combinações de som e de forma que recheiam a obra roseana,
entre termos e frases, são: essezinho, semblar, agarrante, maravilhal, gavioão, cavalanços,
deslei, desfalar, o ferrabrir dos olhos, a brumalva do amanhecer, a bala beijaflorou, os cavalos
aiando gritos, eu era um homem restante trivial, etc.

Depois de Grande Sertão, Rosa, como que apaziguado após a confissão-rio


dessa sua obra monumental, passa a compor histórias sempre mais curtas,
recheadas de humor e ironia. São memoráveis os 21 contos das suas Primeiras
Estórias, de 1962. O mais famoso talvez seja “A terceira margem do rio”,
parábola do pai que se afasta da família para andar por lugar nenhum. O filho
observa o pai de longe e narra (ROSA, 2011):

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110 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se


indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava
a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio,
sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza
dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente.

Autor de uma obra grandiosa e ainda aberta a muitas interpretações, Gui-


marães Rosa falece vítima de enfarte aos 59 anos de idade, em 19 de novembro
de 1967, no Rio de Janeiro, três dias depois da sua admissão solene à Academia
Brasileira de Letras.

Clarice Lispector
Clarice Lispector nasce em 10 de dezembro de 1920, na cidade de Cheche-
lnyk, na então Ucrânia soviética. Nascida judia, sua família se vê obrigada
a emigrar em decorrência da perseguição econômica e cultural a judeus no
tempo da Guerra Civil Russa. Em 1922, ainda criança, vem para o Brasil
com os pais, que se estabelecem em Recife. Aos 14 anos de idade, em 1934,
se transfere com a família para o Rio de Janeiro, onde Clarice faz o curso
colegial. Em 1943, enquanto estuda direito no Rio, escreve o seu primeiro
romance, Perto do Coração Selvagem, que é recusado pela editora José
Olympio. Publica-o, no ano seguinte, pela editora A Noite e recebe pela obra
o Prêmio Graça Aranha. Ainda em 1944, vai com o marido, o diplomata
Maury Gurgel, para Nápoles, na Itália, onde Clarice trabalha em um hospital
da Força Expedicionária Brasileira. De volta ao Brasil, escreve O Lustre,
que sai em 1946. Depois de longas estadas na Suíça e nos Estados Unidos
e do nascimento de Pedro e Paulo, a escritora se separa do marido e se fi xa
de vez no Rio de Janeiro, indo morar com os filhos em um apartamento no
Leme. Começa a ganhar maior notoriedade a partir da publicação de A Maçã
no Escuro, de 1961, se tornando depois disso um dos nomes da literatura
nacional que mais têm atraído o interesse do público e da crítica nacional
e internacional.

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Principais autores da ficção brasileira 111

Figura 8. Clarice Lispector.


Fonte: Feix (2017).

Durante toda a sua obra, Clarice se mantém fiel às suas conquistas formais.
Segundo Bosi (2006, p. 452), a escrita clariceana tem por características o uso
intensivo da metáfora incomum, a entrega ao fluxo da consciência e a ruptura com o
enredo factual e cronologicamente linear. As personagens vivenciam a exacerbação
do momento interior, até o ponto em que a própria subjetividade é que entra em
crise. Mas Clarice vai além do nível psicológico, o qual opera na identificação
do eu com a realidade. Sem tal possibilidade de identificação, as personagens
clariceanas vivem continuamente no labirinto da memória e da autoanálise. Elas
são aprisionadas pela opacidade da linguagem, que torna impossível o equilíbrio
pleno entre o objeto e a sua representação, inclusive a representação do próprio ser.
Assim, a elevação da linguagem em Clarice adquire ares existencialistas, pondo as
coisas em perspectivas que vão além da realidade palpável, dando um salto para
o metafísico. Como exemplo, você pode considerar o emprego do verbo “ser” e
de construções sintáticas anômalas que obrigam o leitor a repensar as relações
convencionais praticadas pela própria linguagem. Observe o que Clarice escreve
no fim de A Paixão Segundo G.H. (LISPECTOR, c1964):

[...] como poderei dizer senão timidamente assim: a vida se me é. A vida


se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro.

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112 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

A retomada da invenção da linguagem é um dos principais esforços de escritores


pertencentes à chamada terceira fase do Modernismo brasileiro, como Clarice Lispector
e João Guimarães Rosa. A pesquisa da linguagem e do modo narrativo, mais do que
a preocupação com a história narrada, é algo que ambos os autores compartilham.
Contudo, Clarice a desenvolve de um modo diferente de Rosa. Conforme aponta
Stegagno-Picchio (2004, p. 610-611), a experimentação com a linguagem em Rosa é
da ordem de uma provocação contínua com as palavras, que envolve um compô-las
lúcido, cintilante, fazendo delas mecanismos libertadores de significados. O empenho
de Clarice, por outro lado, se dá no encontro com a opacidade, a neutralidade das
palavras já fixadas no léxico. Essa linguagem comum opera nas obras clariceanas como
um correlato, em nível expressivo, da opacidade do mundo, do seu repetir-se numa
monotonia mecânica, irracional.

Seu romance de estreia, Perto do Coração Selvagem, mais do que uma


narração, é uma série de variações sobre o tema obsessivo da fuga do óbvio e
da pesquisa da realidade profunda, que resultam, porém, incompreensíveis.
Sua protagonista, Joana, expressa por fluxos de consciência a sua vida interior,
contrapondo suas experiências de menina às de adulta, mergulhando ora no
passado, ora no presente, segundo o fio condutor da memória. O narrador
onisciente mergulha no pensamento da personagem, confinada na sua dimensão
subjetiva (LISPECTOR, 1998):

Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros,


fechados, que se isolavam uns dos outros. Só que no fim de cada um
deles, em vez de Joana morrer e principiar a vida noutro plano, inorgânico
ou orgânico inferior, recomeçava-a mesmo no plano humano.

Os temas do ódio e do mal que permeiam a consciência de Joana também


estão presentes no itinerário emocional de Virgínia, protagonista de O Lustre,
de 1946. Porém, enquanto que em Perto do Coração Selvagem o ódio surge
como o ato vital absoluto, em recusa à bondade vulgar e medíocre, em O Lustre
o ódio é o único elemento conectivo possível nas não relações entre Virgínia
e seus irmãos Daniel e Esmeralda. Aqui, o contexto familiar é assolado por
sentimentos ruins que se revelam na análise da interiorização das personagens,
mostrando como é impossível aos indivíduos saírem de si mesmos e viverem,
em altruísmo, o amor.

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Principais autores da ficção brasileira 113

A experiência da negatividade das emoções segue dando contorno às


personagens de A Cidade Sitiada (1949) e A Maçã no Escuro (1961). Muito
semelhante à Virgínia de O Lustre, a protagonista de A Cidade Sitiada, Lu-
crécia, também se mostra pronta a transformar as relações amorosas em
instrumento para uma desesperada liberdade criada com a fuga, a crueldade
e a surdez voluntária. Em A Maçã no Escuro, o leitor acompanha a fuga de
Martim, que acredita ter matado a esposa. O seu trajeto o leva para longe da
condição de culpa: “Desta hora em diante teria a oportunidade de viver sem
fazer o mal porque já o fizera: ele era agora um inocente.” (LISPECTOR,
1970). A certeza do delito coloca Martim para fora da lei, o que ao mesmo
tempo lhe impõe a reinvenção do mundo mediante a criatividade da linguagem
(LISPECTOR, 1970):

De qualquer modo, agora que Martim perdera a linguagem, como se


tivesse perdido o dinheiro, seria obrigado a manufaturar aquilo que ele
quisesse possuir. Ele se lembrou de seu filho que lhe dissera: eu sei por
que é que Deus fez o rinoceronte, é porque Ele não via o rinoceronte,
então fez o rinoceronte para poder vê-lo. Martim estava fazendo a verdade
para poder vê-la.

Na etapa seguinte, com A Paixão Segundo G.H., de 1964, entra em cena


a escrita monológica de Clarice. Ela abandona completamente os recursos do
romance psicológico e as etapas de um drama que existiam nas obras anteriores.
No que diz respeito à trama, a obra traz a protagonista e narradora, identificada
apenas pelas iniciais G.H., que, após demitir a empregada e tentar limpar seu
quarto, se encontra com uma barata. Depois de esmagar a barata contra a
porta do guarda-roupas, G.H. passa a confrontar a si mesma, em incontáveis
pensamentos, face àquele corpo repugnante compactado por camadas de
cascas. Como que analisando suas próprias camadas rumo à descaracterização
de si mesma enquanto sujeito humano, G.H. ingressa na sua travessia para
a humildade que põe os animais numa mesma escala, quando inclusive já é
possível ultrapassar a repugnância e devorar ritualmente a barata.
A travessia é feita de uma densa e sofrida experiência existencial, com a
linguagem da contradição e do paradoxo tomando conta da narração (LIS-
PECTOR, c1964):

Tudo o que me caracteriza é apenas o modo como sou mais facilmente


visível aos outros e como termino sendo superficialmente reconhecível
por mim. Assim como houve o momento em que vi que a barata é a

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barata de todas as baratas, assim quero de mim mesma encontrar em


mim a mulher de todas as mulheres.
A despersonalização como a grande objetivação de si mesmo.

Segundo Bosi (2006, p. 454), as experiências da linguagem em G.H. e


em outras obras de Clarice são “[...] como sintomas de uma crise de amplo
espectro: crise da personagem-ego, cujas contradições já não se resolvem no
casulo intimista, mas na procura consciente do supraindividual; crise da fala
narrativa, afetada agora por um estilo ensaístico, indagador; crise da velha
função documental da prosa romanesca.”.
Esses elementos são depois encontrados em Uma Aprendizagem ou o
Livro dos Prazeres (1969), Água Viva (1973) e, sobretudo, nos contos – Al-
guns Contos (1952), Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964),
Felicidade Clandestina (1971), A Via Crucis do Corpo (1974). Nessas obras,
o encontro entre o cotidiano obscuro e os atos de rebelião vem encenado
em situações familiares, diminutas e cruéis, mas esgaçadas em complexos
questionamentos.
A Hora da Estrela (1977), o último livro publicado em vida, marca uma
virada temática de Clarice, que talvez a morte lhe impediu de aprofundar.
Com ares regionalistas, algo até então inédito em sua obra, a novela é centrada
na história de Macabéa, uma nordestina que tenta escapar da miséria e do
subdesenvolvimento, abandonando Alagoas para aventar melhores condições
de vida no Rio de Janeiro. Além disso, a obra introduz um autor fictício, Ro-
drigo S.M., que, no trocar de olhares com Macabéia na rua, tem-lhe revelada
a vida da moça perdida. Em meio a reflexões sobre seu processo criativo, o
autor fala da origem e dos amores de Macabéa até ela encontrar sua morte ao
ser atropelada por um automóvel – instante em que também se retira o autor,
agora incompleto, desprovido da história.
Clarice falece um dia antes de completar 57 anos, em 9 de dezembro de
1977, em decorrência de um câncer de ovário. Autora de uma vasta obra
literária composta de romances, novelas, contos, crônicas e ensaios, tem seu
nome fixado na ficção de vanguarda brasileira.

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115 Textos fundamentais de ficção em língua portuguesa

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Disponível em: <http://istoe.com.br/183103_A+CONFUSAO+NA+FAMILIA+DE+CEC
ILIA+MEIRELES/>. Acesso em: 08 jun. 2017.
ANDRADE, C. D. A rosa do povo. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1989.
ANDRADE, C. D. Alguma poesia. [S.l.]: Pindorama, 1930.
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BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
ESTANTE VIRTUAL. João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro, c2017. Disponível em: <https://
www.estantevirtual.com.br/autor/joao-guimaraes-rosa>. Acesso em: 08 jun. 2017.

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Principais autores da ficção brasileira 116

FEIX, G. Este livro gratuito conta a história de 18 brasileiras incríveis. São Paulo: M de
Mulher, 2017. Disponível em: <http://mdemulher.abril.com.br/cultura/livro-gratuito-
-a-memoria-feminina/>. Acesso em: 08 jun. 2017.
JOBIM, J. L.; SOUZA, R. A. Iniciação à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Téc-
nico, 1987.
LISPECTOR, C. A maçã no escuro. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Álvaro, 1970.
LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H.: romance. Rio de Janeiro: Rocco, c1964.
LISPECTOR, C. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
LIVRARIAS CURITIBA. Escritoras brasileiras do século XIX vol II: Edunisc. Curitiba, c2017.
Disponível em: <http://www.livrariascuritiba.com.br/escritoras-brasileiras-do-seculo-
-xix-vol-ii-edunisc-lv269153/p>. Acesso em: 08 jun. 2017.
LOJA DO IMS. [Uma pedra no meio do caminho]. Rio de Janeiro, c2017. Disponível em:
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Disponível em: <http://literatortura.com/2012/06/cronos-da-cronica-machado-de-
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PENSADOR. [Carlos Drummond de Andrade]. Matosinhos: 7Graus, c2005-2017. Disponível
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Leituras recomendadas
MUZART, Z. L. (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX: antologia. Florianópolis: Mu-
lheres, 1999-2004. 2 v.
VERISSIMO, E. Breve história da literatura brasileira. São Paulo: Globo, 1995.

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