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Vincentlouve
Irrrt'i;r l,I'li'r'iiriir I
rrru?âffirãi
I rrnr ruCao
M,rr<:os Bagno
M,rrcos Marcionilo
Título original:
Pourquoi étudier la littératurc'l
o Armand Colin,2010
wwwatrard:çalldaro
ISBN:978 2 200-24989-2
SUMARIO
EDrçÂo BRAsTLETRA:
Eorron: Marcos Mãrcionilo
Cepe r pRorrro GRÁrrco: Andréia Custódio
REVrsÃo: Karina Mota
CorsrrHo Eoronrer: Anâ Stahl Zilles [Unisinos]
Angela Paiva Dionisio IUFPE]
Carlos Alberto Faraco IUFPRI
Egon de Oliveirã Rangêl [PUC-SP]
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC,lpol]
HenÍique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
Kanavillil Rajagopalan IUnicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
Rachel Gazolla de AndÍade IPUC-SP]
Roxane Rojo tUNICAMPl
Salma Tannus Muchail IPUC-SP]
PREFACIO
Stellâ Maris Bortoni-Ricardo IUnB]
12-7247 CDD:807
CDU 82 Evua E A GoRDURA Dos LIVRos........ 35
A "l'tcsitação prolongnda entre o som e o sentido"........ 36
A dirnensão intelectual: discursos sobre a leitura e o sentido da vida...... 1r0
Direitos reservados à
Parábola Editorial
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ou banco dc dados scm pcrmiss.lo por os( rito tl,r llrrólxrl,r [(litoI,rl I l(1,r.
IN
ISBN:978 85 7934 Olr2 I ll,1]MlN^(.4() I)^ lls(
PAR QUE ESTUDÁR LITERATUM?
A especificidade do sentido aúístico 8/4 Depreender o sentído (aínvestígafio arqueológica)... ...................... 145
Perseguir o sentido (do bom uso da teoría)......... ............. Ut7
A forma pelo menos: o pensamento inscrito 89 Controlar o sentido (asvirtudes dacoerêncía) ................ 152
INrEmiúo z
lr)J:rERtÚDio4 Mrrecnosas rusõrs ... 155
Cranõrs NA NorrE... 92 A leitura descritiva: um conto didático sobre a guerra das esco\as............... 156
O poema como sinal 93 Um conto de f adas bem realista. ..... 158
O poema como sintoma.................... 95 A t'orma como expressão: o desejo de t'usão....... ......................... 158
O pensamento da forma 97 A leitura produtioa ..... 159
98
coNCLUSÃO................... r63
Entender, interpretar, explicar 104
Entender... t04 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..... 166
Interpretar t06
Explicar..... r09
O VALOR ll3
PREFACIO
Os estudos literários
- evidentemente - permi-
tem aumentar a cultura (ao explicar o que sigru-
fica uma visão "barroca" ou "romântica" do mundo, ao recordar
o que pôde causar riso numa época ou emoção em outra). Mas
a cultura não se limita à literatura. Se o propósito é ter a visão
mais inÍormada possível, é legítimo até mesmo indispensável
-
não falar apenas dos textos (e, entre eles, não aPeÍus dos textos
-
literários). Existem não somente outras formas de arte (músic4
pintur4 escultura), como também outras manifestações culturais
(gastronomia televisão, esporte, moda etc.)) Seria lógico, portantq
(À )dissolver os estudos literários dentro dos estudos culturaià Este
L/
- movimento encontra grande respaldo nos países anglo-saxônicos.
cisa, assim, ser completada pelo exame de outros fatos linguísticos, que possível imaginar um professor universitário dando a mesma resposta
remetem maisnexplicitamente a certos mecanismos de linguagem. Nes- a um estudante? O relativismo é ainda menos permitido aos ministros
sa perspectiva)ios estudos literários deveriam se fundir na linguística. da Educação ou da Cultura, que têm obrigatoriamente de decidir na
Artefato cultural e fato de linguagem entre outros, em que o texto lite- escolha dos programas ou das manifestações a subvencionar: por que
rário justifica uma abordagem específicg? mandar estudar Machado de Assis e não Rubem Fonseca (ou o inver-
so)? Por que financiar uma "parada tecno" e não um filme de vanguar-
, A hipótese deste ensaio é que não se pode refletir sobre o interesse e o da (ou o inverso)? Em suma, se a arte não existe mais para os teóricos,
u valor de uma obra literária sem levar em conta seu estatuto de objeto
ela ainda existe paÍa a maioria dos indivíduos e, sobretudo, para uma
, de ar te. Esse posicionamento suscita, legitimamente, diversas questões.
série de instituições (ensinq imprensa, mídia) que pesam fortemente
Antes de tudo, podemos perguntar se não é francamente desarrazoado sobre nossa existência cotidiana. Assim, talvez não se;'a inútil se inter-
falar da "arte literária". Essa fórmula um tanto quanto obsoleta não re- rogar sobre uma "realidade" que/ mesmo mal definida "informa"
mete a questões de outro tempo? Já não é consenso que a "Nte" (literária
-
através de uma série de engrenagens o mundo em que vivemos e
ou outra) não é um absoluto, mas um dado relativo cujas declinações va-
-
nossa existência no interior deste mundo.
riam com a história? Falar da "arte" sem outra especificação não é voltar
A segunda objeção (já não se disse tudo sobre a arte?) é bastante forte.
a uma concepção essencialista que sabemos não resistir a exame?
Todavia podemos constatar que a reflexão estética, de fato, nunca se
Não somente não temos certeza de que nosso objeto de estudo existe, interrompeu. Aliás, há várias décadas que ela experimenta uma revi-
mas todas as questões que se podem levantar acerca da arte (entendida vescência impressionante2 e, em certos aspectos, espantosa. Se, mesmo
como ideia, apenas como realidade) há muito tempo têm sido tratadas deixando de propor ideias novas/ conseguíssemos, graças a essa re-
por um setor particular da filosofia, a estética,. Não seria falta de hu- flexão, ver de modo um pouco mais claro no interior de debates apai-
rnilclade (e abdicação da prudência mais elementar) debruçar-se sobre xonantes, mas frequentemente complexos, na esperança de tirar deles
problemas aos quais, para citar apenas alguns nomes, Kant, Hegel ou algumas conclusões sobre nossa relação com a arte hoje, talvez não
Schopenhauer consagraram páginas memoráveis? perdêssemos de todo o nosso tempo.
Por fim, podemos nos perguntar se, no estado atual do mundo, não há
Quanto ao terceiro problema (para quê?), acabamos de recordar o para-
coisa melhor a fazer do que se ocupar com objetos que não sabemos
doxo da arte que, embora não tendo utilidade práíca, toca dimensões
muito bem para que servem se é que servem para alguma coisa.
- da existência tão fundamentais quanto a cultura, a educação ou a comu-
Vamos tentar responder. nicação. Por conseguinte, o que está em jogo aqui não é somente o gosto.
Mesrno que se pense que a arte é uma noção eminentemente relativa, Resta saber como proceder para não se perder no labirinto e na com-
é irnpossível, na prátic4 manter-se nessa posição. plexidade dos problemas. Como em todas as situações de crise, o me-
eual o livreiro que
responderá a um cliente que lhe pede conselho: "Toclos os livros são
iguais, é uma questão cle gosto; não posso ajuclar você em nac{a"? É 2 Na França, atestam isso os trabalhos de J.-M. Schaeffer: tArt de l'ôge moderne t'esthétique
-
ct la plrilosophie da l'art du XVlll' siàcle à nos jours, Paris'. Gallimard, 1992; Les Célibataires de
l'nrt Pour une cslhútique snns nrythcs. Paris: Gallimard,1996; Adieu à l'estlrétiquc. Paris: PUF,
-
| "l)i:trto tla fikrso[ia voltrtda prirra a rcÍlcxlig.r rt,spqit6 cln [rt.[rz1 st,rrsÍvr.l r. 2000. 'I'trrntrór:r mcrcce,rl o::,,,ilr,: .r.l:,y.I,?: .:lTj::,
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rrl.ío1i..,., /r11.,1,,...(..1-. t t-... .:.- , t !.-
cltr Ícnôurr,no
lu I
L2 poR euE EsruDÁR LTTERATII.I.?
A arte existe?
A questão da existência da arte se conÍunde com a de sua defi-
nição. Haverá concordância (ou não) em incluir este ou aquele
objeto no campo artístico conÍorme ele corresponda (ou não) à
definição da palavra "arte" que se reconheça como pertinente'
Para dar um exemPlo famoso, alguns recusarão o estatuto de
obra de arte para as caixas Brillo2 de Andy warhol porque elas
não têm (segundo eles) nada de estético; outros, em contraparti-
da, concederão às caixas tal estatuto sem hesitar Porque elas fa-
I É a opinião por exemplg de F. Schuerewegen (Le début et la fin de lart: sur Ar-
tlrur Danto. Poétiquc, rt'"147,2006, p' 367-379).
2 l,crnbrelnos que so trata de um coniunto de caixas empilhaclas umas sobre as
,---^ í^*,..^
74 l,(r{ e(ll lts?rrD^R r.rrlRAruru?
n I n Da arte e da literatura 15
priedades m3rrl*"f3glgs da obra ou à apr.eciação subjetiva de cada um? se, por exemplq um texto respeita as regras do soneto, é porque ele quer
Conforme a primeira concepção, existiriam obras objetivamente belas. se filiar à poesia e, portanto, à literatura e à arte. Assim, podemos opor a ,
Conforme a segunda, o belo é uma questão de julzo pessoal. uma definição avaliatória do objeto de arte (obra que consegue produzir
provido de certo
o sentimento do belo) uma definição categorial (artefato
O segundo ponto de vista que está na base de nossa "modernida-
- número de traços qrtemanifestam aintaryão de produzir o sentimento do
dg" se inscreve na renovação de perspectiva proposta por Kant: não
- belo, isto é, de ser avaliado no plano estético).
existe objeto belo em si, mas unicamente objetos nos quais o sujeito tem
um prazer estético. O belo não é um dado absoluto: é o resultado, sem- Levar em conta essa intenção permite assim definir a arte sem renun-
pre contingente, de uma relação de conveniência entre as proprieda- ciar à ideia de que o belo é subjetivo e relativo. No campo literário, os
cles de um objeto e o gosto daquele que o avalia. O que define a relação traços "artísticos" são essencialmente traços genéricos. Todo romance,
estética, portanto, não é a natureza do objeto apreendido, mas o tipo de toda tragédia, toda elegia é estatutariamente uma obra de arte. A ques-
olhar que se lança sobre ele. Como explicâ Genettq, "não é o objeto que tão da identidade artística portanto, nada tem a ver com a do mérito
torna estética a relação, é a relação que torna o objeto estético"s. Mais estético. O último Paulo Coelho tem o mesmo estatuto q.ue Guerra € paz '1 ,
precisamente, há rqlaçãg estética çada..-vez q.ue uÍra atenÇã_a" aspectual os dois livros, na qualidade de romances, pertencem categorialmente Í
(isto é, que incide sobre a aparência de um objeto) é sustentada por à literatura e seu respectivo valor estético (entendamos: sua "belezd')
uma apreciação6. Podemos, assim, apreciar esteticamente tanto a tela não é objetivamente apreensível.
de um mestre quanto um cartaz publicitário.
Contudo, ainda que se admita que somente uma definição categorial
Os "subjetivistas" deveriamlogicamente chegar à conclusão de que a arte
da arte pode ser objetiva, a reflexão não avançou muito. Talvez tenha-
não existe. No entanto, diante da evidência de que as obras de arte, sim,
mos respondido a pergunta "que é a arte?" , mas esvaziando-a no mes-
existem concretamente (basta passear num museu para se convencer dis-
mo gesto de qualquer interesse. Agora se trata de saber o que é uma
so), eles propõem o seguinte deslocamento: uma obra de arte não produz
arte de qualidade. Tudo o que se fez foi deslocar o problema (eu diria
necessariamente o sentimento do belo (o que impediria toda generaliza-
até que nós simplesmente o formulamos de maneira diferente).
ção), rnas aisa sempre a produzir o sentimento do belo. Em sua reflexão
em dois volumes sobre a obra de arte, Genette parte assim da seguinte Quer se enfatize o resultado (produzir uma emoção estética) ou o pro-
ilefinição (que ele se empenhará a seguir em modular); "\-Ima obra de arte é jeto (manifestar a intenção de produzi-la), os "objetivistas" e os "subjeti-
um objeto estético intencional, ou, o que dá no mesmo: uma obra de arte é um vistas" parecem compartilhar a convicção de que não se pode separar a
urtcfato (ou produtohumano) com funÇção estética"7. Com isso, torna-se pos- arte da questão do belo. Mas será certo que n6s ainda vinculamos a arte
sível fundar q dgfinição da arte em critérios objetivos. Em qualquer obra, ao sentimento do belo? Pensar que a definição de ontem é a definição de
a intenção estética é, de Íato, reconhecível num certo número de traços: hoje não significa negar o peso da história sobre nossas representações?
" (i. Genette, Ii1úuure de l'art Ln relation estltétique, op. cít., p.1,8.
t' -
Scgunclo Genette, o próprio conteúdo pode, enquanto estrutura, derivar de uma atenção A arte e ahistória
aspcctual. Ver esta passagern de La Rclatitttr esthétiquc'. "[numa obra de arte], cada conteúdo
poclc scr percebiclo como uma 'forma' clcsignanclo unr outro conteúdo mais especificadq pois
n trnálise progric.le dc frrrtna para conteúdo e rcgriclc dc conteúcftl pirrat forma" (ryr, cil., p. 34).
O estaclo atual da produção artística Parece mostrar cle fato que, embo-
7 (l ()rrrrrrllrr l'[í,rrrru,-lr, l'nyl ltttttt,trt,rttrt,,l trnttr,\,rr,1nil,,,, ,r,r ,.;l 6 1íl rn n nrtr. worrhn sondo hí muito têmnô vinculada ao belo, ela tem se en-
r"*^ r'*
T", "^ "r
não fosse mais hoje uma condição necessáriapara se falar de "obra Se essa constatação for exata, a questão "o que é arte?" fica absoluta-
de arte". Para J.-M. Schaeffer, ela aliás jamais o foi: muitos objetos que mente vazia de sentido e exige ser substituída pela seguinte: "O que
consideramos hoje como obras de arte não respondiam, no momento entendemos hoje por 'arte'?". É exatamente o que propõe a filosofia
de sua criação, a nenhuma intenção estética. A redução do artístico ao analítica. A ideia é substituir a reflexão sobre o mundo (que ameaça
estético é uma postura datada, cujas raízes são culturais: sempre cair numa metafísica das essências) por uma investigação so-
bre as maneiras como o pensarnos, isto é, como falamos dele11. Apli-
Por razões que têm a ver com a história recente das sociedades ocidentais,
cada à arte, essa postura consiste em substituir as especulações sobre
quando dizemos "estética" pensamos em "obra de arte". Essa identificação
falaciosa tira sua plausibilidade superficial cle uma concepção ingênua anatureza artística por uma análise das diferentes acepções do termo
da noção de obra de arte que a identifica à de artefato estéticog. "arte" e de seu campo de aplicação.
Haveria, pois, dois erros a evitar: pensar que um objeto estético é ne- A abordagem analítica de certo modo, põe fim ao debate: não existe
cessariamente uma obra de arte; pensar que uma obra de arte é neces- definição universal da arte; existe simplesmente o que uma época, um
sariamente um objeto estético. grupo cultural ou um indivíduo infundem, em dado momento, nesse
termo. Se o historiador ou o sociólogo podem se interessar pelos senti-
Acerca do primeiro ponto, Schaeffer reafirma com Genette (e segun-
dos antigos da palavra, o teórico pode perfeitamente se limitar àquilo
do Kant) que não existe "objeto estético", mas unicamente objetos que o termo designa na época em que ele escreve.
"apreendido[s] no quadro de uma conduta estética"e. A dimensão esté-
tica não é uma propriedade interna, mas "relacional": ela se deve à ma- Resta, contudo, uma possibilidade que é difícil menosprezar: não exis-
neira como alguém apreende um objeto, não ao objeto em si. As obras tem elementos comuns às diferentes acepções que o termo "arte" pôde
de arte, portanto, não poderi nem de longe ter o monopólio assumir ao longo da história? Melhor ainda: além da palavra "arte",
- não há uma prática uma relação com os objetos, que sempre existiu e
da atenção estética.
em todos os países? Não será isso que as diferentes definições da pala-
Quanto ao segundo pontq Schaeffer se afasta claramente de Genette: vra "arte" vêm tentando delimitar (ainda que, a cadavez, elas tenham
cle postula que a função estética não é um traço definitório do concei-
considerado apenas alguns traços em detrimento de outros)?
to cle "obra de arte". De fato, podemos legitimamente nos perguntar
se a questão do belo ainda é pertinente para obras como "Fonte" de Se pudéssemos demonstrá-lo, a questão 'b que é a arte?" recuperaria
Marcel Duchamplo ou o tamborete Mezzadro, fabricado pelos irmãos alguma pertinência. À guisa de analogia, os componentes e as modali-
Castiglioni a partir de um assento de trator. A arte já não é somente, dades do "saber viver" ou da "polidez" são diferentes, e até contradi-
para nós, o que visa ao belo; é também aquilo que pode emocionar ou tórios, conÍorme os lugares e as épocas; isso não impede que a ideia de
fazer pensai, Tudo se passa como se a hierarquia estabelecida entre as saber viver esteja presente em todos os países e em todas as culturas
rr D. Lories ("Philosophic nnalytique et esthétique, op. cit.)lembra que a filosofia analítica é es-
' J.-M. SclraefÍer, L,es Célibntairas dc l'nrt, op. cit., p. 1.4.
"l(r lbid,, p.75(1. scncialmc.nte uma filosofia anglo-saxônica. Por isso temos o hábito de opor a ela a "filosofia
I ..,rrhr.r'm,'o /ri,.r o/r tí.rli .{^,"m ,,rrn Íi nrrrr lrr l"
20 /,(ri errr t,srLrDÁR t,trERA;Lrr-A?
através de declinações factuais absolutamente incontestáveis. podería- dades dos sistemas que utilizarnos para apreender o mundo. A pintura
nros clizer o mesmo do luto ou da relação amorosa. portanto, não é im- abstrata nos confronta assim com outros cócligos além daqueles que
prossível que o que se designa por "arte" terúa sempre existido, mesmo regem habitualmente nossa rnaneira de ver, tanto quanto uma obra li-
c1u;rndo não se utilizava a palavra. A abordagem analítica não torna terária atualizacertas possibilidades inéclitas do sistema linguístico em
olrrigatoriamente caduca a hipótese antropológica. que se inscreve. Para clar um só exemplo, a obra de Flaubert, pelo uso
qwe faz clo imperfeito e clos pronomes pessoais, explora possibilidades
da língua francesa que, no uso corrente, raramente são exploradasl3.
Uma prátíc a trans cultural Analisada do pottto de aista de sua função (renovar a percepção e, portan-
to, a apreensão da realidade), a arte é um dado ao mesmo ternpo trans-
ll a partir
Renascimento que se começa a distir-rguir o "artista" clo
c1o
-histórico (nós a encontrarnos em todas as culturas) e relativo (não são
".rrtesão". O emprego da palavra "atte" como terrno genérico clesig-
obrigatoriamente os rnesmos objetos que oferecerão a cada indivíduo
nando o conjunto das atividades com intenção estética só se imporá
cada época novas maneiras de pensar o mundo). Essa análise,
plcnarnente no século XVIII. Não se pode concluir disso, é óbvio, -
bastante convincente para a arte crítica e contestatária, se aplica mais
(lue a prática artística antericlimente fosse desconhecida. pensar que
dificilmente à arte de celebração, que se conforma aos sistemas domi-
trrrra prática não conceitualizada não tem realidade é, de fato, um
nantes em vez explorar alternativas a elera.
.rbsurdo: isso equivaleria a postular que o inconsciente não existia no
scr humano antes do surgimento da psicanálise. o interesse da con- Sempre conservanclo a ideia de que a arte responde a uma necessidade
t't'ittralização é justamente o de poder se aplicar n posteriori a fenôme- transcultural (o que clevolve pertinência ao conceito), vou propor outra
tros pclos quais ela não se interessava originalmente, mas cuja com- definição raciocinando a posteriori. Se retomarmos a questão dos pon-
tos comuns levantada acirna, poderemos depreender as três caracterís-
Irrccnsão ela permite. De modo geral, a emergência de um conceito
st' t'xplica pela necessidade de clar conta de uma série cle ativiclades ticas seguintes: as obras de arte são objetos não utilitários, que expriment
nlgwna coisa e nos quais é reconhecido um aalor. Todas as sociedades têrn
t'ln vigor há muito tempo.
corüecido, e provavelmente exigem, esse tipo de objetos.
st' a arte é uma noção transcultural, os objetos aos quais ela remete
A ideia de que a obra de arte não tem utilidade práticanão advém, como
tlcvcm necessariamente compartilhar certo número de traços. Have-
se poderia pensar, de um ponto de vista retrospectivo próprio à moder-
r'.i t'ntão algo de comum entre a vênus de Milo, as "embaragens" de
('lrrist«r, o Hino à nlegria de Schiller e a "Fonte" de Duchamp? nidade. Se for verdade que ela se vincula à afirmação kantiana clo desin-
teressamer-rto da atenção estética e à abordagem da obra de arte como
A irlciar cie colocar a questão nesses termos sem dúvida não é nova e al- "finalidade sem fim"'r5, encontramos em toclas as épocas e na maioria das
llunrirs respostas são particularrnente interessantes. Assim, para F. Ver-
rrit'r'r'r, a cspccificidaclc'artística não é uma essência, rnas uma relnção, '' AIg<-r tlue não cscapou a Proust. Ver F. Vernier (op. cit., p.157).
rr Ir. Vclnicr responrlo qlle uma obra de arte e Llm objeto cornploxo, que possui pr6p1i1.-
,r rt'lação cluc ccrtos ot'rjetos mantêm corn os moclelos simbólicos em
tl.rtit's arttstic.rs tt pt'oltliccl.rrlt's não ar"tisticas. Quando cla se conÍorma aos sistemas do-
viSor trttltrtr tlirtla óptrtr. Í1 pltiprio clcsscs objctos cxpklratr as virtuali- tnittantt:s, t't'ttt ritzão cÍc c.rlirctclisticas cluc não se clevc'nr a sua espccificicladc artística (p.
()1-()5). lisst' titt'ioctrtio,
trottturlo, so c vttlitlo sc concordirrmos previamcnte solrrc ir rlcfinição
tlt':is,r t,sIr.t ilicirl,rrlt'.utr:;tir'ir rlrr', jrrst,rrnt.nt(', l)rocur.lntos dt.lintitar.
I ( l l','\,,,,ir'lt lrt llttttir,. N4orrlrr,,rl; l)ltl)lt(,tlt()1s rlrr l' ljt', lti:'lorir',rttrt'nlt', tlcs,tlitt,t rr,t vis,io rtllrt,tntir',r rll olrrir tlt'artt.r'orrrrl rt'.tlitlatlt'.rrrto-
l)t,p,1111,111q,11 rl'lilrrtlr,s l;r.,rrrr,,risps tlt,
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Eflt
t'ulturas a necessidade de criar objetos arranjos de palavras, cle peças, de uma intenção exclusiaamente estética, respondem em geral a uma
-
rlc notas, de cores etc. sem função determinada. Para retomar uma intenção parcialmente estética (a maioria dos objetos religiosos jogam
-
clistinção cle Schaeffer, a diferença entre os objetos utilitários e os objetos com a sedução formal para atrair a atenção). A recategotizaçáo de um
rrão utilitários se manifesta pela maneira como os apreendemos cogniti- objeto sagrado em objeto de arte aparece, portantg como natural.
virmcntelr'. É inútil contemplar clemoradamente um martelo ou um ser-
A segunda característica da obra de arte o fato de ela exprimir al-
rrrtc antes de se servir deles (gastaremos apenas o tempo de identificá- -
guma coisa advém da sirnples constatação. Decerto é por isso que
-los). Em contrapartida, se podemos passar vários minutos a contemplar - dos raros pontos que parecem obter consenso entre os
se trata cle um
turna escultura ou a escutar uma sinÍonia e porque os objetos em questão
teóricos. Nem por isso a importância concedida à climensão expressiva
não têm de ser utilizados: eles não têm uso prático.
da obra de arte se torna menos variável: alguns pensam que a obra de
lissa primeira característica exige dois esclarecimentos. arte só existe como objeto semiótico; outros consideram que, se o valor
expressivo cla obra de arte é pouco contestável, esse valor não é essen-
Inicialmente, nada impede alguém de se servir de uma obra de arte
cial à sua identidade.
para fins utilitários. Mas é óbvio que assim ela é desviada de sua vo-
cirção primeira. Se utilizamos uma tela de Rembrandt para "remendar filia ao primeiro ponto de vista, o que distingue
Para A. Danto, que se
rumar porta"17, um poema de Verlaine para estudar os artigos definidos uma obra de arte de qualquer objeto do mundo é que ela é sempre
()Lr um romance de Sade para estimular a imaginação erótica, não os "a propósito de algo"i8. Deve-se compreencler com isso que a obra de
rcccbemos como obras de arte: objetos não artísticos poderiam facil- arte representa sempre outra coisa que não ela mesma. Enquanto signo,
rnr:rrte cumprir as mesmas funções. ela não se reduz à sua realidade material ou física. De fato, a obra de
arte "caixa Brillo" não se confunde com uma caixa Brillo comum, tanto
Sinretricamente, nada proíbe que se reconheçam como obras de arte
quanto a obra literária Madame Booary não se redtz à sequência de
objctos que, na origem, tinham vocação utilitária, como um vaso an-
frases que compõem o texto de Flaubert. Para retomar a expressão de
tigo ou um manuscrito medieval: basta reconhecer-ll:res um aalor inde-
J. Margolis, as obras de arte são
"entidades culturalmente emergentes":
Itt'rtduttc de sua fimção práticn. Os cantos de guerra zulus serviam para
sr-rscitar o ardor militar, as pinturas rupestres pré-históricas decerto ti- Elas manifestam propriedades que os objetos físicos não podem
nhaur uma dimensão religiosa ou mágica, mas não é sob esse ângulo manifestar, mas que não dependem da presença de nenhuma substância
outra senão aquilo que pode ser atribuído aos objetos puramente físicos.
tluc c'las são consideradas pelos amantes da arte (é pouco provável
Falando mais amplamente, essas propriedades são aquilo que pode
(lr.rc o atual possuidor de uma máscara mortuária egípcia se sirva clela
ser caracterizado como funcional ou intencional, e que pode incluir o
I'r.rrâ clecorar o túmulo de seus parentes). A facilidade com que os ob- desenho, a expressividade, o simbolismo, a representação, a significação,
jt'tos rituais ou religiosos alcançarn o status de obras de arte tem con- o estilo e outras coisas do gêneroie.
trrtlo nr.rrtr explicação: trata-se de artefatos que, embora não surgidos
Se as proprieclades representacionais são tão importantes é porque
são clas que permitem diferenciar as obras de arte dos objetos físicos
llilrrr',r tliscrrtrvt.l rl.r tt'rct'irir (llllir'rt: para Kant, er finalirlerclc set.n finr rlcsignir a trti.rtrcira
( ()r)r() () olrjt.lo ttos rll)(rr(lc(, tttt tlttatlro rlt'trttra rt'laç.io t'sttitica, não o olrit'ttt llt('stlt() (cÍ. I',Art
1!1'|1,,q1 rtntlrrtrt', t\t. til., p.7I7?.). l" A. l),rntrr, lrr'lnutsligrrnliotrrltrlttuttl.l'aris: Scuil, 19ti9[ccl.or..: 19tt1l,p.'143.
t' t'1. l. M. lir'lr,rt,llt'r', I t:; ('r'lilttltitt:' rlt l'rttl, rrlr. r il., P.,l,l ,ili. r'' f. M,rrlioli:;, L,t spt't iÍir'itt'ottlolo;',it1trt'r'lt's (rltt,rt:s tl'art, itt; Pltrlosoltltir rrtttlyliqttt ct r'slltt'
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nos quais elas se encarnam. Encontramos a mesma ideia de Bakhtin, em sua fonte um estado mental que remete, entre outras coisas, à repre-
para quem o "objeto estético" não se confunde com o material que sentação de um pote de geleia. Mas é justamente porque todo artefato
lhe serve de suporte: a obra de arte apresenta, enquanto "aconteci- humano exprime algo2a: o pote de geleia dá testemunho das exigências
mento", propriedades específicas2o. práticas, e até das preferências estéticas, que, levadas em conta pelo con-
cebedor (individual ou coleüvo), resultaram na sua concepção2s.
Schaeffer se inscreve na segunda perspectiva: denunciando o "panse-
miotismo" em voga na reflexão atual sobre a arte, ele se recusa aÍazer
A questão da "causalidade Intencional" é, contudo, capital, visto que
permite distinguir claramente ob-jeto estético de objeto artístico.lSe qtal-
da dimensão semiótica um componente constitutivo da identidade ar-
quer objeto do mundo pode se tornar o objeto de minha atenção estética,
ústica. ConÍorme enÍatiza, isso equivaleria a dizer que uma obra só é
até mesmo os objetos não provenientes de uma causalidade Intencional
recebida como artística depois que se depreendeu sua significação2l.
(o mar em fúria, uma flor, um céu de tormenta etc.), a relação artística su-
Schaeffer evidentemente não nega que a obra exprima certo número
põe ao menos parcialmente a consideração dos estados mentais de
de coisas, mas ela não foi criada para isso. Seu estatuto, desse ponto - -
que a obra de arte é consequência, a começar pela intenção e pelo proje-
cle vista
é o mesmo que o dos artefatos não artísticos: eles dão teste-
to26. Em suma o que diferencia a relação artística da relação estética é a
munho cle uma época, de uma cultura, de uma sensibilidade, mas sem
atenção dispensada ao conteúdo. Como outrora escrevia Barthes: "'What
terem sido concebidos para dá-lo. do you rnean?' t...]. É u pergunta milenar dessa coisa tão antiga: a Arte"z7.
O valor expressivo da obra de arte advém, portantq da propriedade que O terceiro traço definitório da obra de arte é ser um objeto ao qual se
ela compartilha com todos os objetos criados pelo homem: "Ter saído de reconhece um valor. Apesar de essa última característica ser ampla-
uma causalidade Intencional'2z.Na terminologia de Searle, a Intencionali- mente confirmada pela prática (a maioria das pessoas têm dificuldade
tlnde (commaiúscula) caracteriza o funcionamento da consciência. Todo de considerar como obra de arte um objeto ao qual elas não atribuem
fato psíquico (crença, juízo, percepçãq desejo ódio etc.) é Intencional na nenhum valor), ela atualmente suscita acesos debates entre os teóricos.
medida em que, remetendo a alguma coisa, passa por uma representa-
A posição em voga consiste, como vimos, em destacar a definição de arte
ção consciente. Em outros termos, a consciência é sempre consciência
de todo juízo de valor em nome cla relatividade do julgamento de gosto.
c{e algo. Dizer que a obra de arte surgiu de "estados Intencionais"23 é,
portanto, lembrar que ela supõe em fonte um fenômeno mental que
sua
2a Schaeffer diria que um artefato, como uma porta ou um vaso, é a realização e não a et-
deságua numa representação. Sem dúvida qualquer objeto surgiu de pressão de um conteúdo Intencional: a porta sem dúvida surgiu de uma representação men-
uma causalidade Intencional: um simples pote de geleia tem igualmente tal; mas, enquanto objeto inerte, ela não pode. por definição, exprimir nenhum conteúdo psí-
quico (Les Célihataires del'art, op. cit.,p.73-74). Tudo depende do sentido que se dê ao verbo
"exprimir": por sua própria existência, a porta dá testemunho de estados mentais na origem
rr) Ver M. Bakhtin, "Problême clu contenu, du matériau et de la Íorme dans l'euvre litté- das operações das quais ela surgiu. Neste sentido, podemos dizer que ela os "exprime".
rairc" (1924) in: Esthétique et théorie du rornan. Paris: Gallimard, 1978, p. 82. 25 Se a especificidade clo objeto cle arte não se deve ao fato de exprimir algo (característica
2r Cf. Les Célibataires de l'art, op. cit., p.93. comurn a toclos os objetos surgidos de uma causalidade Intencional), ela talvez se deva
)1 lhid., p. 111. Somente essa primeira condição é incontornável. O estatuto de objeto de arte e à extensão daquilo que ele exprime.
-
como tentarei rnostrar mais adiante
- à nafureza
:6 Essa dimensão "espiritual" é, na visão de Hegel, aquilo que constitui a superioridade do
pocle resultar, conforme os casos, cla identidade genérica (o objeto), da intenção estética (do
ar"rkrr) ou da atenção estética (clo receptor). bckr artístico s«rbre o belo natural: "Do ponto de vista formnl, não importa que má ideia que
,' CÍ. I. R. Searle, ttntentionnalité - essai dc philosoyrhie des ótttts mentaux. Paris: Minuit, 1985 çrassc pc.la cabeça de um homcm é [...] mais elevada que não importa que produção da
lccl, or.: 19831. A maiúscula permitc distinguir a "lntencionaliclade" (relação cla consciôncii't rlaturozâr, poÍclr.rc ela possui sernpre espiritualiclade e liberdade" (I{egel, Esthétique.París:
coln unl objett) tla "irrtencionalic'lacle" (ctrrrltcr irrtcncional c{e umir atitut{e), que é só uma cle l,r. l,ivrc clc Pochc,'1997,vol.l, p.52).
l'r )li (,1/, I',llll,1li I il, ii.lllll{.\ i llrr ttt lt t rltt lilrtrtlttttt 27
St'lrirt'Í'lt.r ill'in)ril irin(la (lu('s('cxistc clarrirnrcutc uma dimt:rrsão arvalia- A questão clo valor é' iguahncnte incontornável quanclo se defir-re o
drlrit ua rclação irrtística, cl"r não ó específica. Ilealmente, a avaliação se objeto de arte pela intenção estótica em sua origem. Há projetos bem-
t.rrcontrir nas rclações que mantemos com a maioria dos objetos. É a sim- -sucedidos e outros que falham: uma intenção se julga in fine diante de
plcs consequência de seu estatuto teleológico: nós os julgamos segundo seus resultados. Não é preciso seguir Schaeffer quando ele pretende
suar capacidade de preencher a função que é a deles. Mas, para o autor que uma maionese estragada aincla seja uma maionese:
dos Celibntários da nrte, o fato de eles cumprirem mais ou menos bem sua
É certo que não basla querer preparar uma maionese para que o resultado
fr-rnção não tem a menor incidência em sua identidade: um carro pode ter seja efetivamente uma maionese. Por outro lado, o que se exige para que
nraior ou menor desempenho (em termos de velociclade, de conÍorto etc.) um produto clado seja uma maionese não é que ele tenha sido concluído,
scm nem por isso deixar de ser um carro. A identificação de um objeto mas que se peguem azeite e gemas cle ovos, que se tente misturá-los e
que, ao final da operação, acrescente-se um filete cle vinagre, ou seja, que
conlo obra de arte não teria, portanto, nada a ver com seu valor eventual.
se utilizem os elementos constituintes pertinentes e que se empreenclam
As coisas talvez não sejam assim tão simples. as ações "instrumentais" pertinentes2s.
I{etomemos os três fatores que, segundo Schaeffer, sã.o capazes de defi- A distinção entre um resultado que não seria uma maionese e outro que
nir um objeto como artístico: a atenção estética, a pertinência genérica, seria uma maionese estragacla me parece um pouco bizantina: uma maio-
ar intenção estética. nese que não deu liga (e que, portanto, não pode desempenhar sua função
de maionese) ainda é uma maionese? Para mudar de registro, cligamos
Sc um objeto se torna artístico por conta da atençio estética que lhe que uma fotograÍia mal tirada qual não se distingue quase nada
c dispensada, o critério clo êxito não parece a priori suficientemente (por causa, por exemplo, de uma superexposição à luz) é aincla uma
operatório: podemos apreciar esteticamente todo e qualquer objeto -
fotograÍia? Conkariamente ao que diz Schaeffer; a "realidade" da maio-
clo mundo. Contudo, devemos notar que se o objeto em questão não nese não depende de ações genéticas pertinentes, mas de propriedades
suscita o sentimento de prazer que se espera da relação estética, esta observáveis no produto acabado. Quem poderia aÍirmar que uma cadeira
última se interrompe. Temos, então, pelo menos, critérios de êxito ou defeituosa (à qual, por exemplo falta um pé) ainda é uma cadeira?
rle fracasso, mesmo que eles sejam, todavez, subjetivos.
Se é clifícil falar
a experiência o comprova cotidianamente
-
Quando uma obra é identificada como artística por pertencimento ge- de uma obra de arte sem avaliá-la, não é porque a avaliação positiva
rttirico, a imbricação entre avaliação e definição é mais estreita ainda. Íaz parte integrante do conceito de obra de arte? Como o clemonstrou
Urn soneto manco não é realmente um soneto, logo não é realmente Danto, os preclicados especificamente artísticos supõem sempre um
proesia, logo, não é mais arte. Poderíamos dizer o mesmo cle um drama juizo de valor. Se Eonte de Duchamp, contrariamente aos outros uri-
scrn tensão narrativa ou de uma sinÍonia à qual faltasse um movimen- nóis, é uma obra de arte é ernrazáo de propriedades (não perceptuais)
Mais genericamente falando, se existem
t«r. como Schaeffer pensa que os urinóis geralmente não possuem e que são justamente avalia-
- ções subjetivas positivas: "Ela é audaciosa, impuclente, desrespeitosa,
- objetivos constitutivamente artísticos, não é logico concluir daí que
t,lcs perdem sua identiclade de objetos de arte quando as proprieclades
espiritual e inteligente"2e. Na esfera da arte, como Adorno já entendera
(lr.lc os definem são vacilantes?
Um romance policial sem crime nem
'7s J.-M. Schaef fer, Las Célibntnires de l'nrt, op. clt., p. 18[t,
irrvcstigação é ainda um romance policial? 2'r A. Darrto, Ln Trartsf guratiott dtt bnnnl, op cit., p.160.
[rt.lrr, o jurzo clc firto se confuncle com o juízo de valor: "O conceito de pocle construir o próprio universo artístico a partir de suas próprias
ol'rrir clc irrte implica o clo êxito. As obras de arte falhadas não são obras expectativas. As "sanções" da história não são, além do mais, defini-
clt'irrte "r0. A posição cle Rochlitz é a mesma: a "pretensão à valiclade" tivas nunca: determinado objeto excluído do munclo da arte em uma
irrtistica cle um artefato deve ser sancionada positivamente para que época pode muito bem voltar a e1e em outra e aice-L)ersa (em função da
possiunos clualificá-lo de "objeto de arte"31. evolução dos critérios de avaliação).
Sc ta'rl não fosse o caso, seria preciso integrar à arte o conjunto dos Essas reflexões sobre a obra de arte também se aplicam, é evidente, à lite-
nranuscritos recebidos todos os dias pelos editores, os quadros sem ratura que, não esqueçalnos, Íazparte das artes' Contudo, a arte literária
valor recebiclos pelas galerias de arte e as modelagens inábeis de uma clepreende sua singUlariclade do fato de que o material que ela utiliza- a
t-riança de 5 anos. Se um romance "ruim" (seja o que for que se enten- linguagem jáéem si mesmo um sistema significante. As questões que
-
clir por isso) ainda pertence (e mesmo assim sob reserva)3z ao gênero são postas à arte claramente não são postas do mesmo modo à literatura.
"ron1ance", é pouco provável que aqueles que o julgam assim o elen-
(luem na categoria "literatura". Aliás, a expressão "literatura Íuim"
s(r tem sentido se entendermos "literatura" em um senticlo atenuaclo
(procluções escritas). Quanto à expressão "arte ruim", ela não é muito
A literatura existe?
c'orrentemente empregada. A palavra "literatura" designa uma realidade objetiva, ou se trata de
Observemos que, se aceitarmos a definição da obra de arte como "ar- um termo vago, de significações mutantes, por vezes, contraditórias?
tcfato não utilitário que exprime algo e ao qual não atribuímos valor", Antes de responder, reevoquemos brevemente as origens do termo.
t'r história da arte é exatamente a história das variações na identidade
('omo o demonstrou R. Escarpit33, é por volta de meaclos do século Esse breve histórico explica por que os valores do espírito e da cul-
XVIII que a ideia de uma "arte da linguagem" começa a se afirrnar. En- tura são indissociáveis dessa arte verbal que é para nós a literatu-
tltrirnto, anteriormente, a arte verbal limitava-se à poesin, o século XVIII ra: as antigas acepções cla palavra, mesmo recobertas pelo senti-
vciemergirem os gêneros "vulgares"(o romance e os gêneros em prosa do moderno, não desapareceram de todo. Se "literatura" designa
provenientes clo jornalismo). Diante da necessiclade de um termo geral atualmente as obras de vocação estética, o termo também evoca as
ideias de "produção intelectual" e de "patrimônio cultural"' Como
[',rrrtr clesignar a arte de escrever, os olhares se voltaram para a palavra
lilt'rnturn. Algurnas línguas, como o russo, adotam o terrno; outras enxer- o nota R. Escarpit, o termo "literatura" é, em última instância, rico
em contradições: "Trata-se de uma série de ambiguidades que fez a
t.tm essa nova acepção em um termo de sentido aproximado. O interes-
st'cla palavralitersturs é que ele sempre sugere as icleias de "elite" e de
própria fortuna. É possível que um esforço de esclarecimento leve-
".rristocracia", hercladas de seus primeiros senticios. A cliferença é que a
-nos a perdê-lo para sempre"3s.
p.rrtir de então são as obras e não os homens que pertencem a uma elite.
Iiazer parte da "literatura" funciona, desse modo, como um reconheci-
A líteratura como arte da línguagem
rncnto para os gêneros antigos e valida o valor dos gêneros recentes.
A litoratura deixou de designar, portanto, um "ter", para designar uma se formos levar em conta o sentido que o termo adquiriu no século
Pl'.itica e, para alérn disso, o conjunto clas obras dela resultantes. XIX, a pergur-rta "o que é a literatura?" passa a ser formulada como
('ontuclo, é preciso aguardar para que o termo literatura possa rivalizar, segue: em que condições um texto pode ser tido como estético? As
respostas, logicamente, atestam a mesma clivagem entre objetivistas e
rro plano estéticq com o termo poesia. No século XVIII, o conteúdo do
subjetivistas que se vê na definição do belo.
It'r'n-rcr liternturn, com efeito, está longe cle ser unívoco. Ele também englo-
hir pcrfeitamente tanto as obras de vocação intelectual quanto os textos É o que se pode verificar ao examinar as reflexões de Genette sobre
tlt' tlimensão estética. Todo escrito ao qual se reconheça um valor (seja a identidade literária. Segundo o autor de Fiction et diction36, são con-
lror slla fortna, seja por seu conteúdo) pertence à literatura. Diante disso, sicleradas (de acordo com os fatos) literárias duas categorias de tex-
() crlnpo literário engloba tanto as obras de ficção quanto os escritos his- tos: aqueles que pertencem à literatura por obediência a convenções;
loricos c filosóficos e até mesmo os textos científicos. As coisas evoluem trclueles que são tidos como belos. Convém, portanto, distinguir dois
1x)f'(lue, com as ciências positivas conquistando progressivamente apró- rcgimes de liternriednde: o constittttitto (um texto é literário por respeitar
lrria autorlomia, torna-se cacla vez mais difícil assimilar à "literatura" os irs regras de determinado gênero); o cortdicional (um texto é literário
t'st'r'itos cientificamente orientados. A consequência dessa "secessão" é
lirrrit.rr tr lite'ratura ao campo da criação estética. De fato, a "gratuidade" (lr.l(\ c scrrpre a rlossa
-
deve, evidenternc.nte, muito ao romantismo e a sua sacralização
rl,r ar.tc: rur1i1 \,ez cs;tabelcciclo que a obra de arte tem um valor próprio, quc a clistingue
(r .rtrscrrciir de finaliclacle prática) acaba Por se impor como o critério da r.,rrlit,al1tt.1te tios outros obietos clo munclo, é lógico consiclerar a autonomia e a autoteliar
irlt'rrtitl.rde Iitcrária. A partir clo sóculo XIX, "literatura" adquire scu sL-11- çpr16 tlu.rs rlc srr.rs catiictcrísticas essenciais. Aplic.rndo essa abordagem à literatura, os
l6r.rlalist,rs l'ltss()s sc apoiitrão na it'lcntidade cstéticar Para uma máxima exploração das
IitI«r rnorlcrno clc "uso cstctico clar linguagcrn e'scrita"31.
l,r.pt it,tl,rrlt's l6rprais rla lirrgr-ri-rgt'rlr. Solrrc ats rclações ctltre rortatltismo e formalismo, vcr
l. 'lirtlorrrr', ('rilirlrtt rlr lt tritiqut. I'alis: Setril, l9ti4, p. 7-'15.
', li. l,illt't',rlrrn., llir litttttrirt ittlt'nmlíotrtl r/r's /r'rtttr's litlcmirts <http:/www.tlitl.
" ( 'l li l;,,t,rr Iil, I ,r I )t'lirriliorr rltt lt't tttr "l.itllr',rlrtn"', itt: I r' I illttttir,' r'l lr' :ttr rrrl. l',tlis: llr;r,,rr,Pit,
r.Plrl''
l,l i,rrr l(),'l) r, )rrtl )ír l rnlo/,rlllr,sl /,rr 1)'t1
32 ,,(ni ellt. r,-slLrDÁ/i I.nERAILutA?
Da nrte e do liternturn
por apreciação estética subjetiva). um soneto, um relato ficcional, uma Quixote ou A níttLsen. De qualquer perspectiva pera qual se olhe,
pcça cle teatro são, portanto, constitutivarnente literários. Em contra- não se pode deixar de encarar a questão clo valor. É por isso que,
partida, textos que não pertencem a gêneros literários estabeleciclos, a meu ver, é clelicaclo falar de "literariedade constitutiva": só exis-
lnas que poclem seduzir por causa cle suas qualidades de escrita são tem identidades genéricas constitutivas que nem sempre são
-
garantias da identidade artística. Efetivamente,
conciicionalmente literários. É o que se passa com os sennões cle Bos- existe uma infini-
suet, a Histórin dn França de Michelet, os Pensttntentos de pascal ou os dade de textos que, apesar de uma identidade genérica claramente
Eusricss de Montaigne. Esclareçarnos que a literariedade conclicional estabelecida, nunca conseguiram conquistar um estatuto artístico.
r-rão é uma simples questão de preferência pessoal: como podernos ver A abordagem da literatura apresentada em Fiction et cliction é cle-
pclos exemplos que acabo de citar, urn texto que não era originalmente terminada por um dos postulaclos fundamentais cla modernidade:
litcrário pode adquirir, com o ternpo, uma identidade literária coleti- r-r importância primeira cla forma. Não obstante a clistinção entre
vamente reconhecida. E isso acontece mais facilmente quando tal texto uma literariedade "por ficção" (que representa objetos imaginá-
r-rranifesta uma intenção estética parcial. o Discurso sobre as ci'àncias e rios) e uma literariedade por "dicção" (derivada da maneira cle
tus nrtes é inicialmente um texto de ideias, até rnesmo uma obra filosó- cscrever)3e, Genette realmente se mantém convicto cle que a lite-
fica; mas não se pode negar que Rousseau, ao escrevê-lo, tenha siclo rtrriedade é inicialinente uma questão formal. Isso é evidente no
sensível a preocupações estéticas37. sua chegada ao estatuto de texto ctrso da literariedade "por dicção". Em um "belo,, texto, os enun-
iiterário evidentemente lhe foi facilitada. c i a-rdos são lo gicarnente percebidos como intangíveis; rno dif icá-los
Mas essa importância geralmente atribuída ao trabalho formal não o texto literário, é porque têm a convicção de que a menor modificação equiva-
cleve ser relativizada? Particularmente quando se trata da arte li- leria não somente a alterar o ser musical e rítmico da obra (o que é lógico), mas
a língua também o que ela exprime ou busca exprimir (o que é mais surpreendente).
terária, sistema simbólico "secundário"a2, cujo material
- Tudo se passa como se o respeito ao literal não fosse menos necessário para a
põe pela força das coisas a questão do sentido em primeiro pla-
- identificação do que está em jogo quanto para o prazer da leitura. É o qu" vamos
no? Realmente, existe uma diferença fundamental entre as artes que
verificar analisando esta célebre passagem de Madame Booary.
requerem uma percepção estritamente sensorial e aquelas que Pas-
I1 y avait au couvent une vieille fille qui venait tous les mois, pendant huit jours,
sam pela falaas. Se, como o nota Schaeffer, toda obra de arte não é
travailler à la lingerie. Protégée par l'archevêché comme appartenant à une ancienne
necessariamente um objeto semiótico (um "jardim", tlm objeto de famille de gentilshommes ruinés sous la Révolution, elle mangeait au réfectoire, à la
clecoração não são feitos para significar), a obra literária, em contra- table des bonnes soeurE et faisait avec elles, apràs le repas, un petit bout de causette
partida, é sempre um fato de sentidoaa. Podemos nos perguntar se avant de remonter à son ouvrage. Souvent les pensionnaires s'échappaient de l'étude
pour l'aller voir. Elle savait par ceur des chansons galantes du siêcle passé, qu'elle
não é isso exatamente o que constitui sua força, como vamos mos-
chantait à demi-voix, tout en poussant son aiguille. Eile contait des histoires, vous
trar no interlúdio a seguir. aprennait des nouvelles, faisait en ville vos commissiong et prêtait aux grandes, en
cachette, quelque roman qu'elle avait toujours dans les poches de son tabiie4 et dont
{r R. }akobson, Poétique, in: Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963 [ed. or.: 1960], la bonne demoiselle elle-même avalait de longs chapitres, clans les intervalles de sa
p. 218. besogne. Ce n'étaient qu'amours, amantE âmantes, dames persecutées s'évanouissant
a2 VerTTodorov Qu'est-cequelestructuralisnrc?,t.II Poétique.Paris:Seuil, 1968,p.30.
'rr As demais artes (escultura, pintura, música) solicitam certamente a reflexão mas de c{ans des pavillons solitaires, postillons qu'un tue à tous les relais, chevaux qu'on cràve
rnodo mais mediato que os textos literários.
- à toutes les pages, forêts sombres, troubles du coeuç serments, sanglots, larmes et
{ Cf. J.-M. Schaeffer, Les Célibataires de l'art, op. cit., p. 81. Baseando-se nos trabalhos de baisers, nacelles au clair de la lune, rossignols dans les bosquets, messieurs braves
Sc.arle, Schaeffer explica que todo ato linguístico é um "fato de Intencionalidade derivada",
comlne des lions, doux comme des agneaux, vertueux comme on ne l'est pas, toujours
isto é, ele não é simplesmente causado por estados Intencionais: ele exprime estados Inten-
bie'ns rnis, et qui plcurent colnme des urnes. Pendant six mois, à quinze ans, Emma se
cionais. Certamente, já lembramos isso, só os estados mentais podem ser Intencionais; por
isso não é menos certo que a lingui'rge'm seja feita para seÍ preenchida cle Intencionalidade. gririssrr donc lcs rnains à cettc poussiàre des vieux cabinets de lecture{s.
Um livro não tcm consciôncia clo que cliz; rnas reivirrdicar a existêncitr (difcrcnternente de uma
sc'c1u('ncia clc sigrros gráÍicos scnr significação) cia lutcncir»ralidaclc quc urn indivÍduo perten-
c('nt(,rl ulnir conrurritlaclt'linguistica tlar.la lhe cottícrt'. Íl crn virtuclc tlt'ssa ltrtt'trcionaliclirtlc
'r" (.1, lllatrbcrt, Matlanrc llovaly, l. pitrtc, cirp. IV. Paris: LibrairicCénérale Française, 1972
Dn nrte e da literntura
36 r:srrroan r-lrrnATuRÁ?
,..r'on,Qur #
AS Conotações do termo
,,graisse,, (,, gordttra,, l,,sujeira,, l,,graxa,,) irrtroclu- srnal de desgaste, de envelhecimento; remete às cinzas e à morte. Significativa-
De fato, elas são contraditórias' os rrente, textual: é como se a poeira c'n-
essa poeira negativa participa cla lógica
zeln, por outro lado, uma série cle ambiguidades.
,.lur., negativos da
,,gordura" são conhecidos: a gordura está iigada à sujeira (ela contrada nos livros permanecesse agarracla a Emma por toda a vida' Ol:serve-sc
se fala de "gordura ruim"' que, já aclulta, Ernma continua a gostar da poeira, seln se dar conta de seu caráter
provoca manchas) oá ,,',pât"tent51 (a cujo respeito
" de peso5z). Mas a gordura rnortífero. Vatnos nos lembrar de sua entrada t-ta Ópera'
aqtrela qlte se deve suprimir quanclo Se teln excesso
(enverniza-se um objeto, "para con-
titrnbérn tem conotações positivas: ela protege Ela teve prâzet coltlo umil criançi1, cln elrpurrilr com o de.lo as largas portas atapet,rdas;
(engraxa-se
scrvá-1c1, protegô-1o cla deterioração"), permite o born fttncionartento aspirou corn todo o peito o odor poeircnto dos corredores, e, quando se sentou
em seu
que funcione rnelhor),
urn *ccanismo, no sendclo de "lubrificaÍ", pata permitir camtlrote, ârqucotl a cintura com uma desenvoltttra de clucluesass'
(aduba-se a terra, engorda-se um animal) e ela dá
brilho (engraxa-se urn
,tlirr-rcnta
no enunciado Mas o rotlance tambérn atualiza as conotações positivas cle "poeira", que
ora, toclos eSSeS Sentidos, ainda que opostos/ são aceitáveis
sapato).
se vê ligada ao arrebatamento, à estética (a faixa de poeira), ao maravilhoso
(a
qrlcnosocltpa:aleiturasttjaaexistênciacletimma'mastambémlhedábrilho;
protege' Note-se qlle encontra- poeira de ouro). De mancira geral, o pó é suporte de devaneio, de poesia: ele
crl[ft]va sua vida, rnas a alimenta; alneaça-a' mas as
antitéticos clO verbo "graisSer" rcmete ao vaporoso.
n1os, eln olltras passagens do rouance, os valores
numa única fórmula' Essa ambivalência, obviamente, é significativa. Podemos dar conta dela da
(,,cngordar,'/ "su1ar" l;'engraxar" l"lubrlÍicar") condensados
A frase seguinte é, clesse ponto de vista, particttlarmente
interessante: seguinte maneira: no tocante à poeira e à gordura, o tcxto propõe ora o ponto de
cirúrgicas que vista de Emrna, ora o ponto de vista clo narrador. A arnbiguidade de nosso enun-
1...1 clc re,:tlnfortort
o pacicntc com toda sorte de boas palavras' carícias A
ciado se cleve, pois, ao que Bakhtin charna de inter-relação das linguagenss6.
siio como o írleo com que lubrificamos os bisttlris'
fórmula "engordurar as rnãos na poeira" supõe, com efeito, duas consciências
|..,Iilrécon.fortrlleTtatietttil.occfolttcssortcsdebt.lttslltots,cí]r.,sscschirurgicttlestltti lingnísticas: Ltlna qlle representa; olltra qJue é representada. Condensando os
sí),r f t:o,ll,1? c I' h uil t tl o n t ott grrtlssc le s lti st ou r i ss""
valorcs contraditórios cle "gorclura" e "poeira", a fórmula diz ao mesrno tempo
o qLlc il lcitura representa cle positivo aos olhos de Ernma e o que, na realidade,
'I F,s1-rcss;rt-nento do tc'cido subcutâneo (N'
T')'
,, , a L.uise' Colct cle 26 r1e iulho c1c 1852, recorre a essa cla vcicr"r'la de ncgativo: Enrma acredita se livrar cla sujeira do mundo pela lei-
oüscrvt,-se t1u. Flar,bcrt, nurna carta
"Vcntlo Ineu aspecto' trlgucrn pells'Iria t]tlt'
nrct,ifola r1a "gtlrtlurtr l'uitn" quc c çrrccistl rctirar:
cltls fatos, c ('u, ao contr';irio' s<i tno 'rgrtlclcl
tt,r.rh9 rlr,protluzir o tipittt,..la,r,r't", a brttirrlitlarcle r llrllrirpt-t,s, irs palavras 'irprrr11i'('p6') o
'irplrssitrrc" ('pó,
çrocira') tôn-r, e cl;rrg tr r]resnta
raiz cti-
por assitt-t tlizct" Ntl ftttlcltl' Stltt tl htltuCt.tr tltls livrtls-Cirixa'
tl()s l('t)t,ts (l(..lllitlis(', tlt'arlattlrrli,r, rrr.lrliitir. Vlas rrt'rrr iss() tlt,ix,rnr rlt' aprt,scrrtar cotroiirçõos clifcrc'l-ttcs, stlbrctttclo aos ollros
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Da arte e da literatura 4l
n:.,.1',:l:5""oo ',oon"*' #
poei ra), mas ttrdo o quc
mesmo: o homem individual apreendido em sua dificuldade de habitar o mundo.
ttr r.a (untanros as mãos para nos prevenirtnos contra a
uma A esse respeito, duas tradições se enfrentam ao longo de sua história: a do idea-
faz é passar de uma corrupção a outra. os livros que se apresentam como
pro- lismo, persuadido de que o indivíduo pode dar um sentido a sua vida submeten-
r]laneira cle embelezar a vida (ponto de vista da personagem) conduzirão
do-a a um absoluto; a do ceticismo, convencido da irnperfeição do homem e da
gressivamente à morte (ponto de vista do narrador)'
,'livro sobre nada" é recebido, portanto, como um livro sobre inutilidade dos esforços que ele empreende para escapar de sua riste conclição.
Mesrno um
Essa segunda tradição se encontra no século XIX na obra de Flaubert. Ele mostra
apesar do que se diga dela ser reduzida
alguma coisa: a literatura não pode -
- a inanidade da visão idealista pondo em cena personagens que, embora reféns de
à rnusicalidade das Palavras.
um mundo entregue à mediocridade, imaginam poder escapar da realidade som-
bria. Mas a força do texto de Flaubert está em atacar ao mesmo tempo a aisão
de mr.Lndo idealista e os ronlances que a propagam. Madqme Boaary mostra,
A dim ens ão int ele ctuql: difundir uma imagem exaltadora do amot
cle fato, que o romance idealista, ao
discursos sobre a leitura e o sentido da vida suscita um desejo que não pode ser satisfeito. O texto então não se contenta em
denunciar uma visão artificial: ele desmonta as engrenagens dessa visão, tornan-
Através desse quadro de Emma a let o texto nos fala da leitura etn sua te-
deduzir do do-as visíveis. Ao desvelar assim os mecanismos do desejo, o relato de Flaubert se
lação com a Tída e a morte.Eis algun-ras das postulações que podemos
leitura pode inscreve nesta "verdade romanesca" que R. Girard opõe à "mentira romântica":
enunciado: ler é um remédio que pode se transformar em veneno; a
embelezar a vida, mas também afastar da úda (a força da ilusão é então
proporcio- "O romancista é o único a descrever essa gênese verdadeira da ilusão pela qual o
nal à da desilusão); ler responde a uma necessidade de compensar a insuficiência romantismo sempre responsabiliza um sujeito solitário"u'.
,,ler cria o sentimento da insuficiência do real"); há um modo de ler
clo real (ou A frase que nos ocupa faz dialogaç portanto, dois pontos de vista sobre a
destrutivo (que é o reflexo invertido do que seria um modo de ler construtivo);
a
leitura e que ela consegue condensar. A presença de tal conteúdo se explica da
rná leitura dep"nd" da atitude do leitoç mas também do tipo de livro lido
(disso
seguinte maneira: herdeiro de uma problemática própria ao gênero e tributária da
se pode inferir o que o romance de Flaubert busca provocar e como convém lê-lo).
história cultural, o romance de Flaubert levanta, a seu modo (e através dos desafios
a morte/ o
Em suma, a leitura tem a ver com a alienação, a dependência, a doença,
próprios ao século XIX), a questão multissecular do lugar do indivíduo no mundo.
veneno, mas também com a proteção, o refúgio, o alisamento e o embelezamento.
O valor expressivo do enunciado é, como se mostroll, indissociável da es-
O enunciado veicula, portanto, certo número de conteúdos. Resta saber
colha dos termos e de sua ordenação. Se nenhum estudo literário pode abrir
por que ele veicula justamente esses conteúdos. Responder essa pergunta supõe
em esclare- mão de uma reflexão sobre a forma, portanto, não é unicamente por causa do
passar da interpretação à explicaçãos7. A explicação consiste, de fato,
de trazer poder de sedução que geralmente se the atribui.
cer o conteúdo destacado, interrogando-se sobre suas causas. Trata-se
à luz determinados fatores (biografia, cultura, história, sociedade
etc.) que per-
t, V.rl,.r*i ,*lt*"lt,-rlrtc t\ rlistinção tntrc cxplicação t'ilrtcrprctação; c, tle lnoclo mais gcral,
,\ tr rrr'sl lir I contplicaclissi tnir tla si grlil icação'
|-
VELHA SENHORA
CANSADA: VENTURAS
E DESVENTURAS DA
ESCRITA
I R. .firkobsorr, La Nouvclk po('sic russc, ín: Huit tlucstiorts dt 7roótiquc. Paris: Setril,
l.r«,-iiot'stt'tica c rlt'firricla collro trssurrção clir frlrma em detrimcnto clo con- ('iur.rpo cla prtlcsitr). I'otlctnos irpreciar Dom Qttixttfc sem sabor espanhol
lt'urftr. lbuco importa que'a obra seja descrita como "atenção desinteressa- orr () sr»lr a n
ftirin sern dominar a língua inglesa. Se tocla escrita, rrresmo a
clir" (inciclinclo não sobre o objeto, mas sobre sua represer-rtação) ou "aten- nrais "genial" é "transponível", pode-se concluir ou que é relativamente
ção aspectual animada por e orientada para uma questão c1e apreciaÇão"', fiicil fazer urna obra de arte (o que está longe de ser comprovado pela
o arnante da arte é tido como aquele que se concentra na aparência. cxperiência), ou que o valor artístico não decorre unicamente das qua-
liclades formais. Em apoio dessa segunda hipótese, notaremos que/ na
Resta saber o que é que recobre exatamente esse interesse privilegiado
passagem de uma língua para outra, é mais fácil restituir as estruturas
prela forma.
globais de um texto (a arquitetura do conjunto, as escolhas acerca do
modo de narração ou do tipo cle enÍoque) do que as formas locais (alite-
rações, efeitos de ritmo, trocadilhos); ora, os primeiros são indispensá-
Forma, onde está tua vitória? veis para a construção do senticlo, enquanto os segUndos desempenham
uma função essencialmente estética. A traclução reproduz, portanto, ini-
Digamos sem rodeios: o que permite a uma obra passar à posteridade
cialmente um conteúdo.
rararnente está ligado a seu "aspecto". A prova está ern que nos interessa-
em nossa relação
mos por bom número de textos antigos, cuja estética hoje nos parece corn- Quer dizer que a forma não clesempenha papel algum
pletamente anacrônica. O recurso às formas fixas, o respeito à regra das com a obra literária? Que opraz€.j.. propriamente estético não conta? Que
três unidades, o polimento clos grandes períodos oratórios não garantem Dante, Mallarmé, Proust, Kafka teriam passaclo Pata aposteridade mes-
mais o prazer estético. Se Baudelaire, Racine ou Victor
longe disso lno que ninguém tivesse siclo sensível a sua escrita? É claro que seria um
- - absurdo defender uma posição dessas. A forma desempenha um papel,
Hugo continuam a nos interessar é porque a "força" ou o "valor" de seus
textos resultam de algo diferente de uma qualidade de escrita, cujo im- justamente o papel de suscitar prazeÍ. Mas essa função cla escrita não
pacto se estiola inevitavelmente com o tempo (e com a evolução do gosto tem a mesma importância nas diferentes etapas da vida de um texto.
que ele produz). Por sinal, é perfeitamente lógico se aclmitirmos que
-
a ideia de belo écultural que o valor de uma obra aos olhos da poste-
-
riclade não é resultado de seu aspecto estético. Desse ponto de vista, um O bônus de sedução
neokantiano como Genette3, que deduz do primado conceclido à forma
um relativismo radical, é rnais consequente que um Jakobson, ainda va- É no momento da primeira edição da obra que o pÍazet suscitaclo pela
gamente obsedado pela busca de propriedades ontológicas do literário. forma desempenha um papel fundamental. A tazá.o disso é simples:
não há nenhuma razáo para prolongar o contato com um objeto esté-
Outra constatação leva a relativizar a importância da escrita: as "obras-
tico que não proporcione nenhuma satisfação. É claro que poclemos
-primas" enÍrentam tranquilamente a prova da tradução (inclusive no
extrair prazer de uma obra por conta de seu conteúdo; mas o conteúdo
' (1. Genette, Ln Relntion esthétique,
só se desvela pouco a Pouco, ao Passo que o confronto com a escrita é
o1t. cit., p.L6.
' (lenettc condivide o subjetivismo cle Kant, mas ccnsura o autor da terceila Crítico por imediato. Se a leitura não gerar imediatamente prazer, frequentemente
sua lcjcição do relativismo: "Sua estética é tipicamente subjetivista, mas ela se guarda, ou
rejeitaremos o livro antes de ter uma visão mais precisa clo que ele tem
rlt.lhor, ela se defer-rde tanto quanto pocle do relativismo que me parece de'correr dessa po-
sição", iltid., p. 82. a dizer. A função primeira da forma (no sentido cronológico do termo)
n,t,',r-:,::,::::::la_. :_: : #-
de uma forma dessueta, tiveram, no momento de sua prirneira edi-
Mas' na realidade' trata-se
c, então, oferecer um "bônus c1e sedução"' ção, de enfrentar a prova do julgamento estético. Senão, ninguém
cle bern mais clo que um bônus: é uma
condição sine qun non'
nunca as teria lido. Poclemos, então, afirmar que toda obra conside-
prazer é essencial Para arelação estética
o está rada hoje como literária foi, em dado momento, acolhida como este-
Essa convicção cle que
o leva a questionar o famoso ticamente bem-sucedida. Por isso, como vimos, as definições genéri-
na base da abordagem dà schaeffer. Eia
,,desinteressu*"ntJ,, que, segund,o Kant, caracterizaria nossa relação cas e institucionais da literatura não questionam o vínculo estrutural
da arte, a relação estética não entre obra de arte e bom resultado estético: se determinado gênero
Com o belo. I,ara o autor dos Celíbatítrios
..clesinteressacla,'a, visto que é motivada
pocleria ser consiclerada como pode se tornar o índice de uma iclenticlade artística é porque o que
como uma agradou em uma época foi progressivamente se constituindo em um
p"la bus.a clo prazer. Mais exatamente' e1a se apresenta
..atividaclecognitivareguladaporseuíndicedesatisfaçãointerna,'s. conjunto de regras reconhecido (pelo menos, por um tempo) como
Ern outros termos, na conduta estética,
o ptazeÍ não depen de do restil- esteticamente eficaz.
tndo d.aativiclade cognitiva, mas está
ligado a seu próprto desenrolnr'
A qualiclade da forrna está, portanto, na origem do sucesso inicial da
de um rnanual de instruções' a
Quando monto.,* Ãó""i com
a ajuda
obra. Mesmo assim, ela não bastaria para explicar o motivo pelo qual
enquanto tal'
atenção que dou ao manual não me proporcionaPrazÜ uma obra sobrevive. Claro que pode acontecer cle alguém experimen-
esPerar ter decifra-
Para experimentar alguma satisfação' precisarei tar prazer estético lendo uma obra do passado, mas esse é um feliz aca-
que elas me permitiram
do as instruções e, sobretud'o, ter constatado so (e, ao final das contas, muito raro). Tuclo bem ponderado, a escrita
sempre é o caso)' Em con-
rnontar o móvei corretamente (o que nem correspclnde àquilo que existe de mais frág1l no prazel literário: serão
a uma pintura ou a uma
traparticla, se a atenção que dou a uma flor' apreciados, segundo as épocas, o alexanclrino ou o verso livre, as frases
não tenho razáo alguma
obra literária não Seta Prazer enquanto tal' curtas ou as frases longas, o estilo carregado ou a escrita clespojada etc.
não tem outra finalida-
para prolo ngá-la,üsto que a atenção estética Entender o que constituía o cleleite da obra na época de sua criação não
estética é' portanto/ uma
ãu, u ,-rão ser a busca do prazer' A conduta é o bastante para tornar a obra aprazível hoje7.
apreensão de um objeto clo
ativiclade cognitiva integral (ela passa pela
rnundo),masquesedistinguePorsuafuncionaliclade:elavisaauma Portanto, é clifícil definir a obra de arte como "um documento históri-
obticla posteriormente' co que continua a produzir uma emoção estética"s. uma obra cle arte
satisfação concomitante à percepção e não
é justamente utn objeto que continua a prencler a atenção, mas isso
de fato, razáo alguma para
Na ausência de prazer estético, não existe, não (obrigatoriamente) por causa cle sua "beleza"'. quase sempre, é o
obra de arte6' Mesmo as
manter, ou para se engainr na relação com a contrário: é porque ela possui outras propriedades, Para além de suas
nosso interesse' apesar
obras do passado que continuam a despertar qualidacles formais. O que atrai, o que fascina no texto literário é sem-
a cristctr-
pre algo de rnais fundarnental que essa ou aquela virtude da escrita.
, 1.r",l *r.*,i"^] s.rtislaçã. estetica e, st'gunclo Schat'[fcr, rir'sirlír'tt':rtJa qu'lllto
ciacl<lobicto(sóarreplesentaçãodoobietolheirnporta),nrasillÍcrcssndoquantoàbuscac]e
; A tinic.r rrarneir.r rle proklngal o deleite estético Ce uma escrita é ac-lotar os princípios cle
sittisftrção.
' I -M. lit:hacffcr, ALIiL.tt à l'cstlt;tiLyrr:' op tit'' p' 49' trarlr.rqlio rle A. M.ukowicz: trrrnspror a vclha forma para nma forma que, falando ao público
,, l,trtlt,rr.rr,.s.bjctar tlut'rts coisits são utrr porrco clifcren:"t:: ut crític<]s ostitrlul'un tl-ttlittr rlt' lro!t', pr()\,(xlu('st'ntirncntos sinril.rn:s. Se o tlesafitl ó reconstituir uma c'moção, dc f.rto, i'
()s
c(ls()/
,r k,r, trrrr tt'x1(), orr ,1,,4,r.1,, o attltlt t' lr,lltc..ttttctrtt't'tlllhc't'itltl M'ts' trtl Prirnt'it'tl Pr()- ,tlrstrltlo tr',rtlrrzir iantbit'tls lll'(.ll()s [)or iittttlric«ts (cttttfcrctri:ia plofcricl.r etn lJtlrtlt'ttttx ctll 2-3
r r rrir.s,,1,,,,,,,1,, .,i. *,r1x,,, ,,,rtt,r tlt' ,,,,, ,,:)l::]ll]lliil.:ill,i':l';:1,,,]ll,:ll:'ii,l'li:l.lliil (l(' n()\,('lll)r'() tlt'2(X)(r, tto tlrt.ttlto tlo r'ttltxltitl "l,t'lt'ctt'trr t'lrg.rgt;").
,,,,, ,1,,1,, t1,,",,;,' lt,,.;.. (1,,.,,i1 l(x)!l ?'1(l
? Valln senhora cartsttda: t,ettturrc e dcst-tcntttras da escritn 49
4Íl tr( )/i eilr l s r-tir),ltt L/ rrRÁllll{Á n In *
+rt
sões perifrásticas etc.) clão testemunho, para além de seu valor estético
Da forma ao conteúdo eventual, de uma concepção clo eu que é ainda muito atual: o recalque
clos sentimentos (cuja atenuação é a tradução estilística) não apenas
Ilarciocinemos em termos simples: se as obras atravessam os séculos
a
pro- coexiste com a violência interior que habita o herói raciniano, mas é
clespeito do caráter cultural da forma, é porque possuem outras
provavelmente a sua origem. Em outro registro, a "organicidade" das
priedades. Tais propriedades têm uma irnportância decisiva, porque
fábulas de La Fontaine (cada uma se apresentando como um todo au-
seu impacto não é conjuntural. Quando a seclução da escrita (inevitavel-
tônomo) dá testemunho, no plano do conteúdo, da síntese entre a visão
rnente) se estiola, essas ProPrieclacles Permanecem e se impõem como
não de mundo herdada da Iclacle Média e a renovação cultural encarnacla
o verdacleiro critério do valor de uma obra. se essas propÍieclacles
pelo Renascimento: ela se explica pelo "encontro da modesta ideia me-
resultam da forma, só resta uma explicação: elas provêm do conteúdo.
clieval do macrocosmo e do microcosmo, na qual o homern é a imagem
De fato, com o tempo, o que constitui o valor de urna obra não decorre
cla criação, e a orgulhosa icleia do Renascimento, pela qual o artista, se-
mais cle sua escrita, mas c1o sentido que ela veicula. Por sinal, notare-
"objeto melhante a Deus, imagina um munclo [...]"". Mesmo quando um texto
mos que a noção de "obra d.e arte" evoca espontaneamente a de
não tem realmente sentido, ele exprime algo mediante sua enunciação.
cultural", como se as obras de arte intportantes,. aquelas qtepertnanecem,
Desse modo, a poesia letrista qual os signos do alfabeto são com-
extraíssem seu valor daquilo que elas exprimem ou significam' mais binados de modo "instintivo" sem reproduzir as palavras da língua
que da emoção estética que elas, por vezes, ainda possam suscitar'
pode ser interpretada como rejeição da regra e das tradições, uma
-
Mas não concluamos aincla que a forma não terüra mais interesse; é revolta contra um munclo rígido e utilitário, ou ainda uma valorizaçáo
que esse interesse se tlesloca'. ele não se prende mais a sua eventual do elementar, reatando corrr a humanidade original.
climensão estética, mas às relações estreitas que essa dimensão estética Com o tempo, o valor da forma emigra do plano estético para o plano
mantém com o conteúclo. É por isso que poclemos apreciar as tragéclias semântico. A esse respeito, vale notar que as teses de literatura (sinto-
de I{acine, os sonetos de Baudelaire, a poesia de Camõeslr, sem nem máticas da posteridade de um corpus) incidem na maior parte do tempo
por isso clesejar que essas formas de escrita assumam o primeiro plano sobre a questão do sentido (os estudos temáticos e históricos, mesmo
c1a vicla literária. O importante é a maneira particular
portadora de
- que utilizem a poética e a narratologia como instrumentos, continuam,
clesafios específicos com que Racine explorou os recursos do gênero não importa o que digam, amplamente dominantes). Quanclo os tra-
-
trágico e Baudelaire/ os do soneto. Desse moclo, mesmo que não se- balhos universitários se interessam prioritariarnente pela forma, não é
jamos mais sensíveis à estética raciniana (grosso ntodo, isso bem pode para mostrar em que consiste um "belo" texto (isso certamente provo-
acontecer), podemos apreciar o "efeito de surdina"l(r que se depreende caria um sorriso divertido da banca examinadora), mas para identifi-
cle suas peças (em outros termos, um fenômeno formal) por aquilo
que
car o que ela exprime: estudar o naturalismo huysmansiano ou a frase
cle exprime. Como Leo Spitzer clemonstrou, os diversos procedimen- proustiana nunca ó limitar-se ao plano estético; é se perguntar em que
tos de atenuação que encontramos na tragédia raciniana (desindiviclu- cscolhas cle escrita dão testemunho de u5n olhar sobre o mundo e sobre
alização pelo artigo clefiniclo, plurais apagando os contornos/ expres- ir existêncirr. Hm suma, nos estudos literários, a não separação fundo/
Ionn;r c scrnprc feittr cm provcitcl do funclo. Se ler uma obra contempo-
tlt'sÍ:r'ut.rnt tl.r tliDrt'nsão t'sttitica tlt'ssa Pot'sia t'l)()l'(lll('t'la p'rrtitiPa
tlt'
lt" r",fur*rt,"1.,
Irrrr,r ,rltloslt'r t trlttrr',rl rr,r t;ttitl, t'ltt ttlttiltls.lsptr'tos, t ottlilltt,lltttls itttt'tstts
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M IlrrsRLúDiO ZW
A ITuuINAÇÃO DA ESCRITA A narração: o aPagamento das
(1. Gracq, La Presqu'ile) t'ronteiras entre o eu e o mundo
A história é contada por um narrador anônimo, mas através do ponto
de
do instante, por reproduzi-los no curso da frase, o mornento evocado só vale na impressão de que não é Simon que avança na paisagem, mas a paisagem que se
rnedida em que se prolonga no futuro. É por isso, nesse relato no passado, que o metamorfoseia sob seu olhar.
movimento dominante permanece paradoxalmente o da antecipação. As horas
Para mostrar que a natureza é urna força agente, o texto/ além disso, se em-
que separam da junção acentuam a percepção: a felicidade está em "se aproxi-
penha em remotivar as fórmulas lexicalizadas que fazem referência aos elementos.
lnar" mais do que em "atingir".
Assim, não é somente no sentido figurado que Saint-Rolf "fech[a] de novo num
Enfatizemos que não há contradição entre a valorização do instante pre- pé de oento sua fatia de casas baixas": a expressão é chamada pela presença efedva
scnte e o movimento de antecipação. viver plenamente o instante presente é do vento. O mesmo vale para a ênfase: "Mas claramente agora se aproximava": o
vivô-lo nele mesmo e através dos possíveis de que ele é portador. A presença advérbio, mesmo conservando seu sentido habitual ("evidentemente"), remete à
rro nrundo é assim, ao mesmo tempo, completamente física e inseparável do luz do sol que acaba de surgir e anuncia "a seca clara" das estradas de outono.
trirhalho clo imaginário. o importante, no momento vivido, são as promessas.
O texto, por meio do léxico, não hesita em "humanizar" o cenário: a torre
O trecho também dá testemunho de uma relação existencial com o tempo: de Saint-Rolf é "atarracada"; o sol é "jovem e gaiato"; os contornos da paisa-
rro |t'slituir o passado como um presente aberto para o futuro, ele mostra que o gem têm uma nitidez "aleÍÍa". A isotopia do "rejuvenescimento" mostra que o
rri'ntinronto de existir se confunde com a sensação da duração. A conjunção, na campo faz as vezes de Irmgard no pensamento de Simon: "desdobrado " , " desa-
broclrirclo" c "frcsc{)", clc podc ['acilmcntc c, por assim dizc'ç rtt:rturalnrcntc
-
-
substitr.rir a jovcm. O SENTIDO EM TODOS
Sirnetricamente, o personagern é apresentado como urn elemento do mun-
do natural. Quando o narrado4 constatando que o tempo piora, comenta: "Con-
tudo, a acalmia que se fizera nele continuava"/ o que pressupõe um vínculo de
OS SEUS ESTADOS
causa e efeito entre a paisagem e o humor de Simon. Como se a monotonia
exterior devesse naturalmente conduzir a uma monotonia interior.
De modo geral, o texto se empenha em fazer desaparecer a oposição entre
o sentimento do eu e a sensação do mundo. A construção passiva ("Num dado
momento, ele se sentiu atraoessodo") faz do indivíduo um receptáculo da natu-
reza. Observe-se que essa imersão na paisagem convoca todos os sentidos: a vi-
são, é claro, mas também o paladar (a verdura das sebes era" ácida"), a audição (a
nitidez é "estridente"), o tato (Simon se sente "atravessado") e o olfato (a seca é
"cheia de ozônio"). O personagem parece se amalgamar com o espaço e o tem-
po: nada mais o distingue do lugar onde se encontra e do instante que vivencia.
e o interesse de uma obra resulta do conteúdo que
A escrita gracquiana, portanto, testemunha uma visão do sujeito. O eu
ela veicula, a autonomia dos estudos literários é uma
não se opõe ao munclo: faz parte dele e influi sobre ele num permanente jogo
de trocas. O pensamento afeta o espaço e o espaço determina o pensamento. É questão legítima. Como fazemvaler os estudos cultu-
somente ao recuperar esse vínculo íntimo que o une ao sensível em cada lugar e rais anglo-saxônicos, toda forma social é significante,
a cada instante que o indivíduo pode experimentar plenamente o sentimento de todo objeto cultural é portador de sentido. Por que,
existir. Mas, desdc logo, a presença do outro não é mais indispensável. O ideal então, reservar um lugar de exceção à literatura?
de fusão faz de toda mediação um obstáculo; por isso, Simon não precisa mais
Reservar a ideia de uma singularidade do literário e o privilégio
de lrrngard. A comunhão com a natureza se acomoda sem arrependimento com
concedido à significação só é possível com uma dupla condição:
a solidão. É o que confirmará o fim da novela, em qlle o reencontro com a jovem
será finalmente vivido colrro Lrm fechamento dos possíveis. mostrar que o conteúclo de um texto literário tem uma especifi-
cidade e que essa especificidade tem um valor. É a isso que de-
vemos dar atenção. Mas, antes, especifiquemos o que se entende
por "sentido" de um texto literário.
=F
texto; evocamos a "ambiguidade", a "polissemia" ou o "sentido plural" formatos de rostos nas nuvens"3. Em outros termos, o interesse de umn
para pontuar os desaÍios de uma obra; os traços "semânticos" são cap- obra de arte é o de nos apresentar o mundo através de uma sensibilidaclo
tados por meio de pares terminológicos muito intuitivos como "senti- particular a de seu criador. Perseguir em urn texto as marcas de unr
do literal e sentido secundário", "sentido manifesto e sentidos ocultos",
-
intenção é tanto mais nafural quanto a obra de arte provém de uma causn-
"denotação e conotações". lidade lntencional, emoutros termos, de uma atividade mentai consciente,r.
Quanto à noção de "conteúdo", ela é mais fluida ainda e serve para Pon- Percebamos que/ não obstante a proclamação da "morte do autor,,, â
tuar dimensões extremamente diÍerentes do texto. A priori, ninguém se busca do sentido pretendido não desertou dos estudos acadêmicos. É
chocará ao ouvir, a propósito de determinada peça de Racine, falar de muito frequente, para não dizer sistemático, comentar um texto parti-
um conteúdo "mitológico", "político" ou "freudiano", desde que se evo- cular com referência aos outros escritos de seu autors. ora, tal procedi-
que/ no primeiro caso/ a natureza dos personagens postos em cena e da mento6, geralmente eficaz, pressupõe que o sentido pertinente é aquele
história que narrada; no segundo, os resultados de um ponto de vista
é pretendido pelo escritor (e não o sentido imanente ao texto que se está
sobre a peça que faça surgir nela o implícito em um camPo delimitado lendo). Há em Unbalcon enforêt, de J. Gracq, uma passagem que deixa a
e, no último, a conformidade do texto com um modelo de interpretação crítica muito intrigada. o aspirante Grange, em serviço perto da fron-
independente da obra e que tem uma coerência própria. teira belga durante "a maldita gt;.eÍÍa", recusa uma transferência que o
tiraria da linha de frente de combate. ora, nos diz o texto, a recusa de
Vários trabalhos se aÍerraram a essa questão complicadal. Uma das ti-
Grange não se explica nem por "uma questão de honra", nem pelo de-
pologias mais convincentes é a de Umberto Eco, que distingue o senti-
sejo de ficar perto de Mona, sua jovem amante. se Grange se recusa a
do pretendido pelo autor, o sentido manifestado pelo texto e o sentido
deixar afortalezade Ardennes, da qual ele tem o comando, é porque se
captado pelo leitor2. Mas, apesar daclareza aparente dessa classifica-
sente "respirar como nunca antes"7. Como explicar que uma situação
ção, cada um dos sentidos catalogados é problemático. tão desconÍortável (a expectativa do efetivo início da guerra) permita
"respirar melhor"? Em que a perspectiva de um acontecimento penoso
pode ser uma condição de felicidade? Encontramos uma explicação
O sentido pretendido
3 A. Danto, La Transfiguration du banal, op. cit., p.210.
Uma primeira posição consiste em peÍrsar que o sentido de um texto não a Yer supra, pp.23-25.
5 Podemos ampliar ao conjunto das produções de um alrtor a observação de A. Compa-
é separável da intenção do autor. O texto literário é, com efeitq inicial- gnon sobre as "passagens paralelas". De certa maneira (e se aceitarmos a ideia de que um
mente, o resultado de um projeto. A. Danto afirma que, se a obra de arte escritor escreve semPre mais ou menos a mesma coisa), todas as passagens de sua obra são
"paralelas": "uma passagem paralela do mesmo autor parece ter sempre mais peso para
se define por aquilo que ela exprime, a interpretação "deve, pelo menos,
esclarecer o sentido de um termo obscuro do que uma passagem de um autor diferente: im-
ser govemada pelas crenças do artista [...], senão interpretar equivale a ver plicitamente, o método das passagens paralelas faz apelo, então, à intenção do autor, senão
como desígnio, premeditação ou intenção prévia, pelo menos como estrutura, sistema e
intenção em ato" (Le Dénton de la théorie, op. cit., p.81).
I Mencionaremos, entre outros, R. Barthes, Critique et oérité. Paris: Seuil, 1966;F. Rastier, " É o famoso "círculo herrnenêutico" (a forrnula é cle Dilthey) que encontramos ern Schleier-
Satts ct taxtunlill. Paris: Hachette, 1989; l.-L. Dufays, Stéréotype et lecture?Liàge: Marclaga, macher: o tcxk) sti pocle ser entcndid<l no horizonte da obra, que, ela própria, só pode ser
1994; M. Charles, Introduction à l'ótude das taxtcs. Paris: Seuil,
't995.
aprctrnt'licln atrav(:s clos tcxtos rluc a cornpõcn (cf. Ilcnnencrrliqrrc. Patris: t,c Ccrí 19tt9
I '['rirtir-st'. itth'ttlitt otrr'ris c da irtÍr:rllirr /r't'trrrir^ (U.
[c.c1.
O sentido em todos os seus estados
# ntn
POR QLIE ESTLIDÁR LITERATURA? 59
ÉTtr
em um dos primeiros textos de Gracq, Un Beau ténébreux, bem anterior Logo de início, notaremos que o texto literário nem sempre resulta
ao Bctlcon en forêt. O personagem Allan se dirige nos seguintes termos de uma "intenção de significação". E não só isso: o projeto do escritor
ao narrador, Gérard: pode ser alheio à questão do sentido (determinados autores visam ape-
nas produzir um efeito estético), mas pode haver textos escritos sem
A verdade é triste, como você bem sabe. Ela desilude porque restringe.
objetivo semântico particular, com o propósito de serem preenchidos
[...] Ela é pobre, ela desmobilia e despoja. Mas quanclo uma verdade se
aproxima [...] mesmo ainda apenas pressentida, faz-se na alma dilatada de conteúdos originais pelo leitor. É o caso de Cente milte milliards des
para recebê-la um clesabrochar amoroso [...]8. poàmes de Queneau e, mais geralmente, das "obras abertas", tais quais
Eco as definelo.
Se a felicidade está na "aproximação" do acontecimento (e não no con-
tato com ele), é porque a expectativa permite a plena presença no mun- Também podemos nos perguntar se a identificação de um sentido
do. A perspectiva de um acontecimento temiclo, pela intensidade que intencional é simplesmente possível. o artista pode fazer mais, me-
ela confere aos instantes que o precedem, reforça a relação de intimi- nos ou algo completamente diferente daquilo que tinha na cabeça
dade que nos une ao todo. É exatamente isso o que Grange descobre supondo-se, é claro, que tenha plena consciência daquilo que tinha
-
em LIn balcon en forêt: a expectativa do efetivo desencadeamento das em mente11. se concordarmos com a icleia de que o autor nunca está
hostiliclades confere um valor particular a cada minuto que o separa inteiramente presente a si mesmo e de que não há necessariamente
da catástrofe. Essa celebração da expectativa pela expectativa se en- uma distância entre uma intenção e sua realízaçào efetiva, teremos cle
contra em La Presqítlee e na maioria dos escritos de Gracq. Haveria, reconhecer que o leitor se confronta menos com o sentido pretendido
então, uma visão de mundo própria do escritor que cada um de seus e mais com o sentido que o texto tem de fato. Deduzir dos sentidos
textos declinaria a sua própria maneira. diversos e variados veiculaclos pelo texto aquilo que o autor tinha exa-
Se o texto é apreendido como o resultado de uma intenção, conhe- tamente a intenção de significar já é adivinhação]2.
cer o contexto de escrita se torna indispensável para a compreensão. contudo, a dificuldade, ou até a impossibilidade, cle detectar o sentido
Como Searle demostrou, não existe obrigatoriamente coincidência en- intencional da obra não tem nada de dramático. "Que significa o tex-
tre o sentido linguístico de uma frase (sentence meaning) e o sentido da to?" e "qualé o projeto que está na origem do texto?" são duas pergun-
enunciação (r.úterance meaning). Entender uma frase e entender o que tas não apenas diferentes, mas independentes. se tal não fosse o caso/ a
o falante quis dizer ao enunciá-la não se recobrem necessariamente. É
leitura de textos anônimos ou de autores desconhecidos do leitor seria
isso, sem dúvida, o que explica a extraordinária resistência da crítica
contextual e histórica, eüe, apesar dos golpes brutais que the foram r" "'fratA-se (se se considera o Íenômeno cle moclo grosseiro) de obras inacabadas quc o
desferidos pelo formalismo e pelo estruturalismo, jamais desapareceu. ,rrrtor confia ao intérprete, urn pouco como os pedaços de um Meccano; dirí.rmos quc ck'
sr' tlt'sit.ttcrcssa cla sorte clt:las" (U. Eco, tOeuure olnerte. Paris: Seuil, 1965
[ec1. or.: l9(r21. p.
Mesmo assim, conduzir o sentido de um texto ao sentido pretendido r 7- rrJ).
rr Sctrl obrig.'ttor"iamcnte nos refcrir ao inconsciente,
pelo autor está longe de ser algo claro. basttr lembrar a bem conhecicia c6r'rst1-
l,rqiio tlt' I)roust: "Unr livro ó o procluto clc um «rutro eu, cliverso claquc.lt-. <1uc manifestarrlos
('r)r rr()ssos htibitos, na socicdacle, cl"n r-rossos r,ícios" (Collra Soinla-lJcuttc. Paris: ()allinrartl,
Cracq. Lln Banu tínéhreux, in: Cl:,rn,rts corttplàtcs, vol. I. Paris: Cirllirnartl, 1989 p.
" J. lcc1. or.: l(.t5.1, 130).
"(Jtrt'tt'ttlt.t ltavirlo irrtcn<,:iÍo tra olillr'rl el,r olrrrr, r'urta [;. Vt'r'nier', isso lã6 so c(»tt(,stn, 1l,ls
19a51, p. 209-210. ''
" Sinron clrcgir t\ scguintc conclusiirl: "llasla apt'ttas ('sp(!r'ilt/ t'lt'lirtrl.t P('ltsott. Sti t's1lt'r,tr" ll,lo (' Iil,ll(] () (lll(, ll(,rttt,utt'tl no lt'xlo tprt'itttpor't,t r.rr,i6 ri s«l[rr.t'isstr (llt('s(,(l(.v(,r'6trjt,lttr,tr;
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simplesmente impossível. Claro, toclo leitor tenta espontaneamente re- ctc.). Ora, parcco cvidcnte que tal hierarquização depende menos do
ccrnstituir n partir do texto que está lendo uma figura de enunciador; texto que do leitor, ou até mesmo de cada leitura de um mesmo leitor.
mas esse reflexo inerente a toda situação de comunicação (e que não
O sentido de um texto é sempre, portanto, o resultado da seleção
é obrigatoriamente coroada de sucesso), de maneira nenhuma, impli -
mais ou menos consciente operada por uma leitura. Não se reterá
ca que seja necessário se documentar sobre o projeto do autor. Não -
a mesma coisa de um volume de Em busca do tempo perdido, segundo o
devemos conÍundir "ler buscando descobrir uma intenção" (algo que leitor se concentre nas descrições ou nos diálogos, no quadro da mun-
todo mundo faz) e "ler depois de ter identificado um projeto". Apenas danidade ou na experiência sensorial do sujeito, no "grupo" ou no "in-
os eruditos e os leitores "profissionais" (professores/ historiadores da divíduo", na sátira social ou no romance de formação. Quanclo menos,
literatura, estudantes) leem dessa seguncla maneira. emrazã.o dos limites da memória, toda leitura é, por definição, parcial
Mas se o sentido de um texto não se conÍunde com o projeto do autor, e seletiva. Há quem fique desolaclo (se considerar frustrante que "o
de onde vem ele? sentido" inevitavelmente nos escapa), ou/ ao contrário, quem exulte (se
julgar que a dinâmica e, portanto, o prazer da interpretação se reno-
vam a cada leitura). Esse último ponto de vista é o de M. Charles:
O sentido percebido [...] o que me parece importante em uma reflexão sobre a ordem, a
coerência, a arquitetura do texto é saber retomar a ideia de enunciados
ttii0 são ttttcctssariatncnte possoeris (na rnerlida eln clue elas se referern a
sobrc cuja pcrtinônciar c p-rrcciso nos interrogar. Afirrnar que não existe
Lulrr-lllorlna coletiva), elas também não são sempre relativasra.
sctlticlo prirneiro (ou, o que dá r1o mesmo, que o sentido está fora de
Darí a cleduzir que o texto não tem sentido próprio e que os conteú- literários um pro-
erlcance) consiste, em efeito, em estender aos textos
c{os que acreditamos nele desvelar são puras construções do leitor é blema filosófico muito mais geral: o da possibilidade de um conheci-
um passo. As tentativas de legitimar a deriva interpretativa como uma rnento do real "em si". O texto, como todo outro componente da reali-
consequência inelutável de toda leitura fundam-se, em geral, nas refle- por meio da percepção que temos dele, ou seja,
clacle, só nos é acessível
xões cle Derrida. Err.De la grammatologiels, o promotor da "desconstru- por meio da leitura que fazemos dele. Mas, assim como a consciência
ção" sustenta que o texto escrito rompeu um duplo laço: com o autor que não consegue atingir uma "verdacle absoluta" não inviabiliza o
que o produziu; com o referente que ele designava no momento de sua conhecimento, saber que o sentido só existe para nós não inviabiliza
criação. Desse moclo, cortaclo de seu emissor e cla realidade de que fa-
forçosamente o trabalho de interpretação.
lava, o texto se torna um objeto de sentido indefinido, aberto a receber
um número ilimitado de interpretações. Acrescentemos que, se todo processo perceptivo é em parte uma inter-
pretação (como parecem confirmar as ciências cognitivas), tal interpre-
ún ponto de vista desses, mesmo não sendo sem funcramentosl., sus-
tação geralmente permanece "biunívoca": todo ser humano "interpre-
cita, contudo, várias observações.
tará" como "vermelho" um feixe luminoso de uma extensão de onda de
Para iniciar, como o nota malignamente schaeffer, a icleia de que o sen- 0,8 micrômetro. Mesmo que o conhecimento que temos do mundo seja
ticio de um texto não existe e de que existem apenas interpretações é relativo a nossos quadros perceptivos, ele não é tão subjetivo assim e
"autorrefutante"lT: se essa hipótese for exata, a frase que a enuncia não permanece válido pelo menos para a comuniclade que a espécie huma-
tem mais validacle do que qualquer outro enunciado escrito e nada, na representa (o que jánáo é pouco quanto a seu campo de validade).
consequentemente, autoriza a levá-la a sério.
Ver na obra uma pura construção do leitor é passar um pouco rapida-
se aceitarmos entrar no debate, a convicção cle que não existe sentido mente demais da constatação cle que é impossível evidenciar integral-
objetivo clecorre da aplicação à literatura de um construtivismo radical mente o conteúdo de um texto para a ideia de que não existe conteúdo
objetivo. De uma premissa justa (o entendimento é parcialmente uma
tt Cf . Quand lire c'es! fnire. latrtorité des conmutnnutés interprétatioes. Paris: Les prairies Orcli- reconstrução), tira-se uma conclusão pelo menos discutíveI: o sentido
rrarires, 2007 [ed. or.: 1980 I 1995].
[i do texto não existe. Ora, existe pelo menos no nível denotativo
J. Derrida, De la gramtrntologie. Paris: Mirutit, "L967.
r" Eu não teria nada mais
a acresce'ntar às posições de u. Eco, que, apesar cle bastante severo
- -
um conteúdo objetivo que sempre podemos reconstruir pelo menos
com al1;umas interpretações radicais da desconstrução, reconhece a profunda pertinêr-rcia
tlas reflexões de Derricia: "Quanclo ele diz que o conceito c'le comunicação não pode ser re- parcialmente (seja o que for que se leia no romernce de Flaubert, Mada-
cluzido à ideia de transmissão cle um sigrificado unitáriq que a noção cle significado literal
me Bouary segue sendo a história de uma provinciana casada com um
ír problemática, que o conceito corrente de texto corre o riscct de ser inadequáclo; quando
ele
enfi'rtiza, no marco de um texto, a ausência do emissor, clo destinatário e clo referente e quan- médico interiorano).
tlo explora todas as possibiliciades cle uma de suas interpretabiliclades não unívoca; qualclo
clc nos faz lembrar que todo signo pode ser citado e que, ao fazer isso, ele é capaz de romper A existência de um sentido literal objetivo, identificável por todo leitor,
trtlm qualquer contexto cladq gerando uma inÍinidade de novos contextos absolutamente
se impõe com evidência quando nos inclinamos sobre os atos de fala
ilimita-rdos
- nesses casos, e em muitos outros, Derrida cliz coisas clue semiólogo algum pocle
sc permitir negligenciar" (Les Linites de l'iúerprétation, op. cit., p.376-ZZZ). "indiretos". Searle designa como atos de fala indiretos os enunciados
tt Las C.elihntnires de l'nrt, op. cit., p. 296.
cuja verdadeira significação difere da significação literal, como por
POR OUE ESTUDÁR LITERATURA?
ntn O sentido em todos os seus estados 65
trTE
exemplo, a metáfora ou a ironia18. Quando Victor Hugo evoca uma publicado pela Fayard, que reproduz um quadro
cioná.rio dapsicanálise
"foice de ouro no campo das estrelas", é evidente que não está áesig- de Ingres representando Édipo). Poderíamos pensar que essa criança
nando um instrumento agrícola abandonado em uma pastagem, e sim e eu construímos duas representações diferentes a partir do mesmo
a lua (cuja forma evoca a da foice) brilhante em um céu noturnq no quadro e que daí se deve concluir que toda percepçáo já é uma inter-
qual as estrelas podem levar a pensar em flores. Se o enunciado é per- pretação. Isso seria um erro, na medida em que a interpretação "esse
cebido como metafórico, é porque, no contexto do poema o sentido quadro representa Édipo" não põe em risco a interpretação "esse qua-
literal não funciona. A significação literal deoe, entdo, ter sido estabelecida dro representa um homem nu", mas se apoia sobre ela. Todas as ou-
para que os usos não literais possam ser entendidos. tras interpretações do quadro (ele representa uma figura emblemática
da teoria psicanalítica, a humanidade universal, o caráter fundador
Examinemos outro exemplo. Em O Gatoppardo de Lampedusa, o sobri-
da mitologia grega etc.) pressupõem a percepção do sentido primeiro.
nho do príncipe Salin4 Tancredi, pronuncia uma frase célebre: "É preci-
Para voltar ao campo literário, um leitor que tivesse lido U/lsses sem
so que fudo mude para que nada mude"re. Se nos ativermos ao sentido
perceber (apesar do título) a menor remissão à Odisseia (foi isso o que
literal, a frase não significa nada: ela enuncia uma contradição lógica,
fiz na primeira vez em que li esse texto) teria, pelo menos em parte,
é absurda. Para entendê-la é preciso ligá-la a seu contexto de enuncia-
lido o mesmo livro que um eminente especialista em Joyce. Mesmo
ção. O que Tancredi quer dizer é que a aristocracia deve aceitar perder
que o especialista tenha percebido no curso mais coisas que o primei-
as aparências de poder para conservar a realidade do poder. É preciso
ro, os dois leitores terão tomado conhecimento dos fatos e gestos de
aceitar entrar no movimento para ser capaz de controlá-lo. Em outros
termos, a frase de Tancredi é a fórmula de um conservantismo inteli-
determinado número de personagens evoluindo no início do século
gente. Poderíamos tirar desse exemplo a ideia de que o sentido literal XX na cidade de Dublin.
não existe, porque a fórmula se mantém ininteligível se nos ativermos Quando interpretamos um texto, falamos sempre de algo que preexiste
ao sentido que as palavras têm no dicionário: ela pressupõe,)âde início, a nossa interpretação e que nos é dado através do sentido literal. Nesse
uma interpretação. Na realidade, é exatamente o contrário. Se essa frase sentido, é muito difícil discordar de Eco:
chama a atenção é porque se apresenta sob a forma de uma pista: ela
Existe um sentido literal dos itens lexicais, aquele que os dicionários
deve ser lida como :urn paradoxo. Ora, o paradoxo só é visível se tiver-
registram por primeirq aquele que o homem da rua citaria por primeiro se
mos consciência da não coincidência entre o sentido literal e o sentido alguém lhe perguntasse o sentido de determinada palavra. [...] Nenhuma
expresso o que supõe ter identificado previamente o sentido literal. teoria da recepção pode se furtar a essa restrição preliminar. Todo ato de
- liberdade do leitor vemdepois enão antes da aplicação dessa restrição2o.
Para além dos atos de fala indiretos, a percepção do sentido literal é
um momento obrigatório de todo processo interpretativo. Uma crian- No quadro de uma interpretação, a existência do objeto "texto" é tan-
ça de 5 anos me pergunta por que tenho um livro no qual se vê um to mais incontestável quanto o intérprete vai se focalizar em algumas
homem nu que apoia um pé em um rochedo (trata-se da capa do Di- propriedades (as que são pertinentes em relação a sua grade de aná-
lise) em detrimento de outra. Ora, excluir ou minorar alguns aspectos
t8 Cf. Searle, Sens et expression. Paris:
|. Minuit, 1982 [ect. or.:19791. supõe ter reconheciclo sua existência. A redivisão inerente ao gesto
1" A fórmula foi um pouco moclificacla na tradução rlc
J.-P Manl;anaro: "Se quL'rc'n'ros que
tudo fique corno está, é preciso quc. tudo ntudo", l,anrpeclusa, Lc Çuti1arl. Pnris; Stuil, 2002
ll I I 1i,,. t ,,,. I :,,,:t.,., .1., l';.,t..,.,..,..,,r..t:-... .,.. .,'r .- rô
POR QUE ÊSTLIDAR LITÊIATLIRA?
ntn O sentido cm todos os seus estados 67
F
crítico é, então contrariamente àquilo que às vezes lemos um mente traçadas". Vejamos que, nos dois textos, a atividade interpretati-
- -,
argumento em favor da realidade factual do texto. va se apoia no sentido primeiro da palavra: "Pequena corda estendida
compêndio de medicina. Quando leio que devo plantar uma árvore de um texto específico que li, daquilo que acreclito ter lido nele, ou de
em novembro para ela ter maiores chances de se enraizaÍ, tráo me per- uma lembrança daquilo que penso ter lido).
gunto se o sentido que extraio dessa frase é objetivo ou se é uma re-
Portanto, é porque a obra literária também é um objeto estético que a
construção pessoal de minha parte. o mesmo acontece quando leio
questão do sentido foi por tanto tempo considerada como secundária.
a receita de meu médico, que me prescreve compral esse ou aquele
Um texto não deixa de ser um fato linguístico, impossível de apreen-
remédio. Então, pol que não nos contentamos com essa atitude diante
der, independentemente do sentido que ele veicula. Na medida em
dos textos literários? A resposta a esta pergunta resulta da especifici-
que o sentido não se confunde nem com o sentido pretendido pelo
dade do objeto estético.
autor, nem com o sentido projetado pelo leitor, parece lógico que nos
Para início de conversa, lembremos: mesmo que toda obra de arte peça interessemos pela "intenção do texto".
para ser avaliada como objeto estético, nem toclo objeto estético é uma
obra de arte. O objeto estético é constituído pelo receptor, que pode esco-
Iher apreender esteticamente qualquer objeto do mundo. Nesse sentidq O sentido manifesto
o contemplativo é justamente o 'triador" do objeto estético: não é ele que
cria a cadeira, mas é ele que f.az dacadeira um objeto digno de ser contem- Vimos que é imperioso distinguir sentido intencional e sentido mani-
plado. Podemos dizer, então, que ele "inventa esteticamente" seu objeto. festo. O sentido intencional é uma das causas do sentido manifesto e
não pode substituí-lo. Observemos, de passagem, que se o conteúdo
Em segundo lugar, se como pensa Schaeffer o objetivo da con-
- - do objeto "texto" se reduzisse à expressão de uma intenÇão, o único
duta estética é a satisfação interna, a questão da identidade ou da
modelo crítico pertinente seria o biografismo.
realidade do objeto que a proporciona se torna, de fato, secundária:
"Se, nos comportamentos estéticos, buscamos relações cognitivas sa- Contudo, alguns críticos rejeitam a fórmula "intenção do texto" invo-
tisfatórias, não é de admirar que, desde que uma atividade cognitiva cando o fato de que o texto não poderia ter uma intenção: "Como o
esteja em conformidade com o princípio do prazer, ela venha a tem- texto é sem consciência", escreve A. Compagnon, "falar de 'intenção
perar um pouco as exigências do princípio de realidade, não obstante do texto' ou cle intentio operis, é reintroduzir sub-repticiamente a inten-
inscritas em sua própria natrÍeza"za. Essencial na relação estética é o ção do autor como barreira paÍa a interpretação, sob um termo menos
ptazer sentido, poUco importando se eSSe prazer encontra sua fon- suspeito ou provocador"2s. Schaeffer é, ao que. parece, da mesma opi-
te em um objeto que existe fora de mim ou que eu tenha, parcial ou nião. Para salvar a intenção do autor, não obstante a distância (que ele
completamente, reconstruído. O mesmo não acontece, evidentemen- próprio constata) entre o que o escritor quis fazer e o que ele realmente
te, quando minha atividade tem um fim prático: se me engano quanto fez, ele propõe uma sutil distinção entre "intenção prévia" (durante
à identiclade dos medicamentos que compro ou quanto ao sinal de a escrita) e "intenção em ato" (contemporânea da escrita). Portanto, a
trânsito pelo qual passo quando vou de carro, as consequências não obra seria sempre a manifestação da intenção do autor; simplesmente,
são as mesmas de quando me engano quanto à identiclade do objeto essa intenção evoluiria no decorrer do processo de criação: 'A confec-
que me proporcion a pÍazer estético (e é indiferente saber se se trata ção clc um cluac{ro, de um texto, de uma obra musical decorre de uma
POR QUE ESTLIDAR LITERATLU<A?
O sortido cnt todos os snts estndos 7"1,
_=.!o
intencionalidade processual inseparável do encontro do artista com o me28. E esses dois campos não se recortam necessariamente. Eco narra
meio trabalhado"26. Essa distinção me parece pouco convincente: se que um leitor de O nome da rosa interrogava-se sobre o que significa
a "intencionalidade processual" dá conta do sentido efetivamente ex- a dupla condenação da "pressa", num intervalo de uma página, por
presso para distingui-lo do sentido que o autor projetava exprimir, ela dois personagens diferentes (um a teme, outro louva sua ausência).
se reduz muito especificamente àquilo que designamos habitualmente Reconhecendo que não tinha enquanto autor real pensado na
- -
de "intenção do texto". Esta última fórmula significa, com efeito, que possibilidade dessa aproximação, ele conclui:
o sentido com o qual nos confrontamos durante a leitura necessaria- O texto está 7á, ele produz seus próprios resultados de leitura. Queira
mente não se conÍunde com o sentido que o autor buscava exprimir eu ou não, encontramo-nos cliante de uma questão, de uma provocação
(supondo que a intenção de significação esteja na base do projeto artís- ambígua; no que me diz respeito, fico muito embaraçado em interpretar
essa oposição, do mesmo moclo que entendo que um sentido (mais
tico). Portanto, "intenção do texto" e "intenção do autor" não são duas
talvez) tenha vindo se aninhar aqui2e.
formas de dizer a mesma coisa: a primeira fórmula remete à consta-
tação trivial de que uma obra exprime frequentemente algo diverso O interesse de um texto, então, não resulta daquilo que seu autor quis
daquilo que seu autor tinha inicialmente na cabeça. significar, mas daquilo que é objetiaamente signlficado.
Acrescentemos que, se considerarmos como abusivo falar de "inten- Resta saber como iclentificar esse sentido "objetivo". lJma das caracte-
ção clo texto", será preciso também banir do discurso crítico fórmulas rísticas essenciais do texto literário (especialmente das ficções) é, real-
amplamente usadas, como "o texto diz que" , ou "o texto chama nossa mente, o carâter indireto da significação: o sentido passa sempre pela
atenção para" , que parecem constituir como sujeito consciente um ar- mediação de uma história ou de uma representação. Lembremos as
tefato composto de sinais gráficos. Parece-me mais simples, seguindo afirmações de Barthes, ao comentar uma inclicação de Chateaubriand
um uso bem estabelecido, considerar todas essas fórmulas como sim- no prefácio à Vida de Rancé:
ples metonímias facilmente traduzíveis.
O abade Séguin tinha um gato amarelo. Talvez esse gato amarelo seja
A "intenção do texto" não se conÍunde, então, com a intenção do autor toda a literatura; porque se a notação remete indubitavelmente à ideia
real, mas com a intenção do 'Autor modelo", que é exatamente uma de que um gato amarelo é um gato desgraçado, perdido, portanto
encontrado e unido dessa maneira a outros pormenores da vida do
reconstrução do leitor a partir dos daclos textuais:
abqde, todos atestando sua bondade e sua pobreza, esse arnarelo é ainda
Nessas interações complexas entre meu conhecimento e o conhecimento muito simplesmente amarelo, ele leva não apenas ao sentido sublime,
que atribuo ao autor desconhecido, eu não especulo sobre as intenções intelectual em suma, ele permanece, obstinado, no nível das cores [...]30.
do autor, e sim sobre a intenção do texto, ou sobre a intenção clesse
Autor modelo que estou capacitado a reconhecer em termos de
'n Se bem entendi, "a intenção em ato" de Schaeffer se distingue claquilo que Eco chama de
estratégia textual27. "a intenção do tc.xto", na medida em que ela é, por definição, cor-rsciente de si mesma. Ela
não lomete, portanto, aos conteúdos inconscientes, rnas aos conteúclos que o autor escolhe
Mais uma vez, isso equivale a diferenciar o que o autor (real) queria cx1'rrimir no momcnto crn que está escrevendo e que podem, é claro, diferir daqueles quc
cle tirrl-ra a intcnção clc cxprimir crr ulna fase prévia ao ato c1e criação propriamente clikl.
conscientemente exprimir daquilo que o texto efetivamente exprime
Mas, t:orno votr cxplit-'ar un'r pouco irtliirntt, não e'stou convc.nciclo nern c1a possibiliclaclc de
()[r('r,lr (rssi divisão, n('nr do irrtcresst'r1ur: havcria e'rn fazLllo.
r'' Lj. li'o, l,ts Lirttiltt iL'l'itrltrltrrlttiou, ol,. ú1., p. 139,
" J.-M.Scl.racffer, LArt da l'igc nrodutrt', ryr. ci/., p. 3írj. rrr lt ll,rlllrr,s NrttiilLtttt' t,,!tti.; t,ilitutt',; l',rli,r'Slrril ltlT) n ll|'-l17
() vttlido tttt lorlor rts st'lts t's/tttltrs 7l
À primeira vista, o texto deve ser lido como uma fábula que transmite uma
"La Parure"12 ("O colar") é uma das novelas mais conhecidas de Maupas-
"moral".Inserida numa coletânea de contos, a narrativa oferece uma história
sant. varnos recordar rapidamente seu enredo. A bela Mathilde, casada, sem dote,
curta de valor exemplar. Os nomes das personagens/ remetendo aos animais e à
com Loisel, pequeno funcionário do Ministério da Instrução pública, sofre por
natureza ("Loisel" ['pássaro'], "Forestier" ['florestal']), recordam o universo da
não levar a vida de luxo para a qual se sente nascida. Quando o marido the anun-
fábula. A inverossimilhança (é possível acreditar que, durante dez anos, a Sra.
cia que foram convidados a uma recepção oferecida pelo ministro, Mathilde se
Forestier nunca tenha lançado um olhar sobre o colar?) mostra que estalnos
queixa de não ter vestimenta adequada. Loisel lhe oferece um vesrido, depois lhe
lidando menos com um "retalho da vida" do que com uma história esquemática
3r V. Descombes, da qual se pode tirar uma lição.
Proust paris: Minuit, 1982,p.75.
r2 cf. G. -philosophie du romsn.
de Maupassant, "La Parure" (1,884), Contes du jour et cle la nuit (1gg5). paris: Galli- O que está no centro da novela é a questão do ser e do parecer. Mas as
mard, 1984.
coisas se complicam tão logo nos perguntamos o que o texto nos diz dela. Sc
O sentido em todos os seus estados 75
POR QL/É ÊSTLIDAII LITÉRATUIA?
de fato parece haver uma condenação, a quem se dirige? Aos impostores que lLma denúncia p olítica?
manipulam as aparências? Aos vaidosos que lhes atribuem valor? Aos ingênuos
Se o texto tem ares de fábula, sua ancoragem realista não chama menos a
que as confundem com a realidacle?
atenção. Não somente as datas e lugares remetem ao mundo real como também
A primeira hipótese erigiria a sinceridade corro norma de cornportamento. todos os personagens são identificados por meio de se:u status social (profissio-
A história mostraria que, ao jogar cour as aparências, construílnos nosso próprio nal ou conjugal). Além disso, observe-se que a falta inicial, na origem da narra-
infortúnio. Essa leitura se apoia na causa objetiva do drama de Mathilde, que tiva, é uma falta de bens, isto é, uma carência econômica: é por não ter recursos
não é tanto a perda da joia quanto sua rccusa em dizer a verdade à Sra. Forestier. financeiros que Mathilde é levada a se casar com urn pequeno funcionário. O
Se a Sra. Loisel não tivesse tentado enganar sua amiga ao lhe apresentar um conflito central da novela opõe, portanto, um personagem (Mathilde) à força do
outro colâr, não teria evitado dez anos de sofrimento? determinismo social.
Na segunda hipótese, a conclusão a se tirar é que a natureza tem um valor No entanto, não é muito fácil definir o propósito político do texto. A ques-
próprio, que torna inútil e ridículo todo aparato. Natnralmente bela, mas querendo tão é saber se o narrador compreende ou condena o sentimento de injustiça
parecer rica, Mathilde é vítima de sua vaidade (mais do que de sua falta de sinceri- experimentado por Mathilde. Se o compreencle, Mathilde aparece corÍto uma
dade). Se a Sra. Loisel fez sucesso com urnajoia falsa, isso não quer dizer que a se- vítima da desigualdade social, e seu fracasso deve ser lido cotrlo uma crítica à
dução nada tem a ver com dinheiro? Esse cola4, que ela julgava indispensável, não sociedade francesa sob a Terceira República33. Se o condena, o ponto de vista do
só não lhe foi de nenhuma utilidade como, ademais, se revelou nocivo. Tudo bem texto é, antes, conservador. A menos, ainda, que nenhum dos personagens seja
pesaclo, o único papel do colar é desencadear a tragédia que vai esmagar o casal. poupado num jogo de massacre generalizaclo. Avaliemos a pertinência de cada
Observe-se que a perda da joia não põe fim à preocupação da heroína com o pare- uma dessas hipóteses.
cer: é precisarnente para salvar as aparências que a Sra. Loisel contrai uma dívida
À primeira vista, o texto parece legitimar as aspirações de Mathilde. Desde
e aceita trabalhar para saldá-la. O que a rnotiva, r-ra seguncla parte do texto, é sua
o início, a novela sublinha um paradoxo: a identidade depende, nos fatos, da posse
imagem junto à Sra. Forestier: Mathilde não quer passar por ladra. Paga então o rnaterial (o que se tem), quando deveria se ater às qualidades físicas e espirituais
preço rnais caro por ter querido viver de aparências. Por não ter se contentado com (o que se é). A desigualdade social é assim denunciada à luz do direito natural: en-
os dons da natureza, ela é punida quando lhe são retirados seus atributos natLrrais. quanto a natureza dotara Mathilde de todos os atributos para agradar e ser feliz, a
Na terceira hipótese, a moral poderia ser formulada assim: não sejam ingê- sociedade cuja única referência é o dinheiro a conciena a uma vida rnedíocre.
- -
nlros, "nem tudo o que reluz é ouro". A novela não condenaria nem os menti- A sequência do texto se ernpenha em confirmar que as diferença sociais não têm
rosos neffl os vaidosos, mas os que confundem a aparência com a realidade. Isso iundarnBnto substancial algum: tão logo Mathilde salva as aparências (entenda-
explicaria por qlle a Sra. Forestiel, ernbora vivendo na mentira (é dona de joias -se: "tão logo parece rica"), ela se torna imediatamente igual às outras mulheres
jovem tola, cuja simpliciclacle dadc dc alguém escapar à própria condição e à violência da lógica social.
ria (recordemos que a palavra oiselle designa uma
e inexperiôncia chega quase às raias da estupidez). F-ssa le.itura parece e'ndossada pela referência intertextual aos contos de
fnc]as c, crn particular, a Cintlercla. As analogias entre o conto de Perrault e a
É dificil deixar cle notar quc a partilha entre os ingênuos e os cínicos cor-
rcsprlrrcle a ulra divisão social: os assalariados, dc unr lado; a altn btrrl;trcsin, do
l, tiflllllll, l'1il ll\ll,í (/t trl llõ ( rllrIil,r
Ilovcla dc Matrpirssttttt são, clc foto, nurllcrosas. Os dois tL.xtos sc vincularl iro
tutl sistetla iutrinsccaurcl'ltc pclvcrs(). De fato, a novela parece estiglniltizar ao
dcstirro de utna bela jovern a qLlem as circunstâncias exteriores obrigarn a Llma
lleslno tclnpo a clominação cla classe abastada e a alienação clas classes modestas'
pobreza relativa e ao sofrimento. Mathilde, colno cinderela, se consola sonhan-
do com outra vida e corn u, príncipe encantado. o anúncio clo baile representa, O poder da classe abastada é, como se viu, fundado na aparência: a supe-
em arnbos os casos/ uma imensa esperança de transformação. As duas jovens são rioridade que ela arvora aparece como ilusória e, por conseguinte, ilegítirna.
confrontadas coln o mesmo problema: a ausência de traje adequado. Mas ,,fadas Conforme comprova metonimicamente a Sra. Forestier (cujas joias não passam
cle uma contrafação), a alta burguesia vive na ilusão que produz sobre
as clas-
boas" (o sr. Loisel e a sra. ForestieS, no caso de Matilde) finalmente atendem seu
ses modestas: a Sra. Forestier fascina Mathilde, não porque á rica, mas
polque
pedido. cada heroína se torna assim a "bela do baile", sobrepujando as outras
mulheres. Por fim, em ambos os casos, a festa termina com a percla de um objeto parece rica. A vida que Mathilde idealiza não passa, ao fim e ao cabo, de um en-
precioso, senão irreal (o sapato de cristal, para Cinderela; a joia, para Mathilde). godo. É o que a falsidade dos diamantes simboliza: ofuscada pelo brilho do colar,
Mathilde não se apercebe de que ele só recobre o vazio. Através dessa metáfora,
Se os pontos comuns com o texto de Perrault permitem ativar a referência o texto desmonta os mecanismos da ideologia, imagem do mundo artificial que
intertextual, é evidente que são as diferenças que fazem sentido: elas revelam o
se apresenta como natural.
peso esmagador do contexto social. Com La parure, estamos no quadro de
uma
novela realista; ora, a realidade parâ os pequenos funcionários vivendo sob A grande burguesia atua assim sobre a alienação das classes modestas. Ma-
a Terceira República
-
não é um conto de fadas. Diferentemente de cinderela, thilde não consegue imaginar por um só instante que o colar - propriedade da
-
Mathilde não recupera o objeto perdido: não tem nenhum príncipe com quem classe abastada seja falso. De certa maneira, ela vai sacrificar a própria vida
-
contar (só dispõe de um marido que falha lamentavelmente em sua busca). Em para confirmar essa ilusão: o colar tem que ser verdadeiro. O destino de Mathil-
La Parure, ninguém recolheu o colar para ir no encalço de quem o possuía. de depende, no fim das contas, do modo de vida e dos valores da Sra' Forestier'
Embora os dez anos de sofrimento possam evocar Branca de Netse ou A Belq
De modo geral, o texto denuncia uma sociedade que, qualquer que seja a
Adormecida (as heroínas têm de esperar por longos anos antes de serem des- em que
classe social considerada, prefere a aparência à substância. Num mundo
pertadas por seu príncipe), há contudo uma diferença considerável: as princesas,
os objetos se tornaram intercambiáveis, onde só contam os signos exteriores
de
diferentemente de Mathilde, conservaram sua beleza (o tempo não tem poder
riqueza,não há mais referência e tudo se torna possível, inclusive o pior. À me-
sobre elas)3a. Não há, portanto, " final feliz" em Maupassant: a injustiça do início
dida que a história se desenrola, vemos aparecer de fato um número crescente
não é reparada. verifica-se até uma inversão irônica: ao passo que, em Cindere- os Loisel não
de joias (verdadeiras ou falsas) que criam uma espécie de caos que
la, o baile põe fim à dureza da vida doméstica, em Maupassant ele é a origem de
conseguem ordenar. Essa uniformizaçã'o deságua numa perda de referências:
dez anos de miséria. La Parure termina onde o conto de perrault começa.
nem mesmo a Sra. Forestier que não se apercebe da substituição operada por
-
Mas as aspirações de Mathilde são realmente validadas pelo texto? se seu Mathilde consegue mais distinguir o verdadeiro do falso. A lógica capitalista
-
status de vítima é dificilmente contesrável, terá ela razão de querer se incluir (sacralizar um objeto especulando sobre seu valor de mercado) deságua numa
nessa classe superior da qual a narrativa dá uma imagem tão negativa? Ela não absurdidade trágica: um colar fajuto se torna uma força monstruosa e destrui-
é tão culpada quanto aqueles a quem busca imitar? Nessa hipótese, o texto dora que ninguém mais controla.
não
tomaria o partido de um campo contra o outro: ele denunciaria o conjunto de
Os Loisel, entretanto/ não são o que se chama de "proletários". Pertencem
à pequena burguesia dos funcionários, cuja situação social está
longe de ser dra-
3{ Em contrapartida, a sra.
Forestier (que, na segunda parte, nos leva a pensar menos na
"fada madrinha" e mais nas "irmãs malvadas") permanece bela e sedutora. mática. É por isso que podemos duvidar dos reais motivos do sofrimento inicial
Existem, por_ talvez
tanto, muitos indivícluos para quem a vida se assemelha a um conto cle fadas: os
das classes de Mathilde. Será que tudo não se passa dentro de sua cabeça? Lq Parttre
superiores.
faça sentido, igualmente, no plano psicológico'
*_F* EID
ryb
('t r4(,,litlo uil l(ttl0§ os sc,ís csr?tÍÍos 79
Umq anális e p sicoló gica? O percurso da heroína, apesar cle doloroso (se não por isso mesrno), pode
dc fato ser lido como a construção progressiva de urna identidade autêntica.
Para dar conra do comportâmento de Mathirde,
o texto oferece duas expli- Após uma curta fase de abatimento, a perda do colar acarreta uma metamorfose
cações: o determinismo social (a fatalidade de
um sisrema que tritura mecanica_ da Sra. Loisel em mulher ativa. Aceitando enfrentar o real, Mathilde pode enfim
menre a personagem) e o impurso psicológico (a vaidade).
se a segunda hipótese se construir. Seu itinerário se assemelha a um processo de purificação: somente
merece que nos detenhamos nela, é em razão da
disparidade sublinhada pelo depois de ter se livrado do acessório (ela perde primeiro o'colar e depois seus
narrador entre a intensidade do sofrimento da jovem e a- realidade
- de uma bens materiais) é que ela se põe a existir autenticamente. Tendo renunciado aos
condição social que é simplesmente modesta.
signos exteriores de riqueza, Mathilde que pagou sua clívida até o último
-
Atormentada por sonhos de grandeza e de poderio, centavo descobre em si uma riqueza interior.
Mathilde padece de um -
comportamento patológico que podemos equiparar
à rnegalomania. A analogia A novela, com isso, incide também sobre o valor dos signos: o que fazer
com Emma Bovary se irnpõe naturalmente. As duas jovens,
que conhecem a mes- deles? Como compreendê-los? Que importância atribuir-lhes? Desde logo, é
ma situação conjugal desencantada, não rêm a vida que tentador ler aí uma meditação oblíqua sobre a leitura.
desejavam e sonham em
evoluir num outro mundo. Após terem conhecido o sucesso
durante um baile na
alta sociedade (em Madame Boaary, trara-se do baile
no castelo de La vaubyes-
sard), elas üvem o mesmo retorno doloroso à realidade.
Também noraremos que Uma reflexão sobre a leitura?
existe, nos dois textos, um objeto simbólico catalisador
do sonho: o colar para Ma_
thilde e uma cigarreira de seda verde para Emma. Ao A história de Mathilde, é antes de tudo, a história de uma relação com os
mostrar que o refúgio no
imaginário conduz à autodestruiçãq os dois textos parecem signos. Seu infortúnio tem a ver com um erro de interpretação. Se ela não tivesse
ter um valor de alerta.
se enganado sobre a natureza do cola1, se tivesse sabido avaliá-lo em seu justo
As diferenças são igualmente significativas. Do romance
de Flaubert à no_ valot sua vida não teria seguido um rumo tão desastroso. Mas era possível ler
vela de Maupassant, o objeto cra busca se simplificou,
até mesmo empobreceu. corretamente o colar? Observemos que todas as personagens da novela são lucli-
o luxo só fascinava
Emma por seu potenciar romanesco: ela desejava antes briadas pelos signos: o Sr. Loisel, o rninistro, seus convidados, e até a Sra. Forestiet
de
tudo viver uma paixão intensa e autêntica, Em Lq parure, que não se apercebe da troca. E nós, leitores, não fomos também enganados? Nós
o desejo de riqueza
passou ao primeiro plano: a felicidade, para Mathilde, também não acreditamos, antes de chegar ao desfecho, que o colar era autêntico?
não é viver um amor
absoluro, é ser invejada pelos outros. A ingenuidade
se degradou em tolice. En- É legítimo, pois, ler a novela como um abismamento da leitura. O texto,
quanto Emma tinha como exemplo as heroínas
de romance, Mathilde toma por tal como o cola4 não tem antes de tudo o sentido que lhe damos? Aquilo que
modelos os membros da classe abastada. os dois textos,
portanto, não têm o cada leitor projeta sobre a narrativa não recobre, in fine, seu eventual sentido
mesmo alcance: enquanto Emma morre de seus ideais
românticos, Mathilde só objetivo? Não foi o que acabamos de mostra, ao passar em revista as diferentes
é destruída pela estupidez e pela vaidade. Por
isso, os desfechos têm tonalidades leituras possíveis (e às vezes contraditórias) da novela? Quem pode dize1, ao fim
diferentes: trágica em Flauberç sarcástica em Maupassant. e ao cabo, se Mathilde é vítima ou culpada, se o alvo da crítica é o cinismo ou a
Assim, é principalmente na primeira parte da narrativa ingenuidade, se o texto deve ser lido no plano político ou no plano psicológico?
que Mathirde se
aproxima de Emma. Na segunda metade da novera, O que La Parure sirnboliza talvez seja, antes de tudo, a impossibilidade de ler.
assistimos a uma mudança
de rumo completamente ausente do romance -$S- S-
de Flaubert: Mathilde já não é a "N$^
fflesma pessoa. com isso, temos o direito de fazer
uma outra leitura mais A relação que um texto literário mantém com a significação é, por conse-
positiva da busca da personagem. -
- guinte, particularmente complexa. O sentido de uma obra é, ao mesmo tempo,
t:, ,"^.i-,t.rr,,,
para melhor apreender sua dimensão semântica, pode ser interessante nos de-
bruçarmos sobre as condições da criação artística'
de j ' P aris:
1 E essa, comovlmos, a tese c{efendida por Kant (Critique de faculté
la
.uger
estética' a obra de arte é percebicia
Vrin,1993 [ecl' or.: 1790]): no marco daielação
como uma "finaliclade sem fim"'
2 A furção poética da ringuagem é, como sabemos, definida por Jakobson como "inten-
co.ta"'
sua própria
clir tncnsago,r't tãI, insistôncia posta na mensagem Por
çã. "n1.ru,it'
conr a .tiviclaclc. trrtística'r corrsistirrclo em
evidenciar 'tr laclo palpável dos sig.os"(Essnis
- ,'a
litrttuislirtttt,yt;túnrlt,,,l;;;;., p 2-ltt). or.r,
intrírr-
arnbipriclacle é un1a.proprieclacle
tr@ n,n Asignificaçãoartística 83
+
parece impossível seguir Schaeffer quando ele postula que o desaÍio dos nem sempre da "dissimulação lúdica partilhada', tal quadro pragrná-
éo
textos literários não se distingue clo desaÍio de todo texto escrito: tico tampouco deixa de existir e nos leva a perguntar Pelo prazer antes
Aquele que registra por escrito aquilo que quer dizer espera justamente de nos indagar sobre a intenção de significação. Os textos literários são
que, ao fazer isso, seu dito atingirá pessoas que, de outra forrna, não realmente atos verbais específicos, que não têm, Por exemplg a mesma
atingiria; não vemos por que ele faria toclo esse esforço se estivesse finalidade dos textos científicos. Quando um físico escreve: 'A energia
convicto de que por conta das inevitáveis recontextualizações igual à massa multiplicada pela velocidade dahu ao quadrado", sabe
de seu texto por -seus leitores
é
- sua significação intencional fosse
não transmissível. E podemos supor que o leitor, por sua vez, espera
exatamente o que está querendo dizer (quanto a Rimbaud ou Nerval,
justamente entender o que o autor diz: não vemos por que ele se daria, não estamos 1á muito certos) e deseja ser entendido o mais exatarnente
de outro modo, ao trabalho de lêJo3. possível (quanto a Rimbaud ou Nerval, não estamos lá muito certos).
Em outros termos, o contrato de leitura do texto científico não é igual ao
Contrariamente ao que se afirma acima/ o autor de um texto literário contrato de leitura do texto literário. É inexato dizer que consideramos a
não escreve para transmitir o mais precisamente possível um conteúdo obra literária como "a expressão de um querer-dizer coerente"s.
claramente circunscrito. Se Mallarmé ou Nerval quisessem ser entendi-
dos acima de tudo, teriam escrito algo diferente cle seus textos passavel- Outra característica funclamental do processo de criação é o que o ar-
mente herméticosa. Sirnetricamente, não é de todo certo que o leitor de tista nunca domina completamente aquilo que faz. Na medida em que
uma obra literária busque antes de tudo "entender o que o autor disse". a arte não obeclece a regras predeterminadas6, o autor não tem plena
Posso ler um poema surrealista ou uma página do FinnegansWake serrr consciência nem daquilo que procluziu, nem do modo como se inves-
buscar entender o que o autor (talvez) queira me dizer por exemplo, tiu nessa produção:
-
ao deixar-me levar pelo jogo ritmado e pelas sonoridades, até mesmo [...] o próprio criador de um produto derivado de seu próprio gênio
pela beleza das imagens. É isso o que podemos chamar de o "prazer não sabe como se encontram nele as ideias que se relacionam com tal
estético". Se "me dou ao trabalho" de ler Modnme Booary (é mesmo um produto, nem está em seu poder conceber à vontacle ou segunclo um
plano essas ideias, nem comunicá-las aos outros por meio de preceitos,
trabalho?), não é para, desde o início, identificar o que o autor teve a in-
que, pelos menos, thes possibilitariam realizar produtos semelhantesT.
tenção de me fazer entender ao escrever esse texto; como o diz
Schaeffer, por sinal porque essa atividade me proporcionapÍazeÍ em No horizonte da estética kantiana, essas afirmativas têm como propó-
-
seu próprio desenrolar-se. Ora, não apenas esse prazer não está obriga- sito aproxirnaÍ o belo artístico do belo natural (demonstrando que eles
toriamente vinculado ao que eu entenclo (ou acredito entender), como têm em cgmum serem "finalidades sem fim"); mas é imprescindível,
o que eu entendo (ou acredito entender) não corresponde obrigatoria- para a questão que nos ocupa, a ideia de que a criação artística não tem
mente àquilo que o autor tinha a intenção de significar. inteira consciência de seus próprios fins8.
O que Schaeffer, estrarhamente, parece negligenciar aqui é a existência
de um "contrato cle leitura" artística que talvez não seja tão cliferente do
' Ltts Célibntttircs dc l'art, op. cit., p.305.
" At'lrnitimos c.;ue a criação artística ocorre no interior de restrições genéricas, históricas e
contrato cle leitura ficcional. Se o quadro pragmático da relação artística ctrlturais. Mas cltrs sempre dcixam espaço suficiente parâ uma cxpressão pessoal. Os escri-
los oulipianos são um exemplo brilhante disso.
; Kirrrt, Critiquc da ln .fnculti dc jugt:t; oy, cit,, p.205.
t l.cs Ctllibntnircs l'nrt, op. cit., p.301,.
da " Sabtr.nos o rluanto ir iclcia foi cxpkrradrr ptlos Rornânticos. Repitarnos as afirntativits,
'I Na cledicattjria a Alcxanclrc Dumas, Nc'rval cscrcvo cluc os pot'm.ts dt' C-'/rirrrr;rr,s "pcrrle- rnuito ctilt'blt's, rlt, Novalis: "O ptx'ta orclt'r'rit, fttndc, r'scolhc, invontar -- scm qr-to clc tttc'st.tttr
riatl st'u cucanto âo scrL'lll cxplicados, sc a t'oisn ítlsst,possivr'|, tontttlarl-rnt'pt'lo rnt'nos t.rrlt,rrtla l)()r (lu(,ir11..rssirr t.rriio cl«,otttro nrotlo"(irputl J.-M. Schat'fÍcr, IlArl d,'l'ng,'trtodrntr,
Asigníficação artística 85
polt QLIE ESTLIDÁII I.ITEit1tTUi{Á7
_t-
qü
dupla (a ausência de finalidade como sinol é partir do princípio de que um autor exprime intencional-
A consequência clessa característica
mente cleterminado número de coisas por meio de seu texto. Considerá-
claramente estabelecida, o carátet em Parte não dominável da criação)
é que o objeto de arte dá testemurúro de uma liberdade na exPressão
lo como sintoma é iclentificar o que ele signiÍica - Para além de todo
clesígnio intencional enquanto artefato produziclo em determinada
que não encontramos em nenhum outro lugar: "Na realidade, explica -
Kant, deveríamos chamar de arte apenas a produção por liberdacle"e. época e sob certas conclições. Todo texto significa simultaneamente
Paradoxalmente, é exatamente porque o sentido não é sua PreocuPa- como sinal e como sintoma: um texto de publiciclade, por exemplo, dá
Des- testemunho de uma intenção precisa (valorizar um produto para pro-
ção primeira que a arte é tão interessante no plano do conteúdo.
tacada cle todo objetivo clefinido, a obra pode se permitir quase tudo. duzir vontade de consumi-lo) exprimindo Por suas características sua
inscrição em uma sociedade ou a subjetividade de seu criador. Mas o
Contrariamente ao que pocteríamos pensal, esse ponto de vista não é
texto literário, cuja primeira intenção não é transmitir uma mensagem
invalidado pelo fenômeno das "recategorizaçóes" literárias. À primei-
clara, significa essencialmente como sintoma. Como a forma é menos
ra vista, se alguns textos (um tratado de Cícero ou uma meditação de
dependente do controle consciente do que o conteúdo, a obra significa
Descartes), que originalmente não fazem parte do campo artístico, são
sempre mais, até mesmo outra coisa, do que aquilo que o autor tinha em
redefinidos como "literários" é porque eles dão testemunho de uma
mente. Hegei observa:
escrita- Mas o essencial talvez deva ser procurado noutro lugar: nas
consequências dessa supervaiorizaçã.o do significante. Ao trabalharem A significação [cle uma obra cle arte] é sempre algo de mais vasto do que
aquilo que se mostra na aparência imediatal0.
a forma, Cícero ou Descartes liberaram significações das quais não ti-
nham necessariamente consciência. Ora, esse "outro sentido", que não Retomando a fórmula de G. Poulet, o Pensamento manifesto pelo
está inscrito na relação cteterminada de seus textos com a verdade, sem texto é constitutivamente "indeterminado"ll. Se é difícil saber o que
dúvida, está para muitos no interesse que thes atribuímos ainda hoje. Fedra exprime como sinal (o que Racine queria exatamente dizer ao
Por conta dessas condições que presidiram sua elaboração, o objeto escrevê-lo), podemos mostrar (e isso foi feito) que a Peça, enquanto
de arte apresenta características específicas no plano da significação. É sintoma, exprime uma visão de mundo jansenista, o complexo de
tempo de examiná-las. Jocasta ou, aincla, o mal-estar da nobreza de
manto sob o reinado
c1e Luís XIV. Como foi demonstrado por S. Suleiman, até mesmo
os
Qla s[nifica mais do que aquilo que se pensa que ela signiÍica) talvez seja o que constitui
As modalidades da criação artística explicam três das principais ca- o varlo"r da arte g".ul. LembreÀos que, aos olhos de Hegel, a história cla arte se divide
racterísticas do sentido literário: ele é diverso; ele não é inteiramente "*
.m três períoclos, sÀgrrndo as relações específicas que mantêm entre si a Ideia (o conteúclo)
(a forma): a arte simbólica (na qual a forma excede o conteúdo), a arte clássica
conceitualizado; ele ilumina dimensões do humano. ,.,
" "*pressão e conteúdo se equilibram) e a arte romântica (na qual o conteúdo excede a
(rr.r qual forrna
Na medida em que o autor não controla inteiramente o que faz, a obra t.,.r*;. Depois clesse último estágio, a arte, tornada inútil pela religião, estaria clestinada a
m()rrcr L)arar abrir espaço à filosofia.
é mais interessante como sintomn clo que como sirlnl. Considerar o texto rr "lAlt;.is tlas rlctcmrinaçõcs ntuito aparentes que ocupam a pritleira posição etn toclirs
.,,, its obtls, há sclnPrc tirnr[ri'r:1, mtrs dc I.lraneirar bem maris clisCrcttr' a
",r'r,.1,,rn.,ttlrlas ('ll1 tlllln
t(,rrrr ('riti,trtr ,!t lt hrtrllr it irtçrr rrrr. r'ií.. n. l()lJ. () rrr,ttttlt'itrtist,r st'(,tr,l( t('rilil, ,tos ollttts t,xlrtr,rs;i,, tlt' rrnrrr r.r',rlitlatlt't'ornplt.t,rrncrttt' clifcrc'trttt, ttcccssarialttct.ttc situirtlal
r:sl L/DÁR Lrn.RAl Lt RA? A sigificação nrtísticn 87
n' '.:,,..':l :::il:l:li::.: .:,==: :,.: :,:..:::: .:::::': #: zá-los' Se "O barco bêbado"
tem artisii-
critério que permite hierarqui ,,I1ik" Ik",,r,,é porque o poema de Rimbaucl
clueéexpressoPorumaobraliteráriarealmentenãoétãocliferenteda camente mais varor lrr" coisas que
exprime, sobre o l-tt"rruno' rnais coisas' mais importantes
.rtividacleclocierrtistaquetentair.rterpretarumfenômeno'Quandoum '"t da função
microscópico apre- por Jakobson como exemplar
físico se Pergunta por que os objetos clo universo r) s/o8írl político reconhecido
;g'u'-'a"'" ob"' literárias geralmente uos p-rermi-
serrtarnsimultanea*".."propriedadescleondasedepartículas,elese poética. A leitura au'
que um texto diz te aprender rtrr po"toíais
sobre nós mesmos' Escreve Kundera:
une ao procedirnento clo crítico que se pergunta Por
pensar que existem várias cle Cóline sem perceber que os
tal ou qual coisa de certo modo' Poderíamos Imaturos, julgarn os velhos hábitos um saber
devia existir uma única esses velhos hábitos' contôm
respostas Para a pergunta clo crítico'.enquanto romances de Céline' graças a poderia torná-los mais
poru u pergunta ào ãentista' Mas até mesmo
isso não é certo' Vejamos: existencial que, se eles o compreenclessem'
'puruup"r[rr-rtu "por que os corPos se atraem?" existem duas respostas adultos.l'orqueopoderclaculturaresiclenisÀo:eleresgataohorror
existcncial2r'
transutlstancianclo-à ern sabecloria
força universal leva os cor-
igualmente váiiclas: a lei da gravidacle (uma forma' mas
si) e a relativiclade geral (o que a diminuir a importância da
pos clotaclos cle massa a se atraírem entre llssa constatação não equivale
à curvatura clo espaço-tempo)'
nos aparece como uma atração se cleve lcva à redefinição c1e seu PaPel'
Portanto,éperfeitamentelegítimoaplicaraotextoliteráriomodeloscrí-
ticoscliversoseconstantementerenovados:elesatualizamumaclimen-
são da obra efetivamente presente' mas
ainda na ausência dos meios
A forma Pelo menos:
o pensamento inscrito
paraidentificâ-|a,nafaltadalinguagemapropriaclaparadescrevê-la.
o marxismo ou a linguística,
É ir.rútil lembrar aquilo que a psiãa'rálise,
ao estudo dos textos'
clesse ponto de vista, cleram de contribuição enquanto discurso' ele é uma
Ioclo texto possui uma clupla dimensão: realida-
e1e se dá a ler como uma
Noplanodoconteúdo/umaclerradeiraeimportantecaracterísticada l,rl.r sobre o *r,lao, po"t'u fot'"a'
vai muito além da função
obraliteráriaéexprimirclimensõesclohumano.Trata-seaquideuma ,lt' visual e sonora, cujo poder expressivo
consequênciadiretaclascondiçõesdacriaçãoartística:quandoseex-
primemsemrestriçõesnemfinaiidadeclaramenteestabelecida,deixa. t4t'cit''p'12)'Sc'.ostextosnãosepÍestamigualmentcatodas
lltrltoltrctiLttritl'ltutlt:rlcsÍt'rfes' cle saberes'
que po- obrigatoriarlente o mL'sn1o tipo
_se aflorar uma série de coisas de interesses muito
cliversos ,r', .rlxrrtlirgcus, é pclrque eles
neo
-de um fun- r,,rra ret.r,ar r*.] p.rgr"i"
"eic'lam
feita por l.-L. Í.,a,nelle (valeur ct. litterature
-
Le poirrt
ccntrc tle [lt'-
clem ser clecorrência de uma curtura, cle
uma subjetividade, s' "r,r ã"'l t'l.rntl'""' l{cirns:
,\r'rlrlc,1,' 1.1 1111'1rfit' t;i;;';;..'r'iit"ii't' ""
mas que têm em comum exprimir essa ou aquela l.r I ,'ctrrrt' Littt'r''trtt" 200rr' p'
I2E)'
do antropológico i', ;:li;''trr ess't
-, arazáo pela qual encontramos
,
, .ii,ra,llo,,is trnlris. paris: Garllimar11,-t993, p. 280. De certa uraneira',
climensão constitutiva clo sujeito. Essa é l\1. l(trntlera, r,,.
tf a'os oll-'o't áo filosàfo 'rlemão'
sc 'r
obr'r cie arte e1
úrt
referencial. Mas, enquanto na linguagem corrente o poder evocativo clro branco exemplifica literalmente a brancura; um monóstico exempli-
do significante geralmente é neutralizado (o importante é o conteúdo
fica literalmente a brevidade. Mas um objeto também pode exemplificar
da mensagem), no texto literário assim como em todo objeto de arte
- rnetaforicamente propriedades que ele não possui de maneira figurada'
a forma não pode ser isolacta do conteúdo: elafaz parte do sentido.
- Desse modo, se dirá que um "spleen" cle Baudelaire exemplifica metaÍori-
É isso o que nota Schaeffer: os universos de ficção, na contramão clas
camente amelancolia, na medida em que a melancolianão é uma proprie-
representações não ficcionais, não são dissociáveis da forma que os clacle efetiva do texto: o poema não "possui" materialmente a melancolia;
apresenta2z. Enquanto uma pasta de dentes tem uma realidade inde- c.le se contentacom Íemeter a ela de maneira imagética. Essa exemplifi-
pendente da publicidade que the infla as qualidades, o personagem de também chamada por Goodman de "expressãe"
cerção metafórica
Emma ou o barrete de Charles Bovary só existem pela maneira como o - -
rnantém um estreito vínculo com a exempliÍicação literal: Mndame Bounry
texto de Flaubert no-los mostra. Se é o conteúclo que constitui o valor
cxemplifica literalmente o irnperfeito iterativo e exprime o tédio cle uma
de uma ficção, é então conveniente especificar que esse conteúdo só
cxistência enredacla na repetição; Em busca exemplifica literalmente a fra-
é dado mediante uma forma particular, da qual ele não pode ser se-
se longa e exprime o clesejo de fixar a evanescência do instante.
parado (é por isso que é sempre interessante levar em conta a forma,
mesmo quando ela tenha perdido seu impacto estético). A exemplificação gue, segundo Goodrnan, é uma das características
-
fundamentais do texto literário (como de tocla obra de arte)2a passa
Essa ideia central é teorizadapor N. Goodman com recurso à noção de -
cssencialmente pela forma. Mais exatamente, uma obra exemplifica um
exenrylificnçõo23. Para o filósofo americano, o que caracteriza uma obra
rlos traços que ela possui quando faz desse traço uma aposta, exibindo-o:
de arte enquanto tal é o modoparticular com que ela significa. Goodmal
apreende a significação por meio da questão da referência. Quando um [...] em uma obra literária, o que geralmente conta, não é apenas
a história
signo remete (arbitrariamente) a um referente, ele fala de "denotação": narrada, mas a maneira com que ela é narrada. [...] A rima, o rihnq os
a palavra "maçã" denota um fruto que atencle a determinadas caracte- sentimentos e outros modelos exemplificados desemperúlam [nela] um
rísticas; a palavra "lápis", uma ferramenta que serve para escrever. Mas grande papel [...['.
João. Em nosso texto, o alaúdg instrumento do poet4 logicamente substitui o escudo. Esse sentido "manifesto" pode ser determinado por algumas informações
A imagem que ele apresenta por diüsa um
"sol negro" remete à gra,,rrra "Me- provenientes de fora do texto. Gérard de Nerval, convencido de que descendia
-
lancolia" de Albert Düre4, evocada num outro texto
- de um castelão do Périgord que trazia em seu brasão três torres de prata, se
de Nerval, Voyage en Orient.
via como "príncipe da Aquitânia". Se a torre foi "abolida" é porque o poder
O "belo tenebroso" (Beltenebros) éa alcunha que se dava o herói do Ama-
senhorial desapareceu com o Antigo Regime. O espaço evocado remete, por um
dis de Gaula. Observe-se que esse príncipe, com seus amores contrariados, mas
lado, às temporadas de Nerval na Itália e, por outro, à zona rural de Valois onde,
exemplar do ideal cavalheiresco, é o modelo que Dom Quixote escolhe para si.
criança, sonhava nas grutas e perto dos riachos. Acrescente-se que Nerval faz
O conjunto do segundo quarteto recorda uma novela de Nerval, "Octa- figura de "vi()vo" desde 1842, ano da morte de Jenny Colon, atriz à qual dedicou
vie", que se encontra em Les Filles du t'eu.O narrador ali relata uma estada na uma longa paixão. "Estrela" e "fada" do palco, ela permanecerá sua Eurídice'
Itália onde, tentado pelo suicídio ("a noite do túmulo"), a ele renuncia graças Num plano mais geral, o sentimento de "despossessão" de um eu errando nas
a uma jovem inglesa ("tu que me consolaste"). Assombrado por ideias de " trevas" remete às crises de demência vividas pelo autor.
morte enquanto passeia pelo promontório que domina a baía de Nápoles ("o Nerval quis ex-
É possível reconstituir, portanto, ao menos em parte, o que
Posílipo"), ele lembra que marcou encontro com a jovem sob uma "treliça". pressar com esse poema: o sofrimento de um eu privado de seu objeto de amor
Mais adiante encontramos uma referência a ourra novela das Eilles du t'eu, que, pelo refúgio no imaginário, busca conjurar a fatalidade da perda.
"Sylvie": o narrador evoca, então, uma tarde campestre em que/ adolescente,
Mas o auto1, como se viu, não controla tudo o que investe em seu texto; a
recebeu na testa um beijo de Adrienne , " rainha" da festa e " santa" virtual (ela
significação do poema não poderia limitar-se a esse sentido explícito.
morrerá religiosa).
o
questionamento sobre si acrescenra um sofrimento psicológico à dor (Amoç Febo, orfeu). Como a atualidade é desprovida de figuras heroicas, os
afetiva causada pelo desaparecimento do ser querido. De acordo com o processo suporres de identificação só podem ser buscados no folclore ou na lenda.
de sublimação, o sujeito transfere a energia libldinal do domínio sexual para o Os conteúdos veiculados por esse texto são/ portanto/ muito diversos'
domínio artístico: se o alaúde (instrumento artístico) é "constelado,', é para con- Mas qualquer que seja o domínio considerado, o sentido passa essencialmen-
jurar a morte da "estrela". Mas a mulher idealizada (a "rainha,, ou a,,santa,,) se tc pela forma.
revela uma compensação insuficiente para a perda. Ela sofre a concorrência da
figura carnal da sereia, próxima da água e da terra, que remete a um amor muito
mais concreto. Note-se que os elementos do mundo natural (,,Ílor,,,,,treliça,,, O pensamento da forma
" Íosa") conservam, até o final do poema, um forte poder de sedução. Não é tão
fácil renunciar ao mundo sensível. dificll não se surpreender com os fenômenos de retomada e de repetição.
É
Eles exprimem o lado opressor de um sofrimento lancinante.
Desde o primeiro
Se o poema dá restemunho de um imaginário individual, também exprime
u"rro ç;'lr", "ténébreux", "veuf"), o cansaço se exprime por variações sobre os
o rexto data de 1s53. É o início do segundo
o ponto de vista de toda uma geração.
fonemas mais neutros da língua francesa, [e] e [e]. o verso 5 faz eco ao
verso
Império. Nesse período marcado pelo autoritarismo e pelo absolutismo, o único ,,Nuit du TomBeau" evoca "TéNéBreux". A escuridão interior deságua numa
1:
espaço de liberdade é o da subjetividade, cujas duas formas essenciais são o amor
morte mental. os prefixos privativos ("DESdichado", "INconsolé", "DÉsolê")
("coração","beíjo")eapoesia ("ala(tde","lira").Asupervalorizaçãodoespaçosub- se difun-
dão testemunho da perda que afeta o sujeito. O "sol" de "solitude"
jetivo se explica pela impossibllidade de agir no espaço político: o arrista não rem
de no conjunto do quarteto: "inconSOLé" , "aboLie", "cOnSteLLé" '
outra solução não ser se refugiar em sua torre de marfim. A descida aos infernos
a ,,MélancOlie". A desestabilização do eu é sublinhada por uma pontuação
"'SOLeil"
an-
do último terceto, enquanto transgressão, recusa das fronteiras e dos limites, pode
siosa e caótica: travessões, reticências ou interrogação'
ser lida como uma afirmação da liberdade individual contra os interditos sociais.
de eco também têm por consequência reforçar o fecho do so-
os efeitos
De forma mais geral, o texto exprime o sentimento coletivo de pertencer neto. Note.se que/ contrariamente ao uso/ oS dois últimos versos do
segundo
a uma geração perdida. Depois da Revolução e do Império, o sentimento que dos quartetos. O universo do poema, fechado
terceto retomam a rima em [e]
o do
domina é o de declínio. texto se caraceriza, de fato, pela negação dos valores em si mesmo, se apresenta como uma totalidade autônoma, independente
da exis-
de eminência (a torre é " abolida" , o Posílipo se perdeu). O esplendor do período real, como se o imaginário fosse o único capaz de proteger das feridas
igualmente pela
precedente evanesceu (o sol é "negro", a estrela está ',morta,,). A passagem do tência. Essa construção de um universo pessoal se manifesta
noir,
real ao mito, do universo social ao universo natural, se explica pela impossibili- reapropriação subjetiva da linguagem. O recurso aos itálicos (étoile, soleil
ntélancolie, com a arte
fleur) podemos ficar emocionaclos com textos que nada tenham a ver
sugere a presença de um scntido oculto por trás
clo se'ti4o
aparente. Através dessa personalização do léxico
(uma obra científica ou um aviso fúnebre, por exemplo), até por
social, a linguagem do eu se
aconteci-
afirma contra a língua coletiva.
mentos (milhares de pessoas choraram no dia da vitória de obama).
o texto é igualmente estruturado por uma série de oposições que atestam Goodman afirma que
clivagem identitária do sujeito. o poema opõe,
a
Quando a emoção intervém na relação artística,
de futq dru, figuras femininas (a
ela tem inicialmente um interesse cognitivo: "Na experiência
estética,
santa e a fada), duas postulações religiosas (o cristianismo
e o paganismo) e duas obra possui e
ordens (a natural e a culturar). o eu oscila iguarmente a emoção é um.meio de discernir que propriedades uma
entre; afastamento e a nos permite
proximidade, o presente e o passado, as forças de exprime"31. Em outros termos, a emoção é um índice que
üda e as forças de morte. o outro
é ao mesmo tempo inalcançáver (terceira pessoa)
e interperado (segunda pessoa).
entender como a obra significa.
forêt: "Depois que seu trem deixou para trás os subúrbios e os vapores nalounão?Sóalguémmuitoastutopoderiaresponderaisso.oimpor-
de charleville, parecia ao aspirante Grange que a feiura do mundo se tanteéqueotextofalaefetivamentededeterminadonúmerodecoisas:
dissipava"a3. No plano da seleçãq por que falar de 'b aspirante Gran- queessascoisasresultemdeumaexpressãoconsciente,semiconsciente
ge" em vez, pot exemplq do "tenente Grange", ou mais simplesmente outotalmenteinvoluntárianãotemincidênciasobreointeresseque
"GtaÍrge", ou ainda, de modo anônimq de "um oficial"? Seria por causa elaspodemsuscitarnoleitor.Confudo,nãoestamosimpedidosdeper-
Mas' nesse momento'
das conotações do termo 'hspirante" guê, além de sua significação guntar Por que um texto exprime o que exprime'
militar, remete à 'âspiração",
- á"i*amos a interpretafio e partimos para a explicação'
isto é, ao desejg à aberfura ao mundo? No
plano da combinação, não se poderiam estabelecer outras conexões além
dessa explicitamente formulada entre o espaço industrial e a feiura? Não
Explícar
a2 A pertinência das análises em questão está claramente em função do número de indícios esse conteúdo
que permitam estabelecer a relação.
"Qual é o conteúdo do texto?" e "por que ele apresenta
A visão deses-
8 f. Cracq, Un halcon en
forêt, op. cit., p. 9. aqui?" são, realmente, duas perguntas muito distintas'
A significa@o artística
POR pUE ESTUDÁR ttrttarUnA?
o fato de uma obra veicular mais ou menos saberes (mais ou menos inte-
Disso Schaeffer conclui que o juízo estético é apenas a verbalização de
ressantes) nada tem aver com o fato de ela seÍ considerada esteticamente
um sentimento de prazer (ou de desprazer) inevitavelmente pessoal3.
bem-sucedida ou não. É claro que podemos considerar que uma obra
Quando se diz que uma obra é bela, o que se está dizendo é que ela "cul-
que suscita o interesse sem suscitar o Pra7jet rtáo faz mais parte da
simplesmente nos agrada. Podemos, é 6bvío, nos interessar por uma
tura artístic avld'6;mas também Podemos defender a Posição contrária:
obra de arte em razáo de suas propriedades objetivas (sua temática,
apenas uma obra que continua a interessar quando sua sedução não
atua
sua identidade genéricA suas apostas explícitas ou implícitas etc.); mas
mais (em outras palavras, que sobrevive ao "espírito do tempo") constifui
esse tipo de atenção não afeta o juízo estético que se fará dela. Um tex-
to pode nos interessar seÍflnos agradar. LogO há sentido em distinguir um valor seguro. simetricamente, as obras que hoje "agradam" ao maior
radicalmente relação estética de relação artísticaa. A partir de agora, número por razões conjunturais não resistirão necessariamente à prova
passarei a entender por "estético" aquilo que remete ao sentimento do dos sécuios se não tiverem nada (ou gÍande coisa) adizen
belo e por "artístico" aquilo que designa nossa relação com a obra de Como Schaeffer concede ao final d'os Célibataires de l'art, existem clara-
arte (que não apenas não se limita ao sentimento do belo, como talvez mente duas relações possíveis com a obra de arte: a atenção estética,
nem tenha necessidade dele). de um lado; a relação de interesse, de outroT. Podemos considerar
(com
proust) que é só a primeira que vale. Por outro lado, também é verdade
O valor artístico, com efeito, nada tem de ilusório se o definimos como
"valor cognitivo resultante do trabalho formal"s. Trata-se de um dado que a segunda também tem legitimidade, especialmente porque pode
objetivo que não está vinculado à variabiliclade dos públicos: basta, desembocar em uma forma de prazeç que talvez não esteja tão afasta-
para medi-lo, identificar os saberes efetivamente inscritos na obra - o da do prazeÍ estético:
que corresponde ao trabalho incessante e multissecular cla crítica. É se a descrição que esbocei estiver correta, o prazer estético é inseparável
claro que um objeto só tem valor relativamente ao uso que se decida de uma atitude cognitiva (perceptiva e conceitual) e, portanto, também
fazer dele. Se, mesmo assim, os critérios de avaliação não são inteira- inseparável de uma atenção contínua àquilo que a obra de arte pode nos
mente contingentes, é porque alguns objetos são mais bem adequados ensinar desde que entendamos que os conhecimentos transmitidos
-
pelas obras são os mais diversos, a depender da obra' dos gêneros e
a certos usos que outros. Ora, as obras literárias, por sua própria gê-
àas artes. Por fim, esse conhecimento, que encontra sua fonte nas artes
nese (o projeto estético), ou por sua configuração (sobrevalorização do não é cliferente (nem superioÍ, nem inferior) daquele que alcançamos
significante) estão estruturalmente votadas a exprimir coisas originais, pelas outras vias cognitivas, quer se trate da experiência cotidiana, da
até mesmo inesperadas. reflexão filosófica ou dos saberes científicos: é justamente nisso que ela
nos importa e nisso que ela pode enriquecer nossa vic{a8'
t J.-M. SchaefÍer, Les Célibntaires de l'art, op. cit., p.202'203. "cada
a Mesmo que a maioria dos teóricos realmente as diferencie, geralmente eles continuam se a questão do interesse é primordial, não vemos bem por que
a pensá-las uma ligada à outra. É assim que, para Genette, "a função artística é apenas um cleva resolver essa questão por si mesmo"e' A resposta pode -
um caso particular de relação estética" (La Relation esthétique, op. cit., p. 9). Em outros ter-
até mesmo deae basear-se nas propriedades do objeto que, depois
mos, a primeira se superpõe à segunda: ao fazer intervirem "clados 'genéticos' (técnicos ou -
conceituais)", a apreciação artísticn acrescenta ao prazer estético um Prazer de couhecimcnto
(ilridc»t, p.221). Mas, se aclmitirmos que o juízo estético ("acho essa obra lincla") e' a aprccia-
J.-M. Sclrt'rcfíer, l-as Cólibntnirr:s dc l'nrt, op. cit., P' 230'
vc'r, por quo Íazt'l'o nt'tístico clcpcn-
ção artística ("acho essa obra interessantc") nacla tôm a lbidam,p.354,
r'L'r do cst('tico? .i . ... .:r .- aol-
Ooalor 717
não é
As obras atravessam o tempo ou porque nem sempre se conceitualizort. Como tantos filósofos repetiram descle Frege, o enunciado de ficção
o conjunto de saberes de que elas são portadoras, ou porque tocam nem verdadeiro nem falso (mas apenas, teria dito Aristóteles,
"possíver'),
ou é simultaneamente verdadeiro e falso: ele está além ou aquém do
algo de profundo que continua, senão a fascinar, pelo menos a interes-
sar. Os discursos que são atualmente objeto de zombaria sobre as obras verdadeiro e do falso, e o contrato paradoxal de irresponsabilidade
do
recíproca que ele mantém com seu receptor é um emblema perfeito
"ricas de verdade humana" talvez não sejam tão ridículos quanto pare-
famoso desinteressamento estéticole'
cem. Convém simplesmente esclarecer que a "verdade humana" veicu-
area-
lada pela obra não é forçosamente a glória do homem. Um texto pode As obras romanescas também se beneficiam, em sua relação com
perfeitamente tomar o contrapé de alguns discursos apaziguadores lidade, de uma flexibilidade extraordinária que lhes permite explorar
disso-
sobre o humanismolT, ou até mesmo mostrar que a própria ideia de todas as virtualidades da existência. Elas podem, Por exemplo,
poé-
sujeito humano não faz sentidols. ciar o que geralmente está mesclado (razáoprosaica e imaginação
ou mesclar
Notemos que essa abordagem da obra literária corresponde perfeita- tica estão noDom Quixoteencarnadas em dois personagens)
mente à prátic4 tanto dos críticos, dos acadêmicos como, mais global- aquilo que é normalmente separado (reunindo em uma mesma cena
um motoqueiro da atualidade e um cavaleiro do século xvl[, o
narra-
mente, das instituições. Quando se trata de avaliar uma obra do pas-
de fe-
sado, não nos perguntamos se a sua forma ainda pode nos tocar (uma dor de Alentidãomedita respectivamente sobre suas concepções
Iicidade e de dignidade)2o. Ao nos envolver em um mundo que não
éa
forma datada não basta felizmente para desacreditar uma obra
- -
literária). As perguntas que faremos serão do tipo: o que o texto expri- realidade, mas que se assemelh a a elaÊl, as ficções nos levam,
portanto,
a reavaliar o mundo onde vivemos. Essa acusação do
real pelo virfual
me escapa aos clichês de sua época? A originalidade da obra é ainda
de
hoje perceptível? O que é que faz com que a obra continue a nos falar? às vezes é tematizada no seio da obra, como em Cristóaão Nonato,
Carlos Fuentesz, que nos conÍronta com um México de ficção que
é
Ainda falta examinar como o texto se articula para fazer emergir esse
difícil de não relacionar com o México real'
saber (inédito ou essencial) que está na base de seu valor.
Mas as ficções não estão liberadas apenas das regras da verossimilhan-
das restrições de ordem ética. o im-
ça. Elas também estão liberadas
O inédito portante em uma obra de arte não é sua conÍormidade com os valores
Uma obra
estabelecidos (o que restaria se fôssemos seguir esse critério?)'
O texto literário pode manifestar conteúdos singulares porque não ar-
pode ser moralmente duvidosa/ sem nem por isso perder seu valor
tem de levar em conta nem exigências da realidade, nem exigências decorre dos saberes que
ústico (qru insistamos nisso mais uma vez
da moralidade. - - o bem ou
ela veicula). Não se trata de determinar se um texto representa
Isso é evidente no caso das ficções que constituem a maior porção
- 1e G. Genette, Ficüon et diction, op. cit., p.99.
do campo literário. Situando-se externamente à oposição verdadeiro/
20 Cf. M. Kundera, Á lentidão. São Paulo: Cia' das Letras' 2011'
falsq elas não estão presas nem a uma obrigação de verdade, nem a
Aqui podemos nos lembrar das afirmações de M. Kundera: "o romance
21 não examina a
respeitar a verossimilhança. Nota Genette: realidacle,esimaexistência.Eaexistêncianãoéoquesepassou,aexistênciaéocampodas
de que ele é capaz..
possibiliclades humanas, tudo o que homem pode. vir a ser, tudo aquilo
o *upu da existência descobrindo essa ou aquela possibilidacle
os romancistas desenharn
17
Basta pensar nos relatos cle Juan Gotysolo ou cle Thomas Bernhard. humana" lfArt du ramant (,p. cit', p' 57)'
O oalor 723
POR QUE ESTUDAR LITERAruRA?
o mal, mas daquilo que ele expime sobre o bem ou sobre o mal. Logo não decepcionada2s)outemática(considerartodaformadevidacolnoum
"o laboratório
crime2e). A arte, como observa J. Morizot, iustamente
é
é o caso de seguir Danto, quando ele aÍirma que existem sujeitos de cuja
simbólica"30. Poderíamos
arte não devemos nos apoderar: segundo o autor de La Transfiguration mais inventivo e mais instrutivo da atividade
ainda resta por desco-
dubanal, é imoral representar artisticamente, ou seja, "pôr em perspecti- pensar que, com o temPo, o campo daquilo que
Mas
va", coisas sobre as quais deveríamos na verdade agrr". Isso é esquecer trir (portanto, o interesse das obras) inevitavelmente se restringe.
tazáo de que o homem
a existência do contrato de leitura ficcional, que funciona para a quase evidentemente esse não é o caso pela simples
sendo a dor' a
totalidade do campo artístico. Como o explica Schaeffer, a leitura de fic- evolui com seu ambiente' Em outros termos' mesmo
sexualidade,apaternidadeconstantesantropológicas'arelaçãocoma
ções se situa no quadro pragmático do "fingimento lúdico partilhado"2a: diversos em cada
dor, a sexualidade e a paternidade é posta em termos
quando lemos um romance, sabemos que o autor não nos pede para um exemplo' pensemos na
época (e em cada cultura)' Para dar aPenas
levar a sério o que ele diz25. Desse modo, uma ficção pode pôr em cerut da mesma maneira na
questão d,aÍarn-*rlia,que não pode ser abordada
comportamentos resultantes de artifício e (por vezes) do ridículo ine-
sociedade colonial e na era industrial'
rente à sentimentalidade (Kundera, Vargas Llosa), ao convencionalismo
Da mesma maneira, aquilo que era inédito em
uma época não se
(Goytisolo), ao humanismo (Beckett), sem que seja preciso com isso que
os percursos encenados sejam exemplos a imitar no mundo real. Se os mantémobrigatoriamenteinéditonasequência.Porque,então,nos
como vimos' duas
valores vindos no bojo de uma obra têm interesse, é como informação (so- interessar pelo que era arte no passado? Existem'
ter atualizado
bre um sujeito, um época, um modo de se relacionar com o mundo etc.), respostas para esta pergunta' Por um lado' podemos
isso ter esgotado
não como modelo ou contramodelo proposto ao leitor. Lamentamos ter um dos saberes veiculaàos pela obra sem nem por
de enÍatizar algo tão evidente; mas os últimos desenvolvimentos da crí- oconjuntodeseupotenciaicognitivo.Poroutrolado,ointeressedo
que não sua no-
tica anglo-saxônica, infelizmente, nos obrigam a isso26. conteúdo manifesto pode provir de outro motivo
com efeito, para
vidade: sua essencialidade, Algumas obras apontam,
Se as obras literárias frequentemente desembocam em um saber ori- dimensõesfundamentaisdoserhumano'àsquais'pordefinição'so-
ginal, isso se dá na medida em que a liberdade de expressão que as mos semPre sensíveis'
funda se concretiza em configurações inéditas. A originalidade pode
dizer respeito ao plano acontecimental (a metamorfose de um indivi
duo em seio27), emocional (o prazer provocado por uma expectativa O essencial
refi-
não é se imaginar como uma
conjuntos temáticos mais ou
identificar-se com Anna Karênina como uma
Por todos os lugares e semPre' encontramos XIX' mas "ver a própria vida
principais preocupações' sociais nada dama russa do século
menos completos, englobando nossas o
a morte' o sucesso e o fracasso' armadiihasexualeverasicomoumavítimadodeveredapaixão"33'
ou existenciais. O nascimento' o amor/ que
guerras' a produção e a clistribuição
e as pela "intensi{icação"' no sentido
poder e sua perd'a, as revoluções Em geral, a tipicidade é reforçada
o sagrado e o profano os temas
de bens, o estatuto social e a moralidade, as ficções tendem naturalmente
as fantasias compensatórias C. Elgin dá a esse termo' Efetivamente'
cômicos da inadaptação e do isolamento'
etc. atravessa"' tàa u hi'tO'iu da
ficção' desde os mitos mais antigos' aempurrarascoisaspaÍaoextremo:elasatraemnossaatençãosobreal- O
mudanças de gosto e de interesses ac"nto"'ào-os' Ao intensificar a evolução da perseguiçáo'
até a literatura contemporânea. As guns traços
inventário31'
modificam apenas ma'ginalmente esse processolevaarefletirsobreaviolência(dissimulada,masbemreal)das
humanos têm real- sociedadesmodernas.MqnonLescaut,aointensificarapaixãoamoÍosa/
para além das variáveis históricas e subjetivas, os seres
Toda vez que uma obra aborda leva-nosanosinterrogarsobreseusmecanismose/alémdisso'sobreo
mente certo número de coisas em comum' ser humano' Em outro registro
os roman-
funcionamento psicolãgico do
umadasgrandesquestõesComaSquaissomosconfrontados,adquireum
cesdeSadeintensificamarelaçãodeassuieitamento'percebidacomo e o fecha-
alcancegeralqueexplicaapersistênciadointeressequesedispensaaela.
do prazet e os relatos de Beckett' o isolamento
componente ter como
do sujeito' A intensificação pode
NãohádúvidadequeéissoqueB.Larssonquerdizerquandoexpli.
que ele mento, metáforas da soiid'ão vemos quan-
propriedade particular dialógica de uma obra' É o que
ca que os textos literários têm essa - efeito o reforço da dimensão
* por meio de um referente único' exasPera cada uma das
nomeia de tipicidadéz dedesignar'
do, em dado problema'7 o texto intensifica
- - de
Notemos que a tipicidade está na não apenas revela a complexidade
todos os referentes assemelhados' posições em iogo' Esse dispositivo
como é definida por Goodman: a a parte de imaginário e de
irracional que ela
base da exemplificação artística tal uma questão, mas também
amostra de uma categoria mais ge-
obra pode falar conosco enquanto veicula.PensemosnoslrmãosKarwnázoa,livronoqualdiferentesposições
O simples fato de podermos que a leva ao
ral que ela encarna como objeto particular' encaÍnadas por um Persoragem
sobre Deus são, cada uma escrita roma-
é' de identificar o geral por trás açáo é,por vezes, a própria
interpretar uma exempiificação (isto extremo. o objeto da intensiÍic
doparticular)pressupõeocaráteremblemáticodealgumasfigurasou nesca.Exibirexpiicitamenteoscódigo'dufitçaocomoofazemDiderot
permite considerar Madame Boaary de inaerno'
situações. É a-tipicidade que me em Se um tsialante numa noite
em lacques o fatalista,ou Calvino os autores não
metafísico e Os miseráaeis como efeito de autentcidade' porque
como a expressão de um mal-estar cria, paradoxalmente, um contar uma
daquilo que estão fazendo:
representativodosdesgasteshumanosresultantesdainjustiçasocial. buscam enganar o leitor acerca
exemplares de características
As obras mais marcantes seriam, entãq história'Digamosqueumescritornãotemobrigatoriamenteconsciência
apenas de traços sociais e psi- em seu texto' O importante
é que algumas
fundamentais de nossa condição (e não do que é que eie "intensificd'
cológicosrelativosaumcontextoculturalparticular).ComoDantoob- sejam efetivamente acentuadas'
uma metáfora dimensões ou propriedades
são aqueles que nos apresentam
serva, os grandes textos uma qu:::ão essencial' mesmo
nos reconhecer em alguns com- Um mesmo texto pode ' é claro'apontar
de nossa própria vida, permitindo-nos
gerais e transculturaisda representação' Dessa forma' sendo,emsuaép'o'u'portadordeumsaberinédito'ÉocasodeEspe-
ponentes
- - rando Godof, de Beckett'
Í ,: o^-;.,. c,-,il lQRR n '18ír lt'cl. tlr.: I9t](rl.
o quc teria
DCrNrgnr,úpro E3B VLADIMIR. Quando penso nisso.'. desde o telnPo"' eu me pergunto"'
-
lhe acontecido... sem mim... (Decidido.)Você não passaria de um montinho de ossos
ESTRAGoN (desistindo nooamente)._ Nada a Íazer. Estou me descalçando. Isso nunca te aconteceu?
ESTRAGoN. -
(aproximando-se com pequerxos passos vLADrMrR. - faz tempo que lhe digo que é preciso tirar os saPatos todos os dias. Você
'LADTMTR rígidos, as perntls abertas)._ Começo
a acreditar nisso. (rmobiriza-se.) por faria bem em me escutar.
muito tempo resisti a esse pensamento, dizendo
a
mim mesmo, Vladimir seja razoável. você (debilmente).- Me ajude!
ainda não tentou tudo. E retomava o combate. ESTRAGoN
(Recolhe-se, sonhando com o combate,
A Estragon.). Então, aqui está você de novo. vLADTMIR. - Você está mal?
EsrRÂcoN. - Você acha ?
ESTRAGoN. - Mall Ele me Pergunta se estou mal!
- Estou contente de te rever. Achava que você tinha
'LADTMTR' ido embora para sempre. VLADTMTR (com arroubo).você não é o único que sofre! Eu não conto. Mas bem que
-
EsrRAcoN. - Eu também. eu queria vê-lo no meu lugar. Queria ver o que ia dizer'
,LADTMTR' -o que faremos para festejar esse reencontr
o? (Reflete) Levante para que ESTRAcoN. - Você esteve mal?
eu o abrace. (Estende a mão a Estragon.)
vLADIMIR. - Mall Ele me pergunta se estive mal!
ESTRAGoN (com írritação). _ Já_já.
lá_já.
ESTRAGoN (apontando o indicador).- Isso não é motivo para você não se abotoar.
Silêncio.
VLADTMTR (agachando-se). - É mesmo. (Abotoa-se). Nada de desleixo com as pequenas
,LADTMTR (magoado, com
t'rieza).- pode-se saber onde o senhor passou a noite?
coisas.
rsrRACoN. - Numa fossa. rsrnecoN. - o que é que você quer que eu lhe diga? você semPre espera o último momento.
VLADTMTR (espantado)._ Uma fossa! Onde? VLADTMIR (sonhadoramente). - O último momento"' (Medita') É longo' mas vai ser
ESTRAcoN (sem gesto). _ por aí. bom. Quem dizia isso?
vrÁDrMrR. Às vezes eu me digo que isso vem de qualquer jeito. Então eu me sinto
-
ESTRAGON.
- Bateram... pouco.
muito engraça do. (Tira o chapéu, olha dentro, passa a mão no interior, sacode, põe de
VLADTMIR. - Sempre os mesmos?
nooona cabeça.) Como dizer? Aliüado e ao mesmo temPo"' (procura)"' apavorado'
EsrRAGoN. - Os mesmos? Não sei. (Com ênfase.).4-PA-VO-RA -DO. (Tira de nooo o chapéu, olha dentro dele.). Mas que
coísal {Bate o chapéu como para fazer cair alguma coisa, olha de nooo dentro, põe
sob
Silêncio.
esf orço, consegue tirar
de noao na cabeça.) Enfim. .. (Estragon, aa custo de um extremo
POR QUE ESTUDÁR LITERATURA?
O aalor 129
o sapato.Olha dentro, passa a mão no interior, aira-o, sacode-o, ptocura no chão se não Nesse cenário esquálido, as falas dos personagens são inseguras e hesitan-
caiu alguma coisa, nõo acha nada, passa a mão de nopo dentro do sapato, com o olhar tes/ como Se o mundo encenado se caracteriza5se em todaS as SUas dimenSõeS
zrago.) Então?
pela inconsistência e pela dúvida. Assiste-se assim a uma dupla infração das
ESTRACON. - NAdA. regras da exposição: não só as informações dadas pelo texto são vagas e apro-
vl,ADrMrR. - Deixe ver. ximativas, como também oS personagens mesmos parecem saber muito pouco
ESrRAcoN. - Não tem nada Para ver. de sua própria situação. Lançados numa estrada que não escolheram, eles se
Nessas condições, o que esperar da existência? Duas ideias, que dão o tom
do trecho, emergem do gestual inicial de Estragon: a repetição ("tenta", "reco-
lneça", "mesmos gestos", "de novo") e o fracasso ("para", "Íepousa", "desis- Oinédito:alinguagemcomoremédioefatalidade
Otextonãosecontentacomlevantarquestõesexistenciaisfundamentais.Ele
r"
da linguagem/ um ponto de vista original'
Ver D. Gauer, "Systêmes: forme et informe chez Beckett", Biblioteca Angellier, Univer- Se a
siclade de Lille 3, artigo disponível em <htç://angellier.biblio.univ-1il1e3.frlressources/ar- expressa, sobre a questão particular
está longe de ser nova, a singu-
ticle_gauer_keckettlang.htrnl>. denúncia do caráter arbitrário e alienante da língua
litz POlt QIL." r§nlfr^R ,.IT,:R/^fllnÁ f
, ,, ,a, a ,na, a,aa* , na,ar a,aa,,aa,,a ,, ,a
-
#
la ridadc clc lleckett está lnostrâr que, não obstante suas deficiências, senão atra-
ENSINAR LITERATURA
c'n1
vós delas, as palavras permanecem, apesar de tudo, como o último bastião que nos
separa clo nada. Mesmo quando não podemos dizer nada, não podemos nos calar.
ção de vozes: cada personagem segue o fio de seu pensamento sem realmente se
preocupar com o que o outro diz. Em diversos momentos (acerca do suicídio, do
alívio), as falas devladimir se apresentam como um quase monólogo. Em Beckett,
o diálogo tem, antes de tudq função ontológica: ele gera o sentimento de existir.
pare-
Infelizmente, essa linguagem necessária ao sujeito (a consciência só existe preciso ensinar literatura? A pergunta pode
Diante
através do pensamento e o pensamento só existe através das palavras) é um instru- cer brutal. Mesmo assim, merece ser feita'
é legíti-
mento gasto, senão caduco. Essas palavras que não podemos descartar são, de fatq d.e currículos de ensino sobrecarregados'
nature-
as de todo mundo: é com a linguagem dos outros que cada um deve tentar existir mo reservar tempo ao estudo de textos de
por conta própria. As falas de vladimir e de Estragon transbordam de clichês e de za incerta e cuja função não está clara?
fórmulas feitas: "seja razoável", "você ainda não tentou tudo,,,,,eu retomava o
combate", "quando penso nisso", "sem erro" , " é demais para um s6homem,, ,,,faz
tempo que eu lhe digo", "nada de desleixo com as pequenas coisas,,, ,,você sempre
último momento", "não tem nada a ver" etc. Quando o eu se escuta, ele só
espera o Prazer estético e ensino
ouve um discurso estranho, uma fala anônima na qual se dilui. Nessas condiçõeq
os estudos literários de-
a expressão autêntica é simplesmente impossível. O quiproquó sobre o referen- À primeira vista, seria lógico Pensar que
a especificidade da
te de "nada afazer", a incerteza sobre o sentido dos termos ,,mal,, e,,aliviar,,,a vem se concentrar sobre aquiio que constitui
frequência dos silêncios atestam isso à farta. como é que a língua, marcada pelo literatura:adimensãoestéticadostextos'Nessahipótese'opapel
artifício e pela generalidade, poderia dizer o íntimo? É precisamente pela questão a apreciar o qtrc faz a
do professor seria formar o gosto ensinar
da linguagem que se manifesta do modo mais claro o trágico da condição humana.
"belezd' das obras literárias'
s\- .dN- qStr
que se Possa con-
Mas um objetivo desses é rcalizâvel? Mesmo
o valor de um texto, portanto, deve ser buscado naquilo que ele exprime. estético da forma se-
ceber um plano intersubjetivo, o impacto
No entanto, é real o risco de que, com o tempo, a percepção do sentido se torne Ter como eixo do ensino
gue, como vimos, vinculado à história'
cada vez mais difícil: se a força da obra está em nos pôr em contato com um saber
d.e literatur a o prazer estético
comporta um duplo risco: afastar-
não conceitualizado, ela só pode fazer isso em relação com os hábitos mentais de
de sua sedução se ter ate-
urna época. É aqui que aparece o papel imprescindível dos estudos literários. Eles -se de uma obra interessante pelo fato
banal pelo mero
têm por finalidade transpor um duplo desafio: identificar conteúdos expressos de nuado; fazer estudar um texto perfeitamente
(essa é aptóptia
tnaneira indireta ou oblíqua; trazer as informações (estéticas, culturais, históricas) motivo de ele agradar por razões conjunturais
que permitem devolver a uma metáfora morta o poder de uma metáfora viva. definição da demagogia)'
.r^ rr..rr-^^ t Ensinar literatura
i3*
-qf-
Ensinar normativamente o prazer estético é não apenas impossível (e, só é lido se gerar um grau suficiente de satisfação3. Mas tal raciocínio
por sinal, eticamente discutível), como também inútil. O sentimento só é válido quando da primeira edição do textoa. Uma grande obra é
do belo pode ser produzido a todo momentq diante de qualquer obje- justamente aquela que se mantém capaz de desempenhar importantes
to (um tecido colorido, uma silhueta graciosa, uma paisagem luminosa funções transcendentes, apesar das disfunções de sua função imanen-
etc.): para experienciá-lo ninguém tem necessidade da mediação de te. Os textos do patrimônio não são aqueles cujo interesse sobrevive à
um ensino. Por outro lado, podemos pensar enquanto formadores inevitável Íadiga- devida arazóes culturais de sua sedução esté-
ou professores
-
que não é indiferente orientar o gosto para um e não
-
tica? Com o tempo, é a função transcendente das obras que importa,
-
para outro objeto. Mas se a relação estética tem como única função nos não sua função imanente (que se torna acessória, visto que sua função
pôr em contato com uma realidade cujo valor lhe é exterior, de toda transcendente basta para lhe conferir valor).
maneira, ela não tem mais interesse em si mesmal.
No quadro do ensino, temos todo o direito de dispensar o critério de
Dizer que não há necessidade de ensinar o sentimento do belo não sig- satisfaçãq fazendo valer que as obras literárias não existem unicamen-
nifica negarJhe qualquer valor. Trata-se simplesmente de distinguir te como realidades estéticas. Elas são também objetos de linguagem
o quadro individual da relação estética (que pode, evidentemente, ter que pelo fato de exprimirem uma cultura, um pensamento e uma relação
como exclusiva finalidade o prazer pessoal) e o quadro institucional
-
com o mundo
-merecem que nos interessemos por elas. Se a dimensão
(no qual a relação com a obra deve desembocar em um resultado útil estética tiver sido levada em conta, não terá sido por si mesma, mas
para a coletividade). por aquilo que ela significa e representas.
Não se deve, portantq confundir a pergunta "por que ler as obras literá- O objetivo do professor não apenas não é o do esteta, como também
rias?" com a pergunta "por que fazê-las serem esfudadas?". A distinção se distingue do objetivo do teórico. Entender o que é aarte como prá-
é tanto mais necessária quando, por vezest vemos contradição entre a in- tica humana (empreendimento cognitivo) e decidir que obras de arte
tenção da relação estética (o prazer pode se fundar em urn entendimento representam um interesse (empreendimento avaliatório) são dois pro-
árcluo que permite a deriva da imaginação) e a intenção do ensino (que ao cessos independentes. Ao se perguntar a que corresponde o fato de
se empenhar em fazer surgirem saberes, deve evitar toda aproximação). arte, o teórico tem boas razões para levar em conta desenhos de crian-
ças ou os arremedos de quadros dos pintores de fim de semana: essas
Aqui nos afastaremos de Schaeffer, quando ele explica que, para cum-
produções, seja qual for seu valor, derivam da arte eriquanto prátíca
prir eventuais funções transcendenfes (disponibilizar um saber, aÍinar a
antropológica6. Mas o projeto do professor é completamente diferente.
percepção do mundo, propor modelos de comportamento etc.), a fic-
ção deve imperativamente começar por cumprir sua função imanente: 3 Nessa perspectiva, o interesse da forma seria inicialmente instrumental: ele não decorre-
provocar a imersão mimética no universo ficcional2. Para o autor de ria daquilo que ela exprime, mas resultaria do fato de que ela facilita o contato com a obra.
a Yer supra,p.4547.
Pourquoi la fiction ?, um texto ficcional só produz efeitos se for lido, e ele
5 Para que as coisas fiquem bem claras, não discordq de modo algum, que alguém possa ligar
o valor de uma obra de arte a sua dimensão estética. Mas a dimensão estética é sempre relativa
I I)or isso, o prazer não está ausente do ensino: a satisfação de ter identificado (uma parte) (além de ser sempre su§etiva). Em contrapartida, a originalidade e a riqueza dos saberes ex-
r'la riqueza lrermenêutica da obra pode vir in fine ocupar o espaço vazio. pressos pela obra de arte são dados objeüvos cujo valor transcultural podemos mostrar.
2 CÍ. Pourqttoi la ficlittn?, op. cit,, p. 327-335. Schaeffer afirntava, poróm, en Lcs Célibataircs í' "Concebida em uma perspectiva analíüca, a tarefa da reflexão estética é identificar r.. en-
lc l'trt, o1t, ciÍ., p. 200: "[.,.] uma obra c{c artc podc pcrfeitanrcntc cunrprir qualcluer uma c{e tender os fatos estéticos, e não propor um ideal estético ou critérios de juí2o", J.-M. Schaeffer,
Errsirtttr litunturn "137
A rcsposta a esta seguncla pergunta é função clos objetivos visaclos' o clesafio clos estuclos literários é, portanto, identificar - nos planos
tlrrc clependem, eles mesmos, da especificidade dos
públicos' A título cultural e antropológico o que é que a obra exprime sobre o huma-
-
rlc.rt-ralogia,poclemosreconhecer(noplanoteórico)airnportânciada no, assinalanclo o que era esperado na época, ir-rédito à época e novo
,,pulsão .1" mo.te" no funcionamento do inconsciente sem cleduzir (no aincla hoje. Se é verclade que, em ficção, a estrutura "permanece
en-
questão
planto prático) que o propósito do ensino seja ensinar
a clesenvolvê-la' caixada no exemplo"s, convém esclarecer que o exemplo em
pocle instanciar várias estruturas cle naturezas muito cliversas.
A obra
se apresenta como a atualização empírica não cle uma
estrutura única,
vem
Os objetivos mas d.e esquemas gerais e diversos que o propósito clo ensino
justamente trazer àl,,s,z.Não existe nacla de inefável em uma obra lite-
clecorre não rária, apenas conteúdos à espera de iclentificação'
A cspecificiclade cla obra literária enquanto objeto cultural
(rpenirs da natureza clos conteúclos que ela exprime
(ver o capítulo an-
Para retomar Para resumir, o (simples) leitor percebe certo número de irtfornnções
tcrior), rnas também da rnaneira como ela os comunica. veiculaclas pelo texto; o comentador iclentifica ou constrôi snberes Par-
a
Os tcrrnos c1e Schaeffer, os modelos comportamentais
veiculados pela
tir dessas informações; o professor transforma esscs saberes em cor'ilte-
litcrartura geralmente são não ser
cintetttos.IJm sa\ter não se torna efetivamente conlrccitrcnto, a
irrtcriorizadospolimersãoe(eventualmente)reatil,adosdemaneira que seja objeto de uma reapropriação pessoal que passa pela tomada
itssociativa enquanto a reflexão analítica vai dar em saberes abstratos'
-
cuirr aplicação evàntual necessita da passagem por
um cálculo racional
c1e consciência.
uuiaclo por rcgras cxl'rhcitas;' Temos etn Finr tle pnrtidn, de Beckett, uma frase que resume perfeita-
fra-
mente o rnovimento cla peça: "cacla coisa segue seu curso". Esta
Airrtcriorizaçãoporimersão(senossituarrnosapenasrropontodevis-
incon- se Ine toca intimamente, sem que eu Possa explicar espontaneamente
apresenta, ao rrlesmo tempo, uma vantagern e urn
ta cogr-ritivo)
por quê. Se refletir um Pouco, digo a mim mesmo que é porque ela
vt.tlicnte.AvantageméqueainÍormaçãotransmitidapelaliteratura de
não pocle ter: ela é exprime um dado universal de nossa condição: a impossibilidacle
k,rtr Lrma força de impacto que o discurso racional explica-
O cleter o fluxo do tempo que nos conduz lumo à morte. Essa
"st'nticla" antes de ser entenclida, portanto' sem ser colnPreenclida' A crítica beckettiniana lne penni-
de modo ção não é falsa, rnas é insuficiente.
incouvt'niente é que a informação em questão é assimilada
a vocação do en-
te construir um saber mais preciso e mais interessante: o enunciado
n.io cot'tsciente. Ela é "gravada" passivamente' Como exprime a visão schoppenhaueriana c1a existência impulsionacla por
têtn corno
sirrrt ti t:nsinar tl clominar os saberes, os estuclos literários e represÜttnçííLt
url-r querer-viver absurdo e cego. O tttttttdo cottto Uontnde
Ir.o1-rrisito conceitualizar
aquilo que, na relação estética, ó (no rnelhor
"l-tt.r tttelhtlr cltls ca-
quc foi, clurante tocla a sua vida, uma clas obras de refcrência partt
tl()s ctrsos) intcriorizado por imcrsão' sc espccifictl - afirrna, com efeito, que a ú1ica "realic1ac1c" clesse ttttttttltl ti
itncreir' I)Or isstl Ilcckett
s{)s", c porrlLt(, cxistem viilias obrals t-ti'ts tlttaris c diÍícil -
"vonttrclc" imutaivcl c etc-rtrel, Um priucípirl vita'rl, tlttt't'stii lrir birst'
trnrrr
o Pr.rllr.ssor.não 1-rorlcst'lirtlitar.rtl Il'.thllhtl tlt'itltt'r1rt't't'tt,ijtl: t'lt'Prt'r.'i-
de todos os fenômenos e que nos impulsiona a perseverar em nosso rnos lê-lo: enquanto poema., Esse quarteto de fato foi escrito Para suscitar o de.
ser, em nos apegar à vida, a despeito de sua ausência de significação e vaneiq as associações pessoais, a emoção e o prâzer visual e sonoro. Que ele cOn'
dos sofrimentos que ela nos inflige. Não apenas a peça de Beckett é a siga sempre fazer isso já é outra questão; mas podemos postular que esse é seu
perfeita tradução dessa filosofia (os personagens vagam entre a dor e o objetivo e que, dada a notoriedade do texto, ele o tem atingido frequentemente.
tédio sem poder se resignar em morrer), como a frase que nos interessa O problema está em saber se, no quadro do ensino, podemos nos contentar
exprime muito exatamente o caráter frio e mecânico do "querer-viver" em deixar cada estudante se reapropriar desse curto texto de maneira Pessoal
impessoal que perpassa cada um de nós. Entre os conteúdos veicu- e espontânea. Me parece que a resposta só pode ser negativa: quem precisa de
lados pela peça de Beckett, há então uma abordagem pessimista da ensino para se deixar levar pelo prazer do devaneio? Será útil que me expliquem
existência, inspirada em Schoppenhauer. o que quer que seja para que eu considere belo (ou não) esse poema? E mesmo
quando alguém conseguir me convencer de que é belo, será necessário remune-
Antes de examinar os meios a pôr em ação para identificar o sentido de
rar a pessoa por isso?
um texto, concentremo-nos em um exemplo.
Digamos sem rodeios: os estudos literários só podem ter legitimidade se
resultarem em algo útil para a sociedade. Portanto, não basta "proYaÍ" (supon-
ry do-se que seja possível) que esse poema é belo: é preciso mostrâr que ele en-
riquece nossa compreensão do mundo, esclarecendo-nos sobre o que somos e
Esrnrre r CARNE sobre a realidade em que vivemos.
(Rimbaud, " I: étoile a pleuré rose... " ) Quais são, pois, os saberes que podemos extrair desse texto?
Podemos muito bem ler esse texro pelo simples pÍazer estético, deixando- O primeiro problema tem ver com o valor do adjetivo de cor colocado em
a
-nos levar pelo ritmo e pelo jogo das imagens. Aliás, é assim mesmo que deve- cada verso no hemistíquio: temos de considerá-lo como um epíteto destacado ou
apreendê-lo como um predicativo (caso no qual a cor designaria o resultado de
e ArthurRimbaud,"Létoileapleurérose...",Poésies.Paris:Gallimard,1984,p.Z9. um processo)? Se a segunda hipótese é a mais provável, é porque as cores reme-
10
Tradução literal, para que o Ieitor possa acompanhar a análise que se segue (N. T). tem semanticamente às partes do corpo feminino (é a orelha que é rosa, o dorSO
Ensinar literatura 7çl
portanto' uma que nasceu do universo, mas o universo é que saiu da mulher. As estrelas escor-
que é branco e os mamilos que são ruivos)' A "coloração" evoca'
figura feminina reram de suas orelhas, o infinito se desenrolou a partir da matriz de seu dorso,
troca entre os elementos cósmicos (estrela, infinito, mar) e uma
declinadas à o mar perolou de seus seios e o Homem surgiu de suas entranhas sangrando.
cujas partes do corpo (orelhas, nuca, quadril, mamas, flanco) são
A dimensão materna dessa figura, por outro lado, é enfatizada pela menção às
maneira de um brasão.
"mamas" (que aleitam) e do "flanco" (que dá à luz).
troca'
Antes de identificar essa figura, indaguemo-nos sobre a natureza da
Uma primeira leitura simplesmente lógica mostra, portanto, que o poema
A questão levantada é a do sentido da preposição "à" qrte, sob vários aspectos/
é uma celebração dirlgida a uma figura ao mesmo tempo maternal e sensual,
é a chave do poema.Trata-se de um à de direção ("ilaaàla
campagne"l"ele
? A maioria que parece ser a matriz do universo (estrela, infinito, mar) e origem de todas as
vai ao campo,,) ou de posição (" il est à la maison"; ele está em casa)
predicação). Tal coisas. O processo de geração se revela harmonioso até o último verso, em que
dos críticos a consideram como um à de direção (e, portanto, de
se produz uma mudança de foco: a aparição do Homem se apresenta como um
leitura leva a ler o poema como a celebração de uma figura feminina surgida
evento sombrio ligado à morte e ao sofrimento, ao mesmo tempo conclusão e
do universo (cada elemento cósmico colorindo - moldand
parte de
identificála a negação do processo de criação. Observe-se que as quatro cores (rosa, branco,
seu corpo). Como essa figura é eroticamente conotada, é tentador
interpre- ruivo, preto) são as das diferentes etapas do dia (aurora, dia, ocaso, noite): elas
Vênus, deusa do amor e da beleza, nascida da espuma das ondas. Essa
de uma evocam um ciclo cuja conotação global é negativa do nascer do sol (sinônimo
tação, que aliás esclarece o primeiro verso ("Vênus" é também
o nome -
observada de esperança) à chegada das trevas.
estrelall), parece respaldada por uma possível relação intertextual -
por P. Brunel com La Naissance de Vénus ("O nascimento de Vênus") de
-
Sully Proudhommel2.
DeVênus a Cibele
Mas há outra leitura possível, baseada na ideia de que o " à" \áo significa
,,na direção,,, mas "no interior de".É até mesmo possível que esse à designe
"Homem", portanto/ parece remeter a "ser humano" e não a "indivíduo do
uma relação de origem, de extração, e não de predicação ou de destinação'
o sexo masculino". Mas é legítimo hesitaç dada a evidência da isotopia sexual que
em direção ao
verso 3 parece sustentar essa leitura: o leite perola do seio e náo estrutura o poema. O texto não somente rende homenagem às partes eróticas do
começou a
seio. De igual modo, é dentro da (a partir da) orelha que a estrela corpo feminino como também podemos ler o último verso como uma metáfora
pôs a rolat, ou
chora[, e é da nuca aos quadris (a partir do dorso) que o infinito se da união carnal. O motivo da "ferida no flanco", recorde-se, é uma imagem ex-
até a se desenrolar. A ideia de que à designa a origem não sofre
mais nenhuma
plícita do ato sexual em Baudelairel3. O Homem poderia, assim, designar também
mitológica
dúvida se nos reportarmos ao verso 4. Conforme toda uma imagética o ser masculino enquanto tal por oposição à Mulhef, sedu;ora e voluptuosa.
absurdo conside-
bem ancorada na tradição, o flanco é fonte de vida. Aliás, seria
ora, é Mas talvez não seja necessário decidir. o que leva a pensar assim (além dos
rar que o Homem (a exemplo dos elementos cósmicos) moldou vênus.
dados objetivos do poema) é que essa celebração de uma figura mítica simul-
precisamente a isso que conduz a hipótese de um à de predicação'
taneamente erótica e materna (ligada, portanto, a uma sexualidade sublimada)
leitura que pa-
Que o tu sejaa fonte e não o resultado da metamorfose - não é inédita em Rimbaud. Recorde-se que o autor de "sensation" compara a
é fundamental para a interpretação do poema: não foi
a mulher
recc impor-se "Natureza" a uma mulher que o torna "feliz"l4. Sobretudo, porém, o poema
- num mesmo movimento, a "Grande mãe
"soleil e chair" ("Sol e carne") evoca/
, N^ * -d", vênus é o nome de um planeta que tem sido identificado
ao longo dos
"eslrela d'alva", chamada Vésper, Hésperq FósÍorq
*éculos,como a,,estrela da manhã" ou
u flanco espantado/Uma ferida larga e oca" (Baudelaire, À celle qui est
Eósforq Lúcifer etc. (N. T.). Fleurs du Mal. Paris: Le Livre de Poche,1972, p.59)'
12 y''li mar oferece seus atributos a Vênus' Cf' P' Brunel' Rim- trop gaie, in: Les
a icteia de que o
POR QUE ESruDAR LITEMTURA?
Ensinarliteratura 143
clos cleuses e dos homens,Cibele" e uma "Divina mãe, Afrodite marinha"ls' A Dor da criação
aproximação das duas figuras se impõe, aliás, naturalmente: é o amor como t'or-
Hesíodo, antes de Rimbaud, canta o nascimento do mundo. Tal como em
ça de vida que cria o elo entre a sensualidade e a fecundidade.
nosso quârteto, é a Terra Gaia que emerge, antes de tudo, do caos e dá ori-
São particularmente notáveis os pontos comuns entre essa Cibele/Vênus
gem aos elementos.
- -
Logicamente, ela é apresentada como uma figura materna
que, no fim das contas, não passa de uma alegoria da Natureza e a destina-
-tária do nosso poema. Além da interpelação admirativa a uma
-
figura que insufla
de "peito amplo"18. Hesíodo nos diz que ela "primeiro pariu Urano coroado de
estrelas". É difícil não traçar o elo com o primeiro verso ('â estrela chorou rosa
a vida no universo, estão plesentes nos dois textos o motivo do seionutridor e
no coração de tuas orelhas"). Mas a Terra não se contenta em gerar o Céu: "[ela]
o vínculo com o mar. Enfim, a estrofe seguinte parece iluminar o último verso
o tornou seu igual em grandeza, a fim de que a cobrisse por inteiro". Em outras
c{o nosso quarteto:
palavras, o Céu ("o infinito") "rolou branco" da "nuca" aos "quadris" de Gaia. Em
que ele escolheu "o outro Deus" (o dos cristãos) contra a Natureza. Por isso, de- em lugar de deixar-lhes aluz do dia, Urano os escondia nos flancos da Terra e se
Certo/ é que Seu sangue/ no nosso quarteto/ é uma sujeira sobre o flanco da Terra-
regozijava dessa ação desnaturada. A Terra imensa gemia, profundamente entris-
-Mãe. Observe-se que encontramos essa mesma evocação de uma figura soberana/ tecida [...l".O "flanco soberano" da Terra se torna, pois, o objeto de uma ação
rnas ferida, no poema que o colegial Rimbaud escreveu em latim sobre JugurtalT: contra-natureza geradora de sofrimento. A imagem do "sangue preto'/ remete
talvez, também, à vingança de Saturno, que cuidou de castigar esse pai indigno,
Em seu flanco soberano, vi a chaga profunda! '..
castrando-o. Segundo aTeogonia, as "gotas de sangue", brotadas do membro ü-
A sede sagrada do ouro escorria, veneno imundo,
ril, fecundaram a Terra: delas saíram as Fúrias, os Gigantes e as Ninfas melíades.
Difundido em seu sangue/ em seu corpo todo coberto
Quanto a Afrodite, nasceu dos fragmentos do sexo de Urano lançados ao mar.
De armas! E uma puta reinava sobre o Universo!
#
neos. Mesmo que tantos textos aindanos falem, não podemos esquecer tituindo esse quadrozz. A identificação dos intertextos é, desse ponto
que eles se dirigiam em primeira instôncia aos leitores de seu tempo. de vista fundamental. O que entender do Shamela, de Fielding/ se se
Portanto, há toda a lógica em nos interrogar sobre a maneira com que ignora o Pamela de Richardson (do qual o Shamela é uma reescrita Pa-
ródica?) Como Ler o Lllisses, de Joyce, se não se souber nada de A Odis-
a obra era entendida enquanto seu autor vivia. Para F. Rastier, essa
seia? E possível abordar os textos de Beckett sem ter lido Descartes e, a
"leitura descritiva" (que aborda um texto a partir do conhecimento de
seus primeiros leitores) deve ser o passo prévio para "leituras produ- fortiori, Geulincx e Berkeley; mas tê-los lido permite apreender melhor
o que os textos de Beckett exPrimiam na época em que foram escritos.
tivas" (que reinvestem o texto em função dos contextos'de recepção)20.
Mesmo que os conteúdos originais não sejam necessariamente os mais A identificação do sentido históricg contudo, não seria caPaz de exaurir
interessantes, importa conhecê-Ios PaÍa mensurar o valor e a pertinên- a análise. O texto literário também (e sobretudo?) extrai seu valor dos
cia das interpretações posteriores. conteúdos que antecipa. Uma obra passa pua a posteridade quando é
capazde responder a outras questões, além daquelas que eram postas na
Contudo, não é infrequente que o sentido inicial (que pode ser perfeita-
época de sua criação. Não há dúvida de que é isso que Jauss quer dizer
mente plurívoco) tenha se opacificado com o tempo. Como o nota He-
quando Íaz darecepção o aferidor da história literáriats. Se o valor de um
gel, é muito difícil talvezimpossível imergir em um universo cul-
- - texto resulta dos saberes não conceitualizados que ele contém, um estu-
tural que não seja o nosso. Só podemos apreendê-lo desde o exterior:
do literário 'tompleto" tem de dar testemunho dessa riqueza cognitiva.
Sob todos esses aspectos , aarteé e permanece sendo, do ponto de vista de
sua mais alta destinação, algo do passado. Ela também perdeu para nós
suaverdade e suavitalidade autênticas e foi relegada anossa representação Perseguír o sentido (do bom uso da teoría)
t...]. A ciência da arte é, então, em nossa época uma necessidade mais
forte do que nos tempos em que a arte tinha o privilégio de satisfazer Num plano geral, o recurso a modelos de interpretação exteriores à
plenamente por si mesma21.
obra parece indispensável a toda leitura produtiva2a. ConÍrontar um
O primeiro papel do ensino é, então, munir o leitor da inÍormação ne- texto com uma nova grade de análise faz surgirem conteúdos efeti-
cessária para que as obras voltem a lhe falar. Como fazet ídeia do que vamente presentes que ainda não tinham sido atualizados. Pensemos
A canção de Rolland representava sem um mínimo de conhecimento da naquilo em que se transforma um romance como Madame Boaary, a
depender de se o submetemos a uma leitura socioió$c4 psicanalítica,
sociedade feudal? Como atualizar os implícitos de um texto de Tols-
antropológica ou filosófica.
tói sem conhecer nada da Rússia na segunda metade do século XIX?
Se, como o nota Danto, o sentido de uma metáfora está vinculado ao
22 "Poderia ocorrer que em outros lugares e em outros tempos, a aÍirmativa'os homens são
quaclro cultural no qual ela é utilizada, só podemos reavivá-la recons- porcos' fosse uma metáfora desprovida de qualquer caráter oÍensivo, PoI conta, Por exem-
plo, da raridade ou do valor clos porcos naquela dada cultura" (4. Danto, La Transfiguratíon
du banal, op. cit., p.295). Podemos, tranquilamente, estender essa observação ao conjunto
;rrr 'A le'tura produtiva reinterpreta o texto segundo o arbítrio do receptor, pal€ Íazê-lo
dos enunciados de um texto.
cprrcsponcler a situações e a referentes novos, estando até mesmo disposta a reescrevê-lo
'?3 Cf. H. R. Jauss,
Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard,1978 [ed. or.: L972].
parciaimente. [... I A leitura clescritiva responde ao moclesto, mas ambicioso, objetivo de re- 2a
A força clas análises literárias provém exatamente de seu asPecto voluntarista. Visando a
c6nstituir o conteirclo clo texto reconstituindo o entorno da comunicação inicial" (F. Rastier,
urn objetivo e possuincto urn método, elas se distinguem das leituras espontâneas, frequc'n-
Srls el. tcxlualitt, ttp. cit., p. 51-52. la arrnl rrãn +ôrr rnrrcriênria
148 PoR QuE EsruDÁR LtrÊRATuRA?
do claramente uma relação carnal31. É por isso que se torna difícil in-
a divisão operada deve ser caucionada, a posteriori, pelo interesse
terpretar o final de O aermelho e o negro como a tomada de consciên-
sentido identificado.
cia por Julien da negatividade de seu percurso32: longe de lamentar
Uma segunda operação produtiva- consiste em nos seu comportamento passado, o personagem Perseveraria na lógica
-frequentemente
interrogar sobre os "lugares de incerteza"s de um texto. Podemos defini- que o levou a esse fim trágico.
-los, com J.-L. DuÍays, como "unidades de sentido que suscitam a pel-
Os "lugares de incertezd'estão, finalmente, muito próximos das "disfun-
plexidade do conjunto dos leitores Porque elas constituem inÍrações
aos
princípios de coerência e de não contradição que regem o desenvolvi- ções", tais quais definidas por M. Charles. Trata-se das incoerências -
tolices ou acidentes combinados que estão na fonte das diversas inter-
mento do sentido global'ze.De fatq é frequentemente nas configurações -
que pretações que podemosf.azer de um texto: 'A disfunção surge como uma
textuais marcad.as pelo fluxo, pela obscuridade e pela ambiguidade
completamente' condição necessária da dinâmica do texto, o acidente que permite Passar
se exprime algo de singular que o autor não controla
de um equilíbrio a outro"33. É pelo fato de apresentar objetivamente uma
Reportemo-nos, a título de exemplo, ao final de o aermelho e o negro. série de dificuldades que um texto autoriza vários investimentos e dá
Rênal. Ele se dirige a ela
]ulien está preso e recebe a visita da sra. de fugr,no decorrer da históri4 a leituras múltiplas e mutáveis.
nos seguintes termos:
Uma terceira abordagem consiste em levar em conta os "resíduos"3a
Saiba que semPre a amei, que só a você amei' deixados pelas leituras anteriores, em se concentrar nas propriedades
-
_ É bem possível!, exclamou a sra. de Rênal, Íeliz por sua vez.
Ela se
do texto que não combinam com as interpretações resenhadas. Mesmo
apoiou em que estava ajoelhado diante dela, e por muito tempo
Juliery sendo habitual ler o comportamento de Grange em Un balcon en forêt
choraram em silêncio.
como uma tentativa de "desrealizar" a gúetta, de "abrir esPaço Para
Em época alguma de sua vida, ]ulien tivera um momento como aquele'
si", como dar conta da "distensão" e do "alívio" sentidos pelo persona-
Muito tempo depois, quando puderam se falar ["']30'
gem quando a batalha se desencadeia?3s
A maioria dos críticos preenche a elipse ("Muito tempo depois") Nessa busca de conteúdos implícitos, o risco da sobreintepretação é
do modo seguinte: os personagens estão tão emocionados que claramente permanente. Por isso é necessário ter proteções.
palavra alguma pode sair de sua garganta' Mas é possível proPor
outra leitura: a insistência no caráter excepcional do aconteci- rr Essa outra leitura, proposta por P. Barbéris em um estudo inéditq é raüÍicada por Y.
mento (,,E* época alguma de sua vida, Julien tivera um momen- Ansel nas notas da edição de La Pléiade: "Em algumas linhas, a leitura [...] de P Barbéris
varre de uma só penada todas essas glosas edulcoradas que gostariam de puxar Julien para
to como aquele"), o contato físico entre os Personagens ("Ela se a transcendência; entre Julien e a Sra. de Rênal não existe apenas um diálogo de almas, mas
apoiou em Julien, que estava ajoelhado diante dela") e, sobretu- encontro de corpos"(lbid., p.1132). .
r2 Para alguns críticos, em um último retorno sobre si, o herói se daria conta cle que o não
clo, a importância da duração ("muito tempo") sugerem muito cla revolta é sinônimo do assujeitamento. Ver a notícia de M. Crouzet na edição Garnier-
-Flammarion de O aermelho e o negro (Paris,1964, p.28)
rr M. Charles , lntroduction à l' étude des textes, op. cit., p.167 .
?r A fórmula é de M. Otten (Sémiologie cle la lecture, in: M' Delcroix e F. HallYn [orgs.], r'r lralaremos de "resícluo" quanclo "o leitor identifica uma ou várias unidades semânticas
Méthodcs du texte. Paris: Duculot,l99O, p' 343)' quc nã«r sc integram ao sistema cle significação que ele desenvolveu" (J.-L.Dúays, Stéréo-
1) ).-L, Dufays , Stóróotqpe et lccturc, op, cit., p.156,
lvptt tl lttctttrc, op, cit., p.'156),
iro qtondhà1, ct lc noir, irt: (T-uttrcs ro,il(tn(!§qtte§ tr»l4r/àftrs, ttlm«l I, l'nris: Gallitnurcl,
virtudes da coerêncía) criaclor interessante3T), mas o preço a pagar é sempre a morte da obra
Controlar o sentido (as
original como reservatório de sentido. Como o nota ironicamente Eco,
O ciesafio dos estudos literários é perseguir sentidos efetivamente se a intenção da obra não tem importância e se só importar o deseio
presentes, não projetar na obra sentidos que não estão ali. A fronteira do leitor, tanto fazexPlorar com toda a liberdade as irregularidades do
pode parecer indefinida; mas ela é essencial, porque separa duas abor- asfalto ou os buracos das paredes: não se precisa de texto algum para
clagens da literatura.A primeira nega a alteridade do texto ao afirmar explorar as "possibilidades de mensagem que a natureza e o acaso
que o único interesse que ele tem é aquele que cada leitor the dá. A põem à [nossa] disposição"38. se a obra tem um interesse, não é tanto
segunda lhe atribui um valor próprio ao aceitar a ideia de que é como enquanto espelho d.e meu ego, l0rtas como objeto que, justamente, resis-
ela me opõe a uma sensibilidade e
outro, exterioridade, que ele tem algo a nos dizer e não como virtu-
-
te a minha reapropriação
- porque
a um ponto de vista que não são obrigatoriamente os meus'
alidade inteiramente assimilável.
Mas, uma vez estabelecido que a função de um texto não é refletir
Em sua versão mais argumentada, a primeira concepção se inscreve
as preocupações do leitor, como distinguir os conteúdos efetivamente
em uma abordagem "retórica"36 da literatura, que me parece difícil se-
presentes dos conteúdos simplesmente Projetados? Especialmente no
guir até o fim. se modificarmos a arquitetura de um texto para ProPor
caso de uma leitura "produtiva", que se dedica a conceitualizar em ter-
obje-
uma "variante" dele, não teremos mais
- isso é fato - o mesmo um mos que the são próprios conteúdos dos quais os contemPorâneos do
to. É como se descontruíssemos a sé de Olinda, de maneira a obter
texto não podiam ter consciência?
monte de tijolos dos quais nos serviríamos Para construir outro edifí-
cio. Poderíamos considerar eSSa nova construção como outra versão Para ter certeza de que o sentido identificado está objetivamente Pre-
"iso-
(possível) da sé de olinda? Evidente que não: simplesmente teríamos sente, é necessário que ele seia caucionado por uma relação de
outra criação. No limite, poderíamos conservar apenas as palavras de morfismo" com o texto no qual ele se desvela. Tomo emprestado a Wit-
tgenstein3e o termo "isomorfismo" e o uso (muito livre) que proponho
um texto, servir-nos delas para comPor outro texto e pretender que
fazer dele é de minha exclusiva resPonsabilidade. Segundo o autor do
ele estivesse virtualmente contido no primeiro; nesse sentido, todos os
Tractatusa\, se a linguagem é caPaz de representar o mundo, é porque
textos são textos possíveis do dicionário. O que se perde nesse tipo de
existe uma correspondência entre uma expressão e aquilo que ela ex-
abordagem é aintençdo do texto, isto é, o sentido que, voluntariamente
prime. Wittgenstein pensa a linguagem a Paftir do modelo da imagem:
ou não, o texto exprime. o "comentário retórico" vem in fine substituir
uma obra pela outra: às vezes, se ganha com isso (se o leitor for um (como é frequentemente o caso dos
" a"rrrd. * "p-a sobre uma erudiçãoqueflamejante
"uma meditaçãobrdenada sobre os possíveis
pesquisadores dã grupo Fabula), é certo
r{, Na teoria dos "textos possíveis", tal como apresentada no site Eabula, a retórica é consi- i ipot"*t rui, de que o texto é portador" não carece de encanto (c/ M' Escola e S. Rabau,
Inventer la pratique: pour une ihéorie des textes possibles, in: La Lecture littéraire,
n' 8, "La
clerada, ao mesmo temPo, como uma "ciência descritiva" (cuja aposta é, na trilha da poética
case blanche", oP. cit., P.20).
tradicional, mostrar como um texto produz significações) e como uma "técnica produtiva'
(que vai dar em reescritas):'A teoria dos textos possíveis [...] vai na contramão dos pre-
t
38 U. Eco, Gwre ouoerte, op. cit., p.134.
3e 1993 [ed. or:.1921)'
cf. L. wittgensteiç Tractatuslo§ico-philosophicus.Paris"Gallimard,
conceitos que dominam o exercício do comentário, confrontando esse ou aquele texto 'real' que pode
o0Lembremos que Wittggenstein não se limitará a essa concePção de linguagem,
corn aquilo que ele poderia ter sido [...]. Trata-se, entãq de Promover um novo estilo de Também é preciso levar em
ser acertadame.rte co.,siáerada como bastante reducionista.
comentárig que conjuga ao máximo gestos metatextuais e intervenções hipertextuais - de linguagem a realiclade, a linguagem
conta que se não existissem "pontos comuns" entre a e
conceber o comentário como a produção de uma variante clo texto considerado" <http:/
jamais poderia rePresentar a realidade.
www f abula. or g i atelier.php?Textes-possibles>.
154 PoR euE ESrupÁR urEÀÁruRÁ?
#
para que uma imagem seja imagem de algo deve haver pontos comuns com a monarquia absoluta que a pôs para escanteio, sabe que não pode
entre a imagem e aquilo que ela representa. Esses pontos comuns Íeme- existir sem o rei). Existe, portanto, uma relação de "isomorfismo" entre
tem a uma identidade de estrutura: se não temos a menor dificuldade algumas peças de Racine, a visão de mundo jansenista e a situação da
para interpretar o desenho de uma mesa como remetendo a uma mesa nobrezade manto sob Luís XIV.
(apesar de o desenho de uma mesa e a mesa não terem nem o mesmo
volume, nem as mesmas cores/ nem o mesmo tamanho etc.), é porque o Interpretar equivale, portanto, a vincular a coerência da obra à coerên-
desenho reproduz, a partir de algumas convenções, a estrutura que é a cia das representações que existem fora da obra. Esse critério de "coe-
estrufura do objeto "mesa". A semelhança, entãq não é indispensável à rência" não é incompatível com a atenção que o intérprete deve dis-
relação isomorfa: basta que possilnos estabelecer uma correspondência pensar às disfunções. Ao contrário. Não apenas a disfunção só é iden-
termo a termo entre uma imagem e aquilo a que ela remete. Um exem- tificável no horizonte de uma coerência como convida a buscar uma
plo simples é o do mapa rodoviário: a cada ponto do mapa corresponde nova estrufura no seio da qual ele recuperará alguma pertinênciaa3. É
um lugar; a cada linha, uma rodovia etc. O mapa não se parece com a isso o que varnos verificar na análise de um conto de M. Tournier.
malha rodoviária de um país, mas reproduz sua estruturaal.
aposentado, fora substituído por uma professora forasteira, e todo mundo a observava
grupo político (a nobreza de manto, a despeito de sua hostilidade para
Os tlados pareciam lançados. Não haveria mais árvore de Natal sacrílega na hora da A palavra " conto" remete/ geralmente/ a um relato curto que põe em cena
rnissa da "meia-noite", e o pároco ficaria como único senhor do terreno. Assim, foi acontecimentos imaginários. De fato, o início do texto evoca um espaço indeter-
grande a suPresa quando a Sra. Oiselin anunciou a seus alunos que nada seria mudado
minado (o nome "Pouldreuzic" é dado sem outra especificação) e a expressão
na tradição e que o Papai Noel distribuiria seus presentes na hora habitual. De que
"havia lustros" recordando o tradicional"etartrrravezt/ remete à intempo-
lado ela estava? E quem faria o papel de Papai Noel? o carteiro e o guarda florestal, - -que os eventos relata-
em quem todos pensavam em razão de suas opiniões socialistag afirmavam não estar ralidade dos contos de fadas. A menção "de Natal" indica
a par de nada. o assombro chegou ao cúmulo quando se soube que a sra. oiselin dos se desdobrarão nas imediações de 25 de dezembro e que o desfecho será felü
emprestaria seu bebê ao pároco para fazer o Menino jesus do presépio vivo. (o período de Natal é propício para "milagres"). Espera-se também encontrar no
No princípio, tudo correu bem. o texto à escolha ou simultaneamente as duas grandes referências do conto
pequeno oiselin dormia de punhos cerrados quando
- -
os fiéis desfilaram diante da manjedoura, de olhos arregalados pela curiosidade. O boi e de Natal: o relato evangélico (o nascimento de Cristo) e o maravilhoso pagão (a
o burro - um boi de verdade e um burro de verdade pareciam enternecidos diante do únda do Papai Noel).
-
bebê laico tão milagrosamente metamorfoseado em Salvador.
Segundo as regras do gênero, o conflito no centro da história se funda numa
Infelizmente, ele começou a se agitar a partir do Evangelhq e seus urros explodiram no
oposição simples e de enorme legibilidade.A partir da segunda frase, sabemos que
momento em que o pároco subia ao púlpito. |amais se tinha ouvido uma voz de bebê
ele põe em jogo os laicos e os clericais a propósito da organização e do conteúdo
tão tonitruante. Em vão a mocinha que fazia a Virgem Maria o embalou contra seu seio
magro. O fedelho, rubro de raiva, vibrando braços e pernaE faziaasabóbadas da igreja da festa de Natal. A divisão da comunidade social em dois campos se encontra no
ecoarem seus gritos furiosos, e o pároco não conseguia düer uma palavra. nível da linguagem. O léxico laico ("radicais", "comunal laica", "professor pri-
Finalmente ele chamou um dos coroinhas e lhe deu uma ordem ao ouvido. Sem tirar a
mârio" , " razóes prâticas" , "Papai Noel", "herói pag,ão" , " radical" , "anticlerical")
sobrepeliz, o menino saiu, e ouviu-se o ruído de suas galochas diminuir do lado de fora. se opõe claramente ao léxico clerical ("escola livre" , "LÍmãas" , "pâÍoca" , "missa
do galo", "Menino Jesus", "presépio vivo" , "água benta" , "Diabo").
Alguns minutos depois, a metade clerical da aldeia, reunida por inteiro na nave, reve
uma visão inaudita que se inscreveu para todo o sempre na lenda áurea de todas aquelas
1l
Como todo conto, "La Mêre NoêI" se vincula à tradição popular e à me-
redondezas. Viu-se o Papai Noel em pessoa irromper na igreja. Ele mória coletiva (o conflito ideológico que opõe os dois campos é bem anterior ao
l
se dirigiu com grandes
passadas à manjedoura. Em seguida, afastou a grande barba de algodão brancq desabotoou
início da narrativa e se enraíza na história da Bretanha, ou mesmo na história
o casaco e estendeu um seio generoso ao Menino Jesus repentinamente apaziguados.
da França). Marcado pelos valores e pelos códigos da comunidade na qual se ins-
creve, o texto tem um âspecto didático, senão moral: o desfecho aPresenta uma
üsão tranquilizadora do mundo e transmite uma "lição".
A leitura descritiaa: Esse texto linhagem dos contos tradicionais: espelho
se situa, portanto, na
um conto didático sobre a guerra das escolas do homem, ele estigmatiza seus defeitos ao mesmo tempo em que afirma a
força de seus ideais. Os moradores de Pouldreuzic, apesar de suas fraquezas, se
uma primeira leitura pode se dedicar a deduzir base nos sinais
cxplícitos o projeto original do texto.
revelam capazes de ultrapassar suas divergências para refundar sua comunidade
- numa unidade renovada.
r{ M. Tournier, La Mêre NoêI,
conte de NoêI, in: Le coq de bruyàre. paris: Gallimar d,197g, p. Essa primeira leitura apoiada nos dados do gênero e no conhecimento
27-3'1.
-
deixa atrás de si, no entanto, um bom número de resíduos.
da tradição
-
drí hngrndr lrt0raturn lo,
--fls.*
Um conto de t'adas bem realista não só o laico e o clerical (a professora comparece à rnissa), mas talnbém o marn-
úlhoso e o sagrado (Papai Noel conüve na manjedoura com o Menino ]esus), o
Ernbora rotulado de "conto de Natal", o texto apresentâ uma
série de ób- mundo dos adultos e o mundo das crianças (o pequeno Oiselin participa da rnissa
vias rupturas com as regras do gênero.
do galo), o masculino e o feminino (Papai Noel estende "um seio generoso"), a Vin
Enquanto o conto tradicional assume seu statusde ficção (os fatos gem Maria e Papai Noel (a fórmula "Mamãe Noel" condensa as duas referências).
evocados
não se situam no universo real), o conflito encenado em nosso
texto remete a O milagre de Natal, portanto, ocorre, sim: a professora, figura do "salva-
um episódio histórico conhecido e registrado nos manuais de história: ,,guerra dor providencial", senão do "messias", tÍaz a paz. Mas essapaz não passa pela
a
das escolas" na Terceira República. Não se faz evasãonum vitória de um dos dois campos em presença: ela se realiza através da fusão clos
outro mundo.
o conto clássico, além disso, se apresenta como um universo autônomo, contrários que se declina em diferentes níveis.
que não obedece a regras comuns: as princesas podem dormir Essa estrutura geral leva a negligenciar a dimensão propriamente ideológica
cem anos, os mor-
tos podem ressuscita4 as vassouras voarem e as abóboras se do conflito para considerar somente o princípio de uma superação dos contrários
transformarem em
carruagens. Nada disso no texto de Tournier: eventos e personagens na unidade recuperada. Todas as oposições parecem postas para serem anuladas.
respeitam
escrupulosamente as leis do mundo real. Nenhum milagre, mas
o simples tra- Uma vez trazida à luz essa configuração, podemos escolher uma grade de
vestimento de uma professora em papai Noel. se os moradores leitura para interpretá-la.
da aldeia, ver-
dadeiros tipos sociais, lembram o esquematismo das figuras
do conto, a profes-
cujo comportamento é, no fim das contas, bastante desnorteador _
se
apresenta como um personagem relativamente complexo.
A leitura produtioa
Por fim, ao passo que os contot com o auxírio de marcas como
as apóstro-
fes, as repetições ou as fórmulas convencionais, frequentemente
Recorde-se que os textos de Tournier (entre os quais le Roi des Aulnes e
põem em cena
sua origem oral, nosso texto não contém nenhum discurso reportado Vendredi ou Les Limbes du Pacifique) representam uma nova orientação literá-
e faz a
opção por um nível de língua médio. os nomes próprios, próximos
ria depois do período do "nouueau roman"i um retorno aos relatos tradicionais,
do trocadi-
lho ("Pouldreuzic" ,embora existindo no mundo ."u1, mais providos de desafios filosóficos. A obra do autor se caracteriza, ademais,
',poudre aux yeux,,,
pela recorrência de figuras fantasmáticas e de cenários imaginários bem cir-
"poeira nos olhos") ou de ressonância simbólica ("sra.".roa,
oiselin,, [,,passarinho,,]
cunscritos. Escolheremos, assim, ler esse texto de um ponto de vista filosófico e
evoca a pomba portadora dapaz), introduzem uma dimensão
humorística, se-
numa perspectiva psicanalítica.
não irônica, bastante insólita nos contos de fadas.
. Leitura filosófica: impasses da modernidade
"La Màre NoêI" é, portanto, um conto bastante particula4, que poderíamos
qualificar de "deslocad o" .É o que a análise das estruturas vai Entre as oposições que estruturâm o texto/ há, como se viu, a da razáo e
nos confirmar.
do sagrado. Ela se manifesta no nível da enunciação (o texto oscilando entre o
gênero realista e o conto de fadas) e no nível da história (em que se enfrentam o
A forma como expressão: o desejo de racionalismo positivista dos leigos e a fé religiosa do partido clerical).
fusão
Essa ideia de um fratura consecutiva ao enfraquecimento do sentimento re-
vimos qug conforme às leis do gênerq o relato se apoiava numa oposição
ligioso está no âmago da definição da "modernidade". A partir do momento em
nítida, que dividia os personagens em dois campos: os ,,radicais,,
e os clericais. uma que o homem, pensando o mundo, o põe à distância, ele o coloca como exterior
leitura mais atenta mostra, contudq que a divisão religiosa não
constitui longe a si mesmo. Se a razão lhe permite melhor compreender o real, o únculo ínti-
disso a única oposição do texto. Graças à sra. oiselin, de fatq -
se reconciliaram
- mo que o unia à natureza se distende. É essa constatação que explica que se faça
Énsinar líteratura 167
,t, ,r^ t- .tr-^^.,
nidade é sempre percebida como divórcio, fragmentação. com ela, entramos diferenças, exprime claramente o medo da alteridade. O mundo sonhado por
num mundo em que a unidade se dissolveu, em que o todo cedeu lugar à au- Tournier é um mundo sem divisões e sem conflitos, um mundo do mesmo, onde
tonomia das partes. Diante disso, a literatura busca trazer, com nostalgia e sem nada distingue o eu dos outros. Trata-se de recuperar a felicidade perdida da
certezat uma resposta ao caos: ela tenta, com oS meios de que dispõe,
restituir fusão original, de retornar aos tempos arcaicos da indistinção em que a criança
um fundamento unitário e racional aos fragmentos dispersos do mundo' O tex- e a mãe eram um só.
;t '"'!#'i','floli,l,jlii;i'i,ti,i;T.".x,'§ll;l[lj1x"?,i],'í;,i;fiY,ii
to infantil das clivisões que estruturam o mundo se deixa ler também no alegre
POIT QL/E ESTUDÁR LITERATURA?
' tArt en tlúorie et en action, op. cit., p. 105. Para quem prefere a formttlirção ntais
radicirl de F. Verniet a arte (logo a literatura) permite-nos apenas "escapitr tlas k'is
dir aclaptrrção passiva ao meio", desempenhanclo assim um papcl csscrrcial nit lrottti-
164 PoR euE EsruDÁR LITERÁTuÀÁ?
Por um lado, a distância entre o contexto de escrita e os contextos de A literatura, pela liberdade que a funda, exprime conteúdos diversos,
recepção tem como efeito "despragmatizx" o conteúdo. Por outro, o essenciais e secundários, evidentes e problemáticos, coerentes e con-
contrato de leitura, ficcional e literário, impede de considerar as obras traditórios, que frequentemente antecipam os conhecimentos vindou-
como discursos de "primeiro grau". O sentido expresso é sempre per- ross. Em cada época, textos estranhos e atípicos nos mostrarn (ou nos
cebido com relativa distância. lembram) que o ser humano continua sendo um universo com vasta
extensão a explorar.
O terceiro interesse dos estudos de letras é solicitar, reforçando-as,
nossas capacidades de análise e de reflexão. Que nos inclinemos sobre
os sentidos veiculados (hermenêutica) ou sobre o dispositivo formal
que os produz (retórica), a leitura literária supõe um trabalho ativo e
dinâmico sobre o texto2.
Em quarto hgar, a literatura favorece a liberdade deiuízo- Num plano
geral, como o notava Kant, o sentimento estético nos remete a nosso
estatuto de sujeitos livres3. No que se refere à literatura propriamente
dita, vimos que por causa do privilégio concedido à representação, o
leitor é sempre levado a um trabalho intelectual para chegar à ideia,
que nunca é ôbvia ela só pode ser inÍerida daquilo que se lê. Dessa ma-
neira, o leitor conserva certa liberdade com relação ao sentido. Shus-
terman lemrazáo quando afirma que "a verdadeira potência metaética
e especificamente literária de uma obra é [...] sua existência no seio
de uma instituição cuja razá,o de ser é a prática hermenêutica livre"a.
Mas é preciso acrescentar que essa "ptâtica hermenêutica livre" não
se explica exclusivamente pela instituição: ela só é possível por conta
da pluralidade de conteúdos estruturalmente inscritos na obra literária.
I Como o nota C. Elgirç "[a] contribuição cognitiva [da literatura] pode consistir em au-
mentar o repertório conceitual que temos, em afinar seu poder de distinguir, em aguçar sua
t--apaciclade de reconhecer, sintetizar, reorganizar etc." (Comprendre: l'art et la science, art.
cit.. p. 65-66).
:! A satisfação experimentada diante de uma obra de arte ou de um espetáculo natural s Esse saber não conceitual é, como o nota M. Kunder4 tão importante quanto o saber
1ão ó restringida pelo objeto, mas depende inteiramente do sujeito. Ora, a possibilidade científico: "Não podemos [...] julgar o espírito de um século exclusivamente segundo suas
clc julgar sem determinações externas é a própria definição da liberdade. O que existe de
ideias, seus conceitos teóricos, sem levar em conta a arte e, especialmente, o romance. O
urrivcisal na relação estética é a faculdade de julgar livremente. A famosa fórmula "é belo século XIX inventou a locomotiva, e Hegel estava convencido de ter apreendido o próprio
acluilo que agracla universalmente sem conceito" pode, então, ser entendicla como "univer- espírito da história universal. Flaubert clescobriu a imbecilidade. Ouso clizer que aqui está
a maior descoberta cle um século tão orgulhoso de sua razão científica" (M. Kundera, L'ÁrÍ
snlmcntr:, é beto aquilo que agrada sem conceito".
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