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Universidade Federal de Minas Gerais


Faculdade de Letras

Ana Paula Cordeiro Lacerda Franco

ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA EM REDAÇÕES COM NOTA


MÁXIMA NO ENEM/2018: uma abordagem semiolinguística

Belo Horizonte – MG
2020/2
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Ana Paula Cordeiro Lacerda Franco

ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA EM REDAÇÕES COM NOTA


MÁXIMA NO ENEM/2018: uma abordagem semiolinguística

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para o
grau de bacharel em Estudos Linguísticos:
Linguística do Texto e do Discurso.

Orientador: Prof. Dr. Jairo Venício Carvalhais


Oliveira

Belo Horizonte – MG
2020/2
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Dedico este trabalho aos meus alunos, é para


eles toda minha sede de saber e esforço. Todas
as leituras, todas as madrugadas de escrita,
todas as vitórias acadêmicas levadas para a sala
de aula existem para que, juntos, possamos ir
mais longe. Afinal, já dizia Malala: “Um livro,
uma caneta, uma criança e um professor podem
mudar o mundo”.
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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus: meu criador, a fonte de força, a energia suprema, o dono do tempo e
da minha vida.
Agradeço à minha mãe: amor da minha vida, a mulher das mulheres, a parceira, o grande
incentivo, a maior das maiores.
Agradeço ao meu irmão: o companheiro de sangue, o motivador, o apaziguador.
Agradeço ao meu esposo: o ombro amoroso, o acolhimento diário, o suporte dos
suportes, o exemplo de marido, meu coração.
Agradeço aos meus amigos Guilherme, Fernanda, Anna Carolina, Hellen, Letícia,
Michaela, Daniel, Eduardo, Maria Fernandina, Judson, Maria Eduarda, Paulo, Larissa, Shirlene,
Bárbara, Marcelo: a luz, a energia, o encorajamento, o aprendizado, o exemplo.
Agradeço ao Professor Jairo Carvalhais: poço de compreensão, de inteligência, de
carisma, de cuidado, de afeto; um profissional raro, um docente incomparável, um grande
mestre.
Agradeço à UFMG: o lugar dos sonhos e das realizações, a morada dos estudos e da
transformação, o palco da ciência e da humanidade, o melhor lugar para ser o melhor de si.
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“É a linguagem que permite ao homem pensar e agir. Pois não há ação sem pensamento, nem
pensamento sem linguagem.”

Patrick Charaudeau
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RESUMO

Segundo Charaudeau (2019 [2008]), aquele que argumenta vale-se de uma convicção que visa
à persuasão de outrem, com a finalidade inquestionável de modificar seu comportamento.
Assim, sendo a argumentação, então, uma prática essencial entre os indivíduos, tal habilidade
é exigida na prova de produção escrita do maior processo seletivo para ingresso nas
universidades do Brasil: o ENEM. Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho tem como
objetivo apresentar uma pesquisa que analisa, à luz da Teoria Semiolinguística do Discurso
(Charaudeau, 2005, 2007, 2019 [2008]), a construção da encenação argumentativa em redações
com nota máxima no ENEM/2018, buscando caracterizar nesses textos o funcionamento do
dispositivo argumentativo e os procedimentos discursivos, semânticos e etóticos colocados em
cena pelos sujeitos escritores. Do ponto de vista metodológico, trata-se de uma pesquisa
documental, de natureza qualitativa e interpretativista. Os resultados apurados evidenciam a
existência de uma encenação retórica nas redações analisadas, revelando, entre outros aspectos,
como os mecanismos propostos pela Teoria Semiolinguística podem contribuir para o
aprimoramento da produção escrita em sala de aula e, mais especificamente, para uma reflexão
sobre as múltiplas faces do processo argumentativo no gênero textual denominado “Redação
do Enem”.

Palavras-chave: Redação do Enem; Teoria Semiolinguística; Encenação argumentativa.


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ABSTRACT

According to Charaudeau (2019 [2008]), those who argue draw on a conviction that aims to
persuade others with the unquestionable purpose of modifying their behavior. Thus, given that
arguing is an essential practice among individuals, such skill is demanded at the writing exam
of the largest selection process for admission in Brazilian universities: the ENEM. On that
assumption, this work intends to present a research that analyses, under Charaudeau’s (2005,
2007, 2019, [2008]) Semiolinguistic Discourse Theory, the construction of argumentative
scenarios in essays that were awarded the highest grade on the 2018 ENEM, aiming to
characterize in these texts the functioning of the argumentative device and the discourse,
semantic and ethotic procedures used by the subjects as writers. From a methodological point
of view, it is a documental research of qualitative and interpretative nature. The results have
shown the existence of a rhetorical enactment in the analyzed essays, revealing among other
aspects how the mechanisms proposed by the Semiolinguistic Theory can contribute to the
improvement of written productions in the classroom and, more specifically, to a reflection on
the multiple faces of the argumentative process in the genre “ENEM essay”.

Keywords: ENEM essay; Semiolinguistic theory; Argumentative scenario.


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LISTA DE FIGURAS E QUADROS

FIGURA 1: AS CINCO COMPETÊNCIAS DA PROVA DE REDAÇÃO DO ENEM ............................................. 22

FIGURA 2: A RELAÇÃO TRIANGULAR DA ARGUMENTAÇÃO .................................................................. 41

FIGURA 3: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO/RECEPÇÃO DO ATO DE LINGUAGEM .......................................... 50

QUADRO 1: TEMAS COBRADOS NAS REDAÇÕES DO ENEM - 1998 A 2020 .............................................. 24

QUADRO 2: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 01 - INTRODUÇÃO .................. 53

QUADRO 3: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 02 - INTRODUÇÃO .................. 53

QUADRO 4: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 03 - INTRODUÇÃO .................. 54

QUADRO 5: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 04 - INTRODUÇÃO .................. 55

QUADRO 6: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 05 ........................................... 56

QUADRO 7: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 01 - DESENVOLVIMENTO I ...... 58

QUADRO 8: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 02 - DESENVOLVIMENTO I ...... 58

QUADRO 9: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 03 - DESENVOLVIMENTO I ...... 59

QUADRO 10: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 04 - DESENVOLVIMENTO I .... 60

QUADRO 11: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 05 - DESENVOLVIMENTO I .... 61

QUADRO 12: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 01 - DESENVOLVIMENTO II... 61

QUADRO 13: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 02 - DESENVOLVIMENTO II... 62

QUADRO 14: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 03 - DESENVOLVIMENTO II... 63

QUADRO 15: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 04 - DESENVOLVIMENTO II... 63

QUADRO 16: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 05 - DESENVOLVIMENTO II... 64

QUADRO 17: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 01 - CONCLUSÃO .................. 66

QUADRO 18: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 02 - CONCLUSÃO .................. 68

QUADRO 19: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 03 - CONCLUSÃO .................. 69

QUADRO 20: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 04 - CONCLUSÃO .................. 69

QUADRO 21: ANÁLISE DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA NA REDAÇÃO 05 - CONCLUSÃO .................. 70


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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 10
2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE GÊNEROS, ESCRITA E REDAÇÃO DO ENEM ....... 12
2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE GÊNEROS TEXTUAIS/DISCURSIVOS ....................... 13
2.2 A ESCRITA NO AMBIENTE ESCOLAR: HISTÓRIA E PERSPECTIVAS ............................... 18
2.3 A REDAÇÃO DO ENEM COMO GÊNERO TEXTUAL ............................................................ 22
2.3.1 A REDAÇÃO DO ENEM E SEU CONTEÚDO TEMÁTICO ................................................... 24
2.3.2 A REDAÇÃO DO ENEM E SUA ESTRUTURA COMPOSICIONAL ..................................... 27
2.3.3 A REDAÇÃO DO ENEM E SEU ESTILO DE LINGUAGEM ................................................. 28
3. A TEORIA SEMIOLINGUÍSTICA E OS ESTUDOS SOBRE ETHOS .......................................... 33
3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEMIOLINGUÍSTICA ........................................... 33
3.2 O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO NA SEMIOLINGUÍSTICA ............................................ 36
3.3 O MODO ARGUMENTATIVO DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO ..................................... 38
3.3.1 A ORGANIZAÇÃO DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA .............................................. 42
3.3.1.1 ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA E OS PROCEDIMENTOS SEMÂNTICOS ................ 42
3.3.1.2 ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA E OS PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS ............... 43
3.3.1.3 ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA POR MEIO DA CONSTRUÇÃO DO ETHOS .......... 45
4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ...................................................................................... 47
4.1 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA E SELEÇÃO DO CORPUS .......................................... 47
4.2 PERCURSO DE ANÁLISE DOS DADOS .................................................................................... 48
5. ANÁLISE DOS DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ................................................... 49
5.2 ANÁLISE DA SEÇÃO DE “INTRODUÇÃO” DAS REDAÇÕES ............................................... 53
5.2 ANÁLISE DA SEÇÃO DE “DESENVOLVIMENTOS” DAS REDAÇÕES ............................... 58
5.3 ANÁLISE DA SEÇÃO DE “CONCLUSÃO” DAS REDAÇÕES ................................................. 67
6. CONCLUSÃO .................................................................................................................................. 73
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 77
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1. INTRODUÇÃO

A linguagem humana, independentemente da maneira como tenha sido originada, surgiu


da necessidade de organizar, alinhar e construir práticas sociais. Ao longo dos séculos, nós a
aprimoramos e a articulamos a partir das nossas demandas comunicacionais, transformando-a
em um diferencial entre os seres vivos. Nesse percurso, muitas foram as formas de interação
construídas, e uma delas, tal como destaca Charaudeau (2019 [2008]), sempre despertou
fascínio entre os humanos: a argumentação. Prova factual dessa afirmação é sua origem: na
Grécia Antiga, mais especificamente na Sicília do século V antes de Cristo. Segundo Emediato
(2001), acredita-se que, nessa época, a retórica teria surgido e se desenvolvido, passando,
inclusive, a integrar a educação grega e a ocupar significativo papel no bojo político, na gestão
das cidades e no contexto jurídico da Grécia. Sedimentando-se com relevância, a prática, então,
passa a ser definida como “a arte da eloquência e o estudo desta corresponde ao estudo do
discurso e das técnicas utilizadas para persuadir, manipular ou convencer o auditório”
(EMEDIATO, 2001, p. 160), ou o que hoje nós denominamos de argumentação.
Assim, de indiscutível importância social, essa habilidade humana passou a compor os
textos escritos de diversos vestibulares do Brasil, por meio dos quais os candidatos ingressam
nas universidades. Entre esses testes, encontra-se o ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio,
no qual é exigida a elaboração de uma prova de redação, cujo conteúdo deve ser desenvolvido
nos limites de um texto dissertativo-argumentativo. Com tal panorama em vista, a busca por
aprimorar esse tipo de escrita tornou-se recorrente, e muitas são as técnicas, dicas e estruturas
disponibilizadas nas escolas, nas salinhas de redação, nos canais do Youtube e na internet de
forma geral, as quais objetivam oferecer ao estudante uma fórmula para produzir esse tipo de
texto.
Nesse sentido, embora muitas sejam as metodologias desenvolvidas – para alunos – a
fim de que uma redação “perfeita” seja elaborada, raros são os materiais voltados para a
capacitação do profissional docente em relação à produção exigida pelo ENEM. Em geral,
faltam conteúdos embasados em repertórios teóricos consistentes, capazes de oferecer ao
professor de Língua Portuguesa parâmetros efetivos de ensino acerca das possibilidades de
elaboração de um texto dissertativo-argumentativo. Menos ainda são encontradas análises
relacionadas à projeção de imagens de si no espaço textual-discursivo das redações, aspecto de
natureza essencialmente argumentativa que ajudaria outros escritores a produzir uma
argumentação mais clara, pontual e persuasiva.
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Levando em consideração esses apontamentos e, atuando há alguns anos como


Professora de Redação no Ensino Médio e no Pré-vestibular, fui mobilizada a investigar, por
meio de teorias linguísticas, diferentes estratégias argumentativas construídas por candidatos
cujas redações obtiveram nota máxima no ENEM. Ainda que a presente pesquisa não seja de
natureza aplicada, acredito que os resultados obtidos neste trabalho podem, em alguma medida,
contribuir para o ensino da produção escrita em sala de aula e, mais especificamente, para uma
reflexão sobre as múltiplas faces do processo argumentativo em redações.
Partindo dos apontamentos sinalizados, o presente trabalho tem como objetivo geral
apresentar os resultados de uma pesquisa que analisa, à luz da Teoria Semiolinguística do
Discurso, a construção da encenação argumentativa em redações com nota máxima no
ENEM/2018, procurando caracterizar, nesses textos, os procedimentos semânticos, discursivos
e etóticos colocados em cena pelos sujeitos escritores na busca da persuasão.
Como mencionado, o objeto de estudo deste trabalho diz respeito à análise da encenação
argumentativa materializada em textos que alcançaram nota máxima (1000) na prova de
Redação do ENEM. Essa escolha se deu em virtude da qualidade textual apresentada por tais
produções escritas, o que é comprovado, obviamente, pela nota que obtiveram junto à banca
corretora e, também, pela análise realizada pelo O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a qual foi divulgada junto a esses textos no material
intitulado “A redação no ENEM 2019: cartilha do participante”. Nessas produções textuais,
nota-se que o alto desempenho dos candidatos foi efetivado porque seus textos sinalizaram
pleno domínio da norma-padrão da língua portuguesa, atenderam com eficácia à estrutura
dissertativa argumentativa, demonstraram o emprego variado, pertinente e legítimo de
repertório sociocultural, atestaram correta conexão entre as macro e micro partes do texto e
apresentaram, ao final, uma proposta de intervenção completa, concreta e construída a partir do
respeito aos direitos humanos.
Com relação aos procedimentos metodológicos, destacamos que o estudo empreendido
configura-se como uma pesquisa de natureza documental no que diz respeito aos dados
coletados/selecionados para a investigação. No tocante à forma de análise do corpus, trata-se
de uma pesquisa de caráter predominantemente qualitativo e de base interpretativista, tendo em
vista a exploração de características linguístico-discursivas que não podem ser descritas e
interpretadas apenas sob o prisma quantitativo, por exemplo.
Para alcançar o objetivo geral previamente delineado, a análise foi dividida em duas
etapas. Na primeira, organizamos os parágrafos das redações em três seções: (i) Introduções;
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(ii) Desenvolvimentos; (iii) Conclusões. Em seguida, cada parágrafo foi segmentado em


unidades informacionais menores (representadas por orações ou por períodos sintáticos).
No que diz respeito à sua organização, a presente monografia encontra-se dividida em
04 (quatro) capítulos, além da introdução e das considerações finais. Na introdução, são
apresentados o tema da pesquisa, as justificativas relacionadas ao objeto de investigação e o
objetivo geral do trabalho O segundo capítulo destina-se à exposição de considerações teóricas
sobre gêneros, escrita e redação do ENEM. O terceiro capítulo, por sua vez, dedica-se à
apresentação de conceitos basilares da Teoria Semiolinguística, tais como contrato de
comunicação, modo argumentativo de organização do discurso e procedimentos semânticos,
discursivos e etóticos envolvidos na encenação argumentativa que perpassa as trocas
linguageiras. No quarto capítulo, são descritos, de forma sucinta, os parâmetros metodológicos
utilizados para a seleção do corpus e para o cumprimento das análises previstas. Na sequência,
no quinto capítulo, a monografia apresenta a análise dos dados, com destaque para os processos
que envolvem a encenação argumentativa em redações que obtiveram a nota máxima no
ENEM/2018. Por fim, nas considerações finais, são retomados e discutidos alguns pontos
relevantes verificados ao longo da pesquisa.

2. CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE GÊNEROS, ESCRITA E REDAÇÃO DO


ENEM

O segundo capítulo tem por objetivo apresentar, de forma concisa, considerações


teóricas que inauguram a presente pesquisa. Inicialmente, na subseção 2.1, apresentamos os
pressupostos gerais relativos ao conceito de gêneros textuais/discursivos, levando em conta os
estudos de Bakhtin (1997 [1979], 2006 [1929]), Charaudeau (2004) e Marcuschi (2010). Na
sequência, na subseção 2.2, discorremos sobre a história da escrita no ambiente escolar e suas
perspectivas a partir do século XVIII até a contemporaneidade, sob o viés de Bunzen (2006).
Em seguida, na subseção 2.3, a partir “[d]A redação no ENEM 2019: cartilha do participante”
(2019), das teorias de Bakhtin (1997 [1979]) e do trabalho de Prado e Morato (2016),
procuramos descrever alguns pontos centrais da redação do ENEM. Em 2.3.1, 2.3.2 e 2.3.3,
apresentamos os aspectos que caracterizam tal prática como um gênero discursivo, embasando-
nos nas perspectivas de Bakhtin (1997 [1979]), Paulinelli e Fortunato (2016) e Prado e Morato
(2016).
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2.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE GÊNEROS TEXTUAIS/DISCURSIVOS1

A linguagem humana, independentemente da maneira como tenha sido originada, surgiu


da necessidade de organizar, alinhar e construir práticas sociais. O homem, mesmo em épocas
remotas, compreendia o quanto preciso era, por meio de gestos, grunhidos e símbolos em rochas
isoladas, estabelecer significados no meio que o cerca. Aprimorando esse processo
comunicativo, a palavra, resultado mais elaborado da linguagem antes da pré-história,
potencializou a interação entre os indivíduos, já que permitiu nomear, classificar e padronizar
elementos da sociedade. A partir, então, da oralidade, métodos de registro começaram a tomar
forma, foram aperfeiçoados, compartilhados e ganharam o aspecto do que, hoje, é denominado
escrita. Nesse sentido,

a escrita faz de tal modo parte da nossa civilização que poderia servir de definição
dela própria. A história da humanidade se divide em duas imensas eras: antes e a partir
da escrita. (…). Vivemos os séculos da civilização da escrita. Todas as nossas
sociedades baseiam-se sobre o escrito. A lei escrita substitui a lei oral, o contrato
escrito substituiu a convenção verbal, a religião escrita se seguiu à tradição lendária.
E, sobretudo não existe história que não se funde sobre textos (HIGOUNET, 2003, p.
10).

À vista disso, organizando-se em diferentes configurações comunicacionais - desde a


antiguidade clássica (século V a. C), quando, por exemplo, Platão classificou os gêneros
literários da época em épicos, dramáticos e líricos, ou, quando mais tarde, Aristóteles propôs a
sistematização dos gêneros no âmbito da retórica (gêneros judiciários, deliberativo e epidíticos),
até os últimos anos -, a escrita foi investigada e teorizada, o que originou, no século passado,
relevantes estudos sobre texto e gêneros textuais dos quais se tem conhecimento hoje.
Por volta de 1960, surgiram os primeiros estudos acerca da linguística textual na Europa,
e no Brasil, as discussões iniciais envolvendo esse recorte foram constatadas na década de 1970.
Nesse período, inicia-se uma fase de pesquisa cunhada de “transfrástica”, modelo que se baseia
na análise das possíveis relações entre as frases a partir de determinados conectivos; o foco
dessas correntes teóricas “era descrever os fenômenos sintático-semânticos presentes nos
enunciados” (SEGATE, 2010, p. 01). Segundo Silva (2012), nesse panorama linguístico,

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A terminologia utilizada na conceituação de gêneros apresenta algumas variações, tais como “gêneros
discursivos”, “gêneros do discurso”, “gêneros textuais”, “gêneros de texto”, a depender da corrente teórica a
que se filiam alguns estudiosos do assunto. Neste trabalho de pesquisa, não temos como objetivo opor ou
contestar nomenclaturas, o que nos leva a considerar, de forma intercambiável, os termos gênero textual e
gênero discursivo.
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ganhavam destaque os elementos de coesão, ou seja, os termos que promoviam a conexão entre
as frases. Contudo, após diversos estudos no campo, os primeiros problemas começavam a
surgir: como analisar uma frase em que existe uma determinada conexão, mas não há a presença
de um conectivo? Em razão desse e de outros diversos questionamentos, a necessidade de
ampliação das pesquisas para outros vieses da língua se tornou cara.
À época, também, constatou-se que se carecia do conhecimento do falante para que as
relações entre as partes fossem compreendidas, ou seja, “o resultado disso foi uma mudança de
objetivo: em vez de analisar o texto no lugar da frase, passou-se a vislumbrar a necessidade de
algo maior, de uma gramática de texto (...)”. (SILVA, 2012, p. 15)
Nesse horizonte, além de terem sido colocadas em voga as inúmeras constatações das
teorias gerativistas de Noam Chomsky, a ideia de texto ainda era abstrata e minimamente
estabelecida (padronizada), gerando inúmeras divergências conceituais entre os estudiosos e
levando-os a uma perspectiva mais profunda e específica, como as pesquisas sobre a teoria do
texto.
No bojo dessa teoria, extrapolava-se a noção de frase, texto e falante, indo ao encontro
das pluralidades textuais, em que condições essas são elaboradas e de que maneira podem ser
compreendidas, além de envolver, de forma significativa, âmbitos da análise do discurso:

Esses caminhos novos trouxeram aos estudos da linguagem mudanças significativas


de posicionamento e não somente acrescentamentos: deixou-se de ver a língua como
lugar de representação apenas de significados objetivos, para considerá-la como meio
convencional de agir no mundo (veja-se a pragmática dos atos de linguagem); passou-
se a considerar a linguagem, por natureza, como um instrumento de argumentação e
de interação e não somente de informação (vejam-se os estudos de Ducrot, as teorias
da argumentação, a sociolingüística interacional ou a análise da conversação);
concebeu-se o texto (ou o discurso) e não mais a frase como unidade de sentido,
tomando-o como o objeto dos estudos lingüísticos e condicionando a descrição das
frases ao exame satisfatório dos mecanismos de organização textual (vejam-se as
teorias do texto e do discurso em geral e os escritos precursores de Bakhtin)
(BARROS, 1999, p. 184)

Após todo esse longo percurso de análise que atravessou a micro, a macro e a
extraestrutura da língua: frase, texto e contexto, respectivamente, trabalhos de referência
desenvolvidos por Dolz e Schneuwly (1999), Bronckart (1999) e Marcuschi (2000) ancoraram-
se em uma nova perspectiva de análise da materialidade linguística atrelada ao seu uso no
cotidiano. Sob esse prisma, os gêneros textuais, mesmo com diferentes abordagens para esses
pesquisadores em razão de “sua conceituação e vinculação a uma prática social, sociorretórica,
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discursiva e/ou escolar (...)” (BORGES, 2012, p.119), foram profundamente estudados e
inseridos em novos panoramas de análise, investigação e discussão teórica.
Os gêneros textuais, então, naquele momento e até em recentes conceituações, são
classificados como eventos comunicativos por meio dos quais traços linguísticos estruturam-se
e padronizam-se, considerando tanto as restrições impostas por uma determinada esfera de uso
da língua como também as intencionalidades discursivas e o jogo de imagens projetado por
autor e leitor - via textos - durante as interações humanas.
Os incontáveis gêneros textuais - com suas características minimamente estabelecidas,
já que são mutáveis por natureza - estão altamente atrelados às práticas de comunicação entre
os homens, conformando-se ao sabor das ações em comunidade desses indivíduos, os quais
podem, em razão disso, ser extintos, reestruturados, recriados, reproduzidos de infinitas formas
e em diferentes meios, pois “[...] são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade
humana [...]” (BAKHTIN, 1997 [1979], p. 262).
Para chegar à tal concepção, Mikhail Bakhtin, conceituado filósofo da linguagem do
século XX, primeiramente analisa as teorias vigentes na época: as saussurianas. Assim, se em
meados de 1910, por meio de seus discípulos Charles Bally e Albert Sechehay, a conceituação
linguística estruturalista de Ferdinand de Saussurre (1995 [1916]) – objetivismo abstrato -
ganha notoriedade no campo da linguagem, “pois acreditava-se, naquele momento, que a língua
pertencia ao passado, isto é, a descrição era histórica, diacrônica e os registros escritos eram
considerados o ponto alto para o estudo do idioma.” (PARREIRA, 2017, p. 1025), Bakhtin as
refuta. Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin (2006 [1929]) discute acerca do
objetivismo abstrato, afirmando que essa corrente, em detrimento da pluralidade de
significações, prioriza a unicidade da palavra. O resultado de tal processo, então, é uma
sequência de enunciações fechadas, com significado próprio e orientadas para uma mesma
direção. Nessa linha de pensamento, a língua é dada como um produto acabado, deslocada do
fluxo comunicacional e repassada de geração em geração.
Contudo, para Bakhtin (2006 [1929]), a língua encontra-se atrelada a esse fluxo de
comunicação e caminha juntamente a ele; a língua não é, inclusive, transmissível, uma vez que
se constitui de um ininterrupto processo evolutivo. Ainda, os indivíduos, como um todo, “não
recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente de transmissão verbal; ou
melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência [...] começa a
operar.” (BAKHTIN, 2006 [1929], p. 109). Assim, a vertente defendida no cerne do
objetivismo abstrato, então, segundo o autor russo, distancia-se da questão evolutiva da língua
e de suas inúmeras funções dentro do bojo social. Com tais perspectivas em vista, Bakhtin
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elabora uma nova concepção de língua fortemente atrelada ao uso, a qual, segundo Marina
Yaguello, pesquisadora que assina a introdução de Marxismo e filosofia da linguagem,
“valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não individual: a fala
está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre
ligadas a estruturas sociais” (BAKHTIN, 2006 [1929], p. 7), contrapondo-se à visão teórica em
voga postulada por Ferdinand de Saussure (1995 [1916]). Para Bakhtin (2006 [1929]), só é
possível analisar a linguagem enquanto fenômeno capaz de situar os sujeitos que dela fazem
parte em um determinado meio social.
Para mais, enquanto o objetivismo abstrato, segundo Bakhtin (2006 [1929]), é apontado
como uma linha de pensamento que desconsidera a enunciação e o ato de fala como sendo
individual, Yaguello destaca que o autor dá à fala um papel protagonista, classificando-a como
um instrumento de dominação. Nesse sentido, o teórico russo se interessa pelas ideologias que
os signos traduzem e os conflitos no interior desse mesmo sistema, inclusive os de classe,
demarcados pelo uso que se faz dessa habilidade: opressão, adaptação ou resistência à
hierarquia. Para ele, a língua é o meio pelo qual são expressas as relações e as lutas em
sociedade, representando tanto um instrumento quanto um material.
Mantendo uma visão amplificada sobre o estudo da linguagem, o autor ainda vai de
encontro às perspectivas abordadas pelo subjetivismo idealista - preconizadas por Humbolt e
Vossler – corrente que desconsidera a interação verbal e focaliza a linguagem como forma de
representação do que é encontrado na atividade mental dos indivíduos. Tal concepção, ainda,
aponta o ato de fala como individual e a defesa da enunciação monológica como basilares da
teoria. Entretanto, para Bakhtin (2006 [1929]), o ato de fala, ou seu resultado, a enunciação,
não podem ser considerados individuais - analisados a partir das condições psicofisiológicas do
falante - pois a enunciação pertence ao social, assim como as atividades mentais a serem
expressas.
À luz desses apontamentos, nota-se que, se nos primeiros estudos acerca da frase e do
texto, a compreensão de uma mensagem era voltada para o nível da palavra, para o interior de
uma construção textual, a ideia da estruturação da comunicação por meio dos gêneros textuais
configurou-se como uma alternativa capaz de transpor tais práticas, as quais, estanques e
reduzidas, apresentavam produções linguísticas deslocadas do humano enquanto ser social,
interacional e dinâmico.
Partindo dessas considerações, Bakhtin (1997 [1979]) traz para o centro de suas
discussões a questão dos “gêneros do discurso”, os quais são por ele caracterizados como
enunciados que apresentam determinadas condições e objetivos em cada produção linguística,
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abarcando um tema em específico e um estilo de linguagem, o que é lapidado pela escolha


lexical, construção de frases e seleção de elementos gramaticais da língua de cada indivíduo.
Além disso, o autor os determinou como estruturas “relativamente estáveis de enunciados”,
mostrando, de forma muito consciente, a plasticidade e a volatilidade desse modo de
comunicação, independentemente dos âmbitos sociais nos quais são aplicados e em quais
épocas são empregados. A teoria do pensador russo, então, foi basilar para diversos outros
estudos acerca do tema, para além de possibilitar uma profunda reflexão sobre as definições da
língua em uso, seja ela oral ou escrita.
No bojo dessas discussões, Patrick Charaudeau (2004), linguista francês, enfatiza que a
definição de gênero é um exercício complexo (perspectiva teórica a qual ele, inclusive,
denomina de “gêneros situacionais”), já que, segundo o próprio autor, os gêneros são
constituídos por inúmeros componentes de ordens distintas e oriundos de incontáveis práticas
da esfera sociocomunicativa, o que interfere, significativamente, em suas composições.
Conforme o teórico francês, tal definição passa, por vezes, pelo viés da ancoragem social, outras
pela natureza comunicacional, em alguns momentos pelas atividades linguageiras, e,
frequentemente, pelas características formais dos textos produzidos cotidianamente. De acordo
com Charaudeau (2004), tais aspectos não podem ser considerados de forma isolada para
classificar os gêneros, ao contrário, precisam ser articulados de maneira a possibilitar uma
mínima definição do tema proposto. Segundo Lordes (2011), o estudioso propõe que a
dimensão social seja o princípio para a análise da questão, tendo em vista que possibilitará um
cenário para o reconhecimento dos elementos os quais constituem o fato linguageiro,
influenciando no funcionamento de outras dimensões. Em síntese, pode-se afirmar que
Charaudeau “levanta a hipótese de que o domínio de prática social tende a regular as trocas, e,
consequentemente, a instaurar as regularidades discursivas.” (LORDES, 2011, p. 01)
Ainda no tocante a esse assunto, Luiz Antônio Marcuschi (2010), em seu trabalho
intitulado Gêneros textuais: definição e funcionalidade, evoca as teorias bakhtinianas e traça
sua perspectiva acerca dos gêneros, denominando-os de “gêneros textuais”. Reforçando a ideia
de que são eventos comunicativos significativamente ligados à vida cotidiana – cultural e social
– do ser humano, o autor destaca a complexidade de defini-los, embora, minimamente,
descreva-os como

uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que


encontramos em nossa vida diária e que apresentam características
sociocomunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e
composição característica. (MARCUSCHI, 2010, p. 23 – grifos do autor)
18

Para mais, Marcuschi (2010) reforça a relevância da elaboração dos gêneros textuais em
sociedade no que diz respeito à padronização das interações linguísticas, mesmo que se
caracterizem por estruturas com representativo grau de maleabilidade e de plasticidade. Ainda,
o linguista promove um significativo destaque ao surgimento de gêneros modernos, ligados às
novas tecnologias e mídias em funcionamento, constatando a intrínseca relação desses eventos
comunicativos às práticas rotineiras dos grupos sociais.
Desse modo, vê-se como o recorte apontado encontra-se no campo da complexidade,
tendo em vista a riqueza linguística - em constante reconstrução - que constitui cada um dos
gêneros textuais em uso. Contudo, as constatações feitas representam um importante norteador
para analisar emergentes estruturas originadas nos últimos anos, sejam elas prosaicas ou
avaliativas, como a redação do ENEM, objeto de estudo deste trabalho.

2.2 A ESCRITA NO AMBIENTE ESCOLAR: HISTÓRIA E PERSPECTIVAS

De acordo com Bunzen (2006), do século XVIII até parte do XX, priorizou-se o ensino
de gramática tradicional e de leitura em detrimento da prática da escrita, visando à
decodificação e à memorização de conteúdos literários. À época, o ensino da “composição”, tal
como eram denominados os textos que os alunos elaboravam, “estava reservado praticamente
para as últimas séries do chamado ensino secundário, nas disciplinas de retórica, poética e
literatura nacional” (BUNZEN, 2006, p. 142). A escrita, nesse período, conforme destaca o
autor, consistia na produção de textos a partir de figuras ou títulos pré-determinados, cuja base
eram textos-modelo apresentados pelo docente. Como exemplo desse cenário, existiam os
manuais de retórica, os quais apontavam uma classificação dos gêneros literários que deveriam
ser usados em sala de aula, compostos por pontos positivos e negativos de estilo, além de
conterem técnicas de como esquematizar ideias. Com isso, tal como enfatiza Bunzen (2006),
objetivava-se que o aprendizado fosse efetivado pela exposição do aluno à boa linguagem,
visava-se ao “escrever bem”, de forma que os estudantes produzissem seus textos similarmente
às obras clássicas da época. O foco era dado no “produto final, sendo o texto entendido como
tradução do pensamento lógico. Logo, quem pensa bem escreve bem.” (BUNZEN, 2006, p.
142), e, embora esse método de ensino tenha sido extinto em 1890, ainda se mantém nas salas
de aula da atualidade.
Para mais, essa mesma metodologia, conforme endossa Bunzen (2006), era encontrada
de forma implícita na “Antologia Nacional”, a qual influenciou, por décadas, a língua materna
ensinada no Ensino Médio e as avaliações para ingresso em cursos superiores. O implícito em
19

questão dava-se pois, nesse material, não existiam atividades didáticas para os estudantes ou
orientações para os docentes, diferentemente do que se pode observar nos livros didáticos da
contemporaneidade. Entretanto, as literaturas brasileira e portuguesa, em destaque na obra,
eram basilares para o ensino da norma culta, o que era feito por meio de exercícios de leitura,
análise sintática, recitação e composição. Bunzen (2006), então, sintetiza que havia algum
ensino de escrita durante essa época, mas que esse não se dava de maneira formal e sistemática
como se vê hoje nas escolas brasileiras.
Foi entre os anos 1960 e 1970, conforme destaca Bunzen (2006), que algumas
modificações começaram a ocorrer no ensino de redação: a criatividade dos alunos começou a
ser mobilizada, e os textos lidos eram utilizados como estímulo para a escrita dos estudantes.
(ROJO; CORDEIRO, 2004, apud BUNZEN, 2006, p. 144). Ainda assim, o ensino da produção
textual não recebia seu devido protagonismo, pois o texto não era utilizado como mecanismo
de ensino-aprendizagem, mas sim como objeto de uso, tal como ressalta o autor.
Na década de 1970, de acordo com Bunzen (2006), ocorreu um aumento significativo
de livros didáticos para o Ensino Médio que destacavam o ensino de redação, o qual se deu em
virtude LDB nº 5692/71, criada para modificar os objetivos, os procedimentos didáticos e as
metodologias para o ensino de língua materna. Nessa perspectiva, as produções textuais
elaboradas “pelos alunos passaram a ser vistas como atos de comunicação e expressão”.
(BUNZEN, 2006, p. 144); dessa vez, o foco era o estudo dos códigos comunicacionais e não o
saber sobre a língua.
Em 1977, houve, segundo Bunzen (2016), um movimento para que o ensino de redação
fosse consolidado no Ensino Médio: a promulgação do Decreto Federal nº 79.298, o qual
passava a estabelecer que os vestibulares deveriam, obrigatoriamente, exigir que seus
candidatos realizassem uma prova escrita de redação em língua portuguesa. A partir disso, as
escolas começaram a dar foco nesse requisito, introduzindo essa disciplina na grade curricular
do Ensino Médio.
Bunzen (2016) destaca que, a partir de então, iniciam-se os questionamentos sobre a
real efetividade do ensino de redação no ambiente escolar, cujo principal objetivo era o de
indicar os desvios gramaticalmente cometidos pelos alunos, ou seja, a metodologia de ensino
docente priorizava - quase que exclusivamente - os aspectos normativos. Com isso, os textos
eram produzidos sem dialogar com outras produções ou leitores, já que até citações, com o uso
de aspas, por exemplo, eram proibidas de serem utilizadas pelos alunos, tornando a prática da
escrita um mero exercício escolar. Consequência dessa realidade, segundo o autor, é a prática
recorrente, hoje, da elaboração de dissertações - estrutura majoritária no Ensino Médio - pelos
20

alunos, cujo conteúdo é baseado em um tema proposto pelo docente e corrigido por monitores
através de comentários voltados, sobretudo, para a estrutura geral do texto e as pontuações
gramaticais. Em síntese, a finalidade dessa produção é disciplinar, tendo em vista que os
estudantes escrevem para que as exigências dos professores sejam atendidas ou que possam ser
aprovados nos vestibulares pretendidos, segundo Bunzen (2006).
Com esse cenário em vista, os professores, já na década de 1980, passaram a conviver
com a expressão “produção de textos”, o que não se tratava de uma simples troca de
nomenclatura, mas de uma tentativa de rever as produções textuais que os alunos elaboravam,
ressalta Bunzen (2006). Esses textos eram vistos como um “não-texto”, pois, além de não
apresentar, em muitos casos, determinados padrões de textualidade, suas condições de produção
revelam produtos meramente escolares.” (BUNZEN, 2006, p. 149). Nesse momento, então, o
ensino de produção de textos começa a valorizar o próprio processo de elaboração desses textos,
de forma a ampliar a concepção de linguagem e as práticas de letramento na escola, afirma
Bunzen (2006). Em síntese, “A preocupação volta-se muito mais para os contextos de produção
e de recepção dos textos (quem está falando, com quem, com que objetivos, de que forma etc)”.
(BUNZEN, 2006, p. 149).
No final de 1980 e início de 1990, a concepção de texto passa a ganhar uma nova
interpretação, sendo esse fenômeno concebido como uma unidade de ensino/aprendizagem,
(REINALDO, 2001 apud BUNZEN, 2006, p. 151), pois, anteriormente, esse conceito era
restrito a análises dos aspectos de textualidade e minimamente voltado para as questões de
intencionalidade e relação usuário/interlocutor. Contudo, de acordo com Bunzen (2006),
mesmo com essa nova visão sobre o assunto, e os alunos escrevendo uma variada gama de
textos (cartas, telegramas, bilhetes etc), essas produções continuaram a centrar-se na estrutura
composicional, no lugar de explorarem as condições de produção, de circulação e de recepção.
A partir dos PCN de Ensino Fundamental (1998), dos PCN+ (2002) e dos PCNEM
(1999), o texto passa a ser adotado como uma “unidade de ensino e os gêneros como objeto de
ensino.” (BUNZEN, 2006, p. 153). Nesse sentido,

quando falamos em tomar os gêneros como objetos de ensino, estamos apostando em


um processo de ensino-aprendizagem de língua materna que permita ao sujeito-aluno
utilizar atividades de linguagem que “envolvam tanto capacidades linguísticas ou
linguístico-discursivas, como capacidades propriamente discursivas, relacionadas à
apreciação valorativa da situação comunicativa e como, também, capacidades de ação
em um contexto” (ROJO, 2001, apud BUNZEN, 2006, p. 155)
21

Contudo, de acordo com Bunzen (2006), mesmo a perspectiva de gêneros levantando


novas questões acerca da escrita, o dialogismo que os caracteriza é, frequentemente,
abandonado na escola, tendo em vista que “o discurso não é nem criado pelo aluno nem
entendido pelo professor como um enunciado produzido em situação de linguagem específica.”
(BUNZEN, 2006, p. 157). Segundo o estudioso, falta aos docentes a criação de situações
comunicativas em que os alunos possam aplicar os gêneros textuais de maneira plural e efetiva,
por exemplo, por meio de temáticas e cenários caros às vivências estudantis.
Conforme destaca Bunzen (2006), para além do que foi exposto, hoje, principalmente
nas escolas particulares, esse ensino de produção de textos se efetiva na chamada “aula de
redação”. Essa, muitas vezes, não é percebida como uma matéria que engloba,
concomitantemente ao ensino da escrita, o trabalho com a gramática e com a leitura, sendo
reduzida à produção de narrações, descrições e, com mais frequência, dissertações, tal como já
ocorria há décadas. Os alunos da contemporaneidade focam na elaboração dos textos, mas,
frequentemente, negligenciam o trabalho pré e pós escrita, ou seja, a leitura de conteúdos
voltados para a construção do repertório sociocultural, a releitura dos próprios materiais
corrigidos para aprimorá-los e os estudos voltados para a norma-padrão, fundamentais para
promover formalidade e organização textual.
Segundo o autor, esse cenário é consequência da “pedagogia da fragmentação (Kleiman
& Moraes, 1999) que, em vez de favorecer a trans[inter]disciplinaridade, fragmenta as próprias
disciplinas escolares em pequenos blocos monolíticos” (BUNZEN, 2006, p. 139-140). No
Ensino Médio, conforme destaca o autor, cada docente torna-se especialista em um específico
recorte da disciplina a qual leciona, ensinando apenas uma parcela da gama de conteúdos que
compõe todas elas. Logo, não se sabe, então, quem é o responsável por integrar todas elas. Nas
escolas públicas, sobretudo, embora a disciplina de Redação seja oferecida por um professor de
Língua Portuguesa, a ideia da fragmentação permanece: aulas e cadernos são divididos pelos
conteúdos lecionados por esse mesmo docente, tendo o ensino da escrita um lugar de pouco
destaque na escola se comparado à prioridade dada ao ensino de gramática e de literatura.
Portanto, vê-se o quanto foi e continua sendo problemática a questão da prática da
escrita nas escolas brasileiras: se, nos séculos passados, esse ensino era quase nulo, hoje,
acontece de forma engessada - sobretudo sem o devido reconhecimento de sua importância - ,
para atender, na maior parte das vezes, à demanda do mercado, representada, em grande escala,
pelos vestibulares que ainda acontecem no país, pelas provas de concursos públicos e pela
própria existência do Exame Nacional do Ensino Médio. Assim, enquanto as instituições
escolares pouco valorizam o impacto social de um aluno escritor, nossos estudantes vão
22

perdendo, ao longo dos anos, a capacidade de se colocarem como cidadãos autônomos e críticos
por meio da língua(gem), sendo, muitas vezes, impedidos de dominar a multiplicidade de
gêneros textuais em uso capazes de modificar a realidade que os rodeia.

2.3 A REDAÇÃO DO ENEM COMO GÊNERO TEXTUAL

Segundo a obra denominada “A redação no ENEM 2019: cartilha do participante”,


elaborada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP),
em 2019, a prova de redação do ENEM consiste em uma avaliação que irá exigir a produção de
um texto escrito em prosa, de cunho estruturalmente dissertativo-argumentativo, na qual temas
de ordem social, científica, cultural ou política podem ser abordados. Nela, os aspectos a serem
avaliados relacionam-se a competências que devem ter sido desenvolvidas pelo candidato
durante os anos de estudo na escola básica, as quais estão elencadas na figura abaixo:

Figura 1: as cinco competências da prova de Redação do ENEM

Fonte: Brasil (2019, p. 8).

De forma mais específica, a competência 1, segundo a cartilha (Brasil, 2019), avalia o


domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa, o que abarca o conhecimento das
convenções da escrita, tais quais as regras de ortografia e de acentuação gráfica prescritas pelo
atual Acordo Ortográfico. Para mais, é exigido que o texto apresente fluidez de leitura, a qual
pode ser prejudicada ou beneficiada em virtude da construção sintática elaborada pelo escritor.
A competência 2, por sua vez, avalia a compreensão da proposta de redação, constituída
por um tema específico a ser desenvolvido dentro de um texto dissertativo-argumentativo; tal
23

competência trata-se, logo, da avaliação das habilidades integradas de leitura e de escrita do


candidato.
A competência 3 exige que o candidato selecione, relacione, organize e interprete
informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista apontado na tese.
Em outras palavras, é preciso que o texto possua, de forma clara, uma ideia a ser defendida e
os argumentos que comprovem a posição assumida pelo sujeito-escritor em relação ao tema
proposto na prova.
Já a competência 4 objetiva avaliar a estruturação lógica e formal entre as partes da
redação solicitada. A organização textual exige que as orações e os parágrafos estabeleçam
entre eles uma relação que proporcione a sequenciação coerente do texto e a interdependência
entre as perspectivas selecionadas pelo autor. Tal articulação é feita por meio da mobilização
dos recursos coesivos, os quais são responsáveis pelas relações de sentido elencadas ao longo
do texto.
Por fim, o quinto aspecto a ser avaliado na produção textual (competência 5) é a
apresentação de uma proposta de intervenção para as problemáticas apontadas no
desenvolvimento da redação. Além disso, é necessário, sobretudo, que essa proposta de
intervenção respeite os direitos humanos, ou seja, não é permitido ao escritor que valores como
cidadania, liberdade, solidariedade e diversidade cultural sejam rompidos.
Baseando-se nessas competências e após um treinamento durante semanas oferecido
pelos organizadores da prova, ao menos dois professores efetuarão a correção de cada texto, de
forma independente, sem que um tenha conhecimento da nota atribuída pelo outro. Os
avaliadores emitirão uma nota entre 0 e 200 pontos para cada uma das cinco competências
apontadas na figura 02, acima apresentada. O somatório desses pontos constituirá a nota total
de cada avaliador, a qual pode chegar a 1.000 pontos, e a nota final do candidato será a média
aritmética das notas totais estabelecidas pelos avaliadores.
Contudo, pode ocorrer, entre as notas atribuídas pelos corretores, alguma discrepância.
Isso se dá quando a nota total concedida por ambos ultrapassa a diferença de 100 pontos ou
caso seja apontada diferença superior a 80 pontos em qualquer uma das competências avaliadas.
Se isso acontecer, a produção textual será avaliada por um terceiro professor, e a nota final será
a média aritmética das duas notas finais que apresentarem maior aproximação. Entretanto, se a
discrepância permanecer, a redação, então, será avaliada por uma banca presencial constituída
por três professores, os quais atribuirão a nota final do participante.
Nesse sentido, embora a prova de redação no ENEM exija uma estrutura textual definida
e seja corrigida baseada em uma grade de correção fixa, cujo objetivo são notas pertinentes aos
24

conteúdos escritos e minimamente equivalentes entre os professores-avaliadores, muito se


discute se essas produções configuram-se como um gênero do discurso. Neste trabalho,
acreditamos que isso é um fato a partir das perspectivas teóricas de Bakhtin acerca do assunto
e de dados provenientes de pesquisa realizada com alunos da educação básica, os quais serão
apresentados em seguida.
Tal como mencionado no tópico 2.1 deste estudo, as teorias que abarcam discussões
acerca de gêneros textuais-discursivos não são recentes; no início do século passado, Mikhail
Bakhtin amplificou os estudos sobre gêneros do discurso, servindo de ponto de partida para
incontáveis pesquisas nos anos que o sucederam. Para Bakhtin (1997 [1979]), a língua efetiva-
se em tipos de enunciados relativamente estáveis, constituídos por três elementos indissolúveis:
o conteúdo temático (o tema sobre o qual se discorre), a estrutura composicional (a forma
assumida pelo texto para atender à demanda sociocomunicativa) e o estilo de linguagem
(seleção lexical, gramatical etc), que resultam das múltiplas exigências das instâncias sócio-
histórico-culturais. Logo, ao se pensar a língua como fenômeno que possibilita incontáveis
situações comunicativas, chega-se à conclusão de que ilimitados são também os gêneros
discursivos, em outras palavras “são as intenções, ou seja, parte das condições de produção dos
textos que determinam os usos linguísticos que originarão os gêneros.” (PRADO; MORATO,
2016, p. 209).
À luz dessas perspectivas, pode-se afirmar que a redação do ENEM é um gênero
discursivo, tendo em vista que, nas produções textuais resultantes do exame, identificam-se os
três aspectos elencados pelo teórico russo, de acordo com os argumentos expostos nas
subseções apresentadas a seguir.

2.3.1 A REDAÇÃO DO ENEM E SEU CONTEÚDO TEMÁTICO

É importante, inicialmente, segundo apontam Paulinelli e Fortunato (2016), elencar as


temáticas abordadas pelas provas de redação do ENEM desde sua inauguração até a última
edição - 1998/2020, respectivamente, para que o primeiro aspecto elencado por Bakhtin (1997
[1979]) para a constituição dos gêneros seja, ainda que de forma parcial, devidamente
identificado nos textos em voga. O quadro 01, a seguir, apresenta as temáticas levantadas pelo
Exame Nacional do Ensino Médio na prova de Redação no período de 1998 a 2020:

Quadro 1: temas exigidos nas redações do ENEM - 1998 a 2020


25

ANO TEMA DA REDAÇÃO – ENEM

1998 “Viver e aprender”

1999 “Cidadania e participação social”

2000 “Direitos da criança e do adolescente: como enfrentar esse desafio


nacional”

2001 “Desenvolvimento e preservação ambiental: como conciliar interesses em


conflito?”

2002 “O direito de votar: como fazer dessa conquista um meio para promover as
transformações sociais de que o Brasil necessita?”

2003 “Violência na sociedade brasileira: como mudar as regras desse jogo?”

2004 “Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de


comunicação?”

2005 “O trabalho infantil na realidade brasileira”

2006 “O poder de transformação da leitura”

2007 “O desafio de conviver com a diferença”

2008 “Como preservar a floresta Amazônica: suspender imediatamente o


desmatamento, dar incentivos financeiros a proprietários que deixarem de
desmatar ou aumentar a fiscalização e aplicar multas a quem desmatar?”

2009 “O indivíduo frente à ética nacional”

2010 “O trabalho na construção da dignidade humana”

2011 “Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado”

2012 “O movimento imigratório para o Brasil no século XXI”

2013 “Efeitos da implantação da Lei Seca no Brasil”

2014 “Publicidade infantil em questão no Brasil”


26

2015 “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”

2016
1ª “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”
aplicação

2016
2ª “Caminhos para combater o racismo no Brasil”
aplicação

2017 “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”

“Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na


2018
internet”

2019 “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”

2020 “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”

2020
ENEM “O desafio de reduzir as desigualdades entre as regiões do Brasil”
digital
Fonte: elaboração da autora

Logo, segundo Paulinelli e Fortunato (2016), ao observarmos os temas presentes no


Exame ao longo dos anos, vê-se claramente que o conteúdo temático da redação do ENEM é
enviesado por questões sociais, culturais, científicas ou políticas, as quais exigem capacidade
reflexiva e postura crítica do candidato para serem colocadas em cena, ratificando,
indiscutivelmente, o aspecto primeiro da classificação de gênero discursivo desenvolvido por
Bakhtin.
Contudo, é importante frisar que, para o autor russo, o tema não é somente o assunto
abordado pelo texto. Em outros termos, é possível afirmar que o conteúdo temático de um
determinado gênero engloba diferentes atribuições de sentido sobre um objeto transformado em
realidade pela enunciação, a partir de uma percepção ideologicamente constituída sobre o
mundo. Assim, levando-se em conta os pressupostos defendidos por Bakhtin (1997 [1979]), o
tema de um enunciado abarca também a situação de comunicação que lhe é constitutiva,
colocando em cena seus componentes sociais, históricos e interacionais que, em conjunto,
caracterizam as condições de produção dos gêneros do discurso.
27

2.3.2 A REDAÇÃO DO ENEM E SUA ESTRUTURA COMPOSICIONAL

A estrutura composicional é a segunda característica a ser analisada, a qual se refere à


organização geral dos enunciados, “determinada tanto pelo gênero quanto por outros fatores
das condições de produção do discurso” (PAULINELLI; FORTUNATO, 2016, p. 286). Tal
aspecto, segundo as autoras, abrange perspectivas como: em quantas partes um texto é dividido?
Que partes são essas? De que maneira se relacionam?
Como atesta a própria cartilha do participante (Brasil, 2019), a proposta de redação do
ENEM exige, há muitos anos, a elaboração de um texto dissertativo-argumentativo, o qual é
definido pelos organizadores como um

tipo de texto que demonstra, por meio de argumentação, a assertividade de uma ideia
ou de uma tese. É mais do que uma simples exposição de ideias; por isso, você deve
evitar elaborar um texto de caráter apenas expositivo, devendo assumir claramente um
ponto de vista. Além disso, é preciso que a tese que você irá defender esteja relacionada
ao tema definido na proposta. (BRASIL, 2019. p. 12)

Conforme destacam Paulinelli e Fortunato (2016), um texto dissertativo-argumentativo,


geralmente, compõe-se por uma introdução, em que se apresenta a tese que será defendida ao
longo do texto; um desenvolvimento, o qual se constitui por meio de argumentos que visem à
adesão do professor-avaliador à tese defendida pelo sujeito-autor, e uma conclusão, na qual se
ratifica a tese outrora defendida.
Entretanto, na redação do ENEM, especificamente, a conclusão deve apontar uma
“proposta de ação social capaz de promover mudanças na perspectiva em que se insere o
problema debatido. Essa proposta de intervenção, de ação na vida social, deve relacionar-se
com os argumentos desenvolvidos pelo candidato ao longo de seu texto.” (PAULINELLI;
FORTUNATO, 2016, p. 287). De acordo com a cartilha do participante (Brasil, 2019), além de
essa proposta ser concreta e exequível, ela deve respeitar os direitos humanos, pois, ao propor
medidas que minimamente busquem enfrentar o problema em voga, o sujeito-autor tem de
demonstrar práticas cidadãs.
Sob essa ótica, ao se constituir de uma estrutura previamente definida e exigir a proposta
de intervenção, a redação do ENEM configura-se como um texto de composição altamente
particular, atendendo, dessa maneira, ao segundo aspecto proposto por Bakhtin (1997 [1979])
para a constituição de um gênero do discurso: a estrutura composicional.
28

2.3.3 A REDAÇÃO DO ENEM E SEU ESTILO DE LINGUAGEM

O estilo, terceiro elemento estabelecido por Bakhtin para constituir os gêneros do


discurso, trata dos mecanismos lexicais, fraseológicos e gramaticais, “selecionados pelo
locutor, dentre todos os recursos disponíveis, por serem os mais adequados às condições de
produção do discurso, à finalidade da interlocução e ao suporte do gênero” (PAULINELLI;
FORTUNATO, 2016, p. 288). Segundo as autoras, todo gênero do discurso é dotado de estilo.
Alguns permitem uma flexibilidade maior no trabalho com essa característica, tais quais os
gêneros pertencentes ao domínio literário, por exemplo. Por outro lado, é possível observar um
menor grau de maleabilidade em outros gêneros, tais como documentos oficiais e formulários,
apenas para citar alguns. A análise que envolve o estilo de linguagem abarca, tal como destaca
Paulinelli e Fortunato (2016), ao menos três aspectos: os discursivos, os textuais e os
linguísticos.
Em primeiro lugar, de acordo com Paulinelli e Fortunato (2016), os aspectos discursivos
do estilo relacionam-se aos tipos de discurso selecionados para a construção de um enunciado:
argumentativo, dissertativo, narrativo, descritivo e injuntivo; à ancoragem (maneira pela qual o
autor se apresenta na produção textual, ao aplicar, por exemplo, de forma pessoal, pronomes e
flexões verbais referentes à 1ª pessoa, ou imprimindo a impessoalidade, de forma a ocultar a
sua voz, valendo-se da utilização da voz passiva ou de índice de indeterminação do sujeito); à
modalização discursiva ou à utilização de determinada maneira de dizer que pode amplificar ou
eufemizar uma informação, “ou então expressar/apagar a subjetividade do autor, ou seja,
mecanismos ou marcas linguísticas que permitem ao autor construir uma certa representação
de si mesmo para o leitor do texto” (KOCH; ELIAS, 2012 apud PAULINELLI; FORTUNATO,
2016, p. 288).
Após a explanação dessas características, vê-se como cada uma delas é perceptível nas
produções textuais resultantes das propostas de redação do ENEM. Primeiro, porque há dois
tipos de discurso2 previamente definidos pela banca para serem escritos pelo candidato: o
dissertativo e o argumentativo, recebendo, inclusive, nota zero o sujeito-autor que elaborar o
seu texto caso construa uma estrutura de texto diferente dessas; segundo, pois o uso da
impessoalidade é muito comum, ao se observar, por exemplo, redações nota 1000 divulgadas
nas cartilhas anuais do participante e presentes neste estudo; e terceiro porque expressões

2
Sobre a expressão “tipos de discurso”, vale esclarecer que tal conceito goza de uma flutuação terminológica na
área dos estudos do texto e do discurso, a depender, sobretudo, dos autores e das correntes teóricas utilizadas. Esse
mesmo conceito, por exemplo, pode ser denominado como “tipos de texto” (Marcuschi, 2010) ou como
“sequências textuais” (Adam, 2008).
29

linguísticas como “infelizmente” e “lamentavelmente” são usadas de forma ampla para,


respectivamente, acentuar afirmações ao longo das produções textuais.
Em segundo lugar, conforme destacam Paulinelli e Fortunato (2016), os aspectos
textuais, por sua vez, são apresentados por meio de mecanismos linguísticos - tais quais os
sintáticos, os morfológicos, os lexicais - que promovem a coesão e coerência entre as macro e
micro partes do texto -, de forma a proporcionar a progressão temática. Esses podem, então,
denotar modo, como “a princípio”, tempo, “nas últimas décadas”, ou, por exemplo, estabelecer
relações lógico-argumentativas, como através dos termos “portanto”, “contudo” etc, os quais,
segundo a cartilha do participante (Brasil, 2019), são denominados operadores argumentativos.
Esse panorama pode ser visualizado nas imagens abaixo:

Fonte: Brasil (2019, p. 35)

Fonte: Brasil (2019, p. 35)

Por fim, de acordo com Paulinelli e Fortunato (2016), os aspectos linguísticos referem-
se aos recursos lexicais compatíveis à situação de comunicação que, no caso do ENEM, devem
conter valor dissertativo e argumentativo;

a utilização e manutenção dos tempos verbais adequados para o gênero; a escolha do


registro formal ou informal; a escolha da variedade linguística adequada, o que
envolve tomar decisões sobre a necessidade de se aproximar ou se afastar das normas
urbanas e de prestígio no texto; a utilização das convenções da escrita, ou seja, da
pontuação, de maiúsculas e minúsculas, da correta ortografia, paragrafação, etc.
(KOCH; ELIAS, 2012 apud PAULINELLI; FORTUNATO, 2016, p. 288-289).

Todas essas especificações são observadas na prova de redação do ENEM ainda na


própria proposta, cujo conteúdo orienta o candidato à produção de um texto com tais exigências,
as quais são, recorrentemente, aplicadas, e que conformam tal enunciado, então, como um
gênero do discurso. Segue solicitação da proposta de redação do ENEM de 2019 para ilustrar a
afirmação:
30

A partir da leitura dos textos motivadores e com base nos conhecimentos construídos
ao longo de sua formação, redija um texto dissertativo-argumentativo em modalidade
escrita formal da língua portuguesa sobre o tema “Manipulação do comportamento do
usuário pelo controle de dados na internet”, apresentando proposta de intervenção que
respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione, de forma coerente e
coesa, argumentos e fatos para defesa de seu ponto de vista. (BRASIL, 2019, p. 30)

O panorama apontado vai ao encontro, segundo Prado e Morato (2016, p. 210), da


perspectiva teórica de Bronckart (1999), o qual

propõe um modelo de análise de textos, tentando explicar que operações psicológicas


estão por trás da produção textual, uma vez que, para nós (leitores e produtores de
textos), a produção textual está também a serviço do gênero discursivo, tal como na
proposta bakhtiniana. Para Bronckart, a ideia de texto, de tipos de discurso está
voltada para recursos linguísticos nas atividades sociais; ele entende os fatos
linguísticos como constitutivos da atividade social em que uma produção social pode
ser compreendida como um gênero, uma construção social que revela, mais ou menos
explicitamente, as interseções de dependências entre o contexto social e as produções
de linguagem.

A partir dessa ótica, infere-se, segundo os autores, que produzir textos implica a
realização de escolhas no que se refere à organização e seleção das unidades composicionais
que os constituem. Nessa lógica, conforme pontuam Prado e Morato (2016), o autor genebrino
endossa que a construção da materialidade textual organiza-se por meio de três níveis (ou
camadas sobrepostas): a infraestrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os
mecanismos enunciativos. A infraestrutura volta-se para o nível mais profundo, no qual se
encontram as operações que possibilitam não só a construção do plano geral do texto
(organização do conjunto e do conteúdo temático), como também a constituição dos tipos de
discurso e das sequências textuais.
Já o segundo nível proposto por Bronckart (1999) seria o que ele denominou de
mecanismos de textualização, os quais possuem a função de garantir a organização temática
dos textos, atuando como mecanismos de conexão, coesão verbal e coesão nominal. Por fim, o
terceiro nível, o dos mecanismos enunciativos, é responsável por manter a coerência pragmática
das produções, “o movimento das vozes do texto” (PRADO; MORATO, 2016, p. 211). Sob
esse viés, é por meio dos mecanismos enunciativos que se pode construir, segundo os autores,
“compromissos enunciativos, (julgamentos, preconceitos, declarações, crenças, etc.), isto é,
compromissos com os interlocutores do texto no que diz respeito à orquestração das vozes em
uma perspectiva pragmática.” (PRADO; MORATO, 2016, p. 211). Dessa forma, de acordo com
Prado e Morato (2016), se os estudos de Bakhtin (1997 [1979]) e Bronckart (1999) enaltecem
os fatos sociais na construção dos gêneros discursivos-textuais, pode-se pensar, então, nas
31

redações do ENEM como um fato social definido e delimitado, tal como será ampliado nos
parágrafos seguintes.
De maneira a buscar elucidar esse cenário, Prado e Morato efetuaram uma pesquisa com
um grupo de 50 alunos do Ensino Médio de duas escolas públicas de cidades de Minas Gerais.
A primeira parte dela consistia na aplicação de duas perguntas de múltipla escolha, cujas
respostas deveriam elucidar o que esses alunos compreendem do que seria um texto
dissertativo-argumentativo: 1) O que é um texto dissertativo-argumentativo em prosa? 2) O que
é uma redação do ENEM? a) um gênero b) um modelo de discurso c) uma maneira de escrever.
Os dados revelaram que, para a maioria dos entrevistados, a definição de texto dissertativo em
prosa não corresponde à de gênero (76%), entretanto a redação do ENEM, sim (72%). Desse
modo, nota-se que os futuros autores de redações da prova do ENEM, ao afirmarem que estão
trabalhando com gênero, ilustram uma perspectiva altamente relevante, tendo em vista que
estamos nos referindo àqueles que produzirão tal texto. São esses indivíduos que pensam sobre
o que e como será escrito e o público-alvo em questão; “sem uma concepção do que é uma
redação do ENEM, o aluno corre o risco de não conseguir desenvolver o que é pedido por esse
exame.” (PRADO; MORATO, 2016, p. 213).
Para além de conhecermos como os alunos concebem a prova de redação do ENEM, é
importante demonstrar como essas produções podem apresentar - ou não - um padrão em
específico, o qual será capaz de determinar o texto em questão como um gênero do discurso.
Nesse sentido, os pesquisadores verificaram, por meio de uma coletânea de 26 redações de
temáticas distintas do ENEM de alunos da 3ª série de uma mesma escola de Ensino Médio,
embora de turmas diferentes, os seguintes aspectos: I. Extensão das redações em parágrafos:
uma redação apresentou somente um parágrafo; 11 produções continham três parágrafos; 14
textos eram compostos por quatro parágrafos e somente uma produção estruturava-se por meio
de cinco parágrafos. Com isso em vista, nota-se a existência de um padrão mais ou menos
estável no que se refere à estrutura física - padrão estético - das produções textuais. Nessa
mesma seara, uma outra padronização foi verificada: a maioria dos parágrafos apresentavam
construções curtas, entre quatro e seis linhas.
Também ganhou destaque a abertura e o fechamento dos parágrafos elaborados pelos
alunos, os quais apresentavam formações lexicais aproximadas. A maioria dos parágrafos (96%
- excetuando o de introdução) foi iniciada com a aplicação de algum operador argumentativo.
A partir desse panorama, constatou-se que a utilização de operadores argumentativos nas
produções, ou seja, a capacidade de articulação linguística entre os parágrafos denota uma
relativa estabilidade. Por fim, também foi verificada, na maior parte das redações, a existência
32

de um número superior de períodos compostos aos simples, demonstrando, mais uma vez, uma
determinada estabilidade na construção dos textos como um todo. Então, ao se observar toda
essa análise, nota-se que as produções em voga ultrapassam o que a prova de redação do ENEM
exige: um aleatório texto dissertativo-argumentativo em prosa.
Ainda em conformidade com o que apresentam Prado e Morato (2016), o que também
torna a redação do ENEM um gênero textual é que a prova solicita ao candidato uma apreciação
crítica, um ponto de vista bem definido e defendido do início ao fim da produção textual, além
de propostas de intervenção para os problemas sociais por ele elencados, colocando-o como
protagonista de sua própria escrita e em cena sua posição de cidadão e ser social atuante por
meio da linguagem, ou seja, atende a uma determinada demanda comunicacional; trechos
apontados por Prado e Morato, nas produções colhidas pelos pesquisadores, demonstram
claramente isso.
Ainda, é possível perceber nos textos analisados “mais que um padrão estrutural, mas
também um padrão composicional de determinadas ocorrências lexicais (mesmos tipos de
verbos (ter, dever, existir) e advérbios (felizmente, infelizmente), por exemplo)” (PRADO;
MORATO, 2016, p. 217). Tal fato evidencia, novamente, que, embora a variação textual esteja
presente, essa é minimamente comprometedora, pelo contrário, são essas variações que
garantem a constituição do gênero e promovem a relatividade de sua estabilidade, assim como
aponta Bakhtin. Para o russo, não é possível pensar em gêneros como estruturas acabadas,
homogêneas, e isso também pôde ser observado nos textos analisados.
Por fim, mas não menos importante, quando se elabora a redação do ENEM para a banca
de redação que irá corrigi-la, busca-se colocar em evidência uma produção linguística que
atenda determinada demanda social, a qual, no caso da prova avaliativa, é a demonstração de
capacidade de escrita que garanta ingresso em uma universidade, por exemplo. Desse modo,
verifica-se que a produção do texto em questão aponta finalidade previamente definida,
característica fundamental dos gêneros discursivos, conforme endossa Bakhtin (1997 [1979]).
Logo, é justamente por todas essas questões que, neste trabalho, defende-se a redação do ENEM
como um gênero textual/discursivo.
33

3. A TEORIA SEMIOLINGUÍSTICA E OS ESTUDOS SOBRE ETHOS

O terceiro capítulo deste estudo visa à apresentação de conceitos basilares da Teoria


Semiolinguística de Análise do Discurso, levando em conta alguns trabalhos de Charaudeau
(2005, 2007, 2019 [2008]) e de autores que, em alguma medida, dialogam com essa vertente
teórica. O item 3.1 tece uma visão panorâmica da Semiolinguística, ao passo que o tópico 3.2
destina-se à exposição do conceito de contrato de comunicação. Em seguida, na subseção 3.3,
levando em consideração os estudos de Emediato (2001) e Charaudeau (2019 [2008]), são feitas
uma abordagem histórica acerca da origem da argumentação e uma apresentação do modo
argumentativo de organização do discurso. Em 3.3.1, discorremos sobre a organização da
encenação argumentativa, enquanto as subseções 3.3.1.1 e 3.3.1.2 cumprem a tarefa de
apresentar, de forma mais bem delineada, os procedimentos semânticos e discursivos que
envolvem esse fenômeno. Por fim, em 3.3.1.3, o conceito de ethos é acionado, tendo em vista
a importância dessa prova retórica na encenação argumentativa empreendida pelos sujeitos
escritores nas redações com nota máxima no ENEM/2018.

3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEMIOLINGUÍSTICA

Segundo Charaudeau (2005), o discurso insere-se em cenários que objetivam relacionar


os fatos de linguagem a outros fenômenos psicológicos e sociais: ação e influência, o que se
realiza por meio da intervenção de um sujeito, sendo ele próprio, psico-linguageiro. Nesse
sentido, o autor destaca que a linguagem comporta diferentes dimensões, definidas por ele como
cognitiva, psico-social e semiótica. A primeira delas, cognitiva, envolve “saber se há uma
percepção e uma categorização do mundo independentes da ação da linguagem, ou se tais
processos se realizam necessariamente através da linguagem.” (CHARAUDEAU, 2005, p. 12).
A segunda, psico-social, refere-se ao valor de trocas dos signos e ao valor de influência dos
fatos de linguagem. A terceira, por fim, semiótica, atrela-se à relação entre a construção de
sentido e a construção das formas. Logo, ainda que um linguista, um sociolinguista ou um
psicolinguista só trabalhem com uma ou outra das dimensões apontadas, a linguagem classifica-
se como multidimensional.
Contudo, segundo o autor francês, análises científicas exigem que sejam selecionadas
variáveis que determinem o objeto empírico para que sejam construídos conceitos e regras
compatíveis à sua análise. Nesse sentido, existem inúmeras teorizações relacionadas a
diferentes domínios ou a uma a outra dessas dimensões, o que demonstra a complexidade desse
34

campo disciplinar. Assim, com essa gama de possibilidades em vista, deve-se, então,
“relacionar entre si determinados questionamentos que tratam da linguagem - sendo uns mais
externos (lógica das ações e influência social), outros mais internos (construção do sentido e
construção do texto)” (CHARAUDEAU, 2005, p. 13). A partir disso, deve-se ressaltar, todavia,
que a articulação desses questionamentos ocorre em uma perspectiva linguística, em seu sentido
amplo. Se existe uma comunicação, é de uma comunicação em específico de que tratamos:
aquela que se efetiva por meio da linguagem verbal; se o sentido é construído, trata-se da
construção ocorrida pelas formas verbais, e se há elaboração de um texto, trata-se daquela a
qual dependerá de “ordenamento” do verbal.
Desse modo, a semiolinguística, na análise do discurso, pode ser definida como:
semiosis “o fato de que a construção do sentido e sua configuração se fazem por meio de uma
relação forma-sentido (em diferentes sistemas semiológicos)” (CHARAUDEAU, 2005, p. 13),
sob o comando de um sujeito interacional, com determinada influência social e em um
específico quadro de ação; linguística, de maneira a destacar que a matéria principal da forma
em questão são as línguas naturais. Assim, essa dupla articulação, na qual há a combinação de
suas unidades (sintagmático-paradigmática em diferentes níveis: palavra, frase, texto), impõe
um procedimento de semiotização do mundo diferente das demais linguagens.
Sob essa perspectiva, para que a semiotização do mundo se realize, é necessário que se
efetive um duplo processo: 1) de transformação: parte-se de um “mundo a significar” para um
“mundo significado”, sob a ação de um sujeito falante; 2) de transação: o qual “faz deste
“mundo significado” um objeto de troca com um outro sujeito que desempenha o papel de
destinatário desse objeto.” (CHARAUDEAU, 2005, p. 14).
Nesse viés, são quatro os tipos de operação concernentes ao processo de transformação:
1) a identificação: compreende a necessidade de apreensão, no mundo fenomênico, dos seres
materiais ou ideais, reais ou imaginários, de forma a conceituá-los e nomeá-los. Assim, tais
seres são transformados em “identidades nominais”; 2) a qualificação: refere-se à consciência
de que esses seres possuem propriedades e características que os discrimina, especificam-nos e
motivam a maneira como são. Logo, são transformados em “identidades descritivas”; a 3) ação:
nessa, vê-se que esses seres agem e sofrem a ação, inserindo-se em esquemas “de ação
conceitualizados que lhes conferem uma razão de ser, ao fazer alguma coisa. Os seres do mundo
são transformados em ‘identidades narrativas’” (CHARAUDEAU, 2005, p. 14); a 4) causação:
pois esses seres agem ou sofrem a ação em virtude de determinados motivos (humanos ou não
humanos) que os inserem em uma cadeia de causualidade. Assim, essa sucessão de fatos é
transformada em “relações de causualidade”.
35

O processo de transação, também, envolve quatro princípios: 1) de alteridade: é um


fenômeno de troca entre dois parceiros em todo ato de linguagem, os quais devem se reconhecer
como semelhantes (ter em comum universos de referência: saberes partilhados e finalidades:
motivações comuns) ou diferentes (já que o outro só é identificável na dissemelhança, além de
cada um desempenhar um papel particular: sujeito comunicante - aquele que produz um ato de
linguagem - e um sujeito interpretante - aquele que recebe e interpreta um ato de linguagem).
Nessa seara, então, cada um dos parceiros está engajado em um processo de reciprocidade, no
qual há o reconhecimento do outro, e o que é condição para a validade do ato de linguagem.
Tal princípio fundamenta o aspecto contratual de todo ato de comunicação, porque implica o
reconhecimento e a legitimação de maneira recíproca dos sujeitos comunicantes; 2) de
pertinência: nesse princípio, “os parceiros do ato de linguagem devem poder reconhecer os
universos de referência que constituem o objeto da transação linguageira.” (CHARAUDEAU,
2005, p. 15), ou seja, eles devem compartilhar, porém não exatamente adotar, os saberes
emergentes no ato de linguagem. 3) de influência: aquele que produz um ato de linguagem
objetiva atingir seu parceiro, independentemente se for para fazê-lo agir, afetá-lo de forma
emocional ou para induzir seu pensamento. Como consequência, do outro lado, o sujeito
receptor-interpretante tem consciência de que é alvo dessa influência. Esse cenário proporciona
a esse último a possibilidade de interação, embora obrigue os parceiros a considerarem a
existência de restrições à influência; 4) de regulação: está relacionado ao princípio da
influência, tendo em vista que toda influência pode corresponder a uma contra-influência. Esse
princípio engloba, de forma consciente ou não, aquilo que os parceiros conhecem sobre o ato
de linguagem do qual participam. Nesse sentido, para que a troca entre ambos não termine de
forma conflituosa ou até mesmo em confronto físico, os parceiros se valem da “regulação” na
seara das influências. Desse modo, eles buscam recorrer a estratégias que assegurem uma
mínima intercompreensão, sem a qual a troca não é efetivada. Tais estratégias estão inscritas,
então, no dispositivo sócio-linguageiro.
Sob tal ótica, os processos de transformação e de transação se realizam, então, a partir
de procedimentos diferentes, “embora sejam solitários um do outro, sobretudo através do
princípio de pertinência, que exige um saber comum, construído precisamente ao término do
processo de transformação.” (CHARAUDEAU, 2005, p. 16). É possível, inclusive, afirmar que
tal solidariedade é hierarquizada. Com efeito,

as operações de identificação, de qualificação, etc. do processo de transformação não


se fazem livremente. Elas são efetuadas sob “liberdade vigiada”, sob o controle do
36

processo de transação, segundo as diretivas desse último - o qual confere às operações


uma orientação comunicativa, um sentido. É sempre possível construir um enunciado
que mobilize as diferentes operações do processo de transformação. (CHARAUDEAU,
2005, p. 16)

Destarte, evidenciar a dependência do processo de transformação para com o processo


de transação corresponde a imprimir uma mudança de orientação nos estudos acerca da
linguagem. Assim, não se pode apenas se valer de operações de transformação de forma isolada,
haja vista ser necessário, também, considerá-las no quadro situacional colocado pelo processo
de transação, o qual é base para a construção de um “contrato de comunicação”.

3.2 O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO NA SEMIOLINGUÍSTICA

O duplo processo de semiotização proposto - com suas operações e princípios - é o que


Charaudeau (2005) denomina de postulado de intencionalidade, classificado por ele como
fundamento do ato de linguagem. Nessa perspectiva, sabe-se que um ato de linguagem
pressupõe uma intencionalidade dos parceiros de troca. Logo, tal ato dependerá da identidade
desses sujeitos, visará a uma influência e é portador de uma determinada proposição sobre o
mundo, realizando-se em um tempo e espaço específicos, o que é denominado de situação.
Sob tal panorama, ao serem aplicados os princípios de interação e pertinência, de modo
que um ato de linguagem seja válido, é necessário que os parceiros reconheçam o direito à fala,
um do outro, e que possuam saberes em comum. Ao mesmo tempo, segundo os princípios de
influência e regulação, tais parceiros valem-se também do uso de estratégias. Portanto, é
possível afirmar que a estruturação de um ato de linguagem abarca dois espaços: um de
restrições - o qual compreende as condições mínimas que possibilitam a validade do ato de
linguagem - e de estratégias - correspondendo esse “às escolhas possíveis à disposição dos
sujeitos mise-en-scene do ato de linguagem” (CHARAUDEAU, 2005, p. 18).
Na abordagem semiolinguística, o princípio da pertinência, além de implicar um saber
comum e um ato de reconhecimento recíproco por parte dos parceiros, inclui um conhecimento
prévio sobre o mundo e os comportamentos humanos. Essa realidade, então, leva-nos a afirmar
que o ato de linguagem se efetiva em um duplo contexto de significância: o externo e o interno
à sua verbalização. Isso determina dois tipos de sujeitos de linguagem:

os parceiros, que são os interlocutores, sujeitos de ação, seres sociais que têm intenções
- que chamamos de sujeito comunicante e sujeito interpretante; e os protagonistas, que
são os intra-locutores, os sujeitos de fala, responsáveis pelo ato de enunciação - os quais
37

chamamos de (sujeito) enunciador e (sujeito) destinatário. (CHARAUDEAU, 2005,


p.18, grifos do autor)

Dentro dessa lógica, o ato de linguagem é definido como oriundo de uma situação
concreta de troca entre sujeitos, a qual depende de intencionalidade e produz significações a
partir da interdependência de um espaço externo e de um espaço interno, propondo um modelo
de estruturação em três níveis:

• o nível situacional: refere-se aos dados do espaço externo, o qual também constitui o
espaço de restrições do ato de comunicação. É aqui que estão determinados a finalidade
do ato de linguagem, ou seja, o que deve ser dito ou feito; a identidade dos parceiros:
quem fala a quem; o domínio de saber, sobre o que se fala; e o dispositivo, constituído
pelas circunstâncias materiais da troca comunicativa, ou seja, como se determina o
ambiente físico de espaço e de tempo.

• o nível comunicacional: voltado às maneiras de falar (escrever) e diretamente


impactado pelos dados que caracterizam o nível situacional, ou seja, de que maneira
deve-se falar. Paralelamente, o sujeito, seja ele comunicante ou interpretante, questiona-
se sobre quais papéis linguageiros deve assumir para justificar seu “direito à fala”
(finalidade), para demonstrar sua “identidade” e para tratar de um determinado tema
(proposição) em determinadas circunstâncias materiais de troca linguageira
(dispositivo).

• o nível discursivo: é o lugar em que o falante intervém, enquanto sujeito enunciador, de


forma a atender às condições de legitimidade (princípio de alteridade), de credibilidade
(princípio de pertinência) e de captação (princípio de influência e de regulação),
objetivando realizar os “atos de discurso”, os quais irão resultar em um texto. Esse,
então, irá se configurar pela utilização de distintos meios linguísticos, “em função, por
um lado, das restrições do nível situacional e das possíveis maneiras de dizer do
comunicacional, e por outro lado do “projeto de fala” próprio ao sujeito comunicante”.
(CHARAUDEAU, 2005, p. 19).

Com base nesses apontamentos, observa-se que os sentidos de um texto são construídos
pelas restrições da situação de troca e, também, pela singularidade do projeto de fala de um
38

determinado sujeito. Nesse sentido, a redação do ENEM, por exemplo, apresentará


características linguísticas e semiológicas de seu conjunto de restrições (fato que permite
reconhecê-la com tal), contudo cada uma das redações corresponderá a uma determinada
estratégia de captação. Para isso, então, o sujeito comunicante irá escolher sua própria
identidade e sua própria finalidade, as quais lhe permitirão elaborar suas estratégias de
legitimidade, credibilidade e captação.

3.3 O MODO ARGUMENTATIVO DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO

Segundo Emediato (2001), é na Grécia Antiga, mais especificadamente na Sicília do


século V antes de Cristo, que a retórica teria surgido, sido repassada aos cidadãos da época e
começado a se desenvolver, inclusive, de forma paralela à democracia grega. Durante a queda
de um representativo tirano que exercia poder no local, Corax, ministro principal desse
opressor, possuía a responsabilidade de responder aos gregos assuntos referentes a bens e terras.
Assim, ao proferir um de seus discursos, obteve tão significativo êxito, que decidiu pelo
ensinamento da retórica: a arte da oratória e da persuasão. Ainda, em razão da relevância
recebida, segundo o autor, essa passou a integrar a educação grega e a ocupar significativo papel
no bojo político, na gestão das cidades e no contexto jurídico da Grécia. Nomes como Tísias e
Górgias permeiam os estudos da retórica clássica, em razão da admirável habilidade de ambos
em colocar em prática a técnica de persuadir.
À luz desse cenário, para os gregos, a retórica poderia ser definida como “a arte da
eloquência e o estudo desta corresponde ao estudo do discurso e das técnicas utilizadas para
persuadir, manipular ou convencer o auditório.” (EMEDIATO, 2001, p. 160). O autor destaca,
ainda, a divisão dessa arte em três grandes gêneros do discurso: o judiciário, o deliberativo e o
epidíctico. O primeiro deles realizava-se nos tribunais, envolvendo acusações e defesas
embasadas no critério de “justo”; o segundo envolvia orientações acerca das decisões úteis à
cidade, as quais aconteciam em assembleias públicas; e o terceiro voltava-se à louvação – da
coragem, de heróis, de defuntos – a partir do critério do belo.
Para mais, o pesquisador evidencia as quatro partes estruturantes de um discurso
retórico: a da invenção, a qual corresponde à parte inicial do discurso, objetivando um tema
primordial e argumentos plausíveis; a disposição, referindo-se essa à ordenação das razões e à
organização do discurso em um roteiro efetivo; a elocução, a qual visa à adequação das palavras
e dos pensamentos, ou seja, evidencia o estilo do sujeito orador; e da ação, parte em que o
discurso se materializa. Com tais perspectivas em vista, o pesquisador destaca que “Toda ação
39

comunicativa é finalizada, ou seja, dirigida a um fim. Esse fim pode ser, por exemplo, o de
influenciar um auditório ou um interlocutor a fazer algo ou a aderir a uma crença” (Emediato,
2001). Nesse sentido, tal excerto elucida, de forma sintética, a égide sobre a qual se constrói o
objetivo da argumentação: promover o convencimento.
Trilhando o mesmo percurso ideológico, os sofistas, constituídos por um grupo de
pensadores gregos itinerantes, que percorriam as cidades levando seus discursos e
conhecimentos em troca de pagamento, desempenharam um relevante papel no
desenvolvimento da retórica clássica; dentre seus principais, destacam-se Górgias, Protágoras,
Pródico e Hípias. Segundo Emediato (2001), esses sábios eram exímios oradores e afirmavam
que, por meio da arte retórica, podiam defender qualquer tese e, até mesmo, o seu contrário. De
linguagem instrumentalizada, apurada, cujo objetivo era, inquestionavelmente, a persuasão, os
sofistas potencializavam a habilidade do discurso, a amplitude polissêmica e encantada das
palavras e o poder da comunicação, com a finalidade de aplicar a técnica em diversos âmbitos
sociais, fossem esses políticos ou voltados para os interesses dos indivíduos que procuravam
pela retórica sofística.
Platão, por sua vez, segundo Emediato (2001), era fortemente contrário às ideologias e
práticas retóricas dos mestres sofísticos – tais quais as cobranças feitas por eles para ensinar os
conteúdos voltados à educação e à cidadania e a relativização da verdade - classificando-as
como não positivas e subjugadas a qualquer tipo de manipulação; nem filósofos esses sábios
eram considerados por Platão. Em virtude disso, os sofistas começaram a ser vistos como
enganadores e “charlatães” pelos atenienses, e as ações por eles realizadas despontaram como
antiéticas. Assim, “Combatendo o que ele considerava uma prática do falseamento da realidade,
manipulação e comércio do discurso, Platão propõe a filosofia como discurso positivo de
apreensão do real [...]” (EMEDIATO, 2001, p. 161-162), centralizando, então, o conceito de
verdade e declinando a retórica vigente.
Emediato (2001) ressalta ainda que Aristóteles, embora não contraposto às críticas de
Platão acerca da retórica, constrói um trabalho significativo sobre essa, esmiuçando os meios e
os procedimentos mais profícuos para persuasão e elaboração de um discurso. Saindo do campo
que se refere à arte de falar bem, a retórica, então, passa a se tornar um compilado de técnicas
pautadas no raciocínio que visam ao convencimento de um público. É neste momento que a
relação entre orador e auditório se torna primordial, tendo em vista que, para que uma tese seja
aderida, ela precisa estar em conformidade com as crenças do auditório em questão ou, ao
menos, com o que esse público admite como racional. Nesse contexto,
40

o orador é, para Aristóteles, incorporado pelo Ethos, pois sua credibilidade é função
de seu caráter, de sua virtude e da confiança que o auditório lhe atribui. Este, por si,
representa o Pathos, simbolizando as paixões que o orador deve considerar em seu
auditório a fim de poder suscitar sua adesão. (EMEDIATO, 2001, p. 163)

Em uma perspectiva contemporânea sobre a questão, Perelman (1995 [1958]) define a


argumentação como uma situação genuinamente conflituosa, segundo Emediato (2001), dentro
da qual se localizam teses opostas que buscam solucionar um problema. Perelman destaca,
ainda, o conceito de “justo”, baseando-se na linha de pensamento de Aristóteles, o qual
fundamenta e endossa a questão da racionalidade argumentativa. Para ele, o discurso
argumentativo “não se encontra subordinado à noção de verdade proposital, mas a uma
pragmática de valores, conforme observa Plantin, já que o verdadeiro corresponde aos
enunciados que são aceitos pelo auditório”. (EMEDIATO, 2011, p. 165)
Em uma perspectiva também contemporânea, Charaudeau (2019 [2008]) retoma a
relevância desse campo da linguagem – a argumentação –, destacando-a como um tipo de saber
que considera a experiência humana, por meio de específicas operações do pensamento que
extrapolam as categorias formais da língua, consolidando-se no âmbito da organização do
discurso. Nesse panorama, o autor endossa que o processo argumentativo encontra-se, por
vezes, na seara do implícito, não se limitando apenas a uma mera sequência frasal ou cadeia
formada por marcadores linguísticos, como os conectores textuais, haja vista que as muitas
combinações frásticas existentes não abarcam marcas explícitas de operação lógica.
No bojo desses apontamentos, Charaudeau (2019 [2008]) pontua que a argumentação é
direcionada à parte do interlocutor que raciona, reflete e compreende. Aquele que argumenta
vale-se de uma convicção e de uma explicação que visa à persuasão de outrem, com finalidade
inquestionável de modificar seu comportamento primeiro. Assim, para que tal cenário se
efetive, é necessário, em primeiro lugar, que exista uma proposta acerca do mundo que promova
um questionamento, sobre alguém, em relação à sua categoria de legitimação. Em segundo
lugar, faz-se preciso que um falante possa se engajar em relação a tal questionamento,
potencializando um raciocínio que objetive estabelecer uma verdade quanto à proposta em
questão. Por fim, carece-se, na ponta, de um outro sujeito de interação, interligado à mesma
proposta, questionamento e verdade, do qual se busca a adesão. Essa situação, portanto, coloca
em cena uma relação triangular, conforme atesta a figura a seguir:
41

Figura 2: a relação triangular da argumentação

Fonte: Charaudeau (2019 [2008], p. 205).

Para além da finalidade de convencimento da argumentação, advinda da combinação de


diferentes procedimentos e composições linguísticas, o resultado dessa habilidade “poderá se
apresentar sob a forma dialógica (argumentação interlocutiva), escrita ou oratória
(argumentação monolocutiva)” (CHARAUDEAU, 2019 [2008], p. 207). Nesses vieses, o modo
de organização do discurso argumentativo, na linha de Charaudeau, constitui-se sob diferentes
formas, dentro das quais se podem destacar as asserções sobre o mundo voltadas para a
experiência ou para o conhecimento: a razão demonstrativa e a razão persuasiva.
Na primeira menção, objetiva-se o estabelecimento de relações de causualidade,
ancoradas em procedimentos de uma organização lógica argumentativa; já a segunda acepção
baseia-se em um mecanismo que busca estabelecer, através de argumentos, a prova, justificando
o que for proposto a respeito do mundo. O cenário, no entanto, estará articulado aos
procedimentos de encenação discursiva do interlocutor, mecanismo pertencente ao sujeito
argumentante denominado pelo teórico em questão de “encenação argumentativa”.
Desse modo, vê-se como tal habilidade pauta-se na troca comunicacional, em que suas
asserções se voltam para o engajamento de outrem. Nessas teorias, atravessa a ideia de
“consenso social” (EMEDIATO, 2011, p. 166), em que valores partilhados pelo seio
comunitário orientam as perspectivas sobre as quais se debruçarão os interlocutores em defesa
de suas teses.
À guisa dos apontamentos, infere-se que a argumentação é, então, uma atividade
discursiva que visa à racionalidade e à influência, por meio do ponto de vista do sujeito
argumentante. Essa última é voltada para um ideal de persuasão, baseado no compartilhamento
42

de um mesmo universo até que seja possível a efetivação da coenunciação, ao passo que aquela
se volta para um ideal de verdade em relação às explicações de fenômenos do mundo, sobre as
quais prevalecem princípios semânticos e, sobretudo, lógicos.

3.3.1 A ORGANIZAÇÃO DA ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA

Para Charaudeau (2019 [2008]), a encenação argumentativa consiste - no que se refere


ao sujeito que deseja argumentar - em se valer de procedimentos que, baseados nos diversos
componentes do modo de organização argumentativo, devem servir à comunicação em função
da situação e do modo pelo qual o interlocutor é percebido. Tais procedimentos têm a função
primordial de validar uma argumentação, ou seja, demonstrar que a proposição é justificada, o
que, para ser feito, precisa da elaboração da prova.
Nesse sentido, diversos procedimentos contribuem para produzir o que irá provar a
validade de uma argumentação. Por vezes, baseia-se no valor dos argumentos, os quais são
procedimentos semânticos. Outros aplicam categorias linguísticas com a finalidade de produzir
determinados efeitos de discurso, as quais são denominadas procedimentos discursivos. Para
mais, outros ainda organizam, quando a situação de comunicação possibilita, o conjunto da
argumentação; é o que o autor denomina de procedimentos de composição (os quais, neste
trabalho, não serão contemplados).
Em substituição aos procedimentos de composição, foi possível observar, na construção
discursiva das redações analisadas, a emergência de diferentes imagens de si projetadas pelos
sujeitos na tessitura argumentativa dos textos analisados. Tal estratégia, denominada desde a
retórica grega por meio do termo ethos, recebeu especial atenção neste trabalho e, em razão
disso, passou a ser entendida como importante procedimento de persuasão, contribuindo, de
forma direta, para o empreendimento retórico e, consequentemente, para a obtenção da nota
máxima por parte dos candidatos em suas redações.
Dito isso, vale frisar que a encenação argumentativa nos textos selecionados será
analisada, predominantemente, por meio dos seguintes aspectos: (i) procedimentos semânticos;
(ii) procedimentos discursivos; (iii) procedimentos de construção do ethos.

3.3.1.1 ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA E OS PROCEDIMENTOS SEMÂNTICOS

Inicialmente, os procedimentos semânticos consistem na utilização de argumentos os


quais se fundamentam em um consenso social, em razão de os membros de um determinado
43

grupo sociocultural compartilharem valores específicos; esses, por Charaudeau (2019 [2008]),
são denominados de domínios de avaliação.
Para este trabalho, três desses domínios serão mais relevantes: o domínio da Verdade,
o domínio do Ético e o domínio do Pragmático. O primeiro deles, o domínio da Verdade, define
de maneira absoluta, e em termos de verdadeiro e falso, tanto o que se refere à existência de
seres em sua originalidade, sua autenticidade e sua unicidade, quanto ao que pertence à seara
do saber como princípio único de explicação dos fenômenos do mundo. O segundo, o domínio
do Ético, abarca os âmbitos do bem e do mal e como devem ser os comportamentos humanos
frente a uma moral externa (sendo essas as regras impostas aos indivíduos pela legislação de
consenso social) ou interna (aquelas regras criadas pelo próprio cidadão). Charaudeau ainda
destaca que:

Em ambos os casos, o indivíduo deve agir de uma certa maneira. É o domínio do dever
e da obrigação no qual, ao contrário do domínio Pragmático (...), o argumento é
colocado como origem de uma ação. Esta se realiza em nome de um princípio, e esse
princípio é o próprio argumento. (CHARAUDEAU, 2008, p. 232 - grifos do autor)

O recorte domínio do Pragmático define, em termos de útil e de inútil, aquilo que


dependerá de cálculo. Tal cálculo consiste em mensurar os projetos e os resultados das ações
dos homens “em função das necessidades racionais dos sujeitos agentes que os realizam
(mesmo que tenham de passar por estágios desagradáveis).” (CHARAUDEAU, 2019 [2008],
p. 232). Aqui, o argumento é colocado como consequência de uma ação, denominado também
como domínio do interesse.

3.3.1.2 ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA E OS PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS

No que se refere aos procedimentos discursivos, vê-se que tais recursos, a partir das
considerações de Charaudeau (2019 [2008]), consistem na utilização, de forma ocasional ou
sistêmica, de determinadas categorias de língua ou de recursos de outros modos de organização
do discurso, objetivando produzir específicos efeitos de persuasão no âmbito de uma
argumentação. Neste trabalho, destacamos a definição, a dedução, a comparação, a citação, a
descrição narrativa e a acumulação.
A definição trata-se de uma atividade de linguagem que visa à descrição de traços
semânticos que caracterizam um termo, em um tipo de contexto determinado, constituída saber
popular (consensual) ou do conhecimento (científico). Pertencente à categoria de Qualificação
e ao modo de organização Descritivo, é utilizada, na argumentação, com fins estratégicos, tendo
44

em vista sua forma para produzir um efeito de evidência e de saber para o sujeito argumentante;
há dois tipos de definição: do ser e do comportamento.
A dedução refere-se a “um modo de raciocínio que se baseia em A1 para chegar a uma
conclusão A2, conclusão que representa a sequência, o resultado, o efeito, em resumo, a
consequência mental” (CHARAUDEAU, 2019 [2008], p. 214), (ainda que esta se baseie na
experiência dos fatos), “da tomada em consideração de A1, através da inferência.”
(CHARAUDEAU, 2019 [2008], p. 214).
A comparação, por sua vez, “é utilizada para reforçar a prova de uma conclusão ou de
um julgamento, produzindo efeito pedagógico (comparar para ilustrar e fazer compreender
melhor) (...) (CHARAUDEAU, 2019 [2008], p. 237 - grifos do autor), caso seja uma
comparação objetiva; ou, também, um efeito de ofuscamento (que vise promover o desvio da
atenção do interlocutor para um outro fato, o qual, por semelhança a outro, impede que se avalie
a veracidade da prova), quando a comparação for subjetiva. A comparação encontra-se,
concomitantemente, em duas categorias da língua: a Qualificação e a Quantificação. Na
primeira, porque frequentemente as propriedades da comparação dão foco a contextos de
semelhança ou dessemelhança; na segunda, pois, algumas vezes, comparam-se quantidades, em
outras, faz-se uma comparação graduada de propriedades. Nesse sentido, as marcas da
comparação podem se dar por meio dos vocábulos gramaticais, como “tal”, “assim”, “da mesma
forma” etc e dos vocábulos lexicais “parecer”, “assemelhar-se”, “corresponder” etc.
Na descrição narrativa, vê-se um procedimento que se assemelha ao da comparação,
já que, nele, é descrito um fato ou contada uma história, de maneira a reforçar uma prova ou
produzi-la. Contudo, difere-se da citada em virtude de sua possibilidade para desenvolver um
raciocínio por analogia, o qual produz um efeito de exemplificação. Pode-se vê-la no âmbito da
imprensa, em análises e comentários de correspondentes estrangeiros, em retratos destinados a
fornecer indícios ou falsas pistas, em parábolas do ensino religioso etc.
A citação é definida pelo autor como um fenômeno linguístico que objetiva, de forma
mais fiel possível, realizar a referenciação de emissões orais ou escritas de um outro locutor, de
forma a produzir na argumentação um efeito de autenticidade. Tal procedimento funciona como
uma fonte de verdade, advindo de uma experiência: quando a citação faz referência a
declarações de indivíduos que testemunharam o que viram ou ouviram; de um dizer: quando a
citação refere-se a declarações de pessoas com a finalidade de provar a veracidade de algo; ou
de um saber: quando a citação é proveniente de uma proposta científica, ou, então, de uma
pessoa que representa uma autoridade.
45

Por fim, o autor destaca a acumulação, a qual é um procedimento que se vale da


utilização de vários argumentos para servir a uma só prova. Pode-se dar por meio dos seguintes
processos: uma simples acumulação, uma gradação e uma (falsa) tautologia.

3.3.1.3 ENCENAÇÃO ARGUMENTATIVA POR MEIO DA CONSTRUÇÃO DO


ETHOS

Conforme destaca Charaudeau (2007), a questão do ethos remonta à Antiguidade,


quando Aristóteles dividiu os meios discursivos em três vertentes: no logos, o qual refere-se à
lógica, ao domínio da razão, possibilitando o convencimento, e no ethos e pathos, os quais se
voltam para o nível dos sentimentos e da possibilidade de emocionar. Para o autor, “Tanto o
ethos quanto o pathos participam, portanto, dessas ‘demonstrações psicológicas’ que não
correspondem, como lembra Barthes, ao estado psicológico real do orador ou do auditório, mas
‘ao que o público crê [...]’” (CHARAUDEAU, 2007, p. 113). Além disso, enquanto o pathos é
voltado para o auditório, o ethos relaciona-se ao orador, permitindo a esse parecer fidedigno,
sincero e amável quando enuncia. Essas noções, então, ocultadas durante parte da história,
voltam a ter lugar de destaque nos estudos da linguagem, endossa o linguista, emergindo,
sobretudo, nos trabalhos que envolvem a argumentação, proporcionando à perspectiva de ethos
redefinições por meio de teóricos da análise do discurso.
Charaudeau (2007) destaca que, embora exista um antagonismo entre o ethos prévio, ou
seja, aquele definido como “o aspecto moral que o locutor, com diferentes intenções, deixa
transparecer em seu discurso” (MARTINS, 2007, p. 28), e o ethos discursivo, esse
despreocupado com a sinceridade e inscrito no ato da enunciação, o ethos, enquanto imagem
que se une àquele que enuncia, não é uma propriedade apenas dele, mas, antes de tudo, é a
imagem de que se transveste o interlocutor partindo daquilo que fala. De acordo com o teórico,
o ethos tem relação com o entrecruzamento de olhares: “olhar do outro sobre aquele que fala,
olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro vê” (CHARAUDEAU, 2007,
p. 115). Nesse sentido, então, para construir a imagem do sujeito enunciador, esse outro se
ancora, simultaneamente, nos dados precedentes ao discurso e naqueles originários do próprio
ato de linguagem.
O ethos, a partir da perspectiva semiolinguística, é o resultado da fusão das duas
identidades do sujeito: a social (inerente ao locutor) e a discursiva (relacionada ao enunciador).
A primeira aqui inscrita é aquela que proporciona o direito à fala, permitindo a legitimidade
comunicante em virtude do papel que lhe é atribuído a partir da situação de comunicação. Já na
46

segunda identidade, o sujeito elabora para si próprio uma imagem daquele que enuncia, atendo-
se “aos papéis que ele se atribui em seu ato de enunciação, resultado das coerções da situação
de comunicação que se impõe a ele e das estratégias que ele escolhe seguir.” (CHARAUDEAU,
2007, p. 115). Logo, o sentido emanado pelas palavras emitidas dependerá, ao mesmo tempo,
daquilo que somos e daquilo que falamos. Além disso, o autor endossa que o processo de
construção do ethos não é algo totalmente voluntário - uma vez que grande parte desse
fenômeno não é predominantemente consciente - podendo, com isso, não coincidir com aquilo
que o destinatário interpreta ou, até mesmo, projetar uma imagem não necessariamente validada
ou pretendida pela instância de produção do discurso.
Charaudeau (2007) ressalta, também, que a identidade do sujeito é atravessada por
representações sociais e, nesse cenário, o sujeito que fala não possui outra realidade além da
possibilitada pelos grupos sociais nos quais está inserido. Assim,

Na medida em que o ethos está relacionado à percepção das representações sociais


que tendem a essencializar essa visão, ele pode dizer respeito tanto a indivíduos
quanto a grupos. Em último caso, os grupos julgam os outros grupos com base em um
traço de sua identidade. Em decorrência de sua filiação, os indivíduos do grupo
partilham com os outros membros desse mesmo grupo caracteres similares, que,
quando vistos de fora, causam a impressão de que esse grupo representa uma entidade
homogênea. (CHARAUDEAU, 2007, p. 117)

O ethos é, pois, conforme evidencia o linguista, resultante das encenações


sociolinguageiras, as quais estão atreladas aos julgamentos que indivíduos de determinado
grupo social emitem uns dos outros quando agem ou falam. A partir dessa perspectiva, o autor
destaca que as maneiras de dizer conformam as maneiras de ser, e os modos de ser constroem
os modos de dizer; é, portanto, uma relação recíproca. Por fim, Charaudeau (2007) afirma não
ser possível dizer que existem marcas do ethos específicas, em virtude dos inúmeros
comportamentos do sujeito, tais quais a tonalidade da voz, a gestualidade e os conteúdos por
ele enunciados. Do mesmo modo, não é possível deslocar ethos de ideias, já que o modo de
colocá-las em cena atesta o poder de criar imagens. Em sua obra, o autor destaca os ethos de
“sério”, de “virtude”, de “competência”, de “potência”, de “caráter”, de “inteligência” e outros
que enviesam recorrentemente os sujeitos do âmbito político, foco do trabalho de Charaudeau
(2007), mas que também podem ser ampliados para outros discursos sociais.
Com esse panorama em vista, vê-se que “Todo ato de tomar a palavra implica a
construção de uma imagem de si.” (AMOSSY, 2005, p. 09). Portanto, esse cenário faz parte da
encenação argumentativa e também será observado nas redações com nota máxima do
Enem/2018. Assim, como será exposto mais adiante no capítulo destinado à análise dos dados,
47

observa-se que, por meio do estilo, das competências linguísticas e das crenças implícitas
(Amossy, 2005), emergem nas redações examinadas diversas imagens dos sujeitos participantes
da prova.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Esta seção destina-se à apresentação dos procedimentos metodológicos da pesquisa.


Primeiramente, vale registrar que o estudo empreendido configura-se como uma pesquisa de
natureza documental no que diz respeito aos dados coletados/selecionados para investigação.
No tocante à forma de análise do corpus, trata-se de uma pesquisa de caráter
predominantemente qualitativo e de base interpretativista, tendo em vista a exploração de
características linguístico-discursivas que não podem ser descritas e interpretadas apenas sob o
prisma quantitativo, por exemplo. Nas subseções a seguir, são expostos os procedimentos
relativos à coleta e seleção das redações que compõem o corpus do trabalho, bem como é
apresentado o percurso de análise que guiou a investigação realizada.

4.1 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA E SELEÇÃO DO CORPUS

No tocante aos recursos empregados para a coleta e seleção do corpus, este trabalho
caracteriza-se como uma pesquisa de natureza documental, já que se propõe a descrever e a
analisar os procedimentos que configuram a encenação argumentativa presente em redações
que obtiveram a nota máxima no ENEM/2018.
As produções textuais que alcançaram nota máxima - 1000 - na prova de Redação do
ENEM de 2018 investigadas nesta pesquisa foram coletadas da obra intitulada “A redação no
ENEM 2019: cartilha do participante”, disponibilizada virtualmente pelo Ministério da
Educação, por meio do O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP). A opção por coletarmos redações publicadas nessa coletânea justifica-se pelo
fato de ela ser, no Brasil, o único documento oficial produzido pela banca elaboradora da prova
e colocado à disposição da sociedade anualmente. Além disso, vale destacar que essa cartilha
passa periodicamente por revisões técnicas e alterações, uma vez que, a cada ano, são
apresentadas, via amostragem, algumas redações que obtiveram nota máxima no exame
aplicado no ano imediatamente anterior. Assim, do total de sete redações modelares presentes
na cartilha do participante do ENEM-2019, cinco foram selecionadas para este estudo. Essa
escolha foi feita de forma assistemática, tendo em vista que os textos apresentam uma mesma
48

temática central, bem como estruturas e conteúdos semelhantes, não havendo, portanto,
necessidade de análise da totalidade das redações.

4.2 PERCURSO DE ANÁLISE DOS DADOS

Para alcançar o objetivo geral previamente delineado, a análise do corpus foi dividida
em três etapas. Na primeira, discorremos sobre as condições de produção e de recepção das
redações selecionadas, levando em conta os elementos basilares do contrato de comunicação
que caracteriza o ato de linguagem na teoria Semiolinguística. Além disso, ainda nessa etapa,
explicitamos o funcionamento geral do dispositivo que sustenta a encenação argumentativa dos
textos.
Na segunda etapa, identificamos os procedimentos semânticos, discursivos e etóticos
empregados pelos sujeitos argumentantes na elaboração de redações que obtiveram a nota
máxima no Enem/2018. Para isso, dividimos e organizamos os parágrafos dos textos
examinados em três seções: (i) Introduções; (ii) Desenvolvimentos; (iii) Conclusões. Em
seguida, cada parágrafo foi segmentado em unidades informacionais menores (representadas
por orações ou por períodos sintáticos).
Para essa divisão, consideramos o conceito de “ideia unit” proposto por Decat (2010) e
já utilizado na análise empírica de textos por Oliveira e Grijó (2014). Tal conceito, vale
esclarecer, diz respeito a unidades de informação portadoras de sentido e textualmente
representadas por pequenos “jatos de linguagem” ou “blocos de informação”, os quais, a
depender dos propósitos do/da analista, podem ser constituídos por sentenças, proposições,
períodos, complexos oracionais ou blocos textuais de maior extensão. No presente trabalho,
conforme afirmado, essas unidades foram representadas por orações e períodos (levando em
consideração a análise interna de cada parágrafo das redações).
Ainda em relação a esse critério, é importante registrar que, para facilitar o processo de
análise dos dados, os parágrafos de cada redação foram apresentados em forma de quadros.
Nesses quadros, as unidades informacionais foram precedidas de uma numeração e de uma
identificação alfabética, respectivamente. Além disso, tais unidades serviram como ponto de
partida para a classificação e interpretação dos seguintes aspectos analisados: (i) procedimentos
semânticos, relativos a valores assentados em diferentes domínios de avaliação, tais como
domínio da Verdade, domínio do Ético ou domínio do Pragmático; (ii) procedimentos
discursivos, presentes na materialidade dos textos por meio de recursos como Citação,
Comparação, Acumulação, Descrição narrativa, Dedução e Definição e (iii) procedimentos
49

etóticos, os quais sustentam a construção discursiva do ethos - entendido, neste trabalho, como
as diferentes imagens de si projetadas pelos sujeitos argumentantes em seus textos. Essas
imagens identitárias (ethé) podem ser de variados tipos, tais como: ethos de erudição, ethos de
alerta, ethos de indignação, ethos de aconselhamento, ethos de otimismo etc.
Na terceira etapa da análise, buscamos, de forma sintetizada, apontar a frequência dos
procedimentos supracitados na materialidade dos textos e, concomitantemente, discorrer sobre
o impacto dessas estratégias na encenação argumentativa de redações que, em 2018, obtiveram
a nota máxima no Exame Nacional do Ensino Médio. Para o cumprimento dessa empreitada,
valemo-nos, sobretudo, de fundamentos teóricos relativos ao modo argumentativo de
organização do discurso e de estudos contemporâneos sobre o ethos (CHARAUDEAU, 2007,
2019 [2008]); AMOSSY, 2005), sendo tais categorias abordadas conforme os postulados da
Análise Semiolinguística do Discurso.
Uma vez realizada a apresentação dos procedimentos metodológicos utilizados na
investigação, o capítulo que segue destina-se à análise dos dados e à discussão dos resultados
obtidos na pesquisa.

5. ANÁLISE DOS DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Este capítulo destina-se à análise das redações que compõem o corpus desta pesquisa.
Em um primeiro momento, para tratar das condições de produção e de recepção dos textos
selecionados, foram considerados os elementos basilares do contrato de comunicação que
caracteriza o ato de linguagem na teoria Semiolinguística. Nessa corrente teórica, conforme
pontua Oliveira (2018), é possível notar uma abordagem contemporânea e interacionista para o
tratamento da significação, haja vista que tal teoria leva em consideração, na construção dos
sentidos, as dimensões situacional, discursiva e linguageira das trocas comunicativas.
Além disso, a Semiolinguística postula que a construção de sentidos, mediante qualquer
ato de linguagem, procede de um sujeito que se dirige a outro sujeito, dentro de uma situação
de intercâmbio específica. Essa situação, de natureza contextual, sobredetermina parcialmente
a seleção de recursos linguageiros que podem ser usados em determinados gêneros
textuais/discursivos (CHARAUDEAU, 2019 [2008]). Tendo em vista esses apontamentos,
apresentamos, na sequência, a figura que representa o ato de linguagem e os sujeitos de que
dele participam numa troca comunicativa.

Figura 03: condições de produção/recepção do ato de linguagem


50

Fonte: Charaudeau (2019 [2008], p. 52).

De acordo com a Teoria Semiolinguística, o ato de comunicação é um fenômeno que


combina o dizer e o fazer, articulados num duplo circuito comunicativo – circuito externo
(fazer) e circuito interno (dizer) – indissociáveis um do outro. O fazer é o lugar da instância
situacional em que atuam os parceiros – sujeitos comunicante e interpretante – que são os seres
sociais da troca. Por seu turno, o dizer é o lugar da encenação do discurso, do qual participam
os protagonistas - sujeitos enunciador e sujeito destinatário – que são os seres da palavra
(OLIVEIRA, 2018).
No tocante ao objeto de estudo deste trabalho, notam-se diferentes sujeitos que
participam da mise-en-scène discursiva que envolve a produção escrita no Enem. Assim,
relativamente à instância de produção, é possível notar a presença de duas figuras: a) um Sujeito
Comunicante (EUc), ser empírico e social, situado no circuito externo do dizer; b) um Sujeito
Enunciador (EUe), protagonista do ato de linguagem, situado, por sua vez, no espaço interno
da enunciação. Aplicando essas categorias ao objeto de estudo da presente pesquisa, é plausível
afirmar que, na situação avaliativa da prova do Enem, o Sujeito Comunicante (EUc) pode ser
representado, coletivamente, por todos os candidatos (sujeitos empíricos e sociais) que,
efetivamente, participaram do exame. Conforme dados do INEP (2018), tais participantes da
prova - no ano de 2018 - podem ser descritos, percentualmente, por meio dos seguintes dados:
59,1% dos inscritos para a prova em 2018 eram pertencentes ao sexo feminino e 40,9%, ao sexo
masculino. Os participantes com 18 anos representaram 17% do total; os de 19 anos, 15,9%; e
os de 20 anos, 10,5%. Aqueles com idade entre 21 e 30 anos representaram 33,8% do total. Em
51

relação à situação escolar, 58,6% já haviam concluído o Ensino Médio; 29,7% eram concluintes
em 2018 e 10,6% iriam finalizar o 3º ano do ensino somente após o ano de 2018, compondo,
portanto, o grupo dos participantes denominados “treineiros”.
No momento da realização da prova, esses sujeitos, submetidos a um contrato de
comunicação que rege a situação avaliativa em questão, passam de figura empírica para figura
discursiva. Em outras palavras, o EUc transforma-se, no universo da enunciação, em figura
discursiva, recebendo um novo papel: o de Sujeito Enunciador (EUe). A esse sujeito é dado o
direito à fala, cabendo a ele, no universo textual-discursivo da produção textual, gerenciar
informações, relacionar dados, selecionar provas, garantias e argumentos em defesa de uma
proposta sobre o mundo, com vistas à defesa da tese apresentada. Para a Semiolinguística, no
âmbito do modo argumentativo de organização do discurso, esse Sujeito Enunciador (EUe) é
denominado, portanto, como “Sujeito Argumentante”.
A produção de um texto, conforme propõe Oliveira (2018), não é um ato isolado e
solitário, mas uma prática discursiva em que o interlocutor também faz parte da construção dos
sentidos. Sob esse prisma, Charaudeau (2019 [2008], p. 52) esclarece que todo ato de linguagem
“resulta de um jogo entre o implícito e o explícito e, por isso: (i) vai nascer de circunstâncias
de discurso específicas; (ii) vai se realizar no ponto de encontro dos processos de produção e
de interpretação”. Desse modo, ao construir a sua redação, o sujeito argumentante leva em conta
diferentes representações sobre a banca avaliadora que irá “corrigir” o seu texto. Essa banca,
no âmbito da situação comunicativa proposta, é representada pelo Sujeito Destinatário (TUd),
o qual pode ser entendido como uma entidade interna ao circuito linguageiro.
Trata-se, na verdade, da figura discursivamente idealizada do “professor avaliador”, a
quem caberá o processo de leitura e a atribuição de nota à redação produzida. A representação
construída sobre o Sujeito Destinatário (TUd) constitui uma importante referência para o
Sujeito Argumentante no ato de escrita, uma vez que, em função dessa imagem (e, obviamente
do tema proposto para a redação), diferentes recursos composicionais e linguísticos poderão ser
acionados como estratégias retóricas na busca da persuasão. Ainda no campo da recepção, além
da figura do (TUd), também faz parte do ato de linguagem o Sujeito Interpretante, denominado
pela Semiolinguística como (TUi). No contexto situacional da prova de redação do Enem, esse
sujeito representa o universo de leitores empíricos, aqui entendido com o vasto conjunto
daqueles que, após a divulgação da nota da prova e da liberação do “espelho de correção”,
poderá, por motivos e interesses variados, ter acesso ao texto efetivamente produzido e
avaliado. No âmbito social, portanto, o Sujeito Interpretante (TUi) é representado, de forma
compósita, por professores da educação básica, estudantes do ensino médio, pais e mães de
52

estudantes, representantes da mídia, editores e produtores de manuais didáticos, apenas para


citar algumas possibilidades. Assim, conforme propõe a Teoria Semiolinguística, a significação
discursiva decorre da articulação entre o circuito externo (nível situacional) e o circuito interno
(verbal), instâncias presentes nos múltiplos atos linguageiros presentes na sociedade.
Além dos sujeitos externos e internos ao ato de linguagem, também caracterizam a
dimensão situacional do contrato de comunicação os seguintes aspectos: o conteúdo temático
da troca linguageira (sobre o que se fala), a visada discursiva do gênero em questão (para que
se fala) e as circunstâncias materiais que regem essa prática discursiva.
Baseando-nos em Charaudeau (2004), é possível afirmar que o conteúdo temático
envolve as restrições temáticas e textuais exigidas na proposta de produção textual da prova, as
quais estabelecem os percursos comunicacionais a serem seguidos pelo sujeito-escritor. No que
se refere às visadas na redação do ENEM, vê-se que elas envolvem, majoritariamente, duas
principais intenções pragmáticas: a de incitação, ou seja, um “fazer acreditar”, por meio de
estratégias textuais voltadas para a persuasão ou sedução, e de a “informação”, já que boa parte
do dissertativo-argumentativo padrão ENEM apropria-se da existência, do surgimento ou da
explicação de fatos para estruturar-se. Esse processo efetiva-se por meio de uma situação
comunicativa monologal, tendo em vista que o sujeito argumentate não interage, em tempo real,
com seu interlocutor (a banca de correção das redações). Por fim, as circunstâncias materiais
que orientam a prática discursiva na prova abarcam o código verbal da língua portuguesa, o
qual conduzirá o escritor na produção de um texto também verbal, em uma folha cujo
espaçamento compreende 30 linhas, e será destinado a um interlocutor/corretor, que avaliará o
conteúdo produzido por aquele em uma atividade não interlocutiva.
A proposta de redação do ENEM/2018, então, apresentou como tema a “Manipulação
do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”. Nos textos selecionados que
seguem para análise, nota-se a construção de um dispositivo argumentativo que sustenta a
configuração persuasiva do texto (Charaudeau, 2019 [2008]). Esse dispositivo expõe uma
proposta sobre o mundo - referente a um assunto de natureza polêmica -, uma proposição
marcada por posicionamento e um quadro de persuasão relacionado à temática abordada pelo
ENEM/2018. A proposta coloca em cena teses de que a aplicação dos algoritmos e os
mecanismos de manipulação de dados desenvolvidos são uma prática negativa na atualidade,
uma vez que o crescente volume desses recursos implica mudanças e controle dos hábitos e
informatividade dos usuários. A partir disso, os sujeitos argumentantes colocam em cena as
suas proposições, posicionando-se favoravelmente à proposta apresentada, construindo, na
sequência, um quadro de persuasão destinado a comprová-la. Esse quadro apresenta
53

argumentos e uma proposta de intervenção, os quais, conjuntamente, funcionam como


estratégias retórico-discursivas a serviço da defesa do que, inicialmente, foi apresentado nas
teses. Por fim, atravessando todas essas estratégias e perspectivas, o ethos de cada
candidato/candidata é construído discursivamente, configurando-se de inúmeras formas em
cada um dos períodos que constituem os textos. Assim, seguem, abaixo, cinco redações que
obtiveram nota máxima no ENEM de 2018, retiradas da Cartilha do participante - A redação
no ENEM 2019, com suas respectivas análises enviesadas pela teoria Semiolinguística.

5.1 ANÁLISE DA SEÇÃO DE “INTRODUÇÃO” DAS REDAÇÕES

Quadro 2: Análise da encenação argumentativa na redação 01 - Introdução

Redação 1

1-[Em sua canção “Pela Internet”, o cantor brasileiro Gilberto Gil louva a quantidade de
informações disponibilizadas pelas plataformas digitais para seus usuários.] 2- [No
entanto, com o avanço de algoritmos e mecanismos de controle de dados desenvolvidos
por empresas de aplicativos e redes sociais, essa abundância vem sendo restringida e as
notícias, e produtos culturais vêm sendo cada vez mais direcionados – uma conjuntura
atual apta a moldar os hábitos e a informatividade dos usuários.] 3- [[a]Desse modo, tal
manipulação do comportamento de usuários pela seleção prévia de dados é inconcebível
e [b] merece um olhar mais crítico de enfrentamento.]]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) da Descrição narrativa Ethos de erudição
Verdade
Domínio
(2) do Acumulação Ethos de alerta
Ético
[a] Ethos de
[a] Domínio
descontentamento/
do Ético
[a] Definição indignação
(3)
[b] Definição
[b] Domínio
[b] Ethos de
do Pragmático
aconselhamento

Fonte: elaboração da autora


Quadro 3: Análise da encenação argumentativa na redação 02 - Introdução

Redação 2
54

1-[O advento da internet possibilitou um avanço das formas de comunicação e permitiu


um maior acesso à informação.] 2-[No entanto, a venda de dados particulares de usuários
se mostra um grande problema.] 3-[[a]Apesar dos esforços para coibir essa prática, [b] o
combate à manipulação de usuários por meio de controle de dados representa um enorme
desafio.]] 4-[Pode-se dizer, então, que a negligência por parte do governo e a forte
mentalidade individualista dos empresários são os principais responsáveis pelo quadro.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos Etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de erudição
da Verdade

Domínio Ethos de
(2) Definição
do Ético descontentamento

[a] Domínio [a] Ethos de


do Pragmático [a] Descrição proatividade
(3) narrativa
[b] Domínio [b] Definição [b] Ethos de
do Ético descontentamento

Domínio
(4) Acumulação Ethos de acusação
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Quadro 4: Análise da encenação argumentativa na redação 03 - Introdução

Redação 03 -

1-[A Revolução Técnico-científico-informacional, iniciada na segunda metade do


século XX, inaugurou inúmeros avanços no setor de informática e telecomunicações.]
2-[[a]Embora esse movimento de modernização tecnológica tenha sido fundamental
para democratizar o acesso a ferramentas digitais e a participação nas redes sociais, [b]
tal processo foi acompanhado pela invasão da privacidade de usuários, em virtude do
controle de dados efetuado por empresas de tecnologia.]] 3-[[a]Tendo em vista que o
uso de informações privadas de internautas pode induzi-los a adotar comportamentos
intolerantes ou a aderir a posições políticas, [b] é imprescindível buscar alternativas
que inibam essa manipulação comportamental no Brasil.]]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de erudição
da Verdade
55

[a] Domínio [a] Ethos de


da Verdade apreciação
(2) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético descontentamento
[a] Domínio
[a] Ethos de
do Ético
descontentamento
(3) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio
[b] Ethos de altruísmo
do Pragmático

Fonte: elaboração da autora

Quadro 5: Análise da encenação argumentativa na redação 04 - Introdução

Redação 04 -

1-[A utilização dos meios de comunicação para manipular comportamentos não é


recente no Brasil: ainda em 1937, Getúlio Vargas apropriou-se da divulgação de uma
falsa ameaça comunista para legitimar a implantação de um governo ditatorial.] 2-
[[a]Entretanto, os atuais mecanismos de controle de dados, proporcionados pela
internet, revolucionaram de maneira negativa essa prática, uma vez que conferiram aos
usuários uma sensação ilusória de acesso à informação, prejudicando a construção da
autonomia intelectual e, por isso, [b] demandam intervenções.]] 3-[Ademais, é
imperioso ressaltar os principais impactos da manipulação, com destaque à influência
nos hábitos de consumo e nas convicções pessoais dos usuários.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
da Verdade
Descrição narrativa/
(1) e Ethos de erudição
Comparação
Domínio
do Ético
[a] Domínio [a] Ethos
do Ético descontentamento
(2) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Pragmático aconselhamento
(3) Domínio Acumulação Ethos de assertividade
da Verdade

Fonte: elaboração da autora


56

Quadro 6: Análise da encenação argumentativa na redação 05

Redação 05

1-[No filme “Matrix“, clássico do gênero ficção científica, o protagonista Neo é


confrontado pela descoberta de que o mundo em que vive é, na realidade, uma ilusão
construída a fim de manipular o comportamento dos seres humanos, que, imersos em
máquinas que mantêm seus corpos sob controle, são explorados por um sistema
distópico dominado pela tecnologia.] 2-[Embora seja uma obra ficcional, o filme
apresenta características que se assemelham ao atual contexto brasileiro, pois, assim
como na obra, os mecanismos tecnológicos têm contribuído para a alienação dos
cidadãos, sujeitando-os aos filtros de informações impostos pela mídia, o que influencia
negativamente seus padrões de consumo e sua autonomia intelectual.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
da Verdade
e Descrição narrativa Ethos de erudição
(1) Domínio
do Ético
Ethos de justificação/
Domínio Comparação/
(2) Ethos de
do Ético Acumulação
descontentamento

Fonte: elaboração da autora

Ao verificarmos quais procedimentos semânticos são mais recorrentes na abertura das


introduções (unidade informacional 1), nota-se a presença de argumentos assentados no
domínio da Verdade, estratégia por meio da qual fenômenos do mundo são apresentados (5
frequências em 5 unidades informacionais). Ela é observada na inauguração das introduções
selecionadas, ou seja, nas contextualizações, já que foram expostos fatos históricos ou
repertórios oriundos da área artística: música e cinema. A estratégia aplicada provoca sempre
grande impacto no leitor, já que busca envolvê-lo por meio de demonstração de domínio do
tema a partir de um conhecimento enciclopédico. Tal cenário define também o ethos que
emerge em todas as contextualizações: o ethos de erudição (5 frequências em 5 unidades
informacionais), no qual predominam trechos de conteúdo histórico ou cultural. Em virtude do
uso dessas estratégias, um procedimento discursivo que ganha espaço é a Descrição narrativa
(5 frequências em 5 unidades informacionais), tendo em vista que nelas é descrito um fato ou
contada uma história, de maneira a reforçar uma prova ou produzi-la, conforme destaca
57

Charaudeau (2019 [2008]). Além das questões relacionadas ao contexto de produção da


redação, pode-se dizer que, no plano textual, é justamente a partir dessa unidade de informação
que o contrato de comunicação proposto pelo modo argumentativo de organização discursiva
(Charaudeau, 2019 [2008]) é acionado, já que o sujeito-argumentante, ao abrir o seu texto, visa
promover condições mínimas de interação que possibilitem a validade e perpetuação do ato de
linguagem.
Na parte central desse parágrafo (unidades informacionais 2 e 3 ou somente a unidade
informacional 2)3, predominam argumentos pertencentes ao domínio do Ético (5 frequências
em 8 unidades informacionais), já que, nesse trecho, os candidatos problematizam o tema, ou
seja, apontam um juízo de valor negativo sobre ele, característica basilar desse procedimento
semântico. Em virtude desse cenário, o ethos projetado majoritariamente é o de
descontentamento (4 frequências em 8 unidades informacionais), haja vista as perspectivas de
insatisfação levantadas pelos candidatos na encenação argumentativa. Essas estratégias são
altamente profícuas nesse ponto do texto, tendo em vista que, aqui, visualiza-se também a
opinião do sujeito-argumentante, um dos objetivos da prova de redação do ENEM. Além disso,
em razão de existir uma sobreposição de ideias nessas unidades informacionais para que o tema
ganhe destaque e seja criticado, o procedimento discursivo mais frutífero é o de Acumulação
(3 frequências em 6 unidades informacionais).4 Seu uso, por se valer de uma sequenciação de
argumentos, tende a conduzir o leitor para uma determinada conclusão/inferência, o que pode
colaborar para sua persuasão.
As últimas unidades informacionais das introduções apresentam em maioria argumentos
relativos ao procedimento semântico domínio do Ético (4 frequências em 7 unidades
informacionais), uma vez que os candidatos optam por arrematar esse parágrafo por meio da
apresentação de uma tese em relação ao tema, o que configura prototipicamente a tipologia
textual dissertativo-argumentativa, bem como caracteriza, identitariamente, o gênero textual
“Redação do Enem”. Como procedimento discursivo predominante, nota-se a Acumulação (4
frequências em 6 unidades informacionais). Como consequência disso, os ethos que afloram
nesses trechos são de descontentamento (3 frequências em 7 unidades informacionais), projeção
de grande poder persuasivo na abertura de um texto argumentativo.

3
Quando a unidade informacional 3 não for a central, mas a de conclusão, ela não será analisada, já que será
enquadrada na análise da última parte do parágrafo. Ainda, a unidade informacional 2 do parágrafo da redação 05
será avaliada na conclusão do parágrafo, já que essa é a última do parágrafo do escritor.
4
Haverá diferença na quantidade de unidades informacionais nos trechos em que existir o procedimento discursivo
denominado Acumulação, tendo em vista que esse recurso argumentativo não considera as orações de forma
separada, mas resulta do conjunto delas.
58

Abaixo, serão também levantadas as estratégias que evidenciam a encenação


argumentativa nos dois parágrafos do desenvolvimento das produções dos candidatos. Essas
estratégias, conforme já sinalizado, englobam os procedimentos semânticos, discursivos e
etóticos.

5.2 ANÁLISE DA SEÇÃO DE “DESENVOLVIMENTO” DAS REDAÇÕES

Quadro 7: Análise da encenação argumentativa na redação 01 – Desenvolvimento I

Redação 01

1-[Em primeiro lugar, é válido reconhecer como esse panorama supracitado é capaz de
limitar a própria cidadania do indivíduo.] 2-[Acerca disso, é pertinente trazer o discurso
do filósofo Jürgen Habermas, no qual ele conceitua a ação comunicativa: esta consiste
na capacidade de uma pessoa em defender seus interesses e demonstrar o que acha
melhor para a comunidade, demandando ampla informatividade prévia.] 3-[[a]Assim,
sabendo que a cidadania consiste na luta pelo bem-estar social, caso os sujeitos não
possuam um pleno conhecimento da realidade na qual estão inseridos e de como seu
próximo pode desfrutar do bem comum – já que suas fontes de informação estão
direcionadas –, [b] eles serão incapazes de assumir plena defesa pelo coletivo.]] 4-
[Logo, a manipulação do comportamento não pode ser aceita em nome do combate,
também, ao individualismo e do zelo pelo bem grupal.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Definição Ethos de valoração
do Ético
Domínio
(2) Citação Ethos de erudição
da Verdade
[a] Domínio
[a] Ethos de
da Verdade
justificação
(3) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio
[b] Ethos de Alerta
do Ético
Domínio
(4) Definição Ethos de intolerância
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Quadro 8: Análise da encenação argumentativa na redação 02 – Desenvolvimento I


59

Redação 02

1-[Em primeiro lugar, deve-se ressaltar a ausência de medidas governamentais para


combater a venda de dados pessoais e a manipulação do comportamento nas redes.] 2-
[Segundo o pensador Thomas Hobbes, o Estado é responsável por garantir o bem-estar
da população, entretanto, isso não ocorre no Brasil.] 3-[Devido à falta de atuação das
autoridades, grandes empresas sentem-se livres para invadir a privacidade dos usuários
e vender informações pessoais para empresários que desejam direcionar suas
propagandas.] 4-[Dessa forma, a opinião dos consumidores é influenciada, e o direito
à liberdade de escolha é ameaçado.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de denúncia
do Ético
Domínio
(2) Citação Ethos de erudição
da Verdade
Domínio
(3) Descrição narrativa Ethos de justificação
do Ético
Domínio Ethos de
(4) Definição
do Ético assertividade

Fonte: elaboração da autora

Quadro 9: Análise da encenação argumentativa na redação 03 – Desenvolvimento I

Redação 03

1-[A princípio, é necessário avaliar como o uso de dados pessoais por servidores de
tecnologia contribui para fomentar condutas intolerantes nas redes sociais.] 2-[Em
consonância com a filósofa Hannah Arendt, pode-se considerar a diversidade como
inerente à condição humana, de modo que os indivíduos deveriam estar habituados à
convivência com o diferente.] 3-[[a]Todavia, a filtragem de informações efetivada
pelas redes digitais inibe o contato do usuário com conteúdos que divergem dos seus
pontos de vista, [b] uma vez que os algoritmos utilizados favorecem publicações
compatíveis com o perfil do internauta.]] 4-[Observam-se, por consequência, restrições
ao debate e à confrontação de opiniões, que, por sua vez, favorecem a segmentação da
comunidade virtual.] 5-[[a]Esse cenário dificulta o exercício da convivência com a
diferença, [b] conforme defendido por Arendt, [c] o que reforça condutas intransigentes
como a discriminação.]]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos
60

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de fiscalização
do Ético
Domínio
(2) Citação Ethos de erudição
da Verdade
[a] Domínio [a] Ethos de
do Ético descontentamento
(3) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético justificação
Domínio
(4) Acumulação Ethos de didatismo
do Ético
[a] Domínio
[a] Ethos de
do Ético
descontentamento
[a] Descrição narrativa
[b] Domínio [b] Citação
[b] Ethos de erudição
(5) da Verdade [c] Descrição narrativa
[c] Ethos de
[c] Domínio
assertividade
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Quadro 10: Análise da encenação argumentativa na redação 04 – Desenvolvimento I

Redação 04

1-[Nesse contexto, as plataformas digitais, associadas aos algoritmos de filtragem de


dados, proporcionaram um terreno fértil para a evolução dos anúncios publicitários.] 2-
[Isso ocorre porque, ao selecionar os interesses de consumo do internauta, baseado em
publicações feitas por este, o sistema reorganiza as informações que chegam até ele, de
modo a priorizar os anúncios complacentes ao gosto do usuário.] 3-[Nesse viés, há uma
pretensa sensação de liberdade de escolha, teorizada pela Escola de Frankfurt, já que
todos os dados adquiridos estão sujeitos à coerção econômica.] 4-[Dessa forma, há um
bombardeio de propagandas que influenciam os hábitos de consumo de quem é
atingido, visto que, na maioria das vezes, resultam na aquisição do produto anunciado.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de valoração
do Ético

Domínio
(2) Acumulação Ethos de justificação
da Verdade
61

Domínio
(3) Citação Ethos de erudição
da Verdade
Domínio
(4) Acumulação Ethos de justificação
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Quadro 11: Análise da encenação argumentativa na redação 05 – Desenvolvimento I

Redação 05

1-[Em princípio, cabe analisar o papel da internet no controle do comportamento sob a


perspectiva do sociólogo contemporâneo Zygmunt Bauman.] 2-[Segundo o autor, o
crescente desenvolvimento tecnológico, aliado ao incentivo ao consumo desenfreado,
resulta numa sociedade que anseia constantemente por produtos novos e por
informações atualizadas.] 3-[Nesse contexto, possibilita-se a ascensão, no meio virtual,
de empresas que se utilizam de algoritmos programados para selecionar o conteúdo a
ser exibido aos internautas com base em seu perfil socioeconômico, oferecendo
anúncios de produtos e de serviços condizentes com suas recentes pesquisas em sites
de busca ou de compras.] 3-[Verifica-se, portanto, o impacto da mídia virtual na criação
de necessidades que fomentam o consumo entre os cidadãos.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Ethos de
Domínio
(1) Descrição narrativa assertividade/ Ethos
do Ético
de erudição
Domínio
(2) Citação Ethos de erudição
da Verdade
Domínio
(3) Acumulação Ethos de didatismo
da Verdade
Domínio Ethos de
(4) Descrição narrativa
do Ético assertividade

Fonte: elaboração da autora

Segundo parágrafo do desenvolvimento

Quadro 12: Análise da encenação argumentativa na redação 01 – Desenvolvimento II

Redação 01
62

1-[Em segundo lugar, vale salientar como o controle de dados pela internet vai de
encontro à concepção do indivíduo pós-moderno.] 2-[Isso porque, de acordo com o
filósofo pós-estruturalista Stuart-Hall, o sujeito inserido na pós-modernidade é dotado
de múltiplas identidades.] 3-[Sendo assim, as preferências e ideias das pessoas estão
em constante interação, o que pode ser limitado pela prévia seleção de informações,
comerciais, produtos, entre outros.] 4-[Por fim, seria negligente não notar como a
tentativa de tais algoritmos de criar universos culturais adequados a um gosto de seu
usuário criam uma falsa sensação de livre-arbítrio e tolhe os múltiplos interesses e
identidades que um sujeito poderia assumir.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de valoração
do Ético

Domínio
(2) Citação Ethos de erudição
da Verdade

Domínio
(3) Descrição narrativa Ethos de justificação
do Ético
Domínio Ethos de
(4) Acumulação
do Ético descontentamento

Fonte: elaboração da autora

Quadro 13: Análise da encenação argumentativa na redação 02 – Desenvolvimento II

Redação 02

1-[Outrossim, a busca pelo ganho pessoal acima de tudo também pode ser apontado
como responsável pelo problema.] 2-[De acordo com o pensamento marxista, priorizar
o bem pessoal em detrimento do coletivo gera inúmeras dificuldades para a sociedade.]
3-[[a]Ao vender dados particulares e manipular o comportamento de usuários, [b]
empresas invadem a privacidade dos indivíduos e ferem importantes direitos da
população em nome de interesse individuais.]] 4-[Desse modo, a união da sociedade é
essencial para garantir o bem-estar coletivo e combater o controle de dados e a
manipulação do comportamento no meio digital.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Ethos de
Domínio
(1) Descrição narrativa valoração/Ethos de
do Ético
fiscalização

(2) Domínio Citação Ethos de erudição


63

da Verdade

[a] Domínio [a] Ethos de


do Verdade assertividade
(3)
[a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético indignação
Domínio
(4) Acumulação Ethos de cidadania
do Pragmático

Fonte: elaboração da autora

Quadro 14: Análise da encenação argumentativa na redação 03 – Desenvolvimento II

Redação 03

1-[Em seguida, é relevante examinar como o controle sobre o conteúdo que é veiculado
em sites favorece a adesão dos internautas a certo viés ideológico.] 2-[Tendo em vista
que os servidores de redes sociais como “Facebook“ e “Twitter” traçam o perfil de
usuários com base nas páginas por eles visitadas, torna-se possível a identificação das
tendências de posicionamento político do indivíduo.] 3-[Em posse dessa informação,
as empresas de tecnologia podem privilegiar a veiculação de notícias, inclusive
daquelas de procedência não confirmada, com o fito de reforçar as posições políticas
do usuário, ou, ainda, de modificá-las para que se adequem aos interesses da
companhia.] 4-[Constata-se, assim, a possibilidade de manipulação ideológica na rede.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de fiscalização
do Ético
Domínio
(2) Descrição narrativa Ethos de justificação
da Verdade
Domínio
(3) Acumulação Ethos de justificação
do Ético
Domínio Ethos de
(4) Descrição narrativa
do Ético assertividade

Fonte: elaboração da autora

Quadro 15: Análise da encenação argumentativa na redação 04 – Desenvolvimento II

Redação 04
64

1-[Somado a isso, tendo em vista a capacidade dos algoritmos de selecionar o que vai
ou não ser lido, estes podem ser usados para moldar interesses pessoais dos leitores, a
fim de alcançar objetivos políticos e/ou econômicos.] 2-[[a]Nesse cenário, a divulgação
de notícias falsas é utilizada como artifício para dispersar ideologias, [b] contaminando
o espaço de autonomia previsto pelo sociólogo Manuel Castells, o qual caracteriza a
internet como ambiente importante para a amplitude da democracia, devido ao seu
caráter informativo e deliberativo.]] 3-[Desse modo, o controle de dados torna-se
nocivo ao desenvolvimento da consciência crítica dos usuários, bem como à
possibilidade de uso da internet como instrumento de politização.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Acumulação Ethos de fiscalização
do Ético
[a] Domínio
[a] Ethos de
do Ético
[a] Definição assertividade
(2)
[b] Citação
[b] Domínio
[b] Ethos de erudição
da Verdade
Domínio Ethos de
(3) Acumulação
do Ético descontentamento

Fonte: elaboração da autora

Quadro 16: Análise da encenação argumentativa na redação 05 – Desenvolvimento II

Redação 05

1-[Ademais, a influência do meio virtual atinge também o âmbito intelectual.] 2-


[[a]Isso ocorre na medida em que, ao ter acesso apenas ao conteúdo previamente
selecionado de acordo com seu perfil na internet, o indivíduo perde contato com pontos
de vista que divergem do seu, [b] o que compromete significativamente a construção
de seu senso crítico e de sua capacidade de diálogo.]] 3-[[a]Dessa maneira, surge uma
massa de internautas alienados e despreocupados em checar a procedência das
informações que recebem, [b] o que torna ambiente virtual propício à disseminação das
chamadas “fake news”.]]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Descrição narrativa Ethos de fiscalização
do Ético
65

[a] Ethos de
[a] Domínio justificação/Ethos de
da Verdade didatismo
(2) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético valoração/Ethos de
didatismo
[a] Domínio [a] Ethos de
do Ético descontentamento
(3) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético assertividade

Fonte: elaboração da autora

Nas unidades informacionais de abertura dos parágrafos do desenvolvimento, vê-se que


todas elas apresentam argumentos cujos valores assentam-se sobre o domínio do Ético (10
frequências em 10 unidades informacionais), já que, em boa parte delas, há retomada da
problematização feita na introdução, em que há uma crítica feita ao tema da prova, ou um breve
posicionamento sobre o tema de forma indiscriminada (nem positivo nem negativo). Como
procedimento discursivo, nota-se que prevalece a Descrição narrativa (8 frequências em 10
unidades informacionais). Essa é uma estratégia de primeira importância, pois o parágrafo é
aberto já com a perspectiva crítica do sujeito-argumentante ou, em alguns casos, com uma
contextualização desse fenômeno, guiando, dessa forma, o leitor para o caminho argumentativo
que se pretende defender. Com relação ao ethos, das 10 unidades informacionais analisadas, 5
apresentaram ethos de fiscalização e 4 de valoração. O primeiro pode ser observado, pois os
candidatos, nas referidas unidades informacionais, deixam claros os problemas ou os agentes
responsáveis por problemas que envolvem o tema em questão. Já a projeção da segunda imagem
ocorre porque, nessas unidades informacionais de abertura, há uma espécie de avaliação,
apreciação, inserção de um juízo de valor acerca de determinada perspectiva.
Ao observamos a segunda unidade informacional desses parágrafos, nota-se a
predominância de procedimentos semânticos relativos ao domínio da Verdade (10 frequências
em 12 unidades informacionais), tendo em vista que, nesses trechos, há, em maioria, a
apresentação de repertórios socioculturais, os quais são representados majoritariamente por
meio do procedimento discursivo Citação (7 frequências em 11 unidades informacionais).
Logo, tal cenário só poderia projetar um tipo de ethos: o de erudição (7 frequências em 12
unidades informacionais).
66

Na terceira unidade informacional dos respectivos parágrafos5, prevalecem valores


diretamente relacionados ao domínio do Ético (8 frequências em 12 unidades informacionais),
haja vista que, nesses trechos, vê-se a apresentação de perspectivas argumentativas/justificadas
- com posicionamentos bem definidos - sobre as unidades informacionais escritas
anteriormente. Como em tais trechos nota-se um trabalho com a argumentação de forma mais
extensa, aprofundada, o procedimento discursivo mais encontrado foi o Acumulação (6
frequências em 9 unidades informacionais), no qual há uma sequência de argumentos
elaborados pelo sujeito-autor. Para mais, como, no centro do desenvolvimento, as estratégias
argumentativas são sempre mais plurais que em outras partes do texto dissertativo-
argumentativo, vários foram os ethé verificados na análise desses trechos, mas um ainda
ocorreu em maioria, o de Justificação (5 frequências em 12 unidades informacionais), haja vista
a necessidade de comprovar a argumentação em voga.
Na última unidade informacional dos desenvolvimentos - terceira para alguns, quarta
para outros e quinta para apenas um – predominam valores associados ao domínio do Ético (11
frequências em 13 unidades informacionais), tendo em vista que, nesses trechos, ratificam-se
as problemáticas sobre as quais o candidato discorreu anteriormente ou são apresentadas
consequências para o problema levantado. Com relação ao procedimento discursivo mais
atuante, nota-se a presença da Acumulação (5 frequências em 12 unidades informacionais), e o
ethos colocado em cena mais localizado foi o de Assertividade (5 frequências em 13 unidades
informacionais), seguido do ethos de descontentamento (4 frequências em 13 unidades
informacionais), já que alguns candidatos optaram por reforçar o que já haviam mencionado de
insatisfatório no parágrafo ou apresentaram novos fatos problemáticos.
Feitas essas considerações, serão apresentadas, a seguir, as estratégias que caracterizam
a encenação argumentativa nos parágrafos destinados às conclusões das redações analisadas
neste trabalho.

5.3 ANÁLISE DA SEÇÃO DE “CONCLUSÃO” DAS REDAÇÕES

Conclusões

Quadro 17: Análise da encenação argumentativa na redação 01 – Conclusão

5
Serão desconsideradas as terceiras unidades informacionais que são, porventura, também a conclusão dos
parágrafos. A quarta unidade informacional do primeiro parágrafo do desenvolvimento da redação 03 também será
considerada nesse parágrafo de análise, pois o parágrafo desse candidato apresenta 5 unidades informacionais.
67

Redação 01

1-[Portanto, são necessárias medidas capazes de mitigar essa problemática.] 2-[[a]Para


tanto, as instituições escolares são responsáveis pela educação digital e emancipação
de seus alunos, [b] com o intuito de deixá-los cientes dos mecanismos utilizados pelas
novas tecnologias de comunicação e informação e torná-los mais críticos.]] 3-[[a]Isso
pode ser feito pela abordagem da temática, [b] desde o ensino fundamental – [c] uma
vez que as gerações estão, cada vez mais cedo, imersas na realidade das novas
tecnologias – , [d] de maneira lúdica e adaptada à faixa etária, contando com a
capacitação prévia dos professores acerca dos novos meios comunicativos.]] 4-[[a]Por
meio, também, de palestras com profissionais das áreas da informática [b] que
expliquem como os alunos poderão ampliar seu meio de informações e demonstrem
como lidar com tais seletividades, [c] haverá um caminho traçado para uma sociedade
emancipada.]]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Dedução Ethos de avaliação
do Pragmático
[a] Domínio [a] Ethos de
da Verdade assertividade
[a] Definição
(2)
[b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético cidadania
[a] Domínio [a] Ethos de
do Pragmático aconselhamento

[b] Domínio do [b] Ethos de


[a] Descrição narrativa
Pragmático didatismo
(3) [b] Descrição narrativa
[c] Definição
[c] Domínio [c] Ethos de
[d] Acumulação
da Verdade justificação

[d] Domínio [d] Ethos de


do Ético didatismo
[a] Domínio [a] Ethos de
do Pragmático aconselhamento

[b] Domínio [a] Descrição narrativa [b] Ethos de


(4)
da Verdade [b] e [c] Acumulação didatismo

[c] Domínio [c] Ethos de


do Ético otimismo

Fonte: elaboração da autora


68

Quadro 18: Análise da encenação argumentativa na redação 02 – Conclusão

Redação 02

1-[Infere-se, portanto, que assegurar a privacidade e a liberdade de escolha na internet


é um grande desafio no Brasil.] 2-[[a]Sendo assim, o Governo Federal, como instância
máxima de administração executiva, [b] deve atuar em favor da população, [c] através
da criação de leis que proíbam a venda de dados dos usuários, [d] a fim de que empresas
que utilizam essa prática sejam punidas e a privacidade dos usuários seja assegurada.]]
3-[[a]Além disso, a sociedade, como conjunto de indivíduos que compartilham valores
culturais e sociais, [b] deve atuar em conjunto e combater a manipulação e o controle
de informações, [c] por meio de boicotes e campanhas de mobilização, [d] para que os
empresários sintam-se pressionados pela população e sejam obrigados a abandonar a
prática.]] 4-[Afinal, conforme afirmou Rousseau: “a vontade geral deve emanar de
todos para ser aplicada a todos”]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Dedução Ethos de avaliação
do Ético
[a] Domínio [a] Ethos de
da Verdade justificação

[b] Domínio [b] Ethos de


do Pragmático [a] Definição aconselhamento/Etho
(2) [b], [c] e [d] s de didatismo
[c] Domínio do Acumulação
Pragmático [c] Ethos de
didatismo
[d] Domínio
do Ético [d] Ethos de justiça
[a] Domínio
[a] Ethos de
da Verdade
justificação
[b] Domínio
[b] Ethos de
do Pragmático [a] Definição
aconselhamento
[b], [c] e [d]
(3)
[c] Domínio do Acumulação
[c] Ethos de
Pragmático
didatismo
[d] Domínio
[d] Ethos de justiça
do Ético
Domínio
(4) Citação Ethos de erudição
da Verdade
69

Fonte: elaboração da autora

Quadro 19: Análise da encenação argumentativa na redação 03 – Conclusão

Redação 03

1-[Portanto, fica evidente a necessidade de combater o uso de informações pessoais por


empresas de tecnologia.] 2-[Para tanto, é dever do Poder Legislativo aplicar medidas
de caráter punitivo às companhias que utilizarem dados privados para a filtragem de
conteúdos em suas redes.] 3-[Isso seria efetivado por meio da criação de uma legislação
específica e da formação de uma comissão parlamentar, que avaliará as situações do
uso indevido de informações pessoais.] 4-[[a]Essa proposta tem por finalidade evitar a
manipulação comportamental de usuários e, caso aprovada, [b] certamente contribuirá
para otimizar a experiência dos brasileiros na internet.]]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Dedução Ethos de avaliação
do Pragmático
Domínio Ethos de
(2) Descrição narrativa
do Pragmático aconselhamento
Domínio
(3) Acumulação Ethos de didatismo
do Pragmático
[a] Domínio
[a] Ethos de
do Ético
cidadania
(4) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio
[b] Ethos de otimismo
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Quadro 20: Análise da encenação argumentativa na redação 04 – Conclusão

Redação 04

1-[Evidencia-se, portanto, que a manipulação advinda do controle de dados na internet


é um obstáculo para a consolidação de uma educação libertadora.] 2-[[a]Por
conseguinte, cabe ao Ministério da Educação investir em educação digital nas escolas,
[b] por meio da inclusão de disciplinas facultativas, as quais orientarão aos alunos sobre
as informações pessoais publicadas na internet, [c] a fim de mitigar a influência
exercida pelos algoritmos e, consequentemente, [d] fomentar o uso mais consciente das
plataformas digitais.]] 3-[[a]Além disso, é necessário que o Ministério da Justiça, em
parceria com empresas de tecnologia, crie canais de denúncia de “fake news”, [b]
70

mediante a implementação de indicadores de confiabilidade nas noticias veiculadas –


[c] como o projeto “The Trust Project” nos Estados Unidos – [d] com o intuito de
minimizar o compartilhamento de informações falsas e o impacto destas na sociedade.]]
4- [Feito isso, a sociedade brasileira poderá se proteger contra a manipulação e a
desinformação.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

Domínio
(1) Dedução Ethos de avaliação
do Ético
[a] Domínio
[a] Ethos de
do Pragmático
aconselhamento
[b] Domínio
[b] Ethos de
do Pragmático
[a], [b], [c] e [d] didatismo
(2)
Acumulação
[c] Domínio
[c] Ethos de justiça
do Ético
[d] Ethos de
[d] Domínio
cidadania
do Ético

[a ]Domínio [a] Ethos de


do Pragmático aconselhamento

[b] Domínio [b] Ethos de


do Pragmático [a] e [b] Acumulação didatismo
(3) [c] Comparação
[c] Domínio [d] Acumulação [c] Ethos de erudição
da Verdade
[d] Ethos de
[d] Domínio cidadania
do Ético

Domínio
(4) Descrição narrativa Ethos de otimismo
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Quadro 21: Análise da encenação argumentativa na redação 05 – Conclusão

Redação 05
71

1-[[a]Assim, faz-se necessária a atuação do Ministério da Educação, em parceria com


a mídia, na educação da população — [b] especialmente dos jovens, público mais
atingido pela influência digital — [c] acerca da necessidade do posicionamento crítico
quanto ao conteúdo exposto e sugerido na internet.]] 2-[[a]Isso deve ocorrer por meio
da promoção de palestras, que, ao serem ministradas em escolas e universidades, [b]
orientem os brasileiros no sentido de buscar informação em fontes variadas,
possibilitando a construção de senso crítico.]] 3-[Além disso, cabe às entidades em
governamentais a elaboração de medidas que minimizem os efeitos das propagandas
que visam incentivar o consumismo.] 4-[Dessa forma, será possível tornar o meio
virtual um ambiente mais seguro e democrático para a população brasileira.]

Procedimentos Procedimentos Procedimentos


Unidade
semânticos discursivos etóticos

[a] Domínio [a] Ethos de


do Pragmático aconselhamento

[b] Domínio [a], [b] e [c] [b] Ethos de


(1)
da Verdade Acumulação didatismo

[c] Domínio [c] Ethos de


do Pragmático cidadania

[a] Domínio [a] Ethos de


do Pragmático didatismo
(2) [a] e [b] Acumulação
[b] Domínio [b] Ethos de
do Ético cidadania
Domínio Ethos de
(3) Acumulação
do Pragmático aconselhamento
Domínio
(4) Acumulação Ethos de otimismo
do Ético

Fonte: elaboração da autora

Nas conclusões, diferentemente do que predomina na abertura dos demais parágrafos


do texto, aparece o desejo do candidato de modificar o contexto problemático apontado no
restante da produção, em razão disso, o procedimento semântico mais utilizado é o Domínio do
Pragmático (4 frequências em 7 unidades informacionais), já que esse define, em termos de útil
e de inútil, aquilo que dependerá de cálculo, e tal cálculo consiste em mensurar os projetos e
os resultados das ações dos homens, tal como destaca Charaudeau (2019 [2008]). No que se
refere aos procedimentos discursivos, nota-se a presença majoritária da Dedução (4 frequências
em 5 unidades informacionais), essa que apresenta - através de um modo de raciocínio - um
72

efeito, um resultado (em forma de necessidade de intervenção ou ratificação das problemáticas


anteriormente destacadas no desenvolvimento). Com relação ao ethos, vê-se a aparição do de
Avaliação (4 frequências em 7 unidades informacionais) projeção frutífera para persuasão do
leitor nesse momento do texto, tendo em vista que há espécie de síntese, mensura acerca do que
deve ser feito em relação aos problemas que foram apontados no desenvolvimento ou um
reforço do quão problemático é o cenário anteriormente descrito.
A segunda unidade informacional desses parágrafos, em maioria, constitui-se de outras
unidades informacionais menores, tendo em vista que, nesse trecho, os alunos iniciam ou
apresentam de forma completa a proposta de intervenção exigida pela banca e, para construí-
la, como já mencionado neste estudo, é necessária a utilização de cinco elementos básicos:
agente, ação, meio, finalidade e detalhamento, promovendo uma estrutura sintática longa. Logo,
os procedimentos semânticos mais comuns localizados são o domínio do Pragmático (6
frequências em 13 unidades informacionais) e o domínio do Ético (5 frequências em 13
unidades informacionais), construídos majoritariamente por meio do procedimento discursivo
Acumulação (4 frequências em 7 unidades informacionais). Por se tratar de trechos que
envolvem a solicitação de medidas interventivas, os ethos mais recorrentes foram os de
Didatismo (4 frequências em 13 unidades informacionais), já que o candidato objetiva
demonstrar, por meio de um passo a passo, como modificar as problemáticas apontadas no
desenvolvimento, e os de Cidadania e Aconselhamento (3 frequências de cada em 13 unidades
informacionais), altamente pertinentes para a temática do trecho: o primeiro porque o ato de
elaborar uma proposta de intervenção exige do candidato a construção de uma consciência
coletiva, social, e o segundo pois sugere caminhos para colocá-las em prática.
A terceira unidade informacional dessas conclusões, nas redações 2, 4 e 5, é
caracterizada por uma segunda proposta de intervenção (ou seja, também é constituída por
outras unidades informacionais menores), na qual, novamente, o domínio do Pragmático (5
frequências em 9 unidades informacionais) aparece como o procedimento semântico mais
aplicado, a Acumulação como o procedimento discursivo mais recorrente (4 frequências em 6
unidades informacionais) e os ethos de aconselhamento (3 frequências em 9 unidades
informacionais) e Didatismo (2 frequências em 9 unidades informacionais) como as projeções
de imagens mais verificadas. Nas redações 1 e 3, os candidatos continuam desenvolvendo a
proposta de intervenção iniciada nas unidades informacionais anteriores, assim, o procedimento
semântico mais produtivo é o do Pragmático (3 frequências em 5 unidades informacionais);
ocorre a mesma quantidade de procedimentos discursivos: Descrição narrativa e Acumulação
(2 frequências de cada em 5 unidades informacionais) e o ethos encontrado em maior número
73

é o de didatismo (3 frequências em 5 unidades informacionais), o qual colabora para a adesão


do sujeito-autor em relação à sugestão de proposta.
Por fim, na última unidade informacional do parágrafo de conclusão das redações 2, 4
e 5 (mantendo a ordem de análise feita no parágrafo anterior), prevalece como procedimento
semântico o domínio do Ético (2 frequências em 3 unidades informacionais). Houve uma
dispersão dos procedimentos discursivos: uma Citação, uma Descrição Narrativa e uma
Acumulação, já que são múltiplas as formas de finalizar um texto, e o ethos mais produtivo foi
o de otimismo (2 frequências em 3 unidades informacionais), já que o sujeito autor quer
promover uma imagem de cidadão que crê na melhora do país ao fechar sua produção. Nas
redações 1 e 3, predomina também o procedimento semântico domínio do Ético (3 frequências
em 5 unidades informacionais), o procedimento discursivo Acumulação (2 frequências em 3
unidades informacionais) e o ethos de Otimismo (2 frequências em 5 unidades informacionais).

6. CONCLUSÃO

Como visto no início deste trabalho, a ideia de argumentar, persuadir, remonta à Grécia
Antiga, quando nos referimos ao surgimento da retórica. Desde então, em virtude de sua
constante aplicação e relevância entre os homens, a prática da argumentação passou a compor
diversos âmbitos da sociedade, chegando até a atualidade. Assim, com base nos apontamentos
ao longo deste estudo, foi possível verificar que tal prática se faz presente (e necessária) em
diversas provas seletivas para ingresso no ensino superior do país, fato que lhe proporciona
ainda mais prestígio, além do reconhecimento de sua eficácia como instrumento de persuasão
ao longo dos séculos.
Com isso em vista, o presente trabalho apresentou os resultados de uma pesquisa que
analisou, com base na Teoria Semiolinguística do Discurso, a construção da encenação
argumentativa em redações com nota máxima no ENEM/2018. Nesses textos, caracterizamos,
à luz dos fundamentos teóricos relativos aos gêneros do discurso, à retórica e à argumentação
(BAKHTIN, 1997 [1979]; CHARAUDEAU, 2005, 2007, 2019 [2008]; EMEDIATO, 2001), o
funcionamento do dispositivo argumentativo, os procedimentos semânticos, discursivos e
etóticos colocados em cena pelos sujeitos escritores na tessitura de seus textos, o que foi feito
por meio de uma pesquisa documental, de natureza qualitativa e interpretativista.
Abrimos este trabalho apresentando os pressupostos gerais relativos ao conceito de
gêneros textuais/discursivos, levando em conta, sobretudo, os estudos de Bakhtin (1997 [1979],
2006 [1929]), de Charaudeau (2004) e de Marcuschi (2010), nos quais prevalece a ideia de que
74

aqueles são eventos comunicativos em que traços linguísticos estruturam-se e padronizam-se,


em virtude das exigências sociocomunicativas das diversas esferas humanas. Também
permanece nessas teorias a concepção de que os gêneros são mutáveis por natureza e, em razão
disso, são extintos, reestruturados, recriados, reproduzidos de infinitas formas e em diferentes
meios.
De forma breve, discorremos sobre a história da escrita no ambiente escolar e suas
práticas a partir do século XVIII até a contemporaneidade, sob o viés de Bunzen (2006). Por
meio das perspectivas levantadas pelo autor, constatamos que uma escrita efetiva sempre foi
negligenciada nas escolas, tendo em vista que, nessas instituições, priorizou-se o ensino de
gramática tradicional e de leitura, visando à decodificação e à memorização de conteúdos
literários. Na atualidade, embora disciplinas que se voltam para a escrita solicitem que os alunos
produzam textos com recorrência, esses materiais possuem, majoritariamente, uma finalidade
disciplinar, já que os estudantes escrevem para que as exigências dos professores sejam
atendidas ou que possam ser aprovados nos vestibulares pretendidos.
Para mais, a partir “[d]A redação no ENEM 2019: cartilha do participante” (2019), das
teorias Bakhtin (1997 [1979]) e Prado e Morato (2016), objetivamos descrever a redação do
ENEM e corroborar que essa composição se trata de um gênero discursivo. Através das ideias
apresentadas por esses autores, constatamos que a redação do ENEM apresenta conteúdo
temático (o tema sobre o qual se discorre), estrutura composicional (a forma assumida pelo
texto para atender à demanda sociocomunicativa) e estilo de linguagem (seleção lexical,
gramatical etc), além de resultar da exigência de determinada instância sócio-histórico-cultural,
características que lhe conferem como um gênero do discurso.
Após a apresentação desse panorama, aprofundamos nas perspectivas relativas ao
conceito de Semiolinguística, de Charaudeau (2004, 2007, 2019 [2008]). De forma geral, a
Semiolinguística, na análise do discurso, pode ser definida como: semiosis “o fato de que a
construção do sentido e sua configuração se fazem por meio de uma relação forma-sentido (em
diferentes sistemas semiológicos)” (CHARAUDEAU, 2005, p. 13), sob o comando de um
sujeito interacional, com determinada influência social e em um específico quadro de ação;
linguística, de maneira a destacar que a matéria principal da forma em questão são as línguas
naturais. Assim, essa dupla articulação, na qual há a combinação de suas unidades
(sintagmático-paradigmática em diferentes níveis: palavra, frase, texto), impõe um
procedimento de semiotização do mundo diferente das demais linguagens.
Nessa seara, ainda destacamos o conceito de contrato de comunicação na
Semiolinguística, no qual são aplicados os princípios de interação e pertinência, de modo que,
75

para que um ato de linguagem seja válido, é necessário que os parceiros reconheçam o direito
à fala, um do outro, e que possuam saberes em comum. Ao mesmo tempo, segundo princípios
de influência e regulação, tais parceiros valem-se também do uso de estratégias. Portanto, é
possível afirmar que a estruturação de um ato de linguagem abarca dois espaços: um de
restrições - o qual compreende as condições mínimas que possibilitam a validade do ato de
linguagem - e de estratégias - correspondendo esse “às escolhas possíveis à disposição dos
sujeitos mise-en-scene do ato de linguagem” (CHARAUDEAU, 2005, p. 18).
Também ganhou destaque a apresentação do modo argumentativo de organização do
discurso, teoria na qual Charaudeau (2019 [2008]) pontua que a argumentação é direcionada à
parte do interlocutor que raciona, reflete e compreende. Para o autor, aquele que argumenta
vale-se de uma convicção e de uma explicação que visa à persuasão de outrem, com finalidade
inquestionável de modificar seu comportamento primeiro. Assim, para que tal cenário se
efetive, é necessário, em primeiro lugar, que exista uma proposta acerca do mundo que promova
um questionamento, sobre alguém, em relação à sua categoria de legitimação. Em segundo
lugar, faz-se preciso que um falante possa se engajar em relação a tal questionamento,
potencializando um raciocínio que objetive estabelecer uma verdade quanto à proposta em
questão. Por fim, carece-se, na ponta, de um outro sujeito de interação, interligado à mesma
proposta, questionamento e verdade, do qual busca-se a adesão.
Para mais, aprofundamo-nos, a partir de Charaudeau (2019 [2008]), no aspecto teórico
encenação argumentativa do discurso. Essa consiste - no que se refere ao sujeito que deseja
argumentar - em se valer de procedimentos que, baseados nos diversos componentes do modo
de organização argumentativo, devem servir à comunicação em função da situação e do modo
pelo qual o interlocutor é percebido. Tais procedimentos têm a função primordial de validar
uma argumentação, ou seja, demonstrar que a proposição é justificada, o que para ser feito
precisa da elaboração da prova.
Assim, diversos procedimentos contribuem para produzir o que irá provar a validade de
uma encenação argumentativa, segundo Charaudeau (2019 [2008]). Por vezes, baseia-se no
valor dos argumentos, os quais são procedimentos semânticos. Outros aplicam categorias
linguísticas com a finalidade de produzir determinados efeitos de discurso, as quais são
denominadas procedimentos discursivos. No que se refere aos procedimentos semânticos,
notamos que consistem na utilização de argumentos os quais se fundamentam em um consenso
social, em razão de os membros de um determinado grupo sociocultural compartilharem
valores específicos. Para este trabalho, três desses domínios foram mais relevantes: o domínio
da Verdade, o domínio do Ético e o domínio do Pragmático. No que se refere aos procedimentos
76

discursivos, vimos que tais recursos, a partir das considerações de Charaudeau (2019 [2008]),
consistem na utilização, de forma ocasional ou sistêmica, de determinadas categorias de língua
ou de recursos de outros modos de organização do discurso, objetivando produzir específicos
efeitos de persuasão no âmbito de uma argumentação. Neste trabalho, destacamos a definição,
a dedução, a comparação, a citação, a descrição narrativa e a acumulação.
Por fim, o arcabouço teórico foi finalizado com a apresentação da noção ethos. A partir
da perspectiva semiolinguística de Charaudeau (2007), verificamos que tal é resultado da fusão
das duas identidades do sujeito: a social (inerente ao locutor) e a discursiva (relacionada ao
enunciador). A primeira aqui inscrita é aquela que proporciona o direito à fala, permitindo a
legitimidade comunicante em virtude do papel que lhe é atribuído a partir da situação de
comunicação. Já na segunda identidade, o sujeito elabora para si próprio uma imagem daquele
que enuncia, atendo-se “aos papéis que ele se atribui em seu ato de enunciação, resultado das
coerções da situação de comunicação que se impõe a ele e das estratégias que ele escolhe
seguir.” (CHARAUDEAU, 2007, p. 115). Logo, o sentido emanado pelas palavras emitidas
dependerá, ao mesmo tempo, daquilo que somos e daquilo que falamos.
Após a apresentação das teorias, realizamos análise do corpus, a qual foi dividida em
duas etapas. Em ambas, buscamos apontar o funcionamento do dispositivo argumentativo das
redações selecionadas e a encenação argumentativa dos textos, com foco nos procedimentos
semânticos, discursivos e etóticos empregados pelos candidatos na elaboração dos textos que
obtiveram a nota máxima no Exame, no ano de 2018. Assim, na primeira etapa, organizamos
os parágrafos das redações em três seções: (i) Introduções; (ii) Desenvolvimentos; (iii)
Conclusões. Em seguida, cada parágrafo foi segmentado em unidades informacionais menores
(representadas por orações ou por períodos sintáticos).
Ao analisarmos as unidades informacionais (representadas por orações ou por períodos
sintáticos) que compunham cada um dos parágrafos das redações de nota máxima no Enem,
observamos que o procedimento semântico mais aplicado foi o Domínio do Ético, o
procedimento discursivo mais utilizado foi a Acumulação e os ethos projetados mais
frequentemente foram o de Erudição, seguido do de Descontentamento. Com isso, constata-se
como a Teoria Semiolinguística do Discurso de Charaudeau atravessa as estratégias
argumentativas encenadas pelos escritores da prova de redação do Enem.
Logo, vê-se que este trabalho alcançou os objetivos propostos em seu início, já que foi
possível caracterizar, nas redações com nota máxima no ENEM/2018, os procedimentos
semânticos, discursivos e etóticos colocados em cena pelos sujeitos escritores. Em virtude
disso, tal como mencionado na finalidade deste estudo, este trabalho pode ser didatizado e
77

aplicado em sala de aula, já que faltam materiais teóricos variados cuja análise argumentativa
se dê nas micropartes do texto dissertativo-argumentativo. Com isso, os alunos poderiam
dominar as múltiplas maneiras de colocar a argumentação em cena, com estratégias mais plurais
e significativas, sempre colaborando para a existência e permanência do contrato de
comunicação.
Fica, também, a sugestão para que trabalhos semelhantes, embasados em outras teorias,
possam ser elaborados e direcionados a docentes da área de Língua Portuguesa das escolas
básicas – ou até mesmo das universidades – para que existam profissionais suficientemente
capacitados para lidar com o trabalho da argumentação em sala de aula e com a prova escrita
mais importante do país: a redação do ENEM.

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