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Disciplina: Gramática tradicional:

morfossintaxe (LET 202)

Professora: Glenda Milanio

Belo Horizonte
08 mar. 2016
História da gramática
tradicional

Material elaborado pela Profª Drª Sueli Coelho (FALE/


UFMG)
Introdução
 Dado que a linguagem é a mais admirável
aquisição humana, é natural que ela seja
objeto de especulação desde a mais
remota antiguidade.

 Nas mais antigas civilizações, identificam-


se, ainda que de forma bem elementar,
indícios de uma ciência da linguagem.
Introdução
 Na Bíblia (cf. Gênesis, 1, 5, 8, 10), há
referência aos nomes dados à criação.

 Na Índia, floresceram preciosas ideias


gramaticais: a decifração dos textos poéticos
míticos ou religiosos de uma língua morta
(sânscrito = língua perfeita) originou a
gramática de Panini.

 Na Antiguidade Clássica, as especulações


filosóficas dos gregos constituíram a base da
gramática tradicional.
Introdução
 O estudo da lingua(gem) é, portanto, tão
antigo quanto as civilizações.

 Antes, porém, de delimitar seu objeto de


estudo e de dotar-se de métodos
próprios, passou por diversas fases, ditas
preparatórias da Linguística Moderna: (i)
fase da gramática; (ii) fase da filologia; (iii)
fase do comparativismo.
Contexto histórico
 A disciplina gramatical surge na época
helenística (momento de transição entre
o esplendor da cultura grega – período
helênico – e o desenvolvimento da
cultura romana).

 Nessa época, o que se busca é transmitir


o patrimônio literário grego,
privilegiando-se o exame das grandes
obras do passado.
Contexto histórico
 O objetivo da transmissão é “oferecer os
padrões da linguagem dessa obras
consideradas excelentes, padrões que
contrastam com os da linguagem corrente,
contaminada de barbarismos.” (NEVES, 2002,
p. 49)

 A gramática surge, então, como um esforço


de preservar a língua modelar a ser seguida,
a partir da análise de textos literários não
corrompidos.
A gramática grega
 O que veio a constituir-se como gramática
tradicional (GT) origina-se em Platão e
Aristóteles.
 Entretanto, as primeiras especulações
gregas sobre a linguagem não foram
propriamente gramaticais, mas filosóficas
 relação entre o pensamento e a
palavra: existe uma relação natural entre a
palavra e a coisa ou a nomeação é
arbitrária? (polêmica: natureza x uso)
A gramática grega
 Os embates filosóficos e políticos entre a
sofística e Platão determinaram as reflexões
sobre a linguagem.
 Sofistas  falar = propriedade do indivíduo
 falar = ser livre  poder persuasivo da
linguagem
 Platão  falar = nomear  “é distinguir-se
das coisas exprimindo-as, dando-lhes
nomes.” (KRISTEVA, 1969, p. 154)
A gramática grega
 PLATÃO  a denominação é questão
central da linguagem  Crátilo  diálogo
em que Crátilo, Hermógenes e Sócrates
discutem questões etimológicas: Crátilo
defende o estranhamento entre a palavra
e o objeto; Hermógenes discorda e afirma
que a denominação decorre do uso e
pede a opinião de Sócrates, que concorda
com Crátilo.
A gramática grega
 Para Platão, “o nome é também um
revelador da essência das coisas, porque
se lhes assemelha.” (KRISTEVA, 1969, p.
155)  naturalista  a palavra é uma
expressão do sentido de que está
carregado o objeto nomeado.
 Para Sócrates, mestre de Platão, falar
correto = denominar corretamente 
lexicologia-semântica.
A gramática grega
 Na sofística, a questão primordial da
linguagem não é a denominação, mas a justa
atribuição (= falar a verdade)  função
lógico-sintática
 Para os sofistas, o discurso deve ser eficaz
 desenvolvimento da retórica no âmbito
da sofística
 Eis a motivação histórica para, na Grécia, não
se ter desenvolvido uma consistente
teorização sobre a sintaxe como se deu com
a significação.
O legado de Platão e de Aristóteles
para a GT

 PLATÃO  distinguiu o substantivo do


verbo, como elementos básicos da
proposição  primeira distinção
gramatical das partes do discurso

 Abertura do caminho para uma


compreensão da linguagem como
representação do pensamento.
O legado de Platão e de Aristóteles
para a GT
 ARISTÓTELES  impulsionou a definição
das partes do discurso: separou “os
nomes (com três gêneros) dos verbos,
que têm a propriedade maior de
poderem exprimir o tempo, e das
conjunções.” (KRISTEVA, 1969, p. 161)
 Estabeleceu a distinção entre o sentido
de uma palavra e o sentido de uma
proposição  proposição afirma ou nega
um predicado ao seu sujeito
O legado de Platão e de Aristóteles
para a GT

 Aristóteles determinou ainda as


categorias gramaticais, que perduram até
hoje.
 Estudou também os tipos de nomes:
simples, compostos, e também o
transporte para uma coisa de um nome
que designa uma outra: metáfora,
metonímia...
O legado dos estoicos

 Esses filósofos gregos, ainda sob a égide


da lógica, começaram a delinear a
fundamentação da gramática tradicional, a
partir dos estudos de etimologia.
 Para eles, a linguagem se origina
naturalmente da alma dos homens 
toda palavra contém uma verdade
(étymon)  o papel do filósofo é buscá-la
O legado dos estoicos
 Foram os estoicos os grandes
propulsores das pesquisas etimológicas 
processos irracionais e arbitrários
 Foram eles ainda que distinguiram as
categorias gramaticais secundárias
(número, gênero, voz, modo, tempo e
caso) e lhe atribuíram essa nomenclatura
 Discutiram também o problema filosófico
das regularidades na língua (= analogia)
O legado dos filólogos de
Alexandria
 Alexandria, com sua bibliotecas e museus,
era o centro cultural do mundo, onde se
concentravam os sábios gregos.
 Com a decadência literária (séc. III a.C.),
iniciou-se um período de estudo mais
objetivo da linguagem, pautado pelo
interesse pela interpretação e reconstrução
da antiga literatura  a tais estudos deram
o nome de gramática, abrangendo o
interesse geral pelas obras escritas.
O legado dos filólogos de
Alexandria
 Os gramáticos alexandrinos representam,
portanto, a consolidação da passagem para
um terreno gramatical, específico e
determinado, das considerações sobre a
linguagem, que se vinham fazendo no terreno
da filosofia da língua antiga.
 Os filólogos de Alexandria fixaram na
tradição gramatical o “erro clássico” 
precedência da língua escrita e seleção de
uma determinada variedade linguística como
a melhor
O legado dos filólogos de
Alexandria

 Neste período, em lugar da polêmica


anterior entre natureza e uso, aparece
outra mais ou menos correlata: anomalia
x analogia.
 A questão passou do campo filosófico
para o gramatical e à anomalia se opôs a
analogia ou tendência niveladora da
língua.
O legado de Dionísio da Trácia
 Dionísio da Trácia (170-90 a.C.) foi um dos mais
conhecidos professores de gramática de
Alexandria.
 Esses profissionais, denominados de gramáticos,
eram sábios meticulosos e professores
conscienciosos que ensinavam às novas
gerações o já difícil idioma de Homero.
 Para ele, a gramática é a arte de escrever: “saber
empírico da linguagem dos poetas e dos
prosadores.”
O legado de Dionísio da Trácia
 “Ele deu à gramática uma forma que, por
muito tempo, foi definitiva, e cujos traços
fundamentais ainda hoje podem ser
reconhecidos em muitas obras
gramaticais do Ocidente.” (NEVES, 2002,
p. 52-52)
 É graças a ele que se tem a “primeira
descrição ampla e sistemática publicada
no mundo ocidental” (LYONS, 1979, p. 12)
O legado de Apolônio Díscolo
 Apolônio Díscolo, o mais importante
gramático de Alexandria, foi quem elaborou
a primeira sintaxe ao estudar a língua grega.

 Em Apolônio, “a sintaxe abarca todos os


níveis, uma vez que a língua é considerada
uma série de elementos relacionados, e a
sintaxe é vista como o conjunto de regras
que regem a síntese dos elementos.”
(NEVES, 2002, p. 63)
A gramática em Roma
 Os romanos, preocupados sobretudo
com a elaboração de uma retórica,
construíram sua gramática sob o modelo
grego e chegaram ao conhecimento da
ciência gramatical por um fato casual:
Crates de Malos veio como embaixador
do rei Átalo e permaneceu em Roma por
algum tempo. Começou a dar aulas de
língua e literatura grega, o que causou
grande admiração entre os romanos.
A gramática em Roma
 Crates deu a conhecer em Roma a
famosa polêmica da analogia e da
anomalia e os romanos logo passaram a
aplicar os conhecimentos gregos em seu
próprio idioma.
 Varrão, discípulo de Crates, aplicou os
princípios da gramática grega ao latim,
estabelecendo, à moda do mestre,
distinção entre o latim clássico e o vulgar
 esboço de uma teoria normativa
A gramática em Roma
 Varrão foi ainda a fonte principal para o
conhecimento do que os antigos
entendiam por analogia e anomalia,
atuando como mediador na questão: a
língua exprime a regularidade do mundo,
mas ela própria possui irregularidades.
 Quintiliano, outro gramático latino, ficou
célebre por examinar a categoria de
casos, distinguindo entre ablativo e dativo.
A gramática em Roma
 Donato (séc. IV da nossa era) escreveu a
célebre obra Sobre as partes da oração
arte menor e procedeu a uma minuciosa
descrição das letras, que se tornou um
verdadeiro tratado de fonética.
 É com Prisciano que a gramática latina
chega ao seu apogeu. Foi o primeiro na
Europa a elaborar uma sintaxe inspirada
nas teorias lógicas dos gregos.
A gramática em Roma
 A “idéia de Prisciano é equilibrar as
contribuições da morfologia e da sintaxe
no estudo gramatical, pois a verdadeira
compreensão do enunciado depende
tanto das categorias morfológicas das
suas partes como da sua função sintática.”
(KRISTEVA, 1969, p. 179)
 A gramática de Prisciano tornou-se o
modelo de todos os gramáticos da Idade
Média.
Os estudos gramaticais na Idade
Média
 Na Idade Média, mereceram acolhida as
gramáticas de Donato e Prisciano. Elas se
esqueceram da sintaxe, fato que vinha
desde Dionísio.
 Quando o latim se dialetava rumo às
línguas românicas, a convenção
permaneceu em escrever na forma
clássica antiga do latim  o erudito
medieval estudava apenas o latim clássico
Os estudos gramaticais na Idade
Média
 O erudito medieval via no latim clássico a
forma logicamente normal da linguagem
humana  posterior composição da
gramática geral (= gramática que pretende
demonstrar que a estrutura das várias
línguas, especialmente do latim,
compreende cânones de lógica válidos
universalmente)  Grammaire générale et
raisonnée de Port Royal (1660)
Os estudos gramaticais na Idade
Média
 No fim da Idade Média, por influência do
Cristianismo, que derrubou a barreira
entre povos cultos e bárbaros, começa o
interesse pelas línguas populares (os
vulgares).

 À defesa das línguas nacionais soma-se a


preocupação de elaborar gramáticas
apropriadas às suas especificidades.
Os estudos gramaticais na Idade
Média
 A defesa da língua nacional é
acompanhada por um ataque contra o
latim, considerado língua artificial.
 “As bases do latim como língua mãe são
abaladas e o interesse desloca-se para as
línguas nacionais, nas quais se continua a
procurar um fundo comum, natural ou
universal, uma língua vulgar e
fundamental.” (KRISTEVA, 1969, p. 201)
Os estudos gramaticais no
Renascimento
 O Renascimento orienta definitivamente
o interesse linguístico para o estudo das
línguas modernas.

 O latim continua a ser molde para o


pensamento dos outros idiomas, mas já
não é o único e a teoria pensada a partir
dele sofre modificações para se adaptar às
línguas vulgares.
Os estudos gramaticais no
Renascimento

 “Outro traço específico da concepção


linguística do Renascimento foi o
interesse pela retórica e por qualquer
prática de linguagem original, elaborada e
poderosa, que pudesse igualar as letras
clássicas ou até mesmo ultrapassá-las.”
(KRISTEVA, 1969, p. 205)
Os estudos gramaticais no
Renascimento
 O que marca mais profundamente a
concepção de linguagem do
Renascimento é que, nesse período, de
modo generalizado, ela se torna objeto de
ensino.
 As necessidades didáticas refreiam as
especulações medievais e forçam uma
reformulação da ciência greco-romana da
linguagem.
Os estudos gramaticais no
Renascimento
 A ciência da linguagem liberta-se das
disciplinas aferentes e, embora se baseie
nelas – na lógica principalmente –, deixa
de ser uma especulação para se tornar
uma observação.
 Surgem obras com objetivo pedagógico,
que não trazem nenhuma inovação
teórica, mas que se esforçam por
simplificar as regras da língua para serem
melhor compreendidas pelos alunos.
Os estudos gramaticais no
Renascimento
 “A preocupação de regulamentar a língua
é sentida tanto no plano político como no
retórico.” (KRISTEVA, 1969, p. 223)
 “O pensamento sobre a linguagem
encontra-se assim bloqueado: limita-se a
estabelecer os correspondentes formais
de um esquema lógico já estabelecido,
sem poder descobrir as novas leis que
regem as línguas modernas.” (Op. cit., p.
225)
Os estudos gramaticais no
Renascimento
 A saída para tal impasse é proposta pela
Gramática de Port Royal de Lancelot e
Arnauld  obra que, por dois séculos,
serviu de base à formação gramatical e
que explica os fatos partindo do
postulado de que a linguagem, imagem do
pensamento, exprime juízos e que as
diversas realizações que se encontram nas
línguas são iguais a esquemas lógicos
universais.
Considerações finais
 A gramática tradicional configura o
primeiro tipo de estudo linguístico
sistematizado.

 O teor normativo e pedagógico que


perpassa a gramática tradicional reflete de
modo coerente o contexto histórico em
que foi criada e os objetivos para os quais
foi concebida.
Considerações finais

 “A tradição gramatical (...) traz em si a


soma de vinte e três séculos de tradição
e contradição, à qual se acumulam as
contradições da atualidade, decorrentes
de tentar adaptar à tradição secular as
construções da Linguística Moderna.”
(MATTOS E SILVA, 2002, p. 31)
Referências
 BORBA, Francisco da Silva. Introdução aos
estudos linguísticos. São Paulo : Editora Nacional,
1932.
 KRISTEVA, Júlia. História da linguagem. Lisboa,
1969.
 MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Tradição
gramatical e gramática tradicional. São Paulo :
Contexto, 2002.
 NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática:
história, teoria e análise, ensino. São Paulo:
Editora da UNESP, 2002.

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