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Vincentlouve
Irrrt'i;r l,I'li'r'iiriir I

l.l)or qLta csttrdnr litcrnturn?, Vri..tc'r,r'r Jouvt

rrru?âffirãi
I rrnr ruCao
M,rr<:os Bagno
M,rrcos Marcionilo
Título original:
Pourquoi étudier la littératurc'l
o Armand Colin,2010
wwwatrard:çalldaro
ISBN:978 2 200-24989-2
SUMARIO
EDrçÂo BRAsTLETRA:
Eorron: Marcos Mãrcionilo
Cepe r pRorrro GRÁrrco: Andréia Custódio
REVrsÃo: Karina Mota
CorsrrHo Eoronrer: Anâ Stahl Zilles [Unisinos]
Angela Paiva Dionisio IUFPE]
Carlos Alberto Faraco IUFPRI
Egon de Oliveirã Rangêl [PUC-SP]
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC,lpol]
HenÍique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
Kanavillil Rajagopalan IUnicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
Rachel Gazolla de AndÍade IPUC-SP]
Roxane Rojo tUNICAMPl
Salma Tannus Muchail IPUC-SP]
PREFACIO
Stellâ Maris Bortoni-Ricardo IUnB]

flP"BRASil.. mTAt0GAçÃo NA rot'rTE DA ARTE E DA LITERATURA l3


SINDICATO NÂ(loilAT DOS EDITORES DE TIVROS, RJ
A arte existe?....... l3
176P impossível?............
IJma definição lt+
Jouvê. Vincent
Por que estudar literatura? /Vincent Jouve ; Marcos Bagno e
A afte e o belo.....- 15

Marcos Marcionilo, tradutoÍes.- Sâo Paulo : Parábola, 201 2. A arte e a hísfirta 17


23 cm.(Têoria Literária)
(Ima prátíca transcu1turar..................... 20
Tradução de: Pourquoi étudier la littérature?
lnclui bibliografia
lsBN 978-85-7934-052-9
A literatuÍa existe?. 29
O tenno "literatura" 2ç)
1 . Literatura - Estudo e ensino.2. Literatura - Históriâ
críticâ.3.
e
Leitura - Aspectos psicológicos.4. Educação - Finalidades e objeti-
A líteratura como arte da língaagem........'...'.-... 3l
vos. l.Título. ll. Série.
INTERLUDiÔ 1

12-7247 CDD:807
CDU 82 Evua E A GoRDURA Dos LIVRos........ 35
A "l'tcsitação prolongnda entre o som e o sentido"........ 36
A dirnensão intelectual: discursos sobre a leitura e o sentido da vida...... 1r0
Direitos reservados à
Parábola Editorial
Rua Dr. Mário Vicente,394 - lpiranga VELHA SENHORA CANSADA: VENTURAS E DESVENTURAS
04270-000 São Paulo, SP DA ESCRITA. lr\
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ou banco dc dados scm pcrmiss.lo por os( rito tl,r llrrólxrl,r [(litoI,rl I l(1,r.
IN
ISBN:978 85 7934 Olr2 I ll,1]MlN^(.4() I)^ lls(
PAR QUE ESTUDÁR LITERATUM?

O jogo dos tempos: O valor literário t17

a presenÇa no mundo como qbertura aos possíueis.................. 52


A dinâmicq da descrição:
a paisagem como motor da história... 53

O SENTIDO EM TODOS OS SEUS ESTADOS 55 HuueNo, DEMASTADo HUMANO.... 126


O sentido pretendido.................... 56 O essencial 128
O inédito: a linguagem como remédio e t'ata\idade..................... r3l
O sentido percebido 60

O sentido manifesto 6g ENSTNAR LTTERATURA................... .. 133


INTERLUDIO 3
Prazer estético e ensino.. ............ I33
O srNrrpo TNCERTo 72 r36
73
75 rxforuÚnto 6
78 Esrnne E cARNE..... 138
79 A mulher cósmica......... 139
DeVênus a Cibele I4l
Dor da criação 1l+3
A SIGNTFICAÇÃO ARTíSTICA 8I A Natureza corrompida lltll;
A aúe como prática ...................... 8l
Os meios ........................ 145

A especificidade do sentido aúístico 8/4 Depreender o sentído (aínvestígafio arqueológica)... ...................... 145
Perseguir o sentido (do bom uso da teoría)......... ............. Ut7
A forma pelo menos: o pensamento inscrito 89 Controlar o sentido (asvirtudes dacoerêncía) ................ 152

INrEmiúo z
lr)J:rERtÚDio4 Mrrecnosas rusõrs ... 155
Cranõrs NA NorrE... 92 A leitura descritiva: um conto didático sobre a guerra das esco\as............... 156
O poema como sinal 93 Um conto de f adas bem realista. ..... 158
O poema como sintoma.................... 95 A t'orma como expressão: o desejo de t'usão....... ......................... 158
O pensamento da forma 97 A leitura produtioa ..... 159

98
coNCLUSÃO................... r63
Entender, interpretar, explicar 104
Entender... t04 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..... 166
Interpretar t06
Explicar..... r09

O VALOR ll3
PREFACIO

stamos enfrentando hoje uma crise dos estudos


literários que se expressa pelas seguintes indaga-
ções: de que serve o ensino das Letras? É preciso
mantê-lo? Se sim, o que fazer nele?

Os estudos literários
- evidentemente - permi-
tem aumentar a cultura (ao explicar o que sigru-
fica uma visão "barroca" ou "romântica" do mundo, ao recordar
o que pôde causar riso numa época ou emoção em outra). Mas
a cultura não se limita à literatura. Se o propósito é ter a visão
mais inÍormada possível, é legítimo até mesmo indispensável
-
não falar apenas dos textos (e, entre eles, não aPeÍus dos textos
-
literários). Existem não somente outras formas de arte (músic4
pintur4 escultura), como também outras manifestações culturais
(gastronomia televisão, esporte, moda etc.)) Seria lógico, portantq
(À )dissolver os estudos literários dentro dos estudos culturaià Este
L/
- movimento encontra grande respaldo nos países anglo-saxônicos.

Mas o objeto central dos estudos literários não é o conhecimen-


to da linguagem? Sem dúvida, as obras literárias são, antes de
trdo, textos. Mas a linguagem não se limita à literatura. Embora
frequentemente seja mais agradável estudar a literatura, ela dâ
provas cle um funcionamento particular, que não cobre a totali
literárias pre-
10 PoR euE EsruDÁR LTTERATURA? Prefacio 1'1,

cisa, assim, ser completada pelo exame de outros fatos linguísticos, que possível imaginar um professor universitário dando a mesma resposta
remetem maisnexplicitamente a certos mecanismos de linguagem. Nes- a um estudante? O relativismo é ainda menos permitido aos ministros
sa perspectiva)ios estudos literários deveriam se fundir na linguística. da Educação ou da Cultura, que têm obrigatoriamente de decidir na
Artefato cultural e fato de linguagem entre outros, em que o texto lite- escolha dos programas ou das manifestações a subvencionar: por que
rário justifica uma abordagem específicg? mandar estudar Machado de Assis e não Rubem Fonseca (ou o inver-
so)? Por que financiar uma "parada tecno" e não um filme de vanguar-
, A hipótese deste ensaio é que não se pode refletir sobre o interesse e o da (ou o inverso)? Em suma, se a arte não existe mais para os teóricos,
u valor de uma obra literária sem levar em conta seu estatuto de objeto
ela ainda existe paÍa a maioria dos indivíduos e, sobretudo, para uma
, de ar te. Esse posicionamento suscita, legitimamente, diversas questões.
série de instituições (ensinq imprensa, mídia) que pesam fortemente
Antes de tudo, podemos perguntar se não é francamente desarrazoado sobre nossa existência cotidiana. Assim, talvez não se;'a inútil se inter-
falar da "arte literária". Essa fórmula um tanto quanto obsoleta não re- rogar sobre uma "realidade" que/ mesmo mal definida "informa"
mete a questões de outro tempo? Já não é consenso que a "Nte" (literária
-
através de uma série de engrenagens o mundo em que vivemos e
ou outra) não é um absoluto, mas um dado relativo cujas declinações va-
-
nossa existência no interior deste mundo.
riam com a história? Falar da "arte" sem outra especificação não é voltar
A segunda objeção (já não se disse tudo sobre a arte?) é bastante forte.
a uma concepção essencialista que sabemos não resistir a exame?
Todavia podemos constatar que a reflexão estética, de fato, nunca se
Não somente não temos certeza de que nosso objeto de estudo existe, interrompeu. Aliás, há várias décadas que ela experimenta uma revi-
mas todas as questões que se podem levantar acerca da arte (entendida vescência impressionante2 e, em certos aspectos, espantosa. Se, mesmo
como ideia, apenas como realidade) há muito tempo têm sido tratadas deixando de propor ideias novas/ conseguíssemos, graças a essa re-
por um setor particular da filosofia, a estética,. Não seria falta de hu- flexão, ver de modo um pouco mais claro no interior de debates apai-
rnilclade (e abdicação da prudência mais elementar) debruçar-se sobre xonantes, mas frequentemente complexos, na esperança de tirar deles
problemas aos quais, para citar apenas alguns nomes, Kant, Hegel ou algumas conclusões sobre nossa relação com a arte hoje, talvez não
Schopenhauer consagraram páginas memoráveis? perdêssemos de todo o nosso tempo.
Por fim, podemos nos perguntar se, no estado atual do mundo, não há
Quanto ao terceiro problema (para quê?), acabamos de recordar o para-
coisa melhor a fazer do que se ocupar com objetos que não sabemos
doxo da arte que, embora não tendo utilidade práíca, toca dimensões
muito bem para que servem se é que servem para alguma coisa.
- da existência tão fundamentais quanto a cultura, a educação ou a comu-
Vamos tentar responder. nicação. Por conseguinte, o que está em jogo aqui não é somente o gosto.

Mesrno que se pense que a arte é uma noção eminentemente relativa, Resta saber como proceder para não se perder no labirinto e na com-
é irnpossível, na prátic4 manter-se nessa posição. plexidade dos problemas. Como em todas as situações de crise, o me-
eual o livreiro que
responderá a um cliente que lhe pede conselho: "Toclos os livros são
iguais, é uma questão cle gosto; não posso ajuclar você em nac{a"? É 2 Na França, atestam isso os trabalhos de J.-M. Schaeffer: tArt de l'ôge moderne t'esthétique
-
ct la plrilosophie da l'art du XVlll' siàcle à nos jours, Paris'. Gallimard, 1992; Les Célibataires de
l'nrt Pour une cslhútique snns nrythcs. Paris: Gallimard,1996; Adieu à l'estlrétiquc. Paris: PUF,
-
| "l)i:trto tla fikrso[ia voltrtda prirra a rcÍlcxlig.r rt,spqit6 cln [rt.[rz1 st,rrsÍvr.l r. 2000. 'I'trrntrór:r mcrcce,rl o::,,,ilr,: .r.l:,y.I,?: .:lTj::,
t?r:,y:, *_l:it:!,::i,!,:::* *
rrl.ío1i..,., /r11.,1,,...(..1-. t t-... .:.- , t !.-
cltr Ícnôurr,no
lu I
L2 poR euE EsruDÁR LTTERATII.I.?

lhor decerto retornar às questões essenciais, qrle frequentemente são


é
questões simples (ao menos em sua formulação)f Assim, nos pergunta- DAARTE E DALITERATURA
remos o que é a literatura, que importância conceder respectivamente
à forma, ao conteúdo e à emoçãq sem evitar a questão delicada do
valor artístico. concluiremos com propostas concretas a respeito da
prática do ensiÀô.iPara ilustrar a reflexão, o percurso teórico será en-
trecortado de análises textuais apresentadas na forma de ,,interlúdios,,.

bordar a literatura como "arte da lingua-


gem" supõe ter antes definido a noção
de "arte". No entanto, não existe consen-
so neste ponto. Definir a arte, alíás, é táo
delicado que se chegou à conclusão de
que o mais sensato ainda era desistir da
noção1. Vejamos como anda a coisa.

A arte existe?
A questão da existência da arte se conÍunde com a de sua defi-
nição. Haverá concordância (ou não) em incluir este ou aquele
objeto no campo artístico conÍorme ele corresponda (ou não) à
definição da palavra "arte" que se reconheça como pertinente'
Para dar um exemPlo famoso, alguns recusarão o estatuto de
obra de arte para as caixas Brillo2 de Andy warhol porque elas
não têm (segundo eles) nada de estético; outros, em contraparti-
da, concederão às caixas tal estatuto sem hesitar Porque elas fa-

I É a opinião por exemplg de F. Schuerewegen (Le début et la fin de lart: sur Ar-
tlrur Danto. Poétiquc, rt'"147,2006, p' 367-379).
2 l,crnbrelnos que so trata de um coniunto de caixas empilhaclas umas sobre as
,---^ í^*,..^
74 l,(r{ e(ll lts?rrD^R r.rrlRAruru?
n I n Da arte e da literatura 15

zcrn pensar num modo simbólico. os primeiros se


aplicam à definição foram o romeu:rce ou a tragédia num dado período não se pode deduzir
clássica do objeto de arte como artefato que suscita
o sentimento do o que devem ser o romance ou a tragédia de forma absoluta.
ot segundos adotam uma definição
" !"lg;
mais moderna, que àonàebe a
arte como uma maneira particular de significar. Se não é possível definir a arte, tampouco é desejável Íazê-lo. Seria o
mesmo que transformar um conceito aberto em conceito fechado, ou
seria preciso, então, perguntar se é possível e desejável entrar em seja, arriscar a liberdade criadora:
algum acordo sobre a definição do termo. - -
O que sustento, portanto, é que o caráter muito expansivo, aventuroso
da arte, suas mudanças incessantes e suas novas criações fazem com
que seja logicamente impossível garantir um conjunto de propriedades
Uma definição ímpossív el? determinantes. É claro que podemos optar por fechar o conceito. Mas
fazer isso com os conceitos de "arte", "tragédia" ou "retrato" etc. é ridí-
Existem diversos teóricos paÍa quem não é possíver
nem desejável de- culo, já que bloqueia as próprias condições da criatividade nas artesa.
finir a arte.
Se não existem propriedades definidoras da arte (observemos que
Assirn, para M. weitzs, a arte qualidade de conceito 'hberto,,-
Weitz parece considerar a "criatividade" como um traço essencial), o
.ão pode ser definida por um conjunto de propriedades necessárias
e único modo pertinente de enfrentar a questão é a abordagem histórica.
strficientes. um conceito é "aberto" quando é possível
ampliar o campo Podemos indagar o que se entendeu, na origem/ com a palavra "arte",
de sua aplicação com base numa simpres decisão.
weitz toma o exem- como e por que o sentido da palavra tem evoluído e de que sentido (ou
plo do romance. Não existem propriedades necessárias e suficientes
clue permitam definir um texto como "romaÍlce".
sentidos) ela se reveste para nós hoje em dia.
Ariás,por isso é que
o conceito abrange textos tão diferentes quanto A Historicamente, a palavra "arte" vem designando há muito tempo os
Moreninha, r.Jlisses ou
Memórias póstumas de Brás cubas. portantg não é artefatos que suscitam o sentimento do belo. Aliás, é o sentido que ain-
possível catalogar um
n,vo texto como "roma.nce" tendo por base um modero idear do ro_ da encontramos na maioria dos dicionários. Assim, para o Dicionário
rnance: simplesmente se perguntará se a obra candidata Houaiss da língun portuguesa, a arte é a "produção consciente de obras,
à identidade
rolnanesca têm traços comuns suficientes com outros formas ou objetos voltada para a concretização de um ideal de beleza
textos já conside_
raclos como "romances" para que se justifique a extensão
do conceito. e harmonia ou paÍa a expressão da subjetividade humana". Se a arte
isão os textos efetivamente publicados que determinam nossa ideia do evolui, é simplesmente porque já não concebemos o belo da mesma
romance, e não o contrário.'o mesmo vale para a
arte. Identificar uma maneira. A hlg!-oricidad_e afetaria, assim, bem mais nossa ideia do belo
.Lrra como artística é se referir a um feixe de propriedades
que, empiri_ do que nossa ideia da arte.
crrmente, funcionam como critérios de reconhecimento;
no entanto, nem
por isso qualquer uma delas é cle presença obrigatória.
o erro consiste
crn tra,sformar os critérios de reconhecimento de classes
rurio.iãuÃur,_ Aafteeobelo
te fe'clradas (o romance grego, a tragédia crássica)
em critérios normati-
vos de avaliação de classes abertas (o romance a tragédia). Quando se vincula a identidade artística ao sentimento do belo, a
, Daquilo que
discussão gira em torno da seguinte questão: o belo. §ç. deve a pro-
' ('Í;, l,t'rôlc dr. Ia thóoric.e.n csth('tiquc
(lc)5(t), itr: D. l.orics (rrg.), /r/rilrrsrryl ria nnalytiqtr
al
r :t I I ni I i q u,, I )a ris: K I incksic<,k.
t
rr^ rr. rrr-^^., Da arte e da literatura 17
:,

priedades m3rrl*"f3glgs da obra ou à apr.eciação subjetiva de cada um? se, por exemplq um texto respeita as regras do soneto, é porque ele quer
Conforme a primeira concepção, existiriam obras objetivamente belas. se filiar à poesia e, portanto, à literatura e à arte. Assim, podemos opor a ,

Conforme a segunda, o belo é uma questão de julzo pessoal. uma definição avaliatória do objeto de arte (obra que consegue produzir
provido de certo
o sentimento do belo) uma definição categorial (artefato
O segundo ponto de vista que está na base de nossa "modernida-
- número de traços qrtemanifestam aintaryão de produzir o sentimento do
dg" se inscreve na renovação de perspectiva proposta por Kant: não
- belo, isto é, de ser avaliado no plano estético).
existe objeto belo em si, mas unicamente objetos nos quais o sujeito tem
um prazer estético. O belo não é um dado absoluto: é o resultado, sem- Levar em conta essa intenção permite assim definir a arte sem renun-
pre contingente, de uma relação de conveniência entre as proprieda- ciar à ideia de que o belo é subjetivo e relativo. No campo literário, os
cles de um objeto e o gosto daquele que o avalia. O que define a relação traços "artísticos" são essencialmente traços genéricos. Todo romance,
estética, portanto, não é a natureza do objeto apreendido, mas o tipo de toda tragédia, toda elegia é estatutariamente uma obra de arte. A ques-
olhar que se lança sobre ele. Como explicâ Genettq, "não é o objeto que tão da identidade artística portanto, nada tem a ver com a do mérito
torna estética a relação, é a relação que torna o objeto estético"s. Mais estético. O último Paulo Coelho tem o mesmo estatuto q.ue Guerra € paz '1 ,

precisamente, há rqlaçãg estética çada..-vez q.ue uÍra atenÇã_a" aspectual os dois livros, na qualidade de romances, pertencem categorialmente Í
(isto é, que incide sobre a aparência de um objeto) é sustentada por à literatura e seu respectivo valor estético (entendamos: sua "belezd')
uma apreciação6. Podemos, assim, apreciar esteticamente tanto a tela não é objetivamente apreensível.
de um mestre quanto um cartaz publicitário.
Contudo, ainda que se admita que somente uma definição categorial
Os "subjetivistas" deveriamlogicamente chegar à conclusão de que a arte
da arte pode ser objetiva, a reflexão não avançou muito. Talvez tenha-
não existe. No entanto, diante da evidência de que as obras de arte, sim,
mos respondido a pergunta "que é a arte?" , mas esvaziando-a no mes-
existem concretamente (basta passear num museu para se convencer dis-
mo gesto de qualquer interesse. Agora se trata de saber o que é uma
so), eles propõem o seguinte deslocamento: uma obra de arte não produz
arte de qualidade. Tudo o que se fez foi deslocar o problema (eu diria
necessariamente o sentimento do belo (o que impediria toda generaliza-
até que nós simplesmente o formulamos de maneira diferente).
ção), rnas aisa sempre a produzir o sentimento do belo. Em sua reflexão
em dois volumes sobre a obra de arte, Genette parte assim da seguinte Quer se enfatize o resultado (produzir uma emoção estética) ou o pro-
ilefinição (que ele se empenhará a seguir em modular); "\-Ima obra de arte é jeto (manifestar a intenção de produzi-la), os "objetivistas" e os "subjeti-
um objeto estético intencional, ou, o que dá no mesmo: uma obra de arte é um vistas" parecem compartilhar a convicção de que não se pode separar a
urtcfato (ou produtohumano) com funÇção estética"7. Com isso, torna-se pos- arte da questão do belo. Mas será certo que n6s ainda vinculamos a arte
sível fundar q dgfinição da arte em critérios objetivos. Em qualquer obra, ao sentimento do belo? Pensar que a definição de ontem é a definição de
a intenção estética é, de Íato, reconhecível num certo número de traços: hoje não significa negar o peso da história sobre nossas representações?

" (i. Genette, Ii1úuure de l'art Ln relation estltétique, op. cít., p.1,8.
t' -
Scgunclo Genette, o próprio conteúdo pode, enquanto estrutura, derivar de uma atenção A arte e ahistória
aspcctual. Ver esta passagern de La Rclatitttr esthétiquc'. "[numa obra de arte], cada conteúdo
poclc scr percebiclo como uma 'forma' clcsignanclo unr outro conteúdo mais especificadq pois
n trnálise progric.le dc frrrtna para conteúdo e rcgriclc dc conteúcftl pirrat forma" (ryr, cil., p. 34).
O estaclo atual da produção artística Parece mostrar cle fato que, embo-
7 (l ()rrrrrrllrr l'[í,rrrru,-lr, l'nyl ltttttt,trt,rttrt,,l trnttr,\,rr,1nil,,,, ,r,r ,.;l 6 1íl rn n nrtr. worrhn sondo hí muito têmnô vinculada ao belo, ela tem se en-
r"*^ r'*
T", "^ "r

riquecido com numerosos outros traços que, de secundários,-dTE-


acabaram diferentes propriedades da obra de arte (estéticas, emotivas, simbólicas
por tornar essenciais. Seria então bem possível que a função estética
se etc.) variasse com os contextos culturais.

não fosse mais hoje uma condição necessáriapara se falar de "obra Se essa constatação for exata, a questão "o que é arte?" fica absoluta-
de arte". Para J.-M. Schaeffer, ela aliás jamais o foi: muitos objetos que mente vazia de sentido e exige ser substituída pela seguinte: "O que
consideramos hoje como obras de arte não respondiam, no momento entendemos hoje por 'arte'?". É exatamente o que propõe a filosofia
de sua criação, a nenhuma intenção estética. A redução do artístico ao analítica. A ideia é substituir a reflexão sobre o mundo (que ameaça
estético é uma postura datada, cujas raízes são culturais: sempre cair numa metafísica das essências) por uma investigação so-
bre as maneiras como o pensarnos, isto é, como falamos dele11. Apli-
Por razões que têm a ver com a história recente das sociedades ocidentais,
cada à arte, essa postura consiste em substituir as especulações sobre
quando dizemos "estética" pensamos em "obra de arte". Essa identificação
falaciosa tira sua plausibilidade superficial cle uma concepção ingênua anatureza artística por uma análise das diferentes acepções do termo
da noção de obra de arte que a identifica à de artefato estéticog. "arte" e de seu campo de aplicação.

Haveria, pois, dois erros a evitar: pensar que um objeto estético é ne- A abordagem analítica de certo modo, põe fim ao debate: não existe
cessariamente uma obra de arte; pensar que uma obra de arte é neces- definição universal da arte; existe simplesmente o que uma época, um
sariamente um objeto estético. grupo cultural ou um indivíduo infundem, em dado momento, nesse
termo. Se o historiador ou o sociólogo podem se interessar pelos senti-
Acerca do primeiro ponto, Schaeffer reafirma com Genette (e segun-
dos antigos da palavra, o teórico pode perfeitamente se limitar àquilo
do Kant) que não existe "objeto estético", mas unicamente objetos que o termo designa na época em que ele escreve.
"apreendido[s] no quadro de uma conduta estética"e. A dimensão esté-
tica não é uma propriedade interna, mas "relacional": ela se deve à ma- Resta, contudo, uma possibilidade que é difícil menosprezar: não exis-
neira como alguém apreende um objeto, não ao objeto em si. As obras tem elementos comuns às diferentes acepções que o termo "arte" pôde
de arte, portanto, não poderi nem de longe ter o monopólio assumir ao longo da história? Melhor ainda: além da palavra "arte",
- não há uma prática uma relação com os objetos, que sempre existiu e
da atenção estética.
em todos os países? Não será isso que as diferentes definições da pala-
Quanto ao segundo pontq Schaeffer se afasta claramente de Genette: vra "arte" vêm tentando delimitar (ainda que, a cadavez, elas tenham
cle postula que a função estética não é um traço definitório do concei-
considerado apenas alguns traços em detrimento de outros)?
to cle "obra de arte". De fato, podemos legitimamente nos perguntar
se a questão do belo ainda é pertinente para obras como "Fonte" de Se pudéssemos demonstrá-lo, a questão 'b que é a arte?" recuperaria
Marcel Duchamplo ou o tamborete Mezzadro, fabricado pelos irmãos alguma pertinência. À guisa de analogia, os componentes e as modali-
Castiglioni a partir de um assento de trator. A arte já não é somente, dades do "saber viver" ou da "polidez" são diferentes, e até contradi-
para nós, o que visa ao belo; é também aquilo que pode emocionar ou tórios, conÍorme os lugares e as épocas; isso não impede que a ideia de
fazer pensai, Tudo se passa como se a hierarquia estabelecida entre as saber viver esteja presente em todos os países e em todas as culturas

rr D. Lories ("Philosophic nnalytique et esthétique, op. cit.)lembra que a filosofia analítica é es-
' J.-M. SclraefÍer, L,es Célibntairas dc l'nrt, op. cit., p. 1.4.
"l(r lbid,, p.75(1. scncialmc.nte uma filosofia anglo-saxônica. Por isso temos o hábito de opor a ela a "filosofia
I ..,rrhr.r'm,'o /ri,.r o/r tí.rli .{^,"m ,,rrn Íi nrrrr lrr l"
20 /,(ri errr t,srLrDÁR t,trERA;Lrr-A?

através de declinações factuais absolutamente incontestáveis. podería- dades dos sistemas que utilizarnos para apreender o mundo. A pintura
nros clizer o mesmo do luto ou da relação amorosa. portanto, não é im- abstrata nos confronta assim com outros cócligos além daqueles que
prossível que o que se designa por "arte" terúa sempre existido, mesmo regem habitualmente nossa rnaneira de ver, tanto quanto uma obra li-
c1u;rndo não se utilizava a palavra. A abordagem analítica não torna terária atualizacertas possibilidades inéclitas do sistema linguístico em
olrrigatoriamente caduca a hipótese antropológica. que se inscreve. Para clar um só exemplo, a obra de Flaubert, pelo uso
qwe faz clo imperfeito e clos pronomes pessoais, explora possibilidades
da língua francesa que, no uso corrente, raramente são exploradasl3.
Uma prátíc a trans cultural Analisada do pottto de aista de sua função (renovar a percepção e, portan-
to, a apreensão da realidade), a arte é um dado ao mesmo ternpo trans-
ll a partir
Renascimento que se começa a distir-rguir o "artista" clo
c1o
-histórico (nós a encontrarnos em todas as culturas) e relativo (não são
".rrtesão". O emprego da palavra "atte" como terrno genérico clesig-
obrigatoriamente os rnesmos objetos que oferecerão a cada indivíduo
nando o conjunto das atividades com intenção estética só se imporá
cada época novas maneiras de pensar o mundo). Essa análise,
plcnarnente no século XVIII. Não se pode concluir disso, é óbvio, -
bastante convincente para a arte crítica e contestatária, se aplica mais
(lue a prática artística antericlimente fosse desconhecida. pensar que
dificilmente à arte de celebração, que se conforma aos sistemas domi-
trrrra prática não conceitualizada não tem realidade é, de fato, um
nantes em vez explorar alternativas a elera.
.rbsurdo: isso equivaleria a postular que o inconsciente não existia no
scr humano antes do surgimento da psicanálise. o interesse da con- Sempre conservanclo a ideia de que a arte responde a uma necessidade
t't'ittralização é justamente o de poder se aplicar n posteriori a fenôme- transcultural (o que clevolve pertinência ao conceito), vou propor outra
tros pclos quais ela não se interessava originalmente, mas cuja com- definição raciocinando a posteriori. Se retomarmos a questão dos pon-
tos comuns levantada acirna, poderemos depreender as três caracterís-
Irrccnsão ela permite. De modo geral, a emergência de um conceito
st' t'xplica pela necessidade de clar conta de uma série cle ativiclades ticas seguintes: as obras de arte são objetos não utilitários, que expriment
nlgwna coisa e nos quais é reconhecido um aalor. Todas as sociedades têrn
t'ln vigor há muito tempo.
corüecido, e provavelmente exigem, esse tipo de objetos.
st' a arte é uma noção transcultural, os objetos aos quais ela remete
A ideia de que a obra de arte não tem utilidade práticanão advém, como
tlcvcm necessariamente compartilhar certo número de traços. Have-
se poderia pensar, de um ponto de vista retrospectivo próprio à moder-
r'.i t'ntão algo de comum entre a vênus de Milo, as "embaragens" de
('lrrist«r, o Hino à nlegria de Schiller e a "Fonte" de Duchamp? nidade. Se for verdade que ela se vincula à afirmação kantiana clo desin-
teressamer-rto da atenção estética e à abordagem da obra de arte como
A irlciar cie colocar a questão nesses termos sem dúvida não é nova e al- "finalidade sem fim"'r5, encontramos em toclas as épocas e na maioria das
llunrirs respostas são particularrnente interessantes. Assim, para F. Ver-
rrit'r'r'r, a cspccificidaclc'artística não é uma essência, rnas uma relnção, '' AIg<-r tlue não cscapou a Proust. Ver F. Vernier (op. cit., p.157).
rr Ir. Vclnicr responrlo qlle uma obra de arte e Llm objeto cornploxo, que possui pr6p1i1.-
,r rt'lação cluc ccrtos ot'rjetos mantêm corn os moclelos simbólicos em
tl.rtit's arttstic.rs tt pt'oltliccl.rrlt's não ar"tisticas. Quando cla se conÍorma aos sistemas do-
viSor trttltrtr tlirtla óptrtr. Í1 pltiprio clcsscs objctos cxpklratr as virtuali- tnittantt:s, t't'ttt ritzão cÍc c.rlirctclisticas cluc não se clevc'nr a sua espccificicladc artística (p.
()1-()5). lisst' titt'ioctrtio,
trottturlo, so c vttlitlo sc concordirrmos previamcnte solrrc ir rlcfinição
tlt':is,r t,sIr.t ilicirl,rrlt'.utr:;tir'ir rlrr', jrrst,rrnt.nt(', l)rocur.lntos dt.lintitar.
I ( l l','\,,,,ir'lt lrt llttttir,. N4orrlrr,,rl; l)ltl)lt(,tlt()1s rlrr l' ljt', lti:'lorir',rttrt'nlt', tlcs,tlitt,t rr,t vis,io rtllrt,tntir',r rll olrrir tlt'artt.r'orrrrl rt'.tlitlatlt'.rrrto-
l)t,p,1111,111q,11 rl'lilrrtlr,s l;r.,rrrr,,risps tlt,
r"r"'o:=:,':roo"'ont
I Dn nrtc e dn lifursturn 23
" 'u'l:.ur''' :=,=,, -:=Jr*
Eflt

t'ulturas a necessidade de criar objetos arranjos de palavras, cle peças, de uma intenção exclusiaamente estética, respondem em geral a uma
-
rlc notas, de cores etc. sem função determinada. Para retomar uma intenção parcialmente estética (a maioria dos objetos religiosos jogam
-
clistinção cle Schaeffer, a diferença entre os objetos utilitários e os objetos com a sedução formal para atrair a atenção). A recategotizaçáo de um
rrão utilitários se manifesta pela maneira como os apreendemos cogniti- objeto sagrado em objeto de arte aparece, portantg como natural.
virmcntelr'. É inútil contemplar clemoradamente um martelo ou um ser-
A segunda característica da obra de arte o fato de ela exprimir al-
rrrtc antes de se servir deles (gastaremos apenas o tempo de identificá- -
guma coisa advém da sirnples constatação. Decerto é por isso que
-los). Em contrapartida, se podemos passar vários minutos a contemplar - dos raros pontos que parecem obter consenso entre os
se trata cle um
turna escultura ou a escutar uma sinÍonia e porque os objetos em questão
teóricos. Nem por isso a importância concedida à climensão expressiva
não têm de ser utilizados: eles não têm uso prático.
da obra de arte se torna menos variável: alguns pensam que a obra de
lissa primeira característica exige dois esclarecimentos. arte só existe como objeto semiótico; outros consideram que, se o valor
expressivo cla obra de arte é pouco contestável, esse valor não é essen-
Inicialmente, nada impede alguém de se servir de uma obra de arte
cial à sua identidade.
para fins utilitários. Mas é óbvio que assim ela é desviada de sua vo-
cirção primeira. Se utilizamos uma tela de Rembrandt para "remendar filia ao primeiro ponto de vista, o que distingue
Para A. Danto, que se
rumar porta"17, um poema de Verlaine para estudar os artigos definidos uma obra de arte de qualquer objeto do mundo é que ela é sempre
()Lr um romance de Sade para estimular a imaginação erótica, não os "a propósito de algo"i8. Deve-se compreencler com isso que a obra de
rcccbemos como obras de arte: objetos não artísticos poderiam facil- arte representa sempre outra coisa que não ela mesma. Enquanto signo,
rnr:rrte cumprir as mesmas funções. ela não se reduz à sua realidade material ou física. De fato, a obra de
arte "caixa Brillo" não se confunde com uma caixa Brillo comum, tanto
Sinretricamente, nada proíbe que se reconheçam como obras de arte
quanto a obra literária Madame Booary não se redtz à sequência de
objctos que, na origem, tinham vocação utilitária, como um vaso an-
frases que compõem o texto de Flaubert. Para retomar a expressão de
tigo ou um manuscrito medieval: basta reconhecer-ll:res um aalor inde-
J. Margolis, as obras de arte são
"entidades culturalmente emergentes":
Itt'rtduttc de sua fimção práticn. Os cantos de guerra zulus serviam para
sr-rscitar o ardor militar, as pinturas rupestres pré-históricas decerto ti- Elas manifestam propriedades que os objetos físicos não podem
nhaur uma dimensão religiosa ou mágica, mas não é sob esse ângulo manifestar, mas que não dependem da presença de nenhuma substância
outra senão aquilo que pode ser atribuído aos objetos puramente físicos.
tluc c'las são consideradas pelos amantes da arte (é pouco provável
Falando mais amplamente, essas propriedades são aquilo que pode
(lr.rc o atual possuidor de uma máscara mortuária egípcia se sirva clela
ser caracterizado como funcional ou intencional, e que pode incluir o
I'r.rrâ clecorar o túmulo de seus parentes). A facilidade com que os ob- desenho, a expressividade, o simbolismo, a representação, a significação,
jt'tos rituais ou religiosos alcançarn o status de obras de arte tem con- o estilo e outras coisas do gêneroie.
trrtlo nr.rrtr explicação: trata-se de artefatos que, embora não surgidos
Se as proprieclades representacionais são tão importantes é porque
são clas que permitem diferenciar as obras de arte dos objetos físicos
llilrrr',r tliscrrtrvt.l rl.r tt'rct'irir (llllir'rt: para Kant, er finalirlerclc set.n finr rlcsignir a trti.rtrcira
( ()r)r() () olrjt.lo ttos rll)(rr(lc(, tttt tlttatlro rlt'trttra rt'laç.io t'sttitica, não o olrit'ttt llt('stlt() (cÍ. I',Art

1!1'|1,,q1 rtntlrrtrt', t\t. til., p.7I7?.). l" A. l),rntrr, lrr'lnutsligrrnliotrrltrlttuttl.l'aris: Scuil, 19ti9[ccl.or..: 19tt1l,p.'143.
t' t'1. l. M. lir'lr,rt,llt'r', I t:; ('r'lilttltitt:' rlt l'rttl, rrlr. r il., P.,l,l ,ili. r'' f. M,rrlioli:;, L,t spt't iÍir'itt'ottlolo;',it1trt'r'lt's (rltt,rt:s tl'art, itt; Pltrlosoltltir rrtttlyliqttt ct r'slltt'
,,oII QLIE ESTUDÁR T,ITERATURA: Da arte e da literatura 25
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úrt

nos quais elas se encarnam. Encontramos a mesma ideia de Bakhtin, em sua fonte um estado mental que remete, entre outras coisas, à repre-
para quem o "objeto estético" não se confunde com o material que sentação de um pote de geleia. Mas é justamente porque todo artefato
lhe serve de suporte: a obra de arte apresenta, enquanto "aconteci- humano exprime algo2a: o pote de geleia dá testemunho das exigências
mento", propriedades específicas2o. práticas, e até das preferências estéticas, que, levadas em conta pelo con-
cebedor (individual ou coleüvo), resultaram na sua concepção2s.
Schaeffer se inscreve na segunda perspectiva: denunciando o "panse-
miotismo" em voga na reflexão atual sobre a arte, ele se recusa aÍazer
A questão da "causalidade Intencional" é, contudo, capital, visto que
permite distinguir claramente ob-jeto estético de objeto artístico.lSe qtal-
da dimensão semiótica um componente constitutivo da identidade ar-
quer objeto do mundo pode se tornar o objeto de minha atenção estética,
ústica. ConÍorme enÍatiza, isso equivaleria a dizer que uma obra só é
até mesmo os objetos não provenientes de uma causalidade Intencional
recebida como artística depois que se depreendeu sua significação2l.
(o mar em fúria, uma flor, um céu de tormenta etc.), a relação artística su-
Schaeffer evidentemente não nega que a obra exprima certo número
põe ao menos parcialmente a consideração dos estados mentais de
de coisas, mas ela não foi criada para isso. Seu estatuto, desse ponto - -
que a obra de arte é consequência, a começar pela intenção e pelo proje-
cle vista
é o mesmo que o dos artefatos não artísticos: eles dão teste-
to26. Em suma o que diferencia a relação artística da relação estética é a
munho cle uma época, de uma cultura, de uma sensibilidade, mas sem
atenção dispensada ao conteúdo. Como outrora escrevia Barthes: "'What
terem sido concebidos para dá-lo. do you rnean?' t...]. É u pergunta milenar dessa coisa tão antiga: a Arte"z7.

O valor expressivo da obra de arte advém, portantq da propriedade que O terceiro traço definitório da obra de arte é ser um objeto ao qual se
ela compartilha com todos os objetos criados pelo homem: "Ter saído de reconhece um valor. Apesar de essa última característica ser ampla-
uma causalidade Intencional'2z.Na terminologia de Searle, a Intencionali- mente confirmada pela prática (a maioria das pessoas têm dificuldade
tlnde (commaiúscula) caracteriza o funcionamento da consciência. Todo de considerar como obra de arte um objeto ao qual elas não atribuem
fato psíquico (crença, juízo, percepçãq desejo ódio etc.) é Intencional na nenhum valor), ela atualmente suscita acesos debates entre os teóricos.
medida em que, remetendo a alguma coisa, passa por uma representa-
A posição em voga consiste, como vimos, em destacar a definição de arte
ção consciente. Em outros termos, a consciência é sempre consciência
de todo juízo de valor em nome cla relatividade do julgamento de gosto.
c{e algo. Dizer que a obra de arte surgiu de "estados Intencionais"23 é,
portanto, lembrar que ela supõe em fonte um fenômeno mental que
sua
2a Schaeffer diria que um artefato, como uma porta ou um vaso, é a realização e não a et-
deságua numa representação. Sem dúvida qualquer objeto surgiu de pressão de um conteúdo Intencional: a porta sem dúvida surgiu de uma representação men-
uma causalidade Intencional: um simples pote de geleia tem igualmente tal; mas, enquanto objeto inerte, ela não pode. por definição, exprimir nenhum conteúdo psí-
quico (Les Célihataires del'art, op. cit.,p.73-74). Tudo depende do sentido que se dê ao verbo
"exprimir": por sua própria existência, a porta dá testemunho de estados mentais na origem
rr) Ver M. Bakhtin, "Problême clu contenu, du matériau et de la Íorme dans l'euvre litté- das operações das quais ela surgiu. Neste sentido, podemos dizer que ela os "exprime".
rairc" (1924) in: Esthétique et théorie du rornan. Paris: Gallimard, 1978, p. 82. 25 Se a especificidade clo objeto cle arte não se deve ao fato de exprimir algo (característica
2r Cf. Les Célibataires de l'art, op. cit., p.93. comurn a toclos os objetos surgidos de uma causalidade Intencional), ela talvez se deva
)1 lhid., p. 111. Somente essa primeira condição é incontornável. O estatuto de objeto de arte e à extensão daquilo que ele exprime.
-
como tentarei rnostrar mais adiante
- à nafureza
:6 Essa dimensão "espiritual" é, na visão de Hegel, aquilo que constitui a superioridade do
pocle resultar, conforme os casos, cla identidade genérica (o objeto), da intenção estética (do
ar"rkrr) ou da atenção estética (clo receptor). bckr artístico s«rbre o belo natural: "Do ponto de vista formnl, não importa que má ideia que
,' CÍ. I. R. Searle, ttntentionnalité - essai dc philosoyrhie des ótttts mentaux. Paris: Minuit, 1985 çrassc pc.la cabeça de um homcm é [...] mais elevada que não importa que produção da
lccl, or.: 19831. A maiúscula permitc distinguir a "lntencionaliclade" (relação cla consciôncii't rlaturozâr, poÍclr.rc ela possui sernpre espiritualiclade e liberdade" (I{egel, Esthétique.París:
coln unl objett) tla "irrtencionalic'lacle" (ctrrrltcr irrtcncional c{e umir atitut{e), que é só uma cle l,r. l,ivrc clc Pochc,'1997,vol.l, p.52).
l'r )li (,1/, I',llll,1li I il, ii.lllll{.\ i llrr ttt lt t rltt lilrtrtlttttt 27

St'lrirt'Í'lt.r ill'in)ril irin(la (lu('s('cxistc clarrirnrcutc uma dimt:rrsão arvalia- A questão clo valor é' iguahncnte incontornável quanclo se defir-re o
drlrit ua rclação irrtística, cl"r não ó específica. Ilealmente, a avaliação se objeto de arte pela intenção estótica em sua origem. Há projetos bem-
t.rrcontrir nas rclações que mantemos com a maioria dos objetos. É a sim- -sucedidos e outros que falham: uma intenção se julga in fine diante de
plcs consequência de seu estatuto teleológico: nós os julgamos segundo seus resultados. Não é preciso seguir Schaeffer quando ele pretende
suar capacidade de preencher a função que é a deles. Mas, para o autor que uma maionese estragada aincla seja uma maionese:
dos Celibntários da nrte, o fato de eles cumprirem mais ou menos bem sua
É certo que não basla querer preparar uma maionese para que o resultado
fr-rnção não tem a menor incidência em sua identidade: um carro pode ter seja efetivamente uma maionese. Por outro lado, o que se exige para que
nraior ou menor desempenho (em termos de velociclade, de conÍorto etc.) um produto clado seja uma maionese não é que ele tenha sido concluído,
scm nem por isso deixar de ser um carro. A identificação de um objeto mas que se peguem azeite e gemas cle ovos, que se tente misturá-los e
que, ao final da operação, acrescente-se um filete cle vinagre, ou seja, que
conlo obra de arte não teria, portanto, nada a ver com seu valor eventual.
se utilizem os elementos constituintes pertinentes e que se empreenclam
As coisas talvez não sejam assim tão simples. as ações "instrumentais" pertinentes2s.

I{etomemos os três fatores que, segundo Schaeffer, sã.o capazes de defi- A distinção entre um resultado que não seria uma maionese e outro que

nir um objeto como artístico: a atenção estética, a pertinência genérica, seria uma maionese estragacla me parece um pouco bizantina: uma maio-
ar intenção estética. nese que não deu liga (e que, portanto, não pode desempenhar sua função
de maionese) ainda é uma maionese? Para mudar de registro, cligamos
Sc um objeto se torna artístico por conta da atençio estética que lhe que uma fotograÍia mal tirada qual não se distingue quase nada
c dispensada, o critério clo êxito não parece a priori suficientemente (por causa, por exemplo, de uma superexposição à luz) é aincla uma
operatório: podemos apreciar esteticamente todo e qualquer objeto -
fotograÍia? Conkariamente ao que diz Schaeffer; a "realidade" da maio-
clo mundo. Contudo, devemos notar que se o objeto em questão não nese não depende de ações genéticas pertinentes, mas de propriedades
suscita o sentimento de prazer que se espera da relação estética, esta observáveis no produto acabado. Quem poderia aÍirmar que uma cadeira
última se interrompe. Temos, então, pelo menos, critérios de êxito ou defeituosa (à qual, por exemplo falta um pé) ainda é uma cadeira?
rle fracasso, mesmo que eles sejam, todavez, subjetivos.
Se é clifícil falar
a experiência o comprova cotidianamente
-
Quando uma obra é identificada como artística por pertencimento ge- de uma obra de arte sem avaliá-la, não é porque a avaliação positiva
rttirico, a imbricação entre avaliação e definição é mais estreita ainda. Íaz parte integrante do conceito de obra de arte? Como o clemonstrou
Urn soneto manco não é realmente um soneto, logo não é realmente Danto, os preclicados especificamente artísticos supõem sempre um
proesia, logo, não é mais arte. Poderíamos dizer o mesmo cle um drama juizo de valor. Se Eonte de Duchamp, contrariamente aos outros uri-
scrn tensão narrativa ou de uma sinÍonia à qual faltasse um movimen- nóis, é uma obra de arte é ernrazáo de propriedades (não perceptuais)
Mais genericamente falando, se existem
t«r. como Schaeffer pensa que os urinóis geralmente não possuem e que são justamente avalia-
- ções subjetivas positivas: "Ela é audaciosa, impuclente, desrespeitosa,
- objetivos constitutivamente artísticos, não é logico concluir daí que
t,lcs perdem sua identiclade de objetos de arte quando as proprieclades
espiritual e inteligente"2e. Na esfera da arte, como Adorno já entendera
(lr.lc os definem são vacilantes?
Um romance policial sem crime nem
'7s J.-M. Schaef fer, Las Célibntnires de l'nrt, op. clt., p. 18[t,
irrvcstigação é ainda um romance policial? 2'r A. Darrto, Ln Trartsf guratiott dtt bnnnl, op cit., p.160.
[rt.lrr, o jurzo clc firto se confuncle com o juízo de valor: "O conceito de pocle construir o próprio universo artístico a partir de suas próprias
ol'rrir clc irrte implica o clo êxito. As obras de arte falhadas não são obras expectativas. As "sanções" da história não são, além do mais, defini-
clt'irrte "r0. A posição cle Rochlitz é a mesma: a "pretensão à valiclade" tivas nunca: determinado objeto excluído do munclo da arte em uma
irrtistica cle um artefato deve ser sancionada positivamente para que época pode muito bem voltar a e1e em outra e aice-L)ersa (em função da
possiunos clualificá-lo de "objeto de arte"31. evolução dos critérios de avaliação).

Sc ta'rl não fosse o caso, seria preciso integrar à arte o conjunto dos Essas reflexões sobre a obra de arte também se aplicam, é evidente, à lite-
nranuscritos recebidos todos os dias pelos editores, os quadros sem ratura que, não esqueçalnos, Íazparte das artes' Contudo, a arte literária
valor recebiclos pelas galerias de arte e as modelagens inábeis de uma clepreende sua singUlariclade do fato de que o material que ela utiliza- a
t-riança de 5 anos. Se um romance "ruim" (seja o que for que se enten- linguagem jáéem si mesmo um sistema significante. As questões que
-
clir por isso) ainda pertence (e mesmo assim sob reserva)3z ao gênero são postas à arte claramente não são postas do mesmo modo à literatura.
"ron1ance", é pouco provável que aqueles que o julgam assim o elen-
(luem na categoria "literatura". Aliás, a expressão "literatura Íuim"
s(r tem sentido se entendermos "literatura" em um senticlo atenuaclo
(procluções escritas). Quanto à expressão "arte ruim", ela não é muito
A literatura existe?
c'orrentemente empregada. A palavra "literatura" designa uma realidade objetiva, ou se trata de

Observemos que, se aceitarmos a definição da obra de arte como "ar- um termo vago, de significações mutantes, por vezes, contraditórias?
tcfato não utilitário que exprime algo e ao qual não atribuímos valor", Antes de responder, reevoquemos brevemente as origens do termo.
t'r história da arte é exatamente a história das variações na identidade

do "se" impessoal (quem está habilitado a atribuir valor?) e nos crité-


rios c1e avaliação (quais são as propriedades cla obra que devem ser O termo "Iíteratura"
levadas em conta?). Tal abordagem explica por que a história da arte
Se existe algum interesse em restituir a história cle um termo, isso é
rrão é nem uniforme, nem linear. Existem, em cada época, várias ins-
porque nossa icleia atual da literatura se explica, em grande parte, pe-
trincias de legitimação, frequentemente conflituosas, cujos clesacorclos
las diversas acepções que o termo foi recebendo no decorrer do ternpo.
cxplicam a variedade e a diversidade das formas artísticas. Não ape-
rlirs o "munclo da arte" é uma realidade complexa, que faz intervirem Etimologicamente, havemos de lembrar que a palavra "literatura" vem
rrtores muito diferentes (criadores, críticos, teóricos, historiadores da do latim litteratura ("escrita", "gtamática", "ciência"), forjado a partir
arte, instituições), como qualquer grupo, ou até mesmo todo indivícluo, de litters ("letra"). No século XVI, a "literatura" designa, então, a "cul-
tura" e, mais exatamente, a cultura do letradq ou seja, a erudição. "Tet
"' l. W Aclon'ro,Tltéoria csthétique. Paris: Klincksieck, 1989 [ed. or.: L9701,p.241. literatura" é possuir um saber, consequência natural de uma soma de
" ('t. tl. l{ochlitz, tArt sultanc d'essni. Paris: Gallimard, 1998. Ora, passo ao largo da questão leituras. Como alitetatura supõe a afiliação a uma elite, a uma aristo-
(,r'irlcnte.rnenter essencial) dos critérios de avaliação. Agora, meu objetivo é simplesrnente
rrrostrar que, na prática, a identificação cle urn artefato como objeto de arte é indissociável cracia do espírito, o termo acaba, por deslizamentos sucessivos, vindo
rlt' unrer irvaliação positiva. a designar o "grupo das pessoas de letras". Falar-se-á, por exemplo,
" ('ourt) vimos, é difícil chamar de "romance" um texto que não siga as restrições constitu- dos "senhores da literatura'.
liv,rs ckr gêncro.
Da nrte e da literatura 3L
aS7'tl/l^ it Li /-l.RzlTtlliÁ ?

('omo o demonstrou R. Escarpit33, é por volta de meaclos do século Esse breve histórico explica por que os valores do espírito e da cul-
XVIII que a ideia de uma "arte da linguagem" começa a se afirrnar. En- tura são indissociáveis dessa arte verbal que é para nós a literatu-
tltrirnto, anteriormente, a arte verbal limitava-se à poesin, o século XVIII ra: as antigas acepções cla palavra, mesmo recobertas pelo senti-
vciemergirem os gêneros "vulgares"(o romance e os gêneros em prosa do moderno, não desapareceram de todo. Se "literatura" designa
provenientes clo jornalismo). Diante da necessiclade de um termo geral atualmente as obras de vocação estética, o termo também evoca as
ideias de "produção intelectual" e de "patrimônio cultural"' Como
[',rrrtr clesignar a arte de escrever, os olhares se voltaram para a palavra
lilt'rnturn. Algurnas línguas, como o russo, adotam o terrno; outras enxer- o nota R. Escarpit, o termo "literatura" é, em última instância, rico
em contradições: "Trata-se de uma série de ambiguidades que fez a
t.tm essa nova acepção em um termo de sentido aproximado. O interes-
st'cla palavralitersturs é que ele sempre sugere as icleias de "elite" e de
própria fortuna. É possível que um esforço de esclarecimento leve-
".rristocracia", hercladas de seus primeiros senticios. A cliferença é que a
-nos a perdê-lo para sempre"3s.

p.rrtir de então são as obras e não os homens que pertencem a uma elite.
Iiazer parte da "literatura" funciona, desse modo, como um reconheci-
A líteratura como arte da línguagem
rncnto para os gêneros antigos e valida o valor dos gêneros recentes.
A litoratura deixou de designar, portanto, um "ter", para designar uma se formos levar em conta o sentido que o termo adquiriu no século
Pl'.itica e, para alérn disso, o conjunto clas obras dela resultantes. XIX, a pergur-rta "o que é a literatura?" passa a ser formulada como
('ontuclo, é preciso aguardar para que o termo literatura possa rivalizar, segue: em que condições um texto pode ser tido como estético? As
respostas, logicamente, atestam a mesma clivagem entre objetivistas e
rro plano estéticq com o termo poesia. No século XVIII, o conteúdo do
subjetivistas que se vê na definição do belo.
It'r'n-rcr liternturn, com efeito, está longe cle ser unívoco. Ele também englo-

hir pcrfeitamente tanto as obras de vocação intelectual quanto os textos É o que se pode verificar ao examinar as reflexões de Genette sobre
tlt' tlimensão estética. Todo escrito ao qual se reconheça um valor (seja a identidade literária. Segundo o autor de Fiction et diction36, são con-
lror slla fortna, seja por seu conteúdo) pertence à literatura. Diante disso, sicleradas (de acordo com os fatos) literárias duas categorias de tex-
() crlnpo literário engloba tanto as obras de ficção quanto os escritos his- tos: aqueles que pertencem à literatura por obediência a convenções;
loricos c filosóficos e até mesmo os textos científicos. As coisas evoluem trclueles que são tidos como belos. Convém, portanto, distinguir dois

1x)f'(lue, com as ciências positivas conquistando progressivamente apró- rcgimes de liternriednde: o constittttitto (um texto é literário por respeitar
lrria autorlomia, torna-se cacla vez mais difícil assimilar à "literatura" os irs regras de determinado gênero); o cortdicional (um texto é literário
t'st'r'itos cientificamente orientados. A consequência dessa "secessão" é
lirrrit.rr tr lite'ratura ao campo da criação estética. De fato, a "gratuidade" (lr.l(\ c scrrpre a rlossa
-
deve, evidenternc.nte, muito ao romantismo e a sua sacralização
rl,r ar.tc: rur1i1 \,ez cs;tabelcciclo que a obra de arte tem um valor próprio, quc a clistingue
(r .rtrscrrciir de finaliclacle prática) acaba Por se impor como o critério da r.,rrlit,al1tt.1te tios outros obietos clo munclo, é lógico consiclerar a autonomia e a autoteliar
irlt'rrtitl.rde Iitcrária. A partir clo sóculo XIX, "literatura" adquire scu sL-11- çpr16 tlu.rs rlc srr.rs catiictcrísticas essenciais. Aplic.rndo essa abordagem à literatura, os
l6r.rlalist,rs l'ltss()s sc apoiitrão na it'lcntidade cstéticar Para uma máxima exploração das
IitI«r rnorlcrno clc "uso cstctico clar linguagcrn e'scrita"31.
l,r.pt it,tl,rrlt's l6rprais rla lirrgr-ri-rgt'rlr. Solrrc ats rclações ctltre rortatltismo e formalismo, vcr
l. 'lirtlorrrr', ('rilirlrtt rlr lt tritiqut. I'alis: Setril, l9ti4, p. 7-'15.
', li. l,illt't',rlrrn., llir litttttrirt ittlt'nmlíotrtl r/r's /r'rtttr's litlcmirts <http:/www.tlitl.
" ( 'l li l;,,t,rr Iil, I ,r I )t'lirriliorr rltt lt't tttr "l.itllr',rlrtn"', itt: I r' I illttttir,' r'l lr' :ttr rrrl. l',tlis: llr;r,,rr,Pit,
r.Plrl''
l,l i,rrr l(),'l) r, )rrtl )ír l rnlo/,rlllr,sl /,rr 1)'t1
32 ,,(ni ellt. r,-slLrDÁ/i I.nERAILutA?
Da nrte e do liternturn

por apreciação estética subjetiva). um soneto, um relato ficcional, uma Quixote ou A níttLsen. De qualquer perspectiva pera qual se olhe,
pcça cle teatro são, portanto, constitutivarnente literários. Em contra- não se pode deixar de encarar a questão clo valor. É por isso que,
partida, textos que não pertencem a gêneros literários estabeleciclos, a meu ver, é clelicaclo falar de "literariedade constitutiva": só exis-
lnas que poclem seduzir por causa cle suas qualidades de escrita são tem identidades genéricas constitutivas que nem sempre são
-
garantias da identidade artística. Efetivamente,
conciicionalmente literários. É o que se passa com os sennões cle Bos- existe uma infini-
suet, a Histórin dn França de Michelet, os Pensttntentos de pascal ou os dade de textos que, apesar de uma identidade genérica claramente
Eusricss de Montaigne. Esclareçarnos que a literariedade conclicional estabelecida, nunca conseguiram conquistar um estatuto artístico.
r-rão é uma simples questão de preferência pessoal: como podernos ver A abordagem da literatura apresentada em Fiction et cliction é cle-
pclos exemplos que acabo de citar, urn texto que não era originalmente terminada por um dos postulaclos fundamentais cla modernidade:
litcrário pode adquirir, com o ternpo, uma identidade literária coleti- r-r importância primeira cla forma. Não obstante a clistinção entre

vamente reconhecida. E isso acontece mais facilmente quando tal texto uma literariedade "por ficção" (que representa objetos imaginá-
r-rranifesta uma intenção estética parcial. o Discurso sobre as ci'àncias e rios) e uma literariedade por "dicção" (derivada da maneira cle
tus nrtes é inicialmente um texto de ideias, até rnesmo uma obra filosó- cscrever)3e, Genette realmente se mantém convicto cle que a lite-
fica; mas não se pode negar que Rousseau, ao escrevê-lo, tenha siclo rtrriedade é inicialinente uma questão formal. Isso é evidente no
sensível a preocupações estéticas37. sua chegada ao estatuto de texto ctrso da literariedade "por dicção". Em um "belo,, texto, os enun-
iiterário evidentemente lhe foi facilitada. c i a-rdos são lo gicarnente percebidos como intangíveis; rno dif icá-los

scria arriscar a qualidade estética do conjunto: quem ousaria mu-


A noção de "literariedade constitutiva", contudo, me parece longe de
rltrr uma vírgula de urn poema cle carlos Drummond cle Andrade
ser evidente. A ideia segundo a qual ela permitiria definir a identiclade
.u de uma frase de Nelson Rodrigues? Mas Genette, muito es-
literária sern recorrer ao juizo de valor é, ern todo caso, bastante clis-
trtrnhamente, tenta também vincular a literarieclade "por ficção"
cutível. se, por um lado, corno o nota Genette, as literariedacles cons-
a critérios formais. A ideia é que, em uma ficção, os enunciados
titutivas são institucionais3s, é forçoso deduzir daí que elas provêm
Irão devem ser lidos em comparação com a realidade, mas como
clos juízos coletivos de valor. se as regras do soneto ou as convenções
t'lcrnentos do sistema que eles constituema.. Desse modo, aquilo
tcatrais vieram a designar um texto como literário, é porque esses prin-
rllrc rlos é dito de Nero em Quo aadis ou cle paris ern pai Goriot só
ci1-rios cle escrita foram, em determinada época, positivamente avalia-
t' significante em relação com os respectivos sistemas semióticos
r.los. Por outro lado, a aplicação mecânica cle regras preestabelecidas
rlc Qrro undis e do Psi Goriot. Em outros termos, seja em uma fic-
nulrca foi suficiente para gerar uma obra de arte. Se fosse necessário
qã., scja em um poema, os enunciados são apenas componentes
sirrrplesnlente obedecer a convenções para fazer um texto literário, a
tlt'ssa "forma" global que o texto representa. podemos manter o
rnonor ficção inventacla por um aluno teria o mesmo estatuto de Dont
ct'ticismo di;-rnte dessa "autonomia" do texto literário e cliante da
rrrrrrlança cle cstatuto clos elementos tomados cle empréstimo ao
' l).tt.t illgtttrs, d jttstirtnt'l-ttt'cssc'".tccnto" particular t1ue. constitui o v.rl«tr rltl prinrt'irg /)is
(l/,.s(): "lIitVia aP|nas p()ucils lr.rl;tvras lrrrnranas ir ntais lt<l ar cltt r]lrntclo r. clas tt.jo t,rant
tlt'lir,ltttlt'rlovitlatlt', ttt,ts lt;tvi,utt sirlo tlilas (()ll l,ll ,rt't.trlo, (lu('s('u ct.o rrlio rlt'r,i,r rrr,ris st, " "li litt'rirlrrr.t dt'licçãr:.1(lu('lir (lu('sc ilnpõc esscnciaL.ncntc Pe-lo ctrrtiter imagin;írio clc
ltt,ttlt'1"(1.(,rrt'ltt'rtrro,lll:lürrrssr',rtr, l)j;1p111;::,///./r,sr;rir,utr,:,tllt:;rtrl,. l,,rlis:(j,rr.rrit,r.l;l,rrrr olrit'los, litt'r',tlttr',r tlt'rlicq,io,ttlttt'l.t tlut.se irnpõc t.sst'rrcialnrcnto por.suâs cirractcr.ísti-
"r'tts
nr,rliol, lt)i' l, r r)nl t',1(,llr,)). r,t:, lolrn,rir; 1...1" (lrir'tiotr t,l rlit.liorr, rTr. r'il., P. I l0).
POR QLIE ES?"LIDÁR LITERATURA? n I n Da arte e da literatura 35
úrE

mundo real (mesmo em uma perspectiva formalista, parece difícil Bmw


considerar Nero e Paris independentemente de sua realidade ex-
tratextual). De todo modo, existe para Genette um traço comum à
Euua E A GoRDURA DOS LIVROS
ficção (como história inventada) e à dicção (como linguagem tra- (Flaubert, Madame Boztary )

balhada): a intransitividade de um discurso que não remete a nada


além de si mesmo. Estamos, como vemos, em linha direta com as
reflexões de Jakobson, quando ele define a função poética da lin- É próprio da literatura literatura que, como lembramos, tem na sua ori-
-
gem uma vocação erudita (tentar) satisfazer ao mesmo tempo uma expecta-
guagem como "intenção da mensagem enquanto tal, ênfase posta -
tiva estética e uma exigência intelectual. Se a maioria dos leitores considera que
sobre a mensagem por sua própria conta"41.
não é possível mudar uma única palavra nessa mecânica singular e frágil que é

Mas essa importância geralmente atribuída ao trabalho formal não o texto literário, é porque têm a convicção de que a menor modificação equiva-

cleve ser relativizada? Particularmente quando se trata da arte li- leria não somente a alterar o ser musical e rítmico da obra (o que é lógico), mas

a língua também o que ela exprime ou busca exprimir (o que é mais surpreendente).
terária, sistema simbólico "secundário"a2, cujo material
- Tudo se passa como se o respeito ao literal não fosse menos necessário para a
põe pela força das coisas a questão do sentido em primeiro pla-
- identificação do que está em jogo quanto para o prazer da leitura. É o qu" vamos
no? Realmente, existe uma diferença fundamental entre as artes que
verificar analisando esta célebre passagem de Madame Booary.
requerem uma percepção estritamente sensorial e aquelas que Pas-
I1 y avait au couvent une vieille fille qui venait tous les mois, pendant huit jours,
sam pela falaas. Se, como o nota Schaeffer, toda obra de arte não é
travailler à la lingerie. Protégée par l'archevêché comme appartenant à une ancienne
necessariamente um objeto semiótico (um "jardim", tlm objeto de famille de gentilshommes ruinés sous la Révolution, elle mangeait au réfectoire, à la
clecoração não são feitos para significar), a obra literária, em contra- table des bonnes soeurE et faisait avec elles, apràs le repas, un petit bout de causette

partida, é sempre um fato de sentidoaa. Podemos nos perguntar se avant de remonter à son ouvrage. Souvent les pensionnaires s'échappaient de l'étude
pour l'aller voir. Elle savait par ceur des chansons galantes du siêcle passé, qu'elle
não é isso exatamente o que constitui sua força, como vamos mos-
chantait à demi-voix, tout en poussant son aiguille. Eile contait des histoires, vous
trar no interlúdio a seguir. aprennait des nouvelles, faisait en ville vos commissiong et prêtait aux grandes, en
cachette, quelque roman qu'elle avait toujours dans les poches de son tabiie4 et dont
{r R. }akobson, Poétique, in: Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963 [ed. or.: 1960], la bonne demoiselle elle-même avalait de longs chapitres, clans les intervalles de sa
p. 218. besogne. Ce n'étaient qu'amours, amantE âmantes, dames persecutées s'évanouissant
a2 VerTTodorov Qu'est-cequelestructuralisnrc?,t.II Poétique.Paris:Seuil, 1968,p.30.
'rr As demais artes (escultura, pintura, música) solicitam certamente a reflexão mas de c{ans des pavillons solitaires, postillons qu'un tue à tous les relais, chevaux qu'on cràve
rnodo mais mediato que os textos literários.
- à toutes les pages, forêts sombres, troubles du coeuç serments, sanglots, larmes et
{ Cf. J.-M. Schaeffer, Les Célibataires de l'art, op. cit., p. 81. Baseando-se nos trabalhos de baisers, nacelles au clair de la lune, rossignols dans les bosquets, messieurs braves
Sc.arle, Schaeffer explica que todo ato linguístico é um "fato de Intencionalidade derivada",
comlne des lions, doux comme des agneaux, vertueux comme on ne l'est pas, toujours
isto é, ele não é simplesmente causado por estados Intencionais: ele exprime estados Inten-
bie'ns rnis, et qui plcurent colnme des urnes. Pendant six mois, à quinze ans, Emma se
cionais. Certamente, já lembramos isso, só os estados mentais podem ser Intencionais; por
isso não é menos certo que a lingui'rge'm seja feita para seÍ preenchida cle Intencionalidade. gririssrr donc lcs rnains à cettc poussiàre des vieux cabinets de lecture{s.
Um livro não tcm consciôncia clo que cliz; rnas reivirrdicar a existêncitr (difcrcnternente de uma
sc'c1u('ncia clc sigrros gráÍicos scnr significação) cia lutcncir»ralidaclc quc urn indivÍduo perten-
c('nt(,rl ulnir conrurritlaclt'linguistica tlar.la lhe cottícrt'. Íl crn virtuclc tlt'ssa ltrtt'trcionaliclirtlc
'r" (.1, lllatrbcrt, Matlanrc llovaly, l. pitrtc, cirp. IV. Paris: LibrairicCénérale Française, 1972
Dn nrte e da literntura
36 r:srrroan r-lrrnATuRÁ?
,..r'on,Qur #

solteirona que vinha toc{os os meses, ciurante 8 dias,


trabalhar irnportância de nossa frase: é uma síntese/ um resumo das páginas precedentes'
[Havia no convento uma
narouparia.ProtegidapeloarccbispadocomopcrtencenteaumaantigaÍamília Ela condensa aquilo que, aos olhos do narrado4 merece ser enfatizado da adoles-
clas irmãs, c
cle fidalgos nr..rinriu, sob a Revolução, ela comia no refeitório, à rnesa cência de Emma. O narrador nos indica com esse "portanto" que estamos liclando
trocavacortelas,apósarefeição,algunsminut<lsdeprosaantesderetomarsuatarefa. com um núcleo cla história, qrle convém filemorizar se quisermos seguir o fio do
Asitrternas,frequentemente/escaPavamclosestudosparairemvê-la.Elasabiadecor romanceaT. enunciado confirma, aliás, o lado decisivo da informa-
O conteúdo c{o
ctrnções gâlantes do século ânterior, que cantava
a meia-voz' semprc a espetar suâ jovetn, em que a pessoa ainda é moldável,
ção transmitida: 15 anos são uma idacle
agulha.Contavahistórias,transrnitianotícias'levavaascncomendasparaaciclaclce em que as coisas se Iançam para o futuro, e a longa duração (seis meses) mostra
emprestavaàsmaiores,àsescondiclas,algumromancequeelasernpÍetinhanosbolsos
que a impregnação é forte e terá consequências. Essa passagem é, portanto/ essen-
ela mesma longos capítulos' nos
de seu avental e dos quais a velha senhorita devorava
cial para se compreender a sequência (do livro cle Flaubert e da vida de Emma): o
intervalosdesuaocupação.Ttrdoerama[IoIeS/âmântes/damasperseguidasadesmaiar joaenr
cacla posta, cavalos esftrlfados em que vai se passar está fundamentalmente ligaclo ao fato de Emma ter lido
em pavilhões solitários, postilhões assassinados a
todas as páginas, florestas sombrias, perturbações
do coração' juramentos' soluços' dentuis,durante tempo demais, determinads categoria de livrosaS.
caaalheiros bravos cotno
lágrimas e beijos, cânoâS ao lrrar, rotrxinóis nos bosques, O reflexo de leitura que consiste em inverter a forma sobre o plano clo
é' sempre bem colocados e que
lcões, rneigos como cordeiros, virtuosos como ninguém
conteúdo é, evidentemente, independente do projeto real do escritol, que pode
choramcomournas.Duranteseisnreses,atlsl5anos,Emmacngordul.ou/poltanto/âs
leitura'] lnLlito bern ter corrigiclo por razões unicamente estéticas. É d"ce.to o caso para
mãos nessa poeira dos vclhos gabinetes de
nossa frase: telrros a sorte de possuir seus rascunhos. Flaubert tinha escrito ini-
cialmente: "Durante seis meseS, aos 15 anos, Emma envolveu portanto O espíri-
to em todo esse fundo poeirento dos velhos gabinetes cle leitura de província"ae'
A "hesitaÇão prolongada entre o som e o sentido" Ele substituiu portanto "envolver o espírito" por "engordurar as mãos" e "esse
fundo poeirento" por "essa poeira". A versão final decerto é mais musical que
Se podemos estender a todo texto literário a definição que Valéry propõe
a do rascunho, colrlo se pelcebe/ entre outras coisas, pelo menor peso da frase e
é sempre recebido ao mesmo
do poemaan é porque o trabalho sobre a linguagem peias aliterações em lsl e lrl
("t'ond pottdreux" vs. "cette poussiàre"). Inevita-
acabamos de ver, eSSa aborda.
.",.'.,po Como um trabalho Sobre o Sentido. Como velmente, porém, ela tampouco significa a meslna coisa'
se construiu ao longo da
geln deve muito ao modo como a ideia cle "literatura"
plano estético: o leitor se consultarmos o dicionário (Petit Robert), graisser ("engordurar") sig-
história. A forrna jamais é percebida como limitada ao
nifica, num primeiro senticlo, "cobrir corrl Llma camada de gordura ou matcrial
tarnbém espera de sua leitura um lucro intelectual'
gorduroso,,e, nur1l segundo sentido, "manchar de gordura, sujar". É essa s"gut-t-
Vamos nos interessar pela última frase da passagem:
"Durante seis me- cla acepção que parece, aqui, ter de ser consideracla na rnedida em que o semaso
as mãos nessa poeira dos velhos lsujeiral , igualmente presente em "poeira", permite construir uma isotopia:
Ses, aos 15 anos, Emrna engordurou portanto
evidenternente, a con-
gabinetes de leitura." se a ordenação clos telmos obeclece,
siclerações rítmicas, ele tarnbém expressa certo
número de coisas. A dupla ante- i;' "Ccrtas relato (ou de um fragrnenio de
[funções] constituern verdacleiras articulações clo
anos") tem valor de insistência; rcl:rto); outras só fazem "preencher" o esPaço narrativo que Separa as fuuções-articulações:
posição ternporal ("Durante seis meses", "aos 15 as segundas, vista sua natureza
primciras de.[rrrçõcs cnrdenis (o:unúcleos) e
excesso: Emma lê por tempo clemais e
jovem demais' A vi.rr.nos clramar as
cla sublinha um duplo t:.nrplctivtr, r-lc cnidliscs" (R. Barthes, Intlocluction à l'analyse structurale des récits' in: R'
("velhos gabinetes") assi-
irntítcse cntre a iuvcntucle ("15 anos") e a antiguidade llartl'rcs tl tl., Poltiquc du rttcit. Paris, Seuil, 1977,p.21)'
cm scLl lugar' Quanto ao "por- r,, ()bscrve-se cluc a intportância cla Passtrgcm Íora percebida pelo advogado de Flaubert,
rrala, rlótn disso, r"rl]rir defasagcrn: Emtna não cstá
c dií tcstc-tnunho da tltrt,ir cittr cnr sLtl clcfcsa (vcr C. Flaubcrt, Mndmrc Bortfiry, op' cit', p' 462)'
tlnto", clc r.stirlrclcce tttrl vítlcttl«l lrigictl coll-l o quc prccccle 1t,Ii,,71, t.narrrrscrito tlisponíl,t'l uo sitio cla Utliversidacle cle I{ouen: www.trniv-rouen'fr/
'i,
; 1,1I1[1'1.t/ lrov,r ry.
ll ',,,Vltrr.r;lt,r1lrr.,tr.t1ttt'1sip,trilir,,rtl11t['rtrtr,rp,ll.rvrirr(t[]ol.tsil tttltllilsonliltlt'st'tnas(ltr"ttrri-
;-;:----
Dn arte e dn literntura
,n ,':]ll::-nnn.,,.no','*' ,, #
A "graisse,,aqui está ligada significativamente, ao lneslno tempo, às "ca-
[,.urr.na suja as mãos lenclo livros velhos. Se levarr-nos em conta a estilização do' ,,cirurgia": se ela ajuda a funcionar rnelhor; é na medida em que
é ultla rícias,, e à -
or.tunciaclo (consiclerando o que precede, parece que "gabinetes cle leitura"
,,livros"), é preciso entender então: Emma sujou as rnãos nessa como a leitura ? ela dissimula superficialmente uma violência bem rcal.
nrctonírnia para -
pocira que impregna os livros que vêm dos velhos
gabinetes de leitura' Resta a Se, em nossa passagem, "engordurar" provavelmente foi mantido por
saber se o enunciado deve ser tomado em sentido
próprio ou eIrI sen- Flaubert por razões eufônicas, a rnodificação formal é, pois, pela força das coisas,
questão de
aceitáveis: Emma sujou as imediatamente interrogada pela leitura.
ticlo figurado. As duas hipóteses parecem igualmente .livros
que impregna esses vindos
nrãos, tto sentido próp.io, por callsa cla poeira podernos fazer as lnes[ras observações qrlanto à palavra "poeita", que aca-
se impregna' no senticlo figurado'
clc velhos gabinetes mal conservados; Emma bou senclo preferida ao "funclo poeirento"sr. Do lado clas conotações ncgativas/
tlo conteírdo de livros antiquados que a marcarão
por toda a vida' é urn
a poeira está ligada à sujeira; participa de uma vida monótona e lúgubre;

AS Conotações do termo
,,graisse,, (,, gordttra,, l,,sujeira,, l,,graxa,,) irrtroclu- srnal de desgaste, de envelhecimento; remete às cinzas e à morte. Significativa-
De fato, elas são contraditórias' os rrente, textual: é como se a poeira c'n-
essa poeira negativa participa cla lógica
zeln, por outro lado, uma série cle ambiguidades.
,.lur., negativos da
,,gordura" são conhecidos: a gordura está iigada à sujeira (ela contrada nos livros permanecesse agarracla a Emma por toda a vida' Ol:serve-sc
se fala de "gordura ruim"' que, já aclulta, Ernma continua a gostar da poeira, seln se dar conta de seu caráter
provoca manchas) oá ,,',pât"tent51 (a cujo respeito
" de peso5z). Mas a gordura rnortífero. Vatnos nos lembrar de sua entrada t-ta Ópera'
aqtrela qlte se deve suprimir quanclo Se teln excesso
(enverniza-se um objeto, "para con-
titrnbérn tem conotações positivas: ela protege Ela teve prâzet coltlo umil criançi1, cln elrpurrilr com o de.lo as largas portas atapet,rdas;
(engraxa-se
scrvá-1c1, protegô-1o cla deterioração"), permite o born fttncionartento aspirou corn todo o peito o odor poeircnto dos corredores, e, quando se sentou
em seu
que funcione rnelhor),
urn *ccanismo, no sendclo de "lubrificaÍ", pata permitir camtlrote, ârqucotl a cintura com uma desenvoltttra de clucluesass'
(aduba-se a terra, engorda-se um animal) e ela dá
brilho (engraxa-se urn
,tlirr-rcnta
no enunciado Mas o rotlance tambérn atualiza as conotações positivas cle "poeira", que
ora, toclos eSSeS Sentidos, ainda que opostos/ são aceitáveis
sapato).
se vê ligada ao arrebatamento, à estética (a faixa de poeira), ao maravilhoso
(a
qrlcnosocltpa:aleiturasttjaaexistênciacletimma'mastambémlhedábrilho;
protege' Note-se qlle encontra- poeira de ouro). De mancira geral, o pó é suporte de devaneio, de poesia: ele
crl[ft]va sua vida, rnas a alimenta; alneaça-a' mas as
antitéticos clO verbo "graisSer" rcmete ao vaporoso.
n1os, eln olltras passagens do rouance, os valores
numa única fórmula' Essa ambivalência, obviamente, é significativa. Podemos dar conta dela da
(,,cngordar,'/ "su1ar" l;'engraxar" l"lubrlÍicar") condensados
A frase seguinte é, clesse ponto de vista, particttlarmente
interessante: seguinte maneira: no tocante à poeira e à gordura, o tcxto propõe ora o ponto de
cirúrgicas que vista de Emrna, ora o ponto de vista clo narrador. A arnbiguidade de nosso enun-
1...1 clc re,:tlnfortort
o pacicntc com toda sorte de boas palavras' carícias A
ciado se cleve, pois, ao que Bakhtin charna de inter-relação das linguagenss6.
siio como o írleo com que lubrificamos os bisttlris'
fórmula "engordurar as rnãos na poeira" supõe, com efeito, duas consciências
|..,Iilrécon.fortrlleTtatietttil.occfolttcssortcsdebt.lttslltots,cí]r.,sscschirurgicttlestltti lingnísticas: Ltlna qlle representa; olltra qJue é representada. Condensando os
sí),r f t:o,ll,1? c I' h uil t tl o n t ott grrtlssc le s lti st ou r i ss""
valorcs contraditórios cle "gorclura" e "poeira", a fórmula diz ao mesrno tempo
o qLlc il lcitura representa cle positivo aos olhos de Ernma e o que, na realidade,
'I F,s1-rcss;rt-nento do tc'cido subcutâneo (N'
T')'
,, , a L.uise' Colct cle 26 r1e iulho c1c 1852, recorre a essa cla vcicr"r'la de ncgativo: Enrma acredita se livrar cla sujeira do mundo pela lei-
oüscrvt,-se t1u. Flar,bcrt, nurna carta
"Vcntlo Ineu aspecto' trlgucrn pells'Iria t]tlt'
nrct,ifola r1a "gtlrtlurtr l'uitn" quc c çrrccistl rctirar:
cltls fatos, c ('u, ao contr';irio' s<i tno 'rgrtlclcl
tt,r.rh9 rlr,protluzir o tipittt,..la,r,r't", a brttirrlitlarcle r llrllrirpt-t,s, irs palavras 'irprrr11i'('p6') o
'irplrssitrrc" ('pó,
çrocira') tôn-r, e cl;rrg tr r]resnta
raiz cti-
por assitt-t tlizct" Ntl ftttlcltl' Stltt tl htltuCt.tr tltls livrtls-Cirixa'
tl()s l('t)t,ts (l(..lllitlis(', tlt'arlattlrrli,r, rrr.lrliitir. Vlas rrt'rrr iss() tlt,ix,rnr rlt' aprt,scrrtar cotroiirçõos clifcrc'l-ttcs, stlbrctttclo aos ollros
t.s[rrirtttlrti(:irtlir tlttt'strir. l)()r
(,(,.1 (.tlSl.l tlt. 1,.tt it,tlt.i.t t..lt.t'sttl.ltr.lttt'lrrt,livrt'i tlt'ttltltt 1,,()rtltll.(l
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( i'rllirrr'r|tl' l()80' rk. ttttt lt'ilor ttl()(l('l ll().
tttr,tlii,t trrt'tt" ,,,,," ( tttt't':'l)t"ltlttlltr'' vol' ll l"lris: t'
'n'' ..,,,,.,, lirrrr.rrrll. ' Mrrrlittt l\tlrrt t1, rt1t,, i/., f(,:2 ?(, !,
Da arte e da literatura 4l
n:.,.1',:l:5""oo ',oon"*' #
poei ra), mas ttrdo o quc
mesmo: o homem individual apreendido em sua dificuldade de habitar o mundo.
ttr r.a (untanros as mãos para nos prevenirtnos contra a
uma A esse respeito, duas tradições se enfrentam ao longo de sua história: a do idea-
faz é passar de uma corrupção a outra. os livros que se apresentam como
pro- lismo, persuadido de que o indivíduo pode dar um sentido a sua vida submeten-
r]laneira cle embelezar a vida (ponto de vista da personagem) conduzirão
do-a a um absoluto; a do ceticismo, convencido da irnperfeição do homem e da
gressivamente à morte (ponto de vista do narrador)'
,'livro sobre nada" é recebido, portanto, como um livro sobre inutilidade dos esforços que ele empreende para escapar de sua riste conclição.
Mesrno um
Essa segunda tradição se encontra no século XIX na obra de Flaubert. Ele mostra
apesar do que se diga dela ser reduzida
alguma coisa: a literatura não pode -
- a inanidade da visão idealista pondo em cena personagens que, embora reféns de
à rnusicalidade das Palavras.
um mundo entregue à mediocridade, imaginam poder escapar da realidade som-
bria. Mas a força do texto de Flaubert está em atacar ao mesmo tempo a aisão
de mr.Lndo idealista e os ronlances que a propagam. Madqme Boaary mostra,
A dim ens ão int ele ctuql: difundir uma imagem exaltadora do amot
cle fato, que o romance idealista, ao
discursos sobre a leitura e o sentido da vida suscita um desejo que não pode ser satisfeito. O texto então não se contenta em
denunciar uma visão artificial: ele desmonta as engrenagens dessa visão, tornan-
Através desse quadro de Emma a let o texto nos fala da leitura etn sua te-
deduzir do do-as visíveis. Ao desvelar assim os mecanismos do desejo, o relato de Flaubert se
lação com a Tída e a morte.Eis algun-ras das postulações que podemos
leitura pode inscreve nesta "verdade romanesca" que R. Girard opõe à "mentira romântica":
enunciado: ler é um remédio que pode se transformar em veneno; a
embelezar a vida, mas também afastar da úda (a força da ilusão é então
proporcio- "O romancista é o único a descrever essa gênese verdadeira da ilusão pela qual o

nal à da desilusão); ler responde a uma necessidade de compensar a insuficiência romantismo sempre responsabiliza um sujeito solitário"u'.
,,ler cria o sentimento da insuficiência do real"); há um modo de ler
clo real (ou A frase que nos ocupa faz dialogaç portanto, dois pontos de vista sobre a
destrutivo (que é o reflexo invertido do que seria um modo de ler construtivo);
a
leitura e que ela consegue condensar. A presença de tal conteúdo se explica da
rná leitura dep"nd" da atitude do leitoç mas também do tipo de livro lido
(disso
seguinte maneira: herdeiro de uma problemática própria ao gênero e tributária da
se pode inferir o que o romance de Flaubert busca provocar e como convém lê-lo).
história cultural, o romance de Flaubert levanta, a seu modo (e através dos desafios
a morte/ o
Em suma, a leitura tem a ver com a alienação, a dependência, a doença,
próprios ao século XIX), a questão multissecular do lugar do indivíduo no mundo.
veneno, mas também com a proteção, o refúgio, o alisamento e o embelezamento.
O valor expressivo do enunciado é, como se mostroll, indissociável da es-
O enunciado veicula, portanto, certo número de conteúdos. Resta saber
colha dos termos e de sua ordenação. Se nenhum estudo literário pode abrir
por que ele veicula justamente esses conteúdos. Responder essa pergunta supõe
em esclare- mão de uma reflexão sobre a forma, portanto, não é unicamente por causa do
passar da interpretação à explicaçãos7. A explicação consiste, de fato,
de trazer poder de sedução que geralmente se the atribui.
cer o conteúdo destacado, interrogando-se sobre suas causas. Trata-se
à luz determinados fatores (biografia, cultura, história, sociedade
etc.) que per-

mitem compreender por que um texto exprime o que exprime'

de exemplo, proporemos urna explicação antropológica de nosso


A título
do gêne-
enunciado com base nas análises de T. Pavel sobre a origem e a evolução
A tese de Pavel ó que o objeto de atenção do romance é sernpre o
ro rolTlallescoss.

t, V.rl,.r*i ,*lt*"lt,-rlrtc t\ rlistinção tntrc cxplicação t'ilrtcrprctação; c, tle lnoclo mais gcral,
,\ tr rrr'sl lir I contplicaclissi tnir tla si grlil icação'
|-

VELHA SENHORA
CANSADA: VENTURAS
E DESVENTURAS DA
ESCRITA

ara nossa modernidade, é difícil dissociar a


dimensão artística do trabalho formal. Desse
modo, para Jakobsory o que caracteriza o tex-
to literário é a evidenciação da materialidade
dos signos, a exploração da "função poética
da linguagem", em outros termos, dos recur-
sos musicais ou gráficos do significante linguístico:

plásticas são uma formalização do material visual devalor


Se as artes
autônomo, se a música é aformaTização do material sonoro de valor
autônomo e a coreograÍia, do material gestual de valor autônomo,
então a poesia é aÍormaTização da palavra de valor autônomo1.

Se cleixarmos o plano da criaçã8 e se passaÍmos ao da recepção,


as coisas não mudam fundamentalmente: cle Kant a Genette, a re-

I R. .firkobsorr, La Nouvclk po('sic russc, ín: Huit tlucstiorts dt 7roótiquc. Paris: Setril,
l.r«,-iiot'stt'tica c rlt'firricla collro trssurrção clir frlrma em detrimcnto clo con- ('iur.rpo cla prtlcsitr). I'otlctnos irpreciar Dom Qttixttfc sem sabor espanhol

lt'urftr. lbuco importa que'a obra seja descrita como "atenção desinteressa- orr () sr»lr a n
ftirin sern dominar a língua inglesa. Se tocla escrita, rrresmo a
clir" (inciclinclo não sobre o objeto, mas sobre sua represer-rtação) ou "aten- nrais "genial" é "transponível", pode-se concluir ou que é relativamente

ção aspectual animada por e orientada para uma questão c1e apreciaÇão"', fiicil fazer urna obra de arte (o que está longe de ser comprovado pela
o arnante da arte é tido como aquele que se concentra na aparência. cxperiência), ou que o valor artístico não decorre unicamente das qua-
liclades formais. Em apoio dessa segunda hipótese, notaremos que/ na
Resta saber o que é que recobre exatamente esse interesse privilegiado
passagem de uma língua para outra, é mais fácil restituir as estruturas
prela forma.
globais de um texto (a arquitetura do conjunto, as escolhas acerca do
modo de narração ou do tipo cle enÍoque) do que as formas locais (alite-
rações, efeitos de ritmo, trocadilhos); ora, os primeiros são indispensá-
Forma, onde está tua vitória? veis para a construção do senticlo, enquanto os segUndos desempenham
uma função essencialmente estética. A traclução reproduz, portanto, ini-
Digamos sem rodeios: o que permite a uma obra passar à posteridade
cialmente um conteúdo.
rararnente está ligado a seu "aspecto". A prova está ern que nos interessa-
em nossa relação
mos por bom número de textos antigos, cuja estética hoje nos parece corn- Quer dizer que a forma não clesempenha papel algum
pletamente anacrônica. O recurso às formas fixas, o respeito à regra das com a obra literária? Que opraz€.j.. propriamente estético não conta? Que
três unidades, o polimento clos grandes períodos oratórios não garantem Dante, Mallarmé, Proust, Kafka teriam passaclo Pata aposteridade mes-
mais o prazer estético. Se Baudelaire, Racine ou Victor
longe disso lno que ninguém tivesse siclo sensível a sua escrita? É claro que seria um
- - absurdo defender uma posição dessas. A forma desempenha um papel,
Hugo continuam a nos interessar é porque a "força" ou o "valor" de seus
textos resultam de algo diferente de uma qualidade de escrita, cujo im- justamente o papel de suscitar prazeÍ. Mas essa função cla escrita não
pacto se estiola inevitavelmente com o tempo (e com a evolução do gosto tem a mesma importância nas diferentes etapas da vida de um texto.
que ele produz). Por sinal, é perfeitamente lógico se aclmitirmos que
-
a ideia de belo écultural que o valor de uma obra aos olhos da poste-
-
riclade não é resultado de seu aspecto estético. Desse ponto de vista, um O bônus de sedução
neokantiano como Genette3, que deduz do primado conceclido à forma
um relativismo radical, é rnais consequente que um Jakobson, ainda va- É no momento da primeira edição da obra que o pÍazet suscitaclo pela
gamente obsedado pela busca de propriedades ontológicas do literário. forma desempenha um papel fundamental. A tazá.o disso é simples:
não há nenhuma razáo para prolongar o contato com um objeto esté-
Outra constatação leva a relativizar a importância da escrita: as "obras-
tico que não proporcione nenhuma satisfação. É claro que poclemos
-primas" enÍrentam tranquilamente a prova da tradução (inclusive no
extrair prazer de uma obra por conta de seu conteúdo; mas o conteúdo
' (1. Genette, Ln Relntion esthétique,
só se desvela pouco a Pouco, ao Passo que o confronto com a escrita é
o1t. cit., p.L6.
' (lenettc condivide o subjetivismo cle Kant, mas ccnsura o autor da terceila Crítico por imediato. Se a leitura não gerar imediatamente prazer, frequentemente
sua lcjcição do relativismo: "Sua estética é tipicamente subjetivista, mas ela se guarda, ou
rejeitaremos o livro antes de ter uma visão mais precisa clo que ele tem
rlt.lhor, ela se defer-rde tanto quanto pocle do relativismo que me parece de'correr dessa po-
sição", iltid., p. 82. a dizer. A função primeira da forma (no sentido cronológico do termo)
n,t,',r-:,::,::::::la_. :_: : #-
de uma forma dessueta, tiveram, no momento de sua prirneira edi-
Mas' na realidade' trata-se
c, então, oferecer um "bônus c1e sedução"' ção, de enfrentar a prova do julgamento estético. Senão, ninguém
cle bern mais clo que um bônus: é uma
condição sine qun non'
nunca as teria lido. Poclemos, então, afirmar que toda obra conside-
prazer é essencial Para arelação estética
o está rada hoje como literária foi, em dado momento, acolhida como este-
Essa convicção cle que
o leva a questionar o famoso ticamente bem-sucedida. Por isso, como vimos, as definições genéri-
na base da abordagem dà schaeffer. Eia
,,desinteressu*"ntJ,, que, segund,o Kant, caracterizaria nossa relação cas e institucionais da literatura não questionam o vínculo estrutural
da arte, a relação estética não entre obra de arte e bom resultado estético: se determinado gênero
Com o belo. I,ara o autor dos Celíbatítrios
..clesinteressacla,'a, visto que é motivada
pocleria ser consiclerada como pode se tornar o índice de uma iclenticlade artística é porque o que
como uma agradou em uma época foi progressivamente se constituindo em um
p"la bus.a clo prazer. Mais exatamente' e1a se apresenta
..atividaclecognitivareguladaporseuíndicedesatisfaçãointerna,'s. conjunto de regras reconhecido (pelo menos, por um tempo) como
Ern outros termos, na conduta estética,
o ptazeÍ não depen de do restil- esteticamente eficaz.
tndo d.aativiclade cognitiva, mas está
ligado a seu próprto desenrolnr'
A qualiclade da forrna está, portanto, na origem do sucesso inicial da
de um rnanual de instruções' a
Quando monto.,* Ãó""i com
a ajuda
obra. Mesmo assim, ela não bastaria para explicar o motivo pelo qual
enquanto tal'
atenção que dou ao manual não me proporcionaPrazÜ uma obra sobrevive. Claro que pode acontecer cle alguém experimen-
esPerar ter decifra-
Para experimentar alguma satisfação' precisarei tar prazer estético lendo uma obra do passado, mas esse é um feliz aca-
que elas me permitiram
do as instruções e, sobretud'o, ter constatado so (e, ao final das contas, muito raro). Tuclo bem ponderado, a escrita
sempre é o caso)' Em con-
rnontar o móvei corretamente (o que nem correspclnde àquilo que existe de mais frág1l no prazel literário: serão
a uma pintura ou a uma
traparticla, se a atenção que dou a uma flor' apreciados, segundo as épocas, o alexanclrino ou o verso livre, as frases
não tenho razáo alguma
obra literária não Seta Prazer enquanto tal' curtas ou as frases longas, o estilo carregado ou a escrita clespojada etc.
não tem outra finalida-
para prolo ngá-la,üsto que a atenção estética Entender o que constituía o cleleite da obra na época de sua criação não
estética é' portanto/ uma
ãu, u ,-rão ser a busca do prazer' A conduta é o bastante para tornar a obra aprazível hoje7.
apreensão de um objeto clo
ativiclade cognitiva integral (ela passa pela
rnundo),masquesedistinguePorsuafuncionaliclade:elavisaauma Portanto, é clifícil definir a obra de arte como "um documento históri-
obticla posteriormente' co que continua a produzir uma emoção estética"s. uma obra cle arte
satisfação concomitante à percepção e não
é justamente utn objeto que continua a prencler a atenção, mas isso
de fato, razáo alguma para
Na ausência de prazer estético, não existe, não (obrigatoriamente) por causa cle sua "beleza"'. quase sempre, é o
obra de arte6' Mesmo as
manter, ou para se engainr na relação com a contrário: é porque ela possui outras propriedades, Para além de suas
nosso interesse' apesar
obras do passado que continuam a despertar qualidacles formais. O que atrai, o que fascina no texto literário é sem-
a cristctr-
pre algo de rnais fundarnental que essa ou aquela virtude da escrita.
, 1.r",l *r.*,i"^] s.rtislaçã. estetica e, st'gunclo Schat'[fcr, rir'sirlír'tt':rtJa qu'lllto
ciacl<lobicto(sóarreplesentaçãodoobietolheirnporta),nrasillÍcrcssndoquantoàbuscac]e
; A tinic.r rrarneir.r rle proklngal o deleite estético Ce uma escrita é ac-lotar os princípios cle
sittisftrção.
' I -M. lit:hacffcr, ALIiL.tt à l'cstlt;tiLyrr:' op tit'' p' 49' trarlr.rqlio rle A. M.ukowicz: trrrnspror a vclha forma para nma forma que, falando ao público
,, l,trtlt,rr.rr,.s.bjctar tlut'rts coisits são utrr porrco clifcren:"t:: ut crític<]s ostitrlul'un tl-ttlittr rlt' lro!t', pr()\,(xlu('st'ntirncntos sinril.rn:s. Se o tlesafitl ó reconstituir uma c'moção, dc f.rto, i'
()s
c(ls()/
,r k,r, trrrr tt'x1(), orr ,1,,4,r.1,, o attltlt t' lr,lltc..ttttctrtt't'tlllhc't'itltl M'ts' trtl Prirnt'it'tl Pr()- ,tlrstrltlo tr',rtlrrzir iantbit'tls lll'(.ll()s [)or iittttlric«ts (cttttfcrctri:ia plofcricl.r etn lJtlrtlt'ttttx ctll 2-3
r r rrir.s,,1,,,,,,,1,, .,i. *,r1x,,, ,,,rtt,r tlt' ,,,,, ,,:)l::]ll]lliil.:ill,i':l';:1,,,]ll,:ll:'ii,l'li:l.lliil (l(' n()\,('lll)r'() tlt'2(X)(r, tto tlrt.ttlto tlo r'ttltxltitl "l,t'lt'ctt'trr t'lrg.rgt;").
,,,,, ,1,,1,, t1,,",,;,' lt,,.;.. (1,,.,,i1 l(x)!l ?'1(l
? Valln senhora cartsttda: t,ettturrc e dcst-tcntttras da escritn 49
4Íl tr( )/i eilr l s r-tir),ltt L/ rrRÁllll{Á n In *
+rt

sões perifrásticas etc.) clão testemunho, para além de seu valor estético
Da forma ao conteúdo eventual, de uma concepção clo eu que é ainda muito atual: o recalque
clos sentimentos (cuja atenuação é a tradução estilística) não apenas
Ilarciocinemos em termos simples: se as obras atravessam os séculos
a
pro- coexiste com a violência interior que habita o herói raciniano, mas é
clespeito do caráter cultural da forma, é porque possuem outras
provavelmente a sua origem. Em outro registro, a "organicidade" das
priedades. Tais propriedades têm uma irnportância decisiva, porque
fábulas de La Fontaine (cada uma se apresentando como um todo au-
seu impacto não é conjuntural. Quando a seclução da escrita (inevitavel-
tônomo) dá testemunho, no plano do conteúdo, da síntese entre a visão
rnente) se estiola, essas ProPrieclacles Permanecem e se impõem como
não de mundo herdada da Iclacle Média e a renovação cultural encarnacla
o verdacleiro critério do valor de uma obra. se essas propÍieclacles
pelo Renascimento: ela se explica pelo "encontro da modesta ideia me-
resultam da forma, só resta uma explicação: elas provêm do conteúdo.
clieval do macrocosmo e do microcosmo, na qual o homern é a imagem
De fato, com o tempo, o que constitui o valor de urna obra não decorre
cla criação, e a orgulhosa icleia do Renascimento, pela qual o artista, se-
mais cle sua escrita, mas c1o sentido que ela veicula. Por sinal, notare-
"objeto melhante a Deus, imagina um munclo [...]"". Mesmo quando um texto
mos que a noção de "obra d.e arte" evoca espontaneamente a de
não tem realmente sentido, ele exprime algo mediante sua enunciação.
cultural", como se as obras de arte intportantes,. aquelas qtepertnanecem,
Desse modo, a poesia letrista qual os signos do alfabeto são com-
extraíssem seu valor daquilo que elas exprimem ou significam' mais binados de modo "instintivo" sem reproduzir as palavras da língua
que da emoção estética que elas, por vezes, ainda possam suscitar'
pode ser interpretada como rejeição da regra e das tradições, uma
-
Mas não concluamos aincla que a forma não terüra mais interesse; é revolta contra um munclo rígido e utilitário, ou ainda uma valorizaçáo
que esse interesse se tlesloca'. ele não se prende mais a sua eventual do elementar, reatando corrr a humanidade original.
climensão estética, mas às relações estreitas que essa dimensão estética Com o tempo, o valor da forma emigra do plano estético para o plano
mantém com o conteúclo. É por isso que poclemos apreciar as tragéclias semântico. A esse respeito, vale notar que as teses de literatura (sinto-
de I{acine, os sonetos de Baudelaire, a poesia de Camõeslr, sem nem máticas da posteridade de um corpus) incidem na maior parte do tempo
por isso clesejar que essas formas de escrita assumam o primeiro plano sobre a questão do sentido (os estudos temáticos e históricos, mesmo
c1a vicla literária. O importante é a maneira particular
portadora de
- que utilizem a poética e a narratologia como instrumentos, continuam,
clesafios específicos com que Racine explorou os recursos do gênero não importa o que digam, amplamente dominantes). Quanclo os tra-
-
trágico e Baudelaire/ os do soneto. Desse moclo, mesmo que não se- balhos universitários se interessam prioritariarnente pela forma, não é
jamos mais sensíveis à estética raciniana (grosso ntodo, isso bem pode para mostrar em que consiste um "belo" texto (isso certamente provo-
acontecer), podemos apreciar o "efeito de surdina"l(r que se depreende caria um sorriso divertido da banca examinadora), mas para identifi-
cle suas peças (em outros termos, um fenômeno formal) por aquilo
que
car o que ela exprime: estudar o naturalismo huysmansiano ou a frase
cle exprime. Como Leo Spitzer clemonstrou, os diversos procedimen- proustiana nunca ó limitar-se ao plano estético; é se perguntar em que
tos de atenuação que encontramos na tragédia raciniana (desindiviclu- cscolhas cle escrita dão testemunho de u5n olhar sobre o mundo e sobre
alização pelo artigo clefiniclo, plurais apagando os contornos/ expres- ir existêncirr. Hm suma, nos estudos literários, a não separação fundo/
Ionn;r c scrnprc feittr cm provcitcl do funclo. Se ler uma obra contempo-
tlt'sÍ:r'ut.rnt tl.r tliDrt'nsão t'sttitica tlt'ssa Pot'sia t'l)()l'(lll('t'la p'rrtitiPa
tlt'
lt" r",fur*rt,"1.,
Irrrr,r ,rltloslt'r t trlttrr',rl rr,r t;ttitl, t'ltt ttlttiltls.lsptr'tos, t ottlilltt,lltttls itttt'tstts
ll ll.t 1,,.. .. trr'
vl'lllll na tttt\tttt

pcla prilnciro gr:lldr


rânea c, de início (pela força das coisas) perguntar em que ela uos agra- dils (.str0dcs dc ()ut(}il(} qUo o vcllto livra tlns folhirs anrarrotocl,rs
c quc lhc. abria o munc10 a cacla vez col11o tllTta re'lha. Urn
solar cotlr torrczitrhit
da, receber uma obra do passado (no sentido amplo de obra sancionada [rrrncr,
baixo ern plcntr
cm meio a seu bosque de pinheiros se perfilou sobre um pe'nedo
pela posteridade) é se interrogar sobre o que ela significa.
cóuvazio,comoScosegundoplano,derepente/tivessedesnroronado;orcflcxtl
recortavarn/ e
rle n-rercúrio subiu mais brilhante por trás das sebes que ainda o
o

horizonte, de repente, pendulou no mat12'

M IlrrsRLúDiO ZW
A ITuuINAÇÃO DA ESCRITA A narração: o aPagamento das
(1. Gracq, La Presqu'ile) t'ronteiras entre o eu e o mundo
A história é contada por um narrador anônimo, mas através do ponto
de

vista do personagem. Se o relato em terceira pessoa introduz uma


distância
A obra de Julien Gracq (1910-2007) está, sem dúvida, muito próxima de ficar o mais
(apresentando Simon do exterior) , a focalização interna permite
nós no tempo. Mas o importante, para nossos propósitos, é que ela faz parte do entre o inte-
perto possível da percepção subjetiva do protagonista: esse vaivém
corpus literário institucionalmente validado. Se, por um lado, o trabalho da escri- as fronteiras entre a alma e o mundo/
rior e o exterior tem CoÍro efeito borrar
ta é manifesto e responde a exigências estéticas, tambérn enfrenta certo número como fazendo parte
a paisagem mental e o espaço natural' O eu é apresentado
de desafios. É essa relação entre forma e conteítdo que vou tentar esclarecer.
integrante de um universo no qual ele imerge naturalmente'
AguLrrdando a chegada de lrmgard no trem da torde, Simon se dirige de outra particularidade desse relato tem a ver com o status do acontecimen-
cfrrro ao mar, a Kergrit. Ele anteaê em pensamento, de um lado, a pnisagem to. Os advérbios do surgimento não remetem a um fato marcante' a um nó da
do mar no final do dia ("a glória das praias", u "acalmia tardia"); do outro, história, mas às variações da paisagem' O "bruscamente" da primeira frase as-
o que será esse mesmo trajeto na companhia da jozsent. A ersocação termina sinala uma mudança de tempo (o céu fica cinzento); a locução
"de repente", que
com a imagem de lrmgard sorrindo na noite de oento do panorama (o
e parecendo aindq mais ocorre duas vezes no final do trecho, se aplica às metamorfoses
jooem do que é. ,,segundo plano" desmorona e o "horizonte" oscila). Se o inesperado não está

ausente do texto, ele apresenta, assim, um aspecto muito


particular: já não está
O campo se desdobrava e vivia agora desabrochado sob o sol, fresco e limpo pela
paisagem'
chuva. Saint-Rolf com a torre rústica e atarracada de seu sino abriu diante clo ligado à ação, mas aos acasos do tempo, à luminosidade da
se pas-
carro e Íechou de novo num pé de vento sua fatia de casas baixas; bruscamente, a
Também se observará que o interesse da história se deve menos ao que
verdura ácida das sebes, caiada pelo ar salgado, se descoloriu, virou um cinza gasto de efeito, a uma
sa do que ao que se adivinha. O trecho se refere explicitarnente, com
salicórnia. Contudo, a acalmia que se fizera nele continuava; ele achava um encanto com essas estampas
poética da não coincidência: "ocorria com ele o mesmo que
novo naqueles lotes desbotados, iluminados já pelo mar que eles ainda ocultavam.
a não ser aproximadamen-
Ocorria com ele o mesmo que com essas estampas baratas, cujas manchas coloridas tu.u,ur, cujas manchas coloridas jamais vêm mobiliaç
te, o contorno das silhuetas". EsSa "aproximação" nada
tem de negativo: ela abre
jamais vêm mobiliaç a não ser aproximadamente, o contorno das silhuetas; a emoçào
jarnais coincidia perfeitamente com sua causâ: era antes ov depois espaços onde o imaginário pode se desdobrar. Simon
pode sentir assim a emoção
- antes mais que
,,acahnia de vê-la, tanto quanto pode degustar o prazer de seu
pas-
depois. Mas claramente agora se aproximava. O sol era jovem e gaiato, o vento cru da tardia,,antes
e como que decapaclo expulsava os últimos vestígios de névoa e devolvia a todos
os contornos uma nitidez alerta e estridente. Num dado momento, ele se sentiu
ffi;htrodttctionàunenouoellepoésieetàunenowellemusique.Paris:Galli-
atravessado pelo sentimento agradável da seca clara e varrida, vítrea, cheia de ozônio, mard,1947.
J{ í:rlttIrnN t.ttt x^tURAÍ
''rr^ vÍIr:

À imagem da península (presLlrfilc),


scio corn lrnrgarc'l antcs rluc clc sc produza. rl'lcsrnil frirsc, tlo silrgulativo ("Nurn dado rnorncnto, ele sc'sentiu atravessado")
terra cstcndida para o mat o personagem goza de reencontros ainda por viç rnas c do itcrativo ("que lhe'abria vez") materializa o volume de um instante
a cacla
dos qurais cac{a instante o aproxima. Como vai nos confirmar a análise do tempo, a clue clesperta as sensações passadas. Na ótica do narradot o presente jamais está
felicidade está menos no aconrecimento do que naquilo que dele se separa. fechado sobre si mesmo: ele remete ao antes ou ao depois. É o que sublinha a
associação dos terrnos "jâ" e"ainda"t"Ele achava um encanto novo naqueles lo-
tes desbotados, iluminados já pelo mar que eles ainda ocultavam" (grifo meu).
O jogo dos tempos: O prazer se deve ao mesmo tempo à duração ("ainc{a" prolonga um processo
a presenÇa no mundo como abertura aos possíaeis que deveria ter se interrompido) e a abertura (" já" antecipa uma ação que não
deveria ter se desencadeado).
Embora o trecho contenha diversos pretéritos perfeitos, o tempo domi-
Se o objeto do desejo é a plena presença no rnundo, compreende-se que a
nante é o imperfeito. Trata-se, essencialmente, de um imperfeito durativo ("o
paisagem exerça um papel de primeiro plano. A irnersão não é somente tempo-
campo se desdobrava"; "ele achava um encanto novo" etc.), restituindo a ação
ral, também é geográfica.
no inacabamento e na abertura que lhe cabiam no momento em que se desen-
rolava. O passado, assim, é revivido como presente, na indeterminação de um
acontecimento em curso. Esse valor é confirmado pelo emprego reiterado de
dinâmica da descrição:
" agora" , que se ancora no momento da história e não no da narração: "O campo .A
[...] vivia agora desabrochado sob o sol"; "Mas claramente agora se aproxima-
paisagem como motor da história
,a
va". O narradol, recusando-se a explorar a postura de recuo que o relato retros-
A paisagem é, do início ao fim do nosso trecho, sujeito de verbos ativos:
pectivo lhe permite, pode assim narrar sem fechar os possíveis.
Saint-Rolf "abrle]" e "fech[a]" a perspectiva diante do carro de Simon; a ver-
Mas a escrita não se apega somente a apresentar o passado como presente; dura das sebes "se descolor[e]"; o vento "abrlef" o mundo. O espaço é mais do
ela visa também fazer aparecer "daqui a pouco" através de " agora" . Se o narra- que um simples cenário: é o verdadeiro motor da ação. Isso fica particularmente
dor se esforça por captar o mais precisamente possível os matizes transitórios nítido na última frase: "O horizonte, de repente, pendulou no mar". Tem-se a

do instante, por reproduzi-los no curso da frase, o mornento evocado só vale na impressão de que não é Simon que avança na paisagem, mas a paisagem que se
rnedida em que se prolonga no futuro. É por isso, nesse relato no passado, que o metamorfoseia sob seu olhar.
movimento dominante permanece paradoxalmente o da antecipação. As horas
Para mostrar que a natureza é urna força agente, o texto/ além disso, se em-
que separam da junção acentuam a percepção: a felicidade está em "se aproxi-
penha em remotivar as fórmulas lexicalizadas que fazem referência aos elementos.
lnar" mais do que em "atingir".
Assim, não é somente no sentido figurado que Saint-Rolf "fech[a] de novo num
Enfatizemos que não há contradição entre a valorização do instante pre- pé de oento sua fatia de casas baixas": a expressão é chamada pela presença efedva
scnte e o movimento de antecipação. viver plenamente o instante presente é do vento. O mesmo vale para a ênfase: "Mas claramente agora se aproximava": o
vivô-lo nele mesmo e através dos possíveis de que ele é portador. A presença advérbio, mesmo conservando seu sentido habitual ("evidentemente"), remete à
rro nrundo é assim, ao mesmo tempo, completamente física e inseparável do luz do sol que acaba de surgir e anuncia "a seca clara" das estradas de outono.
trirhalho clo imaginário. o importante, no momento vivido, são as promessas.
O texto, por meio do léxico, não hesita em "humanizar" o cenário: a torre
O trecho também dá testemunho de uma relação existencial com o tempo: de Saint-Rolf é "atarracada"; o sol é "jovem e gaiato"; os contornos da paisa-
rro |t'slituir o passado como um presente aberto para o futuro, ele mostra que o gem têm uma nitidez "aleÍÍa". A isotopia do "rejuvenescimento" mostra que o
rri'ntinronto de existir se confunde com a sensação da duração. A conjunção, na campo faz as vezes de Irmgard no pensamento de Simon: "desdobrado " , " desa-
broclrirclo" c "frcsc{)", clc podc ['acilmcntc c, por assim dizc'ç rtt:rturalnrcntc
-
-
substitr.rir a jovcm. O SENTIDO EM TODOS
Sirnetricamente, o personagern é apresentado como urn elemento do mun-
do natural. Quando o narrado4 constatando que o tempo piora, comenta: "Con-
tudo, a acalmia que se fizera nele continuava"/ o que pressupõe um vínculo de
OS SEUS ESTADOS
causa e efeito entre a paisagem e o humor de Simon. Como se a monotonia
exterior devesse naturalmente conduzir a uma monotonia interior.
De modo geral, o texto se empenha em fazer desaparecer a oposição entre
o sentimento do eu e a sensação do mundo. A construção passiva ("Num dado
momento, ele se sentiu atraoessodo") faz do indivíduo um receptáculo da natu-
reza. Observe-se que essa imersão na paisagem convoca todos os sentidos: a vi-
são, é claro, mas também o paladar (a verdura das sebes era" ácida"), a audição (a
nitidez é "estridente"), o tato (Simon se sente "atravessado") e o olfato (a seca é
"cheia de ozônio"). O personagem parece se amalgamar com o espaço e o tem-
po: nada mais o distingue do lugar onde se encontra e do instante que vivencia.
e o interesse de uma obra resulta do conteúdo que
A escrita gracquiana, portanto, testemunha uma visão do sujeito. O eu
ela veicula, a autonomia dos estudos literários é uma
não se opõe ao munclo: faz parte dele e influi sobre ele num permanente jogo
de trocas. O pensamento afeta o espaço e o espaço determina o pensamento. É questão legítima. Como fazemvaler os estudos cultu-
somente ao recuperar esse vínculo íntimo que o une ao sensível em cada lugar e rais anglo-saxônicos, toda forma social é significante,
a cada instante que o indivíduo pode experimentar plenamente o sentimento de todo objeto cultural é portador de sentido. Por que,
existir. Mas, desdc logo, a presença do outro não é mais indispensável. O ideal então, reservar um lugar de exceção à literatura?
de fusão faz de toda mediação um obstáculo; por isso, Simon não precisa mais
Reservar a ideia de uma singularidade do literário e o privilégio
de lrrngard. A comunhão com a natureza se acomoda sem arrependimento com
concedido à significação só é possível com uma dupla condição:
a solidão. É o que confirmará o fim da novela, em qlle o reencontro com a jovem
será finalmente vivido colrro Lrm fechamento dos possíveis. mostrar que o conteúclo de um texto literário tem uma especifi-
cidade e que essa especificidade tem um valor. É a isso que de-
vemos dar atenção. Mas, antes, especifiquemos o que se entende
por "sentido" de um texto literário.

Basta ler qualquer análise, estudo ou resenha,paraconstatar que,


quando abordamos o texto literário sob o ângulo da significação,
utilizamos indiferentemente uma série de termos de definição
incerta, que não dão facilmente ideia exata do que o comentador
está querendo fazer. É assim que falamos de "compreensão", de
"interpretação", ou de "leitura" para qualificar a relação com o
POR QUÉ ESTLIDÁR LITERATÜRA?
ntn O sentido em todos os seus estadtts 17

=F

texto; evocamos a "ambiguidade", a "polissemia" ou o "sentido plural" formatos de rostos nas nuvens"3. Em outros termos, o interesse de umn
para pontuar os desaÍios de uma obra; os traços "semânticos" são cap- obra de arte é o de nos apresentar o mundo através de uma sensibilidaclo
tados por meio de pares terminológicos muito intuitivos como "senti- particular a de seu criador. Perseguir em urn texto as marcas de unr
do literal e sentido secundário", "sentido manifesto e sentidos ocultos",
-
intenção é tanto mais nafural quanto a obra de arte provém de uma causn-
"denotação e conotações". lidade lntencional, emoutros termos, de uma atividade mentai consciente,r.

Quanto à noção de "conteúdo", ela é mais fluida ainda e serve para Pon- Percebamos que/ não obstante a proclamação da "morte do autor,,, â
tuar dimensões extremamente diÍerentes do texto. A priori, ninguém se busca do sentido pretendido não desertou dos estudos acadêmicos. É
chocará ao ouvir, a propósito de determinada peça de Racine, falar de muito frequente, para não dizer sistemático, comentar um texto parti-
um conteúdo "mitológico", "político" ou "freudiano", desde que se evo- cular com referência aos outros escritos de seu autors. ora, tal procedi-
que/ no primeiro caso/ a natureza dos personagens postos em cena e da mento6, geralmente eficaz, pressupõe que o sentido pertinente é aquele
história que narrada; no segundo, os resultados de um ponto de vista
é pretendido pelo escritor (e não o sentido imanente ao texto que se está
sobre a peça que faça surgir nela o implícito em um camPo delimitado lendo). Há em Unbalcon enforêt, de J. Gracq, uma passagem que deixa a
e, no último, a conformidade do texto com um modelo de interpretação crítica muito intrigada. o aspirante Grange, em serviço perto da fron-
independente da obra e que tem uma coerência própria. teira belga durante "a maldita gt;.eÍÍa", recusa uma transferência que o
tiraria da linha de frente de combate. ora, nos diz o texto, a recusa de
Vários trabalhos se aÍerraram a essa questão complicadal. Uma das ti-
Grange não se explica nem por "uma questão de honra", nem pelo de-
pologias mais convincentes é a de Umberto Eco, que distingue o senti-
sejo de ficar perto de Mona, sua jovem amante. se Grange se recusa a
do pretendido pelo autor, o sentido manifestado pelo texto e o sentido
deixar afortalezade Ardennes, da qual ele tem o comando, é porque se
captado pelo leitor2. Mas, apesar daclareza aparente dessa classifica-
sente "respirar como nunca antes"7. Como explicar que uma situação
ção, cada um dos sentidos catalogados é problemático. tão desconÍortável (a expectativa do efetivo início da guerra) permita
"respirar melhor"? Em que a perspectiva de um acontecimento penoso
pode ser uma condição de felicidade? Encontramos uma explicação
O sentido pretendido
3 A. Danto, La Transfiguration du banal, op. cit., p.210.
Uma primeira posição consiste em peÍrsar que o sentido de um texto não a Yer supra, pp.23-25.
5 Podemos ampliar ao conjunto das produções de um alrtor a observação de A. Compa-
é separável da intenção do autor. O texto literário é, com efeitq inicial- gnon sobre as "passagens paralelas". De certa maneira (e se aceitarmos a ideia de que um
mente, o resultado de um projeto. A. Danto afirma que, se a obra de arte escritor escreve semPre mais ou menos a mesma coisa), todas as passagens de sua obra são
"paralelas": "uma passagem paralela do mesmo autor parece ter sempre mais peso para
se define por aquilo que ela exprime, a interpretação "deve, pelo menos,
esclarecer o sentido de um termo obscuro do que uma passagem de um autor diferente: im-
ser govemada pelas crenças do artista [...], senão interpretar equivale a ver plicitamente, o método das passagens paralelas faz apelo, então, à intenção do autor, senão
como desígnio, premeditação ou intenção prévia, pelo menos como estrutura, sistema e
intenção em ato" (Le Dénton de la théorie, op. cit., p.81).
I Mencionaremos, entre outros, R. Barthes, Critique et oérité. Paris: Seuil, 1966;F. Rastier, " É o famoso "círculo herrnenêutico" (a forrnula é cle Dilthey) que encontramos ern Schleier-
Satts ct taxtunlill. Paris: Hachette, 1989; l.-L. Dufays, Stéréotype et lecture?Liàge: Marclaga, macher: o tcxk) sti pocle ser entcndid<l no horizonte da obra, que, ela própria, só pode ser
1994; M. Charles, Introduction à l'ótude das taxtcs. Paris: Seuil,
't995.
aprctrnt'licln atrav(:s clos tcxtos rluc a cornpõcn (cf. Ilcnnencrrliqrrc. Patris: t,c Ccrí 19tt9
I '['rirtir-st'. itth'ttlitt otrr'ris c da irtÍr:rllirr /r't'trrrir^ (U.
[c.c1.
O sentido em todos os seus estados
# ntn
POR QLIE ESTLIDÁR LITERATURA? 59
ÉTtr

em um dos primeiros textos de Gracq, Un Beau ténébreux, bem anterior Logo de início, notaremos que o texto literário nem sempre resulta
ao Bctlcon en forêt. O personagem Allan se dirige nos seguintes termos de uma "intenção de significação". E não só isso: o projeto do escritor
ao narrador, Gérard: pode ser alheio à questão do sentido (determinados autores visam ape-
nas produzir um efeito estético), mas pode haver textos escritos sem
A verdade é triste, como você bem sabe. Ela desilude porque restringe.
objetivo semântico particular, com o propósito de serem preenchidos
[...] Ela é pobre, ela desmobilia e despoja. Mas quanclo uma verdade se
aproxima [...] mesmo ainda apenas pressentida, faz-se na alma dilatada de conteúdos originais pelo leitor. É o caso de Cente milte milliards des
para recebê-la um clesabrochar amoroso [...]8. poàmes de Queneau e, mais geralmente, das "obras abertas", tais quais
Eco as definelo.
Se a felicidade está na "aproximação" do acontecimento (e não no con-
tato com ele), é porque a expectativa permite a plena presença no mun- Também podemos nos perguntar se a identificação de um sentido
do. A perspectiva de um acontecimento temiclo, pela intensidade que intencional é simplesmente possível. o artista pode fazer mais, me-
ela confere aos instantes que o precedem, reforça a relação de intimi- nos ou algo completamente diferente daquilo que tinha na cabeça
dade que nos une ao todo. É exatamente isso o que Grange descobre supondo-se, é claro, que tenha plena consciência daquilo que tinha
-
em LIn balcon en forêt: a expectativa do efetivo desencadeamento das em mente11. se concordarmos com a icleia de que o autor nunca está
hostiliclades confere um valor particular a cada minuto que o separa inteiramente presente a si mesmo e de que não há necessariamente
da catástrofe. Essa celebração da expectativa pela expectativa se en- uma distância entre uma intenção e sua realízaçào efetiva, teremos cle
contra em La Presqítlee e na maioria dos escritos de Gracq. Haveria, reconhecer que o leitor se confronta menos com o sentido pretendido
então, uma visão de mundo própria do escritor que cada um de seus e mais com o sentido que o texto tem de fato. Deduzir dos sentidos
textos declinaria a sua própria maneira. diversos e variados veiculaclos pelo texto aquilo que o autor tinha exa-
Se o texto é apreendido como o resultado de uma intenção, conhe- tamente a intenção de significar já é adivinhação]2.
cer o contexto de escrita se torna indispensável para a compreensão. contudo, a dificuldade, ou até a impossibilidade, cle detectar o sentido
Como Searle demostrou, não existe obrigatoriamente coincidência en- intencional da obra não tem nada de dramático. "Que significa o tex-
tre o sentido linguístico de uma frase (sentence meaning) e o sentido da to?" e "qualé o projeto que está na origem do texto?" são duas pergun-
enunciação (r.úterance meaning). Entender uma frase e entender o que tas não apenas diferentes, mas independentes. se tal não fosse o caso/ a
o falante quis dizer ao enunciá-la não se recobrem necessariamente. É
leitura de textos anônimos ou de autores desconhecidos do leitor seria
isso, sem dúvida, o que explica a extraordinária resistência da crítica
contextual e histórica, eüe, apesar dos golpes brutais que the foram r" "'fratA-se (se se considera o Íenômeno cle moclo grosseiro) de obras inacabadas quc o
desferidos pelo formalismo e pelo estruturalismo, jamais desapareceu. ,rrrtor confia ao intérprete, urn pouco como os pedaços de um Meccano; dirí.rmos quc ck'
sr' tlt'sit.ttcrcssa cla sorte clt:las" (U. Eco, tOeuure olnerte. Paris: Seuil, 1965
[ec1. or.: l9(r21. p.
Mesmo assim, conduzir o sentido de um texto ao sentido pretendido r 7- rrJ).
rr Sctrl obrig.'ttor"iamcnte nos refcrir ao inconsciente,
pelo autor está longe de ser algo claro. basttr lembrar a bem conhecicia c6r'rst1-
l,rqiio tlt' I)roust: "Unr livro ó o procluto clc um «rutro eu, cliverso claquc.lt-. <1uc manifestarrlos
('r)r rr()ssos htibitos, na socicdacle, cl"n r-rossos r,ícios" (Collra Soinla-lJcuttc. Paris: ()allinrartl,
Cracq. Lln Banu tínéhreux, in: Cl:,rn,rts corttplàtcs, vol. I. Paris: Cirllirnartl, 1989 p.
" J. lcc1. or.: l(.t5.1, 130).
"(Jtrt'tt'ttlt.t ltavirlo irrtcn<,:iÍo tra olillr'rl el,r olrrrr, r'urta [;. Vt'r'nier', isso lã6 so c(»tt(,stn, 1l,ls
19a51, p. 209-210. ''
" Sinron clrcgir t\ scguintc conclusiirl: "llasla apt'ttas ('sp(!r'ilt/ t'lt'lirtrl.t P('ltsott. Sti t's1lt'r,tr" ll,lo (' Iil,ll(] () (lll(, ll(,rttt,utt'tl no lt'xlo tprt'itttpor't,t r.rr,i6 ri s«l[rr.t'isstr (llt('s(,(l(.v(,r'6trjt,lttr,tr;
0,, ,-.jr,,,,],,,,11:,,:,.::,1.,]:^1
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simplesmente impossível. Claro, toclo leitor tenta espontaneamente re- ctc.). Ora, parcco cvidcnte que tal hierarquização depende menos do
ccrnstituir n partir do texto que está lendo uma figura de enunciador; texto que do leitor, ou até mesmo de cada leitura de um mesmo leitor.
mas esse reflexo inerente a toda situação de comunicação (e que não
O sentido de um texto é sempre, portanto, o resultado da seleção
é obrigatoriamente coroada de sucesso), de maneira nenhuma, impli -
mais ou menos consciente operada por uma leitura. Não se reterá
ca que seja necessário se documentar sobre o projeto do autor. Não -
a mesma coisa de um volume de Em busca do tempo perdido, segundo o
devemos conÍundir "ler buscando descobrir uma intenção" (algo que leitor se concentre nas descrições ou nos diálogos, no quadro da mun-
todo mundo faz) e "ler depois de ter identificado um projeto". Apenas danidade ou na experiência sensorial do sujeito, no "grupo" ou no "in-
os eruditos e os leitores "profissionais" (professores/ historiadores da divíduo", na sátira social ou no romance de formação. Quanclo menos,
literatura, estudantes) leem dessa seguncla maneira. emrazã.o dos limites da memória, toda leitura é, por definição, parcial
Mas se o sentido de um texto não se conÍunde com o projeto do autor, e seletiva. Há quem fique desolaclo (se considerar frustrante que "o
de onde vem ele? sentido" inevitavelmente nos escapa), ou/ ao contrário, quem exulte (se
julgar que a dinâmica e, portanto, o prazer da interpretação se reno-
vam a cada leitura). Esse último ponto de vista é o de M. Charles:

O sentido percebido [...] o que me parece importante em uma reflexão sobre a ordem, a
coerência, a arquitetura do texto é saber retomar a ideia de enunciados

Sólidos argumentos levam a pensar que o sentido é parcialmente (ver-


autônomos
- migratórios, memorizáveis, citáveis: eles remetem a
uma experiência real de leitura, uma leitura não profissional, não
são fraca) ou integralmente (versão forte) uma construção do leitor. especializada, mas corrente; levá-la em conta é a melhor maneira de
relançar a interpretaçãO [...J de opor, portanto, a esse imperialismo
Examinemos tEmploi du temps de M. Butor. O romance se apresenta
hermenêutico uma vercladeira pluralização do texto13.
sob a forma de um diário íntimo mantido por um jovem francês (Jac-
ques Revel) durante um estágio de um ano na imaginária cidade ingle- Mesmo sendo as leituras estruturalmente parciais e incompletas, isso
sa de Bleston. Registrando o que the acontece, de repente ele se vê atra- não significa que elas sejam inteiramente subjetivas. Elas podem se
sado na retranscrição de acontecimentos cujo sentido e aspecto variam parecer em sua forma de redividir o texto. Todos conhecem a piada
em função do presente que ele está vivendo. O personagem, querendo contada por Stanley Fish: depois de tratar das relações entre literatura
tudo apreender, acaba se perdendo na confusão temporal e no labirin- e linguística, ele apresenta aos estudantes do curso da aula seguin-
to de sua escrita. Mesmo que a trama do relato seja relativamente sim- te a lista dos nomes próprios que tinham ficado inscritos no quadro
ples, é muito difícil identificar o assunto principal do texto. O romance como um poema religioso do século XVII. Obteve, então, uma série de
nos fala da loucura de um homem separado de seus afetos e presa de comentários, alguns dos quais se revelaram coerentes, até profunclos.
um delírio de perseguição? Deve-se ver no romance uma reflexão so- A conclusão a que chegou é que as interpretações de um texto são
bre a relação do homem com o tempo e a finitude de sua condição? As sempre pré-orientadas pelo sentido que se busca: toda leitura é inevi-
respostas estão, é claro, em função daquilo que se conservar do texto. tavelmente marcacla pelos hábitos, expectativas e hipóteses da "comu-
O sentido atualizado dependerá dos dàdos textuais percebidos como nidade interpretativa" da qual o leitor é membro. Se as interpretações
mais significativos (a estética do "nouveau roman", a estrutura iniciá-
13 M. Charles,lntroductiotr à l'étude cit., p.58.
tica, os princípios do romance policial, os motivos do relato fantástico des textes, op,
-ol'
úÍr -, , ,,,1',::'""'1','ll:,:::':,.,'']"':'l,,'l':''.-t::

ttii0 são ttttcctssariatncnte possoeris (na rnerlida eln clue elas se referern a
sobrc cuja pcrtinônciar c p-rrcciso nos interrogar. Afirrnar que não existe
Lulrr-lllorlna coletiva), elas também não são sempre relativasra.
sctlticlo prirneiro (ou, o que dá r1o mesmo, que o sentido está fora de
Darí a cleduzir que o texto não tem sentido próprio e que os conteú- literários um pro-
erlcance) consiste, em efeito, em estender aos textos
c{os que acreditamos nele desvelar são puras construções do leitor é blema filosófico muito mais geral: o da possibilidade de um conheci-
um passo. As tentativas de legitimar a deriva interpretativa como uma rnento do real "em si". O texto, como todo outro componente da reali-
consequência inelutável de toda leitura fundam-se, em geral, nas refle- por meio da percepção que temos dele, ou seja,
clacle, só nos é acessível
xões cle Derrida. Err.De la grammatologiels, o promotor da "desconstru- por meio da leitura que fazemos dele. Mas, assim como a consciência
ção" sustenta que o texto escrito rompeu um duplo laço: com o autor que não consegue atingir uma "verdacle absoluta" não inviabiliza o
que o produziu; com o referente que ele designava no momento de sua conhecimento, saber que o sentido só existe para nós não inviabiliza
criação. Desse moclo, cortaclo de seu emissor e cla realidade de que fa-
forçosamente o trabalho de interpretação.
lava, o texto se torna um objeto de sentido indefinido, aberto a receber
um número ilimitado de interpretações. Acrescentemos que, se todo processo perceptivo é em parte uma inter-
pretação (como parecem confirmar as ciências cognitivas), tal interpre-
ún ponto de vista desses, mesmo não sendo sem funcramentosl., sus-
tação geralmente permanece "biunívoca": todo ser humano "interpre-
cita, contudo, várias observações.
tará" como "vermelho" um feixe luminoso de uma extensão de onda de
Para iniciar, como o nota malignamente schaeffer, a icleia de que o sen- 0,8 micrômetro. Mesmo que o conhecimento que temos do mundo seja
ticio de um texto não existe e de que existem apenas interpretações é relativo a nossos quadros perceptivos, ele não é tão subjetivo assim e
"autorrefutante"lT: se essa hipótese for exata, a frase que a enuncia não permanece válido pelo menos para a comuniclade que a espécie huma-
tem mais validacle do que qualquer outro enunciado escrito e nada, na representa (o que jánáo é pouco quanto a seu campo de validade).
consequentemente, autoriza a levá-la a sério.
Ver na obra uma pura construção do leitor é passar um pouco rapida-
se aceitarmos entrar no debate, a convicção cle que não existe sentido mente demais da constatação cle que é impossível evidenciar integral-
objetivo clecorre da aplicação à literatura de um construtivismo radical mente o conteúdo de um texto para a ideia de que não existe conteúdo
objetivo. De uma premissa justa (o entendimento é parcialmente uma
tt Cf . Quand lire c'es! fnire. latrtorité des conmutnnutés interprétatioes. Paris: Les prairies Orcli- reconstrução), tira-se uma conclusão pelo menos discutíveI: o sentido
rrarires, 2007 [ed. or.: 1980 I 1995].
[i do texto não existe. Ora, existe pelo menos no nível denotativo
J. Derrida, De la gramtrntologie. Paris: Mirutit, "L967.
r" Eu não teria nada mais
a acresce'ntar às posições de u. Eco, que, apesar cle bastante severo
- -
um conteúdo objetivo que sempre podemos reconstruir pelo menos
com al1;umas interpretações radicais da desconstrução, reconhece a profunda pertinêr-rcia
tlas reflexões de Derricia: "Quanclo ele diz que o conceito c'le comunicação não pode ser re- parcialmente (seja o que for que se leia no romernce de Flaubert, Mada-
cluzido à ideia de transmissão cle um sigrificado unitáriq que a noção cle significado literal
me Bouary segue sendo a história de uma provinciana casada com um
ír problemática, que o conceito corrente de texto corre o riscct de ser inadequáclo; quando
ele
enfi'rtiza, no marco de um texto, a ausência do emissor, clo destinatário e clo referente e quan- médico interiorano).
tlo explora todas as possibiliciades cle uma de suas interpretabiliclades não unívoca; qualclo
clc nos faz lembrar que todo signo pode ser citado e que, ao fazer isso, ele é capaz de romper A existência de um sentido literal objetivo, identificável por todo leitor,
trtlm qualquer contexto cladq gerando uma inÍinidade de novos contextos absolutamente
se impõe com evidência quando nos inclinamos sobre os atos de fala
ilimita-rdos
- nesses casos, e em muitos outros, Derrida cliz coisas clue semiólogo algum pocle
sc permitir negligenciar" (Les Linites de l'iúerprétation, op. cit., p.376-ZZZ). "indiretos". Searle designa como atos de fala indiretos os enunciados
tt Las C.elihntnires de l'nrt, op. cit., p. 296.
cuja verdadeira significação difere da significação literal, como por
POR OUE ESTUDÁR LITERATURA?
ntn O sentido em todos os seus estados 65
trTE

exemplo, a metáfora ou a ironia18. Quando Victor Hugo evoca uma publicado pela Fayard, que reproduz um quadro
cioná.rio dapsicanálise
"foice de ouro no campo das estrelas", é evidente que não está áesig- de Ingres representando Édipo). Poderíamos pensar que essa criança
nando um instrumento agrícola abandonado em uma pastagem, e sim e eu construímos duas representações diferentes a partir do mesmo
a lua (cuja forma evoca a da foice) brilhante em um céu noturnq no quadro e que daí se deve concluir que toda percepçáo já é uma inter-
qual as estrelas podem levar a pensar em flores. Se o enunciado é per- pretação. Isso seria um erro, na medida em que a interpretação "esse
cebido como metafórico, é porque, no contexto do poema o sentido quadro representa Édipo" não põe em risco a interpretação "esse qua-
literal não funciona. A significação literal deoe, entdo, ter sido estabelecida dro representa um homem nu", mas se apoia sobre ela. Todas as ou-
para que os usos não literais possam ser entendidos. tras interpretações do quadro (ele representa uma figura emblemática
da teoria psicanalítica, a humanidade universal, o caráter fundador
Examinemos outro exemplo. Em O Gatoppardo de Lampedusa, o sobri-
da mitologia grega etc.) pressupõem a percepção do sentido primeiro.
nho do príncipe Salin4 Tancredi, pronuncia uma frase célebre: "É preci-
Para voltar ao campo literário, um leitor que tivesse lido U/lsses sem
so que fudo mude para que nada mude"re. Se nos ativermos ao sentido
perceber (apesar do título) a menor remissão à Odisseia (foi isso o que
literal, a frase não significa nada: ela enuncia uma contradição lógica,
fiz na primeira vez em que li esse texto) teria, pelo menos em parte,
é absurda. Para entendê-la é preciso ligá-la a seu contexto de enuncia-
lido o mesmo livro que um eminente especialista em Joyce. Mesmo
ção. O que Tancredi quer dizer é que a aristocracia deve aceitar perder
que o especialista tenha percebido no curso mais coisas que o primei-
as aparências de poder para conservar a realidade do poder. É preciso
ro, os dois leitores terão tomado conhecimento dos fatos e gestos de
aceitar entrar no movimento para ser capaz de controlá-lo. Em outros
termos, a frase de Tancredi é a fórmula de um conservantismo inteli-
determinado número de personagens evoluindo no início do século
gente. Poderíamos tirar desse exemplo a ideia de que o sentido literal XX na cidade de Dublin.
não existe, porque a fórmula se mantém ininteligível se nos ativermos Quando interpretamos um texto, falamos sempre de algo que preexiste
ao sentido que as palavras têm no dicionário: ela pressupõe,)âde início, a nossa interpretação e que nos é dado através do sentido literal. Nesse
uma interpretação. Na realidade, é exatamente o contrário. Se essa frase sentido, é muito difícil discordar de Eco:
chama a atenção é porque se apresenta sob a forma de uma pista: ela
Existe um sentido literal dos itens lexicais, aquele que os dicionários
deve ser lida como :urn paradoxo. Ora, o paradoxo só é visível se tiver-
registram por primeirq aquele que o homem da rua citaria por primeiro se
mos consciência da não coincidência entre o sentido literal e o sentido alguém lhe perguntasse o sentido de determinada palavra. [...] Nenhuma
expresso o que supõe ter identificado previamente o sentido literal. teoria da recepção pode se furtar a essa restrição preliminar. Todo ato de
- liberdade do leitor vemdepois enão antes da aplicação dessa restrição2o.
Para além dos atos de fala indiretos, a percepção do sentido literal é
um momento obrigatório de todo processo interpretativo. Uma crian- No quadro de uma interpretação, a existência do objeto "texto" é tan-
ça de 5 anos me pergunta por que tenho um livro no qual se vê um to mais incontestável quanto o intérprete vai se focalizar em algumas
homem nu que apoia um pé em um rochedo (trata-se da capa do Di- propriedades (as que são pertinentes em relação a sua grade de aná-
lise) em detrimento de outra. Ora, excluir ou minorar alguns aspectos
t8 Cf. Searle, Sens et expression. Paris:
|. Minuit, 1982 [ect. or.:19791. supõe ter reconheciclo sua existência. A redivisão inerente ao gesto
1" A fórmula foi um pouco moclificacla na tradução rlc
J.-P Manl;anaro: "Se quL'rc'n'ros que
tudo fique corno está, é preciso quc. tudo ntudo", l,anrpeclusa, Lc Çuti1arl. Pnris; Stuil, 2002
ll I I 1i,,. t ,,,. I :,,,:t.,., .1., l';.,t..,.,..,..,,r..t:-... .,.. .,'r .- rô
POR QUE ÊSTLIDAR LITÊIATLIRA?
ntn O sentido cm todos os seus estados 67
F
crítico é, então contrariamente àquilo que às vezes lemos um mente traçadas". Vejamos que, nos dois textos, a atividade interpretati-
- -,
argumento em favor da realidade factual do texto. va se apoia no sentido primeiro da palavra: "Pequena corda estendida

Esse texto que preexiste a todo comentário


não deveria ser con- entre dois pontos fixos, a fim de traçar linhas retas". Mas o texto cle
- - zola náo se contenta em utilizar a expressão figurada construída por
siclerado como uma adição aleatória de enunciados autônomos: as fra-
analogia com o sentido literal, enquanto o poema de Apollinaire, por
ses que lemos são regidas por determinado número de estruturas e
causa de sua extrema brevidade,leva a multiplicar as hipóteses de lei-
de relações que impõem restrições à interpretação. Não por acaso o
tura. Quanto menos o contexto imediato contém informações, mais di-
raciocínio de Fish se comprova sobretudo durante a leitura de textos
fícil é identificar a isotopia pertinente, isto é, saber de que o texto fala.
curtos: muito logicamente, o peso do investimento pessoal do leitor é
maior neles clo que nas obras extensas, cujas propriedades objetivas, A existência de um sentido literal objetivo não significa- longe disso
mais numerosas e restritoras, resistem muito mais. Cada um sabe que que o leitor permaneça inteiramente passivo: ocorre que ele "prolonga"
-
é mais fácil e natural interpretar a sua maneira um poema de quatro o sentido prévio que vem do texto e serve de fundarnento para toda lei-
versos do que um romance cle quinhentas páginas. tura. A distinção estabelecida por E. D. Hirsch entre "sentido" (rnenning)
e "significaçáo" (significance)23 pode nos ajudar a abordar corretamente
Concentremo-nos na palavra "linha" nos dois textos a seguir. O primeiro essa questão. O sentido é um dado estável, constante, que depende do
é um poema de Apollinaire, "Chantre", que se reduz a um único verso: "horizonte intrínseco" do texto, enquanto a significaçáo é variável, na
E o único cordel das trombetas marinas2l. medida em que clepende da relaçãg necessariamente particular, entre o
sentido do texto e um indivíduo ou uma situação. Para retomar o exem-
O segundo é uma passagem de Germinnl:
plo de zola, o traçado regular das rotas do Norte Íaz parte do sentido
Do lado de Marchiennes, a rota desdobrava suas duas léguas de do texto, assim como a ideia, avançada na frase que se segue, de que a
calçamento, que seguiam retas como uma fita embebida de óleo, entre arquitetura responde a um projeto poiítico: circunscrever e ocupar as
as terras avermelhadas. Mas, do outro ladq ela descia em laço através classes trabalhadoras (ver a restrição "apenas") para evitar que elas não
de Montsou, construído sobre o penl-rasco de uma grande ondulação da
se transformem em classes perigosas. Em contrapartida, a possibilidade
planície. Essas rotas do Norte, estiradas como um cordão entre cidades
cle ler a oposição entre o frio rigor do traçado das estradas e a languidez
manufatureiras, avançanclo em curvas mansas, subidas lentas, são
construídas pouco a pouco, tendem a fazer de um clepartamento apenas clas colinas como uma erotização da paisagem (a verticalidade das rotas
uma cidade trabalhadora22. cstiradgs como um cordel inserindo-se harmoniosamente na mansidão
rlas curvas) é resultado cla significação: é difícil provar que não se trate
Enquanto não se pocle mais contar o número de interpretações de "cor-
aclui de uma associação fortuita do leitor.
del" no monóstico de Apollinaire (do próprio verso disposto no espaço
da página como marco situado entre o Antigo e o Novo, passando pela l)i.rra concluir esse longo desenvolvimento sobre a existência de um
evocação da fugacidade do belo e da evanescência da arte), o sentido scntido objetivo, podemos nos perguntar por que essa questão mo-
da palavra é perfeitamente claro e unívoco no texto de Zola. Visto o vimentou tanto os estudos literários. Realmente, não ocorreria a nin-
contexto, a expressão "estiradas como um corclão" significa "regular- 1iuórn (ou, pelo menos, a quase ninguém) interrogar-se sobre a exis-
It'nciir c1e urn scnticlo literal em um manual de horticultura ou em um
"(lharrtrr-.", Á/r-oo/s. Paris: Gallimartl, lc.)20, p. 3ír.
'/t\l-\ ('.t'n11;nttl l),rriq'l ,'l irrr,,,l,'l'r\.'hit l()7, rr t{7 l,',1 ,rr" l}tÍiril
POR QtlE ESTUDAR LITERATURA? O scntido cm todos os seus cslados 69
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compêndio de medicina. Quando leio que devo plantar uma árvore de um texto específico que li, daquilo que acreclito ter lido nele, ou de
em novembro para ela ter maiores chances de se enraizaÍ, tráo me per- uma lembrança daquilo que penso ter lido).
gunto se o sentido que extraio dessa frase é objetivo ou se é uma re-
Portanto, é porque a obra literária também é um objeto estético que a
construção pessoal de minha parte. o mesmo acontece quando leio
questão do sentido foi por tanto tempo considerada como secundária.
a receita de meu médico, que me prescreve compral esse ou aquele
Um texto não deixa de ser um fato linguístico, impossível de apreen-
remédio. Então, pol que não nos contentamos com essa atitude diante
der, independentemente do sentido que ele veicula. Na medida em
dos textos literários? A resposta a esta pergunta resulta da especifici-
que o sentido não se confunde nem com o sentido pretendido pelo
dade do objeto estético.
autor, nem com o sentido projetado pelo leitor, parece lógico que nos
Para início de conversa, lembremos: mesmo que toda obra de arte peça interessemos pela "intenção do texto".
para ser avaliada como objeto estético, nem toclo objeto estético é uma
obra de arte. O objeto estético é constituído pelo receptor, que pode esco-
Iher apreender esteticamente qualquer objeto do mundo. Nesse sentidq O sentido manifesto
o contemplativo é justamente o 'triador" do objeto estético: não é ele que
cria a cadeira, mas é ele que f.az dacadeira um objeto digno de ser contem- Vimos que é imperioso distinguir sentido intencional e sentido mani-
plado. Podemos dizer, então, que ele "inventa esteticamente" seu objeto. festo. O sentido intencional é uma das causas do sentido manifesto e
não pode substituí-lo. Observemos, de passagem, que se o conteúdo
Em segundo lugar, se como pensa Schaeffer o objetivo da con-
- - do objeto "texto" se reduzisse à expressão de uma intenÇão, o único
duta estética é a satisfação interna, a questão da identidade ou da
modelo crítico pertinente seria o biografismo.
realidade do objeto que a proporciona se torna, de fato, secundária:
"Se, nos comportamentos estéticos, buscamos relações cognitivas sa- Contudo, alguns críticos rejeitam a fórmula "intenção do texto" invo-
tisfatórias, não é de admirar que, desde que uma atividade cognitiva cando o fato de que o texto não poderia ter uma intenção: "Como o
esteja em conformidade com o princípio do prazer, ela venha a tem- texto é sem consciência", escreve A. Compagnon, "falar de 'intenção
perar um pouco as exigências do princípio de realidade, não obstante do texto' ou cle intentio operis, é reintroduzir sub-repticiamente a inten-
inscritas em sua própria natrÍeza"za. Essencial na relação estética é o ção do autor como barreira paÍa a interpretação, sob um termo menos
ptazer sentido, poUco importando se eSSe prazer encontra sua fon- suspeito ou provocador"2s. Schaeffer é, ao que. parece, da mesma opi-
te em um objeto que existe fora de mim ou que eu tenha, parcial ou nião. Para salvar a intenção do autor, não obstante a distância (que ele
completamente, reconstruído. O mesmo não acontece, evidentemen- próprio constata) entre o que o escritor quis fazer e o que ele realmente
te, quando minha atividade tem um fim prático: se me engano quanto fez, ele propõe uma sutil distinção entre "intenção prévia" (durante
à identiclade dos medicamentos que compro ou quanto ao sinal de a escrita) e "intenção em ato" (contemporânea da escrita). Portanto, a
trânsito pelo qual passo quando vou de carro, as consequências não obra seria sempre a manifestação da intenção do autor; simplesmente,
são as mesmas de quando me engano quanto à identiclade do objeto essa intenção evoluiria no decorrer do processo de criação: 'A confec-
que me proporcion a pÍazer estético (e é indiferente saber se se trata ção clc um cluac{ro, de um texto, de uma obra musical decorre de uma
POR QUE ESTLIDAR LITERATLU<A?
O sortido cnt todos os snts estndos 7"1,
_=.!o

intencionalidade processual inseparável do encontro do artista com o me28. E esses dois campos não se recortam necessariamente. Eco narra
meio trabalhado"26. Essa distinção me parece pouco convincente: se que um leitor de O nome da rosa interrogava-se sobre o que significa
a "intencionalidade processual" dá conta do sentido efetivamente ex- a dupla condenação da "pressa", num intervalo de uma página, por
presso para distingui-lo do sentido que o autor projetava exprimir, ela dois personagens diferentes (um a teme, outro louva sua ausência).
se reduz muito especificamente àquilo que designamos habitualmente Reconhecendo que não tinha enquanto autor real pensado na
- -
de "intenção do texto". Esta última fórmula significa, com efeito, que possibilidade dessa aproximação, ele conclui:
o sentido com o qual nos confrontamos durante a leitura necessaria- O texto está 7á, ele produz seus próprios resultados de leitura. Queira
mente não se conÍunde com o sentido que o autor buscava exprimir eu ou não, encontramo-nos cliante de uma questão, de uma provocação
(supondo que a intenção de significação esteja na base do projeto artís- ambígua; no que me diz respeito, fico muito embaraçado em interpretar
essa oposição, do mesmo moclo que entendo que um sentido (mais
tico). Portanto, "intenção do texto" e "intenção do autor" não são duas
talvez) tenha vindo se aninhar aqui2e.
formas de dizer a mesma coisa: a primeira fórmula remete à consta-
tação trivial de que uma obra exprime frequentemente algo diverso O interesse de um texto, então, não resulta daquilo que seu autor quis
daquilo que seu autor tinha inicialmente na cabeça. significar, mas daquilo que é objetiaamente signlficado.

Acrescentemos que, se considerarmos como abusivo falar de "inten- Resta saber como iclentificar esse sentido "objetivo". lJma das caracte-
ção clo texto", será preciso também banir do discurso crítico fórmulas rísticas essenciais do texto literário (especialmente das ficções) é, real-
amplamente usadas, como "o texto diz que" , ou "o texto chama nossa mente, o carâter indireto da significação: o sentido passa sempre pela
atenção para" , que parecem constituir como sujeito consciente um ar- mediação de uma história ou de uma representação. Lembremos as
tefato composto de sinais gráficos. Parece-me mais simples, seguindo afirmações de Barthes, ao comentar uma inclicação de Chateaubriand
um uso bem estabelecido, considerar todas essas fórmulas como sim- no prefácio à Vida de Rancé:
ples metonímias facilmente traduzíveis.
O abade Séguin tinha um gato amarelo. Talvez esse gato amarelo seja
A "intenção do texto" não se conÍunde, então, com a intenção do autor toda a literatura; porque se a notação remete indubitavelmente à ideia
real, mas com a intenção do 'Autor modelo", que é exatamente uma de que um gato amarelo é um gato desgraçado, perdido, portanto
encontrado e unido dessa maneira a outros pormenores da vida do
reconstrução do leitor a partir dos daclos textuais:
abqde, todos atestando sua bondade e sua pobreza, esse arnarelo é ainda
Nessas interações complexas entre meu conhecimento e o conhecimento muito simplesmente amarelo, ele leva não apenas ao sentido sublime,
que atribuo ao autor desconhecido, eu não especulo sobre as intenções intelectual em suma, ele permanece, obstinado, no nível das cores [...]30.
do autor, e sim sobre a intenção do texto, ou sobre a intenção clesse
Autor modelo que estou capacitado a reconhecer em termos de
'n Se bem entendi, "a intenção em ato" de Schaeffer se distingue claquilo que Eco chama de
estratégia textual27. "a intenção do tc.xto", na medida em que ela é, por definição, cor-rsciente de si mesma. Ela
não lomete, portanto, aos conteúdos inconscientes, rnas aos conteúclos que o autor escolhe
Mais uma vez, isso equivale a diferenciar o que o autor (real) queria cx1'rrimir no momcnto crn que está escrevendo e que podem, é claro, diferir daqueles quc
cle tirrl-ra a intcnção clc cxprimir crr ulna fase prévia ao ato c1e criação propriamente clikl.
conscientemente exprimir daquilo que o texto efetivamente exprime
Mas, t:orno votr cxplit-'ar un'r pouco irtliirntt, não e'stou convc.nciclo nern c1a possibiliclaclc de
()[r('r,lr (rssi divisão, n('nr do irrtcresst'r1ur: havcria e'rn fazLllo.
r'' Lj. li'o, l,ts Lirttiltt iL'l'itrltrltrrlttiou, ol,. ú1., p. 139,
" J.-M.Scl.racffer, LArt da l'igc nrodutrt', ryr. ci/., p. 3írj. rrr lt ll,rlllrr,s NrttiilLtttt' t,,!tti.; t,ilitutt',; l',rli,r'Slrril ltlT) n ll|'-l17
() vttlido tttt lorlor rts st'lts t's/tttltrs 7l

Se, ern um texto literário, o sentido apresenta dificuldades, é porque o


sugcrc que vá pedir cmprestada uma joia a sua arniga de infância, a Sra. Forestier.
privilégio é reservado ao factual: a bondade do abade não é explicita-
No dia da festa, Mathilde, ornada com um maravilhoso colar de diamantes, expe-
mente significada, mas obliquamente por meio da cor de seu gato.
- ritnenta um sucesso esplêndido; mas, voltando para casa, descobre que perdeu a
Encontramos a mesma ideia em V. Descombes, para o qual a especi- joia. Após tê-la procurado em vão, os Loisel optam por comprar um colar seme-
ficidade do romance reside na "extroversão". se o romance pode ser lhante. Mathilde o devolve à sra. Forestiet que não se dá conta da substituição. O
qualificado como "gênero extrovertido" (quer dízer: "voltado para o casal passa os dez anos seguintes na miséria e na labuta para saldar o empréstimo
mundo exterior"), é porque ele prefere sempre a expressão pelos fatos contraído. No final da novela, Mathilde, prematuramente envelhecida, topa com a
à comunicação direta da ideia3l: quanclo o romance exprime uma vi- sempre bela Sra. Forestie{, que the faz saber que a joia perdida era uma imitação.
são das coisas e um sistema de valores, nunca o faz diretamente, mas
Apesar de um conteúdo factual dos mais límpidos, é particularmente deli-
no viés de uma história, das relações entre os personagens, dessa ou
cado extrair o sentido rnanifestado por esta novela.
daquela cena etc.
para saber o que um texto exprime, é preciso, corTlo se viu, tentar respon-
Extrair o sentido manifesto constitui, então, uma dificuldade dupla: sa- cler a duas perguntas: do que ele fala? (Qual ou quais os temas que ele aborda?)
ber de que o texto fala (o que se deve reter das numerosas ações, falas e E o que ele diz daquilo de que fala? Acerca da primeira pergunta, a diversidade
pensamentos encenados); saber o que ele nos diz (o ponto de vista que de temas abordados em La Parure leva a pensar que o texto talvez não tenha as-
ele defende) sobre o assunto de que está tratando. sunto principal. De fato, a novela trata simultaneamente da natureza feminina,
da luta de classes, da justiça, da felicidade, do dinheiro, da vaidade, da beleza, da
É o que verificaremos no estudo de uma novela de Maupassant:
identidade, do valor, da dignidade, da verdade, da vida conjugal, do sentido da
existência e, até mesmo, por meio de uma reflexão sobre a relação com os signos,
da literatura e da leitura. Não somente os temas abordados pertencem a domí-
DFryrgq:iplo- 33@ nios muito diferentes (moral, filosofia, psicologia, sociologia, política, literatura)
como também é dificílimo saber o que o texto exprime sobre cada um deles.
O srNuDo TNCERTo
(Maup assant, La Par u r e)
Llma f ábula moral?

À primeira vista, o texto deve ser lido como uma fábula que transmite uma
"La Parure"12 ("O colar") é uma das novelas mais conhecidas de Maupas-
"moral".Inserida numa coletânea de contos, a narrativa oferece uma história
sant. varnos recordar rapidamente seu enredo. A bela Mathilde, casada, sem dote,
curta de valor exemplar. Os nomes das personagens/ remetendo aos animais e à
com Loisel, pequeno funcionário do Ministério da Instrução pública, sofre por
natureza ("Loisel" ['pássaro'], "Forestier" ['florestal']), recordam o universo da
não levar a vida de luxo para a qual se sente nascida. Quando o marido the anun-
fábula. A inverossimilhança (é possível acreditar que, durante dez anos, a Sra.
cia que foram convidados a uma recepção oferecida pelo ministro, Mathilde se
Forestier nunca tenha lançado um olhar sobre o colar?) mostra que estalnos
queixa de não ter vestimenta adequada. Loisel lhe oferece um vesrido, depois lhe
lidando menos com um "retalho da vida" do que com uma história esquemática
3r V. Descombes, da qual se pode tirar uma lição.
Proust paris: Minuit, 1982,p.75.
r2 cf. G. -philosophie du romsn.
de Maupassant, "La Parure" (1,884), Contes du jour et cle la nuit (1gg5). paris: Galli- O que está no centro da novela é a questão do ser e do parecer. Mas as
mard, 1984.
coisas se complicam tão logo nos perguntamos o que o texto nos diz dela. Sc
O sentido em todos os seus estados 75
POR QL/É ÊSTLIDAII LITÉRATUIA?

de fato parece haver uma condenação, a quem se dirige? Aos impostores que lLma denúncia p olítica?
manipulam as aparências? Aos vaidosos que lhes atribuem valor? Aos ingênuos
Se o texto tem ares de fábula, sua ancoragem realista não chama menos a
que as confundem com a realidacle?
atenção. Não somente as datas e lugares remetem ao mundo real como também
A primeira hipótese erigiria a sinceridade corro norma de cornportamento. todos os personagens são identificados por meio de se:u status social (profissio-
A história mostraria que, ao jogar cour as aparências, construílnos nosso próprio nal ou conjugal). Além disso, observe-se que a falta inicial, na origem da narra-
infortúnio. Essa leitura se apoia na causa objetiva do drama de Mathilde, que tiva, é uma falta de bens, isto é, uma carência econômica: é por não ter recursos
não é tanto a perda da joia quanto sua rccusa em dizer a verdade à Sra. Forestier. financeiros que Mathilde é levada a se casar com urn pequeno funcionário. O
Se a Sra. Loisel não tivesse tentado enganar sua amiga ao lhe apresentar um conflito central da novela opõe, portanto, um personagem (Mathilde) à força do
outro colâr, não teria evitado dez anos de sofrimento? determinismo social.
Na segunda hipótese, a conclusão a se tirar é que a natureza tem um valor No entanto, não é muito fácil definir o propósito político do texto. A ques-
próprio, que torna inútil e ridículo todo aparato. Natnralmente bela, mas querendo tão é saber se o narrador compreende ou condena o sentimento de injustiça
parecer rica, Mathilde é vítima de sua vaidade (mais do que de sua falta de sinceri- experimentado por Mathilde. Se o compreencle, Mathilde aparece corÍto uma
dade). Se a Sra. Loisel fez sucesso com urnajoia falsa, isso não quer dizer que a se- vítima da desigualdade social, e seu fracasso deve ser lido cotrlo uma crítica à
dução nada tem a ver com dinheiro? Esse cola4, que ela julgava indispensável, não sociedade francesa sob a Terceira República33. Se o condena, o ponto de vista do
só não lhe foi de nenhuma utilidade como, ademais, se revelou nocivo. Tudo bem texto é, antes, conservador. A menos, ainda, que nenhum dos personagens seja
pesaclo, o único papel do colar é desencadear a tragédia que vai esmagar o casal. poupado num jogo de massacre generalizaclo. Avaliemos a pertinência de cada
Observe-se que a perda da joia não põe fim à preocupação da heroína com o pare- uma dessas hipóteses.
cer: é precisarnente para salvar as aparências que a Sra. Loisel contrai uma dívida
À primeira vista, o texto parece legitimar as aspirações de Mathilde. Desde
e aceita trabalhar para saldá-la. O que a rnotiva, r-ra seguncla parte do texto, é sua
o início, a novela sublinha um paradoxo: a identidade depende, nos fatos, da posse
imagem junto à Sra. Forestier: Mathilde não quer passar por ladra. Paga então o rnaterial (o que se tem), quando deveria se ater às qualidades físicas e espirituais
preço rnais caro por ter querido viver de aparências. Por não ter se contentado com (o que se é). A desigualdade social é assim denunciada à luz do direito natural: en-
os dons da natureza, ela é punida quando lhe são retirados seus atributos natLrrais. quanto a natureza dotara Mathilde de todos os atributos para agradar e ser feliz, a

Na terceira hipótese, a moral poderia ser formulada assim: não sejam ingê- sociedade cuja única referência é o dinheiro a conciena a uma vida rnedíocre.
- -
nlros, "nem tudo o que reluz é ouro". A novela não condenaria nem os menti- A sequência do texto se ernpenha em confirmar que as diferença sociais não têm

rosos neffl os vaidosos, mas os que confundem a aparência com a realidade. Isso iundarnBnto substancial algum: tão logo Mathilde salva as aparências (entenda-
explicaria por qlle a Sra. Forestiel, ernbora vivendo na mentira (é dona de joias -se: "tão logo parece rica"), ela se torna imediatamente igual às outras mulheres

falsas), se sai tão bem. O que a distingue de Mathilde é, finalmente, o saber'. ao


(c é até mesmo superior a elas, como prova seu sucesso no baile do ministro). Mas
a rcccpção é somente urn parêntese, e Mathilde paga caro por essa intrusão na alta
contrário de sua amiga de infância, ela não ignora que vive na aparência. Por-
tanto, por não terem desconfiado das aparências, os Loisel são os bobos da histó- burguesia: perderá o pouco que tinha. A novela comprovaria assirn a impossibili-

jovem tola, cuja simpliciclacle dadc dc alguém escapar à própria condição e à violência da lógica social.
ria (recordemos que a palavra oiselle designa uma
e inexperiôncia chega quase às raias da estupidez). F-ssa le.itura parece e'ndossada pela referência intertextual aos contos de
fnc]as c, crn particular, a Cintlercla. As analogias entre o conto de Perrault e a
É dificil deixar cle notar quc a partilha entre os ingênuos e os cínicos cor-
rcsprlrrcle a ulra divisão social: os assalariados, dc unr lado; a altn btrrl;trcsin, do
l, tiflllllll, l'1il ll\ll,í (/t trl llõ ( rllrIil,r

Ilovcla dc Matrpirssttttt são, clc foto, nurllcrosas. Os dois tL.xtos sc vincularl iro
tutl sistetla iutrinsccaurcl'ltc pclvcrs(). De fato, a novela parece estiglniltizar ao
dcstirro de utna bela jovern a qLlem as circunstâncias exteriores obrigarn a Llma
lleslno tclnpo a clominação cla classe abastada e a alienação clas classes modestas'
pobreza relativa e ao sofrimento. Mathilde, colno cinderela, se consola sonhan-
do com outra vida e corn u, príncipe encantado. o anúncio clo baile representa, O poder da classe abastada é, como se viu, fundado na aparência: a supe-
em arnbos os casos/ uma imensa esperança de transformação. As duas jovens são rioridade que ela arvora aparece como ilusória e, por conseguinte, ilegítirna.
confrontadas coln o mesmo problema: a ausência de traje adequado. Mas ,,fadas Conforme comprova metonimicamente a Sra. Forestier (cujas joias não passam
cle uma contrafação), a alta burguesia vive na ilusão que produz sobre
as clas-
boas" (o sr. Loisel e a sra. ForestieS, no caso de Matilde) finalmente atendem seu
ses modestas: a Sra. Forestier fascina Mathilde, não porque á rica, mas
polque
pedido. cada heroína se torna assim a "bela do baile", sobrepujando as outras
mulheres. Por fim, em ambos os casos, a festa termina com a percla de um objeto parece rica. A vida que Mathilde idealiza não passa, ao fim e ao cabo, de um en-

precioso, senão irreal (o sapato de cristal, para Cinderela; a joia, para Mathilde). godo. É o que a falsidade dos diamantes simboliza: ofuscada pelo brilho do colar,
Mathilde não se apercebe de que ele só recobre o vazio. Através dessa metáfora,
Se os pontos comuns com o texto de Perrault permitem ativar a referência o texto desmonta os mecanismos da ideologia, imagem do mundo artificial que
intertextual, é evidente que são as diferenças que fazem sentido: elas revelam o
se apresenta como natural.
peso esmagador do contexto social. Com La parure, estamos no quadro de
uma
novela realista; ora, a realidade parâ os pequenos funcionários vivendo sob A grande burguesia atua assim sobre a alienação das classes modestas. Ma-
a Terceira República
-
não é um conto de fadas. Diferentemente de cinderela, thilde não consegue imaginar por um só instante que o colar - propriedade da
-
Mathilde não recupera o objeto perdido: não tem nenhum príncipe com quem classe abastada seja falso. De certa maneira, ela vai sacrificar a própria vida
-
contar (só dispõe de um marido que falha lamentavelmente em sua busca). Em para confirmar essa ilusão: o colar tem que ser verdadeiro. O destino de Mathil-
La Parure, ninguém recolheu o colar para ir no encalço de quem o possuía. de depende, no fim das contas, do modo de vida e dos valores da Sra' Forestier'
Embora os dez anos de sofrimento possam evocar Branca de Netse ou A Belq
De modo geral, o texto denuncia uma sociedade que, qualquer que seja a

Adormecida (as heroínas têm de esperar por longos anos antes de serem des- em que
classe social considerada, prefere a aparência à substância. Num mundo
pertadas por seu príncipe), há contudo uma diferença considerável: as princesas,
os objetos se tornaram intercambiáveis, onde só contam os signos exteriores
de
diferentemente de Mathilde, conservaram sua beleza (o tempo não tem poder
riqueza,não há mais referência e tudo se torna possível, inclusive o pior. À me-
sobre elas)3a. Não há, portanto, " final feliz" em Maupassant: a injustiça do início
dida que a história se desenrola, vemos aparecer de fato um número crescente
não é reparada. verifica-se até uma inversão irônica: ao passo que, em Cindere- os Loisel não
de joias (verdadeiras ou falsas) que criam uma espécie de caos que
la, o baile põe fim à dureza da vida doméstica, em Maupassant ele é a origem de
conseguem ordenar. Essa uniformizaçã'o deságua numa perda de referências:
dez anos de miséria. La Parure termina onde o conto de perrault começa.
nem mesmo a Sra. Forestier que não se apercebe da substituição operada por
-
Mas as aspirações de Mathilde são realmente validadas pelo texto? se seu Mathilde consegue mais distinguir o verdadeiro do falso. A lógica capitalista
-
status de vítima é dificilmente contesrável, terá ela razão de querer se incluir (sacralizar um objeto especulando sobre seu valor de mercado) deságua numa
nessa classe superior da qual a narrativa dá uma imagem tão negativa? Ela não absurdidade trágica: um colar fajuto se torna uma força monstruosa e destrui-
é tão culpada quanto aqueles a quem busca imitar? Nessa hipótese, o texto dora que ninguém mais controla.
não
tomaria o partido de um campo contra o outro: ele denunciaria o conjunto de
Os Loisel, entretanto/ não são o que se chama de "proletários". Pertencem
à pequena burguesia dos funcionários, cuja situação social está
longe de ser dra-
3{ Em contrapartida, a sra.
Forestier (que, na segunda parte, nos leva a pensar menos na
"fada madrinha" e mais nas "irmãs malvadas") permanece bela e sedutora. mática. É por isso que podemos duvidar dos reais motivos do sofrimento inicial
Existem, por_ talvez
tanto, muitos indivícluos para quem a vida se assemelha a um conto cle fadas: os
das classes de Mathilde. Será que tudo não se passa dentro de sua cabeça? Lq Parttre
superiores.
faça sentido, igualmente, no plano psicológico'
*_F* EID
ryb
('t r4(,,litlo uil l(ttl0§ os sc,ís csr?tÍÍos 79

Umq anális e p sicoló gica? O percurso da heroína, apesar cle doloroso (se não por isso mesrno), pode
dc fato ser lido como a construção progressiva de urna identidade autêntica.
Para dar conra do comportâmento de Mathirde,
o texto oferece duas expli- Após uma curta fase de abatimento, a perda do colar acarreta uma metamorfose
cações: o determinismo social (a fatalidade de
um sisrema que tritura mecanica_ da Sra. Loisel em mulher ativa. Aceitando enfrentar o real, Mathilde pode enfim
menre a personagem) e o impurso psicológico (a vaidade).
se a segunda hipótese se construir. Seu itinerário se assemelha a um processo de purificação: somente
merece que nos detenhamos nela, é em razão da
disparidade sublinhada pelo depois de ter se livrado do acessório (ela perde primeiro o'colar e depois seus
narrador entre a intensidade do sofrimento da jovem e a- realidade
- de uma bens materiais) é que ela se põe a existir autenticamente. Tendo renunciado aos
condição social que é simplesmente modesta.
signos exteriores de riqueza, Mathilde que pagou sua clívida até o último
-
Atormentada por sonhos de grandeza e de poderio, centavo descobre em si uma riqueza interior.
Mathilde padece de um -
comportamento patológico que podemos equiparar
à rnegalomania. A analogia A novela, com isso, incide também sobre o valor dos signos: o que fazer
com Emma Bovary se irnpõe naturalmente. As duas jovens,
que conhecem a mes- deles? Como compreendê-los? Que importância atribuir-lhes? Desde logo, é
ma situação conjugal desencantada, não rêm a vida que tentador ler aí uma meditação oblíqua sobre a leitura.
desejavam e sonham em
evoluir num outro mundo. Após terem conhecido o sucesso
durante um baile na
alta sociedade (em Madame Boaary, trara-se do baile
no castelo de La vaubyes-
sard), elas üvem o mesmo retorno doloroso à realidade.
Também noraremos que Uma reflexão sobre a leitura?
existe, nos dois textos, um objeto simbólico catalisador
do sonho: o colar para Ma_
thilde e uma cigarreira de seda verde para Emma. Ao A história de Mathilde, é antes de tudo, a história de uma relação com os
mostrar que o refúgio no
imaginário conduz à autodestruiçãq os dois textos parecem signos. Seu infortúnio tem a ver com um erro de interpretação. Se ela não tivesse
ter um valor de alerta.
se enganado sobre a natureza do cola1, se tivesse sabido avaliá-lo em seu justo
As diferenças são igualmente significativas. Do romance
de Flaubert à no_ valot sua vida não teria seguido um rumo tão desastroso. Mas era possível ler
vela de Maupassant, o objeto cra busca se simplificou,
até mesmo empobreceu. corretamente o colar? Observemos que todas as personagens da novela são lucli-
o luxo só fascinava
Emma por seu potenciar romanesco: ela desejava antes briadas pelos signos: o Sr. Loisel, o rninistro, seus convidados, e até a Sra. Forestiet
de
tudo viver uma paixão intensa e autêntica, Em Lq parure, que não se apercebe da troca. E nós, leitores, não fomos também enganados? Nós
o desejo de riqueza
passou ao primeiro plano: a felicidade, para Mathilde, também não acreditamos, antes de chegar ao desfecho, que o colar era autêntico?
não é viver um amor
absoluro, é ser invejada pelos outros. A ingenuidade
se degradou em tolice. En- É legítimo, pois, ler a novela como um abismamento da leitura. O texto,
quanto Emma tinha como exemplo as heroínas
de romance, Mathilde toma por tal como o cola4 não tem antes de tudo o sentido que lhe damos? Aquilo que
modelos os membros da classe abastada. os dois textos,
portanto, não têm o cada leitor projeta sobre a narrativa não recobre, in fine, seu eventual sentido
mesmo alcance: enquanto Emma morre de seus ideais
românticos, Mathilde só objetivo? Não foi o que acabamos de mostra, ao passar em revista as diferentes
é destruída pela estupidez e pela vaidade. Por
isso, os desfechos têm tonalidades leituras possíveis (e às vezes contraditórias) da novela? Quem pode dize1, ao fim
diferentes: trágica em Flauberç sarcástica em Maupassant. e ao cabo, se Mathilde é vítima ou culpada, se o alvo da crítica é o cinismo ou a

Assim, é principalmente na primeira parte da narrativa ingenuidade, se o texto deve ser lido no plano político ou no plano psicológico?
que Mathirde se
aproxima de Emma. Na segunda metade da novera, O que La Parure sirnboliza talvez seja, antes de tudo, a impossibilidade de ler.
assistimos a uma mudança
de rumo completamente ausente do romance -$S- S-
de Flaubert: Mathilde já não é a "N$^
fflesma pessoa. com isso, temos o direito de fazer
uma outra leitura mais A relação que um texto literário mantém com a significação é, por conse-
positiva da busca da personagem. -
- guinte, particularmente complexa. O sentido de uma obra é, ao mesmo tempo,
t:, ,"^.i-,t.rr,,,

incerto, rnúltiplo, diverso e contraditório. Não é errado pensar que essa


singu-

lariclade se deva particularmente ao stattts particular clo objeto "literário",


que A SIG N I FICAÇÃO ARTíSrlcA
arte.
não é jamais um simples texto, rras tambérn e antes de tudo um objeto
de

para melhor apreender sua dimensão semântica, pode ser interessante nos de-
bruçarmos sobre as condições da criação artística'

A arte como Prática


onsiderar a arte do ponto de vista da
criação pode parecer um Pouco arrisca-
do. Mas como identificar a contribuição
que a obra nos dá sem nos interessar por
aquilo que se desenrola no momento de
sua elaboraçáo?
em muito o propósi-
Sem entrar em uma reflexão (que excederia
temos de lembrar
to desta obra) sobre a gênese da obra de arte'
duas características triviais mas, exatamente por isso, dificil-
-
mente contestáveis do Processo de criação'
-
arte' que alguns con-
Em primeiro lugar, a finalidade da obra de
puramente estética'
sideram não exiitir' e outros, que é de ordem
o nota Jakobsoo pri-
independe da pergunta pelo sentido' Como
É por isso que me
vilegiar a forma é deixar o conteúdo flutuarz'

de j ' P aris:
1 E essa, comovlmos, a tese c{efendida por Kant (Critique de faculté
la
.uger
estética' a obra de arte é percebicia
Vrin,1993 [ecl' or.: 1790]): no marco daielação
como uma "finaliclade sem fim"'
2 A furção poética da ringuagem é, como sabemos, definida por Jakobson como "inten-
co.ta"'
sua própria
clir tncnsago,r't tãI, insistôncia posta na mensagem Por
çã. "n1.ru,it'
conr a .tiviclaclc. trrtística'r corrsistirrclo em
evidenciar 'tr laclo palpável dos sig.os"(Essnis
- ,'a
litrttuislirtttt,yt;túnrlt,,,l;;;;., p 2-ltt). or.r,
intrírr-
arnbipriclacle é un1a.proprieclacle
tr@ n,n Asignificaçãoartística 83

+
parece impossível seguir Schaeffer quando ele postula que o desaÍio dos nem sempre da "dissimulação lúdica partilhada', tal quadro pragrná-
éo
textos literários não se distingue clo desaÍio de todo texto escrito: tico tampouco deixa de existir e nos leva a perguntar Pelo prazer antes
Aquele que registra por escrito aquilo que quer dizer espera justamente de nos indagar sobre a intenção de significação. Os textos literários são
que, ao fazer isso, seu dito atingirá pessoas que, de outra forrna, não realmente atos verbais específicos, que não têm, Por exemplg a mesma
atingiria; não vemos por que ele faria toclo esse esforço se estivesse finalidade dos textos científicos. Quando um físico escreve: 'A energia
convicto de que por conta das inevitáveis recontextualizações igual à massa multiplicada pela velocidade dahu ao quadrado", sabe
de seu texto por -seus leitores
é
- sua significação intencional fosse
não transmissível. E podemos supor que o leitor, por sua vez, espera
exatamente o que está querendo dizer (quanto a Rimbaud ou Nerval,
justamente entender o que o autor diz: não vemos por que ele se daria, não estamos 1á muito certos) e deseja ser entendido o mais exatarnente
de outro modo, ao trabalho de lêJo3. possível (quanto a Rimbaud ou Nerval, não estamos lá muito certos).
Em outros termos, o contrato de leitura do texto científico não é igual ao
Contrariamente ao que se afirma acima/ o autor de um texto literário contrato de leitura do texto literário. É inexato dizer que consideramos a
não escreve para transmitir o mais precisamente possível um conteúdo obra literária como "a expressão de um querer-dizer coerente"s.
claramente circunscrito. Se Mallarmé ou Nerval quisessem ser entendi-
dos acima de tudo, teriam escrito algo diferente cle seus textos passavel- Outra característica funclamental do processo de criação é o que o ar-
mente herméticosa. Sirnetricamente, não é de todo certo que o leitor de tista nunca domina completamente aquilo que faz. Na medida em que
uma obra literária busque antes de tudo "entender o que o autor disse". a arte não obeclece a regras predeterminadas6, o autor não tem plena
Posso ler um poema surrealista ou uma página do FinnegansWake serrr consciência nem daquilo que procluziu, nem do modo como se inves-
buscar entender o que o autor (talvez) queira me dizer por exemplo, tiu nessa produção:
-
ao deixar-me levar pelo jogo ritmado e pelas sonoridades, até mesmo [...] o próprio criador de um produto derivado de seu próprio gênio
pela beleza das imagens. É isso o que podemos chamar de o "prazer não sabe como se encontram nele as ideias que se relacionam com tal
estético". Se "me dou ao trabalho" de ler Modnme Booary (é mesmo um produto, nem está em seu poder conceber à vontacle ou segunclo um
plano essas ideias, nem comunicá-las aos outros por meio de preceitos,
trabalho?), não é para, desde o início, identificar o que o autor teve a in-
que, pelos menos, thes possibilitariam realizar produtos semelhantesT.
tenção de me fazer entender ao escrever esse texto; como o diz
Schaeffer, por sinal porque essa atividade me proporcionapÍazeÍ em No horizonte da estética kantiana, essas afirmativas têm como propó-
-
seu próprio desenrolar-se. Ora, não apenas esse prazer não está obriga- sito aproxirnaÍ o belo artístico do belo natural (demonstrando que eles
toriamente vinculado ao que eu entenclo (ou acredito entender), como têm em cgmum serem "finalidades sem fim"); mas é imprescindível,
o que eu entendo (ou acredito entender) não corresponde obrigatoria- para a questão que nos ocupa, a ideia de que a criação artística não tem
mente àquilo que o autor tinha a intenção de significar. inteira consciência de seus próprios fins8.
O que Schaeffer, estrarhamente, parece negligenciar aqui é a existência
de um "contrato cle leitura" artística que talvez não seja tão cliferente do
' Ltts Célibntttircs dc l'art, op. cit., p.305.
" At'lrnitimos c.;ue a criação artística ocorre no interior de restrições genéricas, históricas e
contrato cle leitura ficcional. Se o quadro pragmático da relação artística ctrlturais. Mas cltrs sempre dcixam espaço suficiente parâ uma cxpressão pessoal. Os escri-
los oulipianos são um exemplo brilhante disso.
; Kirrrt, Critiquc da ln .fnculti dc jugt:t; oy, cit,, p.205.
t l.cs Ctllibntnircs l'nrt, op. cit., p.301,.
da " Sabtr.nos o rluanto ir iclcia foi cxpkrradrr ptlos Rornânticos. Repitarnos as afirntativits,
'I Na cledicattjria a Alcxanclrc Dumas, Nc'rval cscrcvo cluc os pot'm.ts dt' C-'/rirrrr;rr,s "pcrrle- rnuito ctilt'blt's, rlt, Novalis: "O ptx'ta orclt'r'rit, fttndc, r'scolhc, invontar -- scm qr-to clc tttc'st.tttr
riatl st'u cucanto âo scrL'lll cxplicados, sc a t'oisn ítlsst,possivr'|, tontttlarl-rnt'pt'lo rnt'nos t.rrlt,rrtla l)()r (lu(,ir11..rssirr t.rriio cl«,otttro nrotlo"(irputl J.-M. Schat'fÍcr, IlArl d,'l'ng,'trtodrntr,
Asigníficação artística 85
polt QLIE ESTLIDÁII I.ITEit1tTUi{Á7
_t-

dupla (a ausência de finalidade como sinol é partir do princípio de que um autor exprime intencional-
A consequência clessa característica
mente cleterminado número de coisas por meio de seu texto. Considerá-
claramente estabelecida, o carátet em Parte não dominável da criação)
é que o objeto de arte dá testemurúro de uma liberdade na exPressão
lo como sintoma é iclentificar o que ele signiÍica - Para além de todo
clesígnio intencional enquanto artefato produziclo em determinada
que não encontramos em nenhum outro lugar: "Na realidade, explica -
Kant, deveríamos chamar de arte apenas a produção por liberdacle"e. época e sob certas conclições. Todo texto significa simultaneamente
Paradoxalmente, é exatamente porque o sentido não é sua PreocuPa- como sinal e como sintoma: um texto de publiciclade, por exemplo, dá
Des- testemunho de uma intenção precisa (valorizar um produto para pro-
ção primeira que a arte é tão interessante no plano do conteúdo.
tacada cle todo objetivo clefinido, a obra pode se permitir quase tudo. duzir vontade de consumi-lo) exprimindo Por suas características sua
inscrição em uma sociedade ou a subjetividade de seu criador. Mas o
Contrariamente ao que pocteríamos pensal, esse ponto de vista não é
texto literário, cuja primeira intenção não é transmitir uma mensagem
invalidado pelo fenômeno das "recategorizaçóes" literárias. À primei-
clara, significa essencialmente como sintoma. Como a forma é menos
ra vista, se alguns textos (um tratado de Cícero ou uma meditação de
dependente do controle consciente do que o conteúdo, a obra significa
Descartes), que originalmente não fazem parte do campo artístico, são
sempre mais, até mesmo outra coisa, do que aquilo que o autor tinha em
redefinidos como "literários" é porque eles dão testemunho de uma
mente. Hegei observa:
escrita- Mas o essencial talvez deva ser procurado noutro lugar: nas
consequências dessa supervaiorizaçã.o do significante. Ao trabalharem A significação [cle uma obra cle arte] é sempre algo de mais vasto do que
aquilo que se mostra na aparência imediatal0.
a forma, Cícero ou Descartes liberaram significações das quais não ti-
nham necessariamente consciência. Ora, esse "outro sentido", que não Retomando a fórmula de G. Poulet, o Pensamento manifesto pelo
está inscrito na relação cteterminada de seus textos com a verdade, sem texto é constitutivamente "indeterminado"ll. Se é difícil saber o que
dúvida, está para muitos no interesse que thes atribuímos ainda hoje. Fedra exprime como sinal (o que Racine queria exatamente dizer ao
Por conta dessas condições que presidiram sua elaboração, o objeto escrevê-lo), podemos mostrar (e isso foi feito) que a Peça, enquanto
de arte apresenta características específicas no plano da significação. É sintoma, exprime uma visão de mundo jansenista, o complexo de
tempo de examiná-las. Jocasta ou, aincla, o mal-estar da nobreza de
manto sob o reinado
c1e Luís XIV. Como foi demonstrado por S. Suleiman, até mesmo
os

romances de.tese, na medida em que são resultado da literatura, veem


A especificidade do sentido artístico r,, op. cit.,vol.t, p.72. O que, para Hegel, é um defeito da arte simbólica
Hegel, Estl.rétiqtre,

Qla s[nifica mais do que aquilo que se pensa que ela signiÍica) talvez seja o que constitui
As modalidades da criação artística explicam três das principais ca- o varlo"r da arte g".ul. LembreÀos que, aos olhos de Hegel, a história cla arte se divide
racterísticas do sentido literário: ele é diverso; ele não é inteiramente "*
.m três períoclos, sÀgrrndo as relações específicas que mantêm entre si a Ideia (o conteúclo)
(a forma): a arte simbólica (na qual a forma excede o conteúdo), a arte clássica
conceitualizado; ele ilumina dimensões do humano. ,.,
" "*pressão e conteúdo se equilibram) e a arte romântica (na qual o conteúdo excede a
(rr.r qual forrna

Na medida em que o autor não controla inteiramente o que faz, a obra t.,.r*;. Depois clesse último estágio, a arte, tornada inútil pela religião, estaria clestinada a
m()rrcr L)arar abrir espaço à filosofia.
é mais interessante como sintomn clo que como sirlnl. Considerar o texto rr "lAlt;.is tlas rlctcmrinaçõcs ntuito aparentes que ocupam a pritleira posição etn toclirs
.,,, its obtls, há sclnPrc tirnr[ri'r:1, mtrs dc I.lraneirar bem maris clisCrcttr' a
",r'r,.1,,rn.,ttlrlas ('ll1 tlllln
t(,rrrr ('riti,trtr ,!t lt hrtrllr it irtçrr rrrr. r'ií.. n. l()lJ. () rrr,ttttlt'itrtist,r st'(,tr,l( t('rilil, ,tos ollttts t,xlrtr,rs;i,, tlt' rrnrrr r.r',rlitlatlt't'ornplt.t,rrncrttt' clifcrc'trttt, ttcccssarialttct.ttc situirtlal
r:sl L/DÁR Lrn.RAl Lt RA? A sigificação nrtísticn 87

sua finalidade determinada (transmitir um sentido específico) mescla-


pode ser entendiclo cor11o a exemPlificaÇão da gratuidade c1a salvação
da ou, até, contraclital2.
em uma perspectiva calvinista ou colrlo uma celebração cio instinto vi-
A obra literária é então, a sua maneira, um "documento". Mas, contraria- tal. Uma obra não é apenas suscetíTel a várias interpretações: ela contént
mente ao que Jakobson afirmaval3, con-statar isso não equivale a nega-r a efetivamente os cliversos saberes que ali se clesvelam. É essa, sem dúvi-
especiÍicidade artística. Se o característico de urn texio literário é condensar da, uma das chaves de sua sobrerzicla. Corno drz táo bern Compagnon/
saberes cliversos e variadosia, essa riqueza cognitiva é a consequência dire- os textos literários são justarnentc aqucles que- urla sociedadc utiliza sem
ta de seu estatuto de obra de arte, isto é, das conclições nas quais ele foi cria- necessaliamcnte vinculá-los a seu contcxto de origem' Sua significação
(sua erplicação, sua pertinência) parcce não se reduzir ao contexto dc sua
do. Diante cla perS'unta: "O que é que se deve reter cle um texto?", respon- ('.
enunciação inicial |

deríamos facilmente que fudo é importante. O interesse de um texto está


justamente na multiplicidade de conteúdos que ele veicula, aqueles que Esclareçamos que o sentido de um texto não está aí Para ser "reinven-
ele trarrsmite intencionalmente e aqueles que ele exprime "por acidente". taclo" por parte de cada público: ele é simplesmente "reatualizaclo". Se
posso lançar mão de La Boétie para entencler minha epocal7, é a partir
Que um texto sigrúfique o contrário daquilo que o autor pensava ter
cla definição da "serviclão volunt ária" inscritl etn setL texto: só poclemos
inÍundido nele é, portantq um excelente indício da identidade artística,
Ltttlizar, aplicar ou recontextualizar nquilo que ia cxiste.
assim como da facilidade com que uma obra se abre para uma diversi-
dade de interpretaçóes. Annn KnrAnina, que Tolstói concebera como um LJma segunda característica importante do ser-rticlo veiculado pela obra
e1 que ele não é integralmente conceitualizaclo. corno o autor
não do-
libelo contra o adultério, pocle finalmente ser lido como um panÍleto fe-
minista, urn hino à liberdade indiviclualls. O desenlace de Moll Flcmders tnina tudo o que ele investe eln seu texto, alguns conteúdos só serão
(no qual a pícara reconhece os próprios erros para se livrar da morte) identificados muito tempo clepois cla publicação cla obra, urna vez que
jai terão se configul'ado as ferramentas teóricas que Permitam deter-
rr Bamês, Nizan ou Mauriarc também quiseram escrever histórias exemplares, seus textos lulincí-los. Anteriormente a isso, os sabeles em questão serão simples-
não são rnenos trabalhados pela "não prertinência", pelo "transbolclamento" e pela "reticên- ntente "sentidos", tanto quanto podemos experimentar o efeito cle uma
cia". Existe, então, urna distâr-rcia entre aquilo que os autoÍes t€.ntavam transrnitir e aquiio sinfonia sem entencler nacla cle musicologia. C. Elgin apreende desse
que seus texios clão finalmente a ler (cf. Lc Ronmn à tlrcsc ou l'Ltutorité fictitc. Paris: PUF, 19t93,
Failles ou 1a revanche de l'écriture, p.231)-279). nroclo o texto literário como uma configuração significante à espera de
rr Lembrernos que, segunclo
Jakobsc»r, os "monument«rs literários" não passariam clc "c'locu- urn quaclro ifiter.pretativo que a desvende: uma peÇa de teatro como
mc.ntos defeituosos, de segunda orclern" ("La rrouvelle poé,sie russe", 1919, r'einrpresso enl
Cttsn tle bctnccns,Por exemplo, antecipa desde 1879 urna ctenúncia que so
Huit qttcstions dc poéliquc, op. ci|.,p.1.7).
ri 'A literatura assulrre muitos saLreres. Ern um rornance como Roúilsoir Crrr-sod, hrl um saber scrri plenameute teorizada e conceitualizada pelo discurso argumenta-
l-ristórico, geográfico, social (colorri;r1), técnico, botânico, arrtropolírglco (Robinson pzrssa cla'r
tlo clo feministnors. A ativiclacle clo crítico que tenta dar conta daquilo
n.rtureza para a cultura). Se, por conta cle não sei qual cxccsso de socialisrlcl clu clc barrbáric,
toclas as nossas clisciplinas devesserl ser exlrulsas do e.nsino, exceto um.r, seria a tlisciplir-r.r
literária clue deveri;r ser sa1va, porque toders as ciências são .rpreserri.rclas no nronumerrto ' r\. ('onrpagtrtrtr, /.r' /)t;rrittlt tlc ln tltt:orit', t4t. cit., p. 48-
litcriirio" (R. Bartl'rc.s, Lcçol. Parris: Seuil, 1978, p. 17-lti). I lirlilrt,il niio scgrrir Y Cittorr rluanttr clc vó no texto cle [.a Boetic, quc'estigrrlatizar a folnla
i' "Quando 'folstoi csboçou a prirncila verri.rrrto rlc ,4rltrr Krrritttitttt, Ânna t'r.r rrrna nrulhcr
(()1t() ()s Iir,ttttts.ttlttrttt('C('lll ()s l1()\'()s (()lll j6litrs e cspetiiculOs, "tt clesCrição cxiliil clC noSSo
nruit«r antipiitic.l, c s(,rr firrr tr.igico t'r'.r pt'rlt'it,tnrt'rrtt'jtrstilit,rtlo t'rrrt'rt't itlo. A vt'rs,io tlcli-
lnlr('l('ninu'rrto tt'lt'r'isiotl,ttlo tio ittlt io tltr st'tttlo XXl" (f irr', ítrltrprt;ltt; rttlunlistr - Potrulttoi
rritiva rltl 11)nrnn('(,c rrruiitl tliÍt'rt'ntt', nl.ls niro ,rt lr0 tlur' I olstoi lt'nlr,r nriltl,rtltr rrt,ssc nrr,io 1t,,, r'lttrL',, lilllttitt';/ l',rlis: li,lrttolrs Arrrslt'r'tl,rnr,2(X)7, IIttt'otlrrctitltr, tcxto rctotrt.rtitl t'tlt lia-
Ir.rrrpo srr,rs itit'i,rs rrronris; t'rr ,rlr'r'lrt'11rri,r ,r rlizcr (llrr', (iur',rnlr',r r,,;r'r'il,r, r'lr'(',,( ul,l\',r u,lr,l
I rr rl,r'' I rl I / /rr'tvrv.l,tl,t tl,r.ot
A signi.ficnçã o nrtísticn

n' '.:,,..':l :::il:l:li::.: .:,==: :,.: :,:..:::: .:::::': #: zá-los' Se "O barco bêbado"
tem artisii-
critério que permite hierarqui ,,I1ik" Ik",,r,,é porque o poema de Rimbaucl
clueéexpressoPorumaobraliteráriarealmentenãoétãocliferenteda camente mais varor lrr" coisas que
exprime, sobre o l-tt"rruno' rnais coisas' mais importantes
.rtividacleclocierrtistaquetentair.rterpretarumfenômeno'Quandoum '"t da função
microscópico apre- por Jakobson como exemplar
físico se Pergunta por que os objetos clo universo r) s/o8írl político reconhecido
;g'u'-'a"'" ob"' literárias geralmente uos p-rermi-
serrtarnsimultanea*".."propriedadescleondasedepartículas,elese poética. A leitura au'
que um texto diz te aprender rtrr po"toíais
sobre nós mesmos' Escreve Kundera:
une ao procedirnento clo crítico que se pergunta Por
pensar que existem várias cle Cóline sem perceber que os
tal ou qual coisa de certo modo' Poderíamos Imaturos, julgarn os velhos hábitos um saber
devia existir uma única esses velhos hábitos' contôm
respostas Para a pergunta clo crítico'.enquanto romances de Céline' graças a poderia torná-los mais
poru u pergunta ào ãentista' Mas até mesmo
isso não é certo' Vejamos: existencial que, se eles o compreenclessem'
'puruup"r[rr-rtu "por que os corPos se atraem?" existem duas respostas adultos.l'orqueopoderclaculturaresiclenisÀo:eleresgataohorror
existcncial2r'
transutlstancianclo-à ern sabecloria
força universal leva os cor-
igualmente váiiclas: a lei da gravidacle (uma forma' mas
si) e a relativiclade geral (o que a diminuir a importância da
pos clotaclos cle massa a se atraírem entre llssa constatação não equivale
à curvatura clo espaço-tempo)'
nos aparece como uma atração se cleve lcva à redefinição c1e seu PaPel'

Portanto,éperfeitamentelegítimoaplicaraotextoliteráriomodeloscrí-
ticoscliversoseconstantementerenovados:elesatualizamumaclimen-
são da obra efetivamente presente' mas
ainda na ausência dos meios
A forma Pelo menos:
o pensamento inscrito
paraidentificâ-|a,nafaltadalinguagemapropriaclaparadescrevê-la.
o marxismo ou a linguística,
É ir.rútil lembrar aquilo que a psiãa'rálise,
ao estudo dos textos'
clesse ponto de vista, cleram de contribuição enquanto discurso' ele é uma
Ioclo texto possui uma clupla dimensão: realida-
e1e se dá a ler como uma
Noplanodoconteúdo/umaclerradeiraeimportantecaracterísticada l,rl.r sobre o *r,lao, po"t'u fot'"a'
vai muito além da função
obraliteráriaéexprimirclimensõesclohumano.Trata-seaquideuma ,lt' visual e sonora, cujo poder expressivo
consequênciadiretaclascondiçõesdacriaçãoartística:quandoseex-
primemsemrestriçõesnemfinaiidadeclaramenteestabelecida,deixa. t4t'cit''p'12)'Sc'.ostextosnãosepÍestamigualmentcatodas
lltrltoltrctiLttritl'ltutlt:rlcsÍt'rfes' cle saberes'
que po- obrigatoriarlente o mL'sn1o tipo
_se aflorar uma série de coisas de interesses muito
cliversos ,r', .rlxrrtlirgcus, é pclrque eles
neo
-de um fun- r,,rra ret.r,ar r*.] p.rgr"i"
"eic'lam
feita por l.-L. Í.,a,nelle (valeur ct. litterature
-
Le poirrt
ccntrc tle [lt'-
clem ser clecorrência de uma curtura, cle
uma subjetividade, s' "r,r ã"'l t'l.rntl'""' l{cirns:
,\r'rlrlc,1,' 1.1 1111'1rfit' t;i;;';;..'r'iit"ii't' ""
mas que têm em comum exprimir essa ou aquela l.r I ,'ctrrrt' Littt'r''trtt" 200rr' p'
I2E)'
do antropológico i', ;:li;''trr ess't
-, arazáo pela qual encontramos
,
, .ii,ra,llo,,is trnlris. paris: Garllimar11,-t993, p. 280. De certa uraneira',
climensão constitutiva clo sujeito. Essa é l\1. l(trntlera, r,,.
tf a'os oll-'o't áo filosàfo 'rlemão'
sc 'r
obr'r cie arte e1

,' rrrr,t itlt'i.r .1u" 1n ""t "gcl


<letudonaobradearte:esquemasideológicos'cenáriosinconscientes' "''"u''""'"t"
,rr1,L'ti.t .tost'spct'rcttlot':li;tt.;;;"'"'i'pt"qtt"elat1t-Íteste'l1ttnhot1aativiclarclecloespírito
Mas, se algurnas obras se contentam em
vei- ,' ,',,,,1.,, .1,, ,"' i";;";';'.;i-i^'::l::':::jlrÍàJ,.l"r:,':T:l.,,.*ii;:ll:t:'il?.'.,
configurações subjetivas' , ,',,,,1*.,
llosscl lnsplfilr
aincla desconhecidos ou 'rr' ',t'tttitltts,.l ll()sso sctttiurcnto L' c1
'nihil ltunutni n nrc alictttrtrt
cular estereótipos, outras exploram esPaÇos lrrrrrr,rrrrr. A arte rrt.r,e ,,,"i,)'-.,* ,,,rs .r ber-n .Àr-rt-r".i.tu se.teuça,

levantamquestõesdealcancegeral'Ointeresseclosaberveiculado' )i,,i,r i',,,,,,,,.,,,:':l:r,:ilÍ»:,nill;*;jli,x:$::l;i;T.lJ:::lltr'il:"Ji[]ii,i,;:


clos textosre' aprcsenta-se assim como um
t'uuito variáve-'I, a clepcncler
rrr( lrrr'r(,()('5 ("rs l)'rr\'()cs tt..
i::ll'-'i1:,':.:",."":"; .,," i.tirnitlrrclc mais secLe'ta, poclc portar''ex-
r':u.ri"':o p'lrssa agitaic susc.ita'l
,1,1,'; ;i,1,'1,11;
li,lll:lil;il]',l,l:l'll..ill::llli;'ii:li:x",1,, pc*o tntr«rtlucti.., r, ci/ ', p l02-
",t t't|tr ,.,r ,,r..r, rrrrrlri'1.., ,,-,,,,:',:;'- ,, I l: ii,-ti,,'ti,1,',"
li,,.,irliri,r.,.l,'"
Ar,--"r-t,Jil",i M. ( lr,rr.l's, (l.,rr(l() t'h'tlt'rrrrrrr'i,r rrrr\ t,,,,,,1.r.rr1r,.,,,,,,,ri,r,'ti,,r,t,rrr,tril,tt..,t.,l,'li't,'rrtit'("lratl'rtltlqttot'lrtlllrAntlrttt't'
90 p()R euE rsruDÁR Lt1'LRA'r'Lu<A?

úrt

referencial. Mas, enquanto na linguagem corrente o poder evocativo clro branco exemplifica literalmente a brancura; um monóstico exempli-
do significante geralmente é neutralizado (o importante é o conteúdo
fica literalmente a brevidade. Mas um objeto também pode exemplificar
da mensagem), no texto literário assim como em todo objeto de arte
- rnetaforicamente propriedades que ele não possui de maneira figurada'
a forma não pode ser isolacta do conteúdo: elafaz parte do sentido.
- Desse modo, se dirá que um "spleen" cle Baudelaire exemplifica metaÍori-
É isso o que nota Schaeffer: os universos de ficção, na contramão clas
camente amelancolia, na medida em que a melancolianão é uma proprie-
representações não ficcionais, não são dissociáveis da forma que os clacle efetiva do texto: o poema não "possui" materialmente a melancolia;
apresenta2z. Enquanto uma pasta de dentes tem uma realidade inde- c.le se contentacom Íemeter a ela de maneira imagética. Essa exemplifi-
pendente da publicidade que the infla as qualidades, o personagem de também chamada por Goodman de "expressãe"
cerção metafórica
Emma ou o barrete de Charles Bovary só existem pela maneira como o - -
rnantém um estreito vínculo com a exempliÍicação literal: Mndame Bounry
texto de Flaubert no-los mostra. Se é o conteúclo que constitui o valor
cxemplifica literalmente o irnperfeito iterativo e exprime o tédio cle uma
de uma ficção, é então conveniente especificar que esse conteúdo só
cxistência enredacla na repetição; Em busca exemplifica literalmente a fra-
é dado mediante uma forma particular, da qual ele não pode ser se-
se longa e exprime o clesejo de fixar a evanescência do instante.
parado (é por isso que é sempre interessante levar em conta a forma,
mesmo quando ela tenha perdido seu impacto estético). A exemplificação gue, segundo Goodrnan, é uma das características
-
fundamentais do texto literário (como de tocla obra de arte)2a passa
Essa ideia central é teorizadapor N. Goodman com recurso à noção de -
cssencialmente pela forma. Mais exatamente, uma obra exemplifica um
exenrylificnçõo23. Para o filósofo americano, o que caracteriza uma obra
rlos traços que ela possui quando faz desse traço uma aposta, exibindo-o:
de arte enquanto tal é o modoparticular com que ela significa. Goodmal
apreende a significação por meio da questão da referência. Quando um [...] em uma obra literária, o que geralmente conta, não é apenas
a história
signo remete (arbitrariamente) a um referente, ele fala de "denotação": narrada, mas a maneira com que ela é narrada. [...] A rima, o rihnq os
a palavra "maçã" denota um fruto que atencle a determinadas caracte- sentimentos e outros modelos exemplificados desemperúlam [nela] um
rísticas; a palavra "lápis", uma ferramenta que serve para escrever. Mas grande papel [...['.

quando é o próprio objeto, enquanto realidade concreta, que remete a


As propriedades exemplificadas atraem a atenção sobre a escrita. Pode-
uma categoria mais geral, da qual ele é apenas um exemplo, a referên-
nros ler um texto de Céline sem ser detidos pelos pontos cle suspensão ou
cia se faz por "exemplificação". Neste último caso, o objeto funciona
urrr romance de Duras sem nos interrogar sobre a frequência das elipses.
como uma amostra daquilo a que ele refere. Um elemento do mundo
pode, clesse modq exemplificar qualquer um dos traços que o mundo lirrtender uma oftra de arte é, entáo, examinar as complexas relações entre
possui (natureza, forma, cor, valor cultural), por menos que esse traço () rlue é mostrado e o modo com que se o mostra. O recurso à focaiização
seja valorizado em um contexto específico: uma maçã real poclerá as- irrtcrna variável faz também de A condiçio humann um romarrce de clivi-
sim exemplificar, segundo os casos, a categoria das frutas, dos objetos s.-io clas consciências, assim como a duplicação do narradot Íaz de Molloy
redondos, dos objetos vermelhos, dos objetos proibiclos etc. uln rorrance cle questionamento identitário. Os "traços chamaclos de for-
A exemplificação pode, contuclq ser litersl oumetnfirica. Um objeto exem- nratis aparecem então não apenas como senclo vetores cognitivos da mes-
plifica literalmente as propriedades que ele efetivamentc possui: um qua-
'r No t'rrtt'nrk.r'tlt,(ltxrtlnrrur, rrm.r t1.rs contliçõcs próvias pal'a que um obieb se t<lrne. "lrt'tís-
lir.o" t't1rrt'r'lt'silirriíiqtrt.il nxrtür tlt'cxcrnplil'icação. l,ctlLrrelt.tos qllc o fil«isoftl atttrcric.ttto
') ('i. l>ortrqttoi lt.l'ictiotr? I)itris: Scuil, l<)()(), p.229. 'ir ,t ,rt-1t," Por rrrttt'.r Pt'rgrtrttir: "Qtt.rlrtlo t' qtl('s('tt'ttr ,trtt'?"
'f í l Nl í l,v',lrrr,r'r Ltrt,t,t,t,,L,/,, f',,"r N1,,.,,,... 1.,,,,,,,,1i,,,, í'1, ,.,.1,.... r(xnr t...t lrtrrlxx.srrlrslilrrir,r Pt't11rrrrl,t r1ut,r,
A significação artística
," "- r-.rr-^^ rr"*

j'ai deux fois vainqueur traversé l'Achéron:


Et
ma importância dos conteúdos representados, rnas tamhm como sendo
Modulant tour à tour sur Ia lyre d'Orphée
inseparáveis deles"26. Podemos, então, destacar uma quarta característica Les soupirs de la sainte et les cris de la Íée'2e
do sentido literário: ele passa, em grande parte, pela forma27.
30
El Desdichado

Eu sou o tenebroso - o viúvo -, o inconsolado,


O príncipe da Aquitânia de torre abolida:
t@roto-ry Minha única estrela estámorta - e meu alaúde constelado
Traz o sol negro da Melancolia.
CrenõES NA NorrE Na noite do túmulo, tu que me consolaste,
(N ero al, " El D e s dich ado " ) Devolve-me o Posílipo e o mar da Itália,
A flor que agradava tanto a meu coração desolado,
Ea treliça onde o pâmpano à rosa se alia'

SouAmor ou Febo?... Lusignan ou Biron?


"El Desdichado" é o mais conhecido dos poemas reunidos em 1854 na Minha fronte ainda está rubra do beijo da rainha;
coletânea Les Chimàres. Vamos analisá-lo concentrando-nos nas modalidades Sonhei dentro da Sruta onde nada a sereia" '
particulares da significação em regime literário28. E, duas vezes vencedoç atravessei o Aqueronte:
Modulando a cada vez na lira de Orfeu
El Desdichado
Os suspiros da santa e os gritos da fada'

]e suis le ténébreux, - veuí - l'inconsolé,


le
Le prince d'Aquitaine à la tour abolie:
O poema como sinal
Ma seule étoile est morte, - et mon luth constellé
Porte le soleil noir àela MéIancolie. linguís-
Antes de significar como sintoma, este poema - como todo objeto
que era a de
Dans la nuit du tombeau, toi qui m'as consolé, tico significa como sinal. Sem pretender trazer à luz a intenção
- vários compo-
Rends-moi la Pausilippe et la mer d'Italie,
Nerval no momento da escrita, continua sendo possível identificar
La fleur qui plaisait tant à mon ceur désolé, nentes semânticos explícitos dos quais todas as interpretações
terão de dar conta'
Et la treille oü le pampre à la rose s'allie. pontos'
Suis-jeAmour ou Phébus?... Lusignan ou Biron?
A investigação genética permitirá, se for o caso, especificar determinados
Mon front est rouge encor du baiser de Ia reine; Para começaç'podemos nos interessar pelâs numerosas
referências literárias e
J'ai rêvé dans la grotte oü nage Ia sirêne... grande diflculdade'
culturais de que o poema se nutre. Sua elucidação não apresenta

O título, "El Desdichado", remete ao loanhoé de W Scott' "O


Deserdado" é a
J.-M. Schaeffer, Pourquoi la fction?, op. cit., p. 230.
'?6
seu feudo pelo príncipe
27 Poderíamos facilmente estender ao conjunto das obras literárias as propriedades que, divisa inscrita no es(rdo do herói epônimo, despossúdo de
segundo G. Scarpetta, definem o'grande romance": 'r1o) explora[r] um território ainda des-
conhecido da experiência humana [...];2") inventa[r] ou renova[r] a forma [...];3) torna[r] ,El D"rdtchado" (1g53), Les chimàres (rBS4), in: CEuares complêtes. Paris: Garnier,
indissociáveis esses dois aspectos" (lÂge d'or du roman.Paris: Grasse! 1996,p.15).
,, N-rr-I,
28 As
reflexões que se seguem se apoiam nos numerosos comentários que este poema tem 1966,p.693.
as análises
suscitado. Mencionaremos, em particular, M. Collot, Gérard de Neraal ou Ia déootion àl'imagi-
m A tiadução que se oferece a seguir é literal, para que Possamos acompanhar
poética de Manuel Bandeir& que é possível encontrar
naire.París:PUF,1992;J. Dhaenens, Le Destin d'Orphée. Études sur El Desdichaclo de Nerval. do autor. Éxistô uma bela tradução
clo poeta brasilóiro. Quanto ao títulq significa "O DesaJortunado", em
Paris: Lettres Modernes, 1972; l. Geninasca, Les Chimêres de Nental, Discours critiquc et dis- ,.,u, obrn, completas
,- ,r- t- rrrr--.rrr n n A significação artística 95
q!

João. Em nosso texto, o alaúdg instrumento do poet4 logicamente substitui o escudo. Esse sentido "manifesto" pode ser determinado por algumas informações
A imagem que ele apresenta por diüsa um
"sol negro" remete à gra,,rrra "Me- provenientes de fora do texto. Gérard de Nerval, convencido de que descendia
-
lancolia" de Albert Düre4, evocada num outro texto
- de um castelão do Périgord que trazia em seu brasão três torres de prata, se
de Nerval, Voyage en Orient.
via como "príncipe da Aquitânia". Se a torre foi "abolida" é porque o poder
O "belo tenebroso" (Beltenebros) éa alcunha que se dava o herói do Ama-
senhorial desapareceu com o Antigo Regime. O espaço evocado remete, por um
dis de Gaula. Observe-se que esse príncipe, com seus amores contrariados, mas
lado, às temporadas de Nerval na Itália e, por outro, à zona rural de Valois onde,
exemplar do ideal cavalheiresco, é o modelo que Dom Quixote escolhe para si.
criança, sonhava nas grutas e perto dos riachos. Acrescente-se que Nerval faz
O conjunto do segundo quarteto recorda uma novela de Nerval, "Octa- figura de "vi()vo" desde 1842, ano da morte de Jenny Colon, atriz à qual dedicou
vie", que se encontra em Les Filles du t'eu.O narrador ali relata uma estada na uma longa paixão. "Estrela" e "fada" do palco, ela permanecerá sua Eurídice'
Itália onde, tentado pelo suicídio ("a noite do túmulo"), a ele renuncia graças Num plano mais geral, o sentimento de "despossessão" de um eu errando nas
a uma jovem inglesa ("tu que me consolaste"). Assombrado por ideias de " trevas" remete às crises de demência vividas pelo autor.
morte enquanto passeia pelo promontório que domina a baía de Nápoles ("o Nerval quis ex-
É possível reconstituir, portanto, ao menos em parte, o que
Posílipo"), ele lembra que marcou encontro com a jovem sob uma "treliça". pressar com esse poema: o sofrimento de um eu privado de seu objeto de amor
Mais adiante encontramos uma referência a ourra novela das Eilles du t'eu, que, pelo refúgio no imaginário, busca conjurar a fatalidade da perda.
"Sylvie": o narrador evoca, então, uma tarde campestre em que/ adolescente,
Mas o auto1, como se viu, não controla tudo o que investe em seu texto; a
recebeu na testa um beijo de Adrienne , " rainha" da festa e " santa" virtual (ela
significação do poema não poderia limitar-se a esse sentido explícito.
morrerá religiosa).

O primeiro terceto compreende uma série de referências culturais que têm


em comum o fato de remeter ao amor culpado e infeliz. Tal como relata O asno de O poema como sintoma
ouro, de Apuleio, a mortal Psiquê foi separada do deus Amor (Cupido) por ter ten-
Evidentemente, é impossível determinar tudo o que esse poema de Nerval
tado ver-lhe o rosto. Quanto a Febo (Apolo), deus do sol, da beleza e das artes, ele
expressa (alguns conteúdos só aparecerão com a emergência de novos instru-
é paradoxalmente violento, cruel e quase sempre malsucedido com as mulheres.
mentos conceituais). Entretanto, podemos trazer à luz vários dos saberes que ele
Lusignan Biron pertencem ao folclore local. Lusignan, senhor de Poitou, foi,
e veicula. A título de exemplo, examinaremos 0 que diz o texto enquanto sintoma
conforme a lenda, esposo da fada Melusina. Infringindo o interdito, ele a surpre- de um inconsciente e expressão oblíqua de uma visão histórica e cultural.
ende no banho e descobre que seu corpo termina numa cauda de serpente. Biron,
No plano psicanalítico, o texto mostra como o inconsciente tenta gerir o
"príncipe da Aquitânia" , é tJm velho companheiro de armas de Henrique IV. Dei-
trauma ligado à perda O "melancólico" é aquele que, não podendo aceitar o
xando-se levar numa conspiração contra seu rei, é condenado à morte e decapitado.
caráter definitivo da separação, recusa o trabalho do luto: é precisamente um
O último terceto se refere explicitamente ao mito de Orfeu. Partindo em ,,inconsolado,'. Ora, o sentimento da perda é um dado essencial do imaginário
busca de sua esposa Eurídice no inferno, o poeta consegue, graças a sLta "lira", nervaliano: a morte "recente" de jenny só faz lembrar uma perda mais funda-
acalmar Cérbero e apaziguar as Fúrias. Observe-se que o texto de Nerval não mental: a da mãe de Gérard, desaparecida cedo demais e de quem só lhe restam
se pronuncia sobre o desfecho fatal dessa busca: tendo-se virado para trás antes algumas imagens. A gruta na qual sonha nadar esse "eu" duplamente "des-
de ter deixado o reino dos mortos, Orfeu, na lenda, perde Eurídice para sempre. possuído,'pode assim ser lida como uma figuração do princípio materno: ela
expressa o desejo de uma regressão ao estado fetal.
Essas múltiplas referências dão testemunho da inscrição objetiva no texto
cle uma série de temas e motivos: a perda; o arrror infeliz; a traição e a transgres- Essa falta irnpossível de preencher conduz à incerteza identitária. O ques-
qão: n ctrlnn'â rrôrfc'n...1.".1o o"to si está, de fato, no centro do poema: o eu atribui a si mesmo
identidades diversas e contraditórias sem alcançar nenhuma cerreza. As figuras cumprir concretamente os sonhos de glória. Nerval participa assim do
clade cle
com as quais ele se identifica têm em comum, contudo, a associação do amor e ,,mal do século,,: o presente opaco e limitado the parece não oferecer nenhuma
da transgressão. Psiquê e Lusignan pagam o preço altíssimo de rerem infringido perspectiva, nenhuma possibilidade de realização. O único personagem
definido
o interdito; Biron é executado por ter traído a amizade de Henrique IV; Febo é ,,o príncipe da Aquitânia", vê significativamente negado seu po-
socialmente,
culpado de violência e crueldade. Pareceria que, através de cada avenrura, o su- der. A ,,torre abolida,, recorda a decapitação do rei e, para além, o fim da antiga
jeito busca reviver um amor absoluto e proibido: o amor pela mãe. o distúrbio de
ordem senhorial: o poeta ratifica, no modo melancólico, o desaparecimento
identitário do sujeito é tanto mais profundo na medida em que a ascensão não é um mundo em que a hierarquia social se fundava na linhagem, na sacralização
permitida: a torre foi "abolida"; o Posílipo, símbolo de pode1, significativamente dos signos e dos títulos. Num presente que só tem o dinheiro como
medida, as

referências devem ser buscadas num alhures espacial e temporal. Por


tem de ser reencontrado. Pode-se ver nessas imagens, que fazem eco às relações isso, o
conflituosas entre Gérard e seu pai, uma figuração da castração. poeta encontra refúgio no passado (Biron), no imaginário (Lusignan) e
no mito

o
questionamento sobre si acrescenra um sofrimento psicológico à dor (Amoç Febo, orfeu). Como a atualidade é desprovida de figuras heroicas, os
afetiva causada pelo desaparecimento do ser querido. De acordo com o processo suporres de identificação só podem ser buscados no folclore ou na lenda.

de sublimação, o sujeito transfere a energia libldinal do domínio sexual para o Os conteúdos veiculados por esse texto são/ portanto/ muito diversos'
domínio artístico: se o alaúde (instrumento artístico) é "constelado,', é para con- Mas qualquer que seja o domínio considerado, o sentido passa essencialmen-
jurar a morte da "estrela". Mas a mulher idealizada (a "rainha,, ou a,,santa,,) se tc pela forma.
revela uma compensação insuficiente para a perda. Ela sofre a concorrência da
figura carnal da sereia, próxima da água e da terra, que remete a um amor muito
mais concreto. Note-se que os elementos do mundo natural (,,Ílor,,,,,treliça,,, O pensamento da forma
" Íosa") conservam, até o final do poema, um forte poder de sedução. Não é tão
fácil renunciar ao mundo sensível. dificll não se surpreender com os fenômenos de retomada e de repetição.
É
Eles exprimem o lado opressor de um sofrimento lancinante.
Desde o primeiro
Se o poema dá restemunho de um imaginário individual, também exprime
u"rro ç;'lr", "ténébreux", "veuf"), o cansaço se exprime por variações sobre os
o rexto data de 1s53. É o início do segundo
o ponto de vista de toda uma geração.
fonemas mais neutros da língua francesa, [e] e [e]. o verso 5 faz eco ao
verso
Império. Nesse período marcado pelo autoritarismo e pelo absolutismo, o único ,,Nuit du TomBeau" evoca "TéNéBreux". A escuridão interior deságua numa
1:
espaço de liberdade é o da subjetividade, cujas duas formas essenciais são o amor
morte mental. os prefixos privativos ("DESdichado", "INconsolé", "DÉsolê")
("coração","beíjo")eapoesia ("ala(tde","lira").Asupervalorizaçãodoespaçosub- se difun-
dão testemunho da perda que afeta o sujeito. O "sol" de "solitude"
jetivo se explica pela impossibllidade de agir no espaço político: o arrista não rem
de no conjunto do quarteto: "inconSOLé" , "aboLie", "cOnSteLLé" '
outra solução não ser se refugiar em sua torre de marfim. A descida aos infernos
a ,,MélancOlie". A desestabilização do eu é sublinhada por uma pontuação
"'SOLeil"
an-
do último terceto, enquanto transgressão, recusa das fronteiras e dos limites, pode
siosa e caótica: travessões, reticências ou interrogação'
ser lida como uma afirmação da liberdade individual contra os interditos sociais.
de eco também têm por consequência reforçar o fecho do so-
os efeitos
De forma mais geral, o texto exprime o sentimento coletivo de pertencer neto. Note.se que/ contrariamente ao uso/ oS dois últimos versos do
segundo
a uma geração perdida. Depois da Revolução e do Império, o sentimento que dos quartetos. O universo do poema, fechado
terceto retomam a rima em [e]
o do
domina é o de declínio. texto se caraceriza, de fato, pela negação dos valores em si mesmo, se apresenta como uma totalidade autônoma, independente
da exis-
de eminência (a torre é " abolida" , o Posílipo se perdeu). O esplendor do período real, como se o imaginário fosse o único capaz de proteger das feridas
igualmente pela
precedente evanesceu (o sol é "negro", a estrela está ',morta,,). A passagem do tência. Essa construção de um universo pessoal se manifesta
noir,
real ao mito, do universo social ao universo natural, se explica pela impossibili- reapropriação subjetiva da linguagem. O recurso aos itálicos (étoile, soleil
ntélancolie, com a arte
fleur) podemos ficar emocionaclos com textos que nada tenham a ver
sugere a presença de um scntido oculto por trás
clo se'ti4o
aparente. Através dessa personalização do léxico
(uma obra científica ou um aviso fúnebre, por exemplo), até por
social, a linguagem do eu se
aconteci-
afirma contra a língua coletiva.
mentos (milhares de pessoas choraram no dia da vitória de obama).
o texto é igualmente estruturado por uma série de oposições que atestam Goodman afirma que
clivagem identitária do sujeito. o poema opõe,
a
Quando a emoção intervém na relação artística,
de futq dru, figuras femininas (a
ela tem inicialmente um interesse cognitivo: "Na experiência
estética,
santa e a fada), duas postulações religiosas (o cristianismo
e o paganismo) e duas obra possui e
ordens (a natural e a culturar). o eu oscila iguarmente a emoção é um.meio de discernir que propriedades uma
entre; afastamento e a nos permite
proximidade, o presente e o passado, as forças de exprime"31. Em outros termos, a emoção é um índice que
üda e as forças de morte. o outro
é ao mesmo tempo inalcançáver (terceira pessoa)
e interperado (segunda pessoa).
entender como a obra significa.

Na última estrofe, a conjunção porém avança sobre


a oposição, como se a vários textos literários parecem conÍirmar esse ponto de vista' vejamos
divisão estivesse superada. "El Desdichado", figura
da cisãq."a" trgr. a orfeu, fi- w ou Amemória de infância, de Perec. Lembremos que o livro é composto
de uma
gura da síntese. Passa-se do ,,otJ,, (,,Suis-je Amour
ou phébus? ...,, ,,,Lusignan ou da altemância de dois textos3z: o relato autobiográfico da vida
Biron?") ao "et" ("Les soupirs de la sainte ef les cris ulna
de la fée,,). O ,,tour à tour,, criança durante a segunda Guerra Mundial; uma ficção que evoca
regida pelo ideal ol'rmpico. o problema é que a autoridade Íulr-
responde à "tour abolie": a alternância substitui
a disjunção, a dualidade agora é cidade
positiva' Os efeitos de espelho do último verso com a
atesram uma coincidência enfim rativa, muito fiável porque, nos capítulos anteriores, confunde-se
reencontrada: os "CRIS" da fada se refletem nos ,,soupIRS,, de
da santa, o natural (a autoridade do autor, toma-se neutra, até complacente, na descrição
animalidade dos urros) no espiritual. passando puru
à feminino (a ,,lira,,de or- um sistema sobre o qual pouco a pouco se aprende que ele remete
obli-
feu), o instrumento poético (o "alaúde" do "despossuído") desse uni-
parece ter se tornado quamente ao universo concentracionário. Mesmo que o horror
mais eficaz. Tudo ocorre como se a clivagem identitária
e
va fosse reparada graças aos poderes da arte. o
consecutiva à perda afeti-
,r"rro esteja assinalado já desde o início, a inÍormação é logo esquecida,
eu sabe enfim quem é: um poeta. de tom mais leve.
o texto prossegue com um relato de aventuras clássico,
Na descrição da ilha propriamente dita (que só começa na2, prte
Ainda que sua dimensão estética definhe com o tempo, do tex-
a obra literária
permanece interessante, portanto, pelas significações ela se toma
que expressa. Mas atribuir to), a monstruosidade emerge muito gradualmente. Quando
tal privilégio ao conteúdo não é fechar as portas a uma que o
dimensão da relação ar_ explícit4 o leitor se dá conta de que deu todo o crédito a uma voz
tística a emoção tradicionalmente considerada como que
- - incontornáver? enganou com sua falsa "obietividade". Experimentado o mal-estar,
Examinemos essa objeção. chama a atenção sobre o dispositivo enunciativo, esclarece-se
um dos
desaÍios do texto: pôr em guarda contra a cega submissão à
autoridade.

Dizer que "na experiência estética as emoções funcionam cognitiaammte"ss


Emoção e infonnação também significa que a identificação de uma propriedade até então
desa-
mesma
percebida produznovas sensações. uma releifura não suscitará a
Não é tão inquestionável assim que a emoção entendida como ,.estado vejamos
- experiência de umaprimeiraleitur4 por definição não irúormada.
afetivo intenso"
- seja indispensável à relação arústica. Ficamos realmen_
te "mexidos" quando olhamos as caixas Biilo deA.dy
warhor ou a ,,Fon- cit', p' 290'
31 N. Goodman , Langage de l'art, op.
te" de Duchamp? Mesmo quando está presente, a emoção 32 Na realidade, a composição é ainda mais complexa: temos dois relatos ficcionais, e o
não poderi4
por si mesma, dar testemunho da dimensão artística discurso autobiográfico é um encadeamento de diferentes estratos'
de uma experiência: 33 N. Goodman, Langages de l'art, op. cit', p' 29'1"
A significação artística 101
,rt ,- tr. trt-^^ r,

que está imPlicada na metáfora, e a potência é algo que deve


ser
o incipit de O emprego do tempo de Butor: "Os clarões se multiplicaram"&.
sentido"3T .
Essas primeiras luzes, que parecem à primeira vista designar os clarões
da estação de Bleston (]acques Revel chega de trem), remetem de fato à re- o debate é complexo. o que me parece importante reter é a
distinção
velação que será trazídapela escrita (uma vez que o ÍErrador-personagem entre emoçáo manifesta (pelo texto) e emoção sentida (pelo
leitor)'
terá tomado a decisão de manter o diário cuja primeira frase temos aqui). ou' mais exata-
A emoção manifesta é aquela representada na obra -
Esse incipit se situa então, simultaneamente no plano do emrnciado e no refere: podemos identiÍicá-la como com-
mente, aquela à qual a obra se
da eru:nciação: os clarões são, ao mesmo temPo, os que vêm da estação e pode
ponente ào texto sem necessariamente partithá-la. Um romance
suscitar
aqueles que a escritatraz. É graças à autorreflexividade possibilitada pela pôr em cena Personagens tristes, angustiados ou jubilosos sem
pode
rekanscrição que Revel espera reatar os fios de sua existência alcançando no leitor tristeza, angústia ou júbilo' Do mesmo modo' o narrador
"admirável"
uma dupla revelaçãq sobre si mesmo e sobre a cidade. Mas esse duplo qualiÍicar determinado acontecimento de "horrível', ou de
"efeito de sentido" da frase de abertura só é perceplvel se já se sabe o que sem provocar horror nem admiração. Mas, seja ou não
partilhada pelo
Muito
vai ocorrer, ou seja por ocasião de uma segunda leitura que, corlsequen- leitor, essa emoção "denotada" não é desprovida de interesse.
a um colori-
temente, aumenta a intensidade de nossa relação com o texto. Em outro pelo contrário. Em literatura, todo conteúdo está associado
obra. Pode-
registro, dar-se conta de que Á aida - modo de usar é construída a partir do ào e*o.ior,al, que fazparteda informação transmitida pela
nas ciências,
salto do cavalo do xadrez3s ou nele localízar uma das muitas referências mos até mesmo afirmar que, diferentemente do que ocorre
emocional:
intertextuais muda nossa relação emocional com a obra. Para Goodman, a principal informação de um texto literário é esse colorido
morte'
está claro que as emoções só têm interesse quando tomadas em um pro- um romzu:Lce nos ensina muito pouco sobre o aÍnor ou sobre a
a morte'
cesso cognitivo que as subsuma: elas não têm valor em si mesmas. mas inÍinitamente mais sobre a relação com o arnor ou com

A emoção manifesta remete não apenas à emoção denotada, mas tam-


Esse ponto de vista é contestado por Danto. Para o autor de La Trans-
isto é, meta-
bém à emoção expressano sentido goodmaniano do termo,
figuration du banal, é claro que podemos entender um fenômeno sem
foricamente exemplificada. uma sinÍonia também pode exprimir
mu-
vivê-lq mas aí se perde a força da relação artística:
em literatura:
sicalmenteum sentimento de abandono. o mesmo ocorre
A descrição de uma metáfora não conseguiria ter a mesma potência
os textos quase sempre exemplificam emoções (a dor'
a insatisfação' a
da metáfora que ela descreve, assim como a descrição de um grito de metafo-
tristeza) por meio dL propriedades formais que as exprimem
angústia não produz as mesmas reações do próprio grito de angústia36. mecanizado
ricamente. A espurga dos diasexprime o horror do trabalho
viver
Em outros termos, uma obra de arte é irredutível a seu comentário recorrendo ao léxico infernal, e o teatro de Beckett, o tédio de
exatamente porque gera uma emoção: "É [...] a potência da obra recorrendo a estruturas repetitivas'

A emoção sentida, em contrapartida, não é aquela que o texto denota


I M. Butor, tEmptoi du temps. Paris: Minuit,'1956, p.9.
35 "Teria sido entediante descrever o imóvel andar por andar e aPartamento Por apaÍta- ouexprime,masaquelaqueeleproduznoleitor'Portanto'eladepende
que ela se
mento. Mas, por outro lado, a sucessão dos capítulos não poderia ser deixacla ao Puro acaso. menos do texto do que daquele que o 1ê. Mas pode ocorrer
pode
Decidi, então, aplicar um princípio derivado de um velho e bem conhecido problema dos conÍunda com a emoção manifesta (a tristeza de um personagem
amantes clo iogo de xaclrez: a poligrafia do cavalo (cf. François Le Lionnais, Dictionnairc das (o terror de
échccs. Paris: PUF,1974, p. 304-305); trata-se de fazer um cavalo percorrer as 64 casas c{e um rne entristecer), mas é frequentemente independente dela
tabuleiro sem jamais parar mais de uma vez na mesnla casa" (C. Pcrcc, Quatre Íigures çrour
l.,n aia nrcdc cl'unploi. LArc,76 [19791: 51).
um narrador pode me fazer sorrir ou a
angústia cre um personagem me
enterradas. Mas a conclusão brutal, até mesmo
cruel ("Ela não germi-
deixar perfeitamente indiferente). A emoção
nou"), me devolve duramente ao presente: que fiz
gerada (em conformidade ett' de meus desejos
ou não com a intenção do autor) tem, porém,
seu valor próprio: era nos
cle criança? Não rentrnciei muito facilmente
(por preguiça falta de en-
esclarece sobre a reração afetiva particurar
teriam levado por outro
com uma ideia, um pensamento ou um
que nós (reitàres) mantemos
vergadura ou de coragem) a aspirações que me
objeto do mundo. observemos Fico satisfeito
caminho a uma vida Àferentu da vida que é hoje a minha?
que essa emoção pessoar é, aos orhos de proust,
aquilo que há de mais evocação do passado
importante na relação com a obra de arte. quando faço um balanço? Então Por que é que essa
gem célebre, na qual o autor de Em busca
schaeffer evoca essa passa- d* pro-"ssas da inÍância me toca a esse ponto? Por que esse "púrpu-
" absoluta?
ses "celibatários da Arte" que "não
do tempo perdidofustiga es- rd' me surge de repente como investido de uma sedução
extraem nada de sua impressão,,38.
Para Proust, restringir a relação artística prosseguir nessa reflexão me levaria a uma autoanálise que não infligi-
à erudição é perder de vista o
que esse poema/ ao
essencial: a impressão subjetiva experienciada
pero i.,àirídro particu_ rei ao leitor. Meu propósito é simplesmente mostrar
sobre aquilo que sou'
lar e que deveria ser aprofundada. suscitar em mim uma emoção pode me esclarecer

Quando a emoção deixa de ser sentida, perde-se uma


importante di- Contudo,ointeressedotextonãoselimitaàquilodeparticularqueele
mensão da relação artística: aquilo que podeevocaraumleitorespecífico'seaemoçãosubjetivadesaparece(tal-
a obra nos ensina sobre nós
mesmos enquanto sujeitos aÍetivos e, rogo vezlquemsabe,umdiaeuvenhaaconsideraressepoemaindiferente)'
ideológicos (a ideologia é
algo diverso do modo como colorimos Semprepermaneceráosentidorelativoàemoçãodenotadaouexpressa
emocionarmente ideias?). Mas
remete ex-
se a emoção sentida se atenua, ou
até desaparece, subsiste a emoção qrui dir"r, obietiaamente manifesta' O texto de Saint-lohn Perse
textualizada, que sempre nos revera urgo plicitamenteànostalgia(comoaqueladeumCrusoéenvelhecido,que,
sÀb." o sujeito que está na
natureza e do mar)' à
origem da obra e a visão de mundo na qual
ele se inscreve. de retorno a Londres, recorda-se de sua llha da
arnargura (a "semente púrpura' não germinou;
o passado na ilha está
Reportemo-nos a um breve poema de
saint-John perse, intiturado para trás)' ao lamento e à
'A semente": definitivamente fora d" alcante; ninguém anda
dor(esedeixarailhativersidoumerro?).osentimentodeimpotênciaé
Em um vaso tu a enterraste, a semente e fechado que aparece
púrpura expresso pela palavra "vaso": espaço circunscrito
que permaneceu em tua veste de cabra.
Ela não germinou3e. comoumaimagemdegradadadailhaevocamaisoÚmuloqueoberço;
otesouroenterrad'o(asemente)transforma-sealinovasoemcadáver.
"Robinsori'' Tais
Estas duas frases geram emoção em
mim. E acho muito difícil formular "Crusoé", de qualquer ângulo que se olhe, nunca será
claramente suas propriedades: a evocação
de um tesouro derrisóriq mas emoções..textualizadas,,,namedidaemqueseinscrevememumamedi.
precioso, me faz pensar na inÍância o trágico da existência'
transforma-se, a meus olhos, em tação de alcance universal (sobre afugado tempo
uma imagem da inÍância. A "semente", - infrada um valor enquanto tais'
de possíveis, o .,púrpura,, os limites de nossa condição), têm, me Parece'
evocando os faustos de um mundo imaginário,
a "veste de cabra,,, meto- o mesmo/ segun-
úmia de todos os disfarces e de todos os 'tomo O lugar da emoção na relação artística náo é' então'
se,, despertam sensações obras do passado' À
do se considerem as obras contemporâneas ou as
e simulta-
" J.-M. Schaeffer, Les Allibataires de l,art, op. cit., p. BSS. leitura de um texto contemporâneo, a emoção é frequente
3e
Saint-John Perse, "La Graine,,, ,,Images'à
C."'r.ã", in: Eloges.paris: Gallimard, 1960 [ed.
neamentemanifestaesentida(oautorparticipadomesmoclimacul-
or.:1,911.1, p. 68. nos emociona
tural que nós, não raramente aquilo que o emocionou
tetn, então, por
tarnbém). Nas obras do passado, em contrapartida, a emoção é apenas determinaclo signo e a cclisa significac{a'. O entenclirnento
..denotado',, isto é, fundado eln um Consenso entre oS
manifesta: ao ler A noaa Heloísa, percebo a vontade do autor de me objeto o sentido
clo sentido literal
emocionar sem que eu, forçosamente, me emocione, quando, em sua falantes de determinada língua. Contestar a existência
não significam nada
origem, o texto de Rousseau fez correrem rios de lágrimas. equivaleria adizerque o texto se serve de signos que
antesdealguémseapoclerardeles,oqueevidentementeseriaumabsur-
Como a grande maioria das obras são uma herança de séculos passados,
do.Essesentidoobjetivoconvencional,partilhadopelacomunidadedos
percebemos essencialmente a emoção sob a perspectiva da inÍormação qualificá-lo de "sen-
falantes, está inscrito no cócligo da l'rngua: podemos
objetiva (e não como vetor de uma informação sobre nós mesmos). para da representação
tido linguístico". Ele remete a esse núcleo intersubjetivo
voltar à Noaa Heloísa, mesmo que eu não verta uma só lágrima por Ju- dizer nada' É graças à
sem o qual falar de "língua comund' não quereria
lie ou saint-Preux, o fato de Rousseau apresentá-los como emocionan- "vê" o que eu designo quan-
existência desse senüdo literal que cada um
tes é fundamental para destacar sua visão do homem e da sociedade. se seu próprio modo
do falo de um "pássaÍo",mesmo que cada um tenha
Rousseau quis que seus persoÍulgens fossem "tocaÍltes", mesmo quando sentido "partilhado",
de se representar um pássaro. Na ausência desse
"frágeis", é porque a autenticidade do sentimento tem, segundo ele, mais pela ficção' o
não se poderia conceber o mundo altemativo conskuído
valor que o respeito automático pela moral social. É porque toda socie- sentidolinguísticoestá,portanto,nofundamentodacomunicação:éem
dade deve, no plano político, respeitar a autonomia dos indivíduos que que o mundo
razáoda denotação das palavras, de seu poder referencial'
a compõem: a vontade e desemboca em uma
fundamento do eu autêntico
- -
não se delega. da ficção guarda um vínculo com o mundo real
EmÁ noaaHeloísa, a textualização dos sentimentos exprime obliquamen- sériederepresentaçõesmentaisparcialmenteintersubjetivas.
te um pensamento filosófico. Na maioria das obras literárias, a emoção
tem então inicialmente (mas não exclusivamente) um interesse cognitivo. Contudo,restringir-seàsignificaçãolinguísticadaspalavrasoudas
frases não permite apreender a significação da
obra: ficar nesse nível é
valor referencial
simplesmentu.h"gu. ao que existe de "partilhado" no
da linguagem. É, po, reduzir o sentido da frase: "Durante
Entender, interp tetaÍ| explicar "*"*plo,
muitotempo,fizubu,bulogoced.o',àrepresentaçãodeumindivíduo
fato de que ou-
masculino e de idade indeterminada confidenciando o
Ao cabo desse longo desenvolvimento, proponho distinguir claramen- e básica, pela
trora se barbeava logo cedo. Essa representação primeira
te as seguintes operações: entendey interpretay, explicar dar conta do
qual passa necessariamente toda leitura' não conseguiria
à relação com o tem-
Entender é identificar o sentido literal de um texto. que está em iogo no que diz respeito à memoria'
Interpretar é depreender algumas significaçõ es sintomáticas. po, à identidade, à escrita ou à relação com o leitorao'
Explicar é inclicar as causas dos conteúdos atualizados. seu interesse em
Se nos interessamos peio valor humano do texto' por
Especifiquemos as modalidades de cada uma dessas operações.
termosdeinformação,nãopodemosnoscontentalcomosentidolite-
bas-
Entender - E-.-*ryrr,idr, esse entendimento literal, apesar de recluto, pode perfeitamente
os desafios da frase para consi-
tar para a relação estética: não é inclispensável dãpreencler
como é possível apreciar um verso de Mallarmó
"Entender" é 'âssociar representações mentais às palavras", orr ainda derá_la bela e ter prazer em lêJa (assim
sem obrigatoriamente captar aquilo
deixando-se levar pela u"ãfçao p.i*eiru das palavras,
'âpreender intelectualmente a relação de significação que existe entre que ele exprime).
A AtSnVCAçflo firtWÍrCA tu',/
oLE

ral. Não basta constatar que a obra nos fala de algo; é


necessário saber também é resultado da combinação de representações existentes), o
o que é que ela nos diz. ora, no campo artísticq a expressão
vimos passa essencialmente pela forma. - como texto já exprime um conteúdo original: ele associa de maneira particu-
- lar as representações coletivas que nos servem para pensar o mundo.
O desaÍio de uma nova leitura é, portanto, atualizar conexões que não
aparecem (ou eram negligenciadas) nas leituras anteriores. Para seguir
Interpretar
com nosso exemplq uma abordagem "feminista" do personagem de
Na medida em que a literatura é um "sistema modelador Emma poderá basear-se na seguinte sequência: inÍeliz porque leitora;
secundário,,
(ela utiliza como material a linguagem, ou leitora por haver estado no convento; tendo estado no convento por-
seja, um sistema que já é sig-
nificante), parece legítimo distinguir o entendimento (que que mulher;Logo, infeliz porque mulher.
incide sobre
o sentido das palavras na ríngua) e a interpretação (que Bem entendido, as conexões que servem de fundamento para o gesto
se vincura às
apostas de um texto particular). para ser precisg entendo ,.inter- interpretativo não dizem respeito apenas ao referente; elas existem em
por
pretação" o gesto (crítico) que consiste em depreender todos os níveis do texto.
algumas signifi-
cações sintomáticas do texto com base na conÍiguração
específica dele. As mais interessantes conexões são as relações de ordem lógica entre
Claro que é necessário expricar a escolha dos termos "significação,, dois acontecimentos da história, à primeira vista, independentes, mas
e
"sintomática". entre os quais o texto sugere uma aproximação. Façamos uma incur-
são pelas histórias em quadrinhos. Quando leio o álbum de Tintin, O fe-
Inicialmente, não entendo por "significação" uma
série de ,,senüdos se- souro de Rackam, o Terríael, a história faz o relato de dois acontecimentos
gundos" que seriam adicionados ao sentido linguístico de vulto: uma caÇa ao tesouro em uma ilha perdida no maÍ; a aquisição
em f,nção dos
contextos de recepçãoal. As significações são dados do castelo de Moulinsart, que permitirá constituir a"f.ar".úlid' (Girassol
do próprio texto, t*tto
quanto o sentido linguístico; simplesmente, elas são mais e Haddock ali habitarão, e Tintin irá encontrálos 1á regularmente). Não
dificeis de iden_
tificar, na medida em que não se manifestam direta há relação direta entre os dois acontecimentos. O vínculo (tênue) de-
mas obriquamente,
por meio de conexões que não são (sempre) imediatamente corre do fato de Girassol ter aproveitado a caça ao tesouro para testar
visíveis.
um submarinq cuja patente lhe proporcionará recursos para comprar
Essas conexões já intervêm no níver do referente. Rearmente, o tex-
o castelo. Se o texto sugere um vínculo mais profundo é porque a expe-
to literário constrói seus objetos reportando-se a uma série
de re- dição fracassa (o tesouro que se caçava encontrava-se em Moulinsart),
presentações mentais que lhe preexistem. A personagem
de Emma mas desemboca concretamente no advento de uma pequena comunida-
Bovary é, assim, resultado de representações culturais
associadas aos de. Bem poderia ser que o "tesouro" evocado pelo título não fosse aque-
termos "mulher", "interiorana',, ,,bela,,,,,jovem,,, ,,151ãe,,, ,,adí!tera,,, le que se pensava que era: um "tesouro" afetivo e interno se superpôs
"infeliz" etc. e da conexõo que o texto sugere entre ao tesouro concreto; é ele que permite o êxito do empreendimento, mas
essas representa-
ções: 'Adúltera" porque "bera" e "interior ana"; ad{trtera porque ,,jo- em um plano distinto do êxito material. A aventura no mar, longa busca
vem" e "be\a"; "inÍeliz" porque "interioran a,,; ,infeliz,, iniciática era, porém, necessária para essa tomada de consciência
porque ,,mãe,, -
de
etc. Ao construir um personagem ou um objeto (o onde a relação causal entre os dois acontecimentos.
barrete de Charres
Poderíamos certamente identificar funcionamentos da mesma ordem
''r Não utilizo o termo no sentido
cle Hirsch (ver supra, p. g0).
em qualquer texto literário. Podemos, por exemplo, estabelecer um vín-
culo causal , no Germinal, entre uma aventura que se passa durante boa haveráumvínculoentreomovimentoeaaberturaàbeleza(queseria
parte do tempo nas entranhas da terra (a mina) e a última cena, na qual derivadaentão,dadesmaterializaçáodomundoreal?)entreaviagem
(através de si)? Entre
o protagonista, Étienne Lantier, por fim se "encontrou", como se a via- exterior (possibilitadapelo trem) e aviageminterior
gem ao interior de si, nas profundezas da psique, fosse um pré-requisi- vivida como uma saída do tempo eo sentimento
a sensução da duração,
to para a apreensão de sua identidade. As conexões também podem ser deliberdade?Naescalad.oconjuntodorelato,porqueterescolhidoevo-
de uma pequena tropa em
car danada da guerrd' através do cotidiano
feitas no plano local: em o aice-cônsul, de Duras, existe um vínculo en- ,,a
designado pelo título)?
tre a fobia da lepra (que ataca a fronteira constituída pela pele) e o modo uma fortaleza de Ardennes (o "balcão na florestd'
texto entre o sentimento
de ver se fissurarem as barreiras "protetoras" que separam os indianos O que é que exprime a conexão sugerida pelo
dos ocidentais. A maioria das análises temáticas equivalem, de fato, ao (individuai)deviverumsonhoacordadoeaexpectativa(coletiva)do
que se pode perfeitamente
estabelecimento das relações de causalidade entre dois elementosa2. desencadeamento das hostilidades? Notemos
responderaessasperguntassemrecorreràintençãodoautor:aidentifi-
As conexões sugeridas pelo texto não se limitam, muito ao contrário, às
caçãodassignificaçõessintomáticas_aquiloqueeuchamodea..inter-
relações de ordem lógica. Pode se tratar de paralelismos (a noite interior/a
pelação" é apenas uma explicitação daintentro operis'
noite exterior), de oposições (o alto e o baixo; o fechado e o aberto), de -
associadas à forma é
repetições (de acontecimentos, de palavras, de estruturas), de aprofun- se qualifico de "sintomáticas" essas significações
damentos (especificaçãq desenvolvimentg intensificação) etc.; mas, em porqr"elassão"segundas","ind'iretas"enãonecessariamentevolun-
tárias. Pode até ser que algumas entre elas
respondam a um proieto ex-
todos os casos/ é o relacionamento entre componentes do texto que, à
texto literário, distinguir
primeira vista, não estavam relacionados que funda a interpretação. plícito do autor; Inu, p,"t",.der, em face de um
e sentido não intencionado me parece
muito arris-
sentido intencionado
Hergé inscreve
Em síntese, interpretar consiste em dar conta, tanto no nível local como cado e, ao fim e ao cabq sem muito interesse' Quando
.,romance familiar,,, ou quando
no nível globaf do duplo gesto de selefio (por que o texto optou por essa em um álbum uma versão pessoal do
conÍiguração aí?) e de combinação (que significações podem ser lidas nas GracqencenaumgostopelasolidãotãopronunciadoqueaPresença
relações entre elementos textuais?). vejamos o início de Llm balcon en do outro (especialÃnte feminino) não é
mais indispensável, é intencio-

forêt: "Depois que seu trem deixou para trás os subúrbios e os vapores nalounão?Sóalguémmuitoastutopoderiaresponderaisso.oimpor-
de charleville, parecia ao aspirante Grange que a feiura do mundo se tanteéqueotextofalaefetivamentededeterminadonúmerodecoisas:
dissipava"a3. No plano da seleçãq por que falar de 'b aspirante Gran- queessascoisasresultemdeumaexpressãoconsciente,semiconsciente
ge" em vez, pot exemplq do "tenente Grange", ou mais simplesmente outotalmenteinvoluntárianãotemincidênciasobreointeresseque
"GtaÍrge", ou ainda, de modo anônimq de "um oficial"? Seria por causa elaspodemsuscitarnoleitor.Confudo,nãoestamosimpedidosdeper-
Mas' nesse momento'
das conotações do termo 'hspirante" guê, além de sua significação guntar Por que um texto exprime o que exprime'
militar, remete à 'âspiração",
- á"i*amos a interpretafio e partimos para a explicação'
isto é, ao desejg à aberfura ao mundo? No
plano da combinação, não se poderiam estabelecer outras conexões além
dessa explicitamente formulada entre o espaço industrial e a feiura? Não
Explícar
a2 A pertinência das análises em questão está claramente em função do número de indícios esse conteúdo
que permitam estabelecer a relação.
"Qual é o conteúdo do texto?" e "por que ele apresenta
A visão deses-
8 f. Cracq, Un halcon en
forêt, op. cit., p. 9. aqui?" são, realmente, duas perguntas muito distintas'
A significa@o artística
POR pUE ESTUDÁR ttrttarUnA?

o conjunto de fatores que


perada (e burlesca) da existência que a peça de Beckett, Fim de partida, Uma resposta satisfatória deveria abranger
veicula me interessa na medida em que, ao me fazer pensar, alimenta levaram}ânioQuadrosarenunciar:apersonalidadedoex-presidente,
meu ponto de vista sobre o mundo e a vida. Mas inquirir para saber asituaçãopolítico-econômicadoBrasil,aconjunturahis|óricaquele-
eti. Existem di-
de onde vem essa visão sem concessão (do espírito do tempo? da bio- vou o país aos próximos acontecimentos pós-renúncia
sempre possível remontar mais
grafia de Beckett? da lógica interna à hlstória do teatro? de uma cola- ferentes modelos explicativos Porque é
gem de influências culturais?) é um procedimento diferente, que não é ou menos longe na escalada das causas'
se limitar à explicação cau-
indispensável à identificação dos desafios da peça. Do mesmo modo, Contudo, uma análise literária não deveria
dos fatores que a gera-
não há a menor necessidade, paÍa apreender a lei da gravidade, de sal. Se a obra não passar de uma consequência
sistema complexo' a obra
conhecer as etapas intelectuais, psicológicas ou emocionais pelas quais ram, não haverá sentido novo' Como todo
ela é sempre mais diversa do
Newton passou para formulá-la: podemos entender a gravitação sem manifesta propriedades "emergentes"45:
saber isso e mesmo sem saber nada da vida de Newtory até mesmo queoconjuntodascausasqueaproduziram.otextopodeserparcial-
em contrapartida' nunca
ignorando ter ele existido. mente explicado pelo estado do mundo' mas'
deixa de modificar esse mesmo mundo6'
Portanto, é preciso distinguir duas operações que a crítica quase sem-
para distinguir com precisão as diferentes operações em
jogo quando
pre conÍunde: identificar as significações veiculadas pelo texto; expli-
car causalmente a presença dessas significações perguntando-se de nosaPegamosaosentidodeumtextoliterário,concentremo-nos/pala
da primeira frase do Vice-
onde elas vêmaa. concluir, em um exemplo preciso' Trata-se
Morgan"aT'
-c\nsulde Duras: "Ela caminha/ escreve Peter
Muito evidentemente, entre as causas que explicam as significações de
um texto, está o projeto intencional do autor pelo qual podemos nos Afasedeentendimentoconsisteemassociaroenunciadoaumconjunto
- derepresentaçõesmentaiscombaseno..sentido',literaldaspalavras,
interessar desse ponto de aista. Mas há também uma série de causas não
de sexo feminino se desloca
intencionais (a sociedade, a história, a cultura, a biografia etc.). Para o que equivale quase a: "lJm personagem
a pé de um lugar para outro; esse
acontecimento é retranscrito por um
retomar o exemplo de Fim de partida, é claro que a questão de saber
peÍsonagem masculino, cujo nome tem
uma consonância anglo-saxô-
se a existência merece ser vivida é tributária do contexto do imediato
mesmo que/
pós-segunda guerra (a peça data de 1956), do impasse de determinada .,i.u,,. É ãifi.it questionar esse primeiro entendimento -
evidentemente, algumas ifuormações necessárias possam estar faltan-
forma de teatro, da renovação da reflexão sobre a linguagem, ou ainda
"Peter Morgan" baseia-se em
da relação problemática de Beckett com a família e outras figuras pa- do (a conotuçao u.,gto-saxônica do nome
pode carecer)'
rentais. A lista certamente não se esgotaria: uma inÍinidade de causas um saber cultural de que um leitor mediano
entram em ação para se poder produzir determinado efeito. Diante em depreender algumas
Na fase de interpretação, nos concentraremos
da pergunta: "O que é que provocou a renúncia de jânio Quadros?", do enunciado e às co-
significações sintomáticas ligadas à conÍiguração
todos conviremos que a resposta "forças ocultas" é bastante sumária.
a5 Yer sttpra, P.23
do século
aa Por isso, mesmo que, contrariamente a Schaeffer, eu não penso quc significação dc unr
"tr
ií, os textos clas I-uzes certarnente resultam clo contexto da primeira metade
não cleixam de ter influência sobrc a
texb seja a significação que seu falante lhe deu" (Les Cúlihntniras dc l'nrt, op. cll., p. 307), cu «r XVItJ (c c.lo Íirn an .c.rto iíII); err.r contraparticla'
,'..:,..',ra ,1,.. ,{iqlrirhios nrtlíticos.tur.t *r.'sr,c".1cram a partir dos irnos 1780'
nexões que possamos estaberecer entre
os erementos que o compõeln.
A frase se apresenta como um quiasmo: sujeito/verbo/verbo/sujeito.
Esse dispositivo (anna) subrinha uma oposição dupra:
O VALOR
entre uma figura
anônima ("ela") e umpersonagem dotado
de uma identidade social so-
lidamente estaberecida ("peter Morgan,,);
entre uma reração imediata
com o mundo ("caminhar") e uma relação
distanciada, que supõe certo
recuo ("escrever"). A ordem das frases revera,
por fim, uma reração de
dependência: o caminhar da murher anônima
está subordinado à es_
crita do personagem mascurino. Determinadas
conexões (que serão ou
não confirmadas pera sequência do texto)
são sugeridas: entre a iden_
tidade social e a situação de poder (no que
se refere a peter Morgan);
entre a feminidade, a situação de dependência
e o anonimato (no que Valor estético e valor artístico
se refere à "caminhante"); entre a escrita
e o poder; entre a escrita e a
identidade; entre a vida imediata, que encara
o mundo tar como ere é, alar de "valor estético" geralmente suscita um
e a vida mediatizada, "recriada" pela escrita.
Ao dizer as coisas desse sorriso condescendente. Realmente a questão é
modo, o texto exprime significações diversas
(política, feminista, exis- astuciosa: o valor estético não se demonstra pela
tencial, fenomenológica, metariterária), algumas
das quais estão por boa e simples razáo de que ele não tem existên-
cia objetiva. Podemos aÍnar ou odiar a pop art'
ser conceituarizadas (como a ideia, probremática, a
de qrr" u imersão
no mundo tarvez tenha mais varor que a relação
reflexiva e distante música de Wagner, ou a poesia de Victor Hugo:
permitida pela escrita) e que iluminam dimensões porém' não é 1á muito
do humano (espe_ ffi"*a questão de gosto' Na prátic4 valor' Conse-
cialmente através das questões da identidade e da fácit, como vimosl, sePaÍar a arte da questão do
- arteridade
- as aparenta'
relações entre sexos, classes sociais ou
grupos nacionais). quentemente, o problema é mais complexo que
em iinguagem corrente per-
Finalmente, na fase de expricação, vamos
perguntar por que o enuncia- Julgar a obra no plano estético
é
- -
do exprime esses conteúdos (pergunta facultativa se ela suscita o sentimento do belo. Ora
esse sentimento é pu-
ã ina"p".,aente da ú* parece definitiva:
interpretação). para responder, poderemos
nos interessar pero projeto ramente subjetivo. Nesse sentidq a posição de Kant
de Duras (causa intencional), mas também mediante
peros aconteciientos que Não pode haver regra objetiva do gosto que determine
ela viveu, pela estrutura familiar que marcou juízo provindo dessa fonte
seu imaginário, por sua um conceito o qrr" ã b"lo' Porque todo
é o sentimento do
formação literária e interectuar, pera situação é estético, isto é: seu princípi'o determinante
da literatura nos anos do gosto'
1960 ou pelo contexto político e ideológico sujeito, não um conceito do objeto' Buscar um princípio
da época. que indicaria por conceitos determinados o critério universal
que se busca é
se a busca do sentido está no fundamento do belo, é um empreenclimento estéril' Porque o
da reração artística, torna-se
possível abordar sob um novo ânguro impossível e, em si mesmo, contraditório2'
a questão, fortemente debatid4
do valor da arte.
I Ver o caPítulo 1.
2 Citique de la faculté de juger, op' cit', p'1'00'
O oalor 115
POR QUE ESTUDÁR ttrrnarup.e?

o fato de uma obra veicular mais ou menos saberes (mais ou menos inte-
Disso Schaeffer conclui que o juízo estético é apenas a verbalização de
ressantes) nada tem aver com o fato de ela seÍ considerada esteticamente
um sentimento de prazer (ou de desprazer) inevitavelmente pessoal3.
bem-sucedida ou não. É claro que podemos considerar que uma obra
Quando se diz que uma obra é bela, o que se está dizendo é que ela "cul-
que suscita o interesse sem suscitar o Pra7jet rtáo faz mais parte da
simplesmente nos agrada. Podemos, é 6bvío, nos interessar por uma
tura artístic avld'6;mas também Podemos defender a Posição contrária:
obra de arte em razáo de suas propriedades objetivas (sua temática,
apenas uma obra que continua a interessar quando sua sedução não
atua
sua identidade genéricA suas apostas explícitas ou implícitas etc.); mas
mais (em outras palavras, que sobrevive ao "espírito do tempo") constifui
esse tipo de atenção não afeta o juízo estético que se fará dela. Um tex-
to pode nos interessar seÍflnos agradar. LogO há sentido em distinguir um valor seguro. simetricamente, as obras que hoje "agradam" ao maior
radicalmente relação estética de relação artísticaa. A partir de agora, número por razões conjunturais não resistirão necessariamente à prova
passarei a entender por "estético" aquilo que remete ao sentimento do dos sécuios se não tiverem nada (ou gÍande coisa) adizen

belo e por "artístico" aquilo que designa nossa relação com a obra de Como Schaeffer concede ao final d'os Célibataires de l'art, existem clara-
arte (que não apenas não se limita ao sentimento do belo, como talvez mente duas relações possíveis com a obra de arte: a atenção estética,
nem tenha necessidade dele). de um lado; a relação de interesse, de outroT. Podemos considerar
(com
proust) que é só a primeira que vale. Por outro lado, também é verdade
O valor artístico, com efeito, nada tem de ilusório se o definimos como
"valor cognitivo resultante do trabalho formal"s. Trata-se de um dado que a segunda também tem legitimidade, especialmente porque pode
objetivo que não está vinculado à variabiliclade dos públicos: basta, desembocar em uma forma de prazeç que talvez não esteja tão afasta-
para medi-lo, identificar os saberes efetivamente inscritos na obra - o da do prazeÍ estético:
que corresponde ao trabalho incessante e multissecular cla crítica. É se a descrição que esbocei estiver correta, o prazer estético é inseparável
claro que um objeto só tem valor relativamente ao uso que se decida de uma atitude cognitiva (perceptiva e conceitual) e, portanto, também
fazer dele. Se, mesmo assim, os critérios de avaliação não são inteira- inseparável de uma atenção contínua àquilo que a obra de arte pode nos
mente contingentes, é porque alguns objetos são mais bem adequados ensinar desde que entendamos que os conhecimentos transmitidos
-
pelas obras são os mais diversos, a depender da obra' dos gêneros e
a certos usos que outros. Ora, as obras literárias, por sua própria gê-
àas artes. Por fim, esse conhecimento, que encontra sua fonte nas artes
nese (o projeto estético), ou por sua configuração (sobrevalorização do não é cliferente (nem superioÍ, nem inferior) daquele que alcançamos
significante) estão estruturalmente votadas a exprimir coisas originais, pelas outras vias cognitivas, quer se trate da experiência cotidiana, da
até mesmo inesperadas. reflexão filosófica ou dos saberes científicos: é justamente nisso que ela
nos importa e nisso que ela pode enriquecer nossa vic{a8'
t J.-M. SchaefÍer, Les Célibntaires de l'art, op. cit., p.202'203. "cada
a Mesmo que a maioria dos teóricos realmente as diferencie, geralmente eles continuam se a questão do interesse é primordial, não vemos bem por que
a pensá-las uma ligada à outra. É assim que, para Genette, "a função artística é apenas um cleva resolver essa questão por si mesmo"e' A resposta pode -
um caso particular de relação estética" (La Relation esthétique, op. cit., p. 9). Em outros ter-
até mesmo deae basear-se nas propriedades do objeto que, depois
mos, a primeira se superpõe à segunda: ao fazer intervirem "clados 'genéticos' (técnicos ou -
conceituais)", a apreciação artísticn acrescenta ao prazer estético um Prazer de couhecimcnto
(ilridc»t, p.221). Mas, se aclmitirmos que o juízo estético ("acho essa obra lincla") e' a aprccia-
J.-M. Sclrt'rcfíer, l-as Cólibntnirr:s dc l'nrt, op. cit., P' 230'
vc'r, por quo Íazt'l'o nt'tístico clcpcn-
ção artística ("acho essa obra interessantc") nacla tôm a lbidam,p.354,
r'L'r do cst('tico? .i . ... .:r .- aol-
Ooalor 717

sinal' amplamente partilhado'


O ponto de vista que defendo aqui é'por
de terem sido identificadas, the conÍerem um valor. Se for impossível
provar que uma frase longa é mais "bela" que uma frase "curtd', Po- Seovalordeumaobraliteráriaestava_ ainda'paranós-priorita-
que a maioria dos clássicos nos
demos perfeitamente demonstrar que um texto é hermeneuticamente riamente ligado à fruição estética' por
paÍa o público não especiali-
mais rico que outro. seria apresentada (inclusive nas edições

podemos apreciar algu-


zado)atravésdeumaparatocrítico(notícia,prefácioenotas)destinado
Quaisquer que sejam nossos gostos pessoais, do comentário nos textos consa-
que a especificar seus desafios? A invasão
mas obras por suas propriedades objetivas - no caso' os saberes que o que esperamos de
e respeitar' grados pela posterid'ade basta para mostrar
elas veiculam. Por isso, se pod.emos ao mesmo tempo amar formal' O mesmo ocorre nos
Podemos uma obra literária não se limita ao PrazeÍ
podemos também amar sem respeitar ou respeitar sem aÍnar. são' em geral' dotados
outros domínios da arte' Os libretos de ópera
respeitar (dou exemplos ao acaso) A canção de Roland ot A diuina
comédia
presentes na maioria dos
nos dar de uma notícia introdutória; os "aud'ioguias"
sem sentir pÍazer em lê-los. Simetricamente, uma obra pode Tudo se passa como se
museus ajudam na identificação dos conteúdos'
prazeÍ por razões estritamente subjetivas: basta que ela desperte nossa
da emoção' como se tivésse-
memória afetiva que evoque temas ou ambientes que nos sejam
calos/ procurássemos na obra de arte algo além
um saber'
ou ainda mais simplesmente, que esteja associada a uma situação
posi- mos necessidade de atingiç através dela'
per- desse objetos de arte
tiva de leitura. Para sair, por um instante, do campo literário, posso Vejamos, a1oÍa,o que é feito do valor específico
pela qual
feitamente me sentir emocionado pol uma série de televisão particulares que são as obras literárias'
os Perso-
eu não tenha a menor consideração: o argumento é grosseiro,
nela
nagens são convencionais, a história é estereotipada, mas encontro
algo (sem dúvida ligado ao contexto no qual eu a assisti pela primeira
vez) que me toca pessoalmente. Para dizer as coisas cruamente,
pode-se O valor literário
Bond do
ter mais pÍazeÍ assistindo a um dos filmes da franquialames
segundo Seariquezasemânticaéumacaracterísticadetodaobradearte'ela
que a um filme de Godard, mesmo tendo mais respeito pelo literárial2. A arte verbal - cuja
Rochlitz tem uma densidade particular na obra
do que pelo primeiro. É a uma distinção da mesma ordem que de em que se fundamenta a lin-
indepen- matéria é o conjunto
parece se referir quando evoca uma "racionalidade estética" '"pr"sentações qualitativa (ela
ou guagem apresenta ao mesmo tempo uma vantagem
dente d,o jtÁzo de gosto: "Para julgar um objeto cuja identificação - e quantitativa (remete a uma
vista é é tomada diretamente do pensamento)
entendimento são difíceis, é preciso aprender de que ponto de
de gostar multiplicidadedeconteúdos).Vincularovalordeumaobraaoconhe-
pertinente julgar suas qualidades, o que não é a mesma coisa nutrido de humanida-
seria cimento que ela nos traz é, paraum ocidental
ou de não gostar dele"1o. Nessa perspectiva, o papel do crítico não
nos mostrar des, da ordem da evidência' Como o
explica Compagnon'Z essa visão é
tanto nos fazer apreciar (subjetivamente) um textq e sim de
em que sentido ele é (objetivamente) interessantell' comum aos antigos e aos modernos:

p' 154' rc.flcxãoirrclica,seucritériodeavaliaçãoPaÍeceseracapacidaclecleasobrasconsiclcraclas


Rã*hl*/Á, au bnnc tl'essni: csthétíquc et critiqtre.Paris: Gallirnarcl, 1998, nrundo'
",
il Fintrlmcnte, não cstamos muib longej cla conccpÇão t1o Cltttttltntrrr, (lttc, P()r julgar nãtt rlcscnvolvt'rcnl nosso cntelrclimclrkl dtl Íorrnais: clal scnrprc ltlvgtt
r., r/r."..'r,.'.',. ,' ,.r,,rli,rr'ã. litoráriir iatrrais st'lirnikru às clualic{aclos
,rt "* tr..rr-^^ ., O aalor 1]9

Segundo Aristóteles, Horácio


-ÉlE- computador. o programa a partir do léxico utilizado emFlores do mal
e toda a tradição clássica, esse conhecimento
tem por objeto o que é geral, provável ou verossimilhante, a doxa, as e baseado em estruturas tipo (o soneto, o alexandrino, a
frase "baude-
sentenças e máximas que permitem regular o comportamento humano
Iairiana" etc.) podia produzir mecanicamente e quase ao infinito tex-
e a vida social. Segundo a visão romântica, esse conhecimento incide, ,,baudelairianos". os poemas/ que tinham me emocionado tanto
tos
sobretudo, sobre aquilo que é individual e singular. A continuidade,
enquanto acreditei serem de Baudelaire, perderam então todo
interesse:
contudq permzrnece profunda, de Paolo e Francesca que, em A ditsina
comédia, apaixonam-se um pelo outro lendo os rom;Lnces da Távola inteiramente produzidos ao acaso, eles não tinham nem mais vida
Redonda, a Dom Quixote, que operacionaliza os romances de cavalaria, nem mais esplendor. A conclusão a que chego é que textos gerados por
e a Madame Bovary, intoxicada pelos romances sentimentais que computador são como rostos que acreditamos reconhecer nas nuvens:
devora. Essas obras voluntariamente paródicas provam a função de
na medida em que, sendo contingentes, eles não exprimem nada, seu
aprendizagem atribuída à literaturai3.
estatuto "artístico" é problemático. Como Rochlitz observa'
Haveria, então, uma forma de saber que se encontraria exclusivamente valha a
é necessário que uma obra de arte represente uma aposta que
na literatura e à qual só se poderia chegar pela literatura. pena e que focalize o interesse, sem o que a coerência de uma forma
geométrica propriamente traçada, de um alinhamento de frases

gramaticalmente irrepreensíveis bastaria para fundar o valor da


artela.

O interesse como crftérto


Mas não havíamos dito que uma obra literária podia veicular tanto
o

saber mais interessante quanto os estereótipos mais batidos?15


O tipo
Que o valor de uma obra literária dependa em grande parte de sua
riqueza cognitiva todo leitor pode comprovar: quem é que nunca se de conhecimento inscrito em um texto é exatamente o critério deci-
pegou apreciando um texto depois de tê-lo estudado, isto é, uma vez sivo que permite traçar uma fronteira entre as "grandes" obras e as
restantes. se o saber transmitido pela obra resulta semPre
do humano
atualizada uma parte daquilo que ele exprime? A avaliação artística
sem
não pode negligenciar a questão do conteúdo. (é decorrência daquilo que um sujeito exprime quando escreve
restrições nem finalidade claramente estabelecida), ele só terá valor
em
Partirei, para demonstrar isso, de um episódio pessoal. Por ocasião de
dois casos específicos: quando apresenta um caráter inédito; quando
um colóquio intitulado: 'A leitura: da página à tela", um colega me
remete a uma questão essenciall|. o interesse de uma leitura decorre
deu uma notícia extraordinária: haviam sido descobertos inéditos de
efetivamente tanto da descobertá de uma dimensão de nós mesmos
Baudelaire. Como ele os baixara em um computaclor portátil, me pro-
até então inexplorada, como do sentimento de sermos confrontados
pôs vê-los. Aceitei com enfusiasmo. Tive, assim, a emoção de ver des-
com uma questão fundamental. O primeiro caso explica a dimensão
filarem na tela poemas notáveis que pareceriam provir diretamente
histórica da arte (o inédito é sempre relativo a um contexto cultural); o
de Elores do mal: as imagens, as rimas, a temática me eram familiares;
segundo, a "universalidade" creditada a determinados textos.
mesmo assim a constatação se impôs a mim nunca lera aque-
-
les textos. Enquanto olhava para meu colega com incredulidade, ele
r{ R. Rochlitz, tArt nu banc d'essai: esthétique et critique, op' cit', p' 20L'
me deu, sorrindq a explicação que o leitor já adivinhou: não se tratava ts Yer supra, p. 88-89.
(quanto a isSO
de inéditos de Baudelaire, mas de textos gerados aleatoriamente por 16Com i,r.o .rao quero ciizer que não exista uma natureza humana universal
comPonentes da existência o deseio o sofri-
não tcnho opiniãã formada), mas quc alguns - a cac{a um cntrc
mcnto, il crinsciênciir cla nrortc ctc. _. itrtcressam, pela força das coisas,
,r, "- t- rrrrr^^ r, O oalor Xrt

não é
As obras atravessam o tempo ou porque nem sempre se conceitualizort. Como tantos filósofos repetiram descle Frege, o enunciado de ficção
o conjunto de saberes de que elas são portadoras, ou porque tocam nem verdadeiro nem falso (mas apenas, teria dito Aristóteles,
"possíver'),
ou é simultaneamente verdadeiro e falso: ele está além ou aquém do
algo de profundo que continua, senão a fascinar, pelo menos a interes-
sar. Os discursos que são atualmente objeto de zombaria sobre as obras verdadeiro e do falso, e o contrato paradoxal de irresponsabilidade
do
recíproca que ele mantém com seu receptor é um emblema perfeito
"ricas de verdade humana" talvez não sejam tão ridículos quanto pare-
famoso desinteressamento estéticole'
cem. Convém simplesmente esclarecer que a "verdade humana" veicu-
area-
lada pela obra não é forçosamente a glória do homem. Um texto pode As obras romanescas também se beneficiam, em sua relação com
perfeitamente tomar o contrapé de alguns discursos apaziguadores lidade, de uma flexibilidade extraordinária que lhes permite explorar
disso-
sobre o humanismolT, ou até mesmo mostrar que a própria ideia de todas as virtualidades da existência. Elas podem, Por exemplo,
poé-
sujeito humano não faz sentidols. ciar o que geralmente está mesclado (razáoprosaica e imaginação
ou mesclar
Notemos que essa abordagem da obra literária corresponde perfeita- tica estão noDom Quixoteencarnadas em dois personagens)
mente à prátic4 tanto dos críticos, dos acadêmicos como, mais global- aquilo que é normalmente separado (reunindo em uma mesma cena
um motoqueiro da atualidade e um cavaleiro do século xvl[, o
narra-
mente, das instituições. Quando se trata de avaliar uma obra do pas-
de fe-
sado, não nos perguntamos se a sua forma ainda pode nos tocar (uma dor de Alentidãomedita respectivamente sobre suas concepções
Iicidade e de dignidade)2o. Ao nos envolver em um mundo que não
éa
forma datada não basta felizmente para desacreditar uma obra
- -
literária). As perguntas que faremos serão do tipo: o que o texto expri- realidade, mas que se assemelh a a elaÊl, as ficções nos levam,
portanto,
a reavaliar o mundo onde vivemos. Essa acusação do
real pelo virfual
me escapa aos clichês de sua época? A originalidade da obra é ainda
de
hoje perceptível? O que é que faz com que a obra continue a nos falar? às vezes é tematizada no seio da obra, como em Cristóaão Nonato,
Carlos Fuentesz, que nos conÍronta com um México de ficção que
é
Ainda falta examinar como o texto se articula para fazer emergir esse
difícil de não relacionar com o México real'
saber (inédito ou essencial) que está na base de seu valor.
Mas as ficções não estão liberadas apenas das regras da verossimilhan-
das restrições de ordem ética. o im-
ça. Elas também estão liberadas
O inédito portante em uma obra de arte não é sua conÍormidade com os valores
Uma obra
estabelecidos (o que restaria se fôssemos seguir esse critério?)'
O texto literário pode manifestar conteúdos singulares porque não ar-
pode ser moralmente duvidosa/ sem nem por isso perder seu valor
tem de levar em conta nem exigências da realidade, nem exigências decorre dos saberes que
ústico (qru insistamos nisso mais uma vez
da moralidade. - - o bem ou
ela veicula). Não se trata de determinar se um texto representa
Isso é evidente no caso das ficções que constituem a maior porção
- 1e G. Genette, Ficüon et diction, op. cit., p.99.
do campo literário. Situando-se externamente à oposição verdadeiro/
20 Cf. M. Kundera, Á lentidão. São Paulo: Cia' das Letras' 2011'
falsq elas não estão presas nem a uma obrigação de verdade, nem a
Aqui podemos nos lembrar das afirmações de M. Kundera: "o romance
21 não examina a
respeitar a verossimilhança. Nota Genette: realidacle,esimaexistência.Eaexistêncianãoéoquesepassou,aexistênciaéocampodas
de que ele é capaz..
possibiliclades humanas, tudo o que homem pode. vir a ser, tudo aquilo
o *upu da existência descobrindo essa ou aquela possibilidacle
os romancistas desenharn
17
Basta pensar nos relatos cle Juan Gotysolo ou cle Thomas Bernhard. humana" lfArt du ramant (,p. cit', p' 57)'
O oalor 723
POR QUE ESTUDAR LITERAruRA?

o mal, mas daquilo que ele expime sobre o bem ou sobre o mal. Logo não decepcionada2s)outemática(considerartodaformadevidacolnoum
"o laboratório
crime2e). A arte, como observa J. Morizot, iustamente
é
é o caso de seguir Danto, quando ele aÍirma que existem sujeitos de cuja
simbólica"30. Poderíamos
arte não devemos nos apoderar: segundo o autor de La Transfiguration mais inventivo e mais instrutivo da atividade
ainda resta por desco-
dubanal, é imoral representar artisticamente, ou seja, "pôr em perspecti- pensar que, com o temPo, o campo daquilo que
Mas
va", coisas sobre as quais deveríamos na verdade agrr". Isso é esquecer trir (portanto, o interesse das obras) inevitavelmente se restringe.
tazáo de que o homem
a existência do contrato de leitura ficcional, que funciona para a quase evidentemente esse não é o caso pela simples
sendo a dor' a
totalidade do campo artístico. Como o explica Schaeffer, a leitura de fic- evolui com seu ambiente' Em outros termos' mesmo
sexualidade,apaternidadeconstantesantropológicas'arelaçãocoma
ções se situa no quadro pragmático do "fingimento lúdico partilhado"2a: diversos em cada
dor, a sexualidade e a paternidade é posta em termos
quando lemos um romance, sabemos que o autor não nos pede para um exemplo' pensemos na
época (e em cada cultura)' Para dar aPenas
levar a sério o que ele diz25. Desse modo, uma ficção pode pôr em cerut da mesma maneira na
questão d,aÍarn-*rlia,que não pode ser abordada
comportamentos resultantes de artifício e (por vezes) do ridículo ine-
sociedade colonial e na era industrial'
rente à sentimentalidade (Kundera, Vargas Llosa), ao convencionalismo
Da mesma maneira, aquilo que era inédito em
uma época não se
(Goytisolo), ao humanismo (Beckett), sem que seja preciso com isso que
os percursos encenados sejam exemplos a imitar no mundo real. Se os mantémobrigatoriamenteinéditonasequência.Porque,então,nos
como vimos' duas
valores vindos no bojo de uma obra têm interesse, é como informação (so- interessar pelo que era arte no passado? Existem'
ter atualizado
bre um sujeito, um época, um modo de se relacionar com o mundo etc.), respostas para esta pergunta' Por um lado' podemos
isso ter esgotado
não como modelo ou contramodelo proposto ao leitor. Lamentamos ter um dos saberes veiculaàos pela obra sem nem por
de enÍatizar algo tão evidente; mas os últimos desenvolvimentos da crí- oconjuntodeseupotenciaicognitivo.Poroutrolado,ointeressedo
que não sua no-
tica anglo-saxônica, infelizmente, nos obrigam a isso26. conteúdo manifesto pode provir de outro motivo
com efeito, para
vidade: sua essencialidade, Algumas obras apontam,
Se as obras literárias frequentemente desembocam em um saber ori- dimensõesfundamentaisdoserhumano'àsquais'pordefinição'so-
ginal, isso se dá na medida em que a liberdade de expressão que as mos semPre sensíveis'
funda se concretiza em configurações inéditas. A originalidade pode
dizer respeito ao plano acontecimental (a metamorfose de um indivi
duo em seio27), emocional (o prazer provocado por uma expectativa O essencial

x CÍ. La Transfiguration du banal, op. cit., p. 60-6L.


AtemáticadasobrasquePelduramé,evidentemente,transcultural.
2a
J.-M. Schaef fer, Pourquoi la fiction?, op. cit., p. L56. Nesse aspecto, nós nos alinhamos com T' Pavel:
25
Esse "pacto de leitura" vale apenas, é claro, paÍa os textos de ficção de um escritor, não
para suas outras produções ou pronunciamentos: mesmo sendo absurdo pedir satisfações
aos personagens romanescos inventados por M. Houellebecq, em contrapartida, é perfeita- ffios,otemadeLaPresqu,tle,c1eJ,Gracq:aausênciadeIrmgardnotremc1o
mente legítimo interpelar o cidadão Houellebecq quando ele se exprime em seu próprio meio-diaestánaorigemdeumaerrânciageográficaemental,quepermiteaSimonimergir
nome na imprensa ou na televisão. no espaço e no temPo (ver supra, p' 50)'
2e ver s. Beckett, Fim de partiia.são paulo: Cosac Naify, 2010: os
protagonistas, ao constatâ-
26
Para esse ponto, remetemos à análise crítica que R. Shusterman faz cla "virada ética" que a melhor solução ó a
cónclusão de
rem que a vida é sinônimo de sofrimento, chegam
à
cla crítica anglo-americana ("Hard Times, rne éthique de la lecture". Étudcs anglniscs. Pirris:
Klirrcksiock. torno 55. iullro-aposto-setombro 2002. o. 286-297\. oura e simples cxtinção da espócie'
Oaalor 725

refi-
não é se imaginar como uma
conjuntos temáticos mais ou
identificar-se com Anna Karênina como uma
Por todos os lugares e semPre' encontramos XIX' mas "ver a própria vida
principais preocupações' sociais nada dama russa do século
menos completos, englobando nossas o
a morte' o sucesso e o fracasso' armadiihasexualeverasicomoumavítimadodeveredapaixão"33'
ou existenciais. O nascimento' o amor/ que
guerras' a produção e a clistribuição
e as pela "intensi{icação"' no sentido
poder e sua perd'a, as revoluções Em geral, a tipicidade é reforçada
o sagrado e o profano os temas
de bens, o estatuto social e a moralidade, as ficções tendem naturalmente
as fantasias compensatórias C. Elgin dá a esse termo' Efetivamente'
cômicos da inadaptação e do isolamento'
etc. atravessa"' tàa u hi'tO'iu da
ficção' desde os mitos mais antigos' aempurrarascoisaspaÍaoextremo:elasatraemnossaatençãosobreal- O
mudanças de gosto e de interesses ac"nto"'ào-os' Ao intensificar a evolução da perseguiçáo'
até a literatura contemporânea. As guns traços
inventário31'
modificam apenas ma'ginalmente esse processolevaarefletirsobreaviolência(dissimulada,masbemreal)das
humanos têm real- sociedadesmodernas.MqnonLescaut,aointensificarapaixãoamoÍosa/
para além das variáveis históricas e subjetivas, os seres
Toda vez que uma obra aborda leva-nosanosinterrogarsobreseusmecanismose/alémdisso'sobreo
mente certo número de coisas em comum' ser humano' Em outro registro
os roman-
funcionamento psicolãgico do
umadasgrandesquestõesComaSquaissomosconfrontados,adquireum
cesdeSadeintensificamarelaçãodeassuieitamento'percebidacomo e o fecha-
alcancegeralqueexplicaapersistênciadointeressequesedispensaaela.
do prazet e os relatos de Beckett' o isolamento
componente ter como
do sujeito' A intensificação pode
NãohádúvidadequeéissoqueB.Larssonquerdizerquandoexpli.
que ele mento, metáforas da soiid'ão vemos quan-
propriedade particular dialógica de uma obra' É o que
ca que os textos literários têm essa - efeito o reforço da dimensão
* por meio de um referente único' exasPera cada uma das
nomeia de tipicidadéz dedesignar'
do, em dado problema'7 o texto intensifica
- - de
Notemos que a tipicidade está na não apenas revela a complexidade
todos os referentes assemelhados' posições em iogo' Esse dispositivo
como é definida por Goodman: a a parte de imaginário e de
irracional que ela
base da exemplificação artística tal uma questão, mas também
amostra de uma categoria mais ge-
obra pode falar conosco enquanto veicula.PensemosnoslrmãosKarwnázoa,livronoqualdiferentesposições
O simples fato de podermos que a leva ao
ral que ela encarna como objeto particular' encaÍnadas por um Persoragem
sobre Deus são, cada uma escrita roma-
é' de identificar o geral por trás açáo é,por vezes, a própria
interpretar uma exempiificação (isto extremo. o objeto da intensiÍic
doparticular)pressupõeocaráteremblemáticodealgumasfigurasou nesca.Exibirexpiicitamenteoscódigo'dufitçaocomoofazemDiderot
permite considerar Madame Boaary de inaerno'
situações. É a-tipicidade que me em Se um tsialante numa noite
em lacques o fatalista,ou Calvino os autores não
metafísico e Os miseráaeis como efeito de autentcidade' porque
como a expressão de um mal-estar cria, paradoxalmente, um contar uma
daquilo que estão fazendo:
representativodosdesgasteshumanosresultantesdainjustiçasocial. buscam enganar o leitor acerca
exemplares de características
As obras mais marcantes seriam, entãq história'Digamosqueumescritornãotemobrigatoriamenteconsciência
apenas de traços sociais e psi- em seu texto' O importante
é que algumas
fundamentais de nossa condição (e não do que é que eie "intensificd'
cológicosrelativosaumcontextoculturalparticular).ComoDantoob- sejam efetivamente acentuadas'
uma metáfora dimensões ou propriedades
são aqueles que nos apresentam
serva, os grandes textos uma qu:::ão essencial' mesmo
nos reconhecer em alguns com- Um mesmo texto pode ' é claro'apontar
de nossa própria vida, permitindo-nos
gerais e transculturaisda representação' Dessa forma' sendo,emsuaép'o'u'portadordeumsaberinédito'ÉocasodeEspe-
ponentes
- - rando Godof, de Beckett'
Í ,: o^-;.,. c,-,il lQRR n '18ír lt'cl. tlr.: I9t](rl.
o quc teria
DCrNrgnr,úpro E3B VLADIMIR. Quando penso nisso.'. desde o telnPo"' eu me pergunto"'
-
lhe acontecido... sem mim... (Decidido.)Você não passaria de um montinho de ossos

HutraNo, DEMASTADo HuMANo agora, pode crer.

ESTRAcoN (irritadíssimo). - E daí?


(B ckett, Esp erando Go dot)
É demais para um homem só. (Pausa. Com aiaacidade') Por
e
VLADTMTR (arrasado). -
nisso há
outro lado, de que serve desanimar agora, é o que me digo. Era preciso pensar
uma eternidade atrás, por volta de 1900.
Estrada rural, com óntore.
EsrRAGoN. - Chega. Me ajude a tirar essa merda'
Entardecer.
Estragon, sentado numa pedra, tenta tirar
o sapato. Esforça-se com ambas as mãos, vLADrMrR. De mãos dadas, a gente teria se jogado embaixo da torre Eiffel, entre os
-
arquejando. Para, esgotado, descansa
ot'egando, recomeça. Mesmos gestos. primeiros. A gente se comportava lindamente então. ASora é tarde demais. Não deixariam
EntraVladimir. é que você está fazendo?
u g"r,," nem sequer subir. (Estrago n luta com o sapato.) Que

ESTRAGoN (desistindo nooamente)._ Nada a Íazer. Estou me descalçando. Isso nunca te aconteceu?
ESTRAGoN. -
(aproximando-se com pequerxos passos vLADrMrR. - faz tempo que lhe digo que é preciso tirar os saPatos todos os dias. Você
'LADTMTR rígidos, as perntls abertas)._ Começo
a acreditar nisso. (rmobiriza-se.) por faria bem em me escutar.
muito tempo resisti a esse pensamento, dizendo
a
mim mesmo, Vladimir seja razoável. você (debilmente).- Me ajude!
ainda não tentou tudo. E retomava o combate. ESTRAGoN
(Recolhe-se, sonhando com o combate,
A Estragon.). Então, aqui está você de novo. vLADTMIR. - Você está mal?
EsrRÂcoN. - Você acha ?
ESTRAGoN. - Mall Ele me Pergunta se estou mal!
- Estou contente de te rever. Achava que você tinha
'LADTMTR' ido embora para sempre. VLADTMTR (com arroubo).você não é o único que sofre! Eu não conto. Mas bem que
-
EsrRAcoN. - Eu também. eu queria vê-lo no meu lugar. Queria ver o que ia dizer'
,LADTMTR' -o que faremos para festejar esse reencontr
o? (Reflete) Levante para que ESTRAcoN. - Você esteve mal?
eu o abrace. (Estende a mão a Estragon.)
vLADIMIR. - Mall Ele me pergunta se estive mal!
ESTRAGoN (com írritação). _ Já_já.
lá_já.
ESTRAGoN (apontando o indicador).- Isso não é motivo para você não se abotoar.
Silêncio.
VLADTMTR (agachando-se). - É mesmo. (Abotoa-se). Nada de desleixo com as pequenas
,LADTMTR (magoado, com
t'rieza).- pode-se saber onde o senhor passou a noite?
coisas.

rsrRACoN. - Numa fossa. rsrnecoN. - o que é que você quer que eu lhe diga? você semPre espera o último momento.

VLADTMTR (espantado)._ Uma fossa! Onde? VLADTMIR (sonhadoramente). - O último momento"' (Medita') É longo' mas vai ser
ESTRAcoN (sem gesto). _ por aí. bom. Quem dizia isso?

vLADIMTR. - E nâo bateram em você? EsrRAGoN. - Quer fazer o favor de me ajudar?

vrÁDrMrR. Às vezes eu me digo que isso vem de qualquer jeito. Então eu me sinto
-
ESTRAGON.
- Bateram... pouco.
muito engraça do. (Tira o chapéu, olha dentro, passa a mão no interior, sacode, põe de
VLADTMIR. - Sempre os mesmos?
nooona cabeça.) Como dizer? Aliüado e ao mesmo temPo"' (procura)"' apavorado'
EsrRAGoN. - Os mesmos? Não sei. (Com ênfase.).4-PA-VO-RA -DO. (Tira de nooo o chapéu, olha dentro dele.). Mas que
coísal {Bate o chapéu como para fazer cair alguma coisa, olha de nooo dentro, põe
sob
Silêncio.
esf orço, consegue tirar
de noao na cabeça.) Enfim. .. (Estragon, aa custo de um extremo
POR QUE ESTUDÁR LITERATURA?
O aalor 129

o sapato.Olha dentro, passa a mão no interior, aira-o, sacode-o, ptocura no chão se não Nesse cenário esquálido, as falas dos personagens são inseguras e hesitan-
caiu alguma coisa, nõo acha nada, passa a mão de nopo dentro do sapato, com o olhar tes/ como Se o mundo encenado se caracteriza5se em todaS as SUas dimenSõeS
zrago.) Então?
pela inconsistência e pela dúvida. Assiste-se assim a uma dupla infração das
ESTRACON. - NAdA. regras da exposição: não só as informações dadas pelo texto são vagas e apro-
vl,ADrMrR. - Deixe ver. ximativas, como também oS personagens mesmos parecem saber muito pouco

ESrRAcoN. - Não tem nada Para ver. de sua própria situação. Lançados numa estrada que não escolheram, eles se

perguntam o que fazem ali e, em particulat um com o outro'


VLADIMTR. - Tente calçá-lo de novo. -
ESTRACoN (depois de examinar o pé).-You deixá-lo respirar um pouco. r A dualidade alma/corpo
VLADTMIR. - Eis o homem por inteiro, se atracando com seu sapato quando o culpado é Mediante as difíceis relações entre Vladimir e Estragon, se esboça uma re-
seu pé.(Tira mais uma rez o chapéu, olha dentro, passa a mão, sacode, bate embaixo,
flexão sobre outra questão fundamental: a relação entre o pensamento e o corpo.
sopra dentÍo, põe de notso.) Está ficando preocupante. (Silêncio. Estragon agíta o pé,
rentexendo os dedões para que o ar ciru.ile melhor entre eles.)3a Estragon, sentado, com dores nos pés, é o homem do "sapato", das preocupações
"terra a ÍeÍra" , confrontado à sua realidade corporal'e às restrições do mundo fí-
O "valor"desse texto (abertura da peça mais famosa de Beckett) está, sico. Vladimiç de pé, é o homem do "chapéu", o intelectual que se move na esfera
como demonstraremos, naquilo que ele exprime de essencial e de inédito por
abstrata do pensamento, cujas preocupações são primeiramente filosóficas' Embo-
meio de configurações formais particulares.
ra ambos estejam nas garras do sofrimento, o primeiro busca a solução embaixo e
o segundo, em cima. Mal conseguindo se suporta{, mas sem conseguir decidir por
se separat são tão diferentes e indissociáveis quanto o corpo e o espírito'
O essencial
O diálogo de surdos que caracteriza sua conversa evidencia o descompasso
Esse trecho levanta, de saída, uma série de questões fundamentais, que não entre a ordem da matéria e a do pensamento. Vladimir sistematicamente trans-
estão ligadas a um contexto histórico particular (ainda que o modo como são fere para o plano intelectual as palavras que Estragon utiliza para falar de sua
levantadas seja tributário do momento em que o texto foi escrito). Essa abertu- relação conflituosa com o mundo material. Atesta-o o "nada a ÍazeÍ" inaugural,
ra trata, entre outras coisas/ do sentido da vida, das relações complexas entre o
que para Vladimir designa o combate contra a angústia metafísica, enquanto Es-
pensamento e a matéria, da definição do eu e da existência.
tragon apontava para o conflito mais modesto que o opõe a seu sapato' O mesmo
o A vida como errância vale para o termo "mal",que evoca para Estragone dor física (os pés inchados)
O que surpreende de imediato é a rigorosa esquematização de um cenário e para Vladimiç o sofrimento moral (a fadiga de viver). O "último momento'/
reduzido ao mínimo ("Estrada rural, com árvore"). Estamos num espaço do também se deixa entender de duas maneiras: pode remeter tanto aos problemas
despojamento e do vago, que evoca as ideias de desolação, solidão e abandono. urinários de Vladimir (qug para se aliviat não abotoa a calça) quanto ao remorso
Essa abertura in media res, à beira de uma estrada, mostra a existência como de não ter se suicidado quando era a ocasião adequada (isto é, na juventude).
uma espécie de viagem na qual se embarca sem se ter querido. Apesar do en-
Beckett nos dá aqui sua versão (pessimista) do dualismo cartesiano. Se,
tardecer (que, no contexto de um deslocamento, evoca habitualmente a chegada
como estabelecera Descartes, o eu autêntico é a consciência e não o Corpo35, o
ou a pausa)/ os dois personagens estão sempre a caminho: são, portallto, mais naquilo que lhe é o mais
infortírnio quer que essa consciência esteja encarnada
errantes do que viajantes. O cair cla noite, lnolnento crítico dc utn intertncio,
acrescenta inclefinição temporal à i ndefi n ição cspacial. corpo mas
:)'i (ltrrro sc. cleprccnclc clas'Mur/ifrrçõrrs tttttnfisicns, posso imaginar que'uão tenho
t;ru rlofl Qt/ti ufTl,nÀfl I,nTn^?URÂr

de Sísifo ridículo (observe-se a


cstrflnho. Dcsse ponto de vista, se a nf;o coincidôncia entre o sâpâto (estreito tindo"). À ,narg",, da peça, Estragon, espécie
à
,,p.d.,,1, u,",,u"u impossibilidade de ter êxito e a inutilidade
dc.rnais) e o pó (que se vê aprisionado nclc) rernete, de modo geral, às relações discreta menção
scmpre difíceis entre continente e conteúdo (forma e fundo, palavras e coisas, detodoempreendimento'Demodomaisgeral'osdoistemasdofracassoeda se
os personagens se "reveem" e
linguagern e pensamento), ela designa, mais particularmentg o descompasso repetição impregnam o conjunto do trecho:
entre o corpo e o espírito. Conforme diz Vladimir nurl comentário filosófico "reencontram" após ,r*u difícil que cada um passou; Vladimir' que não
"oit"
que toma Estragon como representante da humanidade: "Eis o homem por in- teveêxitoemsuicidar-senajuventude,nãoconseguenemdesistircompleta-
teiro, se atracando com seu sapato quando o culpado é seu pé". mente nem manter sua calça abotoada'

A disputa verbal à qual se entregam os dois compadres atesta portanto, o Afaltadesaberdospersonagenspodeterduasexplicações:ouarazãodos


ou não existe. Mas quer eles evoluam
num uni-
trágico da existência. Ou se considera o homem como uma realidade corporal, acontecimentos lhes é oculta,
absurdo, tlata-se, de qualquer maneira'
e a consciência é um excesso, suscitando inutilmente uma série de questões do- verso do segredo ou num universo do
de um universo angustiante posto
sob o signo da violência'
lorosas, ou se considera o homem como um ser de pensamento/ e o corpo (essa
é surrado repeddamente) e de tre-
mecânica frágil que não funciona muito bem) é uma desvantagem: ele nos obriga Nesse mundo de brutalidade (Estragon
a questão do suicídio- naturalmente' A
a decair no mundo material. Em outros termos, a questão colocada por Beckett é a vas (a peça se passa ao anoitecer), "T"1g:
vladimir imagina Estragon
seguinte: o homem é um pensamento degradado por um corpo ou um corpo mal *o.i", a"raramatizadâ, é evocada com desenvoltura:
amanhado por uma consciência? Seja como foç é uma criatura que não funciona36. comoum,,montinhodeossos,,esonhacomummergulhoromânticodoaltoda
o suicídio é uma solução postulá-
Compreende-se, em tais condições, que a existência seja sinônimo de sofrimento. torre Eiffel. Diante do sofrimento da existência,
o A existência como sofrimento veltantoquantoaesperamessiânica(adeGodot).Seaárvoreéaúnicareferência
porque ela encarna essas duas saídas
possíveis
desse cenário despojado, talvez seja
providencial (a verticalidade figura a
Se Estragon existe antes de tudo como corpo, é de um corpo sofredor que para a dor de viver: a espera de um rulrrudo.
se trata, sem a menor ambiguidade. As didascálias iniciais, que o apresentam às transcendência); o suicíàio (os galhos permitem que a pessoa se enforque)'
turras com seu sapato, têm uma dupla função: mostrar que o personagem existe
Semdúvidanãoéporacasoqueessasquestõesessenciais(adualidade
pelo gesto antes de existir pela fala; designar essa restrição como fonte de dor. da existência) são levantadas por meio
da
alma/corpo, o sentido du,,ida, o valor
de posses que caracteriza o vaga-
Quanto à consciência, ela busca logicamente extrair-se desse universo figura emblemática do vagabundo' A carência
pôr a ênfase no ser. Não podendo existir
hostil e vazio de sentido, no qual ela tem dificuldades em encontrar seu lugar. bundo sem trabalho ,"rri,"ro permite
" pelo que sâo: eles remetem a uma
Aferrado a seu eu pensante, Vladimir se analisa, medita, se questiona pelo que têm,Yladimir e Estragon aparecem
expressão mais simples' Essa humanida-
sem conseguir acalmar sua angústia: a especulação intelectual, longe de levar ao humanidade decantada, reduzida à sua
repouso, deságua no inferno da reflexão. Se esse sofrimento fizesse sentido, ele ,,algébrica", como o texto demonstra, é feita de doç de ignorância' de miséria'
de
ela não pode se apegar a nada mais do
decerto seria mais facilmente suportável. Mas não existe luz nem no além nem condenada a sofrer sem saber por quê,
também levanta problemas'
cá embaixo: o "nada a yer" do final responde ao "nada a fazer" do início. que à palavra. O aborrecido é que a linguagem

Nessas condições, o que esperar da existência? Duas ideias, que dão o tom
do trecho, emergem do gestual inicial de Estragon: a repetição ("tenta", "reco-
lneça", "mesmos gestos", "de novo") e o fracasso ("para", "Íepousa", "desis- Oinédito:alinguagemcomoremédioefatalidade
Otextonãosecontentacomlevantarquestõesexistenciaisfundamentais.Ele
r"
da linguagem/ um ponto de vista original'
Ver D. Gauer, "Systêmes: forme et informe chez Beckett", Biblioteca Angellier, Univer- Se a
siclade de Lille 3, artigo disponível em <htç://angellier.biblio.univ-1il1e3.frlressources/ar- expressa, sobre a questão particular
está longe de ser nova, a singu-
ticle_gauer_keckettlang.htrnl>. denúncia do caráter arbitrário e alienante da língua
litz POlt QIL." r§nlfr^R ,.IT,:R/^fllnÁ f
, ,, ,a, a ,na, a,aa* , na,ar a,aa,,aa,,a ,, ,a
-
#

la ridadc clc lleckett está lnostrâr que, não obstante suas deficiências, senão atra-
ENSINAR LITERATURA
c'n1

vós delas, as palavras permanecem, apesar de tudo, como o último bastião que nos
separa clo nada. Mesmo quando não podemos dizer nada, não podemos nos calar.

vladimir e Estragon, embora se compreendendo mal, parecem de fato temer


o silêncio. se o diálogo é difícil e tende constânternenre à interrupção, vladimir
sempre faz o esforço da retomada. É imperioso fala1, não para comunicaç mas para
ser. Por isso o trecho se assemelha menos a um diálogo do que a uma justaposi-

ção de vozes: cada personagem segue o fio de seu pensamento sem realmente se
preocupar com o que o outro diz. Em diversos momentos (acerca do suicídio, do
alívio), as falas devladimir se apresentam como um quase monólogo. Em Beckett,
o diálogo tem, antes de tudq função ontológica: ele gera o sentimento de existir.
pare-
Infelizmente, essa linguagem necessária ao sujeito (a consciência só existe preciso ensinar literatura? A pergunta pode
Diante
através do pensamento e o pensamento só existe através das palavras) é um instru- cer brutal. Mesmo assim, merece ser feita'
é legíti-
mento gasto, senão caduco. Essas palavras que não podemos descartar são, de fatq d.e currículos de ensino sobrecarregados'
nature-
as de todo mundo: é com a linguagem dos outros que cada um deve tentar existir mo reservar tempo ao estudo de textos de
por conta própria. As falas de vladimir e de Estragon transbordam de clichês e de za incerta e cuja função não está clara?
fórmulas feitas: "seja razoável", "você ainda não tentou tudo,,,,,eu retomava o
combate", "quando penso nisso", "sem erro" , " é demais para um s6homem,, ,,,faz
tempo que eu lhe digo", "nada de desleixo com as pequenas coisas,,, ,,você sempre
último momento", "não tem nada a ver" etc. Quando o eu se escuta, ele só
espera o Prazer estético e ensino
ouve um discurso estranho, uma fala anônima na qual se dilui. Nessas condiçõeq
os estudos literários de-
a expressão autêntica é simplesmente impossível. O quiproquó sobre o referen- À primeira vista, seria lógico Pensar que
a especificidade da
te de "nada afazer", a incerteza sobre o sentido dos termos ,,mal,, e,,aliviar,,,a vem se concentrar sobre aquiio que constitui
frequência dos silêncios atestam isso à farta. como é que a língua, marcada pelo literatura:adimensãoestéticadostextos'Nessahipótese'opapel
artifício e pela generalidade, poderia dizer o íntimo? É precisamente pela questão a apreciar o qtrc faz a
do professor seria formar o gosto ensinar
da linguagem que se manifesta do modo mais claro o trágico da condição humana.
"belezd' das obras literárias'
s\- .dN- qStr
que se Possa con-
Mas um objetivo desses é rcalizâvel? Mesmo
o valor de um texto, portanto, deve ser buscado naquilo que ele exprime. estético da forma se-
ceber um plano intersubjetivo, o impacto
No entanto, é real o risco de que, com o tempo, a percepção do sentido se torne Ter como eixo do ensino
gue, como vimos, vinculado à história'
cada vez mais difícil: se a força da obra está em nos pôr em contato com um saber
d.e literatur a o prazer estético
comporta um duplo risco: afastar-
não conceitualizado, ela só pode fazer isso em relação com os hábitos mentais de
de sua sedução se ter ate-
urna época. É aqui que aparece o papel imprescindível dos estudos literários. Eles -se de uma obra interessante pelo fato
banal pelo mero
têm por finalidade transpor um duplo desafio: identificar conteúdos expressos de nuado; fazer estudar um texto perfeitamente
(essa é aptóptia
tnaneira indireta ou oblíqua; trazer as informações (estéticas, culturais, históricas) motivo de ele agradar por razões conjunturais
que permitem devolver a uma metáfora morta o poder de uma metáfora viva. definição da demagogia)'
.r^ rr..rr-^^ t Ensinar literatura
i3*
-qf-
Ensinar normativamente o prazer estético é não apenas impossível (e, só é lido se gerar um grau suficiente de satisfação3. Mas tal raciocínio
por sinal, eticamente discutível), como também inútil. O sentimento só é válido quando da primeira edição do textoa. Uma grande obra é
do belo pode ser produzido a todo momentq diante de qualquer obje- justamente aquela que se mantém capaz de desempenhar importantes
to (um tecido colorido, uma silhueta graciosa, uma paisagem luminosa funções transcendentes, apesar das disfunções de sua função imanen-
etc.): para experienciá-lo ninguém tem necessidade da mediação de te. Os textos do patrimônio não são aqueles cujo interesse sobrevive à
um ensino. Por outro lado, podemos pensar enquanto formadores inevitável Íadiga- devida arazóes culturais de sua sedução esté-
ou professores
-
que não é indiferente orientar o gosto para um e não
-
tica? Com o tempo, é a função transcendente das obras que importa,
-
para outro objeto. Mas se a relação estética tem como única função nos não sua função imanente (que se torna acessória, visto que sua função
pôr em contato com uma realidade cujo valor lhe é exterior, de toda transcendente basta para lhe conferir valor).
maneira, ela não tem mais interesse em si mesmal.
No quadro do ensino, temos todo o direito de dispensar o critério de
Dizer que não há necessidade de ensinar o sentimento do belo não sig- satisfaçãq fazendo valer que as obras literárias não existem unicamen-
nifica negarJhe qualquer valor. Trata-se simplesmente de distinguir te como realidades estéticas. Elas são também objetos de linguagem
o quadro individual da relação estética (que pode, evidentemente, ter que pelo fato de exprimirem uma cultura, um pensamento e uma relação
como exclusiva finalidade o prazer pessoal) e o quadro institucional
-
com o mundo
-merecem que nos interessemos por elas. Se a dimensão
(no qual a relação com a obra deve desembocar em um resultado útil estética tiver sido levada em conta, não terá sido por si mesma, mas
para a coletividade). por aquilo que ela significa e representas.

Não se deve, portantq confundir a pergunta "por que ler as obras literá- O objetivo do professor não apenas não é o do esteta, como também
rias?" com a pergunta "por que fazê-las serem esfudadas?". A distinção se distingue do objetivo do teórico. Entender o que é aarte como prá-
é tanto mais necessária quando, por vezest vemos contradição entre a in- tica humana (empreendimento cognitivo) e decidir que obras de arte
tenção da relação estética (o prazer pode se fundar em urn entendimento representam um interesse (empreendimento avaliatório) são dois pro-
árcluo que permite a deriva da imaginação) e a intenção do ensino (que ao cessos independentes. Ao se perguntar a que corresponde o fato de
se empenhar em fazer surgirem saberes, deve evitar toda aproximação). arte, o teórico tem boas razões para levar em conta desenhos de crian-
ças ou os arremedos de quadros dos pintores de fim de semana: essas
Aqui nos afastaremos de Schaeffer, quando ele explica que, para cum-
produções, seja qual for seu valor, derivam da arte eriquanto prátíca
prir eventuais funções transcendenfes (disponibilizar um saber, aÍinar a
antropológica6. Mas o projeto do professor é completamente diferente.
percepção do mundo, propor modelos de comportamento etc.), a fic-
ção deve imperativamente começar por cumprir sua função imanente: 3 Nessa perspectiva, o interesse da forma seria inicialmente instrumental: ele não decorre-
provocar a imersão mimética no universo ficcional2. Para o autor de ria daquilo que ela exprime, mas resultaria do fato de que ela facilita o contato com a obra.
a Yer supra,p.4547.
Pourquoi la fiction ?, um texto ficcional só produz efeitos se for lido, e ele
5 Para que as coisas fiquem bem claras, não discordq de modo algum, que alguém possa ligar
o valor de uma obra de arte a sua dimensão estética. Mas a dimensão estética é sempre relativa
I I)or isso, o prazer não está ausente do ensino: a satisfação de ter identificado (uma parte) (além de ser sempre su§etiva). Em contrapartida, a originalidade e a riqueza dos saberes ex-
r'la riqueza lrermenêutica da obra pode vir in fine ocupar o espaço vazio. pressos pela obra de arte são dados objeüvos cujo valor transcultural podemos mostrar.
2 CÍ. Pourqttoi la ficlittn?, op. cit,, p. 327-335. Schaeffer afirntava, poróm, en Lcs Célibataircs í' "Concebida em uma perspectiva analíüca, a tarefa da reflexão estética é identificar r.. en-
lc l'trt, o1t, ciÍ., p. 200: "[.,.] uma obra c{c artc podc pcrfeitanrcntc cunrprir qualcluer uma c{e tender os fatos estéticos, e não propor um ideal estético ou critérios de juí2o", J.-M. Schaeffer,
Errsirtttr litunturn "137

l'o '""'".]']1,":]'.]'1='],'1.',1= :..== : ,,,, .= :,:.: =..=,,,,:. :, : =: #:


sa começar tornanclo acessíveis (fornecendo toclas as informações
ne'-
"quais aspectos
lllc não se pergunta "o que é uma obra de aÍte?"' mas para nós'
I

de ensino?"' cessárias sobre elas) as obras cuja linguagem se tornou oPaca


.lrr rtbr.a clc arte merecem ser consicleracl0s no currícul0 I

A rcsposta a esta seguncla pergunta é função clos objetivos visaclos' o clesafio clos estuclos literários é, portanto, identificar - nos planos
tlrrc clependem, eles mesmos, da especificidade dos
públicos' A título cultural e antropológico o que é que a obra exprime sobre o huma-
-
rlc.rt-ralogia,poclemosreconhecer(noplanoteórico)airnportânciada no, assinalanclo o que era esperado na época, ir-rédito à época e novo
,,pulsão .1" mo.te" no funcionamento do inconsciente sem cleduzir (no aincla hoje. Se é verclade que, em ficção, a estrutura "permanece
en-
questão
planto prático) que o propósito do ensino seja ensinar
a clesenvolvê-la' caixada no exemplo"s, convém esclarecer que o exemplo em
pocle instanciar várias estruturas cle naturezas muito cliversas.
A obra
se apresenta como a atualização empírica não cle uma
estrutura única,
vem
Os objetivos mas d.e esquemas gerais e diversos que o propósito clo ensino
justamente trazer àl,,s,z.Não existe nacla de inefável em uma obra lite-
clecorre não rária, apenas conteúdos à espera de iclentificação'
A cspecificiclade cla obra literária enquanto objeto cultural
(rpenirs da natureza clos conteúclos que ela exprime
(ver o capítulo an-
Para retomar Para resumir, o (simples) leitor percebe certo número de irtfornnções
tcrior), rnas também da rnaneira como ela os comunica. veiculaclas pelo texto; o comentador iclentifica ou constrôi snberes Par-
a
Os tcrrnos c1e Schaeffer, os modelos comportamentais
veiculados pela
tir dessas informações; o professor transforma esscs saberes em cor'ilte-
litcrartura geralmente são não ser
cintetttos.IJm sa\ter não se torna efetivamente conlrccitrcnto, a
irrtcriorizadospolimersãoe(eventualmente)reatil,adosdemaneira que seja objeto de uma reapropriação pessoal que passa pela tomada
itssociativa enquanto a reflexão analítica vai dar em saberes abstratos'
-
cuirr aplicação evàntual necessita da passagem por
um cálculo racional
c1e consciência.

uuiaclo por rcgras cxl'rhcitas;' Temos etn Finr tle pnrtidn, de Beckett, uma frase que resume perfeita-
fra-
mente o rnovimento cla peça: "cacla coisa segue seu curso". Esta
Airrtcriorizaçãoporimersão(senossituarrnosapenasrropontodevis-
incon- se Ine toca intimamente, sem que eu Possa explicar espontaneamente
apresenta, ao rrlesmo tempo, uma vantagern e urn
ta cogr-ritivo)
por quê. Se refletir um Pouco, digo a mim mesmo que é porque ela
vt.tlicnte.AvantageméqueainÍormaçãotransmitidapelaliteratura de
não pocle ter: ela é exprime um dado universal de nossa condição: a impossibilidacle
k,rtr Lrma força de impacto que o discurso racional explica-
O cleter o fluxo do tempo que nos conduz lumo à morte. Essa
"st'nticla" antes de ser entenclida, portanto' sem ser colnPreenclida' A crítica beckettiniana lne penni-
de modo ção não é falsa, rnas é insuficiente.
incouvt'niente é que a informação em questão é assimilada
a vocação do en-
te construir um saber mais preciso e mais interessante: o enunciado
n.io cot'tsciente. Ela é "gravada" passivamente' Como exprime a visão schoppenhaueriana c1a existência impulsionacla por
têtn corno
sirrrt ti t:nsinar tl clominar os saberes, os estuclos literários e represÜttnçííLt
url-r querer-viver absurdo e cego. O tttttttdo cottto Uontnde
Ir.o1-rrisito conceitualizar
aquilo que, na relação estética, ó (no rnelhor
"l-tt.r tttelhtlr cltls ca-
quc foi, clurante tocla a sua vida, uma clas obras de refcrência partt
tl()s ctrsos) intcriorizado por imcrsão' sc espccifictl - afirrna, com efeito, que a ú1ica "realic1ac1c" clesse ttttttttltl ti
itncreir' I)Or isstl Ilcckett
s{)s", c porrlLt(, cxistem viilias obrals t-ti'ts tlttaris c diÍícil -
"vonttrclc" imutaivcl c etc-rtrel, Um priucípirl vita'rl, tlttt't'stii lrir birst'
trnrrr
o Pr.rllr.ssor.não 1-rorlcst'lirtlitar.rtl Il'.thllhtl tlt'itltt'r1rt't't'tt,ijtl: t'lt'Prt'r.'i-
de todos os fenômenos e que nos impulsiona a perseverar em nosso rnos lê-lo: enquanto poema., Esse quarteto de fato foi escrito Para suscitar o de.
ser, em nos apegar à vida, a despeito de sua ausência de significação e vaneiq as associações pessoais, a emoção e o prâzer visual e sonoro. Que ele cOn'
dos sofrimentos que ela nos inflige. Não apenas a peça de Beckett é a siga sempre fazer isso já é outra questão; mas podemos postular que esse é seu
perfeita tradução dessa filosofia (os personagens vagam entre a dor e o objetivo e que, dada a notoriedade do texto, ele o tem atingido frequentemente.
tédio sem poder se resignar em morrer), como a frase que nos interessa O problema está em saber se, no quadro do ensino, podemos nos contentar
exprime muito exatamente o caráter frio e mecânico do "querer-viver" em deixar cada estudante se reapropriar desse curto texto de maneira Pessoal
impessoal que perpassa cada um de nós. Entre os conteúdos veicu- e espontânea. Me parece que a resposta só pode ser negativa: quem precisa de
lados pela peça de Beckett, há então uma abordagem pessimista da ensino para se deixar levar pelo prazer do devaneio? Será útil que me expliquem
existência, inspirada em Schoppenhauer. o que quer que seja para que eu considere belo (ou não) esse poema? E mesmo
quando alguém conseguir me convencer de que é belo, será necessário remune-
Antes de examinar os meios a pôr em ação para identificar o sentido de
rar a pessoa por isso?
um texto, concentremo-nos em um exemplo.
Digamos sem rodeios: os estudos literários só podem ter legitimidade se
resultarem em algo útil para a sociedade. Portanto, não basta "proYaÍ" (supon-

ry do-se que seja possível) que esse poema é belo: é preciso mostrâr que ele en-
riquece nossa compreensão do mundo, esclarecendo-nos sobre o que somos e
Esrnrre r CARNE sobre a realidade em que vivemos.

(Rimbaud, " I: étoile a pleuré rose... " ) Quais são, pois, os saberes que podemos extrair desse texto?

Debrucemo-nos sobre este quarteto celebérrimo de Rimbaud, que nos


A mulher cósmica
chegou sem título:
Para se ter uma ideia dos conteúdos veiculados, é preciso resolver uma
Ilétoilea pleuré rose âu ceur de tes oreilles, série de problemas sintáticos e semânticos.
Ilinfiniroulé blanc de ta nuque à tes reins,
Observe-se inicialmente a perfeita simetria da construção: quatro orações,
La mer a perlé rousse à tes mammes vermeilles
Et l'Homme saigné noir à ton flanc souveraine. correspondendo cada uma a um verso, formam um período único. Cada uma
dessas orações é composta num mesmo modelo: sujeito, verbo, adjetivo de cor,
[A estrela chorou rosa no coração de tuas orelhas,
adjunto adverbial de lugar. Os três primeiros versos parecem vincular-se à cele-
O infinito rolou branco de tua nuca a teus quadris,
O mar perolou ruivo em tuas mâmas vermelhas bração, enquanto o quarto/ separado dos outros pelo "Et", tem uma tonalidade
E o Homem sangrou preto em teu flanco soberano.] 10 bem mais sombria.

Podemos muito bem ler esse texro pelo simples pÍazer estético, deixando- O primeiro problema tem ver com o valor do adjetivo de cor colocado em
a

-nos levar pelo ritmo e pelo jogo das imagens. Aliás, é assim mesmo que deve- cada verso no hemistíquio: temos de considerá-lo como um epíteto destacado ou
apreendê-lo como um predicativo (caso no qual a cor designaria o resultado de
e ArthurRimbaud,"Létoileapleurérose...",Poésies.Paris:Gallimard,1984,p.Z9. um processo)? Se a segunda hipótese é a mais provável, é porque as cores reme-
10
Tradução literal, para que o Ieitor possa acompanhar a análise que se segue (N. T). tem semanticamente às partes do corpo feminino (é a orelha que é rosa, o dorSO
Ensinar literatura 7çl

portanto' uma que nasceu do universo, mas o universo é que saiu da mulher. As estrelas escor-
que é branco e os mamilos que são ruivos)' A "coloração" evoca'
figura feminina reram de suas orelhas, o infinito se desenrolou a partir da matriz de seu dorso,
troca entre os elementos cósmicos (estrela, infinito, mar) e uma
declinadas à o mar perolou de seus seios e o Homem surgiu de suas entranhas sangrando.
cujas partes do corpo (orelhas, nuca, quadril, mamas, flanco) são
A dimensão materna dessa figura, por outro lado, é enfatizada pela menção às
maneira de um brasão.
"mamas" (que aleitam) e do "flanco" (que dá à luz).
troca'
Antes de identificar essa figura, indaguemo-nos sobre a natureza da
Uma primeira leitura simplesmente lógica mostra, portanto, que o poema
A questão levantada é a do sentido da preposição "à" qrte, sob vários aspectos/
é uma celebração dirlgida a uma figura ao mesmo tempo maternal e sensual,
é a chave do poema.Trata-se de um à de direção ("ilaaàla
campagne"l"ele
? A maioria que parece ser a matriz do universo (estrela, infinito, mar) e origem de todas as
vai ao campo,,) ou de posição (" il est à la maison"; ele está em casa)
predicação). Tal coisas. O processo de geração se revela harmonioso até o último verso, em que
dos críticos a consideram como um à de direção (e, portanto, de
se produz uma mudança de foco: a aparição do Homem se apresenta como um
leitura leva a ler o poema como a celebração de uma figura feminina surgida
evento sombrio ligado à morte e ao sofrimento, ao mesmo tempo conclusão e
do universo (cada elemento cósmico colorindo - moldand
parte de
identificála a negação do processo de criação. Observe-se que as quatro cores (rosa, branco,
seu corpo). Como essa figura é eroticamente conotada, é tentador
interpre- ruivo, preto) são as das diferentes etapas do dia (aurora, dia, ocaso, noite): elas
Vênus, deusa do amor e da beleza, nascida da espuma das ondas. Essa
de uma evocam um ciclo cuja conotação global é negativa do nascer do sol (sinônimo
tação, que aliás esclarece o primeiro verso ("Vênus" é também
o nome -
observada de esperança) à chegada das trevas.
estrelall), parece respaldada por uma possível relação intertextual -
por P. Brunel com La Naissance de Vénus ("O nascimento de Vênus") de
-
Sully Proudhommel2.
DeVênus a Cibele
Mas há outra leitura possível, baseada na ideia de que o " à" \áo significa
,,na direção,,, mas "no interior de".É até mesmo possível que esse à designe
"Homem", portanto/ parece remeter a "ser humano" e não a "indivíduo do
uma relação de origem, de extração, e não de predicação ou de destinação'
o sexo masculino". Mas é legítimo hesitaç dada a evidência da isotopia sexual que
em direção ao
verso 3 parece sustentar essa leitura: o leite perola do seio e náo estrutura o poema. O texto não somente rende homenagem às partes eróticas do
começou a
seio. De igual modo, é dentro da (a partir da) orelha que a estrela corpo feminino como também podemos ler o último verso como uma metáfora
pôs a rolat, ou
chora[, e é da nuca aos quadris (a partir do dorso) que o infinito se da união carnal. O motivo da "ferida no flanco", recorde-se, é uma imagem ex-
até a se desenrolar. A ideia de que à designa a origem não sofre
mais nenhuma
plícita do ato sexual em Baudelairel3. O Homem poderia, assim, designar também
mitológica
dúvida se nos reportarmos ao verso 4. Conforme toda uma imagética o ser masculino enquanto tal por oposição à Mulhef, sedu;ora e voluptuosa.
absurdo conside-
bem ancorada na tradição, o flanco é fonte de vida. Aliás, seria
ora, é Mas talvez não seja necessário decidir. o que leva a pensar assim (além dos
rar que o Homem (a exemplo dos elementos cósmicos) moldou vênus.
dados objetivos do poema) é que essa celebração de uma figura mítica simul-
precisamente a isso que conduz a hipótese de um à de predicação'
taneamente erótica e materna (ligada, portanto, a uma sexualidade sublimada)
leitura que pa-
Que o tu sejaa fonte e não o resultado da metamorfose - não é inédita em Rimbaud. Recorde-se que o autor de "sensation" compara a
é fundamental para a interpretação do poema: não foi
a mulher
recc impor-se "Natureza" a uma mulher que o torna "feliz"l4. Sobretudo, porém, o poema
- num mesmo movimento, a "Grande mãe
"soleil e chair" ("Sol e carne") evoca/
, N^ * -d", vênus é o nome de um planeta que tem sido identificado
ao longo dos
"eslrela d'alva", chamada Vésper, Hésperq FósÍorq
*éculos,como a,,estrela da manhã" ou
u flanco espantado/Uma ferida larga e oca" (Baudelaire, À celle qui est
Eósforq Lúcifer etc. (N. T.). Fleurs du Mal. Paris: Le Livre de Poche,1972, p.59)'
12 y''li mar oferece seus atributos a Vênus' Cf' P' Brunel' Rim- trop gaie, in: Les
a icteia de que o
POR QUE ESruDAR LITEMTURA?
Ensinarliteratura 143

clos cleuses e dos homens,Cibele" e uma "Divina mãe, Afrodite marinha"ls' A Dor da criação
aproximação das duas figuras se impõe, aliás, naturalmente: é o amor como t'or-
Hesíodo, antes de Rimbaud, canta o nascimento do mundo. Tal como em
ça de vida que cria o elo entre a sensualidade e a fecundidade.
nosso quârteto, é a Terra Gaia que emerge, antes de tudo, do caos e dá ori-
São particularmente notáveis os pontos comuns entre essa Cibele/Vênus
gem aos elementos.
- -
Logicamente, ela é apresentada como uma figura materna
que, no fim das contas, não passa de uma alegoria da Natureza e a destina-
-tária do nosso poema. Além da interpelação admirativa a uma
-
figura que insufla
de "peito amplo"18. Hesíodo nos diz que ela "primeiro pariu Urano coroado de
estrelas". É difícil não traçar o elo com o primeiro verso ('â estrela chorou rosa
a vida no universo, estão plesentes nos dois textos o motivo do seionutridor e
no coração de tuas orelhas"). Mas a Terra não se contenta em gerar o Céu: "[ela]
o vínculo com o mar. Enfim, a estrofe seguinte parece iluminar o último verso
o tornou seu igual em grandeza, a fim de que a cobrisse por inteiro". Em outras
c{o nosso quarteto:
palavras, o Céu ("o infinito") "rolou branco" da "nuca" aos "quadris" de Gaia. Em

[...] Oh! rota é amargâ


a seguida, a Terra "gerou Ponto, o mar estéril de ondas fervilhantes". Não é o que
Desde que o outro Deus nos ata à sua cruz; nos diz o verso 3 ("O mar perolou ruivo em tuas mamas vermelhas")? O poema
Carne, Mármore, Floç Vênus, é em ti que creio! de Hesíodo também permite esclarecer o último verso: "E o Homem sangrou pre-
Sim, o Homem é riste e Íeio, triste sob o céu vasto [...]16
to em teu flanco soberano". Com efeito, da união de Gaia e de Urano nasce uma
Homem é "triste e feio", rompendo assim a harmonia cósmica, é por-
Se o série de seres monstruosos que Urano abomina. Assim, "à medida que nasciam/

que ele escolheu "o outro Deus" (o dos cristãos) contra a Natureza. Por isso, de- em lugar de deixar-lhes aluz do dia, Urano os escondia nos flancos da Terra e se

Certo/ é que Seu sangue/ no nosso quarteto/ é uma sujeira sobre o flanco da Terra-
regozijava dessa ação desnaturada. A Terra imensa gemia, profundamente entris-

-Mãe. Observe-se que encontramos essa mesma evocação de uma figura soberana/ tecida [...l".O "flanco soberano" da Terra se torna, pois, o objeto de uma ação
rnas ferida, no poema que o colegial Rimbaud escreveu em latim sobre JugurtalT: contra-natureza geradora de sofrimento. A imagem do "sangue preto'/ remete
talvez, também, à vingança de Saturno, que cuidou de castigar esse pai indigno,
Em seu flanco soberano, vi a chaga profunda! '..
castrando-o. Segundo aTeogonia, as "gotas de sangue", brotadas do membro ü-
A sede sagrada do ouro escorria, veneno imundo,
ril, fecundaram a Terra: delas saíram as Fúrias, os Gigantes e as Ninfas melíades.
Difundido em seu sangue/ em seu corpo todo coberto
Quanto a Afrodite, nasceu dos fragmentos do sexo de Urano lançados ao mar.
De armas! E uma puta reinava sobre o Universo!

O projeto daTeogonia é mostrar como da confusão originária (o caos pri-


A "sede do ouro", vício humano, transformou a Roma universal em
mordial; aparecem progressivamente as distinções e as divisões, que vão fazer
"p\ta" vulgar. Significativamente/ encontramos nos dois textos a imagem do
surgir os deuses e, depois, os homens. Esse relato das origens, entretanto/ tem
ílanco ensanguentado e do sangue corrompido.
um lado muito sombrio: a emergência progressiva da hunanidade se faz contra
"Ilétoile a pleuré Íose" Natu-
é, portanto, mais do que uma celebração da o fundo de feridas, de sofrimentos e de mutilações. Como se o nascimento do
reza genitora; é uma reflexão sobre a relação do Homem com o mundo natural Homem tivesse como inevitável contrapartida o fim da harmonia cósmica. Esse
c sobre o lugar dele na Criação. Essa meditação passa por um diálogo com os pessimismo aparece desde o início do texto. A Terra gera o mundo porque coe-
tcxtos antigos, dois dos quais se impõem forçosamente: aTeogonia de Hesíodo xiste com Eros: o amor (ou o desejo) permite que os elementos se unam numa
c' o De rerum natura de Lucrécio. dinâmica criadora. Mas quando evoca Eros, Hesíodo insiste mais em seu poder
coercitivo do que na energia vital que o constitui: sem dúvida, ele é "o mais belo
ts lbid.,p.23-29. dos deuses", mas "amolece as almas e, apoderando-se do coração de todas as
t6 lltid.,p.25.
Juguria (160 a.C. - 104 a.C.) foi um rei da Numídia (região do norte da África equivalente
17
18 Cf. Hesíodo,LaThéogonie. Trad.: M. A Bignan, <http://remade.org/bloodwolf/poetes/
às faixas litorâneas atuais cla Tunísia, da Argélia e clo Mamocos) que se opôs à conquista
t^l I I ) I LL^^-^-:^ L+*\
divindadcs c dc todos os hourens, triunfa sobrc a vontacle ser.rsata cleles,,. reprime o prazer carnal, o poeta apela à força instintiva do amor e do desejo. Úni-
eue
n força na origem da vida seja tambi'm um pocler c{e alienação não é coisa de ca lei da natureza, Eros une o conjunto das coisas vivas numa comunidade feliz.
lronr irgouro. É possível pensar que essa arnbivalência se encontra no poema de
Se, para o poeta latino, o conhecimento das leis naturais pode nos permitir
[timbaud: a Natureza parece, inicialmente, celebrada como figura do amor e da
recuperar a harmonia, a visão rimbaudiana parece mais pessimista e desenganada.
bcleza antes de ser estigmatizada pelas forças obscuras que ela mesma gerou.
Aos olhos do autor de "soleil et chair", a ciência não tem os meios de cumular
nossa necessidade de absoluto; ela é incapaz de responder aos grandes mistérios
do mundo. "Ilétoile a pleuré rose" é ainda mais desesperado: é como se, ao se des-
A N atureza corrompida üar da natureza, o Homem tivesse rompido definitivamente o equilíbrio cósmico.

ooutro autor implicitamenre convocado é Lucrécio. Rimbaud conhecia "S.§*. S


muito bem o De rerum naturai estudante em charleville, traduziu em 1g69 o
Independentemente do efeito estético que pode (ou não) produzir, esse
"Hino a vênus" que abre o longo poema. É inte.essunte observar que Lucrécio poema condensa certo número de informações que podemos constituir em 5a-
irpresenta a deusa do amor como uma figura genitora, na origem de toda forma
beres. Pouco importa se os conteúdos veiculados tenham ou não sido conscien-
dc' vida: "Ó Mãe de Eneias e de sua raça,
[...] por ti é que todas as espécies vivas tes no momento da escrita do poema: o essencial é que estejam efetivamente
são concebidas"le. vênus parece confundir-se assim com a Natureza, como em presentes no texto e que possamos identificá-los. A riqueza, a diversidade e a
"soleil et chair" e em nosso quarteto: 'Assim tu governas sozinha a natureza e originalidade do sentido expresso é que fundam o interesse artístico do poema.
[...] sem ti nada aborda as margens divinas daluz, nada se produz de suave e de Apresentando-se como uma cosmogonia, ele exprime uma visão do universo e
arnável". vênus é, portanto, uma figura positiva em Lucrécio: o poeta a invoca do lugar que nele ocupa o Homem. Mas a celebração de Vênus/Cibele também
porque, potência criadora, ela pode ajudá-lo a escrever ("chamo-te em meu au- é um discurso sobre a mulher. A combinação dos atributos eróticos e maternos
xílio para o trabalho deste poema"). De igual modo, o quartero de Rimbaud não faz delauma figura ao mesmo tempo carnal e intocável: por trás da Sedutora, a
seria também uma meditação sobre a criação poética? Mãe. Se o parto se faz na dor (a estrela chora), é porque a sexualidade é vivida
como um atentado, do qual o próprio homem sai subjugado (o "veneno" baude-
Mas o diálogo entre Rimbaud e Lucrécio vai muito além dessa comum
lairiano se degradou em "sangue preto"). A harmonia entre os sexos não parece
invocação de vênus. o autor de De rerum natura estigmatiza a religião e seu
menos utópica do que o encontro do Homem com a Natureza.
"olhar horrendo". Epicuriano, Lucrécio está convencido de que a compreensão
das leis naturais libertará o homem das crenças irracionais, que constituem en- I

traves ao acesso à serenidade. Essa oposição se acha no âmago do nosso quarteto:


os três primeiros versos cantam uma natureza carnal e sedutora; o último verso #
Os meios
rlos refilete a uma visão do homem sofredoç que se enraízanuma imagética cris- fl
tã (a ferida no flanco lembra a do cristo na cruz). se aceitarmos o paralelo com I Se o propósito da análise literária é a identificação dos conteúdos, res-
Da rerum natura, a vênus de Rimbaud, então, deve ser considerada menos como ta saber como proceder. Existem protocolos mais eficazes que outros?
urna divindade pagã que poderíamos opor ao Deus dos cristãos do que como a
cncarnação da natureza maricial que se basta a si mesma e torna inútil toda re-
fcrência a um poder divino superior. Contra o cristianismo, religião da culpa que Depreender o sentido (a investigação arqueológíca)
r') Lucrécio, De natura rerum,Trad. H. Entre os saberes veiculados por um texto, é claro que se tem aqueles
Clouard, <http://www.mediterranees.netihistoire
romaine / empereurs_lsiecle auguste /lucrece.html>.
/
que se inscrevem no universo cultural do autor e de seus contemporâ-
Ensinarliteratura 147
L46 POR QUE ESTUDÁR LITERATURA?

#
neos. Mesmo que tantos textos aindanos falem, não podemos esquecer tituindo esse quadrozz. A identificação dos intertextos é, desse ponto
que eles se dirigiam em primeira instôncia aos leitores de seu tempo. de vista fundamental. O que entender do Shamela, de Fielding/ se se
Portanto, há toda a lógica em nos interrogar sobre a maneira com que ignora o Pamela de Richardson (do qual o Shamela é uma reescrita Pa-
ródica?) Como Ler o Lllisses, de Joyce, se não se souber nada de A Odis-
a obra era entendida enquanto seu autor vivia. Para F. Rastier, essa
seia? E possível abordar os textos de Beckett sem ter lido Descartes e, a
"leitura descritiva" (que aborda um texto a partir do conhecimento de
seus primeiros leitores) deve ser o passo prévio para "leituras produ- fortiori, Geulincx e Berkeley; mas tê-los lido permite apreender melhor
o que os textos de Beckett exPrimiam na época em que foram escritos.
tivas" (que reinvestem o texto em função dos contextos'de recepção)20.
Mesmo que os conteúdos originais não sejam necessariamente os mais A identificação do sentido históricg contudo, não seria caPaz de exaurir
interessantes, importa conhecê-Ios PaÍa mensurar o valor e a pertinên- a análise. O texto literário também (e sobretudo?) extrai seu valor dos
cia das interpretações posteriores. conteúdos que antecipa. Uma obra passa pua a posteridade quando é
capazde responder a outras questões, além daquelas que eram postas na
Contudo, não é infrequente que o sentido inicial (que pode ser perfeita-
época de sua criação. Não há dúvida de que é isso que Jauss quer dizer
mente plurívoco) tenha se opacificado com o tempo. Como o nota He-
quando Íaz darecepção o aferidor da história literáriats. Se o valor de um
gel, é muito difícil talvezimpossível imergir em um universo cul-
- - texto resulta dos saberes não conceitualizados que ele contém, um estu-
tural que não seja o nosso. Só podemos apreendê-lo desde o exterior:
do literário 'tompleto" tem de dar testemunho dessa riqueza cognitiva.
Sob todos esses aspectos , aarteé e permanece sendo, do ponto de vista de
sua mais alta destinação, algo do passado. Ela também perdeu para nós
suaverdade e suavitalidade autênticas e foi relegada anossa representação Perseguír o sentido (do bom uso da teoría)
t...]. A ciência da arte é, então, em nossa época uma necessidade mais
forte do que nos tempos em que a arte tinha o privilégio de satisfazer Num plano geral, o recurso a modelos de interpretação exteriores à
plenamente por si mesma21.
obra parece indispensável a toda leitura produtiva2a. ConÍrontar um
O primeiro papel do ensino é, então, munir o leitor da inÍormação ne- texto com uma nova grade de análise faz surgirem conteúdos efeti-
cessária para que as obras voltem a lhe falar. Como fazet ídeia do que vamente presentes que ainda não tinham sido atualizados. Pensemos

A canção de Rolland representava sem um mínimo de conhecimento da naquilo em que se transforma um romance como Madame Boaary, a
depender de se o submetemos a uma leitura socioió$c4 psicanalítica,
sociedade feudal? Como atualizar os implícitos de um texto de Tols-
antropológica ou filosófica.
tói sem conhecer nada da Rússia na segunda metade do século XIX?
Se, como o nota Danto, o sentido de uma metáfora está vinculado ao
22 "Poderia ocorrer que em outros lugares e em outros tempos, a aÍirmativa'os homens são
quaclro cultural no qual ela é utilizada, só podemos reavivá-la recons- porcos' fosse uma metáfora desprovida de qualquer caráter oÍensivo, PoI conta, Por exem-
plo, da raridade ou do valor clos porcos naquela dada cultura" (4. Danto, La Transfiguratíon
du banal, op. cit., p.295). Podemos, tranquilamente, estender essa observação ao conjunto
;rrr 'A le'tura produtiva reinterpreta o texto segundo o arbítrio do receptor, pal€ Íazê-lo
dos enunciados de um texto.
cprrcsponcler a situações e a referentes novos, estando até mesmo disposta a reescrevê-lo
'?3 Cf. H. R. Jauss,
Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard,1978 [ed. or.: L972].
parciaimente. [... I A leitura clescritiva responde ao moclesto, mas ambicioso, objetivo de re- 2a
A força clas análises literárias provém exatamente de seu asPecto voluntarista. Visando a
c6nstituir o conteirclo clo texto reconstituindo o entorno da comunicação inicial" (F. Rastier,
urn objetivo e possuincto urn método, elas se distinguem das leituras espontâneas, frequc'n-
Srls el. tcxlualitt, ttp. cit., p. 51-52. la arrnl rrãn +ôrr rnrrcriênria
148 PoR QuE EsruDÁR LtrÊRATuRA?

que the Pareça rt$l&


"trinchar" no interior do texto uma forma
interpretativo vai procedeç
na obra' a da realidade factual tl
É evidente que todo sistema
Não va, esse resto não deixa de ser devedor ..transformar,,.
entre o essencial e o contingente' ..Selecionar,, não é nem ..inventar,,, nem Ninguóm I
uma partilha que the é própria quem se
componentes no texto de Flaubert derá me contradizer se eu contesto
uma interpretação de Embuead
dará atenção aos mesmos
do século XIX ou morena da duquesa de Guerm8'Íi.
interesse pela imagem da
vida provinciana na França tempo perdido,fundada na cabeleira
uma
da "luta de consciências" em tes26: as leituras baseadas em
uma construção objetal equivocada (qUe
quem persegue ali uma declinação tem nada de obra) não decorrem
inerente a toda leitura não a respeito de certas propriedades da
ótica hegeliana' Essa limitação não exclui'
se engana
ponto de vista sobre o texto
redutor. O fato Au uiotu' um como não
da análise do texto.
de outras perspectivas' Mas' próprio modo operatório' Mas'
evidentemente, a possibilidade em Cada teoria tem, evidentemente' seu
tempo' somos como que obrigados'
se pode fazer tudo ao mesmo em jogo a dadaaespecificidadedostextosliterários,parece,aposteriori,queto-
do que está especificamente
uma situação d'ada e em função sobre o movi- das as abordagens podem tirar proveito
das seguintes operações:
físico levanta uma hipótese
fazer escolhas' Quando um que o único como expressão autônoma' Vi-
deduzitádaí que ele acha A primeira consiste em analisar a forma
mento de um pt"t"tu' ninguém essen-
..interesse,,doplanetaem-questãosejagirarsegundotaltrajetóriaem *à, qru, na obra lTterátia,o sentido (enquanto sintoma) Passava
for comprova-
Simplesmente' se a hipótese cia]mentepelosigniÍicante.Aanálisedaescritaé,entáo,amelhorfor-
função de tais parâmetros' analisado e sobre o de uma obra' Poderemos
da, se saberá mais sobre alguns aspectos do objeto ma de ir ao encalço dos conteúdos explícitos
maneira de abordar o mundo'
Se' de mundo resultante da regra de
caráter operatório de deterLinada perguntar, por exemPlo, qual é a visão
ironicamente' "[se] tem dificuldade
em ima-
três unidades na tra!édia clássica
ou, em outro registrq o que exprime
como M. Charles observa
a promoção do fragÃento na
narrativa contemporânea. o estudo pode-
ginarum'método'psicanalíticoque'aplicadoàscegas(ouseia'efetiva-
de uma obra bem como em uma
menteaplicado),fossedaremumarededesignificaçõesnãolibidinais rá se fundar na arquitetura de conjunto
em
por exemplo' a uma formulação componenteparticulardotexto(retrato'cena'descrição)'Nessesegundo
do texto esfudado (mas chegaria'
é simplesmente Porque uma
resposta só
caso, estudar o valor expressivo
da forma equivale a considerá-la como
termos de luta de classe")ã' não é ape- dá a esse termo:
à pergunta feita' Um indivíduo uma "figura", no sentido que B' Gervais
tem sentido relativamente,,animJpohtico",
ou um sujeito culfural; mas um trabalhq
nas um ,", uiotogico. um em si' ela.é apenas o resultado de
biológi- [...] a figura não existe
um biólogo o analise em termos Trata-se Ot"^3 forma da qual
ninguém se aa"írara de que termos de uma relação, até de uma projeção'
ela é um signo de
cos, um politólogo
t"'io' políticos' ou um historiador' emtexto' o nos apoderamos e que manipulamos'
Por
""u '-ão'
"*acontece quando o obieto de estudo é
um
grandedinamismo' EIa puxa para si e atrai'
Ela é esse algo de que se
históricos. o *u3*o inscreve em empreendimentos de
tem ideia e que, ao mesmo tempo' se
caráternecessariamentecircunscritodetodaanálisetem'porsinal'um
um texto diz entendimento e de interpretação27'
de um sistema de referência'
sentido positivo: no quadro
perfeitamenteaquiloquediz(issoPoÍquecada..leitura',ou..interpreta- Umdadotextualsósetornafguraseoleitorfizerdeleumsignoinde.
O *'ito mais luminosa
do que o texto em si mesmo)'
ção" de um textà pendente,dotando-odeumadimensãosimbólica.Acrescentemosque
legíti-
daí que todas as leituras são
Não se poderia, é claro' deduzir escolha' exceto [rembremos que ela é loira'
comentador não tem outra
2{'
vol. I. Montréal: Le Quartanier'
mas. Se é verdade que o 27 B, cervais, Figürcs, *rí"ir, -
Logiqucs de r'imaginaire,
Ensinar literatura 151
t ,r^ art.tr-^- tr*

do claramente uma relação carnal31. É por isso que se torna difícil in-
a divisão operada deve ser caucionada, a posteriori, pelo interesse
terpretar o final de O aermelho e o negro como a tomada de consciên-
sentido identificado.
cia por Julien da negatividade de seu percurso32: longe de lamentar
Uma segunda operação produtiva- consiste em nos seu comportamento passado, o personagem Perseveraria na lógica
-frequentemente
interrogar sobre os "lugares de incerteza"s de um texto. Podemos defini- que o levou a esse fim trágico.
-los, com J.-L. DuÍays, como "unidades de sentido que suscitam a pel-
Os "lugares de incertezd'estão, finalmente, muito próximos das "disfun-
plexidade do conjunto dos leitores Porque elas constituem inÍrações
aos

princípios de coerência e de não contradição que regem o desenvolvi- ções", tais quais definidas por M. Charles. Trata-se das incoerências -
tolices ou acidentes combinados que estão na fonte das diversas inter-
mento do sentido global'ze.De fatq é frequentemente nas configurações -
que pretações que podemosf.azer de um texto: 'A disfunção surge como uma
textuais marcad.as pelo fluxo, pela obscuridade e pela ambiguidade
completamente' condição necessária da dinâmica do texto, o acidente que permite Passar
se exprime algo de singular que o autor não controla
de um equilíbrio a outro"33. É pelo fato de apresentar objetivamente uma
Reportemo-nos, a título de exemplo, ao final de o aermelho e o negro. série de dificuldades que um texto autoriza vários investimentos e dá
Rênal. Ele se dirige a ela
]ulien está preso e recebe a visita da sra. de fugr,no decorrer da históri4 a leituras múltiplas e mutáveis.
nos seguintes termos:
Uma terceira abordagem consiste em levar em conta os "resíduos"3a
Saiba que semPre a amei, que só a você amei' deixados pelas leituras anteriores, em se concentrar nas propriedades
-
_ É bem possível!, exclamou a sra. de Rênal, Íeliz por sua vez.
Ela se
do texto que não combinam com as interpretações resenhadas. Mesmo
apoiou em que estava ajoelhado diante dela, e por muito tempo
Juliery sendo habitual ler o comportamento de Grange em Un balcon en forêt
choraram em silêncio.
como uma tentativa de "desrealizar" a gúetta, de "abrir esPaço Para
Em época alguma de sua vida, ]ulien tivera um momento como aquele'
si", como dar conta da "distensão" e do "alívio" sentidos pelo persona-
Muito tempo depois, quando puderam se falar ["']30'
gem quando a batalha se desencadeia?3s
A maioria dos críticos preenche a elipse ("Muito tempo depois") Nessa busca de conteúdos implícitos, o risco da sobreintepretação é
do modo seguinte: os personagens estão tão emocionados que claramente permanente. Por isso é necessário ter proteções.
palavra alguma pode sair de sua garganta' Mas é possível proPor
outra leitura: a insistência no caráter excepcional do aconteci- rr Essa outra leitura, proposta por P. Barbéris em um estudo inéditq é raüÍicada por Y.
mento (,,E* época alguma de sua vida, Julien tivera um momen- Ansel nas notas da edição de La Pléiade: "Em algumas linhas, a leitura [...] de P Barbéris
varre de uma só penada todas essas glosas edulcoradas que gostariam de puxar Julien para
to como aquele"), o contato físico entre os Personagens ("Ela se a transcendência; entre Julien e a Sra. de Rênal não existe apenas um diálogo de almas, mas

apoiou em Julien, que estava ajoelhado diante dela") e, sobretu- encontro de corpos"(lbid., p.1132). .
r2 Para alguns críticos, em um último retorno sobre si, o herói se daria conta cle que o não
clo, a importância da duração ("muito tempo") sugerem muito cla revolta é sinônimo do assujeitamento. Ver a notícia de M. Crouzet na edição Garnier-
-Flammarion de O aermelho e o negro (Paris,1964, p.28)
rr M. Charles , lntroduction à l' étude des textes, op. cit., p.167 .
?r A fórmula é de M. Otten (Sémiologie cle la lecture, in: M' Delcroix e F. HallYn [orgs.], r'r lralaremos de "resícluo" quanclo "o leitor identifica uma ou várias unidades semânticas
Méthodcs du texte. Paris: Duculot,l99O, p' 343)' quc nã«r sc integram ao sistema cle significação que ele desenvolveu" (J.-L.Dúays, Stéréo-
1) ).-L, Dufays , Stóróotqpe et lccturc, op, cit., p.156,
lvptt tl lttctttrc, op, cit., p.'156),
iro qtondhà1, ct lc noir, irt: (T-uttrcs ro,il(tn(!§qtte§ tr»l4r/àftrs, ttlm«l I, l'nris: Gallitnurcl,
virtudes da coerêncía) criaclor interessante3T), mas o preço a pagar é sempre a morte da obra
Controlar o sentido (as
original como reservatório de sentido. Como o nota ironicamente Eco,
O ciesafio dos estudos literários é perseguir sentidos efetivamente se a intenção da obra não tem importância e se só importar o deseio
presentes, não projetar na obra sentidos que não estão ali. A fronteira do leitor, tanto fazexPlorar com toda a liberdade as irregularidades do
pode parecer indefinida; mas ela é essencial, porque separa duas abor- asfalto ou os buracos das paredes: não se precisa de texto algum para
clagens da literatura.A primeira nega a alteridade do texto ao afirmar explorar as "possibilidades de mensagem que a natureza e o acaso
que o único interesse que ele tem é aquele que cada leitor the dá. A põem à [nossa] disposição"38. se a obra tem um interesse, não é tanto
segunda lhe atribui um valor próprio ao aceitar a ideia de que é como enquanto espelho d.e meu ego, l0rtas como objeto que, justamente, resis-
ela me opõe a uma sensibilidade e
outro, exterioridade, que ele tem algo a nos dizer e não como virtu-
-
te a minha reapropriação
- porque
a um ponto de vista que não são obrigatoriamente os meus'
alidade inteiramente assimilável.
Mas, uma vez estabelecido que a função de um texto não é refletir
Em sua versão mais argumentada, a primeira concepção se inscreve
as preocupações do leitor, como distinguir os conteúdos efetivamente
em uma abordagem "retórica"36 da literatura, que me parece difícil se-
presentes dos conteúdos simplesmente Projetados? Especialmente no
guir até o fim. se modificarmos a arquitetura de um texto para ProPor
caso de uma leitura "produtiva", que se dedica a conceitualizar em ter-
obje-
uma "variante" dele, não teremos mais
- isso é fato - o mesmo um mos que the são próprios conteúdos dos quais os contemPorâneos do
to. É como se descontruíssemos a sé de Olinda, de maneira a obter
texto não podiam ter consciência?
monte de tijolos dos quais nos serviríamos Para construir outro edifí-
cio. Poderíamos considerar eSSa nova construção como outra versão Para ter certeza de que o sentido identificado está objetivamente Pre-
"iso-
(possível) da sé de olinda? Evidente que não: simplesmente teríamos sente, é necessário que ele seia caucionado por uma relação de

outra criação. No limite, poderíamos conservar apenas as palavras de morfismo" com o texto no qual ele se desvela. Tomo emprestado a Wit-
tgenstein3e o termo "isomorfismo" e o uso (muito livre) que proponho
um texto, servir-nos delas para comPor outro texto e pretender que
fazer dele é de minha exclusiva resPonsabilidade. Segundo o autor do
ele estivesse virtualmente contido no primeiro; nesse sentido, todos os
Tractatusa\, se a linguagem é caPaz de representar o mundo, é porque
textos são textos possíveis do dicionário. O que se perde nesse tipo de
existe uma correspondência entre uma expressão e aquilo que ela ex-
abordagem é aintençdo do texto, isto é, o sentido que, voluntariamente
prime. Wittgenstein pensa a linguagem a Paftir do modelo da imagem:
ou não, o texto exprime. o "comentário retórico" vem in fine substituir
uma obra pela outra: às vezes, se ganha com isso (se o leitor for um (como é frequentemente o caso dos
" a"rrrd. * "p-a sobre uma erudiçãoqueflamejante
"uma meditaçãobrdenada sobre os possíveis
pesquisadores dã grupo Fabula), é certo
r{, Na teoria dos "textos possíveis", tal como apresentada no site Eabula, a retórica é consi- i ipot"*t rui, de que o texto é portador" não carece de encanto (c/ M' Escola e S. Rabau,
Inventer la pratique: pour une ihéorie des textes possibles, in: La Lecture littéraire,
n' 8, "La
clerada, ao mesmo temPo, como uma "ciência descritiva" (cuja aposta é, na trilha da poética
case blanche", oP. cit., P.20).
tradicional, mostrar como um texto produz significações) e como uma "técnica produtiva'
(que vai dar em reescritas):'A teoria dos textos possíveis [...] vai na contramão dos pre-
t
38 U. Eco, Gwre ouoerte, op. cit., p.134.
3e 1993 [ed. or:.1921)'
cf. L. wittgensteiç Tractatuslo§ico-philosophicus.Paris"Gallimard,
conceitos que dominam o exercício do comentário, confrontando esse ou aquele texto 'real' que pode
o0Lembremos que Wittggenstein não se limitará a essa concePção de linguagem,
corn aquilo que ele poderia ter sido [...]. Trata-se, entãq de Promover um novo estilo de Também é preciso levar em
ser acertadame.rte co.,siáerada como bastante reducionista.
comentárig que conjuga ao máximo gestos metatextuais e intervenções hipertextuais - de linguagem a realiclade, a linguagem
conta que se não existissem "pontos comuns" entre a e
conceber o comentário como a produção de uma variante clo texto considerado" <http:/
jamais poderia rePresentar a realidade.
www f abula. or g i atelier.php?Textes-possibles>.
154 PoR euE ESrupÁR urEÀÁruRÁ?
#
para que uma imagem seja imagem de algo deve haver pontos comuns com a monarquia absoluta que a pôs para escanteio, sabe que não pode
entre a imagem e aquilo que ela representa. Esses pontos comuns Íeme- existir sem o rei). Existe, portanto, uma relação de "isomorfismo" entre
tem a uma identidade de estrutura: se não temos a menor dificuldade algumas peças de Racine, a visão de mundo jansenista e a situação da
para interpretar o desenho de uma mesa como remetendo a uma mesa nobrezade manto sob Luís XIV.
(apesar de o desenho de uma mesa e a mesa não terem nem o mesmo
volume, nem as mesmas cores/ nem o mesmo tamanho etc.), é porque o Interpretar equivale, portanto, a vincular a coerência da obra à coerên-
desenho reproduz, a partir de algumas convenções, a estrutura que é a cia das representações que existem fora da obra. Esse critério de "coe-
estrufura do objeto "mesa". A semelhança, entãq não é indispensável à rência" não é incompatível com a atenção que o intérprete deve dis-
relação isomorfa: basta que possilnos estabelecer uma correspondência pensar às disfunções. Ao contrário. Não apenas a disfunção só é iden-
termo a termo entre uma imagem e aquilo a que ela remete. Um exem- tificável no horizonte de uma coerência como convida a buscar uma
plo simples é o do mapa rodoviário: a cada ponto do mapa corresponde nova estrufura no seio da qual ele recuperará alguma pertinênciaa3. É
um lugar; a cada linha, uma rodovia etc. O mapa não se parece com a isso o que varnos verificar na análise de um conto de M. Tournier.
malha rodoviária de um país, mas reproduz sua estruturaal.

Uma interpretação só será pertinente se o conteúdo que ela acredita


assinalar apresenta uma estrutura recuperável no texto. Essa é a única
maneira de mostrar que a obra é (ou poderia ser) um sintoma desse MnacRosAS FUSõES
sentido. A útulo de exemplq podemos nos referir aos trabalhos de L.
Goldmanna2 trabalhos já antigos (e, atualmente, muito criticados), (M.Tournier, "La Màre Noêl,")
-
mas representativos de até onde pode chegar uma abordagem funda-
mentada na homologia das estruturas. Como o demonstrou o autor do
Dieu caché, as grandes peças de Racine estão construídas em torno do A aldeia de Pouldreuzic conheceria um período àe paz? Havia lustros, ela estava
dilacerada pela oposição dos clericais e dos radicais, da escola livre dos Irmãos e da
conflito entre as exigências do herói (que funcionarrn como um impera-
comunal laica, do pároco e do professor primário. As hostilidades que tomavam
tivo absoluto) e o mundo (que não the permite realizar suas exigências). emprestadas âs cores das estações viravam iluminura lendária nas festas de Íim de ano.
A tragédia do herói raciniano tal como a exprimem, entre outras, A missa do galo ocorria por razões práticas em 24 de dezembro às seis horas da tarde.
Fedra, Berenice ou Andrômaca
- é que, mesmo detestando o mundo Na mesma hora, o professor primário, disfarçado de Papai Noel, distribuía brinquedos
-
que não responde a suas aspirações, ele é obrigado a viver nele. Ora, aos alunos da escola laica. Assim, o Papai Noel se tornava por seus cuidados um herói
pagãq radical e anticlerical, e o pároco lhe opunhà o Menino Jesus de seu presépio vivo
L'ssa "estrutura" é recuperada na concepção jansenista (o homem
como determinado por Deus está condenado a viver em um mundo
- - célebre em todo o cantão - tal como se lança um jorro de água benta na cara do Diabo.
-
corrompido e incompatível com a fé) e no olhar desencantado de um Sim, Pouldreuzic conheceria uma trégua? É ql.r" o professor primário, tendo se

aposentado, fora substituído por uma professora forasteira, e todo mundo a observava
grupo político (a nobreza de manto, a despeito de sua hostilidade para

a3Isso é muito útido no "protocolo de leitura' de M. Charles, que propõe um procedi-


'rr Para dar outro exemplo, há isomorfismo entre o molde de uma roupa e a roupa cla cos- mento em quatro tempos: construir uma primeira coerência do texto com base em hipóteses
turcira que resulta do molcle. Ver R. Pouivet, L Esthétique est-elle exprim able? , in: Lire Good- culturais (acerca do autor, da obra, dos gêneros etc.); situar os objetos dos quais ela não clá
iltail, op, cit,, p.117. conta; construir uma segunda coerência ("racional") que avalie os elementos problemáticos;
4r Cf. L. Golcllnann, Lc L)ieu cachú.Paris:
Callimarcl, 1t955. ,,..-iúi^-- ,,Cl^,1..i^.1^,,-^ ,/,lr:*^ l.,it .-,^ tl,,t-^),,^L:,,- à ttit,,,1^ )^^ tauta,. aa ,.:[ An /-1\
ll0r'0 $obcr enr qu.: bando cln tocnvo, A sru, oisclin, mãe de duas criançns - uma das Conforme indica a definição do gênero, estamos lidando com um "conto
rlttois urn bcbê ilc trôs meses -, cra c{ivorciadn, o quc parecia uma garantiâ de Íidelidade
de Natal". Espera-sg portanto, encontrar na narrativa as propriedades e os ele-
laica. Mas o partido clerical triunfou desdc o primeiro domingo, quando se viu a nova
profcssora fazer uma entrada nada discreta na igreja. mentos característicos do gênero.

Os tlados pareciam lançados. Não haveria mais árvore de Natal sacrílega na hora da A palavra " conto" remete/ geralmente/ a um relato curto que põe em cena
rnissa da "meia-noite", e o pároco ficaria como único senhor do terreno. Assim, foi acontecimentos imaginários. De fato, o início do texto evoca um espaço indeter-
grande a suPresa quando a Sra. Oiselin anunciou a seus alunos que nada seria mudado
minado (o nome "Pouldreuzic" é dado sem outra especificação) e a expressão
na tradição e que o Papai Noel distribuiria seus presentes na hora habitual. De que
"havia lustros" recordando o tradicional"etartrrravezt/ remete à intempo-
lado ela estava? E quem faria o papel de Papai Noel? o carteiro e o guarda florestal, - -que os eventos relata-
em quem todos pensavam em razão de suas opiniões socialistag afirmavam não estar ralidade dos contos de fadas. A menção "de Natal" indica
a par de nada. o assombro chegou ao cúmulo quando se soube que a sra. oiselin dos se desdobrarão nas imediações de 25 de dezembro e que o desfecho será felü
emprestaria seu bebê ao pároco para fazer o Menino jesus do presépio vivo. (o período de Natal é propício para "milagres"). Espera-se também encontrar no
No princípio, tudo correu bem. o texto à escolha ou simultaneamente as duas grandes referências do conto
pequeno oiselin dormia de punhos cerrados quando
- -
os fiéis desfilaram diante da manjedoura, de olhos arregalados pela curiosidade. O boi e de Natal: o relato evangélico (o nascimento de Cristo) e o maravilhoso pagão (a
o burro - um boi de verdade e um burro de verdade pareciam enternecidos diante do únda do Papai Noel).
-
bebê laico tão milagrosamente metamorfoseado em Salvador.
Segundo as regras do gênero, o conflito no centro da história se funda numa
Infelizmente, ele começou a se agitar a partir do Evangelhq e seus urros explodiram no
oposição simples e de enorme legibilidade.A partir da segunda frase, sabemos que
momento em que o pároco subia ao púlpito. |amais se tinha ouvido uma voz de bebê
ele põe em jogo os laicos e os clericais a propósito da organização e do conteúdo
tão tonitruante. Em vão a mocinha que fazia a Virgem Maria o embalou contra seu seio
magro. O fedelho, rubro de raiva, vibrando braços e pernaE faziaasabóbadas da igreja da festa de Natal. A divisão da comunidade social em dois campos se encontra no
ecoarem seus gritos furiosos, e o pároco não conseguia düer uma palavra. nível da linguagem. O léxico laico ("radicais", "comunal laica", "professor pri-
Finalmente ele chamou um dos coroinhas e lhe deu uma ordem ao ouvido. Sem tirar a
mârio" , " razóes prâticas" , "Papai Noel", "herói pag,ão" , " radical" , "anticlerical")
sobrepeliz, o menino saiu, e ouviu-se o ruído de suas galochas diminuir do lado de fora. se opõe claramente ao léxico clerical ("escola livre" , "LÍmãas" , "pâÍoca" , "missa
do galo", "Menino Jesus", "presépio vivo" , "água benta" , "Diabo").
Alguns minutos depois, a metade clerical da aldeia, reunida por inteiro na nave, reve
uma visão inaudita que se inscreveu para todo o sempre na lenda áurea de todas aquelas
1l
Como todo conto, "La Mêre NoêI" se vincula à tradição popular e à me-
redondezas. Viu-se o Papai Noel em pessoa irromper na igreja. Ele mória coletiva (o conflito ideológico que opõe os dois campos é bem anterior ao
l
se dirigiu com grandes
passadas à manjedoura. Em seguida, afastou a grande barba de algodão brancq desabotoou
início da narrativa e se enraíza na história da Bretanha, ou mesmo na história
o casaco e estendeu um seio generoso ao Menino Jesus repentinamente apaziguados.
da França). Marcado pelos valores e pelos códigos da comunidade na qual se ins-
creve, o texto tem um âspecto didático, senão moral: o desfecho aPresenta uma
üsão tranquilizadora do mundo e transmite uma "lição".
A leitura descritiaa: Esse texto linhagem dos contos tradicionais: espelho
se situa, portanto, na
um conto didático sobre a guerra das escolas do homem, ele estigmatiza seus defeitos ao mesmo tempo em que afirma a
força de seus ideais. Os moradores de Pouldreuzic, apesar de suas fraquezas, se
uma primeira leitura pode se dedicar a deduzir base nos sinais
cxplícitos o projeto original do texto.
revelam capazes de ultrapassar suas divergências para refundar sua comunidade
- numa unidade renovada.
r{ M. Tournier, La Mêre NoêI,
conte de NoêI, in: Le coq de bruyàre. paris: Gallimar d,197g, p. Essa primeira leitura apoiada nos dados do gênero e no conhecimento
27-3'1.
-
deixa atrás de si, no entanto, um bom número de resíduos.
da tradição
-
drí hngrndr lrt0raturn lo,

--fls.*
Um conto de t'adas bem realista não só o laico e o clerical (a professora comparece à rnissa), mas talnbém o marn-
úlhoso e o sagrado (Papai Noel conüve na manjedoura com o Menino ]esus), o
Ernbora rotulado de "conto de Natal", o texto apresentâ uma
série de ób- mundo dos adultos e o mundo das crianças (o pequeno Oiselin participa da rnissa
vias rupturas com as regras do gênero.
do galo), o masculino e o feminino (Papai Noel estende "um seio generoso"), a Vin
Enquanto o conto tradicional assume seu statusde ficção (os fatos gem Maria e Papai Noel (a fórmula "Mamãe Noel" condensa as duas referências).
evocados
não se situam no universo real), o conflito encenado em nosso
texto remete a O milagre de Natal, portanto, ocorre, sim: a professora, figura do "salva-
um episódio histórico conhecido e registrado nos manuais de história: ,,guerra dor providencial", senão do "messias", tÍaz a paz. Mas essapaz não passa pela
a
das escolas" na Terceira República. Não se faz evasãonum vitória de um dos dois campos em presença: ela se realiza através da fusão clos
outro mundo.
o conto clássico, além disso, se apresenta como um universo autônomo, contrários que se declina em diferentes níveis.
que não obedece a regras comuns: as princesas podem dormir Essa estrutura geral leva a negligenciar a dimensão propriamente ideológica
cem anos, os mor-
tos podem ressuscita4 as vassouras voarem e as abóboras se do conflito para considerar somente o princípio de uma superação dos contrários
transformarem em
carruagens. Nada disso no texto de Tournier: eventos e personagens na unidade recuperada. Todas as oposições parecem postas para serem anuladas.
respeitam
escrupulosamente as leis do mundo real. Nenhum milagre, mas
o simples tra- Uma vez trazida à luz essa configuração, podemos escolher uma grade de
vestimento de uma professora em papai Noel. se os moradores leitura para interpretá-la.
da aldeia, ver-
dadeiros tipos sociais, lembram o esquematismo das figuras
do conto, a profes-
cujo comportamento é, no fim das contas, bastante desnorteador _
se
apresenta como um personagem relativamente complexo.
A leitura produtioa
Por fim, ao passo que os contot com o auxírio de marcas como
as apóstro-
fes, as repetições ou as fórmulas convencionais, frequentemente
Recorde-se que os textos de Tournier (entre os quais le Roi des Aulnes e
põem em cena
sua origem oral, nosso texto não contém nenhum discurso reportado Vendredi ou Les Limbes du Pacifique) representam uma nova orientação literá-
e faz a
opção por um nível de língua médio. os nomes próprios, próximos
ria depois do período do "nouueau roman"i um retorno aos relatos tradicionais,
do trocadi-
lho ("Pouldreuzic" ,embora existindo no mundo ."u1, mais providos de desafios filosóficos. A obra do autor se caracteriza, ademais,
',poudre aux yeux,,,
pela recorrência de figuras fantasmáticas e de cenários imaginários bem cir-
"poeira nos olhos") ou de ressonância simbólica ("sra.".roa,
oiselin,, [,,passarinho,,]
cunscritos. Escolheremos, assim, ler esse texto de um ponto de vista filosófico e
evoca a pomba portadora dapaz), introduzem uma dimensão
humorística, se-
numa perspectiva psicanalítica.
não irônica, bastante insólita nos contos de fadas.
. Leitura filosófica: impasses da modernidade
"La Màre NoêI" é, portanto, um conto bastante particula4, que poderíamos
qualificar de "deslocad o" .É o que a análise das estruturas vai Entre as oposições que estruturâm o texto/ há, como se viu, a da razáo e
nos confirmar.
do sagrado. Ela se manifesta no nível da enunciação (o texto oscilando entre o
gênero realista e o conto de fadas) e no nível da história (em que se enfrentam o
A forma como expressão: o desejo de racionalismo positivista dos leigos e a fé religiosa do partido clerical).
fusão
Essa ideia de um fratura consecutiva ao enfraquecimento do sentimento re-
vimos qug conforme às leis do gênerq o relato se apoiava numa oposição
ligioso está no âmago da definição da "modernidade". A partir do momento em
nítida, que dividia os personagens em dois campos: os ,,radicais,,
e os clericais. uma que o homem, pensando o mundo, o põe à distância, ele o coloca como exterior
leitura mais atenta mostra, contudq que a divisão religiosa não
constitui longe a si mesmo. Se a razão lhe permite melhor compreender o real, o únculo ínti-
disso a única oposição do texto. Graças à sra. oiselin, de fatq -
se reconciliaram
- mo que o unia à natureza se distende. É essa constatação que explica que se faça
Énsinar líteratura 167
,t, ,r^ t- .tr-^^.,

Vê-se por aí que, a despeito do título e da especificação de gênero, Tournier


por vezes remontar a modernidade a Descartes. Numa acepção mais restritaas,
a

do se refere a uma tradição que é menos a do conto de Natal e mais a do conto


rnodernidade remete a um conjunto de textos escritos na primeira metade
tematizam a filosófico do século XVIIL Na esteira de Swift ou de Voltairg ele utiliza o conto
século XX (entre outros, os de Proust, Musil, Mann e foyce) que
como suporte de uma reflexão crítica e de uma pintura satírica da sociedade.
dúvida epistemológica (não existe mais sentido seguro) e axiológica (não há
mais valor seguro). o Leitura psicanalítica: o desejo de regressão
é que a moder-
Qualquer que seja a cronologia considerada, o importante No plano psicanalítico, essa vontade de superar as oposições, de abolir as

nidade é sempre percebida como divórcio, fragmentação. com ela, entramos diferenças, exprime claramente o medo da alteridade. O mundo sonhado por
num mundo em que a unidade se dissolveu, em que o todo cedeu lugar à au- Tournier é um mundo sem divisões e sem conflitos, um mundo do mesmo, onde
tonomia das partes. Diante disso, a literatura busca trazer, com nostalgia e sem nada distingue o eu dos outros. Trata-se de recuperar a felicidade perdida da
certezat uma resposta ao caos: ela tenta, com oS meios de que dispõe,
restituir fusão original, de retornar aos tempos arcaicos da indistinção em que a criança

um fundamento unitário e racional aos fragmentos dispersos do mundo' O tex- e a mãe eram um só.

to de Tournier parece inscrever-se nessa perspectiva: mostrando que se pode


ce-
Se admitimos que a entrada do sujeito no universo social começa com o
lebrar ao mesmo tempo Papai Noel e Cristo, o "herói radical" e a figura divina, acesso à linguagem, isto é, com a assimilação de um sistema simbólico fundado
ele encena a impossível reconciliação àa razão e do sagrado' nas diferenças, esse fascínio pelo mesmo remete a um desejo de regressão' O
que o texto exprime com força é a dificuldade de renunciar à magia da infância.
Um dos desafios do texto, portanto, é figurar uma utopia: a de um mundo
Observe-se, aliás, que â recusa da diferença é também a da diferença dos sexos:
sem fraturas em que O homem, reconciliado consigo mesmo/ reencontraria
a
a figura da "Mamãe Noel" condensa, ao embaralhá-las, as categorias do femi-
relação plena e íntima que/ nos primeiros tempos, o unia ao todo' Ora'
não há
para reconciliar o homem nino e do masculino. Esse texto é um conto de Natal porque representa uma
nada como o mito relato coletivo e fundador
- - aspiração utópica, cuja realização, com efeito, seria da ordem do milagre: negar
com o universo.
o simbólico para retornar a um mundo inteiramente submetido ao imaginário.
Mas o mito, na época moderna, não pode se deixar enganar inteiramente
Encontraríamos com facilidade na biografia Tournier elementos que sus-
de
por si mesmo. É isso que atesta o jogo do texto com as convenções do gênero'
tentam essa leitura (baseando-nos sobretudo no que o próprio autor confia de
Segundo os folcloristas, o conto/ gênero populaç teria nascido do esquecimento
sua infância e de sua relação com as figuras paterna e maternaa6). Mas um sim-
progressivo do caráter religioso dos relatos míticos ou épicos: ele nos introduz
ples desüo pelo intertexto tournieriano é suficiente. Em muitos outros textos do
num universo encantado, mas "dessacralizado"' Ora, a religião princípio'
autor, encontra-se, de fato, sempre conotada poqitivamente, a figura do Adão an-
,,esquecida,, pelo conto está no centro de "La Mêre Noêl"; não se trata de
- drógino. Esse ser original, ao mesmo tempo homem, mulher e criança, encarna,
esvaziá-la em prol do maravilhoso, mas de reinseri-la numa visão unitária
do
na fantasmática tournieriana, um ideal de autossuficiência e de unidade. Como
rnundo. Esse gênero "dessacralizado" que é o conto assume assim, em Tournier, exprime o mito de Aristófan es no Banquere de Platão, a infelicidade começa com
um função de ressacralização. Por isso, a figura principal a Sra' Oiselin
- - a cisão, quando o eu único explode em duas pessoas. É por isso que o personagem
recupera o statusdo herói épico, cuja função primeira é encarnar a comunidade. da "Mamãe Noel" é eminentemente positivo: figura da androginia, representa a
A bem da verdade, elafazmais do que encarná-la: ela a recria' anulação da diferença sexual e a fusão do mesmo e do outro. Esse questionamen-

;t '"'!#'i','floli,l,jlii;i'i,ti,i;T.".x,'§ll;l[lj1x"?,i],'í;,i;fiY,ii
to infantil das clivisões que estruturam o mundo se deixa ler também no alegre
POIT QL/E ESTUDÁR LITERATURA?

"desvio" da narrativa: na cultura ocidental, a presença do Papai Noel na igreja é


provocadora, a feminização do Papai Noel, subversiva, e a condensação do Papai CONCLUSAO
Noel e da Virgem Maria, dessacralizadora. A recusa da alteridade em prol de um
retorno ao mesmo se inscreve num questionamento jubilatório da norma.

o termo desta reflexão, esperamos ter


conseguido demonstrar que a literatura
tem um valor específico, que conÍere le-
gitimidade aos estudos literários.
O conÍronto com as obras isso é o mais
-
evidente enriquece nossa existência.
-
Ao abrir o campo dos possíveis, lembrando que as coisas pode-
riam ser diferentes daquilo que são, os textos, para retomar uma
fórmula de Goodman, "participam da organização e da reorga-
rizaçã,o da experiência, logo da produção e da reprodução de
nossos mundos"1. Comentar é abtaTizar as relações entre a obra
e os componentes de nosso universo cultural, no duplo plano
sincrônico (o texto é portador de saberes que estruturam nossas
representações) e diacrônico (o tex'to se inscreve em um legaclo,
que ele transmite e reavalia).

Os estudos literários também favorecem o espírito crítico. Lem-


bremos que, em uma obra, as ideias, os valores, a visão de mundo
são objeto de uma leitura distanciada por duas razões essenciais.

' tArt en tlúorie et en action, op. cit., p. 105. Para quem prefere a formttlirção ntais
radicirl de F. Verniet a arte (logo a literatura) permite-nos apenas "escapitr tlas k'is
dir aclaptrrção passiva ao meio", desempenhanclo assim um papcl csscrrcial nit lrottti-
164 PoR euE EsruDÁR LITERÁTuÀÁ?

Por um lado, a distância entre o contexto de escrita e os contextos de A literatura, pela liberdade que a funda, exprime conteúdos diversos,

recepção tem como efeito "despragmatizx" o conteúdo. Por outro, o essenciais e secundários, evidentes e problemáticos, coerentes e con-
contrato de leitura, ficcional e literário, impede de considerar as obras traditórios, que frequentemente antecipam os conhecimentos vindou-
como discursos de "primeiro grau". O sentido expresso é sempre per- ross. Em cada época, textos estranhos e atípicos nos mostrarn (ou nos
cebido com relativa distância. lembram) que o ser humano continua sendo um universo com vasta
extensão a explorar.
O terceiro interesse dos estudos de letras é solicitar, reforçando-as,
nossas capacidades de análise e de reflexão. Que nos inclinemos sobre
os sentidos veiculados (hermenêutica) ou sobre o dispositivo formal
que os produz (retórica), a leitura literária supõe um trabalho ativo e
dinâmico sobre o texto2.
Em quarto hgar, a literatura favorece a liberdade deiuízo- Num plano
geral, como o notava Kant, o sentimento estético nos remete a nosso
estatuto de sujeitos livres3. No que se refere à literatura propriamente
dita, vimos que por causa do privilégio concedido à representação, o
leitor é sempre levado a um trabalho intelectual para chegar à ideia,
que nunca é ôbvia ela só pode ser inÍerida daquilo que se lê. Dessa ma-
neira, o leitor conserva certa liberdade com relação ao sentido. Shus-
terman lemrazáo quando afirma que "a verdadeira potência metaética
e especificamente literária de uma obra é [...] sua existência no seio
de uma instituição cuja razá,o de ser é a prática hermenêutica livre"a.
Mas é preciso acrescentar que essa "ptâtica hermenêutica livre" não
se explica exclusivamente pela instituição: ela só é possível por conta
da pluralidade de conteúdos estruturalmente inscritos na obra literária.

Por fim, e mais fundamentalmente, o valor dos textos literários é re-


sultante da natureza e da originalidade dos saberes que eles veiculam.

I Como o nota C. Elgirç "[a] contribuição cognitiva [da literatura] pode consistir em au-
mentar o repertório conceitual que temos, em afinar seu poder de distinguir, em aguçar sua
t--apaciclade de reconhecer, sintetizar, reorganizar etc." (Comprendre: l'art et la science, art.
cit.. p. 65-66).
:! A satisfação experimentada diante de uma obra de arte ou de um espetáculo natural s Esse saber não conceitual é, como o nota M. Kunder4 tão importante quanto o saber
1ão ó restringida pelo objeto, mas depende inteiramente do sujeito. Ora, a possibilidade científico: "Não podemos [...] julgar o espírito de um século exclusivamente segundo suas
clc julgar sem determinações externas é a própria definição da liberdade. O que existe de
ideias, seus conceitos teóricos, sem levar em conta a arte e, especialmente, o romance. O
urrivcisal na relação estética é a faculdade de julgar livremente. A famosa fórmula "é belo século XIX inventou a locomotiva, e Hegel estava convencido de ter apreendido o próprio
acluilo que agracla universalmente sem conceito" pode, então, ser entendicla como "univer- espírito da história universal. Flaubert clescobriu a imbecilidade. Ouso clizer que aqui está
a maior descoberta cle um século tão orgulhoso de sua razão científica" (M. Kundera, L'ÁrÍ
snlmcntr:, é beto aquilo que agrada sem conceito".
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