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E16dier

ue corpo é esse? o corpo nc imaginário feminino estuda a


representação do corpo nas narrativas de autoria
cQ
feminina, a partir de uma tipologia criada pela autora com
base em teorias do sociólogo Arthur Frank, e uma seleção de
textos (romances e contos) do inicio do século XX até hoje.
Dada a importância que o corpo adquiriu na teoria feminista,
torna-se relevante um estudo da narrativa de autoria feminina
pelo viés da questão corporal, uma vez que o corpo aí
representado é local de inscrições "sociais, políticas, culturais
e geográficas". As autoras escolhidas por Elódia são:
Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Fernanda Young,
Helena Parente Cunha, Heloísa Seixas, Júlia Lopes de
Almeida, Lya Luft, Lygia Fagundes Teiles, Márcia Denser,
Marilene Felinto, Marina Colasanti, Martha Medeiros, Nélida
Pifion, Rachel de Queiroz, Rachei Jardim ,Wanda Fabian.

é esse?
) corpo no imaginário feminino
ISBN 978-85 86501-65-4

IIIIIIII
1 IlilFul: iiii:i:
9 788586 501654
1

.ELÓDIA XAVIER

Que corpo é esse?


O corpo no imaginário feminino

Prefácio
Antonio Carlos Secchin

Ilha de Santa Catarina


1 ditora Mulheres
2 () 1) 7
C 2006, 1 Jodia Xavier

Si`RIU CNSAIOS

Coordenação editorial
Zahidé 1upivacci I\luzart

Revisão
Claudia Castanheira

Capa e Editoração Eletrdnica


Studio S Diagramação & Arte Visual
(48) 3025-3070 - wwsv.studios.com.br

Dados Internacionais de Cotalogaç5o na Publicaçàii - Cl 0


l ,en>' 1 lelena Brunel 01,13 14/540

X3 Xavier, lik'dia
Que corpo é esse? o COfO no imaginário feminino /

Eil&lia Xavier. - Florianópolis: l.id. Mulheres, 2007.

208 p.

ISBN: 978-85-86501-65-4

1. Mulher escritora - Literatura brasileira.


2. Corpo feminino. 3. Mulher e representação do corpo.
4. 1 ntaginiirio fciiini,,o. ].Título.

(:1)1,1 39(

Agradeço a Mariana Mourente


l:dior:i Mulheres
Caixa I'ostal 5031 pelo trabalho que teve em dar corpo a esse texto
88040-970 l li iilan6polis, SC e is minhas alunas que,
Fone/Fax: (018) 233-2164 através das discussões em sala de aula,
e-mail: cdiioramiil hctcs@floripa.com.br colaboraram com a minha pesquisa
wwwdii i iiaitiulheres.com.br
Ser fliI.IlliCf, '51V ii li_iz ir:iiciii_Io i alina I5111ad5
para os gozos da vida: a liberdade e
tentar da glória a etérea e altívola cscal:ida,
na ctct- na aspiração de um sonho supi_-rii Ir.

Ser mulher, desejar nutra alma pii a e alada


para poder, com ela, o infinito tia i api ir;
sentir a vida triste, insípida. isolada,
buscar um com1)ailhcir0 e c11Co111 :ir um senhor..

Ser mulher, calcular todo o infinito curto


para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e oh! Atroz, aiit:'ilica triste/a!


Ficar na vida iiiiai iiuii:i :guula Inerte, lesa
nos pesados grilhões dos Preceitos sociais!

GIIL'a MflC/)1(IO
4

Sumário

Narrativas de dez faces 13


Considerações iniciais 17
O corpo invisível 27
O corpo subalterno 35
O corpo disciplinado 55
O corpo imobilizado 77
O corpo envelhecido 85
O corpo refletido 103
O corpo violento 119
O corpo degradado 131
O corpo erotizado 155
O corpo liberado 169
Considerações finais 183
Bibliografia 197
Narrativas de deJaces

Antonio ('ar/os Secchin

ue corpo é esse? o corpo no imaginário fiminino re-

Q presenta mais uma etapa nas consistentes


investigações que Elódia Xavier vem desenvolven-
do em torno das narrativas de autoria feminina.
Se em sua tese de doutorado (O conto brasileiro e sua
trajetória, 1987) a questão comparecia ltteralmente,
mediante o estudo da ficção de Clarice Lispector, o
percurso acadêmico e ensaístico de Elódia, a partir
desse ensaio, seria centrado na questão da autoria
feminina no âmbito de nossa literatura, como o
atestam vários cursos de Pós-Graduação em Letras
da UFRJ, a orientação de dissertações e de teses, a
apresentação de inúmeros estudos em congressos
nacionais e estrangeiros e, sobretudo, a publicação
de Tudo no feminino - a mulher e a narrativa brasileira
contemporânea (1991), coletânea por ela organizada, operacional da categorização temática e, mais do que
e de Declínio do patriarcado - a família no imaginário isso, a pertinência com que Elódia desenvolve sua
feminino (1998), sem nos esquecermos do preparo argumentação. No capítulo introdutório, a autora
de duas bem-cuidadas edições de Júlia Lopes de apresenta, de modo sintético, considerações de
Almeida: A intruja (1994) e A /ilé'ncia (2003). natureza teórica acerca do tema da corporalidade,
Agora, vinte e três narrativas são examinadas com particular ênfase nas contribuições de Elizabeth
a partir do modo como nelas se opera o conceito de Grosz e Arthur Frank. A seguir, na análise da maté-
corporalidade, num viés feminino. Diante de nós, ria literária propriamente dita, ainda que o aparato
desfilam, sucessivamente, os corpos imuisíveis, em teórico, em especial o derivado de Frank, esteja
Júlia Lopes de Almeida e Marilene Felinto; os juba/- presente, o que predomina é a capacidade analítica
ternos, cm Carolina Maria de Jesus e Wanda Fabian; de Elódia no (releve-se o involuntário trocadilho)
os disciplinados, em Clarice Lispector, Nélida Pifion corpo-a-corpo com os textos apresentados.
e Lygia Fagundes Teiles; os imobilizados, em Helena Mais do que tudo, importa ressaltar que,
Parente Cunha e Marina Colasanti; os envelhecidos, mesmo privilegiando a ótica feminista, a autora
em Lygia Fagundes Teiles e Clarice Lispector; os não confunde o posicionamento ideológico com
refletidos, em Fernanda Young e Nélida Pifion; os a fatura estética da obra: já no capítu] dedicado
violentos, em Marilene Feinto e Rachei de Queiroz; ao livro de Carolina Maria de Jesus, enfatiza-lhe a
os degradados, em Márcia Denser e Lygia Fagundes precária construção lingüística, a despeito do valor
Telies; os eroti.ados, em Heloísa Seixas, Marina Co- de denúncia que o relato contém.
lasanti e Lygia Fagundes Telies; os liberados, em Lya Num arco bastante extenso - que vai do pré-
Luft, Martha Medeiros e Rachel Jardim. modernismo de Júlia Lopes ao pós-moderno de
É claro que tal classificação não aspira à Fernanda Young - , não caberia apontar destaques,
exaustividade, e não é menos certo que a inserção de tal modo Elódia conseguiu desenvolver homo-
de um texto numa ou noutra rubrica poderia ser geneamente, com equilíbrio e sagacidade, o filão
objeto de discussão. Reconheça-se, porém, a eficácia investigativo a que se propôs. Igualmente feliz foi a

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escolha das duplas ou trios de autoras para cada uma
das representações do corpo, pelas aproximações e
contrastes estabelecidos, e, por isso mesmo, pela
possibilidade de demonstrar os traços específicos das
escritoras, para além da convergência temática. Considerações iniciais
Retornando ao patamar de reflexões mais
genéricas, que foram a tônica do primeiro capítulo,
Elódia Xavier, nas considerações finais, justifica a
reformulação da tipologi de Arthur Frank, que
propusera quatro tipos de caracterização corpórea,
e defende o alcance de sua própria tipologia, em
diálogo com a anterior, capaz, porém, de ampliá- A s conceituações do corpo através da história
da humanidade nos revelam características
importantes do pensamento filosófico, que sempre
la como subsídio para a análise literária. A autora
também traz à baila percucientes contribuições de privilegiou a mente em detrimento do corpo. Para
seus alunos na Pós-graduação. Pelo valor das obras Platão, o corpo é uma traição da alma, da razão e
analisadas e pela qualidade do discurso analítico, da mente,_que são aprisionadas pela Taterialidade
lê-se com prazer e proveito Que corpo é esse? - livro corporal. Aristóteles distingue, também, a matéria
que ilumina novos ângulos para a discussão acerca da forma, distinção que será depois reconfigurada
das narrativas de autoria feminina, aqui flagradas pela tradição cristã, onde a separação mente/corpo
em dez de suas infinitas faces. foi correlacionada à distinção entre o que é imortal
e o que é 'mortal. Durante a vida, mente e corpo
formam uma unidade indissolúvel que, com a morte,
é rompida, tendo a alma sua imortalidade garantida
enquanto o corpo vira pó. Para o cristianismo, fica
bem clara a distinção entre uma alma, dada por Deus,
e uma matéria pecaminosa e lasciva. 0 famoso du-
o

alismo de Descartes, por sua vez, institui dois tipos com idéias e conceitos - leia-se mente - , termos que
de substâncias: res cqgiían; mente, e rei extensa, corpo. excluem as considerações sobre o corpo.
Trata-se de duas substâncias distintas, mutuamente Para Grosz, o dualismo cartesiano gera pro-
exclusivas; cada qual habita seu próprio domínio e blemas filosóficos insolúveis, que o pensamento de
apresentam características incompatíveis entre si, Espinosa, desenvolvido entre outros por Foucault e
sendo o corpo parte da natureza, uma espécie de Deleuze, tenta resolver. Desconstruindo o dualismo
máquina governada por leis fisicas. mente/corpo, e outras oposições binárias como na-
Elizabeth Grosz, em seu estudo "Corpos re- tureza/cultura, essência/construção social, Espinosa
configurados", mostra como q cartesianismo marcou concebe o corpo como tecido histórico e cultural
rofundamente o pensamento ocidental, influindo da biol.ogia. Para ele, as duas substâncias cartesianas,
em várias concepções contemporâneas sobre o cor- irredutivelmente distintas, são aspectos diferentes da
po. Como objeto para as ciências naturais, como um mesma sustância e inseparáveis uma da outra. Assim,
instrumento à disposição da consciência ou como a mente é vista como a idéia do corpo, na medida
um veículo de expressão, temos sempre a desvdori- em que o corpo é uma extensão da mente.
zação social do corpo, grande aliada da opressão das Elizabeth Grosz explora, em seu estudo cita-
mulheres. Portanto, o dualismo cartesiano se opõe do, o caminho iniciado por Espinosa,mais útil aos
à teoria feminista, uma vez que oposições binárias objetivos feministas, uma vez que o pensamento
hierarquizam e classificam os termos polarizados, misógino tem a ver com a dualidade mente/corpo,
privilegiando um em detrimento do outro. Grosz responsável pela discriminação das mulheres:
aponta o perigo desse dualismo, quando diz: 'Assim, O pensamento misógino freqüentemente en-
o corpo é o que não é a mente, aquilo que é distinto controu uma auto-justificativa conveniente para a
do termo privilegiado e é outro. Éoue a mente deve posição social secundária das mulheres ao contê-las
expulsar para manter sua 'integridade'." (p48) O no interior de corpos que são representados, até
construídos, como frágeis, imperfeitos, desregra-
que as feministas, em geral, condenam é a associação dos, não confiáveis, sujeitos a várias intrusões que
da oposição macho/fêmea com a oposição mente/ estão fora do controle consciente. A sexualidade
corpo, postura histórica da filosofia, que trabalha

... 19
o

feminina e os poderes de reprodução das mulheres importância; o corpo da mulher é um dos ele-
são as características (culturais) definidoras das mentos essenciais da situação que ela ocupa neste
mulheres e, ao mesmo tempo, essas mesmas fun- mundo. Mas não é ele tampouco que basta para
ções tornam a mulher vulnerável, necessitando de OY
a definir. Ele só tem realidade vivida enquanto
proteção ou de tratamento especial, conforme foi assumido pela consciência através das ações e
variadamente prescrito pelo patriarcado. (p67) no seio de uma sociedade; a biologia não basta
XI- para fornecer uma resposta à pergunta que nos
Além da oposição macho/fêmea correspon- preocupa: por que a mulher é o Outro? Trata-se
der ao dualismo mente/corpo, a corporalidade de saber como a natureza foi nela- revista através
feminina, sempre considerada mais frágil e vul- da história; trata-se de saber o que a humanidade
fez da fêmea humana. (v.1 p57)
nerável, é usada para justifcar as desigualdades
sociais; a vinculação da feminilidade ao corpo e da Levando-se em conta a época em que a autora
masculinidade à mente restringe o campo de ação viveu, faz sentido o conceito do corpo feminino
das mulheres, que acabam confinadas às exigências como um obstáculo a ser superado para se chegar
biológicas d reprodução, deixando aos homens o à igualdade. Conciliar o papel de mãe e o de cidadã
campo do conhecimento e do saber. engajada, isto é, sair da imanência para a transcen-
A teoria feminista tem, portanto, grande inte- dência, era um conflito vivido pela mulheres de
resse em trabalhar a questão do corpo, colocando-o, meados do século XX.
muitas vezes, no centro da ação política e da produ- Outras teóricas feministas, como Julia I<ris-
ção teórica. São várias as posições feministas, que teva e Nancy Chodorow, envolvidas com a noção
resultam, muitas vezes, em visões diferentes e até de construção social da subjetividade, se afastam da
mesmo opostas. Começando por Simone de Beau- posição da autora do O Segundo Sexo, vendo o corpo de
voir, incluída no "feminismo igualitário", percebe-se forma positiva, marcando socialrnente o masculino e
que o corpo das mulheres é importante, mas não é o feminino como distintos. Elas buscam a transfor-
fundamental. Diz a autora, em O Segundo Sexo: mação de atitudes, crenças e valores, uma vez que o
A sujeição da mulher à espécie, os limites de corpo é uma construção social, uma representação
suas capacidades individuais são fatos de extrema ideológica. Diferentemente das igualitaristas e cons-

• 20 • "• 21
trucionistas, teóricas como Luce Irigaray, Héléne irredutivelmente sexualmente específicos, neces-
sariamente entrelaçados a particularidades raciais,
Cixous, Gayatri Spivak e Judith Butler, entre outras, culturais e de classe. (p79)
concebem o corpo como um objeto cultural. Segundo
Grosz: "Elas estão preocupadas com o corpo vivido, o Dessa forma, fica sugerida a interação do natu-
corpo representado e utilizado de formas específicas ral com o cultural, colocando em questão a oposição
em culturas específicas." p.75) jICara elas, o corpo binária desses termos. Esse entrelaçamento, porém,
deve ser visto como o lugar de contestação, de lutas necessita de mais pesquisa, uma vez que o cultural
econômicas, políticas, sexuais e intelectuais. deve ser visto em suas limitações e ao natural não
Parece-nos importante, a esta altura, consi- deve ser atribuído um molde invariável. Groszuge-
derar os corpos mais em sua concretude histórica re, como abordagem teórica feminista dos conceitos
do que na sua concretude simplesmente biológica, sobre o corpo, a recusa do dualismo mente/corpo,
evitando, a todo custo, o essencialismo ou catego- apontando para o entendimento de uma subjetividade
rias universais. Existem apenas tipos específicos de corporijicada, de uma corporalidade psíquica. E completa,'
corpos, marcados pelo sexo, pela raça, pela classe dizendo: CQ corpo deve ser visto como um lugar
social e, portanto, com fisionomias particulares. de inscrições, produções ou constituições sociais,
Essa multiplicidade deve solapar a dominação de políticas, culturais e geográficas"(p.84)
modelos, levando em conta outros tipos de corpos Dada a importância que o corpo tem hoje na
e subjetividades. Fazendo nossas as palavras de Eli- teoria feminista, parece-nos relevante um estudo
zabeth Grosz, verificamos que: da narrativa de autoria feminina pelo viés da ques-
tão corporal, uma vez que o corpo aí representado
Se a mente está necessariamente vinculada
ao corpo, talvez até sendo parte dele, e se os é local de inscrições "sociais, políticas, culturais
corpos eles próprios são sempre sexualmente (e e geográficas". Assim, nosso estudo busca levar
racialmente) distintos, incapazes de serem incor- em conta a representação psíquica do corpo das
porados num modelo universal singular, então personagens. E, mais uma vez citando Grosz:
as próprias formas assumidas pela subjetividade
não são generalizáveis. Os corpos são sempre "Tanto a dimensão psíquica quanto a social de-

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vem encontrar lugar numa reconceitualização do Pierre Bourdieu, que pode ser considerado um
corpo, não uma em oposição à outra, mas como dos grandes estudiosos do corpo, insere-se numa tra-
necessariamente interativas." (p85) dição teórica mais antropológica do que sociológica.
Arthur W. Frank, em seu ensaio "For a Com seu clássico livro À dominação masculina, ele con-
Sociology of the Body: an Analytical Review", tribui para a teoria da construção social dos corpos,
constrói uma tipologia dos corpos ci5'po1o,ies of the mostrando, entre outras coisas, que o poder andro-
Boqy, numa relação estreita entre corpo e sociedade. cêntrico imprime nos corpos traços indeléveis.
Embora seu trabalho pertença à área da sociologia, Segundo Arthur Frank, o corpo não tem inte-
ele nos fornece dados para o estabelecimento de uma rior (inside) e exterior (outside). Essas faces interagem
tipologia da representação dos corpos nos textos numa relação mútua e complexa, o que lembra a
literários. O trecho abaixo mostra a importância "subjetividade corporificada" ou "corporalidade
do corpo na organização social e, por conseqüência, psíquica", termos criados por Grosz. Outra idéia
nos processos de dominação da mulher: importante diz respeito à reconstituição constante
do corpo, que está sempre em processo. "The body
A sociologia do corpo considera a corpora-
lidade não somente um resíduo da organização is process" (p47), diz o autor. Para a sociologia do
social, mas também vê a organização social como corpo, o importante é teorizar sobre as* instituições
a reprodução da corporalidade. A corporalidade a partir do estudo do corpo, o que nos leva a pensar
nada mais é do que uma constante neutra na vida que a análise da representação dos corpos pode ser
social, representando tanto os princípios políticos
de classe (p.ex., em Bourdieu) quanto a domina- um excelente meio de conhecer as práticas sociais
ção de gêneros. Nas questões da dominação e da vigentes, uma vez que as ações corporais são orien-
apropriação reside muito da história da sociedade. tadas pelos e para os contextos institucionais. O
O feminismo nos ensinou que a história começa
e termina com os corpos. (trad.livre) 1
reproduuclion of emboulument. Embodujneni is anythin,g bula neutral conslauut
iii social l?fe, represenhin instead the political principies oJ class ( i. e., ÚI
Bourdieui) and gender dominalcin. 0,i lhe queslions of domination and ap-
1 The sociolo,gy of lhe body ,,nder.rtands embodimeni nol as residual Io social proprialion haug ,nuch of lhe slorj of sodelj. Fesninism has taughi as that
oiganialion, boi ralher uundersiandr social or,ganialioel as bcing abouut lhe lhai sto,y both begins and ends n'iih bodies. (p. 42)

• 24 • • 25 •
corpo deve ser visto em ação (acting, isto é, numa
relação dinâmica ou estática com alguma coisa, pois
só assim manifesta suas especificidades.
É a partir dessas especificidades que criamos
uma tipologia da representação dos corpos nos tex- O corpo invisível
tos de autoria feminina, agrupando as personagens
em torno dos vários tipos encontrados em narrativas
do início do século XX até hoje. Assim, levantamos Após os movimento,; sociais da dc;nI:i Ic (,U,
dez categorias que congregam duas ou mais obras por exemplo, o corpo foi redescobeil 1 lii
na política, na ciência e na mídia, provoca 1(1
significativas desta representação. São elas: corpo verdadeiro "cõrporeísmo" nas sociedades ociHais.
invisível, corpo subalterno, corpo disciplinado, Donise io/// 1/1/1(1

corpo envelhecido, corpo imobilizado, corpo


refletido, corpo violento, corpo degradado, corpo
erotizado e corpo liberado.
A intrusa, de Júlia Lopes de Almeida, publicado
inicialmente em capítulos no Jornal do comércio
(1905) e em livro três anos depois, é,9 ao lado de
outros textos como À falência (1901) e Correio da roça
(1913), um exemplo de plena realização literária. A
realidade social aí representada é formada por várias
classes, incluindo desde a nobreza decadente até o
escravo recém-libertado, passando pelo poder eco-
nômico, pelo clero e pela classe política. A mulher,
na figura de Alice, é o objeto em questão.
O narrador, inicialmente, nos apresenta uma
reunião em casa de Argemiro - representante do

26
poder econômico, como o próprio nome sugere -, O padre Assunção, representante da Igreja,
onde estão presentes o padre Assunção, o deputa- apesar de aliado da nobreza, é quem defende Alice
do Armindo Teles e Adolfo Caldas, diletante sem dos ataques inimigos, revelando suas virtudes, so-
profissão definida. A conversa gira em torno da bretudo cristãs. É uma personagem ambígua que
contratação de urna governanta, pois Argemiro, enriquece a narrativa com várias possibilidades.
viúvo, quer ter o prazer da companhia de sua filha Mas a grande incógnita é a própria Alice, narrada
Maria, até então vivendo com os avós maternos, por todos e sem voz própria. Ela se apresenta toda
numa chácara distante. Tal solução de Argemiro coberta, no ato do contrato de serviço, a ponto de
suscita opiniões contrárias, porque "feia ou bonita Argemiro não saber como ela é; só fica clara sua
a mulher é sempre perigosa". p.lO) condição humilde e carente por meio de sua postura
O dono da casa, vítima dos desmandos e e dos sapatos cambados. Poucas são as palavras tro-
desmazelos do ex-escravo Feliciano, cria da Baro- cadas entre os dois, que só dialogam ao final, quando
nesa sua sogra, mantém-se firme no propósito de Alice, expulsa pela Baronesa, vai prestar contas. O
entregar sua casa e sua filha aos cuidados de uma que se sabe dela é dito pelas demais personagens, por
governanta. Alice é a candidata que se apresenta, meio de juízos desencontrados, o que lhe confere
aceitando as regras do jogo - cuidar de tudo e uma certa ambigüidade. Julgada perigoa por quase
manter-se invisível. Para tentar calar as más lín- todos - a nobreza a considera intrusa e o ex-escravo,
guas, Argemiro impõe a condição de jamais se indesejável - ela passa de governanta a dona da casa,
encontrar com a governanta, impedindo dessa for- ganhando um marido pelos serviços prestados...
ma qualquer outro tipo de envolvimento. Viúvo, Como Argemiro não a vê nunca e nem a co-
pretende manter-se fiel à memória da falecida, a nhece, sua corporalidade é, desde o início, invisível,
quem prometeu no leito de morte jamais se casar como mostra o narrador: "O advogado levantou os
novamente. Embora as regras sejam rigorosamente olhos e viu entrar na sala uma figura meio encolhida,
observadas, as más línguas não se calam e, envolvi- que lhe pareceu ter um ombro mais alto que o outro
do pela eficiência dos serviços prestados por Alice, e cujas feições não viu, porque vinham cobertas com
ele acaba pedindo-a em casamento. um véu bordado e ficavam contra a claridade". (p13)

• 28 • •'. 29 •
o

Com sua eficiência de mulher ordeira e prendada, privilegiando a alma em detrimento do corpo. A
Alice transforma a casa de Argemiro, até então invisibilidade do corpo da protagonista não a im-
mal tratada, num lar aconchegante e aprazível. Diz pede de conquistar Argemiro, que se compraz com
ele: "Há outra atmosfera nesta casa; estou melhor o aroma, a música e a beleza de sua casa. Elementos
aqui do que em parte nenhuma, porque em tudo imateriais que priorizam a alma da personagem, sua
me parece haver o propósito de me ser agradável." dádiva pessoal, conservando seu corpo invisível, isto
(p62) Mas se não vê o corpo, sente a alma, como é, anulando-a como presença física.
ele mesmo confessa adiante: "E o que me delicia é
sentir a alma desta criaturas que aqui tenho debaixo
do meu teto, sem que nunca os meus olhos a vejam Há um conto de Marilene Felinto no livro
nem de relance." (p62) Para Argemiro , Alice é "um Postcard (1991) onde a questão da visibilidade pode
ser imaterial" que o rodeia de amáveis solicitudes. ser considerada elemento estruturador da trama
Essa imaterialidade se manifesta "no aroma fresco narrativa. O texto, intitulado "Muslim: Woman",
de pomar florido" que vai ao encontro do patrão ao narra o encontro casual de duas mulheres de cultu-
chegar em casa e que o deixa plenamente satisfeito, ras bem diferentes - uma ocidental e outra oriental
conforme declara ao padre Assunção: - num aeroporto africano. A personag9m narradora
introduz o leitor abruptamente nas suas reflexões,
Não a vejo, não lhe toco, a sua imagem ma- colocando-o a par de sua crise interior. Viajando
terial é-me tão indiferente como um pedaço de
com o marido, Eduardo, ela descobre o que já
pau ou uma pedra. Para mim, basta-me a sua re-
presentação, neste aroma, peculiar dela e que erra supunha, que é um ser invisível, sem identidade.
sutilmente por toda a minha casa; nesta ordem, que O marido não a vê como ela quer ser vista, não
me facilita a vida, e no gosto com que ela embeleza reconhece sua existência. A recorrência do verbo
tudo em que toca e em que pousa a vista.(p.142)
"ver", logo no início do conto, aponta a questão
da visibilidade da mulher enquanto sujeito, que só
Júlia Lopes de Almeida, dentro dos princí-
agora começa a ser construída.
pios cristãos, preserva a dicotomia corpo/alma,

•.. 30 •' •.. 31 •..


Estava fazendo tudo tão ao contrário do que a baixo, a mulher que de visível só tinha os olhos,
eu esperava que ele fizesse que aquilo ia aos pou-
cos anulando minha existência, numa prova cabal ainda que por trás de uma leve gaza de véu preto."
de que ele não me via; e de que, se eu quisesse (p16) Se o marido é o elemento detonador da crise
ser vista, precisava me mostrar. Mas como isso existencial da protagonista, o encontro com a muçul-
eu não faria por ninguém no mundo, nem faria mana dá uma outra dimensão ao conflito. Essa mu-
por mim, quem quisesse que me visse, se quisesse
me ver.(p.13)(grifos nossos) lher segura e tranqüila, de identidade bem definida,
cujo nome aparece até mesmo na própria mala (ela
As recordações da infância revelam uma crian- se chama Adama Acsa Sharif e que a protagonista
ça tímida, sempre buscando se esconder, se proteger. imagina "com a meia dúzia de filhos que ela devia
"Desde menina eu me criei abrigos, inventei guaritas ter em algum lugar, do mundo, ao norte de não sei
e trincheiras..."p.14 Daí sua insegurança em se ver que montanhas povoadas de mesquitas sob um sol
exposta, carregando pelos salões brilhantes do aero- escaldante" (p,18), tem uma importância fundamen-
porto uma mala de rodinhas barulhentas. Estamos tal no desfecho narrativo. A narradora, sentindo-se
diante de uma aparente contradição: a busca de escon- observada pela muçulmana, acolhe carinhosamente
derijos versus a necessidade de ser vista, reconhecida; o marido, ela que pensara em separar-se dele.

esta tensão estrutura toda a narrativa. A mulher "livre


Esqueci-me de Adama por um instante e pulei
e liberada" sente-se insegura ao se expor - "a lâmina no pescoço dele, beijando-o duas vezes no rosto.
do chão exibiu minhas pernas morenas, quiçá minha Ou talvez eu nem tenha me esquecido de Adama,
roupa íntima e branca, sob minha saia curta demais e tenha na verdade desejado mostrar a ela que
talvez para aquele aeroporto estrangeiro" (p.14) naquele momento eu aceitava, quase resignada,
não saber por que eu tinha me casado justamente
Por isso ela vai, secretamente, invejar a segurança com ele, que nem sempre me via. (p.18)
proporcionada pelos trajes da muçulmana, coberta
da cabeça aos pés. O confronto das duas mulheres É interessante observar que a narradora supe-
põe em evidência as enormes diferenças culturais: "a ra a crise "naquele momento" e "quase resignada",
mulher muçulmana toda coberta de preto, de cima o que revela, sem dúvida, a influência da resignação

••. 32 • ..• 33 ...


muçulmana à vontade de Deus, que se encontra no
termo islamismo e que o "lindo sorriso" da mulher
oriental transmite como forma de aprovação.
O corpo invisível da muçulmana representa a
cultura repressora, que a mulher ocidental em crise O corpo subalterno
interpreta como proteção e segurança; enquanto a
invisibilidade da protagonista significa sua inexistência
como sujeito. Ser vista, para ela, é uma forma de auto- Cresce comigo o boi Com ciuc me VO trocar
afirmação, o que seu status demulher "livre e liberada" Amarraram-me às costas a tábua fylekcssa.
não lhe garante. Portanto neste conto, o corpo invi- Ame Paulo Ribeiro Tavares
sível assume duas conotações diferentes, que acabam
convergindo para um só significado: a inexistência da
mulher como sujeito do próprio destino.
Em A intrusa, o corpo invisível se opõe à alma,
A leitura de Quarto de Deipejo (1960), de Carolina
Maria de Jesus, levou-nos à criação do corpo
subalterno, dada a enorme carência e inferioridade
mantendo a dualidade cristã, em detrimento da cor-
da situação da protagonista.
poralidade. Com Marilene Felinto, já se pode falar
Quarto de Despejo, diário de uma favelada, foi
em "subjetividade corporalizada"; a protagonista
quer ser vista como sujeito de seu destino, o que, um dos livros traduzidos para várias línguas, foi um
dos livros mais vendidos na França, nos Estados
sem dúvida, não acontece com a mulher muçulma-
Unidos e na Alemanha. Sua autora, semiletrada, pois
na, marcada pela resignação.
esteve apenas dois anos na escola, faz o registro de
sua vida miserável e, por extensão, de todos os que
vegetam naquela situação subalterna e subumana.
Entre nós, o sucesso da autora foi efêmero, não obs-
tante as inúmeras reedições em português de Quarto
de Despejo; o fato é que os livros posteriores, Casa de
alvenaria (1961), Provérbios (1963) , l'edaços dafome (1963) relação assimétrica das margens com centros de
e a publicação póstuma de Diário de Bitita (1986), não produção artística. Rita Terezinha Schmidt, sempre
tiveram a acolhida desejada por Carolina. Sua poesia atenta ao conteúdo ideológico da produção/inter-
sofre do mesmo mal - falta de público por ausência pretação dos discursos literários, afirma:
de editores. Só em 1996 a editora da UFRJ publica
Na realidade, os esquemas representacionais
Antologia Pessoal, organizada por José Carlos Sebe
do Ocidente, disseminados nas práticas culturais
Bom Meihy, com Prefácio de Mansa Lajolo. Aí se e discursivas, foram concebidos e construídos a
percebem as dificuldades encontradas pela poetisa partir da centralidade e da visão soberana de um
favelada no diálogo com as imposições de um mer- único sujeito, flexionado pela cor, branco, e pelo
cado editorial gendrado, racista e hegemônico gênero, masculino, o sujeito da representação por
excelência. Os significados gerados a partir desses
Eu disse: o meu sonho é escrever! esquemas que interpretam e fixam entidades/iden-
Responde o branco: ela é louca. tidades, sistema esse que Derrida definiu como
falogocen trismo, sempre estiveram a serviço do
O que as negras devem fazer...
E ir pro tanque lavar roupa poder institucionalizado da patriarquia, tanto no
campo do conhecimento quanto no campo da
sociedade e da política. (1995, p35)
Não foram só as incorreções gramaticais de
uma escritora semiletrada que dificultaram a circula-
Quarto de Depejo, com sua estrutura de diário,
ção da sua obra, mas também a falta de familiaridade
pode ser lido como o testemunho de uma mulher
com o intrincado mundo editorial. O caso da obra
subalterna. A literatura latino-americana é rica de
de Carolina Maria de Jesus nos leva a refletir sobre
exemplos de textos testemunhais, muitos deles
o papel dos mediadores culturais nos processos de
de autoria feminina. Luiza Campuzano aponta
construção de valores e de avaliação crítica. Hoje,
uma diferença básica entre esses "testimonios de
quando se observa a oscilação entre formas absolutas
mujeres subalternas": numa primeira divisão, ela
de valor e o relativismo crescente, torna-se relevante
admite os testemunhos imediatos ("inmediatos"),
discutir a atuação desses mediadores na atribuição
os escritos pelos/as próprios/as testemunhantes,
de valores literários, sobretudo em se tratando da

... 36 • ... 37 ...


e os mediatos ("mediatos"), com a interferência de considerado um dos modelos canônicos do gênero,
um/a segundo/a narrador/a. Aqui, pressupõe-se que e, em 1992, é premiada com o Nobel da Paz, trans-
o/a silenciado/a é iletrado/a e, portanto, necessita formando-se numa líder do movimento dos povos
de um/a mediador/a para organizar o relato, trans- indígenas e do complexo processo de democratização
formando o texto oral em escrito. Gayatri Spivak de seu país. O livro premiado foi editado por Elizabe-
considera essas colaborações literárias uma forma de th Burgos Debray, que registrou em espanhol as in-
colonialismo ou neocolonialismo, uma vez que as formações prestadas por Rigoberta, constituindo-se,
intelectuais euroamericanas teriam a mesma atitude portanto, num exemplo de testemunho "inmediato".
do antropólogo tradicioni diante do informante Vale a pena citar as palavras de Luiza Campuzano,
nativo. Livia Freitas também levanta a questão então diretora da Casa de Ias Americas:
da interferência de um/a autor/a de outra cultura
numa narração oral, o que suscitaria problemas de Rigoberta pasó ocho días seguidos grabando
y trabajando con su editora un libro que liegaríz
diversas naturezas, que vão do ético e do estético à
a tener cerca de 400 páginas, co Ias que da abun-
relação entre o ficcional e o factual. O caso de Quarto dantísirna información sobre sí inisma, su família,
de Deipejo é bem mais simples, uma vez que é a pró- su con-runidad y sus tradiciones, los objetivos y
pria Carolina o sujeito da enunciação, em primeira Ia historia concreta de su lucha armada, así como
sus proyectos políticos, con Ia íinalidad explícita
e única instância, embora se aponte como decisiva
de recibir apoyo y solidaridad ititernacionales
a interferência do repórter Audálio Dantas para a sobre Ia base de un c000cimienlo profundo de
publicação dos cadernos de Carolina. todo lo que ha conducido a la situación de guerra
Uma aproximação entre Rigoberta Menchú permanente que vive cl pueblo guatemalteco y co
especial ai extermino masivo de los indígenas,
(1959), indoamericana guatemalteca, e Carolina Ma-
victimas de uno de los mayores etoocidios de este
ria de Jesus pode nos ajudar a melhor compreender siglo tan ducho en Ia materia. (1999, p36)
Quèirto de Despejo. Aquela mulher subalterna recebe,
em 1983, o prêmio Casa de Ias Americas de Teste- Rigoberta, excluída porque mulher, porque
munho por sua narrativa Me 1/amo Rzgoberta Menchú, indígena e porque contrária ao regime de força do-

•.' 38 ... 39 ...


minante, considera sua situação pessoal emblemática e uma menina, que insiste em ficar sozinha, pois os
da realidade social onde vive: "Mi situación personal homens, até então, só lhe trouxeram problemas.
engloba toda Ia realidad de un pueblo". Dotada "Meu ideal é comprar uma casa decente para os meus
de grande consciência política, acredita no poder filhos. Eu, nunca tive sorte com homens. Por isso
da palavra como instrumento de luta, fazendo de não amei ninguem. Os homens que passaram na
sua narrativa uma gritante denúncia. Ao decidir-se minha vida só arranjaram complicações para mim.
não casar e não ter filhos, dedica sua vida à causa Filhos para eu criá-los." (p180)
libertadora de "su pueblo". São três as ações que ela realiza diariamente:
Quarto de Deipejo é, tivez, menos ambicioso buscar água de madrugada, catar papel para conse-
e sua autora carente daquela tradição cultural, que guir algum dinheiro que lhe possibilite matar a fome
enriquece o relato de Rigoberta. Mas a exclusão e, quando possível, escrever. O que choca o leitor
social da autora e o intuito de denúncia estabelecem é o inusitado da situação: vivendo na mais absoluta
uma ponte com o gênero "testemunho de mulheres miséria, tendo muitas vezes de procurar alimento
subalternas", a que pertencem vários livros da lite- no lixo, Carolina sonha com a ascensão social e
ratura latino-americana. escreve com o propósito de vender seu livro para
Os registros da narrativa de Carolina co- melhorar de vida; o que, de certo modb, consegue,
meçam em 15 de julho de 1955 e se estendem até pois compra um sítio, com o dinheiro da venda dos
primeiro de janeiro de 1960, mas não são diários livros, e lá retoma a vida de lavradora, interrompida
e há mesmo alguns lapsos maiores, em virtude de com a permanência na favela.
doenças e outros problemas. 1-lá registros completos A descrição que Audálio Dantas faz do bar-
das atividades diárias - desde a hora em que começa racão, onde Carolina mora com os filhos, dá bem a
sua luta pela sobrevivência até a hora de dormir - e medida da situação social dessa mulher:
também simples notações, como é o caso do dia
26 de agosto de 1959: "A pior coisa do mundo é a O barraco é assim: feito de tábuas, coberto
de lata, papelão 'e tábuas também. Tem dois
fome" (p. 181). A leitura do diário revela a rotina cômodos, não muito cômodos. Um é sala-quarto-
dessa catadora de papel, mãe zelosa de dois meninos

•.. 40
cozinha, nove metros quadrados, se muito for; e espécie de chaga social, feita de miséria, lama e lixo.
um quarto quartinho, bem menor, com lugar para
Carolina, em alguns registros, se refere às casas de
uma cama justinha Li dentro. (.1960, p. 5)
alvenaria, representação de uma outra classe social:
"Os vizinhos de alvenaria olha os favelados com
A fome, que caracteriza urna situação subu-
repugnancia. Percebo seus olhares de odio porque
mana, drama dominante na narrativa, contrasta
êles não quer a favela aqui." (p56) Carolina não se
com a vocação "literária" dessa mulher, sempre
identifica com a favela e confessa, seguidamente,
às voltas com o ofício de escrever. Daí a impor-
sua aversão ao "quarto de despejo", para onde a
tância que os alimentos assumem na narrativa.
sociedade empurra os miseráveis: "Favela, sucursal
São pouquíssimos os registros onde a autora não
do inferno, ou o próprio inferno". (p158) Dife-
se refere ao ato de comer:
rentemente de Rigoberta Menchú, Carolina não
Quando vejo meus filhos comendo arroz e se sente integrada à favela; enquanto a subalterna
feijão, o alimento que não está ao alcance do fa- guatemalteca se identifica com "su pueblo", que ela
velado, fico sorrindo atôa. Como se eu estivesse defende da exploração do branco, nossa autora só
assistindo um cspetaculo deslumbrante. Lavei as
pensa cm ascender socialmente, para propiciar a si e
roupas e o barracão. Agora vou ler e escrever. Vejo
os jovens jogando bola. E êles correm pelo campo a seus filhos uma vida melhor. A graná diferença é
demonstrando energia. Penso: se êles tomassem que a favela é um conglomerado de pessoas de várias
leite puro e comessem carne.....(p50) origens, que só têm em comum a vida miserável. As
freqüentes brigas relatadas pela autora dão bem a
Se a fome é o elemento fundante do drama medida do clima de desavença reinante. Como ela
vivido pela favelada - "Tambem, com a fome se considera culturalmente superior, porque lê e
que eu passo quem é que pode viver contente?" escreve, não faz amizades e não se integra, ficando,
(p121) -, a favela é o cenário que contribui para a por isso, duplamente excluída: da classe dominante
marginalização. A favela do Canindé, hoje extinta, e da classe dominada. Os vizinhos, com raríssirnas
espraiando-se pelas margens do rio Tietê, ci urna exceções, são péssimos, briguentos, alcoólatras : "E

... 43 ...
eu estou revoltada com o que as crianças presenciam. enunciado. Carolina, apesar de negra, catadora de
Ouvem palavras de baixo calão. Oh! Se eu pudesse papel e favelada, sente-se diferente dos demais porque
mudar daqui para um núcleo decente" (p.15) Caro- dispõe do dom da palavra escrita; e, como Rigoberta
lina, então, faz uma declaração que possivelmente Menchú, faz desse dom uma arma de denúncia, apon-
surpreende o leitor: "A unica coisa que não existe tando todos os aspectos negativos da vida na favela e
na favela é solidariedade". (p17) Mas a extinta favela as injustiças cometidas contra os miseráveis:
do Canindé estava longe de ser uma comunidade
Eram sacos de arroz que estavam nos armazens
pobre. Entre pobreza e miséria há uma diferença e apodreceram. Mandaram jogar fora. Fiquei
substancial, que os socilogos já determinaram, horrorizada vendo o arroz podre. Contemplei as
apesar da imprecisão a que esses vocábulos estão traças que circulavam, as baratas e os ratos que
sujeitos, como mostra Ricardo Mendonça. corriam de um lado para outro.
Pensei: porque é que o homem branco é tão
perverso assim? Êle tem dinheiro, compra e põe
Para efeito estatístico, no entanto, os estudiosos nos armazens. Fica brincando com o povo igual
chegaram a uma definição quase matemática sobre gato com rato. (p142)
o que são miséria e pobreza. Conseguiram estabe-
lecer duas grandes linhas. Uma delas é a linha de
pobreza, abaixo da qual estão as pessoas cuja renda São freqüentes e veementes as aqusações con-
não é suficiente para cobrir os custos mínimos de tra o poder econômico, refletindo conhecimento
manutenção da vida humana: alimentação, mora- da História e da realidade presente: "Na minha
dia, transporte e vestuário. Isso num cenário em
opinião os atacadistas de Saõ Paulo estão se diver-
que educação e saúde são fornecidas de graça pelo
governo. Outra é a linha de miséria (ou de indi- tindo com o povo igual os Cesar quando torturava
gência), que determina quem não consegue ganhar os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o
o bastante para garantir aquela que é a mais básica Cesar do passado. Os outros era perseguido pela
das necessidades: a alimentação. (2002, p. 84) fé. E nós, pela fome!" (p140)
Esse mesmo tom de denúncia atinge tam-
Note-se que há sempre um distanciamento
bém os políticos, que faturam em cima da miséria
entre o sujeito da enunciação e as personagens do dos favelados. Carolina tem consciência do que

... 45 ..,
significa a favela como investimento político, mas, sobretudo, sentimento patriótico: "Precisamos
sobretudo em época de eleição. livrar o paiz dos políticos açambarcadores.." (p.40)
Seu amor à pátria nada tem de piegas, mas é fruto da
O senhor Cantídio Sampaio quando era ve- noção de justiça social, presente em toda a sua narra-
reador em 1953 passava os domingos na favela.
Êle era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia tiva. O preconceito racial, do qual é vítima, é um dos
nas nossas xicaras. Êle nos dirigia as suas frases temas abordados, muitas vezes de forma lírica:
de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou
boas impressões por aqui e quando candidatou-se a A vida é igual um livro. Só depois de ter
deputado venceu. Mas na Camara dos Deputados lido é que sabemos o que encerra. E nós quando
não criou um progeto para beneficiar o favelado. estamos no fim da vida é que sabemos como a
Não nos visitou mais. (p33) nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem
sido preta. Preta é a minha Pele. Preto é o lugar
Sua denúncia chega até Juscelino Kubitschek, onde eu moro. (p160)
então Presidente da República, e reveste-se de um
teor metafórico e ameaçador: A representação que a narradora faz de seu
corpo traz as marcas da subalternidade, isto é, apon-
O que o senhor Juscelino tem de aproveitavel é ta uma escala social hierárquica, onde o subalterno
a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradavel aos
ocupa o ínfimo espaço. Como a favela "é o chiqueiro
ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola
de ouro que é o Catête. Cuidado sabiá, para não de São Paulo" (p.170), esse corpo sente-se impregna-
perder esta gaiola, porque os gatos quando estão do pela sujeira local: "Já habituei-me andar suja. Já
com fome contempla as aves nas gaiolas. E os faz oito anos que cato papel". (p23) É o espaço físico
favelados são os gatos. Tem fome. (p35)
e social, levando-se em conta a profissão da autora,
o responsável pela degradação de seu corpo. Há mo-
Seu sentimento de revolta não se prende,
mentos da narrativa em que esse corpo subalterno
unicamente, à miséria dos favelados, mas tem uma
se evidencia pelo próprio peso que carrega: "Que
dimensão maior, uma vez que abrange o país como
suplício catar papel atualmente! Tenho que levar a
um todo, revelando não só uma consciência política
minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos,

••. 46 • ... 47 •..


e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na lingüística faz parte de um contexto de opressão e
cabeça e levo-a nos braço." (p23) (grifo nosso) Se ela carência e deve ser vista como integrante de um
assume a degradação do corpo como conseqüência mundo marginalizado.
de sua profissão, não o faz sem revolta: Gayatri Spivak, em Can the suba/tem speak.?, em
resposta ao título de seu trabalho, chega à conclusão
Fiz arroz e puis agua esquentar para eu to-
mar banho. Pensei nas palavras da mulher do de que o subalterno não pode falar. Analisando a
Policarpo que disse que quando passa perto de auto-imolação das viúvas na Índia, ela considera que
mim eu estou fedendo bacalhau. Disse-lhe que nessa sociedade a mulher praticante do sati é emble-
eu trabalho muito, que havia carregado mais de mática do silêncio subalterno por estar duplamente
100 quilos de papel E estava fazendo calor. E o
corpo humano não presta. oprimida, tanto pelo patriarcado, que legitima seu
Quem trabalha como eu tem que feder! suicídio, quanto pelo discurso pós-colonial, que
(p131) não dá voz às mulheres para discutir a questão. Em
"Quem reivindica a alteridade?", a crítica indiana
Esse corpo subalterno é um corpo violenta- aponta a singularidade e solidão dessa mulher
do pela fome, pela miséria circundante, pela degra- subalterna, uma vez que se encontra deslocada
dação do espaço, pela reificação, como se observa socialmente. "Separada do centro do feminismo,
na revolta contida nas palavras da narradora: "E essa figura, a figura da mulher da classe subalterna,
quando estou na favela tenho a impressão que sou é singular e solitária." (p. 191)
um objeto fora de uso, digno de estar num quarto Wanda Fabian tem uma obra bastante varia-
de despejo." (p.37, grifo nosso) da, com alguns bons romances, como O Evan&e/ho
,Quarto de Deipejo faz do corpo subalterno da Incerteza (1974). Em 2003, ela publica um livro
um instrumento de denúncia, ao transformar a inusitado, cujo título -As mil e uma agrades - remete aos
vida miserável dessa favelada numa narrativa que contos das Mil e uma noites. Trata-se de uma coletânea
transgride o modelo canônico e se coloca como um de doze textos, precedidos por uma Introdução,
gênero de fronteira, expressão de uma mulher opri- onde a narradora se apresenta como detenta de uma
mida. É mal escrito, sim; mas a própria incorreção

•. 48 •
prisão de mulheres, usando sua imaginação todas as outro nu, os braços abertos para os lados, o queixo
noites para contar uma nova história. Como Shera- grudado no asfalto." (p.77) Esta situação perde sua
zade, ela deixa sempre o desfecho para o dia seguinte, tonalidade dramática, porque é trabalhada humo-
mantendo assim a audiência cativa e usufruindo be- risticamente. A narradora (mantemos o feminino,
nesses no espaço da prisão, pois fazem parte dessa au- pois é uma detenta a contadora de histórias) vai
diência duas carcereiras que acompanham as histórias mostrar as diferentes reações da comunidade diante
sofregamente. A diretora do presídio a mantém sob dessa mulher estatelada no asfalto, sob o peso do
vigilância, uma vez que teme o efeito dessa fantasia cofre. O motorista negro, apesar de preocupado
sobre as detentas, ratificandô a tese de que a literatura com a "transferência da sua carga", foge acelerado,
é sempre subversiva, porque faz pensar. acabando por matar o gato.
Dentre os doze contos, interessa-nos aqui Trata-se de um bairro pobre, e os moradores
o denominado "Mulher debaixo do cofre", uma se transformam em espectadores, aproveitando a
alegoria bem humorada da condição subalterna novidade para quebrar a rotina. Todos se manifestam
da mulher. O conto tem um quê de fantástico, de alguma forma, mas sempre procurando tirar par-
uma vez que narra a situação de uma mulher que, tido da situação. O marido, que jogava sinuca, tem o
ao atravessar a rua, sofre um acidente: um negro, cuidado de salvar as compras, levando-a para casa. A
dirigindo uma caminhonete em alta velocidade, pedido da acidentada, tenta, sem êxito, tirar o cofre
tentando evitar o atropelamento de um gato, freia de cima dela, mas cumpre suas ordens referentes à
violentamente jogando a carga, um pesadíssimo cofre, casa e aos filhos: "Você quem manda Mulher." (p.78)
sobre a mulher. "O gato escapou, miando. O cofre Um advogado aparece, como sói acontecer, para
escorregou, a correia que o prendia partiu-se e ele foi oferecer seus préstimos, intentando "um processo
cair em cheio sobre as costas da mulher." (p.77) por danos morais" contra o dono do cofre!
Começa, então, o drama dessa personagem, Os deslocamentos semânticos constroem o
"dona de casa, estirada em plena via pública, as per- absurdo, pois a protagonista continua viva e lúcida
nas varicosas abertas, um pé calçado de sandália, o sob o cofre. Em momento algum grita, chora ou
reclama, mantendo sua tradicional passividade. O foi anunciado o sorteio de uma geladeira como brin-
padre, que logo chega para dar a extrema-unção, o de, entre os presentes. O vencedor deveria acertar o
engenheiro, que procura usar seus conhecimentos que havia dentro do cofre. Cada um opina, segundo
técnicos com uma alavanca, e até mesmo a melhor seus desejos - ouro, maconha, dólares. Só a Mulher
amiga da "Cofrada", querendo saber a receita secreta expressa o que ela estava de fato sentindo - chumbo.
do pão de ló, todos, enfim, manifestam seus interesses O motorista fujão reaparece dizendo que não havia
e jamais a real vontade de salvar a Mulher. Isso fica nada, mas, como foi reconhecido, não levou a gela-
por conta de um dos filhos, que sugere o elefante do deira, que acabou ficando para a Mulher.
circo para empreitada tão pesada. É então acionado o Ela é, finalmente, libertada do cofre, mas fica
dono do circo, que, como os demais, vai tirar partido para sempre curvada, fitando o chão. "Debalde Mari-
da situação: "Tudo bem, eu empresto o Zaratrusta, do, filhos, melhor amiga e vizinhos lhe asseguravam
mas só se vier a Televisão." (p.80) Logo, o vereador que estava livre. Ela não conseguia crer." (p.86) Presa
também quis ser entrevistado. Para o elefante foi uma aos afazeres domésticos, à família sempre em expan-
tarefa fácil, mas, como a TV ainda não havia chegado são - "Mês seguinte, cumprindo a promessa feita
- agora o máximo do absurdo -, o cofre teve de voltar ao Marido, deu a luz ao quarto filho varão" -, não
para cima da mulher. "Pelo que o dócil paquiderme acredita na liberdade. Não é por acasb que o título
de novo colocou suavemente o cofre pesando uma do livro, articulado à ilustração da capa, remete à
tonelada por sobre o seu suporte carnal." (p.8I) idéia de prisão, literal e simbolicamente, representada
O discurso mais surreal é o do animador do pelo espaço das narrativas. As grades representam os
programa da TV patrocinado pelo sabão em pó Di- obstáculos que impedem a liberdade da mulher.
ligente, que faz parte da série "A Vitória da Mulher No conto, as personagens não têm nome,
Brasileira". Diz ele: "Hoje é uma simpática dona de mas a mulher e o marido são grafados com maiús-
casa suburbana, agüentando sobre o corpo cansado cula, com o propósito de abstraí-los da situação
das lides domésticas uma to-ne-la-da de aço!" p.81) narrada e projetá-los no âmbito da sociedade, numa
Como não poderia faltar num programa desse tipo, postura crítica feminista. 0 cofre, utensílio usado
para guardar valores, representa o sistema com seu
poderio econômico. A protagonista mora no subúr-
bio numa casa que só terminará de pagar em trinta
anos; e é desse contraste entre o significado do cofre
e a carência da Mulher em situação subalterna que
O corpo disciplinado
emana o subtexto da alegoria, instigantc mistura do
fantástico com o cotidiano.
é CSSC C011tt()]Csobre OS COlI )O5 (155 pessoas
(IIIC é (> CStCiO LIS organização SOCO1 dominadora,
l<iaiie Lis/e,

A de Clarice Lispector, tem sido


hora da estrela,
objeto das mais variadas abordagens críti-
cas, e até hoje continua despertando o interesse
dos/as pesquisadores /as, Macabéa 1 a nordestina
feia, pobre e despreparada para a vida na cidade
grande é um prato feito para a crítica feminista,
sempre atenta às assimetrias de poder tão bem
representadas por Clarice no par Macabéa /
Olímpico. Apesar de ambos serem "nordestinos
bichos da mesma espécie que se farejam" (p53),
ela "era um parafuso dispensável" (p36), enquan-
to o namorado, "macho de briga"(p.70), traz no
próprio nome a promessa de vitória.
Aqui nos interessa a personagem Macabéa nula: "Ela somente vive, inspirando e expirando,
com seu corpo cariado, construção discursiva do inspirando e expirando" (p30); "ela mal tem corpo";
narrador Rodrigo, alter ego da autora, que faz de "cara de tola, rosto que pedia tapa" (p31); "Sumira
seu texto um grito de denúncia - um dos títulos por acaso a sua existência física?" (p32); "ela que
sugeridos é o "Direito ao grito"-, tentando descobrir não parecia ter sangue" (p32); "Não sabia que era
o(s) culpado(s) por tal existência. "A moça é uma infeliz" (p.33); "Ninguém olhava para ela na rua, ela
verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem era café frio" (p.34); "Nascera inteiramente raquí-
tica" (p35); "era extremamente muda" (p37); "ela
acusar mas deve haver um réu." (p.48)
As indagações dos texcos clariceanos, freqüen- era capim" (p38); "saudade do que poderia ter sido
e não foi" (p.41); "pequenos óvulos tão murchos"
temente sem respostas, em A hora da estrela levam o
leitor a soluções pouco confortáveis. A existência (p41); "de aparência era assexuada" (p.42); "sentia
de macabéas tem a ver com todo o sistema social falta de encontrar-se consigo mesma" (p43); "corpo
cariado" (p43); "quando acordava não sabia mais
do qual fazemos parte. O narrador sente-se na
obrigação de revelar essa realidade: "Porque há o quem era" (p.44); "ela era um acaso" (p45); "vivia
direito ao grito. Então eu grito." (p.18) E nós, o de si mesma como se comesse as próprias entranhas'
que fazemos? Fingimos ignorar?, pois, segundo o (p.46; "sucessivos e redondos vácuos quê havia nela"
narrador: "Assim é que os senhores sabem mais do (p47); "lhe faltava gordura e seu organismo estava
que imaginam c estão fingindo de Sonsos." (p.17) seco" (p47); "estava acostumada a se esquecer de si
A personagem Macabéa traz, inscritas no seu mesma" (p.60-1); "era fruto do cruzamento do 'o quê'
corpo, as marcas de um Sistema injusto e repressor. com 'o quê" p.71); "vazia, vazia" (p75); "anonimato
O "sentimento de perdição" que o narrador capta total pois ela não é para ninguém" (p.82; "seu sexo
no rosto de uma moça nordestina, numa rua do Rio era a única marca veemente de sua existência." (p.84
de Janeiro, além de dar concretude à personagem, Esses e muitos outros exemplos dão bem a medida
aponta um problema social a exigir solução. São de uma "corporalidade psíquica" anulada, uma vez
inúmeras as evidências corporais de uma existência que é definida pela negatividade, pela ausência.

•.. 56
Arthur Frank, no ensaio por nós já citado, masculina, completa as idéias expostas sobre o "cor-
ao criar uma tipologia dos corpos, institui o corpo po disciplinado", de Arthur Frank, e os "corpos
disciplinado ("the disciplined body"), cuja caracte- dóceis", de Foucaült. Ela define a "força simbólica"
rística básica é a carência garantida pela disciplina. como "uma forma de poder que se exerce sobre os
As regras impostas convivem com a noção de corpos, diretamente, e como que por magia, sem
carência sem soluciona-la, impedindo, porém, a qualquer coação física". (p50) É verdade que, no
desintegração. Trata-se de um corpo previsível, caso dos corpos disciplinados e dóceis, os proce-
uma vez que ser previsível é tanto o meio quanto dimentos são mais rigorosos e evidentes, incluindo
o resultado final das regras impostas. punições e prêmios. A violência simbólica, porém,
Outro teórico do corpo disciplinado é Fou- tem uma ação transformadora que se manifesta de
cault, que através de seus "corpos dóceis" explicita, maneira invisível e insidiosa, através de interações
em I/giar e Punir, todo o poder da disciplina: "Esses prolongadas com as estruturas de dominação. O
métodos que permitem o controle minucioso das resultado visado é um só: a submissão às regras em
operações do corpo, que realizam a sujeição cons- todos os níveis. As instituições - Família, Igreja,
tante de suas forças e lhes impõem uma relação de Escola e Estado - são agentes que contribuem para a
docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as dominação, que se institui por intcrmédo da adesão
'disciplinas" (p.118) que o dominado não pode deixar de conceder ao
A descoberta do corpo como objeto e alvo dominante. Diz Bourdieu: "Os dominados aplicam
do poder suscitou uma teoria geral do adestra- categorias construídas do ponto de vista dos domi-
mento, no centro da qual reina a noção de "do- nantes às relações de dominação, fazendo-as assim
cilidade". Em qualquer sociedade, diz Foucault, ser vistas como naturais." (p46).
"o corpo está preso no interior de poderes muito Para melhor compreendermos a relação entre
apertados, que lhe impõem limitações, proibições a carência e a subordinação às regras, no caso de
ou obrigações." (p118) Macabéa, citamos mais uma vez Arthur Frank:
A teoria de Pierre Bourdieu sobre a "violência
simbólica", tão bem desenvolvida em A dominíio

58 --- ... 59 ...


Para que a disciplina mantenha-se, a noção de toda e qualquer possibilidade de autoconsciência,
carência deve permanecer consciente. Para susten- como no exemplo seguinte: "Por falar em galinha,
tar a consciência da carência do corpo disciplinado, a moça às vezes comia num botequim um ovo
é comum para este inscrever-se em alguma ordem
hierárquica (militar, monástica ou outra), na qual duro. Mas a tia lhe ensinara que comer ovo fazia
estará perpétua e justificadamente subordinado. A mal para o fígado. Sendo assim, obedientemente
carência justifica a subordinação, a qual, por sua adoecia, sentindo dores do lado esquerdo oposto
vez, reproduz a carência. (trad. livre) 2 ao figado." (p42) Não é só a tia a responsável pela
"regimentation" de Macabéa. Ao ouvir a Rádio Re-
Se aplicarmos essa teoria, ilustrada pelo autor
lógio, ela incorpora ensinamentos que muitas vezes
com a vida militar e monástica, às regras incutidas
não compreende: "Eles disseram que se devia ter
pela tia carola de Macabéa, responsável pela sua
alegria de viver. Então eu tenho." (p.62) Como diz
"formação", veremos que o vazio existencial da
o narrador, "ela é doce e obediente." (p.33) A obedi-
personagem, isto é, sua carência (lack), sustenta-se
ência à disciplina sustenta sua existência vazia e ela
pela obediência cega a essa regimentação. Ao ver o
passa o dia "representando com obediência o papel
rinoceronte, no Jardim Zoológico, se mija de medo,
de ser." (p45) Anúncios para ela são como ensina-
e como Olímpico, com quem ela estava, nada perce-
mentos que ela decora para usar quando necessários.
be, "ela rezou automaticamente em agradecimento.
"Outra vez ouvira: 'Arrepende-te em Cristo e Ele
Não era agradecimento a Deus, só estava repetindo o
te dará felicidade'. Então ela se arrependera. Como
que aprendera na infância." (p.67) Este aprendizado
não sabia bem de que, arrependia-se toda e de tudo.
(reimentation) , que ela reproduz cegamente, anula O pastor também falava que a vingança é infernal.
Então ela não se vingava." (p.46) A Igreja, com seu
poder manipulador, também se faz presente, através
2 For discipline to be sustained, lhe sense of lack miisl remai,z consciotis.
One devi cc for sustainin,g lhe consciousness of lack is for lhe discip/ined bo(!y dos ensinamentos da tia, que são incorporados por
to place itself ia some hierarchy 'militaeji, monaslic or olhe,,), ia which ii is Macabéa, sem que ela os compreenda. Da mesma
perpetual/y, and to itself jusli.fiable, subordi)iated. Thus snhwb,uilion is a
mediam and oulcome of lack. The lackjuslijies Me subordinalion, which ia
forma, a Rádio Relógio, como representante da
lura reproduces lhe lack. (A55)

•• 60
feliz." (p. 94-5) A educação repressora da tia, na
mídia, é responsável pelo aprendizado da perso-
base dos castigos e cascudos, dissocia Macabéa de
nagem O fato de ela adorar os anúncios, 'a ponto
de colecioná-los, é bem significativo; a linguagem si mesma: 'A menina não perguntava por que era
sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e
publicitária é altamente manipuladora, e Macabéa,
não saber fazia parte importante de sua vida." (p36)
como corpo dócil, é mais uma vítima do apelo
Ela não reage, não grita, não luta. Essa função fica
consumista. Diante do anúncio de um creme para a
por conta de Rodrigo, o narrador, que ao final da
pele, "ficava só imaginando com delícia: o creme era
narrativa, morta Macabéa, lembra-se de que, por
tão apetitoso que se tivesse dinheiro para comprá-lo
enquanto, é tempo de morangos, voltando assim à
não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria,
alienação burguesa tão condenada.
isso sim, às colheradas no pote mesmo." (p47)
A tia, apesar de já falecida no presente da
enunciação, representa a família de Macabéa, órfã
Encontramos outro exemplo de corpo dis-
de pai e mãe. Seus métodos disciplinares empregam
ciplinado no conto "1 love my husband", do livro
desde o castigo - a privação da goiabada com queijo,
O calor das coisas, de Nélida Piflon. Trata-se de um
"a única paixão de sua vida" - até os cascudos no alto
monólogo de uma mulher casada, cjo fluir das
da cabeça, como forma de punição. A autoridade da
idéias diz respeito às suas relações matrimoniais.
tia nunca é contestada, uma vez que não compete ao
O título, por ser em inglês, já denota a presença de
corpo disciplinado questionar os procedimentos.
uma cultura dominante impondo um padrão com-
Macabéa não sabia que era infeliz; até essa
portamental, além de inserir o texto na banalização
consciência lhe faltava. Ela só vai se dar conta da sua
do sentimento amoroso. É como se não se pudesse
infelicidade durante o diálogo com a cartomante.
deixar de amar o marido. O poder da disciplina
"Madame Carlota havia acertado tudo, Macabéa
já se faz presente desde o título, sendo reiterado,
estava espantada. Só então vira que sua vida era uma
enfaticamente, no início da narrativa: "Eu amo
miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado
meu marido. De manhã à noite." (p59) Durante
oposto, ela que, como eu disse, até então se julgava

••. 62
todo o monólogo, vai se evidenciando, sutilmente, O marido não é apenas o tradicional provedor ma-
a presença de ensinamentos (reimentation) a que a terial, mas um ser poderoso, do qual tudo depende,
narradora sempre se submeteu, a começar pela pois é ele que traz para "o lar alimento, esperança,
família, primeiro núcleo socializador, onde o pai, a fé, a história de uma família".(p.65) Toda essa res-
representante do sistema patriarcal, incute na filha ponsabilidade lhe dá o direito de cercear a liberdade
a submissão ao marido: da mulher, que se acomoda a ler o mundo através
das palavras dele; assim, fica garantida a estabilida-
Já viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida de do casamento, uma vez que o perigo reside nas
nunca revelada, que ninguém colheu senão o palavras incompatíveis com o destino de mulher.
marido, o pai dosseus filhos? Os ensinamentos
paternos sempre foram graves, ele dava brilho de A narradora se compara a uma árvore de que ele
prata à palavra envelhecimento. Vinha-me a certe- colhe os frutos, podando-lhe os excessos. O verbo
za de que ao não se cumprir a história da mulher, "podar", presente no texto, dá bem a medida da
não lhe sendo permitida a sua própria biografia, função castradora do marido.
era-lhe assegurada em troca a juventude. (p64)
Mas essa disciplina a que ela se submete se
esgarça nos momentos em que irrompe a fantasia;
Esse parágrafo mostra alguns aspectos impor-
nos momentos em que ela se sent "guerreira",
tantes para a compreensão do conto. Uma "vida
disposta a pegar cm armas, com um rosto que não
nunca revelada" é uma vida em negativo, sem ser
é mais o seu. Arthur Frank, em seu artigo já citado,
experenciada. A não permissão de uma biografia
diz que quando o corpo disciplinado sai de si mes-
própria faz parte do processo disciplinar, que im-
mo para relacionar-se com os outros assume uma
pede a mulher de viver sua própria vida para viver
atitude agressiva, valendo-se da força. Para ele, o
a do marido, este sim, provedor e construtor da
corpo disciplinado mantém uma relação monádica
realidade, enquanto a mulher apenas lhe alimenta
(monadic, isto é, relaciona-se consigo mesmo, está
os sonhos. "Assim fui aprendendo", diz a narradora,
entre os outros, mas não com os outros. O texto em
que a felicidade é estar a serviço do marido; daí o
questão, por ser um monólogo e pelo seu enunciado,
café, o bolo de chocolate servido nas horas certas.

•.. 64 •
revela isso com clareza. Quando a narradora se põe a no conto, apontam a emergente sensualidade da
fantasiar "uma aventura africana", ela extravasa toda mulher. Valem aqui as palavras de Arthur Frank a
sua agressividade e sensualidade. Vejamos: respeito da reação do corpo disciplinado: "Quando
a disciplina interna não pode mais neutralizar o tema
Seguida por um cortejo untado de suor e de sua própria contingência, o corpo disciplinado
ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus migra para a dominação, subjugando o corpo dos
caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto
Clark Gable, atraído pelo meu cheiro e do ani- outros a um controle que ele não pode exercer sobre
mal em convulsão, ia pedindo de joelhos o meu si mesmo." (trad. livre)'. É o que sonha a nossa pro-
amor. Sôfrega pelo14 esforço, eu sorvia água do tagonista: viver uma aventura selvagem, dominando
rio, quem sabe era busca da fclirc que estava em o macho e "aos gritos proclamando a liberdade."
minhas entranhas e eu não sabia como desper-
tar. A pele ardente, o delírio, e as palavras que (p62) Quando se sente "guerreira", devendo "con-
manchavam os meus lábios pela primeira vez, eu quistar outra pátria, nova língua, um corpo que
ruborizava de prazer e pudor, enquanto o pajé sugasse a vida sem medo e pudor", mergulha "numa
salvava-me a vida com seu ritual e seus pêlos far- exaltação dourada", que logo desaparece quando
tos no peito. Com a saúde nos dedos, da minha
boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava busca "o socorro das calçadas familiares", onde "sua
então o Clark Gable amarrado numa árvore, vida está estampada". Essa referêncii ao familiar
lentamente comido pelas, formigas. (p.62) nos remete à protagonista do conto "Amor", de
Clarice Lispector, que, levada pelo marido, afasta-se
A referência a Clark Gable, ídolo do cinema do "perigo de viver", mergulhando novamente na
americano na década de 50, implorando seu amor, escuridão doméstica, no "destino de mulher".
representa a vingança contra o desinteresse amoroso Trata-se de um texto difícil em função de suas
do marido que, segundo ela, esforça-se cm amá- proposições implícitas. O leitor deve funcionar como
la, achando que falar em amor é perda de tempo
"quando se discutem as alternativas econômicas."
3 i7hen interna/ disp/im' cciii /10 /on,ge/' /le//ln//12y Me threat of its own con-
(p61) Os "pêlos fartos no peito", que são reiterados li/igeny, tbe dicpIiiieI hoily ,m,) l,n,n lo (IONJ/m///O/l, enforcinr on lhe bodies
of others lhe conlro/ il (nh/1ol e','Ic/c o/el /se/f" 6A55).

•• 66 67
co-enunciador para preencher as lacunas, para captar Sinto então a boca seca, seca por um cotidiano
que confirma o gosto do pão comido às vésperas, e
o não dito no dito. Dominique Maingueneau, em
que me alimentará amanhã também. Um pão que
Pragmática para o discurso literário, chama nossa atenção ele e eu comemos há tantos anos sem reclamar,
para a importância do implícito, quando declara: ungidos pelo amor, atados pela cerimônia de um
casamento que nos declarou marido e mulher. Ah,
Esse interesse pelo implícito é aliás natural, se sim, eu amo o meu marido. (p.67)
pensarmos que a pragmática concede todo o peso
às estratégias indiretas do enunciador e ao trabalho de O pão tem uma dimensão simbólica - o
interpretação dos enunciados pelo co-enunciador.
Muitas vezes o locutor enuncia o explícito para pão nosso de cada dia -, pois remete à secura de
fazer o implícito passar, invertendo a hierarquia uma rotina, sem salvação, uma vez que eles foram
"normal" para chegar a seus fins. (sic, p89) "ungidos" e "atados ".Temos aqui dois adjetivos
ambíguos, uma vez que "ungido" remete aos santos
Esses "fins", no caso do nosso monólogo, óleos das sagrações, mas também à extrema unção
desconstroem o tão propalado amor da protago- aos agonizantes, e "atado" tanto pode representar
nista por seu marido. O implícito do texto é o a união como a repressão, como nos "laços de fa-
que importa, uma vez que é onde se encontra a mília" clariceanos. O casamento, con10 instituição,
verdade. O não dito vale mais do que o dito; este é o responsável por esta prisão, uma vez que os
reitera o sistema patriarcal, com a mulher submissa declara "marido e mulher'. Daí as palavras finais da
ao marido, em todos os sentidos. O aprendizado narradora: "Ah, sim, eu amo o meu marido", onde
das regras que fazem dela um corpo disciplinado é a interjeição e a afirmativa, em vez de reforçarem
resultado da "violência simbólica" de que nos fala o amor pelo marido, colocam-no como uma das
Bourdicu. Mas os atos de linguagem presentes no regras da disciplina a ser seguida.
texto criam ambigüidades, que nos fazem buscar Esse corpo disciplinado tem seus momentos
o implícito. Um bom exemplo está no final do de indisciplina, que a mulher chama de "meus atos
conto, quando a narradora confessa: de pássaro', de "galopes perigosos e breves", numa
clara referência à vida natural. Porém, o sentimento Num salto me levantei e quando ele me puxou
de novo pelo cabelo e me sacudiu assentei o ferro
de culpa resgata a disciplina e ela, contrita, promete
na cabeça dele. Assim que comecei a bater fui
a si mesma esquivar-se de tais tentações. ficando com tanta raiva que bati com vontade e
O que distancia, até certo ponto, esta narra- só parei de bater quanto o corpo foi vergando pra
dora de Macabéa é o nível de elaboração mental, que frente e a cabeça caiu bem em cima da direção. A
buzina começou a tocar. Tive um susto danado
no caso de Macabéa inexiste. Mas a sensação da falta
porque pensei que ele estivesse chamando alguém.
(Iac/e) é a responsável pela docilidade desses corpos, Mas ele parecia dormir de tão quieto. (p.1 16)
sempre passíveis de sofrerem as regras impostas.
É a primeira vez que, em sua história, a
protagonista age violentamente, obedecendo mais
Com seu conto "A confissão de Leontina", ao instinto do que à reflexão, já que antes ainda
Lygia Fagundes Teiles nos fornece um exemplo tenta ser condescendente, no estilo "boa menina",
significativo de corpo disciplinado. Como observa que sempre norteou seu comportamento, como
Cláudia Castanheira em sua dissertação de Mestra- mostram suas palavras: "Me arrependia muito da
do, trata-se do "drama de uma mulher oprimida malcriação que tinha feito sem intenão e prometia
por circunstâncias que escapam ao seu controle e ser boazinha." (p115) Durante toda sua existência,
domínio, lançando-a nos tortuosos caminhos da ela se revela submissa, dócil às regras impostas (re-
reificação bumna, ainda que de modo involuntário gimentation. Leontina parece não crescer, pois sua
porque inconsciente". (p15) porção infantil predomina sobre a mulher que se
No presente da enunciação, Leontina, a per- desenvolveu apenas exteriormente. Na sua infância
sonagem narradora,, está na cadeia; é acusada de ter miserável, por decisão de sua mãe, de quem ela her-
matado um velho que acabara de presenteá-la com dou abnegação e complacência diante das agressões
um vestido e que se enfurece com a protagonista do mundo, tudo é feito para garantir alimento e es-
ao sentir-se rejeitado. Depois de apanhar muito, tudo para Pedro, o primo que no futuro iria cuidar
Leontina encontra casualmente um ferro com o da família. Mas apesar do sacrifício, Pedro não assu-
qual acerta a cabeça do velho.

•.. 70 • •.. 71 •
me a função de provedor e protetor, abandonando Diante da encrenca em que se encontra, seu
Leontina sozinha no mundo, após ela ter perdido a passado de privações lhe parece um paraíso: "Se
mãe e a irmã. Empregada pelo pároco como domés- minha mãe ainda fosse viva e se tivesse o Pedro e
tica, a personagem sofre todo tipo de maus-tratos, minha irmãzinha então está visto que eu voltava
até arranjar coragem e fugir para a cidade grande. correndo," (p.88)
Aí, começa sua relação com diferentes homens, Todo o seu passado pode ser visto como
sendo que Rogério, o primeiro deles, representa um o tempo da aprendizagem da submissão. Ela se
hiato na sua vida de sofrimentos e privações: "Esse submete à disciplina imposta por todos, sendo a
foi um tempo feliz", recorda ela. (p102) Apesar amiga Rubi a única que busca ajuda-Ia a seguir ou-
disso, havia regras a serem seguidas: fumar e fazer tro caminho, embora saiba que não há solução. Ao
amor, embora não gostasse nem de um nem de se solidarizar com os valores culturais opressores,
outro. E, sobretudo, teve que aceitar as condições como Macabéa, Leontina é a representação perfeita
de Rogério, que não queria assumir compromisso do corpo disciplinado. Mas há um momento em
nenhum, deixando-a sozinha pela segunda vez na que uma força maior emerge, rompendo inconscien-
vida. Com o auxílio de Rubi, sua amiga valiosa, vai temente com a disciplina internalizada. Quando o
trabalhar num darnin, mas não perde a ingenuidade, velho vocifera xingando-a, reage verbalmente: "E
deixando-se explorar pelos homens, sempre sem depois não tinha nada que puxar o nome da minha
reagir. "Dançando a noite inteira com uns caras mãe que era mulher que só parou de trabalhar pra
que vinham pisando feito elefante e me apertando e deitar a cabeça no chão e morrer. Isso não estava
beliscando como se minha carne fosse de borracha. certo porque nela que estava morta ninguém tinha
Pobre ou rico era tudo igual com a diferença que que bulir. Ninguém." p.115) E passa da reação ver-
os pobres vinham com cada programa que Deus bal à reação física, batendo com o ferro na cabeça
me livre." (p117) Até que um velho acena com a do velho, por conta da violência sofrida. Pressen-
possibilidade de ela ter um vestido, como nunca tindo a morte próxima - "de repente me deu um
tivera. Mas o preço foi alto demais. estremecimento porque uma coisa me disse que o
velho ia acabar me matando" (p.116) -, rompe com minhocas. Pedro com os livros. E eu tão contente
a disciplina e descarrega toda a força, a que esteve cuidando da casa."(grifo nosso, p.92)
até então submetida, na cabeça do velho, por acaso É este o erro fundante da vida de Leontina,
um homem poderoso, dono de jornal e muito bem que ela confessa num momento de desabafo: sua
relacionado... É como se sua raiva contra o sistema, docilidade a um sistema injusto e cruel. Se ela não
até então contida pela disciplina, emergisse violenta- tivesse, desde o início, se submetido (regimentation),
mente, dissociada dela mesma, como aponta Arthur talvez não estivesse na cadeia pagando por um crime
Frank, no seu já citado ensaio: "O modo daquela que, inconscientemente, cometeu.
relação será previsivelmete a força".(trad. livre
A "confissão" presente no título do conto
cria uma expectativa que, de fato, não se realiza,
uma vez que significa declaração dos pecados e
das culpas, o que não se enquadra com o discurso
de Leontina. Ela não se sente culpada de nada. "É
que eu nào sou mesmo essa uma que toda gente
diz" (p.87), ela declara. O que está implícito nesta
"confissão" é a sua sujeição a uma disciplina, que
fez dela, desde a infância, um corpo dócil, treinado
para não ter direitos, para servir. Aqui, vale a pena
transcrever sua recordação da infância para se ter
medida da aceitação da disciplina imposta: "Minha
mãe tão caladinha com o lenço amarrado na cabeça
e a trouxa de roupa debaixo do braço. Luzia com a

I/)e ,JJo(Ie of /11(1/ /Y'/(I//O/l wi//pre(/Ictab/'y beforce (t.55)

... 74 ... 75
O corpo imobilizado

Eu fali) de mulheres e destinos


L3aLufi

ierre Bourdieu, em A dominaçdo masculina, cons-


p tantemente, enfatiza o efeito da violência sim-
bólica sobre o corpo feminino, através de "injunções
continuadas, silenciosas e invisíveis", que levam as
mulheres a aceitar como naturais e inquestionáveis
"as prescrições e proscrições arbitrárias" (p71) im-
pressas em seus corpos. A masculinização do corpo
masculino e a feminilização do corpo feminino são o
resultado de um trabalho incessante e interminável
que acaba por naturalizar a dominação masculina.
Neste processo, trabalham, conjunta e harmonio-
samente, Família, Escola, Igreja e Estado, isto é, a
Sociedade como um todo, que, para Bourdieu, é o
"substituto mundano de Deus." (p.133)
No conto "O Pai", do livro Os Provisórios um gesto a se estender no ar, ela parada na porta,
(1980), de Helena Parente Cunha, por meio de um nem indo nem vindo, só ali, não se mexendo..." (p1)
monólogo, ora direto ora indireto, ficam claras as Numa estrutura cíclica, o conto termina da mesma
injunções paternas sobre o corpo da filha que, se em forma: "Cansaço, cansaço de existir. Ela parada na
alguns raros momentos manifesta uma reação a essas porta, entre ficar e não sair, o corpo colado numa
imposições, ao final se torna absolutamente passiva. gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos,
Aqui, a disciplina se impõe de tal forma que anula um grude se enfiando pelos poros..." (p4) Uma vez
toda e qualquer iniciativa, ficando a protagonista introjetadas as injunções paternas, a filha se submete
totalmente imobilizada. de tal forma ao domínio do pai, que mesmo após sua
O texto é fragmentado, alternando várias morte, ela continua imobilizada. Aqui, vale citar
temporalidades que se identificam através de índices Bourdieu, que explica muito bem a força do habitus.
lexicais. Assim, quando a filha é ainda criança, o pai
O trabalho de transformação dos corpos, ao
está "entre a boneca e a tarde"; com a passagem dos
mesmo tempo sexualmente diferenciado e sexu-
anos, o pai fica "entre um anúncio e um comprimi- almente diferenciador, que se realiza cm parte
do", até sua morte, quando fica atravessado "entre a através dos efeitos de sugestão mimética, em
hora de sair e a hora de nunca mais". A preposição parte através de injunções explícita, e em parte,
enfim, através de toda a construção simbólica da
"entre" se instala sempre, da mesma forma que o
visão do corpo biológico (e em parlcur1ar do
sintagma "o pai parado na porta", que abre todos ato sexual, concebido como ato de d )iflhiiaÇO,
os parágrafos. Ele está parado, como um obstáculo, de posse), produz /i/iiit. automaticamente dife-
idéia que se reforça pelo uso da preposição; desta renciados e difcrcnciadores. (p70)
forma, a filha está impossibilitada de ir e vir, o que o
texto expressa, poeticamente, no primeiro e último A Escola funciona aqui como instituição
parágrafos: "Aquele cansaço de existir, aquela gosma e espaço freqüentado pela personagem feminina,
impregnando os ossos, os músculos, os tecidos, o como aluna - "esfregando a saia de flanela azul
sangue estagnado sob a pele desbotada, nem mesmo pregueada no banco" (p1) e como professora - "a
escola, sempre a escola" (p.l). Como instituição, imposto pelo patriarcado, acaba por entrar no jogo:
ela reproduz a estrutura de dominação, tanto social "Sim, papai, de agora em diante, eu vou ver todas as
como de gênero. Guacira Lopes Louro, em Gênero, novelas, a das seis a das sete a das oito a das dez, tem
Sexualidade e Educação, assinala o papel da Escola no das onze?" (p.3/4) E, morto o pai, seu corpo está
adestramento social: "A escola delimita espaços. agora imobilizado, passivamente parado na porta.
Servindo-se de signos e códigos, ela afirma o que cada Este corpo, que perdeu até mesmo suas funções
um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui. básicas, cujos ossos, músculos, tecidos e siiii'iicesiJO
Informa o "lugar" dos pequenos e dos grandes, dos estagnados, é o produto da ordem social quehinita
meninos e das meninas"p.58) o espaço da mulher, acabando por imobilizá-la.
O registro reiterado, durante a narrativa, do
teorema de Pitágoras representa a imutabilidade de
verdades universais. "Em todo o correr dos anos, O conto "É a alma, não é?", do livro O
tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde leopardo é um animal delicado (1998), de Marina Cola-
nem se transforma, irredutível na sua exatidão santi, apresenta o tema do casamento desgastado
geométrica..." (p3), como a repressão sofrida pela pelos anos e pela rotina. A notícia de jornal sobre
personagem feminina desde sua infância até a ma- urna libélula incrustada num pedaço de ambar, de
turidade. "Você não sabe que é feio menina brincar onde vão tirar o DNA para fazei- oulra, notícia
com menino?", diz o pai para a criança, da mesma lida pelo marido no café da man]1;i. leva Marta, a
forma que repreende, passados os anos, a filha pro- protagonista, a estabelecer uni paralelo entre esta
fessora: "Por que você chegou tarde? Onde já se viu libélula e o seu casamento. "Urna mosca presa no
moça de família na rua a estas horas?" (p1) âmbar, isso é o meu casamento". (p. 7)
A imobilidade do pai, sempre parado na por- Num discurso indireto, o conto registra os
ta, representa o conjunto das estruturas dominantes, pensamentos de Marta, que se interessa pela notícia
assim naturalizadas. Não mudam porque são vistas na medida em que encontra similitudes com a sua
como naturais. A filha, através do adestramento situação, presa entre "as fronteiras das pared1" do

80 81
apartamento classe média onde vive. "O meu âmbar, ser ressuscitado com "esses restos necrosados". É
pensou Marta, é de gesso". (p.8) O tempo privilegiado interessante notar como a narradora trabalha o
pela narrativa cobre exatamente o período entre a saí- paralelo que se estabelece na mente da protagonista,
da do marido para o trabalho e sua volta ao anoitecer, onde a alienação é de tal ordem - "diante da ima-
período este em que a protagonista está instalada na gem da televisão distante e alheia" - que a libélula
poltrona habitual, refletindo sobre seu casamento. e seu casamento se confundem , às vezes gerando
registros poéticos, como o que se segue:
Não, o jornal não falava de Marta. Nem po-
deria o jornal saber ou interessar-se por um casa- E dizer que começamos como lih'ltilas, segue
mento assim tão cotidiano, um casamento puído Marta. Tínhamos brilho, alguma tr:iiisparência.
pelo uso como certos colarinhos que já não têm Caçadores delicados, assim fomos no princípio.
pano por dentro mas mantêm por fora uma quase Chegamos a voar, 'a voar nos dias, na stipirfïcie
integridade, um casamento que todos diriam bom, dos dias feito as libélulas voam sobre a superfície
embora sem asas e sem vôos, incrustado pelos anos dos lagos. Como íamos saber que aquilo era apenas
em sua própria história. (p8) o princípio? Só percebemos depois que acabou. E
aí pareceu tão curto. (p9)
A noticia de jornal, lida pelo marido interes-
sado unicamente na libélula, desencadeia uma série A idéia de prisão, que aparece fogo no início
de revelações sobre a mesmice cotidiana de Marta, do conto - "preso no âmbar como uma libélula" -,
que imagina ressuscitar seu casamento, da mesma remete à imobilidade, que se confirma no discurso
forma que o cientista vai reproduzir a libélula: da narradora: "Sentada naquela poltrona que já co-
retirando um pequeno fragmento. Projetando em nhece o feitio do seu corpo"(p. 10), fica Marta o dia
sua mente a imagem do cientista, sorrindo vitorioso todo envolvida com seus pensamentos. A TV ligada,
ao depositar o minúsculo fragmento no pratinho "como uma janela qualquer de um prédio qualquer"
de vidro, Marta percebe que, inconscientemente, (p.7), é um elemento importante nesse processo de
arrancou uma pele seca do seu peito. Mas, angus- alienação. A notícia sobre a libélula tem o poder
tiada, se dá conta de que nenhum casamento pode de despertá-la para a realidade que está vivendo.
móveis do apartamento, que ela considerava apenas
uma extensão de si mesma, vão se tornar estranhos,
com arestas e quinas cortantes. Mas ao cair da noite,
tudo volta a ser como antes, numa situação muito
próxima da epifania em Clarice Lispector. O corpo envelhecido
A branca luminosidade da sala apagou-se aos
poucos sem que Marta se desse conta, a televisão
CuciIlc'., cucillcz votre jcuncsse:
lança sombras fundas. Marta ouve bater a porta
Coinmc à cettc ficur la vicillcssc
do elevador, passosse aproximam no corredor.
Fera ternir Votre beaun.
Marta acende o abajur da sala. A luz dourada se
Ronso,y./
alastra preenchendo todos os espaços. A chave
roda na fechadura. Marta vira a cabeça passando
o olhar de relance pelos móveis sem arestas. \
/
porta se abre. O marido entra. Oi, diz Marta, jnc 'significativa a presença do tema da velhice nas
tal teu dia? E sem ouvir a resposta volta-se para a
arrativas de autoria feminina. Se a sociedade
televisão. (pIO) (grifo nosso)
industrial em que vivemos marginaliza o idoso
em geral, as mulheres sofrem mais os efeitos dessa
A rotina se instala novamente e nada acontece
marginalização, uma vez que a cultura dominante
com este corpo imobilizado.
impõe-lhe padrões de beleza e juventude. O corpo,
produzido pela mídia, corrobora esses princípios,
transformando a vida das mulheres idosas numa
eterna frustração. Ao vincular sua auto-estima aos
padrões impostos, perdem-se de si próprias e mer-
gulham no vazio existencial. Simone de Ucauvoir,
em seu famoso livro A Velhice, chan iaa atenção
para a marginalização do velho c, sobrei udo,
da mulher idosa: "Já que o destino da mulher é tude. Diz Simone: "Quando essa ilusão é abalada,
ser, aos olhos do homem, um objeto erótico, ao provoca em inúmeros sujeitos um traumatismo nar-
tornar-se velha e feia, ela perde o lugar que lhe é císico que gera uma psicose depressiva." (p358)
destinado na sociedade." (p.152) É esse o drama da personagem Rosa Ambró-
A velhice se manifesta através do corpo, sio, protagonista de As horas nuas (1989), romance de
sendo que a relação com o tempo é vivida de forma Lygia Fagundes Teiles. Trata-se de uma narrativa
diferente, segundo um maior ou menor grau de cuja trama não se resolve satisfatoriamente, mas
deteriorização corporal e, sobretudo, segundo a que vale, esteticamente, pela construção da perso-
cultura dominante. Não te trata de uma realidade nagem principal, que tem sua carreira artística e sua
bem definida, mas de um fenômeno biológico com vida pessoal devastadas pela passagem do tempo,
conseqüências psicológicas. Se mudar é a lei da vida, como as rosas de Ronsard.
o envelhecimento, porém, se caracteriza por uma O fato de ter sido artista famosa por suas
mudança irreversível. Trata-se de um declínio que atuações dramáticas, badalada pela crítica e pelo
desemboca, invariavelmente, na morte. Simone de público, torna o envelhecimento mais dramático e
Beauvoir se refere à importância do fator social no a depressão mais profunda. As perdas se acumulam
processo de envelhecimento. "A condição do velho através dos anos - seu primo amado, vítima de uma
depende do contexto social" (p107), diz ela, pois, na overdose, seu marido Gregório, que se suicida, trauma-

sociedade industrial, o velho se torna improdutivo e tizado pela tortura dos anos de chumbo, e Diogo, o
as mulheres, consideradas objetos eróticos, quando jovem secretário por quem se apaixona - e ela apela
idosas tornam-se cartas fora do baralho. para o álcool, como forma de evasão.
A mudança que o envelhecimento produz, O romance tem uma estrutura fragmentada
muitas vezes aparece mais claramente para os outros e é narrado por três vozes diferentes: Rosa Ambró-
do que para o próprio sujeito, porque ela se opera sio, o gato Rabul e um narrador heterodiegético. A
continuamente e nós mal a percebemos. Nosso narração feita pela protagonista faz parte do projeto
inconsciente alimenta a ilusão de uma eterna juven- de um diário, a que pretende dar o título de "As
horas nuas", num evidente propósito de se revelar voltado para o firmamento e suas estrelas, é o
na sua nudçz. Como está a maior parte do tempo único que escapa à argúcia penetrante cio gato.
alcoolizada, seu discurso é descontínuo e trôpego, Rosa é sua maior vítima; ele a descreve durante a
como a própria protagonista: "6 delícia beber sem operação-tintura: "Com a cara branca de creme e
testemunhas, algodoada no chão feito o astronauta no a auréola da cabeleira esgrouvinhada, escorrendo
espaço, a nave desligada, tudo desligado. Invisível." tinta, ficou um palhaço à espera da roupa para
(p9) Trata-se de um projeto frustrado, apesar de, lá entrar no pica cieiro." (p32) Em outro iii ( ) meu tu,
pelos capítulos 15 e 16, ela se propor a narrar desde o ele a flagra completamente alcoolizada: "Agora ela
início, "quando a Rosa embotão ia colhendo estaba- dorme esparramada no chão, a boca entreaberta
nadamente as rosas da manhã" (p180), parafraseando puxando um ronco de bebedeira." p.81) A voz do
Ronsard. Mas a linguagem não dá conta do torveli- gato dcsconstrói qualquer possibilidade redentora.
nho mental agravado pela turvação do álcool: Quando ela canta Lei me tty again no chuveiro, ele
observa: "É o que todos pedem, respondo num
O uísque desce mais violento pehi minha bocejo" (p36), que nós diríamos de enfado, tal é a
garganta, indignados os dois o uísque e eu e nada experiência que possui do ser humano.
assim quero continuar falando, lá sei se esse bosta
O drama da decadência vivido pela prota-
de gravador ainda funciona, apertei os botões e
pronto, no interessa, vou até o fim. (p.189) gonista tem seus fundamentos na passagem do
tempo, mas se alimenta, sobretudo, da ideologia
O gato Rahul tem um discurso concatenado, capitalista burguesa, que prioriza a produção, o
apesar da narração que faz de suas vidas pregressas, lucro. Simone de Beauvoir, no seu livro já cita-
numa alusão aos sete fôlegos do felino. Trata-se de do, acusa a sociedade industrial de explorar o ser
um narrador onisciente, que tudo vê e tudo sabe. É humano, seja ele jovem ou velho:
o símbolo da sabedoria. Mas esta sabedoria faz dele
A sociedade só se preocupa com o indivíduo na
um narrador cruel, usando seu poder de devassar
medida em que este relul(. ( ) s jovens sabem disso.
a interioridade das demais personagens. Gregório, Sua ansiedade no maine aio cm que abordam a

•• 88 "' 89 •
vida social é simétrica à angústia dos velhos no Mas é esta aquela antiga praça? Há dezenas de
momento em que são excluídos dela.' (p.665) barraquinhas e tabuleiros com vendedores inise-
ráveis vendendo suas miseráveis quinquilharias,
mendigos em cachos e os passantes. Sc houvesse
Rosa Ambrósio não nega sua condição de ao menos um banco vazio mas a espessa vaga da
"burguesa assumida", e seu preconceito contra miséria transbordou e ocupou os espaços, a praça
a velhice atinge o paroxismo na sua recusa em ocupada. A cidade ocupada. [ ... ]
Entro na alameda sinuosa onde estão enfilei-
aceitar os namorados da filha, que dá preferência
rados os bustos de homens que ninguém mais
a homens mais velhos: Diz ela: "Espera, não é tão conhece, mas quem quer saber? Os de bronze
simples assim, a verdade é que eu queria apenas com as placas já foram devidamente roubados,
uma filha normal será pedir muito? Podia ser ficaram os heróis de pedra, benfeitores da pátria.
Educadores. Poetas. Os passarinhos costumam
livre, podia morar longe com sua tropa de aman- pousar e defecar nas cabeçorras, eu disse defecar,
tes, aceito. Mas não precisava ser uma tropa de mais respeito aí pelos senhores com as estrias
velhos." (p.20-1) Dessa forma, ela reforça a ideolo- negro-esverdinhadas descendo em profusão por
gia burguesa que marginaliza o velho e agrava sua entre os sulcos da cara. (p.155-6)
depressão causada pelo sentimento de decadência,
Nessa descrição, percebe-se a nsta1gia por
c onscientiz ando- se de que é "uma bêbada podre
num mundo podre." (p.lB) um tempo passado, mas sobretudo a perplexidade
O tempo, sob a ótica de Rosa Ambrósio, é e a revolta diante da miséria que, seguramente, não
o grande vilão. Nada escapa a sua sanha "macha- faz parte de seu universo. Trata-se do espanto de
dianamente" destruidora. Chegada às vezes a um uma burguesa alienada diante da decadência de um
latinismo lingua morta!), diz ela: "Sic transit gloria mundo que já esqueceu seus heróis. Ela também,
rnundi"(p.lSó), mostrando que até a glória do mun- outrora famosa, hoje esquecida.
do acaba. É muito reveladora a descrição que ela faz O pai ausente é invocado reiteradamente.
da Praça da República, em São Paulo, que costumava Esse pai "fujão', como ela chama, que foi comprar
freqüentar com seu pai, quando menina: cigarro e não voltou mais, faz parte de suas mais
doces lembranças. Lembranças que ela tenta conca-

•.. 90 •
tenar num discurso coerente, mas que escapam ao do gato Rahul e do narrador heterodiegético que
seu controle. Ecléa Bosi, em seu conhecido livro, darão organicidade ao romance. O narcisismo de
Memória e Sociedade: lembrana de velhos, mostra que as Rosa Ambrósio, aliado a suas lembranças artísticas,
lembranças não são revividas, mas sim reconstituí- suas atuações dramáticas, colaboram para a verossi-
das em interação com o presente. Elas não ressurgem milhança narrativa, construindo uma personagem
exatamente como foram vividas, mas impregnadas que vive visceralmente o drama do corpo envelhe-
pelas experiências atuais. Ora, Rosa Ambrósio tem cido na nossa sociedade.
consciência de sua decadência - "Sou uma atriz O tempo é o grande eixo temático que
decadente" (p.19), diz ela, e esta consciência vai percorre toda narrativa, desde o título. O nome
colaborar na reconstituição de suas memórias, pois da protagonista, dentro desse contexto, remete à
os processos memorativos se relacionam com os efêmera duração das rosas. O texto de Ronsard, cor-
campos de significação da vida presente do sujeito roborado pelo Carpe diem, de Horácio, faz a apologia
que recorda. Assim, a apreensão plena e pura do do hedonismo, uma compensação ilusória diante da
tempo passado é impossível, como as "horas fluas" destruição do tempo. Vale a pena transcrever um
do seu projeto das memórias A própria narradora trecho do discurso de Rosa, onde tudo isso fica,
se dá conta: "Rosa estendeu-se no divã e começou metaforicamente, regisi ni do:
por dizer que as coisas na lembrança ficam tão mais
Eu confessava ijue colhia as flores matinais e
belas. Viver infeliz na realidade e depois viver feli-
depressa antes rmic viessem as ventanias e as tem-
císsima na memória 'não seria a solução?" (p.73) pestics. liii trinando o meu enorme buquê, fui
O projeto das memórias, portanto, não se compondo o sri .111 o f im-ai a nica modo quando
realiza, mas fica a narração de lembranças esparsas, então comecaritu OS limiprevisi o, os sustos, ah!
Como fugiam do meu coo ri tie is flores que foram
organizadas, ou melhor, desorganizadas pelas con-
murchando, as pétalas cjue IMâni caindo. Começa-
tingências atuais. A narrativa começa pelo presente ram a aparecer buracos. Mais buracos e o arranjo
da enunciação: "Entro no quarto escuro, não acendo se desarranjou, perdeu o brilho e eu mesma, hem?!
a luz, quero o escuro. Tropeço no macio, desabo em Onde a graça da colhcdora da manhã? (p.181)
cima dessa coisa, ah! Meu Pai."(p.9). São os discursos

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O epicurismo, pregando o prazer como bem Mais uma vez a presença do tempo, mas sob
soberano, está presente nos momentos delirantes outro enfoque. Dionísia "arranca" o dia já vivido e
de Rosa, sobretudo, quando paira a esperança da "vai buscar os óculos para ver de perto o novo dia".
volta de Diogo, seu secretário e amante."carpe diem! É isso que o texto procura passar. O delírio narcisista
Ordenei ao espelhos, a colheita imediata" .(p.177) de Rosa Ambrósio, que não consegue aceitar a pas-
Uma espécie de tábua de salvação diante da inexo- sagem do tempo ("onde está o tempo está o drama"
rabilidade do tempo. contrasta com a plácida aceitação de Dionísia,
Deixamos para o fim falar numa personagem que, sem perder a consciência da finitude humana,
importante, apesar de scundária. É Dionísia, a se interessa pelo novo dia. Carpe diem atento, sem a
empregada que cuida de tudo e de todos. Seu nome sofreguidão da colheita de Ronsard, para quem a rosa
remete ao deus grego, filho de Zeus, pertencendo, só dura "da manhã até a tarde." (trad. livre).
portanto, à segunda geração dos olímpicos. Mas,
contrariando o perfil do deus do vinho e do delírio
místico, a personagem é crente e zelosa cumpridora A consciência da passagem do tempo nos
de seus deveres. Ela pisa como o destino, e Rosa faz lembrar do conto de Clarice Lispector "Feliz
a considera seu "espelho verdadeiro". Associa o Aniversário", do livro Laços de família (1960), também
dever ao prazer e louva o Senhor com seus cantos. uma excelente construção de corpo envelhecido.
É o gato Rahul, com seu discurso organizado, que Aqui, a autora representa a velhice dentro do
nos fala sobre Dionísia: contexto social. Na festa de aniversário, em que se
comemoram os oitenta e nove anos de dona Anita,
Ao lado da geladeira, dependurou o calendário a família comparece para cumprir uma obrigação,
religioso que tem a estampa colorida do Cristo sem que haja a menor afinidade entre seus membros.
de coração sangrando. Com cuidado arranca o
dia anterior já lido e vivido e vai buscar os ócu- São pessoas - filhos, noras e netos - que nada têm em
los para ver de perto o novo dia. Lê o nome do
santo. Pensa um pouco na frase pata meditação e
examina as fases da lua. (p.52) 5 "di, lna/I,,J,,lyJu-,,, soir" (4 Sa Z%4aitresse'9.

... 94 ... ... 95 ...


o

comum a não ser o parentesco que os rcúflC nessa momento de apatia ("A velha não se manifestava",
comemoração. A festa é uma farsa para cumprir um p67), reage cuspindo no chão, como uma criança
ritual que se repete todos os anos. O clima é de total malcriada, partindo o bolo "com punhos de assas-
constrangimento, evidenciando a hipocrisia social sina" e exigindo um copo de vinho, com amargura
presente em certas reuniões familiares. O próprio e autoridade. "Que o diabo vos carregue, corja de
relacionamento com a aniversariante é reificado, maricas, cornos e vagabundas! Me dá um copo de
como mostra o trecho a seguir: vinho. Dorothy! Ordenou." (p.72) A imagem desta
mulher idosa, vivendo de favor na casa da filha, sem
E, para adiantar e expediente, vestira a aniver- o autêntico carinho de seus familiares, provoca uma
sariante logo depois do almôço. Pusera-lhe desde estranha revelação em Cordélia, a única personagem
então a presilha em tôrno do pescoço e o broche, que se destaca, por sua postura sonhadora, em meio
borrifara-lhe um pouco de água de colônia para
disfarçar aquêle seu cheiro de guardado - sentara- à mascarada familiar. Só ela capta a mensagem que
a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante a figura da velha transmite, pois é a única com o
estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, coração sensível, a partir do próprio nome, e por
têsa na sala silenciosa. (p.66) isso aberta a revelações. "É preciso que se saiba. É
preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida
Importa aqui ressaltar o drama vivido pela é curta." (p75) Essa verdade, antevista por Cordélia
protagonista que, apesar de sua aparente passividade, num relance, como costumam ser as revelações
tem consciência da farsa familiar que representam clariceanas, remete também para o Carpe diem ho-
esses seres, "ratos se acotovelando, a sua família" raciano e faz parte da experiência da velha aniver-
, destino de
p.72). É a sensação de ter falhado em sel sariante "de que uma mulher deve, num ímpeto
mulher; ela, "a mãe de todos" como "pudera dar à dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e
luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos viver." (p.75) A velha senhora, com sua experiência
ansiosos?" p.71) Ela sufoca de raiva diante daquela de vida, sabe das coisas, mas pouco ou nada pode
representação que não esconde, para ela, a falsida- fazer, dependente como é dos familiares.
de dos relacionamentos. Por isso, depois de um

•.. 96 ..• 97 ..
a mudez remetem à imagem da morte, que a perda
No livro A via crucisdo corpo (1974) encontram-
se dois contos que representam dramas vividos por da satisfação sexual representa para ela.
mulheres idosas. Clarice Lispector, com irônica cruel- A necessidade sexual que perdura apesar da
dade, constrói duas personagens, Maria Angélica de idade é também o tema do conto "Ruído de passos".
Andrade e Cândida Raposo, respectivamente de "Mas Aqui, a personagem Cândida resolve consultar
vai chover?" e "Ruído de passos". O primeiro começa um médico, porque seu "desejo de prazer não
evidenciando a diferença de idade: "Maria Angélica passava."(p.69) Com oitenta e um anos de idade e vi-
de Andrade tinha sessenta anos. E um amante, Ale- úva, ela tem a "vertigem de viver", o que, na situação
xandre, de dezenove anos.' (p.95) A urgência sexual dela, é dramático. O médico, com piedade, lhe diz
faz com que ela satisfaça as ambições materiais do que isso faz parte da vida e que não há remédio.
rapaz, sendo, ao final, abandonada por ele. A própria Temos, então, duas personagens, cujos no-
narradora interfere comentando o grotesco da relação mes remetem ironicamente à pureza, escravas do
da velha senhora com o jovem rapaz: desejo sexual que lhes atormenta a vida. Vejamos
como Cândida tenta resolver seu problema: "Nessa
O que se passou em seguida foi horrível. No é mesma noite deu um jeito e solitária satisfez-se.
necessário saber. Maria Angélica - oh, meu Deus, Mudos fogos de artifícios. Depois chorou. Tinha
tenha piedade de mim, me perdoe por ter que vergonha." p.70-1)
escrever isto! - Maria Angélica dava gritinhos na
hora do amor. E Alexandre tendo que suportar Simone de Beauvoir, em O segundo sexo (1949),
com nojo, com revolta. (p. 97-8) dedica um capítulo à questão da mulher idosa. É
verdade que, em função da época em que foi escrito,
Abandonada pelo seu objeto de desejo, a pro- o livro muitas vezes se apresenta defasado, falando
tagonista, ao final, é a representação do total aniquila- de práticas sociais felizmente já em desuso. Mas,
mento. "Depois foi devagar sentar-se no sofá da sala. no que diz respeito à mulher idosa, as colocações
Parecia uma ferida de guerra. Mas não havia Cruz são bastante pertinentes ainda hoje. Comcniinclo
Vermelha que a socorresse. Estava quieta, muda. Sem o caso das idosas que buscam nos jovens rapazes a
palavra nenhuma a dizer." p.lOO) A imobilidade e satisfação de suas necessidades, diz a autora:

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Porém, mais romanesca do que lúcida, a aman- O homem idoso normalmente escapa desse
te-benfeitora tenta muitas vezes comprar uma mi- preconceito, pois a sociedade não exige dele nem
ragem de ternura, admiração, respeito; persuade-se frescor, nem doçura, nem graça, mas a força e a
mesmo de que dá pelo prazer de dar, sem que nada
inteligência de um sujeito conquistador. Os cabelos
lhe seja pedido. ( ...) Mas é raro que a má-fé seja
clemente durante muito tempo; a luta dos sexos brancos e as rugas não contradizem esse ideal viril.
transforma-se em duelo entre o explorador e o ex- Portanto, envelhecer é mais difícil para a mulher,
plorado no qual a mulher, desiludida, humilhada, urna vez que ela está escravizada aos ditames da
se arrisca a sofrer cruéis derrotas. (p.350-1)
indústria da moda. Como já dissemos, a condição
Não é esse o caso da personagem Maria de objeto erótico desfavorece a mulher. Se sexo é
Angélica do conto "Mas vai chover?" Só ela não vida, ela não deveria se envergonhar de sua libido
percebe que está sendo explorada, como a narradora ainda ativa, como a protagonista do conto que só
afirma: "Todos sabiam que o menino se aproveitava tem a esperar a "bênção da morte". (p.71)
da riqueza de Maria Angélica. Só Maria Angélica Vimos como Rosa Ambrósio, protagonista de
As horas fluas, ao ser afastada dos palcos em função
não suspeitava." (p.95)
A sexualidade das mulheres idosas ainda é da idade, entra em depressão agravada pelo alcoo-
um assunto tabu. No conto de Clarice "Ruído de lismo. Excessivamente imbuída do hedonismo do
passos", a personagem Cândida tem vergonha de Carpo diem, sempre embalada pela fama, não encon-

falar ao médico sobre sua libido. tra sentido nessa nova etapa da vida. Vale sempre
citar Simone de Beauvoir, no livro sobre A velhice:
Teve enfim a grande coragem de ir a um gi-
"Quando escapa às pressões de sua profissão, não
necologista. E perguntou-lhe envergonhada, de
percebe mais que um deserto à sua volta; não lhe
cabeça baixa:
- Quando é que passa? foi permitido engajar-se em projetos que teriam
- Passa o quê, minha senhora? povoado o mundo de objetivos, de valores e de
- A coisa. razões de ser." (p663) Segundo Simone, a sociedade
- Que coisa?
- A coisa, repetiu. O desejo de prazer, disse é a maior responsável por esse quadro, uma vez que
enfim. (p.70) sua política para a velhice é "escandalosa":

•.. 100 ' ... 101 •..


1

É por culpa dela que a decadência senil começa


prematuramente, que é rápida, fisicainente doloro-
sa, moralmente horrível porque esses indivíduos
chegam a ela (última idade) com as mãos vazias.
Explorados, alienados, quando a força os deixa, tor-
nam-se fatalmente "refugos", "destroços". (p.663)
O corpo refletido
Essa acusação feita à sociedade, nos idos da
R(Sl1'OtI fundo
década de 40, tem tudo a ver ainda com a nossa rea-
(l(S(IlÇ( )tI os 11)1tOS
lidade, e pode mesmo nos udar a entender o drama ~Ipin )II-Se pci dida no, lilitala.
da protagonista de "Feliz aniversário." Ela depende (OtTi olhar VvtJaillU

uiuiiivolta
do apoio da família, cujos membros não lhe dedicam )U perdão
afeto nem carinho "só no próximo ano seriam
- embarcou sii.pirando
na balança.
obrigados a se encontrar diante do bôlo aceso."
Aíanm, Co/asa,,ti
(p.77)Simone de Beauvoir, no livro citado, insiste
no fato de que o sistema, ao explorar o jovem, está
contribuindo para uma velhice doente e "de mãos
vazias", o que os textos analisados revelam, de forma romance de Fernanda Young A sombra das
dramática, a respeito do corpo envelhecido.
Q vossas asas (1997) se coloca numa posição
intermediária entre a literatura considerada eru-
dita, que goza do reconhecimento da crítica, e a
literatura de massa, cujo consumo proporciona a
evasão, o escapisrno das mazelas do cotidiano. A
história de Carina, protagonista da narrativa, se
nutre não só dos elementos que compõem a in-
dústria cultural, mas também de todos os valores

•.. 102
que transitam pela mídia. O fato de a autora ser mental; mas não suporta viver longe dela e volta
uma personalidade midiática, presente em corpo e ao sanatório para retirá-la de lá. Assumindo,
como Sartre, que o inferno são os outros, apesar
idéias no écran televisivo, contribui, sem dúvida,
para a inserção do romance neste universo. Mas de necessários, ele se sente dependente dela, numa
relação doentia. A narrativa termina com eles
isso não basta para fazer de A sombra das vossas asas
um paradigma da literatura de entretenimen- voltando juntos para casa, provavelmente para
to, uma vez que o desfecho da obra aponta o viver os mesmos desatinos de sempre.
questionamento dessa ideologia, onde o mito da
O carro retorna pelo mesmo caminho que
beleza impera. E essa prblematização aproxima
veio. Eles estão ciii silêncio. Mal se olharam. 1 da
a narrativa da chamada literatura erudita. parece constraigida por ele vê-la dessa maneira,
Carina é uma jovenzinha gorducha e feia, tão frágil, numa circunstância tão sem beleza. Pre-
extremamente carente, que se apaixona por um fa- feria estar vestida mais adequadamente' uma roupa
fliClo Zclda 1 àtzgerald; então ele saberia que não
moso fotógrafo de beldades e decide se tornar uma
há ii usai) no imindo, quando se e SI á fl1 O ia estrada
delas, a partir de um retrato de Lee Miller.O fato que leva a um satialorlo. (p267, grifo 1011110)
de se apaixonar por um fotógrafo de beldades torna
a situação mais dramática. Mas ela é determinada e, A fixação pelo corpo, que domina a pro-
através de uma série de recursos çirúrgicos e de uma tagonista, se faz presente também aqui, quando
parafernália de cosméticos, dietas e outros artifícios, ela se preocupa que Rigel a veja "tão sem beleza".
alcança seu objetivo, tornando-se uma mulher bo- Ora, é a beleza construída, projetada e planejada a
nita e atraente. O fotógrafo se rende totalmente a responsável pela realização de seu sonho, que tem
essa beleza e acaba literalmente destruído. um certo sabor de vingança, uma vez que no pri-
Onde o final feliz tão comum na literatura meiro encontro com o fotógrafo, sendo ela ainda
de entretenimento? Depois de muitas brigas e gorducha e feia, sofre seu desprezo. Daí a idéia de se
desentendimentos, Rigel, o fotógrafo, decide transformar, o que passa a ser o drama de sua vida,
internar, Carina por considerá-la uma doente pois, uma vez bonita e atraente, tem consciência de

• .1 104 *-
mídia que, dessa forma, contribui para aumentar
que não é a ela que Rigel ama, vivendo então um
a insatisfação com o corpo real.
paradoxo insolúvel. "Ele não amava Carina, então.
Amava a outra, que era ela. O jogo estava feito,
As revistas femininas há mais de um século
algo metafisicamente drummondiano. Rigel amava vêm sendo urna das forças mais atuantes no sen.-
a mulher que Canoa modelou." (p.99) tido de alterar os papéis das mulheres, e dinanie
A transformação é total, fazendo dela uma todo esse período - hoje mais do que ilutica
- elas sempre emprestaram charme à1ui10 1ue o
outra pessoa: "Um furacão de mudanças despertou
sistema econômico, seus anunciantes e, din-anic
uma nova mulher" (p.164). Cria-se um jogo de a guerra, os governos precisavam naquele mo-
identidades, possibilitado pelo construcionismO da mento obter das mulheres. (p83)
era pós-moderna; e fica no ar a questão de saber se
esta construção vale a pena. Há uma justificativa Carina é vítima dessa manipulação e, ao
para tudo isso. Os fatos narrados sobre a infância achar o modelo ideal, se empenha de corpo e alma
de Carina, solitária e sem mãe, até certo ponto em copiá-lo. Diz o narrador através do discurso
explicam a carência de auto-estima, que está na indireto: "Canina seria igual àquela mulher. Não
base de muitos desajustes. A falta do aconchego queria nem saber, estava decidido. Queria ser Lee
familiar faz dela uma pessoa má, dominadora e, ao Mifler. E nunca mais um fotografozinho idiota iria
mesmo tempo, decidida e determinada. O que não maltratar seus sonhos," (p.55-6)
deixa de ser uma combinação perigosa, o que, de Os avanços tecnocirúrgicos e as novas des-
fato, se revela na narrativa. O resultado final nos cobertas da medicina estética são empregados por
diz que o crime não compensa. Carina para conquistar Rigel, seu objeto de desejo.
A tecnociência que alimenta toda uma Ela planeja, diabolicamene, um encontro onde tudo
indústria, estrutura o drama narrado, pois possi- é calculado em seus mínimos detalhes. O discurso
bilita a metamorfose de Carina. Naomi Wolf, em crítico do narrador aponta os perigos que essa ma-
O mito da be1ea, mostra como as mulheres, hoje, nipulação representa, desconstruindo identidades.
são escravas dos padrões estéticos veiculados pela

IH:
•.. 106 '"
Ela foi feita para Rigel, mas não lhe é a outra na figura do médico. Em A sombra das vossas asas, o
metade. É outra parte; e nem é de verdade. Mas a cirurgião, que transforma Carina, o faz de forma
era em que vive, este tempo que um dia vai dar o
completa, uma vez que é com ele que a persona-
que falar por suas singularidades e complexidades,
gem tem sua primeira relação sexual. Naomi Wolf
consagra-se como a era do ake. E qualquer um
pode ser como Michael Jackson. Carina não tinha chama a atenção para o papel do cirurgião plástico
uma gota de auto-estima. E corno o cantor, que no mito da beleza: CCQ cirurgião plástico é o sím-
tanto fez que hoje não tem cor, é urna pessoa que
bolo sexual divino da mulher moderna, atraindo
não é ninguém. (p.l 86)
para si a adoração que as mulheres do século XIX
Rb professavam pelo homem deus." (p124)
Sendo Carina uma jovem independente e
A protagonista se submete, devotamente, aos
rica, tem a seu dispor os meios necessários para a
ritos da beleza, crendo em sua ação redentora.
realização de seu sonho. A sociedade de consumo
em que vivemos induz os indivíduos à realização Carina queria ser igual a Lee Miller. E após
de incontroláveis e insaciáveis desejos, numa busca ter perdido 21 quilos sentiu-se segura o bastante
constante. Vivemos sob o signo do excesso, da para fazer a primeira investida cirúrgica: lipoas-
profusão de mercadorias. Os comportamentos piração. Litros e mais litros de gordura locali-
zada foram tirados do corpo dela. Dos joelhos,
individuais estão enredados na engrenagem do
quadris, glúteos, barriga, estômago, antebraços,
extremo; daí o frenesi consumista, os esportes queixo. Nesta última região, o médico sugeriu
radicais, os assassinos em série, a anorexia, a obe- um processo chamado lipoescultura, um tipo de
método modulante. (p102)
sidade, as compulsões e vícios.
O trecho do romance em que o narrador
descreve todos os passos da paixão de Carina para Para Lipovetski, em Os tempos hipermodernos,

atingir seu objetivo, num processo doloroso de "até os comportamentos individuais são pegos

auto-sacrifício, nos leva a pensar nos rituais sagra- na engrenagem do extremo" (1).55), isto é, a es-
dos onde a beleza tem o seu altar. É como uma re- calada paroxista do "sempre mais", que se insere

ligião onde não falta nem o sacerdote, improvisado em todas as esferas da vida social. Para Carina, a

108 •.. 109


transformação tinha que ser total, uma vez que leito, me vem vossa lembrança, passo a noite toda

carecia de auto-estima. Por isso, ela fica em estado pensando em vós. Porque vós sois o meu apoio,
de graça diante dos primeiros resultados, como exulto de alegria, à sombra das vossas asas." Estar à
sombra das asas de Deus significa apoio e proteção,
mostra o narrador:
o que não se coaduna com a trama, nem com as
O efeito foi imediato: olhou-se no espelho personagens do romance, mas sim com a própria
e surgiu na cara dela uma felicidade enorme. criação literária. A presença da autora na narrativa
Ficou satisfeita com o resultado. Ficou mais
é um fato que nos leva a admitir esta interpreta-
do que satisfeita, ficou a ponto de morrer de
1 Ela ohorou. Lágrimas abundantes ção; é como se ela pedisse a proteção divina para
alegria.[
que molharam todo o seu queixo novo. Nunca sua criação. Os títulos das quatro partes têm em
havia sido tão feliz. Este era, sem dúvida, o maior comum a presença da cor e os aspectos sombrio,
presente de sua vida.(p.104) pálido e negativo que lhe são atribuídos. É como
se a cor de tudo fosse prejudicada, neutralizada,
A narrativa é fragmentada e o presente da
apagada pelos acontecimentos, o que, sem dúvida,
enunciação nos mostra Rigel no apartamento vazio,
contribui para o clima da narrativa.
há cinco dias sem Carina, completamente desestru-
No que diz respeito à representação do corpo
turado em sua solidão. Ele, um fotógrafo bem-suce-
feminino, A Sombra rias vossas asas trabalha com o
dido, amigo da ex-mulher e de sua filha, mas agora corpo refletido (lhe mirrori, bodj), para usar a termi-
totalmente destruído, corno diz o narrador: "Vítima nologia de Arthur W. Frank, em seu ensaio For a
de um emaranhado de sutis e meticulosos planos,
sodology of lhe bod(y: an ana/ytical review.
vindos de uma mente diabólica. Isso mesmo, uma
mente diabólica." (p16) O corpo refletido permanece previsível, mas
Vale aqui fazer considerações sobre o título por diferentes razões do corpo disciplinado. Este
do romance e das quatro partes que o compõem. O é bem-sucedido previsivelmente através da prática
de seu regime. O corpo refletido será previsível na
título bíblico é tirado do Salmo de Davi, cujo trecho medida em que refletir o que está ao seu redor.O
aparece como epígrafe da narrativa. "Quando, no

III
... 110 •••
meio do corpo refletido é o consumo; baseado no associar o corpo refletido ao mito de Narciso,
consumo, o corpo torna-se filo previsível quanto uma vez que a alma narcísica deseja sempre estar
os objetos disponíveis para ele. (trad. livre) unida ao próprio corpo.
O corpo de Carina é como um espelho
O corpo refletido está aberto ao mundo ex- que reflete a imagem de Lee Milier e de tudo
terior, mas sua relação com este mundo é monádica aquilo que ela consome. Ela vai adquirir novos
(monadic, isto é, voltado para si mesmo, pois seus habitus que, segundo Bourdicu, através de certa
objetivos se constituem em si mesmo. A assimilação mobilidade, refletem aparências de outras classes
sem limites dos objetos é uma forma de alienação, ou de outras pessoas.
urna vez que fora do reflexo deste corpo não existe Freqüentemente, o narrador. descreve Carina
realidade. A estrutura da sociedade de consumo fa- como imagem de uma atriz, de uma personalidade
cilita esta alienação. Citando, mais uma vez, Arthur famosa, como um corpo refletido: "Urna mulher
Frank: "Consumo é a reprodução monádica através com a pele branca astênica. Com os olhos cercados
do corpo, assimilando um mundo que existe somen- de um cinza dramático. Dama das Camélias. Cheia
te para sua própria assimilação." (trad. livre)' de pulseiras e vestida com os figurinos de Sara
O corpo refletido é sempre desejante, a Bernard em A Santa cortesã." (p257) Mais adiante,
fim de manter sua carência consciente. A cultura comenta: "Urna louca que citava Foucault em fran-
do consumo encurta o tempo e o espaço entre o cês. Que sabia provérbios em latim." (p257) Mas
desejo e sua realização. O que vale é a reprodu- ela se preparou, conscientemente, para toda esta
ção eterna do desejo, num constante reflexo do representação. Enquanto se recuperava das cirurgias,
corpo no mundo e do mundo no corpo. Pode-se consumiu música clássica, livros e mais livros de
arte, enfim, fez também uma transformação inter-
6 Thc' úlirroivi boily /i,iiis ii si'!/ lo IX' prCd/il(/I)/i' 115 II ,ifIecis ihal )Ph/C/) is
na, "Pois, ao se transformar em outra pessoa, sua
arou,,dii. '17k ,m'(lmm 0/ tio ilili- 'IX.g body is oiiiiimplioi/; basedon consianp- intenção não era meramente fútil - era a busca da
lion, lhe body hicoenes aspridilable as lhe objecis ma(Ie owai/able foi - ii. (P61)
7 Conseimpliou is lii' iiiouaílir /i'prO(Iluil/O// oJ liii hody lhoiiigb lis assímílei-
perfeição. Em todos os sentidos, perfeita." (p103)
1/0/1 of (1 ii'oiVd 1k/si!, (0.1515 0111)/ok lis 011/11 ,1ssiiiii/1iioii. "(p62)

..' 112 '' '". 113


Não é mais o caso de contentar-se com o
Mas essa "perfeição" é o reflexo de tudo o que
corpo que se tem, mas de modificar suas bases
havia à sua volta e que foi consumido para atingir para completá-lo ou torná-lo conforme a idéia
o objetivo desejado. que dele se faz. Sem o complemento introduzido
pelo indivíduo em seu estilo de vida ou suas ações
Consumi' dezenas de colheres de aveia para que deliberadas de metamorfoses físicas, o corpo seria
uma forma decepcionante, insuficiente para aco-
os intestinos funcionassem bem e, assim, a pele res-
pondesse com mais beleza e jovialidade. Inclusive, lher suas aspirações. (p.22)
a pele era um dos itens que mereciam mais aten-
ção: todos os melhores cremes importados foram Segundo Le Breton, hoje o corpo é como um
comprados. Fortunas torradas na Bibelô da Rua
objeto imperfeito, um rascunho a ser corrigido. Daí
Augusta. Shishedo, Lâncome, Clarins. Protetor
o sucesso da cirurgia plástica, que visa a mudar este
hidratante fator 15. Loção para combater a celulite
Svelt da Dior. Cremes esfoliantes. Umectantes para corpo para mudar a própria vida. Isso torna o ser
cabelos tingidos. Re paradores capilares. Cremes humano mais feliz? A sombra das vossas aias, onde a
para o pescoço. Cremes para as mãos. (pIOI)
autora condensou toda a parafernália consumista
da vida moderna, todo o arcabouço tecnocientíflco
Erica Schlude Wels, ao estudar a obra de
da medicina atual, serve de resposta a esta questão.
Fernanda Young, fala da presença do mito de
Se Carina, com seu corpo reconstruído, consegue
Narciso. De fato, ao espalhar pela casa cinqüen-
conquistar Rigel, a história deste amor planejado é
ta cópias xerox da foto de Lee Miller, espelho uma grande farsa que não satisfaz a ninguém...
para a nova mulher que deseja ser, como diz a
pesquisadora, a protagonista busca alcançar seus
objetivos através do auto-reflexo. Trata-se de um Nélida Pifion, em seu conto "Firiisterrc",
ser fraturado, que Erica chama de "rascunho de si do livro O calor das coisas (1980), constrói um corpo
com o texto
mesma", numa evidente aproximação refletido, que se distingue da personagem Carina
que aponta
de David Le Breton, Adeus ao corpo, pela natureza dos bens consumidos. Uma protago-
para o corpo como construção: nista, sem nome, provavelmente a própria Nélida,

•.. 115 •
•.. 114
narra seu retorno à Galícia, onde reencontra seu na memória, sabores, cheiros, presenças humanas,
padrinho, guardião da autêntica cultura galega. É que vão lhe garantir longevidade, não no sentido de
com ele que vai percorrer a Ilha, rever os amigos, vida longa, mas de permanência das tradições.
consumir as iguarias locais. Há um clima mágico O padrinho, figura de patriarca antigo, é o
nesta visita que ela faz às suas origens, refazendo-se cicerone da protagonista durante todo o tempo,
em contato com a cultura galega. 'Por isso vim à apenas um dia, que ela passa na Ilha. No final do
Ilha, recolher força e origem, terei então vida por conto, as despedidas: "Adeus, gritei. Aquela Ilha era
encantada, foi meu último pensamento depois que
tempo ilimitado." (p.80)
Ao almoço, lhe sãoservidos siris, centolhos, a distância nos separou para sempre." (p91)
mexilhões, ameijoas, vieiras, enfim, frutos daquele O encantamento provocado por essa visita
mar de tantas histórias, que a protagonista suga, tem efeito transformador. "Devia respirar com
devora numa ânsia de incorporar as tradições, as naturalidade para apossar-me do próprio corpo,
"referências culturais". O porco, criado com requin- que me aparecia novo agora." (p.83) Ao consumir
tes culinários, também é consumido com devoção. sabores, cheiros, presenças humanas, em contato
"Com os olhos cerrados mastiguei a carne, garanti- com o padrinho (e não é à toa que ele é padrinho!),
lhe a sobrevivência na memória. Pelo resto da vida ela, recém-chegada de outro continente, se renova.
hei de cantar esta carne, padrinho." (p.82) Seu corpo reflete o que ela consome.
Após o longo "repasto", palavra que nos Como já vimos, o corpo refletido se vale do
remete a tradições arcaicas, o passeio pela Ilha con- consumo e passa a refletir o que está a sua volta.
tinua a proporcionar à protagonista o contato com a Arthur Frank diz que este tipo de corpo está aberto
terra, de onde saíra pequena e à qual retornava agora ao mundo exterior, mas é monádico (monadic) na
em busca de suas raízes. O contato físico com os apropriação deste mundo. Através do consumo, o
velhos amigos aperta os laços afrouxados pela distân- corpo assimila o que existe a sua volta. Seu desejo é
cia: "Eu mastigava homens, mulheres, crianças, para tornar o objeto parte de si mesmo. Assim o objeto é
não esquecê-los." p.84) Ela se esforça para guardar, o espelho no qual o corpo se vê refletido. Daí a vo-
racidade com que a protagonista do conto consome
as iguarias e tudo o que vê, no afã de conservá-los
em si mesma, na sua memória.
Enquanto Canina consome toda a parafernália
da medicina estética para atingir seus objetivos, a
O corpo violento
protagonista de "Finisterre" consome tudo o que a
Ilha encantada lhe oferece, buscando incorporar a
II III LI L ,()(I (SCJ() C (T(SLIV(tlÇfl,
cultura desta terra que acaba onde o mar começa. LIII IjIIIILILILIIII(IIt( 1 )iiIi-irri.
O conto é um hino de anjor à cultura galega, com /1/i/o/I/o (11/101 lcccbin
a qual a autora tanto se identifica.

11isaheth Badinter, em Rumo equivocado, mostra


ue a dominação masculina, apontada por
muitas feministas como universal e eterna, cria
o vitimismo feminino, extremamente prejudi-
cial ao movimento de libertação das mulheres.
Ela pergunta se não se terá usado a "retórica da
vitimização" na direção errada e se não "teria va-
lido mais a pena lutar passo a passo em todos os
campos, privado, público e profissional, que são
maculados pela desigualdade", em vez de sempre
acusar os homens. (p.149) O perigo maior que a
autora percebe no enfoque universalista dado à
dominação masculina é a volta ao essencialismo,
isto é, a anatomia como destino. Diz ela:

•.. 118
Todos os maiores avanços realizados nas últi- remete ao renascimento da personagem, agora refei-
mas décadas deveram-se à desconstrução audaciosa ta, reintegrada a suas raízes e pronta para a luta.
do conceito de natureza. Não para negá-la, como
se disse muitas vezes, mas para recolocá-la em seu Uma paisagem revolucionária de mulheres
justo lugar. Com isso, ofereceu-se a todos uma guerreiras. Eram mulheres que não eram minha
liberdade sem precedentes em relação aos papéis mãe. Essas mulheres, que não eram tu itiha mãe,
tradicionais que definiam o gênero. (p.150) tinham a sina das que desciiihesiatn mundo
adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas
Ao condenar o essencialismo, Elisabeth Ba- defendendo-se não se sabe bem de quê, só se sabe
que do amor. Só se sabe que do que o amor as fez
dinter mostra a importâncie da cultura na constru-
sofrer. Só se sabe que do que o amor as fez traídas.
ção das diferenças, dizendo que "há muito menos Mulheres na defesa da causa justa. (p131)
diferenças entre um homem e uma mulher de igual
condição social e cultural do que entre dois homens A insistência da narradora em estabelecer a dis-
ou duas mulheres de meios diferentes." p.159) tância entre as mulheres guerreiras e sua mãe é signi-
Essas considerações nos ajudam a aceitar a ficativa. Seu discurso é todo ele marcado pela revolta
presença do corpo violento representado por perso- contra o pai e pelo seu sentimento de impotência
nagens femininas. É o caso de Rísia, protagonista de diante do sofrimento da mãe, sempre passiva.
As mulheres de Tijucopapo (1980), de Marilene Feinto.
Aqui, a violência é a mola propulsora que leva a Quando dava meio-dia, hora de minha escola,
personagem a fazer a revolução, juntando-se às mamãe se metia a fazer tranças no meu cabelo
chorando de dor de cabeça. As lágrimas escorriam
mulheres guerreiras de Tijucopapo. A própria lin-
por seu rosto e as tranças se dependuravam pesadas
guagem está impregnada de semas violentos, como por minhas costas. Mamãe chorava. Às vezes era
expressão de uma subjetividade amarga, que busca alto. Ela dizia da dor de cabeça. Mas para mim era
na luta o resgate da dignidade perdida. papai. Eu sabia que era. Ela chorava LÁ as tomitas
tranças e eu ia para a escola como uma enforcada
No final da narrativa, depois de uma trajetó-
se derretendo em brilhantina. Nunca mais pude
ria de pobreza, sofrimento e abandono, ela chega a gostar de tranças. Nunca mais quero meio-dia a
Tijucopapo; essa simbólica viagem de nove meses hora de minha escola. (p.22)

120 ... 121 •


O nascimento da mãe marca o início de Seu ódio contra os homens ("Me dá tanta raiva
uma herança sofrida: "Minha mãe nasceu. Tenho que eu chamo todos eles de filhos do cão", p68) a
assim um começo." (p. 54) Essa mãe dada, traída, leva de volta às suas raízes, "onde a praia vira lama"
espezinhada e mal tratada, nascida em Tijucopapo, (p.55), e a faz participar da revolução contra todos
vai ser vingada por Rísia, "feita de lama imunda", os culpados. Ela justifica sua revolta: "Vim fazer a re-
cujo corpo está marcado pelo negro tijuco. Dessa volução que derrube, não o meu guaraná no balcão,
forma, ela se identifica com as mulheres guerreiras, mas os culpados por todo o desamor que eu sofri e
"mulheres da matéria do tijuco, cabelos grossos ar- por toda a pobreza em que vivi." (pI06-7)
rastando pela crina do cavalo, escanchadas no lombo Tijucopapo figura na mitologia pernambuca-
do bicho sem sela, amazonas." (p.56) na como símbolo de resistência. Em 1646, durante
Sua sede de vingança remonta aos tempos da a invasão holandesa a Pernambuco, sem ter o que
infância: "É que quando eu era pequena alimen- comer, os flamengos da Nova Holanda invadiram
tei durante todo o tempo a idéia de matar meu a pequena vila de Tijucopapo, hoje município de
pai. Não matei. Não o matarei mais. Mas ficou Goiana, a 63 quilômetros de Recife. Conta a lenda
a vontade, essa de matar um." (p.16) O ódio que que, sem armas de fogo, as mulheres do lugarejo en-
ela sente pelo pai, além de veemente, extrapola a frentaram a tropa com panelas e pimenta e venceram
figura paterna, atingindo o patriarcado e tudo o que a batalha. Marilene Felinto construiu sua narrativa
ele representa de violência e repressão. Seu grito a partir desse passado de luta e de vitória, fazendo
de revolta é contra a autoridade do pai na família da sua protagonista uma guerreira. Na carta que
nordestina: "Papai fique sabendo que aqui sou eu escreve à mãe, no final da narrativa, diz ela:
quem tem um salário tão alto quanto o seu salário.
Que eu sou quem eu quiser ser. Que você já não Nós vamos em busca da justiça das luzes, e caso
haja destruição, é porque nós viemos de regiões
existe desde os meus cinco anos de idade. Que, se assim, agrestes, de aspei-(, / as de alio;!, dc docilidade
é como autoridade que você deseja existir, saiba ncnhi urna, de nenhum 1 ijo e 11!! 1 ii 1 ii oaço, de

que você é um merda pura." p.87) II ( l 1 Ii11 IlO5 de COITII(la ii;! (tiO! C (II I(lIliI)II!';iS ii;!

Icirriga, e de sede, I11;iIll;Ic, de ris)l;e lo e loisa

... ... I?'i ••


4

no caminho para a escola, de não saber mais da serve de inspiração para que se reverta o quadro
própria vontade - de não saber se íamos à escola de uma vida de opressão e sofrimento.
ou se fazíamos alguma coisa da vida." (p.135)
O romance de Marilene Felinto bota por ter-
ra, portanto, o maniqueísmo baseado na dominação
É importante observar que são as regiões
masculina, que faz da violência um triste privilégio
agrestes, com suas carências de todo tipo, as respon-
dos homens contra a docilidade e passividade femi-
sáveis pelo sentimento de vingança da narradora. O
ninas. Pura terminar, cito o final do ensaio de Regina
que justifica o corpo violento. Dalcastagnè, "No caminho de Tijucopapo", que
A mãe sofrida passa sempre para a Filha a
se encontra em Entre fronteiras e cercado de armadilhas,
impossibilidade de qualquer afeto, de qualquer
texto que enfatiza a ambigüidade de Rísia, dividida
realização, através da pergunta-constatação que
entre a opulência da vida paulistana e a miséria
lhe faz: "Você pensa que o céu é perto?" Na carta,
nordestina, mostrando que eia não se submete a
que Rísia gostaria de ter escrito em inglês, porque
nada na sua ânsia de vingança: "Toda a sua fala é,
lembraria um final feliz de filme americano, ela
de algum modo, uma resposta a gestos alheios. Res-
responde à pergunta, constatando que "o céu, por-
posta violenta, impregnada de cólera, uma vez que
tanto, era perto, mamãe." (p.136); isso pode não
consciente das implicações do outro na constituição
significar um happy end mas, sem dúvida, sinaliza de sua identidade." (p.122)
uma possibilidade de mudança. A ironia contida na
referência ao final de filme em língua inglesa não É uma "resposta violenta" porque gerada pela
desconstrói a vontade firme da narradora de que violência do meio em que viveu.
tudo lhe termine bem. Esse corpo violento, feito de
lama ("E vou confessar a lama de que sou feita", p. A personagem do Memorial de Maria Moura
83), renasce ao contato de suas raízes nordestinas e (1992), de Rachei de Queiroz, é outro exemplo de
se refaz no propósito de vingar sua herança sofrida corpo violento, uma vez que, vivendo no século
representada, sobretudo, pela figura materna. A XVIII, rompe com o "destino de mulher" e investe
história das mulheres guerreiras de Tijucopapo num projeto de vida perigoso. A afirmativa "era

121 .•. 125 ••


matando passarinho de baladeira, pescando piaba
sempre ou eles, ou eu", reiterada inúmeras vezes
no açudinho, usando como puçá o pano da saia.
pela protagonista, justifica seus atos, dando bem Mas, depois de moça, a gente fica presa dentro das
a medida do drama de Maria Moura, impossibili- quatro paredes de casa. (p. 62)
tada de conciliar a conquista do poder com suas
necessidades afetivas. Depois de um longo e perigoso percurso,
De natureza memorialista, porém com vários chefiando um bando cada vez maior de marginais
focos narrativos, a protagonista narra como saiu de e transgressores, Maria Moura chega à sesmaria de
casa, botando fogo na propriedade, numa forma Fidalga Brites, na Serra dos Padres. Essas terras,
ostensiva de ruptura cor a opressão do passado. produto de uma herança perdida no tempo, têm
Assumindo os padrões comportamentaiS masculinos, enorme importância, representando a sedimentação
corta o cabelo, modifica seu visual e dá início a uma do poder conquistado a duras penas. Constrói ali a
existência de aventuras, de marginalidade e de crimes. Casa Forte e se estabelece como dona absoluta, cujo
Desta forma, Maria Moura recusa o destino imposto poder é enfaticamente reconhecido por todos; a Dona
à mulher pela sociedade e representado por Matinal- Moura, "que dá coito às pessoas perseguidas; e não
va, sua prima, que traz no nome a pureza ideal. Esta tem homem, nessa ribeira toda, que se atreva a vir
personagem, enquanto solteira, era prisioneira dos atrás de alguém que esteja debaixo de sua proteção."
irmãos e, depois de um casamento feito às escondidas, (p.338) Mas a conquista do poder não a satisfaz ple-
se submete ao marido, trainee de atirador de facas... namente. Simone de Beauvoir, em O segundo sexo, já
Maria Moura, ao incendiar e abandonar a havia destacado o conflito da mulher liberada:
própria casa, realiza o sonho de conhecer o mundo,
recusando a prisão/proteção do lar: O privilégio que o lniiiem detém, e que se faz
sentir desde sua infância, esií em que sua vocação
O mundo lá fora era grande e eu não conhecia de ser humano não contraria seu destino de ho-
nada para além das extremas do nosso sítio. E mem. Da assimilação do falo e da transcendência,
tinha loucura por conhecer esse mundo. Quando resulta que seus êxitos sociais ou espirituais lhe dão
menina ainda, saía pela mata com os moleques, um prestígio viril. Ele não se divide. Ao passo que

... 126 27
à mulher, para que realize sua feminilidade, pede- Os atos violentos fazem parte da vida de
se que se faça objeto e presa, isto é, que renuncie Maria Moura, que ainda jovenzinha arma uma
a suas reivindicações de sujeito soberano. É esse
emboscada para dar fim ao Liberato, suspeito da
conflito que caracteriza singularmente a situação
da mulher libertada. (p452, v.2) morte de sua mãe, e ao Jardilino, executante do
crime. Nunca é ela quem mata, mas é quem forne-
Maria Moura, ao se apaixonar pelo traidor ce a arma e inventa uma história cm que aparece
Girino, um de seus protegidos, põe em risco o po- sempre como donzela desvalida.
der conquistado; e como seu lema, desde o início,
Assim morreu Jardilino, quase do mesmo jeito
foi "ou é ele, ou sou eu" depois de uma dolorosa
de que tinha morrido o outro, o Liberato, com
luta interior, manda matá-lo. A autora, nesta passa- um tiro do próprio bacamarte dele. 1 a garrucha,
gem, se esmera, apresentando o confronto de duas meu pai devia ter deixado para defender a filia
forças violentas: o amor por Girino, que a fragiliza dos ataques de homem, que é coisa cuc iiio
à mulher, neste mundo. (p32)
- "Custei a acertar com o buraco da chave. E os
dedos trêmulos não tinham força para movimentar
A trajetória de Maria Moura é, do princípio
a mola forte da fechadura." (p458) -, e seu desejo de
ao fim, uma enfiada de mortes que ela comanda
vingança por se sentir traída e ameaçada por Girino
mas não executa, sendo sempre mandante de crimes
- "Eu consegui olhar bem dentro dos olhos dele,
violentos, que visam a manter o poder conquistado.
com a garrucha ainda colada ao corpo, para me dar
Esta personagem e Rísia, de As mulheres de T!/ucopapo,
firmeza à mão trêmula." (p.459). A garrucha, símbo-
lo fálico, lhe dá a força necessária para superar sua rompem com a idéia da "vitimização feminina",
mostrando que as mulheres podem ser tão violentas
carência afetiva e realizar o projeto de morte.
quanto os homens. Elizabcth Badinter já dissera que
Segundo a autora, o romance foi inspirado na
as diferenças entre os sexos são apenas culturais:
vida de S. M. Elizabeth 1, rainha da Inglaterra (1533-
1603), que mandou executar o conde Essex, seu favo-
Há um mal-estar diante da generalização em
rito, tendo descoberto, entre os excessos cometidos na dois blocos opostos: a classe das mulheres e a classe
luta pelo poder, a tentativa de golpe contra ela.

120 o..
•.' 128
dos homens. Não equivalerá isso a recair na arma-
dilha do essencialismo, contra o coai as próprias
feministas tanto lutaram? Não existe urna mascu-
linidade universal, mas masculinidades múltiplas,
assim como existem múltiplas feminilidades. As
categorias binárias são perigosas, porque apagam O corpo degradado
a complexidade do real em benefício de esquemas
simplistas e restritivos. (p.53)

( peita por ser filha espúria


De um pai jtie sabe bem do meu molejo.
las loltirla alguma me faz ter pejo
Que (:LI eo soli mitlher de tecer lamúria
ti dita do prazer, sua cabrocha,
quem tia)) 1 tC com meti ti)) COXO.
\cclto ttiilu, exceto (1 prazer XOXO
Dutj ieIe (IUC São fiéis C( 1110) tillia li )cha.
U/uc,rdo Tbo,né

A leitura dos contos de Márcia Denser, dos livros


Tangontasrna (1976) e Diana 6çadora (1986), nos
choca pelo tratamento dado ao corpo, em sua repre-
sentação ficcional. O discurso crítico da narradora,
quase sempre em primeira pessoa, não deixa pedra
sobre pedra, numa crítica feroz à sociedade paulista-
na de forma geral, mas sobretudo às relações sexuais,
onde o corpo é tratado de forma aviltante.

'•• 130
Essa representação degradada do corpo nos em seu verbete "Corpo da mulher/corporalidade",
remete à história do cristianismo, em que, se a registra uma citação de Agostinho, que se tornou
fé cristã, por um lado, acredita num Deus que se um princípio clássico do Cristianismo: "Reta é a casa
tornou corpo, carne, por outro lado evoluiu para onde o homem ordena e a mulher obedece. Reto
uma prática e postura de hostilidade ao corpo. Este é o homem no qual o espírito domina e a carne se
parece ter sido valorizado apenas no início, uma submete." (Corpus ('ristianorum, v.36, p18)
vez que Jesus, em suas curas, não somente toca os Odilema da mulher, dividida entre corpo e
corpos, mas subverte o conceito de puro e impuro. espírito, se reflete no ideal de Maria, que foi sexu-
Para o apóstolo Paulo, entretanto, entre o corpo almente pura, virgem e mãe a um só tempo; porém
e a carne, que é o corpo ferido pelo pecado, há um ideal irrealizável. O citado verbete mostra como
coisas não resolvidas, que os tabus tradicionais, os o feminismo contribuiu para a valorização do corpo
ideais ascéticos e a tradição dualista solucionaram e, conseqüentemente, das mulheres.
marginalizando as mulheres, com base na latente ií
impureza de seus corpos. Por isso, elas foram man- Hoje são importantes sobretudo as intuições
que as mulheres adquiriram cm seus movimentos
tidas à distância dos sacramentos, enquanto para os
de ruptura. É comum a estes a crítica à coisificação
homens exigiu-se apenas a abstenção das relações ou despersonaliz ação do corpo, a uma fixação coi-
sexuais. A associação entre pureza e sacerdote veio a tal da sexualidade, ao dualismo e ao consumismo.
tornar-se um traço característico da Igreja Católica, Nesta nova visão o corpo aparece como o lugar do
encontro entre pessoas humanas, como lugar da
culminando com a lei do celibato.
luicarnação, como o espaço a partir do qual nós
O pensamento hebraico, que marcou o Novo pensamos, já que todo conhecimento é corporal-
Testamento, para o qual não existe separação estrita mente intermediado, como lugar jmme reflete nossa
entre corpo e alma, foi substituído pelo neoplatonis- Iiist6rma individual e política e como lugar a partir
do qual a vida é transmitida. (p66)
mo, que via no corpo a prisão da alma. Com a desva-
lorização do corpo a mulher também foi desvalori-
A crítica à reificação do corpo encontra-se, de
zada; com o desprezo pelo corpo cresceu também o
forma obsessiva, nos contos de Márcia Denser. Suas
desprezo pela mulher. O Diiionário de Teologia Feminista,

•.. 132 •. 133 •


personagens femininas, respectivamente Madalena, Como se não bastassem os fatos vividos pela pro-
de Tango Fantasma, e Diana, de Diana Caçadora, estão tagonista, o livro se abre com um poema que ques-
sempre envolvidas cm relações sexuais, sem nenhum tiona a versão da "grande pecadora", sem apontar,
prazer, aguilhoadas por um desejo que jamais se si- no entanto, nenhuma saída.
tis faz. O conto "Luz vermelha", do primeiro livro,
Corno sentir-me Madalena, a adúltera Bíblica,
termina com as seguintes palavras da personagem
Puta mais temida do universo?
narradora: "Vagando em círculos: como alguém, É possuir o elemento amoral e gratuito?
perpetuamente, mordendo o próprio rabo." (p16) É imolá-lo aos meus caprichos, ignorando
É uma espécie de condenação, onde o sexo se esgota Sua existência e, seus quereres?
É servir-me de você e depois destruí-lo
em si mesmo, não produzindo nenhum prazer. As
Com um sorriso de carinho supremo?
protagonistas dos contos sugerem a imagem circu- Seu ódio ser meu maior prazer?
lar e sempiterna do uroboro, serpente cósmica que É sentir prazer?
morde sua própria cauda. As relações sexuais, em Sua solidão não compensar a minha?
É não desejar compensações?
moto perpétuo, quase sempre alimentadas pelo ál-
É ter a marca de Caim?
cool, degradam o corpo e destroem todo e qualquer E quem é Caim?
vestígio de dignidade humana.Urn bom exemplo É estar inocente, pois perpetuada aos pés
o conto "O animal dos motéis", de Diana GIcadoni, De um Cristo 1 Ioiiuio
E possuir o CSIIgI1LI (lOS cabelos
onde a protagonista vê a si e ao parceiro, refletidos
Sobre lágrimas?
no espelho, como "uma espécie de confuso coquetel É mesmo?
de siris assados ( ... ) o animal mitológico, a quimera Ou debaixo delas, perpetuamente,
que se arrasta interminavelmente na madrugada ao Estar rindo?
1-Tem?
som de Roberto Carlos." (i.47-8)
(p. 11)
Márcia Denser constrói suas histórias em or-
no de uma mesma personagem. Em Ta,o Um/asma, Na historia bíblica, a imagem de Maria Mada-
há uma analogia muito clara entre a personagem lena cstí envolta cm certa ambigüidade, uma vez que
Madalena e a Maria Madalena da história bíblica.

•.. 134 ' •.. 135 •


ela é considerada "testemunha da ressurreição", mas do que me criou, alimentou, se maloti por mim,,,
Não. Não lembro. Cala a boca iuc asy nt isso não
também identificada como "a grande pecadora", o tem mais importância. agora eu sou imia mulher
que favoreceu, de modo especial, sua desqualificação. bonita, viu? Agora tenho os homens. (p. 4
Assim, a imagem da primeira e mais importante mu-
lher da jovem cristandade foi prejudicada. Acusada de É como se fosse a libertação de urna vida re-
"desregramento sexual", foi vista corno uma meretriz prirnida; mas, de fato, vem a ser o início de uma tra-
exuberante. Paralelamente ao seu rebaixamento à jetória decadente, que já se vislumbra neste primeiro
condição de prostituta, teve início a ascensão de conto, quando a protagonista se questiona: "Então
Maria, mãe de Jesus, à categoria de santa. O modelo foi pra isso que deixei de chupar o dedo?" (p16)
da amizade entre urna mulher e Jesus passou a dar As descrições dos parceiros e do espaço
lugar ao modelo primitivo da maternidade biológica. constroem um universo degradado, onde o corpo
O destino de Maria Madalena caracteriza o desenvol- da protagonista se insere corno produto, vivendo
vimento da Igreja patriarcal que, em lugar de aceitar uma sexualidade compulsiva, mecânica, motivada
o corpo e a sexualidade, procura desvalorizá-los, pelo álcool. O "anãozinho" que se esvai cm "riornas
conferindo-lhes urna conotação negativa. espumas pegajosas" (p13), o "cara cie mameluco,
A protagonista de Tango Fantasma sofre no pró- dentes falhos de gaúcho cavalo" (p.17), o "velho
prio corpo esta desvalorização. Significativamente, pelado: coisa horrível! Baixinho, um composto de
o conto que abre a coletânea inaugura a vida sexual flacidez miúda e pelancas giratórias" (p.59) intera-
de Madalena, que vai, de conto em conto, cada vez gem num espaço marcado pela sujeira, pelo mau
mais se degradando. Na cama, após seu primeiro ato cheiro e pelo desleixo, corno a descrição feita pela
sexual, que nada lhe acrescenta, enquanto o parceiro personagem Anjo do conto homônimo:
dorme, ela pensa na vida e recusa todo e qualquer
vestígio de formação moral: Horrível. Sobi \YII1() (01 dc tosta iticridinital,
mesinha de centro coto o Indeicctível \'asillIit de
flores de plástico cncaidida, no jtIaito, aqueles
Pára de olhar essa silhueta recortada no teto,
móveis pesados e cscuto., anol de acIl ebecta
gritando para fazer isso, não fazer aquilo, lembran-

• 1137
•.. 136
por uma ridícula colcha chinesa e o colchão ca- através de minhas coxas completando o teu, o meu,
lombento, feito (ai! de capim), feito urna estrada o dele, o nosso, o rabo universal que mordemos..."
do Mato G rosso ... (p.3l) (p.98-9) Obsceno e trágico ao mesmo tempo!
A protagonista tem consciência da própria
"Prédios velhos", "escadarias sujas e estrei- degradação, de estar fazendo "o trabalho sujo" pela
tas", "cheiro azedo", "sofá cama cor de fundo de donzela com quem o parceiro vai se casar: "Deixar
lata de lixo", onde até a boneca guardada traz as que o façam por mim, homens como este, deixar
marcas da degradação: que me puxem para baixo, esfreguem-me a cara na
minha própria merda e quanto mais me degradarem,
Embolorada, vestido em trapos, louça descas- mais adora-los." (p23) Sente-se como a "cadelinha
cando. Nos ralos fiapos de cabelo um p acmzefl-
tado aglomerara-se em bolinhas, como min6sculos mordendo o próprio rabo" (p73), na eterna busca
piolhos mumificados. Debaixo da franja dura de um prazer não alcançado.
dos cílios negros, reencontrou aquele p e trificado O ato sexual é o ápice da degradação, onde a
brilho azul de seu olhar. ..(p.fll) beleza da protagonista, tão cuidadosamente prepa-
rada, se "despenca" no corpo a corpo: "o espelho
O espaço degradado interage com o ato sexual
( ... ) refletia um corpo tão bem feito, urna pele tão
- "os dois numa estreita cama dura, capim picando macia, tão fielmente quanto refletia as faces borra-
por baixo do cobertor áspero e surrado" (p.91) -, das, caracóis arrepiados, cílios descolando. Cara de
que tem sempre urna conotação negativa. Veja-se, prostituta submec da a uma estética corporal." (ID.
por exemplo, o comentário da protagonista, duran- 22) A mulher que joa() encontra chega a assustá-lo
te sua relação com o parceiro: "Lutava vagamente com sua "cara de boneca cuja cera derretera-se em
contra a sensação de uso e abuso, de perdas e danos, crostas, arremedo de superfície lunar, forrada de
de engano, de copo d'água que, matando a sede, bolhas e crateras tão profundas que dentro delas
transforma-se rapidamente na urina podre"(p.19); caberia um dedo." p. 42) É a estética do feio e do
ou, mais urna vez, a figura do uroboro mordendo o grotesco, dentro de um universo ficcional muito
próprio rabo: "Minha cabeça de cambalhota penetra
semelhante ao de Dalton Trevisan. Aqui também as anos só no setor cílios. É um sacrifício quando os
personagens são impelidas pela necessidade sexual, pêlos grudam e se tem de separá-los com ponta
numa busca incessante do prazer. Basta lembrar da de alfinete, um por um." (p121) A deusa Diana,
personagem Nelsinho, de O Vampiro de Curitiba, "cão filha de Júpiter e Leto, obtém de seu pai manter-se
sarnento atormentado pelas pulgas, que dá voltas virgem e este lhe dá flechas e um cortejo de ninfas,
para morder o rabo." (p. 14) fazendo-a rainha dos bosques. Esta deusa agreste é
Márcia Denser deu ao seu primeiro livro o representada de vestes curtas, pregueadas, com os
título de um conto que encerra a coletânea, "Tan- joelhos descobertos, caçadora esbelta e jovem, mas
go Fantasma", alusão à riúsica que esteve muito sombria e vingativa. O que, até certo ponto, repre-
presente na infância da narradora e que permanece senta o avesso da nossa protagonista, uma vez que,
em sua memória. Trata-se de um conto onde a nar- nos contos, ela acaba sempre caçada e destruída.
rativa dialoga com letras de tangos, dançados por Os nove contos de Diana caçadora constroem
seus pais, aos quais a menina "emburrada" assiste, a trajetória de uma mulher de aproximadamente
às escondidas. Com Diana caçadora, publicado dez trinta anos, jornalista inteligente e liberada, que
anos depois, a protagonista de todos os contos se busca se encontrar através de relaçôes efêmeras e
chama Diana Marini e sua principal distração é caçar ocasionais. A disposição dos contos é reveladora na
homens. Inspirada na mitologia romana, onde a medida em que, por meio de situações análogas, a
deusa da caça, Diana, corresponde à Ártemis helê- personagem narradora sofre um crescente processo
nica, essa personagem é construída de forma mais de degradação. Da parceria com intelectuais, cm
contundente que a Madalena do primeiro livro. "\Velcome to Diana" (primeiro texto da coletânea),
O discurso da narradora, quase sempre a própria à situação limite vivida em "Relatório final", Diana
protagonista, é mais crítico e demolidor, chegando, percorre caminhos que a levam, sistematicamente,
às vezes, ao caricatural. Assim diz ela, falando de ao abandono e à solidão. Os homens, sempre vam-
si própria: "Estivera fazendo hora no toalete com piros - "caninos pingando sangue" - pertencem às
minha caixa de maquiagem e eu demoro uns dois mais variadas classes sociais, embora comportem-

... 110
que era de uma esotérica seita oriental, babaca como
se da mesma forma, deixando-a ao final, com sua
tantas outras, e usando tudo isso em proveito pró-
"complacência fingida", "só e desamparada". prio." (p.55) Depois de vários programas, Diana
Diana resvala, portanto, progressivamente,
acaba na cama com o tal "guru", ambos totalmente
para o fundo do poço; sempre alcoolizada, parece
alcoolizados e drogados, buscando o prazer sexual
se submeter a um destino trágico, como ela mesma
- "o prazer puro, o prazer puro" (p62) - numa
reconhece: "É como uma sina." Ou isto ou a solidão
ânsia eternamente insatisfeita. Depois de um sono
das noites de insônia. A ironia é seu recurso contra
nauseado, veste-se e vai para a rua: "Porra, estava,
o sistema que a quer devorar e são poucos os mo- livre. Leve. Livre." (p.62-3) Doce ilusão. Ao final,
mentos em que, com extrema lucidez, reconhece
com seus pertences roubados, só lhe resta voltar
melancolicamente sua trágica fatalidade: para o apartamento do tal vampiro.

Casa de espelhos para onde torno e retorno, Vomitei espasmodicamente num canteiro de
devolvida a mim mesma, labirinto especular no
hortênsias. Resolvi V( li ar para casa. Lá pagariam
qual continuo vagando, os pés feridos nos meus
próprios cacos, armadilhas obstinadas a inc reter, o táxi. Então leml)1cl: estavam todos viajando.
infinitamente, destruir-me, reconstruir-me, inces- Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas
etc. Eu estava sem a bolsa, sem as chaves, com
santemerite, em dor e em pó. (p.29)
frio, fome e precisando de um banho. No táxi,
suspirando, dei o endereço de Klaus. (p65)
Ter os pés feridos nos próprios cacos é ferir-se
a si mesma, como a cadelinha que morde o próprio Diana tem uma personalidade narcísica; no
rabo; é o destino trágico de uma mulher jovem que seu universo dionisíaco e degradado, toda realidade
de "caçadora" passa, sistematicamente, à presa. O circundante parece um reflexo dela mesma. Ao
conto "O vampiro da Alameda Casabranca", entre olhar para o outro, como um reflexo, o que ela
outros, é um ótimo exemplo da degradação a que vê não é o próximo, mas a si mesma. "O mundo
chega, ao final, a protagonista. Como sempre, o par- inteiro como prolongamento de mim mesma..."
egativamente: "Um guru
ceiro escolhido é descrito n (p33) Busca no outro sua idcniidadc, mas, como
de fachada, meio sobre o charlatão cósmico, adepto

...
... 142
seus relacionamentos são fugazes, sua identidade que lhe aponta as vantagens de um ombro amigo,
não se configura, não se fixa: "...as minhas mãos, mas não consegue convencê-la, pois encontraria
mãos sem nome, sem legenda..." (p232) "fatalmente, mais tarde, a solidão." (p29) Suas re-
O tempo é visto como inimigo, pois o nar- lações interpessoais, em conseqüência deste medo,
cisista sente angústia de envelhecer. Por isso, o são como as do narcisista: fugazes, amores-livres e
futuro é apocalíptico, o passado não existe e apenas promíscuos. Diana caçadora, esta mulher faminta
o presente é uma realidade. E, por não encontrar e voraz, torna-se caça: lograda e insatisfeita, é usada
conforto na continuidade do tempo, como o violentamente pelo sistema.
narcisista, Diana inveja a juventude e sua relação O teórico americano Christopher Lash, em A
com jovens rapazes revela a ânsia de identificação cultura do narcisismo, esclarece determinados procedi-
com eles, embora tenha sempre presente a distân- mentos que compõem o chamado "tipo narcisista",
cia que os separa: "Não queria ver aqueles olhos, comum na vida e na literatura de nossos dias. De
não queria ver aquele rosto, não queria ver aquela acordo com Lash, numa época como a nossa, em
expressão especialmente perversa, infantilmente que há efetivamente um sentimento apocalíptico de
perversa, não queria me sentir velha demais, o aproximação de um fim de mundo, surge, no com-
outro lado do espelho desse rosto, cuja expressão portamento das pessoas, uma preocupação contínua
também já fora minha..." (p.74) com a sobrevivência de cada um. Tal determinação
Por desejar manipular as relações em que se de sobrevivência leva os atos do cotidiano a um
envolve, Diana tem medo da dependência emo- interesse narcísico pela individualidade. Este empe-
cional. Não suporta a idéia de ter de se submeter nho não se confunde simplesmente com o egoísmo
aos desmandos de um cônjuge. É como se o siste- (característico do ser humano em qualquer época da
ma patriarcal a sufocasse e ela, carente e perdida, história), mas é essencialmente uma defesa contra os
preferisse outros caminhos ilusoriamente mais impulsos agressivos. Assim, a personalidade narcísi-
satisfatórios. "Cuecas no meu bidê, contas con- ca de nossos dias é um exercício de sobrevivência, no
juntas e tudo o mais?", pergunta ela ao analista, qual o indivíduo procura minorar os efeitos destru-

•.. 144 • . 145 •


tivos que sobre ele exerce a cultura. A continuidade proibições para o seu superego: os pais e a religião.
do tempo não lhe traz conforto: não se interessa Nesta sociedade narcisista, a autoridade é renegada:
pelo passado nem pelo futuro; o tempo em que se en- os pais não mais se impõem como antes e a religião
contra é o seu lugar. Sua continuidade fica, portanto, perde sua força. A palavra de ordem, reforçada pelo
fragmentada, e com ela seu ego é estilhaçado. Sua analista, é liberação, principalmente sexual. A fuga do
história, sua memória, fundamenta-se no presente narcisista para o sexo sem limites, para um "festim"
dionisíaco acaba por ser uma tentativa de preencher-
imediato. Sua auto-estima requer que a sociedade o
admire, e como esta valoriza a juventude, a beleza e se, consolidar-se. Mas, ao fragmentar seus impulsos
a celebridade, este indivídub possui um extremado em múltiplas relações que se encaminham para o
horror à velhice e à morte. Ao defrontar-se com nada, ele se degrada e encontra o vazio e a solidão.
pessoas mais jovens, acaba por menosprezá-las, uma Retomando o que diz Lash sobre os efeitos
vez que vê nelas a própria mocidade perdida. Sua destrutivos da cultura, podemos acrescentar que eles
vida é o tempo presente, suas emoções são o aqui e são muito maiores no que diz respeito à mulher, pois
o agora. Perseguido pela ansiedade, pela solidão, por ela sempre esteve mais sujeita às forças repressivas
uma sensação de vazio interior, este ser busca a paz da cultura. Assim, não surpreende que o número de
de espírito, sob condições que agravam o processo mulheres narcisistas seja maior do que o dos homens
em vez de solucioná-lo. Os terapeutas tornam-se os na mesma situação. Chegou-se mesmo a pretender
seus aliados, uma vez que a terapia, em nossa época, que o narcisismo era uma atitude fundamental a toda
se estabeleceu como substituto da religião; padres e mulher. Mas, recolocando as coisas em seus devidos
lugares, Simone de Beauvoir, no Segundo Sexo, escla-
religiosos, de modo geral, cedem o lugar aos terapeu-
tas pós-freudianos que incentivam a liberação dos rece: "A verdade é que as circunstâncias convidam
impulsos sexuais reprimidos. O narcisista é alguém a mulher, mais do que o homem, a voltar-se para si
que procura constantemente o analista; ele necessita mesma e dedicar-se a seu amor." (p395)
de um profissional que o escute e o reconforte, pois Dentro deste quadro, Diana Marini emerge
perdeu a confiança naqueles que fundamentaram as como vítima dessas circunstâncias que lhe conferem

". 146 •.' 147


um perfil narcisista: vivendo numa grande metró- suas famílias, vivem a condição feminina de formas
pole como São Paulo, mulher liberada, procura em distintas: Lia, a militante, vai à luta; Lorena se fecha
fugazes relações sexuais a si mesma, num evidente em sua "concha" e Ana Clara, sempre drogada, pro-
processo de degradação. Seu corpo, fragilizado pelo cura tirar partido de sua beleza. A ausência do pai,
álcool e pelas drogas, a leva cada vez mais para o fun- traço constante do universo ficcional de Lygia, é um
do do poço, como confessa no conto "O vampiro fato apriori, uma vez que as personagens vivem num
da Alameda Casabranca": "...uma tristeza secreta e espaço não familiar, que repercute diversamente, em
corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda função da história de cada uma.
uma vez voltar a fazer cosas que não quero, não Aqui nos interessa a personagem Ana Clara,
preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me apelidada pelas amigas de "Ana Turva", pela sua
levam lá, uma espécie de morte incluída nos serviços desestrutura mental. Filha de uma prostituta, sem
de buffet." (p.61) É inegável a vocação humorística pai conhecido, ela tem um passado de pobreza e so-
frimento. O suicídio da mãe a desvincula do único
deste corpo degradado.
Madalena, protagonista de Tango Fantasma, resquício familiar. Muito bonita usa a beleza como
inaugura a trajetória decadente - "Tá vendo esse aí, meio de ascensão social. A busca da sobrevivência
dormindo? Foi o primeiro. E daí?" (p. 15) - que, pelo comércio sexual e a redenção do passado mise-
dez anos depois, é retomada pela personagem Diana rável através do projeto de casamento atuam como
Marini, num paroxismo de degradação corporal, elementos reificadores da personagem. A despeito
onde álcool, drogas e sexo destroem todo e qualquer de seus esforços para sair do grupo dos dominados,
ela cada vez mais se afirma como um objeto a servi-
vestígio de dignidade humana.
ço da satisfação sexual da classe dominante. Já que
as saídas no plano existencial lhe estão vedadas, ela
Lygia Fagundes Teiles, em seu romance As busca a fuga. O sono, as drogas e o sexo funcionam
como meios de evasão da realidade opressora; mas
meninas (1973), nos apresenta três jovens - Lia, Lo-
rena e Ana Clara - convivendo num pensionato de a única forma permanente de evasão é a morte
freiras, sob a repressão política pós 64. Afastadas de - destino final da personagem.

... 148 ••. 149 •"


Mitscherlich, psicólogo social cujo texto se sofrida e miserável. No presente da enunciação, ela
encontra em Dialética da família, de Mas simo Ca- é perseguida pelas lembranças de um passado que ela
nevacci, aponta, como uma das causas da crise da pretende apagar com a perspectiva de um casamento
sociedade e da família, a ausência do pai. rico. Na maior parte da narrativa, ela está na cama,
bebendo, drogando-se e tentando fazer sexo com
Pensamos, antes, no esmaecimento da ima- Max, que reclama sua falta de desejo. Diz ela:
gem paterna, que encontra sua causa na própria
essência de nossa civilização, no que se refere à
função educativa do pai: a figura luva e operante Engrena nada. Se ao menos engrenasse mesmo
do pai desaparece ou é igorada. Juntamente com e eu subisse pelas paredes de tanto engrenar e a
cabeça deixasse roque-roque de pensar só coisas
a perda da "visibilidade", causada por processos
chatas. Mas por que minha cabeça tem que ser
históricos, inverte-se também o valor atribuído a
minha inimiga, pomba. Só penso pc isan ciii o tu.
essa figura. (1970, p. 238)
me faz sofrer. Por que esta droga de cabeça icin
tanto ódio de mim? (p29)
O autor aponta, como urna das causas desse
"esmaecimento", o desenvolvimento técnico, pois, Suas mais remotas lembranças resgatam o
segundo ele, o rápido progresso da civilização tecno- tempo de menina, na cadeira do dentista, que ela
lógica abala a hierarquia dos velhos ordenamentos apelida de Doutor Algodãozinho, urna vez que o tra-
sociais, em suas estruturas de sustentação, ou seja, tamento, basicamente, consistia em trocar o algodão
nas estruturas familiares. A ausência do pai é uma do buraco dos dentes, enquanto seu corpo ia sendo
ausência estrutural, sintomática da decadência do degradado pela concupiscência do dentista.
patriarcado e da conseqüente perda dos referenciais.
Os romances de Lygia têm protagonistas mulheres, Mudava o algodãozinho enquanto o buraco
vivendo crises de identidade, determinadas, em sua ia aumentando. Aumentando. Cresci naquela ca-
deira com os dentes apodrecendo e ele esperando
maioria, pelas relações familiares. Em As meninas,
apodrecer bastante e eu crescer mais pra cotão fa-
o corpo degradado de Ana Clara é o resultado de zer a ponte. Uma ponte pia 11,1, e outra pra filha.
urna total crise de valores, reflexo de uma infância Bastardo. Sacana. As duas punes caindo ita ordem
de entrada em cena. Primeiro da mãe que se deitou em janeiro meu boneco. Em janeiro vida nova. Tirar
com ele em primeiro lugar e depois. (p.31) o pé da lama. Você já foi rico agora é minha vez não
posso? Ano que vem stop. Um escamoso mas podre
Sob o efeito do álcool e das drogas, seu dis- de rico. Então." (p.32)
curso é desconexo, misturando tempos e espaços Esse corpo degradado, na morte, vai ter sua
diferentes: na cadeira do dentista e no quartinho da compensação. As amigas do pensionato, Lorena e
obra, onde morava com a mãe e seus homens: Lia, o embelezam, mascarando a realidade de uma
morte por overdose. Ana Clara morta, toda maquiada
As unhas arrebentíu?sdo o elástico da minha e bem vestida, sentada no banco da pracinha. As
calça e arrebentando a calça e enfiando o dedo de aparências foram salvas...
barata-aranha pelos buracos todos que ia encon-
trando tinha tantos lá na construção lembra? As
baratas cascudas eram pretas e se agachavam como
a gente se agacha pra passar pelo vão. Inteligentes
essas baratas mas eu era mais inteligente ainda e
como conhecia seus truques foi fácil agarrai a
mãe delas pelas asas e abrir a panela e jogai- cLi
lá dentro. Tome agora sua sopa com a baratoima
eu disse chorando de medo enquanto ele sacudia
minha mãe pelos cabelos e ia me sacudir também
bêbado de não poder parar de pé. (p.34-5)

Lembranças sempre dolorosas que ela tenta


evitar. "Me ajuda me ajuda me ajuda. Eu não quero
mais lembrar e lembro. Sei que a infância acabou
tudo acabou e que ela era urna." p.75) Apesar da
suspeita de gravidez, sonha com um casamento rico
que a tire desta situação. "Te amo Max. Te amo mas

•.. 152 •.. 153 •


1

O corpo erotiado

Nosso COIl ) (O j)Cli(IC

A epígrafe aqui presente nos remete aos anos


70, quando as feministas descobriram que
podiam ser donas do próprio corpo e daí extrair
o prazer. Foi uma enorme mudança, operada em
muito pouco tempo, uma vez que até então eram
raras as vozes que se insurgiam contra a dominação
masculina neste terreno. As pioneiras ousaram
desabar os tabus e se puseram a falar e a escrever
sobre os prazeres da carne, como Gilka Machado
(1893-1980), tão criticada na época pelo seu van-
guardismo, e Simone de Beauvoir, escandalizando
com as observações sobre a sexualidade feminina
em O Segundo Sexo (1949). Enfim, as mulheres come-
çavam a romper o silêncio sobre o próprio corpo,
reivindicando o direito ao prazer.
4

Em estudo sobre o desenvolvimento da sen- paradigmas masculinos repressores." (p.57) Agora,


sualidade feminina na sociedade brasileira, Rachei conquistado o espaço no universo literário, até então
Soihet aponta o Carnaval como uma brecha na quase exclusivamente masculino, as escritoras ousam
repressão sofrida pelas mulheres da classe média, romper o silêncio sobre os prazeres do corpo. Se na
uma vez que, entre as mulheres do povo, eram poesia isso acontece mais cedo, como provam inú-
muitas as possibilidades de extravasar a sexuali- meras obras de poetisas brasileiras, deve-se ao fato de
dade. Diz a historiadora: que se trata de um discurso mais próximo da fantasia,
enquanto a narrativa tem maiores vínculos com a
A sensualidade, poik longo tempo vista como realidade. Daí a representação do corpo erotizado ser
apanágio da negra e da mulata, torna-se visível nas um dado recente na prosa de autoria feminina.
mulheres de todas as cores e segmentos, que a exer-
cem com garra invejável, negando estereótipos Como se apresenta esse corpo erotizado?
de longa data. Enfim, acelera-se o passo rumo ao Trata-se de um corpo que vive sua sensualidade ple-
reino da liberdade, que encontra no Carnaval um namente e que busca usufruir desse prazer, passando
momento de expressão maior. (2003, p.195) ao leitor, através de um discurso pleno de sensações,
a vivência de uma experiência erótica.
É interessante observar que esta liberação do É bem conhecido o mito de Eros, que, segun-
corpo como fonte de prazer caminha paralelamente do Platão, teria nascido da união de Poros (recurso)
à liberação sócio-existencial das mulheres no nosso e Pênia (pobreza). Por isso está sempre em busca de
contexto androcêntrico, mostrando que a liberdade seu objetivo, sendo urna força insatisfeita e inquieta.
só se conquista em todos os planos. É o que Angélica Esse estado de perturbação, marcado pelo desejo
Soares observa em seu livro A Paixão Bmanczatória, que só se satisfaz ilusoriamente, se relaciona com o
ao tratar do erotismo na poesia brasileira de autoria sentido de descontinuidade do ser, concebido por
feminina: 'A intensificação do investimento poético George Bataille, para quem somos seres descontí-
no erotismo pelas escritoras brasileiras parece-me ter nuos, mas temos a nostalgia da continuidade. Ele
muito a ver com esse momento de forte trabalho abre seu famoso estudo sobre erotismo com uma
de conscientização da necessidade de ruptura dos


.. 156 ' •• 157 ••
proposta de definição, sem propriamente defini-lo: um dia a menos" p15), bem casada e entediada,
"Do erotismo, é possível dizer que ele é a aprovação que embarca nas recordações da adolescência, onde
da vida até na morte."(p.19) Já Octávio Paz, em seu viveu um amor menino, cheio de promessas que não
livro A dupla chama: Amor e Erotismo, vai mais além, se realizaram. Esta situação dramática determina o
estabelecendo uma distinção entre amor, erotismo e entrelaçamento de duas histórias - a do presente e a
sexualidade, termos que se confundem por estarem, do passado -, dissolvendo, muitas vezes, as frontei-
freqüentemente, relacionados. Amor e erotismo ras do tempo. A mulher, como é chamada, sozinha
derivam do instinto sexual, mas, segundo o autor, em casa, ao cair da tarde, se deixa levar pela magia
"amor é escolha; o erotismo, aceitação." (p.34) do toque do telefone e resgata, em sua fantasia, a
A distinção fica bem clara quando Octávio Paz figura do homem que, ela amara ainda menino. Esse
afirma: "Não há amor sem erotismo como não há amor de dois adolescentes faz parte da sua história,
erotismo sem sexualidade. Mas a cadeia se rompe em enquanto os fatos narrados a partir do telefonema
sentido contrário: amor sem erotismo não é amor são engendrados pela sua fantasia, produto da ân-
e erotismo sem sexo é impensável e impossível." sia de viver plenamente aquele amor. Ao final da
p.97) Assim, o corpo erotizado pode ou não estar narrativa, a narradora confessa que, como escritora,
envolvido pelo amor, mas estará, seguramente, muitas vezes perde o contato com a prosaica reali-
vivendo sua sexualidade. dade, vivendo em outra dimensão.
A Editora Record vem publicando, dentro
da Coleção Amores Extremos, romances de autoria Nós, escritores, somos assim. Sofremos de
uma espécie de esquizofrenia. Vivemos possuídos,
feminina que tematizam, sob vários aspectos, as mergulhados em devaneios que nos arrastam e
relações amorosas. 1-lá um deles, escrito por Heloísa envolvem até não sabermos mais onde estão as
Seixas, intitulado Através do vidro - amor e desejo (2001), divisas, quem somos e onde pisamos. Muitas vezes,
que realiza plenamente a proposta erótica. Narrado deixamos-nos mergulhar de propósito, para fugir
à aridez dos dias, ao medo da morte - à certeza,
em terceira pessoa, diz respeito aos devaneios de que nos acompanha sempre, de que caminhamos
uma mulher de meia idade ("Cada anoitecer era cm direção ao fim. (p109)

•.. 158 • ••. 159 •


O que importa ressaltar aqui não são os fatos ceu, anulando-se ante a imensidão daquele primeiro
instante de prazer - um momento que, como a
que compõem o sonhado fim de semana passado
própria face da morte, não dá margem a engano.
num ambiente paradisíaco, ao lado de um homem E, nesse mergulho alucinado, em que se sentiu
bonito, rico e interessante, mas as sensações que transformar em fragmentos de estrelas, a menina
ela vivencia a cada momento, como se seu corpo nem ao menos pôde gritar. O beijo, que se impri-
mia sem perdão sobre sua boca, manteve-a prisio-
estivesse totalmente antenado com o ambiente
neira, enquanto seu corpo, desfeito, desaparecia
circundante. A sensibilidade do tato: "Sua palma no céu de uma dimensão desconhecida. (p93)
trilhou o acolchoado macio, sentindo-lhe a trama,
cada mínima saliência e reentrância, como se a pele Com o corpo erotizado por essa primeira
tivesse ganho novos sensores, de precisão e alcance experiência, a menina fica à mercê da memória do
sobrenaturais." (p.21) A visão mais apurada: "Ela prazer e se deixa invadir pelo ponto de calor que
enxergava coisas que nunca tinha visto antes." (p.22) ameaça anulá-la novamente. O orgasmo se dá aqui
O olfato sensualizado e a ansiedade do paladar: em perfeita comunhão com a natureza, numa lin-
"Agora, o aroma das postas assadas subia junto com guagem liricamente erótica.
a fumaça, impregnando o ar, penetrando as narinas
da mulher e desaguando na saliva que se formava Parou ofegante. O cheiro de lama que emanava
das margens fez suas narinas vibrarem, num espas-
em sua boca." (p34) A audição perfeita: "Por um
mo de prazer. E a visão das águas escuras escoando
instante enorme, os dois ficaram mudos, ouvindo a lentamente em direção ao mar, onde sal e doce
noite. Até que, ao longe, um pássaro noturno soltou se acasalavam, onde fundiam os líquidos claro e
seu canto, longo e sentido." (p.83) escuro, atingiu-a num átimo. Sem esperar pelos
outros, disparou ribanceira a baixo. (p95)
Cabe registrar aqui, como exemplo de dis-
curso erótico, a narração do primeiro orgasmo da
Há momentos em que o ato amoroso adquire
menina, entregue às carícias do jovem namorado.
traços de um sacrifício, não faltando nem o altar
O delírio foi num crescendo e tomou-a por onde se pratica o ritual. Bataille, no livro já citado,
completo, até que o núcleo de sua alma desapare- estabelece uma comparação entre o sacrifício na an-

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1

tigüidade e a relação erótica: "O que o ato do amor e tica e, muito provavelmente, solitária. "Ela ia, no
o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a que fosse. Haveria música. E gente. E movimento.
vida ordenada do animal pela convulsão cega dos ór- Isso já lhe bastava." (p82) Há um detalhe curioso,
gãos. O mesmo acontece com a convulsão erótica." registrado pelo narrador, que bem define a relação
(p.143) Agora, vejamos a narração do ato sexual: o da personagem com a domesticidade. Ela usa luvas
leito, no meio do quarto, como um altar e a mulher para se proteger da água suja das louças e copos, mas
sobre ele, sobre os lençóis imaculados, nua. "Como um pequeno furo na luva estabelece o contato dela
uma virgem no altar do sacrifício." (p.77) com essa realidade que ela busca evitar.
Nesse romance, o carpo ganha plenitude ao Essas marcações são importantes porque
ser erotizado; sua dimensão extrapola as fronteiras revelam a carência da personagem que acompanha
anatômicas para comungar com o ambiente, numa a montagem do que parece ser uma feira e se põe a
simbiose, que se poderia chamar de ecológica. A escolher mentalmente a roupa que usaria: "o vestido
personagem resgata, no plano da fantasia, seu amor vermelho de bolinhas, porque tinha um jeito de seda
da meninice, atualizando esta recordação de forma e uma saia godê que lhe acariciava as coxas quando
extremamente erótica. andasse sobre os saltos altos em meio aos sons e à
gente toda." (p82) A proposta do inusitado desenca-
deia na personagem um processo de erotização. Seu
No conto "O leopardo é um animal deli- corpo já antegoza a carícia da seda nas coxas, como
cado", do livro homônimo de Marina Colasanti um preâmbulo de prazeres mais intensos.
(1998), temos uma personagem anônima, marcada Erotika Tour é o nome que brilha no letreiro
pela domesticidade. Quando a narrativa começa, ela e que vai agir sobre a personagem de forma mágica.
está lavando louça e vê pelo basculante da cozinha a "O desejo de alegria que sentia nos lábios acendeu-
chegada dos caminhões à cidade. Sem saber do que se quando passou debaixo do arco luminoso, e as
se trata, circo ou parquinho, ela já se decide a ir, cores das lâmpadas, dos tubos de néon, as cores todas
rompendo assim com a rotina de sua vida domés- daquelas letras, daqueles raios e círculos despejaram-

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..0
163 •
se piscando em cima dela." (p.83) Era um mundo tário reintegrado à prosaica realidade. "Limpou os
de luzes e de ilusão, bem diferente de sua realidade dedos no vestido, ajeitou os cabelos com as costas
doméstica. "Universo do Prazer", "A Cidade das Mu- da mão. Só então percebeu que tinha esquecido as
lheres", "Túnel do Amor", "A Massagem do Desejo", sandálias." (p.89) O efeito mágico terminara.
"Sacerdotisa do Sexo" fazem parte dos letreiros das Marina Colasanti constrói uma personagem
barracas, numa oferta apoteótica de prazeres. Mas a sexualmente carente que vai em busca do prazer
"praça de mentira", o "laguinho forrado de plástico erótico, mas a feira, promessa delirante feita de
azul" com "as plantas artificiais na beira" são índices mentiras, não realiza plenamente seus desejos, trans-
das ilusões oferecidas. Tudo dt mentira. formando a personagem num ser vazio e amorfo.
Depois de passear pela feira, experimentar Aqui o corpo erotizado não é fonte de prazer pleno,
comida afrodisíaca e beber o fluido do amor, mas apenas promessa não cumprida.
seus olhos procuram os homens. O processo de
erotização aguça-lhe todos os sentidos. "A cor
o aroma a quentura daquela comida deslizaram No conto "As cerejas", do livro homônimo
garganta abaixo abrasando-lhe o corpo." (p.85) (1992), Lygia Fagundes Telles trabalha o erotismo
Mas é no Túnel do Amor que vai extravasar sua como um elemento estranho ao ambiente rural,
sexualidade, numa ânsia desatinada. Aqui, em simples e tranqüilo. A narradora, personagem deste
meio a um corredor cheio fie sombras, é assediada espaço, chega a duvidar de ter vivenciado aquela
por três homens, um de cada vez, que a excitam situação: "Aquela gente teria mesmo existido?"
de várias formas, mas que sempre se esquivam. O Ela, a Madrinha, sempre à procura dos óculos, e
final do conto registra a luta entre o desejo dela e Dionísia, com suas receitas, moram no sítio, onde,
a recusa do terceiro homem - o leopardo delicado "inesperadamente", chega a sofisticada tia Olivia. O
-, terminando com ela cavalgando-o "desatinada". jovem Marcelo, "muito louro", aí já se encontrava
A fusão tão desejada não acontece e a mulher que passando férias. Estabelece-se, de imediato, o con-
sai do Túnel do Amor é, novamente, um ser soli- traste, dolorosamente percebido pela narradora:
Marcelo também tinha estado na Europa com Para a adolescente, criada pela Madrinha
o avô. Seria isso? Seria isso que os fazia infinita- simplória e pela distante Dionísia, encantada com
mente superiores a nós? Pareciam feitos de outra o primo loiro, a cena tem um efeito incandescente,
carne e pertencer a um outro mundo tão acima do numa aproximação possível com o violento desabro-
nosso, ah! como éramos pobres e feios. (p.S)
char da sexualidade. Daí a reação, quase instantânea,
que a Madrinha confunde com um forte sarampo.
A narradora, então adolescente, está rendida
aos encantos de Marcelo - "tão belo quanto um deus,
Até hoje não sei quantos dias me debati es-
um deus de cabelos dourados e botas, todo banhado braseada, a cara vermelha, os olhos vermelhos,
de luar" - e vai temer a superioridade da tia e seu escondendo-me debaixo das cobertas para não
poder de sedução. Esta, que logo se interessa pelo ver por entre clarões de fogo milhares de cerejas e
escorpiões em brasa, estourando no chão. (p13)
"rapazinho", é a representação inflamada do corpo
erotizado. É "lânguida", fala devagar e anda com
Passado o efeito incandescente, com Marcelo
"a mansidão de um gato". Está, a todo momento,
e a tia já distantes, tudo volta à paz e tranqüilidade
umedecendo. "com a ponta da língua os lábios bri-
da vida rural, "Sentei-me na cama e fiquei olhando
lhantes", numa atitude sensual. Os dias de calor con-
uma borboleta branca pousada no pote de avencas
tribuem para exacerbar a sensualidade e anunciam a
da janela. Voltei-me em seguida para o céu límpido.
tempestade próxima. Diz a narradora: "Só tia Olivia
Havia um passarinho cantando na paineira." (p. 13)
continuava igual, sonolenta e lânguida no seu negligê
As cerejas, que dão título ao conto e são objeto
branco. Estendia-se na rede. Desatava a cabeleira. E,
de fascínio para a narradora, representam o elernen-
com um movimento brando, ia se abanando com
to novo nesse espaço. Elas compõem o traje da tia,
a ventarola." (p.11) O desatar a cabeleira remete
sempre presas no decote fundo. A proximidade com
à liberação da sexualidade, flagrada pela narradora
os seios e sua cor vermelha contribuem para a eroti-
durante a tempestade: "E em meio do relâmpago
zação da personagem. "Uma ou outra cereja resvalava
que rasgou a treva, vi os dois corpos completamente
por entre o rego dos seios e era então engolida pelo
azuis, tombando enlaçados no divã." (p.12-3)

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decote." p.11) O fato de a cereja não ser uma fruta
tropical, nativa, mas sim importada, reforça o efeito
que a presença desta personagem provoca no ambien-
te do sítio, até então totalmente apaziguado.
A narradora, no presente da enunciação, lem- O corpo liberado
bra que tudo desapareceu sem deixar vestígios. Mas
as cerejas, com sua "vermelhidão de loucura", essas
resistiram, como símbolo da sexualidade presente e Preciso admitir (jiIC a ambivalência é a nossa
salvíiço para não ) moirc ri o s na poeira da mesmice.
recordação do corpo erotiza'do da tia Olivia. LJaLJ(fi

A narrativa de autoria feminina, da década de


90 para cá, vem apresentando protagonistas
mulheres que passam a ser sujeitos da própria
história, conduzindo suas vidas conforme valores
redescobertos através de um processo de autoconhe-
cimento. Este processo é exatamente o conteúdo da
narrativa, que nos leva da personagem enredada nos
"laços de família" ou nas próprias dúvidas existências
à personagem, enfim, liberada.
A obra ficcional de Lya Luft é um excelente
exemplo desse percurso. Na década de 80, ela publica
cinco romances - As Parceiras, 1980, A asa esquerda do
anjo, 1981, Reunião de família, 1984, ,Quarto fechado, 1984,
e Exílio, 1987 -, onde as personagens estão presas ao
contexto familiar, às relações de gênero, como num processo rememoratjvo. Em A Sentinela, a tapeçaria
beco sem saída. Mas, em A Sentinela (1994, a protago- inaugurada no presente se confunde com o exercício
nista Nora do presente da enunciação é uma mulher 1
artístico, que exorciza o passado, reduto de sofri-
centrada, que inaugura uma tecelagem, agora deci- mento e medo, com os fios trançados construindo
dida a dirigir sua vida, como ela mesma diz: "Estou uma nova postura diante da vida. Assim, o narrar e o
bem, como se retivesse nas mãos as rédeas de mim, tecer fazem parte do mesmo processo de libertação:
observando sem espanto os trechos a percorrer." "teares lustrosos, novelos coloridos, prontos para
(p.30) Compra a casa que fora dos seus pais e, numa desenrolar minhas histórias e produzir os objetos
simbiose perfeita com esse espaço, se põe a recordar dos meus sonhos." (p.30)
a infância mal amada, os tormentos da juventude, sua A personagem da mãe é sempre emblemática
vida de casada e de mãe e os amores conturbados com na obra de Lya Luft. Aqui, Elsa é fonte de muito
João. Trata-se de um processo de autoconhecimento sofrimento para a menina rejeitada, que acaba
que ocupa todos os capítulos da narrativa, dedicados sendo mandada para um colégio interno depois da
a cada uma das personagens importantes. morte de Lilith, a filha preferida. Mateus, o pai, é
O tempo do romance perfaz exatamente um impotente para minimizar as perversidades feitas
dia. Começa com a aurora ("Amanhece pela janela contra Nora, pois, como as demais personagens
aberta", anunciando uma nova vida), quando Nora masculinas luftianas, é fraco, incapaz de enfrentar
desce as escadas em direção ao seu ateliê, e termina à a ira de Elsa. João, grande amor da protagonista,
noite, quando sobe a escada e se põe a cantar da sua é um ser enredado nos problemas da ex-mulher e
janela escura. É o dia que dedica aos seus "negócios da filha drogada, perambulando pelo mundo, sem
interiores", num exaustivo e sofrido processo me- capacidade de assumir uma relação estável. Olga é
morialístico, que completa sua libertação. a grande salvação. Filha de Mateus com uma antiga
Aliás, a memória da protagonista é, em todos namorada, cresce longe das implicâncias de Elsa e,
os romances, o recurso usado para justificar a nar- muito parecida com o pai, vai ser para Nora uma
rativa que, dessa forma, conduz o leitor através do espécie de segunda mãe, sábia e prudente conse-

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lheira. Dentro desse contexto familiar, não é de Vida (com v maiúsculo), àquele viver pleno que
se estranhar que as recordações de Nora venham as personagens de Clarice vislumbram na epifania.
sempre impregnadas de dor. Mas há um momento Ao exorcizar um passado doloroso, ela se liberta
em que ela percebe mudanças em sua vida: das amarras familiares e das dependências afetivas,
ousando viver, sem repressões e sem medo, a exis-
Eu estava numa nova fase da vida: nem sabia tência com seus mistérios.
direito qual, corno, mas estava na beira de um novo
começo. Alguma coisa parecida com paz se instalava:
Estou no coração de um ciclo que se fecha; eu
não a paz da fuga, mas do mergulho, do resultado
sou o mar, com peixes e medusas, sou a viagem tam-
que vem depois do mergilho, quando se sabe que se bém. Não há garantias, não existe segurança: alguma
está começando a emergir, mas não o que vai apare- vez é preciso a audácia de se jogar; de delirar, como
cer na superficie e, mesmo assim, se vai. p.I 17) Henrique, neste momento, jogando alto sua música
pela noite, com pedaços de entranhas, de pensamen-
Mas, à vivência prazerosa desse momento, se to, de coração, meu filho parindo a si mesmo como
segue um novo encontro com João, marcado, como mãe alguma é capaz de fazer. (p.162_3)
os demais, por desentendimentos e rupturas. Contu-
do, o caminho para a libertação já estava preparado. E, seguindo o exemplo do filho, que ela ten-
Diz Nora, depois de passar todo o filme de sua vida: tara tanto inserir num padrão convencional, presa
"Cada um tem de encontrar o jeito, o modo, a trilha; às questões de gênero, ela se põe a cantar da janela
aprender a ser senhor dos rumos." (p. 153) do seu quarto - o que ela gostava de fazer, mas que
No último capítulo, que leva o nome da a repressão materna impedia -, "jorrando fios de
protagonista, estamos novamente no presente da música sobre as coisas todas" (p.163), construindo
enunciação, onde se encontram inúmeras expressões assim uma nova postura diante da vida, em que o
que remetem à dúvida - "quem sabe", "talvez", "mas corpo é como o "mar" com seus mistérios, mas é
não sei" - e ainda: "Não sei nada, e isso me alivia também "viagem" aberta ao desconhecido.
enormemente: não preciso saber" (p.162), numa Essa abertura ao desconhecido, ao imprevisto,
clara demonstração de abertura ao imprevisto, à ao indefinido nos remete ao "liquido mundo mo-

172 ". 173 •


demo", de Zygmunt Bauman, teoria apresentada sentem-se no paraíso, enquanto as pessoas que
na entrevista dada por ele a Benedetto Vecchi. Diz lutam pela liberdade de escolha e auto-afirmação
o autor que devemos nos adaptar à "modernidade é vivem numa prisão.Diz o autor:
liquida", uma vez que, na sociedade contemporânea,
as identidades sociais, culturais e sexuais são incertas O futuro sempre foi incerto, mas o seu caráter
e transitórias. Só pela ruptura dos vínculos sociais inconstante e volátil nunca pareceu tão inextri-
da "modernidade sólida" é possível descortinar cável como no liquido mundo moderno da força
de trabalho flexível, dos frágeis vínculos entre os
o caminho que conduz à libertação social. Estar seres humanos, dos humores fluidos, das ameaças
deslocado, não pertencer a ugar algum pode ser flutuantes e do incontrolável cortejo de perigos
uma experiência desconfortável e perturbadora; camaleônicos. (p74)
mas é, sem dúvida, um mal necessário à nossa
realização pessoal. É preciso não perder de vista a Esta situação de ambigüidades gera o que o au-
condição precária e inconclusa das identidades, que tor chama de "tormentos da ambivalência", para os
o autor chama de "identidades em movimento", quais não há solução definitiva. Liberdade de escolha
pois, conclui ele: "No admirável mundo novo das e segurança oferecida pelo pertencimento estão em
oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as constante tensão. Em nosso mundo fluido, fixar-se
identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, numa única identidade para toda vida é insensato,
simplesmente não funcionam." (p.33) A constru- pois se corre o risco de exclusão. O melhor é deixar
ção das identidades se assemelha à construção de as portas sempre abertas de forma a possibilitar a
um quebra-cabeça, ao qual faltam sempre peças, construção de outras identidades.
ficando portanto incompleto. É tarefa de toda uma Narrativas de autoria feminina mais recen-
vida que exige "a libertação da inércia dos costumes tes tematizam a crise existencial de protagonistas
tradicionais, das autoridades imutáveis, das rotinas divididas entre a identidade de esposa/mãe/doia
preestabelecidas e das verdades inquestionáveis." de casa e outras possibilidades que o nosso mundo
(p.56) Ora, as pessoas inseguras, diante da tran- contemporâneo oferece às mulheres. Vimos como
qüilidade, da segurança física e da paz espiritual, Nora, narradora de A Sentinela, abandona uma série

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••. 175 ••
de certezas para se entregar a uma Vida plena de mulher. Não me considero vítima de nada. Sou
imprevistos, mas rica de possibilidades. autoritária, teimosa e um verdadeiro desastre na
cozinha. Peça para eu arrumar uma cama e estrague
Cantava sem se importar com nada mais, can- meu dia. Vida doméstica é para os gatos. (p9)
tava jorrando fios de música sobre as coisas todas,
como tentáculos. E do seu canto foi brotando o Seu discurso ainda está preso a estereótipos
mundo: dele nasceram as árvores e os carros e as (homem/mulher). Talvez este o cerne da sua crise.
casas; os caminhos dos amantes; as grutas da noite,
e o ventre do dia; a morte nascia dessa música; e Ela se considera muitas e tem dificuldade de lidar
a vida também. (p.163) com esta pluralidade, mas também não aceita a
acomodação a um modelo tradicional: "Se ser feliz
Encontramos outro exemplo significativo para sempre é aceitar com resignação católica o
dos "tormentos da ambivalência" no romance Divã pão nosso de cada dia e sentir-se imune a todas as
(2002), da autora gaúcha Martha Medeiros. Temos tentações, então é deste paraíso que quero fugir."
aí uma narradora diante do analista, Lopes, num (p.14.) Adiante, volta a questão da ambigüidade:
processo de auto conhecimento. Cronista da Zero "E, corno já disse, sou mezzo mulherzinha, mezzo
Hora, a autora, ao escrever este romance, não se cabra da peste, o que nunca me fez sentir entre iguais
afasta da linguagem jornalística e do humor que a no salão de beleza.!"p.22) Professora, casada, com
caracterizam. A crise vivida pela narradora tem a três filhos, vive uma crise de identidade(s) que lhe
ver com as "identidades em movimento" de que nos consome quase três anos de terapia, ao fim dos quais
fala Bauman. Ela admite suas ambivalências, mas aceita a sua pluralidade: "Agora entendo que nunca
não sabe lidar com elas. As primeiras palavras que estarei pronta, e que tudo o que preciso é conviver
diz ao analista são muito significativas: bem com meu desalinho e inconstância, que enfim
Quem me vê caminhando na rua, de salto alto aceito." (p.154) É exatamente a solução, ou a falta
e delineador, jura que sou tão feminina quanto as dela, apontada por Bauman:
outras: ninguém desconfia do meu hermafroditis-
mo cerebral. Adoro massas cinzentas, detesto cor- Não há um modo fácil de escapar a essa sorte,
de-rosa. Penso como um homem, mas sinto como nem certamente uma cura radical viável para os

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tormentos da ambivalência. E, portanto, há uma Tempos depois, ao reencontrá-la, ele se pergunta:
busca fanática e furiosa por soluções de segunda "Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas
classe, meias soluções, soluções temporárias,
paliativos, placebos. Servirá qualquer coisa que a beleza de outro tempo valia uma terça parte dos
possa afastar as dúvidas corrosivas e as questões meus sacrifícios?" p.166). Para Machado, as "edições
irrespondíveis, postergar o momento do ajuste humanas" se sucedem através dos tempos, enquanto
de contas e da verdade - e assim permitir que para Bauman, no "líquido mundo moderno" as
permaneçamos em movimento ainda que nosso
mudanças são determinadas pela predominância
destino esteja, é o mínimo que se pode dizer,
envolto na neblina. (p75) da fluidez. Diz ele: "A construção da identidade
14 assumiu a forma de uma experimentação infindável.
Esse "movimento" de que nos fala Bauman Os experimentos jamais terminam". (p91) O que
aproxima o homem contemporâneo da famosa vem a dar quase no mesmo!
"errata pensante" machadiana. Em Memórias Póstu- O romance Diva teve uma versão teatral en-
mas de Brás Cubas, o narrador alude à sua "teoria das cenada com muito sucesso. Aqui, ao se despedir do
edições humanas", ao comentar, irônica e metafo- analista, Mercedes lhe entrega um quadro pintado
ricamente, mudanças comportamentais. Diz ele: por ela: um enorme pássaro voando. Enfim, a li-
"Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta berdade conquistada. O romance termina também
edição, revista e emendada, mas ainda inçada de com ela se despedindo do analista: "Lopes, você já
descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava quis me dar alta e eu recusei, achava que não estava
alguma compensação no tipo, que era elegante, pronta. Agora entendo que nunca estarei pronta,
e na encadernação que era luxuosa." (p165) Para e que tudo o que preciso é conviver bem com
Machado, a explicação reside "naquele tempo", isto meu desalinho e inconstância, que enfim aceito."
é, num passado em que o narrador via Marcela com (p.154, grifo nosso) A aceitação da "inconstância",
outros olhos, "olhos da primeira edição." (p.166) isto é, da fluidez, significa a liberação de esquemas
Todos nós lembramos dos desatinos cometidos predeterminados, coercitivos e repressores, pró-
pelo jovem Brás Cubas, apaixonado por Marcela. pria de um corpo liberado.

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Rachei Jardim, no conto "A viagem de trem", positiva; ela se sente jovem, a infância é resgatada
constrói um texto praticamente sem enredo, usando pelo ruído familiar do trem nos trilhos. Fica eviden-
com eficácia o poder da seleção vocabular, respon- te que a volta à infância e juventude é responsável
sável pela atmosfera, como em alguns contos de pelo sentimento de liberdade, pela falta de condi-
Katherine Mansfield. cionamentos sociais, tão presentes na personagem
A protagonista, que nem nome tem, se en- Alfredo. Ele representa as amarras, pois "queria-a
cantara com a cidade de Floreiça, que ela acabara para si num tempo e num espaço certos." (p344)
de conhecer, e viajava de trem, só e rejuvenescida, Ela se nega, pois "seu espaço era feito de muitos
deglutindo o encantamento vivlo, quando, inespera- espaços; seu tempo, de muitos tempos." (p.345) Ela
damente, a voz de um homem se interpõe, convidan- não pertence a um só espaço ou a um só tempo, e
do-a a ficar com ele. De nome Alfredo, ele vai tentar esta multiplicidade identitária lhe proporciona uma
"detê-la". Preso às convenções sociais, ele quer saber liberdade "duramente conquistada". Exatamente o
tudo sobre ela."Queria-a para si num tempo e num que nos diz Bauman sobre a modernidade líquida.
espaço certos". (p.344) Ela vive este instante de amor O conto termina com as palavras do narrador
- "Amava sim, de um amor sem tempo, sem limite, - "Estava livre e só na manhã de verão" (p.345) -,
sem fim e sem começo" (p.344) -, mas se recusa a se que, ao associar liberdade e solidão, assinala o preço
prender a ele, pois "se sentia livre e aspirava até o que o corpo liberado deve pagar.
último sorvo essa liberdade." (p.345)
O tempo e o espaço têm uma função estru-
turante no conto. A cidade de Florença, com todo
seu potencial de arte e beleza, é a responsável pelo
encantamento da protagonista, pela sensação de
juventude: "Estou me sentindo estranhamente jo-
vem, pensou" (p.344), o que remete ao sentimento
de liberdade. O tempo aqui tem uma conotação

•.. 180 ••' 181 •


Considerações finais

abem aqui algumas considerações relativas à


C pesquisa, origem deste trabalho. Em primei-
ro lugar, é preciso dizer que a tipologia levantada
a partir de leituras de textos de autoria feminina
não esgota o assunto. Como também as narrativas
agregadas aos dez tipos de corpos poderiam ser
acrescidas de outras tantas, ou mais ainda. Enfim,
ficaríamos pesquisando até o fim de nossas forças.
O resultado apresentado é apenas uma amostra do
muito que se pode fazer ainda.
Já foi dito que este projeto partiu de uma
tipologia dos corpos, criada pelo sociólogo Arthur
Frank, onde ele apresenta quatro tipos: 2cpFPo,
disciplinado, o corpo refletido, o corpo domnante.e
corpo comunicativo. Enquanto os dois primeiros
foram, dentro dos limites, aproveitados por nós, os
corpos dominante e comunicativo serviram apenas O mesmo se pode dizer sobre o corpo violen-
de ponto de partida para nossa análise. Como o to, representado pela personagem Marta, do romance
autor trabalha no campo da sociologia, as cate- Inferno (2000) de Patrícia Meio. Aqui nos permitimos
gorias nem sempre se ajustam ao texto literário, citar o trabalho de Lúcia Osana Zolim, resultado de
espaço de uma outra realidade.) Assim, o corpo sua pesquisa de pós-doutorado, "Gênero e representa-
dominante (the dominating body), visto por ele como ção na ficção de Patrícia Meio: alguns apontamentos",
exclusivo dos homens, apenas serviu de sugestão uma vez que ela estudou, com rara sensibilidade, os
ao corpo violento, representado por nós por Rísia perfis femininos da obra. O resultado é um magnífico
e Maria Moura. Para o autor, o que conta de fato exemplo de corpo violento, apesar de feminino:
para a construção do corpo dominante é o sentido
da falta (lack), o que, sem dúvida, encontramos A inteligente arquitetura do romance permite
que, aos poucos, o/a leitor/a vá se dando conta dos
nas personagens citadas: "portanto quando uma
contornos da identidade dessa audaciosa persona-
relação diádica com o outro se combina com um gem feminina, cujas ações colocam-na no mesmo
fundamental senso de falta, o corpo se dedica à patamar dos demais profissionais do tráfico que
dominação do outro." (trad. livre)' integram a história. Talvez até cm um patamar
superior, tendo em vista a sutileza das armações
Olema de Maria Moura "ou é ele, ou sou que engendra a fim de atingir seu objetivo, qual
eu" - se enquadra perfeitamente no comportamento seja, afastar José Luís do "esquema", por cofia
do corpo dominante, pois alguém tem que morrer dos desafetos instaurados entre eles a partir do
para que ele viva. Ainda citando Frank: "A relação assassinato de Zequinha, e comandar tudo sozinha.
Daí providenciar-lhe a prisão, admitindo na comi,
com os corpos subordinados a ele é de violência e, nidade o policial Denílson, disfarçado de gerem(-
eretile
em casos extremos, de assassinato." (trad. livre)' de supermercado; daí, também, instigar-lhe a apro-
ximação com Suzana pata obter informações; daí,
por fim, eliminar Suzana, porque sabia demais.
8 Thus when a djiadic other-re/atedncss ir combined mitls afnmiamenta/ senso
Investida da posição de líder, ela adota uma
of lado, the body tnrns Io domina/ia,, of that o/bar (p71) postura que em nada deixa a desejar face io 10(1(1(1
9 His relation to lhe bodies he subo rdinate is o#;e of aio/anca and, in extra/no masculino de liderar no universo do narcotráfico.
cases, of smirder (b.73) Os recursos para minimizar o preconceito de seus

•.' 184 ••. 185 •


o

pares, relutantes em aceitar "mocinha bonita assim O corpo comunicativo (the communicative bo4y),
passeando por aí com fuzil israelense" vão desde o quarta e última categoria da tipologia de Frank, nos
novo visual que em muito lembra o deles - "calças
levou ao corpo liberado, dadas certas características
militares, tênis, camisetas largas, o cabelo curtís-
simo e boné" -, até a adoção do comportamento apontadas pelo autor. Para ele, a qualidade essencial
"empedernido" e "ameaçador" do pai, além das do corpo comunicativo é que se trata de um corpo
constantes manifestações de poder com vistas a em processo`. Isto é, trata-se de um corpo em cons-
"colocar o sujeito no seu devido lugar", tudo para
tante formação, num processo de expressiva recria-
deixar claro que agora "era a dona do morro",
numa espécie de revide que, se para a persona- ção do mundo do qual faz parte. O autor aponta
gem não é proposital, pari o/a leitor/a soa como a dança como exemplo de uma atividade de corpo
resposta feminista para quem não tolera "receber comunicativo, espaço de uma realização expressiva
ordens de mulher", acostumados que estão a lidar
e prazerosa, compartilhada com o outro. Mas acha
com o outro sexo (ou com o sexo outro) apenas em
duas situações, como bem lembra nossa heroína, difícil situar socialmente o corpo comunicativo,
"na cozinha e na cama". (p.13) uma vez que a teoria não dá conta de sua descrição,
apenas indica fragmentos.
É uma citação longa, mas que dá exatamente Ora, nos textos literários, encontramos
a medida do comportamento do corpo violento, representações deste corpo, que chamamos libera-
inserido num espaço violento. Lúcia Osana com- do, típico da pós-modernidade, como muito bem
pleta o perfil de Marta, dizendo: "A sucessão das declara Bauman, que recusa uma identidade fixa,
ações que vai construindo sua trajetória de líder investindo na mobilidade identitária, admitindo
do tráfico de drogas nos morros do Berimbau e a ambivalência como parte do processo libertário.
dos Marrecos é marcada pelas mais variadas for- Daí a escolha das protagonistas de Divã e A Sentinela
mas de violência, da mesma maneira que o eram como exemplares significativos.
as trajetórias dos líderes que a antecederam [ ...]."
(p.14) Isso contraria explicitamente a vitimização
das mulheres na realidade contemporânea, como 10 Thc essemm/ (/1/dI/ly of lhe comm,,,,,.a/n'e hody is Ibal ii is a body ia
process of ir&ifi,i Jise/f (l'. 79)
lembra Elizabeth Badinter, no livro já citado.

•.' 186 ...187...


O Curso de Mestrado/Doutorado, minis- Clarice consegue transpor todos os elementos
trado na Faculdade de Letras/UFRJ, em 2006, foi negativamente identificados à mulher e ao corpo
feminino para uma nova teia de significações
rico em pesquisas sobre a representação do corpo em que assumem significados positivos, em que
nas narrativas de autoria feminina. Formou-se um constituem condição sine qua non para se alcançar
fórum de discussões, e algumas monografias finais, uma existência autêntica.
pela sua excelente qualidade, merecem destaque. É Quanto à classificação, temos uma persona-
gem que vive sem submeter-se ao jugo dos papéis
o caso do trabalho sobre o conto "A menor mulher
pré-estabelecidos, que é imune à disciplina que
do mundo", do livro Laços de Família, produzido por modela os corpos, que resiste, que é autônoma,
Joana Mil]i dos Santos da Silva A autora investiga a que ama, que está viva. Um corpo livre, símbolo
representação do corpo feminino no texto de Clarice do estágio final, o estágio de graça, que todos de-
vem buscar para seus corpos, homens e mulheres:
Lispector, inserindo-o na categoria corpo liberado, o corpo liberado. (p15)
em virtude de a protagonista viver no primitivo
mundo selvagem. O contraste entre o cientista e Helien de Souza Dutra Corrêa, aluna do
Pequena Flor se dá em vários níveis, destacando- mesmo curso, trabalhou com um conto de Helena
se, sobretudo, a oposição entre a natural liberdade Parente Cunha, "O triângulo mais que perfeito", do
da protagonista e o olhar civilizado do explorador livro Os provisórios, cuja protagonista é um excelente
francês, mantendo sempre a relação clariceana entre exemplo de corpo liberado. "A trajetória de apren-
natureza e cultura. Na conclusão, diz Joana Milli: dizagem do corpo feminino", título de seu trabalho,
nos fala sobre três personagens não nomeadas - a
Pequena Flor foge à compreensão, tanto da
ciência, que toma notas confusamente na ânsia mãe/esposa, protagonista, o pai e a filha; portanto,
de poder d(en)ominar o que lhe foge das mãos, um modelo familiar representativo do patriarcado,
quanto do senso-comum, que atribui a Deus a que vai se desintegrar com o adultério paterno. O
autoria de tão inadivinhável obra. O discurso ponto de vista, apesar de o conto ser narrado em
dominante não lhe atinge, mas, caso queira,
poderá aprender com ela a liberdade. terceira pessoa, é sempre o da mãe, que vai perceben-
do o gradual afastamento do marido - "ele cada vez

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mais indo" (p. 5), mas que se sente impotente para mutação, ao explorar, fonética e semanticamente,
retê-lo. Na realidade, tudo gira em torno da sexuali- o gerúndio dos verbos "ir" e "vir".
dade feminina, pois, como esposa, ela é sexualmente
reprimida, não sentindo prazer nas relações com o - ele indo embora, ano após ano, aos poucos,
marido. Diz ela: "Minha carne sempre teve medo de cada vez um pouco mais, indo, areia escorrendo
dos meus dedos, minhas mãos frágeis demais
acolher o transbordamento quente do esperma." (p. para deterem a queda, eu jantava ou não jantava
6) O sexo como um ato sujo "eu não podia ficar na sozinha, sozinha dormia ou não dormia, ele
cama toda suja daquele jeito, tinha que me lavar" (p. indo cada vez mais de meu desesperado querer
6) - faz parte do condicionamento sociocultural, que reter - (p.5, grifo nosso)
constrói a esposa unicamente para a reprodução. O
controle rígido do sexo feminino impede o prazer A passagem do tempo está implícita no ge-
e castra o orgasmo. Diz Heilen: "Este domínio da rúndio dos verbos - "ele vindo cada vez mais vindo
sexualidade feminina, desde os fins reprodutores para mim" (p. 8) -, numa simbiose perfeita entre
o tempo que passa e a mudança da personagem, de
até os eróticos, trouxe imensas conseqüências e
ajudou a escrever a história de um corpo regulado, esposa a amante.
controlado, vigiado, monitorado, enfim, dominado Helien explica bem a estrutura do conto:
pelo masculino." (p. 7)
Apesar de a narrativa iniciar com a prota-
O conto narra o processo de libertação deste gonista liberta das amarras patriarcais, ou seja,
corpo reprimido. A esposa, depois de abandonada com o seu corpo liberado, o texto é elaborado
pelo marido, passado algum tempo, é procurada por numa flutuação temporal, que visita diferentes
ele e se torna sua amante. Antes, ela fingia que tinha momentos deste casamento, ilustrando não só
a queda do modelo de família e a conquista de
prazer - "o esforço que eu fazia para fingir que mor- uma liberdade sexual por parte da protagonista,
ria de prazer" (p. 6); depois, como amante, "o bom mas também o processo, que desencadeou estas
do esperma dele no meu orgasmo" (p. 8). O discurso transformações. Percebemos o delinear de um
poético expressa, de forma criativa, o processo de percurso de aprendizagem. p. 11)

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O último parágrafo retoma ciclicamente o em dois movimentos: o primeiro se refere à
primeiro: "O silencioso sorriso de superioridade, tentativa de viver fora das paredes protetoras
do lar e suas pequenas comemorações em ter
o gesto lento e digno de quem está acima e além
o conseguido sair da casa; o segundo movimento
dos mesquinhos preconceitos e dos desmesurados remete ao retorno à casa e à submissão após sua
assomos de emancipação. Acima e além." (p. 8) captura. Trata-se de um corpo que almeja uma
Note-se que este corpo não está apenas distante liberdade nunca antes experimentada. Mas, pela
falta de hábito, a galinha é novamente presa e
dos preconceitos, mas também dos "desmesurados
volta à disciplina austera do lar. (p. 14)
assomos de emancipação", o que significa centrado,
equilibrado, liberado, enfim.
A autora da monografia chama nossa atenção
Como não podia deixar de ser, os textos de
para o fato de a galinha ter subido para o telhado,
Clarice Lispcctor atraem pesquisadores /as, sobre-
o que, segundo Bourdieu, representa uma trans-
tudo os/as jovens, pelo que apresentam de ruptura
gressão maior, uma vez que "no sistema de oposi-
com o sistema patriarcal. São textos que questionam,
ções homólogas, alto e em cima correspondem ao
muitas vezes ironicamente, o famoso "destino de
masculino, enquanto baixo e embaixo referem-se
mulher" benuvariano. É o caso do antológico conto
ao feminino." (p. 17)
"Uma galinha", do livro Laços de Família, muito bem
E, ainda com base na teoria de Bourdieu, diz
analisado por Evelyn Blaut Fernandes, aluna do ci-
a autora:
tado curso, em "Da arte de se fazer pequena". Aqui
nos permitimos citar alguns trechos deste trabalho, Desta forma, 'falar de dominação, ou de vio-
que revela uma leitura sensível do texto: lência simbólica, é dizer que o dominado tende a
assumir a respeito de si mesmo o ponto de vista
O conto "Uma galinha", de Clarice Lispec- dominante.' (Ibidem, p.144). A galinha passa,
tor, narra a tentativa frustrada de fuga da ave e então, a habitar a cozinha, tornando-se apática
a sua detenção pelo dono da casa. Após ter sido e sobressaltada. Conformada com seu 'destino
alcançada, ela é levada para a cozinha, onde põe de mulher', ela (galinha/ mulher) acabou sendo
um ovo, passando ,a ser vista como a "rainha devorada pela ideologia patriarcal, tornando-se
do lar". Talvez seja possível dividir este conto um corpo disciplinado. (p. 21)

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o

Observando-se as datas das primeiras edições que está na origem da palavra 'nojo', exprime-o
dos textos analisados nesta pesquisa, percebe-se que claramente: itt odio habere. (p.166-7)
certos tipos de corpos pertencem a uma época mais
remota do que outros, numa clara relação com as Esta relação íntima entre corpo e sociedade,
práticas sociais. "A experi&ncia do corpo é sempre uma vez que aquele é "símbolo da estrutura social",
modificada pela experiência da Cultura", nos di' José explica não só o tratamento diferenciado de certas
Carlos Rodrigues, em seu livro Tabu do Corpo. Vale a representações, como também sua presença ou au-
pena citar um trecho da conclusão do autor: sência em épocas distintas. Em função disso, tivemos
a preocupação de selecionar textos representativos de
Ao erigir-se em símbolo da estrutura social, o praticamente cem anos de literatura brasileira. Como
corpo, simultaneamente Natureza e representan- exemplo, basta lembrar do corpo invisível, represen-
te da Cultura, condensa em si esta ambigüidade, e tado pela personagem Alice de À intrusa (1908). Ela
reproduz simbolicamente, e ao mesmo tempo, o
que a sociedade deseja e o que a sociedade teme, tem seu corpo obliterado em função da alma, bem
as forças fastas e as forças nefastas. Paralelamente de acordo com os preceitos católicos tão difundidos
culturalizado e rebelde ao controle cultural, o na época. Não se pode esquecer que, mesmo assim,
corpo é 'bom para pensar' a dualidade da estru-
ou por isso mesmo, ela conquista o patrão e passa
tura social, exprimindo, no que é corporalmente
'puro' e 'impuro', respectivamente, o que a de governanta à dona da casa. Já o corpo invisível,
sociedade quer ou não quer ser. trabalhado por Marilene Feinto, no conto "Muslim-
Ao dicotomizar assim o corpo, projetando- woman", tem um outro tratamento. A protagonista
lhe a dualidade de estrutura social, a sociedade
reclama que o marido a vê como um objeto erótico
faz reconhecer nele uma natureza dupla: pura e
digna enquanto controlada, e impura e degradante e não como ela quer ser vista, sujeito de sua exis-
quando desviante e rebelde. O Homem, então, tência. Mas a personagem árabe, coberta da cabeça
não pode reconhecer-se integralmente na sua aos pés, esta sim com o corpo invisível, passa para a
corporalidade, e é obrigado a rejeitá-la e afastá-la protagonista uma tranqüilidade e segurança que esta
como decaída e perigosa. O Homem aprende a
detestar em si, metaforicamente, aquilo que em não tem. E, neste confronto de duas culturas que se
si a sociedade necessita odiar: a expressão latina, encontram num aeroporto africano, fica patenteada

... 194 • •. 195 •


a crise da protagonista, que tem sua busca de visibi-
lidade momentaneamente apaziguada.
É satisfatório observar que o corpo liberado
vem surgindo com certa constância em nossa litera-
tura de autoria feminina, o que não acontecia antes. Bibliografia
O que representa uma tendência social que permite
às mulheres viverem plenamente "sua vocação de
ser humano", sua sexualidade, enfim, sua transcen-
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