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31/05/2021 A fórmula mágica para o texto perfeito. Só que não!

: Roseta

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A fórmula
mágica para o
texto perfeito.
Só que não!
A língua é uma atividade social, histórica e ideológica
que somente ganha vida na forma de textos
concretos

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31/05/2021 A fórmula mágica para o texto perfeito. Só que não! : Roseta

Luana Amaral e Jairo Carvalhais · Luana


Amaral e Jairo Carvalhais são professores
e pesquisadores da Faculdade de Letras
da UFMG. Ambos têm doutorado em
Linguística e são professores de
Linguística Textual. Luana é pesquisadora
da área de Semântica e se interessa pelo
estudo do significado dos verbos; Jairo é
pesquisador da área de Linguística
Textual e se interessa pelo estudo da
argumentação nos textos e nos
discursos.
.3 .2 - 2020 Análise do Texto

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E m 2019, dos quase 4 milhões de


candidatos que fizeram o ENEM,
apenas 53 conseguiram nota 1000 na
redação; a média geral ficou abaixo
dos 600 pontos. É curioso observar
que, mesmo depois de terem assistido a
incontáveis aulas de Língua
Portuguesa, os candidatos ainda não
conseguem escrever um bom texto!
Produzir um texto é uma tarefa assim
tão difícil, acessível apenas a alguns
mortais que detêm a arte da
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comunicação escrita ou será que nos


falta ainda uma fórmula mágica para
acertar em cheio e escrever o texto
perfeito?

A Linguística Textual, ciência que


estuda o texto, responde: nenhuma das
alternativas anteriores.

A visão de texto que remete à tão


conhecida redação escolar, ainda na
atualidade, entende o texto como um
conjunto de orações conectadas através
de elementos de coesão, como
conjunções (e, mas, porém, etc.) e
pronomes (ele, seu, etc.). Nessa
abordagem, a coesão é vista como a
ligação entre duas orações. Uma
expressão como Mário viu o João é
uma oração. Já um conjunto de
orações, como Mário viu o João e
depois viu o Paulo. Juntos, os três
foram comprar doces.,seria
considerado um texto. Além disso,
nessa concepção um bom texto é
aquele que apresenta “correção
gramatical e ortográfica”.
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Produzir um texto é uma tarefa


assim tão difícil, acessível apenas
a alguns mortais que detêm a
arte da comunicação escrita ou
será que nos falta ainda uma
fórmula mágica para acertar em
cheio e escrever o texto perfeito?

Essa forma de caracterização de texto


teve seu ponto alto na primeira fase da
Linguística Textual, nos anos 60 do
século XX, mas não se sustentou por
muito tempo. Lendo a descrição do
anúncio de classificados abaixo, é fácil
perceber por que essa concepção
precisaria abrigar em seu escopo novos
elementos para tratar dos fenômenos
textuais.

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Figura 1. Anúncio do site:


https://carros.trovit.com.br/listing/citroen-
xsara-picasso-glx-16-flex-
16v._1Qw1zJ1M1dP. Acesso em
22/05/2020.

A descrição desse anúncio é um texto?

Não há aí nenhuma palavra que une as


orações. Elas são ligadas pelo
significado e pelo nosso conhecimento
de mundo. Sabemos que carros têm
donos e bancos; sabemos que donos de
carros pagam IPVA, etc. A descrição
também apresenta uma linguagem
diferente da considerada “correta”. As
frases são construídas sem verbos,
como IPVA 2020 pago, ao invés de o
IPVA 2020 foi pago. A expressão a
vista é construída sem crase, o que
contraria as regras da gramática
“tradicional”. Esse tipo de gramática
busca a padronização da língua,
prescrevendo, por meio de regras e
normas, como devemos falar e
escrever, independentemente da
situação de comunicação. Justamente

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por isso, essa gramática também é


conhecida como “gramática
normativa” ou “gramática prescritiva”.

Vale notar que, mesmo não seguindo à


risca as regras gramaticais, não temos
problemas para compreender o anúncio
e não há impedimento para a venda do
carro. A descrição é, então, um texto,
situado em seu contexto real de
circulação.

Um bom texto (…) resulta de um


processo de textualização e
cumpre bem o objetivo
comunicativo do gênero ao qual
pertence. Um bom texto não é
aquele que tem “correção
gramatical e ortográfica”.

Assim, a Linguística Textual


reconhece, desde a década de 80, que a
coesão é apenas um dentre vários
fatores colocados em funcionamento
para a construção de um texto. No
plano verbal, para que um conjunto –

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oral ou escrito – de palavras seja um


texto, é preciso que tal ocorrência
esteja vinculada a uma situação
comunicativa concreta, apresentando,
uma intencionalidade por parte da
instância que a produz, uma
aceitabilidade por parte do leitor ou
ouvinte, uma troca de conhecimentos
sobre o tema tratado, um equilíbrio
entre informações novas e informações
supostamente conhecidas sobre o
assunto e um “modelo” socialmente
conhecido a partir do qual a ocorrência
linguística ganhará forma. Esses
fatores co(n)textuais e cognitivos
trabalham a serviço da construção de
sentidos e, vistos em seu conjunto,
caracterizam o processo de
textualização. É esse fenômeno,
portanto, que possibilita a uma
expressão linguística o status de texto.

E o que faz um texto ser bom?

Todo texto pertence a algum gênero


textual. Gêneros são padrões sociais de
uso da língua, determinados
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principalmente por seus objetivos


comunicativos. É esse objetivo
comunicativo que determina o estilo de
linguagem de cada texto, incluindo
“correção gramatical e ortográfica”. O
anúncio de classificados é um gênero e
tem como propósito comunicativo
central apresentar ao leitor um produto
a venda. Linguisticamente, nesses
textos, é comum a omissão das marcas
de coesão, já que eles surgem nos
jornais impressos e, nesses veículos, o
valor do anúncio é cobrado por
caracteres. Assim, a partir de um
processo de textualização, o anúncio
apresentado cumpre bem a sua função
comunicativa, possibilitando a
construção textual dos sentidos.

Um bom texto, portanto, resulta de um


processo de textualização e cumpre
bem o objetivo comunicativo do
gênero ao qual pertence. Um bom texto
não é aquele que tem “correção
gramatical e ortográfica”. Da mesma
forma, não existe uma pessoa que
“escreve bem”, genericamente. Pessoas
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produzem bem e com facilidade textos


em gêneros com os quais estão
familiarizadas, conforme suas
necessidades comunicativas.

A língua é uma atividade social,


histórica e ideológica que
somente ganha vida na forma de
textos concretos que circulam nas
diferentes esferas da vida em
sociedade.

A redação escolar, como a do ENEM,


parece considerar o texto como uma
compilação de informações sobre
determinado tema e como um conjunto
de orações ligadas por marcas de
coesão. O bom texto, nessa visão
reducionista, é o que agrupa orações
usando diversificadas marcas de
articulação, numa construção
linguística marcada por “correção
ortográfica e gramatical”. Nesse tipo
de prática, os demais fatores de
textualidade são prejudicialmente
desconsiderados. O interlocutor, a

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interação, o contexto, a
intencionalidade e, principalmente, o
objetivo comunicativo são colocados
em segundo plano, o que contribui para
uma escrita descontextualizada,
estruturalmente vinculada a uma
“fórmula mágica” e cada vez mais
distante da natureza dialógica e
interacional que caracteriza a própria
linguagem.

A Linguística Textual mostra que a


dificuldade de escrever esses textos
surge justamente dessa característica
da redação: a escolha da forma do
texto sem um propósito comunicativo
em mente, sem a consideração dos
demais fatores que constituem o
processo de textualização. Como saber
o que escrever sem saber a que
objetivo o texto serve? A dificuldade,
portanto, não é decorrente de falta de
dom do escritor ou da ausência de uma
fórmula mágica para escrever bem,
mas está na concepção que se tem do
que seja um texto.

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A língua é uma atividade social,


histórica e ideológica que somente
ganha vida na forma de textos
concretos que circulam nas diferentes
esferas da vida em sociedade. Assim,
os textos – exemplares de diversos
gêneros – são instâncias de interação
por meio da língua(gem), sendo,
também, os mecanismos que usamos
para realizar ações, praticar múltiplas
trocas linguageiras e atingir diferentes
objetivos comunicativos.

Para saber mais

ANTUNES, I. Análise de textos:


fundamentos e práticas. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010.

BEAUGRANDE, R. A. de.;
DRESSLER, W. Introduction to Text
Linguistics. London: Longman, 1981.

BENTES, A. C. Linguística textual. In:


Mussalim, F.; BENTES, A. C. (Orgs.).
Introdução à Linguística: domínios e
fronteiras. V. 1. São Paulo: Cortez,

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2001. p. 245-287.
COSTA VAL, M. G. F. Repensando a
textualidade. In: AZEREDO, J. C.
(Org.). Língua Portuguesa em Debate:
conhecimento e ensino. Petrópolis:
Vozes, 2000. p. 34-51.
KOCH, I. G. V. O texto e a construção
dos sentidos. São Paulo: Contexto,
1997.

KOCH, I. G. V. Introdução à
linguística textual: trajetória e grandes
temas. São Paulo: Contexto, 2015.

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