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LIVRO 7 - EMP. CULTURAIS

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Título original ROLAND BOURNEUF E RÉAl OUELLET
Professores da Faculdade de Letras da Universidade Laval (Québec)

L'UNIVERS OU ROMAN

© Presses lJni \'ersitaircs de France

O UNIVERSO
DO

ROMANCE
TRADUÇÃO DE

Jose CARLOS SEABRA PEREIRA

Todos os direitos para a língua portuguesa LIVRARIA ALMEDINA


adquiridos por Livraria Almedina, Coimbra - Portugal COIMBRA-1976
Introdução

A fortuna de uma palavra

A simples palavra «ro1nance» evoca unia realidade


familiar carregada de conotações agradáveis: o Sirnenon
ou o James Bond que faz esquecer a duração de uma
viagem, a sequência de raptos, de conluios. de amores
ten1pestuosos cujo fio reton1amos todas as noites na inti-
midade dum quarto ou na praia, ao sol, o mundo pupu-
lante de Guerra e Paz, heróis ficticios, figuras históri-
cas, intrigas fabricadas. batalhas verdadeiramente tra-
vadas, aspirações confusas, ambições, filosofia da vida ...
«Romance», portanto, identifica-se de imediato a «laze-
res», a «férias» do corpo e da imaginação, a «diversão» no
sentido de que nos afasta da vida real para nos imergir
num mundo fictício. Na realidade, talvez o romance
yermita ª~ll!lir melhor ·;. realid_acie e conhecê-la profun-
.d,amente, mas para o leitor vulgar o romance é. em pri-
.~ei-:à) 'Iuga~. uma história complexa e inverosímil, encon-
tros miraculosos, heróis demasiado perfeitos e heroínas
demasiáâó befas para serem verdadeiros. «Fictiom> (fie-
-~MPOSTO E IMPRESSO NA GRÁFICA DB COIMBRA- COIMBRA- 1976

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ção), dizem os anglo-americanos; «ilusão», poderíamos matéria literária por oposiçao à matéria oral e, nos fins
traduzir sem grande infidelidade. A censura é dirigida a da Idade Média, a palavra englobava até as canções de
Mn1e Bovary, espírito «romanesço», con10 às leitoras do gesta.
correio sentimental. Assim, a palavra «ron1ance», como O século XII viu, em França, um primeiro grande fio·
as de «poesia» (os poetas, esses sonhadores ... ) ou de «tea- rescirnento romanesco, com Percevdl, Le Chevalier de la
tro» (um gesto teatral ... ), deslizou com frequência para charrette de Chrétien de Troyes, Le Roman de Tristan
um sentido pejorativo que testemunha indirectamente o de Béroul, fonte de inúmeras variantes sobre o tema do
sucesso desses géneros literários. , amor impossível. Três séculos mais tarde, essas longas
Como se chegou a este conjunto de noções tão inde- narrativas em verso foram passadas a prosa e o público
cisas como complexas'? O dicionário fala historicamente do século XVI apaixonava,se ainda por essas histórias de
do «ron1ance» como da «1íngua comum_. popu1ao> por cavaleiros que atravessavam uma ponte feita d~ uma
oposição ao latim, língua erudita que constitui. aliás, a espada, afrontavam os malefícios dos encantadores ou o
sua fonte. Esta separação entre latim e romance, donde fogo dos dragões para merecer um sorriso da dama amada.
saiu o antigo francês, tomou-se nítida no século VIII: Foram estes «romances de cavalaria» que, diz o seu cria~
francês. italiano, espanhol, português e romeno são ainda dor Cervantes, perturbaram o espírito do pobre Don Qui-
classificadas como línguas românicas. No século XII, a jote. No século XVII, a moda abandonou estas aventuras
mesma palavra designou simultaneamente um escrito em fabulosas em favor das dos pastores e das pastoras cujos
verso e a língua na qual ele era redigido. «Romanni amores nem por serem infelizes eram menos belos. Depois,
(língua vulgar) deu o verbo «romancearn, que significava, a preocupação da verdade dos sentimentos toma o passo
primeiramente, «traduzir do 1atim para francês», e depois, à aventura na Princesse de cteves e nas novelas do fini
no início do século XV, «contar em francês». O autor do século. No século XVIII, com Montesquieu. Voltaire
utilizava obras anteriores. a saber,. Jendas da literatura e Rousseau, o romance é chamado à luta pelo triunfo das
latina, que forneceram a matéria. por exemplo, dum dos Luzes. Tom Jones e Wilhe/m Meister. La Comédie
mais antigos romances, o Romance de Alexandre (cerca humaine e Le Rouge et le Nair, L'Éducation senti1nental
de 1130).' e lendas cêlticas, às quais o escritor acrescentava e Les Rougon-Macquart, Os irmãos Kara111azoi·. Guerra
de sua inventiva, ou que ele repetia e alongava face ao e Paz e Os Buddenhrooks tornam-se, no sentido próprio,
sucesso obtido pela sua narrativa. A mesma palavra outros tantos universos onde toda uma época se integra
«romance» dilatou-se para designar sucessivamente qual- nos destinos individuais das personagens, onde a biografia
quer obra em língua vulgar. mesmo não traduzida do condensa uma soma de experiências numa filosofia da
latim. qualquer obra de ficção sem bases históricas. a vida. Com A la recherche du ten1ps perdu. o romance
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muda de sentido, quase de natureza: Proust faz do Solicitado pela realidade ambiente e pela que trazemos
empreendimento literário o único meio de aceder à em nós, dividido entre a criação do fictício e a investiga-
«verdadeira vida, a vida enfim descoberta e iluminada, ção do real, não cessando de reproduzir formas fixas e de
por consequ.ência a única vida vivida». Para Virginia inventar o possível, o género é à imagem da palavra que
W oolf e Joyce, o romance participa da exploração da o designa: flutuante e em perpétua expansão.
nossa vida psíquica profunda. Ele dá testemunho, num
Malraux ou num Soljenitsyne, de lutas individuais e colec-
tivas. Contra o sofrimento, a fatalidade económica, a ser- A literatura é também um comércio
vidão política, a morte, ele proclama a dignidade, o direito
à vida e a liberdade do espírito: o romance do nosso O romance soube fazer-se n1u1tiforme e omnipresente
tempo tem, com frequência, vocação metafísica. na vossa vida quotidiana - seja essa maleabilidade uma
E, paralelamente, do Roman comique de Scarron a consequência ou uma das causas do seu favor permanente.
Jacques le Fataliste, de Tristram Shandy de Steme aos Ele vem até ao leitor, enquanto que este tem de ir até
f'aux-Monnayeurs, desenvolveu-se u1na contra-corrente ao livrinho de poesia, à peça de teatro. ao ensaio espe-
«irónica» na qual o romance se desdobra. O romancista cializado. Durante vários séculos, só os ricos se podiam
põe a claro os seus processos, os seus artifícios. desfaz ao oferecer livros; o público de leitores era limitado por salá-
mesmo tempo que constrói. Em Robbe-Grille~ e Butor, rios que apenas permitian1 uma estrita subsistência, pela
e mais ainda em Ricardou, Sollers e Thibaudeau, a refle- ausência de lazeres das classes sociais mais numerosas.
xão critica sobre a literatura acompallha a criação roma- pela deficiência de luz à noite, pela impossibilidade de
nesca. Para certos escritores dos grupos de Te! que! ou isolamento nas habitações superpovoadas, pela falta de
de Change, a «produção» de um texto conta tanto como o bibliotecas de empréstimo. Ian Watt, que analisou as con-
«produto» acabado. Escrever um romance constitui para 1 dições materiais do público na Inglaterra do século XVIII.
eles um modo de conhecimento da linguagem, por vezes \ assinala que ficava então menos caro embriagar-se com
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um pretexto para a teoria. Mas poder-se-á ainda, a propó- '! gim do que comprar um jornal ('). Portanto. quem podia
sito destes textos experimentais, falar de romance. isto é. ler e quem tinha o gosto de ler até ao século XIX? Nobres.
de um género literário identificável?(') burgueses e sobretudo as suas mulheres, visto os ho1ncns '_
seren1 muito mais seduzidos pela caça, a -libertinagem, os -

(1) J.-L. Bandry, J. Ricardou ou Philippe Sollers, por exen1plo, ( 2) Ian Watt. ThP Rise of t11c Novel, Penguin Book, 1966,
falam antes de ficção. p. 48.
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negócios ou o álcool. Estes factores económicos e sociais Zola, Tolstoi, Jules Veme, apesar da censura miudinha do
são de primeira importância quando se procura determi- Segundo Império, ciosa de manter «a Ordem moral».
nar o sucesso e seguir a evolução de u1n género literário: No século XX, o romance não escapa ao fenómeno
a composição do público não deixa de estar cm relação, de «massificação». Se as estatísticas nos elucidam de que
por exemplo, com a prolixidade dos romances galantes no apenas um em cada dois franceses lê livros, vários factos
século XVII em França, com os móbeis da sua acção. as de edição parecem provar que esse francês leitor dá a
convenções das suas personagens ou o seu respeito pelas sua preferência ao romance. Nas classificações dos best-
conveniências. Mesmo quando não cuida apenas em lison- -sellers que publica La Quinzaine littéraire, seis ou sete
geá-lo. o escritor não pode esquecer o público que o lê. romances figuram regularmente nos dez primeiros lugares.
Sartre mostrou com que ilusão se embala o escritor que Os mais prestigiosos prémios literários franceses vão para
pretende dirigir-se a um «leitor>> universal: na realidade, rom~nces que, por essa razão, ficam com fortes tiragens
çlc é «cúmplice do seu público»('). asseguradas. No fim de 1970, por exemplo, Le Roi des
No século XIX. o público do romance alarga-se ao aulnes de Michel Tournier (Prémio Goncourt) atingia
1nesmo tempo que a instrução penetra meios sociais até 200 000 exemplares, superado por Les Poneys sauvages
aí afastados da cultura, que a invenção das máquinas de Michel Déon (Prémio Interaliado), enquanto que La
rotativas de impressão permite as grandes tiragens e reduz Greve de François Nourissier (Prémio Fémina) se situava
o custo dos livros, e que a difusão dos jornais faz nascer o nos 130 000 exemplares ('). Entre os escritores franceses
romance-folhetim (o qual, até aos nossos dias, permanecerá traduzidos para outras línguas, Jules Verne dominava
para muitas pessoas o único contacto com obras literárias). claramente em 1967 (102 traduções), seguido de Dumas
A venda ambulante continua a fazer penetrar os romances, Pai (62), de Jean Bruce (60) e de Balzac (57)('). O
os almanaques e as recolhas de canções nos 1neios rlisticos romance foi, além disso, um dos grandes beneficiários
mais recuados('). Os grandes editores Helzel, Charpentier, dessa «revolução do livro» que Robert Escarpit estudou.
Lévy, Flan1marion. Larousse. Hachette, que constituem As reimpressões em livros de bolso ou em paperbacks
verdadeiras dinastias. difundem largamente La Comédie ingleses. americanos ou alemães, deram uma nova juven-
humaine. Notre DamR de Paris. as obras de Walter Scott, tude comercial a obras já muito populares, dos Trois
1nousquetaires a La Maison de rendez-vous, difundindo-as
(~) Jean-Paul Sartre', Qu'esl-ce que lo 1i11éralllraP. Paris,
Gallimard, 1964, col. «Idécs», p. 116.
(5) Números fornecidos pela BNF, em 23 de Janeiro de 1971.
(-1) \.faurice Chavardes, Histoirc df' 1a librairie. Paris, Pierre
(6) Bibliographie de la France, n.0 37, de 10 de Setembro
WRieffe_ 1967_. pp. 121-132.
de 1969.

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nos quiosques de estações e de aeroportos, nos vendedores
de jornais, em múltiplos postos de venda através da de cem anos! Michel Raimond mostrou como o género,
França e do mundo. O romance é também o único tão solidamente firmado no século XIX, foi constante-
género literário a «beneficiar» de uma produção de massa mente posto em causa «a seguir ao naturalismo». O can-
assegurada por profissionais que «fazem sair» infatigavel- saço de encontrar os mesmos estereótipos de um li~~~ p~ra
mente romances policiais. romances pornográficos, roman- o outro conduziu ao desdém; do desdém passou-se ao
ces de- amor ou de espionagem. Já não há, portanto. ,processo e à condenação glogal. Denunciou-se a pretensão
qualquer verdadeira obstáculo económico ao consumo do do romancista de representar fielmente a realidade; e.
ron1ance, e quase mais nenhum obstáculo cultural: os aliás, o que é a realidade? poder-se-á apreendê-la objecti-
fiéis de Delly ou do Fleuve noir dificilmente se converterão vamente? poder-se-á traduzi-la fabricando uma intriga.
a Philippe Sollers, mas a edição oferece um leque muito inventando peça a peça personagens? como pode o con-
largo e constanten1ente renovado de obras ace.'síveis a junto de artifícios que é o romance propor-se ser a ver-
leitores de cultura diversa ('). dade? Valéry e André Breton, à cabeça dos surrealistas,
fazem campanha contra ele e a controvérsia anima-se nos
anos 1920. Críticos e jornalistas trocam panfletos apai-
V m pomo de discórdia xonados: Abaixo o romance!, Defesa do romance ... (').
Nem por isso o debate se encerrou, Robbe-Grillet voltará
As tiragens elevadas, o número de títulos novos em à carga após 1950. denunciando «algumas noções cadu-
cada ano, a fidelidade de um público considerável apesar cas»: a «personagem» e a «história» dão, no romance
da concorrência dos n1eios áudio-visuais, atestam a vita- herdado do século XIX, uma impressão de coerência
lidade do romance ou, pelo menos, são seus sinais exte- que somos incapazes de aperceber na realidade, o roman-
riores. E, todavia, desde há mais de três séculos que não cista que quer incitar ao «compromisso», levar o leitor a
lhe têm faltado condenações, de ordem literária ou moral. uma tomada de consciência dos problemas do nosso
: tempo, dá-lhes um sentido arbitrário. No romance «tradi-
·.•: '\ U ..r~se~es!~ ...Il1oribm;ll!o. a sua morte não poderá tar-
cional», portanto. tudo não passa de emprego de truques
. dar: os historiadores da literatura anunciam-no-lo há mais
e impõe-se repensar a natureza do género. Esta intermi-
nável querela do romance parece ter tido por resultado
(') Sobre os problemas económicos do livro, a sua difusão sobretudo a sua renovação em profundidade: às obras de
e o seu público, consultar, além de La Révolution du livre~ os
esludos reunidos por Robert Escarpit, Le lítttraire et le social.
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Paris, Flólmmarion, 1970. ( ) Michel Raimond, La Crise du ro1nan, des lendemains du
11aturalisme oux années vingt. Paris, Corti, 1968, p. 115.
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Balzac, de Zola, de .Paul Bourget - tornadas o modelo do


romance «fabricado»-, sucederam A la recherche du Seduções do romance
temps perdu, Les Faux-Monnayeurs, L'Espoir, as expe-
riências do próprio Robbe-Grillet, de Michel Butor, de Os ataques que o romance sofreu - e sustentou -
Nathalie Sarraute, do grupo de Tel Que/. não são gratuitos: tenha ele a ambição de mostrar, de
Estas reservas ou estas condenações feitas em nome explicar a realidade, de ensinar ou de divertir, os seus
de razões estéticas tomaram o passo, embora sem as fazer meios de acção são poderosos. J'!lã2..s.omente refü~cte os
esquecer. às denúncias morais que acompanharam o i;ostos do público, ..llJªS gia:os. Desempenhou e continua
romance pelo menos desde o século XVII. Os moralistas a
a desempenhar, este respeito, a mesma função que hoje
invocaram contra eJe, muitas vezes, os rnesinos argumentos o cinema, retomando este muitas vezes intrigas, tipos e
que lhes serviam para denunciar «a influência corruptora» mitos que lhe fornece a literatura, cujo poder de fascinação
do teatro. «Um fazedor de romances e um poeta de teatro ele multiplica. Assim se criam modas de vestuário e com-
é um envenenador público, não dos corpos mas das almas portamentos - por exemplo, os de Bonnie and Clyde.
dos fiéis, que deve ser olhado como culpado de uma infi- A publicação de Werther, em 1774, foi seguida, diz-se, de
nidade de homicídios espirituais», escrevia Nicole, em 1666, uma vaga de suicídios; o René de Chateaubriand contri-
na sua primeira Lettre sur l' hérésie imaginaire. O Essai buiu para espalhar até à Rússia a imagem do jovem «de
sur les romans considérés du côté moral (1787), de Mar- figura interessante>> e de alma desvastada por uma paixão
montel. condena o género porque ele encoraja a passivi- fatal, a ponto de a transformar num dos estereótipos da
dade, a moleza, e mistura o vício com a virtude. No início do sociedade ocidental durante uma parte do século XIX.
século XX, o bom do abade Bethléem entoa a mesma Da mesma maneira que as comédias de Molierc tinham
lamentação: muitos romances «destilam a dúvida, a impie- criado ou imposto os tipos de Tartuffe, de Harpagnon. de
dade ou a libertinagem», os seus autores tornam-se «Os Don Juan, o ron1ance criou uma rica n1itologia onde se
pintores ou apologistas do mal ou do erro»; e, no seu encontram o ambicioso Rastignac e o diabólico Vautrin,
minucioso catálogo dos Romans à tire et romans à pros- 1 Quasímodo o corcunda e o inatingível Fantomas, Maigret
crire, vota ao inferno Rousseau, George Sand, Stendhal,
Hugo, Balzac F1aubert Zola e muitos outros. Os romances
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o comissário bon1 rapaz e Tarzar_ o homem ~ macaco,
Rocambole e James Bond o detective dos «gadgets».
suscitaram. sem dúvida, tantas condenações como, nos sas figuras de possante relevo enraizam-se muito pro-
nossos dias_. a televisão e o cinema que, também eles, des- fun meios
· l\os menos cultos. Por exemplo, os
viam da reflexão séria. perturbam a imaginação. intoxicam ;;an~üãfs'iilillzãcfo~ fui ~ma cinquentena de anos nas esco-
os espírito, corrompem os costumes ... las primárias fixaram na memória de centenas de milhares
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dinárias invenções para subjugar a humanidade. Ou, mais
de Franceses, no mesmo plano que o penacho branco de simplesmente, os romances de antecipação põen1 em ima·
Henrique IV ou São Luís fazendo justiça sob o seu geris medos ancestrais: criaturas vindas de um outro pla-
carvalho, as histórias da Condessa de Ségur e as criatu- neta destroiem a humanidade (T he War of the Worlds, de
ras de Victor Hugo - Jean Valjean, o forçado transfor- Wells, 1898), o perigo amarelo, tão temido nos fins do
mado em defensor dos oprimidos, Cosette, a órfã-mártir, século passado e reforçado pelas ambições alemãs, provoca
Gavroche, o garoto de Paris de nobre coração. Essas uma guerra mundial (The War in the Air, igua~mente d.e
personagens míticas têm frequentemente a sua origem Wells, 1908); e a obsessão do regime totahtáno e poli-
numa sub-literatura (também chamada infra-literatura ou cial inspirou a George Orwell o seu célebre 1984. Assim,
literatura marginal) de essência romanesca, que desde há o caso particular da ficção científica mostra que no
alguns anos se começa a estudar. Un1a das suas forn1as. romance se cristalizam duas tendências contrárias, rnas
a banda desenhada, suscita agora um verdadeiro entu- complementares, do homem: a necessidade de maravilhoso
siasmo. em que entra por certo algum snobismo - o inte-
e a angústia.
lectual «ao correr do vento» lê Marx, Marcuse e Super-
man -, mas também uma verdadeira sede de maravilhoso.
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A ficção científica, em voga sobretudo nos Estados Ao princípio era o conto
Unidos, visa satisfazer a mesma necessidade, mas o seu
caso é mais coinplexo. Os romances utópicos posteriores Antes de se constituir a literatura narrativa escrita,
ao século XVIII, com antepassados que remontam à Anti- acumularam-se os tesouros inestimáveis das literaturas
guidade, deram forma a velhos sonhos da humanidade: orais, de que provavelmente nenhum país é desprovido:
escapar da Terra e explorar o universo (Voyages dans la lendas onde se misturam os animais, o comum dos homens,
/une, de Cyrano de Bergerac, 1657), viajar no tempo (The os heróis, as forças da natureza, os deuses, narrações de
Time Machine, de H. G. Wells, 1895), vencer o espaço altos feitos guerreiros ou de proezas rústicas, «farças e
por meio de qualquer maravilhosa máquina (o submarino ditos espirituais», ciclos de canções de gestas germânicas,
eléctrico em Vingt mil/e /ieues sous /es mers, de Jules francesas, jugoslavas ou russas destinadas a serem canta-
Verne), ou viver numa sociedade onde tudo é perfeito. das, etc.. Remontando mais longe, os livros sagrados da
Mas estas utopias têm quase sempre uma verdade sinis- índia, a Bíblia, as vidas dos sãbios ou dos santos, os con-
tra: a máquina para percorrer o tempo conduz os explo- tos árabes das Mil e uma noites podem ser considerados
radores à agonia de um mundo donde o homem desa: como os antepassados do romance, na medida em que são
pareceu, o «melhor dos mundoS» de Aldous Huxley é narrativas. Nos nossos dias, tenta-se fazer o inventário
irrespirável, seres diabólicos apoderam-se das mais extraor-
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dessas riquezas, registando os contos populares: assim, no das estepes russo-siberianas, as tradições babilónicas ou
Canadá francês recolheram-se cerca de sete mil ('). Às polinésicas, Eliadc encontra um esquema idêntico: «Quase
vezes, esse trabalho é realizado por escritores que lhes dão todos [os contos orais] giram à volta de um jovem prota-
uma forma nova: no século XVII, Charles Perrault escre- gonista que tem de passar por um certo número de pro-
veu os seus contos a partir de temas folclóricos, os irmãos vas: se consegue vencer todas essas dificuldades, é desde
Grimm fizeram o mesmo na Alemanha no início do logo i'!:iciado; t<_?~na-se u;, Jlerói [ ... ]. Raros são os
século XIX e Henri Pourrat, nosso contemporâneo, publi- cantos épicos que não comportam aventuras iniciáticas do
cou para o Auvergne dez volumes do Trésor des contes, Herói, que não i1npiicam ou a luta com o Dragão, ou a
e Asturias recolheu as Lendas da Guatemala. Os folclo- descida aos Infernos, ou uma morte seguida duma res-
ristas, russos entre outros ('°), estudam as estruturas desses surreição miraculosa». 4 Jajçjªç~q.,~_.i11:e~ent~--~ _Ç,9QQ!çª-g
contos e todas as transformações que pode sofrer um _humana, cujas situações-chave os contos apresentam: «Ela
dado inicial simples, uma situação implicando duas ou revela, em suma, a necessidade de sofrer e de morrer cá
três personagens e a partir da qual nasce uma multidão em baif{o5 para B:Pr~nder a não n1ais temer a morte e ~
de variantes, a «forma fundamental» originando «formas ,dominar a técnica da ressurreição»("). O tema fornecerá
derivadas». Mírcéa E!iade mostrou que esta literatura às literaturas escritas um_ dado fundamental: o Wiihelm
oral - nas suas fornlall narrativas que nos interessam - se M eister de Goethe é a narração de un1a «aprendizagem»,
confunde com a religião. Ela veicula os mitos que, nas tal como, a títulos diversos, Le Rouge et /e Nair, Jean-
sociedades arcaicas, são «históriru; verdadeiras» contando -Christophe de Rornain Rol!and, Anice! de Aragon, os
acontecimentos reais, aventuras heróicas, a criação do
mundo. A noção de mito evoluiu, tomou-se sinónima de
-
romances de Bernanos ou os de Malraux. A literatura oral
narrativa constitui, pois, uma irnensa memória da huma-
_,_"-~-·

ficção, de criação fabuJaàora que conserva. contooo, coroo dà"âé;- ·recottre---tradiçlJes'é éffiiÇà.S, à.Ssêg\füí a recordação
ponto de partida, urna realidade vivida: «As pe11Sonagens de'fac"fõs ·marcànfes (níódifiéaiido-os profundamente) e ()
dos contos ou das fábulas não são lllais do que antigos ç~l!("l d9~ i,e;Óis ou dos deuses, fix~ coisas verídicas e
deuses, as suas aventuras são mitos degradados ou meío fabúca O]!_l.fl\s 'l!'l~avilhosas. Ela é o produto de inúmeras
esquecidos. Aproximando a hi><tória de Orfeu. as epopeías
.;;·-"~--~~-··"--e,_•<""""<'-'•~ '' '

çonsciências que se intcrroga1n qüêrêm~~Pli~~ ~ m~n:do."
- ~

f•) Trabalho .r:ealizado ·na U1D.í\'ersid·a. d.e La-val por Luc


J.. acoursiêre e sem col-abora&lfli..
(1-º) 'Veja-se, por exemplo, Vladlmir Propp, 1'.lorpholcgte d.iJ, ( 1 i)_\firc:éa Eliadc., «Littérature orale», in Histoire des
conte, Paris, Editions d:u ·-Sem1, co:I. «P.ofnt·S», 1·970, .e Paris, littdroturr!I, vol. J, _Paris, Gallimard, «Encyclopédie de Ia Pléiade>,,
Ga!mnwd, 197Q. J9(l2. pp. 5-9.
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Porque se lê romances? tância quase mágica, como se ele quisesse fazer provisão
de sonhos antes do sono, ou simplesmente deixar-se
O romance escrito actual responde a exigências muito aquietar pelo poder das palavras. E ele inventa também
diferentes? que se procura uele e porque é lido ainda? histórias, anima os seus brinquedos atribuindo-lhes inten-
Num inquérito feito em 1965 para uma revista("), uma ções, fabrica um mundo em que ele é o herói, a vítima ou
dezenas de leitores adultos, pertencendo a um meio abas- i o encenador. O tempo raramente é vazio para ele: parà
tado e relativamen(e culto - homens de negócios, quadros. enganar o enfado ou para gozar uma solidão que lhe é
médicos-, definia a sua concepção do «verdadeiro cara, a criança n1arca encontro com as suas personagens
romance», isto é, do romance de que gostaria: ele imaginárias. Assim, o conto identifica-se, na sua origem.
deve contar uma história e conter acção, apresentar situa- com o deva~eio sonhador, parece o prolongamento, a
ções variadas, pintar caracteres. criar mesmo heróis e tradução en1 imagens de um estado interior, a expressão
tipos, ser «a odisseia de um destino». Uma comum exi- de uma afectividade. As vocações de contista nascem
gência aparece com força em todas as respostas: os ro- provavelmente desta actividade imaginativa da criança.
mancistas devem compreender o seu tempo e exprimi-lo Henri Bosco relata que, para ele ouvir, o pai retomava
escrupulosamente; vai-se mesmo até esperar deles que todas as noites uma mesma história interrompida na vés-
«tratem a fundo uma questão», quer seja o funcionamento pera e que ele. entretanto, ia inventando. Deste mundo
de uma empresa ou o trabalho de um médico. Estes leito- lendário. onde passavam pastores, rebanhos, aldeões e
res, para quem o romance deve ter uma ressonância social. paisagens. adveio a Bosco o gosto de escrever. Demasiados
concedem pouco interesse, é evidente, às experiências lite- constrangimentos pesam, com frequência, sobre o ser
rárias contemporâneas; o romance que descrevem per- humano para que ele permaneça um criador de fábulas
tence, pelas suas formas e pela sua concepção, ao para além da adolescência: medo do ridículo, intelectuali-
século XIX, em que se acreditou, com efeito, que ele zação favorecida pela escola, peso das ocupações «sérias»,
podia ser o quadro fiel da realidade. suspeição ou reprovação lançada pelo grupo social sobre
Atingir essa realidade, progredir na sua pesquisa ou a fantasia. actividade de «preguiçosos»; mas o adulto
escapar-lhe? «Conta mais», «será. que os bandidos vão continua sensível ao atractivo das histórias fabricadas para
matar Tintin?», «e depois?», diz o rapazito de cinco anos. ele. Prova-o o imenso sucesso dos «ciclos» nos quais rea-
A hora do conto, à noite, reveste-se para ele duma impor- parecem os mesmos heróis familiares, de Bob Morane e do
comissário Maigret até aos Jalna de Mazo de La Roche
(12) André Marissel, «Que veu.lent Ies lecteu~ de romans?», e aos Eygletii!re de Troyat. Os episódios são inúmeros.
in Revue de Paris, Maio de 1965, pp. 86-93. mas as situações visam prcx:luzir os mesmos efeitos sim-
i'

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pies: o ódio, o medo, a surpresa, a simpatia; e os autores satisfá-las disfarçando-as suficientemente para que se
de romances-folhetins sabem perfeitamente tirar partido tornem aceitáveis, a fim de que o leitor possa confessá-las e
dos limites que impõe a fórmula do género: «Nesse abandonar-se-lhes. A leitura dos romances liberta-nos e,
momento, abriu-se a porta. A baronesa soltou um grande portanto, revela-nos, no sentido de que dá forma aos
grito e desmaiou» (continua). As dimensões deste tipo qossos medos e aos nossos desejos.
de romance não correspondem forçosamente a uma Como para o cinema e o teatro, põe-se o problema
ampla visão da parte do autor ou a um cuidaJjo de tra- da identificação do leitor com a personagem. Quantos
duzir uma realidade extensa e complexa: a série dos la/na adolescentes procuraram com Augustin Meaulnes o cami-
não responde às mesmas intenções do escritor que Le. nho do castelo misterioso, domínio da rapariga vislum-
Thibault de Martin du Gard ou Le Monde réel de Aragon. brada! Para que essa identificação seja passivei, é necessá·
Como o espectador de cinema que vai ser Caroline chérie, rio um certo isolam-éfüo:_ criado pela obscuridade no
os leitores de Fantoma' ou de James Bond «querem mais». cinema ou pela intimidade de um apartamento. O leitor
O romance toma-se para eles um ópio, no sentido próprio. poderá viver com as suas personagens, guardando uma
É preciso, com efeito, que «aconteça qualquer coisa certa distância relativamente ao momento e ao lugar que
de extraordinário» nun1a vida onde, en1 geral, «não acon- Ocupa. Neste «vazio» necessário poderá inserir-se o mundo
tece nada»; é preciso substituir ao chato quotidiano um imaginário do romance; o ~real» vai, pois, ser posto entre
mundo no qual reinem a aventura, o amor, o luxo. parêntesis durante a duração da leitura. Com frequência
Certa psicanálise fornece urna explicação clara (mas tal- se tem sublinhado esta «necessidade de evasão» que anima
vez simplificadora) desta necessidade de ler histórias, que o leitor, procurando fugir à agressão do mundo quoti-
habita o ser humano em todas as idades. «É para com- diano pela substituição deste por um mundo fictício que
pensar certas lacunas da experiência que se lê roman- não é forçosamente belo e sedutor, mas antes do mais
ces» ('"). O leitor encontra ali comportamentos que lhe -coerente. No imo do leitor dormita, sem dúvida, a
interditam as censuras da sociedade ou da moral: satis- obscura consciência do nada que aspira como uma ven-
fação da sexualidade, poder e riqueza, existência à margem tosa e que paralisa: a literatura contemporânea fez dela
das leis, logo uma vaidade mais rica em experiências difí- uma autêntica obsessão. Para escapar à angústia criada
ceis de realizar. A essas aspirações. que têm muitas vezes por esta revelação, o ser humano experimenta a necessi-
o gosto do fruto proibido, mistura-se um sentimento de dade de falar, de «povoar o silêncio», a fim de adormen-
culpabilidade que o romance pode diminuir ou apagar: ele tar o medo ou conjurar a morte. Shcéhérazade, nas Mil
(1ª) Simon O. Lesser, Fiction and the Unconscious. New
e uma noites, terá a vida salva se a história que conta
York, Yintage Books, 1962. durar até ao nascer do sol.
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O desejo de evasão, no sentido próprio de fuga, não narrador, operar autênticos arrombamentos na intimi-
explica toda a complexidade dos móbeis do leitor. Emma dade ou nas consciências de outros seres, as personagens?
Bovary substitui a morna rotina de uma aldeia normanda O romance aproxima o leitor, o narrador e a personagem,
pelos amores ao luar, os requintes dos belos cavaleiros. ,í;;ililendo -~ ta.zê-los coincidir numa consciência comum,
as viagens a Itália, os raptos audaciosos que povoam os 'õ que leva o mesmo Paul-André Lesort a dar esta defi-
seus romances favoritos, a ponto de esse «extraordinário» nição: «A arte do romance é uma arte da comunicação
se transformar, a seus olhos, no único «real». Escapa-se e não uma arte do conhecimento». Henry Miller segue
no IIl~mo sentÍd~. ao pÔr a qu~Íií.o: «Para que servem
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pelo pensamento, mas deseja também conhecer o mundo


rico e elegante que entreviu no baile de La Vaubyes- os livros se não nos reconduzem à vida. se não conseguem
sard. O romance, portanto, simultaneamente cria o isola- fazer-nos nela beber com mais avidez?[ ... ] A esperança de
mento e permite superá·1o; o leitor pode viver as vidas todos nós, ao pegarmos num livro, é encont,:;,r um homem
possíveis que lhe recusam a sua condição social, a época, Aa IJOSsa afeição, viver tragédias e alegrias que nós pró-
as suas insuficiências pessoais, ou o acaso. «0 círculo do _prios não temos coragem de provocar. sonhar sonhos que
nosso universo quotidiano quebrou-se», escreve Paul- tornem a vida mais apaixonante, talvez também descobrir
-André Lesort, «e por essa brecha revela-se a multidão uma filosofia da existência que nos torne capazes de
dos outros universos. Mundos desconhecidos. longínquos afrontar os problemas e as provações que nos assal-
ou próximos, mas de que a visão romanesca nos sugere tam»(").
faces desconhecidas. Seres feitos da mesma substância que
nós, presos na mesma malha do espaço e do tempo, e
que, por uma série de analogias. de semelhanças e de
transposições, amplificam subitamente o campo da nossa Busca de uma defirúção
humanidade» ("). Como explicar, com efeito, a curiosi-
dade quase indiscreta que impele o leitor para as biogra- O romanq:,como já foi observado muitas vezes, tende
fias romanc~das. a narrativa de «Coisas vistas», as «con- a ;J;son;e;· q~ase
todos os outros géneros literários, e até
fissões» verdadeiras ou falsas. as reconstituições históri- m~~- outras ~rtes. Candide de Voltaire faz a sátira do
cas, os romances de costumes e os romances de análise optimismo filosófico, Guerra e Paz constitui a epopeia do
psic6lógica que permitem ao leitor. por intermédio do povo russo ·na época napoleónica, Le Grand Meaulnes é
classificado com frequência como romance poético. No
(14} Pau1-André Lesort, «Le 1ecteur de roman», in Esprit,
Abril de 1960, p. 657. (") lbid., p. 65S.

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século XIX, os romances dos Goncourt rivalisavam com catástrofes pela ex"111siva acção do seu peso próprio» (").
a pintura impressionista; mais perto de nós, o romance Nada parece dever escapar à voracidade do romance, que,
americano troca com o cinema processos narrativos, o aliás, retribui compensatoriamente: se toma de emprés-
«novo romance» pede emprestados à música processos timo a diversos domínios da arte ou do conhecimento, ele
de composição. Les Rougon-Macquart pretendiam ser, enriquece-os também.
no espírito do seu autor, a demonstração das leis da here- O carácter «aberto» do género, que permite trocas recí-
ditariedade; as narrativas de antecipação tomam amiúde procas, a sua aptidão para integrar, segundo dosagens
para base de apoio princípios ou hipóteses da ciência; os diversas, os elementos mais díspares - documentos em
romances de Julien Green e de Joyce têm talvez uma bruto, fábulas, reflexões filosóficas, preceitos morais, canto
dívida para com a psicanálise, enquanto que Aragon, em poético, descrições-, a sua ausência de fronteiras, numa
Le Monde réel, interpreta a sociedade francesa do palavra, contribui para fazer o seu sucesso - cada um
século XX segundo o princípio marxista da luta de acaba por nele encontrar o que procura - e para lhe asse-
classes. La Condition humaine, L'Espoir e Les Noyers de gurar longa vida: a extrema maleabilidade permitiu-lhe
/' Altenburg contêm numerosas páginas de reflexão sobre sair triunfante de todas as crises. Estes mesmos traços
a arte, o socialismo, o fascismo, o destino do homem. tornam aventurosa toda a tentativa para definir o género.
·1 Desde o início do último século, acentuou-se no romance Que obras contemporâneas, com efeito, não poderiam
j, ~s~~ «ambição' panorâmica» - de que fala Roger Cail- intitular-se «romances», e como estabelecer, no decurso da
1 Jois - de tudo mostrar, e de tudo explicar. nu'ma história. um denominador comun1 entre Manon Lescaut,
!
r: sociedade. Desde a ComérJie humaine até aos Hommes de Jacques /e Fataliste, Notre-Dame de Paris, Le tour du
bonne volonté de Jules Romains e às séries de Jules Roy, monde en vingt-quatre jmrrs e A la recherche du temps
de Troyat, de Druon, multiplicaram-se essas «sumas», perdu? A produção destes últimos anos - mas talvez o
essas «enciclopédias» e1Il- que· «Se descreve a estrutura de leitor de Balzac fizesse o mesmo juízo para a da época -
~~iecti~idades complexas. Procura-se dar conta das suas faz crescer ainda o sentin1ento de uma extrema côhfusão.
t(ansforll:lações, seguir e explicar a sua evolução. Perso- Críticos e teóricos do romance deram-nos, desde há
n~iens hiSiórlcas apãrecem: examina-se o seu papel, inter- quatro séculos, múltiplas definições dele, mas elas q~ase
~

p.,rCfá:iii-sé os acontecimentos decisivos aos quais se encon- só nos informam sobre a concepção que do género se tmha
traram ligados. Discútem-se os problemas que estes põem:
a parte do hom.;;ne da sua~oniaCíé: ado âéstino. 'a das
;-;ss~S' ~~Ó~imas e a das minorias esclarecidas. a das coi- (tG) Roger Caillois, Puissances du roman. l\larseille, Êd. Sagi-
s,;s inertes. instituições ou mecanisn1Üs, que precipitan1 as tairé, 1942, pp. 21-22.

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na sua época. «Ü que se chama propriamente Romances ê.\1111 género inapreensível e o seu domínio é o da <<licença»
são ficções de aventuras amorosas escritas em prosa com (R. Caillois).
arte, para prazer e instrução dos leitores», escreve Daniel As distinções estabelecidas por Aristóteles entre os
Huet em 1670. Cem anos mais tarde, Dorat define-os como géneros podem ajudar-nos a apreender melhor a origina-
«a história usual, a história útil, a do momento» («ldées lidade do romance, cronologicamente um dos últimos géne-
sur lc roman», Les Sacrifices de /'amour, 1771). Nos ros a aparecer. É possível, diz ele, representar aconteci-
finais do século XVlh, na sua Idée sur Ies romans, ante- mentos por diversos meios: cores, desenho, voz, «o ritmo,
posta aos Crimes de /' amour, Sade toma o sentido oposto a linguagem e a melodia, combinados ou não», como é o
caso da epopeia, do poema uágico, da comédia, «da
desta concepção que orienta o género para o realismo:
música da flauta e da música da cítara». Pode-se imitar
«Chama-se romance a obra fabulosa composta a partir das
mais singulares aventuras da vida dos homenS». São os narrando ou apresentando todas as personagens a agir,
próprios termos das primeiras definições consignadas nos como «em actos» (11 ). Neste último caso, os aconteci-
dicionários, mas Sade confere-lhes um sentido muito par- mentos são representados diante do público por actores
ticular. No século XIX, George Sand quer fazer dele (teatro, mímica, dança); no primeiro caso, são contados
<mma coisa muito simples e muito tocante» (nótulalde por um narrador, seja ele o próprio autor ou uma perso-
1851 a La Mare au diab/e); para os Goncourt, «ele começa negem que lhe serve de porta-voz, cessando, portanto, os
a ser a grande forma séria, aP,.ixonada, viva, do estudo acontecimentos representados de ser gestos, acções, pala-
literário e do inquérito social, [... ] ele torna-se, pela anâlise vras que apercebemos directarnente para se tornarem urna
«narativa» (rédt), em verso ou em prosa, poesia narrativa,
e pela pesquisa psicológica, a História moral contemporâ-
nea; hoje, que se impôs os estudos e os deveres da ciência, epopeia ou romance. Assim aparecem delimitados os
o romance pode reivindicar as suas liberdades e as suas domínios respectivos do espectáculo e da literatura.
O romance é, pois. antes de mais uma narrativa (");
franquias» (prefácio aos Freres Zamganno, 1879). E Flau- ......___ _ -··----. - "''
__,_,~--"""""""'--'-·''" "" ~ -
-~--

bert sonhava escrever «um livro sobre nada, um livro sem o romancista coloca-se entre o leitor e a realidade que lhe
ligação exterior, que se sustentaria por si mesmo, graças à
força interna do seu estilo» (carta a L. Colet, 16 de (17) Arist6te1es, Art pOOtique_, 1448a. Veja-se também o
comentário e a critica que Gérard Genette· faz desta distinção em
Janeiro de 1852). Trata-se de algumas definições respi- «Frontiêres du récit», .Figures, II, Paris, Editions du Seuil, 1969,
gadas entre um grande número, do século XVII ao PP· 49-69.
XIX. Se as isolamos da sua época, das intenções precisas ( 18) Este- termo narativa (récit) reenvia a todo um conjunto
dos seus autores ou das obras às quais se aplicam, elas .d.e interrogações às quais a narratologia nascente procura respon-
quase só re'forçam a nossa primeira impressão: o romance der. Philippe Hamon fez uma revisão sobre os p,-oblem.'!S da
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quer mostrar e interpreta-a para ele. enquanto que no pouco da epopeia (") e da poesia narrativa tais como as
teatro o espectador é colocado directamente em face dos praticavan1 Voltaire ou Hugo.
aconteciinentos que se desenro]am em cena. É claro que O romance faz a narrativa de uma história, «isto é,
não há separação estanque entre estes «dois modos da unia sequência de acontecimentos encadeados no tempo,
imitação poética»: personagens de teatro podem fazer nar- desde um início até um fim»("). O romancista opera, nos
rativas (récits) em cena- o combate contra os Mouros factos que quer narrar, um corte e uma escolha. muitas
no Cid ou a morte de Hlpólito na Phi!dre - e o romancista vezes de ordem cronológica. Se quer, por exemplo, con-
pode apresentar diálogos ao leitor sem dar o ar de intervir. tar uma história que se situa em 1970, remontará por
Esta narrativa é em prosa, o que a distinguiu pouco a vezes a alguns anos ou a alguns decénios atrás, para
explicar as causas longínquas dos acontecimentos ou o
passado das personagens; mas, em geral, não terá nenhuma
análise da narraliva (Le François moderne, Julho de 1972, necessidade de lhes traçar a genealogia até às Cruzadas.
pp. 200-221), onde recorda as premissas, os resultados adquiridos
e 05 donúnios a explorar duma ciência da narrativa. Em primeiro
«Remontar ao dilúvio», na conversação familiar, significa
lugar, quais são ns condições necessárias para que haja narrativa? amiúde repisar velhas coisas sem interesse... O romancista
1~ preciso que haja: a) <eTransmissão de informação por um sistema vai ter de localizar, talhar, privilegiar certos factos que lhe
<le sinais articulado num enunciado»; b) <eTransformação do sen- pareccn1 importantes, e deixar outros na sombra._<"~E~~
lido), logo não somente repetição do mesmo sinal, justaposição de palavra, ele compõe a história para produzir um certo
~nunciados predicativos miniinais ou de enunciados puratnente
descritivos; ç) Presença, na transformação do sentido, duffiil. ctéítô"·no Teifor, para reter a sua atenção, coniovê,/o:
dilnensão te1nporal actualizada pela «experi&ncia», pela <(prova>) ... provocar a soa rene40. Ç.r~,J!Sl.,r_1.aJ1.1?: a matéria
f; evidente que estas exigências mínimas não revogam todas as pfiina da sua história para lhe dar uma forma 3.ifísfica.
dificuldades na identificação da narrativa face à não~narrativa ..Essa história narrada é fictícia, o que a distingue da
(por exen)plo, a demarcação entre narrativa e enunciados descriti-
vos) e que elas apelam para a elabor::ição de critérios mais apura-
da.
biog;~;;;, .. aut;;biografiã, ·do testemunho vivldo, do
dos, mas a pergunta feita é prévia à constituição dum método de de;;;;imento: da narrniiva de viagem, da obra dita «his,
análise da narrativa concebido como domínio particular e autó- tórica». Põe-se aqui a difícil questão da utilização do
nomo da seiniologia. Sobre esta questão, veja-se também J. Pele, «verdadeiro» pelo romancista e da sua. transformação em
(<Ün the concep:t of Narration», in Semiotica, 1971, n. 0 1, pp. 1-19. «ficção». Dificilmente se pode conceber um «romance
(19) Na Idad~ Média, o romance foi í,'scdto, pritneiro, em
octossilabos seguidos e a epopeia em decassüabos dispostos em
puro», onde tudo seria totalmente fabricado, desligado da
(<estâncias». realidade; de igual modo, pode-se perguntar se a «narra-
(2º) Henri Coulet, Le R.oman jusqu'à la Révolution, t. I~ tiva bruta», em que tudo seria conforme à realidade,
Paris, Colin, 1967, p. 12. é possível. Sob a forma de intervenção do narrador, não
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entra também uma parte de romance na narrativa de urna histórica, faz-se filosófica ou satírica, regista qualquer
experiência autêntica, ao menos pela necessidade de lhe traço de costumes ou abre-se ao maravilhoso.
marcar wn começo e wn fim, de a organizar de maneira A extensão maior ou menor da narrativa não basta
-coerente? Numerosos romances fazem-se passar por nar- para definir, face ao romance, a novela e o conto: a sua
rativas de factos autênticos através dos mais . variados própria natureza é diferente, isto é, o objectivo do autor,
processos: manuscritos ou cartas encontrados pelo autor a construção, o ritmo, o tom que ele adopta. Em geral,
que os publica (Adolphe de Benjamim Constant, vários a novela é feita com pouca matéria: uma anedota curiosa,
Contos de Edgar Poe, Novembre de Flaubert), narrativa uma aposta. um encontro sem sequência, o esboço de uma
que o autor ouviu da própria boca das pessoas que parti- biografia, um pequeno drama oculto, ou simplesmente o
ciparam num drama (Manon Lescaut, Atala), confissão aspecto do tempo que produz nurna personagem uma
do próprio autor (La Confession d'un enfant du siecle de emoção singular. Mas esse simples facto deixa adivinhar
Musset). Por vezes, o leitor pode hesitar: pura invenção? toda a complexidade da vida donde foi tirado e o autor
e se fosse verdade? Sinal de que o autor soube trabalhar procura traduzir toda a sua força latente. Ao ler-se Méri-
habilmente a <<Verosimilhança» d.a história, que a torna mée, Pouchkine ou Maupassant. sente-se o choque da
«possível», «prO~á.;~1~, 'ôli-T~f~:; «verdadeira». e de que, história densa, fortemente edificada; ao fechar-se uma
i de um modo geral, o romance actua sem cessar na fron- colectânea de Katherine Mansfield ou de Tchekhov, diz-se
I' teira ambígua do real e da ficção. Se o romancista ·dá por vezes: é indiscernível, quase impalpável. mas qualquer
a sua história por verdadeira, engana pouco ou muito o coisa vibrou em nós, sentimos passar um pouco da vida.
seu leitor, rnas porque este o admite e nisso sente prazer. .. Buzzati. Borges ou Cortazar fazem nascer em nós a
Estabe]ece-se. pois, entre romancista e leitor uma conven- inquietação e a vertigem diante dos mundos possíveis.
ção, digamos mesmo uma conivência. A intenção do conto, como a da fábula, é amiúde mais
«Narrativa de uma história fictícia»: esta definição manifesta: o contista- Perrault, os irmãos Grimm ou os
muito lata engloba também a novela e o conto, que man- autores das Mil e uma noites - dirige-se a um auditório
têm com o romance propriamente dito relações que nem determinado, não tenta fazer passar a sua história por
verdadeira, nem mesmo por verosímil, em caso de necessi-
sempre é fácil definir, de tal modo a concepção destas
dade faz falar os objectos ou os animais, aparecer um
formas narrativas variou com as épocas. Desde o
génio, e esta história, muitas vezes ao invés da novela,
século XV, data da sua aparição em França, a novela.
fecha-se sobre si própria após ter divertido ou ensinado.
diversificou-se em extremo: consoante as épocas e as Enquanto que o romance desenvolve, escolhe a melhor
modas, liga-se à crónica quotidiana ou à reconstituição ocasião, faz desvios ou retornos, deixa instalar-se na intriga

;f.- 1
~; .
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ou nas personagens zonas quase vazias. na novela e no Kafka, se riem de todos os «categorjcistas».. Ou então faz
conto «a lei», escreve Marcel Raymond, «é sempre de apelo a noções muito vagas como o «pós-realismo» ou o
concentração, de clareza, a arte é sempre dizer apenas o «neo-realismo» e distingue. «os romances da dura piedade»,
necessário, «caracterizar fortemente e de uma maneira «o romance irónico», «o rontance dostoievskiano», «O
sensível», fazer crer, obter a adesão do leitor, conservá-la romance místico». Por sua vez, Henri Clouard, na sua
a qualquer preço, por mais longe que se avance «nos Histoire de la littérature française du symbolisme à nos
empreendimento literário o único meio de aceder à «ver- jours, cria outras categorias: «o romance de arte». «O
limites do extraordinário e do impossível», colocar-se, actor romance das idades», «o romance de amor», «OS roman-
ou testemunha, na linha de força em que o acontecimento cistas do ideal», «de costumes de província», etc.. Em
ou o conflito revelam o seu coL·te mais vivo» ( 21). Mas os Théorie de l'art et des genres littéraires, Jean Suberville,
«contos» de Voltaire são também publicados sob a deno- muito consciente do valor relativo destas espécies, enu-
rriinação de «romances» e certos escritores contemporâneos n1era umas trinta, onde figuram «o romance desportivo».
- Gracq, Louis-René des Forêts, Klossowski, Pieyre de «o romance de capa e espada», «o romance animaJista».
Mandiargues - preferem, por desconfiança para com o Algumas, como o romance pastoral ou o romance galante,
romance ou por prnjecto diferente, falar das suas obras desapareceram ou quase já não são praticadas, mas
narrativas como de «récits», o que não simplifica a tarefa pode-se muito bem imaginar outras novas: o romance da
dos historiadores d~'1iieratura! droga, o romance da contestação, e, do mesmo modo que
Estes últimos têm, com efeito, a doce mania, que está se fala do romance campesino ou do romance colonial,
ligada à sua natureza e à do seu trabalho, de distinguir o ron1ance interplanetário, até mesmo o romance selenita
espécies e de lhes colar etiquetas. Como escrever a ou o romance marciano... Esta simples mirada do pas-
história da literatura de um país, como, mais modesta- sado a um futuro mais ou menos imaginário mostra a
mente, escrever a história do romance numa dada extrema mobilidade do género e a sua dependência em
época? R.-M. Albéres, que tentou a experiência na sua relação a cada época. Pode-se inventar todas as espécies
Hist@ire du roman moderne, vê-se frequentemente obri- de classificações nas quais se misturam as distinções de
gado a organizar catálogos para os escritores que não sabe quadro (rústico, urbano, exótico), de conteúdo (ideias.
onde meter, para esses inclassificáveis que, de Diderot a costumes, psicologia), de técnica (cartas, diário íntimo,
(21) Marcel Rayinond, Anthologie de la nouvelle ftançaise. confissão). No limite, todo o romance um pouco complexo
Lausannc, La Guilde du Livre, 1950, p. 17. Sobre as relações· constitui uma espécie em si.
históricas entre a novela e o romance, veja-se Georges Luckáes, A classificação dos romances, se não for apoiada sobre
Soljenítsynf'. Paris, Gallimard, col. «ldées», 1971.
critérios objectivos, arrisca-se bastante a ser uma empresa

j
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36

expedição Lroiana: te1npestades. naufrágios, costas miste-


vã: dela existem tantos sistemas quantos os historiadores
do género. Quando muito, poderâ fornecer alguns riosas e, no regresso, eliminação brutal dos rivais. Nos
pontos de referência bastante aproximativos. O importante mares desconhecidos, o marinheiro vê estranhos presságios,
não é fazer entrar obras, à força, em quadros pré-esta- animais fabulosos cai sob o domínio de encantamentos,
belecidos, mas apreender afinidades e constantes, orien- A história orienta-se, assim, para a narrativa de acção, de
tações divergentes, ver como o romancista conseguiu aventuras por vezes fantásticas. Imaginemos que ela abre
levar a sua obra a produzir o timbre que a distingue de pela descoberta de vários cadáveres e que um inspecto1
qualquer outra. Ã narrativa implica, como dissemos, mete o nariz no assunto - e temos uma espécie de Sime-
uma escolha. ou antes, uma quantidade de escolhas em non: é preciso refazer o fio da narrativa até aos móbeis
cada instante: de palavras, de personagens, de aconteci- que levaram o marinheiro ao crime. Ou então o autor
mentos, de divisão em capítulos, etc.. Tal como Etienne descreve longamente os adeuses lancinantes do marinheiro
Souriau provou para o teatro, no romance a história com- que tem de partir e da bem-amada que fica, as cartas
posta de alguns elementos simples pode ser tratada de que se perdem, o silêncio que se prolonga- e obtemos
múltiplas maneiras. Impõe-se, pois; procurar em que con- uma história triste como aquelas de que se gostava na
sistem essas escolhas e a sua razão de ser: sobre que época de Pierre Loti. O marinheiro é belo, a mulher é
aspecto da história pôs o autor o acento? que processos terna, mas há um negro caluniador... O marinheiro
empregou para a narrar? que forma toma ela? quais são regressa, julga a mu Jher infiel, mata-a a ela e ao rival e
as intenções, as implicações, o sentido da narativa? mata-se a si próprio, ou alista-se desta vez na Legião
Estrangeira: o autor poderá escrever um melodrama para
fazer chorar as Marias ·ou uma impiedosa tragédia que,
Uma história de marinheiro
para se consumar, deve provocar a morte de todos os
Eis aqui um esquema narrativo muito banal, que, con- protagonistas. Se opta por situar a acção na Antiguidade
soante a colocação do «acento», pode dar um enigma poli- ou no tempo dos corsários. por descrever os navios, os
cial ou um folhetim sentimental, uns sonhos para os nos- povos e as terras longínquas segundo as informações da
tálgicos do exotismo ou uma meditação sobre a morte arqueologia e da história, refará um «romance histó-
e o destino, uma reconstituição histórica ou uma pintura rico», como Flaubert com Salammbô ou como Walter
1.
da baixa sociedade: um marinheiro, a mulher que ele ama, Scott. Ou, se o autor segue o seu marinheiro nos grandes
rivais. São, no fundo, os elementos da Odisseia, que se portos da nossa época. a pintura de uma vida miserável
prestam a inúmeras variações. Homero atribui um lugar no seu «romance de costumes» poderá orientarªse para à
importante à viagem do seu marinheiro que retoma da crítica social, e até expor ideias revolucionárias. Ele
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poderá ainda insistir menos nos ressaltos de uma acção nheiro parece submerso pelo mar, será ele salvo'! as grades
animada do que na evolução dos dois amantes separadm, da prisão resistem a todos os seus esforços, descobrirá ele
reunidos, separados de novo, dos quais ele analisará a algum estratagema? Certos episódios farão eco a outros:
psicologia ou a busca de uma moral. A sua história regu o aprisionamento completa o naufrágio, são dois momentos
!ada pelo destino poderá transformar-se na imagem sim- de provação para o marinheiro; ele naufraga duas vezes,
bólica da condição humana que suporta forças esmaga- a primeira pelo ímpeto da natureza, a segunda pela
doras ou que delas se liberta. crueldade dos homens; a reciusão na ilha é a antítese
Esta diversidade, que se liga à orientação geral da dos seus livres corsos pelos oceanos. Assim. o romancista
narrativa, pode aparecer ainda multiplicada pelo número pode manejar simetrias. contrastes, proporções calculadas
de processos de que dispõe o romancista. Retomemos a na composição do seu romance. Para a tornar mais sólida,
primeira «espécie» obtida pelo esquema proposto: a his- pode utilizar temas, motivos, certas imagens significativas
tória do marinheiro e da mulher que ele ama tratada como que retornam de longe em longe, como na música, para
romance de aventuras. relembrar uma ideia, reforçar um efeito, precisar uma
O autor pode prender-se sobretudo com a invenção intenção: o vento que significa a atracção do longínquo,
e a reunião dos acontecimentos que vão manter na expec· a chave numa fechadura que sublinha a reclusão, os lenços
tativa o leitor: o marinheiro passa perto de um vulcão em que se agitam em todos os cais, imagem simbólica da
erupção, o seu barco naufraga, ele é recolhido por piratas partida. o olhar perdido de uma mulher, sinónimo de
que o têm prisioneiro numa ilha; poderá eve<fir-se de lá? espera, de tristeza ou de esperança. As distâncias, as vas-
consegue-o graças à filha do carcereiro; por causa tas extensões do mar parado contrastando com as ilhota.
dela, irá enganar a mulher amada que deixou no país abruptas. os portos acolhedores, os recifes perigosos cons-
natal? O romancista constrói uma intriga feita de episó- tituem as experiências quotidianas do marinheiro e, no
dios tão diversos, coloridos e imprevistos quanto é possí- romance de eventuras. o espaço tem, portanto, um papel
vel, para manter uma acção sempre movimentada que ele primordial (por exemplo, para o desenvolvimento da intriga
fará ressaltar incessantemente. Nela introduzirá, contudo, ou p~ra a influência sobre a_.;;; personagens). O mesmo se
momentos de repouso entre cenas de aeção mais violentas diga para o tempo. que joga a favor do marinheiro ou
e mais rápidas, alternando a viagem feliz com a erupção contra ele. e que o romancista pode alongar para suge-
do vulcão, o naufrágio, a evasão, para variar o ritmo da rir o tédio ou criar urna expectativa, ou pode contrair,
narrativa. Esta pode ser toda seguida, e progredir como cerrar. para produzir uma impressão de movimento brutal.
uma longa torrente homogénea, ou, ao contrário, cortada Ele poderá, em duas intrigas paralelas, seguir o mari-
J.j
h em capítulos interrompidos em momentos críticos: o mari- nheiro na suá odisseia e evocar a vida simultânea da
il
1
40 41

mulher só. A narrativa poderá começar em 1900 com a somente o que vêen1 essas personagens, as ópticas podem
partida do marinheiro, para terminar em 1910 quando ele diferir muito; o mesmo facto - por exemplo, a cena do
regressa à sua terra, ou começar por aqui, sendo o resto desemh"Uque - traduzir-se-á respectivamente assim: «Da
do romance constituído por um retomo atrás, ou então passarela, o marinheiro procurava, na multidão dos basba-
começar em 1905 com um relance sobre os anos anteriores ques, o rosto que ele tantas vezes tinha evocado»; «a mulher
e continuar em seguida, com antecipações, aqui e além, · viu aproximar-se dela aquele homem envelhecido que a
do futuro. O romancista é, pois, livre de jogar com a custo reconhecia»; «o rival, de longe, contemplou demora-
ordem dos acóntecimentos e de lhes alterar a cronologia. damente o casal abraçado». Estes três pontos de vista
Num dado momento, o romancista pode analisar o que exprimem, portanto, três sentimentos: esperança, surpresa,
se passa numa personagem, ou seguir a sua lenta evolução, ciúme. Outras possibilidades: o narrador permanece cons-
limitando-se, por exemplo, à principal, o marinheiro; ele tantemente no exterior das personagens, das quais ele
fará ainda aparecer e desaparecer personagens episódicas, descreve apenas o comportamento visível, com frieza ou
interessantes pelo seu pitoresco - piratas, fauna cosmo- interpondo a sua afectividade própria; ou, ao contrário,
polita dos portos-, pelo seu papel na intriga - a filha do penetra no interior de uma personagem: de facto, por-
carcereiro-, pela sua relação com a personagem prin- tanto, conheceremos só o aspecto que essa personagem
1
cipal - a mulher amada do marinheiro. apercebe. _l(m mesmo acontecimento, visto por três tes-
]! Várias possibilidades se oferecem ao romancista para munhas, <ta,rá oútras tantas versões dÍ!erentes,. até contra-
contar a sua história, sendo a mais usada a narração na ditórias, e dessas divergências o autor tirará uma HÇão de·
i' terceira pessoa: «Ü marinheiro partiu para o Oriente por · relati~da:de: quem fala _ve.rd_ade? o acontecimento déu.cse
l'
uma bela manhã de 1900»; a personagem pode fazer o efectivamente? Poderá igualmente fazer alternar diversos
11
relato da sua odisseia na primeira pessoa e evocar as suas modos de narração: transmitir os diálogos no estilo directo
li recordações, nelas introduzindo as reflexões sobrevindas e descrever a cena como se ela se desenrolasse ao mesmo
após ter regressado da sua viagem, ou redigindo um tempo que é contada (mma,tivª cénii;al: o marinheiro
diário íntimo contemporâneo dos acontecimentos que se desce a passarela, reencontra a mulher, fala-lhe; ou fazer
produzem. ou por cartas que envia à mulher, ou por uma a narrativa com recuo. transmitindo as palavras no estilo
11 combinação destes diversos processos: por exemplo uma indirecto livre, resumir ou alongar por comentários e
.i outra personagem pode substituir o marinheiro e dar outra digressões (narrativa panorâmica): o narrador evoca nal-
versão dos factos. Assim aparece a importância primordial. gumas frases a chegada do marinheiro. relembra os senti-
di.l ponto de vista na narração. Consoante o romancista mentos deste à sua partida, etc.. De acordo com o modo
acompanha o marinheiro, ou a rnulher, ou um rival. e conta adoptado. a bistória produzirá um impacto vigoroso dando
T·---

42

o sentimento da vida que se faz, ou afastar-se-á de nós


num passado que começa a apagar-se, muda de tonalidade
e ganha uma significação 11ova à luz dos acontecimentos
sobrevindos desde então. ,por sua livre vontade, o roman-
cista dá um largo lugar ao monólogo interior, para nos
fazer atingir «em apreensão~hta;;···a_· vida psiquica de CAPÍTULO l
uma personagem, ou, pellf descrição, põe o acento, ao
contrário, no seu aspecto~extenõr-e nM lugares que ela A história e a narração
atravessa.
As fronteiras entre estes diversos elementos são amiúde
indecisas e cada vez mais assim se tomam no romance
Questões de vocabulário
moderno: narrativa panorâmica e narrativa cénica fun-
dem-se nele; a reflexão geral, a exposição de ideias, de A Poética de Aristóteles distingue quatro partes cons-
têôrTâs; 'ãte de sistemas filosóficos, interrompem os diálo-
titutivas comuns à tragédia e à epopeia: a fáb~la, os
gõS; ·rnSinuaffiRse nos monólogos interiores; a descrição
caracteres, a elocução e o pensamento('). sendo o pri-
integra·-se; substitui-se . mesmo à narração dos factos.
meiro o mais importante, de modo que «os actos e a
o roÍÍiance é constitÚído por um feixe de forÇaS dinâ- fábula são o fim da tragédia», a fábula é o «seu princípio
micas, de materiais que não existem - ou que já não exis-
e a sua alma». Alargada às formas modernas de literatura
tem - no estado puro, mas que se tornam solidários e
narrativa, esta afirmação teve durante muito tempo vd!or
reagem uns sobre os outros: um romance não é apenas um
de regra: o romance foi e continua frequentemente a set
assunto ou uma história mais ou menos bem arranjada,
entendido, antes do mais, como uma lii§J2.rja (inglê~'.S!5,)')'),
uns episódios diversamente agregados, mas, como o diz , ,
corres[Jondendo este termo ao que Aristóteles chamava
il J.-L. Borges, «um jogo preciso de atenções, de ecos, de( jábufa. .Para que haja história e para que ela seja inteligi-
il afinidades [... ] um mundo autónomo de corroborações.1, ~~ç;;,;_ de introduzir-se uma organização elementar neste
\i de presságios» (22 ), um universo distinto do mundo rea!I
«agregado» de acções realizadas, sendo a mais simples
em que vivemos e cujo sentido tem de ser procurado atra-j a cronológica: o marinheiro faz uma viagem, regressa, reenR
vés das formas que o constituem. ''
(t) Aristóteles, Poétique, 1450a e 1459b.-Sohre a defiR
(22) Jorge-Luis Borges, Discussion. Paris, Gallimatd, 1966, nição da fábula distinta do assunto, ver B. Tomachevski Théorie
pp. 7S-79. de la littérrdure. Paris, Editions du Seuil, 19f}5, p. 268.
44
45
contra a mulher, mata-a. História em estado bruto, como
as crianças podem contar, simples sucessão de aconteci- estrutural, responde a essa preocupação estética, do mesmo
mentos em que cada um parece autónomo, mas entre os modo que o ritmo (inglês: rhythm) que assegura ao desen-
quais o contista tem de estabelecer ligações lógicas, quase rolar da narrativa o seu tempo característico igualmente
sempre de causalidade: o marinheiro, no seu regresso, tributário do efeito a produzir.
reencontra a mulher que amou, mas, tendo sabido da sua Estas distiuções tradicionais são tomadas, na sua
m<>.ioria, a Aspeás of lhe Novel('). ao qual a crítica anglo-
infidelidade, mata-a. CL.~mu:rativo bruto transfor-
mpu-se nu'!':a intriga (iliglês: plot), na quai existe eni -saxónica contiuua a referir-se. Elas devem ser considera-
: ,pofêiícia uma multiplicidade de episódios, de incidentes \ das sobretudo como pontos de referência, porque, por um
1
que constituem unidades narrativas de dimencões variá- !· lado, não é unânime o acordo quanto à terminologia
veis, sendo as mais pequenas por vezes chamadas moff.. utilizada e, por outro lado, elas designam realidades muitas
vos (inglês: motive). O «episódio» do crime pode dar vezes dificilmente isoláveis, de fronteiras pouco marcadas,
lugar a uma encenação desenvolvida: o assassino dissimu- e que por vezes se sobrepõem.
la-se e espera, o romancista analisa o seu estado psicoló- Consideremos, em primeiro lugar, o conjunto história·
gico, descreve os locais, a atmosfera nocturna, - enquanto -intriga-acção, para estreitar de mais perto esses elementos
que «O marinheiro dispara sobre a mulher» constitui essa constitutivos e ver os problemas que eles põem, em simul-
unidade narrativa núnima que é o «motivo». Essas diver- tâneo, ao romancista e ao crítico. Para Forster, a distin..
sas células, que têm de ser religadas umas às outras para ção entre história e intriga liga-se à presença ou à ausên-
que a narrativa seja coerente, necessitam de um princípio cia do elemento de causalidade, mas os dois termos não
de unidade geral que lhes assegure a progressão, o movi· parecem designar exactamente as mesmas realidades.
mento, e lhes dê uma orientação: a acção (inglês: action). f. história supõe personagens, logo os seus actos, os seus
No esquema utilizado, ela será constituída pelo jogo do wntimentos, os s<ius c:fé;tiílo;;, em suma, um elemento
amor e do ci(1me, que justificará o crime, resultado da .. Pumano no qual PiiP 1?el1s~n19s miecfüiiu;,ente ou ;à'bre-
narrativa. O romancista não só deve religar os epÍsódios,;: fud~. quall\IO fal.ªr:nqs .. d,!'. w:pa, intri!P'· Conta-se a história
mas também animar personagens, descrever o seu quadro: num romance, mas segue-se o fio ·dâ intriga:
espacial, o tempo em que se desenrola a narrativa, até •. . .. O que é uma história, escreve Nelly Cor·
alimentá-la com .uma filosofia - todos estes elementos meau, senão um complexo de acontecimentos ou
: i vindo a fundir-se na acção. Impõe-se-lhe dispõ-los em de paixões desenrolados no tempo e confrontando
justas proporções, fazer do díspar um todo harmonioso.
A composição (inglês: pattern, composition), elemento (2) E. M, Forster, Aspects of th~ Novel, Penguin Books,
1968, pp. 93-94.
46 47

personagens, imaginárias talvez, mas em que a


aparência de vida é a tal ponto imperiosa que nos Os ava/ares da intriga
tomam à parte tanto quanto seres de carne e de
sangue? ("). Se lermos um resumo de 1,' Astrée, a história parece-nos
bastante longa, a intriga bastante contorcida: há tantos
Em «intriga», põe-se o acento menos nas personagens mal-entendidos entre o pastor Céladon e a sua pastora
do que no encadeamento dos episódios, no agregado quase Astrée, tantos obstáculos, salvamentos miraculosos, coinci-
matemático de uma estrutura narrativa. Scholes e Kellogg dências providenciais, manobras urdidas por invejosos.
confirmam esta distinção: <~.<?El'!!t.Lum «termo geral» E os romancistas que sucederam a Honoré d'Grfé parecem
par:a_.distillguir ' ..personagens e acção, '«lllmgã» é um ter-se entregado a um autêntico sobrelanço na complica-
terni,o «mais _especifico» que se refere exclusivamente à ção. inversamente, Scarron, relembrando a presença do
'lcção, com o mínimo de referência possível às persona: autor, põe a descoberto os cordelinhos que puxa, para
geiÍs ('): llôís rolJ1ancistas resumem a diferença em duas 1nostrar propositadamente o seu artifício: «Enquanto os
_ imagens biológicas: para Thomas Hardy uma história animais comeram», escreve ele no final do primeiro capí~
deveria ser um «organismo», enquanto que Ivy Compton- tulo do seu Roman comique, «o autor repousou algum
·Bumett descreve a intriga como um «esqueleto» que sus- tempo e pôs-se a imaginar o que diria no segundo capí-
tenta o conjunto do romance('). tulo», ou então abandona uma personagem numa situa~
ção desconfortável para «descansar um pouco; porque, por
minha honra, esta descrição custou-me mais que o resto
do livro e ainda não estou muito satisfeito com ela»(').
Logo nas primeiras páginas de Tom Jones - em que a
critica anglo-saxónica louva tradicionalmente o perfeito
i 1
(ª) Nelly Cormeau, Physiologie du roman. Paris, Nizet.,
arranjo da intriga-. Fielding toma a palavra e anuncia
il'I 1966, p. 53. o seu jogo:
(4) Robert Scholes e Robert Kelllogg, The Nature of Narra- Amigo leitor, antes de passarmos adiante,
tive. London/Oxford/New York, Oxford University Press, 1966,.
cremos nosso dever prevenir-te da intenção em que
p. 208.
(IS) Sobre estes problemas de análise, ver o eStudo funda- estamos de fazer digressões, no decurso desta bis-
mental de Roland Barthes, «lntroduction à l'analyse structurale
des récits», in Communications, n. 0 8, 1966, e os antros estudos, (6) Paul Scarron, Le roman comique; Paris, Garnier, 1955,
reunidos neste número da revista. PP- 5 e 127.

'
48
49

as estaçôes de muda, cavalos estoirados em todas


tória, sempre que se apresentar ocasião para isso;
e consideramo-nos melhor juiz do apropósito as páginas, florestas sombrias, inquietações senti-
mentais, jura1nentos, soluços, lágrimas e beijos,
qae uma multidão de miseráveis críticos n.
barcas ao luar, rouxinóis no_s bosques, cavalheiros
Diderot, em Jacques le Fataliste, industria-se em enga- bravos corno leões, mansos como cordeiros, vir-
nar a curiosidade do leitor e nunca deixa esquecer que tuosos como ninguém é, sempre bem-postos, e
ele é o senhor da história: que choram como bicas»(').

Ironia, paródia, desenvoltura, tudo meios para lembrar


Bem vê, leitor, que estou em bom caminho ao leitor a arbitrariedade na escolha dos acontecimentos
e que apenas de mim dependeria fazê-lo esperai e a pretensão mentirosa do romancista ao fazer passar por
um ano, dois anos, três anos, pela narrativa dos verídico o que é fabricado peça por peça.
amores de Jacques, separando-o do amo e
Robbe-Grillet, em 1957, retoma o ataque contra esta
fazendo passar cada um deles por todos os acasos concepção, que tem ainda curso, segundo a qual o «verda-
que me apetecesse ('). deiro romancista» é aque]e que sabe «contar uma história».
«A felicidade de contar, que o leva de um cabo a outro
Ele interrompe-a exactamente antes de um episódio
da sua obra, identifica-se com a su~, vocação de escritor.
saboroso, imagina sequências possíveis mas não as escreve
Inventar peripécias palpitantes, comoventes, dramáticas,
(«No que esta aventura se transformaria nas minhas mãos,
constitui ao mesmo tempo a sua alegria e a sua justifica·
se me desse na fantasia de o desesperar!. .. »), segue uma
ção» ('°). Mas, além disso, essa matéria fabricada apre-
pista para depois a abandonar. Flaubert, ao evocar as lei-
senta-se como documento, biografia, história vivida, gra-
turas de Emma no convento, acumula numa frase as
ças a uma «convenção tácita [que] se estabelece entre o
convenções dos «velhos romances»:
. leitor e o autor: este fará de conta que acredita no que
: 1
Não havia senão amores, amorosos e amoro- , conta, aquele esquecerá que tudo é inventado». Leitor e
sas, damas perseguidas desmaiando em pavi- romancista embalar-se-ão mutuamente na ilusão: «Mais
llhões solitários, postilhões assassinados em todas do que de distrair, trata-se aqui de traquilizar». Este

(') Henry Fielding, Tom Jones, t. I, Paris, Julliard, 1964, ( 9 )-Gustave Flaubert, Madome Bovary. Paris, Le Livre de
pp. 33-34. poche, 1961, pp. 54-55.
(8) Denis Diderot, Oeuvres romaWMques. Paris, Garnier ( 10) Alain Robbe-Grillet, Pour un nouve.au roman. Paris,
p. 495. , Gallimard, col. <cldées», 1964, p. 34.
50 51

acordo tácito, de facto, repousa, segundo Robbe-Grillet, conter uma constatação e a sua negação imediata.
sobre a certeza de que a realidade é apreensível e o mundo Em suma, não é a anedota que está ausente, é
explicável. «Noção caduca», tal como no romance as somente o seu carácter de certeza, a sua tran-
noções de história: de personagens, de distinção entre quilidade, a sua inocência (11 ).
forma e conteúdo. Simplificando de forma excessiva,
Robbe-Grillet faz notar que «Les Gommes ou Le
Robbe-Grillet situa o ponto de viragem na obra de Flau-
V oyeur comportam, tanto um como outro, uma tram~
bert, a partir da qual se acelera a desagregação da intriga.
uma «acção» das mais facilmente discerníveis. e, além
Ela reduz-se já de Madame Bovary para L'tducation
disso, rica en1 elementos considerados en1 geral dra-
sentimentale, mas o sonho do «livro sobre nada», do «livro
máticos» mas pouco a pouco «a escrita» deveria constituir
sem ligação exterior, que se sustentaria por si mesmo, gra-
ças à força interna do seu estilo», do «livro que quase não o essencial do romance, tomando o passo à «história».
Na realidade, não é assim tão fácil desembaraçar-se
teria assunto ou, pelo menos, onde o assunto seria quase
dela. Apesar das tentativas periódicas de eliminação, a
invisível, se isso é possível» (carta a L Colet, 16 de Janeiro
intriga, que é um mal para determinados romancistas,
de 1852) deixa entrever um limite ideal na desaparição
· permanece talvez um mal necessário. O romance conta
da história. Pela mesma época, os Goncourt trabalham
uma história: «é o aspecto fundamental sem o qual não
no mesmo sentido: querem escrever um «romance sem
poderia existir». escreve E. M. Forster ("). ainda que ele
peripécias, sem intriga, sem baixos divertimentos» (prefá-
cio a Chérie). «Fiz tudo para matar o romanesco, para o deseje que esse aspecto fundamental seja outra coisa
diversa de this low atavistic form. Henry James, no seu
transformar em espécies de autobiografias. de memórias
.1 de pessoas que não têm histórias», escreve Edmond de ensaio sobre Maupassant, faz observar que não há perso-
Goncourt em 1891. em resposta ao inquérito de Huret nagens sem acção, mas que· não existe acção sem intriga
que dê ocasião a que se conheçam essas personagens(").
sobre o romance; e ele renuncia até a fazer da morte das
personagens um artifício para servir de desenlace à intriga.
( 11) Alain Robbe-Grillet, P9ur un nouveau roman, p . .'38.
Robbe-Grillet. pela sua parte, encara uma nova concepção ( 12 ) E. M. Forstcr, Aspects of the Novel, p. 34.
da história no romance: ( 13) Certos críticos quiseram distinguir a~ intrigas de acção.
as intrigas psicológicas, a!I intrigas filos6ficas (plats of actlon,
No próprio Becket!, não faltam acontecimen- plots of character, plots of thoug~t) de acordo coffi o predo-
mínio de um ou de outro <lesses elementos. No primeiro caso,
tos. mas que sem cessar estão em vias de se.
a mudança (change) produz·se na situação da personagem, con·
cpntestarem, de se porem em dúvida, de se des- <luzida pelo seu carácter e pelo seu modo de pensar; no segundo,
truirem, de tal modo que a mesma frase pode é o seu carácter moral que se transforme sob a influência da

1
52 53

A acção .,, de un1a ou de várias personagens, etc.. -~~~tindo de seis


«forças» ou «funções», que actuam numa peça de teatro
A intriga repousa sobre a noção fundamental de movi- ;;s--tambéffi- num romance, Etienne Souriau visa destacar
mento, de mudança a partir de uma dada situação e sob as constantes de Deux cent mil/e situations dramatiques,
a influência de certas forças. Tradicionalmente, fala-se portanto em número praticamente ilimitado("). Mais
deste elemento dinâmico da intriga como da sua «mola»: radical ainda é o empreendimento dos formalistas russos,
honra a vingar para Cbimene, ambição a satisfazer para tais como Tomachevski e Chklovski ("), que T. Todorov
Julien Sorel; mas essas forças manifestam-se melhor quando expõe cm Les Cutégories du récit littéraire (1(1). Este
deparam com uma força antagónica: Chimene sente amor método toma para ponto de partida a análise do folclore
pelo homem que ofendeu o pai, Julien Sorel tem de supe- (e mais especialmente dos mitos) e a distinção c1editada
rar a desvantagem de uma origem plebeia. Mais do que pela linguística entre «história» (ou «fábula»), «o que
, ( de uma força, deve-se, pois, falar de um jogo de forças cfectivamente se passou», e «discurso» (ou «assunto»), «a
1 que pÕdem-'êncontrar obstáculos ou elenienfos propícios, maneira como o leitor tem disso conhecimento». Quanto
i
1 combinar-se ou exercer-se em sentidos opostos, através às formas que pode tomar a história, o princípio da sua
descrição reside na redução dessa história a pequenas
acção; ou a sua maneira de pensar e os seus sentimentos são unidades. «micro-narrativas» (Claude Bremond). que se
modificados pelo caracter e pela acção. R. S. Crane cita como organizam segundo ~squemas «que correspon~eriahi a um
exemplos, respectivamente; Os Irmãos Karamazov, Um retrato de
pequeno número de situações essenciais na vida; poderiam
mulher, de Henry James, e Marius, o epicurista, de Walter Pater.
Estas categorias orientam a concepção da intriga para dois ser designadas por nomes con10 fudíbrio, contrato, pro-
pólos: aventura e psicologia. Nesta óptica, a intriga repousa, tecção, etc.». Todorov irívestigou e1n Les Liaisonç Jan-
portanto, sobre uma relação entre a situação externa - os seus gereuses as relações que existem entre as personagens e
0

componentes geográficos, sociais, etc. - e a situação 'llema


das personagens - os seus sentimentos, acções, pensamentos.
Essa relação é variável dum romance para outra, orien- ( 14 ) Cf., mais adianle, o capítulo sobre as personagens.
tando-se a história para «o exterior» ou para «o interior» con- (15) Devemos também acrescentar, bem entendido, a Mor-
soante o predomínio dunia ou doutra situação; mas, sobretud~. phologíe du conte de Propp, traduzida em 1970 por M. Derrida,
ela modifica-se no decurso dum 1nesmo roraance, podendo o equi· T. Todorov, Cl. Khan, Editions du Seuil, e por Cl. Ligny, Galli-
líbrio romper-se e depois vir a restabelecer-se após múltiplas n1ard, 1970.
flutuações. (R. S. Crane, «The concept of plot and the plot o( ( 111 ) Tzvetan Todorov. «Les catégories du récit littérai:re»,
Tom Jones», em J. Calderwood e H. Toliver,Perspectives 011 in Co1nmunications, n. 0 8, 1966. As referências ao estudo de
Fiction. New York/London/Toronto, Oxford University Press, Claude Brcmond, «Logique des possible!i- narratifs», são igua1mente
1968, pp. 303-318). tiradas deste número da revista.
54 55

que se repetem segundo uma certa lógica: «Cremos [ ... ] tor até a urna crise sempre iniinente que cresce até ao
que as relações entre as personagens, em toda a narrativa, paroxismo. Se se situar num gráfico os pontos da narra·
podem sempre ser reduzidas a um pequeno número e que tiva em que a tensão aumenta-pela chegada de uma per-
essa rede de relações tem um papel fundamental na estru- sonagem nova, por acontecimento carregado de conse-
tura da obra». Estes «predicados de base» (amar, con- quências, a ameaça de um perigo, de um conflito, um acto
fiar-se ... ) descrevem as relações entre «agentes» (persona- brutal - e os mo1nentos em que essa telisão se distende -
gens sujeitos ou objectos dessas acções), constituindo pre- pelo escoar de um lapso de tempo vazio, a intervenção de
dicados e agentes as «unidades estáveis» mas que integram factores que poderão regular o conflito-, a -«~u_r:va. d~an:iá­
combinações variáveis. As «regras de derivação» descre- "ti_cª» o_btida apresentará um perfil bastante variável: linha
vem as relações entre os diferentes predicados (por exem- tendendo para a horizontal. com ligeiros bojos, ou então
plo, o acto de ajudar opõe-se, na narrativa, ao de se opor). linha quebrada, onde a1ternam covas e cumes muito acen·
Além disso, as relações de base que existem no início do tuados. Num caso, Claire de Jacques Chardonne, no outro,
romance modificam-se segundo certas «regras de acçã0» La Condition hunuúne de Malraux.
que nele introduzem um mo,imento. Quaisquer que sejam .P primeiro tipo de curva dramática não implica, bem
as variante. metodológicas, em Oaude Bremond, Todorov, entendido, a ausência de acontecimentos nem de tensão:
Greimas ou nos trabalhos em que eles se inspiram, a inten- ela pode ser interior, e praticamente invisível. Entre Oaire
ção comum é de reduzir a multiplicidade das intrigas a um Jean. seu rnarido. existe uma harmoriia aparente, na
número limitado de modelos cujas formas e combina- qual se produz pouco a pouco uma fenda nascida simples-
ções há que descrever: este esforço constitui a base de um mente da vida quotidiana, sem a intervenção de uma causa
estudo objectivo da narrativa e, mais largamente, a base localizável. Chardonne descreve assim o equilíbrio das
de uma ciência da literatura. personagens entre a felicidade e os perigos que nascem
Os diversos métodos de análise, o de Souriau e os dos fora delas ou nelas mesmas, equilíbrio que vêm ameaçar
estruturalistas, mostram que a intriga, enquanto encadea- os menores factos, uma breve ausência ou uma pequena
mento de factos, repousa sobre a presença de uma tensão mentira, que não têm importância em si mas na sua
interna entre esses factos, que deve ser criada logo no influência sobre a vida do casal. Este romance dá, pois,
l ' início da narrativa, sustentada durante o seu desenvolvi- a imagem de uma água parada, mal perturbada de quando
mento e que deve encontrar solução no desenlace. A sua cm quando, cujos movimentos têm lugar em profundidade,
intensidade e a sua força variarão de acordo com os objec- enquanto que a agitação é constante no livro de Malraux.
tivos estéticos do romancista, desde a tensão muito pouco Já não é a felicidade de um homem e de uma mulher que
sensível numa intriga que servirá somente de fio condu· se joga durante longos anos, mas o destino de um imenso

j
56 57

povo que vai ser decidido por poucas horas; já não é o narrativa, ora, numa intriga tratada en1 resumos e em
quotidiano sem história numa província esquecida, mas elipses, o romancista escamoteia essa descrição de acon-
a insurreição, a violência, a luta de morte entre um tecimentos e ocupa-se en1 exclusivo da sua influência,
exército triunfante e um punhado de homens. Claire apre- encontrando-se, pois. o que conta entre eles. O assunto
senta-se como uma crónica mantida por Jean. o narrador. do romance, o local, o intervalo cronológico, a frequência
enquanto que La Condition humaine se aproxima, pela e a força dos acentos dramáticos, a personalidade e o ideal
sua construção, da tragédia de tempos fortes bem marca- dos protagonistas, a amplitude e a natureza do conflito,
dos, de actos e cenas demarcados com nitidez. numa palavra, a visão do mundo do autor, dão à narrativa
O romance, de modo geral, e tal como o cinema, apa- o seu porte específico.
rece solicitado por estas duas formas da narrativa flexível,
aberta, que pode acolher nar,ação de aventuras, descrições.
reflexões pessoais, digressões, segundo um ritmo muito Início e desenlace
1ivre e que parece entregue ao puro prazer do autor - por
exemplo. em Le Hussard sur le toit de Giono- ou, de Alguns compassos da abertura resumem a ópera que
outra parte, da narrativa organizada com rigor, como uma ela introduz; do mesmo modo. a primeira página dá-nos
peça de Racine, cujos episódios se impõem todos pela: sua o tom, o ritmo, por vezes o assunto de uni ron1ance.
necessidade e yue progride segundo uma linha tensa para La Chartreuse de Parnze, Germinal, La Condition humaine
o desenlace - por exemplo. a maioria dos romances de ou Aurélien de Aragon estão já. em potência. no parágrafo
Mauriac. As duas fonnas, aliás. podem muito bem com- inicial. O romance de Stendhal começa com uma alegria
binar-se: Camus apresenta La Peste como uma crónica de conquistadora: a entrada de Bonaparte em Milão não é o
«curiosos acontecimenlos que se produziram em 194. em assunto do livro. mas o acontecimento que vai determinar
Oran», mas divide-a em cinco partes que evocam com o despertar dos italianos. o seu reaprender da bravura, do
evidência os cinco actos duma tragédia clássica, A intriga prazer. da paixão, que se encarnam em Fabrice e na San-
pode. pois, evoluir segundo um movimento contínuo, por severina. Gern1ina!. livro feroz de miséria e de revolta.
vezes por imperceptíveis movimentos - era o caso de abre sobre un1a paisagem nocturna de -Uul plaino raso,
Madame Bovary, um século antes das narrativas de Natha- varrido pelas rajadas de Março, onde um homem caminha.
lie Sarraute e de Marguerite Duras-, ou por um jogo de Aragon disse muitas vezes que os seus romances safam da
acontecimentos espectaculares, equivalendo a golpes de pdmeira frase: «A primeira vez que Aurélien viu Bérénic.e,
teatro. por exemplo em Jules Verne ou em Notre-Dame achou-a francamente feia. Desagradou-lhe. enfim. Não
de Paris; ora a sua descrição constitui o essencial da gostou do n1odo como ela estava vestida ... ». Todo o
58 59

romance cabe, com efeito, na evolução da relação entre Duas frases lacónicas recordam o destino de Fabrice,
as duas personagens, ou, mais exactamente, nas flutuações da sua tia, do conde Mosca e do soberano de Parma no
dessa primeira imagem que . Aurélien tem de Bérénice. final de La Chartreuse:
O livro de Malraux começa por urna punhalada, pergut;l-
tando-se o terrorista face à sua vítima adormecida en1 que Numa palavra, a condessa reunia todas as
momento e corno há-de desferir o golpe: aparências da felicidade, mas sobreviveu sô
muitíssimo pouco tempo a Fabrice, que ela a.do·
rava, e que não passou senão um ano na sua Car-
Ousaria Tchcn erguer o mosquiteiro? Daria
tuxa.
o golpe através dele? A angústia retorcia-lhe o
estômago; conhecia a sua própria firmeza, mas.
As prisões de Parma estavam vazias, o conde
nesse instante, não era capaz de pensar nela sertão imensamente rico, Ernesto V adorado pelos seus
com pasmo, fascinado por aquele amontoado de súbditos que comparavam o seu governo ao dos
musselina que caía do tccto sobre un1 corpo grão-duques da Toscânia.
menos visível do que uma sombra, e donde saía
apenas esse pé 1neio inclinado pelo sono. vivo Na última página de Germinal, o mesmo Etienne refaz
apesar de tudo- carne de homem. o t-rajecto inverso na estrada que atravessa a região
mineira, mas «agora, no céu aberto. o sol de Abril raiava
em sua glória, aque.cendo a terra criadora». O romance
É tradicional este processo, que consiste em começar o de Aragon termina com o gesto de Aurélien levantando
Jivro com a acção já determinada, -~ill~tnçftil~.S.:- res, _para a cabeça de Bérénice, a úníca mulher que ele amara, morta
em seguida voltar atrás, mais ou menos I0ngamente, por uma bala perdida. Em La Condition hu11111ine, o velho
com fins explicativos sobre uma época anterior; mas Gisors e May. sua nora, que foram quase os únicos a
Malraux dá ao seu ataque uma brutalidade rdorçada sobreviver à repressão, evocam a morte de Kyo: a reva..
pelo claro-escuro e pela iluminação intermitente: «Um lução abortou, mas não está vencida, e May não renun-
grande rectângulo de electricidade pálida, cortado pelos ciou: «lá quase que não choro agora, diz ela com um
pinásios da janela, um dos quais raiava ·a cama precisa- orgulho amargo». Os quatro romancistas põem ponto
mente por cima do pé, como para lhe acentuar o volume final nos destinos das .suas personagens e nada mais há
e a vida». Sombra e luz que sublinham um detalhe, o a acrescentar à história, ou somente o interrompem e a
golpe a desferir, a angústia, o homicida que se interroga narrativa que acaba foi apenas um episódio numa vida:
num relâmpago, eis já todo o livro. assim. Etiennc e May continuarão talvez a sua luta pela
60 61

justiça. A morte de Bérénice apanha-nos de surpresa, mas dente e sem esta conversão in extremis o desígnio de
que outra saída se oferecia· a um amor impossível? Estes Bourget não seria realizado. Inversamente, Diderot dá a
desenlaces imp6em-se pe1a sua Jógica, pela sua necessi- Jacques /e Fataliste um fim que não o é: que é feito verda-
dade, pela riqueza da sua significação e os prolongamentos deiramente ele Jacques? é lançado para a prisão? é feliz
que eles deixam entrever. recomeça1n com força para no lar? é enga ;ado pela mulher? Estes dois desenlaces
«desenlaçar» as antíteses. as oposições e os conflitos sobre são igualmente reveladores da significação dos dois roman-
os quais repousam esses romances: fracasso e êxito, atrac- ces, que querem transmitir ao leitor uma «mensagem»
ção do nada ou fé nas possibilidades do homem, felicidade precisa para o converter ou despedir-se deixando-lhe pen-
e sofrimento, nlorte e a1nor ou renascimento. Nas últimas sar o que melhor lhe pareça.
páginas de um ron1ance, o autor entrega-nos frequente- A concordância entre o início e o final aparece como
mente a chave do universo que edificou, a menos que uma prova de coerência na construção da narrativa e tam-
escolha escamoteá-la por uma pirueta, ou estrangular a bém como um meio privilegiado, para o romancista, de
intriga para se tirar de apuros. A intervenção providencial. exprimir o seu pensamento, até a sua visão do mundo.
o deus ex machina ou o golpe de teatro final que salva Desde as primeiras páginas são postas questões às quais
os bons e confunde os maus nem sempre é um efeito de o desenvolvimento e sobretudo o desenlace trarão uma
arte: o ron1ancista podt: querer surpreender. até enganar resposta. O exemplo do romance policial é, a este res-
a expectativa do .leitor, mas é necessário sobretudo que a · peito, particularmente probatório, pois que ele se apre-
história acabe bem para o satisfazer e para salvar a moral senta amiúde como uma intriga pura, isto é, na qual as
iI, 1 É, por assim dizer. uma lei do géner<>- no romance-folhe- personagens e, por maioria de razão, as ideias contam
•I menos que o problema a resolver:
tim destinado a um público popular. Marcel Allain, o
l autor de Fantômas, recorda como ele não podia fazer
; 1
morrer o seu herói, porque o público «pedia mais». Em O policial de romance, escreve Roger Caillois,
'
! Les Misérables de Victor Hugo: ,J®n Valjean, o forçado tenta responder às quêstões tradicionais que se
que se tornou defensor dos oprimidos. reverá antes de esforça por resolver o juiz de instrução da reali-
morrer Cosette. a jovem orfã que ele adoptou. e Cosette dade: quem? quando? onde? porquê? Elas sus-
desposará Marius que ela ama: o leitor de Hugo tem citam, aliás, um interesse desigual: uma delas, o
necessidade de ver- satisfeita a sua exigência de justiça. como. constitui ordinariamente o problema essen-
Na última página do Disciple de Paul Bourget. Adrien cial (").
1,
Sixte. o filósofo ateu que inspirou uni crime com a sua
doutrina. reza e chora. A intenção moralizadora é evi- ( 17 ) Roger Caillois, Puissances du roman, p. 98 .

.l
62 63

Da aproximação sistemática entre início e final, Roland episódios, sendo o fio condutor assegurado pelo projecto
Barthes tira um método de análise estrutural de um de Schéhérazade que tem de captar sempre o interesse
romance:,. ((Estabelece~. primeiramente, os dois conjuntos- do sultão para evitar ser mandada matar. Trata-se aí de
-limites, i~i~i~l e terminal, e depois explorar por que vias, uma sequência de narrativas mai~ do que de um romance,
atràvés de qu~ transformações e mobilizações o segundo mas muitos dos «verdadeiros» romances tendem também
,!eencontra o pri~e~ro. ou dele se diferencia: deve-se. em pelo seu pululamento interior, a rebentar: La Comédi:
sÜfüâ~.·~deffnir a
passagem Je Uffi equilíbrio a OUtIO, atra- hun1aine oferece a imagem de um mundo prestes a ultra-
vessar a «caixa preta».»( 1 ;s). Ele mostra, assim. que, em passar o seu criador. E como resumir Le PCre Goriot:
L'lle mystérieuse de Jules Verne, os primeiros capítulos é sobretudo a história de um amor paternal infeliz, a de
anunciam dois ternas: o do «desnudan1ento original>> - que um jovem ambicioso que se promove na sociedade ou a
Barthes chama «código adâmicm> -, porque os náufragos de um ser maléfico que sonha dominá-la toda intefra?
lançados para a ilha não têm, a exe1nplo dos primeiros O rom·ance é feito destas entrelaçadas intrigas, principais
homens. outros utensílios para alén1 das sUas mãos e da e secundárias, segundo uma termino1ogia que nem sempre
,1 sua cngenhosidade, e o do <(desbravan1ento». JaJo quu é de emprego fácil.
' i.1 esses náufragos lançarn-sc. para sobreviver. na exploração
dos recursos da ilha. O último capítulo mostra os cinco A cornposição
homens, que escaparam à destruição da ilha, transfomia- Quer se trate de um vasto conjunto, quer de um
dos em prósperos colonos nutn Estado americano: «Ü flo-
romance isolad~ a composição aparece como uma exi-
rescer opõe-~c à decadência, a riqueza à penúria».
gência fundamental, a tal ponto que se pôde por vezes
O «quadro» final responde às questões postas no quadro atribuir-lhe uma prioridade absoluta. Para Paul Bourget,
inicial, descobrindo, portanto. a sua aproximação as linhas ela é uma «qualidade sem a qual não há obra-prima per·
essenciais da intriga e dos temas. feita», aquela que, com a análise psicológica, assegura,
O desenvolvimento central pode dar lugar a n1uitos a seus olhos, a superioridade do romance francês sobre
encaminhamentos diversos. a bifurcações. a peripécias Wi/helm · Meister, David Copperfield, Anna Karenine ou
mais ou menos Jigadas à linha principal da narrativa. A,, Don Quijote. Nurúa palavra, «é uma virtude nacional
mil e uma noites apresentam uma intriga ininterron1pida, que nunca deve ser sacrificada» ("). para a qual ele des-
em que os episódios se ajuntam e se encaixam noutros
19
( ) Paul Bourget, «Note sur Je roman français en 1921»,
(18) Roland Barthe~, <(Par oú cornmencer?», in Poétiqtte in Nouvelles pages de critique et de doctrine, vol. 1, Paris, Plon,
n. 0 1, 1970, p; 4. 1922, pp. 126-130.

'
I

.
.
64
65
cobre também uma justificação estética: «A composição
no romance não é mais do que isto: um ponto de vista. crítico distingue um «romance passiva» - do qual Gil Dias
. . . ' - ,q,,._,...._,_,
Con1por é, .~Q~~'-. para o escritor, conformar-se à propna de Lesage represeií!aiíã' omodelo francês-, tipo que
'lü;iféiÍa 'J~· ;ida. Não compor é colocar-se no artificial. «agrada particularmente» a Dickens ou George E!iot:
porq~7~é f~í~~ãr~'e5sa n1ari::ha e pintar o que não pôde ser «Toma como sua unidade simplesmente a unidade de
conhecido». O mesn10 princípio serve, noutras penas. par.a uma existência humana, que é contada e que para ele cons-
justificar, se não a ausência, ao menos uma grande 1fbe_r~ titui um centro. É, em suma, o tipo mais simples e mais
dade na composição, aquela com que Hugo, no seu estudo comum do romance». E, enfim, o «romance bruto, que
sobre Quentin Durward, dota o «romance dramáfü:p», cmo tinta uma época», «na sua compleXlãaãe,oe tcíifua a dar
qual a acção imaginária se de;?nn;J~-~;i';"q~;dros verda- wiiâ"'iiiipressao de tempo múltiplo, de força inesgotável,
deiros e variados, como se desenrolam os acontecimentos de um ritmo de vida social que excede qualquer repre-
reais da vida: que não conhece outra divisão para alé1n sentação individual, qualquer existência individual, e que
da das diferentes cenas a desenvolver». Estas tomadas de não pode ser reduzido ao desenvolvimento de um orga-
posição conduzem finalmente a pronunciar exclusões e nismo individual sem se desfazer e desnaturam: Les Misé-
excomunhões, e a de nourget está manchada por um espí- rab/es ou Guerra e Paz e, «numa escala um pouco redu.
rito nacionalista de todo alheio à reflexão literária; é zida». lean-Chn'stophe de Romain Rolland. Thibaudet vê
absurdo querer provar a superioridade de uma produção nestas obras «uma estética de composição aberta, de
artística nacional sobre uma outra. Bourget, contudo, tempo, de espaço» em que reside a «verdadeira natureza»
Eaz-se porta-voz de uma concepção do romance bem do romance. Thibaudet responde, p 0is, a Bourget nos
enraizada na literatura francesa e que atingiu uma quali- anos 1910-1920, cruciais para a evolução do género(")-
dade tal que se chega a julgá-la a única possível: a fü.na- Esta controvérsia não somente opõe duas ideias do
gem de obras que passa por La Princesse de Cleves, Ado!· romance, sob o ângulo particular da composição, mas
phe e Thérese Desqueyroux e se aproxima do que Thi- marca uma mudança considerável na maneira de conceber
baudet chama....Q «romance activm>,
~'~·---~,._,,_______ - que «isola e desenrola
a relação entre a obra de arte e a realidade. Na sua
um episódio significativo», obra de composição metó- correspondência ou nos seus livros de notas, os criadores
dica»(") em que cada elemento é cuidadosamente colo- apresentam pontos de vista preciosos sobre a sua maneira
cado no seu lugar e subordinado ao conjunto. O mesmo de compor e, mais geralmente, sobre as dificuldades e a
importância da composição num romance. Stendhal, numa
(2P) Albert Thibaudet, Réfle:i:io-ns sur le roman. Paris,
( )' Sobre estas controvérsias, veja-se ~ichel Raimond, La
21
Gallimard, 1938, pp. 18-23.
Crise du roman, pp. 893-400.
67
66

carta a Balzac de 16 de Outubro de 1840, confessa-se cendo esta apenas em último lugar. Durante quatro anos
totalmente refractário à composição metódica: e meio, a obra organiza-se, pois, segundo o ritmo de um
«brotamento» de conjunto que a faz avançar em bloco.
Eu fizera, na minha juventude, alguns planos Ao invés, Zola põe-se em geral a redigir logo que fechou
de romances, e escrevendo planos gelo. a construção do plano nos seus detalhes. Para La Bête
Componho vinte ou trinta páginas. depois humaine, por exemplo ("). traça um primeiro esquema
tenho necessidade de me distrair, um pouco de de conjunto em que se desenham os principais episódios,
amor, quando posso, ou um pouco de orgia: no desenvolve-os, enriquece-os, liga-os de forma a obter uma
dia seguinte, de manhã, esqueci tudo, e. lendo trama cerrada de acontecimentos, aprofunda as persona-
as três ou quatro últimas páginas do capítulo da gens, precisa o quadro utilizando os documentos que
véspera, vem-me o capítulo do dia. Ditei o livro reuniu sobre a vida dos ferroviários, sobre os acidentes
que protege [La Chartreuse de Parne] em sessenta de caminho de ferro, sobre a magistratura. Contraria-
ou setenta dias. Era apressado pelas ideias. mente ao que muitas vezes se crê, a pesquisa dos documen-
tos segue-se à redacção do Esboço, que por seu turno pre-
Ao contrário, o exemplo célebre da génese de Madame cede a redacção de vários planos detalhados: quase todos
Bovary mostra uma lenta progressão tacteante e dolorosa, os elementos da narrativa estão no seu lugar e Zola redi·
em que cada página escrita é constantemente reposta em ge-a em nove meses. Stendhal compõe, por assim dizer,
questão. Flaubert estabelece planos sucessivos: a partir ao correr da pena; Flaubert arqueja a cada parágrafo, a
de um primeiro esboço, centrado mais sobre a psicologia cada frase, a cada palavra; Zola não se arrisca a escrever
de Emma do que sobre factos, redige seis argumentos de senão quando a obra completa se desdobra já sob os
conjunto e uns sessenta argumentos parciais, cada um dos seus olhos.
quais vem modificar o precedente (") por adições donde O romancista «compõe» em cada etapa da sua criação,
se destacam pouco a pouco alguns parágrafos: «Patinho quer escreva uma frase muito equilibrada e muito ritmada,
num atoleiro contínuo que desaterro à medida que ele conforme ao movimento da página, ao seu espírito, às suas
aumenta». A linha geral permanece inalterada, mas as intenções, quer construa um plano subordinado a essas
cenas desenvolvem-se sem cuidados das proporções, nem mesmas ex1gencias mas que põe também problemas de
da divisão em partes, nem da divisão em capítulos, apare- articulação, de ligações e de correspondências entre os

(22) Veja-se Claudine Gothot-Mersch, La GenBse de Madame ( 2 ª) Veja-se Emile Zola, Les Rougon-Macquart, vol. IV,
Bovary. Paris, Corti, 1966. Paris, Gallimard, col. •La Pléiade», 1966, pp. 170'\1752.
68 69

episódios, de variedade e de unidade. Stendhal preocu· os capítulos, as partes, o conjunto da narrativa. Ao mesmo
pa-se sobretudo com «contar com verdade e com clareza» tempo, um romance é composto «horizontalmente» -
e quase só fala, no campo da composição, em «reduzir» enquanto sucessão de episódios em que se desenvolvem
desenvolvimentos demasiado longos («acabo de reduzir, situações, implicando diversas personagens, motivos e
esta manhã, a quatro ou cinco páginas as cinquenta e ternas, que por sua vez reaparecem, se transformam, se
quatro primeiras páginas do primeiro volume de La fundem ou bifurquem - e é composto «verticalmente» -
Chartreuse»). Para ele, o «primeiro jato» supera, em ver· cada página, cada episódio organiza esses diversos elemen-
dade e em «natural», a prosa polida e repplida. Zola tos em ordem e em proporções variáveis. Um método de
cuida de «distribuir» as personagens nos diversos capítulos, análise estrutural como o de Guy Michaud permite ler a
nos diversos planos de cada episódio, com «o caminho de composição segundo estes dois eixos. Em Les Faux-
ferro por fundo, o progresso que passa diante da besta -Monnayeurs, cuja composição assimila à de urna fuga,
humana>>. Interroga-se sobre como terminar tal cena e o ele mostra através de gráficos, por um lado, 0 desen-
próprio romance, escolhendo entre várias soluções; per- volvimento dos assuntos, respostas e contra-assuntos em
gunta-se sobretudo como conectar fortemente as cenas e toda a narrativa, e, por outro lado, os acordos e as dis-
as personagens, de. maneira que «as diversas partes se cordâncias que se estabelecem entre esses diversos elemen·
comuniquem com o máximo de complicação e de lógica». tos no quadro de um capítulo ("). As relações entre as
Quanto a F1au bert, a sua correspondência revela toda uma partes e o todo da narrativa aparecem assim visualmente
arte poética do romance: «Limo e raspo frases com como numa partitura musical.
afinc0»; nunca se satisfazia com os encadeamentos. Na senda de Bourget, Albert Thibaudet reconhece o
sendo particularmente difíceis de realizar os dos senti- fundamento da distinção entre composição do episódio
mentos; sente como necessário «desenroscar, soltar as e composição do conjunto, mas sublinha também as exi-
junturas», para que os parágrafos não fiquem hirtos. mas gências particulares de tratamento que implica o episódio,
«resvalem» uns sobre os outros e sustentem o «movimento»; consoante pertence a uma novela. «que concentra», ou a
a falta de proporção material entre as diversas partes de um romance, «que estende e dispersa». Numa obra de arte,
Madame Bovary inquieta-o e a «ausência de ordem» do a estrutura do conjunto condiciona a das partes (é um
detalhe paraliza a redacção; os diversos planos, no sen- lugar-comum relembrá-lo); mas_ o que não parece ter sido
tido pictórico, devem fundir-se, diálogo e narração entre- sempre tão evidente, a julgar pela controvérsia Thibaudet-
laçar-se, etc.. Assim se desenham, num romance, vários
«níveis de composição», consoante se considera a unidade 2
( 4.) Guy Michaud, L'Oeuvre et ses techniques. Paris, Nizet,
narrativa reduzida - o episódio, até a micro-narrativa-, '
1957, p. 169.
'
71
70

-Bourget, é o carácter arbitrário das regras de composi- ros, foi o seu fantasma que puxou, açulou o escri-
1 ção. A arte de bem compor não tem receitas e o ideal tor, excitou a sua sede, fustigou a sua energia-
1
' clássico não é um dogma. Cada romance põe ao seu autor
foi à sua luz que, por vezes, páginas inteiras do
·. um problema particular e único, e, contrariamente ao que livro foram escritas (").
1
· pensava Brunetiére, L'Éducation sentimental não é menos · É esta nostalgia do «livro infinito» que, a coberto de
1
bem composto do que Madame Bovary. «Cada obra a uma intriga policial, exprime a novela de Jorge Luís Bor-
fazer», escrevia Flaubert a L. Colet (23-24 de Janeiro de i) ges intitulada O Jardim dos caminhos que se bifurcam:
1854), «tem em si a sua poética, que é necessário desco- \. nostalgia de um romance-la~irinto id"'.11, fonddado nodca~s
brir». Um processo não tem um sentido em si, mas tira•o :;,, e na contradição, e1n que sao suscept1veis e se pro uz1r
do conjunto do rorr1ance; numa palavra, todo o rom::-lnce '' todos os desenlaces, pois que cada um deles é o ponto de
tem uma composição específica. partida de novas bifurcações, até ao esgotamentn de todos
Em cada página que escreve, apresenta-se ao roman- os possíveis:
cista uma multidão de ron1ances possíveis: factos que
poderiam ser contados, personagens que pedem para nas- Em todas as ficções, de cada vez que diver-
cer, criação virtual similar à que Supervielle evocou em sas possibilidades se apresentam, o homem adopta
uma e rejeita as outras; na ficção do quase inex-
1·,;
1
certos poemas de Gravitations.
[, trincável Ts'ui Pên, ele adopta-as todas simul-
i taneamente. Cria assim diversos futuros, diver-
1 A cada volta do livro, escreve Julien Gracq,
um outro livro, possível e até muitas vezes prová- sos tempos que proliferam também e bifur-
vel, foi rejeitado para o nada. Um livro sensi- cam. Daí, as contradições do romance ('").
velmente diferente, não só nisso de superficial Gracq conheceu. ele próprio, «a pista sinuosa da viagem
que é a sua intriga, mas também nisso de funda- do autor através do deserto das páginas brancas», por
mental que é o seu registo, o seu timbre, a sul!. exemplo nos sues dois últimos romances:
tonalidade. E esses livros sucessivamente dissi- Toda a primeira parte do Balcon en forêt foi
pados, rejeitados aos milhões para os limbos da escrita na perspectiva de uma missa da meia-
literatura- e é nisso que interessariam ao cri- -noite em Falizes, que devia ser um capítulo muito
tico preocupado com explicar perfeitamente-,
esses livros, que não viram a luz da escrita, de (2õ) Julien Gracq, Lettrines. Paris, Corti, 1967, pp. 27-28.
uma certa maneira contam, não desapareceram (26) Fictions.. tradução de P. Verclevoye e N. !barra, Paris,
por completo. Durante páginas e capítulos intei- Gallirnard, 1957, p. 126.
72 73

importante e que teria dado ao livro, com a cimentos desenrolam-se sob os nossos olhos, com actores
introdução dessa tonalidade religiosa, uma base - ou narrativo - logo, feito por intermédio de um narra-
de todo diferente. E Le Rivage des Syrtes, até ao dor. Esta distinção foi aprofundada e aplicada à análise
último capítulo, avançava em regra para uma do romance sobretudo por Henry James, depois por Percy
batalha naval que nunca se travou("). Lubbock e por numerosos críticos anglo-saxónicos: eles
falam de narrativa cénica, ou mais simplesmente de cena
E Gracq aconselha aos críticos que concedam um (inglês: scene), e de resumo (summary). A estes dois
<dugar muito grande aos incidentes do caminho», de pre- modos, deve acrescentar-se a descrição e'i.
para obter.
ferência a especularem sobre a composição... Quaisquer a gama de processQs narrativos de que dispõe o roman-.
que sejam as razões que Jevam o romancista a, em dado cistá.
momento, inflectir o seu livro em dada direcção·, a escre- O primeiro capítulo de La Chartreuse de Parme é
ver um dos livros que se lhe apresentam em vez de tal constituído, em grande parte, por uma visão de conjunto
outro - essas razões escapam-lhe talvez na maioria das da ocupação da Lombardia pelos exércitos de Bonaparte,
vezes-, o leitor encontra realizado um certo número de interrompida pela recepção do tenente Robert no palácio
virtualidades: o romancista compraz-se em determinado da marquesa dei Dongo, a qual constitui uma cena: o
episódio .:iue ocupa longamente o primeiro plano da narra- tenente olha as suas roupas e os sapatos rotos, explica-se
tiva ou recolhe à pressa acontecimentos que se estendem enfim face à marquesa em «todo o esplendor da sua
por vários anos, personagens apenas desenhadas passam beleza», enquanto a pequena Gina faz por não se rir.
para último plano, outras invadem o livro pel~s suas O resumo retorna em seguida: «Esta época de felicidade
palavras, os seus dilemas, os seus actos bem sucedidos ou imprevista e de embriaguês não durou mais do que dois
falhados, as imagens e as recordações que as assaltam. curtos anos ... ». Madame Bovary, ao contrário, abre· por
uma cena («Estávamos no salão de estudo, quando o reitor
Jj
entrou, seguido por um novo vestido à burguês ... »), a do
1

Cena ou resunw? pobre Charles ridicularizado pelos seus novos camaradas;


'
depois Flaubert resume a história dos pais e a infãncia
Para dar vida às suas personagens, o romancista pode de Charles, o fim dos seus estudos médicos, o seu casa-
utilizar e combinar os dois «n1odos» de imitação poética mento. até ao capítulo II («Uma noite, pelas onze horas,
(mimesis) que distinguia Aristóteles: directo- os aconte- foram despertados pelo barulho de um cavalo ... ») ini-

(27) Julien Gracq, I.ettrines, pp. 28-29.


(28) Cf., ·infra, o capitulo sobre o e!:lpaço, pp. 130 e segs ..
74 75

ciado por uma cena. Em geral, os dois modos da narrativa quarenta e três pessoas, em que se ficou dezasseis
misturam-se mais do que se opõem e, por exemplo, o horas à mesa, que recomeçou no dia seguinte
resumo da vida de Charles abunda em cenas de algumas e ainda um pouco nos dias mais próximos.
linhas ou que permanecem apenas em gérmen: «Abria a
janela e encostava-se. A ribeira, que faz deste bairro de Estes três parágrafos do final do capítulo III apresen-
Rouen como que uma ignóbil V enezazita, corria em tam a passagem ~~!'l'?.~! com uma flexibilidade
baixo, sob os seus olhos, amarela, violeta ou azul entre as que Flaubert só com muito esforço obteve. Stendhal, por
pontes e grades». O deslizar de um modo para outro é, seu turno. cuida frequentemente muito pouco das transi-
por vezes, quase insensível: ções; termina" abruptamente uma cena («0 leitor acha
esta conversa longa: contudo. dispensamo-lo de mais de
À tarde, no salão de estudo, tirou os mangui- métade; ela prolongou-se ainda por duas horas. O Rassi
to.s da carteira, pôs em ordem os seus peque- saiu de casa do conde louco de felicidade ... »)("), ou
nos apetrechos, dispôs cuidadosamente o papel. escamoteia um resumo («Aqui, pedimos permissão de pas-
Vimo-lo trabalhar conscienciosamente, procu- sar, sem dizer uma palavra a seu respeito, por cima de
rando todas as palavras no dicionário e tendo uma um espaço de três anos. Na época em que reata a nossa
grande canseira. Graças, sem dúvida, a essa boa , narrativa, havia já muito tempo que o conde Mosca estava
vontade de que deu provas, não teve de descer de regresso a Parma .. )("). Aceleração, ruptura, ou to, -
para a classe inferior; porque, se sabia menos mal : rente contínua, desenvolvimento modulado: o ritmo nasce
as regras. pouca elegância tinha nas construções. · do emprego diverso dos dois modos narrativos.
Fora o cura ela sua aldeia que o tinha iniciado Em que casos é que o romancista reco~J:esuw.o
no latim, visto os pais, por economia, só o terem ºJ!_.gw.uatilla,. panqríimihílu?•... A acção, na Chartreuse,
enviado para o colégio o mais tarde possível. ···~omeça verdadeiramente em 1815, quando Fabrice se
reune ao exército de Napoleão na véspera de Waterloo.
As frases dois e três operam aqui a transição da cena mas o livro começa por um retrospecto dos vinte anos
para o resumo. precedentes. Este resumo é necessário, simultaneamente,
para compreender Fabrice e a tia. a Sanseverina. os
No dia seguinte, logo às nove horas, estava
na quinta[ ... ]
( 29 ) Stendhal, La chartreuse de Parme. Paris, Le Livre de
O inverno passou-se nesta expectativa[ ... ] poche. 1962. p. 301.
[ ... ] Houve. pois. uma boda, a que vieram (") . lbid., p. 501.
76 77
móbeis da sua partida e, de maneira muito mais ampla, o descritas do exterior no momento em que se desenrolam,
impacto causado pela chegada de Bonaparte a Milão, o sem que o autor resuma jamais factos anteriores ou retro-
despertar da paixão no meio do tédio das pequenas cortes ceda sobre o passado das personagens. Ele nunca explica
de príncipes. As circunstâncias históricas, o meio fami-
- mostra comportanlentos. Caso extremo ligado a uma
liar, o passado e a personalidade de duas personagens ideia preconcebida de descrição «behaviorísta», que parece
são, portanto, apresentados sob a fonna de panorâmica. sem homólogo autêntico na literatura francesa. mas de que
Este modo pode servir muito simplesmente para fornecer se aproximam os romances de um Robbe-Grillet, os de um
infom1ações, ou estabelecer ligações entre diversas situa· Ricardou, ou, na literatura italiana. as novelas de Pavese.
ções, passar por alto sobre factos pouco importantes na A arte «tradicional» do romancista consiste em situar as
óptica da narrativa, antecipar o futuro, imaginar o possí- oenas no lugar certo da narrativa, quer elas sejam tidas por
vel. .Q.. 1.iarra.d()r . pode igualmente aí introduzir os seus desenroladas directamente diante de nós ou, como na obra
. juízos sobre as personagens que nos faz aperceber de de Proust, através da memória de uma personagem, na
· relan~e. por consequência com recuo. Este modo é fre- ocorrência o narrador. A cena da aos factos descritos um
quentemente empregado nos desenlaces, em particular carácter único, representativo, logo decisivo, que corres-
no último capítulo de Madame Bovary e na última página ponde a um momento acentuado da curva dramática:
de La Chartreuse; as personagens afastam-se de nós, o um acto importante ai tem lugar, as personalidades ai se
essencial do seu destino está consumado, resta-lhes apenas revelam) os sentimentos dominantes ou os · conflitos aí
desaparecer de todo, e uma espécie de calma triste esten- eclodem. A cena liga-se, por vezes, como no romance
de-se sobre o·.finaJ ~-
da sua história. picaresco, à fantasia do romancista que mostra por prazer,
A custo se concebe um romance que não fosse senão mas em geral ela corresponde a uma necessidade interna
narrativa paJlorâJllica._ O escritor experimenta sem cessar da história. Flaubert optou por apresentar o seu Charles
a·ríecêSsidacle cle·d~t~ o olhar sobre uma personagem que Bovary logo na primeira página do romance talvez para
o solicita. de a fazer agir diante dele e diante de nós, de começar in medias res, mas talvez sobretudo porque toda
deixar crescer os gérmens das cenas que a história contém a personagem grotesca e lastimável se manifesta na sua
em profusão. «Dramatizai, dramatizai», recomendava entrada no salão de estudo; nada mais haverá a acres-
Henry James. no sentido de «escrevei cenas»; é preciso centar ao retrato de Charles, contrarianlente ao de Elruna,
chegar a «particularin1r claramente», dizia F1aubert a recortado por secções que Flaubert disseminou nos pri-
Maupassant, com uma intenção comparável. A Chave de meiros capítulos. Stendhal mostra Fabrice no campo de
vidro. de Dashiell Hammet, é um romance tratado unica- batalha em Waterloo e no campanário do abade Blanês,
mente sob a forma de cenas; as situações são sempre mostra o encontro de Mosca e da Sanseverina no teatro
~--

78 79

- outros tantos momentos decisivos na vida das persona- dito ... »("), ou indicada mais vagamente: «Ü conde passou
gens e na economia da narrativa-, mas é também muito toda a noite no [camarote] onde tivera a felicidade de
revelador ver as cenas que o autor não quis escrever. encontrar a Senhora Pietranera ... »("), ou sugerida por
Stendhal não mostra a morte do príncipe envenenado por detalhes exteriores: factos que se produzem, luz que
ordem da Sanseverina, nem o casamento de Oélia com varia, etc.. Uma acção desenrola-se: Emma e Charles
o marquês Crescenzi, nem mesmo a reviravolta que se bebem, Charles observa Emma que cose, que se cala ou
operou no espírito de Emest-Ranuce: este promete à fala da sua vida; Mosca observa a Sanseverina, fala a si
Sanseverina agraciar Fabrice, mas no dia seguinte assina mesmo interiormente, vai até ao camarote da jovem. diz o
o auto de acusação. A elipse produz aqui um feito mais seu tédio por viver em Parma, oferece a sua amizaded. Des-
poderoso do que o que teria feito uma cena analisando as crições, retratos, narração, análise, monólogos, diálogos
razões do príncipe. - em estilo directo nesta cena de La Chartreuse ou indi-
recto ou indirecto livre na de Flaubert - alternam em
proporções variáveis, para dar à cena um desenvolvimento
A parte e o todo linear.
A construção a várias vozes ou «em forma de fuga»,
_,, Uma cena está submetida, num romance, a princípios sobre a qual, por exemplo, Gide construiu todo o seu
de unidade- lugar, tempo, acção - e, como veremos, em romance Les Faux-Monnayeurs, encontra-se igualmente
certa medida, de ponto de vista. O autor indica, com na compo~-ição, cOm dimensões mais restritas, de uma
maior ou menor precisão, o quadro fisico: muito subli- cena. Les Rougon-Macquart abundam em passagens onde
nhado por Flaubert na cena em que Charles vem a Les se entrelaçam conversas. intrigas e, logo, histórias diferen-
Bertaux ver Emma, na cozinha com guarda-ventos fecha- tes; por exemplo, no capítulo UI de Nana, em que, num
dos; apenas indicado por Stendhal na cena em que Mosca salão, grupos de homens e de mulheres trocam mexericos
vê do seu camarote a Sanseverina: «Lembrou-se que às e alusões, organizam o seu serão do dia seguinte, etc.. Na
oito horas o teatro da Scala abria; entrou nele e viu última página de L'Oeuvre, combinam-se a descrição de um
somente dez pessoas naquela sala imensa»("). A duração combóio que passa ao fundo do cemitério, a oração do
da cena pode ser medida cronologicamente: «Ele [Charles] padre junto à tumba de aaude, a descrição do enterro e o
chegou um dia pelas três horas [... ]. À noite, ao voltar diálogo dos amigos fiéis ao defunto, o velho pintor Bon-
de lá, Charles reconstituiu todas as frases que ela tinha
(") Madmne Bovary, pp. 37-38.
(Sl) La Chartrettse de- Parme, pp. 94-95. (83) La Chartreuse de Pamae, p. 97.

'
1
80 81

grand e o escritor Sandoz. Madame Bovary contém o - Oh! não, é verdade que serei alguma coisa
exemplo bem conhecido dos conúcios agricolas. que Flau- no seu pensamento, na sua vida?
bert comenta nestes termos, numa carta a L Cole!, de 12 «Raça porcina, prémio ex aequo: para os
de Outubro de 1853: Srs. Lehérissé e Cullembourg; sessenta francos».

Se alguma vez os efeitos de uma sinfonia Todas estas vozes alternadas encontram-se, em defi-
foram transpostos para um livro, será ali! É pre- nitivo, no caricatural.
ciso que aquilo brame como um todo, que se A repetição de um motivo - personagem, objecto.
ouçam ao mesmo tempo mugidos de touros, sus- frase ou expressão, imagem - constitui um processo de
piros de amor e frases de adnúnistradores. Há composição rico ern possibilidades, seja ele utilizado numa
sol sobre tudo isso, e rajadas de vento que fazem cena ou alargado às dimensões de urna obra. A repetição
levantar os grandes bonés. pode servir simplesmente para caracterizar uma persona-
gem, assinalando nela um tique físico, uma mania, a pre-
A descrição do prado com o gado premiado, a con- sença de um objecto familiar("); ela dá a essa persona-
versa de Emma com Rodolphe, que quer dar-lhe um ar gem um relevo característico, torna-a imediatamente reco-
tão intimo quanto possível, alternam com os discursos nhecível e contribui por vezes para fazê-la entrar na
do Sr. Conselheiro e a proclamação dos resultados dos mitologia popular: Maigret é o inspector de cachimbo,
concursos num sábio contraponto, obra-prima de burlesco Tartarin de Tarascon é o caçador de leões entre os Teurs
triste. O efeito é produzido pelos desajustes de assunto (Turcos). Nos filmes que corriam antes da Guerra, Carné
e de estilo, os encontros (que diríamos fortuitos) entre ou Clouzot figura frequentemente alguma personagem
os berros dos animais e os discursos dos humanos, enfáti· )nquietante, vagabundo ou marinheiro. que representa o
cos on falsos, as grandes frases vazias de Rodolphe e a destino, como os 1notociclistas com capacete e vestuário em
recordação das realidades triviais: couro no Orphée de Jean Cocteau: a função simbólica
dessas personagens nas suas aparições e reaparições é
- Deste modo, eu, levarei comigo a sua recor- aqui manifesta. Estes retornos de motivos feriram a aten-
dação. ção, desde há muito tempo, de leitores e de críticos, ao
«Para um carneiro merino ... » ponto .de estes terem feito, por vezes, da pesquisa «temá-
- Mas esquecer-me-á, eu terei passado como· tica>> o método de análise por excelência da obra literária.
uma sombra.
«Para o Sr. Belot, de Notre-Dame ... » (34) Cf., infra, ó capitulo sobre as personagens, pp. 199-201.
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82 83

Em dada ocasião quis-se mesmo, até ao absurdo, reduzir imagens do subterrâneo (Germinal, La Bête humaine),
essa obra ao desenvolvimento de uma imagem-chave regis- da água, ligada por vezes à da Cité em Paris (La Curée,
tada pela consciência do escritor na infância: Edgar Poe L' Oeuvre): a primeira é amiúde associada à angústia,
aparece reconduzido à obsessão do relógio ou Gracq à ao medo, ao sentimento do inexorável, experimentados
recordação de um navio lançado ao mar... Jean-Pierre pelas personagens; a segunda ao amor carnal, à riqueza,
Richard mostrou, por exemplo, a importância do vocabu • mas também à plenitude interior. Estas imagens aparecem
lário ligado à alimentação ou às sensações tácteis em por vezes sob a forma de comparações insinuadas no
Flaubert, a permanência de certas «paisagens fugidias e decurso da narração. mas com frequência em momentos
planas» em Fromentin, os múltiplos efeitos de luz nos essenciais da acção -- na qual sublinham a importância
Goncourt. Assim, reencontrando certas imagens caracte- de uma peripécia - ou da evolução das personagens -
rísticas e destacando a sua função psicológica, Richard das quais dão um ponto de referência. O túnel de La Bête
remonta ao autor. à sua personalidade inconsciente. ao humaine serve de quadro, sucessivamynte, ao homicídio
seu acto criador. que Roubaud comete, verdadeiro início da acção, e ao
Contudo, o retorno de motivos ou de imagens tem, suicídio de Flore, primeiro tempo do desenlace, e vários
num romance, outras funções de ordem dramática ou acontecimentos se desenrolaram perto do túnel (colisão do
urquitectural, combinando-se por vezes essas diversas fun- combóio que Jacques conduz, amores de Jacques e da
• ções para dar ao motivo uma pluralidade de sentidos. mulher de Roubaud); em La Curée, o Sena é evocado
) Cada roUJfillce. ou conjunto de romances possui o seu duas vezes para lembrar a Renée a infância e a sua
\\ .filgp_rig sistema . de temas ~ de motivos, que é preciso · pureza, primeiramente no momento em que ela as vivia,
l decifrar. Em Le hussard sw /e toit, Giono. compara fre· depois, passados muitos anos, no momento em que ela
l quentemente os humanos a ratos ou a mseclos para compreende que as perdeu. ,j1, imagem é associa<!Laqui
estigmatizar o medo dos seres acossados pela peste, mas a uma situação, a um sentime~_tô:"'·~~íúO __O ·é ~~;-óperas de
1 :
1 estas metáforas animais estão, por assim dizer, ausent~ Wã'@ei.oléfímôtiv.· í5é cada v~z q~e o Swann de Proust
'
das outras narrativas do ciclo de Angélo a que pertence ouvir «a pequena frase de Vinteuil», reavivarse-ão nele «os
Le hussard. L' Oeuvre oferece, como todos os romances refréns esquecidos da felicidade»:
de Zola, uma rede muito rica de imagens: a mulher nua
que Claude tenta pintar figura o sonho a atingir; a barca Com isso, a frase de Vinteuil tinha - como
amarrada, lançada, depois encalhada, os avatares desse determinado tema de Tristão, por exemplo, que
sonho. De um romance para outro dos Rougon-Macquart, nos representa também uma certa aquisição sen-
reaparecem, entre outras, com particular insistência, as timental ~ desposado a nossa condição mortal,

j
84 85

ganho alguma coisa de humano que era bastante matéria-prima dessas obras consiste num número limitado
tocante. A sua sorte estava ligada ao futuro, à de elementos narrativos, algumas situações, personagens,
realidade da nossa alma, de que ela era um dos locais, actos, que são retomados com modificações por
ornamentos mais particulares. um dos melhor vezes muito pouco sensíveis na encenação, no desenrolar
diferenciados ("). dos factos ou somente no ângulo de visão. La Prise de
Constantinople, de Ricardou, apresenta-se como uma espé-
cie de enigma em que ~ preciso procurar a chave, o ponto
A la recherche du temps perdu abunda em motivos «de intersecção de todas as convergências» a partir do
.similares - perfumes, .quad~o _d,, vé@.ii;i, Çilinpanários qual se ordenam os diversos motivos, ou melhor, como
de }4àrtiriville, páviínento irregular do baptistério de São diz o próprio autor, as «figuras»: a postura que a jovem
Marc~s-, em torno dos quais se cristaliza à. Vidá inte· ~ deve reatar, a catarata longínqua, a cabeleira ruiva, a
rior do narrador. biblioteca das vidraças com reflexos complicados, as per-
Robbe-Grillet faz emprego permanente, nos seus roman- sonagens de uma narrativa de ficção científica, etc.:
ces e nos seus filmes do processo da repetição de um motivo.
O cubo de lava que serve de pisa-papéis (Les Gommes), As diferentes figuras propostas não parecem,
a mancha do insecto esmagado na parede (La !alou· pois, ilustrar um tema único. previamente deter-
sie), os rastos de passos na neve (Dans le labyrinthe), minado. Tudo parece antes nascer, progressiva-
o homem dos cães (L'lmmortelle).· as cenas do mente, de uma conjunção de cenas paródicas de
jogo (L' Année derniere à Marienbad) reaparecem com acordo com um funcionamento do qual, sem
uma persistência que faz nascer no leitor a obsessão, ou dúvida, apenas um ponto previlegiado do texto.
que figura,o enclausuramento das personagens num labi· buscado pacientemente num sentido e depois no
rinto ou~talvez a fatalidade. O retornocíclico de um outro, deve congregar as leis (").
elem~to é um processo de estrUtílrà-liW~~l!ta1, .a.ponto
1. de ser sistemático nas narrativas publicadas nas Edições
de Minuit - que são agrupadas sob essa falsa etiqueta de A necessidade da composição parece tão secreta, mas
«novo romance»-: em Robbe-Grillet como em Pinget, também tão rigorosa, como a da música serial, à qual
em Butor como em Ricardou. Na maioria das vezes, a não é _sem dúvida estranha na sua concepção.
.1
i'
(3!1) Marcel Proust, Du côté de chez Swann. Paris, Le Livre Jean Ricardou, La Prise de Constantfnople. Paris, Edi-
( 36 )

de poche, 1965, p. 4Í9. tion~ de Minuit, 1965, não paginado.


86 87

A estrutura destes romances contemporâneos repousa. tecto, preocupado em assegurar clareza e solidez à sua
portanto, na exploração sistemática das correspondências história, Zola não hesita em marcar com traço grosso as
internas entre os diversos elementos que a constituem. simetrias. O romance, de maneira global, apresenta-se,
Os romancistas utilizaram, desde há longo tempo, o pro· pois, como uma rede mais ou menos cerrada de corres·
cesso do paralelo ou o do contraste coro fins didácticos pondências interiores, de retrospectos, de ecos que o ana-
ou estéticos: duas cenas homólogas, mostrando uma perso- lista se atribui por missão desvelar para apreender a sua
nagem no auge da riqueza e da consideração e depois unidade viva.
numa penúria extrema, exprimem uma moral evidente.
Por exemplo, em Gil Blas de Lesage ou em Candide de Dividir. ordenar. reunir
Voltaire, os dois heróis aprendem à sua custa a versati·
tidade dos grandes, a inconstância dos favores que eles Esta perspectivação dos diversos episódios, uns relati-
concedem e a arte de se contentar com pouco. Flaubert vamente aos outros, insere-se nun1a Qperação mais geral
e Zola utilizam, com constância, o paralelismo de certos que o romancista pratica: o recortar e o organizar dos
episódios, idênticos ou inversos. Para Madame Bovary, seus materiais, a saber, cenas, episódios, capítulos e partes.
Jean Rousset pós em evidência o que ele chama as «pare- Que esta operação siga a concepção propriamente dita ou
lhas»: os comícios agrícolas correspondem à boda campo- que seja simultânea a ela é um outro problema cuja solu-
nesa, a noite na ópera de Rouen ao baile de La Vaubies- ção tem de ser pessoal para cada escritor, mas que se
sard, Emma faz duas visitas à ama de leite da sua põe a F1aubert como a Gide, a Zola como a Proust. Flau-
filha, etc.. Em Une page d'amour, Zola termina cada uma bert preocupa-se com ele repetidamente, na sua corres-
das cinco partes por uma descrição de Paris, vista do alto, pondência, a propósito de Madame Bovary:
'
para mostrar a cidade a 1uzes diferentes e, ao mesmo
1.1
tempo. os estados de espírito diferentes de Hélêne que a Penso, contudo, que este livro terá um grande
contempla). O autor colocou em L' Oeuvre duas descri· defeito, a saber: o defeito de proporção material.
ções simétricas do Salão dos Recusados: na primeira cena, Tenho já duzentas e sessenta páginas e que não
o pintor Claude. ridicularizado pelo público mas admirado contêm mais do que preparações de acção, expo-
pelos seus confrades, entrevê o seu triunfo possível; sições mais ou menos dissimuladas de carácter (é
na segunda. tudo mi. De igual modo, duas viagens do verdade que são graduadas), de paisagens, de
pintor ao campo e duas refeições de amigos em casa de locais. A minha conclusão, que será o relato da
Sandoz reforçan1 este movimento ascenso/ queda, entu- morte da minha mulherzinha, do seu enterro e
siasmo, felicidade/fracasso, desespero. Como bom arqui- das tristezas subsequentes do marido, terá

1
88 89

sessenta páginas pelo menos. Restam, pois, para 'tarde. Por vezes, ainda, Flaubert suprimirá algumas, como
o corpo da acção propriamente dito, cento e vinte essa «n1aldita página dos lan1piões», em que se trata «de
a cento e sessenta páginas no máximo. Não é pintar as gradações de entusiasmo de uma multidão a
uma grande imperfeição? (carta a L. Colei, de propósito de um homenzinho que, na fachada de uma
25-26 de Junho de 1853). câmara, coloca sucessivamente vários lampiões. É pre-
Reli ontem toda a primeira parte. Pareceu-me ciso que se veja a multidão gritar de espanto e de alegria;
escassa. Mas vai indo (?). O pior da coisa é e isso se1n empenho nem reflexões do auton> (carta a L.
que os preparativos psicológicos, pitorescos, gro- Cole!, de 30 de Setembro de 1853). Evitar a dispersão,
tescos, etc., que precedem, sendo bastante longos, cortar os extras, o episódio parasita, insere-se no ideal
exigem. creio eu, um desenvolvimento de acção estético de Flaubert; e Saint-Éxupéry não dizia que a
que esteja em concordância com eles. Não pode obra estava perfeita quando nada mais havia a suprimir
ser que o prólogo exceda a narrativa (por mais nela? Só com esta restrição-e que é importante-de
dissimulada e dissolvida que seja a narrativa), e que existem outras estéticas ron1anescas possíveis: é pro-
terei muito que fazer para estabelecer uma pro- vável que este cuidado de ordem, de equilíbrio, não seja
porção aproximadamente igual entre as aventuras tão agudo para o autor de uma «composição aberta», de
e os pensamentos. Diluindo todo o dramático, uma obra proliferante corno em Tolstoi, no Aragon · do
penso que chegarei mais ou tnenos a isso. Mas Monde rée/, em Céline.
ele terá então 75 000 páginas, esse velhaco do A la recherche du temps .perdu desenvolve-se numa
romance! E quando acabará ele? (carta a L. torrente continua, dividida somente em algumas partes
Bouilhet, de 10 de Dezembro [?] de 1853). que se escarrancham -sobre- vários volumes. Obras recentes,
como La Route des Flandres de Claude Simon ou L'lnqui-
sitoire de Robert Pinget, são, por assim dizer, feitas de
O que o levará a reduzir a primeira parte, concebida um bloco. Nos romances dos Goncourt, pelo contrário,
como uma preparação tendo corno centro o baile de La sucedem-se capítulos muito curtos, ou breves episódios
Vaubyessard, verdadeiro início da acção, e a desenvolver pouco encadeados nos dois romances de Radiguet, Le bal
a segunda parte, cujo centro desta vez, é constituído pelos du comte d'Orgel e Le Diable au corps. Divisão análoga
comícios agrícolas. Flaubert não fará divisão em capí· em Le Grand Meaulnes: três partes, comportando cada
tulos senão no último momento. Certas cenas são conce-- uma um número quase igual de capítulos - uma dúzia -
bidas em função de necessidades da acção, outras apre- que raramente ultrapassam cinco ou seis páginas, onde ~
sentam-se por si mesmas e encontrarão o seu lugar mais a história segue o ritmo das estações. A divisão, ou a sua
90 91

ausência aparente, corresponde a urna estética da narra· abraçada a obra no seu conjunto: «Será como trechos que
tiva e a uma percepção do mundo. Jean. Pierre Richard não se sabe serem leitmotive quando se os ouviu isolada-
mostrou que o «pontilhismo» dos Goncourt tendia a dis· mente, no concerto, nun1a Abertura» (38 ).
solver a narrativa para dela apenas reter alguns instantes, História inventada e narrada pelo autor na terceira
mas correspondia também a uma percepção fragmentária, pessoa, descrições e retratos, breves anedotas, documentos
logo discontínua, do mundo: «Ü artista», escrevem os autênticos ou apresentados como tais - fichas do escri·
Goncourt, «pode apanhar a natureza poisada, o escritor é tor, cartas, páginas de diário íntimo, palavras reproduzi-
obrigado a agarrá-la em pleno voo, e como um ladrão». das - constituem em bloco a matéria-prima do roman-
E J.-P. Richard comenta: «Tendo partido em perse· cista. e que ele pode optar por fundir ou que pode
guição do movente, não somente não puderain atravessar reunir, justapor numa espécie de mosaico, preservando o
o véu das aparências, mas ainda se encontram num carácter bruto esses materiais. Balzac, Flaubert, Zola
universo gravemente desintegrado, onde nada é mais do escolhem a primeira via, embora certas páginas, as menos
,•1 que detalhe, poeira»("). Jny:ersamente, Proust e os roman- bem sucedidas, dos Rougon-Macquart sejam visivelmente
111! cistas do «fluxo de consciência» (stream of consciousness) fichas retranscritas pelo autor. Os romances epistolares,
t vlSarii -ãtinuir essa corrente psiquica iniÓterrupta e, por tão em favor no século XVIII, apresentam-se na maioria
ll e--
\l exemplo, em James Joyce e Claude Simon, retranscrever das vezes como escritos de personagens reais que o «editor»
1; - sem que intervenha qualquer censura, selecção ou orde- pretende simpleslllente ordenar, conservando-lhes escru-
\' nação - tudo o que ela carreia,, na sua profusão e na sua pulosamente o carácter de documento. No século XX, o
confusão. Seria muito arriscado concluir daí pela ausên· processo da rennião bruta gozou de um novo favor, sobre-
eia de composição neste tipo de romance. As acusa· tudo após as experiências picturais dos cubistas, de Dada
ções lançadas sobre este ponto, contra Proust, quando e dos surrealistas. Em Le paysan de Paris, que, em ver-
apareceram os primeiros volumes de A la rechercho dade, não se faz passar por romance na época em que os
du temps perdu, revelaram-se frágeis ou falsas; o pró· surrealistas condenavam o género. Aragon reproduziu
prio Proust afirmava. numa carta a J. Riviere, que a recortes de jornal, cartazes indicando a tabela de preços
·! composição da sua obra era «de um rigor inflexivel, dos lugares num teatro, um imóvel para vender, anúncios
embora velado»; talvez não tão inflexível como o autor publicitários, quotas comerciais, a inscrição na peanha de
1 pretendia, mas certamente velado, e visivel somente quando uma estátua. etc.. Esta técnica deriva. pois, da das cola·

(S7) Jean-Pierre Richa:rd. Littérature et sensation. Paris, (ªB) Léon Daudet~ Autour de soixo.nte lettres de Marcel
Edilions du Seuil, 19.54, pp. 269-270. Proust. Paris, Gallimard, 1929, p, 76.
92 93

gens, tal como a praticavam já Picasso ou Braque no início


do século, e depois os criadores de «objectos surrealistaS».
As narrativas múltiplas
Na perspectiva de uma narrativa mais tradicional, Malraux
reproduz, no começo de Les Conquérants, o texto de
alguns telegramas vindoo da China; poupam ao narra. Não há história, como vimos, onde ao menos não asso·
dor explicações e atingem o leitor como um choque: o ;eal mem, na sua narração, outras histórias. Um parêntese de
faz irrupção na narrativa como uma punhalada. Mobile, algumas linhas sobre o destino de uma personagem secun-.
de Butor, constitui uma experiência muito ousada de dária. uma digressão explicativa, constitu~ uma narra·
reunião de materiais brutos: mensagens telefónicas, painéis . ~~~ nª. l_l<lf!:~~Y.ª· l''-esente nas obras mais .:;;tig;~: é·~
publicitários. passagens de guias turísticos e de manuais caso daquele episódio - comentado por Auerbach em
de história, listas de nomes de plantas e de animais com- Mimesis - da cicatriz de Ulisses, onde Homero conta
põem Ull)a imagem multidimensional dos Estadoo Unidos, como o herói a fez na caça ao javali (Odisseia, canto XIX).
susceptível de múltiplas leituras. Vários romancistas do Numerosas são as histórias intercaladas em Don Qui-
grupo de Tel Quel, como Jean Thibaudeau, Jean Ricardou jote ou em Le Roman comique: elas têm por fim ime·
ou Philippe Sollers. utilizam um processo análogo ao da diatamente perceptível renovar o interesse do leitor, ilus-
1. colagem, justapondo num puzzle fragmentos de textos ou trar uma moral ou, muito sin1plesmente. como Scarron
l! não o esconde, alongar a narrativa de que o autor será
de frases frequentemente inacabadas, separadas por reti-
cências. espaços em branco, até números e ideogramas melhor pago pelo editor... Ocorre, por vezes, que essa
chineses, como em Nombres: o desígnio de Sollers, indica narrativa na narrativa se torne a essencial. como no
o pedido de inserção, é destruir «a própria narrativa qua Decameron de Boccacio ou no Heptameron de Margarida
se inverte e se imerge pouco a pouco nos textos de diferen. de Navarra. em que o breve prólogo, expondo uma situa-
tes culturas», «de destacar uma profundidade movente, ção excepcional, serve apenas de pretexto a uma série de
a que se seguirá aos livros, a de um pensamento de massas novelas.
abalando, nos seus fundamentos, o velho mundo menta- A disposição destas narrativas sucessivas é a mais
lista e expressionista de que se anuncia, para quem quei sin1ples: o encadeamento, segundo as categorias que dis-
arriscar a sua leitura, o fim». Apesar das aparências de tingue Todorov ("). em que cada uma das personagens-
distribuição ao acaso, de dispersão, estas narrativas, qua
põem em questão a própria noção de literatura. estão
submetidas a leis cujas exigências Bourget e os defensores ( 39 ) Tzvetan Todorov, «Les catégories du récit littéraire»,
in Communications, n. 0 8, 1966, p. 140.
do romance «bem composto» mal podiam suspeitar.
94 95

-narradoras toma a palavra chegada a sua v~. A alter- iluminação, da confrontação das experiências, do emprego
nância consiste «en1 contar as duas -histórias simultanea- das armas novas do homem para conhecer o homem e a
mente. interrompendo ora uma. ora outra. para a retomai natur~a».("). Tamerlan des coeurs, de René de Obadia,
na interrupÇão seguinte». o que dá no cinema a «monta- faz desenrolar, em contraponto, a história banal de um
gem paralela.>>(40). «Duas» ou várias histórias, como em sedutor um pouco remeloso e a do terrível conquistador
Les Communistes de Aragon, que mostra uma dúzia de tártaro. Entre as duas narrativas ligadas por uma identi-
personagens vivendo a guerra de 1939-1945, ou como em dade de tema - a conquista-, operam-se desajustes a
La Semaine saiute, onde diversos oficiais, nobres e solda· vários níveis: estilístico, temporal, psicológico, estrutural.
dos seguem Louis XVIII na sua fuga para o Norte diante Pela rede de correlações e de ressonâncias que aí esta-
de Napoléon: as vias desenrolam-se simultaneamente, belece, o processo alarga as dimensões do romance às da
caminham lado a lado, cruzam-se por v~es. depois sepa- epopeia e multiplica a sua irradiação. Terceiro processo
ram-se de novo, sendo a unidade destas narrativas assegu. que Todorov distingue: o encaixe (que também se chama
rada pelo acontecimento histórico que as provoca. A alter- «narrativa enquadrada»)>«íílêfüsão de uma história no
nância é mais sisten1ática ainda em Les Hommes de bonne- interior de uma outra». Este tipo de composição é fre-
volonté que foi;-ma, diz Jules Rorr1ains, «um vasto con- quentemente empregado por Maupassant nas ,suas nove·
junto humano, com uma diversidade de destinos indivi- lar, por exemplo em Le Bonheur: diversas personagens
i
1 duais que aí caminhan1 cada un1 por sua conta, ignoran~ falam do amor numa vivenda junto ao mar; uma delas
1
do-se na maior parte do tempo»("); romances cíclicos ou conta a história de uma mulher rica que tudo deixou para
série de romances in1bricados uns nos outros, que qão, ir viver num canto abandonado da Córsega com o homem
de uma sociedade, uma visão «unanimista», captando-a que amava e assim conhecer. «a felicidade» (le
bonheur),
de diferentes ângulos. «E eu ousaria dizer», escreve depois, retorna-se brevemente à cena do início. A primeira
Aragon em conclusão do Monde réel. «que o realismo narrativa não é apenas um pretexto que traz a segunda,
mesmo nasce dessa diversidade, das múltiplas formas de mas ambas se valorizam reciprocamente e o desajuste na
cronologia e nas situações descritas dá-lhes uma maior·
irradiação. Gide utiliza, em Les Faux-Monnayeurs, «esse
(•º) Acerca da influência do cinema sobre a composição no, processo do brasão, que consiste em meter, na primeira,
romance, cf. Claude-E<J,monde Magny, L' Age du roman américain,
Paris, Edltions du Seuil, 1948, sobretudo a primeira parte.
(41) _Citado por Gaétan Picon.. em Raymond Queneau,
Hist.oire des littératureis, vol. III, Paris, Gallimard, «Encyclopédie (•2) -Louis Aragon, Les Communistes, vol. IV, Paris, Le
de la Pléiade», 1958, p. !S37. Livre de poche, 1967, p. 436.

1 1
1

j
96 97

uma segunda abissalmente». A parte reflectida abissalmente «formas novas revelarão coisas novas na realidade [ ... ].
pode ser somente um objecto, um detalhe, uma imagem. Inversamente, a realidades diferentes correspondem forrnas
Robbe-Grillet, em La maison de rendez-vous, descreve uma diferentes de narrativas»("). O romance, enquanto «labo-
cena. por exemplo uma jovem estendida, e depois a mesma ratório da narrativa». permite~nos tomar urna nova consm
cena vista reflectida no engaste de um anel, ou nos dese- ciência do real, «e desempenha um papel de denúncia,
nhos de um jornal. As imagens abissais, portanto, ofe- de exploração e de adaptação».
recem aq.ui variantes de uma me~ma cena e esse jogo
de reflexos acaba por fai;er duvidar da realidade descrita:
que nos mostra realmente o autor? O processo gidiano,
que encaixa toda uma história, a saber o romance de
Edouard, numa outra, conhece um grande favor no
romance contemporâneo: Quelqu' un de Pinget, Le Plané-
tarium de Nathalie Sarraute e, numa certa medida, L' anti-
phonaire de Hubert Aquin -- onde uma jovem de Mon-
tréal tenta reconstituir um episódio do século XVI italiano
enquanto conta os seus desgostos conjugais - são «o
romance» que se escreve_. ou que não se escreve. Pela
representação abissal opera-se, pois, diz Jean Ricardou (").
1.
uma «contestaçã0» do romance, sobretudo no caso mais
preciso em que a «micro-história» assim produzida é um
espelho: por' exemplo, em Le V oyeur, a cena do crime
constitui uma lacuna na narração e não será mostrada
directamente, mas como uma imagem reflectida. Através
desta técnica particular, que abre uma brecha no sólido
edifício do romance tradicional, fica feita a prova de
que a composição oferece ao escritor recursos ilimitados
para traduzir realidades novas. Como escreve Butor,

("ª) Jean Ricardou, Prob/emes du noiweau roman. Paris, (") Michel Butor, Essais stw le romon. Paris, Gallimard,
Editions du Seuil, 1967, pp. 173-182. col. <Idées», 1969, p. 10.

'
1~
1
1

CAPITULO li

O ponto de vista

O pacto narrativo

Distribuição dos episódios segundo o fio de uma intriga,


equilíbrio entre as cenas, as descrições, os diálogos, os
resumos ou as colagens, repetição, alternância ou oposi-
ção de motivos não são os únicos elementos estruturan-
tes de uma obra. No ponto de partida, tem de subli-
nhar-se a dupla relação, implícita ou explícita, que toda
a obra narrativa estabeleee, por um lado, entre o auto1
e o Jeitor virtual. por outro, entre um narrador e um narra-
tário, quer este seja designado ou somente subentendido.
Num artigo intitulado «Introductiou à l'étul!e du narra-
taire» (Poétique. n.º 14. 1973), Gérald Prince estabeleee
uma distinção inuito nítida entre narratário e leitor real,
leitor virtual ou .leitor ideal ('), e demonstra. o valor de

(1) Não se deve confundir n;rrratário, leitor fictício, leitor


virtual, ·leitor real, leitor ideal... O narratário é o destinatário
do relato feito pelo narrador. O leitor fictício toma ;lugar na

i .
1

l
100 101

uma narratologia fundada sobre a referenciação exclusiva Suprimiu-se todo e qualquer traço do ritual que rodeava
dos «siniai<» (') do narratário: o estudo de uma obra narra- o conto de carácter mítico ou religioso. No seu livro
tiva considerada como acto de comunicação, como uma consagrado a Jacques Ferron, escritor do Québec, Jean
sequência de sinais dirigidos a um narratário e interprem Marcel recorda que, em certos países do Islão - no
tados em função dele. das suas relações com o narrador, Sudão, nomeadamente-, «estabelece-se primeiramente
com as personagens ou com outros narratários, em funm um diálogo entre o contista e o seu auditório»:
ção também das distâncias 1naiores ou menores que o
separam dos leitores (reais, virtuais ou ideais), pode con- - Eu vou contar-vos um conto.
duzir a uma caracterização mais vasta da narrativa - per- Ao que os assistentes infalivelmente respon-
mitindo pôr em evidência os mecanismos do seu funciona- dem:
mento - e uma tipologia mais rigorosa do género narra- Nâmoun! (o que quer dizer: bem entendido!)
tivo. Por isso, espanta naturalmente que esta relação autor- O diálogo prossegue:
-leitor virtual, narrador-narratário, de que depende toda a - Nele, nem tudo é verdade.
economia geral do romance, tenha sido negligenciada até -Nâmoun 1
hoje. Na grande maioria das obras narrativas do séc. XIX, - Mas nem tudo é falso.
por exemplo, o escritor parece pouco preocupado com -Nâmoun!
o problema. Pelo menos não o exprime claramente: o
romancista conta, uns leitores e lerão, pura e simplesmente. Pode então o contista contar à sua vontade e o público
calar-se('). Logo de entrada, portanto, entendimento
própria trama da história («Onde? leitor, é duma curiosidade explicito entre todos: por detrás da mentira da ficção,
bem inc6modal», Jacques le Fataliste); o leitor ideal seria narrador e auditores irão juntos à descoberta de uma
aquele desejado pelo autor numa carta, por exemplo, ou numa verdade escondida.
entrevista, enquanto que o leitor virtual é aquele que é suscep-
úvel de ler o romance ... Por vezes, o diálogo não constitui apenas um ritual
(Z) Impor-se-ia, sem dúvida, substituir aos «sinais» de para penetrar no lugar santo da fábula: ele é verdadei-
Prince a designação, mais exacta, de traços ou marcas, poi<> é ramente uma troca. de carácter aprovativo ou contesta·
bem claro que a relação narrador-narratário não implica forço. tário, entre narrador e público, O contista não é o depo·
sarnente, da parte do primeiro, uma jnterpe]ação consciente ou
sitário exclusivo da verdade, do segredo: ele aceita ou
dirigida. Traços oo marcas parecem-nos design.ar melhor esse
conjunto de indícios dados - conscientemente ou não - pelo ·
3
rela to do narrador e susceptíveis de lançar luz sobre a natureza ( ) Jean Marcel, Jacques Ferron malgré lui. Montréal,
do narratárlo. Editions du }:n~r. 1970, p. 50.
102 103

sujeita-se à discussão. Diderot tinha compreendido bem vezes, de omitir certas passagens e sobretudo de ordenar
o carácter original do conto, quando escrevia no início de as cartas. De três cartas escritas no mesmo dia por corres-
Ceei n' est pus un cotúe: pondentes diferentes. qual colocar como primeira? J.-L.
Seylaz e, depois, L. Versini mostraram a importância que
Quando se faz wn conto, é para alguém que revestia, para a arquitectura e para a própria significa-
o escuta: e, por menos que o conto dure, é raro ção das Liaisons dangereuses, a ordem escolhida pelo edi-
que o contista não seja interrompido algumas tor ('). Qualquer deslocação de cartas, no decorrer da
vezes pelo seu auditor. Eis por que introduzi redacção ou de uma edição para outra, pode modificar
na narrativa que vão ler, e que não é um conto, sensivelmente o sentido ou a arquitectura da obra. E>:ami·
ou que, se de tal houver dúvidas, é um mau nando os manustcritos das Liaisons, J.-L. Seylaz deu-se
conto, uma personagem que faça aproximada- conta de que as correcções de Lados visavam um quádru-
mente o papel de leitor - e começo. pulo objectivo: retirar detalhes concretos, tornar a trama
mais cerrada (a ponto de cometer erros de cronologia),
Se o narrador camufla amiúde a sua presença ou não sublinhar comportamentos psicológicos e criar efeitos de
tem a preocupação de estabelecer um laço visível com ele, contraste.
i em certas épocas - no século XVII e sobretudo no XVIII, Em La Nouvelle Hélotse, para evitar temperar o seu
! no momento em que o romance tenta tornar-se um género texto com resumos ou fragmentos na terceira pessoa, como
importante-, ele pretende marcar com clareza o seu fizera Richardson, Rousseau acumula as notas em rodapé
papel, justificando o conteúdo ou o âmbito da sua narra- dirigidas ao leitor. Deste modo, ele pode justificar que
tiva ou fazendo-nos penetrar no seu gabinete de trabalho. Saint-Preux fale «como um Suíço» e não «como um Acadé-
Frequentemente, como se se quisesse separar mais da mico» (1, carta 19) ou exibir uma omnisciência tão grande
sua ficção, o autor acrescentará ao narrador um «editor». como a de Balzac:
cuja missão será, como vimos, quer apresentar ao público
um documento encontrado ou confiado (maço de cartas, Sente-se que há aqui uma lacuna, e encon-
diário íntimo, etc.), quer retocar ele próprio o texto trar-se-ão outras com frequência na sequência
para o corrigir, o ordenar ou até anotá-lo (como se se tra· desta correspondência. Vârias cartas perde-
tasse de uma edição critica). Este trabalho de edição
ganha uma importância capital no romance epistolar, onde
(4) Jean-Luc Seylaz, Les Liaslons dangereuses et la crda:tion
não se trata somente de justificar uma publicação ou de romantique chez Laclos. Genêve, Droz, 1958, pp. 27-47; Laurent
aclarar os pontos obscuros de um te11to, mas, muitas Versini, Laclos et la tradltlon. Paris, Klincksleck, 1968, pp. 285-310.

j
104 105

ram-se; outras foram suprimidas; outras sofre- a primeira do Roman comique, a segunda de Jacques le
ram cortes: mas não falta nada de essencial que Fataliste:
não possa ser facilmente colmatado com a ajuda Enquanto os animais comiam, o autor repou-
do que resta (1, carta 8). sou algum tempo e pôs-se a imaginar o que diria
no segundo capítulo.

Quem nos assegura que uma carta perdida ou supri-


Leitor, sinto um escrúpulo: é de ter atribuído
mida não era «essencial»? Só a confiança num «editor»
a Jacques ou ao seu amo algumas reflexões
omnisciente permite ao leitor aceitar semelhante afir-
que a si pertencem de direito; se assim é, pode
mação. Rousseau, que se recusou, num longo prefácio, a
tirar-lhas sem que eles por isso se melindrem, etc ..
confessar se as cartas publicadas eram autênticas ou fic-
tícias, quer jogar simultaneamente em dois quadros e
assim dar ao seu romance as vantagens respectivas da - a diferença de intenção é grande, Scarron lança-nos
visão panorâmica omnisciente e da multiplicidade dos simplesmente um pisdi.r de olhos cúmplice para nos pren-
pontos de vista. Mais do que uma personagem suple- der a ele pela sua fantasia, enquanto que Diderot nos
mentar e um comentador incomodativo, o «editor» é, aqui, arrasta, de bom ou mau grado, a descer dos nossos lugares
um primeiro leitor que fixa as suas reacções e os seus de bancada para partilhar com ele a arena das suas per-
juízos, dirige a palavra às personagens como a velhos sonagens romanescas. À margem da trama factual das
conhecidos, relembra certos acontecimentos, ou aproxima histórias contadas e sempre interrompidas, tece-se uma
outra trama - intelectual, ·essa - em que o autor e o
outros, assinala a importância de um facto aparentemente
leitor criaim uma obra nova, diferente da imprensa e multo
insignificante. enfim, traça algumas vias na floresta densa
mais significativa. É por isso que falar de ilusão que-
do romance.
brada pela intrusão intempestiva de um narrador não
O diálogo narrador-leitor torna-se ainda mais aberto
significa nada. O que se chama ilusão é apenas um con-
nas obras de Marivaux, Diderot, Fielding ou Steme.
junto de processos destinados a assegurar a transmissão
O narrador não se contenta com explicar-se diante do
eficaz da mensagem. Em lugar de disfarçar os traços
«leiton> ou executar piruetas narrativas para provar o
da sua presença na narrativa, o narrador pode optar por
seu virtuosismo inventivo: ele suscita um.a resposta ou
pôr o acento no acto de contar, interpelando o seu narra-
uma pergunta: em dada altura chama mesmo à parte o tário (para actuar sobre ele ou para verificar se o con-
seu leitor-interlocutor. Entre as duas frases seguintes - tacto é mantido), avaliando ou atestando o grau de vera·
106 107

cidade da sua narrativa, _sublinhando os problemas de a narrativa romanesca, camuflar o ponto de vista esco-
organização desta ('). lhido:
Quer o autor camufle a sua presença por detrâs de um O cinema [ ... ], haja ou não uma personagem
«ele» impessoal, de um «eu» que monologa, de um «VÓS» a quem endossar o ponto de vista, está na obriga-
misterioso, quer dela faça um intermediário visível entre ção absoluta de precisar sempre este; é inelutável
ele e a sua criação. essa escolha corresponde a um «pro- que a fotografia seja tirada de um dado local; é
jecto» preciso: o pacto narrativo que funda, explicita- inelutável que a câmara se encontre em alguma
mente ou não, o tipo de relações desejadas e estabelecidas parte. Se as mudanças de plano são operadas no
entre, de uma banda, o autor e o leitor virtual, de outrd., decurso da descrição, não passarão despercebidas;
entre o narrador e o narratário. terão, pois, de uma maneira ou de outra, de se
justificar. Para descrever o nosso compartimento
O foco de narração atravancado de livros, a objectiva escolherá um
ângulo de visão que dê uma ideia de conjunto da
À relação autor-leitor virtual e narrado;:-narratário
ocupação; ou então varrera as paredes para vir
está estreitamente ligado o problema do que a crítica fixar <?, olhar num ponto particularmente
anglo-americana chama lhe poim of view, the focus of carregado; ou ainda fará suceder-se um~ série
narration: é o ângulo de visão, o foco narracional, o ponto de vistas fixas caractetisticas ... , etc .. Se a câmara
de óptica em que se coloca um narrador para contar a quiser mostrar que há também volumés nos armá-
sua história. Numa «Note sur la localisation et les dépla- rios ou cómodas, serâ preciso que esses móveis
cements du point de vue dans la description romanesque», estejam abertos. Quanto aos volumes que foram
Robbe-Grillet sublinhava que o cinema não pode, como metidos debaixo da cama, não poderão aparecer
ao espectador senão se alguém, ou algum aconte-
(!!) Ter-se-ão reconhecido aqui três das cinco funções atri-
bufdas ao narrador por G. Genette em Figures III (pp. 261-263).
cimento, os puser de novo à vista (').
[nspirando-se em R. Jakobson, Genette afirma que. para além da
sua função propriamente nanativa, o narrador exerce outras qua- Mas desde que Sartre publicou o· seu artigo célebre
tro: uma função de «administração» («discurso» sobre organiza- sobre Mauriac (Situations 1), desde que se lê Faulkner e
ção interna do texto narrativo), uma função de «comunicação» Dos Passos em França e que se põe em paralelo o romance
(as funções «fática» e «conativa»). uma função «testemunhal»
e o cinema, desde sobretudo a aparição do Novo Romance,
(relação afectiva, moral ou intelectual do narrador com a história
Que conta) e, enfim, uma função ideológica (comentários didácti-
Cos, filos6fic~, exPlicativos- sobre a acção ou as personagens). (') Rpvue eles lettres modernes, Verão de 1958, p. 129.
108 109

o leitor já não aceita tão facilmente que se lhe esconda sente, não hesita em invadir a narrativa. pregando ser-
a posição do autor e do narrador. mões, formulando juízos, resumindo uma parte da história.
A tradição oral, recordamo-lo, implica, do mesmo modo em suma. dízendo o que se deve pensar de tudo; no
que a literatura narrativa de carácter sagrado, a existên- segundo caso, esforça-se por não aparecer, por fazer esque·
cia de um narrador cuja autoridade nunca é posta em cer que se trata de uma narrativa. No primeiro caso, ele
dúvida. Na tradição oral, o narrador apoia-se na tradição; 1:.9n!"; no segundo, mostra. ·
na literatura sagrada, ele é o inspirado, aquele a quem Portanto, quando Henry James, no final do séc. XlX.
Deus ou seres superiores insuflam o conhecimento. Ele estabelece como regra que é preciso «dramatizar», não
sonda o íntimo dos seres, vê o futuro e o passado tal inova tanto quanto por vezes se quis fazer crer: já Aristó-
como o presente, e pode, por conseguinte, emitir um juízo teles o dera a entender. Aliás, James tinha sido, sem
infalível. Depositário de toda a verdade, do sentido do dúvida, inspirado pela publicação recente da correspon-
mundo e da vida, tem a última palavra da história. dência de Flaubert (Charpentier, 1888-1892), onde se
A invocação à Musa é o sinal de que a autoridade do encontram afirmações como esta, tirada de uma carta de
narrador já não repousa sobre a tradição ou o sopro de 18 de Março de 1857 para Mlle Leroyer de Chantepie:
Deus, mas sobre a inspiriação, o génio individual a quem
«É um dos meus princípios que não devemos
a natureza concedeu uma particular qualidade de vidên-
escrever-nos. O artista deve estar na sua obra
cia. Com o desenvolvimento da história na Grécia, o
como Deus na criação, invisível e todo-poderoso,
histor (isto é, o investigador. aquele que sabe) não tira a
. ., que seja sentido por todo o lado mas que não
, sua autoridade da inspiração (coisa assaz difícil de defi- 1 1
1 nir), mas da sua inteligência. Assim, Heródoto distinguiu seja visto.»
-'.,Í o mito dos factos autênticos. examinou diferentes versões Mas é sobretudo a partir de 1920, com a publicação nos
, i dos acontecimentos para chegar a uma única conclusão Estados Unidos de The Craft of Fiction de Percy Lubbock,
possível: a verdade histórica encontra-se na sua obra. Se que a distinção showing/telling se toma um critério de
nos lembrarmos de que Aristóteles atribuía maior valor à . avaliação do românce. Nas páginas do quinto capítulo
narrativa homérica sempre que o autor intervinha pouco que consagrou a Madame Bovary, pode ler-se esta frase:
e deixava antes a cena às suas personagens, podemos afir-
mar que, desde a Antiguidade, nos encontramos em pre- ... a arte do romance começa apenas quando o
1
sença de duas concepções da narrativa que se confron- 1 romancista pensa na sua história como numa
tarão no decurso do século XX: num caso, o narrador, matéria~,~~a!JlL ~ tal forma que ela se con-
, conhecendo tudo, o interior e o exterior, o ausente e o pre- 1 ta rá a SI- mesma.
1

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De Percy Lubbock a Wayne C. Booth, passando por corresponder à expressão implied autlwr a de persona.
N. Friedman, Brooks e Warren, são incontáveis os críti- quer dizer, essa voz do autor que se exprime através da
cos de língua inglesa que propuseram classificações do máscara da ficção (').
ponto de vista susceptíveis de serem aplicadas ao con· A crítica francesa, sobretudo preocupada com a génese
junto da produção romanesca. Quase todas opõem a das obras e com questões filosóficas, morais ou psicoló·
omniscência à visão limitada ou restrição de campo, a gicas, demorou tempo para se interessar pelos problemas
dramatização à narrativa pura e simples (showing / telling), postos pelo ponto de vista. Se exceptuarmos alguns
a 3.• pessoa à J.•. A estas distinções, que aceita sob textos isolados, como o de Sartre sobre Mauriac, em
condições de as matizar consideravelmente e de não atri- 1939, ou certas páginas do Stendhal de J. Prévost, em 1942.
buir a priori um valor artístico maior a uma forma de nar- é preciso esperar pelo fim da segunda guerra mundial
ração em particular, W. C. Booth acrescenta a noção de para encontrar estudos importantes sobre o assunto. Os
distance (') e a sua teoria do implied author, «o autor artigos assinados por A. Laffay ou por J. Doniol-Valcroze,
implícito»; toda a narrativa segrega a imagem implícita e frequentemente influenciados pela filosofia sartriana ou
de um autor escondido nos bastidores e que não é nem inspirados pela estética comparada do romance e do
o homem de todos os dias. nem o criador das outras cinema, multiplicam-se no justo momento em que Oaude-
obras passadas ou por vir, Poder-se-ia. sem dúvida, fazer -E<lmonde .Magny redige o seu Age du roman américain
(1948), cuja primeira metade se intitula: «Romance ame-
ricano e cinema». Alguns anos mais tarde, Georges Blin
(7) Booth acentua a tripla distância temporal, moral e inte-
lectual enlre o implied author e o narrador, o leitor, as persona-
publica a sua importante tese: Stendhal et les prob/emes
gens, no seu livro The Retaric of Fiction (Chicago University
Press, 196}) e nun1 artigo intitula4o «Distance and Point-of-View», tância pode ser de três ordens: temporal, espacial e existencial.
Essays in Criticis1n, XI, 1961. Este artigo, reproduzido em ·várias Por distãocia existencial, entendemos tudo o que separa do ponto
antologias críticas, foi recentemente traduzido para francês por de vista da vida psíquica ou intelectual, da moral, da experiêocia,
:\1. Désormonts e publicado em Poétique, n. 0 4, 1970, pp. 511-524. da linguagem, da classe social, etc.. Co1no estes diferentes tipos
Quando 'i\Tayne C. Booth se proclama insatisfeito com as de distância serão objecto de certos desenvolvimentos quando
dife1:entes classificações do ponlo d.e vista na crítica anglo-a1ne-- ti-atarmos do espaço, do tempo, ela relação autor-narrador-leitor,
ricana e propõe «Um quadro inais rico das formas que pode não falaremos deles neste caPitulo.
tom<ir a voz d.o autor», atribui grande importância ao que ele ( 8) Oscar Tacca e os chilenos Renê Jarra e Fernando Moreno
C'hama «O grau e o género de distância» que separa, entre si, retomam· por sua conta, embora modificando·&, esta noção do autor
o narrador, a persona (the_ implied autho1'), as personagens e o implícito. Cf. Oscar Tácca, Las 1~oces de la -novela. Madri~
leitor. Convida-nos enlão a aprofundar um aspecto da narração Gredos. 1973; · René Jarra e Fernando MoreriO, Anatomia- de la
que até agora não foi estud~do em p-rofundidade. Essa dis- novela. Valparafso, Ediciones Universitarias de ValparaJso, 1972.

j ,1
112 113

du roman (Corri, 1954). Fazendo urna espécie de inven· que se passa nela. mas somente na medida em
tário dos estudos teóricos sobre o «ponto de vista», Genette que o que se passa em alguém aparece a esse
sublinha com justeza, em Figures Ili (p. 303), que este alguém.
problema foi, entre todos aqueles concernentes à técnica
narrativa, o melhor estudado desde o final do século XIX Adoptando a visão «por detrás»•.. o autor, «em lugar
mas deplora o facto de todos os ensaios de classificação de se colocar no iD.tenór de uma personagem», tenta «des-
feitos a partir dele sofrerem de uma confusão entre o que prender-se dela, não para a· ver de fora. para ver os
chama modo (') e voz, isto é, entre a questão do «ponto seus gestos e simplesmente ouvir as suas palavras, mas
de vista» propriamente dito ou «perspectiva» («quem vê?») para considerar de maneira objectiva e directa a sua vida
e a questão, totalmente diversa, da identidade do narrador psíquica».
ou da enunciação narrativa («quem fala?»), devendo estas
duas séries de problemas ser objecto de uma classificação Assim, a diferença entre a visão «com» e a
· distinta. Uma vez estabelecida esta distinção, Genette visão «por detrás» reverte àqueloutra entre a
retoma, sob as designações novas de «focalizações zero, consciência pura e simples e o conhecimento
interna ou externa», a tipologia em três termos de Jean reflectido.
Pouillon (Temps et roman, 1946): .«visão por detrás». Dum modo geral. num romance «com». a
«visão com» e..«visão de fora». h visão «com» (10) carac- visão tem por centro, a partir do qual irradia,
teriza-se pela escolha cte «uma só ~rsonàgêilí que será o um foco que faz parte do próprio romance - é
centro da narrativa» e a partir da qual «Vemos as outras»: na obra que encontramos a fonte da luz que o
ilumina. Ao contrário, no caso presente, essa
É «com» ela que vemos as outras personagens,
fonte não está no romance, mas no romancista
é «com» ela que vivemos os acontecimentos con- enquanto sustenta a sua obra sem coincidir com
tados. Sem dúvida que não deixamos de ver o uma das suas personagens.
( 9) Esta palavra designa não somente a focaUzação, mas
também a quantidade de informação que nos é fom.ecida: o modo A ".!são «de fora» apercebe simultaneamente «a con-
e

implica, pois, ao mesmo tempo a distdncia e o dngulo' de visão duta enquãií.t:O'maiedàl~ente observável», «o aspecto físico
do narrador relativamente ao que é contado. '
da personagem» e oc «meio em que ela vive». Esta visão
( 1 º) Ver, em particular, sobre a visão «Com> as pp. 74-75,
sobre a visão «por detrás» as pp, 85-88, e sobre a visão «de «de fora» só se interessa pelo comportamento, pelo aspecto
fora» as pp. 102-104. Todas as nossas citações são tiradas dessas física e pelo meio na medida em que revelam um «dentr0»,
páginas. isto é, uma psicologia,

114 115

Negligenciemos o carácter demasiado restritivo e, em lugar central donde poderá ter uma visão sobre tudo
certo momento, confuso(") destas distinções para delas o que constitui a matéria da sua narrativa. Visão estreita,
retermos apenas a ideia capital: o narrador está na história subjectiva, sujeita a caução, mas privilegiada por per·
ou fora da história que conta ("). mitir - teoricamente, pelo menos - transcender a oposi·
ção tradicional sujeito-objecto: o sujeito é o objecto da
sua narração. , Nas obras de ficção que tomam a forma
O narrador homodiegético e os níveis de narração ,das l\1emórias, a personagem tenta reunir e dar um sen·
.tlcÍo a ioda uma parte da sua vida, esforçando-se por des-
Para um narrador, a maneira mais simples e mais total tacar as suas linhas de força; ela conhece antecipadamente
de estar presente na narrativa é contar as suas memórias o ponto de partida e o ponto de chegada do itinerário.
ou publicar o seu diário íntimo. Ele garante-se assim um .Senhora dos cordéis a mexer, pode generalizar, tirar a
moral e emitir um juízo, tal como o autor omniscente.
Com efeito, se se debruça sobre o seu passado é porque,
(11) Por exernplo quando fala da visão «por detrás», o na maioria das vezes, no declinar da vida, pensa poder
crítico explica que o ramancista «não está no mundo que des- fazer aproveitar outrem de uma sabedoria tão caramente
creve, inas «por detrás dele», seja como um demiurgo, seja como
adquirida. Com razão mais forte, se escreve o fundo da
um espectador privilegiado que conhece a parte de baixo das
cartas». Qual a diferença, então, face à visão «de fora», senão prisão ou nas galés, como o Guzmán de Alemán.
utna omnisciência limitada? Mas se quer tirar à narração o carácter de definitivo,
(12) Na terminologia dle G. Genette, a classificação onde se de petrificado, o romancista poderá recorrer a diversos
enquadra este tipo de narrador define-o na .,S_!.!l) ___ .i:~a~o com processos. Por exemplo, fará contar a história por um
a histár_ia_ qu_i:; conta e de que faz ou não parte. Se ele constitui
o seu -herói; .>~onsiderar-se-á que se trata de uma sub-classe privi-
narrador no qual o leitor não pode fiar-se inteiramente,
legiada: a do narrador homo-autodiegético. Se o narrador não tem ~­
qualquer papel na hí'Síõilãqiiê-·Cõõtã.';·-é-~àin32'?" h~"~f-~~,~~-~~i~o.
É preciso não confundir estas categorias com as que definem
0 narrador nas $Uas relaç.>Ões com o discurso da na_"ativa:~~-~~, face ao seu discurso será necessariamente definido- como estando
enquan_to_ ~~_rador qlle _profere_ o discurso, não _faz part_e do ao nível imedia.tamente inferior.
uriiV-;;~· ·di~~Úco, será consid~rado_ como eXtta.c_li~ét,ico; ·~§.~. -~~z-. Combinando estes dois tipos d~ classificação dos narradores
parle dele{P~~~--~eíTIPlO, effi 'j(;cques le Fataliste, quando Jacques -1) na sua relação com a história contada, 2) pelo discurso
Se- tr.ih:Sfõrffià--de-· perSoriagerii. ein narrador), será con.,:íderado como que a veicula-, poder-se-ão justificar estatutos complexos evo-
intra.-di~tiC:Q:_~_-_-t:oilsoaTite ó nível de- narrativa onde se situa o
cados neste capitulo (Memórias, Diário, cartas, monólogo- inte-
narrador (extra- intra- ou meta:diegético), o seu estatuto variará; rior, etc.).
116 117

porque quer enganar-nos ou porque carece de lucidez. da mulher dele com Harry. Semelhante processo pode
O Jean-Baptiste Clamence de La Chute confessa, ele acompanhar-se de todos os tons da ironia. Os dois persas
mesmo, a sua duplicidade e inicia a quinta jornada da de Montesquieu, utilizando a ingenuidade fingida do obser-
sua estranha confissão por estas observações: vador estrangeiro de vários romances picarescos, ao mesmo
tempo que fazem uma sátira muitó viva dos costumes e
Sei o que pensam: é bastante difícil separar das instituições, levam o leitor francês do século XVIII a
o verdadeiro do falso no que eu conto. Confesso deitar um olhar novo sobre o seu país e sobre as suas
que têm razão. Eu próprio... Olhem, uma pes· pretensas convicções liberais.
soa do meu meio dividia os seres em três cate· Na maior parte das vezes, o romancista não torna tão
gorias: os que preferem nada ter a esconder em manifesta a duplicidade ou os limites do narrador. Deixa
vez de serem obrigados a mentir, os que pre- que o leitor somente os adivinhe ou ladeia o narrador
ferem mentir em vez de nada terem a esconder, principal de narradores secundários como E. Bronte em
e, enfim, os que amam ao mesmo tempo a men- Wuthering Heights: Lockwood, com efeito, foi testemunha
tira e o segredo. Deixo-vos escolher a casa que de muito poucos acontecimentos. Quase toda a matéria
melhor convém. da narrativa vem-lhe de Nelly Dean, que, por seu turno,
Ao fim e ao cabo, que importa? As mentiras não viu nem ouviu directamente tudo o que conta, mas
não nos põem finalmente no caminho da ver- soube-o amiúde pela voz que corria. O leitor encon-
dade? E as minhas histórias, verdadeiras ou fal· tra-se, por vezes, em presença de relatos ou conversas
sas, não tendem todas para o mesmo fim, não filtradas sucessivamente, pelo menos, por quatro per-
têm o mesmo sentido? sonagens: Heathcliff, Isabél, Nelly Dean e Lockwood.
Como não suspeitar de que cada uma destas per-
Como avançar no meio de tudo isto? Manifestamente, sonagens particularmente emotivas tenha acrescentado
Camus quer levar o leitor a identificar-se com o auditor ou cortado aquilo que viu ou ouviu? O romance
fictício de Clamence e fazê-lo partilhar da sua má cons· picaresco usou e abusou deste tipo de narração encaixada,
ciência dissimulada sob afirmações paradoxais ou contra· de que descobriríamos vârios exemplos em Gil Blas de
ditórias. Num romance intitulado H. M. Pulham. Esquire, Lesage. Assim. no decurso da sua narrativa, Gil Blas
J.-P. Marquant faz contar a sua história por uma perso- reproduz ·as palavras de Raphael que, por sua vez,
nagem até simpática, mas limitada e pouco lúcida. Muito reproduz as palavras da mãe; no livro IV, Lesage não
habilmente o autor leva o seu narrador a contar, sem temera acrescentar uma quarta personagem, o que dá o
disso se dar conta, o que ele próprio igitorâ: o adultério encaixe seguinte: o conde de Polan -+ Séraphine -+ Stein-
118 119

berg -+ Gil Blas. Sartre caracteriza com algumas fórmu- herói da obra sabia no momento correspon-
las felizes este tipo de narração concêntrica já utilizado por dente da sua carreira. Em suma, reconstituir o
Heliodoro: acaso em cada instante, em lugar de forjar uma
Passando de Boccacio a Cervantes e depois sequência, que se pode resumir, e uma casuali-
aos romances franceses dos séculos XVII e XVIII dade, que se pode reduzir a uma fórmula (").
[... ], o romance apanha pelo caminho e incorpora
em si a sátira, a fábula e o retrato: o romancista «Reconstituir o acaso em cada instante», tal é efecti-
aparece no primeiro capítulo, anuncia, interpela vamente, por vias diferentes, o fim do Diário, do monólogo
os seus leitores, a.dmoesta-os, assegura-lhes a ver- interior e da pesquisa de Ph. Sollers em Drame. Em vez
dade da sua história; é o que designarei por de terem o seu lugar definitivo no espaço e no tempo, os
subjectividade primeira; depois, pelo caminho, acontecimentos e as coisas têm o carácter provisório e
intervêm personagens secundárias, que o primeiro incerto do que aparece subitamente a uma consciência e
narrador encontrou e que interrompem o curso vai cair no passado um instante depois. O menor reta-
da intriga para contar os seus próprios infortúnios: lho de acontecimento, o objecto mais insignificante pode
•, são subjectividades segundas, sustentadas e resti- inverter a perspectiva actual e dar um novo curso à vida.
tuidas pela subjectividade primeira: assim, certas Esta incerteza, esta abertura para o imprevisto aumen-
histórias são repensadas e intelectualizadas em tará mais quando o romancista utilizar o diálogo do
segundo grau ... (13). Neveu de Rameau ou a permuta epistolar. Se as car-
tas de Marianne e de Suzanne Simonin se aproximam das
São estas «subjectividades segundas», dobrando a Memórias pelo relato autobiográfico de aventuras passa-
«subjectividade primeira», que dão à história o seu das, como as da religiosa portuguesa se assemelham ao
carácter incerto e ambíguo. Diário íntimo pela notação ao vivo de estados de alma
O redactor de Diário íntimo, sensível à mutação do
ou de acontecimentos que se estão a produzir, essas cor-
seu ser. estatela-o pelo fio dos dias, numa espécie de respondências guardam, apesar de tudo, um carácter de
biografia impossível com qne sonhava Valéry: incerteza, de ambiguidade, porque elas querem tocar o seu
Não sei se alguém jamais tentou escrever uma leitor, comovê-lo profundamente. Recordando-se talvez
biografia procurando, em cada instante, saber tão dos romancistas que, como Mlle de Scudéry, por exemplo,
pouco sobre o instante seguinte como o próprio faziam broxar por comparsas vários retratos do mesmo
(1S) Q11'egt-ce que la littérature?. Paris, Gallimard, col.
«idées», 1964, pp. 171-172. (") ·Tel Quel, II.
122 123

O narrador heterodiegético e os níveis de narrativa implicando prescrições, obrigação, certeza, que são moda-
lidades subjectivas, não categorias históricas» (p. 245); o
Se o romance com narrador-actor se assemelha às perfeito, porque apresenta «a noção como realizada rela-
Memórias ou ao Diário íntimo, o romance cujo narrador tivamente ao momento considerado, e a situação actual
é exterior à acção tem muitas afinidades com a narrativa resultando dessa realização temporalizada» (p. 246). No
histórica. Nos seus Problemes de linguistique genérale discurso, só é excluído o aoristo. «tempo histórico por
(Gallimard, 1966), Emile Benveniste põe em paralelo a excelência», p. 245) qÚe «ob)ectiViza o acontecimento,
narrativa histórica e o «discurso»: sendo o primeiro defi- desligando-o do presente» (p. 249). A diferença entre os
nido como «O modo de enunciação que exclui toda a dois modos de enunciação vem, pois, em definitivo, de
: forma linguística autobiográfica» (p. 239), e o segundo que a narrativa histórica corta todo o laço com o pre-
como «toda a enunciação que supõe um locutor e um sente, enquanto que o discurso situa o acontecimento no
auditor, e uma intenção do primeiro de influenciar o outro presente ou liga-lho de alguma maneira.
de alguma maneira» (p. 242). Benveniste põe o acento Quando o romancista utiliza o aoristo ou passado sim·
sobre os tempos admitidos ou excluídos por cada tipo pies, quer dar à sua narração o objectivo da narrativa his-
de enunciação. O presente, o futuro e o perfeito (") são tórica, que é, não prosseguir a pesquisa de uma experiên-
excluídos do passado histórico: o presente, porque <mm cia existencial, mas apresentar um acontecimento ou um
acontecimento para ser posto como tal na expressão tem- , mundo de que se explicaram a coerência e as leis. Roland
poral deve ter cessado de ser presente, não deve poder ser ·l\ Barthes via-o bem ao explicar assim o papel do passado
.;.:
f·'
:
enunciado como presente» (p. 245); o futuro porque «não simples:
é mais do que um presente projectado para o porvir. O seu papel é reduzir a realidade a um ponto,
e abstrair da multiplicidade dos tempos vivid()s
já não é que receba pronto um inundo acabado, pleno, fechado
sobre si mesmo, é, ao contrário, que participe nurna criação, que
e sobrepostos, um acto verbal puro, desembara-
invente por seu turno a obra - e o mundo- e que aprenda çado das raízes existenciais da experiência, e
!lssim a inventar a sua própria '\ida». orientado para uma ligação lógica com outras
(1 7) «Chama1nos perfeito)>, escreve Benveniste na p. 246, acções, outros processos, um movimento geral do
«à classe inteira das fomw.s compostas (com avoir e être), cuja mundo: ele visa manter uma hierarquia no impé·
função [ ... ] consiste em apresentar a noção co1no consumada
relativamente ao momento considerado, e a situação actual
rio dos factos.[. .. ] Supõe um mundo construido,
resultando dessa consumação ten1poralizada». Em lugar de passé elaborado, destacado, reduzido a linhas signifi-
simple ou passé défini, o linguista t:'illprega antes a expressão cativas, e não um mundo atirado, estatelado, ofe-
aoriste (aoristo). recido. Por detrás do passado simples esconde-se

1,1
~--

124 125

sempre um demiurgo_. deus ou narrador; o aí um charuto, postou-se diante de um espelho,


mundo não é inexplicado quando o narram, e deitou um olhar para o seu fato, um pouco maia
cada um dos seus acidentes é apenas circunstan- rico do que permitem em França as leis do
cial, e o passado simples é precisamente esse gosto(").
signo operatório pelo qual o narrador reduz a
explosão da realidade a um verbo ínfimo e puro, Em lugar de fundar as suas reflexões no conceito
sem densidade, sem volume, sem desenvolvimento, ambíguo de omnisciência, a crítica teria sem dúvida inte·
cuja única função é unir o mais rapidamente resse em tomar para ponto de partida a distinção entre
possível uma causa e um fím("). discurso e narrativa histórica. Examinando até que
ponto uma obra particular se aproxima ou se afasta do
O passado simples e a 3." pessoa do singular Lradu· disurso ou da narrativa histórica, a crítica seria levada
zem tão explicitamente a ordem, o funcionamento do a olhar o modo de narração escolhido não como um
mundo ou duma sociedade, que o romancista podia, em simples envólucro desnudado de sentido, mas como a
rigor, não intervir para emitir juízos ou para dizer o que
forma que dá ao objecto esculpido a -~ua significação.
se deve pensar. A narração dos acontecimentos, hierar-
quizando os factos, colocando-os numa sequência explica-
tiva, já disse tudo. Tudo o que o romancista acrescentar O ponto de vista como significação
é apenas reflexão moral ou filosófica e redundância. Numa tese sobre Stendhal ('°), na qual a influência de
Balzac, intervindo numa narrativa no passado simples, Sartre é manifesta, Georges Blin mostra de modo magis-
esquece por um momento o seu papel de «historiador dos tral como «as restrições de camp<»> e «as intrusões da
costumes» para se tornar moralista ou testemunha do autor» não são gratuitas ou sem significação precisa, mas
presente, como o historiador que intercala na sua narração traduzem, melhor do que qualquer comentário, a visão do
um juízo pessoal ou uma reflexão moral: ~le «passa então mundo de Stendhal ("). As restrições de campo, pela
para um outro sistema .temporal. o do discurso» (p. 242):
(19) Balzac, Gambnra, citado por Benveniste, p. 241.
Após uma vo)ta à galeria. o jovem olhou ( 2 º) Georges Bli~ Stendhal et les _ probl.emes du roman.
sucessivamente o céu e o relógio, fez um gesto Paris, Corti, 1954.
de impaciência. :,_.numa tabacaria, acendeu (21) Essas intrusões de autor não existem para- Martinez
Bonati, que faz u~a distinção entre a linguagem mimética e a
(1S) Roland Barthes, Le degré zero d9 l'~criture. Paris, linguagem não-mimética do narrador, e que mostra como essas
Editions du Senil. 1953, pp. 46-47. «intrusÕt.'s» (linguagem não-mimética) caracterizam a personali-
126 127

utilização do monólogo interior ou do «ângulo subjectivo um fio entre o duplo abismo do lirismo e do vulgar»?
de uma personagem preponderante», são uma manifesta- Porquê essa intimidade com os devaneios mais «romanes·
ção do «Credo relativista» do autor: «presos no aqui-agora cos» de Emma, que ele chama ternamente, na sua corres-
da nossa evidência sensível>>. estamos condenados a uma pondência, «a minha mulherzinha», ao mesmo tempo que
visão fragmentária das coisas, «não podemos ver ao esse recuo irónico, essa condenação implícita do brica-
mesmo tempo os dois lados de uma laranja». As intru- braque sentimental da sua heroína? Flaubert enternece-se
sões de autor traem «o egotismm> de Stendhal, que não e encarniça-se simultaneamente sobre En:una porque ela
pode resolver-se a ficar nos bastidores, e o seu desejo é uma imagem de si mesmo baldeado entre a éxaltação
de evitar as intrusões «de dentro». que tirariam toda a rpmanesca o lirismo desenfreado, e. o olhar longínquo
liberdade às personagens. Em lugar de as forçar a do desprezador da pequena burguesia provinciana e da
.1 desposar a sua própria visão das coisas, ele prefere glosar e$t1Ípidez hurnàna. Sem ir até dizer que «através de
enquanto autor e deixá-las evoluir e falar à vontade. Madame Bovary devemos e podemos entrever o rnovi-
As restrições de campo e as intrusões de autor não visam, mento da renda de propriedades, a evolução das classes
pois, fins contraditórios mas complementares. ascendentes. a lenta manutenção do proletariado», pode
A obra romanesca da Flaubert, oscilando entre o dis- aceitar-se a análise sartriana do «projecto pelo qual Flau-
curso e a narrativa histórica, daria lugar a um estudo bas- bert, para escapar à pequena burguesia, se lançará através
tante instrutivo do modo de narração escolhido pelo seu dos diversos campos de possíveis, em direcção à objecti-
autor. Em Madame Bovary, como se recordará, Flaubert vação alienada de si mesmo, e se constituirá inelutavel-
desposa sucessivamente a visão limitada de uma persona~ mente e indissoluvelmente como o autor de Madame
gem e outra, panorâmica, de um narrador-historiador dos Bovary e como esse pequeno burguês que ele recusava
costumes e dos corações, tendo sempre o cuidado de camu- ser». Não se trata somente, para o escritor, de «escapar à
flar as mudanças de perspectiva por um imperfeito ambí- pequena burguesia», mas de se construir a si mesmo
guo, pertencendo tanto ao discurso como à narrativa his- «como uma certa totalidade objectiva». A «escolha de
tórica. Porquê este desejo de afogar a visão subjectiva escrever duma certa maneira para se manifestar no mundo
e a panorâmica na ambiguidade do discurso indirecto de tal forma» constitui a «solução objectiva das suas
livre? Porquê esta necessidade de «andar direito sobre contradições» ("). Projecto e técnica narrativa estão, pois,
indissoluvelrnente ligados.
dade do narrador e não a do autor (F. Martínez Bonati, Las · (") Questions ck, méthode. Paris, Gallimard, col «ldées»,
Barcelona, Editorial Sei.lc BarraJ,
e.structuras de la obra lireraria. 1967, pp. 202 e 204-205. Cf. também L'ldiot de la familie, Gus-
J 972, p. 68). tave Flaubert de 1821 à 1857. Paris, Gallimard, 1971-1972, 3 vols.

J
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128 129

O romance epistolar do século XVIII, por opos1çao Logo, compreende-se como é vão todo o juízo de
ao romance «burguês» de Mercier ou de Rétif de La Bre· valor emitido a priori sobre tal ou tal modo de narração.
lonne, ·deveria igualmente reflectir uma concepção parti- O que se chama a omnisciência ou o realismo subjectivo
cular da existência, uma maneira de ser original face ao não são em si técnicas inferiores ou superiores. mas unica·
i! mundo. Explicar a fortuna do romance epistolar pela rantes. Na sua resposta ao -artigo de Sartre sobre Mauriac,
'! influência das heróides, pelo gosto do público pelo Jean~Louis Curtis tem razão em lembrar uma «simples mas
documento verdadeiro ou pela importância da carta nas sã ~vidênci~: que uma personagem romanesca não é nada
relações humanas nessa época, cria o risco de mascarar o mais do mie a projecção da vontade do romancista»(");
essencial. Porque é que, em determinada época, um mas isso não é uma razão para iludir o problema capi·
certo número de escritores escolheu exprimir-se por tal tal que Sartre discute longamente e ao qual traz uma res·
'
!j forma narrativa particular? Deveria estudar-se a hipótese posta em Qu'est-ce que la littérature?, e que vem a ser:
segundo a qual o romance epistolar trai uma visão do toda a técnica reenvia a uma metafísica. E - será necessá·
mundo que se apoia numa filosofia antropocêntrica. Tendo rio lembrá-lo? - toda a metafisica, como toda a técnica,
o homem substituído Deus no centro do universo, o liga-se primeiramente com o génio individual, mas tam·
mundo pode ser visto alternadamente como um lugar a 'bém com factores culturais e sociológicos. Assim, a apari·
conhecer, a domesticar pelas técnicas, pelo trabalho e pela ção do cinema e, depois, da televisão mudou quer a nossa
reflexão, ou como um enorme ponto de interrogação, um forma de ver o mundo quer as técnicas romanescas. Vários
enigma cujo sentido ameaça escapar-nos, pois que Deus romancistas de hoje escrevem para o cinema e para a
já não é o eixo central do mundo, o seu ponto de referên- televisão ou são levados a trabalhar com realizadores,
cia fixo e intangível. No primeiro caso, a empresa filosó- quando em realizadores não se transformam eles mesmos,
fica traduz-se por uma obra que pretende dar a história como o quebequense Jacques Godbout ou o francês
e a explicação do mundo e da sociedade; no segundo caso, Alain Robbe-Grillet.
ela deixa adivinhar-se por uma narração com múltiplos
focos subjectivos, como o romance epistolar, ou por uma
narração que progresivamente se contesta à medida que
' avança, como em Diderot. O romance burguês pretende
dar-nos um mundo conhecido, explicado, domado; o
romance por cartas propõe somente uma multiplicidade de
visões subjectivas e fragmentárias, de que não se está
seguro de ter encontrado o termo médio. (") Haute Ecale. Paris, Julliard, 1950, pp. 175-205.


1
1
i ou ten1pestades sobre os oceanos do globo. A viagem dá
a estes romances o tema e o princípio de unidade, a maté-
131

ria das peripécias, o ritmo; ·por ela se revelanl ou se


realizam as personagens e, para além dessas aventuras
CAPITULO lll grotescas ou épicas, o autor sonha numa outra viagem,
a do homem durante a sua existência. Longe de ser indi-
ferente, o espaço num romance exprime-se, pois, em for-
O espaço IIla& e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes
a razão de ser da obra.

No início de Manon Lescaut, o abade Prévost situa, Inventário dos locais


nalgumas palavras, o encontro de Des Grieux com Manon:
uma «má hospedaria» num burgo da Normandia. Le Piire Balzac, como a maioria dos romancistas do séc. XIX,
Goriot abre por uma descrição de mais de dez páginas: dá de chofre ao leitor as informações úteis ou interessantes
a pensão Vauquer, num bairro parisiense, inventoriada sobre o local principal em que se situará a acção, permi-
minuciosmente do exterior até aos recantos dos seus tindo-se introduzir outras descrições cada vez que se des-
sótãos, antes de chegar aos locatários. Camus encerra loca. A narrativa, portanto, imobiliza-se por algum tempo
as vítimas de La Peste em Oran, «uma cidade sem pom- num «quadro» e depois retoma a sua progressão. Contra-
bos, sem árvores e sem jardins» donde não sairão mais riamente, Aragon dispersa - nos seus romances notações
durante toda a narrativa. À semelhança do dramaturgo . fragmentárias e rápidas sobre os lugares, como se ele se
que acrescenta, após a lista das personagens, «a cena recusasse a descrevê-los: o leitor é conduzido pela mão
passa-se em Trézene, cidade do Peloponeso» (Phedre), ou então desembaraça-se com as peças esparsas de um
o romancista fornece sempre um mínimo de indicações puzzle. A sua primeira reacção pode ser reconstituir a dis-
«geográficas», sejam elas simples pontos de referência para posição geral por «círculos concêntricos», partindo do ponto
lançar a imaginação do leitor ou explorações metódicas preciso em que evoluem as personagens - casa, aparta-
dos locais. Cervantes em Don Quijote e Melville em Moby mento, cabina de navio-, até aos espaços mais longin-
Dick seguem as vagabundagens do cavaleiro da triste quos que as envolvem - muralhas de uma cidade, provin-
figura e as do capião Achab obcecado. pela baleia branca, da, montanhas ou desertos, ilha ou continente. Ao preparar
descrevem encontros pitorescos na Espanha do séc. XVII os seus rOlllances, Zola traçava por vezes esboços que aju-
132
133

davam a precisar intriga - por exemplo, para Beaumont, a ermo. as nossas aventuras»('), está isolada num espaço
cidadezinha apertada à volta da sua catedral gótica onde ele quase impercectível donde os homens parecem banidos.
situa Le Rêve (' ). A simples representação gráfica do O acaso conduz Augustin ao «domínio misterioso», defen-
espaço, como etapa preliminar do seu estudo, faz frequen- dido por uma floresta sem caminhos reconhecíveis, e Paris
temente aparecer caracteres importantes. Num caso
aparece como uma zona vaporosa. triste, reduzida a uma
extremo, se essa disposição é impossível de reproduzir
esquina de avenida sob a chuva. A mesma oposição, em
pelo desenho, porque as indicações são muito pouco nume- vários romances de Mauriac, entre a provinda - pinbais,
rosas, muito vagas ou contraditórias, o romancista pode vinhas, aldeias das Landes - e Paris, «a floresta viva que
trair a sua incapacidade para fazer nascer um mundo aí se agita, e que cavam paixões mais furiosas do que tem-
concreto de objectos, ou o seu desejo de entretecer a pestade alguma»('). tema tradicional do romance francês
confusão para mergulbat o leitor no mistério ou no
pelo menos desde La Nouvelle HéltYiSe. Tensão igual-
s~nho, ou obrigá-lo a considerar a sua narrativa como
mente, em La Modification de Butor, entre duas cidades,
uma fábula cuja localização importa pouco. Ao invés, Paris, que o viajante abandona e onde deixa a mulher, e
uma representação fácil para o leitor pode denotar, da Roma, onde a amante o espera, coincidindo a narrativa
parte do romancista, uma elaboração minuciosa da obra,
exactamente com a duração da viagem.
uma atenção escrupulosa às formas sensíveis, uma preo-
Os limites espaciais que o romancista impõe à acção
cupação de lógica, ou um «sentido do espaço» ~ue o são, assim, por vezes, muito restritos. Mont-Cinere desen-
aproximam o pintor. Mais imediatamente, a «leitura»
forma de cofre», de que «os carvalhos e os abetos[ ... ]
de um desenho tirado de um romance revela também, no escondem metade, mas, por entre os troncos negros,
seio dum espaço englobante, a presença de locais diversos vêem-se as paredes cinzentas e as pequenas janelas quadra-
que estabelecem entre si relações de sim'.;tria ou -~e. con- das: julga-se ver uma prisã0»('); Léviathan, igualmente de .
traste. de atracção, de tensão ou de repulsao. O edif1c10 da
Julien Green, mostra a personagem principal que passa
escola em Le Grand Meaulnes, «morada donde partiram e
continuamente nas mesmas ruas de uma cidadezinha.
onde voltam quebrar-se, como vagas contra um rochedo

(2) Alain-Foumier, Le Gra11d Mea11lnes. Paris, Le Livre


(1} Emille Zola, Le Rêve, les Raugon-Macquart, vol. IV,
de poc1ie, 1964, p. 7. .
Paris, GaUímard, col. «Pléíade», 1966, pp. 1640-1641. Ã maneira
(3) François Mauriac, 1'hér€se Desqueyroux, Paris, Le Livre
de certos autores de romances policiais, M. Butor, no início de
de poche, 1985, p. 191.
L'Emploi du temps, reproduz uma parte do plano de Bleston,
cidade onde se situa «a acção» do romance. (4) Julien Green, Mont-CiMre. Paris, Le Livre de poche,
1957, pp. 16-17.
134 135

Robbe-Grillet parece ter uma predilecção particular por


esses espaços fechados onde se roda sem fim. Em Ia Deslocações e itinerários
Jalousie, o olhar pousa sempre sobre um canto de terraço,
a balaustrada, as bananeiras plantadas em quinqúncio à Certas narrativas podem fixar-se - caso extremo-,
volta do jardim, a macha de um insecto esmagado contra a para toda a sua duração, num ponto único. como na tra·
parede. As personagens de L'année derniere à Marienbad gédia clássica, evoluir num raio mais ou menos largo, em
- «cine-romance» - evoluem numa arquitectura compli- locais mais ou menos numerosos. ou não ter outros limi·
cada: «Avanço, mais uma vez, ao longo destes corredores, tes senã.o os da imaginação ou da memória do autor.
através destes salões, destas galerias, nesta construção - Se procurarmos a frequência, o ritmo, a ordem e sobre-
dum outro século, este palacete imenso, luxuoso. barroco--, tudo a razão das mudanças de lugares num romance.
lúgubre, onde corredores intermináveis se sucedem aos descobrimos a que ponto eles são importantes para asse-
corredores ~ silenciosos, desertos, sobrecarregados por' gurar à narrativa simultaneamente a sua unidade e o seu
uma decoração sombria e fria de talhas, de estuque, de movimento. e quanto o espaço é solidário dos outros
painés emoldurados, mármores, espelhos escuros, quadros elementos constitutivos. Tomemos o exemplo de Madame
de tons escuros. colunas, pesadas tapeçarias[ ... ]» (5 ). Les Bovary, romance quase «imóvel», mas onde as desloca-
Gommes e, pelo seu próprio título. Dans le labyrinthe ções adquirem, por isso mesmo, mais força. Na prin1eira
reforçam esta intenção de aprisionar as personagens. Em parte, após o casamento de Emma, que a leva da quinta
contrapartida, o mundo pertence aos aventureiros de Mel- paternal de Les Bertaux, o casal Bovary vem instalar-se em
ville, de Jules Verne, de Blaise Cendrars ou de Kessel. Tostes e «os vizinhos põem-se à janela para verem a nova
sejam eles capitães de baleeira. globe-trotters, traficantes mulher do seu médico»("). Emma afunda-se aí no tédio
ou cavaleiros das - estepes afgãs. O primeiro tipo de de que a tira uma festa no castelo de La Vaubyessard.
espaço romanesco parece predon1inar pelo menos nas Esta única deslocação da personagem nesta primeira parte
grandes obras do romance francês, talvez mais preocupa- corresponde ao único momento dessa vida intensa à qual
das em aprofundar a vida interior das personagens do aspira: ela evoluciona, pelo tempo de uma noite, num
que em as lançar à aventura pelos cinco continentes. «além», no deslumbramento dos cristais, das luzes. das
jóias, nas conversações distintas, nas intrigas surpreendi-
das, no turbilhão do baile, para no dia seguinte reencontrar

(6) Alain Robbe-Glillet, L' Année den1iBre à Marienbad


Paris, Editions de Minuit, 1961, pp. 24-25. (G) Gustave Flaubert, Madame Bovary, p. 48.

~J
136 137

um Charles pouco inclinado a deixar a região «no vai-e-vem entre Y onville, donde Emma foge, e os encon-
momento em que ele aí começava a firmar-se»('). A pri- tros em Rouen, para os quais ela corre com frenesi.
meira parte termina, contudo, com uma partida, Mme A catedral que Emma e Léon visitam antes de se tor-
Bovary está grávida, o futuro pode ainda iluminar-se. narem amantes nesse fiacre que os transporta como num
Depois deste longo prólogo, a verdadeira acção começa, sonho louco, o quarto do «Hotel de Boulogne», onde pas-
no próprio dizer de Flaubert, com a instalação em Yon- sam «três dias plenos, excelentes, esplêndidos, uma verda-
ville, ponto de ancoragem da narrativa até ao desenlace. deira lua de mel»('). único verdadeiro oásis na existência
Emma saí para alguns passeios: a casa da ama com de Emma, transformam-se nos lugares-chaves desta ter-
Léon (estabelece-se entre eles uma comunicação, para além ceira parte. A diligência que faz a ligação entre Yonville
das palavras), visita a uma fiação com Homaís ~mma e Rouen ganha uma dimensão simbólica na existência de
toma consciência do desgosto que sente face ao marido), Fmma, transportando-a para a ilusão do amor, recondu-
depois sobretudo o passeio com Rodolphe, onde ela se lhe . úndo-a à intolerável chateza do quotidiano, do «aqui»,
entrega, e as suas visitas repetidas ao solar de La Huchette, nessa aldeia onde ela se dará a morte.
que sancionam o adultério. A segunda parte contém, Estas deslocações «efectivas» da personagem principal
simetricamente ao baile de La Vaubyessard na primeira, a e, em consequência, da acção desdobram-se em desloca-
noite da ópera de Rouen; os sonhos de Emma atingem aí ções pelo pensamento, que fazem aparecer no espaço «real»
o paroxismo à vista de um cantor célebre no palco: do romance outros espaços «imaginários» que se encaixam
«Arrastada para o homem pela ilusão da personagem, ela nos primeiros. Num movimento interior que a descreve
procura figurar-se a sua vida. essa vida retumbante, toda inteira, Emma sonha «partir para esses países de
extraordinária, esplêndida, e que ela teria podido levar, ao nomes sonoros onde os tempos que se seguem ao casa-
entanto, se o acaso tivesse querido. [ ... ] Mas tomou-a mento têm mais suaves ociosidadeS», que lhe tinham
uma loucura: ele olhava-a, não havia dúvida! Teve von- entreaberto as leituras de convento; «todos esses quadros
tade de correr para os seus braços ... » ('). No final da do mundo, que passavam diante dela, uns após outros,
segunda parte. os reencontras com Léon à saída da no silêncio do dormitório e ao som longínquo de algum
ópera trarão talvez a Emma, como a sua partida de Tostes, fiacre retardado, que rolava ainda nas avenidas». O seu
algo de novo. A terceira parte apresenta um contínuo devaneio vai fixar-se, em seguida. sobre Paris «mais vasto
que o Oceano». que «cintilava» aos seus olhos «numa

(') Jb;d., p. 90.


(') lh;d .. pp. 270-271. (') Íbid .. p. 304.
138 139

atmosfera vermelha». Para ela, a representação da feli- ou as viagens de Emma, de Les Bertaux para Tostes, de
cidade tomava espontaneamente a forma duma viagem Tostes para Yonville, para os castelos de La Vaubyessard
sem termo: e de La Huchette, para a ópera e depois para o hotel em
Rouen, constituem os únicos acontecimentos desta biogra-
Ao galope de quatro cavalos, era trans- fia, como se Flaubert tivesse querido marcar o seu carác-
portada desde há oito dias, para um país novo, ter de excepção e, por conseguinte, a sua influência no
donde não mais regressariam. Eles iam, iam, de destino da personagem. Podemos, decerto, perguntar-nos
braços enlaçados, sem falar. Frequentemente, do se o essencial do livro reside nessas peripécias assaz insi-
cimo de uma montanha, descobriam de súbito gnificantes quando vistas do exterior, sendo o verdadeiro
alguma cidade esplêndida com zimbórios, pontes, tema muito mais a «vida imóvel» de Emma; mas se
navios, florestas de limoeiros e catedrais de már- deslocações da personagem trazem consigo ligeiras ruptu-
more branco cujos campanários agudos tinham ras que fazem progredir a narrativa. Sobretudo, tornam
ninhos de cegonhas ... ("). sensível o escoar do tempo, ritmando-o. Assim, o baile de
La Váubyessard, caído subitamente na vida de Emma, trará
Assim o romance desenrola·se sobre dois planos por contraste uma nova percepção do tempo: «Foi longo
espaciais. que correspondem a dois planos psicológicos, a o dia seguinte» e todos os outros a seguir, redobrando uma
«realidade» d um recanto de província e o «sonho» de espera desesperada que os encontros com Léon, em Rouen,
países longínquos. O drama para Emma vem de que ela parecerão preencher. Entre o acontecimento vivido que
não pode viver simui taneamente nesses dois planos, resol- submerge no passado e a imagem dum futuro que seria
vendo-se a sua coexistência num conflito de que não a vida mundana em Paris ou viagens longínquas, esten-
poderá sair senão pela morte. dem-se, como escreve Jean Rousset, «as fases de inércia
Num romance de uma perfeita coerência como e de tédio, que são também os adágios do romance, em
Madame Bovary, o espaço é organizado com o mesmo que ,, tempo se esvazia, se repete, e parece imobili-
rigor que os outros elementos, age sobre eles, reforça-lhes zar-se»("). Para Emma, o vazio do tempo identifica-se
o efeito e, no fim de contas, exprime as intenções do autor. com o vazio do meio que a rodeia: os mornos «adagios» de
As mudanças de lugares, nessa obra, marcam pontos de Y onville são cortados por raros e breves «allegros», baile
viragem da intriga e, por consequência, da composição e cspectáculo colocados respectivamente no fim das pri-
1 i
e da curva dramática da narrativa. As mudanças de casa
( 11 ) Jean Rousset, Forme et 1.>ig,nificalion. Paris, Corti, 1962,
(1º) Gustave Flaubert, Madmne Bovary, pp. 57, 58, 79, 236. µ. 130.
--y------

140 141

meira e segunda partes, depois encontros galantes situados sobre a imensidão que as precede as suas molezas
em vários. pontos das segunda .e terceira partes segundo nativas, uma brisa perfumada, e todos se ador-
um ritmo que se acelera. mentam nesse inebriamento, sem sequer se
Esta alternância corresponde aos movimentos interiores inquietarem com o horizante que não avistam(").
da personagem, coincidindo as suas deslocações com os
tempos fortes na evolução psicológica. O espaço serve, O espaço, quer seja «real» ou «imaginári0», surge
pois, para traduzir a psicologia de Emma descre- portanto associado, ou até integrado, às personagens, como
vendo o que ela vê através dos seus próprios olhos: a o está à acção ou ao escoar do tempo.
visão subjectiva do mundo ambiente substitui a análise
em termos abstractos. Em vez de empregar as palavras Descrever ou não descrever
desespero. saudade, resignação, desânimo, Flaubert escreve:
Estas diversas inter-relações tornam muito complexo
«Ü futuro era um corredor negro de todo, e que tinha ao
fundo a porta bem fechada»("). Com esta imagem espe- o estudo da descrição, que muitas vezes mal se distingue
li
'
da narração propriamente dita, à qual tradicionalmente
cial. torna visível o que se passa em Mme Bovary, adop-
'I tando o seu ponto de vista. Por vezes, combina os dois
é oposta. Gérard Genette lembrou até que grau de inti-
midade os dois elementos se interpenerram: «É ( ... ) mais
processos; por exemplo, na cena em que Emma e Léon
fácil conceber uma descrição isenta de qualquer elemento
caminham ao longo da margem do rio:
narrativo do que o inverso, porque a mais sóbria designa-
ção dos elementos e das circunstâncias dum processo pode
Não tinham mais nada a dizer-se? Os seus
já passar por um começo de descrição ... »("). Narrar e
olhos, no entanto, estavam cheios de uma con-
descrever são duas operações similares, no sentido de que
versa mais séria; e, enquanto se esforçavam por
ambas se traduzem por uma sequência de palavras («su-
encontrar frases banais, sentiam um m~mo lan-
cessão temporal do discurso»), mas o seu objecto é dife-
gor invadi-los a a1nbos; era como um murmúrio
rente: a narração restitui «a sucessão igualmente tempo·
da alma. profundo. contínuo, que dominava o
ral dos acontecimentos», a descrição representa «objectos
das vozes. Tomados de espanto por aquela sua-
simultâneos e justapostos no espaço».
vidade nova. nem pensavam em contar-se a sen-
sação ou em descobrir -lhe a causa. As felicidades
(1ª) Gustave Flaubert, Madame Bovary, PP· 120-121.
futuras. como as costas dos trópicos, projectarn (14) Gérard Genette, «Frontiàres du récit», in Communicll-
tions, n.º 8, 1966, p. 156. Recolhido em Figures. Paris, Editions
('Z) Gustave Flaubert, ltladame Booary, p. 85, du -Seul\, 1006.

i!
il 111
142 143

Mme de La Fayette apresenta deste modo a chegada a um rutilante quadro, rico em matéria e em cor, tais
do duque de Nemours ao baile real do Louvre, ao qual como os amavam Balzac, F!aubert, Zola, enquanto que
assiste igualmente a princesa de Cleves: as frases de Robbe-Grillet parecem fornecer o enun-
ciado de um problema de geometria. Estes quatro exem-
«Quando ele chegou, a sua beleza e o adorno
plos marcam os limites entre os quais evolui no decurso
do seu vestir foram admirados; o baile começou
da sua história, e na nossa própria época, a descrição
e, dançando ela com M. de Guise, fez-se um
romanesca. da recusa quase total a uma recriação exaus-
barulho muito grande para a porta da sala, como
tiva da realidade, do largo quadro harmonioso à precisão
de alguém que entrava e a quem se deixava
seca de um inventário. O desvio manifesta-se simultâ-
passar. (").
neamente pelos meios utilizados, nas funções atribuídas
Chateaubriand desenrola, no prólogo de Ata/a, o largo à descrição e na relação, que ela revela, do escritor com
panorama das margens do Meschacebé ("). Proust, no o mundo.
primeiro volume de A la recherche du temps perdu, evoca, O romancista, como o pintor ou o fotógrafo, escolhe
sob todos os seus aspectos, a igreja de Combray: «Como em primeiro lugar uma porção de espaço, que enqua-
eu a amava, como eu a revejo bem, a nossa Igreja!»("), dra, e situa-se a uma certa distância: vasta paisagem
La Jalousie, de Robbe-Grillet, abre por estas frases: no caso de Chateau briand, ângulo de um edifício no de
Robbe-Grillet. Este recorte visa produzir, em Ata/a, a sen-
Agora a sombra do pilar - o pilar que sus- sação do infinito, duma natureza selvagem e maravilhosa
tenta o ângulo sudoeste do tecto - divide em como um paraíso, enquanto que em La Jalousie isola
duas partes iguais o ângulo correspondente do intencionalmente um fragmento de objecto como para
terraço. Este terraço é uma larga galeria coberta, aí fechar, nesta visão, a personagem e com ela o leitor,
rodeando a casa em três dos seus lados ... sendo além disso a impressão reforçada pela reevocação
periódica do mesmo quadro. Este efeito liga-se à posi-
Mme de La Fayette reduz a um barulho da multidão ção do observador-pintor - implícita nos dois casos, ao
o que teria podido dar lugar, dois séculos mais tarde, passo que Proust a precisa («0 velho pórtico pelo
111
qual nós entrávamos ... ») - , ao seu ponto de vista.
( ) Mme de La Fayellc, ta Princesse de Cleve.s. Paris, Le-
Livre de poche, 1964, p. 46. O observador de Chateaubriand descobre um panorama
16
( ) Chateaubriand, Atala. Paris, Garnier, 1958, pp. 32~37. destacado, como se fosse visto de uma elevação; nada
11
( ) Marcel Proust, Du côté de chez Swann. Paris, Le Livre, lhe escapa do conjunto e o seu olhar pode mover-se à
: 1
de poçhe. 1965, p. 71. vontade; enquanto que, em La Jalousie, o da testemunha
r--·

144 145

,, está limitado lateralmente pela janela perto da qual grandes traços do seu quadro. A descrição de Robbe-
está postada (<<Mas o olhar que, vindo do fundo do -Grillet reduz-se àquelas linhas direitas, tão secas quanto
quarto, passa por cima da balaustrada, não atinge a possível, que desenham a arquitectura do edifício e a
terra senão muito mais longe, sobre o flanco oposto oposição sombra-luz. Trabalhando embora os conjun-
do pequeno vale, entre as bananeiras da plantação ... »). tos dominantes, Chateaubriand introduz variedade e
Estas deslocacões do olhar introduzem na descriminação maleabilidade nas formas («vagas de verdura», «mil gru-
um elemento· dinâmico, permitindo nela uma «circula- tas, mil abóbadas, mil pórticos», os vegetais «mistu-
çãm>, uma exploração do espaço em vários sentidos ("). ram-se», «sobem», «entrelaçam-se») por meio dos nomes
Na pintura. é o próprio observador que a efectiva, ou dos verbos. No interior do quadro, a vista tudo «dis-
visto o quadro ser dado de uma só vez; no romance, onde põe» de modo a distinguir planos, por um vai-e-vem do
a descrição tem de ser «sucessiva», o escritor guia a vista conjunto ao detalhe. Chateaubriand parte das savanas a
ao longo dos caminhos que ele próprio traçou. Des- perder de vista para se prender à «fronte ornada de dois
cobrimos a igreja de Co1nbray na esteira do narrador crescentes» do búfalo «que deita um olhar satisfeito sobre
que nela penetra: pórtico, pedras tumbais, vitrais, tapeça- a grandeza das suas ondas, e a selvagem abundância das
rias. O olhar estabelece, portanto, relações entre os di- margens», com esta última notação a reintroduzir a noção
versas partes do objecto a descrever, assinala as símili- de imensidade. Ele sugeriu também a densidade e a consis-
tudes, fixa as proporções. marca os contrastes: .Proust tência da matéria: «fendendo as vagas», «barba antiga e
descobre o próprio trabalho do tempo nos ângulos das limosa», «do seio desses maciços», mas . trata-se aqui
pedras, Chateaubriand opõe com vigor as duas margens apenas de uma intenção acessória da descrição - total-
do rio por uma frase de transição insistente: «Tal é a mente ausente no parágrafo de Robbe-Grillet -, contra-
cena na margem ocidental; mas ela muda na margem riamente à de Proust que se retém com sensualidade sobre
oposta, e forma com a primeira um admirável contraste». as pedras-que «o tempo( ... )tornara doces e fizera verter
As savanas da «margem ocidental» correspondem aos como mel fora dos limites da sua própria esquadria que
relevos acidentados da oriental. Através do jogo das elas aqui tinham ultrapassado numa vaga loura, arras-
linhas, aqui horizontais e verticais. o escritor compõe os tando à deriva urna maiúscula . gótica em flores, afo-
gando as violetas brancas do mármore» - e sobretudo
sobre os vitrais:
(ts) Cf., sobre estes divers.os pontos, Jean Rousset, «Posi- numa outra montanha de neve cor de rosa. ao
tions, distantes, pern.pectives dans Salanimbô», in Poétique, n.º 6, pé da qual se travava um combate, parecia ter
1971, pp. 145-154. coberto de geada do mesmo modo o vitral que
1•
146 147

ela dilatava com o seu turvo granizo como uma uma tela de Rubens é «ruidosa», um Vermeer é «silen-
vidraça na qual tivessem ficado flocos, mas flocos cioso» pelo tema, o número, a expressão e as atitudes das
iluminados por qualquer ourora ... personagens, o jogo da luz e das cores. Para além destes
processos, o romancista pode tirar efeitos dos sons que
A luz constitui o elemento fundamental da composi- compõem as próprias palavras, per exemplo os «r», os
ção em numerosos quadros romanescos, quer eles se quei- «S», as vogais surdas e as nasais nesta frase enumerativa
ram perfeitamente nus como o de Robbe-Grillet, quer de Chateaubriand:
tentem recriar uma realidade completa como em Proust. des coups de bec contre le tronc des chênes, des
A la recherche du temps perdu abunda em notações froissements d'animaux qui marchent, broutent ou
luminosas: fantasmagoria da lanterna mágica, «quadri- broient entre leurs dents les noyaux des fruits, des
culado de claridade» que o sol estende sob uma sebe de bruissements d'ondes, de faibles gémissements,
espinheiro-alvar, brusco raio de sol que bate numa varanda de sourdes meuglements, de doux roucoulements
após a tempestade. Como etn pintura, no romance a luz remplissent ce8 déserts d'une tendre et sauvage
traça o perfil dos volumes ou baralha-os, modifica as harmonie. (bicadas conrra o tronco dos carvalhos,
perspectivas e as cores. Na descrição da igreja de Com- roçamentos de animais que andam, pastam ou
il bray, a cor não é pura, inteiramente assente, mas flu- trituram entre os dentes os caroços dos frutos,
tuante segundo a iluminação. Assim, o azul dominante barulhos de ondas, débeis gemidos, surdos mugi-
dum vitral ganha «o brilho cambiante de uma cauda dos, doces arrulhos enchem estes desertos de
de pavão», depois «a transparência profunda, a infrangí- uma tema e selvagem harmonia).
vel dureza das safiras». Chateaubriand, pela sua parte,
compraz-se na mistura de cores no seu quadro exótico: ao passo que nos exemplos tirados de Proust e de Robbe-
«serpentes verdes. garças-reais azuis. flamingos rosas», ·Grillet o sentido do ouvido não é solicitado. O ritmo da
mas a sua paleta é infindamente mais pobre do que a de frase ou do conjunto do texto sugere também o ruido ou
Proust. O romancista~ como o pintor ainda, tem as suas o silêncio, como a rapidez ou a lentidão. Detenções sobre
cores predilectas (e a este respeito, um levantamento esta- este ou aquele elemento que a compõem ou notações
tístico, como o faz Georges Matoré em L' Espace hrunain, rápidas, elípticas. introduzem, pela alternância do repcuso
a propósito de Camus. Gracq, Saint-Exupéry, pode trazer e da mobilidade, uma espécie de respiração que anima
preciosas indicações): frias ou quentes, francas ou mati- a descrição.
zadas. contrastadas ou esbatidas, claras ou escuras, etc.. O ritmo da descrição serve também, e sobretudo, para
O romancista pode também integrar sons no seu quadro: a integrar no conjunto da narrativa: o prólogo de Ata/a
148 149

constitui urna introdução lenta e grave à narrativa que se reconhecidos pelos romancistas, enquanto que a noção de
vai seguir; as primeiras frases de Robbe-Grillet impõem «descrição» e, mais geralmenie, de «espaça» romanesco
um mundo restrito que a vista percorre sem cessar com sofreu numerosos avatares. Nos romances do séc. XVIII,
uma minúcia maníaca. A descrição que Proust faz da a descrição dos lugares reduz-se frequentemente a termos
igreja de Combray transmuda-se num devaneio, mas um gerais, como em La Princesse de C/eves, mas Honoré
devaneio acti vo nos próprios tom e movimento de A La d'Urfé situou os pastores de L' Astrée num recanto afas·
li recherche du temps perdu. Tocamos aqui num ponto tado do Massiço central porque «este nome de Forez soa
fundamenta\ mas controvertido: como conciliar as exi· a não sei quê de campestre e porque a região está de tal
li modo conformada, e mesmo ao longo do riozito de
,,
gências da descrição e as da narração? e, questão mais
radical, porquê descrições? Por uma espécie de lei tácita, Lignon, que parece convidar cada pessoa a decidir-se a
admitida pelo leitor e durante longo tempo por uma boa passar ali uma vida semelhante». Em Le roman comique,
parte de crítica. atribuindo o género romanesco prioridade Scarron situa desde as primeiras páginas as farsas e des·
'1',
à narração, a descrição devia ser-lhe estreitamente subor- venturas dos seus comediantes numa hospedaria de Mans,
l!" dinada. Os romances destinados a uma leitura, ou, melhor, «Uma espelunca onde todos os dias se juntam os vadios
a um consumo rápido como o «policial», não cotêm por da cidade, uns para jogar, outros para olhar os que
assim dizer descrições; algumas indicações espaciais bas· jogam». Simples localização, mas cuja escolha não é
tam para situar a história e para «instalar» as personagens; indiferente: o lugar evoca, num caso uma paz rústica
e os leitores de Balzac que saltam as páginas sobre a pen· quase irreal; no outro, a promiscuidade do albergue favo-
são Vauquer ou sobre a casa de Grandet não são, sem rece as desordens mais extravagantes. No século XVIII
dúvida, excepção! Não faltaram críticos ou historiadores e sobretudo no XIX, a descrição dos lugares ganha uma
da literatura que lhe censurassem tornar os seus roman· tal importância que já não pode ser considerada como
ces pesados por causa de intermináveis descrições. O lei· simples pano de fundo. As sumptuosas descrições da
tor não está longe; muitas vezes, de as considerar como ilha Maurícia ficam nas nossas memórias tanto ou mais
elementos parasitas ou, no melhor dos casos, somente que o idilio trágico - mas que agora nos parece bastante
tolerados. Não gosta de apreender a descrição como insípido- de Paul et Virginie. O Valais que Saint-Preux
gratuita, mas. ao contrário, como ligada à história, ao evoca em La Nouve/le HJ/tYise, o vergel escondido onde
menos para lhe servir de cenário. Julie dá o seu passeio favorito, o campo de Oarens ou
A necessidade de estabelecer uma correspondência o lago Léman deixam de ser cenários sobre os quais as
entre a história e o meio ambiente e os efeitos que é pos· .personagens, deitam um olhar interessado ou distraido:
sível tirar dessa correspondência foram, desde há muito, elas mergulham nele como num meio natural, verdadeira
150 151

pátria do seu coração onde elas se revelam e se expandem. glorioso estende-se sobre ela; as luzes brilham; rebenta
Sob duas latitudes afastadas, Bemardin de Saint-Pierre e uma tempestade, cai neve. Estas cinco descrições cor-
Rousseau refazem, longe do Paris corrompido, um mundo respondem às diversas fases do amor que Hélene sente
habitável. Numa obra como Ado/phe de Benjamim Cons- pelo Dr. Deberle; na realidade, elas descrevem esse amor.
tant, a paisagem permanece discreta e raramente evo- No romance moderno, abundam os exemplos desta iden-
cada, mas o episódio em que Adolphe passeia com tificação natureza-personagem, em que a paisagem já não
Ellénore, que se definha por amor, mostra como a paisa- é somente um estado de alma, mas onde ela ilumina o
gem pode estar ligada à vida íntima das personagens: inconsciente de quem a contempla ou a imagina. Em
L'lmmoraliste de Gide, a Normandie, a Suíça e a
Era um desses dias de inverno em que o sol África do Norte, estâncias sucessivas de Michel, consti-
parece iluminar tristemente o campo pardacento, tuem outras tantas etapas da sua mutação interior; a água
como se olhasse com piedade a terra que ele e o sol libertam-no da sua estrita educação moral e des-
deixou de aquecer. ( ... ) O céu estava sereno; pertam-lhe os sentidos.
mas as árvores estavam sem folhas; nenhuma A revelação das personagens pelo meio ambiente é
brisa agitava o ar, nenhum pássaro o atravessava: . uma concepção presente em muitos romances importantes
tudo estava imóvel, e o único ruido que se fazia do século XIX, como um processo de caracterização entre
ouvir era o da erva gelada que se quebrava sob os outros ou como uma teoria de pretensões cientificas. Reto-
nossos passos. «Como tudo está calmo», disse-me mando as concepções de Geoffroy Saint-Hilaire para quem
Ellénore; «como a natureza se resigna! Não deve «O animal é um principio que adquire a sua forma exte-
também o coração aprender a resignar-se?» ("). rior ou, para falar com maior exactidão, as diferenças
A paisagem parece oferecer a Ellénore as palavras que da sua forma, nos meios onde é chamado a desenvol-
ela pronuncia, porque a sua alma e a «alma» da natureza ver-se», Balzac, no prefácio de La Comédie humaine,
estão em perfeito acordo durante este passeio. Zola, em torna-as extensivas aos humanos: «A Sociedade não faz
Une page d' amour, utiliza de forma sistemática essa do homem, consoante os meios onde se desenrola a sua
correspondência. Cada uma das cinco partes termina com acção, tantos homens diferentes quantas variedades há em
a personagem principal, Hélene Mouret, a contemplar zoologia?». Desta ideia faz Balzac o principio director
Paris: a cidade desprende-se das brumas matinais; um céu da Comédie humaine e com ela justifica simultânea-
mente as longas descrições de cidades, de meio ambiente;
(") Benjamin Constant, Ado!phe, Paris, Le Livre de de vestuários, de meio social, que «atravancam» os seus
poche, 1968, pp. 103-104. romances. Zola, em Le Roman expérimental, reclama-se
----..,...-------- -

152 153

de Darwin para atribuir uma «importância considerável -Grillet. Este último, pelos seus escritos teóricos e pelas
ao meio», tomado em sentido lato - físico e humano. Os suas próprias criações, comete à descrição uma nova via:
innãos Goncourt, como os sociólogos do nosso tempo,
Descrever as coisas, com efeito, é colocar-se
vão trabalhar «no terreno», para constituir uma «colec- deliberadamente no exterior, em face delas. Já
ção de documentos humanos», realizar um «inquérito
não se trata de apropriar-se delas, nem de nada
social», praticar «o estudo ao natural» (prefácio a Les
transpor para elas. Postas, à partida, como não
Freres Zemgan/UJ) nos hospitais, nos centros operários,
sendo o homem, permanecem constantemente
em Itália, etc.. Graças a esta teoria do naturalismo, a
fora do nosso alcance e não são, afinal, nem
descrição do espaço vai ascender ao primeiro plano, a
compreendidas numa aliança natural, nem recu-
ponto de apagar as personagens ou, pelo menos, de ganhar
peradas por um sofrimento. Limitar-se à des-
1 uma importância superior à do seu estudo. Nos próprios
crição é. evidentemente, recusar todos os outros
Goncourt, as descrições tendem a constituir o essencial do
modos de aproximação do objecto: a simpatia
:]i romance e a tornar-se autónomas. Certas páginas de
·j'·i· '.
'! como irrealista. a tragédia como alienante. a
1

Zola, por exemplo em Le Ventre de Paris, mostram o


compreensão como pertencente em exclusivo ao
l comprazimento do autor em fazer belos quadros descri-
tivos. Em Notre-Dame de Paris, as descrições da catedral
e da cidade «de relance» constituem todo o livro III, a
domínio da ciência(").
Atitude diametralmente oposta à de Benjamin Cons-
da batalha de Waterloo, em Les Misérables, ocupa deze- tant, para quem, no texto citado mais acima, o sol ilwnina
nas de páginas: elas tornam-se «passos de virtuosism0». «tristemente os campos», «como se olhasse apiedado a
O que explica a reação que, nos fins do século XIX, terra» e toda «a natureza se resigna». Para Robbe-Grillet,
consiste em não mais tratar as paisagens enquanto tais, a descrição faz-se em termos de medida com que o sen-
mas em «deslocar o traço descritivo», em «considerar timento da testemunha nada tem a ver, e muito menos os
implicitamente o meio como realidade apercebida e não «sentimentos» que ela possa emprestar aos objectos que
como realidade determinante» ("). descreve:
O romance contemporâneo mostra com frequência o Registar a distância entre o objecto e mim,
espaço ambiente através dos olhos de uma personagem e as distâncias próprias do objecto (as suas dis-
ou do narrador. em obras tão diferentes como as de tâncias exteriores, isto é, as suas medidas), e as
Proust, de Ramuz, de Malraux. de Aragon ou de Robbe- distâncias entre os objectos, e insistir ainda no

{ 2 º)- Michel ·Rai.mond, Le c,·ise du 1oman, p. 306. \2 1-} Alain Robbe~GriHet, Pour un nouveau Toman, pp. 28~29.
.,

154 155

facto de que são apenas distâncias (e não espécie de nota de suspensão que ganha valor de símbolo:
dilaceramentos), isso equivale a estabelecer que por exemplo, as descrições de Paris em Une page d'amour
as coisas estão aí e que não são mais do que e a evocação dos pinheiros que fecha Le Mystere Fron-
coisas, cada uma delas limitada a si mesma. O tenac estabelecem essa «cumplicidade rítmica entre o
problema já não é de escolher entre um acordo clima físico e o clima humano» de que fala Ramon
feliz e uma solidariedade infeliz. Doravante há Fernandez (").
uma recusa de toda a cumplicidade ("). Esta função «musical» desdobra-se numa função «pic-
Noutros termos, através da visão limpa dum olhar tural» talvez mais imediatamente perceptível: a descrição
que «deixa as coisas no seu respectivo lugar», é necessá- leva-nos a ver. Nem sempre há necessidade de minu·
rio romper com «o antropomorfismo» (de que a descri- ciosos quadros que nada querem deixar escapar: Malraux
ção de Benjamin Constant oferece o tipo acabado), para pôde observar, a propósito de Balzac, que quanto mais
o qual o mundo inteiro é à imagem do homem. longas são as descrições, menos o leitor «vê» ... ("). Em
duas ou três frases, Mauriac «descreve» o calor opressivo
Porquê a descrição? que pesa sobre a região de Thérese Desqueyroux (<<Mas,
mal entreabria as janelas de madeira, a luz, semelhante
Os textos reunidos em Pour un twuveau roman pro~ a uma golfada de metal em fusão, jorrando subitamente,
vam-no: reflectir sobre a descrição no romance equivale parecia queimar a esteira. e de novo era preciso cerrar
a reexaminar as noções sobre as quais repousam vários tudo e acachapar-se ... »); da própria personagem, Mauriac
séculos de criação literária. Tentemos fazer o ponto sobre quase só mostra o rosto, como que furtivamente: «Faces
este problema da descrição do espaço, considerando as encovadas, maçãs do rosto salientes, lábios sumidos, e
suas funções, a sua natureza e as suas significações. uma testa larga, magnifica, compõem uma cara de con-
Ela pode servir para criar um ritmo na narrativa: des- denada ... »("), e a· propósito da casa de Argelouse faz
viando o olhar para o méio ambiente, provoca um des- só rápidas e dispersas alusões. Balzac descreve metodi-
canso após uma passagem de acção, ou uma forte ,,xpec- camente «a casa do Senhor Grande!», onde está também
tativa quando interrompe a narrativa num momento cri- «fechada» Eugénie, e faz o retrato de cada nova perso-
tico; constitui, por vezes, uma abertura. no sentido musi-
cal do termo, que anuncia o movimento e o tom da obra ( 2 3.) Citado em Nelly Conneau, Physiologie du roman. Bru-
(Atala); alarga as perspectivas narrativas, assinala uma xelles, La Renaissance du Livre, p. 96.
(24) Gaétan Picon, Malraux par lu1-même. Paris, Editions
du Senil, 1961. p. 62.
(") Ibid., p. 81. ( 2 1'i) François Mauriac, Tliérese Desqueyroux, pp. 37 e 20.
156 157

nagem quando esta aparece. A descrição oscila. pois, de narração. Claude-Edmonde Magny estudou-o, por
entre os dois pólos do esboço que retém apenas alguns exemplo, partindo do romance americano: o romancista
traços significativos e do quadro que intenta abraçar a pode, também ele, utilizar a panorâmica, o traveling, a
totalidade dum objecto ("). profundeza de campo, os jogos de luz, a distância em
Ela reencontra assim as orientações e os processos da relação ao objecto e a mudança de plano para situar a
pintura. Os romances de Zola, aliás, põem em cena pin- personagem, para a integrar no seu meio.
tores (Claude Lantier em L'Oeuvre) e a sua arte descri- Num artigo de Poétique («Qu'est-ce qu'une des-
tiva é, sem dúvida, devedora a Coube!, Manet. Cézanne, cription?», 1972, n.º 12, pp. 465-485), Philippe Ramon
que ele contribuiu para tornar conhecidos. Proust cria faz três perguntas que delimitam o problema da descrição:
uma personagem de pintor (Elstir) e amadores de pintura como é que ela se integra na narrativa (isto é, através
(Swann, Bergotte), e refere-se a Vermeer ou a Botticelli. de que «sinais demarcativos» se reconhecem o seu prin-
Robbe-Grillet integra nas suas narrativas descrições de cípio e o seu fim), como é que ela funciona nos seus
~ '
quadros, de postais, de fotografias (La Jalousie, La Maison limites, qual o papel que ela desempenha na economia
,.
de rendez-vous, Dans /e labyrinthe); Butor consagra várias global dum romance? A descrição serve para, no interior
·1'i 1
páginas de La Modification à descrição duma sala de da narrativa, comunicar informação, do autor ao leitor,
1]
museu. Do mesmo modo que ele acaba de estudar As por meio de uma personagem informada a uma outra
palavras na pintura, poder-se-ia buscar o lugar da pin- que não o está. Certos modelos que se impuseram - por
tura na literatura e, nas equivalências que Théophile Gau- exemplo em Balzac, Flaubert e Zola - preenchem essa
tier ou os Goncourt quiseram estabelecer, encontrar técni- função: a descrição implica o olhar de uma personagem,
cas similares: justaposição de pequenas pinceladas donde a necessidade de introduzir essa personagem e de
«impressionistas», largos frescos de história, colagens a colocar em face do objecto. Esta condição prévia deter-
cubistas, etc.. Tem sido muitas vezes sublinhado um outro mina campos semânticos (adjectivos qualificando atitudes
parentesco, de origem recente, que existe entre o romance físicas e psicológicas, verbos de percepção, etc.), persona-
e o cinema, na representação do espaço ou nos modos gens-tipos (o passeante, " pintor, o entendido, o técnico),
cenas estereotipadas (visita dum lugar desconhecido, con-
templação, . devaneio sonhador diante duma paisagem),
traços psicológicos (curiosidade, desenraizamento, vazio
{'-e) Vejam·se as distinções. que faz· RicaTdou. em particular
a propósito de Claude Ollier, a descrição criadora de sentido, etc.: interior). Pouco a pouco, a descrição provoca assim
Jean Ricardou, Problêmes du JWUveau roman. Paris, Editions reacções em cadeia no interior da nátrativa: a necessi-
du Seuil, 1967, pp. 91-121. dade de descrever leva a introduzir tal personagem, a

i
,I
158 159

colocá-la em tal situação, a dar-lhe ta\ motivação. Longe soberbos olhares senão sobre os reis, sobre os
de ser um acrescento decorativo mais ou menos parasi- seus empreendimentos particulares e sobre as
tário, a descrição condiciona, portanto, o funcionamento vastas e tenebrosas operações da sua política.
da narrativa no seu conjunto. O romance, menos altaneiro, abrange a multidão
dos indivíduos e segue a marcha do carácter
nacional (").

O problema do realismo Em que é que se funda esta superioridade do roman-


cista? Como escapa ele às limitações, aos preconceitos,
aos erros do historiador? Assim se põe, a propósito da
Consoante a natureza que o romancista dá ao espaço
representação do meio, o problema que a ultrapassa, pois
e o lugar que atribui à sua representação, desenham-se
que toca toda a concepção do romance - e do teatro:
estéticas divergentes. A descrição do espaço encontra-se
o realismo. As suas fontes são longínquas, dado que as
subordinada à análise psicológica. à reflexão moral ou
histórias literárias descobrem uma «corrente realista»
filosófica em La Princesse de Cleves, em Adolphe, nos
desde a Idade Média; mas no século XIX. em particular,
romances de Mauriac ou de Bemanos. O autor põe deli-
excitou a cólera e fez correr a tinta de muitos lit~atos.
beradamente o acento no ser humano e. na maioria das
Zola proclama, em 1881, em Le Roman expérimental:
vezes, no indivíduo tomado isoladamente, do qual faz
«Nós, os romancistas, somos os juízes de instrução dos
o centro do seu universo romanesco. Inversamente, a
homens e das suas P'aixões». Objectividade! Realidade!
ambição do escritor pode ir até fazer entrar tudo no seu
são as palavras de ordem do tempo. Ilusão, responde na
livro: ele toma-se, por assim dizer, senhor da criação
mesma época Maupassant, no prefácio de Pierre et Jean
através do romance. Em 1784, depois de tantos outros
(1887):
teóricos do romance e bastante antes de La Comédie
Fazer verdadeiro consiste, pois, em dar a
humaine e de Les Rougon-Macquart, Louis-Sébastien
ilusão completa do verdadeiro, segundo a lógica
Mercier opunha a história ao romance para mostrar a
ordinária dos factos. e não em transcrevê-los ser·
superioridade deste:
vil mente na embrulhada da sua sucessão. [... )
Cada um de nós se faz [... ] simplesmente uma
enquanto parece entregue por inteiro à imagina-
ção. o romancista traça quadros mais próximos
(") Lonis.Sébastien MerC?"er, M. on bon net de nui,.
"t t II ,
da verdade do que essas ficções honradas com o Neuchi1tel, Imprimerie de la Société Typographique, 1784,
nome de história. Esta, aliás, não detém os seus pp. 329-330.

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li.·
11
160 161

ilusão do mundo, ilusão poética, sentimental, O debate, duma grande complexidade, não está aliás
alegre, melancólica. suja ou lúgubre, conforme a encerrado, pois Roland Bartbes, por exemplo, reexaminou
sua natureza. E o escritor não tem outra missão nos seus Essais critiques e em Le degré z.éro de l' écriture,
que não seja a de reproduzir fielmente essa ilusão os dados do problema, os seus componentes sociais, os
com todos os processos de arte que aprendeu e sofismas que esconde: as coisas e a linguagem são duas
de que pode dispor. realidades distintas que Barthes opõe radicalmente, não
podendo a segunda ser a imagem «fiel» da primeira:
Maupassant marca. assim, fortemente as transforma-
ções sucessivas que sofre a realidade exterior, primeira· O realismo. aqui, não pode ser, pois.. a cópia
mente quando atravessa a consciência do romancista e das coisas, mas o conhecimento da linguagem;
se carrega de elementos «subjectivos», depois quando é a obra mais «realista» não será a que «pinta» a
traduzida pela linguagem. A ideia da relatividade do ver- realidade, mas a que, servindo-se do mundo como
dadeiro fizera o seu caminho no século XVIII, como conteúdo (este mesino conteúdo é, aliás, alheio
testemunham as reflexões publicadas por S. Constant de à sua estrutura, isto é, ao seu ser), explorar o
Rebecque como antelóquio de Laure ou Lettres de quel- mais profundamente possível a realidade irreal
ques femmes de Suisse (1786). O romance evolui na da linguagem (").
medida em que a própria humanidade muda e se diversi-
fica cada vez mais: O realismo é, portanto, impossível, ou, antes, não é
o que se julgava que era (").
as almas já não são da mesma têmpera por todo A representação do espaço no romance não constitui
o lado: os seus móbeis variam como os climas; mais do que um ponto particular do problema crucial da
o que é admirado num sitio mal é lido num mimesis, no qual escritores, historiadores e críticos se obsti-
outro; aqui, tudo se predispõe em favor da
sociedade e da sociabilidade; as coisas essen-
ciais juntam-se aos recreios da vida; ali, o inte- ( 28 ) Roland Barthes, Essais critique~. Paris, Editions du
resse pessoal, só, decide tudo; o que excita a Souil, p. 1134.
emulação e o encorajamento, um pouco mais (29) Ver, por exemplo, os artigos de Philippe Ramon.
Henri Mitterand, Jacques Neefs, Claude Duchet em Poétique,
longe apenas inspira a inveja: os princípios de
16, 1973. Sobre o problema do ralismo, ver Denis Saint-Jacques,
moral variam como os lugares e a alma muda «lmpossible réalisme», in :ttudes líttéraires. Québec, Abril 1970,
de natureza com o tempo. pp. 9-19.
11
162 163

nam desde Platão e Aristóteles e que mostra sobre que Charles VI», os matizes do azul aos «duma cauda de
ambiguidade repousa toda a prática literária. Duas con- pavão», depois a safiras e a uma chuva luminosa «que
cepções se confrontam neste ponto: a literatura copia de gotejava do alto da cúpula sombria e rochosa, ao longo
facto e por dever o real. a literatura não reenvia senão das paredes húmidas, como se fosse na nave de alguma
a si mesma. Em que medida, portanto, se pode falar de gruta irisada de sinuosas estalactites qne eu seguisse os
realismo no sentido de imitação da realidade? Na impos- meus pais», um mundo fabuloso se desenha por detrás
sibilidade de fornecer uma resposta - poderá ela deixar da «realidade» da igreja de Combray. As imagens na
de ser polémica, e mesmo terrorista, ou sempre diferida?-, descrição são os reveladores desse invisível, por elas se faz
certos críticos tentam inventariar os processos que cons- a transmutáção do quotidiano. Numa outra página do
tituem critérios do discurso realista: motivação psico- Côté de Guermantes, a imagem de uma gruta marinha
lógica, referência ao conhecido, modelos descritivos, etc.. povoada de nereides e de tritões sobrepõe-se à deserição
Numa outra perspectiva. a sacio-crítica visa elucidar da ópera com tal intensidade que a sala se torna verda-
menos a relação entre o romance e a realidade social que deiramente essa gruta: «Nas outras frisas, quase por todo
a existente entre o romance e o discurso que a sociedade o lado as brancas deidades que habitavam aquelas estân-
desenvolve sobre ela própria, o «univ~rso extra-texto» que cias tinham-se refugiado contra as paredes obscuras e
ele supõe e ao qual se refere. mantinham-se invisíveis ... ». Uma deserição do espaço
revela, pois. o grau de atenção que o romancista concede
ao mundo e a qualidade dessa atenção: o olhar pode parar
no objecto descrito ou ir mais além. Ela exprime a rela-
A relação com o mundo ção, tão fundamental no romance, do homem, autor ou
personagem, com o mundo ambiente: ele foge deste e
A descrição pode adstringir-nos a observar a reali- substitui-o por outro, ou mergulha nele para .o explorar,
dade que ela pretende colocar diante dos nossos olhos, e o compreender, o transformar, ou se conhecer a si mesmo.
essa realidade só, ou então pode querer sugerir mais: Ao ter de deixar o recanto da Ilha de França que lhe
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'
num caso extremo, mostraria uma coisa diferente do é querido, uma personagem de Romanesques de Jacques
que finge mostrar. Quando Mauriac, no final de Mystere Chardonne interroga-se:
Frontenac, fala da «ferida» dos pinheiros, essa palavra
faz-nos entrar num outro domínio. o do sofrimento uni- · Donde vem um apego tão forte?... O ar tal-
versai. Quando Proust comprara os vitrais a «um grande vez... Um não sei quê de puro, de saboroso no
jogo de cartas semelhante aos que devian1 distrair o rei ar, de luminoso na casa ... o rio ... esta linha dos
165
164
Da relação feliz em que a natureza parece feita para
bosques... Tudo isso, na realidade, olhei-o o homem que não «conta», o romance revela, através
pouco ... Estava Lão distraído! Enchia-me o da representação do espaço, um afastamento considerável
coração e eu não lhe prestava atenção ... ("). entre sistemas de valores morais e filosóficos. Se esta
diversidade parece ter aumentado na nossa época, em
Os romances de Chardonnc estão cheios destas con- Chrétien de Troyes já coexiste a evocação duma natureza
cordâncias- delicadas entre as personagens e uma natureza agradável que chama o homem a cantar com ela:
temperada, envolvida em doce luz, toda feita de cambiantes.
As personagens vivem. aí, a um ritn10 lento e. mesmo se um Foi no tempo em que árvores florescem,
drama incuba nelas, a contemplação ou a simples impreg- Folhas, arbustos, prados reverdecem,
nação da natureza conta largamente para a sua felicidade Em que os pássaros no seu latim
do momento. Ao contrário, os dois aventureiros de La Docemente cantam pela manhã,
vaie royale, Claude e Perken, mergulham na floresta tai- Em que todo o ser se inflama de alegria[ ... ]
landesa que se volta a cerrar sobre eles como uma arma-
dilha fofa: e as descrições de lugares temerosos, como aquela famosa
ponte da Espada que Lancelot tem de atravessar:
A floresta e o calor eram, contudo, mais for-
tes que a inquietação: Oaude afundava-se, como Via aquela onda pérfida,
numa doença, nessa fern1entação em que as for- Rápida, ruidosa e espessa,
mas inchavam, se alongavam, apodreciam fora Tão negra e pavorosa
do mundo onde o homem conta, e que o Como se fosse o rio do diabo
separava de si mesmo com a força da obscuri- E tão perigosa e profunda
dade. E, por todo o lado, os insectos ("). Que não há coisa alguma neste mundo
Que, ali caindo, não fosse levada
Perken ali encontrará a morte, ao lado do seu compa- Tal como no mar salgado ...
nheiro «estranho como um ser de outro mundo».
Amigo ou hostil, o espaço aparece também, no
Jacques Chardonne, Romanesques, Chirnériques, Vivre
( 3 º)
romance, com um grau variável de fluidez ou de densi-
à Afadere. Paris, Albin MicheI, 1954, p. 144. dade, de transparência ou de opacidade: enquanto que
(ª1) André Malrl:lux. La vaie royale. Paris, Le Livre de parece quase apagar-se, ou ao menos deixar-se percor-
poche, 1954, pp. 65-66.

il
166 167

rer livremente pelo homem ou pelo seu olhar nas obras floresta que separa o edifício da escola do domínio miste-
de Chardonne, opõe-lhe, em Malraux, toda a sua massa rioso constitui tanto um labirinto protector como um
ou, por vezes, uma vontade própria; o mundo torna-se incitamento à aventura, mas as arquitecturas complicadas,
uma divindade toda-poderosa em Collíne de Giono ou em as portas fechadas, os corredores sem fim, as ruas que
Derborence de Ramuz, exigindo respeito e adoração. conduzem sempre o peão ao ponto de partida, em Robbe-
O piloto de V oi de mui/ domina-o com o avião, mas tem -Grillet, Kafka ou J.-L. Borges, dão uma imagem da
de contar também com os «dragões da noite», o deserto, condição humana, tornada, pela frequência, um estereó-
o vento, as montanhas: Fabien, como o Lanceio! de Chré- tipo. «Não é talvez por acaso», escreve Ludovic J anvier,
tien de Troyes, revela-se e supera-se no corpo-a-corpo «que a tragédia moderna, desde Kafka, se exprime sobre-
com a natureza. Camus escolheu um lugar neutro, isto é, tudo em termos de espaço [.. .]. O labirinto tomou-se a
sem carácter particular. para nele fazer eclodir. reinar e banal - porque a melhor- tradução da postura irrisória
extinguir-se a Peste; não se trata, da parte do roman- dum indivíduo que o mundo devora e desorienta» (").
cista. de indiferença para com o mundo exterior - mos· Ao contrário, a viagem que abre o espaço aos homens
trou em Noces, por exemplo, com que sensualidade podia aparece como uma promessa de felicidade. O processo
comungar com o sol, o vento, o n1ar ~, n1as de desejo de frequentemente utilizado pelos romancistas, consistindo
situar a sua narrativa, digamos, no abstracto e de dar-lhe em exprimir «O extraordinário» através de «outro lugan>,
um sentido intemporal - desejo de fazer dela urna fábula. tem a sua origem talvez na crença de que, como para
até mesmo uma parábola. As suas personagens sentem a Emma Bovary, não nos pode «acontecer coisa alguma»,
prisão na cidade de portas fechadas como uma protecção isto é, algo de inédito, de exaltante, senão num outro lugar.
ou como uma injustiça revoltante. Desta aspiração a um longínquo problemático, nasceu uma
O espaço opressivo parece predominar nos romances abundante literatura qualificada habitualmente de evasão
contemporâneos. Por vezes, faz gerar o ódio ou a revolta e de que o romance de aventuras é uma forma parti-
no coração duma personagem, por exemplo em Adrienne cular. A viagem está ligada estreitamente à noção de
Mesurat de Julien Green ou em Thérese Desqueyroux de mudança de terra, capital no romance em geral. As perso-
Mauriac, ou a angústia à volta de quartos proibidos nas nagens que partem -Julien Sorel ou Frédéric Moreau -
novelas de Borges e de Cortazar. Para além desta influên- vão à conquista do poder, da paixão, da felicidade; as que
cia psicológica, o romancista impregna este tipo de espaço { 32 ) Ludovic Jauvier, Une parole exigeante. Paris, Edition.'I
de um sentido filosófico. O tema do labirinto traduz, com de Minuit, 1964, pp. 27-28. Cf. tambétn o excelente artigo de
evidência. a angústia dos homens face ao mundo em que Henri Ronse, «Le labyrinthe, espace significatif», in Cahiers inter-
! !
na.tionnux du Sljmbolisme, n. 0 s 9-10, 1965-1966.
não encontran1 o seu lugar. Em Le Grand Meaulnes, a
168

vagueiam - do René de Chateaubriand ao Perken de


Malraux - procuram extinguir ou satisfazer ' alguma
paixão devoradora. Paul e Virginie são felizes na sua
ilha dos trópicos porque, para Bernadin de Saint-Pierre, CAPÍTULO IV
a felicidade só pode florescer longe da civilização. As
viagens imaginárias, quer sejam as de Cyrano de Bergerac
no século XVII, quer as da nossa moderna ficção cienti-
O tempo
fica, satisfazem um desejo de maraviihoso, mas traduzem
também um sentimento de escapar ao pesadume, logo à
condição humana. O errar de lado para lado, se é por
vezes (para Édipo ou para o povo judeu da Bíblia) uma Nos nossos dias - depois de Mallarrné -, com as pes-
maldição, também pode significar uma livre realização do quisas de Butor e dos colaboradores de Te! Que!, toma-se
nosso destino ou, como em Jack Kerouac, tornar-se pro- consciência da possibilidade de tratar o romance como
messa duma outra vida onde tudo é possível ("). Nesses um espaço onde o texto, página após página, se organiza
romances, em que o espaço desempenha o papel primor- à maneira de uma sucessão de quadros sobre um fundo
dial, cristalizam-se velhos sonhos da humanidade: voar físico que dá à narrativa a sua configuração própria. Mas,
nos espaços intersiderais como ícaro, ou descobrir sobre por oposição às artes espaciais que são a pintura ou a
o nosso planeta um Éden escondido, onde o homem escultura, o romance é, antes de tudo, considerado como
!í poderá reencontrar na natureza a felicidade perdida. uma arte temporal, ao mesmo titulo que a música.
É discurso, quer dizer, implica, como deixa perceber a eti-
( 33 ) Jack Kerouac, Sur la route, tradução de J. Houbard, mologia, sucessão e movimento. Se o quadro pode ser
Paris, Gallimard, col. «Folio», 1972, p. 25: «... eu ia ouvir o abrangido glob~lmente num instante. o romance tem de
apelo duma vida nova, ver um horizonte novo, confiar·me em ser, primeiro, desenrolado, antes que o abarquemos por
"tudo isso en1 plena juventude; e se houvesse de ter alguns aborre- inteiro, antes que o captemos plenamente. Além disso,
cimentos, se até Dean houvesse de não mais me querer por
companheiro, e de abandonar-me, como o faria mais tarde, caindo
não há personagens romanescas sem andamento, sem uma
de fome num passeio ou numa cama de hospital, em que é que aventura, por mais simples que seja. É necessário tempo
isso me podia chatear? Eu era um jovem escritor e sentia-me a Lanceio! para reencontrar Gueniêvre e a Candide para
!: com asas. adquirir a sageza, como o é necessário ao caminhante do
Em qualquer parte do caminho, sabia que haveria raparigas, . Labyrinthe de Robbe-Grillet ou ao viajante de La Modi-
visões, tudo, sei lá, em qualquer parte do caminho apresentar-me-
fication.
-iam a pérola rara».
. -,-----
'

170 171

Desde o lillCIO do século sobretudo, com as obras acolher a minha relação, de tal maneira que se
de Proust, Th. Mann, V. Woolf e M. Butor, por exemplo, liga a um triplo registo do tempo: o seu próprio,
o tempo já não é apenas um tema ou a condição duma o do cronista e o tempo histórico(').
realização, mas o próprio assunto do romance. O tempo
leva, na realidade, à realização; avatares das personagens
e dos acontecimentos nele se inscrevem ainda, mas não
está aí o essencial: o tempo apresta-se a tomar-se o O tempo da aventura
herói da história. Teriamos, sem dúvida, de remontar
até ao Tristram Shandy de Sterne para lhe descobrir tama- A primeira dimensão temporal a ferir a atenção dum
nha preponderância na narração romanesca. leitor de romance é a da história. Em que época se situa
A importância assumida pelo tempo nas obras mo- a aventura contada? Nos primeiros tempos da huma-
dernas mais significativas nem por isso facilita a nidade (La Guerre du feu de Rosny Ainé), no presente
missão do crítico, pois que a palavra tempo reveste signi- (o romance na primeira pessoa), no futuro (1984 de G.
ficações diferentes consoante os quadros de referência que Orwell ou L' An 2440 de L.-S. Mercier)? A obra abraça
lhe damos. Tomemos para ponto de partida a distinção os quarenta anos de história duma família, através de
proposta por M. Butor nos seus Essais sur le roman: «Ao várias gerações~ ou circunscreve~se aos poucos instantes
abordarmos a região do romance, temos de sobrepor que dura o enunciado duma condenação à morte ou a
pelo menos três tempos: o da aventura, o da escrita, o da mudança dum sinal luminoso de trânsito? No primeiro
leitura»('). A distinção encontrava-se já no capítulo XXVI caso, Les Rougon-Macquart ou Os Forsythe, no segundo,
do Doktor Faustus. Falando «do tempo em que se move Os cavalos também se abatem de H. Mac Coy e L' Agran-
o narrador e daquele em que se desenrola a narração», dissement de Claude Mauriac. E tal duração, mais ou
Th. Mann escreve: menos considerável, é puramente exterior, cronológica, ou
esta esbate-se por detrás duma duração psicológica, exis-
Há aqui um muito singular cruzamento das
épocas, destinado aliás a imbricar-se com um
(2) [,e Docteur "f'austus, traduzido do alemão por Louise
terceiro periodo, em que o leitor fará o favor de Servicien, Paris, A1bin Michel, 1950, p. 323. Numa obra muito
pouco conhecida, e da qual nos socorremos em dadas oca·
siões, Ttme and Novel (London, Peter Nevill, 1952), A. A. Men-
dilow cita esta mesma passagem de Th. Mann e adopta as suas
(1) ~1ichel Bulor, Essais sur le t·on1a11, p. 118. distinções como armação do seu estudo.

1
172
173

tencial, não mensurável pelo relógio ou pelo calendário?


escolher; não teme proclamar o seu desprezo pelo
Há oposição ou diferença entre as durações existenciais
! das personagens? Cada duração integra-se numa outra,
«maçudo e prolixo historiador» e propor ao leitor um
! colectiva, geral, ou opõe-se à duração social, considerada
método completamente diferente:
do exterior, sub specie aeternitatis? Outras tantas questões
Sempre que se apresentar alguma situação
que põem ao romancista problemas técnicos a resolver extraordinária (prometemos muitas desse género),
e que lhe permitirão exprinúr o seu próprio tempo de não pouparemos tempo, nem custoso esforço para
autor.
traçar uma fiel pintura dela. Mas se correm anos
Quer se trate de fazer entrar em 200 páginas os trinta
sem nada trazer de importante, não teremos
anos da vida de uma mulher ou os dois minutos duma receio de deixar um vazio na nossa história.
mudança de sinais luminosos de trânsito, o romancista Apressando-nos a chegar a épocas fecundas em
tem de escolher um número restrito de aspectos, de acontecimentos, passaremos sob silêncio esses
acontecimentos, de pormenores. O que Maupassant
intervalos de esterilidade (') .
• 1 escreve no prefácio de Pierre et Jean poderia aplicar-se
1
tanto ao psíquico como ao social ou ao histórico: Esta liberdade, que se afirma, de não desenvolver,
1
de abrir lacunas na narativa, de servir-se nela dos silên-
Contar tudo seria impossível, porque seria cios, evoca a estética dum Jorge-Luis Borges que escreve
preciso um volume, ao menos, por dia, para enu- no Prólogo do seu Jardim dos caminhos que se bifurcam:
merar as multitudes de incidentes insignificantes
que enchem a nossa existência. Desvario laborioso e empobrecedor, esse de
compor vastos livros. de desenvolver em qui-
nhentas páginas uma ideia que se pode muito
«Fazer entrar tudo» num romance, esse desejo que
bem expor oralmente em alguns minutos. Mais
obsessiona um dia ou outro todo o ronmancista, seja ele
vale fingir que esses livros existem já, e apresen-
Rétif de La Bretonne, Balzac ou Gide, revela-se, portanto,
tar um seu resumo, um comentário (').
impossível. O escritor terá de utilizar múltiplos pro-
cessos para fazer esquecer a sua impotência para dizer
tudo: resumos, bruscos saltos no tempo, síncopes, acele- (3) Torn fones, tradução de H. de La Bédoyere, t. I, Paris,
rações, etc.. Crontrariamente à maioria dos romancistas, Julliard, cal. «Liltérature», 1964, p. 82.
(1) Fíctions, lradução de P. Verdevoye e N. Ibana, Paris,
Fielding não hesita em confessar a sua prévia decisão de
Gallimaod, 1957, pp. 33-34.
174
175

Que a novela seja para Borges a forma perfeita do Filie d' Eve, não tem dificuldade em mostrar que nunca
romance ou se assemelhe a um romance expurgado, pouco conhecemos a história dos outros logicamente, cronologi-
importa; o essencial é que entre a escolha deliberada de camente, mas aos bocados. ao acaso das circunstâncias:
Fielding e a superioridade da novela proclamada por
Borges persiste a mesn1a recusa de tudo dizer, o mesmo V. encontra no meio dum salão um
desejo dum tempo reduzido, condensado, e, por isso homem que perdera de vista há dez anos: é pri-
mesmo, intensificado, idealizado, podendo ir ao ponto de meiro-ministro ou capitalista. e V., que o
'.se reduzir a un.1 momento, a um instante vital.: «0 meu pro- conhecera sem labita, sem espírito público ou
i,pósito», escreve Borges a respeito de Tadeo Isidoro Cruz, privado, admira-o na sua glória, surpreende-se
!«não é de ren1emorar a sua história. Dos dias e das com a sua fortuna e com os seus talentos; depois
;noites que a compõem uma só noite me interessa; dod vai até um canto do salão, e ai qualquer deli-
resto, não contarei senão o que é indispensável para com- cioso conversador de sociedade faz-lhe, em meia·
;preendedr essa noite.», «Bem compreendida, essa noite per- -hora, a história pitoresca dos dez ou vinte anos
mite atingir o fundo da sua vida; melhor, uni instante que o leitor ignorava. Muitas vezes essa história
dessa noite, um acto dessa noite; porque os actos são o escandalosa ou honrosa, bela ou feia, ser-lhe-á
nosso símbolo. _'f_octo o_ destino, por longo e complicado dita no dia seguinte, ou um mês depois, algumas
g__ue _sej&. comp:reende. _na realidade, un1 só momento: vezes por partes. Não há nada neste mundo que
_aquele em que o homem sabe para sempre o que ele seja dum só bloco, tudo nele é ladrilho.
Ó» (').
1
! --No mesmo capítulo de Tom fones, Fielding deixa Em Balzac, mais do que duma ordem cronológica
ainda entender que o narrador, «fundador dum novo conviria talvez falar dum tempo ladrilhado. Como escreve
1.
império literário>>, não se adstringjrá a «conservar escru- M. Butor nos seus Essais sur le roman (p. 114), a ordem
pulosamente a ordem dos factos», a «seguir o tempo, estritamente cronológica é quase inutilizável no romance:
passo a passo». Balzac, por um cuidado de exactidão «Toda a referência à história universal se torna impossível,
histórica, subverterá a ordem cronológica, à qual substitui toda a referência ao passado das personagens surgidas,
1 o que ele chama o «tempo social». No prefácio a Une à memória, e, por consequência, toda a interioridade».
1 A mais simples das narrações romanescas, além de esco-
1 lher um pequeníssimo número de elementos da aventura
(~) L'Aleph, tradu~o de R. Cai1lois e R. F. Durand, Paris. contada, pode chegar a utilizar uma armadura temporal
Gallimard, 1967, pp. 71-72 e 74. relativamente complexa, que se traduz por antecipações,
1

• !

!
r
176 177

retornos atrás, cruzamentos de acç-oes, telescopagens ... semelhantes ('). Seria demasiado longo dar conta aqui de
É sobre o estudo sistemático dessas «anacronias narrati- todas as possibilidades inventariadas por G. Genette (ana·
vas» ou «formas de discordância entre a ordem da história lepses e prolepses «parciais» ou «completas», etc.), mas
e a da narrativa»(') que G. Genette faz repousar a sua é fácil compreender já a utilidade duma análise fundada
análise do tempo proustiano, designando po,r «prolepse» sobre uma investigação do tempo capaz de iluminar a
toda a evolução por antecipação dum aéonteêirrí~nto significação da obra.
ulterior ao momento da história em que se está («narra- A armadura temporal duma narrativa pode compli-
tiva primeira») e por «~n!'lepse» (retrospecção) toda a car-se ainda em consequência de outras formas de dis-
evocação retardada dum acorÍt~éimento anterior a esse cordância entre tempo da narrativa e tempo da aventura.
momento. Definir-se-á sob o nome de «alcance» a dis- Com efeito, se a narração mais simples consiste em
tância temporal que separa a anacronia - analéptica ou empregar o pretérito para contar uma aventura passada e
proléptica - do momento da história em que se inter· o futuro para representar uma antecipação, o escritor
rompe a narrativa, e sob o nome de «amplitude» a dura· recorre habitualmente a uma estrutura temporal mais
ção mais ou menos longa coberta por essa anacronia. complexa. Esqueçamos a aventura presente, isto é, o que
G. Genette divide seguidamente estas duas classes de me acontece no momento em que falo, o que está a
anacronias em sub-classes cada vez mais precisas: ana~ pontos de ser feito, in statu nascendi, e que não se pode
lepses e prolepses «internas», «externas» ou «mistas», representar senão pelo presente. A aventura passada ou
consoante a sua duração (amplitude), interior e/ou exte- futura pode ser contada nos três tempos ·fundamentais da
rior à da narrativa primeira, oferece ou não um risco linguagem. O romance de antecipação habituou-nos ao
de interferência com ela. Analepses e prolepses «hetero· emprego do presente e do passado para «contar» uma época
diegéticas» (respeitantes a um conteúdo histórico diferente por vir; e se o presente pôde ser utilizado para transmitir
do da narrativa primeira) ou «homodiegéticas» (respeitan· a aventura passada, não se vê, a priori, porque é que
tes ao mesmo raio de acção da narrativa primeira); «com·
pletivas», quando o segmento retrospectivo ou antecipante (7) Existe uma relação de frequência entre a narrativa e os
vem preencher com atraso ou antes do tempo uma lacuna acontecimentos que relata: ela pode contar uma vez o que se
passou uma vez (a narrativa é, então, dita «singulativa» ), numa
anterior ou ulterior, e «repetitivas». quando a retrospec-
só vez o que se passou várias vezes (narrativa «iterativa»). Estas
ção ou a antecipação reenvia não já a um acontecimento soluções, as mais empregadas, dão lugar Por vezes a outras:
único, mas a uma série de acontecimentos considerados· c:ontar várias vezes o que se passou várias vezes, ou, no· caso
da narrativa «repetitiva», contar várias vezes o que se passou
( 6) Figures III. Paris, Editions du Seuil, 1972, p. 79. uma só vez. Cf. Genette, ibid., pp. 146 e segs.
12
178 179

o futuro não poderia sê-lo também. Sem dúvida que o conduzir à perdição ou ao triunfo, enquanto que em Proust
futuro é um tempo muito pouco romanesco, embora a trata-se de escapar, pela arte, ao «tempo dos relógios», ao
Bíblia - o Apocalipse, em particular- dele tire efeitos tempo social, para atingir, para além dos seus múltiplos
impressionantes. O emprego dum tempo em vez dum eus sucessivos, o seu «eu profundo» no «intemporal», no
outro, em todo o caso, corresponde a necessidades e «tempo no estado puro»; Thomas Mann, que gostosa-
objectivos particulares. Por exemplo, o emprego do pre- mente co1npara os seus romances a sinfonias ou a «mitos
sente para contar o passado visa, como o teatro histórico vividos», utiliza processos próprios para traduzir urna
actualizar um problema, uma situação, dar à aventur~ concepção cíclica do tempo: rejeição do tempo mensurá-
o estremecimento, a incerteza do presente, enquanto que vel mecanicamente em A Montanha Mágica (subversão
o futuro, o tempo dos profetas e das sibilas, poria em das estações. recusa de usar o re1ógio ou de arrancar as
paralelo uma época por vir com o tempo presente, folhas do calendário), em favor dum tempo ritual cen-
para daí fazer ressaltar irónica, trágica ou fatal- trado sobre o amontoamento de dias sempre idênticos e
mente, a concordância. a oposição, a continuidade ou a sobre as numerosas festas «que mafcam o ritmo e a
ruptura. Ao invés, o ron1ance de antecipação narrado no pulsação do ano»; utilização da história bíblica de José,
passado fixa a aventura na perspectiva histórica e per- apresentada como um arquétipo mítico de Israel, recurso
mite ao autor estabelecer uni ]aço unitivo com a sua ao mito de Fausto para descrever a Alemanha eterna,
época e nela mostrar o futuro em germen. Ainda aqui, oscilando entre o humanismo e o frenesi demoníaco. Em
deveríamos examinar os valores respectivos dos tempos Guerra do tempo, de Alejo Carpentier, a repetição de
empregados ('). situações idênticas corresponde a uma concepção cíclica
Mais do que o emprego dos tempos da gramática, é a do tempo, cujo curvo desenvolvimento parece excluir
própria substância de cada tempo romanesco que deve a possibilidade dum progresso. Em contraposição
ser captada. O «tempo reencontrado» de Proust não é a estas vastas estrutras temporais, os romances mais
nem o de Becket! nem o de La Nouvel/e Hélüise. Em significativos dos últimos quarenta anos propendem
Balzac, já foi dito repetidamente, o tempo marca a evolução mais a pôr o acento no instante do que na dura-
duma sociedade; forma os grupos e os indivíduos para os ção; neles, o tempo já não é rio ou círculo mítico,
mas espelho estilhaçado em mil pedaços ou parcela
microscópica: as «miríades de impressões» de V. Woolf
(8) Ver, en1 particular, os caps. XVIII e XIX de Emile ou o «presente desmesuradamente ampliado» de. N. Sar-
Benveni.~te, ProblCmes de linguistiqu.e génerale, do mesmo modo·
raute nada têm de comum com «o intemporal» de Proust
que Gnstave Guil1aume, Temps et verbe, prólogo de R. Valia,
Paris, Champion, 1965. ou o tempo mítico de T. Mann.

1
-
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As obras, como é evidente, não têm este carácter rígido Iam, pois, seguir-se agora, assim, em fio,
das teorias e das classificações. Madame Bovary, por sempre parecidos, inumeráveis, e nada trazendo
exemplo, é construído sobre a dupla oposição, espacial consigo! (').
e temporal, do aqui-agora e do alhures-futuro. O agora
é o círculo estreito da sua vida quotidiana sem surpre-
Prisioneira da sua vidaziuha provinciana, Emma ali-
sas, enquanto que o futuro é a possibilidade de fazer rom-
n1entou o sentimento de que os dias e os meses se
per o ciclo temporal em que ela abafa:
acumulam uns sobre os outros como os diferentes andares
do boné de Charles ou do bolo de noiva: tempo cíclico,
No fundo da sua alma, contudo, ela espe- ritmado pelos toques do sino rachado ou pela passagem
rava um acontecimento. [... ] Não sabia qual seria das estações, e de que ela não se poderá evadir senão pelo
esse acaso, o veuto que o impeliria até ela, a mar- suicídio. Mas, para além desta oposição entre o tempo
gem em direcção à qual a levaria [... ]. Mas, cíclico vivido e o tempo imaginário projectado, Flaubert
todas as manhãs, ao despertar, esperava-o para utiliza, com virtuosismo, acelerações (a volta de fiacre de
esse dia, e escutava todos os ruídos, levantava-se Emma e Léon), as marchas lentas (o cortejo fúnebre do
sobressaltada, espantava-se por ele não vir; final, em oposição ao cortejo nupcial do início) ou as
depois, ao pôr-do-sol, sempre mais triste, dese- mudanças de ritmo (a cena dos comícios agrícolas).
java estar no dia seguinte. L' Education sentimental oferece um largo mostruário
A primavera reapareceu. Ela teve faltas de ar dos processos que servem para exprimir o tempo como
com os primeiros calores, quando as pereiras realidade objectivamente mensurável (tempo métrico) ou
florescem. como experiência vivida (tempo subjectivo) e que dizem
Desde o começo de Julho, contou pelos dedos respeito quer à duração da narrativa, quer à duração do
quantas semanas lhe faltavam para chegar ao discurso("). O mais simples consiste em datar os acon-
mês de Outubro, pensando que o Marquês de
Andervilliers daria ainda, talvez, um baile em
La Vaubyessard. Mas Setembro inteiro escoou-se
sem cartas nem visitas. ( 9) Gnslave Flauhert, Madame Bovary, p. 84.
( 1 º) Sobre a questão do tempo na narração, veja-se a ten-
Depois do dissabor desta decepção, o seu· tativa de sistematização dos processos cm J. Dubois, F. Edeline,
coração de novo ficou vazio, e então a série dos J.-~I. Klinkenberg, Rhétorique générale. Paris, Larousse, cal.
mesmos dias recomeçou. (d..,flng11e- ct langage», 1970, pp. 177-184.
183
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tecimentos relatados no romance: Frédéric toma o barco Estavam um perto do outro, de pé, no vão
para Nogent a 15 de Setembro de 1840 e «pelos fins da janela. A noite, diante deles, estendia-se como
de Março de 1867» recebe a visita de despedida de um imenso véu escuro, ponteado de prata (1').
M.me Arnoux. No quadro assim delimitado, as alusões Ou então, por ocasiao duma viagem, as etapas, a
aos acontecimentos históricos mais ou menos exteriores à descrição «em movimento» da paisagem - Frédéric des·
1.
narrativa em si mesma - Revolução de Fevereiro de 1848 cendo o Sena em direcção a Nogent (1 parte. cap. 1),
ou golpe de Estado de 2 de Dezembro de 1851 - forne- ou regressando de diligência a Paris (li parte, cap. 1) - ,
cem pontos de referência cronológicos. Ou, ainda, os epi- sendo muitas vezes essa descrição orquestrada por indi·
sódios da narrativa são situados uns em relação aos outros cações sobre o ritmo da viagem: deslizar continuo, solavan·
por fórmulas tais como «é no próximo sábado, 24, a festa cos barulhos de máquina ou de passos, etc., que produ·
de M.me Arnoux», «na mesma tarde, no mesmo ze~ um efeito sobre as personagens e. desse modo, visam
momento», «então começaram três meses de tédio». As interiorizar a experiência do tempo. O espectáculo exte·
indicações do relógio: Frédéric esperando Regimbart no rior desencadeia neles, frequentemente, um fenómeno de
café (II parte, cap. 1), ou M.me Arnoux na rua (II parte, ordem psíquica: pressentimentos, antecipações, rem1~11s­
cap. 6), o ciclo das estações, o retorno, para Frédéric, das cências ou simples associações de imagens que reenVlllffi
férias e dos exames depois do ano universitário consti· a um outro tempo; para Frédéric, tudo evoca M.me
tuem um conjunto de processos que dizem respeito à
Arnoux, seja uma silhueta feminina entrevista, um. canto
medida objectiva do tempo, designando pontos ou inter- de rua ou as fendas do muro. Pela suspensao da
valos numa sequência cronológica. A sucessão dos factos narrativa, o devaneio sonhador duma personagem su_rrime
numa cena - chegada dos convidados, festa, partida dos
0 tempo, fixando imagens numa espécie de eternidade:
convidados - contribui, além disso. para comunicar o como bem mostrou Gérard Genette (12), o romance passa
sentimento do tempo que se escoa, reforçado por indica- assim da ordem da narrativa à ordem da contemplação.
ções sobre as cores envolventes, sobre a iluminação: o tempo pode ser expresso não somente por indica·
ções pertencentes à narrativa compreendida como llllla
Um lado do horizonte começava a empali- sequência de episódios, mas também, e sobretudo, pela
decer, enquanto que do outro uma larga cor
alaranjada se estatelava no céu e era mais purpu- (11) Gustave Flaubert, L'Education senUmentale. Paris,
rina na cumeeira das colinas, que ficavam com~. Le Livre de poche, 1965, pp. 106-107.
pletamente negras[ ... ]. (12) Gérard Genette, «Les silences de Flauhert», in Figu·
Já as velas ardiam no salão[ ... ]. res, 1, Paris, Editions du Seuil, 1966.

1 i
184 185

exploração dos recursos da compos1çao e dos modos sob o nome de «anisocroniaS» esses diferentes «efeitos de
narrativos. É sobre esta distinção fundamental de dois ritmo» (p. 123) ou distorções temporais entre ficção e
níveis temporais que Jean Ricardou (") funda a sua aná· narração, inerentes a toda a narrativa literária., e dividia
lise do tempo romanesco: tempo da ficção, da anedota ou as formas convencionais da velocidade narrativa em
. da «história» propriamente dita, e tempo da narração «pausa descriminativa», «cena» (a maioria das vezes
· ou modos de expressão dessa história no romance (14). dialogada. correspondendo a um tempo forte da acção),
Entre estes dois eixos, instauram-se relações de dura- «elipse» e «Sumário» (narração breve dum tempo mais
ção, variando com a natureza dos modos narrativos e longo da história) - residindo a forma privilegiada do
determinando uma «velocidade da narração»: equilíbrio romance pré-proustiano na alternância do «sumário» e da
da narrativa no estilo indirecto, que resume num tempo '«cena». Assim aparece, em toda a obra romanesca, uma
narrativo relativamente curto um tempo fictício mais formação específica do tempo capaz, segundo Ricardou
longo; afrouxamento ou «atolamentm> da narrativa durante e Genette, de iluminar a ficção. No capítulo 4 da II parte
a análise ou a digressão, privilegiando a narração à custa de L' Education sentimentale, por exemplo, o resumo
da ficção e podendo levar, na descrição, por exemplo: (narrativa panorâmica) alterna com cenas dispostas em
a uma imobilização total de acção. Lembre-se que três conjuntos correspondendo a três momentos decisivos
Genette, no capítulo «Duração» de Figures li/, definia da acção: causas longínquas da animosidade entre Frédé-
13
ric e de Cisy; provocação, preparativos e duelo; depois,
( ) Jean Ricardou, Problemes du nouveau roman. Paris, Ed.
du Seuil, 1967, pp. 161 e segs. consequências da questão. «Buracos» no encadeamento
(1 4) Distinção que encontran1os também nos Fo-rmalistas dos factos, cortes e elipses, a ausência de transições fazem
russos (Théoríe de la littéral:ure. Paris, Ed. du Seuil, 1965), mas progredir a narrativa por saltos, por vezes sobre um longo
sob uma denonlinação diferente: r~presentando a «fábula» para período. enquanto que uma narração minuciosa e, por
B. Tomachevski «O conjunto dos acontecimentos ligados entre si»
assim dizer. sistemática (por exemplo, II parte. cap. 4),
segundo uma «ordem natural», «causal e cronológica» (tempo
da ficção) e o «assunto», «a ordem de aparição» na obra desses
em que as frases servem de «enchimentm>, tem por efeito,
1nesmos acontecimentos (p, 268) (tempo da narração). Divisão às vezes. imobi1izar a narrativa, logo, comunicar a sensa~
idêntica em B. Eikhenbaum entre «os elementos da construção ção de alongamento. de tédio, de impaciência ou de vazio.
du1na obra (o assunto) e os elementos que formam o seu material: O voltar atrás. por intermédio do narrador omnisciente
a fábula, a escolha dos motivos, das personagens., das ideias, etc.»
- passado de Deslauriers (I parte, cap. 2) - ou através
(pp; 51-52), e em V. Chklovski entre «motivos» e combinação
dos motivos que devem forn1ar o assunto (p. 170). Cf. também a
de uma personagem contando-se a si mesma, ou recapi-
distinção similar estabelecida entre Fabel. e Geschichte por tulando a história duma vida - Frédéric diante do corpo
E. Lãmmert em Baufonnen des Erziihe1is. Stuttgart, Metzler, 1955. de Dambreuse - marca a deslocação das épocas, tal
186 187

como o retorno de cenas idênticas (dois passeios de Fré- se cada dia da minha vida houver de ser tão
déric e M.me Amoux na rua, duas recepções em casa cheio como este (e porque não?) e se os acon-
de Dambreuse) ou, ainda, o /eitmotiv do pequeno cofre. tecimentos e as opiniões que a enchem deverem
de M.me Arnoux que passa de mão em mão. Para além ser traduzidos tão longamente (e porque os
da sua função estrutural, estes «emparelhamentos» ser- haveria eu de cercear?)(N, 18). (").
vem para tornar visível a acção do tempo sobre as perso-
nagens. sobre os seus sentiffientos e sobre os seus empreen- O narrador de Sterne, sempre atrasado em relação
dimentos (de que cruelmente sublinham, na ocorrência, à aventura, peado que está na sua própria duração e sacu-
a inanidade). Flaubert utiliza, por exemplo, para esse dido pelo tempo que passa ("). multiplica as reflexões
fim o pretérito perfeito simples e o imperfeito, o plural sobre as interferências das duas durações: a sua própria
dos nomes, que sugerem o número e a acumulação de e a das suas personagens. A escrita desejaria progredir
acontecimentos («Viajou. Conheceu a melancolia dos cronologicamente no mesmo sentido que o tempo da aven-
paquetes, os frios despertares sob a tenda ... »), a simetria tura, mas, presa na armadilha da duração existencial do
na construção da frase, o desvio dum parágrafo para narrador, evolui por saltos, retornos atrás ou bruscas
outro, etc .. paragens da sequência dos eventos. No capítulo 21 do
O tempo da narração mantém com o da ficção relações primeiro livro, ·o narrador eocreve:
mais complexas, que adivinhamos ao ler certas digressões
Eu penso, replicou o tio Toby, tirando da
do Dr. Zeitblom e que o narradot de Tristram Shandy não
deixa de sublinhar: boca o cachimbo, cujo fornilho bateu duas ou
três vezes contra a unha do polegar esquerdo
Tenho este mês doze meses a mais do que há ao começar a frase - eu penso ...
precisamente um ano; ora, como, chegado mais
( 15) Tristam Shandy, tradução de Charles Mauron, Paris,
ou menos ao meio do meu quarto volume, não Robert Laffont, 1946. Indicamos, entre parêntesis, as partes em
descrevi senão a história do meu primeiro dia, números romanos e os capítulos em números árabes.
é claro que tenho boje trezentos e sessenta e (16) «Pela minha parte, trabalho nisto há seis semanas com
quatro dias para contar a mais do que no ins- toda a rapidez possível e ainda não nasci» (I, 4). «Quanto à ideia
de escrever doze volumes por ano, ou seja, um por mês, ela nada
tante em que iniciei a minha obra. Assim, em
muda ao que apercebo do meu futuro: posso escrever quanto qui-
lugar de avançar no meu trabalho à medida que ser e cair em cheio no assunto, como Horácio recomenda, que
o faço, como um escritor vnlgar, recuei trezen- nunca me alcançarei, nem mesmo pela mais desenfreada das
tos e sessenta e quatro vezes três volumes e meio, galopadas» (IV, 13).
188
189

depois, d_eixa o ~achimbo do tio Toby para se ocupar de F austus está ligado à ascensão do nazismo na Alemanha
outra coisa e so voltar atrás umas trinta páginas mais
e à última guerra mundial. Numa digressão do capí-
adiante:
tulo XXVI, o narrador do Doktor Faustus escreve:
Eu penso, replicou o tio Toby, tirando, como
já disse, o cachimbo da boca para sacudir a cinza, Em certas passagens, o leitor talvez tenha
eu penso[ ... ].
substimado o número de dias e de semanas que
Suspensão do tempo da aventura em favor da dura- já tive de consagrar à biografia do meu antigo;
ção existencial do narrador, como nos filmes de Robbe- de igual modo, talvez me creia aquém da época
·Grillet em que as personagens se fixam subitament" em que traço as prese11tes linhas. Com risco de
numa postura hierática. O mesmo processo surge em vê-lo sorrir da minha pedanteria, julgo oportuno
Jacques /e Fataliste, quando Diderot intervém no relato indicar que, desde o dia em que comecei estas
dos amores de Jacques para fazer notar, logo na segunda notas, quase um ano se passou e que, enquanto
página: escrevia os últimos capítulos. entrávamos em
Bem vê, leitor, que estou em bom caminho, Abril de 1944.
e que só de mim dependeria fazê-lo esperar um Naturalmente, entendo por esta data aquela
ano, dois anos, três anos, pelo relato dos amores em que a minha actividade se exerce, não aquela
,, de Jacques, separando-o do patrão e fazendo-os em que deixei a minha narrativa e que se situa
" passar a ambos por todos os acasos que me apete- no Outono de 1912, vinte meses antes do detonar
cesse. O que é que me impediria de casar o da outra guerra[ ... ](").
patrão e de o fazer cornudo? de embarcar Jac.
ques para as ilhas? de aí conduzir o seu patrão? Tais reflexões, longe de gratuitas, mostram não
de os trazer de volta, os dois juntos. no mesmo somente o cuidado de Thomas Mann em ligar dois dife-
navio? Como é fácil fazer contos! rentes períodos, agitados por uma guerra em que a Ale-
manha se deixou possuir pelos seus demónios seculares,
mas também o seu cuidado em marcar o momento da
O tempo da escrita
escrita com precisão. para o situar face a certos aconteci-
mentos do passado e assim dar ao romance uma actuali·
O tempo da escrita não é um dado tão simples como
dade e uma dimensão histórica indissociáYeis. O momento
se poderia crer à primeira vista. Le Rouge et /e Nair
é indissociável da época post-napoleónica, como Doktor
(") Le Docteur Faumus, ed. cit., pp. 322-323.
]9()
191

da escrita é importante neste sentido de que o autor repre- ou dez anos, começava a fixar no papel uma obra então
senta menos o tempo da aventura que o da época, Racine. a nascer: ele pertence já à nova obra que germina lenta-
pondo em cena personagens mitológicas ou históricas. mente nele. A obrigação de ganhar a vida através da
trata, antes do mais. do seu tempo. A própria técnica pena, do mesmo modo que a necessidade de acrescentai
romanesca é indissociável do momento da escrita, pois três tomos por ano ao romance cíclico popular ou ao
que o escritor é tributário de modas e de processos da «vasto fresco histórico». com ou sem o recurso aos
sua época, ao imitá-los ou ao recusá-los ("). «negros»('), não deixa, bem entendido, de influenciar a
A duração da composição, tal como o momento da técnica e o conteúdo ideológico ou sociológico do romance.
escrita, reveste-se de uma importância considerável. Não Certas obras consideráveis, como as de Proust, testemu-
é indiferente escrever um romance em oito dias como nham sobre esta evolução duma técnica e dum pensa-
Simenon, ou em cinco anos, como Flaubert. Uma :..nexão mento no decurso da redacção.
de Balzac, no prefácio à primeira edição de La peau de O efeito e o objeetivo perseguidos por Diderot e
chagrin, sublinha-o muito a propósito: Sterne são evidentemente diferentes, mas o processo é o
mesmo.
Enfim, o tempo caminha tão depressa, a vida Sem ser tão flagrante como em Proust, Sterne ou Dide·
intelectual transborda por todo o lado com tanta rot, a interferência da duração do narrador nem por isso
força, que várias ideias envelheceram, foram cap- é menos detectável em toda a hora romanesca onde,
tadas, expressas, enquanto o autor imprimia 0 como mostrou W. C. Booth, se cria o que ele chama um
seu livro. «autor implícitO», uma persona, uma máscara forjada
pelo escritor no decurso da redacção. Esta 0<1uração da
A obra romanesca. com efeito, arrisca-se sempre a persona nada tem a ver, evidentemente, com a duração
estar em atraso face à evolução do seu autor. Quando cronológica da redacção, mas pertence ao que Proust
Saint-Éxupéry faz aparecer Courrier-Sud, o homem e o chama o «eu profundo» do criador, por oposição ao eu
criador já ultrapassaram as contradições de Bernis, 0 anedótico, social. É uma duração rica, complexa, ligada
herói da ficção. No momento em que o romance, mal a cada uma das personagens, mas também independente
foi concluído, lhe escapa para ir para a impressão, o delas, como testemunha o romance de Sterne. É propria-
criador está muitas vezes longe do escritor que, há cinco

18 (*) «Nêgre» designa o escritor obscuro que compõe obras


( Cf. Roland Barthes, Le dégré zero de l'écríture. Pari~,
) depois publicadas não em seu nome, nlas como se fossem criaçóes
Edilions du Seuil, 1953. dum determinado autor de primeira plana (N. do T.).
192 193

mente a duração, ao mesmo tempo, do herói e do narrador duma guerra eventual com a Espanha por causa da suces-
Tristram Shandy. Porquanto- esquece-se isto com fre· são ao trono, já não é para nós objecto de medo ou de
quência - o título do romance é Vida e opiniões de esperança, mas recordação de uma personagem histórica
Tristram Shandy, o que significa que a vida do espírito que os historiadores a custo poupam... A obra de Mon-
terá nele um lugar considerável. Vista segundo esta tesquieu, ultrapassada sob determinados aspectos pela his-
óptica, a inextrincável rede temporal do romance não tem tória e pela actualidade, nem por isso deixa de se colocar
nem a gratituidade, nem a arbitrariedade, que nele vêem a par, dum certo modo. das nossas mais vivas preocupa-
muitos leitores, mas desposa a complexidade dum espírito ções actuais.
i particularmente lúcido, vivaz e inventivo. Com o romance de antecipação, o desajuste é inverso,
1
pois que quanto mais nos aproximamos de 1984 e de 2440
O tempo da leitura mais as utopias de G. Orweil e de L.-S. Mercier, desmen-
tidas pela actualidade, mudam de significação. O seu
Há sempre um desajuste eritre o momento em que o interesse advém menos da exactidão da visão prospectiva
leitor toma conhecimento da história e o momento em do escritor do que da sua capacidade de criar um uni-
que a aventura se passa ou é contada. Com os anos, o verso ficticio convincente, com a sua armação conceptual
desajuste aventura-escrita permanece o mesmo, mas o e as suas leis próprias.
afastamento entre o tempo da escrita e o da leitura varia, O afastamento entre a experiência da leitura e a da
até ao ponto de mudar o alcance ou o sentido dum livro escrita é ainda acentuado pela evolução do sentido das
de uma geração para outra. Isso fazia dizer recente- palavras e pela mudança dos modos de vida e de pensa-
mente a Julien Green, no prefácio à nova edição (1970) mento duma época para outra. Estamos bem seguros do
de T emps faciles: «Os anos transformam os livros. Erra- sentido exacto da palavra sentir nas personagens de
riamos se disséssemos que envelhecem; tornam-se Rousseau e Marivaux? A nossa maior ou menor igno-
outros ... ». Dois séculos e meio depois da aparição das rância da evolU1Ção semântica, da terminologia própria
Lettres persanes, com o excesso populacional, o aluir dos de cada escritor e, sobretudo, a nossa impotência para
impérios coloniais e a recordação de duas guerras mun- recriar com certeza o clima mental duma época incitam-
diais, as reflexões de Usbek e de Rica sobre a coloniza- -nos à prudência. Ainda mais, a própria escrita é
ção, o despovoamento da Europa, a guerra ofensiva ou um instrumento bastante grosseiro para transmitir a efer-
defensiva ganham um sentido totalmente diverso para vescência interior dum ser: «Tudo o que então me vem
nós. A figura tocante de Luís XV criança (carta CVIII), ao espírito sobre isso, embora longo de dizer, não leva
cuja saúde frágil fazia temer uma morte próxima, seguida mais do que um instante a ser pensado», suspira a Ma-

1
.1
,I
194 195

rianne de Marivaux. Assim, sem negar a necessidade, no tas pagmas que exigem várias horas para serem
plano literário, do «realismo subjectivo» para transmi- lidas. E ainda que lhes tivesse consagrado dez
tir uma determinada visão do mundo, pode-se duvidar do mil ou um milhão, esses dois minutos não teriam
seu fundamento para eliminar todo e qualquer desajuste sido esgotados, teria havido sempre outro tanto
entre a consciência do leitor e a das personagens: se uma a dizer a seu respeito, e eu teria ficado sempre na
«certa orquestração das consciências» permite «transmi- periferia das coisas. das palavras. dos seres - à
tir a pluridimensionalidade do acontecimento», não se superfície da água profunda, da água imóvel do
vê como é que Sartre conseguiria fazer desaparecer «os tempo('°).
intermediários entre o leitor e as subjectividades-pontos-
-de-vista» das personagens, para fazer coincidir sucessiva- Não se trata apenas de fazer coincidir a consc1encia
mente aquela com estas("). O próprio acto de ler, de do leitor com as das personagens, mas sobretudo com a
decifrar um texto, implica o risco de tornar ainda mais do romancista, do qual não conhecemos na maioria das
opaco o quadro de projecção- o «intermediário» - que vezes as hesitações, as rasuras, o sentimento de impotên-
constitui a escrita. No meio duma reflexão sobre o seu cia para dizer o essencial, mascarados pelo próprio êxito
próprio empreendimento de escritm, Claude Mauriac da obra e pelo seu carácter de totalidade autónoma.
sublinha com justeza que a natureza discursiva da lin- Não é apenas a significação das obras que muda com
: !
guagem escrita o impede de exprimir pedeitamente o o tempo; a função e a prática da leitura numa dada
1 l
carácter global e instantâneo da percepção, e. por isso ! sociedade impõem ao escritor, de bom ou mau grado,
mesmo, torna inevitável o desajuste temporal entre a constrangimentos. Os romances de Chrétien de Troyes,
1
escrita e a leitura: destinados a ser lidos diante de assembleias. incitam o
autor, por exemplo, a multiplicar os diálogos e as reme-
1: Mas a escrita.. que é sucessiva nos seus ele-
mentos. opõe-se a que o escritor obtenha e ofe- 1norações de forma a conservar o interesse dos auditores.
As damas sós dos castelos dos séculos XV e XVI. como
reça, como o pintor. uma visão instantânea, em
as leitoras dos salões mundanos do século XVII, privadas
que tudo é dado ao mesmo tempo, sob um
das artes e técnicas de comunicação modernas, eram
mesmo olhar. Assim, precisei de mais de duzen-
n1ais motivadas do que nós para ler uma obra narrativa
tas páginas para sugerir os dois minutos que
de alguns milhares de páginas. Daí o favor desses inter-
formam a duração de L' Agrandissement, duzen-

(19) Jean-Paul Sartre, Qu'est-ce que la littérature?. Paris, (2º) Claude ~1auriac, «Le temps inunohile», in Cnhiers
Gallimard, col. c<ldées», 1964, n. 0 11, p. 371. intrmationaux du symbolisme, n. 09 9-10, 1965-1966, p. 51.
196 197

mináveis romances em cinco ou seis tomos. No dues ou o presente de La Nouvelle Héla;se, o leitor opera
século XVIII, o aluguer de livros por livrarias ambulantes uma mudança de perspectiva temporal para segregar, no
e a multiplicação de contos ou narrativas vendidos à presente, uma experiência vital sempre renovada. O leitor
socapa já não permitem tamanha prolixidade. Um século francês, suíço ou belga de Prochain Episode ("), geral-
mais tarde, com o romance-folhetim que atinge um público mente descobre apenas vagas alusões a rnna realidade
muito diferente, a técnica e o conteúdo mudarão consi- política e cultural de que teve rnn conhecimento fragmen-
deravelmente. A frase-tipo: «Uma mão enluvada, empu- tário atr~vés da rádio, da televisão e dos jornaís. enquanto
nhando um revólver carregado, passou na entreabertura que os leitores do Québec vivem quotidianamente, cada um
da porta; o disparo partiu ... », pondo termo a um capí- a seu modo e conforme as suas próprias opções políticas,
tulo com a mesma extensão em cada semana, pretende essa realidade que ultrapassa o quadro restrito da ficção.
manter desperta a curiosidade do leitor até à próxima Da mesma maneira, esses leitores não podem abordar
saída do jornal. Não é por acaso, sem dúvida, que o Kamouraska, de Anne Hébert, sem que o mito dos «Pa-
romance policial tem a sua origem. com Gaboriau, no triotas» da revolta armada de 1837 venha dar uma cor
folhetim. e um sentido bem particulares às evocações da narra-
A corljuntura sócio-económica impõe igualmente os dora ("). Se podeinos conceber a validade duma análise
seus· contrangimentos. A extensão dos romances, por destes dois romances à maneira dum Jean Ricardou, que
exemplo, ligada aos custos de produção e ao nível de vida recusa à literatura qualquer função representativa, para
dos leitores, influi inevitavelmente sobre a técnica roma- se interessar em exclusivo pelo «funcionamento» do texto
nesca. A geração de leitores nascida com a televisão e o leitor q uebequense não pode impedir-se de ver nele;
formada pelos meios áudio-visuais não terá nem as mes- uma certa «representação» do seu universo político
mas motivações, nem a mesma armadura intelectual para actual.
abordar a obra romanesca, o que terá forçosamente uma Na sua contestação duma certa verosimilhança roma-
influência determinante sobre a evolução do género. nesca e no seu esforço para fazer nascer uma espécie de
Para além destes factores históricos ou sócio-culturais, fenomenologia da criação, Sterne evoca a relação aven-
i
1.1
as diferenças individuaís fazem com que cada leitura crie
a sua duração própria. O romance torna-se um tema
sobre o qual o leitor improvisa as suas variações pessoais, (") Hubert Aquin, Pl'ochain Episode. Montréal, Le Cercle
1
ao sabor do seu génio inventivo ou da sua riqueza interior. du Livre de France, 1965; Paris, R. Laffont, 1966.
Ele desposa menos a duração do romance do que se serve (") Ann(' IJébert, Kamouraska. Paris, Editions du Seuil,
1970.
dela para a sua própria. Com o passado das lllusions per-
198

tura-escrita-leitura numa passagem célebre de Tristram


Shandy:

Desde o instante em que o meu tio Toby


tocou a campainha e em que Obadíah recebeu a
ordem para selar um cavalo e ir a galope a casa CAPITULO V
do Dr. Slop, o médico parteiro, passou-se uma
boa hora e meia de leitura tolerável. Poetica-
mente, deixei portanto a Obadiah o tempo de As personagens
fazer a ida e volta (dada, aliás, à urgência da
viagem) e ninguém me teria algo a reprovar,
ainda que na verdade o homem talvez tenha pre- 1. UMA REDE DE RELAÇÕES
cisamente enfiado as botas (II, 8).

À «hipercrítica» escandalizada com esta entorse even- A personagem de romance, como a de cinema ou
tual à verosimilhança, o narrador declara altivamente que a de teátro, é indissocllivel do universo ficlícío a que
se pode contentá-lo dizendo que Obadiah encontrou o ,pertence: homens e coisas. Ela não pode existir no nosso
Dr. Slop ao sair do pátio! Manifestamente. Sterne deseja espírito como um planeta isolado: está ligada a uma cons·
um leitor tão livre e empreendedor como o seu próprio telação e só por ela vive em nós com todas as suas dimen·
narrador. Um leitor - como desejarão também Butor e sões. O romance fornece exemplos célebres de pares:
Robbe-Grillet - lúcido, atento, que não se deixa embalar Sancho e Don Quijote, Jacques o Fatalista e o seu
por uma música fácil. mas que recebe o testemunho do patrão. Mme de Merteuil e Valmont, ou de triângulos
narrador e. inventa, por seu turno. a obra. Contrariamente como Julien, Mme de Rênal e Mathilde. Mas René e
ao romancista de evasão, Sterne não procura tanto arran- Ado! phe não são personagens solitárias? Seguramente
car o leitor do seu tempo real para o levar ao éden ima- que não; pois como pensar em Adolphe sem que a
ginário da ficção e impor-lhe o seu tempo de escritor, imagem de Ellénore o acompanhe? Pode-se esquecer o
quanto mergulhá-lo mais, graças à obra a decifrat numa nome de Mersault. mas é difícil esquecer o Árabe, o
. duração de .maior riqueza. A leitura já não é um passa- capelão da prisão, o juiz de instrução em L'Etranger.
tempo para dissipar o tédio, mas um exercício intelectual Quer se trate de grupos consideráveis, como os ,mineiros
e uma experiência criadora. em greve de Germinal, ou de figuras episódicas como a
~-

200 201

mocetona da jarra de leite das leunes filies en fleurs, são de fé de sedmor, vê na presidente apenas o obstáculo
. as personagens de romance agem umas sobre as outras que ela representa para a sua iniciativa: «A sua devoção,
>,,j
~---~-- ,_ ,, -.- -. ·'
· e revelam-se umas às outras . o seu amor conjugal, os seus principios austeros». A mar-
Da mesma maneira que o indivíduo implicado numa quesa - uma mulher que julga outra mulher notada -
«dinâmica de grupos», pela imagem que projecta, pelas exprime um juízo muito diferente:
reacções que faz nascer, se vê olhado de forma muito
diferente por cada um dos indivíduos do grupo, também O que é afinal esta mulher? uns traços regu-
a personagem de romance, levando as outras a revelar: lares, se assim o quiser, mas nenhuma expressão;
uma parte de si mesmas até aí desconhecida: descobrirá a passavelmente feita, mas sem graças; sempre ·
cada uma um aspecto do seu ser que só o contacto . arranjada de modo a fazer rir! com os seus
numa dada situação podia pôr em relevo. Releiamos, por montes de lenços no pescoço, e o corpo que sobe
exemplo, em Madame Bovary, o início do 3.º capítulo da até ao queixo'
segunda parte. Léon, Homais e Charles pensam em
Emma. Léon, tímido e reservado habitualmente, mos- Evidentemente, nem Valmont nem Mme de Merteuil
tra-se ao -mesmo tempo espantado e encantado por ter disseram a sua última palavra sobre a personagem, mas
«conversado, durante duas horas seguidas, com uma adivinha-se já até que ponto o seu juízo difere, embora
senhora». Homais, temendo aborrecimentos judiciários dando-nos a saber alguma coisa sobre a mesma pessoa,
com as suas «consultas anódinas no armazém», procura e sobre ambos sobretudo.
lisonjear Charles, o oficial de saúde, e apressa-se a infor- A rede de relações a que pyrtence a personagem- roma-,
'----.' ' ·-.,,,_,_..;
mar Emma sobre a forma de tirar o melhor partiao dos nesca estende-se também aos lugares
--··----·-•·-•-.-,.----U<·•<-, __ ,-.,,,,.,AO••<• ••'
e aos
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objectosJ
o---.__,,,,_,,,,_

fornecedores. Charles, por sua vez, não via em Emma Emma Bovary renasce no nosso espírito não somente•
· senão a sua gravidez: «A ideia de haver engendrado delei· quando pensamos em Rodolphe, Léon ou Charles, mas
tava·o». Três pontos de vista diferentes sobre Emma, e também quando revemos a velha diligência, o fiacre
que nos informam outro tanto sobre Léon, Homais e Char- de Rouen, o jardim de Tostes, o castelo de La Vaubyes-
les que sobre a personagem que passa no seu campo de sard. De igual modo, as gândaras e os pinhais são
visão. Da mesma maneira. no início das Iiaisons dange- \• indissociáveis dos heróis de Mauriac; da mesma maneira,
reuses, temos duas apreciações de Mme de Tourvel; a pri- o rápido Paris-Roma para o viajante de La Modification.
meira, na carta IV, por Valmont; a segunda, pela mar- Sem sobrenome de família, nem mesmo, por vezes, pri-
quesa de Merteuil, na carta seguinte. Valmont, que pre- meiro nome. as personagens de Robbe-Grillet existem para
tende devorar os obstáculos e que acaba de fazer profis- nós ligadas a outras personagens num cenário labiríntico
202 203

que se. re\'.ela. gradualmente. Da mesma forma que Sorel, Duma espada polida e branca
Fielding ou Gide não matavam a ilusão romanesca pelas Era feita a ponte sobre a água fria.
suas flagrantes intrusões de autor, Robbe-Grillet não se Mas a espada era forte e inflexível
,;! desembaraça da personagem e do seu meio. Apenas muda E tinha duas lanças de comprimento.
·a' «psicologia», isto é, a maneira de ser duma consciência Em cada margem havia um tronco
posta no mundo. Onde esta espada estava cravada.
() universo exterior descrito pelo romancista reenvia
taiilbêm~ ãS" personÍtgens, .para as. quais constitui uni pro: Pela sua força. pela sua vontade de derrubar todos os
longámento, Uní obstá~Íilo Óu um reveíádor. «Ú homem obstáculos, Lanceio! conseguirá por fim alcançar a rainha
descobre-se qualldo se mede com o obstácul0», escreve Guenievre.
Safut-Exupéry no início de Terre des hommes. O obstá- Inversamente, o Candide de Voltaire não tem qual-
culo, quer se trate dos elementos naturais ou dum avião quer poder sobre os acontecimentos: é continuamente
que obedece mal aos comandos, permite à. personagem sacudido pelos elementos naturais, num mundo subme-
de Saillt-Éxupéry revelar a sua força, a sua coragem, a tido a leis tão inelutáveis como imprevisíveis. O obstáculo
~ua habilidade. Tal como os cenários do encenador suíço já não é aqui trampolim ou força viva para temperar um
Àppia, com as escadas, os planos inclinados e as placas de ser, mas sinal de que o universo escapa ao homem e se
1' latão de dimensões variadas, procuravam pôr em relevo a recusa a deixar-se domesticar por ele.
beleza e «os contornos arredondados do corpo» do actor, •.Q mundo .J!l'§ SQiS'!!' pode ta.mbémnão ser estranh(), .
os obstáculos permitem à personagem esculpir-se a si pró- opost'õàp;;;;~nagem. Pode ser sinal de fraternidade e de
pria, manifestar as suas qualidades de homem activo. ésp~~ de u~ ser, c~~ os rolos de fumo das chaminés
O herói de Saint-Éxupéry, como o de Montherlant ou de das casas e as luzes duma humilde aldeia para os aviado-
Malraux, quer «deixar uma cicatriz sobre o mapa», quet res de Saint-Éxupery. No fim de La Prisonnii!re, diante da
dominar o mundo: o seu domínio do mundo é sinal do janela iluminada de Albertine, o narrador detém-se um
,j
:[ seu valor. Do mesmo modo, o herói do romance cortês, momento:
para «merecen> sua Dama, deve fazer face aos ll)Onstros, Fiquei um instante sozinho no passeio. Na
aos perigos e até a uma natureza em geral hostil, como verdade, àquelas listas luminosas que eu via de
se se tratasse dum inimigo a defrontar num combate sin- baixo, e que a um outro teriam parecido de todo
gular. Não tem o Lanceio! de Chrétien de Troyes de atra- superficiais, dava eu uma consistência, uma ple-
vessar, «com grande sofrimento», a ponte da espada nitude, uma solidez extremas, por causa de toda
«com as mãos nuas, com os pés descalços»? a significação que punha por detrás delas. num
204 205

tesouro insuspeitado pelos outros, que ali tinha


escondido e de que emanavam aqueles raios 1a não é um agrupamento humano, mas «uma força da
natureza>>. «uma vaga negra»; a estrada, inundada pelos
horizontais, mas um tesouro em troca do qual últimos raios do sol poente, «parece arrastar sangue>>.
tinha alienado a minha liberdade, a solidão, o Na floresta de Vandame. onde os mineiros se reuniram
pensamento (1 ). antes da greve, a natureza, habitualmente hostil pelo frio,
o vento, a humidade, parece agora incitar os homens à
Mais ainda do que sinal duma presença, a coisa pode
revolta, transformando Etienne em profeta e distribuidor
tornar-se um elemento indissociável da personagem roma·
de riquezas:
nesca. O cachimbo de Maigret, o avião-ferramenta dos
heróis de Saint-Éxupery fazem corpo com a personagem, A gente dos mineiros só tinha, pois, que con-
de que se tornam, de algum modo, o prolongamento..J;~as quistar os seus bens; e, com as mãos estendidas,
~rsona!l<:'!'L.<!<t.ll!1".:z:ag .J; .<!~ Z:oia estão• de aj ,i;nane~ ele indicava toda a região para lá da floresta.
in<:"-!~t-~~!':~-~2. '!'~i() .. ;imbi@te. que parecem nascer dele Nesse momento, a lua, que subia do horizonte,
como o musgo noj?é.<!'!§árv.ores. Qai:m,<!rt:<iP1ent()~t!li1;lo · deslizando dos altos ramos, iluminou-o. Quando
da périsliõ Vãuquer de Pi!re Goriot faz um, __f()ffi
'"'-"-º-·~-" ,_ "''" a ' miséria
- '
a multidão, ainda no escuro, o viu assim, branco
das personagens que aí vivei;n ('). As gerações de minei· de luz, distribuindo a fortuna das suas mãos aber·
ros de Germinal trazem nas veias, tanto como estampadas tas, aplaudiu de novo, com palmas prolonga·
no corpo, as marcas da sua vida subterrânea: no mais das(').
profundo do seu ser, a resignação fatalista, juntamente
Se os homens correm o risco de se coisificar, a natu·
com, de quando em vez, bruscas fogueiras de violência;
: 1;'
reza, aos olhos das personagens de Germinal, vive inten-
sobre o corpo, os cabelos amarelos e as listras do carvão samente. A mina de Voreux é uma «besta má, voraz»,
!
como estigmas, Os mineiros não só se tornam bestas de um «monstro devorador» que engole os homens. Quando
carga, mas ainda se transformam em coisas, são as rodas
Zola descreve o anarquista Souvarine preparando-se para
1 ! da enorme e devoradora máquina do Capital. Quando a quebrar o revestimento do poço, escreve: «Ele [isto é,
!
multidão dos mineiros decide pôr-se em marcha na greve,
1

Souvarine] matá-Ia-ia por fim, _essa besta má de Voreux,


:j''i de guela sempre aberta, que tinha engolido tanta carne
-(1 )
Marcel Proust, La Prisonniere. Paris, Le Livre de
1 !
poche, 1967, p. 353. humana!»('). Para homens que perderam um dos parentes
1.
! ··.!' (2) Devéríamos ::dnda faJar do .. ves_tuárj~'-- _que serve fre- (S) En1íle Zola, Gennínal. Paris, Le Livre de poche, 1965,
. ci.Ltentemente para caracterizar a personÂgéffi, -Para situá-la no
p. 273.
\l seu ·grupo social. (4) Emile Zola, Germinal, p. 436.
206 207

ou que arriscara.in varias vezes a vida no seu «ventre», onde se viam, de mais perto, arrastar-se bichos-de-
Voreux é uma espécie de Moloch dissimulado e insa- -conta de numerosas patas. Nos abetos, perto da
ciável. sebe, o cura de tricórnio, que lia o breviário,
Em lugar de ser um monstro malfazejo ou um obstá- tinha perdido o pé direito, e até o estuque, las-
culo à felicidade humana, o universo das ·coisas pode cando com a geada, tinha-lhe feito verrugas bran-
também vibrar no mesmo diapasão que a personag~. cas no rosto.
Assim, na obra romanesca de Flaubert, é demasiado pouco
dizer 'l!le paisagens e sentimentos estão ligados. A emoção Muito melhor do que uma análise psicológica ou um
t~rna-sePâlSãgéíü-~~~.J><l~i&~-g;;~.k-~óÇlr;;: õ"j)re- monólogo interior, a grande serpente doente, os bichos-de-
fadõ de· Oide à segunda edição de Voyage d'Urien apli- -conta e as verrugas brancas da estátua fazem sentir a
ca-se perfeitamente a Madame Bovary: · ruína sentimental e o desgosto crescente de Emma. Do
mesmo modo, na floresta, quando a jovem se abandona
Serei compreendido se disser que o que é a Rodolphe, o romancista não tem necessidade de descre-
exposto vale a emoção, integralmente? Há aí urna ver a emoção de Emma ou de no-la revelar por um monó-
espécie de álgebra estética; emoção e descrição logo interior; basta-lhe a descrição da paisagem crivada
formam equação; uma é o equivalente da outra. de luz:
Qu~_~i~ser empç(w dirá, portanto, paisagem; e
,~,__ quem ~isser paisag_e1n deverá,_ portanto 1, coflliêC'ef. As sombras da noite desciam; o sol horizon-
, emoçtfo:··- - · "· " , - · · ·, _.,_. ~-~--
tal, passando por entre os ramos, deslumbra-
va-lhe os olhos. Aqui e além, à volta dela, nas
Flaubert. com efeito. não se contenta com comparar folhas ou no chão, manchas luminosas tremiam,
o tédio de Ernma a uma «aranha silenciosa» que «fiasse como se colibris, voando, tivessem espalhado as
; a teia em todos os cantos do seu coração»; descreve uma suas penas. Havia silêncio por todo o lado;
) paisagem donde escorre o tédio, o desgosto da jovem alguma coisa de doce parecia sair das árvores;
! após o episódio do baile de La Vaubyessard. O jardim, ela ·sentia o coração, cujo bater recomeçava, e o
1 que Emma tinha notado à chegada a Tostes, é à imagem da sangue a circular na carne como um rio 4e leite.
1sua alma:
Não se ouviam pássaros, tudo parecia dormir, Mais do que descrever. «nomear» um sentimento, um
a latada coberta de palha e a videira como uma l ésfado"de alma, Fiaubert r~cl;:o descrevendo o ~bject.;
grande serpente doente sob a capa do muro, \ o~'ã pâisaieJií· • Q:l)l~~do int;,por de. Emma e a natureza
\

11
.
,,

208 209

_são_ a talpopto intermutáveis que a emoção ou a paixão apenas, como o escrevia Gide no prefácio da segunda
suscita o nascimento da paisagem interior: edição de Voyage d'Urien, um equivalente da emoção ou
que, para retomar uma fórmula célebre, a paisagem não
~. apenas, ali, um estado de alma; ela ilumina a vida
Entrava em qualquer coisa de maravilhoso, inconsciente do protagonista. A natureza, em L'lmmora-
onde tudo seria paixão, extase, delírio; uma liste, é um lugar mítico que toma sucessivamente as diver-
imensidão azulada rodeava-a, os cumes do sen- sas faces do conflito de Michel, dilacerado entre as pulsões
timento cintilavam sob o seu pensamento, a instintivas da sua natureza profunda e os apelos à ordem,
existência vulgar só aparecia ao longe, muito em ao equilíbrio moral e psicológico da sua educação e do
baixo, na sombra, nos intervalos destas altu- seu meio.
ras('). O objecto pode ainda revestir-se de uma significação
simbólica. O ..ªJll()U,toar heteródito de objectos em Flau-
. Ep .certas ()bras. r~ll1anescas, a natureza ou os objec; bert, por exemplo, traduz na maioria das vezes a estupi-
d~z, a grosseria, o mau gosto pretensioso da pequena bur-
tos mant~~ c_om as _pe_rso_nagens relações aincÍa mais pro~
fundas. Foi com frequência sublinhada, por exemplo, a guesia provinciaria posta em cena "nos seus romances. Esta
estreita concordância entre a natureza e a vida psicoló~ imagem de acumulação ou de reconstrução a partir de
, · gica das personagens das narrativas de André Gide. Na objectos . discordantes toma frequentemente uma forma
geografia moral deste, com efeito, a África do Norte e o piramídal, como o boné de Charles e o bolo de noiva,
Sul aprésentam-se como regiões pagãs em oposição às objectos situados em m~entos particularmente importan-
regiões cristãs da Normandia e da Suíça: as terras enso- tes do romance. As próprias personagens podem apresen-
laradas do mundo mediterrânico, onde o homem, aliviado tar-se sob essa forma, como na famosa cena em três anda-
do peso das crenças e dos tabus. religiosos ou morais, volta res dos comícios agrícolas, com os aldeões e o gado no
a ser ele mesmo. um ser livre, instintivo. abandonado aos chão, o orador e os dignatários na tribuna, Rodo! phe e
exclusivos impulsos da sua natureza; as terras cristãs, alta- Emma no andar da câmara municipal. A mesma pirâmide
mente civilizadas, símbolo do constrangimento moral e da humana surge aquando do baile que dá Rosanette em
impiedosa ortodoxia religiosa. Mas é preciso ir mais L'Education sentimentale:
longe e ver como as imagens da natureza não constituem
Então ela tirou de sobre o fogão uma garrafa
de vinho de Champagne e deitou-o de cima, para
(D) Gustave Flaubert, Madame Bovary, pp. 86, 196 e 198. as taças que lhe estendiam. Como a mesa era

_j.j
210 211

muito larga, os convidados, sobretudo as mulhe- [... ] E eu - mole, enlanguescido, obsceno, dige-
res, chegaram-se para o seu lado, pondo-se em rindo, balançando mornos pensamentos - eu
bicos de pés, sobre as travessas das cadeiras, o também estava a mais ( 7 ).
que formou durante um minuto um grupo pira-
midal de penteados, de ombros nus, de braços Os objectos não são um reflexo da consciência ou da
estendidos, de corpos inclinados ('). vida psíquica («objectos inanimados, tendes vós afinal
uma alma [ ... ]?»): eles estão aí. Mas diferentemente do
Poderíamos até descobrir, nos devaneios de Emma, o que se passa com Robbe-Grillet, para quem as coisas
mesmo bricabraque pseudo-romântico de aspirações ou devem ser descritas sem referência antropomóriica, o
de imagens heteróclitas que se amontoam desordenada- narrador de La Nausée não pode impedir-se de dar às
coisas uma cor patética.
mente no seu espírito.
O simbolismo das imagens pode também revelar-nos,
ao mesmo tempo que um universo psicológico, uma meta- 2, FUNÇõES DA PERSONAGEM ROMANESCA
física. Nenhum exemplo se mostra mais revelador que
, a descoberta da existência das coisas por Roquentin em A personagem de romance, a título idêntico ao da
La Nausée. Quer se trate do tamborete do restaurante ou personagem de teatro, pode desempenhar diversas fun-
da raiz do castanheiro, Roquentin, em face da contingên- ções no universo fictício criado pelo romancista. Pode
cia das coisas, sente-se «a mais»; diante de outros «exis- ser, sucessivamente ou em simultâneo, elemento d"OC'Or~-­
tentes». é tornado de vertigens e sente «a náusea»: . ü;;:ô, agente êlà acção, pÕrta:voz do seu cnàdor, ser
htiinano fictício coÍn a sua forma de existir, de sentir, de
Éramos um monte de existentes incomodados, V~r- os -õuttõs e o mundo.
embaraçados connosco mesmos; não tínhamos a
menor razão para estar ali, nem uns nem outros;
Um elemento decorativo
cada existente, confuso, vagamente inquieto, sen-
tia-se a mais em relação aos outros. A mais: Há poucas obras romanescas que não apresentem
era a única relação que eu pudera estabelecer algumas personagens inúteis à acção ou sem possuir qual-
entre essas árvores, essas grades, esses calhaus. quer significação particular. Nos romances de Zola, F1au-

(6) Gustave Flaubert, L'Education sentimentale. Paris, Le ( 7) Jean-Paul Sartre, La Nausée. Paris, Le Livre de poche,
Livre de poche, 1965, p. 151. 1966, p. 181.

J
212 213

bert ou Balzac, elas acrescentam uma nota de cor local ou, nida, ou diante das cavalariças, como jardineiros que
mais frequentemente, fazem número, quando o roman- estivessem alinhados à entrada dos seus canteiroS». Uma
cista apresenta cenas de grupo. Um exemplo entre cem das personagens descritas revela-se particularmente inte·
é-nos fornecido por uma cena bastante colorida de ressante, porque permite a Proust não só pintar um belo
Madame Bovary, onde se vêem chegar os convidados da quadro, mas expor ao mesmo tempo uma reflexão sobre
boda, com o cabelo cortado de fresco e pouco à vontade a sua arte:
no fato dos grandes dias:
A alguns passos de distância, um mocetão de
E as camisas abaulavam-se nos peitos como libré devaneava, itnóvel, escultural, inútil, como
couraças! Toda a gente tinha o cabei o cortado aquele guerreiro puramente decorativo que se
de novo, as orelhas afastavam-se das cabeças, vê, nos quadros mais tumultuosos de Mantegna,
todos estavam escanhoados. Alguns até, que se sonhar, apoiado no escudo, enquanto que à
tinham levantado antes da aurora, não tendo sua volta todos se lançam uns contra os outros
visto claro para fazer a barba, tinham !anhos em e se trucidam; desligado do grupo dos seus cama-
diagonal sob o nariz, ou, ao longo dos queixos, radas, que se afadigam em redor de Swann, pare-
pedaços cortados de epiderme, largos como moe- cia tão resolvido a desinteressar-se desta cena,
das de três francos, e que o vento tinha. irritado que seguia vagamente com os olhos glaucos e
durante o caminho, o que marmoreava· um pouco cruéis, como se fosse o massacre dos Inocentes
de placas cor de rosa todas estas gordas faces ou o martírio de São Tiago (').
brancas desabrochadas (8).
'l i
'I
Em Un amour de Swann, quando Swann chega à porta "2_nútil para a acçã2,JE~~J,tente_~o_plan~~~:_ológi~ J/
,,1! !
'
,es~~~2nagel1). nem oor. ~~~~l!rr...~!!!.it.JM'!5ªQ 11
! ' do palacet.e de Saint-Euverte, Proust descreve longamente
< ill1port'ffit~ .!Lll!WIJJbra. e.m.Q!lll. Q~serl:ll ll. li~ Ç9i~
1

parecem , {
«os tigres de Balzac, os grumetes, acompanhantes habituais
muitas y~z_~ J9!!!W:.!UZ'!f.}1Jl!f.L'l.\1'1dro. · !1
do passeio, que enchapelados e de botas, permaneciam
lâ fora, diante do palácio, no pavitnento da ave-

(8) Madam e Bova'l1J, p. 43. Esta descrição, notável de cor,


não corresponde em nada. à «realidade». Como é que campone-
ses, fustigados todo o dia pelo vento ou tisnados pelo sol, pode- ( 9) Marcel Proust, Un amour de Swann. Paris, Le Livre
riam ter aquela tez pálida que lhes atribui Flaubert? de poche, 1961, p. 887.
214 215

1. O protagonista. - Todo o conflito é provocado


Um agente da acção por um condutor do jogo, uma personagem que dá -à
acção o seu «primeiro impulso dinâmico» e que E. Sou-
A acção dum romance pode ser definida como o jogo riau chama força _temática. _6:-~~'?. .E!:?!'.1!'?:1~.l!'J!<!lle
das forças opostas ou convergentes em presença numa nascer dum dese10. duma necessidade ou, ~o SQDY~rio.
obra. Cada momento da acção constitui uma situação de ,diliíi temôr:'j)oréxêffiPíõ. o~dêSê)c)~();;:;, 'com os seus
conflito, em que as personagens se perseguem, se aliam ci>mpoíientes-rããmTiâÇãO~ "éíúmê:·.··Óçjj9;:~,i.~.~·· ~ê&,;j;f~~­
ou se confrontam. O que Etienne Souriau escreveu sobre çie afirffià~ãeSi"fuesmà-(Vâliilo~t), çl~.Qym1 . Ç.oí$1!, <J_e
a acção dramática poderia aplicar-se perfeitamente ao Alhures (ÉrrÍmá."Bovacyí,' õTéíllõr-cÍa morte (Perken).
---'>,-~-·c,-..-.,..,-.......,,'"""'"""'"""-,.-,,...o~·-"""<"---'--,,•-~-.H~ - ~ • .-e•=

romance:
Uma situação dramática é a figura estrutural 2. O antagonista. - Para que haja conflito, para
desenhada, num dado momento da acção, por que a acção se forme, é preciso que apareça uma força
um sistema de forças - pelo sistema de forças antagonista, um obstáculo que impeça a força temática
presentes no microcosmos, centro estelar do de se desdobrar no microcosmos: na terminologia de Sou-
universo reatrai, e encarnadas, suportadas ou riau, é a força opositora. Valmont, protagonista, no início
animadas pelas principais personagens desse de Les Liaisons dangereuses, vê em Mme de Tourvel o
momento de acção. Sistema de oposições ou de
atracções, de convergências em choque moral ou
de explosão destrutiva, de alianças ou de divi-. denominação de certas forças e deixar de lado os signos do
sões hostis ... ("). wdíaco.
Na sua obra intitulada Sémantique structurale (Paris,
i' Larousse, 1966, pp. 174-180), A.-J. Greimas lamentava que
Souriau reduz a seis o número de forças ou de funções Soudau não tivesse mantido, como Propp (Morphologie· du conte
susceptíveis de se combinarem numa situação dramá· poµulaire russe) e G. Micha'ud (L'Oeucre et ses techniques), uma
tica (11 ). sétima categoria, a do traidor,. ainda que o modelo que ele
'' próp'rio propõe não ~õfte-seiião seis actantes, a saber: os
·1' (1º) Les deux cent mille síluations dramatiques. Paris, pares objecto-sujeito, destinador-destinatário, adjuvante-opositor.
! :i~
F1ammarion, 1950, p. 55. Souriau retoma, mui,to mais breve· Lembremos, contudo, que, numa obra mais recente (Du sens,
mente, esta classificação em Les grands prob1€mes de l' esthétique Ed. du Scuil, 1970, pp. 260-270), Greimas introduz, entre os
thédtrale. Paris, CDU, 1962. actantes da narrativa, a categoria de traidor concebido como
i
' (11) Se não hesitamos em tomar a Souriau as suas catego- estrutra dupla, porque derivada ao mesmo tempo do destinador
rias, pennitimo-nQIS, para maior simplicidade, mudar por vezes a substituído (c<falso destinador») e do antagonista («o opositom).

1.
216 217

antagonista, pelo triplo obstáculo que ela representa: «A tra-nos que a marquesa pretende proceder a uma arbi-
sua devoção, o seu amor conjugal, os seus princípios tragem completa da acção, designando o objecto da busca
austeros» (carta IV). e julgando do seu resultado final.

Logo que tenhais possuido a vossa bela Devota,


3. O objecto (desejado ou temido). - Essa força de logo que puderdes fornecer-me uma prova, vinde,
atracção, que Souriau chama a...!!!.f!!.~e.'!.!.at;_qf?__.efo. J.'!,{<![, e serei vossa. [... ] Vinde, pois, vinde quanto antes
· representa o fim visado ou o objecto do temor. Para i/ trazer o testemunho do vosso triunfo: semelhante
Emma Bovary, o objecto desejado será o Alhures, o Outra aos nossos pios Cavaleiros que vinham depor aos
: Coisa, personificado sucessivamente por Charles, Rodol- pés de suas Damas os frutos brilhantes da sua
phe, Léon; para Valmont, não será a presidente de Tour- vitória.
vel, que representa o obstáculo, mas Mme de Merteuil.
5. O destinatário. - O beneficiário da acção, o obten·
tor eventual do objecto cobiçado ou temido, não é
4. O destinador. - Uma situação de conflito pode necessariamente protagonista, porque se pode temer ou ·
nascer, desenvolver-se e resolver-se graças à intervenção desejar para outrem tanto como para si mesmo. Se é
de um destinador (no sentido lato: toda a ..11.!'J..ª-QllªA~m evidente que Valrnont trabalha para ele só, o mesmo não
..J2Q§tl...em posiçli<> .de..exei:cer.J!l!'!.!!ência sobre a «destina- '-' se dá com Goriot que quer antes de tudo a felicidade das
çlÍO~Çjg gf!je,c:tq)...(OS~C_i~ de árbitro dlrlglnii()'a'aéÇfo e
0

suas filhas.
faJ:endOJ?!'!1,\Í!'!: a J:>iila~ça.d1;1m _lado para. Ó OU~O llO flnaJ ,
da narrativa: como Dom Fernand no Cid desempenha o 6. O adjuvante.-Cada uma das quatro primeiras for- i
pàpel'de' árbitro e depois, em última instância, decide("). ças descritas até aqui é susceptível de receber a ajuda ou !
É evidente que a função do destinador é mais ou menos o impulso duma quinta, que Souriau cham.'!_ espelh~:
importante consoante ele afecta um ou outro ou todos os A arte de Valmont, como a de Mme de Merteuil, consiste i
momentos da acção em curso. Uma declaração de Mme justan1ente em se servir de outrem. como adjuvante, para
de Merteuil, na carta XX das Liaisons dangereuses, mos- atingir os seus fins.

;fl~!!!_~ s.eis Jqrças essenc1rus não estão sempre, bem


. entendido. encarnadas nas personagens. Em Madame
(12) Pode perguntar-se, aliás, se este destinador, este árbitro,
não se toma o protagonista no momento em que faz pender a Bovary, por exemplo, ou em La voie royale, a oposição
balança para um lado ou para outro. aos desejos do herói virá tanto, se não mais, da natureza
218 219

das coisas, da própria vida, que das outras personagens. nas relações entre essas forças uma modificação
O objecto desejado por Emma é menos, na realidade, um tal que daí resulta uma situação nova, isto é, um
ser de carne que um alhures tão atraente quão indefinido. problema dramático novo. Compreender uma
Outro tanto poderíamos dizer do árbitro no mesmo peça. a acção duma peça, é ver, por conseguinte,
romance: é o destino que se obstina contra a persona- como esta evolui e progride, é comparar, para
gem("). cada cena, a situação inicial e a situação final
Uma multidão de combinações possíveis fará nascer e procurar por que impulso a acção foi, duma
uma infinidade de situações diferentes, consoante certas para a outra, modificada(").
forças coabitarem numa mesma personagem ou passa-
rem para outra("), se associarem ou se opuserem a tal Sem dúvida que por vezes será difícil, se não impossí-
outra combinação. Tratar-se-á, como sobre um instantâ- vel, efectuar semelhante análise: Les Deux Orphelines
neo, de suspender arbitrariamente a acção em diversos mostram melhor os impulsos da acção que o Ulisses de
estádios da sua evolução e de praticar a análise sugerida Joyce, Les Lauriers sont coupés de Dujardin ou o Tamer-
por Guy Michaud para o teatro: lan des coeurs de Obaldia.
É ainda tendo em vista esta acção, mas sob um ângulo
A acção consiste precisamente na saída duma diferente. que O. Bremond, na sua Logique du récit
situação. ou, mais exactamente, na passagem (Paris, Ed. du Seuil, 1973), procede a uma nova repar-
duma situação para outra. Como se opera essa tição das forças dramáticas: é conhecida a dicotomia ini-
i
'' passagem? Pelo impulso dramático. O impulso cial dividindo em «Eacientes» ~presentados pela narra-
é, portanto, o que faz a acção dar um salto em tiva como afectadospor «processos modificadores ou con-
frente e lhe assegura a duração. Actua como servadores») (p. 134) e eI1.1 _~~!ntes2'»~presentados ~orno
um motor, introduzindo nas forças em jogo ou iniciadores desses processos) as funçoes fundamentaJs de
qualquer narrativa. O estudo dos papéis gerais desses
agegteB e pil.GieJJ.tes Jaz aparecer, através dos diferentes
(
13
) O próprio Charles não fala, por duas vezes, na «fatali- '"'tipos de acções praticadas ou suportadas, diversos grupos
dade»? de agentes específicos. que determinam por seu turno
i 1 O árbitro, como facilmente se observará, toma muitas vezes
a fonna de destino, dum Providência qualquer ou dum Deus ex
machina.
{ 14 )
Danceny, por exemplo, torna-se opositor de Mme de (Ui) L'Oeuvre et seis techniqt1es. Paris, Nizet, 1957,
Merteuil, depois de ter sido seu ajudante. pp. 200-201.


)I 1
1'

l!
220 221

. sub-grupos cada vez mais caracterizados. tl. deste modo nadas, as mesmas relações que precedentemente ou rela-
.. que as três classes de agentes-«inftuenciadores», «modifi- ção de subordinação lógica ou física; isola um caso de
• ça<f9'l'.'?> e !<.conservadores» - ;-divldéin alflila. Pa~ os •. relação causal no último tipo, o par «meio-obstácul0».
• 2'!5!?ifi~~gr~. temos os pires «IJlelb,ornc;IC>rçs'.degradado- ·. Trata-se então realmente da rodagem da narrativa como
reS»; para PS conservadores, «protectores'.frustradores»; 1 combinação de acontecimentos e de acções, a partir dum
q_~~i<J.!:()s i11flw;nciª5!9fe.s. conf~Ill!e ..; ºffi!;id;,.; · ~P.e­ sistema de papéis (").
nas o grau .de consciência que o paciente lei.'! do se11
estado ou se lhe acrescenta afectos que lhe estão ligados, (16) Uni outro projecto, o de Philippe I-Iamon («Pour un
obtém-se p~ra q age11,te, no primeirq caso. o par «informa- statut sémiologique du personnage», ~n Littérature, Maio de 1972),
• <!9.re§~ifiss_imµÍaçlgreS>}, .no segu11,do, três pares ligados aos pretende distinguir urna aproximação pur;mente semiológica
~- , diferentes móbeis; estes podem ser de ordem hedonista,
da personagem das aproximações histórica, psicológica, psicana-
lítica e sociológica. Consideradb como signo integrado numa men-
pragmática . ou ética: tem()S ."1}tão. os pares «obrigadores- sagem definida, ela própria, como conjunto de signos linguísticos,
":interêlitores;~
"-- "•
«~edülores-iniúlliCiàdores», «aconselhadores-
·-·~-~~-~"'~>·.--· '~'•'r.~'"'''''"'·''-',' ·•O"''·,., •. , ->
a personagem constitui o objecto du1na descrição submetida aos
-desaconselhaçlores». problemas (mas também aos limites actuais) da semiologia: defi-
Estamos a ver, pois, até que precisão pode levar uma nição da personagem pelo seu significante, pelo seu significado,
pelo seu estatuto de integrante e de composto (rúveis de descri-
análise da narrativa fundada sobre uma tipologia actancial ção), pelo seu grau de arbitrariedade e de motivação, pela sua
das personagens, sobretudo se se considerar que, na relação com o sistema que i- a narrativa, etc ..
óptica de CI. Bremond, trata-se somente, nesta etapa, Num livro recente, Hugo; amourlcrimelrévolution (Presses
duma pré-codagem dos papéis que deve conduzir a uma de l'Université de Montréal, 1974), A. Brochu tenta «descrever
codagem da narrativa. Os papéis foram decompostos a rede das solidariedades do texto» dos Misérable.s, entregando-se
a wna dupla análise: temática, na esteira de G. Poulet e J.-P.
numa combinação de processos (três fases com negação
Richard (mas encerrando-se no texto); actancial, propondo três
possível), mas esses processos estabelecem, uns com os pares: acções intransitivas (Queda-Subida), acções transitivas (Má
outros, relações sintácticas. Por outro lado, cada processo Acção-Boa Acção), acções pronominais (Afrontamento-Conjunção).
estabelece relações de predicado para sujeito com uma ou Tentativa original, que ganharia em ser prosseguida e aprofun-
várias pessoas, que podem agir voluntariamente ou não. dada:_ se_ é importante, com efeito, destacar as regras duma gramá-
tica da narrativa de ficção, não seria desejável acompanhar ou fazer
Bremond estabelece assim uma grelha que daria conta seguir a análise formal ou a descrição estrutural duma relacio-
simultaneamente do agente e do paciente, da «Volição». nação da obra com a sua instância produtora e com o seu
da fase, do processo, da sintaxe. Esboça, enfim, uma destinatário - real ou virtual?
classificação das relações entre proposições narrativas:
independentes, relações de ordem cronológica; subordi-
-------------------------------------------~ ...----------------- -------------------------------

222 223

A psicologia que o corpo. Se a teoria dos «espíritos animais», que


asseguram a ligação entre a alma e o corpo «como um
Definiu-se sucessivamente a psicologia como a «Ciência vento muito subtil, ou antes, como uma chama muito pura
da alma», da «vida mental>>, do «comportament0», ou e muito viva>>, não pareceu muito convincente, os dois
ainda como o conjunto dos traços de carácter dum indi- princípios apresentados podem ser considerados como
víduo ou dum grupo. Mas, para bem compreender o sen- ponto de referência duma psicologia «na primeira pessoa»,
tido e o alcance destas definições, é preciso primeiro mar- isto é, fundada sobre a introspecção e o estudo da cons-
car os dois pólos entre os quais oscila a psicologia: o ciência individual. Para Descartes, o corpo humano -
estudo directo da vida interior considerada em si mesma pura matéria-, privado da alma, seria idêntico aos ani-
e a observação dos factos orgânicos para atingir o conhe- mais cuja actividade, no seu todo, se reduz à de autómatos
cimento do psiquismo. Descartes e Helvétius servirão de que um mecanismo complexo faz mover. Em 1747, no
ponto de partida e de referência, simultaneamente, para seu Homme-Machine, La Metrie aplicará ao homem a
as nossas reflexões. teoria cartesiana do homem-autómato.
Na 4." parte do Discours de la méthode, depois de Nos seus ensaios De l'esprit (1758) e De l'homme
ter formulado o seu famoso «penso, logo existo», Des- (publicado postumamente em 1773), Helvétius professará
cartes escreve: uma psicologia francamente materialista. «Ü homem»,
escreve ele, «é uma máquina que, posta em movimento
Fiquei a saber, daí, que eu era uma· substância
pela sensibilidade física, deve fazer tudo o que exe-
de que toda a essência e natureza não é senão
cuta» (sec. II, cap. VIII). Esta «Sensibilidade física»
pensar, e que, para ser, não tem necessidade de
está na origem dos sentimentos e das paixões("). Trate-se
nenhum lugar, nem depende de coisa alguma
de sentimentos, de recordações. de «penas» ou de «praze-
material. De modo que esse eu, isto é, a alma,
res reputados interiores», tudo se reduz a «sensações físi-
pela qual eu sou aquilo que sou, é inteiramente
distinta do corpo, e é até mais fácil de conhecer
do que ele, e que. ainda que ele não existisse, ela (17) «Um princípio de vida anima o homem. Esse prin-
cípio é a sensibilidade física. Que produz nele essa sensibilidade?
não deixaria de ser tudo o que é.
Um sentimento de amor pelo prazer e um sen~imento de ódio
Esta afirmação apresenta dois princípios importantes: pela dor; é destes doiis sentimentos, reunidos no hornem e sempre
presentes no seu espírito, que se forma o que nele se chama amor
1. O corpo e a alma, essencialmente distintos, já não
de si mesmo. E!<te amor de si mesmo engendra o desejo da feli-
formam uma «unidade substancial», como afirmava a tra- cidade; o desejo da felicidade, o do poder; e é este último que,
dição escolástica; 2. A alma é mais fácil de conhecer do por seu turno, dá origem à inveja, à avareza, à ambição e, dum
224
225
cas». Helvétius aceitaria facilmente, sem dúvida, esta
opinião de La Metrie: «Julgo o pensamento tão pouco no seu conjunto. Um sentimento não está mais
incompatível com a matéria organizada. que ele me parece e
na alma do que está no corpo, uma modifica-
ser uma propriedade sua, tal como a electricidade, a facul- ção do conjunto da conduta (").
dade motora, a impenetrabilidade, a extensão, etc.»
(L'Homme-Machine, Leyde, Elie Luzac, 1747, p. 189). Semelhante afirmação deve ser aproximada das propo-
Não estamos aqui assaz longe das mais rígidas teses sições de_ Sartre e de Mer!eau-Ponty, para quem 0 psi-
behavioristas de Watson, para quem a psicologia deve qwsmo nao é um dominio separado do fisiológico. Em
desembaraçar-se do «mentalismo» e da subjectidade, para L'lmaginaire, de Sartre, lê-se:
examinar como o organismo humano responde aos stimuli
internos ou externos que se exercem sobre ele("). A raiva é raiva a alguém. O amor é amor
Estes dois tipos de psicologia, uma das quais se inte· a alguém. James dizia: tirai as manifestações
ressa antes de tudo pelos factos psíquicos e a outra fisiológicas da raiva, da indignação, e não tereis
pelos dados orgânicos, reunem-se amiúde desde o começo mais do que juizos abstractos: tentai realizar em
do século XX. O psicólogo francês Pierre Janet expri· vós mesmos os fenómenos subjectivos da raiva.
me-o clarame-!Jte: da indignação, sem que esses fenómenos sejam
orientados sobre uma pessoa detestada, sobre
O facto psicológico nâo é nem espiritual, nem uma pessoa injusta, e podereis tremer, bater com
corporal; passa-se no homem todo inteiro, por- o punho, corar. que o vosso estado indignado será
que não é senão a conduta desse homem tomada tudo salvo indignação, salvo raiva. . Detestar
Paulo é intencionar Paulo como obj.,::(.;· 'iians-
modo geral, a todas as paixões factícias que, com notnes diversos,
2endente da raiva e')..
não são em nós mais que um a1nor do poder disfarçado e apli- "--·~"-·-· , '"- ' ' ---
cado aos diversos meios de o alcançar.» (Do .l'homme, sec. IV,
cap. XXI!). Encontraríamos numerosas afirmações deste género
(is) Nas pp. 112-113 do ~eu Behaviorism,, Watson, depois em L'Étre et /e Néant e em La Phénoménologie de /a
de ter comparado o homen1 ao ((boomerang» que volta para a perception de Merleau-Ponty.
mão daquele que o lançou, escreve: «Não poderemos nós dizer
que 0 homem é constituído, construído, por certos materiais
dispostos de tal forma que, em consequência dessa disposição ·e 19
( ) Pierre Janet, De l'angoisse à l'ertase, t. II, Paris,
dos materiais que a constituem, é forçado (até que a aprendi- Alcan, 1928, p, 36.
zagem o modifique) a agir como age » 20
( ) Jean-Paul Sartre, L'lmaginaire. Paris Gallimard 1940
p. 93. • ' •
15
226 227

Desde logo se ve como é vã, para esta psicologia. a com coincidir com o meu sentimento, é porque
introspecção que visa descobrir a vida interior. A cons- consegui estudá:lo como um comportamento,
ciência não é nem um reservatório de sentimentos, de como uma modificação das minhas relações com
emoções e de pensamento, nem uma tabula rasa sobre a os outros e com o mundo, é porque cheguei a
qual se inscrevem estados ou correntes: ela é um acto pensá-lo como penso o comportamento duma
que se dirige para o mundo e para os outros. «... Não há outra pessoa de que me acontece ser teste-
homem interior; o homem está no mundo e é no mundo munha(").
que se conhece», escreve ainda Merleau-Ponty no anteló-
quio da sua Phénoménologie de Ia perception. Aoi «eu, Isto equivale a sustentar que o conhecimento de
·isto é. a minha alma» de Descartes, tem de opor-se a outrem é, sem dúvida, mais autêntico que 0 conhecimento
afirmação de Sartre segundo a qual a consciência «não de si mesmo. Sartre já o tinha afirmado com vigor em
é outra coisa senão o corpo»("). Contrariamente à «psi- [)Être et /e Néanl (p. 276):
cologia clássica». que «aceitava sem discussão a distinção
Outrem é o mediador indispensável entre
da observação interior ou introspecção e da observação
exterion> e cria que «OS factos psíquicos - a cólera. o
~~iilfe-riiun mes!iio2:tCllh~ vérgocl.a de mim titl
<;l>!Ilº f!.Qar.;i;o a outrem. E, pelâ ]lrôpiiã apáfiçã:éí
medo, por exemplo - não podiam ser directamente conhe-
.de OlJ!r.~!Jl, SOU posto em situação de formar Um
cidos senão de dentro e por aquele que os experimentava»,
juízoso]:i.re mim Illesméí como sobre um objecto,
Mer!eau-Ponty afirma: porque é como objecto que apareço a outrem.
Os psicólogos de hoje fazem notar que ·a
introspecção, na realidade. não me dá quase nada. À psicologia «na primeira pessoa», fundada sobre a
Se tento estudar o amor ou a raiva pela pura introspecção, e à «na terceira pessoa», fundada sobre a ,
observação interior, encontro apenas poucas coi- observação do comportamento dos seres sem referência i
sas para descrever: algumas angústias, algumas aos «estados interiores», à subjectividade, sucede pois ;-
palpitações de coração, em suma. perturbações uma psicologia «na segunda pessoa», que constitui uma :,
banais que não se revelam o sentido do amor síntese das outras duas e que considera outrem como ~
nem da raiva. De cada vez que chego a obser- objecto e sujeito, simultaneamente. j
vações interessantes, é porque não me contentei Se a psicologia «ná primeira pessoa» marcou o romance
francês desde as suas origens, o mesmo não aconteceu
(21) Jean-Paul Sartre, L'ttre et le NAant. Paris, Gallimard, (
22
) Maurice Mer1eau-Ponty, Sens et non-sens. Paris, Nagel,
1943, p. 368. 1948. pp. 93-94.

j
229
228
gens stendhalianas ou joycianas, por pouco que se seja
com a psicologia behaviorista: não se encontra em França sensível à filosofia ou à arte de contar voltairianas. A custo
o equivalente de The G/ass Key de Dashiell Hammett. Em imaginamos um Candide «complexo», quando sabemos
contrapartida, o romance de carâcter fenomenológico que Voltaire queria pôr em cena uma personagem à
conheceu muito sucesso, desde Sartre e Simone de Beau- imagem do homem, sacudido pelos elementos naturais
voir até ao <movo romance»("). Basta reportar-nos, por e sem poder sobre os acontecimentos.
exemplo, a Sens et non-sens, onde Merleau-Ponty consa- Quer se queira «discurso sobre as paixões», quer se
gra um capítulo a L' lnvitée de Simone de Beauvoir. interesse pelos traços de carácter, pelas «paixões da alma»,
Mas o que não conta menos do que a tendência psi- pelo inconsciente ou pelo comportamento, a psicologia'\
cológica a que se pode prender uma obra romanesca, é a pode aparecer de duas mancoiras num
······ '.. . romance:
. sugerir 1
densidade psicológica das personagens. Em Aspects of ª~.".!ela .i!IJ~rior ou analisá-la. Se é difícil situar com pre- i.
the Novel, o romancista inglês E. M. Forster consagra cisão, na evoTuÇãõ do .généro, o nascimento do romance .
várias páginas do seu ensaio ao estudo da distinção pro- inteiramente consagrado à sugestão da vida psicológica,
posta entre flat e round characters. 9 flat character é uma pode-se afirmar que a análise psicológica é tão velha como
,-,,,-, -·--·
,_,,,,,,_,,_,_.~

personagem «construída à volta duma só ideia ou quali- o romance. Mesmo em obras anteriores às de Chrétien de
dade»;· o round character define-se pela suã c~;:;;plexidade, Troyes, como L' Enéas e Le Roman de Troie, que conce-
pela sua · cap!1éÍdade «de nos surpreenâer duma maneira dem largo espaço às aventuras de toda a espécie, podemos
coriVincellte»; . Noutros termos, o· round character. é. uma discernir aqui e além um cuidado de analisar a psicologia
.é:r.~?i:!':iÍ:g1 . i.~mlií~~~- ~~Yí~'§".nsiôii~: ;;;~~~t.~ q~~ ·º das personagens principais. De L' Astrée e La Célie a La
f!at cha;~cte,( é a persorrazem plarr~. amiúde tipificada~ Jalousie e La Modification, passando por La Princesse de
s@_ prof1y1c;lic\'.l;c:l~•• P~ici?!c5gica. Mas o intere88e duma Cléves, Le Rouge et le Noir e A la recherche du temps
personagem não vem forçosamente da sua complexidade perdu, a maioria das obras francesas importantes é cons-
ou da sua densidade psicológica. Os títeres dos contos tituída por romances de análise. Reportemo-nos, por
de Voltaire podem interessar-nos tanto como as persona- exemplo, ao artigo de Jean Fabre sobre La Princesse de
C/eves ("), aos estudos de Georges Blin sobre Stendhal

23
() Cf. Renato Barilli, «De Sartre a Robbe-Grillet, un
(2-i) «L'art de l'analyse dans La PNncesse de CleceS», in
nouveau roman?», in Revue des Lettres Modemes, n.º' 94.99~
M~langes de la Faculté de Strasbourg, t. II, 1945, Etudes littérai·
1964, pp. 105.]28, e Pierre A. G. Astier, La crise du roman fron·
res, pp. 26I.[:f06.
çais et le nouveau réalisme. Paris, Nouvelles Editions Debresse,
1968, pp. 298-304.

i
.j
1

1
230 231

ou ª.º ensaio de I ean Rousset sobre «os dois ciúmes» {"). det ("), os romancistas de entre-as-duas-guerras, a des-
Rel·~·se os romances de Butor ou Robbe-Grillet. e peito da forte corrente autobiográfica - Nimier, Nouris-
verificar-~e-á que, diga-se o que se disser, romance de
0 sier, etc. - multiplicam as declarações sobre a autonomia
análise nao desapareceu. O que interessa a Robbe-Grillet da personagem romanesca relativamente ao seu criador.
e But~r é talvez menos criar formas novas, susceptíveis de «Quereis que as vossas personagens vivam?», pergunta
traduz~_ uma visão nova do mundo, que reflectir sobre Sartre no seu artigo sobre Mauriac em 1939; «Faz!i_.~11!
essa. v~sao. Butor gosta de repetir que 0 romance é «o que elas sejam livres». O próprio Mauriac não fala de
donu'.1'º. fenomenológico por e~celência», é «o lugar por õl.liio.müdo;-piocfâinaiido várias vezes que «quanto mais
excelencra para estudar a forma pela qual a realidade nos as personagens vivem, menos submetidas nos estão».
aparece on nos pode aparecef». «Revolta do ser fictício contra o seu demiurg0», repetiría-
mos com Roger Caillois ("). A grande maioria dos cria-
dores faz questão de sublinhar a sua vontade de deixar as
personagens evoluir livremente, desaparecer subitamente
Um porta' voz ou arrastar o seu autor para aventuras ou encontros im-
previstos. Estas repetidas afirmações sobre a autonomia
Uma longa tradição crítica habituou-nos a considerar e o poder de arrebatamento das personagens não impe-
ª. ~sonagem t?°1anesca como uma soma de ex~riências diram a crítica de prosseguir as suas pesquisas genéticas
VIVJdas ou pro1ectadas, uma amálgama das observações e de tentar seguir a evolução do pensamento dos criadores
e das virtualidades do seu autor: aventuras empreendidas através das suas criaturas. Tanto mais que duas novas
ou abort_:idas, possíveis inexplorados, sonhos, frustrações,
recordaçoes, em suma, projecção de todos esses eus
que nunca viram a luz do dia. Talvez seja por essa razão (") Réflexions sur le roman. Paris, Galiimard, 1938, p. 12.
que, em vez de considerar o romance unicamente como Na mesína página, pode ler-se esta frase, que foi uma, revelação
uma «autobiografia do possível», no dizer de Thibau- para Gide, prestes a redigir os ~eus Faux-Monnayeurs: «Ü roman-
cista autêntico cria as suas personagens com as direcções infinitas
da sua vida possível, o romancista factício cria-as com a liajia única
211 da sua vida real». Henri Massis, nas suas Refléxions sur l'orl du
( ) Jean Rousset, «Les deux jalousies» , in Sagg·i e ricerc
· he
d. z
roman (Pllris, Plon, 1927, p. 36), fala de «todos os possíveis inte-
t etteratu,.e francese voJ X 1969 pp 97 120 C riores» que o romancista transformará e1n «uma exist~ncia inde-
' · ' , · - . orno mostra
bem J. Rousset, em La ]alousie de Robbe-Grillet, já não é pendente».
0
na_rrado~ mas o leitor quem se encarrega de conduzir a análise (2T) Puissance.s du raman. Marseille, Le Sagitaire, 1942,
ps1cológ1ca.
P· 15Q.

1
232 233

disciplinas, a sociologia e a psicanálise, vieram prestar mente personagens autónomas do seu criador. Poucas
ajuda à história literária. obras romanescas significativas encontraríamos despor-
Se é relativamente fácil tirar teses explícitas das obras vídas de teses implícitas ou explícitas. Por detrás das
romanescas de Montesquieu, Voltaire ou Malraux, é motivações que incitaram a princesa de Cleves a não
necessário, no entanto, recordar que o conteúdo mani- desposar M. de Nemours, não se procura descobrir a con-
festo não é o mais importante e que, como num jogo de cepção que Mme de La Fayette tinha do amor e das rela-
encaixes, sob o invólucro conceptual demasiado patente ções humanas? E A la recherche du temps perdu não
podem atingir-se veios de significações mais profundos. ·regorgita de teses: as da memória involuntária, das intermi- .
Enterrada sob as reflexões sobre a liberdade,' a felicidade tências do coração, da arte que permite reencontrar o .
ou a organização política, Roger Laufer (") julgou encon- tempo perdido? Não são as teses que matam um romance, :
trar nas Lettres Persanes essa «cadeia secreta» que, no mas a sua univocidade, a sua indigência de significações
dizer de Montesquieu, devia ligar, não só a intriga europeia latentes.
e a do serralha, mas ainda todas as digressões e todos os .l O objecto da psicanálise é justamente descobrir 0
elementos à primeira vista heterogéneos do romance, no :·•latente sob o manifesto, o oculto sob o evidente. Mas
conflito vivido por Usbek-Montesquieu entre, de um lado, deformada pela vulgarização e pelas simplificações força-
as profissões de fé na liberdade resultantes da pesquisa das, a ponto de parecer ao alcance do primeiro amador
11
filosófica e das convicções profundas, e, de outro lado. que apareça, a psicanálise revela-se de utilização muito
a aceitação na sua vida quotidiana duma realidadé social delicada. Já se deve ter praticado a psicanálise antes de
e política atentatória da liberdade da maioria das pe.:;soas. abordar a obra literária? Até que ponto se pode com-
Tal como Usbek não reconhece a sua má fé e a contra- parar um texto escrito, perfeitamente elaborado, com uma
dição entre os seus actos e as suas reflexões, Montesquieu, improvisação lacunar, constituída por associações livres
. o ideólogo liberal que condena a escravatura, não denun- e marcada por hesitações, por mudanças de tons, de
:-. eia o tráfico dos Negros com que Bordéus se enriquece. silêncios? Como reencontrar num romance a relação
.Deste modo é de todo vão condenar o romance de tese interpessoal existente entre analista e analisado? Como
sob o pretexto de que Montesquieu obriga os seus Persas decifrar o sentido duma linguagem literária já metafórica
a discutir mil e um assuntos ou que Malraux «faz dialogar com a ajuda da linguagem da psicanálise, ela mesma
i~
f

'i
', os lóbulos do seu cérebro» em lugar de deixar falar livre- \' essencialmente metafórica (vocabulário da mitologia, da
n
li ' economia. da biologia. até da arte militar)? Não se seguirá
11 Style rococo, slyle des «tumieres». Paris, Cortí. 1963,
( 2 ")
\ por caminho errado ao reduzir a psicanálise à interpreta-
pp. 51-72. ção? Consoante se crê legítima ou não a aproximação
\
\

L
f
235
234
. ce00rão estaS perguntas como Mas, uma ve:z. levantadas estas objecções, quem não
psicanalítica, assun se con tr tantaS dificuldades vê a dificuldade extrema da psicanálise literária, quando
. - es sem réplica ou como ou as . . se sabe, por exemplo, segundo o testemunho de Jakobson,
obJecÇO tas responder-se-á. prunell'.o.
rar A estas pergun • l Lacan e Benveniste, que os mecanismos dos sonhos são
a supe . . . Freud procurou na arte exemp os
1 que. dado que o propno . _ vê por que não análogos aos processos da retórica clássica (l.ítotes, eufe-
. • das suas teonas. nao se mismo, antífrase, etc.) ou que o conto russo, de estrutura
e confirmaçoes onhecimentos acumu·
1.1·· seria possível apli"'.'r à lit~a:ra ~ cos tex:tos literários se única através das suas múltiplas variantes, é elaborado
I'
' !
'
!
lados desde o inicio do sec o. achar o segundo regras de produção semelhantes às que Freud
mo «todos» elaborados, pode-se destacou no sonho por volta de 1900: condensação, deslo-
apresentam co . - livres e da improvisação sobre-
!
\·,
li equivalente das associaçoes mesmo autor. qner elas tenham
Pondo todas as obras· dum . • Enfim no dizer
cação, figuração simbólica, elaboração secundária (").
Além disso, será necessário lembrar que a linguagem da
1
d à pubhcaçao. •
~. 1
sido, quer não, destina as
r - autor-personagem cria uma rela·
psicanálise evoluíu muito niais rapidamente desde o
1
de Jean Delay._ a i~çao à existente entre paciente começo do século do que a da literatura?
ção de interps1cologia análoga . Talvez que a hesitação em aceitar a contribuição da
l\ e médico: psicanálise para a critica literária venha da tendência redu-
tlb' .
Entre o romancista e o seu . .
duplo opera-se

tora de muitos analistas. A obra é frequentemente apre-
. ansferência, positiva ou nega sentada como ponto de chegada dum determinismo dema-
precisamente uma tr .. c·a do seu siado mecânico. Dominique Fernandez, que no entanto
. d tomar conscten i
tiva, que o aiu a ª. . t ém uma relação de se defende de se limitar a uma «dimensão regressiva»,
próprio fun~o. Aqui m erv sendo fictícia, não é nem por isso deixa de afinnar que, no criador, «a des-
1
interpsicologia que, embo~ . b certos aspec· peito de todos os disfarces involuntários e de todas as
os eficaz e pode substltmr. so
1
men d adente com o seu manhas inconscientes utilizadas para repudiar o seu
tos vantajosamente, a o p mundo-profundo, foram, apesar de tudo, essa pré-história
médico ("). e nada mais senão esses dramas formados outrora, e
relação da mesma duma vez para sempre, numa noite sem luz, que determi-
N •ao poderemos conceber unia naram não só o que ele veio a ser como hamem. mas
,. e escn'tor?.
ordem entre cntico

, e et crbation», em Aspects de la.


(") Jean Delay, «Nevros U . ersitaires de France, Didier Anzieu, «Freud et 1a mythologie», in lncidences
( 3 º)
Paris, Presses n1v de psychanalyse, Gctllimard, n. 0 1, 1970, p. 124.
psychiatríe moderne.
1956, p. 104.
;i
236
237
também o que produziu como artista»("). É pôr um
a priori como absoluto. Num artigo que tem o mérito de A explicação da obra exclusivamente pelos seus ante-
apresentar claramente o problema, J. Starobinsk:i ataca uma cedentes tem ainda o inconveniente de mascarar, e até
psicanálise que, contentando-se «com reenviar-nos aos de fazer malograr, a verdadeira relação que se instaura
antecedentes da obra», «decifra os símbolos numa direcção entre ela e o seu leitor: «Uma interpelação recíproca»,
regressiva». e lembra que «a obra é, ela própria, experiên- para retomar a fórmula de J.-B. Pontaiis. Porquanto, do
cia vivida e é muitas vezes a única experiência vivida mesmo modo que não aceita que se caricature a situação
sobre a qual temos domínio». Tanto, se não mais, que psicanalítica colocando face a face o analisado e o analista
uma «consequência», a obra é amiúde para o autor «Uma como «aquele que é para analisar e o outro que detém o
maneira de se antecipar»: saber sobre o inconsciente», Pontalis recusa ao leitor a
pretensão de se considerar como «titular do inconsciente»:
Longe de se constituir unicamente sob a convencido de que uma grande obra nos põe tanto em
influência duma experiência orginal, duma paixão posição de analista como de analisado. lembra que «0
anterior, a obra poderia ser considerada, também Moisés de Miguel Ângelo não é um ensaío sobre Miguel
ela, como um acto original, como um ponto. de Ângelo. Freud pergunta-se por que fica espantado face
ruptura em que o ser, cessando de sofrer o seu ao Moisés»("). Pontalis converge assim para a posição
passado, tentaria inventar, com o seu passado, de Starobinski que, ~cabando de «interpretam uma página
um futuro imaginârio. uma configuração sub- de J.-J. Rousseau, se interroga sobre o seu próprio método
traída ao tempo ("). e se identifica, até um certo ponto, com. o escritor a
quem toma o procedimento("). A célebre fórmula de
(3 1) «Introduction à la psychobiographie», in Incidences de. Lequier, «Fazer e fazendo fazer-se». adoptada por Sartre
1a p!.1JChana1yse, n. 0 1, 1970, p. 37. Na mesma página, lê-se
ainda: «••• a psicobiografia, levada até aos extremos das suas
possibilidades {... ] chega a reconhecer mais do que uma simples «haveria talvez razão [ ... J para proceder a uma primeira distinção
continuidade entre os elos da cadeia, a inclinar-se diante dum entre os artistas nos quais ~ dimensão prospectiva conseguiu
detennini:.mo rigoroso, versão moderna da fatalidade antiga, equilibrar a dimerisão regressiva, e aqueles que os conflitos da
inferno implacável donde toda ·a ]ibcrdade parece excluída, e, infância pouco a pouco sufocaram» (art. cit., p. 45).
por consequê-ncia, aquilo que- o consenso universal chama desde ( 33 ) Entrevista concedida d revista l'H 101, n. 0 2, Verão
sempre a arte, a invenção, a criação». de 1970, pp. 77-81.
(32) «Psychanalyse et critique littéraire», in Prettves, ( 34 ) «L'interprête et son cercle», in Inddences de la psy-
Mn:rço de 1966, p. 31. D. Fernandez menciona esta objecção de chanolyse, Gallimard, n. 0 1, 1970, pp. 9-23. Recolhido e desen-
Slarobinski, mas não lhe responde. Contenta-se com dizer que volvido em L'oeil vivant, II. La relation critique. Paris, ·GaHi-
mard, 1970, pp. 98-169.
238
r
;í'
f
239

e aplicável ao leitor na mesma medida que ao criador, problemático prossegue-se de diferentes maneiras em três
poderia transformar-se em: «Ler e lendo ler-se». tipos de romances: o de «o idealismo abstract0» (Don Qui-
Assim, PQis, a psicanálise, contanto que não ceda à jote), o do «romantismo da desilusã0» (L'~ducation sen-
teiitação dum determinismo fácil e que seja manejada por timentale) e o da «aprendizagem» (Wilhelm Meister), que
um .«intérprete» em plena possessão dos seus meios mas constitui uma tentativa de síntese dos dois primeiros na
suficientemente humilde para se pôr em posição de anali- medida em que explora o tema da «reconciliação do
sado, pode lançar sobre. o estudo da personagem roma- homem problemático[ ... ]com a realidade concreta e social».
. nesca uma luz que nenhum outro método está em condi- No seu método «estruturalista-genétiCO», Lucien Gold-
ções de produzir. mann retém de Lukács o pôr em paralelo de duas
Mas o herói de romance não se confronta apenas com ordens de valores «degradados» e colocados em relação
os seus demónios interiores; integra-se numa sociedade e, dialéctica: a do herói e a do universo defrontado. Todas
nela, entra em oposições violentas ou permanece margina- as análises de Goldmann repousam sobre uri:ta hipótese
lizado. Poderíamos concebê-lo, de novo, como uma pro- fundamental: entre uma forma literária (uma obra ou um
jecção do autor nas suas ligações com a organização grupo de obras) e o meio social donde ela saiu hã
social do seu tempo. ll, conhecida a importância das homologia rigorosa de estrutura. Recusando-se a ver a
1 i teses de Lukács sobre o «herói problemático» na sua obra ao mesmo tempo como criação puramente individual
Teoria do romance. O «herói problemático», também cha- e como um simples reflexo da sociedade ou dum grupo
mado «demoní~co», sin1ultanean1ente em comunhão e em social numa dada época, Goldmann escreve, no final de
oposição com o mundo, encarna-se num género literário, Pour une sociologie du roman:
o romance, situado entre a tragédia e a poesia lírica, por
um lado. e entre a epopeia e o conto, por outro. O que O carácter colectivo da criação literária pro-
constitui a «forma jnterior» do romance~ e precisamente vém do facto de que as estruturas do universo
«a marcha em direcção a si mesmo do indivíduo proble- da obra são homólogas às estruturas mentais de
certos grupos sociais ou estão em relação inteligí-
mático, o caminhar que - a partir de uma obscura sujei-
ção à realidade heterogénea puramente existente e privada vel com elas, enquanto que no plano dos con·
de significação para o individuo - o leva a um claro teúdos, isto é, da criação de universos imaginá-
conhecimento de si mesmo» ("). Este caminhar do herói rios regidos por essas estruturas, o escritor tem
uma liberdade total (").
('
La Théorie du roman, tradução de Jean C1airevoye,
( 11 ") 1 ( 88) Pour une sociologie du roman. Paris, Gallimard, Biblicr
Paris, Gonthier, 1963, pp. 75-76. thêque des idées, 1964, p. 218.

j
241

240
alta coerência que não é muito claramente definida? E não
Semelhante método de trabalho, particularmente efi- poderíamos descobrir nas obras paraliterárias (nas repor-
caz em Le Dieu caché (Gallimard, 1956), não deixa de tagens desportivas ou politicas, nas «biografias» de vede-
ter, apesar de tudo, os seus limites. Por exemplo, será a tas, nas adaptações sucessivas de Babar ou dos contos de
rapidez da análise ou a contemporaneidade das obras estu- Perrault e nas obras narrativas de todo o género à venda
dadas que torna o estudo dos romances de Sarraute e de nas estações), confirmações, desmentidos ou elementos
Robbe-Grillet tão escasso de novidade? A pobreza do complementares? ("). Enfim, o estruturalismo genético
resultado vem, sem dúvida, do apego demasiado rígido à definido e praticado por Goldmann parece-nos simplificar
hipótese fundamental e, sobretudo, do carácter parcelar extremamente a complexidade de universos romanescos e
das obras escolhidas para serem postas em relação com as poticos demasiado ricos para confiarem o seu segredo pela
«estruturas reificadoras» da terceira fase do capitalismo simples aplicação duma grelha, por mais sapiente que seja.
ocidental, marcada pela intervenção estatal e pela criação A despeito do afastamento cada vez menos visível, em
de mecanismos de auto-regulação económica. Mas, quando certos escritores contemporâneos, entre as diferentes formas
se conhece a ínfima parte das obras literárias do passado de expressão, podemos perguntar-nos se tal género literá-
conservadas pela tradição, podemo-nos perguntar se a
rio, o romance na ocorrência, não é uma forma privile-
análise goldmanniana não se vota antecipadamente à
giada para transmitir certos aspectos da relação com o
vaguidade e às generalizações temerárias, enquanto uma
mundo.
equipa considerável de investigadores não se lançar no
Não é tanto o procedimento de Goldmann que levanta
estudo sistemático de toda a produção duma época. Pren-
dendo-se em exclusivo ao grande escritor definido como problemas, quanto a sua intransigência (crescente. parece,
«O indivíduo excepcional qne consegue criar num certo com os anos) e a sua recusa de ver o estruturalismo gené-
domínio, 0 da obra literária (ou pictural, conceptual, tico corno complementar de outros métodos de aproxima-
·: musical, etc.), um universo imaginário, coerente ou quase ção. O seu preconceito de recusar a psicanálise, devido
i rigorosamente coerente, cuja estrutura corresponde ~quel.a ao carácter regressivo e simplista de certos críticos, pri-
1
para que tende o conjunto do grupo» (Pour une socwlogie va-o duma contribuição indispensável no que concerne à
du roman, p. 219), não saberá Goldmann antecipadamente criação literária. Jacques Leenbardt, que diz «preferir a
',I aquilo que vai encontrar? Não se arriscará ele a esquecer
il,
a obra importante duma época, porque a estrutura parece
" afastar-se da do conjunto do grupo? Além disso, quem
( 37 ) Sobre este assunto, cf. Robert Escarpit e outros, Le
littéraire· et le social. Paris, Flammarion, 1970.
nos assegura que a obra dum Eugene Sue, dum Rétif de
16
La Bretonne ou duma Mazo de La Rache não tem essa
243
242
'ti 3. MODO DE APRESENTAÇÃO
aproximação sociológica à aproximação psicanalítica» (").
não deixa, no entanto, de fornecer excelentes razões para ·1 A personagem de romance pode ser-nos apresentada
utilizar conjuntamente a psicanálise e a sociologia, quando
1 de quatro maneiras: 1. Por ela .J2róm:!a; 2. Por uma outra
põe em paralelo as análises de Racine por Mauron e Gol·
dmann e descobre, sob um vocabulário diferente, a dilu·
[ p.:~S()n:'g~m; 3. ]'()~ ~narrack)~ ~~~~~o;i~t,i~; 4. }or
cidação de uma mesma estrutura fundamental.
' "!ª propna'. ~l~ ()Ul!ª~!:'~~S}>..11.ª,!!~S e pelo ~~~ador.
Como facilmente se vê, ao falar da personagem porta·
-voz do seu autor tem de se ultrapassar a· reconstituição Conhecer-se e exprimir-se
anedótica da biografia, a descoberta das fontes literárias
A apresentação da personagem por ela própria levanta,
ou históricas e a análise superficial das ideias, para atin·
à partida, o problema do auto-conhecimento: é possível
gir níveis de expressão invisíveis numa pr~eira _aborda·
gem e evidenciados por métodos de aproxunaçao c~m· conhecer-se a si mesmo e comunicar a outrem esse conhe-
plexos e dificilmente manejáveis pelo critico ou pelo_ leitor cimento de si? No último capitulo do seu excelente livro
solitário. Assim, é de desejar que possamos ver os diferen· intitulado Jean-Jacques Rousseau, la quête de sai et la
rêverie (Paris, Corti, 1962), Marcel Raymond mostra
tes modos de compreensão acolherem-se mutuamente em
como Rousseau, toínando consciência da dificuldade da
vez de se excluirem ("). auto-análise, acabou por encontrar um método válido de
investigação de si mesmo.
Se o conhecimento de si mesmo se revela tão difícil, é
(38) Les cheniins actuel.s de la critique. Paris, «10-18»
porque, em primeiro lugar, o homem, preso nos limi·
1968, pp. 253-271.
(39) Pode adivinhar-se a riqueza e a complexidade dessa
aproximação multidisciplinar do romance pela leitura dos estudos «Pour une lecture de Jacques le Fatalisle», in Littérature, Dez.
de Julia Kristeva colocados sob o titulo de «semanálise», d~fini_da de 1971, pp. 22-30.
como «ciência das práticas significantes» e pondo como ob1ect1vo Na esteira de J. Kristeva, ainda, mas utilizando largamente
metodológico primeiro «a INTERVENÇÃO e a REFUNDIÇÃO a semântica gremasiana e a dialéctica althusseriana, Charles Grive]
das ci~ncias eia simbolicidade»: por um lado, «a linguística, a estuda duzentos romances inéditos dos anos 1870-1880 para deli-
I6gica e a ma temática, que descrevem o funcionamento do mitar <<O conjunto do processo textual» («do produto à produ-

i
1
l
objecto «linguagem» [ ... ]; por outro lado, a psicanálise como
ciência dos sistemas significante~ do sujeito segundo a sua .rela-
ção com o outro e com o objecto» (diálogo com J.-Cl. Coquet,
ção») e atingir um duplo objectivo: «mostrar, por um lado, que
o romance constitui uma prática ideológica da sociedade de clas-
ses» e <<fazer conhecer, por outro lado, [... ] as razões e· sem·
Semiotica, 1972, n. 0 4, pp. 324-349). Para um estudo inspirado -razões da sua permanência como género» (Production de finté·
nas pesqliisas de J. Kristeva, cf. S. l .. ecointre e J. Le Galliot, rêt romanesque·. The Hague/Paris, Mouton, 1973, p. 428).
244 245

tes estreitos da sua subjectividade, não pode sair de si Consciente destas dificuldades, Rousseau escreve nos
para se julgar: «Que olho pode ver-se a si mesmo?», per- seus Fragments autobiographiques:
"unta-se Stendal em Henri Brulard. Do mesmo modo,
: 8 de Outubro de 1929, Julien Green anota no seu lour- Sei como é difícil defendermo-nos das ilu-
nal: «Esta manhã, voltei a escrever após ll!Ilª interrupção sões do coração e não nos enganarmos a nós
de vários meses. Muito difícil. É preciso tentar obter de mesmos sobre os motivos que nos fazem agir.
si mesmo uma espécie de desdobramento.» Ao mesmo Dou conta simplesmente daquilo que julguei sen-
tempo juiz e parte, objecto e sujeito, o homem não pode tir, sem afirmar que não foi a vaidade que me
assestar sobre ele próprio esse olhar frio que lança so~re fez acreditar em tal, mas sempre olhei como
os outros. E mesmo que o pudesse, como escreve G1de pouco perigosos todos os movimentos que só
no seu Journal no começo do ano de 1927: «Ü simples '\ nos inclinam. para coisas honestas e que nos
'
olhar já deforma e aumenta. Perde-se de vista o conjunto levam a fazer com prazer o que faríamos igual-
da figura, e tal traço que se faz dominar não é talvez o mente pelas mais puras intenções (").
traço dominante». Além disso, como ter controlo sobre
um ser em muta<jíJ). ~quando nem sempre nos damos Para evitar que a censura ou a apologia tome o passo
! 1
conta dequê"éie.muda? O vocabulário psicológico pouco
pode ajudar: as palavras egoísmo, ciúme, amor, etc.. são
etiquetas cómodas, sem dúvida, mas que não podem bem
j à «verdade», Rousseau, no prin1eiro passeio das Réveries.
'i afirma tudo querer contar, mesmo os menores áconteci-
~'
{\mentas da sua infância, mesmo os mais ínfimos «tnovi-
traduzir a complexidade da vida afectiva e inconsciente. Hmentos» da sua «a1ma», sem se preocupar com a lógica:
;
Finalmente, não é o amor de si mesmo ou o ódio de
si mesmo que nos impele a conhecer-nos e, por conse- Direi tudo o que pensei tal como me veio e
quência, nos leva inevitavelmente a embelezar ou a des- com aquela pouca ligação que as ideias da vés-
feiar o auto-retrato - ou, pelo menos, a deixar na sombra pera têm habitualmente com as do dia seguinte.
certos traços? Amor de si mesmo que, sob o pretexto de Mas disto resultará sempre um novo conheci-
iluminar o presente pelo passado, tira do esquecimento o lllento do meu natural e do meu humor, através
vivido e incita a revivê-lo. melhor ou diferentemente, pelo
poder do imaginário; tardia, a recordação acrescenta. ou
corta, acentua acontecimentos insignificantes ou negligen- (
40
Jean-Jacques Rousseau, Oeuvres cornpletes, t. I, «Bibiio-
)
cia acontecimentos importantes. 1hêque de la Pléiade», Paris, Gallimard, 1959, p. 1117.
i·i'
247
246

dos sentimentos e dos pensamentos de que o traduzir a vida interior à medida que ela se desenrola,
meu espírito faz seu alimento diário, no estranho Um mesmo denominador comum religa romances tão dife-
estado em que me encontro. _\
rentes como La Nausée, Le lollrnal d'un curé de cam-
1 pagne e Le noeud de viperes: a forma do Diário, dimi-
Marcel Raymond fala, a este propósito, de método 1 nuindo consideravelmente o desajuste entre o escrito e 0
vivido, procura traduzir as incertezas e a evolução duma
psiquiátrico. ·
consciência iinersa no quotidiano.
~~2\!§~~!!t.l'~r!a.!l~Q.. P.S.P.llhlll:ll!~ellt\l ~e si mesmo
é sempre difíc}!,~ iiiçorl}p)eto. É preCISo, nao obstante, No romance epistolar a uma voz - a «monodia epis-
•·. teríiãt'éô;:;!ÍêZer-se, e o conhecimento visado não é o tolar», para empregar a fórmula feliz de Jean Rousset -
conhecimento anedótico que uma testemunha exterior o desajuste entre o escrito e o vivido é ainda menor, po~
poderia ter. Porque o que conta, não é a verdade factual, que em princípio o redactor escreve a sua vida no próprio
a cxactidão dos pormenores biográficos; é o que Rousseau momento em que a vive. Diferentemente do Diário íntimo
sentiu. ·0 que ele chama a «verdade moral», isto é, o que a carta quer atingir um destinatário, sensibilizá-lo, como:
não está consignado nos registos civis. nem nas datas. nem vê-lo. Se o autor da carta nem sempre transmite com exac-
tidão «a sua maneira de ser ínterior» (para retomar a fór-
. mesmo nos gestos reflectidos. É por isso que, por mais
1\ fragmentário o~ contestá~el que .se!ª· o "."~ecimento de i
< mula de Rousseau), já não é unicamente por impotência ou
, si mesmo pela mtrospecçao é o umco váhdo. falta de lucidez, mas por medo de tudo descobrir diante
de outrem e pela preocupação de sensibilizai o outro. Con-
Ninguém pode escrever a vida de um homem soante o destinatário responder ou ficar silencioso 0
senão ele próprio. A sua maneira de ser interior, romance epistolar a uma voz apresentará dois tipos' de
a sua verdadeira vida n5.o é conhecida senão por «monodia» bastante diferentes. Jean Rousset marca bem
ele; mas, ao escrevê-la, ele disfarça-a; sob o nome o interesse destas duas formas de correspondência roma-
I da sua vida ele faz a sua apologia; mostra-se
como quer ser visto, mas de modo nenhum
nesca, ao comparar as Lettres portugaises de Guilleragues
às Lettres de la Marquise de Crébillon:
1 como é(").

I' -Do Diário. íntimo ao mOl!ólogo interior, a expressão de


,~,;;;; n';;- l";maíiêê pOde tomar diferentes formas.
A diferença está no grau de presença do
amante. A Portuguesa dirige-se a um ausente,
o Diário intimo, em princípio redigido dia a dia, pretende que não responde; está condenada à solidão, ao
1 solipsismo. a sua voz ressoa no vazio; sempre
(li) ((Êbauches des Cnnfessi-ons», ibid., P· 1149. remetida a si mesma, fala apenas para ela só
248 249

e acaba por preferir a sua paixão ao ser ou nos esconde deliberdamente uma parte importante da
amado. sua experiência.
Tudo se passa de maneira diversa em Cré- ·-·~ªL"ªº. Il<!S d!;.VJ;ffiOS equivocar: o Diário imita fre-
billon; nas Lettres de la Marquise, o monólogo é - q~en~ell1e~t"..ªLJ\.femórias, como as Memórias podem
só aparente, é a face visível dum diálogo cuja Ia,c~ll1ente !~Jifil.ormar,,se .em .Diário íntimo. Contar a sua
outra face permanece oculta; esse diálogo existe, vida passada é também contar-se hoje, de forma muito
a troca é desta vez real, os dois parceiros comu- s~btil, .sob pretexto de fazer reviver um homem que já
nicam, encontram-se, vêem-se face a face, mas nao existe. Rousseau vira-o muito bem, ao escrever nos
não nos é revelada senão uma parte do pro- «EsboçoS» das Confessions:
cesso, apenas lemos as cartas da jovem; sabemos
que essas cartas atingem o destinatário, que este ., Abandonando-me ao mesmo tempo à recor-
responde, mas essas respostas nunca são repro- dação da impressão recebida e ao sentimento
duzidas. Assistimos a um dueto de que ouvimos '1 presente, pintarei duplamente o estado da minha
só uma voz; a partida ~ jogada por duas pes- alma, a saber: no momento em que o aconteci-
soas, só uma se vê em cena. [... ] A função da mento ocorreu e no momento em que o des·
. epistológrafa é de emitir, de receber e, depois, de
' j reflectir até nós as ondas invisíveis que não cap-
i
l
!
crevi [ ... ] (") .

11 1 tamos di rectamente ("). Com efeito, porque se retoma sobre o passado, se


'.
11
não para o reviver hoje. melhor ou diferentemente? Ao
invés, contar-se hoje, é muitas vezes deixar-se arrastar,
As Memórias. tal como a carta, dirigem-se a um
leitor. Mas este leitor, excepto em certos romances do tipo pelo apelo da memória, para o outrora. Em ambos os
«confissões a outrem» como La Chute de Camus, não está Q~Q§_os..arontec..iJn.entos rememorados sã;deformados -
implicado na acção. Trata-se aqui, para o narrador-actor ,ou, antes, recri~dos:...:.: Púr Úma c<>ôsdência iíntrsa no
chegado a um certo troço do caminho. de fazer o balanço ' preserifo:' õ ,;;;,.rr;o acontecimento, relatado pela mesma
das suas aventuras ou da sua experiência. Balanço mais i I' personagem em momentos diferentes da sua vida. já não
ou menos completo, quando o narrador interrompe inopi- é reconhecível, porque o ponto de referência do narrador
nadamente o seu relato, como o Jacob do Paysan parvenu. I , move-se continuamente: a reperspectivação do passado é
! \ continuamente modificada.
1,
Jean Rousset, «La monodie épistolaire: Crébillon fils»,
( 42 )

ín Etudes littérair11s. Qnébec, Agosto de 1968, pp, 168-169. (~:J) Oeuures t!ulohiogrophiques, ed. cit., 1154.
250 251

O monólogo interior tentará ir ainda mais longe na Dujardin tentou encerrar o debate em 1931, publicando o
expressão das profundezas do ser e da forma por que o ensaio intitulado Le Monologue intérieur, son apparition,
real aparece a uma consciência. Foi o escritor francês ses origines, sa place dans /' oeuvre de James Joyce.
Édouard Dujardin que, em primeiro lugar, utilizou de Dujardin acentua o carácter alógico do processo, que
forma sistemática o monólogo interior, em Les Lauriers visa reproduzir «o pensamento no seu estado nascente
sont coupés. O romance, que passou quase despercebido e com o aspecto de acabado de ocorrer»:
aquando da sua aparição em 1887, caiu nas mãos de
Joyce, que depois confessou a V aléry Larbaud ter nele O monólogo interior é, na e>rdem da poesia,
descoberto muito de interessante. No seu prefácio à ;o·aiscürso sem auditor e não pronunciado, atra,
segunda edição dos Lauriers sont coupés, em 1924, Lar- ·>'ê§-êfô'qúal uma personagem exprime o seu pen-
baud escreve: ...sarnenÍo · llJllis íntimo, mais próximo do incons-
cienté, anteriormente a qualquer organização
Em Les Lauriers sont coupés, disse-me )ógica, isto é, no seu estado nascente, por meio
Joyce, o leitor vê-se instalado, desde as primeiras de frases directas reduzidas ao mínimo de sin-
linhas, no pensamento da personagem principal, . taxe, de forma a dar a impressão de «acabado de
·~ e é o desenrolar desse pensamento que, substi- ._ocorrei» (").
'•'• tuindo-se completamente à forma usual da narra-
. tiva, nos revela o que faz essa personagem e o
.\que lhe acontece... «De resto, acrescentou ele. (4' 4 ) P. 59. Esta definição parece, sem. dúvida, ir ao encon·
\leia Les Lauriers sont coupés». tro da preocupação de Stendhal, que escrevii na sua Filosofia
nuova, t. II (éd. du Divan, pp. 179-181): «Suponhamos que um
estenógrafo se podia tornar invisível e manter-se um dia ao lado
Quando Larbaud fez a leitura do romance de Joyce, de M. Pétic:t, escrevja tudo o que ele dissesse, anotava todDB os
em 1921, disse-se «raving mad over Ulysses» e publicou seus gestos; um excelente actor, munido deste processo verbal,
no ano seguinte, na' NRP, um artigo entusiasta sobre a poderia reproduzir-nos M. Pétiet tal como ele foi nesse dia.
~Ias, a menos que M. Pétiet tivesse um carácter muito notável
obra. Foi o começo, em França. de discussões longas e
e fiie.sse acções muito notáveis também, esse espectácu1o só
apaixonadas sobn:;.,o.-lll()nólogo, interi~~: Em 1924, no poderia interessar àqueles que o conhecessem. Haveria um outro
inicio do 5.º capítulo de Juliette au pays des hommes. processo verbal do dia bem mais interessante; seria aquele que
onde parodia o monólogo interior, Giraudoux escreve com nos daria um Deus que desse, com perfeita exactidão, conta de
graça: «0 que intrigava Paris nesse momento não era. todas aS. operações da sua cabeça e da sua alma. Isto é, dos
sem dúvida, a morte, era o Monólogo interior.» O próprio :seus pt·nsamentos e dos seus sE"nlimentos.>)
254 255

sobretudo no cabide; sento-me; uf! estava can- -Criado!


sado. Porei no bolso do meu sobretudo as luvas. O criado não está; é desanimador; sou estú-
Iluminado, dourado, com os espelhos. com esta pido; uma ocasião destas; não volto a cair nou-
cintilação; o quê? o café onde estou. tra; urna mulher miraculosa. Não olhou para
aqui ao levantar-se; diabo, é natural (").
Mas não foram suficientemente notadas passagens
como a seguinte, em que as associações de ideias e de Poderiarnos citar alguns outros exemplos de êxito
sensações cortam o monólogo de digressões e se misturam incontestável no emprego duma fóm1ula, corno aquela
com as palavras pronunciadas: passagem do capítulo VII em que Daniel adormece nos
braços de Léa antes de despertar bruscamente.
Que relação há entre o vinho e o jogo, entre o Evidentemente, o monólogo interior de Dujardin, corno
jogo e as miúdas? percebo que haja pessoas que o de Larbaud e da maioria dos romancistas franceses de
tenham necessidade de se excitar para fazer amor; entre-as-duas-guerras, ainda se mostra muito mais com-
mas o jogo? Este frango estava notável, os posto, lógico, expli04tivo do que o longo monólogo de··
agriões admiráveis. Ah! a tranquilidade do jan- Molly Bloom, por exemplo, no final de Ulysses, ou os do
tar quase acabado. Mas o jogo... o vinho, o idiota Benjy e do obcecado Quentin de Faulkner. Quanto
jogo - o vinho, o jogo, as miúdas. . . As miúdas 1 às personagens tagarelas e soluçantes de Samuel Becket!,
tão caras a Scribe. Não é do Chalet, mas de l é de perguntar por que outro meio diverso do monólogo
Robert-le-diable. Vamos lá, é de &ribe na
i interior teria podido o romancista atingir uma tal den-
1
mesma. E sempre a mesma tripla paixão ... Viva o ·i sidade trágica. Para falar verdade, a maior parte dos
vinho, o amor e o tabaco ... Há ainda o tabaco, lâ romancistas franceses, mais do que os escritores ameri-
.1
isso admito ... Aí está o refrão de bivaque ... De- canos que o utilizaram, parecem não ter querido sacrifi-
ve-se pronunciar «taba-e» e «bivoua-e», ou «taba» car nada da análise psicológica, mesmo quando, sem
e «bivoua»? Mendis. da avenida de Capucines, dúvida sob a influência da psicanálise, tentavam atingir
dizia «dornp-p-ter»; deve dizer-se «dom-ter». O os níveis mais profundos da vida psíquica. O monólogo
amor e o «taba-e»... o refrão do «bivou-e» ... interior, portanto, encontra raran1ente em França esse
Ê insensato, ridículo, grotesco! deixá-los partir!. .. duplo carácter que tem frequentemente nas literaturas de
-Criado!
Vou pagar imediatamente e apanhá-los. Lá ()
47
f;douard Dujardin, Les laurie1's sont cottpés. Paris,
vão eles a sair. UGE. col. «10-18>>, 1968, pp. 29, 39 e 44.
257
256
Figaro littéraire de 7 de Dezembro de 1957, explicando
expressão inglesa: revelar níveis de vida mental inexplo· por que «se tornava necessário um monólogo interior
. rados ou inacessíveis por outros meios e mostrar como abaixo do nível da linguagem da própria personagem,
. uma consciência apercebe o mundo. numa forma intermediária entre a primeira e a terceira
Michel Butor, por razões diferentes da crítica habi· pessoa>>.
tua!, recusará o monólogo interior. Porquanto este, mesmo Para eliminar totalmente o desajuste entre a narração
que permita «atingir urna narração absolutamente contem· e a acção ou, se se preferir, entre a narrativa e o narrado,
porãnea do que narra», põe entre parênteses o pro- escritores como Ricardou, Ollier e Robbe-Griilet suprimi-
blema da escrita. «Encontramo-nos ... diante duma cons· ram totalmente, em certas obras, o «eu» narrativo e os
ciência fechada», que somente podemos abrir pelo em· adjectivos e pronomes pessoais da primeira pessoa. A lei-
prego da segunda pessoa. Esta, provocada por um inter· tura de La Jalousie põe-nos em presença duma persona-
locutor, levará a personagem a exprimir o que não quer gem central, cuja actividade mental consiste exclusiva-
ou não pode revelar pelas palavras. «Se a personagem mente em seguir o vai-e-vem da sua mulher e de Frank,
conhecesse inteiramente a sua história, se não pusesse em rever os mesmos objectos, em fazer passar pelo espí·
objecções a contá-la ou a contar-se-la, então impor-se-ia a rito as mesmas cenas deformadas pela obsessão. A aposta
primeira pessoa: ela daria o seu testemunho. Mas se se de Robbe-Grillet consiste em que ele consegue criar a
trata de lho arrancar, seja porque mente, ou nos esconde sensação do ciúme sem nunca empregar uma só palavra
ou se esconde qualquer coisa, seja porque não tem do vocabulário habitualmente utilizado para o descrever.
todos os elementos, ou, até, se os tem, é incapaz de ~ E como este não nos é contado, mas tornado sensível pelo
religar convenientemente», só a segunda pessoa perm1· quando conversa com alguém, emprega sempre o «ele» do
tirá alcançar a revelação do indizível ou do oculto ("). desenrolar das imagens mentais, a personagem central,
Mas desde que só a segunda pessoa é emprJ'!l~da num estilo indirecto, enquanto que o seu interlocutor emprega
romance como La Modification, desde que ela nao é pr~­ o «eu» à vontade.
vocada por um «eu» expresso, não se transforma, em def.1- Perseguindo um fim idêntico, o narrador de Drame de
nitivo, no equivalente dum monólogo in~erior? O ~rópno Philippe Sollers utiliza, sem dúvida, o «eU», mas fazen·
Butor o reconhecia, aliás, numa entrevista concedida ao do-o alternar com um «ele» insólito, propriamente «impes-
soal». O autor quer, desse modo, desembaraçar a pri-
(<1.B) «L' usage des pronom.s personnels dans l~ roman», in I,.es meira pessoa da dupla referência que implicava o «eu»
Temps Modernes, 1961. Este artigo foi recolhido em Réper- das Memórias: a do narrador e a da personagem cuja
toire II (Editions de Minuit, 1964) e depo-is em Essais sur le roman história se contava. Drame, de Sollers, pretende fazer
(Gallimard, col. «Idées», 1969).
17

1
258 259

do narrador e do autor um só ser. Assim, a única histó- tado de que somos o centro. Um comportamento por
ria que pode contar é o seu próprio procedimento, os detrás do qual procuramos descobrir móbeis, sinais, uma
seus próprios esforços, no mesmo momento em que traça paisagem interior em relação connosco. Se a nossa pró-
as palavras sobre a página. Não é a aventura dum escri- pria pessoa é o eixo em torno do qual gravitam os outros,
tor que nos é contada, mas a pesquisa laboriosa e hesi- por que haveriamas de aceitar, sem motivo impor-
tante dum «escrevente». Substituindo a personagem roma- tante, contar a história de outrem em vez de contar a
nesca pela pessoa gramatical, Drame leva, pois. ao seu nossa directamente?
extremo limite o romance que conta a história da redac- A apresentação duma personagem fictícia por uma
ção dum romance e simultaneamente «o realismo bruto outra põe problemas da mesma ordem. Esqueçamos de
da subjectividade» de que Sartre fez um dogma· em Q' est-ce momento o conhecimento complementar que das outras
que la littérature? .nos dão as personagens romanescas pelo facto de partici-
parem ne mesma história e examinemos o caso duma per-
sonagem principal apresentada por um narrador, teste-
A apresentação da personagen1 por outrem munha e participante ao mesmo tempo. Wuthering
Heights de E. Bronte, Le Granel Meaulnes de Alain-Four-
Ili! Aos limites e às dificuldades do auto-retrato, o tes- nier e Doktor Faustus de Th. Mann constituem três exem-
'l temunho de outrem sobre uma personagem parece,
"'-~'â"'-Pi-iófi,"'(iàzéi-- urii" cOmplemento e uma solução. Vjrada
plos apropriados. Porque decidiu o autor fazer contar
a história da personagem principal por uma personagem
para o exterior, a testemunha já não é um ser obnubilado· secundária? Michel Butor emite a opinião de que o autor
pela sua própria interioridade. Além disso, a sua expe- representa então «o que ele é» pela sua personagem secun-
riência da introspecção deveria ajudá-la a penetrar no dária e «o que ele sonha» pelo herói:
ii' outro como um sujeito. Sartre, con10 é sabido, obstinou-se
em mostrar «a má fé» de todo . o 011).ar lançado por
~ _ , , , _•• ,,., ...... ~----'~'-· •• , . , . , . , - '' - - - ' •• <
A distinção entre as duas personagens reflec-
alguém sobre s1 ê"'afirmou, por_ vári_as vezes, que o conhe- tirá, no interior da obra, a distinção vivida pelo
éifileilf(f~ êlê_,_Sr-:mêS-ffio p~~~va -~el-a mediação de outrem: autor entre a existência quotidiana, tal como a
E. ConttidO, não nos cÓnvei{~e a experiência de todos ·os · suporta, e essa outra existência que a sua activi·
dias de que os outros, mesmo os mais íntimos. não têm dade romanesca promete e permite. E é esta
de nós senão um conhecimento fagmentário, superficial. e distinção que ele quer tornar sensível, mesmo
deformado? O que nós próprios captamos primeiro nos dolorosa, ao leitor. Já não quer contentar-se com
outros é um comportamento que aparece no círculo limi- fornecer-lhe um sonho que o conforte; quer fazer-
~
')
260 261
1
'l
-lhe experimentar toda a distância que subsiste J'<ã.o .~ .~em no solilóquio, nem no olhar fascinado que
entre o sonho e a sua realização prática ("). as ~rs~!=l:gen_s nos comunicarão o máximo sobre as
outras, mas nas relações que estabelecerão com elas, nos
Esta opinião, que sem dúvida não esgota a questão, seus g..Stos como nas suas palavras. Pela sua maneira de
nem por isso se torna menos sedutora. Pois que explica ser e· de ºagir face ao outro, cada figura romanesca infor-
muito bem a fascinação que exerce Augustin Meaulnes 'iiúí~ii()s· tanto sobre esse outro como sobre ela. Todo o
sobre François, Adrian Levenkühn sobre o Dr. Ze:itblom, cowwrtamento ..é uma resposta dada à imagem projec·
Heathcliff e Catherine sobre Lockwood. Quanto mais o tada por Qutrem.
narrador se mostra discreto a respeito desrmesmó, mais 1 Mas é sobretudo o diálogo("') que permitirá dar, duma
Sê mferfslflêa,' l>õr ·cutmãsle, ·o ob]ecto ·da fascinação. Por
j5aradmmt éjlie ·a afirmação possa parecer à primeira vista.
l personagem, já não apenas um conhecimento directo, por-
que a palavra como o gesto é uma resposta à imagem pro-
é n1eno.s, sen1 dúvida, a aventura de Augustin Meaulnes. jectada para outrem. Se deixarmos de parte o mau
de Heathcliff e de Adrin Leverkühn que nos é contada diálogo de romance de tese, destinado unicamente a fazer
do que a história dwna fascinação('"). E tal fascinação, passar melhor as tiradas dum narrador inábil e falador,
criando um clima de empatia, permite, decerto, apresentar damo-nos conta de que o diálogo romanesco eficaz, além
uma imagem convincente da personagem principal - mas
não a deforma ainda mais do que o olhar lançado por
(til) Em Abril de 1959, aquando do Colóquio de Stras-
alguém sobre si mesmo? Poderemos ficar seguros. de bourg sobre La littérature na"ative d'imagination (P. U. F;,
conhecer bem a Julie de La Nouve/le Heleiise exclusiva- 1961), Albert Henry deplorava o facto de que nenhum estudo
mente através das cartas da sua roda fascinada de Clarens, sério Uvesse sido <tinda consagrado ao diálogo do roinance e .1d1nitia
que lhe faz um pedestal com os elogios e a rodeia como a que ele próprio com a sua comunicação levantasse mais ques-
tões de que trouxesse respostas. A discussão que se seguiu permi-
um ídolo? tiu verificar que, se se julgava ter ideias bastante precisas sobre
o monólog9 _i11t_erior. ou. sobre o estilo ind_irecto livre, o mesmo não
s-;--;;;~;~a em. - ~eÍa~ão ao diálogÕ. De~ anos mais tarde, no
colóquio Flaubert (Europe, Setembro-Novembro de 1969), a
(49) «L'usage des pronoms personnels dans le roman», in comunicação, muito rica, de Mme Gothot-Mersch sobre «o diá-
Essais sur le roman, P· 76. logo na obra de Flaubert», seguindo a do Dr. Galerant sobre
('Hl) Ao mesmo tempo, não prende o autor, sem custo, a «FJ.aubert visto pelos seus médicos de hoje», apena·s deu lugar a
«fidelidade» do leitor, pois que este Lomará o mesmo caminho ·do breves observações sobre o diálogo, incidindo a discussão espe-
narrador? A evidência disso é-nos fornecida pela admiração cialmente sobre a epilepsia e a histeria... Sinal de que os estudos
comunicalivn do Dr. \Vatson pelas proezas de Sherlock llolrrlcs. sobre o diáJogo pouco progrediram nestes últimos anos.
uma hipótese ou pór em relevo uma verdade por inter-
de avivar. diminuir ou revelar a simpatia ou o conflito
médio dum interlocutor? Se Flaubert, por várias vezes,
mais ou menos latente entre as personagens, permite a
desejou «pintar pelo diálog0», como o afirma numa carta a
estas exprimir, de bom ou mau grado, o que nenhuma
outra técnica romanesca permitiria revelar ou fazer adi- Louise Colei de 30 de Setembro de 1853, outros roman·
cistas viram nele menos um meio de caracterizar as suas
vinhar. Com efeito, apesar do acanhamento ou do pudor
que impede de dizer o que se escreveria numa carta, a criaturas romanescas do que de provocar a evolução inte-
troca de palavras, pelo seu carácter espontâneo, imprevi- lectual ou moral destas. Le Neveu de Rameau é um
sível, faz nascer sentimentos, brotar ideias, e transforma exemplo patente disso. Igualmente A Montanha mágica,
a paisagem interior ("). O interrogatório policial ou amis- onde as conversas de Hans Castorp com Settembrini,
toso, como o diálogo filosófico. não tem por fim verificar Naphta ou o seu primo nos permitem seguir o progresso
do «herói» na sua busca. Seria fácil . aplicar ao romance
certas conclusões da análise feita para o teatro por Roman
(52) Nrnna carta a Sophie Volland, datada por André Babe-
Ingarden sobre «as funções da linguagem no teatro» (Poé-
lon de 20 de Oulubro de 1760, Diderot parece ter pressentido
a possil>ilidade de expl()ração e de descoberta do diálogo pelas tique, 1972, n.º 8). Com efeito, do mesmo modo que todo
associações de ideias ou de palavras a que a conversa mais des- o discurso teatral, ou, o que nos interessa aqui, todo o
conexa pode, por vezes, dar origem: ,diálogo, deve exercer entre outras funções (de comunica-
«Í<~ un1a coisa singular, esta da conversa, sobretudo quando
a companhia é pouco numerosa. Veja os circuitos que fizemos;
. ção e de persuasão) duma outra ordem relativamente ao
os sonhos de un1 doente em delírio não são mais heteróclitos. No '..~'espectador, da mesma maneira se esboça no romance, atra-
(•ntanlo, tal como não h:á nada de desligado nem na cabeça dum vés do diálogo que liga duas personagens, um segundo
homem (jll(' sonha, rie1n na dum louco, tudo se interliga também .diálogo - meio mudo - ligando a personagem ao leitor
na conversa; 1nas seria por vezes muito difícil achar os elos virtual (ou o narrador ao narratário). Ora, que no teatro
imperceptíveis que atrairanl tantas ideias disparatadas. um a cena seja «aberta» (público sentido como presente na
home1n atira uma palavra, que desliga do que precedeu e do
que se seguiu na sua cabeça; um outro faz o mesmo, e depois acção) ou «fechada» (público querido como ausente),
apanha-as quem pode. Uma só qualidade física pode conduzir que no romance se finja ignorar ou não a presença do
o espírito que dela: se ocupa a uma infinidade de coisas diversas. leitor (ou do narratário), dificilmente se encontrará um
Ton1c1nos uma cor, o amarelo, por exemplo: o ouro é amarelo,
caso onde a sua influência, mesmo que fraca, não traga
a seda P amarela, a preocupação é amarela, a 'bílis é amarela.
a palha {_. amarela; a quantos outros fios corresponde este ~io? «perturbação» ao curso normal («natural») do acto de
A loucura. o sonho, o desligado da conversa consistem em passar falar. Diálogo evidentemente sem réplica - senão a do
dun1 ohj1?cto para um outro por intermédio duma qualidade interesse sentido pelo Jeitor-. mas que põe em causa a
C01TIU1ll)).
264 265

realidade do diálogo fictício. Devemos daqui concluir que nos deveríamos dedicar em Kafka (e não da natureza do
o êxito do diálogo romanesco é proporcional à medida em seu silêncio)('").
que o leitor virtual (ou o narratário) se apaga? Certa- A carta, quer seja dirigida a outrem, quer fale de
mente que não, pois é bem evidente que o diálogo, pelo outrem. possui vá_rios atributos do diálogo. Pela troca,
'
seu carácter de imediatez, é revelador de alguma coisa, prov~ca a revelaçao, e pelo seu carácter lateral põe em
se não das personagens, ao menos do narrador ou do seu evidencia o que um sin1ples relato deixaria escondido ou
narra tá rio. sem relevo. A troca epistolar constitui uma espécie de
Maurice Blanchot, ao sublinhar, em Le Livre à vertir, conversa, tornada cxtreman1ente lenta, entre dois ausen-
a raridade do diálogo romanesco-«comodidade de expres- tes que não podem conhecer directamente a reacção do
são» na maior parte dos casos, solução de facilidade, ~ut~_o ?º
n1omento em que falan1, mas que em contrapar-
pálida imitação do real quando não é impotência para , tJda tem todo o tempo que quiserem para a réplica.
falar, pior que o silêncio-, mostrou que ele podia tor- Surpreendido ou chocado por uma mensagem recebida,
nar-se, em certos escritores, um dos princípios da sua o correspondente pode responder imediatamente sob o
arte. Malraux, Henry James e Kafka partilharam os três choque da emoção, ou retardar a resposta para 'reflectir
esse gosto da palavra, fazendo Malraux reviver a arte da e melhor produzir o efeito desejado. Mais ainda do que
no dialogo, em que os interlocutores, apanhados na arma-
discussão, tal como a praticava outrora Sócrates, e fazendo
dilha da troca de palavras, se deixam arrastar por estas
constantemente alternar nas suas narrativas palavras e
para um terreno imprevisto, os correspondentes deslizam
acção violenta, sem que nunca essa violência venha pôr
em dúvida o «respeito da palavra» que habita todas as facilmente. na rampa do estilo, para o Diário íntimo ou
a confissão. O romance epistolar a uma voz, como bem
personagens de Malraux. Em Henry James, é ainda pelo
mostrou Jean Rousset num artigo já citado, permite medir
diálogo que se revela a «parada» de todos os seus roman-
até que ponto a caria enviada revela quase tanto do desti-
.·· ces, aquilo que não é dito, tornando-se essa «verdade
1.1'.' natário conto do remetente. Analisando Les Letrres de la
,.
::1! escondida». que todos se recusan1 a dizer. uma espécie de
Marquise, de Crébillon. o crítico escreve:
'i
terceira pessoa simultaneamente causa de mal-entendidos
e fonte de entendimento profundo. Em Kafka, «a impos- Este romance não nos dá. portanto, senão
sibilidade das relações» faz ressaltar a ambivalência da uma parte da história que narra; mas o que
1 palavra: «palavras de juiz» e «palavras de astúcia» ou de oculta é inseparável do que mostra; metade da
«fuga>>, são a nova forma de comunicação, que se instaura
Mauric-e Blanchot, J~p, l. ...icre
3
1 a partir dessa palavra inconciliável à descoberta da qual (:; ) à venir. Paris, Gallimar<l,
C'Ol. «Tdées>>~ 1959, pp. 223.235.
266 267

obra é excluída do texto que lemos, mas é num caso como no outro, tem de se relatar um certo
incluída na nossa leitura. E um efeito notável do número de factos para que uma generalização se tome
romance epistolar a uma voz: temos de possível. Dos gestos e das palavras se desprenderá a ima-
reconstruir a parte que falta. Essas cartas do gem do herói triunfante ou vingador, do pecador arrepen-
conde que não podemos ler, deciframo-las nas dido ou da astúcia feita homem. Para marcar o carácter
respostas da marquesa; elas estão lá, filtradas, estático e monolítico da personagem épica, Scholes e
decompostas, retomadas numa volta duma frase, Kellogg lembram as observações de Joyce sobre o Ulisses
li
:
jnseridas numa réplica: «Louva-me vãmente o de Homero. Poucas personagens inventadas se encontram
amor e os seus prazeres». A réplica supõe o em situã.ções e posturas tão numerosas e tão diferenciadas
ataque, a denegação implica a insinuação; sob a como lnisses: ele é o marido de Penélope, o amante de
· filigrana do que é dito, discernimos o que não Calipso, o pai de Telémaco, o filho de Laertes, o guer-
J é dito. Somos convidados a adivinhar, a recoro- reiro, o explorador, o narrador, o atleta, o indivíduo sofre-
1
: 1 por, a construir o todo com a ajuda da parte. a dor, triunfante, suplicante, e é o rei. Não muda, não
imaginar o Conde através da Marquesa("). envelhece; permanece tão l!1onolítico como Aquiles, 0
herói-que-se-quer-vingar.
Quando o gesto ou a palavra (monólogo, inspira-
A apresentação da personagem por ian narrador ção, etc.) não permite exprimir a intensidade dum senti-
extradiegético mento ou dum conflito exterior, o narrador épico ou
sagrado recorre a um subterfúgio: o sonho ou a aparição
Na epopeia primitiva ou sintética. como na tradiçào maravilhosa. Aterra aparece a Aquiles no momento em
oral e no Antigo Testamento, a apresentação a partir que ele ia cometer um erro, Eneias deixa Dido depois
do exterior é absolutamente natural. Com efeito, a perso- de ter um sonho; também Carlos Magno sonha, na
pagem não é posta em cena por ela ·pró~fia, mas pelas Chanson de Roland. e o anjo Gabriel aparece-lhe quando
suas àventuras. O valor didáctico do Antigo Testamento, ele acaba de ser atingido por um golpe perigoso, durante a
por exemplo. da 1nesma n1aneira que a imortalização do batalha contra os Sarracenos. A dramatização através do
heroi épico vêm. cn1 primeiro \ugar. das acções narradas: .~onho ou _da aparição permite r;reseritár a intensidade do
cóííflifo interior como se se tratasse dum acontecimento.
'Ao Lancelot do século XII. hesitante em subir para a car-
(<H) «La 1nouodic épisloLi.irC': Crébillon fih», in Etude; lit1é.- reta patibular dos condenados à morte para reencontrar a
n1ires, Qu{~bec, Agosto ele 1968, p. 169. rainha Guenievre. não tocará nem sonho nem aparição;
269
268
homem das mil viagens» e Rolando «o pio»; Vautrin
Chrétien de Troyes dramatiza o seu conflito interior utili- é um «colosso de manha e de corrupçã0». Se se trata de
zando um processo de retórica, o d~ tradução _em estilo mostrar a revolta duma população explorada pelo egoísmo
íi
ji indirecto dum diálogo entre o coraçao e a razao: duma pequena oligarquia do Capital, Zola descreve a
1Ji marcha dos mineiros como o avanço dum exército. E
,, ' E 0 cavaleiro segue o seu caminho sem ousar para marcar bem que uma luta entre um indivíduo e uma
·i:' ,, subir para ela. Mas foi erradamente e com ver- colectividade ou entre dois grupos é ll!ltes de tudo uma
gonha sua que não subiu, pois que depressa se relação de forças antagónicas ou convergentes, nem Bal-
arrependerá. A razão, que nada tem a ver co~ zac nem Zola têm de construir, regra geral, personagens
• 0 amor, não quis fazê-lo subir: mostra-lhe e ens'.- intI:ospectivos ou psicologicamente complexos. Etienne
na ·lhe a nada fazer nem tentar donde possa vir Lantier não evolui no plano psicológico: está apenas
a censura ou a vergonha. A razão, que ousa melhor informado. Do mesmo modo, a personagem de
ditar-lhe esta conduta, está nos livros, não no Balzac, como observava recentemente Jean - Pierre
coração; mas é no coração que se encontra o Richard ("). não se toma mais complexa: bate·se ou
amor apressando-o a subir. Amor assim quer e submete-se; vence ou é vencida. A «motivação psicoló-
ele salta para lá! Fá-lo à pressa, pois, que amor gica» conta muito menos do que o «desenvolvimento
assim 0 quer e ordena, e com medo que lhe che- táctico», «a disposição das forças às quais a luta deu
gue o remorso ("). · lugar». Não afirma Balzac, no antelóquio de La Comé-
die humaine, querer ultrapassar o simples papel de «pintor,
A apresentação das personagens a partir do exterior mais ou menos fiel, mais ou menos feliz, paciente ou cora-
re~~fQU:se~~·tréq~entemente eficaz na literatura rom~.n~s_ca joso, dos tipos humanoS», de «contador dos dramas da
'para dramàtizar 0 conflito eritre um indivíduo e a socie: vida íntima», de «arqueólogo do mobiliário social», de
dide. É por essa razão que a personagem de Balz~c e de «classificador das profissões» ou de «registador do bem
Zola se parece tantas vezes com a personagem épica. ~e e do mal», para «surpreender o sentido oculto dessa
se trata de apresentar uma monomania ou uma tara fa~ - imensa reunião de figuras», desse «motor social»? Trans-
liar qualquer, o romancista situa a personagem num cena- formando-se cada personagem numa peça da enorme
rio à sua imagem e mostra-a em acção e a fal~r ou carac-
teriza-a com uma fórmula impressionante: Uhsses era «O
( 66) «Balzac, de la force à la forme», in Poétique, n.0 1,
1970, pp. 19-24. RecoThido em Études sur le ramantisme, Paris,
Editions du Seuil, 1971.
(&&) Segundo ln1 dução inédita de Jean Marcel.

1
270 271
máquillll cujo funcionamento quer mostrar, Balzac caracte- .trar..as rodas da maq' uina social?· Os homens 1a .. nao
- sao
-
rix.a invariavelmente as suas personagens pelos três pro- md1viduos,
. mas peões sobre um tabuleiro . EmiJ e Benve..
cessos que Ramon Fernandez enumerou: ~te, nos ~apítulos XVIII a XXI de Problemes de linguis-
tzque g~ne~ale, insiste longamente na oposição entre as
o estabelecimento dum estado civil e histórico, d~as prrmerras pessoas e a terceira, que é apenas «a forma
que a situa no tempo e num grupo social defi- nao pessoal da_ flexão verbal» (p. 230). A 3. • pessoa, com
nido; uma dedução psicológica, que parte de con- , ; efeito, na medida em que está excluída do diálogo e em
cepções gerais e chega a alguns traços que cons- que «Se refere a um objecto colocado fora da alocuçã0»
tituem o carácter da personagem; uma descrição (p. 265), não diz respeito a uma pessoa específica, desig-
quase exclusivamente visual, que compreende °.'.'ndo «aquele ~ue está ausente». para retomar a formula-
tanto o seu quadro habitual e a habitação, como çao dos gramáticos árabes:
o rosto, o corpo e o vestuário(").
_Só emprego eu ao dirigir-me a alguém, que
Mesmo a evolução dos indivíduos permanece, no dizer sera,. ~a rmnha alocução, um tu. É esta condição
de Fernandez, exterior ao indivíduo, sendo a dedução do de ~1álogo que é constitutiva da pessoa, porque
esquema psicológico de que ele é o veículo. É que a curva imphca em reciprocidade que eu se torne tu na
da paixão monomaníaca mantém-se idêntica de uma per- alocução daquele que, por seu turno, se designa
sonagem para outra: «Ela é absoluta e aumenta regular por eu [... ] A linguagem só é possível porque
e fatalmente». Segundo Fernandez. o que salva a obra cada locutor se apresenta como sujeito, reen-
balzaquiana e lhe dá o seu poder, é uma «intensidade viando a ele próprio como eu
no seu discurso.
visual» extraordinária e «um esforço prodigioso da Por essa razão, eu supõe uma outra pessoa.
inteligência para fabricar uma espécie de molde abstracto aquela que sendo como é exterior a «mim», se
da vida, que desta apresenta em negativo a forma exacta, transforma no meu eco, ao qual digo tu e que
mas rígida e simplificada». me diz tu. (p. 260).
Causará surpresa ver Balzac e Zola empregar quase
exclusivamente a narração na terceira pessoa, quando se Nenhuma «reciprocidade», nenhuma polaridade deste
conhece a intenção que tinham de desmontar e de mos- género é possível com ele.
Se esta distinção entre as duas primeiras e a terceira
(!i7) «La }\iiétbode de Balzac)}, in Messages, primeira série, ~ssoas é justificada ou contestável em linguística, disso
l'a,is. Gallimard, 3.ª ed., 1926, pp. 59-77. nao podemos ajuizar; mas cremos que lança luz sobre 0
272 273

problema da narração na terceira pessoa. aproximando-a pessoa, deixa-se de falar dele na 3. ª pessoa e toma em mão
i
da narrativa histórica, a qual exclui qualquer intervenção a condução da narrativa para a acabar: «Eu caminhava
,.
p do «locutor» na narração e, por isso mesmo, qualquer pela outra margem ... ». O processo pode parecer tosco a
11;
, ,
relação verdadeiramente pessoal. No momento em que vai alguns que não terão lido a obra de Ferron, mas não há
1
morrer, o narrador de LA Chorrette (Montréal, éd. HMH, dúvida de que é o único que permite ao autor exprimir
1968). de Jacques Ferron, passa subitamente do eu ao ele: com tanto vigor e clareza a significação profunda da sua
narrativa.
o melhor que eu tinha a fazer, era escutá-los, Há outra maneira do narrador se colocar fora da his-
deixar a cada um a primeira pessoa, a única que tória: é ser, como uma câmara, um simples registador do
há verdadeiramente pessoal, e guardar para mim que se passa diante dele. O narrador proibe-s~ todo e
.i'li,' apenas a terceira, a que se vai, que está já fora qualquer resumo, toda a generalização, todo o juízo, toda
do jogo... Ele escutava-os pois[ ... ]. a intrusão na consciência das suas personagens para se
contentar com descrever a sua aparência exterior e de
I'! anotar os seus gestos e as suas palavras. Deparamo-nos
1

;Ir
Como nota muito justamente Jean Marcel, «aniquilada,
a pessoa do eu fica para sempre hirta, objectivada» ("). 'então com o romance behaviorista, que teve a sua hora de
'I·
t.1
Numa obra publicada um ano mais tarde, Le Ciel du glória nos Estados l}nidos com, entre outros. Dashiell
Québec (Editions du Jour), e fortemente ancorada na Hammett e Hemingway, em certas novelas como T he
realidade política quebequense, Ferron utiliza o processo Killers. O processo - que se tomou sistemático com a
inverso. Uma personagem pitoresca, mas demasiado popularidade da psicologia do comportamento largamente
enleada nas suas origens escocesas para se integrar no vulgarizada pelos numerosos discípulos de Watson - não
meio quebequense, Frank Anacharsis Scot, em consequên- é absolutamente novo. Poderíamos descobrir traços seus
cia duma conversão pelo menos surpreendente, afrancesa tanto na Bíblia como em Flaubert ou Diderot ("). Mas
o primeiro nome mudando-o para François e torna-se ple- é, sem dúvida. no romance policial que mais tem sido utili-
namente quebequense. No instante em que se descobriu um zado, em concorrência com outros processos: é que o
ser novo e verdadeiro, no momento em que se tomou uma
119
( ) Em La psychologie du comportement, publicada primei-
ramente em 1942, depois reeditada em 1963 por Gallimard e
(68) Jean Marcel, ]açques Ferron malgré lui. Montif.tl, em 1968 na col. «ldées», P. Naville cita, no apêndice A, uma
Editions du jour, 1970, p. 151. Cf. também a oscilação continua página de Diderot que qualifica de «bela hipótese behaviorista».
entre o eu e o ele em Kamauraska de Anne Hébert {Paris, Edi~ Esta obra constitui, com a de A. Tilquin (Le Behavi-Orisme. Paris,
tions du Seuil, 1970), 1942), a melhor introdução à psicologia do comportamento.
18

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1.
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l ;~;
274
1
!'
275

comportamento dos indivíduos é um indício tão válido outro ou da visão omnisciente para a perspectiva limitada
como as calças manchadas de sangue ou as impressões duma personagem, Flaubert tem grande cuidado em não
digitais no revólver achado na vala. o fazer bruscamente, a menos que queira manifestar com
clareza a sua ironia. Para passar de uma perspectiva par·
ticular para outra, sem interromper a corrente subjectiva,
A apresentação mista o autor, como mostrou finamente Jean Rousset,. procede
a uma engenhosa rotação de ponto de vista, em que o
Na realidade, na grande maioria das obras romanescas, olhar e o pensamento das personagens em cena masca-
a apresentação das personagens vem ao mesmo tempo do ram habitualmente a troca de «foco»("º). A tal ponto
interior e do exterior da própria narração: os únicos qui· que o leitor se pergunta muitas vezes se é Flaubert ou a
micamente puros, no plano narrativo, seriam o romance sua heroína que pensa. A meio dum longo devaneio
behaviorista e certas obras na J.• pessoa, como Les Lettres sonhador da jovem, acompanhada da sua galga, lê-se esta
portugaises de Guilleragues. O próprio Sartre, nos seus frase:
romances, como mostrou com vivacidade Jean-Louis Cur- Mas ela, a sua vida era fria como um sótão
tis em Haute École, se tornou culpado de intrusões de cuja lucama estivesse virada para o norte, e o
;j,, autor, menos numerosas mas tão flagrantes como as que tédio, aranha silenciosa, tecia a teia na sombra
e1e censura a Mauriac. em todos os cantos do seu coração.
,l .Madame Bovary constitui um exemplo interessante
l desse modo )Ilisto de apresentação, quando o autor limita .
1
É o narrador que pensa por Emma ou é esta que com-
1

a sua om~~fiêiâ e"iclõiíta . IÍlira duma personagem. i' para a sua vida a um sótão e o seu tédio a uma aranha?
'l
Charles, primeira personagem a aparecer, é-nos apresen· ''Quando se conhecem as tendências efabuladoras de Mme
tado no campo visual dos seus condiscípulos, antes de iBovary, não se pode estar absolutamente seguro da res·
servir de foco por meio do qual, no início do romance, posta.
descobriremos gradualmente Emma. A partir. do sexto Porque é que Flaubert toma tão a peito mascarar as
capítulo da J.ª parte, Emma, por seu turno, transformar· suas intervenções e as mudanças de perspectiva ?
-se·á em foco aberto sobre as outras personagens. Mas Por preocupação de artista sensível à obra lisa e sem
servir-se da perspectiva de certas personagens não impede
o autor de intervir directarnente, quando o julgue a pro· (ªº) Jean Rousset, «Madame Bovary ou le livre pour rien»,
pósito, por um «ele não pensava que ... » ou por uma in Forme et signlficatlon. Paris, Corti, 1967, pp. 117-122.
expressão análoga. Mas, quando passa de um foco para J. Rousset comenta, af, o início do livro 3 da II.ª parte.
276

ponto por onde se lhe pegue como uma pedra polida?


r
l
1 A narração continua neste níesmo tom sereno, matter
277

Não é possivel responder a esta pergunta sem ter estudado of fact, até que conhecemos, pelos gestos do rei, a violên-
a arquitectura do romance e o desígnio profundo ou cia da emoção sentida à vista de Betsabeia no banho.
inconsciente do seu autor. Em todo o caso, deve-se evitar Quer dizer que a caracterização é desajeitada ou ineficaz?
dar a priori um valor artístico maior a um modo de apre- Bem ao contrário, a narração fria e impessoal do aut01
sentação em detrimento de um outro. Não há modo de sagrado só sugere mais eficazmente, por contraste, a
apresentação privilegiado. Tudo depende do fim visado violência dos sentimentos. Mais do que de progresso duma
e do génio do escritor. As discussões violentas sobre o época para outra, na caracterização das personagens,
assunto, sobretudo nestes últimos trinta ou quarenta anos, falemos de evolução ou de modos diferentes perseguindo
lançaram ao mesmo tempo muita luz e muita confusão no 1 fins diferentes. A narração omnisciente, tal como o rea-
debate. Do facto de um romancista rejeitar hoje, como lismo subjectivo, a apresentação behaviorista ou a «sub-
ineficaz, um modo de apresentação utilizado por Balzac ou -conversação», podem fazer nascer obras fortes e signi-
Flaubert, quer-se concluir que ele condena também Bal-
zac e Flaubert e que a sua obra pesa pouco na balança
! ficativas.

4. OS AVATARES DA PERSONAGEM ROMANESCA


comparada com Illusions perdues ou com L' Éducation
li
.. !
sentimentale. No outro extremo, pretender que a obra
de Flaubert ou de Balzac está ultrapassada, porque utiliza
A concepção e, por consequência, a função e a apre-
sentação da personagem romanesca transformaram-se
determinado modo de apresentação das personagens, é profundamente no decurso da sua história. O séc. XIX.
1
loucura pura ou pretensão. por exemplo, procede ao esboroamento da personagem
1

9_q_ue conta, não é o método, mas a sua eficácia, a por sapas sucessivas, prelúdio do seu apagar-se por com-
,11
sua capacidade de tornar coerente um universo fictício e pleto em certas obras contemporâneas. ,_Em Balzac culrni-
co11vincente a visã<;> do mundo de um escritor. Scholes e n_ava a noçãode personagem-tipo, em que se resumem os
' i
, Kellogg, pondo em guarda contra a mania de atribuir caracteres duma classe social, duma profissão, duma forte
1grau de excelência ao primeiro que chega, citam esta
'1 .paixão: sendo todos os elementos da narrativa mobilizados
l passagem muito bela da Bíblia, relativa a David e Betsa- para iluminar a personagem, dar-lhe o máximo de relevo,
1 beia: impor --a sua presença em todas as situações: o espaço
1 Uma manhã, David levantou-se da cama e -'!!11!:>.iente es!<i__ern correspondência com ela, a passagem
passeou no terraço do palácio real; viu uma do tefP9--confirma a permanência das suas paixões, o
mulher que estava para tomar banho; e essa (etrato obstina-se sobre os mais pequenos pormenores da
mulher era muito bela para quem a visse. fisionomia. Grandet, Vautrin, Rastignac decidem, agem,
278 279

dominam, enquanto que Emma Bovary e Frédéric Moreau Com o «Novo Romance», essa tendência torna-se
vão muitas vezes deixar-se arrastar pelos acontecimentos; ainda mais acentu•.da, não sendo a personagem, em geral,
as suas veleidades de realização total pouco resistirão às mais do que uma pura consciência. O resultado último
paixões do meio e à usura dos dias. dessa transformação encontra-se nas «ficções» dum Bau-
Ao mesmo tempo que se desenvolve a concepção dum dry, dum Sollers, dum Thibaudeau, em que a pessoa
anti-herói passivo, banal, quase anónimo, o romance gramatical substituiu a personagem. Para retomar a céle-
tende a interiorizar-se, no sentido de que nos dá mais i bre fórmula de J. Ricardou, ,Q. r~ance já não é a escrita
directamente acesso à consciência das suas personagens. 1 duma aventura, mas a aventura dumà escrita· nele
Não porque descreve um conflito interior, móbeis dissimu- · ·já não seguimos a evolução dum herói romanesco ~u du~
lados, o nascer dum sentimento, a conduta ditada por grupo social, mas a produção dum texto, os avatares de
um ideal moral - o romance nisso se empenha desde personagens pronominais. Para sublinhar a originalidade
Chrétien de Troyes, que explica longamente as hesitações desta nova forma narrativa, J. Ricardou cita uma passa-
de Lanceio! em subir para a carreta infamante-, ma.~ gem de Ph. Sollers (Personnes, sequência 50), onde «assis-
porque tudo no roncance (personagens, objectos, acon- timos à transformação duma «mulher» em «frase»,
tecimentos, situações) é captado por uma personagem enquanto que o eu investido por um «homem» se deixa
imersa nesse universo .. Charles torna-se insuportável ?Jr· levar pelo «texto»»:
que Em,wl'~ Q,_v§ ir.c~.\IJJ9:~ávet; a nôrést~ d~ Fonhtln~bteau.
em L' Éducation sentimentale, é mais sonhada por Frédé- Então se quero dirigir-me a ela agora, talvez
ric do que descrita; a Revolução de 1848 só começa a tenha de despertar tudo o que me recorda a sua
existir no momento em que Frédéric assiste ao saque das fuga. Felizmente, a cada nova palavra, um sen-
Tuileries. O rarnancista dá-nos, desse mundo onde evo- tido desabrocha e soçobra, e eu evito o cenário
luem as suas personagens, sobretudo- por vezes exclusi- demasiado preciso que a imobilizaria, Mal quero
vamente - o que elas dele apercebem, tornando-se o descrevê-la agora, quando ele avança, se es.tende
romance o lugar onde se inscreve essa percepção; os perto de mim, mal quero reconhecer esta espera
actos, os projectos, o passado das personagens contam (corpo exposto para provocar o gesto e a voz que
menos do que as pulsões, as imagens, as impressões de o entregam a si mesmo). Pois que doravante tudo
que é constituído cada instante da sua vida. A narra- a designa sem a nomear, pois que é aqui, no
tiva tende a transformar-se, por exemplo em Le Livre de . i momento em que começo, que eu a encontro (61 ).
Manel/e de Marcel Schwob, numa espécie de caleidoscópio 61
( ) Jean Ricardou, Paur rtne· th~orie du n.01tveau roman.
em que a personagem se reduz a um reflexo entre outros. Paris, Editions du Seuil, 1971, pp. 247-248.
CAPITULO VI

O romance e o seu autor

«Porque escreve romances?» J onialistas, críticos.


directores de revistas interrogam com obstinação os lau-
reados do último Goncourt ou do último Médicis, os
l escritores e «escreventes» de boa vontade. como se nisso
houvesse um segredo irritante que se tem de forçar.
lii 1 A pouco e pouco, chega-se muito depressa à simples per-
l gunta «porque se escreve?» e entra-se no donúnio do inex-
plicável, dessa ·«retórica fabulosa» de que fala André
Dhôtel e que se situa «numa espécie de milagre univer-
sal... ·onde o essencial é um trabalho invisível ao qual o
ser se confia não por uma resolução tomada, mas pela
necessidade imediata duma escrita»(').

( 1 ) _. Est:i conclusão utiliza os testemunhos duns cinquenta

romancistas, reunidos na revista Europe (le roman par les roman-


ciers), n. 0 474; Outubro de 1968, os de Vle et survie de la lUtd-
rature, NRF, Outubi:o de 1970, e os de N. Sarraute, M. Butor,
L.-R. des Forêts, J. Cayrol e A. Robbe-Grillet publicados em Tel
Quel (1962-1963). As citag;ões que não tragam outras referências
remetem para os números indicados destas revistas.
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~{

·1
!
282 283

O romancista de bom grado se define a si próprio como diferentes da pura função orgânica, eles parecem por ·vezes
um ser habitado por personagens que pedem para ser não passar de justificações a posteriori. Porque, enfim,
postas no mundo e comprometidas numa história: «A per- essa actividade deve por força ter um sentido, é absoluta-
sonagem torna-se um ser embaraçante» (Bernard Clave!), mente necessário dar-lhe um ...
num dado momento «a obsessão é demasiado forte» Se escreve histórias para divertir, o romancista, nos
(Robert Sabatier), «as minhas personagens segregam a nossos dias, confessa-o com constrangimento, ou então
sua vida em medida igual àquela em que a vida as mo- proclama-o com a ostentação dum manifesto reaccionário,
dela», «o romancista deve atirar-se para a frente na sua que mostra igualmente quanto o estatuto da criação narra-
narrativa. escrever "à chicotada" como Stendhal» (Roger tiva mudou. Contudo, a maior parte da produção roma-
Ikor); «crio a partir de personagens e lanço-as depois para nesca, e não somente a que se classifica como para-lite-
o fogo do acontecimentm> (Emmanuel Roblés); «as minhas ratura, quase não tem outro fim. O autor ou o editor
personagens metem-se em mim tanto como eu me meto procura, por vezes, dar um golpe duplo: no final do
nelas» (A. Pieyre de Mandiargues) ... A criação romanesca último século, Hetzel tinha intitulado a célebre colecção
seria, pois, uma espécie de combat<l <:Om. o anjo, um anjo onde apareceram Les V oyages extraordinaires, de Jules
'iJi@fffilg :00_-Tn'fpê~cej>tível, etri que o escritor se dá final- Verne, «Biblioteca de educação e de recreaçã0», cujos
me11Je por vencido, e. essa «pressão -interior», aos olhos leitores nem sempre eram crianças. O acto de escrever
dos escritore.s.. qµe .são em geral da linhagem balzaquiana, uma história desdobra-se, portanto, como se não se bas-
-~õflSti.tüi'~_- 11},arca distil)tiv~ do romancista, se não o sinal tasse a si mesmo, em «missões» que se prendem simulta-
ái sü'á eieição. neamente com a situação do escritor, ~C>!Ilem cqmo os
-Quando -se examina a si mesmo, o romancista reco- Q~~tros no mundo, e com uma má consciência ligada a este
nhece. como efeito, nessa necessidade de escrever o dado acto e~ particularmente sensível desde a última guerra.
primeiro, o acto irracional por excelência: «Na maioria Como é possível ainda fazer romances, enquanto o napalm
das vezes», confessa L.-R. des Forêts, «procuramos o que incendeia o Vietname, as crianças morrem de fome na
ignoramos e o fito da nossa busca só o entrevemos confu- índia e no Biafra, a flor dos homens livres agonisa nas
samente no brusco rasgar duma aberta». À pergunta «o prisões dos regimes totalitários? Actividade anacrónica,
que é escrever?», Moravía responde: «Obedecer a uma suspeita, censurável, como a dum Flaubert que, pouco
música. Sentir uma simpatia e ir ao seu encontro. Traba- depois do sangrento esmagar da Comuna, «se perde
lha-se de ouvido» ('). Se o escritor atribui a este acto fins na Antiguidade» porque está. «cansado do ignóbil operá-
rio, do inepto burguês, do estúpido camponês e do odioso
(2) Citado em Madeleine Chapsal, Les ~crivains en per.
rone. Paris, Julliard, 1960, p. 174. eclesiástico», como ele escreve numa carta a George Sand
284
T
' 285

de 6 de Setembro de 1871. O mundo tem de ser refeito as direcções infinitas da sua vida possível», segundo a
e escrevem-se contos! célebre fórmula de Thibaudet. Não somente a necessi-
Mas uma fuga é também uma forma de recusa e é na dade de desdobrar a vida num imaginário, ou de a refazer,
cólera ou na revolta que o romancista pode encontrar a mas de a criar, constitui o móbil essencial do romancista
justificação que procura. Dois escritores tão distintos ou, aos olhos dum Mauriac, a sua tentação: «Ü dom temí-
pela sua ideologia como, por exemplo, Roger Chateauneu vel de criar seres» faz dele «o macaco de imitação de
e Roger Bésus identificam-se na vontade de «testemu- DeuS» ('). A personagem criada é dócil ao seu criador ou,
\ nharn: . «Ü que me dá força para escrevem, afirma o pri- segundo ri:umerol>os testemunhos, o gozo supremo do
\ meiro, «ê sôbretudô a: revolta e um senti.do da expectativa r;;Iliãíicista é ver as suas personagens resistirem-lhe, Jiber-
. apaixonada. e,· essa forma de acordo com o mundo que iarem,se ·e, enÍlffi, viverem por si mesmas? A escrita do
piocufo ·nós meus livros.» «0 méu universo romanesco»·; romance é talvez, no fim de contas, um acto luciferino: ..
escreve ·Bésus, «não é o da anedota, mas o do aconteci- Grandes são os riscos em avançar por essas terras interditas
mento significante». E Sartre: «Ü escritor dá à sociedada para um Mauriac ou um Daniel-Rops, cujos romances são,
uma consciência infeliz», «cada livro propõe uma liberta- ao mesmo tempo, a parte vergonhosa e bem-amada da
ção concreta a partir duma alienação particular»('). Fazer sua obra, enquanto que para um Fr.-R. Bastide, por
1 !' tomar consciência, permitir o compromisso, agir para exemplo, «num tempo em que o homem é esmagado por
mudar e, portanto, superar «uma certa situação humana uma realidade que lhl' apontam todos os dias analisada,
e total»: Sartre realiza esse programa pelo artigo, o ensaio, estruturada, tecnicamente composta e determinada pelbs
a peça do teatro, mas também através de L;a Nausée, tecnocratas, o romancista podia propor ao leitor um atle-
Les chemins de la libefté e L'idiot de la familie- Escrever tismo do irnaginári0». É no imaginário que está a salva-
um romance é um acto de apropriação, um acto que a ção: «Sempre senti», escreve Pieyre de Mandiargues, «que
realiza e a avaliza: «Eu reivindiquei o mundo e o direito [o romance] era um sonho saído para fora do movente,
de o exprimir», acrescenta Cbateauneau. Capta-se porque o que Apollinaire chamava um «clarão que dura»».
se ama. e porque se tem essa paixão da vida, desejar-se-ia A tomada de consciência e a tradução duma realidade-
captar mais. O romance aparece assim como o instru- quer ela seja psicológica ou social, moral ou económica-.
mento duma multiplicação do autor, pelo qual se ou então a habitação deliberada no imaginário: a ques-
desenvolve interiormente e cria as personagens «COm tão é efectivamente aquela que criticos e teorizadores da

(ª) Jean-Paul San:re, Qu'est-ce que la litthature? Paris, (') François Mauriac, Le Roman. Paris, Cahiers de la
Gallimard, col. «ldées», 1964, pp. 104 e 90-91. Quinzaine, 1928, p. 33.
286
T
'
' 287

litertura quiseran1 apresentar na querela, sempre a renas~ A la recherche du temps perdu, depois da qual já não
cer, do realismo? O problema mais fundamental, aos podia ver o mundo com o mesmo olhar. A obra de
olhos dos romancistas modernos - pelo menos desde Proust, a sua obra pessoal, o romance em geral constitui
Flaubert - reside talvez na forma, compreendida não para ela, em primeiro lugar, «uma certa ordem de sen-
como dificuldade técnica a resolver, mas na acepção mais saçãm>, conjunto de coisas apercebidas a diversos níveis
global de «dar uma forma», logo um sentido, ao que não de consciência, logo também aquém da consciência, e
-0 tem, isto é, ao mundo em que estamos e à nossa própria que, através do escritor, procuram confusamente a sua
vida. Se, como lembrava recentemente Serge Doubrovsky, forma. O romancista assemelha-se a um médio, ou, para
«a novidade da nova critica não é outra coisa, afinal, Le Clézio, a um sismógrafo através do qual se registam
senão o ter poS.Lo a nu un1a ferida que permanecera uma voz, múltiplas vozes: «0 mundo escreve com os seus
aberta, sob cinquenta anos de colmatagem intelectual, [ ... ] milhões de estiletes» e impõe-se decifrar as suas mensa-
se a crise da literatura e da crítica não é outra coisa. com gens: «Aprender os códigos, descriptizar o mundo: o
efeito, senão a crise geral do humanismo» - no escritor, homem que escreve mantém o real na ponta do seu
essa crise torna-se angústia. Esteja virado para o seu uni- olhar, procura preservá-lo na sua frágil hipnose. · Se des-
verso interior ou para o especláculo do real exterior, ele via por um instante os olhos, tudo vai desmoronar-se, tal-
procura cercar e resolver um enigma e o roniance trans- vez. Está nisso o segredo da escrita: há código, logo há
forma-se, então, em instrumento de conhecimento. O guerra. Não há necessidade dum código sem a ·presença,
romancista é um «encantador». talvez já não no sentido algures, dum perigo real, um perigo que exige que se
(em que, após Apollinaire, Franz Hellens toma a pala- dissimule o que se quer exprimir, em vez de o patentear».
vra) de aquele que arrasta «para fora do real», mas de O próprio ser que escreve não mantém talvez a sua exis-
aquele que capta,. retém, fixa esse real e, sobretudo. tência senão pelo seu acto de escrever, fora •do qual se
modifica a percepção que dele temos. Ele sabe surpreen- dissolve. Tem de tentar ver claro em si, primeiro, «obter
der o n1omento em que o conto com~ça «na própria uma unidade na [sua] vida» (Butor) afastando os sacões
realidade», em que «a vida banal se acha transtornada», amachucantes do espaço e do tempo que nos corroem
diz André Dhôtel: «A distracção, o pretenso poder de pouco a pouco... A personagem que escreve o Diário em
evasão que por vezes se atribui ao romance, talvez L'Emploi du temps entrega-se, na verdade, a uma tenta-
seja apenas a virtude de mudar ao acaso as pers- tiva de exorcismo contra essas forças, mas é um esforço
pectivas habituais e de nos chamar de novo à renova- de Sísifo, pois que o atraso em relação ao aconteci-
ção duma aliança para além das normas». Nathalie mento não cessa de aumentar, o presente acumula-se sobre
Sarraute evocou o choque que nela produziu a leitura de um passado que ela nunca chega a esgotar pela escrita.

r
288 289

Escreve-se para escapar ou ainda para «juntar-se e [ ... ] Quer o romance seja reflexo, imitação, tradução do real,
inserir-se»: «Se escrevo, é também, é sobretudo talvez, quer «a ele adira estreitamente, o leia, o decifre e o expo-
para não ser um estranho», diz Jacques Borel e, com nha» (Raymond Jean), t_odas estas concepções postulam,
maior insistência, Jean Cayrol: «É também um combate em graus diversos, a referência da obra a uma realidade
que travo em cada uma das minhas palavras para não ser que está fora da obra e na qual ela se funda. Ao invés,
separado dos outros, para de qualquer forma assegurar a um poderoso movimento contemporâneo, informado pelos
minha linhagem e a prova de que não sou excluído. para conceitos da linguística, recusa essa ligação exterior: «Tal
ser continuamente expressivo, enfim, para nunca deixar co11'.o a única realidade dum quadro é a pintura, a única
de ser visível, logo imortal [... ]. Se escrevo, é para meu realidade dum romance é a coisa escrita. Sendo a escrita,
bem, para escapar a esse salve-se quem puder, a essa de sua própria natureza, incapaz de reproduzir o «real»,
debandada de que conheço todas as insinuações». toda a pretensão ao realisrn o, da parte dum romancista,
O escritor tem o sentimento de se fazer ao mesmo tempo só pode ser fruto da irreflexão ou de uma vontade de
que faz; «associa incessantemente a sua busca verbal ludíbrim> (Oaude Simon); Robbe-Grillet expõe, no mesmo
e a sua busca interior», diz Louis-René des Forêts. Esse sentido, um programa despojado de qualquer outra inten-
trabalho sobre si toma por vezes a forma dum retorno ao çã~ parasita=. «Trata -se para mim de construir alguma
que o escritor viveu, a uma «realidade que ele quer ao c01sa, a par!ir de nada, e que se mantenha de pé por si
mesmo tempo reviver e apreender, compreender ressus· só, sem ter de se apoiar sobre o quer que seja de exterior
citando-a» (J. Borel). Consegue o escritor, seguindo o à obra. Não descrevo, construo. Era essa já a velha
exemplo proustiano, salvar essa «qualquer coisa» que ele ambição de Flaubert, é a de todo o romance moderno».
sentia necessidade de salvar, procura-se ele, primeiro, Os esc_ritores que, de perto ou de longe, se ligam ao
para achar mais? A menos que, como descobriu por sua grupo de Tel Que/ fizeram do absoluto do texto escrito
própria conta um Jean Reverzy, o seu esforço represente uma doutrina constituída. Para Jean Thibaudeau, esse
apenas uma «tentativa de aniqúilação pura e simpleS»: «_r~mance textual» substitui o «romance ilusionista, expres-
cessamos, diz ele, de sentir uma verdade desde que a escre· s1v1sta e burguês» e «a sua invenção» assinala um modo
vemos e o «êxito duma frase abole o pensamento que a de produ'ção textual. Escrever um romance transforma-se,
inspirou» ('). Assim, a esrita encaminha o escritor para port"'.'to, num acto gratuito, no sentido de que é pura
1. a sua morte ... expenmentação, «uma experiência de pensamento» (Jean-
! -Pierre Faye). Já não se trata de dar conta duma reali-
(') Jean Reverey, «Expérienceo de littératureo, citado em
dade exterior, visto que não há qualquer «objectividade
Maurice Nadeau, Le roman français depuis la guerre. Paris, Gal·
limard, col. «ldéeo», 1963, pp. 227-228. extra-texto», mas de ver como funciona a linguagem.

"
T
291
290

sendo a escrita regida exclusivamente pela «dinâmica tex· Eis outros tantos «geradoreS» que condicionam o
tual». Em Proh!emes du nouveau roman, Ricardou expli· texto, o dirigem do interior e lhe conferem um «grau de
cou, por exemplo, o papel estrutural da metáfora em actividade» que, para Ricardou, faz a sua justificação e a
Qaude Simon e revekm a inversão, em Oaude Ollier, da sua qualidade. Ricardou, Thibaudeau, Faye ou Sollers
função descritiva, qu; se toma criativa, desenvolvendo-se não levam ainda, sem dúvida, a experiência até aos seus
«a partir de directivas formais». E essa inversão esten· limites concebíveis; prescrutam o funcionamento da lin-
de-se a todo o exercício da escrita romanesca, «a ficção guagem talvez com a secreta esperança mallarmeana de
é inspirada pela escrita. Assim, um romance é para que as suas chaves nos darão as do mundo. Mas a lin-
nós menos a escrita duma aventura do que a aventura guagem pode funcionar sozinha e podemos entrever que o
duma escrita» (').O próprio Ricardou tentou esta «aven- texto se produza a si mesmo, precisamente pela sua pró-
tura», em L'Observatoire de Cannes e La Prise de Cons- pria «dinâmica» ('). Se a obra não diz respeito senão a
tantinople, onde o êxito é incontestável graças à utilização si mesma e se toma uma espécie de álgebra válida exclu-
,, de processos muito precisos:
sivamente para si, um puro sistema de sinais sem signifi-
cados, logo ininteligíveis, a literatura, longe de se criar a si
E mais do que por justaposição, cada epi· mesma, acaba por se destruir.
sódio insere-se na economia do conjunto imitan- É sem dúvida necessário que a literatura, e mais espe-
1 do-o, invocando-o particularmente ao nível do cificamente o romance, passe por esta fase que atravessou
1: menor detalhe por diversos jogos de consonâncias a linguística, correspondendo a experimentação das for-
!
entre as formas e os números, as cores e as des- mas narrativas e dos mecanismos de produção textual
locações, os gestos e as emoções; pelas parado- ao estudo dos significantes com exclusão dos significados
xais virtudes da composição e duma prosa bizan- e do «agente doador de sentido, o sujeito, o homem»
tinas - estrelas semânticas, paronímias, pausas (Doubrovsky), estudo em que a linguística parece reco-
e retornos rítmicos, distorsões imperceptíveis da nhecer um beco sem salda. A «evidenciação dos códi-
sintaxe, reiterações textuais, aberrações ciclicas... gos da literatura», de que fala Barthes a propósito de
- tornando-o sempre, de alguma maneira, pre-
sente(').
!' ';{
( 8) Lembremos a definição de Bachelard citada por Dou-
brovsky: «... o pensamento critico científico designa-se como uma
(ª) Jean Bicardou, Problemes du nouveau roman, PP· J_ll
doutrina das relações sem suportes e sem relacionadoreS'» (NRF,
e 143. Outubro de 1970, p. 66). Do mesmo modo, a literatura poderia
(1) Jean Bicardou, La Prise de Constantinople. Paris, Edi-
tomar-se um sistema de relações «.sem suportes» e sem autores.
tions de Minuit, 1965, não paginado.
1
1

292 1 293

Drame de Sollers ('), não é coisa nova, pois existe no este privilegiar a participação, o compromisso do autor
romance pelo menos desde Tristram Shandy e Jacques que, a coberto da história, falava de si, da sua conquista
/e Fataliste, mas pratica-se perante nós com um rigor dos valores. Desde há uns quinze anos, o romance parece
cujo anverso não podemos esconder- o perigo de que retornar à «invenção», mas no sentido de criação de pos-
desenvolva nas leuas um novo terrorismo de acordo com síveis("). A massa dos leitores sente-se desorientada, os
o q uai não há crítica nem criação verdadeiras fora do críticos imbuídos de cultura clássica inquietam-se ou con-
dogma trinitário do marxismo, da psicanálise e da lin- denam, reprovando aos escritores de «vanguarda» o culto
guística. da gratuitidade, a indiferença face aos problemas morais,
Esta operação, que desloca o interesse da história para a substituição da experimentação em laboratório à edifica-
o funcionamento global do texto, visa não somente uma ção dum humanismo; decerto, mas, no curso da história,
. inversão radical da concepção do romance, mas também as obras inovadoras nasceram noutras circunstâncias?
- e sobretudo - uma subversão da ideologia sobre a O importante é o extraordinário florescimento de formas
qual tem vivido há vários séculos. Não é fortuito que literárias novas a que assistimos, enquanto, ao mesmo
Robbe-Grillet intitule um romance, publicado em 1970, tempo, o romance de concepção tradicional guarda
Project pour une révolution à New York, enquanto que o a sua frescura. Se Aragon se adapta à moda do novo
grupo reunido à volta de Jean-Pierre Faye, que se deu romance, nem por isso renegou, sem dúvida, o exemplo
de Zola; Giono manteve-se fiel ao de Stendhal, Gracq
0 nome significativo de Change, tenta demonstrar, nos
seus manifestos('°), que uma crítica da linguagem atra- inclina-se para Chateaubriand, Balzac ou Barbey d' Aure-
I,
vessa o próprio acto de narrar e conduz e deve conduzir villy; para os escritores mais jovens, Flau bert permanece
a uma revolução cultural. «O padrão», mas devemos, abrindo La Maison de rendez-
O romance, como toda a forma de árte, edifica-se ao -vous ou La Prise de Constantinople, Mobile, La Route
mesmo tempo sobre e contra o que o precede: rejeita-o ou des Flandres ou Nombres, aprender outros modos de lei-
integra-o. Oscilou constantemente, segundo a distinção de tura, renunciar talvez às nossas categorias, e, seguramente.
Jacques Borel, entre «a invenção» e «a autobiografia» repensar a nossa noção de género: o romance designa
mais ou menos disfarçada. No imediato após-guerra,
11
aquela foi tida em suspeição pelo existencialismo, dado ( ) O que abole finalmente a distinção para fazer surgir
um escrito narrativo dum tipo novo. Assim, Thibaudeau fala
do «romance como autobiografia» onde se trata de «inventar um
(9) Roland Barthes, «Drame, poême, roman», in Théorie eu não mbjugado, simplesmente produtor do texto» (Théorie
d'ensemble. Paris, Editions rlu Seuil, 1968, p. 39, d'ensemble, p. 214). De igual modo, Ricai'dou designa as suas
(") Change, 1972, n. 0 13. obras narrativas pelo termo «fiCção».
294

ainda uma realidade especifica, ou evolui. como crê


Butor, para «mna espécie de poesia simultaneamente
épica e didâctica» que apaga as fronteiras da literatura1
O género romanesco não é, como crê Bakhtine, capaz
duma inesgotável renovação? (") Saído da sátira popular.
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em oposição à epopeia (mais do que como resultado da
sua decomposição), género a-canónico, profundamente ori-
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Capítulo VI - O romance e o seu autor.

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21
ÍNDIDE DOS AUTORES CITADOS

Al.MN-FOURNIER: 23, 25, 89, BARTH&S (R.): 46, 62, 123, 124,
"132-3, 166-7, 259. 161, 190, 291, 292
ALBl!Rl!s (R.-M.): 34 BASTIDE (F.-R.): 285
Al.sMAN (M.): 115 BAUDRY (J.-L.): 8, 279
Ar.l.AIN (M.): 15, 22, 60 BRAUVOIR (S. de): 228
Ammu (D.): 235 BBCICRTT ($.): 50, 178, 255
MoLLlNAIRE (G.): 285, 286 Bl!NVl!NISTB (E.): 122, 178, 235,
APPIA (A.): 202 271
AQUIN (H.): 96, 197 BBRGBRAC (C. de): 16, 168
ARAGON (L.): 19, 22, 26, 57-60, BBRNANOS (G.): 19, 158
89, 91, 94-95, 131, 152, 293 BmtN'ARDIN DE SAIN'l'-PIERRE
A!usTÓTl!LllS: 28-29, 43, 72, 109, (J.-H.): 149, 16R
162 BÉRoUL: 7
AsTIBR (P. A.-G.): 228 Bllsus (R.): 284
AsnnuAs (M.-A.): 18 BÉWLÉEM (abade): 14
AUERBACH (E;): 93 Bíblia: 17, 168, 178, 266, 273,
276-77
BACHELARD (G.): 291 BLANCHOT (M.): 264, 265
BAKHTINB (M.): 294 BLIN (G.): 111, 125, 229
BAUAC (H. de): 71 10, 11, 14, BocCAc10: 93, 118
15, 26, 27, 63, 66, 91, 103, BoNATI (M.): 125, 126
124, 125, 130, 131, 143, 148, Boom (W. C.): 110, 191
151, 155, 157, 172, 174, 175, BoRBL (J.): 287, 288, 292
178, 190, 204, 212, 268, 269' BORGES (J.-L.): 33, 42, 71, 166,
270, 276, 277, 293 167, 173-4
BARBEY D'AURl!VILLY CT.): 293 Bosco (H.): 21
BARILLI (R.): ..228 BoTTICBLLI (S.): 156


-i--

324 325

BOURGE! (P.): 14, 60, 61, 63, CHATEAUNEU (R.): 284


DIDEROT (D.): 34, 48, 61, 102, 82, 86, 87, 88, 89, 91, 109,
64, 65, 69, 92 CHAVARDÉS (M.): 10
104, 105, 128, 188, 191, 262, 126, 127, 135-41, 143, 157,
BRAQUE (G.): 92 CHKLOVSKl (V.)". 53, 184
273 180, 183, 186, 190, 206, 207,
BREMOND (C.): 53, 54, 219, 220 CHRÉTIEN DE TROYES: 7, 165,
DONIOL-VALCROZE (J.): 111 208, 209, 210, 263, 273, 275,
BRETON (A.): 13 166, 195, 202, 229, 268, 278 276, 283, 285, 289, 293
DoRAT (C J.): 27
BROCHU (A.): 221 CLAVEL (B.): 282
Dos PASsos (J.): 107 FLEMING (l.): 5, 15, 22
BRONTE (E.): !17, 259 CLOUARD (H.): 34
DOSTOIEVSKI (F.): 7 FORSTER (E. M.): 45, 51, 228
BROOKS (C.): !10 CLOUZOT (H.-G.): 81
DOUBROVSKY (S.): 286, 291 FREUD (S.): 234, 235, 237
BRUCE (J.): !! COCTEAU (J.): 81 FRIEDMAN (Melvin): 252, 253
DRUON (M.): 26
BRUNETIÉRE (F.): 69 COMPTON-BURNETT (1.): 46 _
FRIEDMAN (Norman): 110
DUBOlS (J.): 181
BunRoUGHS (E. R.): 16 CoNSTANT (B.): 32, 149, 150,
DUCIJET (C.): 161 FROMENTIN (E.): 82
BUTOR (M.): 8, 14, 84, 92, 96, 153, 154
DUJARDIN (E.): 219, 250, 251,
97, 121, 132, 133, 156, 169, CONSTANT DE RE3ECQUE (S.):
252, 253, 255
170, 175, 198, 230, 256, 259, 160 GABORIAU (E.): 196
DUMAS pai (A.): 11
281, 287, 294 CORMEAU (N.): 45, 46, 155 GALI!RANT (Dr.): 261
DURAS (M.): 56
BUZZATI (D.): 33 CORTAZAR (].): 33, 166 GAU11ER (Th.): 156
CAILLOIS (R.): 26, 28, 61, 174, CouLET (H.): 30 GENETTE (G.): 29, 106, !12,
231 CoUREET (G.): 156 EDELINE (F.): ver DUBOIS (J.) 114, 141, 176, 177, 183, 184,
CRANE (R. S.): 52 EIKHENBAUM (B.): 184 185
CRÉBILLON FILHO (C.): 247, 248, ELIADE (M.): 18, 19 GIDE (A.): 79, 87, 95, 151,
CALDER,VOOD (J.): 52 ELIOT (G.): 65 172, 202, 206, 208, 209, 231,
265, 266
CAMUS (A.): 56, 116, 130, 146, Enéas (L'): 229 244
CuRTIS (J.-L.): 129, 274
166, 248 EsCARPIT (R.): 11, 12, 241 GIONO (J.): 56, 82, 166, 293
CARNÉ (M.): 81, 248 GIRAUDOUX (J.): 250
CARPENTIER (Alejo): 179 DANIEL-ROPS: 285
GODBOUT (J.): 129
CAYROL (}.): 281, 287 DARWIN (Ch.): 151 FMlRE (J.): 229 GoETHE (J. W.): 19
CÉLINE (L.-F.): 89 DAUDET (Alphonse): 81 FAULKNl!R (W.): 107, 255
GoI.DMANN (L.): 239, 241, 242
CENDRARS (B.): 134 DAUDET (Léon): 91 FAYE (J.-P.): 289, 291, 292 GoNCOURT (E. e ]. de): 25, 28,
CERVANTES (M. de): 7, 118, 130 DELAY (J.): 234 FERNANDEZ (D.): 235, 236 50, 82, 89, 90, 151, 152, 156
CÉZANNE (P.): 156 DELLY: 12 FERNANDEZ (R.): 155, 270 GoTJ-IOT-MERSCH (C.): 69, 261
CHAPSAL (Madeleine): 282 DÉON (M.): !! GRACQ (J.): 34, 70, 71, 72, 82,
FERRON (J.): 101, 272, 273
CHARDONNl! (].): 55, 163, 164, DESCARTES (R.): 222, 223, 226 146, 293
FIELDING (H.): 47, 48, 104,
166 DEs FORETS (L.-R.): 34, 281, GREEN (J.): 26, 133, 166, 192,
172, 174, 202
288 244
ÜiATEAUBRIAND (F.-R. de): 15,
FLAUBERT (G.): 14, 28, 32, 37,
142, 143, 144, 145, 146, 147, DHOTEL (A.): 281, 286 GRElMAS (A.-J.): 54, 215
48, 49, 50, 66, 67, 68, 70,
168, 293 DICKENS (Ch.): 65 73, 75, 76, 77, 78, 79, ao, GRIMM (irmãos): 18, 33

1:

Í:.·

1
327
326

JARRA (R.): 111 MAc Coy (H.): 171 MERLEAU-PONTY (M.): 225, 226
GRIVBI. (Ch.): 243
GUILLAUME (G.): 178 JBAN (R.): 289 MAGNY (C.-E.): 94, 111, 157 227, 228
GUILLERAGUBS: 247, 274 JOYCE (J.): 8, 26, 90, 120, 219, MALLARMÉ (S.): 169 MICHAUO (G.): 69, 70, 215,
250, 252, 267 MALRAUX (A.): 8, 19, 55, 58, 218
92, 152, 155, 164, 166, 202, MIGUEL-AAGELO: 237
HAMMETT (D.): 76, 228, 273 232, 264 Mil e uma noites (As): 17 1 23i
KAFKA (F.): 34, 167, 264, 265
H~ON (Ph.): 29, 157, 161, MANBr (E.): 156 33, 62
l<ELLOGG (R.): ver Scholes (R.)
221 KEROUAC (Ja<K): 168 MANN (Th.): 170, 171, 179, MILLER (H.): 25
HARDY (Th.): 46 189, 259 MITTERAND (H.): 161
KESSEL (J.): 134
HÉBERT (A.): 197, 272 MANSFIELO (K.): 33 MOLIBRE: 15
Kr.rNKENBERG (J.-M.): 181
HELIODORO: 118 MANTEGNA (A.): 213 MONTESQUIEU: 7, 117, 193, 232
KLossowsKI (P.): 34
HELLENS (F.): 286 MARCEL (J,): !OI, 268, 272 MONTFIERLANT (H. de): 202
KRISTBVA (J.): 242, 243
liELVÉT!US (C.-A.): 222, 223, MARcusE (H.): 16 MORAVIA (A.): 282
224 AfARGARIDA DE NAVARRA: 93 MORENO (F.): 111
LACAN (J.): 235
HEMINGWAY (E.): 273 MARISSEL (A.): 19 MUSSET (A. de): 32
LACLos (P. Choderlos de): 103
HENRY (A.): 261 l'v1AR1vAux CP. de): 104, 193
LACOURSIÉRE (L.): 18
HERGÉ: 20 MARMONTEL (J.-F.): 14 NAOBAU (M.): 288
LA FAYBTTE (Mme de): 142,
HERÓDOTO: 108 MARQUANT (J.-P.): 116 NAVTLLE (P.): 273
233
HETZEL (J.): 283 MARTIN nu GARD (R.): Jl2 NEEFS (J.): 161
LAFFAY (A.): 111
HOMERO: 36, 93, 267 MARx (K.): 16 NICOLE (P,): 14
LA MBTTRIE (J. Ofj'roy de): 223,
HoR.\cIO: 187 MAssis (H.): 231 NIMIER (R.): 231
224
HUET (D.): 27 MATORÉ (G.): 146 NoURissIER (F.): 11, 231
LiiMMERT (E.): 184
HUGO (V.): 14, 16, 30, 60, 64 MAUPASSANT (G. de): 33, 51,
LARBAUO (V.): 250, 255
lilllU!T (J.): 50 76, 95, 159, 160, 172 ÜEALOIA (R. de): 95, 219
LA RocHE (M. de): 21, 240
HUJ<LEY (A.): 16 MAURIAC (Claude): 171, 194, ÜLLIER (C.): 156, 257, 290
LAUFBR (R.): 232
LE CWIO (J.-M. G.): 287 195 ÜRWELL (G.): 17, 171, 193
LE CoINTRE (J.): 242 MAURIAC (François): 56, 107,
lKOR (R.): 282
LEI!NHARDT (J.): 241 111, 129, 133, 155, 158, 162, PATER (W.): 52
lNGARDEN (R.): 263
LE GALLIOT (J.): 242 166, 168, 201, 231, 274, 285 PAVESE (C.): 77
LEQUIER (J.): 237 MAURON (Ch.): 187, 242 PELC (J.): 30
JAKOBSON (R.): 106, 235 LI!SAGE (A.-R.): 65, 86, 117 l'ERRAULT (Cb.): 18, 33, 241
MELVILLE (H.): 130, 134
}AMES (Henry): 51, 52, 73, 76, LESORT (P.-A.): 24, 25 PICASSO (P.): 92
MENoILOW (A. A.): 171
109, 121, 264 LESSER (S. 0.): 22 PICON (G.): 94, 155
MERCIER (L.-S.): 128, 158, 159, PIEYRB DE MANDIARGUl!S (A.):
JAMES (William): 252 LOTI (P.): 37
171, 193 34, 282, 285
JANET (P.): 224, 225 LUEBOCK (P.): 73, 109, 110
JANVIER (L.): 167 LUKÁcs (G.): 34, 238, 239 MÉRIMÉE (P.): 33 PINGBT (R.): 84, 89, 96

1
,j
328
329
PLATÃO: 162 RICHARDSON (Samuel): 103
SCARRON (P.): 8, 47, 93, 105, TILQUIN (A.): 273
POE (E. A.): 32, 82 RrvIÉRE (J.): 90 149
\\ TODOROV (T.): 53, 54, 93, 95
PONSON DU TERRAIL (P. A.): 15 RoBBE-GRILLET (A.): 8, 13, 14,
SCHOLES (R.): 46, 252, 267, 276 TOLIVER (H.): ver CALDERWOOD
PONTAL!S (J.-B.): 237 49, 50, 51, 77, 84, 96, 106, 121, SCHWOB (M.): 278 TOLSTOI (L.): li, 89
POUCHKINE (A.): 33 129, 134,
142, 143, 145, 146, SCOTT (W.): 10, 37 ToMACHEVsKI (B.): 43, 53, 184
POUILLON (J.): 112 147' 152,
153, 156, 167' 169, SCUDÉRY (Mlle de): 119 ToURNIER (M.): l i
POULET (G.): 221 188, 198,
201, 202, 211, 212, SÉGUR (S. de): 16 ThoYAT (H.): 21, 26
POURRAT (H.): 18 230, 240,
257, 281, 289, 292 SEYLAZ (J.-L.): 103
PRtvosr (abade): 130 RoBuls (E.): 282
SIMRNON (G.): 5, 37, 190
PRÉvosT (J.): 111 Rou.ANO (R.): 19, 65 URFÉ (H. de): 47, 148
SIMON (C.): 89, 90, 289, 290
PRINCE (G.): 99, 100 ROMAINS (J.): 26, 94
SMoLLETT .iT.): 120
PRopp (V.): 18, 53, 215 Roman d' Alexandre (Le): 6 SÓCRATES: 264
PROUST (M.): 8, 77, 83, 84, 87, Roman de Troyes (Le): 229 SOLJENITSYNE (A.): 8 VALÉRY (P.): 13, 118
90, 142, 143, 144, 145, 146, RoNsE (H.): 167 VALIN (R.): 178
SOUERS (Ph.): 8, 12, 92, 119,
147, 152, 156, 162, 170, 178, RosNY AINÉ (J.-H.): 171 257, 279, 291, 292 VERMEER (J.): 84, 147, 156
179, 191, 204, 212, 213, 252, ROUSSEAU (J.-J.): 7, 14, 103, SOREI (Ch.): 202 VERNE (J.): li; 16, 56, 62, 134,
286 104, 149, 193, 237, 243, 245, SOURIAU (E.): 36, 53, 54, 214, 283
246, 247, 249 215, 216, 217 VERSINI (L.): 103
QUENEAU (R.): 94 RoUSSET (J.): 86, 139, 144, 230, STAROBINSKI (J.): 236, 237 VOLTAIRE: 7, 25, 30, 34, 86,
247, 248, 265, 275 STENDHAL: 14, 57, 65, 67, 75, 203, 228, 229, 232
RACINE (J.): 56, 190, 242 Roy (J.): 26 77, 78, 125, 126, 229, 244,
RAl>IGUET (R.): 89 RUBENS (P.): 147 251, 293
RAIMoND (M.): 13, 65, 152 WAGNER: 83
1
STERNE (L.): 8, 104, 170, 187,
RAMuz (Ch.-F.): 152, 166 SABATIER (R.): 282 WARREN (R. P.): 110
! 191, 197, 198
WATSON (J.-H.): 224, 273
i RAYMOND (M.): 33, 34, 243, SAOE (D.-A.-F.): 28 SUBERVILLE (J.): 35
1 246 SAINT-ÉXUPÉRY (A. de): 89, SUE (E.): 240
WATT (!.): 9
RÉTIF DE LA BRETONNE (N.-E.): 146, 190, 202, 203, 204 WELLS (H. G.): 16, 17
SUPE:RVIELLE (J.): 70
128, 172, 240 SAtNT-HILAIRE (G.): 151 WooLF (V.): 8, 170, 179, 252
1 REVERZY (J.): 288 SAINT-JACQUES (D.): 161 TACCA (0.): 111
RICARDOU (J.); 8, 77, 84, 85, SAND (G.): 14, 28, 283 TCHEKHOV (A.): 33 ZOLA (E): 11, 14, 67, 68, 70,
92, 96, 156, 183, 184, 185, SARRAUTE (N.): 14, 56, 96, 179, 'fHIBAUOEAU (J.): 8, 92, 279, 82, 86, 87, 91, 131, 132,
197, 257, 279, 289, 290, 291, 240, 281, 286
1 293 SARTRE (J.-P.): 10, 107, Ili,
289, 291, 293
THIBAUDBT (A.): 64, 65, 69, 230,
143, 150, 151, 152, 156, 157,
159, 204, 205, 211, 268, 269,
RICHARD (J.-P.): 82, 90, 221, 120, 125, 129, 194, 211, 225,· 284 270, 293
269 226, 227' 228, 231, 237' 258,
RICHARDSON (Dorolhy): 252 274, 284

1::'
1

I; i
ÍNDICE DOS TEMAS

Abissal (imagem -) : 95-96 Encadeamento (narrativas enca-


Acção: 36, 44, 52-57, 214-221 deadas): 93
Alcance: 176 Encaixe (narrativas encaixadas):
Alternância (narrativas alterna- 95
das): 79-81, 93-95 Episódio: 43-44, 56, 62-63, 68-
Amplitude: 176 -72
1 Anticípação: -175-6 Epopeia: 29-31, 43, 294
!
Assunto: 50, 53, 57, 170 Escrita: 51, 188-19,2, 193, 279,
Autor e leitor: 49, 99-102 281-294
Autobiografia: ver Romance na Espaç0: 39, 130-168, 199-211,
primeira pessoa. 211-13
Aventura: 27, 36, 130-31, 164-5, Estruturalismo genético: 239-41
i
171-188
1

!
Estrutura: 226-228; ver Com-
Colagens: 91-92, 156 posição

i 1
Composição: 31, 38-39, 44-45,
63-72, 78-97' 144-45
Conto: 17-19, 32-34, 101-102
Estilo; 28, 50
Estilo directo: ver Diálogo
Estilo indi.recto (livre): 41, 79,
Crónica: 55-57 268
Curva dramática: ver Forças Evasão: 20-21, 23-24, 137-8,
dramáticas 167-8, 283-6

Descrição: 42, 75-77, 107, 141- Fábula: 18, 43, 53, 184
-158, 207, 290 Ficção: 5-6, 184.--5, 279, 290
Desenlace: 57-63, 76 Figura: 84
Diálogo: 42, 101-102, 261-264 ~Flat character~: 228
Discurso: 53, 122-5; ver Narra- Forças dramáticas (ou funções):
tiva. histórica. 52-55, 214-221
1-
,,lt
li
H 332 333
li
Realismo: 27-28, 34-35, 158- 151, 238-241, 268-270; -
Forma: 31, 36, 50, 97, 145, Narratário: 99-106
-162 burguês: 128, 289; - episto-
239-41, 293-4 Narrador: 29-30, 41; ver Com-
1 posição, Conto, Personagem, Retorno atrás; ver Retrospec- laro 40, 91, 102-4, 119-121,
Ponto de vista, Tempo. ção 128, 200-201, 247-8, 265-6;
Herói problemático: 238-9 - de folhetim (ou cíclico):
Narração (foco de): 106-114 Retrato: 204, 213, 243-277
História (e intriga): 6-7, 10, 13, 10, 21-22, 26, 60, 196; -his-
29-32, 36, 43-46 Narrativa: 29-32 Retrospecção: 40, 73-74, 114-
Narrativa histórica: 122-125 tórico: 37, 177-178;-poli-
-115, 175-177
Narrativa (lógica da): 219-221 cial: 36-37, 61, 273-274.
Romance, classificação: 34-35; Romancista e romance: 281-
Imagem: 39, 81-83, 140, 162-3, Novela: 32-33 controvérsia: 12-14, 64-54; -294; ver Personagem e autor
205-7, 210
~Implied author»: 110, 191
definição: 25-36; difusão: 9- Romanesco: 5-6, 49-50
Inicio: 57-63, 73-74 Objecto: 80-84, 152-3, 203-4, -12, 20-25; sentido da pala- «Round characten: 228
210-11 vra: 5-7; - na primeira pes- Ritmo: 38, 45, 147-8, 184-5
Intriga: 13, 38, 43-51, 54, 62-3
Intrusão de autor: 125-6, 274 soa: 32, 109-11, 114-16, 118-
Ironia: 8-9, 48-9 -19, 231, 245, 271-3; - na
Pacto narrativo: 99-106 Sem:málise: 242
segunda pessoa: 256-257; -
Paraliteratura: 16, 240-1 «Story>!; ver História, Intriga
na terceira pessoa: 40, 109-
Personagem: 13, 15-6, 18, 23, <1Stream of consciousness>J: ver
Diário íntimo: ver Romance na -111, 124,252-274; - de aná-
li primeira pessoa 29, 40, 45, 50, 199-279; - e Jise: 229; ver Personagem;
Monólogo interior
~Leitmotiv»: 83, 91 autor: 128, 211, 230-4, 241-2, - de anticipação (utópico, de
Leitor: 9-12, 15-16, 20 271-88; - e leitor: 23; - e ficção científica): 15-17, 26, Tempo: 39-40, 139, 169-198;
Leitor fictício, leitor ideal, lei- espaço: 134, 141, 148-52, 178, 193; - de cavalaria: 6-6, -da ficção: 171-188;-da
tor real, leitor virtual: 99-101 163-5, 182-3, 201-2, 207-9; 195, 267-8; - e cinema: 15, aventura: 171-188;-da lei-
Leituras: 23-5, 192-8, 237-8 - e objectos: 201-3, 208-9; 106-7, 111, 129, 134, 156-7; tura: 192-B; -da narração:
Literatura oral: 17-19, 108 relações das personagens: 52- 171-188;-da escrita: 188-
- e história: 28, 37, 158-9,
Lugar: ver Espaço. -54; evolução da - roma- 294; - gramaticais: 122-
171-77, 181-2, 186; - e mo-
nesca: 277-279; funções: 211- -125, 186
ral: 14; - e música: 25, 79-
-242; apresentação (modo Teatro: 14, 15, 29, 43, 135
81, 146-7, 154-5, 169; - e
Memórias: ver Romance na pri- de - ): 243-277. Tema: 25-26, 81-82
pintura: 25, 132, 143-7, 156,
meira pessoa. «Plot~: ver Intriga.
169; - e psicanálise: 22, 26,
Micro-narrativas: 53, 68 Ponto de vista: 40, 99-129,
233-238; - e realidade: 20, Visão com: 112-113; - de fora:
Mito: 18, 53, 108, 179 205-7, 243-277, 278
30-31, 49, 158-162, 283-289; 76-77, 112-114;-por detrás:
Modo de narração: 41, 72-78, Produção do texto: 7-8, 289-
- e ciência: 28; - e socie- 112-114
112 292
dade: 8-10, 20, 26, 28, 37, Viagem: 36, 130, 167-8
Monólogo interior: 41-2, 90, Pronomes pessoais: 106, 110'."'
207, 250-6 -112, 256-258, 279, 293
Motivo: 39, 44, 81-7 Psicologia: 37, 205-7, 222-230
,

TÁBUA DAS MATÉRIAS

INTRODUÇÃO • • . 5

A fortuna dwna palavra, 5; A literatura é també'm


um comércio, 9; Um pomo de discórdia, 12; Seduções
do romance, 15; Ao princípio era o conto, 17; Porque se
lêem romances?, 20; Busca dwna definição, 25; Uma his-
tória de marinheiro, 36.

CAPinrLo 1. - A -história e a narração . . . . . . . . . . 43

Questões de vocabulário, 43; Os avatares da intriga, 47;


A acção, 52; Início e desenlace, 57; A composição, 63; Cena
ou resumo?, 72; A parte e o todo, 78; Dividir, ordenar,
reunir, 87; As narrativas múltiplas, 93.

CAPÍTULO II. - O ponto de vista 99

O pacto narrativo, 99; O íocet da narração, 106;


O narrador heterodiegético e os níveis de narrativa, 122;
O ponto de vista como significação, 125.
------...---

336

CAPÍTULO III. - 0 espaço 130

Inventário dos locais, 131; Deslocações e itinerá-


rios, 135; Descrever ou não de_s~rever, 141; Porquê a
descrição?, 154; O problema do realismo, 158; A relação
com o mundo, 162.

CAPÍTULO IV. - O tempo . . . . . . . . . . . . . . . . 169

o tempo da aventura, 171; o tempo da escrita, 188;


O tempo da leitura, 192.

CAPÍTULO V. - As personagens . . . 199

1. Uma rede de relações, 199.


2. Funções da personagem romanesca, 211.
Um elemento decorativo, 211; Um agente da acção,
214; A psicologia, 222; Um porta-voz, 230.
3. Modo de apresentação, 243.
Conhecer-se e exprimir-se, 243; A apresentação
da personagem por outrem:. 258; A apresentação da
personagem por um narrador extradiegético, 266;
A apresentaçãó mista, 274.
4. Os avatares da personagem romanesca, 277.

1 I CAPÍTULO VI. - O romance ~ o seu autor . . 281


'1
1 i BIBLIOGRAFIA 295
1J! ÍNDICE DOS AUTORES CITADOS 323

ÍNDICE DOS TEMAS • 331


TÁBUA DAS .MATÉRIAS 335

l•,
i i:

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