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Maria Beatriz
Nizza da Silva
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da Privada e Quotidiano no Brasil no fim do periodo
Iial constituem temáticas novas na historiografia da colom-
- portuguesa no Novo Mundo, que acompanham com esta
as tendências recentes da historiografia europeia. Penetrar
egredos familiares, trazer_à luz relaçöes maritais condena-
ela' Igreja e pelo Estado, observar a imposição de padröes
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1 Mana Beatriz Nizza da Silva
ia familiar próprios dos brancos ås demais etnias, tudo isto tf* ^:'-
itui um dos painéis deste livro. No outro analisam-se as
:as clo quotidiano, desde as formas de morar, de comer “\_I:_
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VIDA PRIVADA
astir, aos diversos modos de viajar, de conviver, de estar
mo ou de se preparar para a morte. Trata-se de uma histó-
Itropológica e profusamente ilustrada que se interroga so-
VIDA
PRIVADA E QUOTIDIANO No BRASIL
viver dos portugueses no Brasil colonial. ¿PEl
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E QUOIIDIANO
NO BRASIL
NAEPOCA DE D.MARIAI E D_JoÃ0vI
II\EPocADED.M.uII1I1
RIA BEATRIZ NIZZA DA SILVA, licenciada em História e Filosofia pela ED.}oÃ0vI
ade de Letras da Universidade de Lisboa, fez a sua carreira académica fi
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versidade de S. Paulo, no Departamento de História. Professora cate- ¡,
_ de Teoria e Metodologia da História, actualmente orienta teses de I

ia do Brasil colonial naquele Departamento, ao mesmo tempo que


ra a disciplina de História do Brasil na Universidade Portucalense,
â professora catedrática convidada desde 1990.
ncipais obras: Silvestre Pinbeiro Ferreira.- Teoria e Ideología (Lisboa,
Cultura e Sociedade no Rio dejaneiro (1808-1821) (S. Paulo, 1977);
neíra Gazeta da Bahia: Idade d'Ouro do Brasil (S. Paulo, 1978);
*a no Brasil Colónia (Petrópolis, 1981); Sistema de Casamento no
Colonial (S. Paulo, 1984); Documentos para a História da Emigra- 3.
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Irtuguesa no Brasil, 1850-1938 (Rio de Janeiro, 1992); Guia de His-
io Brasil Colonial (Porto, 1992).
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VIDA PRIVADA
E QUDIIDIAND No BRASIL

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Maria Beatriz Nizza da Silva

VIDA PRIVADA
E QUDIIIDIAND No BRASIL
NA EPOCA DE D. MARIA1 E D. JOAO V1

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Índice

Introduçøïo..................................................................................... .. 7

A I ~ A vida privada...................................................................... .. 11
I 1 - Cniação e educação dos filhos ....................................... ._ 15
- A questão da tutoriae a emancipação ............ .. 51
! - Casarnento e dote ................... .......... _. 47
l - Filhas reclusas, lilhos clérigos....... .......... ._ 65
- O estabelecimento dos filhos ........................................ .. 85
1 O\ .I'l»-l>~UJl\.) - Família e negocios .......................................................... .. 97
7 - Relaçöes familiares .......................................................... ._ 111
8 - Velhice, morte e herança................................................ .. 125

I II - Concubinato efamílía ilegzïima.......................................... ._ 133


» FICHA TÉCNICA; 1 - Mobilidade geográfica e dispersão familiar .................. .. 155
'ftuloi Vida Privada e Quotidíano no Brasil __ - -
` Na . de D Mm I e D João VI 2 Bigamia ............................................................................ .. 143
Autora; Maria Beatriz Nizza da Silva 5 - Concubinato laico e amancebamento de clérigos........ .. 157
colabora,-ae; David nigga, da ui-.iveieidade de Temnio 4 - Relaçöes ilícitas e filhos ¡legítimos ................................ _. 175
Guilherme Pereira das Neves, _ _ __
da Universidade Federal Fluminense 5 - O processo de legitimaçao............................................. .. 191
Capa: José Antunes V
““~*“=*¢ä° G2 CPP* Umlflflfflf Bfflsffefm» Pi“'“'= dele”
-Baptista Debret in Voyage Pirroresque
Ill - Vida quotidiana. . . . . . ... . . . .....................................................
. _ . ._
205
Hfiwffafle ¢wBre11'¿Par1s. 1838 1 - A morada rural e urbana ................................................ .. 205
C°mP°°`¡¢ã°= ¡“""°"'°= W- 2 - Tradiçöes alimentares e culinarias ................................. .. 217
"“'°'°5*`ã° ° “°“'°““°““°= L°"° 8° '““ã°
isBN 972-_33-0915-7 4
5 - o ii-ajo ...............................................................................
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227
E -sito legal no 662051,93 ,Í - Formas e ocomoçao e viagem .................................... .. 243
,I copyright; © Maiia Beatriz Nizza da silva 5 - Trabalho e festa .............................................................. .. 265
I C"N'alraasC
ãofgåìììråïìzsììmwåäem oraçöes - de religiosidade e atitudes
6 - Slnais . de descrença............ _. 281
© Editorial Estampa, Lisboa, 1993,
para a lingua portuguesa 5
7 - A violência no quotidiano .............................................. .. 307
8 - O corpo doente .............................................................. _. 317
9 - Atitudes perante a morte ................................................ _. 353 ~
Introduçao
Fontes e Bz'blz`ogmfia................................................................. .. 541
Proveniência das ilustraçôes ...... ._ ............................................... .. 559

A Comissão Nacional para as Comemoraçöes dos Descobrimentos


Portugueses possibilìtou a concretização de um projecto liá muito por
mim delineado que só teria viabilidade com a colaboração de outros
pesquisadores e com um amplo recurso ã iconografia. Sendo muito
variada e ampla a documentação susceptïvel de conter informaçöes
sobre a vida privada e o quotidiano no Brasil do fim do período
colonial, decidi recorrer a dois historiadores que nestes últimos anos
se têm dedicado â exploração sistemática de duas sëries documentais
com as quais só ocasionalmente tive ocasião de conviver: a documen-
tação da Inquisição de Lisboa e a da Mesa de Consciência e Ordens do
Rio de Janeiro.
A primeira série é bem conhecida dos investigadores portugueses e
brasileiros que analisam as peiversöes sexuais da sociedade colonial
ou procuram multiplicar os exemplos de perseguição à comunidade
judaica. David Higgs, contudo, tem vindo a trabalhar essa documenta-
ção numa perspectiva diferente em relação à fase pós-pombalina. Não
só para esse periodo a caça aos cristãos-novos perdera as suas bases
jurídicas, deixando portanto de inquietar os inquisidores, como tam-
bém os processos mostraram ser relevantes para duas novas questöes:
as migraçöes entre metrópole, ilhas e Brasil, e consequente bigamia; e,
graças às habilitaçöes dos familiares e comissärios do Santo Olicio, a
estrutura da família e as suas conexöes político-socials.
A outra serie é praticamente desconhecida, mesmo daqueles histo-
riadores que ultimamente se têm dedicado, de uma maneira mais ou
menos sectåria e parcial, ã História da lgreja no Brasil colonial. Ora, a
documentação da Mesa de Consciência e Ordens, quer a existente em
Lisboa e actuando em relação ao território brasileiro antes da transfe-
rência da sede monãrquica em 1808, quer aquela depois criada no Rio
de Janeiro, permite-nos abordar dois temas novosz em primeiro lugar
avaliar 0 que significava, para as familias dos colonos, ter um lìlho
padre e qual 0 prestigio efectivamente atribuido ã carreira eclesiásti-
ca; em segundo lugar, compreender as complexas relaçöes entre as
populaçöes e os seus vigãrios, entre estes e os bispos e também entre

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a alta hìerarquia eclesiástica e a Coroa dentro do sistema de Padroado. estar separados pelo Atlântico, uns no Brasil, outros em Portugal; ou
Guilherme Pereira das Neves, ao examinar esses documentos, aperce- longe uns dos outros no ¡menso territorio brasileiro. Mas nos momen-
beu-se da luta constante, em território brasileiro, pela criação de mais tos decisivos da vida de cada um era a família legítimamente consti-
bispados, pelo aumento do número de vigários colocados nas fregue- tuida que contava: o pai em Portugal recebia a herança do filho morro
sias, por uma presença maior dos representantes da Igreja no meio de no Brasil; o filho que partira em negocios pelo interior, pelo tisertão»,
populaçôes dispersas pelos sertöes e obrigadas a longas e perigosas e por lá ficara era chamado a uma partilha de bens numa vila costeira.
viagens para receberem os sacramentos ou simplesmente ouvirem O fio condutor da vida privada no Brasil do fim do período colonial
missa. Pago pela Coroa, o clero secular sempre reclamou das baixas é, portanto, a gestão do patrimonio familiar e a sua divisão quando
côngruas recebidas, mas ao mesmo tempo sempre as paróquias vagas sobrevinha a morte. Familias dispersas, dificilmente criando raízes
foram acerrìrnamente disputadas por padres que, devido à pluriactivi- numa mesma localidade, raramente usufruindo de uma vida em
dade, compensavam com outros recursos o reduzido estipêndio. Por comum por muito tempo, não deixavam por isso de atentar nos laços
outro lado, os moradores das freguesias tão depressa pediam um de sangue que ligavam os seus membr0s_
pároco como requeriam a expulsão de outro que se incompatibiliza-
ra, por alguma razão, com as autoridades locais. Relaçöes complexas,
portanto, que só os documentos da Mesa de Consciência e Ordens
ajudam a esclarecer.
Agradeço assim a colaboraçäo destes dois pesquisadores na abor-
dagem de uma temática mais complexa do que pode parecer à pri-
meira vista. Comecemos por analisar o conceito de vida privada. É
difícil definir o privado numa sociedade caracterizada fundamental-
mente pela vida comunitaria, pelo espaço público. Alguns historiado-
res referem-se à privacidade como uma invenção do século XIX e, se
esta cronologia está correcta para a Europa, muito mais 0 estará para o
Brasil colonial. A casa era então apenas o lugar que reunía varios
moradores ligados ou não por laços de parentesco; não era, de modo
aigum, aquilo que a lingua inglesa designa como home. Alem disso, a
casa era também muitas vezes ocupada apenas temporariamente (dai
o gosto por poucos móveis e estes dobrãveis para mais facilmente
serem transportados de uma localidade para outra) por moradores
em constante mobilidade geográfica.
Dada a ausência de cartas particulares, de diarios, de memorias ou
recordaçöes, numa sociedade parcialmente iletrada na medida em que
poucas mulheres sabìam ler e escrever, aquilo que se poderia designar
como uma història da afectividade, do sentimento, tem de ser neces-
sariamente posta de lado, sendo substituida por uma història de com-
portamentos, de atitudes, de decisôes. Estas são visíveìs naqueles
documentos que pontuavarn a vida dos individuos: uma escritura de
doação, uma petição, um testamento, tomam o lugar das cartas não
enviadas ou dos diarios não escritos.
Mais do que o agregado familiar vivendo num mesmo domicilio é a
família ligada pelo sangue, ainda que geograficamente dispersa, que
importa analisar, pois é a relação de parentesco que se encontra na
raiz das decisöes tomadas. Os varios membros de uma familia podiam
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Criação e educação dos filhos

Estudar a criança no Brasil do fim do período colonial não é tarefa


fácil na medida em que ela não é mencionada na documentação
escrita a não ser acidentalmente e também raras vezes aparece na
iconografía. Como as mães dessas crianças eram na sua maioria anal-
fabetas, também não dispomos de quaisquer cartas ou memorias que
retratem a infância. Estas difìculdades contudo não impedem 0 histo-
riador de levantar um certo número de questöes e de lhes tentar
responder com as informaçòes dispersas e fragmentárias que é possi-
vel recolher aqui e ali.
Algumas conclusöes podemos tirar desde já e elas dizem respeito
ao próprio conceito de infância que, para não se tornar anacrónico na
sociedade brasileira colonial, tem de apontar para a grande divisão
etâria. Do nascimento até aos 3 anos de idade, temos uma primeira
infância caracterizada apenas biologicamente pelo facto de a criança
ser alimentada com leite humano, da mãe ou de ama; dos 4 aos 7 anos
decorre uma segunda fase da infância em que a criança acompanha a
vida do adulto sem nada lhe ser exigido em troca, nem trabalho, nem
cumprimento dos deveres religiosos, nem estudo.
Depois dos 7 anos, o menino podia frequentar a Aula Regia de
primeiras letras ou ir trabalhar à soldada em casa de alguém ao mes-
mo tempo que aprendia um oficio. Quanto à menina, certamente
começava a ajudar nas lides domésticas, podia aprender a costurar e
bordar e raramente tinha em casa algum clérigo ou preceptor que lhe
ensinasse a ler, escrever e contar. Apesar de se dedicarem a activida-
des diferentes, as crianças de ambos os sexos eram, a partir daquela
faixa etária, obrigadas a cumprir o seu dever de católicos confessando
e comungando por ocasião da Pãscoa e por essa razão os róis de
desobriga elaborados pelos párocos nas suas freguesias computavam
os paroquianos que, a partir dos 7 anos de idade, cumpriam o pre-
ceito pascal.
Alguns estudos de demografia histórica têm-se debruçado sobre os
registos paroquiais de baptizados, mas os dados neles colectados

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apenas nos permitem visualizar uma parte muito restrita da vida fami- A cultura jurídica e a cultura popular conjugavam-se assim para
liar no que se refere â procriação. Eles fornecem, de maneira muito afastar as mulheres nobres da prática da amamentação, mas nos lins
sumaria, a data do baptizado; o local da realização da cerimónia (se do séc. XVIII as teses de jean-Jacques Rousseau sobre o assunto
era na sede da paróquia ou numa capela afiliada); o nome do bapti- começaram a permear os escritos médicos em Portugal. Francisco de
zando; se era fìlho legítimo ou ilegitìmo, de pais incógnitos, exposto Melo Franco, nascido no Brasil, ocupava em 1790 varios trechos do
ou enjeitado, adoptivo; os nomes e os sobrenomes dos pais, os nomes seu Tratado da educaçâo fisica dos meninos com a discussão do
e sobrenomes dos padrinhos com 0 seu estado civil, a residência de tema. O cap. VIII, «Do quanto diz respeito ao modo de nun-if as
uns e de outros e a assinatura do vigário, constando por vezes também crianças», estava subdividido nas seguintes partes; I. Deve-se mamar
a naturalidade dos pais. logo na mãe; e quando ha-de ser a prlmeira vez; II. Todas as mães são
Perguntas pertinentes ficam contudo sem resposta. Por exemplo, obrigadas a criar os seus filhos; Ill. Quais são as mães que legitima-
com que idade esses baptizandos recebiam o sacramento. Nas gran- mente estão dispensadas de criar os seus filhos; IV. Quais são os
des cidades e vilas é natural que os <<inocentes››, como então se dizia, meios de suprir esta impossibilidade das mães, e que condiçöes deve
fossem levados à pia baptismal pouco tempo após o nascimento, mas ter a ama; V. Que regularidade deve haver em dar de mamar às crian-
nos arraiaìs e habitaçöes isoladas do sertão, longe das freguesias, essa ças; e os abusos que vulgarmente reinam a esse respeito; VI. Quando
ceñmónia dependía da passagem de um padre pela região (e neste devem principiar a comer, e qual será a comida própria; VII. Quando
caso podia 0 baptismo não ser registado) ou então exigía uma longa e se deve desmamar as crianças; como se deve então proceder; que
perigosa viagem. Em relação a indios «domesticados›> ou escravos alimentos se deve dar dai por diante até aos 4 anos.
recém-chegados de África, a idade também nunca é indicada embora Tal como Francisco de Melo Franco, também Francisco José de
a palavra «inocente›› deixe de ser empregada quando se tratava de Almeida, num tratado com o mesmo título e publicado no ano seguin-
baptizandos mais velhos ou mesmo adultos. Quanto ã profissão dos te, 1791, defendía veementemente a amamentação materna ao mesmo
pais, outro dado que seria importante conhecer, ela só é indicada tempo que lamentava terem os excessos da civilização sufocado o
ocasionalmente, quando se tratava de pessoas de projecção social. instinto maternal: «se o luxo não tivera corrompido, e degenerado
Contudo, com esta documentação paroquial os historiadores de- as propensöes da natureza, seriam em toda a parte olhadas pior do
mógrafos têm realizado alguns estudos importantes, de carácter quan- que as feras as mães insensíveis, que não amamentassem seus filhos».
titativo, sobre a situação jurídica dos baptizandos (livres ou escravos), Só um século corrupto e frívolo tinha escusado as «mães desapieda-
sobre a taxa de ilegitimidade, e também sobre a relação entre a po- das» da tarefa da amamentação, quando esta era necessária mesmo do
pulação infantil do sexo masculino e feminino. ponto de vista estritamente médico e não moral: o leite materno era 0
Sendo a primeira fase da infância a da criaçãoyou arnamentação, único sustento próprio das crianças por ser «alimento preparado nos
não podemos esquecer a polémica que no flm do séc. XVIII dividiu a mesmos órgãos, e tirado do mesmo sangue››2.
opinião pública acerca do dever materno de amamentar os próprios Qual era a prâtica mais seguida no Brasil do ñm do período colo-
filhos. nial? Não há documentação que nos permita responder cabalmente a
As próprias Ordenaçôes Filzpinas, ou seja o código seiscentista esta pergunta. As únicas amas a que se faz referência expressa são
ainda em vigor, reconheciam que algumas mulheres, pela sua aquelas que se encarregavam dos expostos ou enjeitados por incum-
«qualidade››, isto é, pela sua condição social elevada, podiam não bência das Cãmaras ou das Misericórdias.
querer amamentar os filhos. Assim, a legislação portuguesa encarava Quanto à imagem tão divulgada da «mãe negra» creio que ela se
como um privilegio das donas o entregarem os seus filhos a amas para refere mais ao período imperial do que ao fim do período colonial. De
criação. Por outro lado, a medicina popular divulgava os modos mais qualquer modo, a demografia histórica deveria debruçar-se sobre esta
seguros de as mulheres secarem o seu leitel. questão, analisando, nas listas nominativas de população com que
habitualmente trabalha, se nas casas onde havia crianças brancas de
1 Bastará citar aqui uma das receitas: «Tomarão as folhas do sabuguelro, e as
ponham estendtdas, e enxutas sobre os peitos, e logo se irão abrandando, e secando;
e é provado muitas vezes» (Jerónimo Cortez, Segredos da natureza, nova edição, 2 Francisco
_ Jose. de Almeida,
_ _ fisrca
Tratado da educaçao _ dos meninos. Lisboa,
Lisboa, 1831, p. 94). 1791, pp. 45-46.

14 15
idade inferior a 5 anos residiam igualmente eswravas com filhos dessa mr os filhos legítimos de modo diferente do do mecânico ou plebeu.
idade. Enquanto se não proceder a essa demorada investigação, limi- Como em todas as esferas da vida privada, também aqui a legislação
tar-nos-emos a alguns fragmentos significativos contidos noutro tipo (10 Amigo Regime se mostrava atenta â hierarquia socials.
de documentação. Assim, por exemplo, no testamento de Ana Maria Competia portanto ao pai prover o alimento necessário ao sustento
Mendes, moradora na cidade de São Paulo, encontramos a seguinte dos filhos. Contudo, a documentação revela-nos inúmeras queixas
disposição; «Declaro que a dita minha escrava por nome Teresa em femininas a este respeito. Em 1809, uma mulher da vila de S. Sebas-
remuneração dos bons serviços que me tem feito e por haver criado o tião, no litoral da Capitanía de São Paulo, lamentava-se de que o
dito meu filho e meu herdeiro a deixo forra e liberta, livre e isenta de marido não lhe dava um vintém para acudir ãs despesas da casa,
toda a ob rigação servil, o que peço ao dito meu irmão e testamenteiro não só para ela como também para o seu filho e «uma ama de leite
inviolavelmente o faça inteiramente cumprir por ser esta minha última que estava criando outro filho, pessoas todas de que se compunha a
vontade.››3 Declaraçöes deste tipo não são contudo frequentes nem na sua família e que era obrigado a alimentar››6.
documentação testarnentária nem nas cartas de alforria passadas em É em geral nas petiçöes apresentadas ao Tribunal eclesiástico para
tabelião. ser iniciado um processo de separação que esse comportamento dos
Nas grandes cidades, como Rio de Janeiro ou Baìa, seria certamente maridos surge descrito. Angélica Maria da Assunção, moradora no
fácil alugar ou comprar amas de leite. As gazetas locais continham por bairro de Nossa Senhora do Ó, na mesma capitania, contava que,
vezes anuncios que revelam esse mercado potencial. Em 1811 foi por altura do parto, o marido quase a matara à fome, sendo preciso
posta ã venda na Baía uma jovem crioula com cerca de 17 anos «só «a parteira que lhe assistia andar pelos sitios dos vizinhos pedindo
porque pariu, o que é contra os costumes da casa, da qual é escrava». farinha e toicinho›› e que, quando a fìlha nascera, a expulsar:-1 de casa
E entre as qualidades enaltecidas estavam algumas que a apontavam tendo ela de ir viver para a cidade de São Paulo durante três anos.
como boa para ama; era «muito sadia e robusta» e tinha um filho de 2 Depois a levara novarnente para casa, mas nunca cuidara de a vestir
meses «são››. Além disso tinha «muito, e bom leite››4. nem ã filha-".
Se a criação dos filhos, até aos 5 anos de idade, estava a cargo das Num libelo de divorcio em 1811 a mulher acusava o marido de
mães ou amas, dai para a frente a questão dos «alimentos››, como desumano para com ela e com os filhos «por inteiramente não olhar
então se dizia, competia claramente aos pais, mesmo em relação aos como deve e é obrigado para a casa, matando-os ã fome, sem lhes dar
filhos ilegitimos. Para os juristas da época a única diferença residía no de vestir». Ao que o marido retorquiu que nunca faltara com o neces-
tipo de sustentação a ser fornecido: «Alimentos se devem prestar não sãrio para o sustento da mulher e dos filhos, «pois sempre comprou
só aos filhos legítimos, mas aos ilegitimos, e ainda nascidos de qual- mantimentos com abundância para esse fim, trabalhava para os sus-
quer danado, e punìvel coito. Aos filhos legítimos se lhes deve prestar tentar, e vestir com decência, conforme as suas possibilidades, e tanto
alimentos segundo a riqueza, e patrimonio dos pais, e segundo tam- se esmerava nisso, que, quando fazia viagem, deixava mantimentos,
bém a sua qualidade, não só os precisos para se alimentarem, mas dinheito, e uma negra alugada para lhes ir buscar ãgua, e rachar
ainda alguns de luxo, e decência, se o património, mais que a quali- lenha››“.
dade dos pais for pingue. Aos filhos espúrlos, etc., se deve prestar É interessante observar um tipo de comportamento comum em
unicamente os que forem necessários para sustentar a vida, e vestua- relação aos filhos naturais, ou seja aqueles filhos ilegitimos que o
rio.›› Esta diferença assentava no facto de que, por Direito Natural, homem rivera em solteiro: eles eram agregados ã familia legitima e
todos os pais tinham o dever de garantir a sobrevivência dos filhos, criados juntamente com os demais filhos. Tal ìntegração é visível
enquanto que pelo Direito Civil determinava-se que só os legítimos
participassem da condição social e da riqueza dos pais. Um nobre.
5 Apéndice das periçôes mais necessârìas noforo contencioso, segundo 0 costume
fosse ele pertencente ã nobreza hereditaria ou de sangue ou apenas ã até agora seguido no círfel, crime, órfãos. e jìnanças. Com algumas aduerrëncías
nobreza civil resultante de cargos e funçöes, tinha o dever de alimen- tnstrutívas para melhor intelfgência dos senboresjuízes, advogados e solicitadores,
Rio de janeiro, 1815, p. 7.
G Arquivo da Cúrìa de S. Paulo, doravante ACSP, processo 15-6-92, 1809.
3 Arquivo do Estado de S. Paulo, cloravante AESP, Ordem 456, Lata 2, Lìvro 4,
fol. 54, 1784.
7 Acsr, processo 15-35-45s, nas.
B Ibid, processo 15-7-106, 1811.
'* idade foam de Bmsfz, n° 59, 1811.
16 17
te 7;--__

num processo de separação através das acusaçoes mütuas que marido deggi-aça.›› Em reconhecimento pela atitude carinhosa do pai e da
e mulher lançavam um contra o outro. Na Capitanía de São Paulo madrasta, lhes concedia enquanto vivessem o usufruto de um campo
María do Rosárío acusava 0 seu marido, o tenente Francisco Rodri- que obtivera em sesmaria; e aos irmãos a propriedade e senhorio do
gues, dizendo que o mesmo matara com pancadas um filho natural mesmo campo, do qual ele guardaria apenas um dos quinhöes em que
que trouxera para casa quando se casara com ela. Ao que o tenente fosse dividido por morte do pai e da madrasta. «Com condição porém
retorquiu; «se lhe morreu um filho natural, que teve no tempo de que nenhum de nós poderá vender o seu quinhão a pessoa estranha,
solteiro, foi de lombrigas, e do mau trato que A. lhe dava, fazendo-o porém sim, e tão somente os irmãos uns aos outros, no caso que
dormir no chão e não cuidando de o lavar, e pensar››9. Pouco importa algum não queira conservar o seu quinhão, o que me sera desagrada-
aquí saber quem estava a dízer a verdade; o que interessa acentuar é vel, porque o principal objecto da doação que lhes faço, é de estabpå
que por vezes o filho ilegitimo, quando era filho natural e não adulte- lecer-lhes um dote, ou patrimonio que os livre da maior indigência»
rino, vivia incorporado ã família legítima. Convém observar que neste caso o pai só deixou o fìlho natural
Mesmo que essa incorporação não ocorresse, o pai sentia-se na com a mãe durante a fase de crìação, ou seja, até aos 3 anos de idade,
obrígação de proteger o filho natural, como declarou Domingos Fran- e que, a partir de então, se encarregou pessoalmente da sua educação,
cisco da Silva Guimarães, do termo da vila de Mogi-mirim, na Capitanía lado a lado com os filhos legítimos.
de São Paulo, ao negar ter relaçöes adülteras com Ana Maria de Jesus, A atitude do pai em relação ã criação e educação do filho natural
de quem tivera um filho quando solteiro; «depois de casado, não teve variava: simples protecção â distãncia, incorporação na familia legiti-
mais trato algum com ela que fosse ilícito a seu estado, e somente lhe ma, reconhecimento da filiação para concessão formal de alimentos
dava assistência para alimentos do dito filho como era obrigado por sem contudo com isso 0 legitimar para o tornar seu herdeiro. Em
Direito divino e humano››m. 1820, na Capitanía de São Paulo, um dos membros da elite local, o
Essa responsabilidade do pai para com o filho ilegitimo observava- brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão, fez uma escritura pública de
-se mesmo em relação aos filhos tidos com escravas. Na Capitanía do reconhecimento do seu filho menor de 14 anos, Antonio Rodrigues
Rio de janei ro, Paula, escrava de Úrsula das Virgens, requería em 1787 de Almeida jordão, e de doação para alimentos”. O brigadeiro conti-
(com licença da sua senhora) o cumprimento de uma doação feita em nuava solteiro e declarava na escritura ter sempre tratado e educado o
vida pelo falecido capitão Manuel de Morais Cabral. Este arrematara jovem Antonio como seu filho. Mas, desejando favorecê-lo para o
em praça pública uma crioulinha que depois deu a Paula para a ajudar futuro, doara-lhe para a sua alimentação metade do valor de 50 escra-
a criar um filho que tivera delen. vos, assim como do engenho denominado Bom Sucesso, os seus
A absorção do filho natural pela família legítima fica também pa- utensilios e terras, localizado na freguesia de Piracicaba, termo da
tente numa escritura de doação lavrada na vila de Rio Grande, no sul vila de Porto Feliz; uma morada de casas de sobrado na cidade de
do Brasil, em 1803. Nela contava José Batista de Carvalho e Vale, filho São Paulo; 4 acçöes do Banco do Brasil de um conto de reis cada uma;
natural de josé Batista de Carvalho; «Que tendo eu 5 anos de idade me e mais 4 escravos.
puxou meu pai para sua companhia e casando-se logo com D. Maria Esta doação ao filho natural fora feita com as seguintes condìçoes:
de Sousa e Silva, deste matrimonio ora existem sete filhos [...], que são 1° - Enquanto o iovem não completasse 25 anos, ou seja, não
meus irmãos e se criaram comigo. Que minha madrasta me criou, e atingisse a maiorìdade, os bens continuariam a pertencer ao doador
pensou com tão extremoso amor como aqueles gerados no seu ven- que os adminístraria, prestando-lhe «os precisos alimentos, tanto na-
tre. Cresci, e na minha adolescência entristeci a meu pai com desgos- turaís como civís», estando neles incluida «a sua educação literaria,
tos, pelos quais merecendo eu a sua indignação, pelo contrario achei quando mesmo queíra seguir os estudos da Universidade».
nele o mesmo amor paternal, piedade e clemência, valendo-me nos 2” ~ Nunca Antonio poderia vender, doar, hipotecar nem de alguma
meus trabalhos, e livrando-me de ser precipitado nos abismos da forma alíenar aqueles bens, nem sujeitâ-los a dívidas, «podendo so-
mente gravar o usufruto›› enquanto vivesse, passando-os depoís com

9 ACSP, processo 15-7-106, 1811.


1° Ibíd., processo 15-4-6/1, 1804. 12 Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, doravante ANRJ, Desembargo do Paço,
H Silvia Hunold Lara, Campos da uiolência. Escravos e senbores na Czzpitarria do Doaçoes, Caixa 157, pacote 1, documento 11.
Rio de janeiro, 1750-1808, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1988. 13 ANRJ, Desembargo do Paço, Doaçôes, caixa 137, pacote 2, documento 51.

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¡F-t
esta mesma condiçao aos seus filhos de legítimo matrimonio. Nao Há que registar ainda, no fim do período colonial, um outro tipo de
deixava o brigadeiro de esclarecer que 0 casamento do jovem Arito- wmportamento das familias brasíleiras que deve ser acrescentado ã
nio só se realizaría com a sua aprovação «expressamente por escrito» criação dos lilhos legítimos e naturais. Mesmo sem a formalidade de
ou, no caso de ser ja falecido, se fosse com pessoa de igual condíção uma aclopção (que observamos por vezes quando uma tía adoptava
social. uma sobrínha como filha) nota-se a presença dos chamados «filhos de
3” - Caso Antonio morresse solteìro, os bens reverteriam para o criação», os quais, embora não sendo nomeados herdeiros, nunca
doador; caso morresse casado mas sem legítimos descendentes, os deixavam de receber, daqueles que os tinham criado em sua casa,
bens doados fícariam sob a administração da sua víúva, que gozaria um leggdo «por esmola». Assim, por exemplo, na Capitanía de São
do seu usufruto enquanto fosse viva, revertendo igualmente para o Paulo, em 1778, uma certa Maria Domingues fez em tabelião uma
doador pela sua morte. A esses bens não teríam nenhum direíto nem dádiva de uma escrava a Clara Maria de jesus justificando ser ela filha
os ascendentes de Antonio por parte materna, nem quaisquer descen- de uma moça que ela criara. E advertia; «nenhum dos meus herdeiros
dentes ilegitimos. poderã embaraçar esta esmola que faço porque os não preiudico
4° - Não obstante este reconhecimento como filho natural, nunca nesta dâdiva››15.
poderia Antonio, em juízo ou fora dele, pedir ao brigadeiro, ou pela Não se deve contudo confundir estes filhos de criação com os
sua morte aos seus lierdeiros, coisa alguma mais fosse a que título expostos ou enjeitados criados em algumas casas, como veremos
fosse. Essa doação era irrevogãvel, mesmo que o brigadeiro viesse a mais adiante. Os primeiros erain filhos cujos pais eram perfeitamente
casar-se e a ter filhos de legítimo matrimonio. conhecídos e que simplesmente passaram a viver com outras familias,
Como vemos, a elite era extremarnente previdente e cautelosa ao rielas se integrando embora, como vimos no caso acima, perinanecen-
dispor dos seus avultados bens. Este filho natural foi alimentado e do sempre ã margem da família ligada por laços de sangue no que se
educado pelo pai, o seu futuro e o dos filhos que viesse a ter foi referia ã herança.
garantído, mas apesar da escritura de reconhecimento de filiação, Vimos até agora que as mães tínham o encargo de criar as crianças
não foi legitimado nem constituido herdeiro do pai, como aconteceu até aos 3 anos de idade; que a partir dessa idade eram os pais os
com outros que mais adiante examínaremos. responsâveis pela sua alimentação e vestuario. Aos 7 anos começava
É interessante contudo lembrar que este mesmo brigadeiro Manuel uma nova fase da vida infantil em que os filhos deixavam simplesmen-
Rodrigues Jordão, um ano depois de ter feíto esta escritura de te de acompanhar os pais e brincar com os jogos e brinquedos pro-
reconhecimento de filiação e doação de alimentos ao filho natural de prios da sua idade para íniciarem então uma vida de estudo ou de
14 anos, enviou petição ao rei para poder instituir um morgado em ttabalho.
parte dos bens da sua propriedade, bens estes que nada tínham a ver A partir dos 7 anos também se começava a separar o mundo
com aqueles destinados a prover o futuro do filho natural; queria femínino do mundo masculino. As meninas poucas oportunidades
vincular o engenho do açúcar denominado Senhora do Rosario, no tinliam de aprender as primeiras letras, uma vez que não eram aceites
termo da vila de Itú, onde trabalhavam 40 escravos, uma casa nobre na nas Aulas Régías criadas pelo sistema pombalino de educação. Cons-
cidade de São Paulo, e 20 acçöes do Banco do Brasil. tituí uma excepção a instituição criada pelo bispo de Pernambuco,
Mas, de qualquer modo, ele parecia não descartar totalmente a D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, cujos estatutos da-
ideia de tornar o filho natural administrador deste morgado, pois tam de 1798: o Recolhimento de Nossa Senhora da Gloria do lugar da
solicitava «que em falta de sucessão legítima lhe competirá o privilé- Boavista de Pernambucom.
gio de nomear livremente sucessor ao dito morgado por sua morte, ou Esta instituição não era contudo especificamente educacional. Des-
em testamento, ou por escritura pública». So que o procurador da tinava-se a receber as recolhidas, em geral mulheres adultas cuios
Coroa, ao emitir o seu parecer depois de ter consultado o ouvídor da maridos partiam em viagem ou pretendiam corrigi-las por mau com-
comarca, propos a supressão desta cláusula por ser contrãria à lei de 5 portamento. So no caso de «haver rendas bastantes» eram ali
de Agosto de 1770”.
'S AESP, Escrituras do tabelião de S. Paulo, Lívro 4, fol. 17.
'Ó D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Estatutos do Recolhimento de
14 ANJR, Desembargo do Paço, Vínculos, caixa 155, pacote 1. Nossa Senhora da Glórla do lugar da Boavista de Per-nambuco, Lisboa, 1798.

20 21
ra.-
recolhidas educandas pobres das quais se exigía que apresentassem fecolhimento. «Não é por certo estranhãvel o moderado uso destas
os seguintes requisitos: licenças, se bem se reflectir nos fins principais para que são concedi-
das. E vêm a ser: 1'-' para que as educandas nestas saídas da clausura,
«1° - Que são filhas de pais brancos, e havidas de legitimo matri- gm que são encerradas a maior parte do ano, desafoguem 0 espirito
mónio. com a novidade da mudança da habitação, e com a renovação da
2° - Que têm 7 anos de idade, e não padecem enfermidade grave, amiga sociedade dos seus domésticos; 2° para que com a longa
ou mal contagioso. ausência da grande sociedade do mundo não tenham as meninas
5° - Que são naturais do mesmo bispado, órfãs ao menos de pais, e aquela enganosa ideia do século, que fazem de ordinario as pes-
verdadeiramente pobres. soas, que desde a menor idade vivem na clausura, donde olham para
4° - Que apresentam licença do ordinãrio para os lugares que 0 mundo, como para uma especie de encanto, porque o vêem de
pretendem.›› longe com admiração, e por fruta de experiència não fazem mais do
que exagerar na fantasia os prazeres, lìberdades e divertimentos, que
As mesmas exigências, com a excepção do 3'-' requisito, eram feitas nele se encerram, sem jamais descontarem os desgostos e amarguras,
às educandas sustentadas ã custa dos seus pais, patentes ou benfei- que nele se encontram; 59 para que possam os mesmos pais contem-
tores e assim vemos que a educação feminina de iniciativa eclesiástica plar de mais perto a decência e cuidado com que as suas filhas são
criava obstáculos às meninas de cor e às fìlhas do concubinato. tratadas na sua ausência, e o progresso que elas fazem nos estudos,
No caso das educandas pobres, a sua educação decorria entre os 7 em que são educadas, assim no espiritual como no temporal.››
e os 16 anos: «serão sustentadas e vestidas ã custa do recolhimento até Havia portanto que contrabalançar a clausura das educandas no
ã idade de 16 anos, se antes disso não tomarem estado, ou outro recolhimento com a abertura para o mundo proporcionada pelas
honesto modo de vida, em que possam estar seguras de sua honra curtas estaclias em casa. Mas o bispo não deixa de insistir que só a
e estado». Embora nada seja prescrito em relação às educandas que instituição conseguía proporcionar a necessária educação. Aquela
pagavam os seus estudos, é natural que para elas não houvesse este que era tradicionalmente ministrada no ambiente doméstico apresen-
limite máximo de idade e que pudessem permanecer na instituição o tava os seguintes inconvenientes; ausência de ocupaçöes («e se é de
tempo que quisessem. nobre condição, lhe parece logo que é isenta do trabalho das mãos››)
As ideias do bispo de Pernambuco sobre a educação feminina por ser indolente ou por ter demasiadas serviçais; a ociosidade resul-
tinham como objectivo o aprimorarnento e a maior rentabilidade tante levava a moça a dormir «mais tempo do que é necessãrio
das duas funçöes pnmordiais da mulher; ser a guardiã da economia para uma saúde perfeita, e deste demasiado sono vem a fazer-se
doméstica e a mentora dos filhos. E apresentava-se Azereclo Coutinho mole, mais delicada, e mais exposta às rebeliöes da carne». Alem
como um opositor daqueles que não viam a necessidade de uma de prejudicial ã saúde, a ociosidade produzia nas meninas «uma per-
educação das moças por desconhecerem «o grande influxo que as niciosa sensibilidade para os divertimentos e espectáculos» e sobre-
mulheres têm no bem, ou no mal das sociedades». E defendía: «As tudo uma curiosidade muito grande acerca da vida alheia («procuram
mulheres, ainda que se não destinem para fazer a guerra, nem para saber tudo o que se diz e 0 que se faz››) e também o hábito de falar de
ocupar o ministério das coisas sagradas, não têm contudo ocupaçöes mais.
menos importantes ao público. Blas têm uma casa que governar, Assim, «para remediar os grandes danos» causados pelo descuido
marido que fazer feliz e filhos que educar na virtude.›› das familias, era muito importante para o bispo que se começasse a
Para obviar «aos grandes danos que resultam no descuido dos pais educação das filhas desde a sua infância em casa; «Esta primeira idade,
de família na educação de suas filhas», urgia tira-las de casa e inseri-las que de ordinãno se entrega aos cuidados de mulheres indiscretas, e
em instituiçöes capazes de lhes ministrar tal educação. E as educandas talvez mal criadas, é todavia aquela em que se fazem as impressöes
do recolhimento da Glória só podiam visitar as suas familias nas festas mais profundas, e que duram toda a vida» Nessa fase a criança adqui-
do Natal e da Pâscoa «e naquelas ocasiöes em que os pais das edu- re a linguagem, exige um maior controlo dos alimentos e horarios e
candas, por alguma justa causa, quiserem ter suas filhas em sua › sobretudo faz inúmeras perguntas as quais devem ser adequadamente
companhia». Estas visitas a casa eram aliãs encaradas pelo bispo de respondidas pelos familiares a fim de satisfazer a natural curiosidade
Pernambuco como um conttaponto necessãrio ã vida reclusa no infantil.
22 25
rfi
Quanto ã educaçao a ser ministrada já no recolhimento, competia Sabendo ler e escrever, passavam as alunas à arte de contar e, uma
às mestras instruir as meninas nos primeiros principios da religião e vez decorada a tabuada, a mestra começava a ensinar-lhes as contas de
preserva-las dos «defeitos ordinarios do seu sexo». Neste ponto Aze- somar, diminuir, multiplicar e dividir, pois deste saber dependía «a
redo,Coutinho tece amplas consideraçöes acerca da «natureza›› femi- boa ordem das casas». Posto que tal aprendizado fosse «espinhoso
para muita gente, maiormente para as mulheres», ele tornava-se indis-
nina, ressaltando a simulação e o artificio, o costume de falar muito, a
vaidade. «Elas nascem com uma propensão violenta de agradar, ao pensãvel para quem se iria encarregar da economia doméstica.
que logo se segue o desejo de serem vistas. Os homens procuram Finalmente, dedicavam-se as meninas às actividades típicamente
pelas armas, ou letras, conduzir-se ao auge da autoridade e da glória; femininas; coser e bordar. Tal como estava organizada no recolhimen-
as mulheres procuram o mesmo pelos agrados do espirito e do corpo.›› to de Nossa Senhora da Glória, a aula de costura e bordados asseme-
Depois de referir a formação que as meninas deviam receber no lhava-se a uma pequena manufactura caracterizada pela divisão do
recolhimento, o bispo passa a elucidar quanto à instrução que lhes trabalho. A mestra tinha o cuidado de colocar de um lado as educan-
devia ser ministrada, obedecendo ao seguinte principio geral: das que faziam «costuras finas ou grossas››; noutro lugar as que bor-
«A ciência das mulheres, assim como a dos homens, deve ser propor- davam «de linho ou seda, de ouro ou prata››; noutro ainda as que
cionada aos seus empregos: a diferença das ocupaçöes é a que faz a faziam renda; e finalmente um outro grupo produzia «meias e redes
dos seus estudos» Assim, só aquelas destinadas ã vida religiosa deve- de linho, algodão ou de retrós». Äs alunas de maior engenho e talento
n`am aprender latim e música pois as que iriam viver para o marido e ensinava-se a arte do desenho, mas só na medida em que este era
os filhos limitar-se-iam a aprender a ler, escrever e contar e também exigido pelos trabalhos manuais executados; «as rendas e bordados
coser e bordar. Tais estudos seriam mais que suficientes para 0 dos panos e das redes não podem ter 0 bom gosto e a devida pro-
governo das suas casas. porção sem as conduzir o conhecimento das regras do desenho»,
A alfabetização das educandas deveria ser feita do modo mais lúdico escrevia ainda 0 bispo nos Estatutos. Para que a actividade manual
possível, distribuìndo-se as aulas pela manhã e tarde. Prescrevia 0 bispo não se tornasse rotineira e monótona, era aconselhado ã mestra que
à mestra; «Para que elas aprendarn com gosto, lhes fará das cartas do lhes contasse «alguns passos da História instrutivos e de edifìcação»,
alfabeto como quatro baralhos de cartas de jogar, em papéis pequenos, ou então que as deixasse entoar «algumas cantigas inocentes para as
um dos quais contenha tantas cartas quantas letras tem o alfabeto, cada ter sempre alegres e divertidas».
um com a sua letra escrita com os caracteres pequenos; outro baralho No recolhimento as educandas exercitavam-se ainda numa arte
feíto da mesma forma com todas as letras escritas com caracteres difícil e absolutamente necessãria ã condição feminina; «a arte de
grandes, ou iniciais; 0 terceiro, que contenha o mesmo alfabeto escrito prender a seus maridos e filhos, como por encanto, sem que eles
com os caracteres da letra romana, ou de imprensa; o quarto composto percebam a mão que os dirige, nem a cadeia que os prende». As
de dez cartas, em as quais da mesma sorte estejam escritas separada- meninas deviam ser treinadas para se tornarem esposas e mães de
mente as dez letras do algarismo.›› Com estes quatro baralhos, «como família cuja companhia fosse agradável pois o marido, se «não acha
uma espécie de jogo, que lhe faça suave 0 trabalho do estudo», devia a em casa um objecto que o distraia e divirta, ou vai procurar o diverti-
mestra ir ensinando as meninas a conhecer as letras e os números. mento em outra parte, ou se deixa conduzir por um amigo, muitas
vezes falso, que debaixo do véu de um divertimento lícito e honesto, o
Só depois de as educandas saberem ler «sem a necessidade de
levara ã casa de jogo». Mulher que não soubesse prender 0 marido em
soletrar as palavras» é que se iniciavam na arte de escrever, não
casa com a sua presença agradãvel e sedutora via-se assim em riscos
deixando Azeredo Coutinho de propor um certo número de normas
à mestra: «As farã algumas vezes escrever cartas politicas aos seus pais de ter perdida a honra da sua casa com 0 jogo e outras diversöes
e irmãos, para nelas lhes notar e emendar os seus erros e lhes ensinar
menos convenientes.
Este plano de estudos para meninas redigido por um homem, um
a usar dos termos próprios para explicarem seus pensarnentos com
reinol e ainda por cima um eclesiástico, obedecia a uma imagem
ordem e clareza, e de um modo breve e conciso, cortando-lhes as
feminina que se pretendía implementar na sociedade colonial. É na-
palavras ou períodos, que forem supérfluos» Como vemos, estas
recomendaçöes tendiam a corrigir aquilo que o bispo considerava tural que ele fosse obedecido no recolhimento de Nossa Senhora da
serem os defeitos femininos por excelência: a prolixidade e a imagi- Glória de Pernambuco, mas o Brasil de então pouco seguiu estas
nação errante. normas. A maior parte das mulheres permanecen analfabeta, mesmo

' 25
24
, 7"'
as de mais elevada condição social. Eram os seus maridos que escre- Para a sociedade carioca das primeiras decadas do sec. XIX, o
viam as cartas e faziarn a contabilidade domestica. ensino feminino fundamental continuava a ser constituido pelas cos-
Muitas mulheres nem sequer conseguiam assinar os seus testamen- turas e bordados e pela alfaberização, que em muitos casos não in-
tos ou petiçöes. Quanto aos trabalhos manuais, se as mais aquinhoadas cluía a aritmética básica, cuja aprendizagem jã fora considerada
faziam renda ou bordados por distracção, as mais pobres precisavam gspinhosa pelo bispo de Pernambuco, Mas as opçöes eram já mais
sobretudo de saber fiar e tecer algodão para o vestuário caseiro e de variadas e alguns anuncios referem ainda outras actividades. Ensina-
saber costura para trabalhar fora. O único aspecto em que o bispo não vam-se «bons costumes», moral, desenho, gramática francesa, gramá-
atentou no seu programa foi exact-amente aquele que mais prevalecen tica inglesa, tocar, cantar, manejo da casa, fazer toucados, fazer
na educação feminina; a música. Muitas moças sabiam tocar algum chapeus de palha, fazer meia, lavar filós, lavar chapeus de palha, lavar
instrumento e se conseguiam prender os maridos em casa faziam-no meias de seda, coser liso, preparar meias de seda.
certamente com os seus talentos musicais e disposìção para a dança. Mais realistas do que 0 bispo de Pernambuco o fora, os anuncian-
A situação da educação feminina só se alterou um pouco nas tes levavam em conta as necessidades do mercado; muitas moças
grandes cidades como o Rio de Janeiro e a Baía quando, com a ida precisavam de se preparar profissionalmente para ganharem a vida
da Corte para o Brasil e a abertura dos porros brasileiros, as exigen- pelo seu trabalho e assim várias tecnicas eram ensinadas. Claro que
cias se tornaram maiores pela influência europeia e principalmente as diferenças sociais ficavam bem marcadas pela clientela a quem estas
clevido ã presença de algumas estrangeiras que montaram os seus aulas ou colegios se destinavam. Comparemos dois anuncios coloca-
colegios femininos nas duas capitais. dos na Gazeta do Río dejaneiro.- «D. Catarina Jacob toma a liberdade
Atraves de um levantamento exaustivo dos anuncios colocados na de fazer ciente ao público que ela tem estabelecida uma academia
Gazeta do Río dejaneiro vimos que pelo menos 15 aulas ou colegios para insrrução de meninas na rua da Lapa, defronte da Exma. Duque-
se ofereciam para a educaçao feminina. Quantifìcando as materias sa, em que ensinará a ler, escrever e falar as linguas portuguesa e
leccionadas, chegamos aos seguintes resultados: inglesa gramaticalmente, toda a qualidade de costura e bordar, e o
manejo da casa››17. Jã na rua de Matacavalos (zona mais popular
que a rua da Lapa) uma mestra ensinava «a ler, escrever e contar,
Actividades N” de aulas que ensinavam fazer meia, coser, bordar de branco, e de oiro e prata, e matiz, mar-
car, fazer flores, enfeites, etc.››, alem da música e canto”. Certamente
coser 11 as alunas destas duas professoras pertenciam a grupos sociais distin-
bordar 11 tos, estando as primeiras mais interessadas nas artes «sociais›› e no
ler 10
governo da casa e as segundas na aquisição de aptidöes profissionais.
escrever 10
Alias, a descrição do regulamento da «academian dirigida por
contar 7
D. Catarina Jacob e os preços cobrados revelam bem a que clientela
falar português
falar inglês ela se destinava: «Cada menina rrarã cama completa, três toalhas de
música mão, um talher completo e copo de prata. Pagarão por menina 183000
marcar reis por mês, sendo a quarreis adiantados. Igualmente todas as pes-
dança soas que quiserem que as suas meninas aprendam música, dança e
gramática portuguesa desenho, será pago ã parte. Mandarão todos os sábados os seus
fazer enfeites criados ao colegio com roupa necessária para se fazer a mudança.
cortar e fazer vestidos Igualmente as pessoas que quiserem mandarão ao sábado de tarde,
fazer renda ou vespera de dia santo, buscar as suas meninas, contanto que às oito
engomar horas da noite do mesmo domingo ou dia santo se recolham ao
lingua francesa
fazer flores l\J l\. Jl\ .NL \.N›-län-lì\›Í>-U'\

17 Gazeta do Rio dejaneiro, ri" 2, 1815.


FONTE: Gazeta do Río dejaneiro 1” Jbrat, n" 53, 1318.
26 27
F.
colegio. Podera haver modificaçao a respeito de familias que pela Cava ao público que na sua instituiçao só se deseƒava «a boa ordem e
distancia de sua habitação lhe seja incómodo o suprir aos oito dias 1-egu1aridade››2°.
com roupa e outra coisa, para o que fara particular ajuste.›› Este Quanto ao ensino destinado aos meninos, falaremos a seu respeito
colegio começou a funcionar em Janeiro de 1813, mas muito em quando, num outro capitulo, examinarmos as carreiras que se abriam
breve a sua directora se viu obrigada a baixar os preços iniciais, na para os filhos pois, como ja dizia o bispo de Pernambuco, a ciência
verdade muito elevados, mesmo tratando-se de um internato. dos homens devia ser «proporcionada aos seus empregos».
Quem morava longe, numa propriedade rural nos arredores da
cidade, prefería muitas vezes contratar um sacerdote que, alem de
dizer missa na capela da casa, podia ensinar todas as crianças da
familia, meninos e meninas ao mesmo tempo.
Na cidade da Baia, em 1814, o director da aula «Desejo da Ciencia»
aceitava em sua casa «porcionistas de ambos os sexos» e comprome-
tia-se a educa-los «conforme todos os preceitos religiosos, morais e
politicos››19. O preço era um pouco mais baixo do que o inicialmente
proposto por D. Catarinajacob no Rio de janeiro, 12$80O reis mensais
pagos adiantadamente; «sera a casa obiigada a suprir com todos os
preparos de escrever e livros de principios, e não sera preciso levar
nada mais que a sua cama e roupa». Pelo anúncio colocado na gazeta
baiana ficamos na dúvida quanto ã instrução dirigida a cada um dos
sexos: «Lhes fara aprender a ler, escrever, aritmética pratica e teórica
por Bezout, gramática portuguesa uma vez que leiam sofrivelmente,
comercio segundo se ensinava em Lisboa na Aula dele, logo que
escrevam cursivo com algum desembaraço, e tenham conhecimentos
aritmeticos are proporçöes; frances, inglês, latim, havendo pelo menos
12 alunos que o aprendam; principios de música e cravo, e alem disto
para as meninas, costura, bordar de tear, meia e flores artifìciais» A
ambiguidade do anúncio não nos permite avaliar com clareza a ins-
trução destinada ao sexo feminino. É evidente que, se as primeiras
letras eram comuns aos dois sexos, o ensino de Comercio era sem
dúvida apenas destinado aos meninos, Mas participariam as alunas nas
liçöes de linguas e nas de música e cravo?
Uma inglesa abriu na Baia um Colegio de Educação de Meninas em
que se ensinava a lingua inglesa e em 1815 se prometía que, tão logo
houvesse número suficiente de inscritas, se daria inicio as aulas de
música e dança. Talvez o sistema britanico de educação fosse dema-
siado rigoroso para os costumes baianos pois, pouco depois de ins-
talado o colegio, a directora avisava ter despedido três educandas de
fora não só porque o pai mandara uma mensalidade de 1$280 reis por
cada uma, quando a taxa cobrada era de 1$600 reis, mas também
porque não obedeciam aos horarios estabelecidos. Ora, ela comuni-

1° made froum ao Bram, fu 36, 1s14. 2° raid., fi" 45, 1s13.


28 29
Y.,-

A questão da tutoría e a emancipação

Sendo a mae responsavel pela criaçao dos filhos are ã idade dos
5 anos e devendo o pai assumir os alimentos e o vestuario das crianças
a partir de então, assim como a sua educação, esta distribuição de
deveres ficava destruida quando um dos cônjuges morria. Importa
portanto analisar quem tomava as decisöes em relação aos menores
enquanto estes não atingiam a idade de 25 anos, ou se emancipavam
em virtude de casamento ou por carta regia.
Dar um tutor aos filhos menores só se tornava necessãrio por
morte do pai, pois caso fosse a mãe a falecer, o pai ficava como o
natural administrador dos bens dos menores, não se colocando assim
a questão da tutorial. Por outro lado, se o pai no seu testamento
deixava designada a pessoa que devia assumir o papel de tutor, a
sua decisão era acatada e o juiz dos Órfãos não precisava de, no prazo
de um mês, lhes dar um tutor de sua escolha. Os tutores testamentá-
rios tinham preferencia sobre todos os outros porque, na interpreta-
ção dos juristas da epoca, «sendo nomeados pelas pessoas, em quem
se presume maior afecto e amizade, e que maior interesse têm na
felicidade dos órfãos, deve supor-se que são os mais capazes de
administrarem bem a tutela e de desempenharem os pesados deveres
que ela impöe››2.
Quando não havia tutoría testamentaria, como deveria proceder o
juiz dos Órlãos? As Ordenaçôes do Reino davam clara preferencia ã
mãe, ou na falta desta ã avó, dentro de determinadas condiçöes: era

1 Sobre este assunto ver as Ordenapôes Filipinas, Livro I, tir. 88, referente ao juiz
dos Órlãos, que era o magistrado encarregado de proceder ao inventario dos bens
do casal e cuidar dos seus interesses. Sendo a mãe a morrer, 0 juiz deixava os bens
dos menores em poder do pai, «porque ele por Direito e seu legitimo administrador»
(§ 6).
2 Jose Pereira de Carvalho, Prímeiras iinbas do processo orƒanológico, 2” ed.,
Lisboa, 1816, p. 132, nota 210.

31
preciso que elas vivessem «l1onestamente››; que a mae nao tivesse concorrer na suplicante as circunstancias necessarias como mostra
voltado a casar; que se comprometessem a «bem e fielmente adminis- documento junro.››5
trarem os bens e pessoas de seus filhos e netos». A diferença entre uma e outra viúva significará ja uma mudança da
Mas a simples indicação do juiz dos Órfãos não era suficiente no mentalidade feminina no decorrer de três decadas, ou assentara ape-
caso da herança exceder os 60$000 reis, pois neste caso era necessa- nas numa diferença social, sendo a <<dona›› mais segura dos seus
rio pedir uma provisão de tutela ao monarca, atraves do Desembargo direitos de administradora do que aquela que o não era? Embora
do Paço. E estas petiçöes eram tão frequentes que os homens de leis, estas petiçöes não informem sobre o valor das heranças em jogo, e
no inicio do sec. XIX, divulgaram um modelo a ser utilizado pelas natural que quanto maior fosse o seu valor tanto mais a mãe Iutasse
requerentes: «Diz Fulana, viúva que ficou por falecimento de F, do pela sua gestão.
qual lhe ficaram dois filhos (ou filhas) por nome F de idade de... etc. e Nota-se, contudo, no fim do periodo colonial um maior desejo de
F de idade... etc. que se acham em companhia da suplicante, e os autonomia por parte das mães rutoras, embora nem sempre essa
educa, e lhe trata seus bens, e pessoas. Mas como aqueles excedem liberdade de gestão lhes fosse concedida, como podemos ver por
o valor de 60$0OO reis, e a suplicante deseja administra-los, assim uma provisão de 29 de Maio de 1815 em que o Principe Regente
como as pessoas de seus filhos, pois tem capacidade, e entendimento D. João indeferiu a petição de uma senhora para administrar os bens
para o fazer, e para isso necessita provisao. Pede a V. A. R. que vinculados de que a sua filha era herdeira «sem intervenção do juiz
atendendo ao referido se digne de lhe passar a referida provìsão, dos Órfãos, e sem o meio das arremataçöes em praça», por ser isso
com as cláusulas ponderadas. E. R. M.››5 contrario ao estipulado nas Ordenaçôes do Reino, Livro I, tir. 88, 23.
Na pratica, antes de ser divulgado este modelo pela imprensa, as Avida dos menores sem pai era em grande parte regulada pelo juiz
petiçôes eram redigidas de maneira mais ou menos simplificada. Ve- dos Órfãos sobretudo no que se referia ã pratica e costume da
jamos um exemplo da Capitanía do Piaui, de 1785; «Senhora. Diz «soldada››6. Quando as crianças chegavam à idade de 7 anos, o juiz
Micaela da Silva, viúva do capitão Jose Simöes Peniche, moradora na deveria lançar um pregão anunciando os órfãos que havia, não decla-
vila de Parnagua, que por falecimento do dito seu marido lhe ficaram rando contudo quem eram nem quem eram os pais. Quem estivesse
filhos menores dos quais a suplicante pretende ser tutora por não interessado em os ter em sua casa devia apresentar uma proposta de
haver outra pessoa que o possa ser e ser a mesma suplicante testa- soldada e ficaria com o menor quem fizesse a proposta mais alta. As
menteira do dito seu marido. P. a V. Maj.d° lhe faça mercê conceder- Ordenaçôes previam contudo que, sendo as mães ou avós agriculto-
-lhe provisão de tutela de seus filhos menores mandando-lha passar ras, elas tinham a preferencia no trabalho dos menores, desde que
por duas vias.››4 fossem viúvos e vivessem honestamente, devendo também pagar uma
Enquanto nesta petição a viúva pretende a tutoria por não haver soldada fixada a arbitrio do juiz.
outra pessoa que a pudesse assumir, uma moradora da capitania de Se as crianças fossem filhas de oficiais mecãnicos, seriam postas a
São Paulo, em 1817, apresenta-se como aquela que melhor podera aprender os oficios dos seus pais, ou outros para que mostrassem
gerir os bens dos órfãos; «Diz D. Ana Dionisia Vieira de Oliveira, viúva maior inclinação, «fazendo escrituras públicas com os mestres, em
do alferes António de Oliveira Franco, que por morte do dito seu que se obriguem a os dar por ensinados em aqueles oficios em certo
marido lhe ficaram lilhos menores os quais se acham em poder da tempo arrazoado». Muito embora, em relação ao Brasil do fim do
suplicante que os tera criado e educado como é seu dever; e porque periodo colonial, não tenhamos ainda encontrado nenhum exemplo
lhe ficaram bens daquele consorcio que perrencem aos menores os deste tipo de escritura, a pratica da soldada estava sem dúvida em
quais se poderão desencaminhar por serem administrados por pes- vigor e certamente explica a presença, em certos domicilios, de agre-
soas estranhas motivo por que, humildemente, suplica a V. Maj.d° lhe gados de menor idade, que ali, com a aprovação dos seus tutores e do
faça a graça conceder-lhe provisão para ser tutora de seus filhos visto juiz dos Orfãos, desempenhavam um certo número de serviços. É
evidente que, pelo texto das Ordenaçöes, só os plebeus podiam ser

3 Apéndice das petiçôes mars necessàrias (...), p. 125.


4 Arquivo I-Iistórico Ultramarino, doravante AHU, Capitanía do Piaui, Caixa 13, 5 ANJR, Caixa 94, pacote 1, documento 36.
doc. 11. 6 ordenaçäes Ffhpinm, uvm 1, m. ss, 13 a is.

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um anspeçada da 5° Companhia do 1° Regimento de Cavalaria do
apregoados para soldada. Âquelas crianças que fossem de condição Exército da Corte do Rio de Janeiro a encaminhar a sua petição em
nobre ser-lhes-ia atribuida uma quantia anual pelo juiz «para seu 1319: ele queria receber do testamenteiro do seu padrinho a quantia
mantimento, vestido e calçado e tudo o mais», que devia ser levada de 200$0OO reis, que este lhe legara «por esmola››'°. I a
em conta ao tutor. Embora por lei o casamento emancipasse, nem sempre na pratica
Sob o patrio poder ou sob a tutela de um tutor, o jovem só adquiria 05 juizes dos Órfãos concordavam em entregar a administração de
a capacidade de reger os seus próprios bens em tres siruaçöes: a
bens a individuos muito jovens. Francisco de Paula Santos, de 17
maioridade (25 anos); o casamento; por provisão de suplemento de anos, ao pretender tomar conta dos bens da sua mulher, achou mais
idade passada pela Mesa do Desembargo do Paço às moças depois de seguro pedir provisão porque o juiz dos Orfãos duvidava «da sua
completados os 18 anos e aos moços depois dos 20. habilidade pela falta de idade apesar de ja estar emancipado pela
Na documentação referente a esta instituição no periodo entre
lei, pois é casado››“.
1808 e 1822, 837 individuos do sexo masculino requereram essa Não vale a pena fornecer mais exemplos. Da analise das 837 peri-
capacidade contra apenas 122 jovens mulheres, o que parece indicar çöes masculinas visando a emancipação, destacam-se fundamental-
uma especificidade do quotidiano masculino: a necessidade de se mente duas situaçöes: a necessidade de autonomia para o
estabelecer por conta própria e de gerir os seus bens antes da idade desernpenho de uma actividade prolìssional ja exercida na prarica,
legal. mas cujos rendimentos por lei ainda não lhes pertenciam; e o desejo
É o que ressalta do requerimento de David Pamplona, natural de de gerir bens provenientes de heranças e legados, mesmo em relação
São Paulo mas morador no Rio de Janeiro em 1811; «se acha ha a individuos que ainda não tinham atingido os 20 anos exigidos para a
bastantes anos fora do patrio poder, e por consequência obrigado a concessão de provisão de suplemento de idade. Um requerente che-
cogitar os meios da sua subsistencia, em virtude de cuja diligencia tem gou inclusive a argumentar; «nele supre a natureza prematura a capa-
adquirido alguns tenues bens, que possui». Uma razão mais forte cidade, que nem sempre traz a longevidade; e neste seculo de luzes se
ainda era a perseguição dos credores do pai que queriam lançar atende para os actos civis mais ao desenvolvìmento da natureza do
mão dos seus haveres por ainda não estar emancipado. Nesta situação que a certo prazo de idade, que os antigos legisladores consideraram
o pai concordava com a emancipação, a fim de que o filho pudesse como veículo de capacidade››12.
usufruir em paz aquilo que ganhara com 0 seu trabalho?. A situação feminina era completamente distinta, ate porque na
Um outro jovem, natural da comarca do Rio das Mortes mas resi- pratica os 25 anos pouco adiantavam para a emancipação do patrio
dindo na Corte desde 1813, estava em 1820 empregado como «caixei- poder se a jovem continuava solteira e a morar em casa dos pais.
ro de fazenda seca», actividade essa de que tirava a sua subsistencia Seria de supor que, dada a legislação em vigor, a emancipação das
«sem que seu pai residente naquela comarca lhe haja dado alimentos, mulheres com mais de 25 anos não precisasse de ser formalizada,
ou feíto alguma assistência com os rendimentos de sua legitima ma- bastando para os actos jurídicos da vida quotidiana a simples apre-
terna, que usufrui››. A emancipação aos 21 anos permitir-lhe-ia passar sentação de uma certidão de baptismo comprobatória da idade alega-
a administrar essa herançaa. da. Mas tal não ocorria e as mulheres com idade superior aquela ainda
Tambem por querer tomar posse da «módica legítima» que lhe se pedia que justifìcassem por meio de testemunhas a sua «capacidade
cabía por morte dos pais e deixar de ser tutelado pelo irmão, um para bem se regerem››.
jovem de 19 anos, natural de S. João d'el-rei, na Capitanía de Minas O patrio poder prolongava-se, em relação às fìlhas, muito alem da
Gerais, foi levado a pedir a sua emancipação «para melhor adiantar e maioridade legal, como podemos ver pela seguinte petição; «Diz Ana
promover os seus interesses». Estava então «empregado na arte de Benedita Rosa, filha legitima de Manuel da Rosa Andrade e Vitória
Farmacia» que exercia numa botica daquela vilag. Maria Andrade, que ela suplicante esta na companhia do dito seu
A emancipação facilitava o recebimento imediato não só de heran- pai e porque e falecida sua mãe, e queira haver o que lhe pertença
ças como também de simples legados e foi essa motivação que levou
1° lbid., Caixa 111, pacote 1, documento 12.
7 ANJR, Desembargo do Paço, Caixa 108, pacote 3, doc, 75. H Ibid., Caixa 111, pacote 2, documento 45.
8 Ibid, Caixa 112, pacote 1, documento 11. 12 Ibid., Caixa 110, pacote 2, documento 59.
9 Ibid, Caixa 109, pacote 2, documento 50.
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de legitima materna, pois se acha com 35 anos como mostra a certidão os 25 anos, embora em alguns casos fosse feíto 0 requerimento com
junta, quer obter de Vossa Majestade a graça de emancipação para o idade inferior a 18 anos. Os 51,8% computados não incluem a
dito fim, pois alem da idade tem toda a capacidade para bem reger os documentação referente às filhas ilegitimas, pois estas encontravam-se
seus bens» Ou seja, só quando sobreveio a oportunidade de gerir a em situaçöes bem especificas, como veremos noutro capitulo, nem às
herança esta mulher de 35 anos se libertou formalmente do patrio órfãs de pai e mãe.
poder, o que mostra de maneira evidente que, sem independencia Dos 62 requerimentos pedindo provisão de suplemento de idade,
económica e vivendo na casa paterna, era muito dificil ã mulher sol- 29 foram redigidos por morte do pai e 17 por morte da mãe. Neste
teira emancipar-se efectivamente. Outra também só requereu a eman- último caso o suplemento de idade era concedido mediante escritura
cipação aos 42 anos, depois do falecimento da mãe”. pública de consentimento paterno, não ocorrendo o mesmo (salvo
E, por vezes, mesmo esta emancipação tardía provocava conflitos raras excepçöes) na situação inversa. Quando morria o pai, a Mesa do
com os pais. Uma jovem de 27 anos, solteira, quis emancipar-se «para Desembargo do Paço apenas exigía que fosse entregue a prova do
segura poder reger-se e governar-se e contratar segundo lhe e prome- óbito. Percebe-se assim, na pratica, uma nítida assimetria, decorrente
tido em Direito». Logo o pai conrrapôs um requerimento contando da supremacía do poder paterno na familia do Antigo Regime; a morte
uma complicada história de familia; «Diz Domingos de Sousa Maia, da mãe não precisava de ser provada, mas exigía-se o consentimento
que â sua noticia chega que uma filha sua de nome Rosa Maria de escrito do pai; a morte do pai precisava de ser provada, mas não se
Sousa Maia intenta obter por este Regio Tribunal sua emancipação, exigía o consentimento escrito da mãe.
sem licenpa de seus pais, seduzida por um seu irmão Francisco de Uma moça teve, alias, dificuldade em provar o öbito paterno pois o
Sousa Maia, filho do suplicante, para fins sinistros por ser um homem pai, que saira da Corte do Rio de Janeiro para se estabelecer em Cabo
de pessimos costumes, e insubordinado a seus pais, que os tem Frio, adoecera no caminho e falecera na fazenda de um certo coronel
insultado de tal forma a ponto de se ver o suplicante obrigado a sair Marinho, onde fora enterrado sem que o padre da freguesia fizesse o
de sua casa na chácara das Laranjeiras com sua familia ha mais de seis devido assento de óbito. Alegava a jovem a veracidade da morte do pai
meses, e por este motivo se viu obrigado a queixar-se a S. A. R., que dizendo que, quando a noticia chegara ao Rio de Janeiro, algumas
mandou expedir aviso em 13 de Março do presente ano (1822) ao igrejas a cujas irmandades o seu pai pertencera tinham dado os sinais
Intendente Geral da Policia para o fazer regressar ao continente do de luto costumados e que a sua mãe tinha passado a ser designada
Rio Grande para exercer o seu emprego para onde foi despachado. como viúva”.
E porque pode obter a dira sua filha a emancipação por este Regio Algumas situaçöes especificas, como o abandono paterno, transpa-
Tribunal por meio subrepticio, sem que os suplicantes seuspais sejam recem na documentação; Ana Joaquina, filha de uma portuguesa e de
ouuidos, pede a V. A. R. se digne mandar juntar esta aos requerimenros um frances, contava que seu pai se ausentara sem que se soubesse
da suplicada sua filha, a fim de se lhe não deferir sem ser ouvido o onde se encontrava, «ficando a suplicante na Companhia de sua mãe
suplicante, e dizer as dúvidas que se oferecem sobre a pretensão da sendo de tenra idade». Fora esta que a criara e educara e com o seu
suplicada» E de tal força foi a sua intervenção que efectivamente a consentimento pretendía emancipar-se porque, por doação, recebera
petição da filha foi indeferida. Este caso mostra como, no Antigo bens patrimoniais no valor de 3000 cruzados, com os quais ja se podia
Regime, a expressão da lei se esfumava perante a intervenção das regerló.
autoridades. Dado que a jovem não era mentecapta, pois o pai a isso A utilização deste argumento financeiro revela que a sociedade
não se refere mostrando-a apenas influenciada pelo irmão, não havia colonial encarava com mais facilidade a emancìpação da mulher sol-
razão nenhuma para que a emancipação não lhe fosse concedida, uma teira quando esta, por doação, herança ou legado, possuia a garantia
vez que tinha a idade legal”. da sua sobrevivencia.
O maior número de petiçôes femininas, contudo, solicitava provi- Tal como o abandono paterno, também a separação dos pais podia
são de suplemento de idade, ou seja, referia-se a moças entre os 18 e dificultar a concessão da emancipação. Quando Genoina Candida

13 Ibid., Caixa 105. Pacote 2, documento 49 e Caixa 121, pacote 2, documento 43. 15 lbid, Caixa 115, pacote 1, documento 21.
14 Ibial, Caixa 122, pacote 1, documento 15, grifos meus. 16 Ibiai, Caixa 105, pacote 5, documento 7.

56 57
É
pediu a sua, depois da morte da mãe, foi-lhe exigido o documento do
dos Órfãos, passava a reger a vida da criança e do jovem até este
consentimento paterno, ao que ela respondeu que os pais se tinham
alcançar a maioridade.
separado, ficando ela a morar com a mãe. Ignorava o paradeiro do pai
Pode ainda ser observada outra assimetria nas Ordenapôes
para lhe poder pedir a autorização. Para que não lhe negassem a carta
Fihpínas em relação ao casamento de menores. A leitura do tit. 22
de emancipação lembrava que já tinha pago por ela os novos direitos,
do Livro V revela-nos que só estava em causa a autorização de «mulher
assim como outros emolumentos".
virgem, ou viúva honesta» com menos de 25 anos que estivesse a
Alguns conflitos entre mães e filhas permeiam esta documentação.
morar em casa dos pais ou de qualquer outra pessoa que a tivesse
Uma jovem de 19 anos, residente na Baia e instruída por alguém
em seu poder, sem qualquer referência aos filhos. Vemos assim que a
acerca das disposiçöes das Ordenapôes do Reino, queixava-se de
situação da jovem era muito diferente da do iovem pois até uma viúva,
que a sua mãe, por morte do pai, não cumprira o prazo de 50 dias
que pelo seu casamento já devia ser considerada emancipada, se
para abrir e fechar inventário e «para dar dos bens partilha aos filhos
estivesse a morar em casa dos pais ou de patentes, continuar-lhes-ia
menores no Juízo dos Órfãos daquela cidade». Além disso, dera-lhe
submissa se quisesse contrair novo matrimónio.
tutor, ficando «de posse dos bens de todo o Casal». Ora a filha queria
Quando porém se fala da punição da jovem transgressora, já não se
que as partilhas fossem feitas e justificava com testemunhas ter siso e
faz menção à viúva, até porque a situação desta em relação ao pam'-
capacidade para reger a sua pessoa e os seus bens. Nesta petição
mónio familiar era diferente, uma vez que tinha recebido um dote para
percebemos que alguém estava a orientar a moça no sentido de pedir
0 primeiro casamento. Diz o tit. 88 do Livro IV; «E se alguma filha,
a emancipação, pois ela diz, num determinado trecho, que a mãe
antes de ter 25 anos, dormir com algum homem, ou se casar sem
apenas dera inicio ao inventario sem ter chegado às partilhas, quando
mandado de seu pai, ou de sua mãe, não tendo pai, por esse mesmo
isso não dependía da mãe mas sim da maior ou menor morosidade do
feíto será deserdada e excluida de todos os bens e fazenda do pai, ou
juiz dos Órfãos. Haveria algum pretendente com pressa de a ver
mãe, posto que não seja por eles deserdada expressamente»
emancipada e com a herança nas mãos?18
Há contudo um pormenor curioso nas Ordenaçôes Fz`lípz'nas que
Um problema amoroso estava claramente na raiz de um outro
certamente explica a ausência de filhas deserdadas na documentação
conflito entre mãe e filha, levando a primeira a precaverse junto do
do Brasil colonial; a filha só seria efectivamente punida com a perda
Desembargo do Paço com uma petição em que contava a seguinte
da herança se 0 casamento por ela contraído sem a autorização pa-
història; «vivendo honestamente» no Rio de Janeiro com duas filhas
terna fosse pior do que aquele que 0 pai, ou a mãe, para ela teria
que lhe tinham ficado do marido, reputado por morto, uma delas, de
podido ajustar. Provando-se que «casou melhor, e mais honradamen-
16 anos, «seduzida por um infame raptador se ausentou clandestina
te, do que seu pai ou sua mãe a podiam casar, não fica deserdada e
mente de sua casa», e depois de grandes diligências por parte da mãe
excluida de todos os bens e fazenda, como acima dito é, mas somente
foi tirada de casa do sedutor «e posta em segurança na Casa de
o pai, ou a mãe a poderão deserdar, se quiserem, da metade da
Recolhimento da Misericordia». Mas constava â mãe que a filha,
legítima, que lhe pertencia directamente por morte de cada um
«aconselhada de maus instintos», pretendía pedir emancipação e su-
deles››. Na prática, a deserção nunca foi utilizada no fim do período
plemento de idade. Esta precaução verificouse ser desnecessãria pois
colonial brasileiro como uma forma de punição da filha desrespeita-
a moça não encaminhou qualquer pedido ao Desembargo do Paço”.
dora da autoridade paterna, ou materna na ausência daquelazo.
Observamos assim que na sociedade colonial a morte de um dos
Com o ministerio pombalino a assimetria desaparece e neste as-
cônjuges, ou mesmo de ambos, acarretava uma alteração da vida
pecto, como em tantos outros, observa-se o progresso das luzes e da
familiar, sobretudo quando havia filhos menores. Numa assimetria
racionalidade na legislação então vigente”. A carta de lei de 19 de
característica do patriarcalismo, a perturbação era maior no caso de
morte do pai pois a presença de um tutor e de um magistrado, o juiz
2° Ordenapôes FiIt'px'nas, Livro V, tit. 22. Era também punido aquele que casasse
com uma menor sem consentirnenio do pai, ou responsãvel por ela, com a perda de
«toda a sua fazenda para aquele em cujo poder a mulher estava», e mais com o
17 Ibid., Caixa 112, pacote 2, documento 46.
degredo por um ano para África.
18 Ibid., Caixa 105, pacote 3, documento 72.
21 Battolomeu Coelho Neves Rebelo, no seu Discurso sobre a inutilidade dos
19 Ibfd, Caixa 120, pacote 3, documento 80.
e.¶›onsat's dosƒïlbos ceiebrados sem consenrimenio dos pais dedicado ao marquês de

58 M 59
Junho de 1775, embora dissesse respeito sobretudo ao rapto por do Faíai, ter servido de lacaio ao desembargador Francisco Antonio de
sedução, determinava, no seu item V, que incorriam nas penas de Oliveira Brejo, no Rio de Janeiro» Alem disso não tinha bens com que
«desnaturalização›› e seriam considerados inabeís para herdar «os pudesse sustentar a sua filha. O pai de D. Paula ressaltou a desigual-
filhos, ou filhasfamília, pelos mesmos factos de casarem sem consen- dade de condição e fortuna dizendo que ele era bacharel formado,
timento de seus pais, tutores ou curadores». Esta determinação foi condecorado com o posto de mestre de campo. Alem disso possuía
contudo moderada pela lei de 29 de Novembro do mesmo ano. dois engenhos e bens com os quais podía dotar cada uma das filhas
Nesta 0 rei, prevendo que, como mostrava a experiencia, alguns com 50 000 cruzados, ou seja 20 OO0$000 reis.
pais «negavam absoluta, e obstinadamente os consentimentos», ainda Por seu lado, o pretendente Manuel Ignacio Lisboa, com testemu-
que fossem para os mais úteis casamentos, transformando assim 0 nhos dos seus conterrâneos, negou que houvesse mulatos na família,
poder doméstico num <<despotìsmo›› que prejudicava as familias e 0 que o seu pai tivesse sido lacaio, pois apenas servira como criado
incremento da população, do qual dependía «a principal força do grave ã mulher e filhas do mencionado desembargador, as quais na-
Estado», propôs-se moderar «os abusos, e tíranias do poder quele momento serviam a Sua Majestade. Dentro da hierarquia da
particular» através do conhecimento das razöes por que os pais ne› críadagem parece haver uma diferença substancial entre ser lacaio e
gavam a licença para os matrimonios dos filhos, pois importava ao criado grave. Alem disso, o pai era então comandante e capitão de um
Estado «comer o poder paterno nos justos, e racionaveis limites». forte por nomeação real. Alegou ainda nunca ter exercido oficio me-
Numa sociedade altamente hierarquizada como era a do Antigo cânico, sendo capitão do navío Trindade e tendo ao mesmo tempo
Regime, o recurso dos filhos menores para suprir a falta de autoriza- negociaçöes em terra, 0 que lhe permitía «decentemente tratar sua
ção paterna era apresentado a instancias distintas conforme a sua mulher».
condíção social. Quem pertencia ã primeira nobreza, ou seja aquela Provou-se ainda que o pai da moça, «posto fosse bacharel formado
que administrava bens da Coroa e tinha pelo menos o foro de moço na Universidade de Coimbra, não usara jamais das suas letras», fora
fidalgo, devia dirigir-se directamente ao rei. Quanto à restante nobre- efectivamente mestre de campo «mas sem soldados», e por esse
za, recorría à Mesa do Desembargo do Paço, «a qual informada das motivo se lhe dera baixa «por ordem de Sua Majestade assim como
qualidades das familias, e das conveniências dos casamentos, e ouvi- a todos os mais que não tinham terço efectivo, e só eram nomeados
dos, em termo breve, e sumario, os pais, mães, tutores, ou curadores», por um mero arbitrio dos governadores». Quanto aos dois engenhos
concederia ou negaria a autorização para o casamento. Tambem os mencionados, um, próximo da cidade, «andava em praça para ser
negociantes de grosso trato e as pessoas nobílitadas por cartas regias pago do que ele devia a quem comprou o mesmo engenho, estando
recorriam ao mesmo tribunal. Quanto às «pessoas da corporação, e ha um ano sem trabalhar, arruinadíssimo, tendo vendido escravos,
gremios dos artífices, e das ocupaçöes da plebe››, os recursos seriam móveis, e até alfaia de prata da capela». Desta situação económica
apresentados simplesmente às justiças da comarca. tinha perfeito conhecimento o ouvidor informante pois fora juiz da
Foi o ouvidor geral do Cível, cargo da Relação da Baia, 0 encarre- execução como conservador dos Moedeíros. Quanto ao outro enge-
gado pelo Desembargador do Paço, em Agosto de 1796, de informar 0 nho, «são umas terras no distrito da vila de Cachoeira, não tendo nem
requerimento de D. Paula Inacia de Oliveira em que pedía licença para cobres nem os escravos necessarios para o fazer trabalhar››_ Dele não
casar com Manuel Ignacio Lisboa «visto seu pai lho não permitir-»22. se tirava o menor rendimento. Das propriedades de casas, umas acha-
O pai da moça, ouvido por escrito, disse; «não convinha no casa- vam-se penhoradas e outras ja arrematadas¦ «são imensas as dìvidas e
mento por ser 0 pai do pretendente tido e havido por mulato da ilha execuçöes ja aparelhadas, e mal poderão chegar os bens para
pagamento».
Pombal (Lisboa, 1773), defendía a simetría na legislação; «Não se estabelecem estas Contra o pai da moça, alem de que estava praticamente arruinado,
leis em outro motivo mais, do que aquele principio natural da obediência devída aos alegavase ainda que tinha conduta irregular e iíbertina, «tendo ha
pais, e como este é genérico, que compreende tanto os filhos, como as fìlhas, por
nascer da piedade, e reverencia, com que se devem honrar os progenitores, 0 qual
anos abandonado sua mulher e filhas, não cuidando no seu sustento
não obriga mais as filhas, do que os filhos, também a disposição se deve considerar e vestuario». Não havia portanto desigualdade de fortunas nem de
genérica» (pp. 147-148). condiçöes, tanto mais que o avô paterno e 0 materno da rnoça tinham
22 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, doravante ANTI', Papeis do Brasil, víndo do Reino para o Brasil como simples «moços de loja e
Avulsos 3, n° 5. caixeíros», embora mais tarde se tivessem tornado negocíantes.
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A mae, separada do marido e com as lilhas sob sua administraçao, de e as pressoes do tio e tutor nao tinham demovido a jovem apaixo-
estava de acordo com o casamento e deu o seu consentímento por nada do seu intento; «chamando a suplicante e as suas irmãs depois
escrito. O ouvidor do Civel lembra ainda que a jovem tinha 23 anos «e da morte de seu pai, e dizendo-lhes que as queria casar, e que apre-
logo que complete os 25 podera casar segundo lhe é permitido, só sentaria rol de nomes de homens que lhes poderiam servir de maridos
com a circunstancia de dever por reverencia pedir a licença paterna, para elas escolherem, lhe responden a suplicante que para ela era
seja-lhe esta concedida, ou recusada››. Portanto, no fundo, o facto de trabalho escusado, porque ja tinha escolhido o suplicante».
o voto deste membro da Relação e de o do chanceler terem sido Os dois noivos, conhecedores da legislação, mas tentando evitar a
vencidos, achando aquele Tribunal que não se devia permitir a licen- demora em Lisboa, pediam ao regente que expedisse ordem ao vice-
ça, pouca importancia teria se o Desembargo do Paço seguísse aquele -rei e capitão-general da Capitanía do Rio de Janeiro para que, <<fazen-
parecer, pois dentro em breve poderia a jovem casar-se com quem do averiguar os ponderados motivos, e achando verdadeira a súplica»,
entendesse, sendo a licença paterna aos 25 anos mera formalidade pusesse termo a «tão injusta denegação», podendo os requerentes
resultante do respeito filial. «realizar os seus justos desejos››.
Foi também com base na legislação de inspiração pombalina que Foi pedida a informação ao vice-rei a 17 de Novembro de 1807, mas
Manuel Bernardes Pereira da Veiga e D. Matilde Carolina Adelaide da com a ida da Corte para o Rio e as mudanças administrativas dela
Silva Velho, moradores no Rio de Janeiro, dirigiram uma petição ao decorrentes não foi possivel localizar a resposta ao pedido.
regente D. João, em 1807, contra a «vio1ência›› exercida pelo tio e De qualquer modo, este exemplo mostra-nos como, na pratica, a
tutor da moça, o bem conhecido negociante Amaro Velho da Silva, legíslação de ínspiração pombalina teve consequências visíveis nos
ao querer obstar ao casamento que ambos desejavam «e que nada tem ajustes matrímoniais e no peso da autoridade paterna ou tutorial na
de contrario às cláusulas consideradas das leis de 6 de Outubro de celebração dos casamentos.
1754 e 29 de Novembro de 1775, não havendo entre os contraentes A documentação revela ainda que a autorízação do juiz dos Órfãos
desigualdade que os inabilite ao consórcío››25. Manuel era medico também era requerida, mesmo havendo o consentímento dos tutores.
«vantajosamente estabelecido na cidade do Rio de Janeiro» e, alem No periodo colonial este magistrado desempenhava, como vimos ja,
disso, recebera do Regente a mercê do oficio de escrívão da Ouvidoria um papel de grande relevancia pois a ele cabiam as decisöes em
de Sabara, o qual se encontrava arrendado. Isto constituía um relação aos bens dos menores. Assim se compreende que um certo
<<estabelecimento›› proporcionado ã legitima de 150 O00 cruzados, tenente, casado com urna örfã «sem obter licença do juiz dos Órfãos»,
ou seja 60 000$000 reis, que D. Matilde recebera por morte de seu o que fizera «por ignorancia», tenha resolvido regularizar a situação
pai, Manuel Velho da Silva. de maneira a poder administrar a legítima da mulher, pedíndo ao
Em vida este pretendera casar a filha com um negociante da sua Desembargo do Paço uma provisão que suprisse aquela licença me-
escolha, mas D. Matilde assegurara-lhe que só casaria com Manuel, diante uma carta de emancipaçãozì.
com o que a mãe concordara. Morto o pai, o tio e tutor, «que tinha A relação entre os menores e os juizes dos Órfaos era por vezes
levado muito a mal esta repugnäncía», procurara por todos os meios conflituosa. Sabemos de um caso de um jovem, cujos pais eram ja
evitar a pretendida união com o medico, «a ponto de até fazer mudar a falecidos, que aos 16 anos requereu ao juiz licença para se casar
vontade da mãe da suplicante, por mera condescendência, e influxo com uma moça pobre, branca, de 14 anos e filha de pais honrados.
que conserva na casa em razão do comercio, e adminístração, sem O juiz negou-lha, mas ele casou assim mesmo e exigiu depois a entre-
atender às consequências de uma união contraria aos sentimentos e ga da sua legitima uma vez que, pela lei, o casamento emancipava. Para
vontade da suplicante». maior garantia, encaminhou uma petição de provisão de emancipação
Vemos assim que, no inicio do sec. XIX, o casamento por amor já ao Desembargo do Paço, a qual lhe foi negada, com o despacho de
coexistia com o casamento por conveniencia, desde que não houvesse que deveria esperar pelos 25 anos, talvez porque as partílhas por
uma marcada desigualdade social entre os enamorados". A autorida- morte da mãe ainda não estivessem concluidas e porque se tratava
de uma herança avultada. Na sua petìção o jovem pedira, enquanto se
23 AHU, Capitanía do Rio de Janeiro, Caixa 245, documento 17.
24 Ver 0 artigo de Adeline Daumard, «Affaire, amour, affection: le mariage dans la
sociéte bourgeoise au XIXè'““ siècle», Romantisme, 68; 33-47, 1990. 25 ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 115, pacote 3, documento 91A.

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Tr tao renhida, e revestida de circunstancias tao agravantes.›› O padre
não linalizasse a divisão dos bens, uma morada de casas, onde pudes-
se víver com a mulher, uma escrava para os servir e «a assistência que Portugal actuou como advogado de Manuel José Viana, o qual, «de-
parecer justa para o sustento para não perecerem de fome››26. pois da decisão de cinco, ou seis recursos e de uma provisão de
Em relação ã pratica matrimonial de menores, constatamos que a emancipação» de D. Isabel, finalmente se casou. Mas nem assim ter-
atitude dos representantes da Igreja e a das autoridades civis parecía minaram os conflitos: «Este casamento arrastou mil desordens princi-
divergir quanto ã importancia da autorízaçãoz-"'. Enquanto os primei- piando por alegar-se que o despacho em consequência do qual se
ros se mostram mais atentos à certidão de baptismo e ã prova de haviam casado aqueles litigantes era falso.›› E novamente «sumaríos,
solteíro ou viüvo a fim de impedir 0 crime de bigarnia, as segundas devassas, recursos à Coroa de ambos os partidos››5°.
dao apoío as familias nas suas concertaçöes matrímoniais. Na Capita- Nas camadas mais populares a autorização para o casamento de
nía de São Paulo, em 1799, Faustino Rodrigues Teixeira, «homem menores não provocava tantos conflitos com os pais ou tutores como
andante», chegou ã cidade de São Paulo com Helena de Sousa, decla- entre as familias nobres e abastadas. Um caso mais problemático
rando ao vìgario estarem ja contratados para se casarem noutra fre- surgiu-nos, contudo, na documentação da Capitanía de São Paulo.
guesia e pedíndo, sem qualquer ínibição, para se receberem logo, pois Uma mulata, filha de uma mãe que fora cativa, estava ajustada para
ela viera «fugída da casa de seus pais» e estes poderiam persegui-la. casar «com autoridade de seus pais» com António, também mulato e
Este pedido não parece ter encontrado qualquer oposição por parte filho de uma ex-escrava. Todos os papéis estavam prontos, não havia
do sacerdote”. impedimentos, mas o tutor do noivo «entrou a negar a licença, que se
Em contrapartida lemos uma carta do governador da mesma Capi- diz necessãría, por não ter o dito sujeito completado 17 anos de idade,
tanía, Lobo de Saldanha, ao capitão-mor da vila de Itu, em 1780; «Fea quando o Juizo dos Órfãos havia dado a dita licença pela sua parte».
V. Mce. muito bem em prender a José da Silva Guimarães em cuja Entretanto aquele tutor abandonara a tutoría e fora nomeado outro,
captura 0 conservará seguro e lha gravara com ferros, no caso de mas 0 novo ainda não prestara juramento porque o juiz dos Órfãos
prosseguír no intento de querer casar com essa moça contra a vonta- estava doente. A mulata de 15 anos pedia então para que o juiz ordi-
de de seus pais, e embaraça o casamento que com ela pretende fazer nario recebesse aquele juramento, alegando que ela «não pode ter
Salvador Martins.>›28 demorado 0 cumprimento do seu consorcio», provavelmente por se
A perseguição, por parte das autoridades civis ou da familia, podia encontrar gravida. Não ha aqui qualquer menção ã razão que poderia
ocorrer mesmo depois de celebrado o casamento na igreja. Numa ter o antigo tutor para negar a autorização de os dois jovens mulatos
petição, uma moradora do distrito de S. João de Itaborai, filha de se casarem uma vez que ambos eram de igual condição socialã 1.
sargento-mor, dizia que, tendo casado sem consentímento do pai,
este movera um processo judicial ao marido, obrigando 0 casal a sair
da cidade do Rio de Janeiro para outra localidade 9.
Frequentemente os casamentos contra a vontade da família davam
orígem a conflitos judiciais de longa duração, como aquele descrito
no Recife pelo padre Bernardo Luis Ferreira Portugal a propósito da
pretensão de Manuel Jose Viana de casar com D. Isabel Maria dos Reis,
sobrinha dos padres António Ferreira Maciel e Basilio Aranha do
Espirito Santo: «Este negócio tomou uma face terrivel, complicou-se
com mil pleitos, e nunca houve nos Auditorios da América uma causa

26 1br'd.,caixa 111, pacøte 1, døcumemo is.


27 Ver o meu livro Sistema de casamento no Brasil colonial, S. Paulo, T. A.
Queiroz, 1984, pp. 117-122. 5° Sobre este clérigo ver David Higgs e Guilherme Pereira das Neves, «O oportu-
28 Documentos interessantes para a brlstóría e costumes de S. Paulo, doravante nismo da historiografìa: o padre Bernardo Luís Ferreira Portugal», Anais da Socie-
DI, voi. 82, p. 100. dade Brasileira de Pesquisa Histórica (S. Paulo) 8: 179-184, 1989.
29 ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 224, pacote 2, documento 67. 5' Ass?, ordem 570, Lam 93.

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3
Casamento e dote

«Se queres bem casar, casa com teu igual», dizia um velho ditado
português. E este principio de igualdade prevaleceu, se nem sempre
no que se referia a idade dos cônjuges, pelo menos em relação à
igualdade social. Casamentos desiguais do ponto de vista social conti-
nuaram a ser mal vistos na colónia e aqueles que não obedeciam às
regras implícitas na escolha do futuro cônjuge enfrentavarn a conde-
nação da parentela.
Na obra do genealogista Pedro Taques de Almeida Paes Leme, o
principio da igualdade de condição guiava os seus comentarios sobre
as alianças matrímoniais das principais familias da Capitanía de São
Paulo. Acerca de um certo João Pires de Campos escrevia: «levado só
do indesculpavel apetite e infeliz destino de sua sorte, esquecido das
obrigaçöes do nobre sangue, desposara uma mulata, causando um
geral luto de sentimento aos seus parentes que, lamentando a injú-
ria, lhe não puderam atalhar o dano››1.
Por vezes recorría a familia ã autoridade do governador para impe-
dir um casamento desigual. Ao ter conhecimento da «desordem›› que
pretendía cometer um individuo da vila de Jacareï, na Capitania de São
Paulo, casando com uma mulata, o governador não só mandou pren-
der esta, como enviou ordens para que a obrigassem a assinar um
termo de que não casaria com o dito individuo, devendo sair para
fora da Capitanía no prazo de 10 dias. Quanto ao noivo, foi-lhe inti-
mado que não casasse com a mulata nem com qualquer outra pessoa
que desacreditasse os seus parentesz.
Mas, como estes casamentos em que havia desigualdade racial eram
raros na sociedade colonial (embora fossem muito comuns as uniöes

1 Afonso de E. Taunay, «Pedro Taques e a sua obra», prefãcio a Pedro Taques de


Almeida Paes Leme, Infilrmapâo sobre as minas de S. Paulo. A expuísäo dosjesuítas
do colégio de S. Pardo, S. Paulo, s. d., p.43.
2 Dt,vø1. sz, p. vs.
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_

ílegitimas entre brancos e mulheres de cor), a questao da igualdade mílicíano. E termínava dizendo; «entre o suplicante e o suplícado
social era mais frequentemente colocada no interior da população não ha nem se pode considerar a menor desigualdade, antes os con-
branca, dividida em dois grandes grupos, os plebeus (ou mecâni- traentes são em tudo iguaís, e ainda da parte do suplicante se da maior
cos) e os nobres. Por vezes mesmo, em situaçöes de crise, dis- nobreza, visto que seu pai nunca mediu as fazendas da sua loja, como
cutiam-se os ínfimos detalhes e avaliava-se a igualdade social dos aconteceu ao suplícado».
futuros cônjuges. Alem da igualdade social, exígiria a sociedade colonial a igualdade
Pela lei de 29 de Novembro de 1775 foi dada a possibilidade aos de fortunas? A pratica do dote assumiu formas diversas ao longo dos
casais que pretendessem contrair matrimonio sem o consentimento três seculos de colonização portuguesa no Brasil e no fim do período
paterno de recorrer ao rei mediante a intervenção do Desembargo do colonial, em que ja não havia a escassez de mulheres brancas caracte-
Paço, desde que provassem haver igualdade de condição. ristíca dos seculos anteriores e em que as actividades profissíonais dos
Com esta base legal encaminhou Luis jose Sabino, morador na homens se tinham diversificado, o dote continuava a ser dado às
cidade do Para, uma petíção a raínha em 1785, queixando-se de que moças para ajudar o estabelecimento do jovem casal, mas ja não era
o pai da moça com quem contraíra esponsais se recusara depois a tão crucial para o casamento nem exigía tão grandes sacrificios da
deixar celebrar o matrimónio. Ao informar sobre 0 assunto um antìgo parte dos pais4.
governador daquela Capitanía que se encontrava então em Lisboa, este De qualquer modo o dote era sempre, do ponto de vista da moça
afirma «a nenhuma diferença que entre si têm e reconhecem os mes- que o recebia, uma antecípação cla sua «legitíma››, isto e, da parte da
mos litígantes, enquanto as pessoas, ocupaçöes e empregos››5. herança que lhe cabería por morte de cada um dos pais. Como 0
É interessante observar alguns pontos da argumentação de Luis sistema português da herança implícava a igualdade entre os herdei-
Jose Sabino quando pretende provar que, se alguma desigualdade ros, por ocasíão dos inventarios e partílhas teria que se proceder a um
social existia entre ele e o pai da moça, Bento Alves da Silva, ela lhe ajuste final de contas (a «colação››). Assim, os dotes raramente exce-
era favorável. O pai de Luis Jose era «homem de negócio e mercador», diam em valor aquilo que os pais calculavam ser o quinhão das fìlhas
mas ao mais alto nivel dentro da classe mercantil, uma vez que era por morte deles e observa-se ainda que, na viragem do séc. XVHI para
negociante «de grosso trato». Quanto isso não bastasse, era ainda o sec. XIX, os pais tinham deixado de utilizar as suas «terças››, ou seja,
alferes de Infantaria Auxiliar, «razão por que goza, e tem as mesmas a terça parte da sua meação de que podiam dispor livremente, para
honras, e nobreza, que é dada aos cavaleiros››. A sua condíção nobre completar ou melhorar 0 dote da primeira filha que casasse, como
era ainda atestada pelo facto de ele próprío ja ter servido de almotacel, ocorreu no sec. XVII e na primeira metade do sec. XVII15.
«cargo que nas cidades se costuma só conferir aquelas pessoas que Podemos conhecer os dotes recebidos pelas filhas quando se ca-
são constituidas em notoria nobreza». savam através de três tipos de documentos; a escritura de dote, pas-
Ora Bento Alves da Silva, o pai da moça, embora fosse também sada em tabelião, a qual por vezes assumia a forma de uma doação
mercador com loja aberta, pertencia a um nivel um pouco inferior, causa dotis, o simples rol de dote apenso a inventarios, ou ainda a
porquanto «ele mesmo pela sua mão vendía as fazendas a quem lhas menção ao dote feita em testamento. Estes últimos tipos de documen-
queria comprar, medíndo-as e cortando-as, razão pelo que não goza tos eram os mais comuns quando se tratava de dotes de pouca monta;
por este principio de nobreza alguma». Argumentava ainda que os quando se dava em dote uma quantia avultada em bens de raiz ou
cargos ocupados por Bento (administrador, almoxarife ou recebe- móveis, o recurso ao tabelião tornava-se necessario. Alem disto o rei,
dor) «não são empregos que por si só nobílitem a quem for via Desembargo do Paço, tinha de aprovar doaçöes superiores a 500
mecânico», pois para os ocupar bastava «ter cabedais com que se cruzados, segundo o estipulado pelas Ordenapôes, Lívro IV, tit. 62,
segure o que deles se confia».
Na sua petição é forçado a reconhecer que Bento era capitão de
Lnfantaría Auxiliar, mas esta nobreza que dai lhe advinha não excedía a 4 Sobre este assunto ver Muriel Nazzari, Disappeamnce of tbc Dowry Women,
Families, and Social Change ln São Paulo, Brazil, 1600-1900, Stanford University
sua, apenas era igual, uma vez que o seu pai era também oficial
Press, 1991.
5 Ver Alida Metcalf, «Mulheres e propríedades: filhas, esposas e viúvas em Santana
de Parnaiba no seculo XVIII», Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica
3 AHU, Capitanía do Para, Caixa 14. (S. Paulo), 5: 19-50, 1989/1990.

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quantia esta que foi triplicada pelo alvarã de 16 de Dezernbro de
1816. «novos direitos» no valor de 3$867 reis, ou seja, 10% do valor da
Que o determinado pelas leis do reino era cumprido no Brasil doação. Segundo o ouvidor da comarca, o valor dos bens doados
deste periodo prova-o a petição de Luís Pereira Sodré, da cidade da era 386$770 réis, por terem sido avaliadas de maneira diferente as
Baia, contratado para casar com uma jovem cujo pai já falecera. A mãe jóias constantes da escrituras.
viúva fizera ao futuro genro «uma doação causa dotis consistindo em Estas doaçöes destinadas a sustentar «os encargos do matrimo-
uma propriedade de casas avaliadas na quantia de 6400$OO0 réis, nio», como então se dizia, referiam-se geralmente a bens móveis e não
incluindo-se nesta doação a legítima da dita sua futura esposa, até de raiz. Nas familias mais nobres da Baia havia a tradição da concessão
onde chegar, e tomando a doadora na sua terça todo o excesso, até de uma determinada quantia em dinheiro para «alimentos››. Foi o que
o valor da mencionada propriedade». Como, mesmo depois de aba- fez a viúva de Paulo de Argolo ao lavrar uma «escritura de obrigação»
ticla a legítima paterna, a doação excedia o estipulado pelas da quantia de 400$00O reis anuais ao seu genro, pagos desde o pri-
Ordenaçôes, o noivo teve, em 1805, de se dirigir ao rei para esta meiro de Janeiro de 1808 até ao dia em que ela falecesse. No texto da
doação ser «insinuada››, ou seja, autorizadaó. escritura deparamos com as razöes para tal doação; «tanto por via de
Neste caso a «ins¡nuação›› era duplamente necessãria, por ser feita remuneração aos costumados oficios de amor e amizade com que sua
por uma mulher, caso em que a exigência da autorização regia surgia filha D. Maria Teresa de Queiroz e Argolo a tem tratado como por ter
quando o valor da doação era superior a 150 cruzados, ou seja, me- de conformidade anuido de casar-se a gosto e vontade dela». A anui-
tade da quantia estabelecida por lei. Mais uma vez as leis do reino dade aparecia assim como uma foma de recompensar uma filha dócil
colocavam as mulheres numa situação de desigualdade, por conside- e obediente e esses 400$000 reis anuais nada tinham que ver com a
rá-las mais sujeitas a serem induzidas ou enganadas. legítima que um dia o jovem casal iria receber por morte da mãe.
A criação do Desembargo do Paço no Rio de Janeiro, em 1808, Neste caso, o Desembargo do Paço pediu informaçöes ao ouvidor
facilitou sem dúvida a regularização das doaçöes para dote, pois dei- da comarca da Baia e este, depois de consultar por escrito todos os
xou de ser preciso enviar o processo para Lisboa, o que implicava filhos e partes interessadas, ìnformou que todos concordavarn com
despesas e demora. Muitas doaçöes para dote certamente deixaram de esta doação. Só que entre a data da escritura e a provisão régia auto-
ser confirmadas pelo rei logo depois de assinadas. Assim se com- rizando a anuidade para alimentos mediararn 8 anos. Vemos assim que
preende que, tendo D. Felizarda Matildes de Morais Salgado feíto, as decisöes tomadas pelas familias nobres começavam a ser postas em
em 1798, uma escritura de doação da quantia de 1500$000 rëis a pratica muito antes de serem regularizadas pelo Estado9.
seu genro na vila de S. João d'el-rei, na Capitanía de Minas Gerais, a As familias da elite baiana eram muito cuidadosas com os dotes das
petição para conñrmação da doação só tenha sido encamìnhada em fìlhas e quando, por alguma razão, não tinham podido comparecer
1817, «por ignorância» do genro, conforme a desculpa por este apre- perante o tabelião para fazer a respectiva escritura antes do casamen-
sentada. Não pedira a tempo a confirmação regia, na conformidade da to, mais cedo ou mais tarde depois do matrimonio compareciam
carta de lei de 25 de Janeiro de 1775, e tivera de obter primeiro perante ele para lavrar o documento. Assim procederam o desembar-
«dispensa do lapso de tempo». Este atraso provocara mesmo, por gador Francisco Vicente Viana e sua mulher, a 4 de Setembro de 1819,
ocasião da morte da sogra, um libelo cível entre os herdeiros pois a ao assinarem uma «escritura de declaração, confirmação para encargo
doação, por não ter sido confirmada, foi considerada nula7. de matrimónio›› da sua filha. Lemos nesse documento que, «conside-
Um baiano, Manuel Teixeira de Castro Brandâo, assinou em 1812 rando a obrigação que tinham como pais de a sustentar e a alimentar»,
uma escritura de doação de escravos, móveis, ouro, prata e pedras, no tinham combinado comprar «um engenho de fabricar açúcares para a
valor de 423$600 réis, tomados da sua terça, para a sua filha e genro dita sua filha e genro e lho entregariam preparado, moente e
«melhor se poderem reger». Foi este casal que enviou petição para a corrente››. Esclareciam contudo os pais tratar-se de um «adiantamen-
confirmação regia a fim de que a escritura tivesse validade. Pagou os to de legítima», e não de um «contrato de puro dote». O que quefiam
eles dizer com isso?

6 ANRJ, Desembargo do Paço, Doaçöes, Caixa 136, pacote 2, documento 5.


7 Ibici, pacote 4, documento 47. B Ibíd., documento 22.
9 Ibíd, documento 22.
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51
Í'

tabeliao, os pais prometiam verbalmente um dote, ou faziam um


Procuremos destrinçar no documento essa diferença, que assenta
escrito particular com os bens dotados, ou finalmente iam formalizar
sobretudo na relação do jovem casal com os demais herdeiros quando
o dote no oficio notarial.
os país morressem. A filha e o genro ficariam com a obrigação de, por
Quando um casal, senhor de três engenhos na Baia, casou uma das
morte de cada um dos pais, trazer «ã colação», em cada um dos
ñlhas com um desembargador, o rol do dote revela claramente a sua
respectivos inventarios, «metade do preço que com os seus acessó-
condição social; em dinheiro, 8000$O00; um adereço de diamantes,
rios custasse e do mais a dinheiro que lhes dessem para ser lançado
5005000; um jogo de iivelas e ligas, 40$000; um rosario de contas
em o seu quinhão, e quando ticasse devendo alguma quantia seriam
de ouro «com sua bolota», 12$800; dois cordöes de ouro, 22$00O;
obrigados a repô-la em dinheiro efectivo aos outros herdeiros sem as
uns brincos de ouro cravados de diamantes, 10$000; botöes de ouro
terças deles doadores ficarem obrigadas a preencher o défice». Pre-
de colete, 9$600; escravos (7), 560$000. Somava o dote desta filha
tendiam assim os pais ser justos e proteger os demais herdeiros.
Portanto, o valor a ser colocado nos respectivos inventarios seria o 9154$-400.
ja outra filha do mesmo casal recebeu um dote nitidamente infe-
do Custo do engenho no momento em que fora comprado, «sem
rior, que apenas incluía: um jogo de fivelas de ouro de pés e atacar
terem os doados direito algum de fazer de novo avaliar as terras,
ligas, 405000; um breve de ouro com o seu cordão, 25$000; escra-
utensilios, bois, escravos e mais pertences, porque devendo pela na-
vos (5), 430$O00. Bens estes que apenas perfaziam 495$000.
tureza dos bens estarem as terras causadas, a maior parte dos escravos
Tendo as duas irmãs sido chamadas à colação por ocasião do
velhos ou mortos, e os paramentos gastos, em consequência de valer
inventario feito por morte do pai, como era previsível aquela que
menos virão os outros interessados a sofrer dano». Pela mesma razão
também não podiam os demais herdeiros proceder a nova avaliação tinha sido mais favorecida no dote de casamento quis assinar termo
de abstenção de herança «por estar inteirada e satisfeita com o dote».
no caso de o engenho e seus pertences, em vez de se terem desvalo-
Vejamos se, apesar desta discrepancia nos dotes, o principio fun-
rizado, tivessem tido «aumento e melhoramento».
Esta escritura foi feita em 1819, mas a compra do engenho fora damental da igualdade entre os herdeiros seria ou nao mantido por
ocasião das partílhas. Como escrevia o juiz dos Órfãos que cuidou
realizada a 10 de Setembro de 1812 e esta propriedade entregue ao
desta sucessão, a abstenção cia herança paterna daquela filha nao
jovem casal logo após o casamento, que se celebrara a 25 de Novem-
causou nenhum prejuìzo aos outros treze irmãos, «porque 0 meio
bro daquele mesmo ano. O engenho custara 100 mil cruzados; os
dote de que ora se deve tratar nesta partilha cabe no quinhão que
escravos e utensilios 20 mil cruzados, sendo depois comprados mais
lhe podia tocar da herança paterna com o suprimento que lhe faz a
20 escravos pelo preço de 7 mil cruzados; foram entregues 5 mil
terça do defunto seu pai».
cruzados em dinheiro. Portanto, o casal devia trazer ã colação, meta-
Na verdade, cada um dos herdeiros devia receber 3690$742 e 0
de num inventario e metade noutro, a quantia total de 150 mil cruza-
meio dote (a outra metade só entraría na partilha que se fizesse por
dos. A escritura lavrada sete anos após a compra do engenho e o
morte da mãe) valia 4578$700, porque a ele fora incorporada parte da
casamento da filha destinava-se, na intenção dos pais, a «reduzir a
terça, ou seja, aquela porção da meação de que cada um dos membros
sua casa em estado de clareza tal que não hajam para o futuro ques-
do casal podia dispor livrementel 1. Neste exemplo vemos que os pais,
töes entre seus filhos››1°.
Além destas escrituras feitas perante o tabelião, também os inven-
para conseguirem um bom casamento para uma das filhas, ou por
exigência do noivo, um desembargador, tinham utilizado a terça para
tarìos nos fornecem dados importantes para avaliação dos dotes as
o dote, o que já não era muito comum nesta época.
filhas pois, no caso de familias de posses, a promessa dotal não era
Além das escrituras de doação causa dotis, dos róis de dotes apen-
apenas verbal, mas implicava a feitura de um «rol›› detalhado. Este rol
sos aos inventarios, também os testamentos contêm algumas informa-
de dote era apenas um documento privado, sem ter sido registado
previamente no tabelião. Vemos assim que no Brasil colonial, ao
çöes sobre os bens dotados. Manuel dos Santos de Almeida, um reinol
contrario do que se constata para a metrópole no mesmo periodo
onde os contratos de casamentos eram geralmente assinados em H josé Wanderley de Araújo Pinho, «Uma partilha de bens no Recôncavo da Baia
em 1779- com ¡nformaçôes de caracter economico e social», in Anais 40 Cgngresso
comemoratwo do bzcentenárro da transƒerência da sede do govemo do Brasil da
cidade do Salvador para o Rio de janeiro, Rio de janeiro, 1965, PP- 513567.
1° Ibid., documento 10.
53
52
'V'

Embora este testamento contenha partes ilegíveis nas referências


natural do bispado de Lamego e morador na vila de Santana de Par- aos dotes, percebese que a mãe tivera a preocupação de dotar ambas
naiba, na Capitanía de São Paulo, declarou no seu testamento, em as fìlhas com os mesmos tipos de objectos. Alias, ela diz também que
1778, que para casar a sua filha Antònia dera ao futuro genro, em lhe tinham querido apanhar, no primeiro dote, «por trapaças e
dote, 230$000 réis em dinheiro, um casal de escravos no valor de arranjos», mais um escravo mulato, mas que ela não se deixara enga-
248$000 réis, umas casas naquela vila, 6 tamboretes «com pregaria», nar e procedera equitativamente com as duas filhas casadoiras.
uma caixa grande «e todo o necessario enxoval de casa», 6 colheres Uma viúva, mãe de 9 filhos, declarava no seu testamento, feito em
de prata e uma salva também de prata, meia düzia de pratos fundos, 1797, ja ter relacionado os dotes de duas das suas filhas por ocasião
novos, cama com colchão, 2 lençóis de algodão, cobertor de papa, do inventario por morte do seu marido. Quase iguais eram os dotes de
urna cmz de ouro de filigrana e «uma vara de cordão» de ouro, um par duas outras filhas; uma recebera 245$?›50 réis em dinheiro, uma
de brincos comuns «nem grandes nem pequenos», ficando a filha mulata no valor de 125$000 réis, um par de fivelas de prata de sapatos,
casadoira «vestida de roupa para casa e trajes para a praça e o manto 6 colheres e 6 garfos de prata; a outra fora dotada com 445$548 réis
para a igreja». Assim, este minhoto procura dar ã filha em dote uma porque nao recebera nenhuma escrava, e o mesmo número e quali-
variedade grande de bens, incluindo aquilo que certamente era co- dade de objectos de prata. A viúva esclarecia ainda; «não falo no mais,
mum na sua terra: o longo cordão de ouro e a cruz de filigrana”. enxovais, porque também as primeiras de todas não vieram com eles à
Uma viúva, moradora na vila de Guaratingueta, na Capitanía de São colação». Igualdade portanto na dotação de todas as filhas”.
Paulo, declarava em 1779 no seu testamento os dotes dados a cada Enquanto em Portugal abundavam os contratos pré-nupciais, no
uma das filhas. Comparemos esses dotes; Brasil a promessa de dote, como já referimos, era feita muitas vezes
apenas verbalmente, preferindo os pais da noiva fazer a escritura de
Maria Pais de Lira Arcângela Pais de Lira doação para dote depois de celebrado o matrimonio. Alguns raros
exemplos de escrituras pré-nupciais podem contudo ser citados, en-
3 escravos 1 casal de escravos tre eles o seguinte. Na Capitanía de Pernambuco, D. Angélica Joaquina
1 saia de gala 1 sala de seda e cauda Rosa Pires Ferreira, de 27 anos, estava «justa e contratada» para se
1 ajuste da mesma seda casar com Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira, de 51 anos.
2 mantos de seda com 1 manto de seda Os pais da moça, «para encargo de matrimonio», declararam que ela
o seu ajuste de veludo 1 saia de gala preta
entrava com uma propriedade de casas, que lhe tinha sido deixada em
1 cruz de ouro (12 oitavas)
contas de ouro
testamento por um tio padre, mais uma outra propriedade de casas
1 brinco de ouro (7 oitavas) que lhe fora doada por uma tia, além de escravos e uma quantia em
2 pares de aljôfares dinheiro, provenientes de presentes de alguns tios e tias. Por seu lado,
1 colcha de seda lavrada da Índia o noivo declarou que dotava a esposa, no caso de ele morrer sem
1 colchão de linhagem colchão filhos, com a terça de uma herança deixada por um tio. Neste exem-
4 lençóis de pano de linho 4 lençóis de pano de linho plo constatamos que era a familia ampla, e não os pais, a origem dos
4 travesseiros bens com que os esposos entravam no matrimonio”.
1 catre de caviúna «todo Os dotes dados por tios a sobrinhas eram muito comuns no iim do
feíto ao torno» período colonial, principalmente quando se tratava de um tio padre. O
6 PTNOS 6 pratos pequenos vigario de uma das freguesias da cidade da Baia fez uma doação em
1 prato grande
6 colheres (de prata) 6 colheres de prata vida ã sua sobrinha causa dotis no valor de 4 mil cruzados em dinhei-
(10 oitavas) ro, ou uma fazenda de criar gado vacum com 100 cabeças, um escravo
6 garfos de prata (14 oitavas) e 4 cavalosls.

Fonte: AESP, Ordem 456, Lata 2, Livro 4, fol. 4v. e sgs. 15 AESP, Ibid., Livro 6, fol. 93v.
14 ANRJ, Desembargo do Paço, Doaçöes, Caixa 137, pacote 5, documento 36.
12 AESP, Ordem 456, Lata 2, Lwro
. S, fol. 12v e sgs. 15 Ibid., Caixa 136, pacote 2, documento I4_

54 55
O casamento segundo o rito tridentino não significava o mesmo pertencente a Coroa, quis casar com uma escrava de um certo Fran-
para todas as camadas da população nem para os varios grupos étni- cisco Xavier de Morais, a mãe saiu com impedimentos ao casamento
cos. Em relação ã gente de cor também a atitude perante o casamento alegando que o filho, «algumas vezes arrebatado pelo frenesim», se
católico variava; para o negro africano, escravo, era urna forma de retirava de casa «muito furioso» e ela temia que ele um dia viesse a
aculturação muitas vezes desejada apenas pelo senhor. Ja em relação matar a mulher com quem casasse. As verdadeiras razöes, contudo,
ao negro crioulo ou mulato, a decisão de casar podia resultar da sua foram apresentadas no seu depoimento perante as autoridades reli-
própria iniciativa acompanhada contudo do consentímento do senhor giosas, quando afirmou que, «se seu filho quisesse casar com mulher
no caso de ser escravo. E a iniciativa era tanto maior quanto apenas um liberta como ele», ela consentiria no matrimonio. Se fosse com uma
dos cônjuges se encontrava em cativeiro, sendo o outro forro ou livre. cativa não permitiría, lembrando ainda que o senhor da escrava ape-
Para a Capitanía de São Paulo, estes casamentos mistos estão mais nas queria «utilizar-se do setviço do seu filho», que ja estava ha anos a
estudados do que para as demais capitanias e portanto é nessa região morar na sua companhia. Tratava-se portanto de um casamento que
que estudaremos esse tipo de comportamento matrimonial, no qual a agradava ao senhor da escrava, mas desagradava ã mãe do liberto. O
pratica do dote era inexistente, dando lugar ã simples capacidade de proprio promotor dos casamentos, função existente na Cúria de São
trabalho e ã consequente possibilidade de sustentar uma família. Paulo, deu razão ã mãe e o vigario geral e juiz do matrimonio acabou
A vida do escravo estava marcada pela sujeição, mas esta era maior por declarar Baltazar «frenético, furioso e louco››, não tendo por isso
ou menor conforme a atitude do senhor. Quando a sujeição se tornava «a capacidade necessaria para o consorcio matrimonial». Baltazar não
por demais opressora, o negro fugia, embora nem sempre para viver acatou a decisão e pediu certidöes a dois parocos que o conheciam e
em liberdade em quilombos no meio do mato. Bastava-lhe por vezes declararam não ser ele falto de juïzo e so «alguma coisa embaraçado
procurar um senhor mais brando ou um trabalho menos duro. na prolação das palavras». Com este apoio, conseguiu finalmente, em
O negro Timoteo, casado com a negra Maria, fugiu do seu senhor, o 1784, fazer os proclamas para a celebração do casamento”.
capitão-mor da Jundiaí, e foi parar ao sitio de um padre que acabou É dificil conhecer a motivação que levava a estes casamentos mis-
comprando-o, certamente por meio de um acerto com o antigo tos, quando eles não se realizavam por pressoes do senhor do contra-
senhor. O primeiro casamento do negro ficou assim destruido com a ente escravo. Em geral alegava-se a pobreza ou o desamparo. O
fuga e urna nova sujeição, mas tão depressa se soube da morte da escravo Vicente, cujo senhor se ausentara por longo período, «acos-
negra Maria, logo o negro quis casar com a forra Brígida, educada e tara-se» em casa da irmã deste, «a qual o recolheu por esmola por ser
criada em casa de um tenente miliciano da cidade de São Paulo”. 0 suplicante ja velho e achacado de varias moléstias que o impossibi-
Noutros casos era a mulher escrava que casava com um forro, litam para poder trabalhar para a sua sustentação››. Esta fora apenas
como ocorreu em São Paulo com a crioula Margarida e o «cabra›› uma solução temporaria e o que Vicente pretendía era casar com uma
forro Antonio dos Santos, em 178617. O noivo, por sua vez, ja era o forra «para melhor poder viver››2°.
fruto de um matrimonio entre o pai escravo e a mãe parda forra, ao Os casamentos mistos eram por vezes o ponto de chegada de
passo que a crioula era fllha de um casal de escravos do gentio da casais vivendo em concubinato, como aconteceu em 1804 com uma
Guiné. Nestes casamentos mistos, o cônjuge que não era escravo tinha parda liberta que, «por sua fragilidade, esteve por muito tempo viven-
de assinar perante as autoridades religiosas um termo de seguir para do em pecado» com um escravo”. Observa-se igualmente nestes
qualquer parte o seu côniuge cativo, procedimento este que dava uma processos matrímoniais que surgiam frequentemente impedimentos
certa garantia ao senhor de que o casamento não iria perturbar o ao casamento resultantes de «tratos ilícitos» anteriores de um dos
cativeirom. contraentes com alguém de família do outro contraente. Assim acusa-
Nestes casamentos mistos encontramos por vezes a oposição dos ram um escravo que queria casar com uma forra de ja ter tido relaçöes
parentes que achavam inconveniente a desigualdade jurídica. Quando com a irma da mãe destazz.
em 1781 Baltazar de Proença, que vivia na Pazenda de Araçariguama
1” r1›fa.,5-64-1402.
16 ACSP, Casamentos, 6-25-1900. 2° 1brd.,5-64-1402.
1” rafa, 6-2-1659. 2* 11›m.,6-65-zzss.
1** rata, 7-1-2512. 1* ram., 6-65-zzss.

56 57
solicita? Encarrego portanto a V. M. queira tomar a si a conclusão
É preciso lembrar que o processo matrimonial custava dinheiro, desta dependência, fazendo entrar nesses coraçöes impios, sentimen-
sobretudo devido a todos os papéis que era preciso entregar. Como tos de compaixao e ternura por uma classe de individuos que Deus
aqueles que queriam casar tinham difìculdade em pagar tais custos, não deve fazer desgraçados, visto que em tudo o mais nos são seme-
frequentemente metiam requerimentos como este que transcrevemos: lhantes.››25
«Diz Gertrudes da Silva Tavares, do bairro de Santa Ana e freguesia Estas palavras do governador não nos devem fazer esquecer que,
desta cidade, que ela foi cativa da fazenda dos jesuitas de Santa Ana e se o senhor do escravo podia ser pressionado pelas autoridades no
ha pouco liberta, e por isso muito pobre, e se acha justa para casar sentido de conceder a alforria pedida em decorrência do deposito em
com Vicente, escravo de Maria José da Conceição do mesmo bairro Juízo do valor da avaliação, não havia na legislação vigente amparo
acima dito, e não tem ja efectuado o seu casamento, para se por em legal para o obrigar a concedê-la. Isso vê-se claramente num processo
estado de salvação e desviar-se de qualquer tropeço do pecado de iniciado na Capitanía do Maranhão em 1774 e enviado para a metró-
fragilidade pela razão dita de sua pobreza, e não ter com que pague pole em 1777 para ser decididozó.
a provisão.››23 Esta petição tem a data de 1797 e o vigario geral orde- Tudo começou com uma petição de Vitoria da Conceição, preta
nou ao promotor dos casamentos que fizesse tudo gratuitamente, isto forra da cidade do Maranhão e casada com o preto João, escravo de
numa época em que surgira, na Capitanía de São Paulo, uma violenta Antonio Gomes Pires, em que ela dizia ter agenciado «com a sua
polémica em torno das provisoes de casamento pagas, defendidas indústria, e negocio» dinheiro para libertar o marido, mas que depa-
pelo bispo, que não queria perder essa fonte de renda, e atacadas rara com a recusa do senhor em concedê-la, «não obstante a avultada
pelo governador e pelo Senado da Camara. Dois anos mais tarde, quantia de 1403000 réis» que ela oferecia e que era mais «do justo
em 1799, os camaristas dirigiam ã rainha uma súplica para que os valor». Alegando que «esta liberdade é natural, e a ninguém se pode
livrasse do vexame que lhes fazia o bispo, que até exigía que os negar», pedia Vitoria ao governador que determinasse a Gomes Pires
escravos tirassem provisoes contra o antigo costume”. que recebesse aquela quantia e passasse a carta de liberdade a seu
Era sempre possível ao marido, ou ã mulher que não vivia em marido, «o qual desejava ver livre do jugo, e da pensão do cativeiro
cativeiro, tentar comprar a alforria do consorte pelo preço da sua que a todos é penoso».
avaliação oficial. Esta tentativa, nem sempre bem sucedida pela recusa Logo o senhor respondeu que não queria vender o escravo porque
do senhor em vender aquilo que ele considerava sua propriedade, precisava dele para o seu serviço; «e neste caso é que milita aquela
levava por vezes ao recurso às autoridades locais. Durante o governo regra, que diz, que ninguém deve ser obrigado a vender 0 seu contra
de Melo e Castro e Mendonça na Capitanía de São Paulo, Valentim, sua vontade carecendo dele». E não deixava Antonio Gomes Pires de
preto forro da vila de Paranaguâ, dirigiu-lhe em 1798 um requerimen- lembrar que ele era «familiar do número do Santo Oficio» da cidade
to neste sentido. Logo o governador mandou oficio ao sargento-mor do Maranhão, e como tal gozava de especiais privilegios concedidos
daquela vila para que conseguisse, «por meios amigaveis e sem pelos monarcas em relação aos seus bens, entre os quais se incluía
violència», a alforria da mulher do negro. Mas, apesar da intervenção precisamente aquele escravo, o único que ele possuia «com capaci-
da mais alta autoridade da capitania, a senhora da escrava relutava em dade de o poder acompanhar para qualquer diligência que lhe for
conceder a alforria pedida, o que levou o governador a remeter o cometida por aquele Tribunal».
seguinte oficio ao ouvidor de Paranagua: «A justiça e a humanidade Além de ostentar como trunfo social e politico o ser familiar do
me fizeram interessar nesta alforria, tanto porque a escrava se achava número do Santo Oficio, forneceu alguns dados sobre o escravo de
judicialmente avaliada, porque o marido se oferecia a depositar em maneira a enaltecer a sua actuação em relação a ele, e a por de lado
Juizo a importancia da sua avaliação. Que dolo ou falta de lisura podia qualquer violência da sua parte. Em primeiro lugar declara ter com-
haver num requerimento desta natureza para a senhora ouvida? Que prado o negro João exactamente pelo preço que Vitoria oferecia por
pode ela arguir contra o miseravel preto, que antes nao manifeste um ele; em segundo lugar que o comprara «a peditório dele para o tirar
certo rancor e oposição da sua parte ã liberdade que tão justamente

25 o1,vo1. 87, pp. 125-126.


23 raid., 6-54-2192. 26 Ann capitan@ do Maranhäo, cam aro.
24 Ver o meu livro Sistema de casamento no Brasil colonial, cap. VI, nota 162. i
59
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'Í-

do terrivel cativeiro em que se achava, boçal, sem oficio nem beneficio seu poder. Queria tê-lo servindo-o «sempre como dantes», apesar de
algum». Deu-lhe bom trato e mandou-lhe ensinar 0 oficio de pedreiro o ter libertado por dinheiro.
«pela muita precisâo que tinha de um oficial do dito oficio para as O precedente jurídico fornecido pelo proprio ouvidor num outro
suas obras». Depois o escravo pediu-lhe para casar com a negra caso de alforria foi habilmente lembrado. Foi afirmado também que o
Vitoria, mas o senhor duvidou dar-lhe tal licença «por ele ser escra- senhor não era familiar do número do Santo Oficio, pois não os havia
vo, e ela liberta››. Vitoria foi então ã sua presença declarando que o na cidade do Maranhão nem na do Grao-Para, não podendo portanto
que procurava «era assistir debaixo da protecção» do senhor, «dan- reivindicar quaisquer piivilégios decorrentes dessa função.
do-lhe ele um quarto nas suas casas para nelas morar», e nestas O despacho do governador foi o seguinte; «Ordeno que o senhor
condiçöes conceden o senhor a licença para o casamento. do marido da suplicante Antonio Gomes Pires, logo, logo, venda a
Alegava o senhor que Vitoria faltara a sua palavra e lhe pretendia suplicante a liberdade de seu marido, por preço racionavel, e sem
agora tirar o seu escravo, o qual ja fora também ã presença do gover- condição alguma, e parecendo-lhe pouco o preço que a suplicante
nador pedir a sua liberdade, mas que ele concordara apenas em lha oferece, se julgara por louvados, o valor do mencionado escravo na
dar com uma soldada de 1$S00 réis por més desde que nunca saisse minha presença» Mas era discutivel esta ordem, pois so o rei podia
do seu poder. Vitoria fora ingrata ao querer libertar o marido, quando conceder a graça da liberdade do escravo contra a vontade do senhor.
o senhor nunca lhe dera mau trato e até lhe permitira que morasse na Se os casamentos da gente de cor, africanos ou crioulos, negros ou
casa da mulher, «fazendo la o que quer». pardos, eram em menor número do que os dos brancos, isso devia-se
Perante esta resposta logo veio a réplica de Vitoria, denunciando as fundamentalmente as dificuldades encontradas na celebração do ma-
mentiras do senhor; não comprara o preto João por 1405000 réis, nem trimonio.
o tirara de um mau cativeiro por ele o pedir. A historia era completa Em relação a população indigena, os problemas eram outros. Mui-
mente diferente. João viera de Minas com o seu senhor para a cidade to embora fizesse parte das obrigaçoes dos pãrocos levar os indios
do Maranhão e foi Antonio Gomes Pires que o quis comprar. A tran- das povoaçoes a contrair matrimonios segundo os ritos da Igreja
sacção foi-lhe contudo recusada. Conseguiu então persuadir João, catolica, o facto é que a tutela em que estes se encontravam dificulta-
quando o senhor estava para partir, que se ausentasse e se ocultasse va a vida de casados, mesmo que o matrimonio fosse celebrado.
para os lados do sitio da Madre de Deus. Com o escravo assim fugido, Assim, por exemplo, em 1804, o governador da capitania subalterna
viu-se o antigo senhor na necessidade de o vender pelo preço que do Rio Grande do Norte mandou retirar da vila Flor todos os indios da
Pires quis e, depois da sua partida, foi o escravo para casa do com- vila de Arez que ali se encontravam, muito embora eles se tivessem
prador. Nega também Vitoria que alguma vez se tivesse oferecido para casado com indias daquela localidade. Isto levou o director da vila Flor
ir morar e viver sob a jurisdição de Pires, «pois sendo ja livre, e isenta a representar ao governador de Pernambuco, ao qual aquela Capitanía
de escravidão, e tendo suas casas proprias em que mora não havia estava subordinada, dizendo que as indias não queriam acompanhar
cativar-se por seu gosto». os seus maridos para fora da sua vila. Ou seja, a vida matrimonial dos
Foi pedida então uma informação ao ouvidor do Maranhão, 0 qual indios tutelados pelos brancos estava sempre dependente de injun-
se colocou imediatamente do lado do senhor; «parece racionável não çöes politicas e podia acabar a qualquer momento”. Além de que as
restringir aquele dominio, que compete a cada um, nos bens que tradiçoes indigenas dificultavam a aculturação via matrimonio catolico
respectivamente lhe pertencem». E o magistrado levava muito a sério e os próprios indios não procuravam casar-se, ao contrario do que
os privilegios dos familiares do Santo Oficio. Mas o governador ocorria com a população de origem africana.
lembrou um outro caso de alforria de escravo que lhe fora apresenta-
do pelo ouvidor, cuja decisão teria de servir de jurisprudência para
este.
A nova réplica de Vitoria foi longa e redigida certamente por um
bom advogado, pois sendo ela própria senhora de escravos, possuia
dinheiro para contratar ajuda legal. Começa por declarar «ser repug-
nante a Direito toda a condição na liberdade». Esta era a pretensão do
senhor, que não queria que o escravo, depois de libertado, saisse do 27 AI-IU, Capitanía do Rio Grande do Norte, Caixa 9, documento 4.

60 61
4
Filhas reclusas, filhos clérigos*

No Brasil colonial eram poucos os conventos femininos: apenas na


Baia e Rio de Janeiro foram fundadas estas instituiçoes religiosas,
enquanto que nas demais cidades existiam simples recolhimentos.
Esses raros conventos encontrarn-se ainda mal estudados se excep-
tuarmos o convento do Desterro na Baia, objecto de uma meticulosa
pesquisa realizada por Susan Soeiro, em 19741.
A população conventual era reduzida. No convento do Desterro, na
Baia, que fora instituido para apenas 50 religiosas, havia, em 1778,
77 freiras; em 1779, 75; e em 1798, cerca de 65. No convento das
Ursulinas do Santissimo Coração de Jesus e Nossa Senhora da Sole-
dade, na mesma cidade, podiam ser admitidas ao habito apenas 40
religiosas e, portanto, so quando surgiam vagas podiam as educandas
professar. Sabemos, por exemplo, que no convento das Ursulinas da
Soledade estavam disponíveis, em 1778, 4 vagas, as quais eram plei-
teadas, entre outras candidatas, por uma recolhida naquela instituição
havia 25 anos (entrara com a idade de 15 anos) e uma educanda orfã,
que ali tinha residido por 4 anosz.
O número de reclusas no Rio de Janeiro parece ter sido bem
inferior: o comerciante inglês John Luccock refere que no convento
de Nossa Senhora da Ajuda se encontravam ao todo 17 freiras, na
sua maioria com mais de 50 anos, enquanto que a abadessa era uma
dama de mais de 50. No convento de Santa Teresa habitavam
21 freirasã.

* (Com a colaboração de Guilherme Pereira das Neves, da Universidade Federal


Fluminense.)
1 Susan Soeiro, A Baroque Nunnerjy.- Tlae Economic and Social Role ofa Colonial
Ctmvent, Santa Clara do Desterro, Salvador, Baia, 1677-2800 (Ph. D. Universidade
de Nova lorque, 1974).
2 AHU, Capitania da Baia, Caixa 177, documento 35.
3John Luccock, Notas sobre o Río dejaneiro eparres meridionais do Brasil, Belo
Horizonte, Itatiaia, 1975, pp. 46-47.

65
__ jr
Se, por uma politica demográfica que remontava ja aos séculos mas posteriores medidas provam que as determinaçoes nao foram
anteriores, o Estado português controlava de perto o celibato religio- cumpridas e que visitantes de ambos os sexos continuavam a frequen-
so feminino, na Baia sobretudo as familias de elite não se conforma- tar o Desterro. Procurou-se controlar a disciplina interna mediante a
vam com o facto de não poderem colocar uma ou mais filhas no escolha de abadessas mais aptas a implementar as reformas e a coibir
convento, pois tal reclusão era simbolo de prestigio social. Em 1778 as liberdades e assim, em vez de a abadessa ser eleita, passou a ser
a abadessa do convento do Desterro requería ã rainha que fosse nomeada pelos arcebispos em varias ocasiöes. As tenças anuais que as
aumentado o número de religiosas, alegando que «alguns pais faziam freiras recebiam dos familiares para o seu sustento, em vez de serem
consistir a sua nobreza», ou pensavam adquirir esta, colocando as gastas em extravagâncías alimentares ou de vestuario, contrariando a
filhas nos conventos da cidade, «sem mais exames nas suas vocaçöes frugalidade exigida, passaram a ser despendidas apenas com a auto-
que as vantagens que lhes propunham por varios artigos, quase todos rízaçâo do prelado.
fundados na vaidade dominante no Brasi1»4. Uma das causas das desordens conventuais costumava ser atribuida
Abundavam, por essa razão, as petíçöes para fazer entrar as filhas ao excesso da população servil de convento. Em 1775, contavam-se
no convento: em 1777, Paulo de Argolo pedia num so requerimento a mais de 500 setviçais, das quais 40 não eram escravas. Quanto âs
reclusão de 4 das 10 filhas que tivera; em 1780, o ensaiador da prata demais, 8 estavam ao servíço da colectividade, enquanto que 290
Antonio José de Froes e a viúva do coronel José Rodrigues Pinheiro eram privativas das educandas, recolhidas ou freiras. E o arcebispo
requeriam a aceitação das suas filhas na vida conventual. Mas nem reclamava que estas últimas, incluindo a abadessa, tinham 4 ou 5
todas podiam ser atendidas dado o escasso número de vagas. Era a escravas cada uma a seu setviçoú. Notamos contudo, através de um
elite dos senhores de engenho, dos negociantes matriculados na Real inventario feíto por morte da freira Maria Clara da Conceição, em
Junta de Comércio, de todos enfim que pela sua condiçao social 1780, e publicado por Susan Soeiro, que o valor atribuido a cada
ocupavam a oficialidade das Milicias ou os cargos da vereança, aque- uma das três escravas, entre 50$000 e 40$000 réis, era muito inferior
les que tinham maiores possibìlidades de ver as suas filhas professa- ao do mercado da época, o que nos faz supor uma propositada sub-
tem no convento. valorização, talvez porque estas escravas deixadas por morte das frei-
E preciso não esquecer que as moças so eram aceites com um dote ras raramente eram vendidas, passando para a comunidade ou para
e que este era bastante elevado, embora não tenhamos ainda dados outras freiras?. Sendo constantemente mantidas dentro do convento,
suficientes acerca do seu valor, nem mesmo no estudo de Susan as escravas iam-se acumulando e constituindo uma população exces-
Soeiro. Sabemos contudo que o dote religioso equivalia a um dote para siva e dispendiosa quanto a alimentação. Além de que contribuiam
casamento e que, portanto, as familias de elite não faziam economías para a total inactividade da população feminina do convento, de acor-
nem favoreciam os demais filhos quando queriam que as filhas se tor- do com as criticas do arcebispo no fim do séc. XVII18.
nassem freiras. Pretendiam muito simplesmente, corno dizia a abades- Por considerar a população escrava excessiva e responsavel pelos
sa do Desterro, um simbolo de nobreza, um sinal de prestigio social. maus costumes do convento, o arcebispo passou a examinar com
A vida no convento do Desterro não sígnificava para as filhas das o maior rigor os pedidos das freiras para terem mais escravas, des-
melhores familias da Baia uma vida de sacrificio e oração, apesar das
tentativas de varios arcebispos para reformar os costumes conven- 6 Em 1779, nas instruçöes ao governador da Baia, marqués de Valença, cnticava-
tuaiss. Foi limitada a entrada de seculares no convento, em 1786, -se esse excesso de escravas para apenas 75 freiras: «o que se faz mais digno de
admiração e de espanto é o de se não contentarem as ditas religiosas com menor
número de escravas e criadas que o de 400, que tantas sao as que o arcebispo da Baia
4 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, doravante RIHGB (Río de segura que se acham no referido mosteito, como lhe constava pelas proprias rela-
Jane1m).25 (44), 1918, pp. 131-152. çoes; que dele se lhe remeterarn» (ANRJ, 10 de Setembro de 1779, Cod. 808, Vol. 4).
5 A própria abadessa relatava, a 25 de Maio de 1784, ao arcebispo D. Fr. Antonio Susan Soeiro, op. cif., pp. 265-6.
Correia, «a indisciplina, luxo e varios abusos que havia no convento do Desterro», B Dessas criticas resultou o comentario, nas instruçoes ao governador, acerca da
notando «as rivalidades constantes entre as diferentes religiosas». E o arcebispo <<perturbação, desconcerto e desordem que desta multiplicídade de mulheres ocio-
oficiava a 10 de Maio de 1786 para Lisboa «as dificuldades que lhe oferecia a reforma sas, sem educação, sem emprego e sem trabalho algum em que se ocupem tera
das religiosas desse convento», devido aos «escãndalos» que estas e as educandas resultado ao sossego, modéstia e disciplina interior que deve haver no referido
praticavam. (Ibid, p. 131) mosteiro» (ANRJ, Cod. 808, Vol, 4, 10 de Setembro de 1779).

64 65
ír*
cobrindo mesmo, em alguns casos, que nas suas petiçoes elas não tuais, garantiam à instituição um capital que ela, já nos seus estatutos
forneciam informaçöes correctas, exagerando a necessidade que sen- de 1748, pretendia que ficasse na sua posse para sempre.
tiam dessa mão-de-obra extra. A uma freira que alegava avançada É interessante observar que, para entrarem no recolhimento de
idade e doença para solicitar a posse de mais escravas, o prelado Santa Teresa da cidade de São Paulo, as postulantes contavam sobre-
responden que 50 anos não era ainda uma avançada idade e que, tudo com heranças ou legados. Se não podiam entregar logo o dote,
além disso, ela já possuia uma, conforme ele descobrira9. Por pressão tinham de apresentar um fìador que garantisse essa quantia. Assim,
do arcebispo, entre 1775 e 1800 as alforrias de escravas conventuais quando em 1800 se fez a escritura de «dote e patrimonio» para Flo-
aumentaram. Por outro lado, conseguiu que fossem contratados rinda Antónia de S. Francisco passar do recolhimento da Luz para 0 de
homens livres para os trabalhos anteriormente executados por escra- Santa Teresa, tratou com a regente desta instituição a entrega de
vas. 400$000 reis pagos da sua herança, «quando houver de lhe t0Car, G
Nas localidades onde não existiam conventos, os recolhimentos receber, por falecimento de qualquer de seus pais», apresentando
supriam o seu papel e também aí se cobrava o pagamento de um como fiador o seu irmão, o sargento-mor Policarpo José de
dote. Na cidade de São Paulo, exigía-se ãs recolhidas, desde a deter- Oliveira”. Nesta escritura a regente declarou que, «suposto OS d0I€S
minação do bispo D. Fr. António da Madre de Deus em 1752, a quantia deste recolhimento eram da quantia de 6005000 réis, foram dispensa-
de 600$000 réis no recolhimento de Santa Teresa. Esses dotes eram dos 200$OOO réis pelo excelentíssimo e reverendïssimo bispo dioce-
consignados em escrituras perante o tabelião, de que temos vários sano actual desta cidade, em razão de ser útil e interessante a entrada e
exemplos. Estes revelam-nos que, muito embora em principio as passagem da reverenda outorgante para este recolhimento». Resta
recolhidas não tomassem votos, a linguagem notarial utilizada repro- saber se este desconto concedido pelo bispo não se devia ao facto
duzia a linguagem conventual. de o recolhimento da Luz já ter ficado com o dote da jovem, não o
\
Em 1788, duas irmãs, Maria Angélica do Espírito Santo e Ana Fran- tendo restituído quando ela quisera sair para 0 outro recolhimento.
cisca de Santa Clara dotaram-se para entrar naquele recolhimento «e J Que em principio 0 dote para entrada neste tipo de instituição
nele tomarem o hábito, e professarem com as mais recolhidas». De religiosa era inferior ao exigido pelos conventos, é o que podemos
acordo com o estipulado nos estatutos, cada uma pagava 600$000 réis. deduzir de uma escritura pela qual um cónego dotou, em 1796, uma
Contudo, «no caso de que por qualquer incidente ou acontecimento moradora na vila de Taubaté para que ingressasse no recolhimento de
qualquer delas vier a sair, ou falecer no dito recolhimento dentro do « Santa Teresa na cidade de São Paulo; «E no caso acontecer, pelo
ano do noviciado», pagar-se-ia à instituição religiosa «por cada uma tempo futuro, passar 0 recolhimento a mosteiro, concorrerâ o dito
160 réis de sustento por cada um dia dos que nele estiverem, e por doador com o mais que montar (pro rata) acréscimo de dote.››“
cada um dia de tempo de enfermidade de que falecerem no dito O recolhimento de Nossa Senhora da Conceição da Divina Provi-
noviciado â razão de 240 réis por dia, entregando o dito recolhimento dência parece ter exigido dotes maiores que o de Santa Teresa, pois
tudo o mais que restar do dito seu dote, que recebeu, a quem direi- em 1788 D. Ana Maria Xavier Pinto da Silva deu, para recolher a sua
tamente pertencer recebê-1o››. No caso porém de qualquer delas sair filha naquela instituição, a quantia de 800$000 réis, pagos em duas
ou falecer, depois de ter professado «na forma do estilo das mais vezes, uma à entrada e o restante em pagamentos rnensais de 1$000
recolhidas», o seu dote ficaria para sempre no recolhimento, sem réis, oferecendo como garantia os seus bens móveis e de raiz”.
que elas ou seus herdeiros 0 pudessem pedirm. Ainda está para ser escrita a història do clero secular no fim do
Este documento revela-nos que, não podendo os recolhimentos periodo colonial, mas a documentação por nós examinada permite-
guardar na reclusão para sempre recolhidas que não professavam -nos já chegar a algumas conclusöes. Em piirneiro lugar, que a vida
como as noviças dos conventos, havia a preocupação de criar cerimó~ eclesiástica era encarada como uma boa carreira, pelo menos para um
nias que equivalessem à passagem da fase de noviciado para a da dos fìlhos de um casal; em segundo lugar, que essa carreira implicava,
tomada de hábito. Essas cerimónias internas, imitadas das conven- da parte dos pais, um investimento através da doação, ainda que

H Ibid., Livro 14, fol. 5


° Susan soeiro, ibm, p. 211. I
12 mia., uvm 10. fol. 31v.
1
1° AESP, 2” Tabelião de S. Paulo, Lívro 6, fol. 118. 15 Ibid., uvfo 6, rol. 129v.
66 67
temporaria, de um patrimonio; que a remuneração dos padres era servindo de freio às iniciativas da Igreja que não contassem com o
feita pelo Estado (côngrua anual) ou por particulares (instituiçöes beneplácito régio.
como Misericórdias, irmandades, Ordens Terceiras ou individuos Quando numa familia um filho escolhia «tomar o estado
como senhores de engenho e de fazenda) complementada com as eclesiástico», a primeira coisa que fazia era frequentar os estudos,
conhecenças pagas pelos moradores de uma determinada localida- ou seja, a Aula Régia de Gramática Latina, a seguir aos quais tomava
de; que além da remuneração pelos serviços eclesiásticos, muitos «as ordens menores de prima tonsura››15. Nos mapas de população do
padres se dedicavam a outras actividades económicas e delas tiravam Brasil do fim do periodo colonial, estes jovens aparecem designados
a parte mais substancial dos seus proventos; que o celibato eclesiásti- como «estudantesn ou «tonsurados››. Finda esta primeira fase, tinha o
co era frequentemente desrespeitado e grande parte da prole gerada jovem de constituir o seu patrimonio, em geral bens de raiz doados
pelos clérigos amancebados era legitimada e recebia a herança pater- pelos pais ou demais parentes, para em seguida poder ser promovido
na. Este último aspecto será examinado na segunda parte deste livro. às ordens sacras de diácono, subdiãcono e presbítero.
A documentação a ser utilizada para o estudo da carreira eclesiás- No inicio do séc. XVIII as Constituipäes primeiras do arcebispo da
tica é constituida fundamentalmente por três tipos de documentos: as Baia, no Lívro I, tit. 49, «Do sacramento da ordem», estabeleceram as
Constituipôes sinodais que estabeleciam os vários passos para a orde- idades mínimas exigidas para as ordens menores e as ordens sacras: a
nação dos padres; a documentação notarial com as doaçöes feitas para partir dos 7 anos, tendo-se sido crismado, sabendo a doutrina cristã e
«património››; e finalmente o rico material da Mesa de Consciência e ler e escrever, já se podia ter acesso ã primeira tonsura; esta fase
Ordens”. terminaría com idades variáveis conforme o progresso nos estudos
A documentação da Mesa permite traçar um quadro mais preciso e de Latim. Para a ordem de subdiãcono só se podia entrar com
minucioso das condiçöes em que actuavam os clérigos. Das freguesias 22 anos; 25 era a idade para a de diãcono e 25 para a de presbítero.
de indios dos sertöes às freguesias urbanas, há evidentemente uma A Igreja, de acordo com o texto das Constituipôes, procedía a uma
grande disparidade de situaçöes, motivada pela população mais ou série de inquéritos sobre a família e a vida dos ordinandos: no caso da
menos densa, pela insercão maior ou menor nos circuitos comerciais primeira tonsura, procurava averiguar se a escolha do estado clerical
e pela presença mais ou menos activa da administração central. Essas não era «para se eximir do foro e jurisdição secu1ar››; e, ao findar essa
diferenças transpareciam nos rendimentos das paróquias, para os fase de averiguaçöes, tirava-se uma informaçáo «secreta›› da «limpeza
quais subsistem alguns dados numéricos, com a discriminação das de seu sangue, vida e costumes››16. Quanto á limpeza do sangue, o que
diversas receitas da freguesia. interessava saber era se havia judeus ou pessoa de cor na família.
A administração do padroado no ultramar ficava a cargo do tribu- Entre os muitos aspectos investigados, salientamos os quesitos acerca
nal régio da Mesa da Consciência e Ordens, o qual desempenhava, dos ascendentes: se tinham sido «presos e penitenciados pelo Santo
para as matérias religiosas, um papel semelhante ao do Conselho Ofício››; se era filho de legitimo matrimonio. O aspecto fisico do
Ultramanno. Â Mesa cabia, entre outros assuntos, a análise dos pro- ordinando era também importante e portanto investigava-se se era
cessos relativos ao desmernbramento de freguesias e às solicitaçöes <<corcovado, ou aleijado de perna, braço ou dedo», ou se tinha algu-
de sacerdotes que pretendiam algum beneficio, em particular a cola- ma deformidade; se lhe faltava a vista, ou se tinha em qualquer dos
ção como pâroco de uma freguesia ou uma dignidade num cabido. olhos «tal belida» que causasse deformidade; se sofria «de lepra, ou
A decisão final dessas matérias era sempre do soberano, mas com gota coral, ou de outra doença contagiosa», se não conseguía beber
base no parecer da Mesa, a qual passou a disputar com os bispos o
direito de apresentação dos candidatos. Dessa forma, como instru-
mento da política eclesiástica da Coroa em relação ao Brasil, a Mesa 15 As quatro ordens eram; ostiário, leitor, exorcista e acólìto. Ver 0 meu livro
ocupava uma posição chave na estrutura administrativa portuguesa, Sistema de Casamento no Brasil cot`oniaL pp, 181-182, acerca dos estudantes nas
Aulas Rêgias de Gramática Latina nas vilas da Capitanía de 5. Paulo.
16 Esta investigação precedia o exame e só no caso de o candidato ser aprovado é
1" Até 1808 os papéis da Mesa da Consclência e Ordens conservavam-se em que se dava inicio ás diligências de genere «na forma do Regimento no titulo do juiz
Portugal mas, com a transferencia da Corte para 0 Brasil, o tribunal foi instalado das justificaçöes de genere, que irá no fim destas Constituiçöes». Trata-se do Regi-
no Rio de janeiro, onde funcionou até 1828, portanto depois da Independência, Esta mento do Auditório Eclesiástico do Arcebispado da Baia, de que se conhece uma
documentação está a ser exaustivamente explotada por Guilherme Pereira das Neves. edição em Lisboa, em 1764.

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ff
vinho, ou se o bebia em demasia. Quanto ao seu comportamento, rendesse anualmente, no mínimo, 25$()0O réis «livres para o
averiguava-se se era concubinário ou «tido e havido por homem possuidor». O clérigo so podia renunciar ao patrimonio com licença
incontinente». Por outro lado, a Igreja queria ter a certeza de que o do arcebispo depois de provar que possuia um rendimento suficiente
ordinando tomava ordens de livre vontade, sem ser constrangido «por para «viver comodamente». Esse patrimonio seria constituido de
força, ou medo grave». «bens de raiz, foros ou censos perpétuos, que se não possam remir».
Estas informaçöes «secretas››, assim como as justificaçoes de É interessante notar que o arcebispo alude aos «enganos e
genere, constituem a documentação básica para uma historia social simulaçoes» que geralmente se cometiam nesta questão do patrimo-
do clero, mas so muito recentemente começaram a surgir pesquisas nio dos ordinandos de ordens sacras, recomendando: «Examinern
desse tipo de documentos". com particular cuidado, se os ditos bens têm as qualidades acima
A frequente presença, nos processos da Mesa de Consciência e ditas, e sendo por via de doação ou dote, se saberá por que titulo
Ordens, de sentenças de genere permite identificar o nascimento e pertenciam aos doadores, ou dotadores, e se os podiam dar, ou dotar,
a naturalidade de muitos suplicantes, e também a dos seus pais e avós. sendo casados, sem prejuizo de seus filhos e consentímento de suas
Sem muito esforço, é possível verificar que a grande maioria dos mulheres.››
sacerdotes em actividade nos fins do séc. XVIII e inicios do séc. XIX Assim o ordinando submetia-se, por parte das autoridades eclesiás-
já era natural da América, actuando com alguma frequência na mesma ticas, não so a uma inquirição sobre a sua familia, vida e costumes,
paróquia em que tinha nascido, embora não sejam poucos os casos de mas também a uma investigação sobre os bens que constituiam o seu
l
longos deslocamentos e até de trocas de bispado. Alexandre Pinto patrimonio: averiguava-se secretamente se ele estava efectivamente na
Lobão revela, numa petição de 1809, ser natural do bispado de Lame- posse daqueles bens e procurava-se saber se havia «algum pacto,
go, tendo servido nos sertöes do bispado da Baia, onde se ordenara. dolo, simulação, ou fingimento». Depois, para se ter a certeza da
josé Monteiro de Sá Palácios, do bispado de Pernambuco, pedia em solidez do patrimonio, mandava-se colocar um edital na paróquia
1814 para preencher uma vaga em Angola. Tão ou mais significativo, do ordinando e naquela onde estivessein localizados tais bens, espe-
as mães, e não raro as avos, também eram naturais da mesma fregue- cificando quais eram estes para que toda a pessoa que soubesse se tais
sia, ao contrário dos pais e avôs, estes, sobretudo, quase sempre bens tinham «algum foro, censo, obrigação, ou vinculo» o declarasse
originarios de Portugal”. «sob pena de excomunhão». E, se alguma pessoa tivesse direito a
As Consrituiçöes sinodais da Baia estabeleciam no seu Livro I, esses bens, dispotia de 8 dias para o declarar ao pároco daquela
tit. 54, 0 patrimonio requerido para os ordinandos de ordens sacras, paróquia.
justificando essa exigência: era preciso evitar que os clérigos mendi- Assim, do mesmo modo que para as filhas freiras, ou recolhidas,
gassem «ou por necessidade exercitassem oficios vis e baixos». Por era necessário fornecer um dote ou uma tenga anual, ao convento ou
essa razão já o Concilio Tridentino decidira não admitir ninguém a ao recolhimento, também a ordenação de um sacerdote exigía um
ordens sacras sem que tivesse um patrimonio suficiente para a «ho- patrimonio que garantisse a sobrevivência do ordinando. A Igreja
nesta sustentação››. não acolhia no seu seio individuos destituidos de recursos.
Seguindo esta orientação o arcebispo da Baia, D. Sebastião Mon- Por essa razão os livros de tabeliães surgem-nos com abundantes
teiro da Vide, estipulou, no inicio do séc. XVIII, um patrimonio que escrituras de doação para patrimonio. Analisando, a título de exem-
plo, os 14 livros de notas do tabelião da cidade de São Paulo, verifi-
1? Há uma tese de doutoramento em curso sob minha orientação na Universidade
cámos que, num período de 26 anos, 1778-1804, foram lavradas 24
de S. Paulo, que investiga 0 clero mineiro entre 1748 e 1817. A pesquisadora, Bárbara destas escrituras. Esta série documental permitiu-nos detectar dois
Fadel, reuniu já dados sobre 551 ordinandos do bispado de Mariana e, a partir destes tipos de doaçoes: umas não faziam qualquer menção a prazos; ou-
primeiros dados, uma conclusão interessante se pode já tirar: dos 267 ordinandos tras, especificadas como «ad removendum», davam um prazo que
entre 1782 e 1817, so 17,2% tinham nascido em Portugal ou nos Açores, sendo oscilava entre ano e meio e dez anos, para os bens de raiz doados
portanto a maioria recrutada na população da colonia. Esta conclusão coincide
serem removidos do doado e passarem novamente ã posse do(s)
com aquela a que chegou Guilherme Pereira das Neves com a documentação da
Mesa de Consciência e Ordens do Rio de janeiro. doador(es).
¡B ANRJ, Caixa 267, documento 1 e caixa 666, documento 10. Ver ainda, por Dessas 24 escrituras de doação para patrimonio, 15 eram tempo-
exemplo, caixa 241, documentos 10 e 11 e caixa 257, documento 4. rárias, o que nos faz supor serem um mero subterfügio para tranqui-

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lizar a Igreja que exigía dos seus futuros membros um patrimonio de priedade ficaria intocável, ou seja, que ele nao poderia vender ou
bens de raiz (casas urbanas, chácaras ou sitios) em geral num valor alienar em favor de qualquer credor, uma vez que constituía a sua
igual ou superior a 4003000 réis no fim do periodo colonial. garantia perante a Igreja.
As doaçöes para patrimonio seguem quase todas o mesmo modelo Quando os pais doavam bens de raiz a um filho para patrimonio,
e aqui basta referir duas que escaparn ao padrão habitual. Numa delas não impunham em geral nenhuma condição, nem estabeleciam prazo
o padre Antonio de Oliveira Costa faz doação de umas casas de so- para a remoção desses bens. So num dos casos examinados isso
brado ao licenciado josé Antonio de Oliveira com as seguintes condi- ocorreu. Em 1790 Bento Ribeiro de Araújo e sua mulher doaram ao
çöes: «Primeiramente que o reverendo doador faz doação das ditas filho uma morada de casas na rua da Quitanda, na cidade de São
casas, tirando delas o valor de 4005000 réis, em que presentemente se Paulo, pelo prazo de 5 anos a contar do dia em que dissesse a pri-
acha patrimoniado, e no mais que excede desta quantia é que doa meira missa. Ao fim desse periodo «removerá em outras para lìcarem
para o doado fazer seu patrimonio. Em segundo lugar que logo que as casas ditas livres e desembaraçadas a eles outorgantes», uma vez
ele reverendo doador seja colado no canonicato em que Sua Majesta- que esta doação, feita com a aprovação dos demais filhos, resultava
de for servida provê-lo na catedral desta cidade, e que ele reverendo apenas de o desejarem ver «com estado sacerdotal››21. Este caso,
doador remova o dito patrimonio para a dita cadeira, ficando as casas comparado com os demais, parece significar que, quando os pais
isentas, ficará também disto ele doado senhor desta porção e por não possuiam o valor necessário ao patrimonio na terça dos seus
consequência de todas as casas, e de todas elas gozará e disfrutará bens, a doação era feita de forma temporaria de maneira a não pre-
enquanto for vivo. Em terceiro lugar, depois de falecido o doado serão judicar os demais herdeiros. já a viúva D. Escolástica Marìa de Matos
vendidas todas as casas, e o seu produto aplicado conforme ele reve- doou «para todo o sempre» umas casas na cidade de São Paulo ao seu
rendo doador deixar declarado em seu testamento, à excepção de filho licenciado, esclarecendo; «nenhum de seus herdeiros eram con-
400$000 réis, de que o doado poderá dispor para o seu funeral e tra o teor desta escritura pois fazia a dita doação na sua terça sem
sufrágios, e não para alguma outra aplicação. Em quarto lugar que prejuizo dos mais herdeiros seus filhos››22.
no caso em que ele reverendo doador sobreviva ao doado tornarão Ter um filho padre significava para a familia, além da doação de um
as mesmas casas doadas ao dominio do mesmo reverendo doador, o patrimonio, um certo cuidado, e também despesa, com a sua educa-
qual doador poderá então dispor delas como lhe parecer, e nesta ção, uma vez que esta implicava por vezes a mudança do ordinando
hipotese não poderá o doado dispor do valor de 400$000 réis para para uma outra localidade diferente daquela em que residiam os seus
0 seu funeral e sufrágios.››19 Como vemos, estas casas de sobrado da pais.
cidade de São Paulo eram suficientemente valiosas para permitir que A formação dos padres no fim do periodo colonial assentava fun-
dois padres nelas assentassem o seu patrimonio e circulavarn entre um damentalmente, dada a escassez de seminários, nas Aulas Régias de
e outro conforme a necessidade e a situação de cada um. Gramática Latina, espalhadas pelas cidades e vilas mais importantes, e
O outro caso que foge aos parámetros habituais neste tipo de nas de Retórica e Filosofia, criadas apenas nas cidades, embora não
escritura refere-se ao licenciado João Batista Homem que faz a doa-
ção a si proprio, para patrimonio, de «uma morada de casas sitas nesta
J em todas. O evento mais significativo para a formação eclesiástica foi
sem dúvida alguma a criação do Seminário de Olinda nos fins do
cidade na rua de Tabatinguera, que são cobertas de telhas, taipas de séc. xvin.
pilão, assoalhadas e forradas, para a parte da rua térreas, e do quintal Apesar de prelados anteriores já terem solicitado o prédio dos
assobradadas››. Recebera-as por herança dos seus pais e estavam livres extintos jesuitas para a sua instalação desde 1760, foi J. J. da Cunha
de qualquer foro ou pensão. Nelas pretendia constituir o seu patrirno- Azeredo Coutinho, sagrado bispo de Pernambuco em 1795, quem
nio «para efeito de se poder ordenar clérigo para o que poderá tomar obteve a carta de doação do imóvel em 1796, inaugurando a institui-
posse judicial todas as vezes que lhe parecer››2°. Esta necessidade de ção aos 16 de Fevereiro de 1800, com 133 alunos inscritos. Como os
fazer doação a si proprio para patrimonio significava que essa pro- estatutos redigidos pelo fundador e a «Oração Académica» recitada na

” Ass?, Tabeiiäo de s. Paulo, um 11, foi. 77v, 1797. 2' rama, uvm 4, foi. 145v, Uso.
2° rafa, foi. ssv, 1797 22 1mz¿.,fø1, iziv, 1780.

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"É"

instalação solene pelo Pf' Miguel Joaquim de Almeida e Castro deixam 1811, para fundar um seminário eclesiástico, mas este, conforme no-
claro, o Seminario destinava-se a formar «bons cristãos e bons ticia da gazeta baiana, so começou a funcionar efectivamente em 1815,
cidadãos››, através da combinação de ensino religioso com conheci- portanto logo a seguir à publicação da pastoral do arcebispo. Come-
mentos práticos (geometria, ciências naturais, desenho), como çou com 10 seminaristas, que ali recebiam gratuitamente aulas de
recomendavam as mitigadas luzes portuguesas”. latim, Retórica e Filosofia, Teologia Dogmática e Moral, não podendo
O seminário de Olinda constituiu uma excepção e o clero do Brasil deste modo os eclesiásticos «queixar-se da falta de meios para adqui-
continuou a ser mal preparado e recrutado, acusando mesmo um rir os conhecimentos próprios do seu estado››24.
desembargador de Minas Gerais ao bispo de Mariana, em 1780, de Por seu lado, em Minas Gerais, o Senado da Cámara de Mariana,
não ter o cuidado necessário ao recrutamento eclesiástico, dispensan- em 1816, encaminhou uma petição a D. João VI, solicitando o estabe-
do frequentemente «mulatismos e ilegitimidades» e aceitando que se lecimento de um Colégio das Artes e Disciplinas Eclesiásticas no anti-
ordenassem individuos que tinham «aprendido oficios mecânicos e go Seminario de Mariana, então fechado, e que caira em decadência
servido de soldados». Se a crítica aqui incidia sobre uma excessiva desde a criação das Aulas Régias na cidade. Mas esta petição não surtiu
flexibilidade no que respeitava ã origem social dos ordinandos, outros qualquer efeito imediato e so nas vésperas da Independência foi ela-
preocupavam-se mais com a sua deficiente formação. borado, pelo bispo D. José da Santíssima Trindade, o «Regulamento
A Pastoral de D. Fr. de S. Damaso de Abreu Vieira, arcebispo da do seminário de Mariana, de 1821».
Baia, impressa em 1814 pela tipografia baiana, era uma violenta dia- Como no Rio de Janeiro os seminarios existentes (de S. José e
tribe contra «aqueles eclesiásticos, que tendo feito um divorcio com S. Joaquim) também funcionavam precariarnente antes da chegada da
os livros, não concedem nem um so momento á aplicação, e á leinira, Corte”, é de supor que aqueles que pretendiam tomar ordens, uma
consumindo todos os seus dias na ociosidade, ou em recreios, talvez vez finalizados os seus estudos nas Aulas Régias existentes, recorres-
bem improprios do seu estado». Para evitar a ordenação de individuos sem a alguns conventos ou às sés catedrais para melhorarem um
ignorantes, que so visavam os «estipêndios›› na escolha da carreira pouco os seus conhecimentos, ou mesmo â Universidade de Coimbra.
eclesiástica, os exames para qualquer ordem seriam feitos, a partir Como, segundo o alvará das faculdades de 14 de Abril de 1781, a
de então, em mesa sinodal presidida pelo proprio arcebispo. graduação universitária dava vantagens aos candidatos no acesso ãs
Os que requeressem «prima tonsura, ou ordens menores» deveriam posiçöes eclesiásticas, ela era apregoada sempre que possível. Um
apresentar atestado do professor de Gramática latina e do professor exame superficial das caixas da Mesa de Consciência e Ordens refe-
de Retorica, «a cujas liçoes deverá aplicar-se pelo menos um ano». rentes aos processos de solicitação para colocaçöes nos cabidos,
Os que pretendiam a ordem de subdiácono tinham de mostrar ates- onde a concorrência era mais acirrada, revelou quinze bacharéis ou
tado de frequência durante um ano, pelo menos, da Aula de Filosofia doutores em Cânones ou Direito, mas eram, decerto, mais numerosos.
Racional e Moral, e da Aula de Instituiçöes Canónicas. Para diácono, De uma feita, o suplicante apresenta o seu requerimento já de volta ao
exigía-se a frequência da Aula de Cerimonias e da Aula de Teologia Brasil, apos abandonar o segundo ano de estudos em Coimbra, «por
Dogmática ou Simbolica. E finalmente, para ser ordenado presbítero, falta de meios para continuá-los››26. A ordenação como regular tam-
era preciso um atestado de ter frequentado durante dois anos a Aula bém constituia um aspecto importante da formação cultural mas I

de Teologia Moral. muitos, em função da politica regalista da Coroa, solicitavam a sua


Estas exigências do arcebispo da Baia em 1814 assentavam na
autorização que lhe fora dada, pela carta régia de 5 de Abril de 25 Segundo o Almanaque da Corte do Rio de Janeiro para 0 ano de 1811, Rio de
janeiro, Impressão Régia, pp. 324-328, o Seminário de S. Pedro funcionava, desde
1767, na igreja de S. Joaquim e tinha um reitor, um vice-reitor, um mestre de
25 Estatutos do semlnárto episcopal de Nossa Senhora da Grapa da cidade de Gramática, outro de Cantochão e um de Música. Frequentavam-no 60 colegiais. No
Olinda, Lisboa, Tip. da Academia Real das Ciências, 1798. A «üração Académica» foi Seminário Episcopal de S. josé, mais bem equipado de mestres (Gramática Latina,
publicada, com muitas falhas, na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Matemática, Filosofia e História Natural, Teologia Dogmática, Escritura Sagrada,
Geogrdfico Pemambucano (Recife), 36; 172-189, 1939-1940. Ver também Guilher- Teologia Moral, Lingua Inglesa e Francesa) so tinha 6 seminaristas gratuitos. Todos
me Pereira das Neves, O seminário de Oiinda.- educação. cultura e política nos os outros que quisessem frequentá-lo tinham de pagar 8$000 réis mensais e por isso
tempos modernos, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense, 1984. 0 número era menor do que o do Serninãrio de S. Joaquim, oscilando entre 20 e 50.
2'* idade ¿ouro do Brasa, te 75. 1s15. 26 ANRJ, Caixa 238, documento 14.

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¬-ver
secularizaçao para poderem concorrer aos cargos eclesiásticos”. Nas dioceses do Brasil colonial os párocos pagos pela Coroa po-
Além disso, não são excepcionais os atestados de exames prestados diam ser «colados››, ou seja, providos por selecção a partir de uma
em algum seminário ou mençoes aos estudos realizados nas Aulas proposta, em geral de três nomes, pelo bispo; ou «encomendados››,
Régias e, para Pernambuco, na Congregação do Oratoriozg. ou seja, nomeados pelos bispos enquanto na paróquia não houvesse
Embora alguns individuos fossem ordenados padres sem terem vigário colado. Ao que parece, as populaçoes preferiam ter um vigário
antes obtido uma séria formação eclesiástica, dada a carência de semi- colado, pois achavam que esse era certamente escolhido pela sua
nários no Brasil, outros houve que, formando-se em Coimbra, no capacidade e não pelo favorecimento episcopal. Os camaristas da Vila
Brasil fizeram uma carreira diferente da de simples pároco numa Real do Senhor Bom jesus das Minas de Cuiabá, na Capitanía de Mato
paróquia. Grosso, em 1778 diziam, em petição á rainha, não terem sido atendi-
Vejamos um exemplo através da atestação que Lourenço da Câma- dos pelo bispo do Rio de janeiro em relação aos exorbitantes direitos
ra Lima, conego prebendário da Sé de Olinda, na Capitanía de Per- paroquiais e emolumentos da vigaria da vara, explicando; «sendo estas
nambuco, passou ao padre Bernardo Luis Ferreira Portugal a 27 de paroquias coladas, e servidas por encomendas, são estes ordinaria-
Julho de 1801; «depois que se retirou da Universidade de Coimbra, se mente afilhados dos bispos, e algumas vezes seus parentes». Assim,
passou para esta cidade aonde praticou Direito. Advogou e ajudou ao os bispos «querem antes favorecer aos encomendados, e vara com
reverendo Dr. Manuel Garcia Velho do Amaral, vigário geral deste desordenados interesses, que estabelecer uma moderação evangélica
bispado. Nesse tempo se ordenou de sacerdote que ele o instrui na e canonica, como são obrigados». Para os camaristas de Cuiabá, o
reza das horas canonicas do Breviário Romano». «vínculo de colação» fazia com que os párocos cuidassem melhor
A formação em Cânones em Coimbra permitiu que este padre das suas ovelhas, «o que de nenhuma sorte se dá nos encomenda-
tivesse fácil acesso ás ordens sacras e pudesse auxiliar o vigário-geral dos, que receosos de serem sucedidos em nada mais cuidam que
na aplicação da justiça eclesiástica. Talvez o facto de ambos os pais do tosquiá-las››5°.
padre Portugal terem sido reinóis e estarem bem de vida tenha facili- A carreira eclesiástica dependía portanto do Estado na medida em
tado a ida deste filho para Coimbra. Nesta universidade a sua forma- que era este que pagava os párocos e determinava o número de
ção foi variada; Direito (1778), Filosofia (1779), Matemática (1780), vigários colados a haver em cada diocese. A ambição maior daqueles
Cânones (1784). E certamente justifica que o conego de Olinda tenha que tomavam ordens era a de serem providos nas vagas existentes e
escrito na sua atestação que, «pelas suas belas letras, se fez conhecido tal ambição fica bem patente na petição encaminhada ã rainha em
e distinto entre todos» e também que os seus «discursos›› eram lou- 1778 por Félix Correia da Silva, presbítero secular, natural da cidade
vados por aqueles que os ouviam. da Baia. Estava então com 50 anos e já tentara várias vezes os bene-
O seu brilho literário pode estar na raiz da acusação de heresia que ficios eclesiásticos devido aos seus estudos de Filosofia e de Teologia
sofreu em 1787, o que não o impediu de ser nomeado comissário do Moral e Especulativa; «tem sido aprovado sinodalmente em todas as
Santo Oficio em 1788, seguindo uma tradição da familia materna. As nove vezes, que tem feito oposição a várias igrejas››. Mas, embora
suas letras permitiram-lhe ser nomeado pelo bispo Azeredo Coutinho aprovado, não conseguirá ainda nenhum lugar: fora apenas «vigário
promotor e defensor dos matrimonios, e mais tarde, em 1802, obter a encomendado» numa freguesia da cidade e naquele momento era
cadeira de conego da Sé de Olinda”. simples confessor. Ele pedia ã rainha para ocupar a vaga da igreja
matriz de Nossa Senhora da Conceição, ou a de S. Pedro, ou ainda
o curato da Sé Catedral, ou alguma cadeira de conego. Estes eram os
27 ANRJ, Caixa 322, contém a indicação de numerosos processos de seculariza-
lugares cobiçados por quem ainda não conseguirá uma colocação na
çao. rede eclesiástica do Estado; «aproveitará os seus estudos e se utilizará
23 Seminário de Olinda, ANRJ, Caixa 241, documento 10, Caixa 256, documentos dos réditos da igreja para alivio da sua pobreza»51.
5, 10 e 24; Aulas Régias, ANRJ, Caixa 257, documento 4; Congregação do Oratorio, O problema maior de uma carreira eclesiástica dentro da rede
ANRJ, Caixa 256, documento 25 e Caixa 257, documento 4. estatal residía no escasso número de dioceses então existentes e no
29 Sobre este padre, ver David Higgs e Guilherme Pereira das Neves, «O oportu-
nismo da historiogralìa: o padre Bernardo Luis Ferreira Portugal e o movimento de
1817 em Pernambuco», Anais da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica 5° AHU, Capitanía do Mato Grosso, Caixa 18, documento 19.
(S. Paulo), 8: 179-184, 1989. 5' AHU, Capitanía da Baia, Caixa 177, documento 23.

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wir
reduzido número de padres colados”. Tudo se passava como se a se levantavam nos bispados, acrescentando; «talvez que fosse mais útil
Coroa quisesse fazer economías com os dízimos recebidos, aplicando à igreja e ao Estado extinguir muitos cabidos ou ao menos diminuir
essas rendas para outro fim que não o aumento da assistência religiosa notavelmente o número dos ministros de que eles se compöem». Na
à população. opinião deste membro da Mesa de Consciência e Ordens, «os dízimos
A remuneração dos párocos variava conforme as localidades, não do ultramar foram doados a Sua Majestade na qualidade de grão-
ultrapassando, porém, durante o século XVIII, os 200$000 réis, quan- -mestre da Ordem de Cristo com a única obrigação de prover aquelas
do, em princípio do séc. XIX, um escravo no primor da idade subira de partes de ministros competentes para o pasto espiritual dos povos, e
483000 em 1775 para até 180$000 réis. Em consequêncìa, são frequen- esta obrigação não pode estender-se ao excesso de pretender-se que a
tes os requerimentos de cabidos e párocos ã Mesa da Consciência e mesma Senhora também as deva prover de cabidos e de cónegos».
Ordens, queixando-se da carestía do país e solicitando aumento das Competia ao Estado dar aos povos o pasto espiritual e não sustentar
respectivas côngruas, como ocorreu também no bispado de «o pundonor e o capricho dos bispos». E encerrava a sua diatribe
Pernambuco53. com uma constatação de facto: apesar da pobreza e da miseria que 0
Ainda em Lisboa, menos de um ano após ser sagrado bispo de bispo atribuía aqueles canonicatos, «eles são muito pretendidos», não
Olinda, J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho, a 10 de Dezembro de havendo concurso de alguma conezia que não tivesse um grande
1795, dirigiu â Mesa da Consciência e Ordens um requerimento com a número de opositores. «Nem me consta que elas estivessem vagas
pretensão de que as côngruas de todos os ministros do coro da sua por falta de pessoas que as quisessem.››35
catedral fossem igualadas às da catedral do Rio de Janeiro, uma vez Na realidade, para cada conezia vaga nas ses catedrais havia sem-
que, tendo gasto sua <<substância›› nos estudos, «os seus membros se pre, em media, 5 candidatos para um cargo que representava, de certo
vêem na necessidade de aparecer a face da Igreja e dos fiéis como uns modo, o ápice da carreira eclesiástica. Como escrevia o conde presi-
miserãveis mendicantes sem aquela decência que é devida aos minis- dente da Mesa em 1799, a propósito de um concurso para uma cone-
tros de Deus e aqueles que têm a honra de se dizerem apresentados zia da Catedral do Rio de Janeiro em 1799, os cabidos das catedrais
por V. Majestade››54. eram 0 senado do clero das dioceses. «As suas prebendas devem ser
Acompanhava-o um outro requerimento, do prôprio cabido, res- conferidas aos que têm trabalhado como verdadeiros operarios do
saltando «a notâvel pobreza» em que vivia, como resultado da «tenni- Evangelho e cheios de fadigas e experiências necessitam do descanso
dade das côngruas», face ã «carestía a que tem subido de preço todas das cadeiras canónicas, em que louvem 0 Senhor da seara que digna e
as coisas», especialmente as peças de vestuario. Argumentava que as zelosamente cultivaram_›>56
côngruas tinham sido lìxadas quando os dízimos também eram dimi- Apesar dos clamores contra a baixa côngrua recebida, não há
nutos. No entanto, «os dízimos foram crescendo pela multiplicação dúvida de que a carreira eclesiástica era encarada como um bom
dos povos», passando de 41 4793665, Cm 1776, para mfliå de investimento para as familias que faziam doaçöes de património para
108 OO0$000 réis. Desde a criação do bispado, em 1676, porém, o os filhos se ordenarem. É que, alem da côngrua, recebiam os padres
cabido de Pernarnbuco só tivera um aumento em 1727, continuando por cada acto religioso que realizavam, não sendo raras as reclama-
a receber o deão 200$000 réis de côngrua anual e as quatro dignida- çöes dos paroquianos acerca de cobranças consideradas extorsivas57.
des, 160$O00 réis cada.
O parecer do procurador-geral das Ordens acusava os cabidos de
35 So em 1806 o cabido de Pernambuco teve um aumento de côngrua, passando
serem na sua maior parte «o seminario das intrigas e desordens» que o deão para 240$000 réis e cada uma das quatro dignidades para 2005000, embora o
cura, o coadjutor e o sacristão permanecessem com os seus vencimentos de 1727.
52 Para termos uma ideia da imensidão de território abrangido pelas dioceses Em 1812 também o cabido do Maranhão solicitou uma revisão das côngruas em
brasileiras no fim do período colonial, basta lembrar que em 1792 8 CIÍOCCSC C10 RÍO virtude «do grande aumento dos preços dos géneros de primeira necessidade nesta
de Janeiro cobria as Capitanias do Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina, cidade e igualmente das casas e de todos os jomais e oficios mecánicos». Queixa
Rio Grande de S. Pedro, Espirito Santo e Porto Seguro. AHU, Capitanía do Rio de semelhante partiu da Baia em 1821 (ANRJ, Caixa 245, documento 24 e Caixa 234,
Janeiro, Caixa 151, documento 51, documento 3).
55 Ver por exemplo ANRJ, Caixa 236, documento 6 e Caixas 242 e 243. 56 AHU, Cod. 944, Consultas da Mesa de Consciência, 1756-1799, fois. 259-2=i1v,
5'* ANTT, Ordens Militares, Ordem de Cristo, Padroado do Brasil, bispado de 37 Alguns párocos da Capitanía de Mato Grosso conseguiam anualmente 10 a
Pernambuco, Caixa 12, Maço 12. 12 mil cruzados, quantia elevadíssima. Isto só com os emolumentos da vara, sobre-

78 79
ïr'
Assim, um morador da freguesia da Senhora Santa Ana dos sertöes as festividades, ao acompanhamento de procíssöes, ã celebração do
de Caiteté indignava-se com a aambição» do vigário «por não ouvir de Te Deum, e â conhecença por cada pessoa que cumpria o preceito da
confissão aos seus paroquianos sem que os cabeças de casal lhe dêem Quaresma. Quanto aos emolumentos correspondentes ã actividade de
640 réis por cada um e os solteíros a 520 réis seja liberto, ou cativo››. vigário da vara, eles não tinham sido registados na Capitanía de Mato
Isto tinha como consequência que muitos paroquianos, por falta de Grosso, mas na pratica importavam quaisquer diligências para as pes-
dinheiro, não cumpriam os preceitos quaresmais. Também por cada soas livres tomarem o estado de casadas em muito mais de 45 oitavas
baptizado cobravam 640 réis o que levava muitos pais, pela sua po- de ouro e em cerca de 20 para os escravos, «despesas na verdade
breza, a terem crianças até aos 5 anos sem serem baptizadas”. exorbítantíssímas».
Nas regiöes de mineração, como a Capitanía de Goiâs e de Mato A rentabilidade da carreira eclesiástica dependía, em última anãlise,
Grosso, cada pessoa pagava de <<conhecença›› pelo preceito quares- não da côngrua recebida pelo pároco, mas sim do número dos seus
mal 300 réis nas vilas e o dobro fora delas. A presença do pároco em paroquianos, uma vez que se cobrava pelas confissöes, pelos baptiza-
determinadas ceiimónias religiosas também custava caro: pela Semana dos, etc. Assim se compreende que o bispo de São Paulo, D. Mateus,
Santa, 96$OO0 réis e 3 arrobas de cera; missa cantada por ocasião das tenha em 1814 recusado a um casal e aos seus familiares que conti-
festas 9$600 réis para os acólitos e 2$600 réis para o sacristão, isto nas nuassem a ser paroquianos da Sé Catedral em vez da paróquia de São
vilas, porque fora cobravam o dobro além da «cera da banqueta››; Bernardo, ã qual tinham passado a pertencer em virtude da críação de
pelo acompanhamento de uma procissão 9$600 réis e por um Te novas paróquias: «Se o suplicante e sua familia fossem isentos de
Deam 4ssoo reis”. serem fregueses da nova freguesia de S. Bernardo muitos quereríam
No bispado de Mariana, também zona de mineração, o pároco de seguir seu exemplo, e seria uma grande perturbação para os párocos.››'*2
Santo António da Itatiaia recebeu em 1819 de conhecenças 68$175 A carreira eclesiástica podia portanto ser bem remunerada desde
réis; de encomendaçöes e acompanhamentos, 35$400 réis; de banhos que o padre conseguisse uma posição estável como vigário colado,
e certídöes, 29$400. Ou seja, um total de 132$975 réis, quase o equi- estivesse ã frente de uma freguesia rica e populosa e pudesse cobrar
valente a uma côngrua4°. taxas elevadas pelos serviços religiosos que prestava. Não nos causa
As reclamaçöes dos paroquianos eram por vezes veiculadas pelo portanto espanto que um certo Félix José d`Arantes, de Pernambuco,
senado da Câmara, 0 qual, quando não era atendido pelo bispo da sua concorresse de uma só vez a mais de seis igrejas vagas e que Manuel
diocese, recorría directamente ã Coroa. Na Capitanía de Mato Grosso, Antónío de Freitas Caldas, de Minas Gerais, suplicasse o adiamento do
onde a abundância de ouro e a carestía dos víveres tinham justificado seu exame visto estar a caminho do local do concurso mas a mais
que se aplicasse 0 mesmo regimento de «emolumentos e benesses›› de 100 leguas e portanto sem condiçöes de chegar a tempo”.
em vigor noutra zona de mineração, que era a Capitanía de Goíãs, já Bastante representativa é a carreira de josé Luís de São Boaventura.
em 1778 os camaristas pediam ã rainha que pusesse cobro ã extorsão Em 1798, era professor de ínstituiçöes canónícas do bispado de São
de que eram vïtimas por parte dos párocos. Queria a Câmara que o Paulo, viajando em 1808 para o Rio de Janeiro, talvez para solicitar a
bispo do Rio de janeiro, ao qual estava sujeita a Capitanía de Mato confirmação no cargo de lente de Teología, ou um canonicato então
Grosso, fizesse «novos regímentos, um para os direitos paroquiais e vago, pedidos que foram recusados. Obteve, no entanto, o lugar de
outro para os salários da vara, com intervenção deste corpo se for pregador régio e candidatou-se, em seguida, a pelo menos três igrejas
possível››'". do bispado do Rio de Janeiro, enfrentando problemas por ter sido
O regimento então em vigor dizia respeito aos enterros de brancos regular. Só em 1811 alcançou a paróquia de N. S. do Loreto de Jaca-
e escravos, ãs cerimónias da Semana Santa, ãs missas cantadas durante repaguâ, nos arredores da cidade, na qual foi colado no 1° de Maio do
mesmo ano. Em 1818, acrescentava ã sua côngrua de pároco os ren-
dimentos de mestre de primeiras letras da freguesia, substituindo o
tudo os referentes aos casamentos, predicas e outras actividades (A1-IU, Capitanía de antigo titular, que falecera.
Mato Grosso, Caixa 18, documento 19, 1778).
33 ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 194, pacote 5.
39 AHU, Capitanía de Mato Grosso, Caixa 18, documento 19, 1778.
40 ANRJ, Caixa 252. d0C“memO 2' 42 ANRI, Desembargo do Paço, Caixa 194, pacote 5.
4' AHU, Capitanía do Mato Grosso, Caixa 18, documento 19, 1778. 43 ANRJ, Caixa 267, documento 9 e Caixa 265, documento 20.

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Í?

Durante anos, josé Luis de Sao Boaventura envolveu-se numa série Oeiras, na Capitanía de Piaui, reclamavam perante a rainha D. Maria I:
de conilitos na sua freguesia, quase sempre por motivos financeíros. «A maior parte dos párocos, esquecidos das suas igrejas, só cuidam
Inicialmente, contra os monges beneditinos que detínham fazendas em adquirir riquezas para gasta-las em enredar, e perturbar os vassa-
dentro dos limites da sua paróquia, os quais acusava de não respeita- los de V. Maj.d°, ingerindo-se em todos os negocios seculares, pondo
rem os direitos paroquiais, preferindo conduzir eles próprios os en- tudo a seu arbitrio. As simonias são diarias, e quotidianas as faltas de
terros e baptizados dos seus escravos. Em 1820, ainda se encontrava sacramentos, sendo sobretudo a extorquição dos benesses o maior
em litigio. Também entrou em choque com um senhor de engenho da escândalo.››46
sua freguesia, que pretendeu instalar uma pia baptismal no oratorio Também os vereadores da cidade de Natal, na Capitanía do Rio
privado que mantinha na sua residência, com a autorização do bispo, Grande do Norte, encaminhavam a 20 de Fevereiro de 1806 a sua
mas na qual o pároco via uma grave intromíssão nos seus direitosfi. queixa contra o vigário da matriz; «Ele está rico, senhor, pois alétn
Através de uma inusitada petição para obtenção do hábito da Or- da freguesia ser pingue emprega-se em comprar, e plantar algodão, e
dem de Cristo e de urna tença, podemos conhecer todo o percurso em negociar de sociedade nos contratos reais, faltando aos deveres de
protissional de um padre baiano 5. Embora esta seja apenas mais uma sua obrígação.››jã o governador, José Francisco de Paula Cavalcanti de
entre as carreíras eclesiásticas possïveís, permite-nos avaliar a extrema Albuquerque, ìnformava não só contra este pároco, mas tambem con-
mobilidade geográfica a que esta parte da população masculina tam- tra o da freguesia de S. José de Mipibu e o da vila Flor, escrevendo;
bém estava sujeita. «Uma das razöes, que tenho descoberto, por que eles se intrigam com
Começou o padre Pedro Ferreira dos Santos por ser sacristão da os governadores é porque (como todos os clérigos) se julgam desli-
freguesia de Pirajá e depois moço de coro da catedral da Baia. Em gados da sociedade, e pertencentes a outra muito diversa, que os livra
seguida passou à Capitanía de Pernambuco, onde se tornou «familiar›› de ter a menor subordinação às autoridades constituidas, civis, ou
do bispo, ficando como seu secretáiío e mestre de cerimónias. Certa- militares, e enquanto não perderem este pre1uizo ha-de haver desor-
mente graças ao apoio do bispo, foi vigário encomendado da fregue- dem.›› O governador críticava sobretudo a maneira como os párocos
sia da vila de Montemor de S. Pedro e São Paulo de Mamenguape pelo eram providos nas suas paróquias: «Em respondendo a alguns casos
período de 5 anos, e ali serviu também de vigário da vara. Foi depois de moral, ã maneira de adivinhação, já os julgam capazes de curar
incumbido pelo governador de Pernambuco de «agregar ã dita fre- almas, e dirigir povos.>›47
guesia as quatro naçöes de indios levantados, denominados Iucurús, Viajando pelo território brasileiro, os estrangeiros comentaram
Facundés, Candidés e Cavalgantes». Assim, «revestido do zelo da frequentemente as actividades de padres que tinham pouco a ver
Igreja, íntrépido aos incómodos de uma prolongada viagem, arriscan- com a cura das almas. Freireyss, saindo do R10 de Janeiro em 1814
do a sua própria vida, os persuadiu, e fez agregar, e recolher ã dita vila, para se dirigir a Minas Gerais, passou pela fazenda do padre Correia
administrando-os, e ínstruindo-os no santo temor de Deus». Passara anotando que nas suas terras havia plantaçoes de milho, algodao,
depois a cura e vigário da vara da freguesia de Santa Ana de Ieridó. marmeleiros, pessegueíros e macíeiras. O melhor negocio parecia
Deixou então a Capitanía de Pernambuco e voltou ã Baia onde ser o dos pêssegos, pois o padre mandava para a capital, anualmen-
exerceu os ministéríos de confessor e de pregador, além de ter te, 5 mílhöesás.
ocupado por 9 anos a vigaria da freguesia paroquial de S. Sebastião. Enquanto a carreira eclesiástica atraía numerosos filhos-família não
Provenientes de familias com posses suficientes para estabelecer só pela sua possível rentabilídade, mas também pela liberdade de
um patrimonio, os clérigos, sobretudo no Nordeste, tinham por detrás acção que proporcionava, os conventos estavam praticamente vazios
de si clãs poderosos e dedicavam-se a actividades económicas varia- para as instalaçöes que possuiam. Por um documento de 1779 rela-
das. Eram assim frequentes as queixas das vereanças, e mesmo dos cionando os conventos da Província de Santo António do Brasil e seus
governadores, contra párocos insubmíssos e ganancíosos. Reunidos religiosos vemos que, nos 15 listados, moravam apenas 287 frades, o
na Câmara a 23 de Novembro de 1785, os vereadores da cidade de
-mi
46 AHU, Capitanía do Piaui, Caixa 15, documento 15,
4" ANRJ, Caixa 150, documento 44; Caixa 257, documento 4; Caixa 314, 47 AI-IU, Capitanía do Rio Grande do Norte, Caixa 9, documento 19.
documento 9. 48 G. W. Freíreyss, Viagem ao Interior do Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1982,
45 ANTT, Conselho Ultramarino, Consultas, Maço 322. p. 19.

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T'

que dava uma média de 22 regulares por convento. Mesmo contando


com os que se encontravam em várias missöes e no Hospicio da Nossa
Senhora da Boa Viagem (em número de 11) estava-se longe do total
de 400 que eram concedidos à Provincia de Santo Antonio do Brasil
por provisão régía. A vida conventual não atraía os habitantes locais e 5
é interessante constatar que a maior parte dos 26 noviços era reinol ou
das ilhas dos Açores”. O estabelecimento dos filhos
Quanto ao clero regular, nota-se assim no fim do período colonial
como que um esvaziamento dos conventos. Não so os frades das
varias ordens eram pouco numerosos, como muitos deles preferiam
viver no meio da população, transgredindo deste modo os regulamen-
tos das suas ordens. Em 1778, a proposito dos frades capuchos,
No Antigo Regime, uma das carreiras abertas aos jovens era sem
escrevia o governador da Baia: «A desordem em que se acha a religião
de que falo vem a ser, não querer frade algum morar no convento, dúvida o setviço da Coroa, para a qual se entrava muitas vezes porque
também o pai tinha sido empregado público. Nessa carreira, além dos
porque uns a titulo de esmoleres residem continuamente nas fregue-
ordenados recebia-se emolumentos e propinas, que variavam confor-
sias onde têm casas, como particulares; outros feitos feitores de
fazendas de parentes; e alguns sendo frades capuchos e senhores de me os cargos e, no fim da carreira, pedia-se remuneração de serviços,
engenho ao mesmo tempo.›› Como vemos, a pluriactividade não em geral a mercê de um hábito de alguma das Ordens Militares acom-
caracterizava apenas o clero secular e na pratica a carreira monástica panhada de uma tença. Esta última era sempre menor do que os
podia não significar o abandono dos ínteresses familiares. Tanto mais ordenados anteriormente recebidos e significava uma pequena apo-
que, como escrevia ainda o mesmo governador, além de não viverem sentadoria no fim da carreira. Em alguns casos, o que os empregados
em comunídade e na clausura, eles so eram religiosos por usarem públicos pediam era que o seu ordenado constituísse depois uma
pensão para a viúva, mas esta pretensão raramente era deferida. Nu-
«algumas vezes» o hábito, «porque se o não trouxessem, em cousa
alguma tinham diferença de um pai de familía››5°. ma consulta do Conselho Ultramarino de 19 de Agosto de 1806, não
foi atendido o pedido de um escrívão deputado da Junta da Fazenda
do Pará para que, «em remuneração de 26 anos de serviço», o seu
ordenado de 900$0O0 réis anuais ficasse por sua morte para a mulher
e para os três filhosl.
Que os oficios passavam muitas vezes de país para filhos prova-o a
petição de um natural do Rio de Janeiro, nomeado pelo vice-rei,
marqués de Lavradio, escrivão da Ouvidorìa Geral do Crime da Rela-
ção daquela cidade, em sucessão do seu pai que ocupara o cargo por
mais de 16 anosz.
Embora ainda não haja um estudo abrangente das carreiras no
«Real Serviço», como então se dizia, elas implicavam um certo rodizio
nos cargos, acompanhado de uma grande mobilidade geográfica a fim
de poder haver uma progressão nos vencimentos e, consequente-
mente, um aumento de prestigio social.
Uma das vantagens do serviço público no Antigo Regime era a
possibilidade de arrendar um oficio cuja propriedade tivesse sido
:E BNR1, Ms. 1- so, 56, 11.
ANRJ, Cod. 808, vol. 4, 10 de Setembro de 1779, lnstruçöes ao marqués de 1 ANTT, Conselho Ultramarino, Registro de correspondencia, Lívro 179, fol. 106.
Valença, nomeado govetnador da Baia. 2 Ibíri, Conselho Ultramarino, Consultas, Maço 321.

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concedida pelo monarca. Esse arrendamento a um serventuário cons- Assim se compreende que, nestes casos, a remuneração pelos
tituía uma fonte de rendimento e, embora as Ordenaçôes Filzpinas se serviços prestados não fosse concedida enquanto não terminasse a
mostrassem contrârias a esta prática, o facto é que ela se manteve até resídência. Foi o que ocorreu quando Carlos César Burlamaqui pediu
ao fim do periodo coloniala. Na Gazeta do Rio de janeiro lemos o «a mercê e senhorio da barca da passagem no rio Parnaiba, no sitio
seguinte anúncio, um dos muitos que poderiamos citar; «Quem quiser chamado Santo Antonio, por três vidas, em atenção aos seus serviços».
arrendar o oficio de escrivão da Chancelaria desta cidade, dirija-se ao O seu pedido foi considerado, a 14 de Novembro de 1807, não so
seu proprietãrio Marcos Antonio Portuga1.._››4 Havia oficios contudo despropositado, como extemporâneo e contrário ã boa ordem da
que não admítiam serventuárío e que portanto não proporcíonavam administração públicas. Embora não atendida, esta petiçãouevela
aquele rendimento. como o empregado público tentava tirar vantagens economicas
Em principio a Coroa vigíava sobre os arrendamentos, que não depois da ocupação de um cargo. Ter os direitos de passagem num rio
podiam exceder a terça parte da avaliação do oficio, a menos que o significava uma boa maquia, que o pretendente desejava garantir para
propríetário pedisse ao monarca a graça «de poder contratar qualquer três geraçöes de sua familia.
ajuste que convencionar com o serventuãrio que nomeia», como fez A carreira da magistratura, tão ambicionada, começava geralmente
em 1806 o proprietário do oficio de escrivão da Intendência do Ouro pelo cargo de juiz de fora, passando depois a ouvidor até se chegar ao
de Vila Rica, na Capitanía de Minas Geraiss. topo da carreira ocupando, como desembargador, algum dos cargos
A corrida aos empregos públicos era portanto bastante visível, da Relação da Baia, ou da Relação do Rio de Janeiro, depois transfor-
sobretudo depois que a Corte se instalou no Río de Janeiro e muitos mada em Casa de Suplicação quando a Corte se instalou no Brasílg.
cargos foram criados com a duplicação dos orgãos administrativos Com fortes apoios familiares e políticos algumas destas etapas
(Mesa do Desembargo do Paço, Mesa da Consciência e Ordens, Casa podiam ser queimadas e não ha dúvida de que a todos os níveis se
da Suplicação, Erãrio Régio, Conselho da Fazenda, Conselho Supremo falava de corrupção, engordando-se geralmente os ordenados com
Militar, junta do Comercio). Os pretendentes aos empregos procura- grossas maquias para a decisão favorável de um pleito.
vam conseguir um protector que tivesse força politica suficiente para A má fama, sobretudo da Relação da Baia, transparece claramente
impor o seu candidato e essa protecção era em geral angariada com numa informação prestada, em 1814, pelo arcebispo ao Príncipe Re-
presentes de vãria ordeme. gente acerca do governador, conde dos Arcos. Depois de afirmar que
Alguns cargos públicos estavam sujeitos a «residência››, ou seja, a este não consentia que as causas judíciais fossem «vendidas a peso de
uma investigação acerca do modo como os seus ocupantes tinham dinheiro», acrescentava: «é escândalo público nesta cidade, não se dar
desempenhado as suas funçöes. Nas Ordenaçôes Filipinas é referida uma sentença, que primeiro não seja pesada a oiro, precedendo ajus-
a resídência que devia ser feita a ouvidores e juizes de fora, cargos tes, contratos, e depositos; e algumas ha que se ajustam (para ser o
esses ocupados por 3 anos7. Um mês antes de os largarem, os seus lucro mais seguro) tanto com o autor, como com o réu››1°.
ocupantes tinham de pedir a investigação, que era feita por desem- Além de os jovens poderem ingressar na máquina administrativa,
bargadores no caso dos ouvidores, e por ouvidores no caso dos juizes quer a nivel local, quer a nivel mais atnplo, se para isso contassem com
de fora. Havia muitos pontos a investigar, mas o principal dizia respeito uma tradição familiar e sobretudo com uma rede de apoios políticos
ãs dâdivas que pudessem ter recebido para favorecer uma das partes
nos pleitos. Além disso procurava-se saber se tinhatn feíto emprésti-
8 ANTT, Conselho Ultramarino, Registro de correspondencia, Lívro 179, fol. 117.
mos, compras ou trocas com pessoas que perante eles litigassem. 9 Os juizes ordinarios eram geralmente apelidados na documentação da época
«juizes lelgos», contrapondo-se assim aos juizes «letrados›› cujo primeiro cargo era o
de juiz de fora. Nem todas as vilas contudo possuiam este cargo e mesmo uma
3 Ordenaçães Filiøínas, Lívro I, tit. 96. Capitanía subalterna, a da Paraíba, ainda em 1778 reclamava para Lisboa um juiz
4 Gazeta do Río de janeiro, n° 29, 1819. de fora que servisse ao mesmo tempo como provedor da Fazeuda Real, «evitando-se
5 ANTT, Conselho Ultramarino, Registro de correspondencia, Lívro 179, fol. 107. a má administração dela pelos nacionais que, dependentes uns dos outros, tudo
6 Ver «Cartas de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, escritas do Rio de janeiro â fazem como melhor convém a todos» (Al-IU, Capitanía da Pafalíbã. Caixa 14. 0f¡Ci0
sua familia em Lisboa, de 1811 a 1821», Anais da Biblioteca Nacional (Rio de de Jeronimo josé de Melo e Castro a Martinho de Melo e Castro, datado da Paraíba,
Janeiro), vol. 56, 1934. 2 de Outubro de 1778).
7 Ordenaçôes Filipinas, Lívro I, tit. 60. 1° BNRJ, Ms. 11- 35, 22, 69.

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_? †,_

eficiente, outro futuro lhes podia ainda estar reservado no Real tudo de um investimento a longo prazo, pois a passagem pelos vãrios
Serviço. graus da hierarquia militar, com ou sem favor dos politicos, garantiria
Quando se pensa em carreira militar no fim do periodo colonial, ao filho soldos mais considerâveis, embora nem sempre pagos com
o que interessa apontar, evidentemente, é a ofìcialidade da chamada pontualidaden.
Tropa de Linha, deixando de lado quer a oficialidade miliciana quer a Como o Exercito do Antigo Regime era marcado, tal como os
soldadesca recrutada à força e contra vontade. demais aspectos da vida social, pela diferença entre nobres e ple-
Pelas criticas dirigidas à organjzação do Exército em 1816 vemos beus, alguns aconselhavam que entre o soldado nobre, ou seja o
que a oficialidade era por demais numerosa em relação aos soldados cadete, e o soldado das camadas populares, se criasse uma classe
comandados. Numas «Reflexôes sobre a instituição da Força Armada intermedia; «Mostrando a experiència que todos os pais de família
da Capitanía do Rio de Janeiro», da autoría do tenente general Vicente que buscam dar a seus filhos aquela educação, que só e capaz de
António de Oliveira, e conservadas manuscritas na Biblioteca Nacional formar o homem de bem, e ao mesmo tempo o útil cidadão, todos
do Rio de Janeiro, lemos haver nela, em oficiais de todas as gradua- eles se choram e lastimam quando não tendo toda a nobreza precisa
çöes, um número suficiente para preencher a oficialidade de um para habilitar seus filhos para a classe de cadetes, os vêem sujeitos a
exército de 100 000 homens, quando não passavam de 10 000 os sofrerem todas as humilhaçöes a que no dia de hoje se acha sacrifi-
soldados. cado o simples soldado». Deveria haver, portanto, uma classe de
Este excesso de oficialidade, que prova ser a carreira militar pro- «soldados distintos», intermedia, ã qual podiam aspirar, segundo o
curada pelas familias consideradas nobres, tinha como consequência autor das «Reflexöes›› acima referidas, todos os filhos de oficiais de
não poderem os oficiais receber «um soldo correspondente ao de- patente até capitão inclusive; os filhos de cavaleiros de uma das três
cente tratamento dos seus distintos empregos». Enquanto que os Ordens Militares e também da Ordem de Torre e Espada; os filhos de
géneros alimenticios, o vestuario e a moradia tinham duplicado, ou negociantes matriculados (mas vimos que, na pratica, já costumavam
mesmo triplicado na Corte do Rio de Janeiro, os soldos mantinham-se assentar praça de cadete como foi o caso do filho do negociante Costa
inalterados. Muito embora esta carestía fosse característica da sede da Aguiar na Capitanía de São Paulo); também os filhos dos que, «viven-
Corte, o problema do excesso de oficialidade era comum a todas as do das suas rendas, se tratam à lei da nobreza››; e finalmente aqueles
Capitanias e cada uma teria de o resolver de acordo com as suas que provassem ter uma «educação ilustrada» aliada a uma «louvãvel
fìnanças e a sua necessidade de defesa. conduta civil». Claro que, para se poder ser inserido nesta classe
Para as familias nobres a carreira militar começava assentando intermedia de «soldados distintos», era preciso provar que «pais e
praça de cadete em geral os segundos filhos. Um negociante da praça avós foram por nascimento homens livres».
de Santos, Francisco Xavier da Costa Aguiar, destinou contudo o filho Esta sugestão, formulada em 1816 pelo tenente general Vicente
primogénito a sucedê-lo nos negocios; o segundo filho â carreira da António de Oliveira, deve ter influenciado a redacção do decreto de
magistratura e só o terceiro filho, Antonio Carlos, assentou praça de 4 de Fevereiro de 1820, pelo qual D. João VI determinou que os filhos
cadete em 1810, com 15 anos. Este facto acarretou uma serie de dos oficiais de patente das Tropas de Linha do Exército do Brasil, ou
despesas para o pai, cuidadosamente anotadas no seu caderno de de pessoas condecoradas com o hábito de alguma das Ordens Milita-
assentos: só ao ourives foram pagos 455535 réis pela prata e feitio res, podiam ser admitidos como «segundos cadetes››; e que os filhos
da espada e todas as demais insignias de oficial, mas havia ainda a de pessoas «com alguma consideração civil, ou pelos seus empregos,
conta do sapateiro e dos outros artífices encarregados de confeccio- ou pelos seus cabedais››, podiam ser admitidos nos Corpos de Linha
nar, além da barretina e talabarte, varios pares de botas, fardas, sobre- como «soldados particulares». Mas, como esta medida da Coroa só foi
casacas, coletes, jaquetas, pantalonas, calças. Todo o enxoval deste tomada pouco antes de eclodir o movimento constitucional, podemos
cadete foi confeccionado em tecidos caros, desde o «pano inglês dizer que, durante o Antigo Regime, a carreira militar se abria funda-
superlino», à holanda, ã bolandilba, ao durante, ao tafetá. As botas mentalmente para aqueles acerca dos quais não havia dúvida quanto ã
eram de cordovão; o boldrié, de couro; as borlas do capacete, de nobreza, muito embora na pratica se observasse uma maior flexibili-
prata. Para compensar as despesas feitas com este terceiro filho,
que somavam anualmente a quantia de 180$995 reis, o negociante
arrecadava o soldo do cadete, orçado em 355745 réis Tratava-se con- “ Ver o meu livro Cultura no Brasil colónia, pp. 59-60.

88 89
_ ¬,,_

dade de criterios. Todos os demais filhos-familia evitavam essa carrei ra do que aquelas que eram concedidas aos oficiais da tropa paga. Assim,
pela fuga e pela deserção, uma vez que aqueles mesmos que se apre- o tenente-coronel de Cavalaria de Milícias do Maranhão merecia o
sentavam como voluntários tinham de servir o Exército por 8 anos, e hábito da ordem de S. Bento de Avis com a tença de 120$00O réis”.
os outros por 15 anosllz Enquanto que ter um filho padre, juiz ou militar fazia parte dos
Quanto ã carreira militar, que vantagens oferecia a quem a seguis- projectos da familia colonial brasileira que não incorporasse aos seus
se? Em relação à tropa paga existente no Brasil temos abundantes próprios negocios ou actividades agricolas a sua descendência, man-
noticias de atrasos no pagamento dos soldos e mesmo os oficiais só dar um filho para Coimbra a fim de se tornar médico era algo que
se reforrnavam com metade do soldo que recebiam. Um tenente re- estava fora das cogitaçöes familiares. Médicos e cirurgiöes rareavam
formado do Regimento de Artilharia do Rio de Janeiro pediu ao mo- no Brasil e os poucos que havia eram reinóis. Só com a chegada da
narca a mercê do pagamento do soldo por inteiro e do hábito de Corte a publicação de compêndios médicos pela Impressão Regia e a
Cristo, ou de Avis. O parecer do Conselho Ultramarino foi o seguin- criação da Academia Cirúrgica no Rio de Janeiro incentivaram aqueles
te: «quanto â reforma e soldo, ele já obteve o que lhe competia; e que tinham nascido no Brasil a seguir a profissão de médico ou de
quanto ao hábito parece que merece 0 de Cristo, pelos seus serviços cirurgião. O inglês John Luccock, que se instalou no Brasil em 1808,
serem feitos em tempo de guerra, e com a tença de 50$00O réis, que chegou mesmo a afirmar que antes não havia um único médico que
por tarifa lhe compete.›› O tenente continuou assim com o seu meio tivesse feíto estudos regulares de Medicina em Portugal. E também,
soldo ao qual se acrescentava a módica tençalã. segundo ele, os cirurgiöes não existiam como um grupo profissional
Quanto aos oficiais milicianos, que não eram pagos pela Coroa, separado e as pequenas operaçöes eram feitas por barbeiros.
havia contudo uma maneira de o rei os recompensar pelas despesas Estas afirmaçöes são sem dúvida exageradas. Sabemos que em
feitas no Real Serviço, mas estas remuneraçöes ficavam em geral muito Montpellier, nos fins do séc. XVIII, varios brasileiros estavam inscritos
abaixo das quantias gastas. O que contava mais neste caso era o no curso médico, mas, enquanto não se lìzer um estudo das suas
prestigio social adquirido, não a remuneração recebida. carreiras, é dificil saber se eles voltaram ao Brasil para exercer a
Quando o coronel do 1° Regimento de Milicias da Cavalaria do rio profissão ou se preferiram fìcar em Portugal onde tinham melhor
das Mortes, Capitanía de Minas Gerais, pediu, em remuneração dos campo de trabalholó. De qualquer modo, se atentarmos na lista dos
seus serviços e dos de seu pai o soldo correspondente ãquele posto e deputados brasileiros às Cortes de Lisboa de 1821, vemos que en-
a graduação de brigadeiro, o Conselho Ultratnarino foi de parecer que quanto os membros do clero eram 22, e os formados em leis eram
se lhe desse o hábito de Cristo e uma tença de 220$000 réis, menor do 20, só 6 médicos faziam parte daquele grupo”. Mesmo no periodo
que o soldo. Isto apesar de os serviços terem sido relevantes «em duas entre 1808 e 1825, tomando como base os estudantes da Baia matri-
marchas de socorro de Minas ao Rio em tempo de guerra, com des- culados em Coimbra, constatamos que 90 desses 112 estudantes pre-
pesa com a sua Companhia que comandava por ele sustentada na tendiam seguir a carreira da magistratura, enquanto que apenas
marcha, sem ajuda de custo; pelo serviço dos seus escravos volunta-
rio e gratuito». Esses 30 anos nas Milícias poderiam contudo ser mais
bem recompensados com uma consulta ao rei. Para 0 Conselho 15 rafa., mi 100-ioov.
16 Entre esses brasileiros que se inscreveram ou se forrnaram em Montpellier nos
Ultramarino a graça pedida do soldo parecia «exorbitante›› e só ao rei fins do séc. xvni estavam: Jacinto José da Silva (1777), Faustino José de Azevedo
competia decidir”. (1781), Domingos Vidal Barbosa Lage (1785), José Joaquim Maia Barbalho (1785),
De qualquer modo, exactamente por não serem pagos durante os Ignacio Ferreira da Câmara (1785), Joaquim José de Sousa Ribeiro (1787), Eleuterio
anos de serviço, os oficiais milicianos recebiam tenças mais elevadas José Delfim (1788), Francisco de Arruda Câmara (1790), José Mariano Leal da
Cârnara Rangel de Gusrnão (1790), Manuel Joaquim de Sousa Ferraz (1790), João
Batista Vidal (1790), Manuel Arruda da Câmara (1791), Vicente Gomes da Silva
12 Nas «Reflexöes›› do tenente general Vicente António de Oliveira, em 1816, (1791), José Joaquim de Carvalho (1792), José Joaquim Vidigal de Medeiros (1793).
propunha-se a diminuição do tempo de serviço militar; 3 anos para os voluntarios; 17 Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, na sua tese de Doutoramento sob minha
5 anos para os sorteados; e 8 anos para as recrutas «de leva debaixo de prisão». orientação, colectou estes dados. Eram médicos Custodio Gonçalves Ledo, José Lino
1?' ANTT, Conselho Ultramarino, Registro de correspondência, Livro 179, Coutinho, José Cipriano de Almeida Barata, José Ferreira da Silva, Antonio Teixeira
fol. 108v-109. da Costa e Francisco de Arruda, que, como vimos pela nota anterior, estudou em
1" Ibai, foi. ios-iosv. Montpellier.

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9 optaram pelos estudos de Medicina, sendo 21 os inscritos em Ma- tres de Minas Gerais e Cuiabâ (Mato Grosso) recebiam um ordenado
temática e 22 os matriculados em Filosofials. «mais vantajoso››2°.
No fim do periodo colonial, quando ainda eram poucos os lugares Quando não solicitavam aumento de ordenado, pediam melhores
de médicos ou cirurgiôes no serviço da Coroa, se excepruarmos den- condiçöes de trabalho, como se pode ver por um requerimento do
tro do Exército ou nos hospitais militares, a carreira médico-cirúrgica professor da vila de Santos; «sendo tão limitado o ordenado, que
não aparecia como muito atraente para os filhos-familia do Brasil. percebe com a dita cadeira atendendo ao estado atual daquela vila,
Ser professor era uma opção que se colocava apenas quando não pois que lhe não chega para alugar suas casas, que tenham as como-
havia outra actividade mais lucrativa. Na Capitanía da Baia, por exem- didades precisas para dar aula aos seus alunos, e como nos baixos da
plo, nos fins do séc. XVIII, o ordenado anual de um mestre regio de casa de resídência da mesma vila existem uns quartos deixados e sem
primeiras letras oscilava entre 80$000 réis e 150$000 réis na cidade, destino algum, vem o suplicante rogar a V. Exa e S. S. lhe mande dar
mas os atrasos no pagamento eram constantes. Eram as Juntas da Real um para nele lixar a sua aula, a exemplo do que se pratica nesta
Fazenda das Capitanias que colectavam das Câmaras o rendimento cidade, não olhando o suplicante ao maior incómodo que passa a
do subsidio literário destinado aos professores régios e estes, que ter dar aula fora de sua casa››21.
recebiam a quartéis, tinham por vezes de esperar meses pelo seu A ocupação de mestre de primeiras letras era substituida por outra
ordenado. logo que os ocupantes das aulas régias descobriam actividade mais
Na Capitanía de São Paulo a situação era idéntica”, Muito embora rendosa, abandonando assim os seus cargos, como fez, em 1814, o
o governador defendesse o ordenado de 120$O00 réis para todos os mestre da vila de Atibaia, que deixou o lugar «pelo seu diminuto
mestres de primeiras letras das vilas e 15059000 réis para os da cidade, rédito, e não poder com ele sustentar a dita sua familia». Este mesmo
ele próprio não teve condiçöes de o conceder e o professor da vila de individuo, contudo, concorreu a uma vaga na vila de Mogi das Cruzes
Curitiba continuou a ganhar 80$000 réis. Mais tarde, em 1814, ao em 1820 porque ai estava a morar «em casas pertencentes a sua
propor a criação de novas cadeiras de primeiras letras na Capitanía, mulher» e portanto tinha menos despesas”.
o governador Franca e Horta ainda propunha ordenado mais baixo, Os professores de Gramática Latina recebiam ordenados mais
60$000 réis, e aquelas que foram efectivamente criadas em 1816 pro- substanciais, entre 240$000 e 300$00O réis, ganhando o mestre da
porcionavarn apenas 50$000 réis. cidade de São Paulo 4005000 réis. Em decorrência deste nivel salarial
Com este salario irrisório, quando se abriu concurso para as novas mais elevado, não se encontram requerimentos destes professores
aulas régias, muitas ñcaram vagas até mesmo depois da independên- pedíndo aumento de ordenado e, na oposição, ou concurso, às cadei-
cia. O que na época se considerava justo pagar a estes mestres seria ras vagas nota-se uma concorrência maior. Enquanto que os mestres
2505000 réis para os das vilas do interior e 300$00O réis para os da de primeiras letras saiam dos grupos mais pobres da sociedade colo-
marinha e cidade, mas nem mesmo depois, no tempo do Imperio, nial ou eram clérigos desocupados, os mestres de Gramática Latina
conseguiram os professores tal remuneração. pertenciam muitas vezes às principais familias, que consideravam esta
Por estas razöes eram constantes as petiçöes ao govemador da ocupação digna dos seus filhos. Aliás, estas aulas régias eram muitas
Capitanía de São Paulo para que se subisse os ordenados. Um pres- vezes ocupadas por clérigos: das 4 cadeiras existentes na cidade da
bitero secular, mestre de primeiras letras na cidade de São Paulo, Baia em 1812, três estavam confiadas a padres”.
pretendia em 1818 um aumento de 100$000 réis para 150$0O0 réis, Se no meio rural os chefes de familia que queriam fazer aprender a
alegando: «é mister que todos os dias se apresente em uma aula ler e escrever aos seus filhos contavam apenas com os mal remune-
pública, deve›se tratar com aquela decência, que convém ao seu esta- rados mestres régios de primeiras letras, ou com alguns raros profes-
do e ao emprego, que tem a honra de ocupar; os víveres já pelo sores particulares, nas grandes cidades como a Baia e Rio de Janeiro
aumento da população, já pelas circunstâncias dos tempos têm sobre-
maneira crescido em preço». E lembrava ao govemador que os mes- 2° Ass?, ordem 537, Lata 90.
2' rafa.
” Estudantes da Universidade de Coimbra nascídos no Brasil, Brasilia (Coim- 22 mi
bra), suplemento ao vol. IV, 1949. 25 Almanaque para a cidade da Baia, Ano 1812, Salvador, Secretaria da Educa-
19 Sobre este assunto ver o meu livro Cultura no Brasil colónia, pp. 122-128. ção e Cultura da Baia, 1975.

92 93
muitos individuos ganhavam a vida ministrando aulas particulares das dades, o leque profissional viu-se consideravelmente alargado com
mais variadas matérias. Os anuncios colocados nas gazetas das duas profissöes até ai impensaveis. Na segunda década do séc. XIX ja ha-
cidades revelam que nelas havia um mercado suficiente para estes via, nas principais cidades brasileiras, um incentivo para a carreira de
preceptores: «Acha-se residindo nesta Côrte um sujeito que se ofere- actor ou de actriz, como podemos ver pelo seguinte anúncio colocado
ce para ensinar por casas particulares a ler, escrever e contar, por na gazeta local pelo empresario do novo Teatro de S. João da Baia:
«Toda e qualquer pessoa de um e outro sexo, que se achar nas
ser para isso sumamente habil...››24; «precisa-se de uma pessoa, de
reconhecidos bons costumes, e de conhecimentos nas linguas, mater- circunstancias de empregar-se no dito Teatro, tanto na qualidade de
na, latina e francesa, que as queira ensìnar em uma casa particular, fora cómico, dançarino, cantor, instrumentista, escrevente, como ainda
da cidade, onde se lhe dará morada, e o partido anual de 1503000 réis, para lugares indispensaveis, dirija-se ao dito empresario, para se tra-
se algum sacerdote, ou outro sujeito se propuser a isso...››25. tar dos seus ajustes.›› Conhecedor sem dúvida da ditìculdade de con-
Nas pequenas vilas do interior do Brasil poucos pais se preocupa- tratar estes profissionais, propunha-se encarregar-se da sua formação
vam com a alfabetizaçäo dos tìlhos e ainda menos aqueles que viviam com a contrataçao dos mestres necessarios. A sua urgência era grande
isolados no interior. Como escrevia um professor particular da vila de em contratar pessoal novo, sobretudo cómicos, bailarinos e cantores,
Pindamonhangaba, Capitanía de São Paulo, em 1798, os alunos eram para evitar «repetir as danças ja todas vistas no decurso do ano››29.
poucos «pela pobreza da terra». Além disso, «os mais moradores, em Pouco antes da independência os actores mostravamse mesmo
seus sitios e roças, ensinam seus filhos conforme podem por lhes muito reivindicativos em questöes salariais, como era o caso de Antó-
causar grande detrimento a assistência a estes na vila e por isso assim nio Ferreira de Paiva, «actor nacional» que trabalhava no Teatro baia-
se remedeiam››26. Certamente filhos de pequenos lavraclores mal no, «sem escritura, ou título algum obrigativo». Anunciava ele ao
aprendiam a assinar o nome e o seu destino era continuar a trabalhar público, através da gazeta; «em não se lhe pagando o tempo em
na roça como os pais, uma vez que a população branca pobre rara- que tem estado o teatro fechado (como 0 empresario intenta) não
mente tinha escravos para os auxiliar. Mesmo aqueles que frequenta- representa››3°.
vam as Aulas Régias de primeiras letras, em geral entre os 7 e os Com um leque protissional muito mais amplo devido ao aumento
12 anos, logo passavam ã agricultura ou aos varios oficios”. da presença dos estrangeiros no Brasil, Q «e-stabelecimemg» (105
Quanto aos artesaos era natural que os seus filhos aprendessem na filhos, quer nos grupos sociais que compunham a elite, quer nas
oficina paterna uma actividade que, em certas areas, como ourivesaria, camadas populares, encontrava varios caminhos, além dos ja tradicio-
carpintaria, etc., podia ser bastante lucrativa dada a escassez de arte- nais na sociedade colonial.
sãos qualificados entre a população brancazs.
No fim do período colonial, quando a presença da Corte e a aber-
tura dos portos aumentou a influência dos europeus nas varias activi-

24 Gazeta do Rio de janeiro, n° 44, 1809.


25 ¡dade d'Ouro do Brasil ri" 47, 1816.
2° Assp, ordem 557, lata 90.
2” ¡bra!
23 Como seria de esperar numa sociedade em que os oficios mecanicos eram
colocados na parte inferior da escala social, até porque muitos deles eram no Brasil
executados por escravos, as autoridades, mais que os próprios pais, incentivavam a
aprendizagem de tais artes. Baltazar da Silva Lisboa, encarregado na comarca de
Ilhëus da vigilancia sobre o corte de madeiras preciosas, sobretudo para a constru-
ção naval, teve a ideia de, na vila de Valença, «aplicar a rnocidade aos trabalhos dos
cortes, e construção». Tendo ao seu cargo a construção de uma barca canhoeira,
reuniu «meninos vaclios» para actuarem como serventes e aprenderem «a lavrar e a
tornear o poleame», aos quais pagava 80 réis por dia de trabalho (BNRJ, Ms. I - 31, 2° ¡dade ¿foam do ama, n-= 29, 1814.
18, 26, foi. 4). 5° Ibfat, nf 117, 1821.

94 95
6
Familia e negocios

Num livro recente, Muriel Nazzari apontou uma mudança impor-


tante que ocorreu no Brasil no inicio do séc. xxx: os negocios e as
actividades económicas iam começando a sair do circulo da familia.
A pouco e pouco as sociedades mercantis entre elementos não ligados
por laços de parentesco iam tomando o lugar das amigas sociedades
entre irmãos, entre pais e filhos, entre sogros e genros, etc., ao mesmo
tempo que a contabilidade comercial se ia separando da contabilidade
familiarl.
O que talvez falte à lücida analise de Muriel Nazzari é a referência a
uma instituição que, primeiro no Portugal setecentista e depois no
Brasil do fim do periodo colonial, estabeleceu a separação entre a
maneira antiga e a nova de comerciar, preparando o terreno para a
posterior separação entre família e negocios. Refiro-me à Real junta do
Comercio, Agricultura, Fabricas e Navegaçaoz.
É mais facil estudar as relaçöes entre família e negocios na do-
cumentação resultante da criação da Real Junta de Comercio no Rio de
janeiro a 28 de Janeiro de 1808, do que na documentação anterior,
onde os negociantes do Brasil se encontram misturados com os de
Portugal. Por ela vemos que a exigência de uma escrituraçao mercantil
feita por caixeiros e guarda-livros profissionais permitia ao negociante
«de grosso trato» (grupo social onde a separação entre familia e
negocios mais depressa se fez sentir) manter uma contabilidade
comercial distinta da contabilidade familiarã.

1 Disappearance of the Dowry. Women, Families, and Social Change in São


Paulo, Brazil, 1600-1900, Stanford, Stanford University Press, 1991, cap. 8.
2 Estatutos da junta do Comercio ordenados por etrei nosso senhor, no seu real
decreto de 30 de Setembre de 1755, Lisboa, na Otìcina de Miguel Rodrigues, 1756.
5 Na sua Dissertaçäo de Mestrado, escrita sob minha orientação, William Puns-
chart constatou a matrícula de 73 caixeiros entre 1809 e 1822, sendo 16 filhos de
negociantes de grosso trato, que assim inicìavam a sua aprendizagem do trato
mercantil.

97
Nem todos tinham acesso a essa elite mercantil; quando, em 1809, Isto não significa que ã Junta não fossem encaminhadas petiçoes
47 mercadores de retalho requereram a sua matricula na Real junta do de casas comerciais, credoras de comerciantes falecidos, no sentido
Comercio, o seu pedido foi indeferido porque os requerentes não de conseguir autorização para poderem cobrar as suas dívidas antes
possuiam conhecimentos mercantis que lhes permitissem ter as suas de as familias procederem a inventario e partílhas. Vejamos uma des-
contas em estado de, quando se tornasse necessario, se conhecer o sas petiçoes; «Senhor. Dizem Carneiro, Viúva 8; Filho e Francisco jose
balanço das suas casas comerciaisfi. Guimarães & Companhia que falecendo Jeronimo jose de Oliveira
Para a profissionalização do corpo mercantil muito contribuiu a Guimarães negociante desta praça, requereram os suplicantes a V. A.
criação da Aula de Comercio, primeiro em Lisboa, no periodo pom- R. se dignasse nomear um caixa e administrador aos bens daquele
balino, e depois no Rio de Janeiro em 1810 e na Baia em 18115. falecido para assim poderem sem maior prejuizo indemnizarem-se
Afirmava Antonio Tomas de Negreiros no seu Tratado de opemçôes do que lhes ficou devendo o mesmo falecido, e mandando V. A. R.
de banco, ou Diretório de banqueiros, publicado na Baia em 1817; que justificassem os requisitos, feita a justificação determinou V. A. R.
«O mancebo que se dedica ã profissão do comercio deve ser inteli- declarassem os suplicantes se falecera sem testamento, se tinha filhos
gente em conhecer as mercaderias, que devem fazer objecto de seu menores, e por que juizo se fizera a arrecadação. Em cumprimento do
trafico, e saber os países em que se pode achar preços mais comodos; que declaram os suplicantes que faleceu sem testamento, que tem
ser instruido nas regras e principios da navegação mercantil, nos segu- filhos menores, e que seus bens ate ao presente não foram arrecada-
ros, nos termos facultativos, no método de fazer contas, e arrumar os dos por Juizo algum, e segunda vez imploram os suplicantes a graça
livros; na arbitragem, calculos e cambios; em estabelecer e sustentar a pedida em atenção a que os bens do falecido não chegam para a
correspondencia mercantil, e em adquirir conhecimentos das leis, e satisfação de seus credores, e que de outra forma perderão suas
costumes praticados entre os negociantes, além de outras muitas dívidas.››8
coisas interessantes ao bom êxito de suas especulaçoes. A reunião Este documento revela claramente a imbricaçao ainda existente
de todos esses conhecimentos se chama Arte do Negociante.››6 entre patrimonio familiar e capital comercial, quando nao se tratava
As Aulas de Comercio por um lado e a Real Junta do Comercio por de um negociante matriculado, como era o caso do falecido Jerónimo
outro contribuíram para que, por ocasião da morte de um negociante jose de Oliveira Guimarães. O que as casas comerciais credoras pre-
matriculado, as contas da sua casa comercial não se confundissem tendiam era a nomeação, pela Junta do Comercio, de um administra-
com o patrimonio familiar, como era habitual em epocas passadas, dor e de um caixa dos bens do falecido para que eles pudessem ser
ou mesmo naquela epoca, entre comerciantes de menor monta. ressarcidos antes que o juiz dos Órfãos, a quem cabía este inventario
Quando morreu um dos mais importantes negociantes do Rio de por haver filhos menores, os arrecadasse e procedesse a partílhas.
Janeiro, Amaro Velho da Silva, em 1811, foi feito o balanço da sua casa O parecer não foi contudo favoravel aos negociantes: «Não pode a
comercial por ordem da Real Junta do Comercio de 14 de Dezembro Real Junta conceder a administração requerida dos bens do falecido
de 1811. A receita proveniente de bens imoveis, de navíos e de uma Jeronimo de Oliveira Guimarães, que deixou presentes filhos, e esses
galera, ascendía a 58 5643032 reis; as dívidas activas somavam menores que têm 0 seu Juizo privativo dos Órfãos, pois a lei so
39 515$654 reis, enquanto que as passivas totalizavam 231 629$448 permite as administraçöes a beneficio do comercio havendo herdei-
reis; o dinheiro em caixa era 130 0043500 reis. Graças a uma contabi- ros ausentes pelas razöes declaradas na mesma lei, as quais não
lidade adequada, este balanço foi apresentado num curto espaço de existem no presente caso.››
tempo: 31 de Dezembro de 18117. É preciso conhecer a legislação da epoca para se entender a pre-
tensão das casas comerciais; como este negociante falecera sem testa-
mento, caberia o seu inventario ao juiz dos Defuntos e Ausentes; mas
'Í ANRJ, Negociantes, Caixa 388, pacote 1, citado por William Punschart. como no caso havia filhos menores, a arrecadaçao tinha de ser feita
5 Os Estatutos da junta do Comércfo, no seu cap. XVI, determinava o estabele- pelo juiz dos Órfãos. Dessa diferença entre os dois Juizos dá conta 0
cimento da Aula do Comercio, previsto para 20 alunos, filhos de homens de nego- facto de as palavras presentes e ausentes virem sublinhadas no parecer.
cios, que pagassem um tremolumento» destinado a custear os estudos daqueles que
careciam de meios para os fazer.
G .
Op. ctt., p. V.
7 BNRJ, Ms. Il - 34, 21, 46, citado por William Punschart. B ANRJ, Real Junta do Comercio, Administraçao de Bens, caixa 345, pacote 1.

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F,
É que a Real Junta permitía a instauração de uma administração E interessante notar a concordancia da viúva em que os bens do
quando os herdeiros estavam ausentes, facto que alguns credores falecido marido fossem administrados por um dos credores em vez de
não deixavam de acentuar quando encaminhavam as suas petiçôes: serem entregues ao juizo dos Defuntos e Ausentes, a quem competia a
«Dizem os credores de Francisco jose Correia abaixo assinados que arrecadação dos bens, por um lado porque o marido morrera sem
ele faleceu nesta cidade com seu testamento em que instituiu por testamento e por outro porque não havia herdeiros na terra. Certa-
herdeiro o seu pai Antonio jose Correia assistente na cidade do Porto mente ela confiava que a administração de credores interessados em
e na sua substituição a duas irmãs Rosa e Francisca também ausente-s.››9 recuperar o seu dinheiro seria muito mais eficiente do que a acção do
Um processo mais complexo, iniciado em 1805, quando so havia juiz dos Defuntos e Ausentes, o qual provavelmente os deixaria extra-
Junta do Comercio em Lisboa, e que se prolongou pelo menos ate viar, ou pelo menos não teria tanto interesse em os administrar da
1811, ja com a Junta criada no Rio de Janeiro, revela como e em que maneira mais rendosa possível. Neste caso eram 11 os credores e a
circunstancias se instaurava a administração a favor dos credores divida apresentada a 2 de Julho de 1805 ascendia a 9692$692 reis.
comerciaisw. «Senhor. Diz Manuel Gonçalves de Carvalho, Custodio Ficou encarregado da administração um dos credores, Luis Jose de
jose Rodrigues, Luis de Oliveira, e outros todos negociantes da praça Oliveira, que não era aquele a quem o defunto ficara a dever maior
desta cidade assinados na relação junta, que falecendo da vida pre- quantia; apenas 516$085 reis, quando havia um padre credor de
sente Antonio da Silva Guilherme sem testamento, nem herdeiros na 4400$000 reis.
terra, ou em parte onde possam vir a arrecadar o que lhes possa vir a Este administrador ainda em 1810 pedia mais 6 meses para concluir
tocar da herança do dito defunto, nos 50 dias do Regimento do Juízo a sua administração, pois o nao pudera fazer ainda «pelas circunstan-
dos Defuntos e Ausentes, ficando a viúva sua mulher, e meeira, na cias que tem havido, e até pelo motivo de um arresto movido pelo
posse dos bens do seu casal, como cabeça dele na conformidade da solicitador do Juïzo dos Residuos, respectivo a uma capela pertencen-
lei do reino, fica devendo aos suplicantes as consideraveis quantias te ao mesmo intestado, cujo pleito esta pendendo no dito juizo». Ele
individuadas a cada um na dita relação, e tais que se fazem dignas de conseguira reembolsar alguns credores, «que até hoje importa a des-
contemplação, para não dever entrar na administração, e arrecadação pesa 10 945$056 réis, sendo maior que a da receita importante em
dos bens do dito falecido devedor dos suplicantes o juizo dos Ausen- 9;646$989 reis, tendo o suplicante suprido com dinheiro seu para
tes, pelo consideravel detrimento, e grande prejuizo que podem sentir os ditos pagamentos com 1298$047 réis». Vemos assim que o admi-
nos seus embolsos com o empate dos seus pagamentos acontecendo nistrador dos bens do comerciante falecido não so não cobrara ainda
a dita administração e arrecadação pelo dito juízo ainda mesmo na- a pequena quantia de que era credor, como também adiantara dinhei-
quela parte, que se tocar a herdeiros ausentes, o que providenciou o ro seu para o pagamento dos demais. Mas ele pretendia recuperar o
alvara de declaração, e ampliação de 17 de junho de 1766 ao §18 da seu dinheiro «com as cobranças futuras, ou com os bens do casal do
cap. 17 dos Estatutos da Junta do Comercio do Reino e seus Domí- dito falecido».
nios, para não se perverter a boa ordem e continuação do comercio, Foram concedidos, a 7 de julho de 1810, mais 6 meses para o
determinando em tal caso a nomeação de um dos acredores para administrador apresentar as suas contas e so finda a administração
administrar os bens do seu devedor defunto, e para que tomando e que a viúva do comerciante entregou ajunta do Comercio a seguin-
entrega de todos eles, e acçöes, os administre pagando aos acredores te petição; «Senhor. Dizem Guilherme da Silveira por seu bastante
as dívidas, que legítimamente contarem, cuja nomeação e administra- procurador e Josefa Maria Viana viúva e herdeiro habilitado como se
çao pretendem os suplicantes, que a imploram se lhe faça por esta vê da sentença junta de Antonio da Silva Guilherme que falecendo
competente Mesa (de Inspecção) com a formalidade prescrita, e do este e tendo vivido do comercio se deu por administrador a casa a
costume, em que convem a viúva cabeça de casal, pala parte que lhe Luís José de Oliveira em beneficio dos credores dela que se acham
toca, que 0 seu consentímento assina, para se obviarem todos os extintos, e porque eles têm noticia que o dito administrador esta
prejuizos, que o providente alvara contemplou» dando as suas contas, e os suplicantes querem ser ouvidos nas mes-
mas e procederem a partílhas do liquido que lhes fìcar, e para que as
mesmas se façam em Juízo competente. P. a V. A. R. a graça de
9 lbid. Caixa 344, pacote 1. mandar que junta esta aos autos de inventario seiam eles remetidos
'° Ibai, Caixa 546, pacote 1. na forma que estiverem para o juïzo da Ouvidoria da comarca que

100 101
“Fr

os suplicantes têm elegido para nele requerem o que lhes for a ocultou no seu caviloso requerimento, pelo que tudo concorre para
bem.›› que se observe, e tenha pleno efeito a sentença do Tribunal que
Por este documento se vê que a viúva, à qual se juntara o hercleiro julgou, e deu por extinta a dita administração.››12
que entretanto se habilitara, não vira qualquer inconveniente em que a Como vemos, não só demorou o processo 9 anos como as contas
administração fosse feita por nomeação da Real Junta do Comercio, apresentadas não puderam ser aprovadas devido a irregularidades.
mas uma vez terminado o ajuste de contas ela pretendia ter voz activa Neste caso não se fala nem em viúva nem herdeiros, mas em que
na questão, pois chegara o momento das partílhas e ela tinha a sua condiçöes ficavam os familiares do comerciante morto enquanto a
meação a defender, assim como o herdeiro a sua herança. A Junta solução final não era dada pela junta? A situação das viúvas de nego-
contudo indeferiu o pedido de entrega dos autos de inventario ao ciantes nem sempre era confortável. Uma delas, dado que o marido
Juízo da Ouvidoria «por ser oposto ã lei››“. falecera «onerado de imensas diñculdades», nada quis, estando resol-
Este processo de administração demorou 5 anos e o administrador vida a «fazer abstenção total de todos os direitos e acçöes que lhe
ainda pediu mais 6 meses de prorrogação. Esta demora na prestação competem, ou possam competir pelo falecimento do dito seu marido
de contas era frequente e por vezes a Junta não permitía maiores para fìcar assim desligada de qualquer responsabilidade». Desejando
dilaçöes. Quando, em Agosto de 1819, Bernardo Manuel da Silva, só «viver em sossego››, sem ser incomodada com muitas causas, esta
nomeado pela Junta administrador dos bens do falecido negociante viúva pretendia que a junta lhe tomasse «termo de abstenção» em
Manuel José dos Santos Lima, solìcitou a prorrogação por mais um Setembro de 1809, mas tal acto não competia aquele tribunal. Passa›
ano, alegando que as dívidas activas eram «de dificil cobrança» e que do um ano ainda a viúva andava às voltas com os credores do marido,
as habilitaçôes de muitos credores se achavam ainda pendentes, a o que mostra que não conseguira exìmirase de responsabilidades: «em
resposta dos sete deputados, a 11 de Setembro, foi a seguinte; «Pare- execução feita ao seu casal ficara a suplicante destituída de todos os
ce ao Tribunal ser indeferível a pretensão do suplicante depois de bens como reconheceram os credores››13.
uma demora tão escandalosa, quando assinando termo de administra- Sobretudo no caso de o negociante falecido deixar filhos naturais,
dor em 24 de Setembro de 1810, e sendo por vezes compelido a a arrecadação de bens pela Real junta do Comercio e a sua adminis›
finalizar a administração, tem sabido com subterfúgios espaçä-la até tração por um administrador por ela nomeado criavam, para a família
que forçado ofereceu contas dela em Janeiro de 1815, que, depois de ilegítima, uma situação mais complicada do que quando o pai natural
examinadas na Contadaria, não foram aprovadas, e em razão de tão se dedicava a qualquer outra actividade. Em inicios de 1817 Matilde da
grande sucesso, julgou o Tribunal por extinta a mesma administração Encarnação apresentou ã Junta uma certidão de baptismo de dois
em sentença de 19 de Outubro, remetendo tudo para o juizo dos filhos menores (um de três anos e outro de oito meses) que tinham
Defuntos e Ausentes na forma do alvarã de 17 de Junho de 1766, e sido reconhecidos «nos batistërios» por filhos naturais de Caetano
por não aparecerem herdeiros, da qual sentença pediu vista o supli- Gonçalves Lage. Este morrera havia quatro meses e os bens tinham
cante assinando termo de juramento de calúnia, e de estar dentro dos sido arrecadados pela Junta, mas as crianças, segundo as leis do reino,
dez dias da noticia, e sendo continuados os autos em 18 de Abril de deviam ser alimentadas ã custa dos bens do pai”.
1817 ao seu advogado com o termo legal de vinte e quatro horas para Toda esta documentação mostra que, se por um lado uma maior
os embargos, só agora os deu sem os embargos, tendo por esse racionalidade da escrituração mercantil permitía a separação mais
subterfúgio gozado mais de dois anos, as quais circunstâncias ele rápida entre o patrimonio familiar e o capital aplicado ao comercio,
a situação dos familiares, em caso de morte ou falência do negociante,
11 Um outro processo idêntico a este teve lugar em 1818, quando foi apresentado ainda era mais dificil do que se o chefe de família se entregasse a outro
ã Real junta do Comercio o balanço da casa do finado Francisco josé Gonçalves, tipo de actividade”.
cujos credores, num total de 15, tinham a receber 52695125 réis. Também estes
requereram, ao abrigo do alvarã de 17 de Junho de 1766, que os bens do falecido,
em vez de serem arrecadados pelo tesoureiro dos Defuntos e Ausentes, fossem 'Z Ibid, Caixa 547, pacote 1.
postos em administração «para serem pagos os mesmos credores, visto serem '5 Ibid., Caixa 347, lata B, pacote 2.
quantias avultadas». Queriam ainda que fosse administrador Francisco José Vieira 14 Ibid., Caixa 547, pacote 1.
«por saber dos fundos da casa do mesmo falecido» (ANR), Real junta do Comercio, '5 A separação entre patrimonio familiar e capital mercantil, conquanto iniciada
Administraçao de Bens, Caixa 546, pacote 2). pela criação e pela actuação da Real junta do Comercio, em Portugal primeiro e no

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7'

A legislação referente ã herança de negociantes permanecía bastan- Quando não havia muitos credores, nem estes temiam demoras no
te complexa no ñm do período colonial. Dois textos contudo pare- pagamento das suas dívidas, a herança dos comerciantes seguia os
cem-nos fundamentais para esclarecer um pouco a questão: o alvará trâmites normais, havendo contudo o cuidado de que o testamenteiro
de 17 de Junho de 1766 e o alvarã de 10 de Novembro de 1810, fosse alguem conhecedor dos negocios do defunto. Na Gazeta do Río
ampliando o anterior em consequência de uma consulta da Real junta dejømeiro de 29 de Outubro de 1808 lemos o seguinte aviso; «Quem
do Comercio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Estado do Brasil e quiser comprar 1/4 do bergantim São josé Grâo Penedo, ou Monte do
Dominios Ultramarinos. Carmo, víndo de Benguela, pertencentes aos bens do falecido Antonio
Neste segundo documento a disposição contida no anterior de que de Melo e Oliveira, fale com Antonio Jose Pinto de Sequeira, testamen-
poderiam ser entregues a administraçoes os bens dos que falecessem teiro do mesmo e negociante desta praça, morador nas suas casas na
sem testamento foi ampliada para aqueles «negociantes interessados rua do Ouvidor.››
em sociedade, ou pessoas que devam a negociantes quantias dignas A actividade mercantil e a autonomia que ela exigía levava alguns
de contemplaçãon, mesmo que tivessem morrido com testamento. jovens a encaminhar ao Desembargo do Paço uma petição para a
Nesta circunstância procedía-se logo a inventário no distrito da Corte obtenção do provimento de suplemento de idade necessãrio ã sua
do Rio de janeiro «perante o desembargador juiz conservador dos emancipação. Domingos Jose Antunes Guimarães júnior pediu a sua
Privilegios do Comercio, e nas Capitanias perante os presidentes aos 22 anos, provando com documentos «ser despachante da Alfân-
das Mesas de Inspecção e, onde as não houver, perante o magistrado dega e negociante consignatãrio da praça de Pernambuco, aonde
do territorio, para ser a terça entregue aos testamenteiros». Isto por- constantemente tem negociado com toda a fe, credito e probidade,
que era da terça que se retiravam as quantias necessárias para o tendo sido juntamente consignatário de seu proprio pai existente na
funeral e missas e também para os legados pios. E a este respeito a cidade do Porto». Queria emancipar-se «para melhor poder aumentar
Mesa de Consciência e Ordens estava atenta. o giro do seu comercio e com poder e direito arrecadar, administrar e
Embora a administração dos bens pudesse ser solicitada àjunta do agenciar em seu nome todos os seus bens e fazendas, visto ter inteira
Comercio pelos principais credores do morto, uma vez concedida o capacidade». O jovem Domingos, ate então apenas consignatãrio de
administrador imediatamente tornava pública a sua nomeação para negociantes pernambucanos e de seu pai, negociante no Porto, pre-
que outros eventuais credores se pudessem apresentar. Vejamos o tendia certamente passar ele mesmo a negociante por conta própria e
seguinte aviso publicado na Gazeta do Río dejaneiro de 2 de Agosto dai a necessidade da sua emancipação antes da idade de 25 anoslä.
de 1817: «Antonio Dias da Costa faz saber que pela Real Junta do Mesmo individuos com 25 anos achavam mais prudente, quando se
Comercio, Agricultura, Fábricas e Navegação deste Reino do Brasil e dedicavam a actividades mercantis, pedir a emancipação para não se
Dominios Ultramarinos se acha nomeado administrador dos bens do levantarern quaisquer dúvidas na gestão dos seus negocios. Um reinol,
finado Antonio Francisco Roso portanto avisa a todos os credores do Francisco Antonio da Silva, «tendo projectado seguir nesta cidade (Rio
mesmo finado, e que no prazo de dois anos compareçam a legitimar de Janeiro) o comercio, bem como jã o seguia em Lisboa, e para
suas dividas perante o mesmo Tribunal debaixo da cominação de que, poder estabelecer-se e so por si fazer validos todos os negocios e
fìndo o dito tempo, não serão mais ouvidos, e se remeterão para os transaçoes que fizer e dar inteira força às cartas de ordem que
meios ordinarios» passar», pedia em 1812 a sua provisão”.
O estudo dos negociantes do fim do período colonial, sobretudo
no que se refere às suas carreiras e à sua vida familiar, faz-nos notar
Brasil depois, ainda estava muito enredada na legislação vigente. Na passagem do uma forte tendencia para o celibato, talvez pelo receio de que a exis-
Antigo Regime para a Monarquía Constitucional houve quem apresentasse ao Sobe- tencia de filhos e a divisão da herança pudesse de algum modo pre-
rano Congresso uma proposta de elaboração de um Codigo Mercantil (ã semelhança judicar o sucesso da sociedade mercantil. Era muito comum um tio
do que jã existia na França desde Napoleão) e de criação de Tribunais de Comercio solteíro chamar para os negocios um sobrinho, o qual depois dava
que substituiriam a Real junta de Comercio. Mas nessa altura pensava-se mais na
questão das falencias comerciais e dos seguros do que propriamente nas relaçoes
entre patrimonio familiar e sociedade mercantil. (Reflexoes sobre Código Mercantil,
sobre Tribunais de Comercio e sobre navegação mercantil, por Diogo Ratton, Lisboa, 16 ANRJ, Desembargo do Paço, Emancipação, Caixa 109, pacote 1, documento 13.
27 de Outubro de 1821.) 1' ANRJ, ibid., Caixa 110, pacote 3, documento 74.

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'W'

continuidade ao empreendimento sem haver diminuição do capital Estas informaçoes dos censos parecem revelar uma carreira no
mercantil”. mundo dos negocios. Inicialmente, desprovido talvez de capitais sufi-
Muitas sociedades comerciais reuniam contudo pais e filhos, como cientes para negociar por conta própria, manteve uma sociedade com
podemos ver por um anúncio colocado na Gazeta do Rio dejameiro a o sogro, a qual se desfez antes mesmo da morte deste. Era ao mesmo
2 de Março de 1820; «Antonio jose Airosa, negociante desta praça, tempo comissário de vârios negociantes de Lisboa: Francisco Higino
anuncia que tem interessado o seu filho João Antonio Airosa no seu Dias Pereira, Bernardo Clamousse e Companhia, Antonio Rodrigues
negocio. Esta sociedade girará com responsabilidade in solidum de- Dias, Pauiino dos Santos Leal e Feliciano Bernardo Velho Oldemberg.
baixo da firma Antonio jose Airosa e Filho, assinados os actos dela por Infelizmente não chegaram ate nos os seus livros mercantis (o
um, ou por outro socio. E que todos os comitentes desta ou outras borrador, o diario e o copiador) mas o seu caderno de assentos
praças deverão de hoje em diante dirigir suas ordens ã mesma debai- particulares, miraculosamente preservado, anota os seus prejuizos
xo daquela firma.›› comerciais, estabelecendo uma diferença entre os efeitos enviados
Ainda e dificil perceber os criterios com que, havendo varios filhos, para Lisboa para pagamento daqueles negociantes e as outras merca›
um era escolhido para suceder ao pai nos negocios enquanto que os dorias enviadas por conta própria, como por exemplo, cera da terra,
demais tinham a liberdade de seguir outras carreiras. Para alcançar- mel, couros comprados no sul, cafe. O açúcar e a mercadoria mais
mos este objectivo, seria necessãrio proceder a um estudo de biogra- frequentemente mencionada, havendo, por exemplo, referências a
fìa colectiva, capaz de revelar as estrategias familiares em operação no 7 caixas que, «por causa da invasão dos franceses em Lisboa, foram
mundo mercantil. Enquanto esse trabalho não for realizado, algumas parar a Londres aonde se venderam com o prejuizo de 37$667 reis››2°_
biografias poderão talvez elucidar-nos um pouco a tal respeito. Quer como comissârio quer como negociante, a actividade mer-
Português, nascido em Penela, no bispado de Coimbra, em 1752, cantil de Costa Aguiar exigía a contratação de caixeiros para fazer a
Francisco Xavier da Costa Aguiar viajou para o Brasil com a mãe e os escrituração e logo na sua primeira viagem a Lisboa, em 1785, contra
irmãos em data ignorada. Encontramo-lo instalado em Santos, princi- tou um que trouxe consigo e a quem pagou a passagem, sinal de que
pal porto da Capitanía de São Paulo, em 1784, ano do seu casamento. no fim do sec. xvut ainda não abundava, nos portos menores, esta
Viveu nesta vila ate 1815, e depois mudou-se para a cidade de São categoria profissional que exigía um saber prático ou a frequência da
Paulo, onde residiu, por razoes de saüde, durante os veröes de Aula de Comercio. Nas listas nominativas dos habitantes de Santos,
1815, 1814 e 1815, por ser o clima do planalto mais salubre nessa estes caixeiros são designados, no domicilio de Costa Aguiar, como
epoca do ano. Morreu provavelmente em 1821, pois em 1822 sua «agentes›› ou «agentes agregados». Eram ambos solteìros, jovens, e
mulher, Bárbara Joaquina de Aguiar, aparece jã como viúva no mapa moravam com o negociante, cuja loja estava situada no andar terreo da
da população da vila de Santos”. sua resídência.
Utilizando o mapa de população de 1801, o primeiro que nos Quando, depois da chegada da Corte ao Rio de Janeiro, se criou o
informa sobre o modo de vida dos seus habitantes, ã frente do nome Banco do Brasil, o marques de Alegrete pediu a vãrios negociantes de
de Francisco Xavier da Costa Aguiar lê-se a seguinte informação; «vive Santos, entre os quais se incluía Costa Aguiar, que se tornassem accio-
de alguns artigos de comercio e das comissöes que tem de Lisboa». nistas. Mas este prudentemente escusou-se dizendo que, «em tempo
Pelo mapa geral de 1803 sabemos que na vila de Santos havia 30 nego- calamitoso da invasão dos Franceses», fora tomada uma galera, cuja
ciantes. Por esta altura e ainda em 1808 Costa Aguiar subsistia «de metade lhe pertencia; que havia no Brasil inundação de fazendas
alguns artigos de comercio», parecendo ter abandonado as comissoes estrangeiras (a abertura dos portos ocorrera em 1808), o que lhe
de Lisboa. A partir de 1812 surge indicado apenas como negociante. causara grande prejuizo; que tinha difìculdade na arrecadação do
cabedal que lhe deviam.
Originãrio de Portugal, comerciando com a metropole embora sem
'S Outras vezes uma sociedade reunia varios membros da família: «jose Joaquim
Carneiro Leal, negociante em Pernambuco, participa que a sociedade debaixo da
aplicar grandes capitais, nem querer correr grandes riscos, como e
lìrma jose Joaquim Carneiro Leal, e Companhia se acha extinta, e passa a nova firma que este negociante organizava o seu negocio, do ponto de vista
de Leal, lrmãos e Sobrinhos, a qual ajustará tanto as contas da dita sociedade, como familiar? O irmão João Xavier, também morador em Santos, e que
as particulares da amiga» (Gazeta do Rio de janeiro, 7 de junho de 1820).
*° AESP, ordem 155, tm 155. 2° Ver 0 meu livro Cultura no Brasil colónia, pp. 44-67.
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cuidava dos seus interesses quando o negociante se ausentava para rências a outro filho que o ajudasse na direcçao dos negocios. Ele
Lisboa ou para São Paulo. O fìlho primogénito Francisco Xavier cos- proprio dirigía a sua ampla rede de contactos, no Brasil e no exte-
tumava suceder ao pai na gestão dos negocios e efectivamente já rior. Morando sempre na Baia, o seu engenho estava entregue a admi-
aparece na lista de população de 1818 como negociante, enquanto nistradores, sem que ele precisasse de o dirigir pessoalmente. Do
que os seus irmãos seguiram carreiras diferentes (magìstratura com mesmo modo, um primo em Propriá cuidava de uma plantação de
estudos em Coimbra e carreira militar). A aprendizagem de Lun futuro algodão.
negociante fazia~se na loja paterna, ou na de qualquer parente ou Para termos uma ideia do seu tipo de actividade, Vejamos uma carta
conhecido, e pelo caderno de assentos de Costa Aguiar se vê que dirigida a um correspondente em Nantes a 29 de Novembro de 1819:
ele gastou muito menos dinheiro com o estabelecimento deste filho «Os bons preços que encontraram neste país os produtos de minha
do que com o dos outros dois. lavoura me haviam feito abandonar o oficio de negociante, mas desde
Se por um lado notamos uma tendência ao celibato entre aqueles o ano passado fui obrigado a embarcar para Hamburgo por minha
que se dedicavam ao comercio, por outro lado mesmo aqueles que se conta a fim de não sacrificar pelo baixo preço que os ingleses pro-
casavam o faziam tardiamente. Costa Aguiar tinha 52 anos quando metiam. Por fazer um ensaio para França carreguei no brigue Jeanne
desposou uma jovem de 18; o filho Francisco Xavier, que o seguiu d'Arc 12 caixas.››
nos negocios, casou aos 34 com uma mulher 10 anos mais nova. No Em Londres, o seu principal correspondente era Custodio Pereira
domicilio deste, em 1818, encontramos também dois jovens agrega- de Carvalho; no Rio de Janeiro, a firma de Joaquim Pereira de Almeida
dos, brancos, solteiros, o que mostra que, tal como o pai, já tinha os e Cia., Amaro Velho e outros conhecídos negociantes daquela praça.
seus caixeiros morando com ele. No Porto tinha negocios com Nogueira e Cia., a quem escrevia a 4 de
Na opulenta Baia dos anos 70 do séc. XVIII encontramos, segundo o Março de 1820: «Pela abolição do comercio da costa da Mina, e pela
estudo de Catherine Lugar, um outro modelo de negociante casado, o introdução em Lisboa do espirito chamado wisque ficou sem extração
negociantesenhor de engenhozl. Tratava-se em geral de reinóis que a aguardente do Brasil no que sofro mui grande prejuizo, e não sei
casavam tardiamente com jovens brasileiras de familias já instaladas que fazer deste género. Lembroume mandar para a Rússia, mas não
nos negocios locais. Pedro Rodrigues Bandeira, natural de Viana do tive quem me instituisse a este respeito e por isso recorro a V. S. para
Castelo, casara com a filha de um exportador de tabaco da vila da aconselharem sobre a melhor direcção que poderia dar a 500 pipas
Cachoeira; Antonio Cardoso dos Santos, natural de Vila Nova de que tanto terei todos os anos.››
Gaia, casou-se quando já tinha quase 60 anos com a filha de um Como vemos, ao mesmo tempo produtor e exportador, senhor de
negociante, provavelmente de escravos. engenho e negociante (para não falarmos de uma carreira militar da
No fim do período colonial, Felisberto Caldeira Brant Pontes re- qual pedia frequentes licenças para cuidar dos seus negocios), Felis›
presenta na perfeição esta categoria de negociante-senhor de berto Caldeira Brant Pontes, no fim do periodo colonial, já não con
engenho”. Comissârio de várias casas comerciais, possuia um enge- tava tanto com uma rede predominantemente familiar para levar a
nho nos arredores da vila de S. Jorge dos Ilhéus, que foi visitado por cabo as suas transacçöes, como ocorrera com as geraçöes anteriores
Spix e Martius. Nele trabalhavam 260 escravos e produzia entre 9000 e de negociantes.
10 000 arrobas de açúcar, além de mantimentos e de um pouco de
algodão.
Felisberto, em 1819, tinha um filho a estudar em Coimbra, na área
de Matemáticas”. No seu copiador de cartas não ha quaisquer refe-

2' Catherine Lugar, The Merchant Community ofSaluaa'or, Baia, 1780-1830, Ph. Herdar um suficiente patrimonio para viver independente e honestamente é grande
D., State University of New York at Stony Brook, 1980. fortuna, mas então falta a paciência, e energia que é necessária para adquirir conhe~
22 Economia açucareira no Brasil no séc. xfx. Cartas de Feiisberto Galdeira cimentos, e reputação, pelo que entre nos morgado, e tolo é a mesma coisa. Meu
Bram Pontes, marqués de Barbacena, Rio de janeiro, 1976. filho não serà tolo, mas não teve no 1" ano a aplicaçäo que pedem as matemáticas.
23 Acerca deste filho, escrevia a 20 de Novembro de 1819 ao seu representante em Conheço que para isso concorreu certo companheiro do qual 0 separei. e este 2° ano
Londres: «Neste mundo de borra são todos os bens misturados com muitos males. será para mim o decisivo»

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m'

Relaçöes familiares

Muito se tem escrito acerca do papel da parentela na criação de


grupos de apoio político e social, incluindo mesmo as relaçöes de
compadrio. Pouco se tem estudado contudo as relaçoes entre os
membros da família nuclear: relaçoes entre marido e mulher, entre
pais e filhos, entre irmãos. Se os clãs familiares se revestem de especial
interesse para politologos e sociólogos, não ha dúvida de que são as
relaçoes mais estreitamente ligadas ã gestão do patrimonio familiar e à
sobrevivencia do núcleo que mais atraem o historiador.
No que se refere âs relaçoes entre marido e mulher, ha que salien-
tar a atitude por ocasião de um casamento tardío, ou de um segundo
casamento, que e notoriamente diferente daquela que presidia a um
primeiro enlace na iuventude. Solteiras ou viúvas, as mulheres com
mais de 50 anos, Velhas já para os criterios da epoca uma vez que
não podiam procriar, procuravam atrair um marido com a promessa
de o tornar seu herdeiro. Quer na legislação quer na atitude da socie-
dade em geral, notava-se uma profunda desconfianca em relação aos
segundos casamentos de viúvas, sobretudo se estas tinham filhos do
primeiro casamento. Temia-se que dissipassem os seus bens e preju-
dicassem os herdeiros legítimos.
Um outro aspecto relevante diz respeito ao direito de <<correcção››
que era atribuido ao marido perante uma mulher mal comportada,
correcção essa que podia assumir diversas formas, desde a clausura
num recolhimento aos maus tratos fisicos. Quanto ã atitude dos côn-
juges perante o adulterio do parceiro, ela era marcada pela assimetria
legal que dava ao marido todos os direitos de punição e à mulher
nenhum, a não ser as queixas e lamentos.
Dado que não possuímos quaisquer cartas pessoais ou diarios que
nos permitam avaliar o tipo de sentimento conjuga] presente nos
matrimonios do fim do período colonial, resta›nos examinar alguns
comportamentos para, a partir deles, formularmos algumas hipoteses
quanto às relaçoes entre marido e mulher.

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†"

Comecemos pela própria base em que assentava o casamento, ou deles dizia respeito às viüvas consideradas jã incapazes de procriar.
seja, o regime de bens entre o casal. Vimos ia que a maior parte das É essa legislação que está subjacente ao seguinte aviso colocado na
uniöes se fazia pelo sistema de meação e que os pais davam um dote ¡dade d'Our0 do Brasil, periodico publicado na Baia, a 17 de Julho de
ãs filhas, quando tinham posses para isso. Algumas uniöes, contudo, 1818; «Fazem ciente ao público Pedro Pires Gomes, Custodio Jose
escapam a esta regra geral, sobretudo quando se tratava de mulheres Leite, e Manuel Dias Gouveia casados com as três filhas de D. Mana
mais idosas ou que contraíam segundas núpcias. Nestes casos havia o Caetana, herdeiras instituídas no testamento de Francisco da Costa
cuidado de redigir, perante o tabelião, uma escritura pública de Carvalho, que a dita sua sogra sendo maior de 50 anos, passou a
«ajuste e contrato de casamento», como a que fez em 1799, na Capi- segundas núpcias com Francisco Jose Teixeira, que na forma da lei
tanía de São Paulo, Úrsula Maria de Oliveira, certamente porque, tendo não podem fazer alienação de bens, ou existentes, ou supewenientes
mais de 50 anos, não iria ter filhos. Ela deixava o marido «por seu sem nulidade, ou sejam bens de raiz, ou moveis na forma da lei, e
universal herdeiro de tudo aquilo que o seu casal possuir tanto de notiftcação judicial que se lhes fez, pela Ouvidoria Geral do Cíve1.››
móveis como de raiz por ser que ela não tem herdeiro nenhum Neste caso já não havia o perigo de surgirem filhos do segundo
forçado». Ou seja, os pais também já tinham morridol. matrimonio, mas o que se pretendia evitar era que a meação da mu-
Outras mulheres transformararn os maridos meeiros em herdeiros, lher fosse usada pelo segundo marido em detrimento dos filhos e
por meio de uma escritura em que o cônjuge ficava com todos os seus herdeiros.
bens, afastando assim a parentela. Decidiu Inãcia do Prado, também Uma das formas mais comuns de os maridos corrigirem aquilo que
moradora na Capitanía de São Paulo: «não poderão seus parentes eles consideravam a má conduta de suas mulheres era a sua reclusão
bulir para que de bens a inventario, não poderão ser admitidos a em um recolhimento, onde eram depositadas com a interferencia das
herança alguma, pois não tem herdeiro forçado como filho ou neto autoridades civis ou eclesiásticas. Estas tomavam por vezes tão a peito
que seja por linha recta» Mas Inácia arrependeu-se da sua generosi- os agravos do marido que chegavam a defender-lhe a honra depois de
dade e dirigiu no dia seguinte uma petição ao juiz ordinario para que morro. O vice-rei conde de Resende, perante um requerimento da
fosse revogada a escritura feita na vespera, «porque ã suplicante se lhe viúva de Luis Antonio Tinoco que pretendia sair de um recolhimento
oferecem motivos para não fazer o dito beneficio››2. onde o marido a colocara antes de falecer, respondeu desabridamen-
Sendo muito comuns os segundos casamentos, as relaçoes entre os te: «Constando-me a injuria, que recebeu Luís Antonio Tinoco con-
esposos eram regulamentadas, no que se refere ao patrimonio, por sidero insignificantes as providencias, com que ele pretendia desagra-
contratos antenupciais destinados a proteger as heranças dos filhos var-se, e para evitar maiores ofensas ã sua memoria fique a suplicante
dos anteriores matrimonios. Uma escritura de contrato de arms feita na inteligencia que desse recolhimento não sairá enquanto eu gover-
no 2° tabelião de São Paulo, em 1787, contribui para lançar alguma luz nar esta Capitanía (Rio de _Ianeiro).›› Chegava mesmo o vice-rei, na sua
sobre esses ajustes. Joaquim Leme e Margarida Maria de Jesus «esta- indignação contra a mulher prevaricadora, a dar provas de uma ironia
vam justos e contratados para se casarem na forma do Concilio Tri- sarcástica ao escrever: «Se tem dependencia, busque procurador; se
dentino, com condição porém de que, como ambos são viüvos e têm tem direito aos bens do marido judicialmente os alegue; e se tem
filhos e o outorgante Joaquim Leme ao presente não tem bens alguns, moléstias, cure-se delas, porque como se não usa de remedios na
e a outorgante Margarida Maria os tem, de que os filhos daquele não rua, recebera os melhores efeitos deles tomando-os no recolhimento
herdarão coisa alguma dos bens, que esta tem ao presente, e somente da Misericordia, que em outra qualquer parte, mas quando não logre
herdarão dos bens que se adquirirem na constância do matrimonio». saúde no sitio, em que existe a farei passar para o recolhimento da
Estes bens encontravam-se então já inventariados no Juízo dos Órfãos Taipa para receber ares mais saudáveis.››“ Ou seja, retirava assim 0
da cidade de São Pauloã. peso de qualquer alegação por ela apresentada para se livrar da re-
Além disso, desde a legislação do período pombalino, houvera o clusão em que se achava.
cuidado de regulamentar alguns aspectos do segundo casamento e um Este confìnamento durava por vezes um periodo extremamente
longo. Numa devassa acerca do procedimento do prior dos carmelitas
1 AESP, 2” Tabelião de São Paulo, Livro 12, fol. 40.
2 rafa., um 1o,f01. 54v.
5 lara., Lívro 6, rol. 97v. “ Anrr, Papers de 13ms11,Avu1sos 1, dotunientos 25, 1791.
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calçados da cidade da Baia, que fora apanhado na cela de uma reco- de violencia: «na ocasião em que este (o marido) entrou em casa, os
lhida no convento de Nossa Senhora da Lapa, D. Luisa Francisca do achou ambos deitados em uma rede, o que era bastante para suspeitar
Nascimento, mulher do capitão Manuel Jose Froes, negociante naque- a pertidia e adulterio e acender a cólera do suplicante que levado de
la praça, lemos no interrogatorio desta ao lhe perguntarem por que honra e brio cometeu aquela morte em desafronta sua julgando-se
não vivia com o marido: «Respondeu porque seu marido a não quer ofendido.›› Aos olhos dos desembargadores, este delito era «descui-
na sua companhia, e que se ha culpas da parte dela respondente, que pável pela paixão e arrebatamento com que foi cometido››7.
ate o presente as ignora, e que o referido seu marido com ordem do Embora as Ordenaçoes do Reino previssem uma punição rigorosa
Exm° D. Fernando Jose de Portugal, governador que foi deste Estado, das mulheres que cometessem adulterio, na pratica, no Brasil do fim
a fez recolher no recolhimento de São Raimundo, onde esteve o do periodo colonial, o marido traído limitava-se por vezes a separar-se
tempo de 10 meses, e depois desse tempo foi recolhida neste conven- da adúltera. A documentação fala-nos de um destes casos: «Vive em
to de Nossa Senhora da Lapa, onde se acha ha 18 anos incompletos Pernambuco um homem chamado jose Fernandes da Silva casado
por ordem regia.›› Ora como, por ocasião do interrogatorio, ela tinha com uma mulher chamada Clara Cardosa da qual se separou por esta
59 anos, esta sua resposta revela-nos que fora enclausurada aos 20 viver desonestamente e lhe haver feíto adulterio. Ficou em poder da
anoss. mãe uma menina chamada Luisa, a qual por ser de muita tenra idade e
Também na cidade da Baia, Ana Rita de Araújo, casada com Lino não ter então perigo, deixou fìcar em poder da mãe.››8
Pereira de Almeida, encaminhou em 1809 um requerimento para sair Comparando os dois tipos de reacção, percebe-se que a «defesa da
do recolhimento dos Perdöes, onde se achava recolhida desde 0 ano honra» estava certamente mais presente nas camadas superiores da
de 1789 (havia portanto 20 anos) «sem ela ter cometido delito algum, sociedade, enquanto que nas camadas populares a separação parecia
nem dado a minima sombra de infidelidade para com seu marido». Ele ser a solução preferida. Alias, entre mais de duas centenas de pedidos
ali a deixara quando se ausentara para Lisboa e a mulher, ao fim do de divorcio no Tribunal Eclesiástico de São Paulo, so um foi encami-
longo periodo de coniinamento, conseguiu a autorização para sair do nhado por um marido e mesmo esse deixa entrever que o homem
recolhimento, sendo o irmão do marido obrigado a continuar a pagar- estava mais assustado com medo de perder a vida ãs mãos da mulher,
-lhe a mesada de 80$O00 réis com que até ali tinha sido assistida na sua do que ofendido por ela ter praticado o adulterio9.
prisão religiosaó. Numa situação de separação entre os conjuges, autorizada pelo
Nestes casos de esposas trancadas em recolhimentos nem sequer Juizo Eclesiástico a pedido de um deles e atraves de um processo
se faz menção a qualquer comportamento adültero da sua parte. Aliãs, mais ou menos demorado, a questão da divisão dos bens era decidida
a respeito do crime de adulterio por parte das mulheres, raramente pelo Juízo Civil. Como em geral os bens do monte continuavam a ser
denunciado nos Tribunais Eclesiãsticos, a atitude dos maridos enga- administrados pelo marido enquanto decorria o processo de divorcio,
nados ia de um extremo ao outro, ou seja, da máxima violencia a uma muito frequentemente as mulheres expressavam o seu receio quanto ã
pacífica aceitação do facto. A sorte da adúltera estava portanto nas sua meação. Na Baia, em 1822, uma mulher não deixou de colocar,
mãos do marido, conforme este fosse mais ou menos violento, mais por duas vezes, um aviso na gazeta a fim de «fazer ciente ao público
ou menos propenso ao perdão. que não tendo acabado a contenda de divorcio que traz com seu
Em alguns casos, a defesa da honra levava um marido que se marido», este nada podia dispor dos bens do casal e portanto que
julgasse traído a assassinar a mulher que não se soubera comportar.
Em 1809, no Rio de Janeiro, Jose Galvão Freire estava preso depois de
ter confessado ter matado a mulher, D. Maria Eufrásia de Loiola.
7 ANR), cod. 149,vø1. 1, foi. 46-f-47.
Quando encaminhou ao Desembargo do Paço uma petição solicitan- 8 ANTT, Papeis do Brasil, Avulsos 1, documento 2.
do «seguro real para solto tratar do seu livramento», os desembarga- 9 Ver o meu livro Sistema de casamento no Brasil colonial, p. 218. O marido
dores no seu parecer revelaram toda a tolerância que rodeava este tipo parece ter sido pintor, pois declara no processo que ia dourar urna capela fora da vila
em que morava e que levara consigo a mulher «para com ela viver como bem
casado». A mulher contudo «se amigou» com 0 ermitão da dita capela e ele «em
uma noite a topou no mato com o sobredito cümplice, em acto pecaminoso».
ÉANTT, Conselho Ultramarino, Consultas, Maço 524. Quando o marido a repreendeu, «ela se conspirou contra ele, ameaçando-o de
ANR), 1119 23, foi. 51. que lhe havia de tirar a vida, ainda que fosse por arte diabolica, ou feitiçaria››.

114 115
Y

qualquer transacção ficava nula enquanto se não fizesse a partilha de nos arredores do Recife. Ou seja, o pai não tomou conta da menina,
bens”. preferindo entrega-la a uma instituição religiosa. «Muito sentiu a mãe
No inicio do sec. XIX, tendo aumentado consideravelmente o nú- Clara Cardosa tirarem-lhe de seu poder a filha, e entrou a fazer muitos
mero de pedidos de separação, os casais chegaram aos «divói-¢i0¿-, requerimentos para que se lhe tornasse a entregar o que não se lhe
amigãveis» que significavam uma simplificação processual e uma deferiu.›› Essas petiçoes eram entregues simultaneamente ao bispo e
maior facilidade na obtenção da decisão do Tribunal Eclesiástico. ao governador D. Marcos de Noronha. Ora o marido acusava a mulher
Enquanto que nos processos litigiosos era o cônjuge ofendido, quase de andar concubinada com um tal José Correia, descrito como um
sempre a mulher, que encaminhava a petição, nos amigâveis esta era «homem vil por nascimento, judeu de todos os quatro costados, cujo
redigida pelo casal de comum acordo e, em vez de se alegarem sevi- avô veio sambenitado para Goiana (Pernambuco), e as tias ha poucos
cias ou adulterio, a razão invocada era outra, como se pode ver pelo anos foram queimadas pelo Santo Oficio», Este Correia advogava
documento seguinte: «de viverem juntos por mais tempo se lhes não «com provisão do Desembargo do Paço», embora nunca tivesse estu-
pode seguir senão a sua ruina espiritual pelas continuadas discordias dado em Coimbra, e tornou-se o braço direito do novo juiz de Fora.
em que andam em consequencia dos desencontrados genios, de que a Crente na sua impunidade, «tomou a resolução de furtar do recolhi-
Natureza os dotou, não podendo jamais modifica-los por maiores mento a menina, e entrega-la a sua mãe, Clara Cardosa, com quem
diligencias que para isso tenham feito durante o longo espaço de anda concubinado, metendo-as ambas de portas adentro para o que
10 anos, que hã tanto que são casados.››“ Tentava-se já então evitar se valeu de um eremitão chamado Antonio Pereira que pedia, e tirava
«contestaçöes odiosas» e passava-se a alegar a «riesigualçglade de suas esmolas para a capela do dito recolhimento».
genios» que não permitía uma vida conjugal em boa harmonia. Quando a regente desta instituição deu por falta da criança, preve-
Ontem como hoje a separação de um casal acarretava uma situação niu o pai que imediatamente se dirigiu ao bispo para que a mandasse
dificil para os filhos. Mesmo quando se tratava de uma separação repor no recolhimento. Mas a situação não ficou por aqui, uma vez
amigãvel, o resultado podia ser a divisão das crianças, ficando umas que surgiu um conflito de jurisdição entre o prelado e o juiz de Fora.
com a mãe e outras com o pai. Isto ocorreu em 1820, na Capitanía de Depois de a menina estar novamente recolhida, a autoridade civil e os
São Paulo, num acordo firmado entre um casal que possuia 6 filhos, seus oficiais exigiram a sua entrega e puseram cerco ao recolhimento,
alem de dois que jã se encontravam casados”. Outras vezes a mulher não deixando la entrar comida nem bebida, apedrejando os telhados e
ficava com todos os filhos, dentro de determinadas condiçoes: «que as janelas, entrando na cerca e queimando toda a madeira que lã se
os ensinarâ e educara tanto na doutrina cristã, como em tudo o mais a encontrava. Este cerco durou dois dias e duas noites. Finalmente
que são obrigados os pais de familia e quando assim o não faça, o arrombaram uma janela e entraram pegando a menina ã força e entre-
suplicante os tornarã a recolher para sua companhia para os ensinar e gando-a a Jose Correia. O juiz de Fora fez então um auto «em que
educar como seus filhos e conforme e obrigado pela responsabilidade provou que ã menina estava fazendo sevicias, nodoas e pisaduras».
a que está encarregado para com Deus a respeito deles››13. imediatamente o bispo fez outro auto e ambos foram mandados para
Quando, porém, o marido se separava da mulher por esta «viver Lisboa, a fim de se resolver a questão.
desonestarnente››, a situação dos filhos ficava mais complicada. No Como vemos, a guarda de uma filha menor de pais separados
caso ja referido ocorrido em Pernambuco, 0 marido deixou a filha transformou-se no objecto de um litigio violento, em que a mãe,
fìcar com a mãe até aos 10 anos por achar que até essa idade ela com a ajuda do novo companheiro, tinha do seu lado a autoridade
precisava dos cuidados maternos e não corria perigo“. Mas depois, civil, e o pai a autoridade eclesiástica na pessoa do bispo. A menina
«temendo a inevitãvel perdição», fez petição ao bispo pedíndo que ficou sendo o joguete de uma disputa cuja resolução foi relegada para
este a mandasse para o recolhimento de Nossa Senhora do Paraiso Lisboa.
Não ha dúvida de que e mais fácil conhecer as relaçoes conjugais
em situaçoes de conflito do que em periodos normais da vida do
:Í ¡dade a'íOtxro do Brasil, 19 de Novembro de 1822.
casal. Estes simplesmente não se repercutem na documentação.
12 AC-SP, Divorcios, 15-15-252, 1821.
15 lbtd., Divorcios, 15-13-206, 1820. O historiador encontra-se assim perante um dilema: ou se debruça
M Ibtd., Divorcios, 15-10-166, 1817. sobre obras normativas, em geral produzidas pela igreja (catecis-
ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 1, documento 2. mos, directorios de confessores, prontuãrios morais), que regulamen-

116 117
Í”

tavam cuidadosamente a vida conjugal em todos os seus aspectos; ou embora possam beneficiar algum com os bens da sua terça. O desejo
tenia delinear o comportamento normal a partir das situaçoes anor- de manter a igualdade entre os filhos fazia com que os pais fossem
mais de conflito. muito cuidadosos nas suas disposiçoes testamentãrias, anotando tudo
A primeira solução é mais fácil. A essa imagem ideal do casal o que cada um dos filhos lhes ficara a dever, a fim de que se fizesse um
preferimos contudo contrapor a imagem real, ainda que fragmenta- ajuste de contas no momento das partílhas. É portanto a partir dessas
na, contida na documentaçao acerca das desavenças conjugais. Uma anotaçoes que podemos deduzir as relaçoes entre uns e outros.
das- facetas diz respeito a mulher que suportava durante anos as infi- Um reinol morador na vila de Santana da Parnaiba, mas que pos-
delidades do marido. suia na passagem de jundiaí um sitio com casas, «capela de barro»,
Uma senhora da Capitanía de São Paulo escrevia numa petição ao moenda, canaviais com alambique, 5 escravos, andara pelas minas de
governador que fazia esse «continuo sacrificio» para «conservar a Goiás e tivera nesta região umas casas alugadas por 18 oitavas por ano.
umao, que deve haver entre os cônjuges e na esperança de que os Teve ele o cuidado de esclarecer no seu testamento de 1778:
anos o fizessem conhecer seus erros e mudar de costumes». As infi- «meu filho Francisco dos Santos botou para fora ao lugador e morou
delidades do marido não eram «meras suspeitas nem leviandades nelas quatro anos pelo que me dizem e esta obrigado a pagar-me
femininas». O seu sofrimento era bem real porque assentava em o que me fez perder». Este mesmo filho ainda lhe estava a dever
«factos públicos». Ela tivera durante 15 anos o comportamento de 2$0OO reis de uma corrente que lhe vendera, alem de 4 patacas. Outros
uma esposa 'sofredora que continuava a lutar pela união desejada dois filhos, Agostinho Francisco e Sebastião, tinham levado cargas
entre os conjuges. Chegara contudo ao hmite da sua capacidade de para as minas de Goiãs, mas o pai previne; «devem me pagar os
aceitaçao e a revolta explodira quando o marido lhe tirara violenta- alugueis de meus cavalos por levarem sem ordem minha». Além
mente os bens, pretendendo deixã-la «em última miséria››15. O ataque disso, Sebastião fizera uma cobrança de um tanoeiro a caminho de
a sua meação fora portanto o estopim para a queixa. Donde se deduz Goiás e não prestara contas ao pai dessas 6 oitavas de ouro; e também
que, na relaçao do casal, a mulher esperava do marido uma boa o pai lhe pagara diversas dívidas, e não fora reembolsado. Este deve e
administração do monte. haver entre pais e filhos e uma constante nos testamentos do fim do
Uma outra esposa revela a mesma atitude]- 6 . Ela casara havia
_ 15 periodo colonial e revela bem que a contabilidade familiar era levada a
anos _«a tempo que ambos nada possuiam». A pouco e pouco «foram serio”.
adquirindo e conservando os bens de fortuna» de que se compunha o As mães, muito embora na maior parte dos casos não soubessem
seu casal: «negocio de fazenda seca, casas na vila, chãcara, uma escra- ler nem escrever, não deixavam por isso de manter actualizada essa
va e outros bens proprios de quem procura a decencia de sua casa». contabilidade. Escolãstica Antunes Lage, moradora na vila de Nossa
Quando esta situaçao se alterara, deixando eles de viver «em boa Senhora da Candelaria de Itu, depois de lembrar no seu testamento
harmonia», e passando ela a sofrer uma grande penúria, a crise sur- que dera 100$00O reis à filha para se casar, dizia ter cedido ao filho
gtu. Tambem aqui a mulher reage a uma usurpação daquilo que ela Antonio «um rapaz de idade de 17 anos e também 20 oitavas para o
considerava como seu, uma vez que era meeira dos bens do casal. seu transporte daqui para a vila de Cuiabã em conta da sua legitima
Se e dificil descobrir os sentimentos na relação marido e mulher, materna» e ao filho Félix, para a sua «noviciação e profissão», 52$000
um facto lìca claro na documentaçao: a união do casal mantem-se reis”.
enquanto o marido permanece bom administrador do monte. A mu- É importante ressaltar que as Orderzaçôes Filipinas proibiam cla-
lher aceita mais .facilmente infidelidades do que a perda do seu pam'- ramente a venda de bens de pais para filhos. «Por evitarmos muitos
moruo. Esta e a imagem real que as situaçoes de conflito nos revelam. enganos e demandas, que se causam e podem causar das vendas, que
Quanto as relaçöes entre pais e filhos, elas são dominadas por uma algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descenden-
atitude de justiça por parte dos pais. Quer os pais quer as mães não tes, determinamos, que ninguém faça venda alguma a seu filho, ou
parecem querer favorecer um filho em relação aos demais, muito neto, nem a outro descendente. Nem outrossim faça com os sobre-

15 AESP, Ordem 542, Lata 93 A. '7 Ibid., Ordem 456, Lata 2, Lívro 5, fol. 12v.
1” 1z»u,,of<i¢m 542., me 94. 1* ima, uvm 6, foi. 117.
118
119
`¶`

ditos troca, que desigual seja, sem consentímento dos outros filhos, Na sociedade colonial nota-se a protecção e amparo que os mem-
netos, ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito ven- bros masculinos da família nuclear davam às irmãs desamparadas por
dedor.››19 serem solteiras ou viúvas. Essa protecção era muitas vezes recompen-
Devido a esta determjnação da lei, ficou sem efeito, no 2° tabelião sada com a doação de um bem patrimonial. Basta atentar nas escritu~
de São Paulo, uma escritura de venda da metade de uma morada de ras de doação. Em 1808, uma viúva do Rio de Janeiro doou ao irmão
casas com o seu quintal na cidade, sitas na frente da rua das Flores, uma morada de casas de sobrado por este a ter acompanhado «desde
junto a Tabatinguera, que urna mãe queria fazer ao seu filho em 1781 a enfermidade de seu marido, ajudando-a a tratá-lo com muito desvelo
pela quantia de 4003000 réis, «que já tinha em sua mão por lhe dever e cuidado, e depois da sua morte tratando das inumeráveis dependen
de sua legítima paterna››2°. cias que ocorreram, e assistindo na sua Companhia até o presente››23.
A leitura dos testemunhos revela-nos, contudo, que as mães viúvas Na Baia, o vigário da freguesia de S. Pedro sempre teve a viver
vendiam efectivamente bens a filhos, mas só quando lhes tinham consigo três irmãs solteìras e cuidava da administração dos seus
ficado a dever as legítimas paternas. É de crer que nestes casos os bens, aplicando 3 mil cruzados em bens de raiz, «de cujos réditos,
demais filhos tivessem expressado de algum modo o seu consenti- por falecimento dele, elas pudessem viver». E interessante observar
mento, de acordo com o estipulado nas Ordenaçôes. Catarina da que, quando o padre morreu, seu irmão, um desembargador, desistiu
Assunção, natural da vila do Faial, bispado de Angra, redigiu o seu da sua parte da herança do irmão padre para que as 6 irmãs que
segundo testamento em 1781, estando «com saúde perfeita», em casa tinham pudessem receber quinhöes maiores”.
de seu filho António, na vila de Santo Antonio de Guaratinguetá, na
Capitanía de São Paulo. Tìnha 4 filhos; duas filhas, uma casada e outra
viúva, o filho António e o filho Bartolomeu. A este último ficara a
dever, da legitima paterna, 10$000 réis. Ele contudo ficara pago desta
quantia mediante a venda de uma moenda. Além disso, vendera-lhe
dois fornos de cobre, um grande e um pequeno remendado, tendo-
-lhe ele ficado a dever ainda, do total da avaliação, 55000 réis, «que me
irá dando para os meus gastos». E ainda umas terras por 60$0O0
«a 6 anos» 1.
As vendas de bens aos filhos eram assim mais frequentes do que se
poderia supor, mas a documentação mostra-nos o cuidado em não ir
contra a vontade dos herdeiros e sobretudo em não prejudicar os
outros irmãos. A viúva de um sargento-mor da Capitanía de São Pau-
lo, mãe de 9 filhos, senhora de um sitio com engenho e fábrica de
açúcar, declarava no seu testamento de 1797 ter vendido, com o
consentímento de todos os seus herdeiros, umas «sortes›› de terras
ao genro e a dois filhos, além de ter doado outras a outro filho
mediante escritura. Ao filho padre doara uma chãcara em que ele
fizera o seu patrìmónio, mas tal doação fora tirada na sua terça e
portanto não era questionável. já umas outras terras que lhe doara,
avaliadas em 500$O00 réis, teríam de ser descontadas no momento das
partílhas, menos 100$O00 réis que ele já pagaran.

19 Ordenaçöes Filrpirras, Lívro IV, tit. 12.


2° AESP, Tabelião de S. Paulo, Lívro 5, fol. 48v. 25 ANRJ, Secção do Poder Judicìário, Lívro de notas, n" 199, do Tabelião do
21 mia., ordem 456, Lam 2, Lívro 5, tot. 104v. 1° øficio, fol. 17›17v.
22 Ibid., Lívro 6, fol. 95v. 24 ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 136, pacote 2, documento 1,

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T

Velhice, morte e herança

Depois de analisarmos as relaçöes familiares, chega o momento de


pensar no problema da velhice na sociedade colonial e de pôr a
questão: quem cuidava dos velhos?
O proprio conceito de velhice é histórico. No Brasil do fim do
séc. XVIII, de acordo com a classificação etária presente nos mapas de
população, as mulheres eram consideradas Velhas aos 50 anos e os
homens aos 60. Vivía-se menos, mas se os efeitos da senilidade não se
faziam sentir de maneira tão presente como nas sociedades actuais, a
morte no momento do parto ou a morte violenta faziam parte do
quotidiano.
A documentação não é muito rica em informação sobre os velhos.
É preciso interroga-la, por exemplo, na descrição de fogos em que o
chefe, homem ou mulher, aparecem como tendo as idades acima
mencionadas, ou mais avançadas; investigar quem estava morando
no mesmo domicilio; atentar na ocupação de que tirava a sobrevivên-
cia. Ou então temos que ler atentamente os testamentos a fim de
recolher alguma menção à doença que seja mais explícita do que as
habituais fórmulas «estando enferma com perfeito juízo e entendi-
mento» ou «enferma de cama porém não prostrada››1. Ou, nas escri-
turas de doação, salientar os motivos de gratidão, por cuidados na
doença ou na Velhice, que estavam na raiz da decisão de doar um
bem a alguém.
Deste modo, fora algum documento excepcional, é nas listas de
população, ou na documentação notarial, que podemos sentir o am-
biente familiar, ou a solidão, em que os velhos se encontravam para
enfrentar os seus derradeiros momentos.

1 É preciso notar contudo que alguns testadores declaravam estar «com saúde
perfeita» e portanto a tedacção do testamento era mais uma medida de precaução do
que de necessidade.

125
T
No que se refere ao estudo dos domicilios chefiados por idosos e Dado que no séc. xvlll a idade dos individuos só era conhecída
idosas, citamos alguns casos pontuais, uma vez que a demografía aproximadamente e, para a mentalidade da época, o rigor nesta infor-
histórica não tem estudado igualmente todas as Capitanias. Para Mi- mação era considerado desnecessãrio, nenhum testamento nos forne-
nas Gerais podemos recorrer ã analise de Donald Ramos, que traçou ce a idade do testador(a). As referências à velhice são sempre
um perfil detalhado da população de Vila Rica em 1804, pois é desse imprecisas: «estando muito adiantada em anos». Uma forma indirecta
ano o mapa mais completo. A população total do distrito urbano era de averiguar se se tratava de um idoso ou não é através dos filhos; se
de 8785 habitantes. Destes, 978 homens eram chefes de fogo (52 %) e estes estavam todos casados, é indicio de que os pais já tinham en-
885 mulheres (47/1%), o que significa uma percentagem muito eleva trado na velhice ou estavam muito próximos dela.
da de fogos chefiados por mulheres, em geral viúvas ou solteiras com Por vezes era a filha casada que cuidava da mãe, como depreende-
filhos, dada a alta taxa de ilegitimidade na região. Se atentarmos agora mos por uma doação feita, em 1786, por D. Leonor de Siqueira de uma
nos fogos chefiados por idosos, encontramos 122 na faixa etária dos mulatinha de 5 anos a sua filha «em pagamento, remuneração e agra-
60-69 e 82 na faixa acima dos 70 anos, o que dá um total de 204 fogos. decimento de lhe ter assistido diariamente por si e seu marido ha
No que se refere às idosas entre os 50-59 anos, havia 151 fogos; entre muitos anos com alimentos, e da boa Companhia que a dita sua filha
os 60-69, 107 fogos; acima dos 70 anos, 91 fogos, ou seja, um total de lhe tinha feito››5.
349 fogosz. Contamos assim mais fogos chefiados por mulheres idosas. Também nos testamentos transparece a gratidão pelo amor filial.
Devemos contudo salientar que o historiador norte-americano, na Lucrecia de Almeida em 1797, depois de distribuir alguns legados com
sua analise, não estava especialmente interessado no problema da a sua terça, deixou uma chãcara, terras e benfeitorias a uma das suas
velhice, mas sim no da ilegitimidade e do concubinato. De qualquer filhas em remuneração da «fiel companhia» que lhe tinha feito e por
modo, entre os quadros que nos apresenta, aquele que se refere aos ter cuidado das suas enfermidades, «desprezando casamentos de sua
agregados, ou seja, pessoas que moravam no mesmo domicilio e que igualha›› só para não a desamparar. O valor daqueles bens era retirado
não eram filhos nem escravos, revela que os agregados estão mais também da terça, ficando portanto esta filha favorecida em relação aos
presentes nas residências de idososå. Isto mostra a necessidade que demais, a quem cabía apenas a legïtimaó.
estes sentiam de pessoas que os ajudassem a sobreviver. Na hora do acerto de contas, ou seja, no momento de ser redigido
Num estudo que realizei sobre as mulheres idosas na Capitanía de o testamento, o apoio recebido não era esquecido. Assim, uma mora-
São Paulo, utilizando as listas de população de algumas vilas, cheguei dora da vila de Nossa Senhora da Piedade de Lorena, na Capitanía de
às seguintes percentagens4: São Paulo, declarava que o genro lhe devia 6 doblas de uma escrava,
mas logo acrescentava: «como o dito meu genro pagou dois enterros
que fiz, um do meu marido, outro de um escravo, além disto me
Vilas Data Total Fogos % sustentou e me vestiu perto de 50 ou 40 anos tratando-me cuidado-
de chefiados so, zelando por mim como se eu fora sua mãe própria, hei por bem
fogos por idosas perdoar-lhe pelo amor de Deus e a meus herdeiros em tempo algum
não poderão puxar a si por ser minha vontade, vistos uns e outros
Cananeia 1798 268 58 14,17 beneficios que do dito meu genro tenho recebido.››7
Ubatuba 1798 577 57 9,81 Em 1778 uma viúva da Baia doou ã sobrinha uma morada de casas
Mogi das Cruzes 1799 1142 122 10,68 na cidade do Salvador, avaliadas em 2005000 réis, não só para ajudar
Guaratinguetâ 1806 1010 109 10,79 no seu dote mas também por gratidão: a sobrinha tratava-a com
«reverência e carinho», quer quando a tia estava de saúde quer quan
do se encontrava enferma. Além disso, o pai da moça cuidava com
2 Donald Ramos, «Vila Rica: Profile of a Colonial Brazilian Urban Center», Tibe muito zelo dos bens da viúva, que não possuia herdeiros forçados,
Amerfws, 55(4); 495-526, 1979.
1 raid., Quadro xxin.
4 «Old Age and lmpoverishment: Women in the Captaincy of S. Paulo Ln Late 5 AESP, 2° Tabelião de São Paulo, Livro 6, fol. 52v.
Colonial Brazil», apresentado em 1990 no Congresso Internacional de Ciências I
6 AESP ordem 456 Lata 2, tomas imilso.
1 Y

Históricas, realizado em Madrid, na secção sobre Histórica da Mulher. 7 A551”, iblìi. Í-¡VPO 3. f01› 16V. 1310

124 125
É-

nem descendentes nem ascendentes. Embora houvesse outros paren- casa, ou seja, lençóis e toalhas) ã sua enjeitada «pelo amor que lhe
tes, esta sobrinha era a preferida pelos cuidados que dispensava à tia tem e bons serviços que lhe tem feíto tratando-o com muito zelo e
idosas. cuidado, assim na sua saúde como em sua enfermídade». Esta exposta
As «filhas de críação» muitas vezes constituíam o arrimo de víúvas, só ñcaría empossada dos bens depois da sua morte, com excepção da
cujos filhos já tinham morrido ou se encontravam ausentes. Conquan- escrava e sua cria que desde logo passariam ã sua posse. Esclarecia o
to não herdassem, sempre recebiam um legado em recompensa do doador que o escravo, marido da escrava doada, ficaría forro por sua
apoío dado na velhice. Assim, por exemplo, Escolástica Antunes Lage, morte com a condíção de dar um ano de jornaís ã enjeitada. Deíxava
moradora na vila de Nossa Senhora da Candelaria de Itu, na Capitanía também forra uma outra filha do casal de escravos, cabendo ã enjei-
de São Paulo, declarava em 1795 deíxar metade da sua terça a uma tada a obrigação de «criar, educar e sustentar a dita crioulinha» até
moça que críara e vivía em sua companhiag. esta tomar estado, assim como de «concorrer com alguma coisa con-
Mesmo tendo herdeiros, María Domingas, em 1778, resolveu doar l forme a sua possibilidade para dote da dita crioula››13.
uma escrava mulata, «livre e desimpedida de dívidas sem dever dela Vemos assim que homens e mulheres, no fim do período colonial,
nada a ninguém», por esmola a uma moça, filha de uma tal Ana temendo uma morte inesperada, tomavam as suas precauçöes antecí-
Antónia que ela críara como filha. Deparamos aqui portanto com padamente e procuravam um tabelião para regístar as suas decìsöes
uma decisão a respeito de bens tomada apenas em função de laços quanto ã recompensa daqueles que os tinham ajudado nas suas en-
afectivos, tendo a doadora o cuidado de acentuar; «e nenhum dos fermidades e velhice. Observamos que o amparo lhes vinha principal-
seus herdeiros poderá embaraçar esta esmola que faço porque os mente de mulheres: filhas, sobrinhas, afilhadas, filhas de criação,
não prejudico nesta dãdiva de esmola a eles herdeiros.››1° enjeítadas, com algumas referêncías a genros que colaboravam com
Uma viúva, moradora no Bairro de S. Miguel, decidiu em 1782, suas mulheres no auxilio às sogras carentes de ajuda e companhia.
fazer doação de um escravo crioulo de 18 anos de idade a uma afi- Alias, a pratica de redigir testamentos estava muito espalhada nessa
lhada, exposta em sua casa e já então casada, «por a ter criado como época. Nas localidades em que havia tabelião, e não se tratando de
sua filha e ter-lhe muito amor», com a cláusula porém «de não fìcar pessoas tão miserãveis que não pudessem pagar a feítura do testamen-
sujeito às dívidas» do mando da moça. Ou seja, este não poderia to, era prátíca comum chamar o tabelião para redigir as últimas von-
pagar as suas dïvidas com o crioulo, nem os seus credores poderiam tades daqueles que se achavam acamados e «temendo-se da morte».
«pegar nele para seu pagamento››“. Em certos casos, contudo, não havia possibilidade de cumprir as
Foi também a uma afìlhada que Maria de Lara Bonilha, mulher formalidades notariais. Vou citar um exemplo, ocorrido na Capitanía
solteira, doou um sitio que possuia no Bairro de Santo André, «pela de São Paulo”. Leonardo Rodrigues de Morais, morador no bairro de
boa companhia, e fídelídade com que sempre a acompanhou até a Santa Ana, freguesia das Areias, a 9 de Agosto de 1811 fez uma «dis-
mesma doadora a casar com o dito João dos Santos e Moraís››'2. posição testamentáría», que assinou juntamente com testemunhas e,
Tal como as mulheres idosas, também os homens exprimiam a sua «sem mudar de vontade, faleceu da molestia em que se achava sem
gratidão pelos cuidados recebidos mediante doaçöes ou legados. Em convalescer dela». Aquele documento não foi aprovado «pela dístân-
1785 João da Silva Borges fez escritura de doação de «uma morada de cia em que morava 0 falecido testador» (mais de 6 léguas da vila de
casas sitas nesta cidade, na rua denominada das Flores, de dois lanços Nossa Senhora da Piedade de Lorena, onde havia tabelião). Por esta
térreos, de paredes de taipa de pilão, cobertas de telhas››, e também razão a viúva, Úrsula Maria Machada, a 26 de Outubro do mesmo ano,
de uma escrava do gentio da Guiné com uma cria fêmea de peito, apresentou ao tabelião uma «justif`1cação›› por testemunhas a fim de
assim como alguns trastes de sua casa (2 tachos, uma bacía, um validar «a disposíção de última vontade».
candeeiro de latão, um bofete, cadeiras e toda a roupa branca de O procedimento neste caso fora o seguinte; a 18 de Agosto (data
provável do falecimento) o testamento («cosído com cinco pontos de
linha branca e sem aprovação››) fora aberto pelo vigário colado da
3 AI-IU, Capitanía da Baia, Caixa 177, documento 22.
9 AESP, Ordem 456, Livro 6, fol. 117.
1° AESP, 2° 'tabelião de são Paulo, Livro 4,fo1. 17.
“ AESP, ¡bid-. Livro 5,f01- 87v~88- l, U AESP, ibfai, Livro 5, rol. 16sv-169.
12 AESP, fbídi LÍVIO 7, f01- 24V- M AESP, Ordem 456, Lata 2, Livro 8, fol. 6v e seguintes.

126 127
T

freguesia das Areias, pois «se queria saber suas disposiçöes para se lhe
dar cumprimento». A abertura do testamento pelo padre está relacio- l
I
nada com a necessidade de se conhecer a vontade do defunto no que
l
se referia ao seu próprio funeral e missas, realizando-se o enterro l

naquele mesmo dia. A 18 de Outubro foram ínquiridas as testemu-


nhas pelo juiz ordinario da freguesia. Estas eram em número de sete,
todas homens, entre os 25 e os 44 anos, vivendo das suas lavouras,
excepto um, o mais novo, que vivia «de seus negócios com sua tropa Jl

no caminho», ou seja, era tropeiro de gado muar ou cavalar.


Nos testamentos nunca é declarada a cor do testador, mas às vezes
o conteúdo do documento permite-nos detectar pelo menos o seu
estatuto jurídico. Germana de Camargo, moradora na vila de Nossa
Senhora da Ponte de Sorocaba, na Capitanía de São Paulo, além de
declarar ser filha de pai incógnito, dizia ter-se casado bem tarde, aos
62 anos, com um individuo que não só não trouxera nada ao monte,
como ocultava o dinheiro que tinha, alegando que lhe custara muito a
ganhar e que, se ela o apanhasse, havia de gasta-lo todo em libertar os
seus parentes. Donde se deduz que Germana era forra e desejava
comprar a alforria de outros membros da sua familia. Devíam ser ,_-n-n- 4

forras também aquelas parentas que ela instituìa como herdeiras,


duas tías e uma prima, além de uma afilhada que ela criara como
filha”.
Também Helena Gomes, moradora na vila de Nossa Senhora da ._

Píedade de Lorena, solteira, filha de pai incógníto, revelava no seu


testamento de 1808 que ela e sua mãe tinham sido escravas. Ela
deixava como herdeiras duas sobrinhas, filhas de um írmão, mas
sem declarar nada quanto ã sua condíção jurídicaló.
.._ -__..__. -"\
Estes dois exemplos comprovam que a gente de cor também se
preocupava em declarar as suas últimas vontades em tabelião, mesmo
que os seus bens não fossem muito valiosos. Isto explica-se pelo facto 1. Brinquedo de criança
de ser o testamento muito importante, não apenas para a instituíção Embora a criança raramente apareça na iconografìa de fins do séc. xvu,
do séc. XVIII e inicios do XIX, este pormenor de uma gravura mostra dois aspectos
dos herdeiros e distribuíção de legados, mas também para as dispo- importantes da primeira infância. Em primeiro lugar, num clima queme como
siçöes quanto ao funeral e cuidados com a alma mediante a celebra- o do Rio de janeiro (foi nessa cidade que Guillobel desenhou as suas lìgurinhas),
ção de missas. a criança era deixada ã vontade em casa, bríncando com pouca roupa.
Enquanto as demais partes de que se compòe um testamento Em segundo lugar, a criatlvidade local imaginara um brínquedo, feíto de madeira,
que ajudava a criança a dar os primeiros passos ao mesmo tempo que
pouco revelam da subjectívidade do testador, as disposiçöes quanto se divertia.
à terça evidencíam as preocupaçöes, os sentimentos de quem as de-
termina. Vejamos um exemplo". Na Capitanía de São Paulo, uma

'S Assp, ima, um 6, foi. 46-«_


*G AESP, ibm, um s, fet. 43.
'7 AESP, ibid., Livro 2, fol. 93v.

128
2. Tmjo infantil " Q
'_ › As imagensinfamls são raras mesmo
«_ Í , ,
no firn do periodo . quando
colonial,
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1. , j' - muitos viajantes estrangeíros
la-11, f _-_` V' 1 acompanhavam os seus relatos de
' '~ gravuras descritívas dos costumes
" _ ` _ brasileiros. Carlos Julião, contudo,
V. .`¡` deixou-nos algumas aguarelas do fim
7_ \, ví 'W."

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do séc. xvru e numa delas uma menina
foi retratada vestida exactamente como
4.0 velbo e a moça
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'-1*/".'_ :-.›fl as duas mulheres que a O pintor ridiculariza aqui o velho
que corteja a moça, tentando
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r-"fi-`-`\'.`,¬ " _ › acompanliavam. A criança como
entregar-Lhe uma carta amorosa.
_ .a , `“¬E_ " miniatura do adulto, sem A sociedade colonial, além de
I ¿ii_ g _ ' caracteristicas específicas, fica assim
- ._ , _ _ bem documentada. defender a igualdade social entre
os noivos, apoiava a igualdade
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5. Saída emfamíláa
Enquanto no espaço doméstico as crianças eram deixadas ã vontade,
na solene saída em público de toda a família elas eram vestidas 5. Bari de noiva
com roupas a condizer com as do resto dos familiares, mesmo o bebé Além do dote, a noiva recebia igualmente um enxoval, muitas vezes
ao colo da ama tem uma touca e uma fita colorida na cintura. encomendado em Portugal quando as familias eram ricas e tinham
comunicação facil com a rnetrôpole. Esses enxovais eram guardados
em baús como o da fotografia acima.
7. O militar
11»-
A carreira militar era uma
das opçöes. A oftcialidade,
além do soldo correspondente
ã hierarquía militar, podia ainda
receber outras formas de
remuneração pelos serviços
prestados ã Coroa.

6. A beata
Nas listas de população do fim do período
colonial, algumas mulheres aparecem com
a designação de beatas, que lhes era atribuida
oficialmente pelo recenseador. Eram mulheres
que fazìam voto de castidade e que se vestiam
como na gravura acima, trazendo sempre
um bentínho ao pescoço e um rosario nas mãos. 3_ 0 magistrado
A carreira da magistratura
era procurada por aqueles pais
de família.com posses para ff
mandar os filhos estudar em
Coimbra. Uma vez formados, M
os jovens podiam começar
a carreira em Portugal, mas logo `
em seguida eram enviados para
postos no Brasil.
R...

9. «Plano projectivo de um novo estabelecimenro de indios da nação


Caíqpó situado na margem do río Fartura», Goíãs, 1782
Depois de 0 Dlrecnórlo dos Índlos do Grão-Pará e Maranhão ter impulsionado a
crìação de povoaçöes indigenas, as novas vilas proiecladas obedeciam ã regularidade
exigida pela racionalidad: iluminìsta. Neste proiecno, as casas estão previstas
numa praça quadrada que rem num dos lados a igreja dedicada a Nossa Senhora
da Glória, tendo ao lado, com o n° 2, a casa do regenne. ou seja do director dos indios,
com as demflênclas nccessãrias c 0 paiol dos mantimentos, e um local para
10. Maloca indigena e sua
as plantaç de subslstência. Do lado direito do plano estão escritas as insuuçöes planta
quanto ã construção das casas. Em Víagem Filosófica, Alexandre
Rodrigues Ferreira foi atraído pela
forma das habltaçôcs indígenas, que
diferia profundamenua da das
hablraçöes dos brancos e dos indios
domesücados. Aliâs, a diversidade era
grande entre as tribos indigenas
quanto ã forma adoptada para as suas
moradas.
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11. «Plano de vila Bela, capital do Govemo e Capitanía General


40 MW0 G"'0fi`S0 Í---Í. 173@ 12. «Plano do arraíal de S. Pedro d'el-rex; Capitanía do Mato Grosso,
Construida com a regulandade característica das povoaçöes serecemistas, vila Bela 1 781»
unha ° Pfúádo do Govemo mfn 05 seus Íudms' “fu Qumel com Hwpiml Mlpm* O tipo de povoaçäo denominado «al-raial» caracterizava-se, como se pode ver por
os armazens 'em' 9' lmendêncm e casa de Fundíçao 9°' se encontrar em 'e3'ã° › este mapa do séc XVIII por um habitat disperso muito embora houvesse uma
mìneira. uma igreja e uma capela, a Casa da Cámara e Cadeia, uma praça principal, pmça megular com unía capela '
seis mas c cinco travessas, 0 pelourinho e foma, olarlas e fornos para fazer
as telhas necessãrias ã oonstrução.

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14. A rótula É
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Um dos principais í
inconvenientes das rötulas,
segundo os europeus que
habitavam uma cidade populosa
como o Rio de Janeiro, . --É--›¬.

era o facto de elas abrirem


para a rua, incomodando assim
quem passava. Não hã dúvida,
contudo, que apresentavam duas
grandes vantagens; num clima
queme, permitìam a ventilação
e impediam que o interior das
casas ficasse devassado.

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15. Baia de Botafogo
O aumento da população do Rio de Janeiro, com a chegada da Corte portuguesa
em 1808, levou â urbanízação de alguns subúrbios, como a baía de Botafogo,
local preferido para a construção de casas nobres destinadas ã aristocracia nacional
ou estrzmgeira.
15. Armárz`0
O interior das casas era
escassamenre mobìlado. Entre
os raros móveis existentes
contam-se os armarios para
guardar louças e Outros
objectos, pois as roupas eram
arrumadas em caixas ou baús.
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16. Vendedor
de louça
No Rio de janeiro
da segunda década
do séc. XIX eram os
negros que vendiam
pelas ruas, em
grandes tabuleiros,
as peças de louça
mais necessãrias ao
uso diåtior S6 em
alguns armazéns se
encontrava louça
iìna, inglesa
sobretudo.

18. Tenda de quitandeim


Nas cidades, as Camaras permitiam que negras quitandeiras armassem as tendas
para a venda de fruta e legumes, mediante o pagamento anual de uma cena
quantia. Em volta desta renda estão agrupados outros negros vendedores
de alimentos que deambuiavam pela cidade.

17. Venda de leite


O abastecimento quotidiano era feíto em geral
pelos negros vendedores das mais variadas
mercaderias. Na região de Minas Gerais, onde
abundava também o gado, o leite era um
aiimento comum, vendido às portas numa
vasilha de barro.
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¿¿t_`;›._,- - de escravas
19. Trajes
_ 'W Nas Minas Gerais dos fins do
¬ -1 Q , séc. XVIII, o trajo das negras,
21. Negros boleeiros e segeiros
*_ _ , _ ,, E- nitidamente africano, aliava se
ao uso de rosanos e crucrñxos Tal como os pajcns, os escravos boleeiros e segeiros eram vestidos
de ouro ao pescoço, objectos pelos seus seuhores de acordo com o prestigio social de que gozavam
esses que aparecem mesmo nos e da fortuna que possuiam. Quem podia deslocarse numa sege,
N ` inventarios de escravas, e não podia também despender mais com o vestuário dos escravos.
, ,A _. _ ` apenas nos das negras forras.

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20. Pajem negro 'J ,'_¿_,i ._f_. _
Numa cidade como 0 Rio de janeiro, .muy
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os negros escravos vestiam-se ` *"* 22. Escravos carregadores
conforme a função que Os escravos de ganho que se alugavam como carregadores vestiam-se
desempenhavam e os pajens, embora de uma maneira adequada ao seu trabalho, não dispensando
descalços, vestìam-se melhor que o chapëu e uma bolsa a tiracoio para guardar as moedas que ganhavam.
os demais.
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25. Trajosƒemíninos
(inicio do séc. XIX)
Na segunda década do sec. xxx, a moda
feminina mudara consideravelmente,
quer quanto aos tecidos utilizados, quer
quanto à forma. Uma especie de capa
substituía o manto, a rnantilha era mais 27. Um mascara com 0 escravo
frequentemente usada e o chamado «estilo 0 mascate, acompanhado pelo escravo, vendía pelas ruas do Rio
irnpério» era visível nas ruas do Rio de Janeiro tecidos vãrios para a confeoção de roupas. Ele só carregava
de janeiro. a vara para medir os tecidos.

26. Trajo feminino


28. Negra vendedeím
Para as cerirnónias religiosas,
as mulheres do Rio de janeiro, As negras também vendiam
na segunda década do séc. XIX, ; pelas ruas do Rio de Janeiro
usavam o preto e um véu lino alguns acessórios de vestuario
cobria-lhes por vezes o rosto. ¿___ como meias e chapéus.
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29. Cadefrínba
Pelas ruas ingremes e pedregosas de muitas vilas e cidades
do Brasil colonial, 0 meio de transporte mais usado,
sobretudo pelas mulheres de condição social elevada,
era a Cadeirìnha carregada por dois escravos.

50 Modelos de cadeira e de lrtena


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`--" _ "` - ~-' -_;-_-._¿.__ _ _ f 4~"f_†~_§. As indias acultnradas das povoaçöes
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*'=-?"†*¢=`^"ï-
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,f.-« __ ¬3'_"~`~_ :_-,¬_¬-1 H.- '~ ¬"'- " = organizadas segundo as normas
* 7 do Directorio pombalino executavam
tarefas que tinham sido aprendidas
_ ___ _ _.________”_¿ › -f1 com as mulheres brancas, como
a tecelagem de redes e o fabrico de
51. Tmnsoorte na fede tandas de bars. A fede era mdiçao
¿_-5 mulheres das armadas mais populares eram habitualmente indigena mas não tecìda com tear
transportadas em redes cartegadas por homens quando påecisavam como o que vemos no interior desta
de ercorrer distãncias mais longas, fora do perímetro ur ano. casa.
Umrz: manta colorida protegía-as do sol e das chuvas.

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,;k_ _ ` Iwurugn «Cu fisu, nweìƒkunu un tuu: ìillu wnqn diliundha u faith; dptilq, G-lqgfi. '_-

32. Uma carrera de passeio Í 4-... at-ns?


A carroça com cortinas, puxada por uma mula e conduzida por
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m escravo, era um meio frequente de transporte nos arredores do Rio _ Ñ _ _ _
äe Janeiro 54. Fabrzcapao de redes na Amazonia e renda de brlro
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37. Máscaras de danças


dos indios Tucuna
Spix e Martins, que visitaram esta
tribo, escreveram que as máscaras
eram usadas por ocasião do
55. Tmbalbo escravo nas minas nascimento de uma criança e
O trabalho escravo na mìneração represemavam 0 demónio lurupari,
era vigiado de perto a Fun de obviar 0 tufão e as feras do mato. Estas
0 furto de ouro ou diamantes. Nesta máscaras eram feitas de entrecasca
imagem dos fins do séc. xvul em e usadas no desfile festivo, em que
Minas Gerais, vemos que cada tomava parte também 0 recém-
capataz vigiava apenas dois escravos. -nascido.

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38. Viola que tocam os pretos


36. Revístando o escravo
mineiro â procura de ouro
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ou diamantes escondidos
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40. «Hospicio de Nossa Senhora da Mãe dos Homens na serra do Campa,
em Catas Altas, termo de vila Rz`ca››, cerca de 1802.
O próprio fundador do Hospicio, Frei Lourenço, desenhou, sem qualquer noçäo
de perspectiva, a construção que se encontrava no alto da serra e que. pelos dasenhos
à direita, parece estar localizada no tìm oe um caminho ponruado por cruzas.

59. Modelos de oratório


41. Esmoler
Figura típica das cidades como
o R10 de janeiro, era o esmoler 43. A_/"olía do Divino Espíríto Santo
das irmandades que saia às ruas Na semana anterior ã festa de Pentecostes, era hábito saírem às mas
para fazer 0 peditório para rapazes tocando vãrios instrumentos musicais acompanhando um jovem,
as várias actividades reìígiosas 0 imperador do Espírito Santo, ladeado por dois porta-bandeiras,
das confrarias. um dos quais carregava o saco para as esmolas. Percorriam assim as ruas
da cidade, cantando quadras alusivas ao motivo religioso,

42 Ermatao
A nprca figura do ermlrão
com o seu amplo Lhapeu, roupa
de frade e 0 alforge para
ae esmolas era vxsta
pnnupalmente nas udades 44. O oratorio na ma
e vflas populosas, onde O que nos interessa nesta gravura é o pormenor do oratório na esquina do
o peditono para a ermuda rédio. Nestes locais, reuniam¬se as P essoas P ara rezarem em con`unto
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ou hosplclo pudesse ser man a certas horas do dia.
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46. Funeral de um negro


45. Escravos doentes O escravo que não pertencesse a nenhuma irmandade era simplesmente carregado
Os escravos transportados de África em péssirnas condiçöes de alojamento numa rede para um cermtério colocado geralmente fora da cidade, sem qualquer
e alimentação desembarcavam muitas vezes doentes, quando não morriam durante acompanhamento ou cenmonia.
a viagem. Em 1810, com a crlação da Provedoria-mor da Saúde, as embarcaçöes
negrelras passaram a ser obrìgadas a fazer quarentena ao largo do Rio de Janeiro,
no ancoradouro da ilha de Jesus. Alí perrnaneciam pelo menos oito dias e nessa ilha
eram os negros lavados, vestidos de roupas novas e sustentados com alimentos
frescos. Sö depois de retemperadas as suas forças poderiam os escravos ser postos
ã venda no mercado do Valongo.

I
viúva com 9 filhos, assim estabeleceu em 1797 quanto ao destino da
sua terça:
«Por minha alma se dirão 200 missas, pelas almas de meus pais 50,
pelas almas de meus filhos, irmãos e pessoas falecidas de minha
obrigaçâo outras 50 e também pelas almas de meus escravos faleci-
dos outras 50 todas de esmola comua.
Deixo a meu filho Luciano Francisco 200$O00 réis de que já lhe
passei clareza em papel à parte.
Deixo a meu filho Manuel Pacheco uma sorte de terras de que lhe
passei escritura de doação em preço de 150$000 reis e sem embargo
de que na dita escritura se não faz menção do preço agora o faço por
ser este o mais racionável no estado presente e para evitar dúvidas
futuras.
Deixo a minha neta Ana, filha do meu genro Antónìo de Almeida e
de minha filha Teresa Antónia de Góis, 400$000 réis para seu dote que
meu testamenteiro entregará a seu pai e caso esta faleça será para a
irmã que se lhe seguir.
Deixo a minha sobrinha Ana, filha de meu irmão josé de Barros,
200$000 réis para seu dote e caso a dita se case antes do meu faleci-
mento e eu lho tenha dado em minha vida que constará de recibo,
meu testamenteiro não tomará a cumprir pondo-se esta verba por
satisfeita imputando-se sempre à minha terça.
Declaro que já dei a minha sobrinha Maria, filha do mesmo meu
irmão José de Barros, 200$000 réis de que seu pai me passou recibo.
Deixo a minha neta Maria Belina Góis Facheca, filha de minha filha
Maria Facheca e do falecido Filipe Correia, que se acha casada com
Antonio Rodrigues de Almeida Leite, 400$000 réis.
Deixo a minha sobrinha e afilhada Ana Campos, filha de minha
irmã Maria Leire e do falecido Antonio de Campos Monteiro, casada
com Jerónimo de Almeida 100$000 réis que o meu testamenteiro lhe
entregará para remediar sua pobreza com a condição de que aquilo
em que ela os empregar não ficara sujeito a dïvidas enquanto sua vida
e no caso que seja falecida se repartirão por seus filhos com a mesma
condição.
Deixo a minha filha Maria Pacheca, viúva do alferes Filipe Correia
47. Mausoléu de um retomado no cemitério
dos Prazeres em Lisboa
100$00O réis e sendo falecida se repartirão por seus filhos.
Deixo 100$000 réis para aquilo que for necessário para 0 culto de
A låpide comém as seguintes palavras: «Aqui ¡az Miguel
Ignãcio de Oliveira, ñlho legítimo do snr. João Rodrigues Nossa Senhora do Rosario que se acha na matriz desta vila (vila de
de Oliveira, e de D. Maria da Conceíção. Nasceu em Nossa Senhora da Candelaria de Itu) que ñcarão em poder do meu
29 de Setembro de 1785, saiu de casa de seus avós, onde testamenteiro para os distribuir no mais preciso para a dita Senhora â
fora educado na tenra idade de onze anos e três meses. sua eleição.
Viveu sempre incógnito de seus parentes, viveu sempre
em boa harmonia com os seus semelhantes, não só Deixo à igreja do Senhor Bom jesus desta vila 25$600 réis que se
em Portugal, como no Brasil como nas Américas €Iìl1l'Cg3I'80 30 SGU pl'O{€C[Ol'.
espanholas onde residiu por algum tempo [...l››.
129
Deixo a Nossa Senhora do Carmo 25$600 rëiS QUE S@ @fiü'€g21'ã0 210 para si uma mulata e uma negra que serviam a viúva. Ora estas duas
reverendo padre presidente daquele hospicio para alguma alfaìa de mulheres não penenciam â viúva: a mulata «sempre se reputou por
seu altar. livre», como afirmavam as testemunhas ouvidas no processo; quanto à
Deixo a Nossa Senhora da Candelaria desta vila 25$600 réis para negra com o filho, a viúva era somente comodatârìa, pois fora a
distribuir no mais preciso de sua igreja a eleição de meu testamenteiro escrava mandada por um certo morador da Baia «para criar de leite
e caso que eu em minha vida cumpra alguns destes legados que a uma filha da agravada e seu defundo marido» e, feita a criação,
constará de recibos meu testamenteiro não repetirá. deveria a ama voltar para a Baia. Portanto, a divida nunca podia ser
E por esta forma hei por distribuida a minha terça e se ela não cobrada nestas duas mulheres de cor que lhe prestavam serviços, mas
chegar a cumprir tudo se rateará por todos, exceptuando as missas sim nos bens próprios do casal”.
que peço que serão livres de rateio e havendo sobra depois de satis- Sempre que os credores não conseguiam cobrar localmente as
feitos todos os meus legados que tenho declarado se repartirá igual- suas dívidas, recorriam ã metrópole para obterem justiça. Assim pro-
mente por todos os meus herdeiros» cedeu em 1778 um morador da Capitanía da Baia, alegando que os
Nestas disposiçöes testamentárias encontramos duas classes de herdeiros do defunto Francisco da Rocha Pita, família de grande pres›
preocupaçöes: em primeiro lugar, a expressão de uma religiosidade tïgio social, não lhe queriam pagar os 695$0O0 réis que lhe estavam
forte que coloca acima de tudo os cuidados com as almas, não só da devendo por serem «muito apotentados e poderosos». Ele foi obri-
testadora, mas de todos aqueles a quem ela estava ligada, inclusive os gado a vir a Lisboa resolver esta questão, deixando no Brasil mulher e
próprios escravos; em segundo lugar, o desejo de proteger os elemen- seis filhos ao desamparo”.
tos mais desprotegidos da família, ou seja, os membros do sexo Quando as dívidas eram de um valor superior aos bens deixados
feminino, filha, netas, sobrinhas. pelo defunto, muitas vezes a sua viúva e os filhos desistiam da meação
Contrair dividas constituía uma das caracteristicas da vida no Brasil e da herança. Procedia-se então a um inventário judicial e os credores
colonial e, como a ética então vigente sublinhava a necessidade de um do morto rematavam os bens para serem compensados do dinheiro
ajuste de contas antes de entregar a alma ao Criador, em todos os que se lhes devia.
testamentos se faz referência às dívidas a pagar e às dïvidas a cobrar, Mas, mesmo retirando-se do processo de herança, nem sempre as
de estranhos ou dos próprios familiares. Uma senhora de engenho da viúvas fìcavam a salvo do assédio dos credores. Vejamos um caso que
região de Itu, na Capitanía de São Paulo, esclarecia em 1797; «Declaro ocorreu com uma viúva, moradora na vila de Santo António de Campo
que o que se me deve consta de créditos e clarezas que se acham em Maior da Capitanía do Piauí”. Um dos credores, morador na Parnaíba,
meu poder, o que eu devo também consta de créditos e clarezas e o tinha a haver uma elevada quantia, 1800$0O0 réis, mas não entrou no
que dever a algum mercador de fazendas de sua loge se estará pela sua rateio dos bens do defunto juntamente com os demais credores,
conta.›>'8 Esta declaração revela que, muito embora se passasse reci- preferindo recorrer ao govemador da Capitanía do Maranhão (â qual
bos das dívidas, também se aceitava a palavra do credor quanto ao a do Piauí estava subalterna) para que obrigasse a viúva a pagarlhe
montante devido. aquela quantia em «suaves›> prestaçöes anuais, arguindo que ela so›
Os estudiosos de História da Família no Brasil ainda não avaliaram negara bens no inventario e que possuia bens de uma herança. Rico e
suficientemente 0 peso das dívidas no patrimonio familiar, nem os poderoso, conseguiu um despacho favorável do governador. A viúva,
longos processos a que a cobrança dessas dividas por vezes dava por ignorância, começou por aceitar 0 ajuste, mas «logo houve quem
lugar, ocasionando assim despesas ã família. Alguns processos não lhe tirasse da cabeça este acerto», provavelmente um tio, seu pro-
terminavam no Brasil e os «agravos›› eram enviados para Lisboa para curador. Resolveu ela então recorrer ã Coroa para que o despacho do
serem examinados. governador ficasse sem efeito e na sua petição argumentava: se 0
Temos exemplo da complexìdade de um desses processos por credor entendía que ela sonegara bens no inventario, então que lhe
divida no parecer emitido em Lisboa, a 9 de Junho de 1780, em que movesse uma causa para que ela se pudesse defender. Quanto aos
um credor fizera penhora da divida deixada pelo marido tomando
19 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 75, pasta 4, documento 4.
2° AHU, Capitanía da Baia, caixa 177, documento 36.
la AESP, ibid., Livro 6, fol. 95v. 21 AHU, Capitanía do Piaui, Caixa 13, documento 19.

150 131
_____É _?,
bens da herança a que aludia, eles tinham-lhe chegado às mãos depois
da morte do marido e portanto ela não podia ser compelida a com
eles pagar a divida por ele deixada.
Temos aqui um exemplo transparente do modo como os podero-
sos preferiam usar da sua influência política a enfrentar a demora de
um processo judicial. O credor achava certamente que a viúva, igno'
rante e desaconselhada, se atemorizaria com a ordem do governador.
Foi necessâria a intervenção de um patente masculino, um tio, para
que ela se decidisse a lutar pelos seus direitos.
Na sociedade colonial as mulheres viam-se não raro prejudicadas
nos seus bens patrimoniais, quando não tinham algum homem na
família que defendesse os seus interesses. Era preciso conhecer os
meandros das leis testamentârias, ter um procurador capaz ou contra-
tar um advogado, para poder enfrentar os poderosos locais. Vejamos
o que ocorreu na Capitanía do Maranhão nos anos 80 do séc. XVIII”.
Falecendo Manuel Antonio da Cunha, morador e casado na vila de 11
Santo Antönio de Alcântara, ficou uma única filha menor, chamada
Maria Ciríaca. Por esta razão procedeu-se a inventario pelo juiz dos CONCUBINATO E FAMÍLIA ILEGÍTIMA
Órfãos daquela vila, tendo sido nomeado um curador para zelar pelos
bens da órfã. Desse inventario constavam umas casas de sobrado na
cidade do Maranhão e, por ocasião das partílhas, metade do seu valor
ficou para a meação da viúva e a outra metade para a filha menor.
Ora, aquelas casas estavam situadas ao lado das do capitão José
Vieira da Silva, «pessoa poderosa e amigo dos ministros», e este quis
compra-las. Como não conseguiu o seu intento junto do juiz dos
Órfãos e da viúva, encaminhou petição ao ouvidor para que lhas
fizesse vender na sua qualidade de corregedor da comarca. Apesar
da resistência da viúva, a escritura de venda foi feita. Entretanto, a
filha casou e logo 0 marido tomou a seu cargo a questão, movendo
uma causa contra o capitão José Vieira da Silva em que eram aponta-
das as irregularidades daquela venda. Mas, apesar da intervenção deste
elemento masculino da família, transcorreram cerca de dois anos sem
que a causa fosse sentenciada, pois o poderoso capitão pedia sempre
tempo procurando dilatar a sentença. Foi preciso recorrer a Lisboa
para que o novo ouvidor que ia assumir o cargo a sentenciasse rapi-
damente. Vemos assim que, antes do casamento da filha, a viúva não
fora capaz de lutar sozinha pelos seus direitos.

22 Al-IU, ibid., documento 4.

132
1
Mobiljdade geográfica e dispersão familiar*

A mobilidade geográfica da população masculina sempre teve


como consequência uma vida conjugal intermitente e uma estrutura
familiar caracterizada pela dispersão. Se no fim do período colonial as
entradas no sertão e as viagens para as minas se tinham tornado
menos frequentes, o recrutamento militar continuava a deslocar
homens de uma região para outra. Embora para a Tropa de Linha,
ou paga, fossem recrutados primeiro os solteiros e os mal-casados ou
concubinados, isso não significa que chefes de família não tivessem
de abandonar os seus lares, ou porque efectivamente seguiam a sua
unidade para onde ela fosse enviada, ou porque se viam levados à fuga
da sua povoação, ou freguesia, para não serem recrutados. Embora
menos penalizados, os milicianos também eram compelidos a «jorna-
das de 50 e 60 léguas por ida, e volta, deixando ao desamparo suas
casas e famílias››1.
Aqueles que ocupavam cargos na Cšìmara viam-se forçados a aban-
donar os seus arraiais e sitios para irem morar nas vilas durante o
tempo que durasse o seu mandato municipal, o que ocasionava a
necessidade da dupla moradia, como vemos pela representação dos
moradores da freguesia de Jaguari, no termo da vila de Atibaia, na
Capitanía de São Paulo, em 1797: «Que os moradores da dita fregue-
sia são obrigados a exercerem os cargos da república da vila de
Atibaia com notãvel detrimento, deixando suas casas, lavouras,

* Com a colaboração de David Higgs, da Universidade de Toronto.


1 Antonio Rodrigues Veloso de Oliveira, Memoria sobre 0 melboramento da
Província de São Paulo, São Paulo, 1978, p. 70. Do mesmo modo que 0 serviço
militar na Tropa de Linha ou nas Milícias, também 0 serviço da Coroa afastava os
homens das suas casas por largos periodos, Em 1821 uma mulher da freguesia de
Mboy, no termo da cidade de São Paulo, queixava-se de que o marido andava no
serviço do capim na vila de Santos deixanclo-a sozinha e desprotegida uma vez que os
filhos tinham assentado praça no Exérciro (AESP, Ordem 344, Lata 95).

155
mulheres, e filhos pelo ano da sua ocupaçãoz, alugando casas para sua rindo-se ã cidade do Rio de Janeiro, escrevia o vice-rei; «Os inumerã-
resídência, porque na dita vila as nao tem.›› veis individuos que nela vivem sem ocupação séria são pessoas
Quando não eram as obrigaçöes militares (ou a fuga a elas pela indigentes e pela maior parte mulatos e pretos que nascendo livres,
deserção) e os cargos municipais que forçavam os hot1'1€I'1S 3 Passfjlf ou alcançando de seus senhores cartas de liberdade abusam desta,
longos períodos longe das suas familias, eram as actividades econo- entregando-se a toda a sorte de vicios e passando a vida em uma
micas que os impeliam para uma vida itinerante. Tropeiros e mascates, inteira inação.››5
sempre em constantes viagens, pouco tempo permanecrarn nas suas Quanto aos negros e mulatos, escravos ou forros, a familia estru-
casas . Quando , em 1785, foram descritas em «D1vert1m€I1l0
m turada de acordo com os padroes dos brancos, conquanto existisse,
admirável» as ocupaçöes dos habitantes da cidade de Sao Paulo, a não era predominante entre a população de cor. Além de a viagem de
mobilidade geográfica da população urbana masculina ficou bem África para o Brasil ter destruido as redes familiares da sua região de
patente: «Os habitadores da cidade v1ve`m_de varias negoctaçoesz origem, uma vez em terras brasileiras e tendo passado de «boçais›› a
uns se limitam a negocio mercantil, mdo a cidade do Rio de Janeiro «1adinos››, a situação de escravidão levava a uma vida de constante
buscar as fazendas para nela venderem; (...) outros vao a Viamao mobilidade territorial: ou porque o escravo acompanhava o seu se-
buscar tropas de animais cavalares ou vacuns para venderem, nyao nhor aonde quer que ele fosse; ou porque era vendido a outro senhor;
so aos moradores da mesma cidade e seu continente como tambem ou porque, fugitivo, entrava pelo mato e ali vivia de uma maneira
aos andantes de Minas Gerais, e exercitam o mesmo negocio víndo precaria e insegura, correndo o rlsco de ser capturado pelo capitão
comprar os anímais em São Paulo para os ir vender a Minas, e outros, de mato encarregado de o caçar.
finalmente, compram alguns efeitos da mesma Cflpšïâflla. C0m0 S20 A fuga dos escravos nem sempre os levava muito longe. Sabemos
panos de algodão e açúcar, e vao vender as M1nas.››^ _ _ _ i que na região de Campos dos Goitacazes, na Capitanía do Rio de
Estas andanças masculinas tinham como consequencia mais visivel Janeiro, o escravo Luciano se conservou, depois da sua fuga, nos
uma vida sexual fora do matrimonio e a P1'0Cfia§ã0 de 51h05 Ílegïfi' matos da fazenda do seu senhor, víndo a ela de vez em quando falar
mos. Além disso, numerosos estudos confirmam que, no fim do pe- às escondidas com os companheiros de escravidão. Ele era casado
riodo colonial faltava a muitos individuos 0 ap0i0 I1ã0 SÓ C121 família com uma india de quem tinha quatro filhos e era provável que, en-
3 f .

nuclear como também da família extensa, incluindo vanos graus de quanto não foi capturado, vivesse com ela no mato a maior parte do
parentes. Ao lado das familias estruturadas segundo a tradição portp- tempoó.
guesa, havia numerosos brancos Classificados nas listas de populaçao No que se refere aos Índios, uma vez destruidos os laços familiares
como «vadios ou mendigos», incapazes de levašem uma vida seden- tradicionais que so podiam manter enquanto «bravos››, ou seja isola-
tãria nas povoaçoes e de ai constituirem família . Quanto a vadiagem dos do contacto com os brancos, a sua fixação em povoaçoes de
nas grandes cidades, ela englobava nao so os brancos das camadas acordo com as normas do Directorio dos indios do Grão-Para e Mara-
mais desprotegidas como tambem gente de cor. _ _ nhão, estabelecidas durante o ministerio de Pombal e não abolìdas
O vice-rei, conde de Resende, contrariava, em ^1798, 21 ldfilfi C01'f€f1ï€ imediatamente por D. Maria I, se por um lado impôs os padroes de
em Portugal de que se constatava no Brasil um exodo rural da popu- casamento e família seguidos pelos brancos, por outro lado, com
lação branca para as grandes cidades, gente essa que ficava ali sem serviços a serem prestados ao Estado ou aos particulares, obrigou a
ocupação. Em relação ao «grande número de gentes vadias», e refe- uma dispersão da população indigena e portanto levou ã fragmenta-
ção quer da família indígena tradicional quer da família catolica im-
posta.
2 D1,v01. 15, p. 99. Para termos uma noção mais adequada dessa dispersão indigena
5 Roreiros e notícias de São Paulo, São Paulo, 1977, pp. 85-4. _ _ basta examinar o «Mapa geral da população dos indios aldeados em
4 Na lista de habitantes da vila de Santos em 1803 hHV¡2› Pam Uma POPUIQCHO ¡WTG todas as povoaçoes das Capitanias do Estado do Grao-Pará, e S. José
de 895 pessoas ocupadas nas actividades militares, burocráticas, religiosas, agricolas,
rnineradoras, mercantis, artesanais, marítimas ou simples «jornaleiros››, 40 «vadios e
mendigos» (AESP, Ordem 152, Lata 152)- ESI@ É 399925 Um @X€')mP10› mas ¡0Cl05_°_S
mapas gerais da população neste periodo contem um grande numero desses indivi- 5 ANRJ, cøa. es, Livro s, fet, 139v.
duos por assim dizer desenraizados. 6 Silvia Hunold Lara, op. cif., p. 157.

136 157
.._______
Em primeiro lugar ha que mencionar a migração da alta adminis-
do Rio Negro no primeiro de janeiro de 1792››7. Nas 61 povoaçoes da
Capitanía do Grão-Pará foram contabilizados 9617 indios e 10 545 traçao colonial que, muito frequentemente, deixava a familia em Por-
tugal, ali regressando depois de um certo número de anos de serviço e
indias. Mas nas obseivaçoes a esse mapa são dados como ausentes
um rodizio administrativo. A esta se acrescentava a migração dos
das povoaçoes em serviços varios, ou sem qualquer razão, 5285 in-
magistrados e dos militares, que por vezes se fixavam no territorio
dios. As indias permaneciam mais nesses lugares e vilas mas também
brasileiro sem pensarem em voltar ao reino. Ao Brasil chegavam tam-
2258 se tinham ausentado. Na Capitanía de S. josé do Rio Negro, que
bém alguns professores e clérigos que certamente pensavam encon-
tinha 47 povoaçoes, havia 5514 indios e 5581 indias, mas nenhuns
trar na colonia uma melhoria de vida, talvez por não encontrarem em
dados são fornecidos acerca daqueles que se encontravam fora das
Portugal postos a que pudessem concorrer.
povoaçoes. Alem destas migraçoes individuaís, notava-se também uma migra-
Na Capitanía de São Paulo a estrategia adoptada pelos brancos
ção transatlãntica em corrente. Esta era constituida por aqueles que
consistía em ir ao interior buscar, junto de tribos ainda não
«domesticadas›› mas em contacto com os brancos, indios jovens iam para o novo continente por causa dos contactos e das informa-
çoes recebidas de conhecídos e vizinhos que tinham seguido o
ticomprados» ao cacique. josé Arouche de Toledo Rendon contava
mesmo destino. No caso do Brasil colonial as noticias podiam che-
numa «Memoria›› redigida segundo obsenraçoes feitas em 1798:
«Dos primeiros rapazes indios chegados a São Paulo, e comprados gfll' H Hldeia portuguesa de origem por intermedio de um viaiante ou
no Paraná por facoes e foices, tenho um, que hoje é homem robusto de Uma calm, 30 m€SIl'10 tempo que as notícias da terra natal tam-
de muitas forças, e bom trabalhador na agricultura. Eu o fìz baptizar bém Se espfllhävfim I10 local de destino. Os estudos recentes de
demograiìa historica, nomeadamente o de Maria Noi-berta Amgfim
na freguesia de Santa Ifìgénia como homem livre de nascimento.››B
sobre as freguesias de S. Mateus e S. Caetano na ilha do Pico mos-
Enquanto que para os indios puros a mobilidade geográfica era
tramlpma corrente migratoria para o Brasil desde a geração de
consequência de uni processo forçado de aculturação e da explora-
1740 .
ção da sua força de trabalho (apesar de serem «comprados›› eram
_ Além dos estudos de demografia historica, que infelizmente ainda
oficialmente considerados livres como vimos no exemplo anterior),
sao poucos no que se refere a emigração de Portugal e ilhas para o
a mobilidade geográfica do branco tinha por vezes como consequên-
Brasil no fim do periodo colonial, as genealogias recolhidas pelo
cia a miscigenação. Num processo da Inquisição em que o acusado era
Santo. Oficio por ocasiao habilitaçoes aos cargos de <<famifi;m=_-5»
um homem «bastardo››, ou seja, mestiço, que morava no termo da vila
permitem-nos fazer uma ideia, menos quantitativa mas mais individua-
Boa, na Capitanía de Goiãs, este declarou que 0 pai era um minhoto
lizada, da experiencia migratoria.
dos arredores de Ponte de Lima, no arcebispado de Braga, e a mãe
O pai do padre Portugal fora para o Brasil com 18 anos; o pai do
uma mulher bastarda do bispado de São Paulo. Quanto a ele, tinha
«comissãrio›› Luis Correia de Sá saira de Santo Tirso sua terra natal
nascido no arraial de Meia Ponte, na mesma Capitanía de Goiás, o que s . 1 1
para a America por volta dos 14 anos e o resto da familia ficara em
mostrava que a população feminina de cor ou rnestiça também deam-
Portugal. Por vezes os contactos mantinham-se através do Atlântico,
bulava com uma certa facilidade pelo territorio brasileirog.
mas outras vezes os laços familiares com a metrópole quebravam-se
Temos assim que às migraçöes internas das populaçoes locais se
Um negociante reinol da vila de Alagoas, ao habilitar-se ã familiatura,
acrescentava a migração transatlãntica, ainda muito pouco estudada
declarou «nao saber as naturalidades de seus avos paternos e mater_
no que se refere ao fim do periodo colonialm.
nos, por ter vindo da sua patria de menorlizdade, porém se persuade
seåem .todas daquele bispado de Aveiro» . já a rede familiar tran-
7 Actas do VColóquio Internacional de Estudos Luso-Brasiieiros. vol. I, Coimbra, sa antica actuou eficazmente na habilitaçao de um C31-mema da Baia,
1964, pp. 281-285, com lntrodução dej. A. Pinto Ferreira.
B Jose Amttche de roiedø Rendon, obras, sa@ Paute, 1978, pp. sz-sa.
9 ANTT, lnquisição de Lisboa, 2.779.
1° O artigo de Virginia Rau e outros, «Dados sobre a emigração madeirense para 0 ii . _ _ _ __ _
Brasil no século Xvlii» (Actas do VColóquio Internacional de Estudos Luso-Brasilei- com Mãma Noflåefïa Am_0f1m. «Í'}11'1181'a¶fl0 - Uma variavel demogralìca inlluente. O
_ por amento e geraçoes nascidas no sul do Pico entre 1740 e 1890», Ler História
ros, vol. I, Coimbra, 1964, pp. 495-505), refere-se apenas a meados do séc. xviii,
utilizando 0 livro de niatricula «dos casais e mais pessoas» que uvoluntariamenten
(Lisgoa) 22. 1991, pp. io-12.
ANTT, Santo Oficio, Habilitação, maço 21, Dil. 262, Joaquim.
quisessem embarcar para o Brasil.

158 159
¬pP*
de Janeiro, ao-nde de presente vivem, e casaram, e porque desejam
0 írmão, franciscano e qualificador do Santo Oficio, residente em passar-se a residir nas mesmas ilhas, e nao o podem fazer sem positiva
Lisboa, pode reunir a favor do irmão uma série de testemunhos de graça de Vossa Majestade, respeitando obedientes as decretais ordens
baianos que então se encontravam na Corte”. de Vossa Majestade, de que os casais da América não passem a residir
O impacto social da migração foi muito forte. Os maridos migran-
na Europa sem permissão real, e ainda que as ditas ilhas não sejam
tes viajando para longe da mulher podiam tentar arrumar um novo
senão denominadas amigas Américas, contudo pelo gran de Sua mua.
sistema de apoio familiar através de um novo casamento, como vere- ção hoje são contempladas como partes da Europa, depois do des-
mos no capitulo sobre bigamia. Garotos eram enviados para parentes
cobrimento da nova América, e porque um e outro não passam de
no Brasil, vendo-se assim muito cedo separados da sua familia.
saúde no pais do Rio de Janeiro, e têm nas mesmas ilhas bens para
Os filhos naturais seguiam frequentemente esse destino. Em contra- nelas residirem com vantagem ao que possuem no Rio de janeiro e
paitida, mais velhos e talvez doentes, procuravatn por vezes os reinóis -_ , ___
gozarao melhor saude naquela regiao, nestes termos suplicam a Vossa
5

voltar ã terra natal, como será analisado mais adiante no capitulo Majestade o conceder-lhes licença para se transportarem sem que o
sobre viagens, através dos pedidos de autorização para deixar a
excelentissimo vice-rei do Estado do Brasil, e mais magistrados os
colonia. impeçam, dispensando Vossa Majestade com os suplicantes a lei
Este regresso ã metrópole estava de certo modo assegurado ã alta
positiva a semelhante respeito.››15
administração colonial que geralmente exercia os seus cargos no Deste modo, o fenómeno migratorio no fim do Antigo Regime tem
Brasil sem levar consigo as familias. Mesmo aqueles que tinham ja que levar em conta não apenas a saída de Portugal e ilhas para o Brasil
nascido no Brasil pretendiam por vezes voltar ã terra dos antepassa- mas também o retorno, muitas vezes definitivo, dos migrantes. Em
dos e onde eles próprios tinham iniciado as suas carreiras. Desem- 1779 um reinol, que fora para a cidade do Grão-Para «voluntaria-
bargador da Relação do Rio de Janeiro, o solteirão José Luis França mente››, isto e, sem ser no- Real Serviço, e que levara consigo a mulher,
recebeu autorização, em Março de 1791, para viajar para Portugal permaiiecendo naquela cidade 23 anos, precisou de voltar a Lisboa
com duas sobrinhas e duas escravas, com a condição de libertar «para tratar de varias heranças» e de outros assuntos pessoais. Nada
estas ã chegada, uma vez que já não existia escravidão em Portugal. indicaàcontudo que pensasse voltar ao Brasiél depois de resolvidas as
Filho de um cirurgião reinol, estudou em Portugal e aqui se tornou
questoes que o tinham levado a metrópole _
magistrado. A sua primeira nomeação foi para Goa e, apesar de
. Alem dos estudos de demografìa historica a serem feitos nas vilas e
depois ter sido nomeado para o Rio de Janeiro, a sua formação cidades de Portugal e ilhas, e das informaçoes que se podem colher na
portuguesa e a carreira marcada pelo rodizio judicial não lhe permi- documentação inquisitorial, ou nas licenças para viajar, a dispersão
tiam mais adaptar-se ao Rio de Janeiro, onde nascera; «Eu passo familiar pode ainda ser estudada através de uma serie documental
sempre aqui mal. Padece o corpo, porque o clima em nada me tem que ainda não provocou um estudo sistemático por parte dos histo-
sido favorãvel; padece o espirito, porque não me posso conformar riadores; as «justifìcacoes ultramaririas» referentes ao Brasil no arqui-
com os costumes do pais» Como estas palavras se dirigiam ao In- vo dos Feitos Findos da Torre do Tombo. J. I-I. Pires de Lima foi o
tendente Geral da Policia, Pina Manique, destinavainse certamente a
primeiro a tirar partido dessa série ao estudar a emigração açoriana
conseguir mais facilmente a autorização para viajar com as para o Brasil no século XVIII".
sobrinhaslf. Haveria ainda que examinar cuidadosamente os arquivos notariais,
Situação diversa da dos administradores coloniais era a dos reinóis
sobretudo do norte de Portugal, a fim de localizar as escrituras entre
que tinham emigrado e pretendiam voltar ã terra natal para cuidar de
um patrimonio ali existente, como podemos ver pela seguinte petição:
«Senhora Diz Agostinho Antonio de Barcelos e sua mulher Maria
Teresa de Jesus, assistentes na cidade do Río de Janeiro, o primeiro li rafa, cod, 67, voi, 23, foi. i09v.
suplicante natural das ilhas dos Açores, e a segunda, da cidade do Rio li ANTT, chancelaiia de D. Mafia i, Prepnes, Livro 15, foi. 19v-20.
J. H. Pires de Lima, «Valiosa colecção do Arquivo dos Feitos Findos para 0
estudo da colonizaçao do Brasil no séc. xviii. A emigração açoriana», separa@ C10
vol. V das Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos Lisboa
1” 1i›ia,m=iço 171, Dil. 1513, Joao, 1961. ' '
“ ANRJ, cod. 67, vol. 15, foi. i85v.
141
140
-_ “W”

parentes em que um dos signatãrios se encontrava no Brasil. Com


estas sénes documentais ainda inexploradas, o fluxo migratorio para
aquela colonia tornar-se-ia mais visivel, nao so do ponto de vista
quantitativo como também qualitativola.
2

Bigamia*

A rede de contactos entre a metrópole e o Brasil afectou muitas


familias de ambos os lados do Atlântico, a ponto de uma personagem
feminina das Guerras do Alecrim e Mangerona responder ã pergunta
se era casada ou solteira dizendo que nem uma coisa nem outra, pois
o marido estava ausente no Brasil ha 47 anos. Esta piada punha em
relevo um facto decorrente da emigração que era a destruição da vida
familiar em consequência da ausência do marido, na maior parte dos
casosl.
Mas não seria necessário ir ao teatro para deparar com situaçoes
como aquela acima descrita. Uma carta patética foi escrita em 1803
por uma mulher ao seu marido nos seguintes termos:
«Meu marido etc. Aos seus pës se prostra esta infeliz mulher a saber
da sua saúde e das pessoas a quem Vossa Mercê estima e venera porque
ao fazer desta, fïco sem esperanças de vida ainda Deus é servido de me
dar o amparo do padrinho José Joaquim, e da madrinha Josefa, pois
ha ano e meio que estou na sua casa pelo amor de Deus sem que
ninguém de mim fazer mais caso, nem tão pouco os nossos filhos.
Peço-te pelo amor de Deus e pelas chagas de Cristo que olhes para
o meu desamparo principalmente tu deves uma moeda de ouro ao
padrinho que me emprestou para pagar ao cirurgião, e botica; fora as
mais esmolas que tenho recebido particularmente e tu me favoreças
com alguma esmola, pois bem sabes que não tenho abrigo nenhum,
pois tu mesmo me deixaste no último desamparo. Também te dou
parte que já estou cega de um olho, a tua filha depois que casou nunca
18 Uma corrente migratoria não desprezivel na viragerri do séc. xviii para o séc. mais fez caso de mim, em que me está favorecendo é o teu filho, o
xxx era constituida pelos caixeiros portugueses que os negociantes «de grosso trato» cunhado Joaquim so me deu um cruzado novo para uma galinha:
iam buscar ã metrópole para terem os seus livros comerciais em ordem (0 b0ffad0f,
Q diäi-¡Q e 0 copiador). Para darmos apenas um exemplo, um negociante de Santos,
Francisco Xavier da Costa Aguiar, viajou para Lisboa em 1785 para contratar um
eaixeiro, a quem pagou a viagem e instalou na sua residência. Tratava-se em geral ' Por David Higgs, da Universidade de Toronto.
de jovens ' ainda solteiros, que jã tinham frequentado a Aula de Comercio em Lisboa e 1 Ver David Higgs, «Bigamia e migração no Brasil colonial no lìm do séc. xviii»,
.
encontravam uma melhor situação entre a classe mercantil do Brasil. (Ver o meu livro em Anais da VII Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (São Paulo):
Cultura no Brasil colónia, Petropolis, Vozes, 1981, pp. 54-55.) 99-103. 1988.

142 143
“É”

Nem a migração nem a bigamia têm ocupado muito os historiado-


como estou pobre, nenhum fez caso de mim. A quem devo muita
obrigação é o padrinho, e a madrinha Josefa, e a mais ninguém, a res do Brasil colonial, apesar da riqueza documental existenteá. Veja-
Deus sobretudo que ainda espero em Maria Santissima de que ainda mos um caso como exemplo, o de um almocreve natural da ilha de
[de] ver, peço-te pelas dores de Maria Santissima que me favoreças S, Jorge nos Açores, chamado José Cardosos.
com uma esmola, e pagues esse dinheiro ao padrinho, com isto não te
A 10 de Maio de 1784 este almocreve analfabeto, de 26 anos, foi
lançado nas masmorras da Inquisição, depois de um longo itinerario.
enfado mais.
Desta infeliz mulher ainda... Maria da Conceição...››2 Ainda muito jovem casara-se na ilha de S. Jorge, mudando-se depois
O marido desta mulher não so a tinha abandonado como se tinha para uma outra ilha do arquipélago, a ilha do Pico, e em seguida para a
casado novamente na Terra de Santa Cruz. Era um bigamo. do Faial, de onde saiam os navios que atravessavam a Atlântico com
Cabia ã lnquisição investigar os crimes contra o sacramento do passageiros e mercadorias. É possível que também tenha estado na
ilha da Madeira: uma das testemunhas afirmou que ele para ali fugira
matrimonio, o pior dos quais era casar segunda vez quando o primei-
ro cônjuge ainda estava vivo. No Arquivo Nacional da Torre do Tom- depois de ter partido a cabeça a um pedreiro numa briga, mas na sua
bo, no «cartorio›› do Santo Oficio, está conservado um número confissão o arrependido bigamo não mencionou o facto. De qualquer
consideràvel de processos por bigamia. Foram localizados, para o modo, por volta dos 20 anos desembarcou no Rio de Janeiro e no
periodo entre 1777 e 1807, 75 processos ou inquérìtos preliminares Brasil se casou a 21 de Setembro de 1778, segundo a certidão tirada
referentes a individuos acusados no Brasil. Esta documentação forne- do registo de casamento da paróquia de Nossa Senhora do Amparo de
Maricã. Foi preso antes de 20 de Junho de 1785.
ce muita inforinação sobre os estratos mais baixos da sociedade, na
sua maior parte analfabetos, embora haja alguns processos referentes Usando outro nome e apresentando-se como solteíro, casara-se
com a parda Joaquina Maria de Jesus, natural daquela freguesia. Vive-
a bigamos pertencentes ã elite. Os julgamentos completos contêm
muitas vezes dois conjuntos de interrogatorios feitos por comissãrios ram como marido e mulher durante quatro anos até ele ser preso ã
para averiguar factos concernentes ao primeiro e ao segundo casa- ordem do comissãrìo local da Inquisição, que exerceu a sua autorida-
mento. Como também incluem um interrogatorio do primeiro cônju- de sem ter recebido instruçoes de Lisboa. A razão para esta pressa era
ge e dos vizinhos, permitem conhecer um pouco o ambiente que o temor do comissãrio de que o bígamo fugisse logo que tivesse
rodeava a pessoa incriminada. noticia da acusação de bigamia que lhe era movida, «por ser ele
Estes processos de bigamia estão íntimamente ligados a toda a homem volante que já se tinha ausentado a primeira vez da dita mu-
questão da migração uma vez que os migrantes se encontravam numa lher putativa».
situação que favorecia esse tipo de crime. O individuo ausente por Foi transferido de uma prisão para outra até ã sua chegada ã prisão
longos periodos, longe do cônjuge e da pressão dos vizinhos e co- da Inquisição em Maio de 1784, e em Dezembro foi considerado
nhecídos, tendía mais a empreender um segundo casamento bigamo culpado e sentenciado a cinco anos nas galës, a ser açoitado e a
do que uma pessoa cuja vida anterior era conhecida da vizinhança, penitências espirituais. As galés nessa época eram na realidade uma
Tratando-se de uma migração de longa distãncia, era possível conven- prisão ã beira-rio em Lisboa e os bigamos eram geralmente soltos
cer testemunhas a afirmar que o contraente era livre para proferir os apos três ou quatro anos de detenção.
votos matrinioniaisã. Este é o resumo de uma aventura atlântica de um analfabeto no fim
do séc. xvtit. A documentação fo mece-nos ainda os resultados de uma
inquirição dos factos tanto no Brasil como em Velas, na ilha de
2 ANTT, lriquisição de Lisboa, 14 418. Carta datada de 28 de Maio de 1803; Auto S. Jorge, mas ignoramos o que lhe aconteceu depois de ter sido solto,
de Sequestro no Rio datada de 22 de Agosto de 1803 deu inforrnaçoes sobre a veiida
dos escravos do delato. se voltou para os Açores e para a primeira mulher, ou se permanecen
3 A lnquisição punia contudo severamente quem testemunhava falso num pro- no continente, ou se regressou ao Brasil.
cesso de casamento. Em Junho de 1803 um natural da ilha de S. Miguel nos Açores,
analfabeto, foi condenado às galés por cinco anos depois de ser açoitado pelas ruas
de Lisboa como castigo por ter testemuiihado falso a 4 de Setembro de 1784 no Rio " David Higgs, «Portuguese migration before 1800», in David I-liggs Ced.) Portu-
de Janeiro. Na sua confìssão disse que era feitor numa fazenda quando «uma pessoa guese migration in global perspectiiie, Toronto, Multicultural History Society of
das ilhas», cujo nome esquecera depois de vinte anos, lhe pedira para jurar nos seus Ontario, 1990, 7-28.
banhos que era livre e desimpedido. ANTT, Inquisição de Lisboa, 14 198. 5 ANTT, ioquistção de Lisboa, 6245.
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C Í*

Vejamos agora mais de perto os elementos referentes ã familia, As testemunhas ouvidas de um e de outro lado do Atlantico, todas
especialmente os relacionados com a primeira mulher e com a sua nascidas em Portugal, transmitiram uma imagem composita do biga-
filha, respectivamente Maria do Rosario e Gertrudes. mo. Este vivia de expedientes e, segundo uma das testemunhas, José
A primeira mulher de Cardoso aparecen perante o pároco da ma- Cardoso tinha ido para o Brasil porque tinha dado «uma pedrada em
triz de Velas, na ilha de S. Jorge, diocese de Angra, declarando que um pedreiro que repartira a cabeça», tendo fugido para a ilha da
tinha 29 anos e que estava casada com José «ausente nas partes do Madeira. Um pescador natural de Velas, onde Cardoso nascera, sabia
Brasil», que era filha de um liomem nascido e morto na paróquia de que os pais tinham ja morrido e declarou que ele o procurara em
Rosais e de uma mulher natural de Janeto Amaro, uma paróquia vizi- companhia de um preto forro para lhe pedir que jurasse ser ele
nha. Declarou em seguida: «Sabe pelo ouvir dizer ao reverendo Fran- solteíro para se poder casar no Brasil. Esta testemunlia recusara e
cisco José de Bettencourt, que veio das partes do Brasil, que José alguns dias mais tarde soube pelo dito negro que Cardoso ja estava
Cardoso, proprio seu marido, la se casara com uma mulher parda casado. Um outro açoreano, soldado do 2° Regimento do Rio de
cujo nome ignorava, e que não sabe donde a tal mulher é freguesa, Janeiro, acrescentou a informação de que a primeira mulher de Car-
nem a que bispado pertence» doso era uma «moça de servir».
Nenhum nome: so uma categoria racial. Nenhum lugar; so um O mesmo padre que testemunhara no Rio de Janeiro forneceu, na
continente, Brasil. Ninguém lhe podia mandar uma mensagem por- sua terra natal, mais pormenores acerca do Cardoso: «sendo
que era analfabeta. Quando menina tinha trabalhado em casa de José pequeno» servira o capitão Paulo Machado e depois fora pescador.
Caetano da Silveira (sobrenome usado por José no seu segundo ca- Deixou Velas: «indo num bergantim do Faial para o Brasil, e mudara
samento bigamo no Brasil) e depois do casamento o marido tinha-a de nome». Antes mesmo de o padre sair da sua terra «ja ouvira dizer a
deixado, havia ja nove anos. Casara-se doze anos antes e «entre ambos Francisco Gonçalves, homem marinheiro, que o dito delato se havia
tivera uma filha, por nome Gertrudes››. Tìnha ido para o Faial esperar segunda vez casado no Brasil». Num outro trecho do seu testemunho
o seu marido e ali encontrou trabalho em casa de um tenente. o padre disse que, «estando nos ditos Estados do Brasil, tivera noticia
Que especie de homem era o bigamo José Cardoso, depois José de que o dito delato usava também do oficio de pescador com o seu
Machado da Silveira? O seu depoiniento foi directo e simples, talvez sogro no Rio, e algumas vezes usava de mercancia de porcos, vindo ã
porque os inquisidores ha muito o tivessem convencido de que as cidade vendê-los».
provas eram tão evidentes que qualquer tentativa de subterfúgio ou Assim, o homem «volante›› que encontrara uma nova parceira no
de negação seria inútil. Ele deu o nome do padre que o tinha casado Brasil não escapava ao controlo da Inquisição possuidora de abun-
na forma do Concilio Tridentino em Velas e os das duas testemunhas; dantes provas da sua transgressão, fomecidas por homens que 0
referiu-se ã filha; e afirmou que uma vez chegado à paróquia de Nossa tinham conhecido nos Açores. Fora um patricio que ouvira falar do
Senhora do Amparo de Maricá se casara novamente com uma mulher segundo casamento e o comunicara a Maria do Rosario, a primeira
daquela paróquia, Joaquina Maria de Jesus, com provisão passada pelo mulher; e esta pedira ao padre Francisco José de Bettencourt, que
visitador do distrito. Jurara sobre os Santos Evangelhos que era livre e nascera em Velas e ali vivia, para investigar a verdade no Rio de Janei-
desimpedido, muito embora soubesse que a sua primeira mulher ro para onde ele viajava como capelão de um navío que saira do Faial.
ainda vivia. Coabitara com a segunda até ser preso e levado às celas No Rio o padre interrogou a segunda mulher, que ja se lamentava por
da Inquisição, onde então se achava. Assinou em cruz o seu depoi- ter sido enganada pelo marido quando este lhe declarara ser livre para
mento. se casar com ela. Como consequência desta investigação do padre, o
Em resposta ã habitual rede de perguntas dos inquisidores decla- comissario Vicente Ferreira de Noronlia mandou prender Cardoso
rou não saber se seus pais ainda eram vivos; que tinha nascido em «pelo rumor que ja havia de que ele era casado na sua patria e andar
S. Jorge; e que desconhecia os seus padrinhos. Por outro lado, sabia 0 pai da segunda mulher queixando-se».
dizer muito bem as suas oraçoes (Padre Nosso, Avé Maria, Salve A sentença de Cardoso foi dada em Lisboa a 14 de Dezembro de
Regina, assiin como 0 Credo). Não fora anteriormente preso pelo 1784, sendo ele considerado réu do crime de bigatnia, «não tendo
Santo Oficio nem sabia se algum dos seus ascendentes o fora. A falta escusa que o releve, e portanto pareceu que ele em pena, e penitência
de informação acerca dos pais resultava provavelmente do facto de ter de suas culpas va ao auto público de fé na forma costumada, nele ouça
sido abandonado, ou do desejo de não os implicar na sua transgressão. sua sentença, faça abjuração de leve, suspeito na fé e por tal o decla-

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ram seja açoitado pelas ruas públicas desta cidade citra sanguinis individuos do que aqueles efectivamente despachados por navío para
eflusionem e degredado por tempo de cinco anos para as galés de Lisboa. Entre estes podemos citar dois processos, um referente a urna
Sua Majestade, tenha penitências espirituais, instrução ordinaria, e bigama e outro a um bigamo.
pague as custas». A mulher nascera e morava no Recife, na freguesia do Corpo Santo,
Fora da documentação inquisitorial, pouca informação podemos quando foi denunciada em 1775, presa em Lisboa em Fevereiro de
colher sobre o crime de bigamia. As devassas gerais ordenadas pelos 1777 e sentenciada em Junho de 1778 a ser açoitada pelas ruas e a
bispos são raras e naquela referente à comarca dos Ilhëus na Baia, passar cinco anos na casa de correcção de Sua Majestade.
estudada por Luiz R. B. Mott, apenas se faz menção de um indio Casara-se «muito rapariga» com um viüvo que a abandonara indo
culpado deste crimeó. para a Baia. Voltou mais tarde a casar-se e teve três filhos. Inácia da
No último Regimento da Inquisição, datado de 1774, no Livro III, Silva Moreira tinha já 54 anos na época do julgamento e os seus
titulo 12, lê-se acerca da punição da bigamia: «e sendo pessoa plebeia, infortünios levaram-na a um estado desesperado. Em julho de 1780
será açoitada pelas ruas públicas e degredada para as galés por cinco o doutor inquisidor, que também servia no Hospital de S. José, infor-
até sete anos; a mesma pena de açoites terá sendo mulher e o degredo mou que ela estava «aleijada do braço direito por causa de uma artrite
pelos ditos anos será para Angola ou alguma parte do Brasil; terão e incapaz de fazer trabalho algum». Além disso achava-se «reduzida a
instrução ordinaria e penas penitenciais››7. O privilegio da nobreza foi um estado de esqueleto, que só a vista dela mete compaixão». Alguns
referido no processo do filho de um capitão de Auxiliares do Recife; dias mais tarde 0 cirurgião e sangrador dos cârceres secretos da
«visto ter a nobreza que o escusa de pena vil», não foi açoitado em Inquisição concordou em que ela sofria de uma grave «queixa de
1786 quando se lhe aplicou a sentença de cinco anos de exilio no nervos», dificil de curar, que a tinha reduzido a um «estado
Parás. deplorãvel». Doente e deprimida foi solta em 17809.
Convëm observar que, estatisticamente, a bigamia era a categoria Entre os homens que fizeram a viagem para Lisboa havia um que
de ofensas mais representada nas denúncias à Inquisição durante os pelo sobrenome não parecia «filho de Portugal», denunciado por três
reinados de D. Maria 1 e D. João VI, embora várias categorias de pardos, um dos quais alfaiate, todos parentes da segunda mulher,
ofensas ao catolicismo (blasfémia, libertinagem, etc.) quando agrupa- também parda. A primeira mulher vivia no sertão e era branca. To-
das, pudessem ser mais numerosas. más, o acusado, tinha ameaçado a testemunha com «um negro muito
Um aspecto muito importante nestes processos diz respeito às valente», mas 0 denunciante já tinha feíto a denúncia. O pároco local,
distâncias implicadas na investigação inquisitorial. A denúncia enviada que relatou o facto, observou que na verdade o bigamo era português
para Lisboa dava origem a instruçöes ao comissario no Brasil para e tinha filhos da mulher do sertão. Em Lisboa Tomás declarou ter
abrir um inquérito, que era depois mandado para Lisboa, local de deixado Portugal com a idade de 16 anos, solteìro, tendo ganho o
onde era emitida, ou não, a ordem de transferir o acusado para a seu pão em Pernambuco em várias actividades, mas sobretudo como
metrópole. Em principio eram necessárias cinco viagens transatlânti- caixeiro. Depois do nascimento dos filhos do primeiro casamento
cas antes do julgamento do réu pelos inquisidores em Lisboa. No fim abandonara a mulher e na ocasião do segundo casamento declarara-
do séc. XVIII foi concedido aos comissârios do Brasil maior campo de -se viúvo. O processo não inclui a sentença e, preso em junho de 1794,
acção numa tentativa de aperfeiçoar o sistema, evitando as demoras a última data que aparece é 10 de Maio de 1795, 0 que parece indicar
burocráticas. que ele talvez tenha morrido na prisão”.
Na verdade, estes longos procedimentos explicam o facto de mui- Se poucos processos terminarn com a sentença dos acusados, em
tos casos de bigamia estarem incompletos. Foram denunciados mais contrapartida todos foram iniciados por meio de denúncias. Sendo a
bigamia um crime contra o sacramento do matrimonio, eram os fiéis
obrigados a denuncia-lo e lembrados anualmente desta obrigação por
6 Luiz R. B. Mott, «Os pecados da família na Baia de Todos os Santos (1813)›› meio de um edital colocado nas igrejas. A rede dos familiares e
Centro de Estudos Baíanos (Publicação da Universidade Federal da Baia, n” 98),
1982, 43-44.
7 O último Regimento da Inquisição portuguesa. Introdução e actualização de
Raul Rego, Lisboa (1971). ^ 9 rbfd., 1329.
8 ANTT, Inquisição de Lisboa, 5759. 1° mia., 5712.
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í Ñ'

comissãrios que recebiam as denuncias estendia-se pelas principais estava viva; «como cristão se humilha e se denuncia, e se sujeita a
cidades e por vezes mesmo pelas menos importantes. todas as penas que o Santo Tribunal lhe impuser». Dois anos mais
Vejamos um exemplo de denúncia de uma bigama feita por um tarde o comissario do Rio de Janeiro, Félix de Santa Teresa Nascentes,
padre: «Ilustrissimos e reverendissimos senhores inquisidores. A obri- escreveu para Lisboa que não conseguira localizar Soares da Cunha,
gação que me impöe o edital de Vossas Senhorias para denunciar de observando que havia «varios rios chamados do Peixe neste bispado
qualquer pessoa, que se achar compreendida em algum dos artigos de São Paulo e Minas Gerais››'3. Este tipo de autodenúncia parece ter
dele, me conduz â presença de Vossas Senhorias para dizer que Ro- funcionado como uma especie de seguro a ser invocado no caso de
salia Joaquina, natural, moradora e casada nesta freguesia do Senhor uma denúncia vir a ser feita por outra pessoa, ou, o que era pior, no
do Bom Jesus de Cuiabã com Custodio Peres Alves fugindo da com- caso de prisão.
panhia deste seu marido para as Índias de Castela nesta América em Menos mulheres do que homens foram acusadas de bigamia; não
companhia de um seu amásio João Diogo ali se casara na cidade de chegava a 7% dos casos analisados na documentação. Isabel, uma
Santa Cruz de la Sierra com um sujeito chamado José Miguel, tenente preta forra de nação Angola, foi denunciada em 1783 quando tinha
de Auxiliares da dita cidade, sendo ainda vivo o primeiro seu marido, 60 anos de idade na vila de Serinhaem, na Capitanía de Pernambuco,
que vive nesta vila do oficio de pedreiro. Deste primeiro casamento pelo senhor branco do escravo que fora seu primeiro marido.
tenho eu a certeza, tanto porque conheci a estes conhecídos vivendo O segundo casamento de Isabel fora com outro escravo.
juntos, e com pública voz, e fama de serem casados, como porque O comissario do Santo Oficio tomou o seu depoimento; «é verdade
acho nos livros desta freguesia que tenho em meu poder, o assento do que morando na dita freguesia de Una com o dito seu marido José,
casamento. Do segundo matrimonio contraído com aquele tenente veio ela para o engenho do Saco desta freguesia de Serinhaem ha três
houve nesta vila uma fama muito constante por pessoas e cartas anos a ver uma filha de nome Águeda, escrava do sargento-mor Fran›
veridicas. Deus guarde a Vossas Senhorias, Cuiabá, 15 de Novembro cisco Nunes da Silva, a qual filha teve antes de casar com o dito josé, e
de 1780, de Vossas Senhorias obediente sübdito o vigário da Vara José ai ficou com a dita filha que aforrou, ou pediu ao dito senhor que a
Correia Leite.››“ forrasse, e lìcando ai de morada começou a ouvir a várias pessoas
Um certo José Duarte denunciou Francisca Maria, moradora na pretas, que o dito seu marido José já era morto, com a qual noticia
freguesia de Camaragibe, Porto Calvo, mulher casada «que se ausen- indo ela depoente a Una para se desenganar encontrou com pai
tou para a freguesia de Una, e fingindo-se viúva, e com nome de Antonio preto Congo, escravo do dito Estêvão Pais, que lhe afirmou
Francisca Teresa cometeu nela premeditado dolo e malicia segundo ser verdade a morte do dito seu marido. Com esta noticia que julgou
matrimonio com José de Sousa, sendo vivo seu primeiro marido». por certa, se voltou para 0 dito engenho do Saco e ai ajustou casa
E isto acontecia no ano de 1789, ou 1790, Segundo o denunciante. mento com Antonio Ribeiro, escravo de Manuel Caetano de Lima,
O comissario Antonio Gorjão encaminhou a denúncia para Lisboa”. morador do engenho Rio Formoso desta freguesia de Serinhaem; e
Temos aqui mais um exemplo de como a denúncia funcionava como com efeito com ele casou ha quatro meses, e ficaram fazendo vida
elemento principal no controlo social da bigamia. marital até que se publicou que o dito seu primeiro marido josé era
Havia também a possibilidade de o bigamo se autodenunciar e vivo, o que ainda não soube certeza, porém como se foi divulgando,
neste caso, segundo o Regimento, não seria açoitado e o seu tempo que ainda era vivo o dito marido, declara ela depoente o estado em
nas galës ou no degredo seria menor. Na verdade, muitas vezes as que se acha promete viver apartada do dito segundo marido, e al não
puniçöes eram apenas espirituais. André Soares da Cunha, um natural disse.››“ Este processo ficou por aqui mesmo.
do Brasil que se acusou a si proprio, disse a um padre, em Março de Mais frequentemente eram as mulheres vitimas de bigamia do que
1797, que a sua primeira mulher, uma adúltera, tinha fugido e que ele culpadas deste crime, ou porque tinham sido abandonadas ou porque
fora para os sertöes do Inhamum, onde ouvira dizer que ela morrera. contraíram matrimonio acreditando ser o cônjuge livre e desimpedi-
Casou-se pela segunda vez e so então soube que a primeira mulher do, A segunda mulher de um negociante reinol de fazendas secas não

" ANTT, Inquisição de Lisboa, 2823. 13 ANTT, Inquisição de Lisboa, 7045.


12 rafa., 2825. “ rafa., 13 264.

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Í'

so perdeu a sua honra ao consumar um matrimonio que julgava coberto morando na ilha de Paquetã com uma falsa carta de alforria e
legitimo aos olhos da Igreja como também perdeu o seu dote, con- trabalhando como agricultor. Em Paquetá, Salvador casara-se com
forme declarou pormenorizadamente o pai da jovem; «sendo em um Quitéria, escrava de uma outra viúva. Um <<cabra›› liberto, capitão de
dos dias do mês de Outubro do ano proximo passado de 1785 veio a mato, trouxera-o de volta. Dois anos mais tarde e com um novo
casa dele suplicante um Antonio josé de Morais a pedir-lhe uma sua senhor, que era cirurgião, o escravo mostrou «grande submissão››17.
filha por nome Águeda Maria de bom e honesto procedimento para Outro Salvador - nome comum entre os escravos - era oficial de
com ela se casar, e procedendo a informaçöes que o suplicante teve serrador, de 30 anos de idade, natural de Santo Antonio, freguesia de
naquela ocasião com efeito ajustaram o dito casamento e o dote e o Taubaté, na Capitanía de São Paulo, vivendo então no Rio de Janeiro,
suplícado se retirou a aprontar-se de documentos na cidade do Mara- sendo apontado como «filho duma cabra cativa e de um caboc1o››.
nhão e banhos e se tornou pronto para poder casar com aquela Fora denunciado em 1793 pelo seu senhor, um fazendeiro do recon-
vivendo com o suplicante aonde com efeito se recebeu solenemen- cavo do Rio, que vivia «de suas lavoiras e serrarias», Estava Salvador
te, e se lhe entregou a mulher, e o dote que tinham tratado que foram casado com uma escrava crioula do denunciante e era pai de três
3003000 réis em dinheiro e uma preta boa no valor de 150$000 réis, filhos, mas fugira em 1789, ano em que se casou com uma escrava
além de muitos trastes de ouro e vestuario de roupa que tudo lhe crioula chamada Joana, depois de convencer o padre de que era forro.
entregou debaixo da boa fé e o mais que o suplicante tinha em seu A segunda mulher tivera dele uma filha, mas a criança vivera apenas
poder já pertencente à dita sua filha que eram 14$000 réis em dinheiro dois meses. O denunciante ordenara a prisão e castigo de Salvador
de uma esmola que lhe deixou seu padrinho que tudo o suplícado «por andar fugido tantos tempos». Foi enviado para Lisboa onde em
recebeu e se retirou a viver como casado.›› Dezembro de 1795 foi sentenciado a açoites, cinco anos de galés e
Foi então que o pai teve noticia do primeiro casamento, achando penitências espirituaisls.
que o bigamo merecia a morte pelo que fizera ã filha: «pela deflora- A miscigenação está presente na denúncia, feita por um branco, de
ção, traição e aleivosia honra e virgindade e consequentemente pelo um descendente do «gentio americano», carpinteiro que se casara
furto do referido dote que 0 suplícado recebeu por aqueles meios com uma parda «com casta da terra», quando a primeira mulher,
ocultos, falsos e aleivosos compreendidos em graves penas como a de cabra, ainda vivia”.
morte natural››15. O grupo mais amplamente representado entre os bigamos do fim
Também escravos e indios foram acusados de bigamia embora do séc. XVI11 era o dos brasileiros natos. Todavia, era acentuada a
com menos frequência do que os brancos. Por vezes a denúncia tendência dos reinóis em casar uma segunda vez no Brasil depois
partia de homens de cor, como no seguinte caso; «Também me de- de um casamento em Portugal que se deteriorara por causa de con-
latou Joaquim Monteiro preto forro que José de nação Angola casado flitos entre os cônjuges. Um letrado, que testemunhou no processo de
neste Recife na freguesia da Sé de Olinda com uma preta forra por um português denunciado no Rio de Janeiro e que era natural da
nome Rita moradores no mesmo Recife, se acha casado na cidade do mesma freguesia do acusado, explicou as dificuldades deste por
Porto, e na freguesia da Sé da dita cidade com uma crioula natural do suspeitar do adulterio da mulher em Portugal. Envolvera-se numa
Pará e moradora no Porto na tua Xaa; o que em razão do meu cargo briga com o suposto amante e partira para o Brasil depois de ter
ponho na presença de Vossas Ilustrissimas, Recife de Pernambuco, pago umza) multa pela sua agressão, deixando a mulher. No Brasil
50 de Outubro de 1784.››16 Tratava-se contudo de uma denúncia por casara-se .
demais vaga para ser apurada. Também um pescador inglês morador na vila de Laguna, bispado
Esse não era o caso da denúncia feita por uma viúva do Rio de do Rio de Janeiro, foi preso nos cãrceres da Inquisição em Abril de
Janeiro acerca de um escravo negro crioulo, chamado Salvador, casa- 1779 com a idade de 53 anos. Vejamos a sua historia; «que saindo da
do com uma crioula negra, escrava também, chamada Leonor. Ambos Inglaterra sua patria, em um navío que ia de direitura para Madrast
pertenciam ã viúva. Salvador fugira sete anos antes, mas fora des-
17 ANTT, Inquisição de Lisboa, 7045.
'B ma, 9753.
15 ANTT, Inquisição de Lisboa, 50. 1° ma, 7056,
16 11»-a.,s6. 2° Jara, 2861.

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Í'

O que levaria, no Brasil, os individuos a arriscarem-se a ser punidos


(Madras, Índia) apontou ao Rio de Janeiro, aonde detendo-se algum
tempo detestou a seita dos luteranos em que por seus pais havia sido
por bigamia pela Inquisição em vez de viverem simplesmente con-
educado; e depois de instruido nos ministerios de nossa santa fe pelo cubinados como tantos outros? Uma explicação parcial foi apresenta-
padre Machado, foi baptizado na freguesia de Santa Rita da mesma da por um reinol natural de Estremoz, no Alentejo, contramestre de
navíos, e cuja primeira mulher era a autora da carta plagente colocada
cidade pelo vigário o padre João Pereira, sendo seu padrinho o conde
de Bobadela, Gomes Freire de Andrade. E ai mesmo casou com Fran- no inicio deste capitulo. Dizia ele que se voltara a casar na freguesia de
cisca do Nascimento, cujos pais ignora, e com ela se recebeu na Santa Rita no Rio de Janeiro «unicamente por ter um arrimo, visto que
freguesia de Nossa Senhora da Penha de França pelo vigário o padre se achava nesta terra sem arrumação, e não por interesse, porque esta
Francisco cujo apelido tambem ignora, e foram seus padrinhos o segunda mulher é pobre, e prostituta, e quis por este meio ampara-
padre visitador e o capelão Jose Rodrigues Dragão. E depois de viver -la››22. Ele afirmava assim o seu desejo de ter um lar, uma identidade,
com ela em consorcio mais de dois meses, e sem da mesma ter filho uma união que lhe servisse de refúgio numa terra estranha como era o
algum, se ausentou da sua companhia, e passou ao arraial do Bruma- Brasil.
do, bispado de Mariana, aonde se casou segunda vez com Isabel A coabitação e uma relação prolongada eram certamente reprova-
Pedrosa, usando ele reu do nome de Francisco Mendes, e com este das mas não punidas gravemente. Eram comuns as relaçoes ocasionais
nome fez a justificação de solteíro livre e desimpedido para casar com com escravas e o concubinato, O que significava então ser casado pela
a dita Isabel Pedrosa, a qual ¡ustificação correu por conta dos pais da Igreja? Hã um aspecto economico que, muito embora não discutido
mesma, vivendo corn ela maritalmente o tempo de um mês. Se retirou pelos agentes da Inquisição, pode ter desempenhado um papel im-
para a vila de Itu, aonde com o nome de Antonio Rodrigues, casou portante. Sem o casamento os direitos dos cônjuges aos bens um do
terceira vez com Maria do Espirito Santo, fazendo justificação de outro tomavam-se problemáticos assim como os direitos dos filhos ã
solteíro na forma da antecedente, e vivendo com ela em consorcio herança. O casamento signifìcava para o bigamo deitar a mão aos bens
três anos, e tendo da mesma dois filhos. Deixando-a passou para a vila de uma parceira que fora enganada na maior parte dos casos.
de Santo Antonio dos Anjos da Laguna, bispado do Rio de Janeiro, Certamente podemos inferir uma motivação interesseira na historia
aonde casou quarta vez com Ana da Costa filha de Salvador de Brito e de Lun bigamo membro da elite colonial. Era um madeirense, natural
Paula da Costa, fazendo tambem a justificação de solteiro na forma do Funchal, que abandonou a sua ilha primeiro para ir estudar Leis
das antecedentes e so com a diferença que neste usou de seu nome para Coimbra durante quatro anos. Voltou para a sua terra mas depois
proprio de João Bernardes. E vivendo com ela maritalmente seis anos, embarcou para Pernambuco, onde se casou com uma paroquiana da
e tendo da mesma três filhos, se principiou a publicar que ele reu Se de Olinda, de quem teve dois filhos, tendo-se estabelecido na
tinha casado mais vezes, pelo que foi preso pelo vigário da Vara da cidade com os seus negocios. A certa altura «se ausentou falido de
dita vila de Laguna, e remetido para a cadeia da cidade do Rio de bens, e fugindo às vexaçoes dos seus credores», para a cidade da Baia
Janeiro, e dela para os cârceres desta Inquisição, em que presente- e depois para o sertão de Acaracu, onde se casou segunda vez com a
mente se acha. E que estas são as culpas que tem que confessar, e filha de um sargento-mor na vila do Sobral da Ribeira. Deste segundo
cometera não por sentir mal dos sacramentos da Santa Madre lgreja, e matrimonio teve três filhos, «vivendo maritalmente com esta segunda
em especial do sacramento do matrimonio, mas sim pela sua grande mulher Isabel Pinto de Mesquita por tempo de nove anos, no fim dos
miseria e fragilidade, pois sem ter noticia, nem fazer a menor diligên- quais foi preso».
cia para saber se era viva, ou morta sua primeira, e legitima mulher, A mudança de nome de Pestana para Polinardo Caetano Cesar de
contraíra os matrimonios que tem confessado, de que se acha muito Ataide reflecte uma certa ascensão social. Vivía numa fazenda chamada
arrependido e pede de todo 0 seu coração a Deus Nosso Senhor Santa Quìteria, e antes fora vereador por um ano e juiz dos Órfãos por
perdão, e a esta Mesa tão cheia de piedade, use com ele de miseri- três. Foi sentenciado pela Inquisição a seis anos de degredo para
cordia» Foi sentenciado a açoites pelas ruas de Lisboa e sete anos de Angola com a idade de 59 anos”.
galeszl.
22 ANTT, lnquisiçäo de usboa, 14 222.
21 ANTI", Inquisição de Lisboa, 3969.
25 rafa, 1480.
155
1 54
í

Não ha dúvida de que provinha de uma familia prospera e educada


pois seu pai, tambem natural do Funchal, «antes de casar tinha toma-
do ordens menores, e depois foi homem de negocio, com navíos seus
no mar». A bigamia, para este madeirense falido, significava a volta ao
staru anterior e aos cargos a que a sua ascendencia e os seus estudos 5
em Coimbra o habilitavam.
Como conclusão devemos sublinhar que o número de casos de Concubinato laico e amancebamento
bigamia aqui analisado era muito reduzido em relação à imensidão
do Brasil colonial”. Isto poderia significar que eram raros os bigamos, de clérigos
mas e mais provável que poucos fossem os localizados, denunciados e
investigados no caleidoscopio das relaçoes familiares e sexuais que
caracterizaram os laços entre os individuos no fim do periodo colo-
nial. Poderia também significar a relativa eficacia do sistema dos ba-
nhos, assim como das redes de parentela e vizinhança que se O Concilio de Trento, na sua 24@ sessão, ao decidir a reforma do
estendiam por cima do Atlântico e dissuadiam os migrantes de correr matrimonio, resolveu punir o Concubinato com gravissimas penas.
o risco da bigamia. Embora se referisse a todos os tipos de concubinãrios, 0 texto triden-
tino sublinhava duas caracteristicas que agravavam este pecado; a
publicidade e a coabitaçãol. Mais tarde, no inicio do sec. XVIII, as
Constiruiçôes primeiras do arcebzlmado da Baia enfatizaram um ter-
ceiro aspecto: a continuidade das relaçoes sexuais ilícitas, que distin-
guia esta conduta pecaminosa da simples <<incontinência››, ou seja, a
fornicação ocasional e com parceiros diferentes, sujeita a uma puni-
ção mais levez.
A comparação entre o texto tridentino, de meados do sec. XVI, e o
texto sinodal, do inicio do sec. XVIII, revela preocupaçoes diferentes
mi
relacionadas com o modo como, em diferentes epocas, as populaçoes
2" Entre 1777 e 1807 foram 76 os bígamos no Brasil, assim distribuidos pelas
incorriam neste pecado tão grave aos olhos da Igreja. Na sociedade
Capitanias onde realizaram o segundo casamento.
Homem Mulher quinhentista, antes do Concilio, o pecado era cometido abertamente:
Baia 9 os solteiros coabitavam com as suas concubinas, e mesmo os casados
Goiás 1 as tinham e sustentavam «na própria casa com suas mulheres». Assim
Minas Gerais se explica que o texto conciliar acentue a publicidade e a coabitação
Maranhão na pratica do concubinato. Já o texto sinodal refere apenas a conti-
Para
Paraiba nuidade das relaçôes ilícitas, o que mostra um cuidado maior, por
Pernambuco
I
3 parte dos concubinários, em não ostentar o pecado. Este tornara-se
Rio Grande do Sul oculto, havendo dificuldade em prova-lo quando não fosse confessa-
Rio de Janeiro os do por aqueles que o cometiam.
São Paulo o\"'t~.›$u›N›-\o
«América Espanhola» 1
" inclusive um religioso «bigamia simultudinaria». 1 O sacrossanto, e ecuméníco Concilio de Trento em latim e português, Lisboa,
1807.
Naturalidacles conhecidas dos bigamos; 2 Consfítuipôes primeiras do arcebispado da Baia, fieitas e ordenadas pelo
Portugal Brasil Estrangeiro Iíustríssímo, e Reuerendrssimo Senbor D. Sebastián Monreiro da Vide, arcebispo do
Homens 15 23 1 (inglês) dito arcebíspado, e do Conselho de Sua Majestade, propostas e aceítas em o sínodo
Mulhel-es 0 5 1 (angolana forra) diocesano, que 0 dito senhor ceìebrou em 12 de Junbo de 1707, Coimbra, 1720.

156 1 57
As Constiruiçoes clescreviam duas situaçoes que serviam para incri cialmente se farã saber a seus senhores do mau estado, em que an-
minar; quando um homem, admoestado pelo seu pároco para que não dam; advertindo-os, que se não puserem cobro aos ditos escravos,
falasse ou de alguma maneira se comunicasse com a mulher de quem fazendo-os apartar do ilicito trato, e ruim estado, ou por meio de
se suspeitava, «com alguns indicios», ser sua concubina, insistía nessa casamento (que e o mais conforme ã lei de Deus, e lho não podem
<<comunicação››; quando o dono de uma casa ai mantivesse, apesar de impedir seus senhores, sem muito grave encargo de suas almas) ou
grãvida, uma mulher a seu serviço que não fosse escrava. A situação por outro que seja conveniente, se hã-de proceder contra os ditos
especifica do Brasil com a sua abundante escravatura tornava assim escravos a prisão, e degredo, sem se atender ã perda, que os ditos
mais dificilmente punivel o concubinato com a própria escrava, mas o senhores podem ter em lhe faltarem os ditos escravos para seu servi-
que a documentação nos revela, como veremos mais adiante, são ço; porque o serem cativos os não isenta da pena, que por seus crimes
outras concubinas, brancas e livres ou quando muito mulheres de merecerem››5. Este trecho das Constítuiçôes foi letra morta, ate porque
cor forras. a Igreja não tinha força suficiente para mandar escravos para a prisão
O ocultamento da relação ilícita acaba assim por quase confundir por motivo de concubinato.
no sec. XVIII concubinato e adulterio, constituindo este uma subclasse O desvio da pratica em relação à norma eclesiástica pode ser
daquele. Dado o rigor da legislação civil na punição do crime de facilmente detectado se compulsarmos um grosso volume manuscrito
adulterio, as Constituiçôes baianas aconselhavam o maior segredo na conservado no Arquivo da Cüria de São Paulo com 0 seguinte titulo:
investigação desse pecado; «sendo alguma mulher casada compreen- «Rol das diversas freguesias» Por ai se vê que a punição mais frequen-
dida em amancebamento, se o marido for tal pessoa, que provavel- te aplicada pelos párocos aqueles que ousavam continuar concubina-
mente se tema de sua vida, ou de outro mau tratamento considerável, dos, mesmo depois de admoestados, era a simples exclusão da
descobrindo-se o delito, se terá muito resguardo, e cautela, assim nos comunhão pascal. O reduzido número de concubinãrios que aparece
termos da admoestação, como nos livramentos do cúmplice››3. nesse rol (8 apenas, entre os 1451 moradores da freguesia da Penha
Do mesmo modo que a mulher casada precisava de ser protegida de França, termo da cidade de São Paulo, em 1805; 2 apenas, entre os
da ira do marido (capaz de ocasionar a sua morte na defesa da honra, 925 habitantes da vila de Apiai, em 1802) resulta principalmente do
uma vez que tal comportamento excessivo não era punido pelas leis carácter oculto e não público do concubinato no fim do periodo
do Reino), tambem a moça solteira incriminada numa relação sexual colonialó.
ilícita e continuada, configurando concubinato, devia ser salvaguarda- Em regioes onde predominava a população indigena, como no
da da cólera dos familiares mais proximos: «E sendo a mulher solteira norte, a autoridade episcopal conseguía por vezes por fim aos ajunta-
que ainda de todo não tenha perdido a boa reputação, principalmente mentos abertamente mantidos entre os indios, apesar da presença de
sendo de gente grave, ou havendo perigo de seu pai, ou irmãos a um vigário. Quando Fr. Caetano Brandão, bispo do Pará, realizou as
tratarem mal, se procederá com a mesma cautela e resguard0.››4 De quatro visitas pastorais do seu bispado, começando em Julho de 1785
um modo muito realista, o texto sinodal, enquanto por um lado e terminando em Março de 1789, anotou frequentemente nos seus
procura não confundir a concubina com a meretriz, leva em conta Diáríos as «desordens›› em que viviam os indios?.
as diferenças sociais uma vez que a defesa da honra aparece relacio- Ao chegar ã povoação de Santa Ana do Cajari, habitada por uns 200
nada com um determinado estatuto social («gente grave››). indios, e onde mal se falava o português, o bispo escreveu; «Ajustei
Como seria de esperar de umas Constituípôes redigidas numa so- seis casamentos dispondo tudo para no outro dia se porem os banhos
ciedade esclavagista, o texto e reticente acerca do concubinato entre na igreja evitando-se desta maneira algumas desordens que haviam.››
escravos, ou entre um elemento escravo e outro forro. Reconhecendo Na pequena povoação do Fragoso, que não teria mais de 150 indios,
ser o concubinato entre escravos «usual, e quase comum», mas não deparou o bispo com um concubinato incestuoso: «Aqui encontrei
podendo aplicar a estes as penas pecuniãrias determinadas para os um escãndalo público dos mais odiosos e detestáveis aos olhos da
concubinários livres, a Igreja do Brasil limitava-se a aconselhar; «judi-
5 1ba;r,§9s9.
6 ACSP, Rol das diversas freguesias, 12-3-67.
5 op. eii., Livro v, iii. 23, §990. Luis Antonio de Oliveira Ramos, Diarios das wsrraspaslorars no Pará de D. Fr.
* Ibai, §991. Caetano Brarzdão, Porto, INIC/Centro de Historia da Univ. do Porto, 1991.

158 159
T'-

«Aqui so a violencia e a severidade das penas temporais pode fazer


religião, o concubinato do principal com a sua própria filha.›› Como o alguma coisa, porém isto e alheio ao meu ministerio» A propósito da
«monstro›› andava fora da povoação, o bispo aproveitou para casar a populosa vila de Camera, onde moravam mais de 6000 brancos,
india «antes da chegada do bárbaro pai». Em Monte Alegre, povoação escrevia: «O ano passado tirei a devassa nesta vila e conformando-me
com mais de 300 indios, tambem o «principal››, ou seja, o chefe com as disposiçoes de Direito condenei os culpados a penas pecu-
indigena, causou preocupação ao bispo por andar amancebado «e niãrias e a prisão» Mas, passado um ano, os penitenciados achavam~se
já com muitos filhos da mesma concubina», mas como nada ano- «envoltos no mesmo lodo de culpa», Em uma V113 de «munos
tou, certamente nem a sua autoridade conseguiu resolver a situação. escãndalos» e com um povo geralmente esquecido das obrigaçoes
Quando se tratava, porem, do concubinato do proprio pároco da do cristianismo. E atribuia os problemas ao facto de a gente branca
povoação indigena, D. Fr. Caetano Brandão usava subterfúgios nos ser constituida, na sua maior parte, por degredados «ou de semelhan-
seus Diários, nunca escrevendo claramente a palavra. Assim, o vigário te calibre» com quem o vicio da incontinencia caminhava «sem más-
da vila de Arraiolos, habitada por 250 indios, «dava escãndalo com a cara, soberbo e desafogado». Sobretudo quando os colonos tinham a
sua conduta pouco ajustada» e por isso foi transferido, pelo bispo, protecção das autoridades seculares como por exemplo nm Iavfaçlof
para a vila de Almeirim «depois de [este] lhe dar uma correção branco, «perversissimo em materia de incontinencia», sobre o qual
severissima». A respeito da vila de Santarem foi um pouco mais ex- nenhum efeito produziram os meios empregados pelo bispo para
plicito; «Aqui achei alguns escândalos odiosos que me feriram viva- salvar a sua alma: «como tem o favor dos ministros seculares, zomba
mente o coração pelas suas funestas consequências. Eram pessoas de tudo». O bispo, de uma maneira geral, queixava-se da falta de
que devendo pelo seu caracter edificar o povo com a sua ajustada apoio no combate as relaçoes sexuais ilícitas. A proposito do coman-
conduta lhe serviam de pedra de escândalo. Bem me afligi e então dante de uma fortaleza, «rapaz incontinente no sumo grau», comen-
ver-me obrigado a conserva-las no governo das almas por não ter tava: «São desordens que não excitam demasiadamente o escrúpulo
outras que as possam substituir: triste necessidade! Aviso, repreendo de alguns que presidem na ordem politica»
e ameaço mudar de umas povoaçoes para outras; mas que ha-de ser Apos a longa e extenuante visita à sua diocese, D. Fr. Caetano
em tais distãncias? Duzentas leguas contam de aqui para a cidade, falta Brandão teceu algumas reflexoes sobre o que observara nas povoa-
o medo dos superiores. A nudez, a bruteza, a liberdade, o exemplo, o çoes de indios e naquelas em que predominavam os brancos. Sem se
clima, tudo impele para a prevaricação e so um efeito singular da atardar muito em relação aos indios «domesticados›› (a quem chama
divina misericordia poderá uma alma conservar a inocência rodeada de «pobres cristãos nascidos e criados no fundo dos matos» tendo ã
de tantos perigos.›› sua volta os constantes exemplos de «incontinência›› dados por pais
Percebemos, pelas várias referencias dos Diários, que a punição parentes e vizinhos), passa logo a comentar os colonos; «Se vêm ao
possível para estes clérigos amancebados era simplesmente a remo- lugar alguns brancos, ou habitam entre eles, são de ordinario os
ção para outra povoação, devido ã falta de eclesiásticos na região. Por piores, mais escandalosos, e desaforados, metendo indias em suas
vezes, nem sequer esta punição ocorria. D. Fr. Caetano Brandão conta casas, e tratando com elas publicamente sem temor de Deus, nem
que na vila de Gurupá, povoação de uns 400 brancos, com um desta- pejo do mundo, até chegarem a roubar as filhas das casas de 5@-us
camento de soldados, quando tinha passado provisão para o pároco pais, como acabo de ver em uma vila, que proximamente visitei.››
ser removido para outra igreja, se lhe apresentou a Câmara «com Ao contrário do que ocorria nas demais Capitanias onde os bran-
grande parte do povo, solicitando eficazmente a conservação do seu cos concubinarios procuravam ao menos salvaguardar as aparências,
vigário». na regiao amazonica o concubinato era público, a acreditar nas pala-
Em resumo, o que o bispo escreveu a proposito da vila de Sintra vras do b1spo_acerca dos que governavam as povoaçoes indigenas,
podia ser generalizado para toda a região; «Os costumes especialmen- chainados entao directores, de acordo com o Directorio dos indios
te pelo que toca ã incontinencia estão na maior dissolução; é o vicio do Grao-Para e Maranhao, datado da era pombalina mas ainda então
dominante de todo o Estado mas aqui reina como em parte nenhu-
em V18<_3f= «Agora deixo um, que estava mui sossegado com a
rna_›› Não se julgue, contudo, que o bispo so censurava os indios. concubma em casa, e parida de fresco, não obstante ter consigo
Segundo ele, os brancos eram os piores «e de costumes os mais glrãisaì, e sobrinhas donzelas, e o povo todo com os olhos firgs sobre
depravados››, vivendo pelos matos «atolados no lodo da incon-
tinência». Ele proprio reconhecia a ineficacia da acção da Igreja:
161
160
Além das visitas pastorais do bispo do Pará em fins do sec. xvui, casa uma sua comadre, com a qual tratava ilicitamente «com
temos noticia de uma outra realizada na diocese do Rio de Janeiro, na escándalo». Outra comadre, viúva esta, mantinha tratos ilícitos com
segunda década do séc. XIX, através das cartas dirigidas pelo bispo ao 0 vigário colado da matriz de 5. Jorge, havendo mesmo quem o
rei D. João VI. E a mesma preocupação com o concubinato laico e acusasse de difamar «as casas honradas de seus fregueses onde tem
religioso se nota nas missivas episcopais,8e tambem a mesma dificul- entrada, por cuja causa vivem infamadas nesta freguesia com o mesmo
dade em punir os párocos concubmanos . _ _ pároco três mulheres casadas». Além de ser ele próprio concubináno,
A carência de padres que quisessem ocupar freguesias mais remo- também não se mostrava rigoroso acerca dos concubinatos dos seus
tas e menos povoadas, e portanto menos rendosas, levou o bispo do amigos, admitindo as amâsias destes aos sacramentos em vez de as
Rio de Janeiro, nesta sua visita pastoral de 1819, a deixar nas suas punir com a sua proibição. Enquanto estes padres parecem ter esco-
paróquias padres cuja conduta tinha sido considerada escandalosa. lhido as suas concubinas entre a população branca, um outro dirigía
Escrevia ele ao rei D. João VI de Vila Viçosa a 10 de Novembro; as suas atençöes para mulheres de cor; era voz pública que tratava
«Também fui obrigado a suspender por alguns dias C10 €X€fC1C10 ilicitamente com a sua escrava negra e que, além disso, solicitara «ad
das suas ordens os dois vigários de Santa Cruz, e da vila do Prado, turpia», no acto da confissão, urna crioula casada.
por se acharem compreendidos em graves faltas de seu oficio paro- A libertinagem dos padres era frequentemente atribuida à falta de
quial, de não administrarem os sacramentos, de não lavrarem os as- uma acção enérgica por parte dos bispos, que raramente se desloca-
sentos, de desmazelo da fábrica de suas igrejas, e sobretudo de vam em visitas pastorais, preferindo mandar em seu lugar visitadores
amizades ilícitas, e publicamente escandalosas. Fiz-lhes assinar' ter- aos pontos mais longínquos das demasiado extensas dioceses; e tam-
mos, e protestos judiciais de emendarem seus costumes; nomeei ou- bém ao facto de ser comum a vacância dos bispados por longo
tro favriqueiro; fiz mudar as mulheres, e as filhas para outras período de tempo.
freguesias. Achei-lhes muita submissão, e pronta obediencia as mi- Foi por esta razão que, nos anos 80 do séc. XVIII, os vereadores de
nhas determinaçöes, e até me parece que sincero arrependimento; e Oeiras, cidade sede da Capitanía do Piaui, se dirigiram ã rainha
por isso, e porque não ha absolutamente outros sacerdotes, os~reabi- D. Maria I queixando-se da falta de bispo no Maranhão, a cuja diocese
litei, e deixei nos mesmos lugares, com a esperança de que nao me a população estava sujeita. «Os eclesiásticos vivem libertinamente
tornarão a dar semelhantes desgostos.›› _ nestes sertöes, pervertendo com os seus reprovados procedimentos
Os concubinatos laicos e religiosos não só eram directamente aqueles a quem deviam dar o exemplo.››1°
observados durante as visitas episcopais às dioceses, mars raras no Era sobretudo nas Capitanias do Nordeste que as queixas contra os
Brasil do que era aconselhado no Concilio de Trento, como tambem vigários mais se acumulavam. Na Capitanía do Rio Grande do Norte,
eram denunciados durante as devassas instauradas pela autoridade dependente da de Pernambuco, os vereadores representaratn em
eclesiástica. Podemos dar como exemplo uma que já foi objecto de 1806 contra 0 vigário da matriz de Natal, acusado de andar amance-
um estudo aprofundado9. bado com a filha de uma viúva".
Na «Devassa nas freguesias da comarca do sul da Baia no ano de Reprimidos pelos bispos nas suas visitas pastorais, denunciados
1815», estudada por Luís Mott, 6 eclesiásticos sao acusados de concu- pela população durante as devassas eclesiásticas, ou acusados pelos
binato. Entre esses, o padre Joaquim Malta vivia «concubmado publi- camaristas às autoridades civis, os padres concubinànos escapavam
camente com uma mulher branca, moradora no porto da vila, muitas vezes aos castigos determinados pelos textos eclesiásticos e
chamada Policarpa, hâ muitos anos, da qual tem tido varios lìlhos». viviam tranquilamente no meio das populaçöes, que só os acusavam
E as testemunhas acrescentaram que a concubina do padre era soltei- quando alguma crise surgia entre eles e as comunidades locais ou suas
ra, «fazendo o vigário muita resídência em sua casa». Enquanto este autoridades.
padre mantinha a amâsia fora, um outro era acusado de ter em sua No que se refere aos clérigos amancebados, vimos, pela visita
episcopal ã diocese do Pará nos anos 80 do séc. XVIII, que as puniçöes

5 Ver a minha edição destas cartas na Revista de Ciências Hr`$t0'r1`CaS (POFIO,


Universidade Portucalense) 5: 379337. 1990. ' 1
1° Al-IU, Capitanía do Piauí, Caixa 13, documento 15.
9 Luís Mott, «Os pecados da família na Baia de Todos os Santos, 1813», pub -
“ AHU, Capitanía do Rio Grande do Norte, Caixa 9, documento 41.
n° 98 do Centro de Estudos Baianos, da Universidade Federal da Baia, 1982.

162 165
previstas pelas Constituaçôes primeiras do arcebíspado da Baia não mãe do dito padre, que com ele vivia, era comadre do suplicante e
eram aplicadas. Eles foram simplesmente admoestados. madrinha de um filho, que ela tinha na sua casa». Como vemos foi
1 J - 1

Nas Capitanias em que a população branca era mais numerosa, os atraves de uma carta anonima que o tabelião teve conhecimento da
clérigos não deixavam de viver concubinados, mas procediam com infidelidade da mulher. Observamos também que havia relaçôes de
mais cautela. Na documentação da Capitanía de São Paulo, por exem- compadrio entre a família do padre e a do tabelião, o que facilitava a
plo, nota-se o cuidado, por parte dos padres, de terem as suas con- convivência.
Consternado com a noticia, chegou 0 marido a «adoecer de
cubinas não na própria casa mas em casa de parentes, onde as
visitavam sem comprometimento maior. Ou então coabitavam com paixao», mas dissimulado 0 seu sofrimento, mandou a mulher para
elas sob um falso parentesco”. uma casa «de conhecida honra», que ficava a uma d¡5i;å¡-¿Cia de
Quando os amancebamentos dos párocos provocavam a indigna- 14 léguas, a ñm de poder averiguar o adultério revelado, Fiçou Cel-¡O
ção dos paroquianos, estes não hesitavam em decorrer ã autoridade então da «aleivosa traição daquele indigno clérigo» que aproveitava as
dos governadores ou mesmo ã da Coroa. Em 1799 o povo da vila de ocasiöes «ou de ir o suplicante fora da vila a diligências do seu oficio
Taubaté, na Capitanía de São Paulo, reclamou junto da rainha porque ou de ir a mulher do suplicante visitar a mãe dele com o pretexto C1;
o bispo substituira um vigário «provectíssimo na ciência, nos costu~ C0flVÍVêI`1CiH>>, PHF21, amparado «de uns negros e crioulas suas
Y II

mes e na religião» por outro, «homem de péssima conduta» que, além confidentes», atacar a sua honra. E estes encontros tinham tornado
de se descuidar no assentamento dos baptizados, casamentos e óbi- publico «aquele sacrïlego concubinato», só ignorado pelo marido.
tos, era «um escandaloso, e público amancebado››15. Cønvencendo-se assim do adultério, «determinou procurar na Jus›
Que havia muitos párocos com concubinas por todas as Capitanias tiça, e na observância das leis o seu desagravo» e pediu licença para
é facto de que não restam quaisquer dúvidas. Basta seguir, num outro sair daquela vila deixando um substituto em seu lugar Em Fevefeim
capítulo, a série de pedidos para legitimar os filhos «sacrílegos›› como de 1785 dirigiu-se ã cidade de Oeiras, sede da Capitanía do Piauí e
cabeça de comarca, que distava 120 léguas da vila de Parnagoá Só ali
então eram chamados. Mas é preciso levar em conta também que
chegou' em principios de. Maio. Abriu então dois processos, um no
muitas acusaçöes específicas podiam não ser verdadeiras e resultarem
Juizo civil, perante o ouvidor interino e outro no Juízo eclesiástico
antes de um jogo político ou de um antagonismo, por exemplo, entre
perante o vigano geral forâneo. No primeiro querelou da adúltera e
governador e bispo. Conflitos deste tipo surgiam continuamente e, se
também dos negros «alcoviteiros de mulher casada››- no segundo qui-w,
a punição do clérigo amancebado competia exclusivamente ao bispo, I L

querelar do padre concubinario. Mas, como este e toda a sua família


o castigo da concubina de padre era aplicado pela autoridade civil.
Entre os padres concubinários podemos distinguir aqueles que eram «notoriamente protegidos pelo vigário geral do Maranhão» não
mantinham uma relação monogämica e continuada com mulheres aceitou 0 vigário de Oeiras a querela pois «não se queria inimizar ,nem
cair na indignaçâo do vigário geral do bispado, seu superior››_
solteiras, ou viúvas, de quem tinham varios filhos, e aqueles que
Vemos assim q-ue, sendo o padre concubinãrio de uma família
desencaminhavam mulheres casadas. Entre tantos casos que pode-
riam ser referidos, escolhemos um na remota Capitania do Piaui, poderosa e com alianças entre a alta hierarquia eclesiástica, o marido
olšmidiìlio encontrouuditìculdades no juízo eclesiástico local. Ver-se-ia
segundo a narração que dele faz, na sua petição à Coroa, o marido
ävriga o a ãf1a1ar ainda mais 200 leguas ate ao Maranhão, se não
enganado14. Este, tabelião na vila de Parnagoã, comarca de Oeiras,
«teve noticia, por letra desconhecida, nos fins de 1784, que o padre esse opta o por recorrer ao juizo da Coroa de Oeiras, onde 3 Sua
João Martins Caminha, clérigo secular da mesma vila, se tratava ilícita- querela foi aceite e se expediu mandato da captura contra o clérigo.
Embora p mando enganado tivesse saído da sua vila sem revelar as
mente com a mulher do suplicante, abusando aleivosamente da ami-
zade, e mútua comunicação, que havia entre as duas familias, pois a 5'-"ls 11"1fCU§0€S, 0 padre desconfiou do motivo da sua viagem e come
ç0U› P01' SGU 1?1d0, 2 1HVBSI1gar as medidas que o tabelião estava to-
m
cöaåišio contra ele. Com todos os seus. apoios
- familiares
- . _- _
e eclesiasticos,
12 Ver Eliana M. R. Goldschmidt, «Virtude e pecado: sexualidade em São Paulo @8_'-UU tirar «carta de seguro pelas culpas de adultério e
colonial», in Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini (orgs.) Entre a virtude e concubmato» e que a culpa fosse remetida de Oeiras para o Mara-
0 pecado, Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos/Fundação Carlos Chagas, 1992, pp. 30-52. ïlgalp. Aàhistória .deste processo constitui um emaranhado de intrigas,
15 Di,vo1. sz, p. 72. a an 0 0 marido traido por recorrer a Coroa na sua luta contra um
14 AHU, Capitanía do Piaui, Caixa 13, documento 24.

164 165
________t 
pô-lo, tanto mais que a mulher se recusava a Picar em casa do pai
clérigo poderoso e pertencente a uma familia com fazendas de gado
quando 0 marido tinha de se ausentar para o engenho, preferindo
na região. _, _ permanecer sozinha na sua casa. Além disso, também se recusava a
Nem sempre 1 contudo ' a alta cúpula eclesiastica acobertava, um acompanhar o marido deixando-se fìcar sempre na cidade.
clérigo prevaricador de família poderosa ou bem colocada na hierar- A adúltera já tinha sido sentenciada no juïzo civil, mas o cónego só
quia da igreja. O arcebispo da Baia, H 19 de DGZCITÚJYO de 1789, podia ser julgado no Juízo eclesiástico. Ao arcebispo chegara já a fama
perante o libelo acusatório em que Jacinto Tomé de Faria, senhor de que ele tivera «comunicação›› com outras mulheres casadas e as
de engenho, acusou 0 cónego da sé de Baia, josé da Silva Freire,
testemunhas apresentadas pelo réu eram só «de abonação» e não
homem «poderoso por si, e seus parentes», de cometer adultério
vizinhos «que pudessem ver, e observar os factos». Também não
incestuoso (uma vez que era seu compadre por lhe ter baptizado lhe podia valer uma alegada enfermidade de Ana Maria «por se não
uma filha) com sua mulher, Ana Maria Joaquina da Purificação, não mostrar por exame judicial, que por ela se fizesse inacessível para
hesitou em condenar o réuls. A pena foi o degredo de um ano para cometer com o reverendo réu os referidos adultérios».
uma das vilas da comarca de Ilhéus, 500$000 réis para o marido Ao contrario do que observamos no caso do padre adúltero do
enganado e o pagamento das custas. _ _
Piauí, em relação ao cónego baiano, igualmente poderoso mas numa
A pena não foi maior porque a prova do delito, conquanto eficaz, situação de maior visibilidade social, o castigo, conquanto leve, foi
não foi considerada «concludente para a pena ordinaria declarada na efectivamente aplicado pela autoridade eclesiástica competente. Mui-
Constituição deste arcebispado, Liv. 5, fit- 19, §966››. Na verdade, _era to embora a punição eclesiástica dos concubinados pertencesse ã
dificil provar 0 crime de adultério de maneira a aplicar a pena maxima esfera diocesana e não ã Inquisição, um professor régio de Latinidade
ao cónego adúltero. Como escrevia o arcebispo, «os actos torpeô, 6 na vila de Penedo, em Alagoas, resolveu em 1795 denunciar ã rainha
ilícitos, especialmente os adultérios quese executam com maior cau-
dois individuos que viviam concubinados e tal denúncia foi encami-
tela pelos contingentes, e funestos per1g0S, Se 1120 PfCìVfim fegulflf- nhada ãquele Tribunal certamente pelo facto de ambos serem fami~
mente por testemunhas oculares na sua efectiva execuçao». liares do Santo Ofícioló. Um deles, José Gomes Ribeiro, andava
Apenas «presunçöes conjecturas» podiam ser formuladas a partir
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concubinado «com uma moça branca chamada D. Maria, a cuja casa
dos depoimentos das testemunhas. O cónego «entrflva DOCU-Ifflfl G vai de dia e de noite a toda a hora comer e dormir, e dela sai' todas as
clandestinamente›› na casa de Jacinto, 01-1 ÚSÍÍVCSSE C19 ausente “Q manhãs ou de tarde depois da sesta sem pejo algum do povo».
engenho e a mulher sozinha; ou mesmo estando o mando em casa, O outro, Manuel Gomes Ribeiro, mantinha a concubina, com «casta
pois a disposição desta assim o facilitava. O reverendo mandara os de parda», portas adentro e dela tivera um filho. O denunciante, padre
seus escravos roçar o mato que ficava ao pé do quintal «para por esse Gabriel josé Pereira de Sampaio, terminava a sua denúncia com as
insólito caminho se introduzir nela, fechado na sua cadeira de arruar». seguintes palavras; «Ambos estes homens são familiares do Santo
As testemunhas ouvidas afirmaram que ele passava da <<loge›› da casa Oficio, Tribunal que manda tirar o medonho acto do concubinato
para um quarto do sobrado, no qual Ana Maria fazia «a sua maior, e escandaloso. Pede a justiça e catolicismo de Vossa Majestade que esta
continuada resídência», sem que a ele, «quase por divÓrCi0 pena, e as mais da lei se imponharn a estes perpetradores de seme-
doméstico» 7 tivesse acesso o marido. Para essa passagern e subida-¬
lhantes dissoluçöes.›› Ignoramos qual tenha sido a pena aplicada, mas
mandara a mulher construir pelos seus escravos «uns alçapoes». é possível que a Inquisição lhes tenha retirado a qualidade de
Além disso, o cónego possuia uma chave da porta que ficava do lado familiares”.
do quintal Por vezes, contudo, fechado na sua cadeira, chegava a
Enquanto as normas eclesiásticas, expressas nas determinaçöes do
entrar pela porta principal. Declararam ainda as testemunhas que o Concilio de Trento e nas Constituipôes primeiras do arcebrlspado da
avistavam sentado e encostado a uma das ¡anclas que dava para o
quintal com Ana Maria «com tanta familiaridade, como se estivesse
na sua própria umas vezes em chambre, outras em vestes». Claro
1 16 ANTT, Inquisiçao de Lisboa, 17.462.
que nada disto provava efectivamente 0 adultério, mas levava a su- 17 Mesmo sem constituir objecto específico das denuncias, as referências ao
concubinato surgiram na documentação inquisitorial sempre que se pretendia enfa-
tizar o modo de viver escandaloso do acusado. Ver por exemplo, ANTT, Inquisição
de Lisboa, 5.851.
” iuvrr, Papers do iarasi1,Avulsos 3, n" 10.
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Baia, atribuíam ã palavra concubinato um sentido tão amplo que ilícitas, desde a legislação josefina evitava-se que corresse perigo a
incluía o proprio adultério, as leis civis, mais preocupadas com as vida daquelas que tinham cometido apenas um delito menos grave
familias e os patrimonios do que com as ofensas ao sacramento do porque ocasional. Mas, na pratica, algumas justiças mais gananciosas
matrimonio, restringiam consideravelmente o seu sentido. não hesitavam em esquecer estas diferenças. É o que se dep reende de
Na obra do jurista Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, intitulada uma informação acerca dos magistrados redigida pelo governador da
Classes dos crimes, encontramos a seguinte definição do termo; «por Capitanía de São Paulo, Franca e Horta, em 1805, referindo-se expli-
concubinato se entende em geral o estado de um homem, e de uma citamente ao ouvidor da comarca de Paranaguä; «São infindas as
mulher, que vivem juntos, como casados, sem terem preenchido as pessoas que saem pronunciadas nas devassas das suas correiçöes,
solenidades legais para dar a esta união a qualidade de casamento porque sendo todo o seu empenho que haja muitos criminosos para
legítimo» E o autor cuidadosamente separava a relação sexual da crescerem os seus interesses pecuniários, e do seu escrivão, até pro-
situação de concubinato; «O simples comercio carnal de um homem nuncia por crime de que não deve inquirir, nem tomar conheciniento
com uma mulher não constitui propriamente o concubinato; e não se por lhe ser expressamente proibido pelas augustas leis de V. A., como
chamam concubinas as mulheres públicas, ou prostitutas, nem aque- são os concubinatos, sobre que jamais se deve devassar na conformi-
las que admitem clandestinamente algum homem estranho, com dade do alvarâ de 26 de Setembro de 1769, ã excepção unicamente do
quem não vivem fora dos momentos em que a paixão, e o gozo do caso em que a concubina é teúda, manteúda com geral e público
prazer os unem.››18 escãndalo.››2° Na cidade de São Paulo, por exemplo, o sargento-mor
Assim, enquanto a relação sexual fora da legitimação pelo sacra- Francisco da Rocha Abreu e Clara, preta forra, viveram arnancebados
mento do matrimonio era punível pelas normas eclesiásticas, do pon- mais de dez anos «morando juntos em uma casa com notorio e
to de vista da legislação civil era condição necessária, para a público escândalo de toda esta cidade››21.
configuração do concubinato, a coabitação. E Pereira e Sousa não O governador da Capitanía de São Paulo, Lobo de Saldanha, sendo
deixava de acentuar a diferença entre o direito canonico e o direito de opinião de que «historias de mulher e ciúmes de clérigo» pertur-
civil relativamente a este delito; «Entre nós, posto que o concubinato bavam demasiado a sua Capitanía, não hesitou em punir as concubi-
seja justamente considerado uma incontinência contraria ã pureza do nas dos padres, mas pela documentação percebemos que essa
cristianismo, e aos bons costumes, contudo o concubinato simples punição variava com a condição social da manceba. Enquanto em
não tem sido punido por lei especial em algum dos nossos três codi- 1779 deu ordem ao sargento-mor da vila de Mogimirim para lhe trazer
gos Afonsino, Manuelino e Filipino.›› Além disso, pela lei de 26 de presa uma «depravada mulher», concubina de um «indigno clérigo»,
Setembro de 1769, foi proibido qualquer procedimento criminal pelo ao capitão-mor da vila de Jacareí simplesmente ordenou que afastasse
concubinato simples, ou seja, esporádico e não implicando outro Ana Maria da Conceição do padre frei José Inocêncio, «que com ela
crime como por exemplo o de adultério ou sacrilégio. Só era punido tão escandalosamente vivia, esquecido de católico, religioso, e pastor
o chamado concubinato «qua1iiicado››, entendendo-se por esta desig- espiritual», e a entregasse a seu írmão, «precedendo o termo de a não
nação «o da mulher casada com homem casado, da mulher casada, ou mortilicar, nem lhe fazer cousa que a prejudique››22.
solteira com clérigo, ou frade, da mulher casada, e manteúda na pró- Quando se tratava de um concubinato laico, este mesmo governa-
pria casa››19. dor actuava em consonância com os pãrocos locais, como podemos
Dado que para alguns grupos sociais a defesa da honra justificava ver pela resposta que deu, em 1780, ao vigário da freguesia da Pieda-
atitudes violentas contra as mulheres a quem se atribuíam relaçöes de: «Devo dizer a V. Mce. que participando-me a libertinagem com
que três fregueses vivem concubinados, sem que as suaves, e brandas
'B Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Classes dos crimes, por ordem sistemá- diligências da igreja os tenham confundido, me não diz os nomes
tica, com as penas correspondenres, segundo a legisiapâo actual, 2* edição, Lisboa, deleskpara proceder, como devo. Sem embargo do que nesta mesina
1816, p. 207. As mulheres públicas, ou prostitutas não eram encaradas como crimi- ocasiao escrevo ao capitão Antonio Lopes de Lavre, para que proceda
nosas pela legislação civil. Consideradas um «mal necessârio», elas espalhavam-se
por todo o Brasil, nomeadamente em São Paulo (Ver Eliana Goldschmidt, op. cit, pp.
22-24). Enquanto a mulher honrada se escondía no interior da casa, a mulher
«mundana›› tinha sempre a porta aberta por ela entrando e saindo homens.
2° DI. voi. is, pp. ias-136.
2' Eliana Goldschmidt, op. cil., p. 26.
19 Pereira e Sousa, op. cit., p. 209. 22 oi, mi sz, p, 209 e mi 77, p. 149.
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Neste caso do mencionado porta-bandeira o castigo consistía em


ã prisão dos referidos três concubinados, logo que V. Mce. lhe diga ser enviado preso para a capital, São Paulo, muito distante da vila em
quem são e mos remera bem seguros com as culpas de cada um deles que morava e exercía a sua actividade, o que certamente o prejudicava.
tiver, como também que auxilie a V. Mce. para o futuro em outros Mas o castigo mais temido não era este e sim o recrutamento militar
semelhantes casos, em que estou persuadido V. Mce. ha-de ob rar com Dada a dificuldade de obter recrutas, os governadores optavam por
aquela ponderação e probidade que eles mesmos pedem.››25 recrutar em primeiro lugar, além dos vadíos e vagabundos aqueles
Essa colaboração entre a autoridade civil e a eclesiástica fica tam- que vivíam concubinados «pública e escandalosamente», Por ocasião
bém bem patente na ordem enviada por Lobo de Saldanha, em 1780, dos grandes recrutamentos, os párocos apressavam-se a colaborar
ao sargento-mor da vila de Paranaguá; «Constando-me, que nenhuma com os governadores, enviando-lhes a lista daqueles que einbora
das muitas diligências do reverendo vigário desta vila, nem as de V. . 1 ,

casados, viviam separados das suas inulheres, e dos solteiros que


Mce. têm feíto o menor peso na depravada consciência do porta- insistiam, apesar das admoestaçöes, em viver em concubinato Aliás
-bandeira Domingos Cardoso Lima para se abster do público escânda- a . _,
as proprias populaçoes, quando chegava 0 momento da recruta,
' 9

lo, com que vive concubinado, gravando este com não dar obediêncía tinham todo o interesse em apontar os «mal casados» e solteiros de
ã Santa Madre igreja, valendose de indígnas delicadezas, para não ma vida poismassim evitavam que o recrutador lhes levasse maridos,
satisfazer como católico, o sacramento da penitência por desobriga- filhos ou irmaos.
ção da Quaresma; sendo da minha índispensável obrigação auxiliar a _ Alem da prisão ou do recrutamento militar, a autoridade civil podia
mesma Igreja e com todas as minhas forças procurar que meus súb- ainda usar a destituição de um emprego público como forma de
ditos a reconheçam por mãe, a respeitem, e vivam no santo temor de puníção do concubinato laico, como ocorreu com o escrívão dos
Deus, ordeno a V. Mee. que logo que receber esta, mande ã sua Orfãos da vila de Guaratinguetã, na Capitanía de São Paulo, que per-
presença o sobredito Domingos Cardoso Lima para dizer-lhe, que deu o seu pargo por estar separado de sua mulher, moradora na
no termo prefixo de oito dias satisfaça ao preceito anual de católico cidade de Sao Paulo «e viver hã muitos anos escandalosamente man-
nessa freguesia, com a cominação de que não o fazendo, ser preso, e cebado na dita vila», o que constituía um «terrivel exemplo››25
seguro mo remeter a esta cidade, para nele fazer exemplo, e obviar Dada a eficacia com que os govemadores podiam punir os con-
continuem outros tão mal conduzidos, e libertinos, como este em tão cubinos adúlteros, muitas esposas abandonadas recorriam ã máxima
execrandas culpas. Como também lhe intimidarã V. Mce. da minha autoridade civil da sua Capitanía para conseguir trazer de novo os
parte que se tiver a liberdade de continuar nas ameaças contra o maridos para. a vida conjugal,_ enquanto outras resolviam a situação
seu vigário ou executar algumas das que tem proferido, o castigarei com as proprias maos. Numa vila da Capitanía de São Paulo conhecida
asperamente.››24 pela violencia que ali remava, Mogi das Cruzes, duas irmãs lutaram
Esta ordem do governador da Capitanía de São Paulo revela alguns com as concubinas, fenndo-as e cortando-lhes os cabelos. Com este
aspectos interessantes na pratica do concubinato laico no fim do comportamento nao concordava o governador «porque Sua Majestade
período colonial. Em primeiro lugar, so o pároco estava em condi- temfleis, com que possa castigar semelhantes mancebias». As justícei-
çöes de conhecer localmente os costumes dos seus fregueses e de os ras oram colocadas na cadeia da vila por vinte dias, para não voltarem
admoestar em particular ou em público na igreja durante a missa. Por a proceder daquela maneira; as concubinas, caso não cessassem aque
ocasião da Quaresrna é que anualmente o padre podia, mediante o rol las relaçoes adúlteras, seriam expulsas da vila e seu termozá
da desobriga, apontar os concubinados a quem recusara a comunhão d -Eram várias portanto as medidas repressivas do concubinato e não
ou que, como neste caso, se tinham exímido ao dever da confissão. eixaram de ser aplicadas pelos governadores com maior ou menor
Em segundo lugar, que aqueles que vivíam publicamente concubina- frequencia, dependendo do estilo de governo de cada um A eficacia
dos entravam por vezes em conflito aberto com o seu vigário. Em da punição civil contrapunha-se assim ã constatada ineficacia das
terceiro lugar, que sendo impossível punir todos os que cometiam admoestaçoes dos representantes da Igreja, bispos ou pãrocos.
este delito, era necessãrio dar de vez em quando um exemplo de
punição.

2* ni,vo1. sz, p. 145.


2* D1,v<›1. 84, pp. as-96.
26 rara. mi. ss, p. 14.
2'* 1brd.,pp. 159-iio. ,

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Relaçöes ilícitas e filhos ilegitimos

Depois de termos referido as normas eclesiásticas e civis em rela-


ção ao crime de concubinato e também a forma como as respectivas
autoridades o puniam, veíamos agora a extensão desta pratica no fim
do período colonial.
A informação acerca do concubinato simples é inaís abundante do
que acerca do concubinato qualíficado, para ernpregarmos a classifi-
cação jurídica da época. Exactamente porque se tomara um delito
oculto para evitar processos judicíaís, sobretudo na área civil (os mais
temidos), possuímos muitas referências a relaçöes ilícitas, mas nem
sempre dispomos dos dados suficientes para as ínserir numa ou nou-
tra classe de delito.
Tomemos como exemplo a já citada devassa feita pela autoridade
episcopal nas freguesias do sul da Baia em 1815, durante a qual em
cada uma das 12 vilas visitadas foram ouvidos cerca de 50 «homens
bons» para que acusassem aqueles moradores que praticavam «ex-
cessos e pecados››1. Ao todo 591 pessoas proferiram 596 acusaçöes
envolvendo todos os grupos sociais, jurídicos e étnicos. A analise
quantitatíva desta devassa foi feita pelo historiador Luis Mott, que
apurou no item imoralidade sexual 506 acusaçoes, ou seja 51,5 % do
total. Entre estas a maior parte refería-se a concubinato (55,7 %) mas,
se a essas fossem acrescentadas as designadas pelas expressöes «tra-
tos ílícítos», «ajuntamentos›>, «amizades ilícitas», «vivendo como se
fossem casados», essa percentagem subiria para 44,5 %.
Num total de 215 acusaçöes de concubinato, 46, ou seja, 21 %, são
apresentadas como relaçöes estãveis, algumas ímplicando mesmo
coabitação. Como escreve Luís Mott, «varios casais víviam como se
fossem casados», muitas concubinas são referidas como «teúdas e
manteúdas» pelos seus amãsios, em 17% dos casos, os amigos víviam

1 Luis Mott, «Os pecados da família na Bahia de Todos os Santos (1815)››,


pp. 9-10 e 15-31.

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«de portas adentro» com as suas amantes. Esta percentagem de con- consideração que era seu marido ou para seu marido». Quando teve
cubinatos qualificados devia ser ainda mais elevada, pois aqueles que noticia de que ele se preparava para abandonar a Capitanía de São
faziam a denúncia esquecíarn-se por vezes, ou não consideravam im- Paulo e dirigir-se para a de Goiás, deixou o sitio onde morava e
portante, fornecer esse detalhe ã autoridade eclesiástica. De qualquer dirigiu-se ã cidade, que ficava a um dia de viagem, a fim de exigir
modo, destas uniöes ilícitas tinham resultado filhos, mencionados que ele cumprísse a promessa. A moça alegava que «nunca teve fama
pelos denunciantes. com alguém nem podia ter pois vivia em um deserto tratando de suas
Reunindo os casos em que a origem étnica dos concubinatos era lavouras sem ter comunicação». Por ser mulher pobre é que ele a
mencionada, vemos que foram acusados deste delito 77 pardos, queria enganar, embora ela fosse «muito honrada, sem nunca ter
41 negros, 59 indios e 24 brancos. Quanto ao estado civil, quando este rumor de fama».
é indicado, observamos que os concubinatos implicando adultério Perante esta acusação, o homem defendeu-se dizendo que costu-
correspondiain a 28% do total, sendo solteiros 60% e viúvos 12%. mava andar no caminho das Minas Gerais com cavalos carregados e,
Estes amancebamentos ocorríam dentro do mesmo grupo étnico, como a moça morava com o pai nessa estrada, entre Mogi das Cruzes
excepto em relação aos brancos, amancebados em alguns casos com e São Paulo, ele alojara-se lâ em casa «para seu pouso e pasto dos
negras, pardas e indias. É importante contudo notar o amancebamen- cavalos» e não porque a cortejasse. Negou ter-lhe feíto promessa de
to de mulheres brancas, certamente muito pobres e desprotegidas, casamento, ter tido cópula com ela, «e menos a levou de honra e
com homens de cor que lhes davam o apoio necessário ã sua sobre- virgindade que essa a não tem ela ha muitos anos». Por seu turno
vivência económica. Assim, por exemplo, Tomás, crioulo forro, vivia acusou a moça de ser uma mulher lasciva que se entregava a deze-
concubínado «de porta adentro, teúdo e manteüdo com Paulina Ma- nas, «e por tal é conhecida e tem fama entre a vizinhança e outras mais
ría, branca». partes». Tinham-no prevenido de que não se metesse com tal gente
A devassa baíana revela que a promessa de casamento não cum- por ela ser desonrada e ter dormido com varios homens. Como ela
prida estava por vezes na raiz destes concubinatos; «Francisco de tal, alegara «estar prendada», sinal evidente da promessa de casamento,
europeu, negociante, morador em Valença, vive amancebado, teúdo tendo recebido dele uma cruz de ouro, botöes e algumas alfaias como
e manteúdo com Maria, branca, ambos solteiros. Moram em casa de camisas, saias, etc., ele negou no libelo ter-lhe dado quaisquer pre-
uma tia, tendo-a e conduzindo-a como se fosse sua mulher, tendo- sentes que pudessem ser encarados como simbolo de promessa, e so
-lhe prometido casamento, mas não o fez.›› Não eram só os brancos ao pai dela oferecera um jaleco, camisas e algumas coisas mais de
que não cumpriam as promessas: Severino pardo forro, vivia de vestir em recompensa do favor de deixar andar os seus cavalos no
portas adentro com uma india, «com a qual tratou para casar e pasto que lhe pertencia. E terminava a sua resposta dizendo que ele
não casou». jamais teria feíto tal promessa por ela não ser pessoa capaz para casar
Esta pratica de prometer casamento para estabelecer relaçöes se- com ele: «por ser uma mulher desonesta, fraca gente de carijós e
xuaís era comum, não so na regíão sul da Baia, objecto desta devassa bastardos e uma pobre muito feia, torpe, sem partes nem habilidades
eclesiástica em 1813, mas também na Capitanía de São Paulo e certa- algumas».
mente noutras Capitanias ainda não suficientemente estudadas quanto Dificil é, neste processo, saber quem dizia a verdade, mas o que
a este aspecto da vida social. importa acentuar é que a grande mobilidade geográfica dos homens
Num libelo civel movido por Vitoria da Cunha, moradora no termo no Brasil colonial dava muitas vezes ocasião aquilo que os juristas
da vila de Mogi das Cruzes, contra Antonio Ferreira Leigal, a moça classifìcavam de concubinato simples e que, para haver concubinato
contava a seguinte historíaz. Ele costumava engordar cavalos no sitio qualíficado, era necessário um certo grau de sedentarização.
a ela pertencente e começara logo a namorá-la, «mandando-lhe reca- Os processos eclesiásticos por quebra de promessa de casamento,
dos amorosos, e prometendo-lhe dádivas››. Vendo que ela não con- com as acusaçöes e as defesas, permitem fazer uma ideia das relaçöes
sentia num relacionamento mais íntimo se não se casasse, de socíabilidade e das ocasíöes propicias ã pratica do concubinato
«prometeu-lhe casamento e por isso consentiu a desonestã-la na simples. Pobre e orfã de pai, Aria Fernandes vivía na vila de Itú, na
Capitanía de São Paulo, em companhia de sua mãe, «quieta e pacifi-
camente como honesta donzela que era», até que Vicente Fernandes
2 Acsr, 15-1-4. de Abreu a desinquietou com promessas de casamento «só a fim de a

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_ mr*
levar de sua honestidade››3. Confiada na promessa, ela entregara-se condicionamentos sociais na prática do concubinato simples, basta
-lhe, passando Vicente a frequentar a sua casa e deixando-a grâvida. salientar que, nestes dois casos referidos, os parceiros pertenciam às
Quando percebeu que ele não tinha a intenção de cumprir o que classes populares e víviam num meio rural. As moças tinham ganho a
prometera, decidiu a moça recorrer ã Justiça eclesiástica. fama de levianas por comunicarem facilmente com representantes do
A defesa do sedutor é longa e detalhada. Começa por dizer que não sexo oposto e não viverem com o recato defendido para moças bem
fora ele que a desvirginara, mas sim um certo João Frias, que alias educadas e de melhores familias. Ana fora «criada com toda a licença
estivera preso na cadeia da vila por este delito, segundo lhe contara sem temer prãticas e conversas com estranhos››; Vitória, por ser
João Velho, outro individuo com quem Ana mantivera relaçôes. Este mestiça de india, apesar de viver à beira da estrada e num local
comportamento mostrava que a moça era «facil em se entregar aos isolado, já ganhara fama de desonesta entre a escassa vizinhança
homens», e até mesmo com um irmâo dele cometera «acto libidinoso talvez por ter uma comunicação fácil com os viajantes que por ali
e desonesto›› quando este era ainda rapaz. Quanto a ele, só tivera trato passavam.
com Ana uma vez «por completar seu apetite e não por razão de Além destes processos por quebra de esponsais levados perante a
promessa de casamento». Para dar mais peso ã sua defesa descrevia justiça eclesiástica, uma outra série documental permite-nos formar
a desenvoltura da moça: «sempre viveu sem cautela na sua fama, uma ideia adequada das relaçöes sexuais fora do matrimonio: as dis-
porquanto em casa de sua mãe nunca houve resguardo algum, mas pensas matrímoniais conservadas nos arquivos eclesiásticos.
sim é casa onde admitem a todo o género de pessoa de dia, e de noite Isto porque a Igreja considerava como impedimento à celebração
com festas, e danças de batuques a portas abertas››. Além disso, Ana do matrimonio o facto de ter havido previamente relaçöes sexuais
andava muitas vezes só pelos caminhos «sem temer a sua fama», e com algum dos parentes dos contraentes. Era o chamado impedimen-
assim não era de admirar que estivesse pejada. O que ela pretendia era to por afinidade: «Também a contrai aquele que teve cópula ilícita
atribuir a gravidez «ao mais bem parado», ou seja, ao mais bem perfeita, e natural com alguma mulher, ou mulher com algum varão;
estabelecido, que neste caso era ele. e por esta causa não pode contrair matrimonio com parente do outro
Ana não se calou. Alegou que o tal João Frias só ia a casa de sua por consanguinidade dentro do segundo grau.›› Este impedimento,
mãe para mandar fazer algumas costuras ã sua irmã, isto numa altura referido nas Constituíçôes primeiras do arcebispado da Baia entre
em que ela era ainda rapariga incapaz de tanta audãcia a ponto de outros impedimentos «derimentes››, ou seja, que podiam anular o
seduzir homens «sem pejo nem vergonha». Quanfü 2 J0ä0 V€1h0› el@ matrimonio caso não tivesse sido concedida previamente uma dispen-
era sobeiamente conhecido por se gabar de ter relaçöes com as suas sa pela autoridade eclesiástica, era contudo mal conhecido pela po-
vizinhas, mesmo sendo falso. V pulação. Um paroquiano da Capitanía de Pernambuco, por exemplo,
Vicente insistiu que nessa época, ela «em quanto ao corpo parecia casou-se sem saber que havia impedimento para o seu matrimonio.
rapariga, contudo em quanto a capacidade do tempo, já estava hábil Porque era <<rústico›› ignorava que as relaçöes sexuais que mantivera
para actos de varão». Como o dito João Frias era «homem muito com a mãe da noiva impediam que ele se casasse com a filha. Só
fogoso para actos venëreos» e tinha total acesso à casa de Ana por passados varios anos de casado (e quando a sogra já tinha morrido)
ser seu parente, isso certamente facilitava as relaçöes entre os dois. é que, ao ler por acaso «um livro de moral em português», descobriu
Alias, a fama de ter sido desflorada por Frias é que levara João Velho e que o seu casamento era considerado nulo pela Igrejaé.
«várgos est@-digg e magan05›› a quererem ter relaçöes com ela «pela Outros, mais informados, encaminhavam uma petição ao bispo ou
facilidade com que dava cumprimento a seus desordenados apetites››. ao seu vigário geral a fim de obterem dispensa e não ha dúvida de que
Ja ele, Vicente, era muito rapaz e a sua pouca idade «lhe não podia dar entre as camadas populares este impedimento de afìnidade por cópu-
afouteza de intentar acto venéreo com mulher branca ou que esteja la ilicita aparece frequentemente na documentação eclesiástica. Nestes
em título de branca». grupos sociais não só os homens tinham mantido relaçöes sexuais
Neste duelo verbal cada um manejou as armas de que dispunha. com irmãs ou mesmo com a mãe daquela que depois escolhiam para
Como o nosso intuito aqui não é saber a verdade, mas sim apontar os
4 D. José Joaquim da Cunha de Azevedo Coutinho, Respotrtas dadas por C..) bispo
de Eiuas, então bispo de Pernambuco, às propostas jèitas por alguns párocos da-
5 Acsr, 15-1-17. quela diocese, Lisboa, 1808.

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†*'

noiva como tambem as mulheres o faziam com parentes daqueles ocorria sobretudo quando o crime sexual ein questão era o estupro
)

com quem pretendiam casar. ou o rapto violento.


Vejamos um desses pedidos e a sua iusnficaçao. Na Capitania de As denúncias judicíaís, comuns no caso de concubinato, consti-
São Paulo, em 1801, Gabriel Luis e Escolastica Maria declararam que tuiam uma forma de controlo diário da população, enquanto a devas-
ele tivera cópula ilícita com uma irma dela e que depois <<1I1f21mOL1>› sa só ocasionalmente o permitía. As acusaçöes eram directamente
Escolãstica tendo dela uma filha, da qual nao podia cuidar sem se encaminhadas ã sede do bispado, ou então eram apuradas pelo páro-
casar, pois o pai da moça maltratara-a ao saber do ocorrido. Os co ou pelo vigário da Vara da localidade em questão, e remetidas ao
requerentes eram «sumamente pobres», mas Gabriel alegavaser vigário-geral por meio de um sumario. Poderiam ainda ser feitas pelo
«agil›› e portanto capaz de alimentar e vestir a mulher e afilha promotor da Justiça eclesiástica, mantendo-se os nomes dos delato res
decentementeã. Muitos outros processos de dispensa de afinidade em segredo para que denunciassem «de boa vontade e sem temor de
por cópula ilícita poderiam ser citados. Basta contudo ressaltar o serem descobertos».
facto de se tratar sempre de contraentes pobres e miseraveis, por Vejamos alguns exemplos de concubinato recolhidos por Eliana
vezes com prole ilegítima, mas que pretendiam regularizar a sua situa- Goldschmidt. Na denúncia, feita pelo promotor da Justiça eclesiásti-
ção 7 abandonando o concubinato. A autoridade eclesiastica em geral ca, de um casal da cidade de São Paulo, o sargento-mor Francisco da
.
concedia a dispensa, o que nao deixava de chocar ocasionalmente a Rocha e Abreu e a negra forra Clara, o concubinato foi descrito da
autoridade civil. O governador da Capitania de Sao Paulo, Lobo de seguinte maneira: estavam amancebados hâ mais de 10 anos, «moran-
Saldanha escandalizava-se em 1799 COIH 3 im0fH1Ídfide reinante 20
I
do juntos em uma casa com notório e público escândalo de toda esta
ver na cidade um homem obter licença para se~casar, apesóar de ter cidade», tanto mais que a desigualdade social era flagrante entre os
mantido anteriormente «tratos ilicitos» com a mae da noiva _ _ parceiros. Uma das testemunhas interrogadas no processo afirmou
Recentemente, num estudo sobre sexualidade e transgressao, a que 0 sargento-mor só se retirara da casa de Clara, onde morava,
historiadora Eliana Goldschmidt analisou uma outra serie documental para casa de um vizinho, quando lhe chegara a noticia de que seria
eclesiástica, as denúncias perante a Justiça episcopal da Capitania de denunciado ao Juizo eclesiástico.
São Paulo?. Incentivando a delação, a Igreja procurava que os bons Não só a coabitação mas também a rnanutenção ou sustento da
pudessem viver seguros e que, «com temor das penas que virem casa da concubina configuravam um concubinato mais estável, do
executar nos maus», se abstivessem de cometer semelhantes delitos. mesmo modo que a presença de escravo do amãsio a servir a amá-
As denúncias eram apresentadas pré-judicialmente e judicialmente. l\Io sia. Assim, no processo acima, muito embora Francisco se tivesse
primeiro caso, não se impunham castigos, mas somente «correcçoes retirado da casa de Clara, lá deixara escravos para a servir, o que
fraternas››. A denúncia era feita directamente pelo denunciante ao seu provava o crime.
confessor a fim de «procurar a emenda do ruim estado» em que Era no meio rural que os concubinados buscavam a privacidade
víviam aqueles que lhe estavam mais proximos, parentes ou vizi- que o centro urbano lhes negava. Manuel Ferreira, por exemplo,
nhos. O procedimento judicial implicava um processo e na expediçao morador na cidade de São Paulo, vivia amancebado com uma viúva
de uma sentença por parte do julgador. O vigário-geral, principal hã muitos anos, tendo comprado um sitio em Mogi~Guaçu «para a ter
figura desses autos, representava directamente o bispo na funçao de de sua mão», assistindo-lhe com escravos para o seu serviço «e tudo o
punir os «delitos e excessos» da população, nao so atraves da devassa, mais necessário».
como vimos anteriormente com a devassa na Baia em 1813, mas As relaçöes de parentesco exigiam provas mais evidentes da pratica
também através da querela ou da denuncia. do concubinato do que o facto de «entrar e sair um da casa do outro»,
A querela tinha lugar quando determinado crime causava danos pois essa convivência frequente podia ser explicada por serem paren-
fisicos como «feridas, nódoas, ou pisaduras negras ou inchadas» e tes. Assim, num processo, tio e sobrinha haviam sido vistos «juntos
deitados››; num outro, enteado e madrasta costumavam «pousar ¡un-
tos em uma cama». Uma relação incestuosa entre dois irmãos incluiu
o seguinte testemunho: «muitos os têm visto nus brincando, abran-
5 Acsr, 7-6-2566. çando-se desonestamente, dormindo juntos». Detalhes intimos só
6 Di,v01. 81, p. 165. _ _ _
7 ver 0 artigo já girado, «Virtude e pecado; sexualidade em Sao Paulo colonial». surgem portanto quando, em decorrência do parentesco existente, a

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Í'
simples coabitação não era suficiente para configurar concubinato. ridades civis, nomeadamente ao Senado da Cámara. Em 1814 os pa-
Isso ocorria também no caso de relação entre o senhor e a sua pró- roquianos da vila da Barra, no termo da cidade da Baia, representaram
pria escrava, pelas mesmas razöes. aos camaristas contra o vigário, padre Manuel Francisco de Paula
O que a documentação revelou foi uma certa frequência de concu- Negrão e, entre outras acusaçöes graves quanto ã sua conduta, escre-
binatos com escravas de outros senhores, o que mostra uma relativa veram: «Passa mão de uma mulher casada de nome Brites, ausente do
disponibilidade das cativas para dormir com o amante em sua casa marido com assistência na casa de seu pai, morador nesta vila, com
«quase todas as noites», talvez com a conivência dos próprios senho- quem vive em concubinato público, e de quem tem uma filha bapti-
res. zada nesta mesma vila para mais escandalizar a lei oposta a semelhante
Ajustiça eclesiástica de São Paulo viu-se perante denúncias contra procedimento tão crítico nos párocos, acescendo ser fomicário vago»
os seus párocos. O padre António de Pina Vasconcelos conseivava a Ou seja, o padre, além de ter uma concubina mais permanente, dor-
sua concubina Maria Catarina ora na sua casa da vila de Itú, ora na mia com várias mulheress.
chãcara. Viviam juntos «como se fossem casados» e o padre descurava Se o adultério permanecía esporádico quando o adúltero era clé-
as suas obrigaçöes, deixando morrer muitas pessoas sem sacramentos rigo, ele tornava-se mais estável quando o parceiro era laico e o
e usando os bens da sua igreja em beneficio próprio. Levara para sua marido se ausentava de sua casa por longos anos, ou mesmo vivia
casa o travesseiro do Senhor morto e retirara da Senhora da Cande- separado da sua mulher.
lária um anel e um rosario para os presentear ã concubina, deixando Na Capitanía de São Paulo, na vila de Araçariguama, uma certa
em seu lugar outros falsos. Chegara mesmo ao extremo de mandar Catarina Leme, casada com Miguel de Gois, concubinou-se com João
desmanchar «um véu de ombros de cetim carmesim›› para mandar Marques dada a longa ausência do marido que saira de casa e ficara
fazer sapatos para Maria Catarina, segundo denúncia do sacristão. fora 16 anos. Segundo a denúncia, durante 5 anos ela deu vazão aos
Embora o falso parentesco disfarçasse a presença de concubinas «seus apetites sensuais››, até que o caso foi parar àjustiça eclesiástica,
em casas de padres, permitindo assim uma relação mais estável e a qual, conhecendo a severidade das leis civis e o direito concedido
permanente, não deixavam alguns párocos de se servir das suas fun- aos maridos de punir até com a morte a esposa adúltera, procurou
çöes para manter relaçöes esporádicas com mulheres casadas, na informar-se se neste caso o marido era «de génio de se vingar», ou se
maior parte dos casos. Uma certa Francisca, casada, com o pretexto se temía que algum parente o fizesse9.
de obrigação da missa nos dias santos, saia mais cedo de casa com O caso mais extraordinario foi certamente o de D. Ana Clara Freira,
uma amiga e, deixando esta no quintal da casa do vigário da freguesia moradora no arraial do Tejuco, na Capitanía de Minas Gerais. Durante
do juqueri, metia-se com ele no quarto, de onde só saiam quando o periodo em que estivera casada tivera nove filhos de um bacharel,
eram horas de ir para a igreja. José Soares Pereira da Silva, quando este, solteìro, residira no dito
Outras vezes os clérigos abusavam da confiariça dos maridos que arraial. Na sua informação sobre o assunto, o ouvidor da comarca
lhes abriam as portas de suas casas. Desconfiando João Baptista de de vila do Príncipe declarava ser «público e notório›› que ela era
Matos do adultério de sua mulher com o padre Albino, que se intro- mãe daqueles filhos do bacharel porque muitos anos viveu como
duzira «de amizade» em sua casa «como um braseiro coberto de manceba «teúda e manteúda». Por onde andava o marido durante
cinzas››, mandou-a confessar-se com o padre Feijó (o mesmo que todo esse tempo é o que a documentação não refere”.
mais tarde, já no tempo do lmpério, iria atacar veementemente o A separação efectiva, mesmo quando não formalizada pelo Tribu-
celibato eclesiástico) mas foi pior a emenda do que o soneto, pois nal eclesiástico e pelas autoridades civis, dava ocasião a que a mulher
a mulher passou a visitar alternadamente um e outro confessor. Como mantivesse uma relação ilicitau. Vemos assim que as ausências pro-
o padre Feijó era tido na vila de S. Carlos, onde todos os implicados longadas ou definitivas dos maridos, ou a situação de separação, de
moravam, como um oráculo muito respeitado, o marido enganado, modo algum impediam que as mulheres tivessem uma vida sexual
«vendo-se sem justiça» na sua terra, resolveu recorrer ao vigário da
vila de Mogimirim para pedir o castigo dos culpados. 8 BNRJ, Ms. 11- 55, 30, 4.
A.s acusaçöes contra padres concubinados e adúlteros, além de 9 Eliana Goldschmidt, op. cif., p. 52.
serem feitas perante as autoridades eclesiásticas, como nestes casos 1° ANRJ, Desembargo do Paço, Legitimaçôes, Caixa 123, pacote 1, documento 11.
referentes ã Capitanía de São Paulo, podiam ser apresentadas às auto- H ANRJ, ibfaf, Caixa 125, pacote 1, documento 10.

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activa nas comunidades em que víviam. As POPU1?-19595 11510 35 encara' errante e talvez por isso iniciou um processo de divorcio. Mas uma
vam como verdadeiras adúlteras, desculpando mais facilmente o seu das testemunhas ínquiridas revelou que, com as ausências do marido,
comportamento do que o fariam se elas morassem com os seus ma- a mulher «se introduziu de amizade, e comércio ilicito com um sujeito
ridos. que trata dela, a sustenta e alimenta, vivendo e morando juntos».
Quando era o marido a cometer adultério, geralmente a esposa Como uma segunda testemunha lembrou que a mulher, antes de se
fazia a denúncia. Dada a assimetria na punição do adultério pelas leis casar, andara amancebada com o futuro marido (o que certamente
civis, não se observava, contudo, o mesmo segredo na investigaçao do não Contribuiu para uma boa imagem junto às autoridades eclesiásti-
crime pela Justiça eclesiástica, uma vez que as Ordenaçôes so puniam cas), a acção de divorcio foi abandonada.
severamente as mulheres adúlteras, ficando os homens sem puniçao. Na Capitanía de São Paulo, cujos processos de divorcio foram já
Sabemos que um ferreiro de Guarulhos, perto da cidade de São exaustivamente estudados”, as esposas distinguiam a dissolução de
Paulo, além de gastar o que ganhava com a concubina, passara para costumes (relaçoes ocasionais dos maridos com meretrizes) do con-
casa desta a escrava que servia a sua mulher, deixando a familia legí- cubinato público e escandaloso, ou seja, o adultério ostensivo, em
tima numa tal pobreza que mulher e filhos não podiam ir ã Igreja que o marido tratava a concubina como se fosse sua mulher, quer
cumprir as suas obrigaçöes de católicos porque não dispunham de morando com ela, quer transportando-a ã garupa da sua montada,
roupas adequadaslz. quer frequentando em sua companhia festas, procissöes e outras
Os concubinatos de parceiros solteiros mantinham-se por vezes funçôes sociais.
mesmo depois de um deles contrair matrimonio. Bento Lopes, por Dizia Ana Rodrigues da Silva de seu marido; «sempre tem vivido em
exemplo, também da Capitanía de São Paulo, viveu em solteíro mais uma vida licenciosa primeiramente concubínado com Gertrudes de
de 20 anos com a mulata Justina. Quando se casou impôs ã mulher a tal, de quem teve 5 filhos, e por falecimento desta passou a concubi-
condição de consentir na sua companhia a concubina. A mulher, por nar-se com Ignácia de tal com quem vive teuda e manteúda, tendo
ser pobre e desamparada, e talvez convencida de que o concubinato desta um filho ou filha com muito descaramento, sem temor às leis
viria a acabar, aceitou, mas a relação ilicita manteve-se e o homem foi de Deus, e do soberano››15. Esta mulher, casada ha 16 anos, já vivia
delatado. efectivamente separada do marido, tendo nos últimos anos residido
Além das denúncias ã Justiça eclesiástica, podemos entrever a fre- na vila de Jacareí, em companhia de seu pai, enquanto o marido
quência do concubinato adúltero através dos processos de divorcio, morava na vila de S. José. O que ela pretendia em 1821 era simples-
muito embora as esposas que solicitavam a separação ao Tribunal mente regularizar a sua separação, uma vez que o pai tinha morrido e
episcopal alegassem, como motivo, as sevicias graves e não o adulte- ela precisava de proceder ã separação civil dos bens, para deixar de
rio, por este ser mais difïcil de provar em Juizo. viver «agregada›› em casa de um seu primo.
Não se pense contudo que a separação era concedida sempre que Uma outra mulher se queixava de que o marido a mantinha numa
pedida. Por vezes a inquirìção de testemunhas revelava aspectos da chácara com toda a familia, vivendo ela «ainda pior que encarcerada
vida matrimonial ocultos pela requerente. Entre outras acusaçöes, por lhe privar toda e qualquer comunicação com pessoa alguma».
uma queixosa da Capitanía de São Paulo acusava o marido de adulté- Enquanto ela morava isolada no campo, ele andava pública e escan-
rio com uma cabocla casada e de abandono do lar durante 4 anos dalosamente concubínado na vila de Sorocaba com uma Maria de tal,
«deixando-a num total desamparo››13. Além disso, depois de regres- «com quem morava de portas adentro como se fossem casados››16.
sar, anunciou que ia fazer uma viagem por 8 dias e nela gastou 8 anos. Este é um exernplo tipico do adultério masculino: dada a frequência
Queria o marido depois forçã-la a ir para a sua companhia, «arranca-la
de seu proprio arranchamento, havido por herança, e leva-la por esse
mundo fora ã Divina Providência». Arranchada, ou seja, estabelecida M Ver o meu artigo «Divorce in Colonial Brazil; The Case of São Paulo» in
numa propriedade sua, ela não queria seguir o marido na sua vida Asunción Lavrin (ed.), Sexuality and marriage in Colonial Latin America, Univer-
sity of Nebraska Press, 1989; e Raquel Rumblesperger Lopes Domingues da Costa,
«Divorcio e anulação do matrimonio ein São Paulo colonial», Dissertação de Mes-
trado (mimeografada), Universidade de São Paulo, 1986,
'2 Eliana Goldschmidt, op. cit., p. 33. 'S Acsp, nivsreios, 15-14-222, iszi.
if' Acsp, Diversos, 15-13-20s, iazo. '6 Acsr. ibm, 15-10-166, 1s17.

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_?. †_

os classíñca, alguns outros estudos mais detalhados pela utilização de


da dupla moradía, uma na vila ou cidade, e outra no campo (numa outro tipo de documentação revelam uma situação semelhante”.
chácara, sitio ou fazenda), os homens colocavam numa a mulher e na Para outras Capitanias possuímos menos dados do que para Minas
outra a concubina. Gerais, aquela que mais tem ocupado a demografia historica brasileíra.
Também a vida itinerante dos maridos facílitava a prática do con- Alem disso, muitos pesquisadores interessam-se pelos ilegitimos co-
cubinato, quando não a da bigamia. E assim, à margem da familia rno um todo, sem referirem os expostos em especial. No Rio de
legitima, constituía-se uma outra familia ilegítima, por vezes igualmen- Janeiro, os baptismos de ilegitimos e expostos atíngiam em 1799
te prolifica. O destino dos filhos ilegitimos varíava de acordo com os entre 12% e 19% nas zonas ruraís e 45% na área urbana, 0 que
grupos sociais e também com o facto de serem naturais, adulterinos mostra a maior extensão do fenomeno da ilegitimidade na cidade.
ou sacrilegos, e de haver ou não filhos legítimos na familia constituida Apesar da escassez de dados demográficos para todas as Capitanias
de acordo com os padroes eclesiásticos e civis. do Brasil no fim do período colonial, talvez nos seja lícito aventar uma
A ilegitimidade surge em todo o tipo de documentação: nos regís- hipotese: enquanto os filhos ilegitimos abundavam por todo o terri-
tos de baptismo, nos pedidos de emancípação, nos testamentos, nas torio brasileiro, alcançando elevadas percentagens, a taxa dos expos-
petíçöes para legítímação. O que se torna por vezes dificil ao histo- tos era relativamente baixa, aumentando contudo onde predomínava a
riador detectar é a historia, o ítinerário dessas crìanças nascidas fora população branca e nos centros urbanos.
do sagrado matrimonio. Temos apenas retratos de alguns momentos Foi a partir dos anos 80 do séc. XVIII que o Estado começou a
das suas vidas quando seria importante reconstituir o filme das suas adoptar a teoria que vía no aumento da população a base da riqueza
exístências. das naçoes, preocupando-se então com a criação de «casas de roda»
 primeira vista, o destino mais trágico seria o dos expostos ou que impedissem a morte prematura dos recém-nascidos aban-
enjeitados. Embora não dísponhamos ainda de dados suficientes donados”. Ainda em 1800 o governador da Capitanía de São Paulo,
quanto ao seu número, alguns estudos de demografía historica permí- Melo Castro e Mendonça, lamentava a sorte do míserável inocente
tem chegar a algumas conclusöes. «lançado de porta em porta, sem nínguém o querer, até que, se não
Na Capitanía de São Paulo, por exemplo, com base nos registos de topa primeiro um animal carnivoro que o devora, encontra a carídade
baptízados da paróquia da Sé da cidade de São Paulo, a percentagem de uma alma ou mais sensível, ou mais cristã, que dele se encar-
de expostos em relação ao número total de baptismos oscílava entre rega››21.
10,41 % e 25,56 9617. Na Capitanía de Minas Gerais, as listas de habí- Havia contudo aqueles que podemos denominar os «falsos
tantes de Vila Rica e da cidade de Mariana, em 1804, registavam res- expostos», ou seja, os recém-nascidos colocados ã porta de parentes
pectivamente 126 e 25 expostos com menos de 14 anos de idade, num ou compadres daquela que os dera ã luz. A mãe salvaguardava assim a
total de ilegitimos de 982 a 118, representando portanto 1,62% e sua honra e ao mesmo tempo conhecía o destino da criança, pronta a
21,18 96 dessa ilegitimidade. Como nas duas localidades os filhos legi- legitima-la quando a ocasião fosse para isso propicia. Varios tipos de
timos eram praticamente em número igual aos ilegitimos (900 para documento demonstram ser esta uma pratica corrente entre as mu-
982 e 101 para 118), a disparidade daquelas percentagens indica lheres da elite. Entre as petiçöes ã Coroa para a concessão de uma
apenas que na sede da Capitanía eram abandonados mais ilegitimos provisão de suplemento de idade para fins de emancipação, encontra-
do que numa vila em que preponderava a população de cor, a qual
recorría menos ao abandono dos filhos do que a branca. De ressaltar
” Donald Ramos, «single and wiarrietl Woman in vila Rica, Brazil, 1754-isss»,
contudo que a quase totalídade dos menores escravos era ilegítima”. journal 0fFami{y History, 16 (5): 261-282, 1991.
Embora estes dados padeçam do defeito de terem sido recolhídos 2° Ordem de 24 de Maio de 1783, referida por Antoniojoaquím de Gouveia Pinto,
sem se levar em conta a realidade da época, isto é, que individuos Compilaçäo das providências, que a bem da criação, educaçâo dos expostos e
com 14 anos já não eram considerados «crianças›› como o demografo enjeirados se têm pubiicado e acìmm espalb.-:idas em diferentes artigos de Iegilrlaçâo
pdiria, a que acrescem outras, que respeitando ao bom regimen, e economía da sua
admimlstraçäo, e sendo contudofilbas das mesmas leis, tem a experiencia prouado a
17 Maria Luiza Marcilio, A Cidade de São Paulo, Pouoamento e população (1 750- sua utilidade, Lisboa, na Impressão Regia, 1820, p. 7.
-1850), São Paulo, Editora Pioneira, 1974. 2' «Memoria economica-politica sobre a Capitanía de São Paulo», Anais do
1” Iraci del Nero da Costa, Populaçôes míneiras, São Paulo, Instituto de Pesquisas Museu Paulista, torno 15, pp. 103-104.
Economicas, 1981, p. 250.
185
184
¬r
-se a de D. Ana de Assis Carvalho, de 19 anos, que fora exposta em Uma outra mulher, enquanto vivía sob o pátrío poder, tivera uma
casa de um alferes, mas era filha de D. Tomásia Cãndída Xavier, já filha e, conforme confessa na escritura de ñliação assínada em 1815,
então falecida em Vila Rica, onde morara. Também D. Maria Eleutéria foi necessárío ocultar este nascimento «para não macular a sua repu-
de Carvalho nascera na cidade de Mariana e fora levada para Vila Rica, tação e por outros motivos que a modestia faz calar». A menina fora
onde fora criada e educada como filha por D. Teresa Jacinto de Jesus. então baptízada como exposta e so depois, «aconselhada pelos seus
Contudo, requereu provisão de suplemento de idade para poder ministros espirituais», se decidira perfilha-la”.
receber umas moradas de casas e alguns moveis que herdara da Se nem todos os expostos tiveram o mesmo destino feliz, acaban-
mãe natural”. do por ser perfilhados, pelo menos a partir do alvará de 31 de Janeiro
Era na hora de redigirem os seus testamentos e de se prepararem de 1775 a sua vida passou a ser claramente regulamentada. As Miseri-
para a morte que as mães se arrependíam de terem abandonado os cordias e os seus hospitais dos expostos so pagariam as suas despesas
filhos. Muitos dos que tinham sido baptizados como expostos foram até aos 7 anos de idade”. Ao atíngir essa idade a pessoa que até ai se
posteriormente reconhecidos e legítimados, saindo assim da situação encarregara da criança tinha de a registar num livro «com todos os
de margínalídade. sínais e clarezas» correspondentes.
Por vezes nem sequer era preciso esperar até ao momento da Onde não existíam Misericordías, eram as Câmaras que dístribuiam
morte e são tão variadas as situaçoes em que o enjeitado era reco- os enjeítados pelas amas e por vezes estas queixavam-se da falta de
nhecido, que é melhor expo-las na complexidade das suas circuns- pagamento, como podemos ver pela seguinte petição: «Diz Clara
tãncías, algumas das quais certamente não passaríam pela ímaginação Maria da Conceição, viúva, moradora na vila de Sabará, Minas Ge-
dos demografos habituados apenas a contabilizar os expostos nos rais, que os oficiais da Cámara da mesma vila encarregaram ã suplí-
registos de baptismo. cante a criação de váríos enjeítados, uns que foram matriculados, e
No extremo sul do Brasil, na Capitanía do Río Grande de S. Pedro, outros que o não foram, se bem que de todos de uma e outra classe
D. Ana Francisca da Silveira e Sousa contou a seguinte historia na sua lhe foi incumbida a dita criação, com a convenção de pagar-se-lhe o
escritura de «reconhecimento rnaterno››: «Vivendo no estado de sol- estípêndio do estilo, o que agora recusa a dita Câmara.››2
teira em casa e companhia de seu pai, o sargento-mor Ignácío da Por alguns documentos referentes a enjeítados desta vila se perce-
Fonseca Quíntanilha, na mesma freguesia de Nossa Senhora dos An- be que aqueles em casa de quem a criança tinha sido exposta rece-
jos da Aldeia, ignorante por sua idade e por fragílídade da natureza biam igualmente um pagamento anual da Cámara, desde que
I
humana, se deíxara alícíar e corromper de sua vírgindade pelo vigário provassem estar baptizada e gozar de saúde”. Na cidade do Río de
da mesma freguesia, o padre Mateus da Silveira e Sousa, do qual viera a
conceber dois filhos.›› Foram estes expostos e baptizados como tal
«vista a ínfâmia», mas, se de público eram tídos por enjeitados, foram 2** ANRJ, ibm., caixa 123, pa-:ore 1, documento 12.
25 No Brasil, contudo, as Misericordias prolongaram os seus cuidados com as
em particular sempre alimentados e tratados de todo o necessárío por meninas expostas até elas obterem um dote para se casarem. No Rio de Janeiro a
aquele padre. Ela própria os tivera sob as suas vistas e, quando entrara Casa dos Expostos manteve um cofre para doaçöes com aquele fim: em 1780, por
a «viver sobre sí», ou seja, quando saira de casa dos pais, «também os exemplo, sete expostas, achando-se em idade de contrair matrimonio, enviaram
passou a tratar publicamente, a estimar e distinguir como seus filhos». requerimento ã ínstítuição solicitando dotes e foram atendidas. Na distribuição dos
Na altura em que os reconheceu os pais dela ainda estavam vivos, mas dotes o criterio utilizado era proteger as expostas sob a responsabilidade da Mise-
ricordia (na Casa dos Expostos ou no Recolhimento das Órfãs) em detrimento das
D. Ana Francisca morava noutra localidade, na vila de Río Grande, o
de fora. Também era necessárío que elas tivessem um bom comportamento. Ver
que mostra ter sido necessárío sair do pequeno lugarejo onde perdera sobre este assunto Margareth de Almeida Gonçalves, «Dote e casamento; as expostas
a virgindade e tivera os filhos «sacrílegos››, para assumir plenamente a da Santa Casa da Misericordia do Rio de Janeiro», in Albertina de Oliveira Costa e
sua maternídade reconhecendo os frutos do pecado”. Cristina Bruschini (orgs), Rebeldia e submíssão. Estudos sobre condiçäo feminina,
São Paulo, Vértice/Fundação Carlos Chagas, 1989, pp. 64-66.
26 ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 25, pacote 2, documento 42.
27 Arquivo Público Mineiro, doravante APM, Cámara Municipal de Sabarã, Livro
22 ANRJ, Desembargo do Paço, Emancípaçöes, Caixa 110, pacote 1, documento 61, Enjeitados (1780-1784): Joana Margarida de Sousa estava criando «e assístlndo
26 e Caixa 120, pacote 1, documento 27. com todo 0 preciso e necessárío a um enjeítadinho por nome João o qual é conhe-
I
23' ANRJ, ibid, Legitimaçöes, Caixa 124, pacote 5, doc. 44. cidamente branca». Ela já tinha recebido a «esmola›› do primeiro e segundo anos e

186 187
Y ampararem no futuro. Maria de Morais Jesus, moradora na vila de
Janeiro, depois de ter sido criada em 1811 a instituição vacínica contra
a varíola, as «criaden-as›› eram obrigadas a levar os expostos com mais Mogi das Cruzes, na Capitanía de São Paulo, rogava em 1781 a seu
de quatro meses ã vacina, recebendo depois um certificado de vaci- marido e testamenteiro (e que ela também instituira herdeiro por não
nação. E o aviso colocado na Gazeta do Rio de janeiro prevenia que ter filhos) que, quando ele morresse, da parte que lhe deixava, deve-
não seriam feitos «pagamentos de criação e vestidos» enquanto não riam dar os testamenteiros dele «meia dobla ou seu valor a Bernardo,
exibissem aquele certificadoze. nosso enjeitado que o criamos em nossa casa, no caso que este esteja
Terminadas as duas fases de criação e educação, determinava o presente ou em parte onde se lhe possa dar». Esta disposição testa-
alvarã pombalino que cabia ao juiz dos Orfãos emitir uma certidão mentãria revela que a testadora não se preocupava com o destino do
na qual constasse que tinha tomado conta do exposto e lhe tinha enjeitado enquanto o marido fosse vivo, mas que, por morte deste,
atribuido um tutor. O enjeitado passava então a ser incluido «na prefería vê-lo amparado com uma pequena ajuda financeiraål. Na
relação geral dos örfãos do respectivo termo». Verificava-se assim cidade de São Paulo, em 1779, Maria de Lara Bonilha, mulher solteira
um momento de ruptura na vida das crianças abandonadas quando, e velha, deixava em testamento a Floriana, enieitada que estava crian-
aos 7 anos, saiam da jurisdição das Misericórdias ou Câmaras para a do, a quantia de 6$4OO réis e também o catre em que dormía «com seu
do juiz dos Órfãos. Estes podiam distribuí-las pelas casas que os colchão e roupa de cama, e uma caixa de pau já usada», além de todos
quisessem «até completarem 12 anos, sem vencerem outro algum os «trastes miúdos» que se achassem em casa”.
ordenado, que o da educação, sustento e vestido». Gente com poucos recursos não se esquecìa, contudo, de proteger
Ainda se sabe pouco acerca do modo como os juizes dos Órfãos se com legados os seus enjeitados, ou os de outrem. Joana Maria, uma
desincumbiram das suas atribuiçöes em relação aos enjeitados. No pobre mulher da vila de Porto Feliz, na Capitanía de São Paulo, pos-
caso da cidade de São Paulo sabemos, por um depoimento em 1788 suidora apenas de uma casa e de três vacas, deixou uma enjeitada de
de josé Arouche de Toledo Rendon, que na praça principal se amon- outra pessoa aquinhoada com 10 patacasaã.
toavam os pedintes, entre os quais abundavam os meninos e meninas. Embora a situação das crianças abandonadas tenha sido resolvida
E comentava; «Quanto à multidão de rapazes e raparigas, que ordina- de maneira diferente nas várias Capitanias do Brasil conforme a actua-
riamente são filhos sem pais, me parece conveniente que o governo ção local das Misericórdias, Câmaras e juizes de Órfãos, um ponto
faça com que o juiz dos Órfãos os tome a seu cargo, entregando-os a contudo resulta claro: não era a pobreza das mães que levava ao
pessoas capazes de os aplicar ao serviço, sustenta-los, vesti-los e abandono, mas sim a noção de honra tão importante para a elite
educa-los, fazendo-os ensinar a ler e escrever.››29 colonial. Nas listas nominativas da população das vilas e cidades ve-
Nem sempre a vacliagem era o destino dos enjeitados. Nas listas de mos numerosos fogos habitados por negras e forras com a sua prole.
estudantes de primeiras letras da Capitanía de São Paulo que indicam As mulheres de cor não tinham razöes para abandonar os filhos e as
a fìliação dos alunos, vemos que, num total de 191, havia 5 expostos escravas não estavam em condiçöes de o fazer pois, como o §7 do
estudandoão. alvará de 51 de Janeiro de 1775 determinava fìcar gozando de liberda-
Além disso, aqueles que os tinham recebido nas suas casas muitas de o exposto de cor preta ou mulata, é natural que os senhores
vezes lhes deixavam em testamento um pequeno legado a fim de os vigiassem atentamente as escravas grávidas a fim de não as deixar
abandonar as crias, para eles sinónimo de enriquecimento do seu
patrimonio.
pretendia em 1780 receber a do terceiro, Também Gonçalo da Silva Cardoso decla-
rou que «em sua casa expuseram uma menina a qual fez baptizar com o nome de
Silvéria» e que o Senado da Câmata já em anos anteriores lhe tinha dado «congrua
anual para sustentação da dita exposta» e, como a dita menina continuava viva, ele
pretendia a continuação do pagamento.
28 Gazeta do Rio de Janeiro, n° 11, 1817.
29 DI, vol. 44, «Rellexöes sobre o estado em que se acha a agricultura na Capitanía
de São Paulo», pp. 199-201.
3° Ver o meu livro Cultura no Brasil colonial, Petrópolis, Vozes, 1981 e também 1" Assv, ordem 456, Lata 2, Livro 4, fol. 60.
Sistema de casamento no Brasil colonial, São Paulo, T. A. Queiroz, 1984, pp. 178- 32 Assr, rafa, um 5, rol. 64.
~179. 35 AESP, tbiat, Livro 6, fQ1. 53.

188 189
-ïíí___í_ ïr

5
O processo de legitimação

Havendo bens mais ou menos vultosos a transmitir, quer a concu-


bina quer o seu parceiro, ou ambos, não hesitavam em declarar publi-
camente a sua falta, a fim de regularizar a linha sucessória. Saía-se
assim do nivel do reconhecimento informal de uma maternidade ile-
gítima, do nível do boato ou do «ouvir dizer», para a formalização,
perante o tabelião ou perante o governante, de um comportamento
antes tido por pecaminoso pela Igreja e por anti-social pelo Estado.
A historiografia brasileira tem-se preocupado ultimamente com a
questão dos filhos ilegitimos, resultado bem visível das altas taxas de
concubinato observadas no Brasil colonial, mas ainda nada se escre-
veu sobre a integração dessa prole no patrimonio familiar ou, por
outras palavras, ainda não se analisou de que modo os filhos conce-
bidos fora do legitimo matrimonio recebiam ou não um quinhão de
herança paterna ou materna, ou de ambas igualmente.
já passou o tempo em que historiadores e sociólogos apontavam,
de uma maneira mais ou menos vaga e impressionista, o facto de
numa mesma morada residirem os filhos legítimos e os ilegitimos,
partindo-se quase sempre do pressuposto de que essa ilegitimidade
resultava principalmente das relaçöes do senhor com as suas escravas.
Essa imagem deformadora começa agora a ser corrigida com a utili-
zação de uma documentação mais rica em informaçöes. Não só as
formas de concubinato eram muito variadas, como vimos nos capítu-
los anteriores, como também a questão da participação dos filhos
ilegitimos na herança se nos revela nessa documentação como muito
mais complexa do que habitualmente se supöe.
Hã que levar em conta os grupos sociais e os grupos étnicos, assim
como as diferentes situaçöes em que os concubinários se encontra-
vam. Legitimar ou não um filho para que este pudesse tornar-se her-
deiro constituía uma decisão importante dependente de uma série de
variáveis que se torna necessárío isolar: condição do pai (nobre,
plebeu ou eclesiástico); condição jurídica, étnica e social da mãe;

191
7
configuração ou não de adultério, incesto ou sacrilégio; existência ou progenitor solteíro e sem ascendentes vivos. Alguns exemplos colhi-
não de herdeiros forçados (descendentes ou ascendentes); volume e dos na documentação da Capitanía de São Paulo mostram-nos a ati-
tipo dos bens a serem herdados; certeza da patemidade, etc. Devido ã tude mais usual, quer por simples instituição ou nomeação em
complexidade da questão, parece ser mais relevante proceder a uma testamento, quer por escritura passada em tabelião.
analise situacional do que a uma analise quantitativa dos casos em que Joaquim de Godoy Ramos, morador na vila de Santa Ana de Mogi
se nota a presença de filhos ilegitimos no processo sucessorio. das Cruzes, onde possuia tenda de ferreiro, reconheceu em testamen-
Não podemos prescindir dos parâmetros legais em que ele se to como herdeiras as suas três filhas naturais, todas já casadas e a
desenrolava e, como alguns tratadistas do inicio do séc. xlx procura- quen; fizera algumas doaçöes em vida, retiradas do valor da sua
ram organizar, de uma maneira mais clara e racional, aquilo que as terça . Pelo teor do documento percebe-se que elas não eram todas
Ordenaçöes do Reino e a legislação subsequente, sobretudo a do filhas da mesma mulher e so a respeito de uma revela o nome da mãe
periodo pombalino, determinavam a esse respeito, é neles que me para explicar; «suposto um irmão desta de nome Domeciano se tem
vou apoiar para seleccionar os pontos mais relevantesl. por meu filho contudo eu o não aprovo, digo reconheço, porque a
Em primeiro lugar estabelecia-se uma distinção fundamental entre mesma mãe, a dita Rosa Maria certificou-me não ser meu filho mas de
as sucessoes testamentárias e as sucessoes abintestado. Enquanto nas outra pessoa, que não declaro por supor não ser necessárío». Os bens
primeiras o individuo expressava claramente a sua vontade através de que ele possuia eram duas casas na vila, uma na qual morava e outra
um testamento, nas segundas tal documento não existia, cabendo às onde tinha a sua tenda, e uma pequena propriedade. Os bens mais
autoridades judiciärias chamar os herdeiros ã sucessão pela ordem valiosos seriam certamente os nove escravos, todos adultos e que o
estabelecida. Ora, como veremos mais adiante, para o processo de ajudavam no seu oficio. Havia ainda 50 doblas em dinheiro. Este
legitimação correr pacíficamente era importante que o pai, ou a mãe mestre ferreiro tinha portanto todas as razoes para regularizar a situa-
natural, morresse com testamento em que reconhecesse expressa- ção das filhas naturais, às quais sempre acompanhara e protegera,
mente e instituisse como herdeiros os filhos ilegitimos, mesmo que assim como às netas ja existentes. O testamento tem a data de 1811
houvesse também escritura de perlìlhação feita em tabelião. A morte e em 1807, por ocasião do recenseamento da vila, estava a morar em
sem testamento em geral provocava uma serie de conflitos entre os sua casa uma das filhas, ia casada mas certamente com o marido
filhos ilegitimos e os possíveis herdeiros (descendentes, ascendentes ausente, e uma netaã.
ou colaterais). Um certo Manuel Martins da Cruz resolveu recorrer, em 1796, ao
Outra questão relevante diz respeito ã diferença, reconhecida pelas tabeliao de São Paulo para fazer uma escritura pela qual se obrigava a
leis e interiorizada pela sociedade, entre o filho natural (fruto de uma casar com Gertrudes de Oliveira, a quem desflorara e de quem tivera
relação em que os dois parceiros por serem livres, isto é, solteiros ou uma filha. Sem esperar pela celebraçao do casamento, reconhecia
viúvos, poderiam ter contraído matrimonio) e o filho de «danado e desde logo a filha natural, de um ano de idade, como sua universal
punivel coito», ou seja, o filho adulterino, incestuoso ou sacrilego, herdeira. Caso a filha morresse antes dele (nessa época era grande a
pois este mais dificilmente conseguía obter a sua legitimação, ficando mortalidade infantil) fìcaria a mae, Gertrudes, como lierdeira, sem que
dependente da graça concedida pelo monarca através de uma carta ou os seus parentes a isso se pudessem opor. Todas estas precauçoes
provisão de legitimação. Esta também era necessâria para os indivi- eram tomadas para o caso de o casamento não chegar a ser celebrado
duos de condição nobre poderem legitimar os seus filhos naturais, l «por algum embaraço que houver, isto é, de a Igreja não admitir, ou
enquanto os plebeus gozavam de total autonomia para o fazer, bas- lhe suceder algum caso estranho e repentino pelo qual se alongue
tando uma simples declaração no testamento. para fora da terra, ou por outro semelhante a este». Claro que, se
Menos moroso, o processo de legìtìmação do filho natural de um houvesse subsequente matrimonio, a filha natural de plebeu ficava
plebeu decorria em geral de forma pacifica, sobretudo quando havia I
automaticamente legitimada, mas este pai preferiu precaver-se contra
«I
testamento expressando a última vontade e quando se tratava de L eventuais contratempos, pensando talvez em impedimentos canoni-

1 Um desses tratadistas É Antonio de Gouveia Pinto, Tratado regular e prâtico de 2 AESP, Ordem 457, Lata 3, Livro 9, foi. 5'/v_
testamentos e sucessôes, 6' ed., Rio de Janeiro, 1851. 3 rima, ordem iio, tata iio.
192 195
1552$000 réis que lhe pertencia. So em 1806 o filho escravo recorreu ã
cos ou na necessidade de um afastamento da cidade, quem sabe justiça com um libelo em que reclamava do testamenteiro «a liberda-
devido ao tão temido recrutamento militarl. de, perdas, danos e jornais de tantos anos» em que por culpa dele
Estes dois casos exemplificam a maneira mais clara e segura de um vivera «na pesada cadeia da escravidão››7.
pai plebeu reconhecer filhos naturais; por testamento ou por escritura Alias, era muito raro, na sociedade do fim do periodo colonial, o
notarial. Quando não havia estes cuidados a aspiração dos filhos pai fazer do filho que tivera com uma escrava seu herdeiro. O máximo
ilegitimos ã herança tornava-se mais dificilmente concretizada. Ana que ele ganhava era a liberdade e mesmo essa obedecia por vezes a
Maria de Jesus casou-se em 1795 com Francisco Correia, sendo regis- certas condiçoes. Francisco Cubas de Camargo, em 1798, reconheceu
tada como filha de pais incognitos e exposta. Cenamente sabia quem no tabelião de São Paulo o seu filho Manuel, nascido de uma sua
era a inãe, pois em 1821 o casal habilitou-se ã herança da avo materna. escrava, e libertou-o com a condição de o acompanhar e servir como
O juiz de fora e dos Órfãos da cidade de São Paulo declarou contudo cativo até ã sua morte. So então podia gozar a sua liberdade e a esta os
haver «falta da juridica prova prévia para certeza da filiação e paren- seus herdeirios não se podiam opors.
tesco alegado». Como a mãe de Ana Maria jã tinha morrido e nada Se os filhos ilegitimos resultavam de uniöes não com as próprias
fizera para regularizar a situação da filha, a filiação teve de ser provada escravas mas com escravas de outros senhores, a solução mais fre-
por testemunhas e so então obteve uma sentença favorãvel do juiz quentemente adoptada era a de comprar a sua liberdade mediante o
para poder herdar da avo maternas. pagamento do seu valor, caso evidentemente o seu senhor estivesse
Uma historia curiosa revela que os filhos ilegitimos não abdicavam de acordo. Assim procedeu o ajudante Baltazar Alvares Machado,
facilmente dos seus direitos ã herança. Casando-se na Capitanía de morador na vila de Ubatuba, na Capitanía de São Paulo. Ao redigir o
São Paulo Maria Pinheira de Assunção com Pedro Dias Furtado, «este seu testamento em 1780 declarou; «entre os filhos naturais que tive na
a desprezou, entregando-a a seus parentes com o fundamento de que minha mocidade, que todos faleceram, ficou um por nome Bento,
não era mulher perfeita, não era capaz de consumar o matrimonio por filho de uma mulata cativa, cujo forrei por 2 doblas, e destas 2 doblas
defeitos naturais». Ficando assim repudiada pelo marido durante vá- resto a sua senhora, 9 patacas.›› Como a dobla valia mais ou menos
rios anos, foi Maria Pinheira tendo filhos de diferentes homens. Ora 12$800 réis, o pr€ç0 PHg0, 25$600 réis, era o preço normal de uma
Pedro, «instigado de estímulos de consciência», tornou a procurar a cria, ou seja, de uma criança ainda em fase de amamentação e portan-
legitima mulher, já então mãe de três filhos, e com ela voltou a coa- to este pai tivera o cuidado de comprar a liberdade do filho quando
bitar, nascendo uma filha legítima que se tornou a herdeira dos pais este ainda era pequenog.
quando estes faleceram, Esta filha casou e pouco tempo depois mor- Constituía uma excepção na sociedade colonial o pai que, além de
reu sem testamento e sem herdeiros forçados. Apesar de serem filhos alforriar o filho escravo, o reconhecia e instituía como herdeiro dos
adulterinos, os meio-irmãos por meio de uns «autos de habilitação seus bens. Um morador na vila de Nossa Senhora da Píedade de
por libelo» habilitaram-se em 1789 ã herança e a sentença do juiz foi- Lorena, na Capitanía de São Paulo, homem solteìro, escreveu contudo
-lhes favorãvel, preferindo chama-los a herdar em vez dos primos no seu testamento; «Declaro e instituo por meus herdeiros a José
irmãos da moça . Francisco Bento e Margarida, meus escravos, aos quais tenho funda-
Enquanto a justiça parecia favorecer os filhos ilegitimos brancos, mento para os reconhecer por filhos, visto que não tenho outros
desde que não houvesse conflitos abertos com herdeiros forçados, herdeiros forçados alguns, nem ascendentes nem descendentes.››1°
observa-se uma certa relutância e morosidade em relação aos direitos Os plebeus recorriam ainda a urna outra forma de reconhecer a
dos filhos ilegitimos de mulheres de cor. Um individuo que morrera paternidade, ou maternidade, que era através do registo de baptizado
na vila de Paracatu do Principe em 1784 reconhecera e libertara um das crianças. Quando isto ocorria, os filhos naturais podiam ser cha-
filho em testainento, mas este permanecen ainda como escravo du-
rante 24 anos, ficando em poder do testamenteiro a vultosa quantia de

ÃANRJ, cod. 17, voi. 1, foi. 50v-52.


9 AESP, 2° Tabeliao de Sao Paulo, Livro 12, fol. 109v.
4 AESP, 2° Tabelião de São Paulo, Livro 10, fol. 36v. DI vol 65 p 75
5 AESP, Ordem 5595, lata 65, processo 1263 7 , de iszi. ` > - Ordem
10 AES?, -- 456,
- ¡ma 2
6 AESP, Ordem 5551, processo 11 267, de 1789.

1 94 195
¬F
mados ã herança, mesmo que o pai ou a mãe tivessem morrido sem outros o dos avós, etc. Esta pratica, alias, torna extremamente dificil a
testamento So que às vezes os juizes dos Defuntos e Ausentes, encar- reconstituição de familias no Brasil colonial.
regados de recolher os bens dos que morriam abintestado, tinham No Arquivo Público da Baia foi localizada uma das cartas de legi-
demasiada pressa de o fazer. Disso se queixou Maria. Luisa da Pieda- timação passadas pela rainha D. Maria I em Lisboa, em 1789, e refe-
de Y mulher solteira moradora no Rio de Janeiro, que . tivera duas filhfls rente ao filho Francisco Joaquim, fruto dos amores do capitão-mor
11
de Manuel Jose Felgueiras por este lhe ter prometidoqcasamento . com Vitória da Fonseca, mulher solteira”. Ele o «educara, criara e
Quando ele faleceu repentinamente em 1811 sem herdeiros forçados, tratara por seu filho em sua própria casa, ã vista de toda a sua
apesar de ela ter mostrado ao tesoureiro daquele Juizo as certidöes de família», reconhecendo-o como tal por uma escritura, apesar de
baptismo das menores herdeiras, este arrecadara os bens com grande existir uma filha única do seu matrimonio. O capitão-mor legitimara-o
prejuizo das crianças. E alegava ainda a mãe que Manuel «não gozava «por ter recebido dele boas obras e serviços» e agita «sem prejuizo
nobreza alguma» nem tinha qualquer outro prestigio social que o de sua legítima herdeira e de sua sucessão».
impedisse de se casar com ela, «pois sua ocupação era unicamente Mas a filha não deixou herdeiros e quando o capitão-mor morreu,
viver de uma taverna que tinha e dos rendimentos de umas moradi- em 1809, Seguiu-se um longo pleito, pois os seus parentes não viam
nhas de casas que possuia». Esta alegação de Maria Luisa tinha uma com bons olhos uma tão grande herança passar para os filhos natu-
razão de ser: um dos privilegios da nobreza consistia precisamente na rais, ainda que legitimados. No decorrer desse litigio foi revelado um
faculdade de o homem nobre chamar ou não ã herança 0 filho natural, dado importante do ponto de vista de uma sociedade dividida entre
enquanto o glebeu era obrigado a institui-lo herdeiro, se o tivesse nobres e plebeus; «O capitão-mor nunca mandou nem consentiu
reconhecìdol . _ _ enviar a algum oficio mecãnico a seus filhos e netos, uma vez que
A legitimação dos filhos naturais dos nobres era muito mais com- os mandou legitimar por tais, tratando-os sempre ã lei da nobreza
plexa na legislação portuguesa então em vigor, em grande parte devi- com cavalos, pagens com as libres de sua casa.:-›
do ã variedade de bens em questão: bens da Coroa, bens WHCLÚQÓOS. Quanto maior era a aspiração â nobreza e quanto mais vultosos
bens livres, honras e mercês por serviços preSI21d0S, €ïC- Gfflflde Parte eram os bens a serem herdados, tanto mais feroz se tornava a disputa
dos litigios entre os filhos naturais e a parentela nobre podia contudo entre a família legítima e os filhos naturais. Num documento sem data
ser evitada quando o pedido de carta de legitimação era encaminhado dirigido à rainha D. Maria I por duas damas da elite branca, D. Catarina
ao monarca, via Desembargo do Paço, ainda em vida do pai. _ _ Francisca Correia de Aragão, viúva do mestre de campo Francisco Dias
Era sobretudo na Baia que residiam as mais importantes e tradicio- de Ávila Pereira, fidalgo da Casa Real e senhor do morgado e casa da
nais familias, como a dos Rochas Pitas. Um dos seus membros, o Torre, e sua neta, D. Ana Maria de S. jose e Aragão, filha do mestre de
capitão-mor Cristovão da Rocha Pita, teve varios filhos ilegitimos, campo Jose Pires de Carvalho e Albuquerque, fidalgo da Casa Real, e
entre os quais se incluiam o capitão Francisco J0a(lU1m_da ROCÍEH neta de Salvador Pires de Carvalho, fidalgo da Casa Real e alcaide-mor
Pita, capitão Cristovão da Rocha Pita, Salvador da Rocha Pita e Anto- da Baia, observamos como nas familias nobres os parentes cerravam
nio da Rocha Pita. Esta enumeração permite-nos detectar uma pratica fileiras contra os intrusos ilegitimos”. A trama narrada pelas duas
comum no Brasil colonial; a de dar aos filhos naturais o sobrenome senhoras destinava-se a mostrar como tinham elas sido afastadas da
do pai como forma de patentear a filiação. Deve dizer-se que esta sucessão de um dos muitos Jose Pires de Carvalho e Albuquerque que
pratica não costumava ser seguida em relação aos filhos legitimos, existiram nesta ilustre familia. O Jose Pires em questão era neto de
cada um dos quais tinha em geral um sobrenome diferente do dos D. Catarina e irmão de D. Ana Maria.
pais e diferente entre sì, de acordo com uma regra de tal modo Quando este adoeceu gravemente, um certo Antonio Ferreira de
implícita que ainda hoje não foi descoberta pelos historiadores., mui- Andrade, pessoa inteiramente estranha ã família, aliou-se a Fr. Leandro
to embora se suponha que uns tomavam o sobrenome dos padrinhos, de Santa Maria, religioso agostinho descalço do hospício da Palma,

“ ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 128, pacote 2, documento 50. 15 Wanderley Pinho, História de um engenho do Recôncavo, 2° ed., São Paulo,
12 Luís da Silva Pereira Oliveira, Prívilégíos da nobreza e jìdalguia de Portugal. 1982.
Lisboa, pp. 139-140- “ BNRJ, Ms, ir - 55, 54, s.

196 197
___  _

confessor, para que este suscitasse ao moribundo «mal fundados -coronel Luís de Seixas Souto Maior com «uma certa mulher» do Rio
escrúpulos a respeito da comunicação e trato que tivera com uma de janeiro «de limpa geração››'5. O pai sempre a tratara como filha,
mulher prostituta de intima extracção» de quem tivera filhos. As duas «ainda mesmo com ciencia da sua família», e antes de morrer assassi-
damas viam nesta manobra «o fim sinistro de ocupar toda a herança nado, num momento de lucidez, quisera institui-la sua herdeira no seu
do enfermo, cuja casa e composta de muitos bens vinculados e livres». testamento «conforme os ditames da sua consciência». Pedira então a
Esta narrativa colocava em relevo a actuação do confessor, «homem um conego que fosse consultar a sua mãe, D, Teresa Fmn¢¡5¢a de
ignorante e por extremo imprudente», e a desqualificação da concu- Seixas Souto Maior. Pelo relato da filha natural, indo o clérigo a
bina como meretriz, o que logo punha em causa a fìliação da prole uma casa interior onde aquela senhora se achava, esta «imediatamen-
ilegítima. te com uma generosidade e franqueza sem exemplo, veio ã presença
Aqueles dois individuos, «aproveitando-se da fraqueza em que se do filho moribundo certificar-lhe que era da sua vontade que ele
achava o enfermo para se apoderarem absolutamente do seu reconhecesse, benefìciasse e instituisse ã suplicante sua filha na sua
espírito>›, chegaram a persuadi-lo de que devia em consciência casar herança, de que desistia».
com a concubina, procurando deste modo aviltar a família, que era Ou a filha mentia acerca deste ponto ' ou a mãe do morro 1 pressio-
«de conhecida nobreza», com uma aliança «tão baixa e vergonhosa». nada pelos demais filhos, negou mais tarde o consentímento dado no
Esse casamento iria prejudicar os direitos de sua avó, D. Catarina, sua leito de morte. Inquirida D. Teresa pelo ouvidor da comarca da Corte
herdeira forçada, e os de sua irmã, D. Ana Maria, legítima sucessora respondeu negativamente, acrescentando; «sendo tal instituição
dos bens vinculados que existiam na sua casa e cuja sucessão não reprovada expressamente pela lei da Ord. Livro N, tit. 92 e final, ela
excluía a linha feminina. não pode surtir efeito algum contra meu direito, de que nem desisti
Os dois convencerain o enfermo a pedir ao arcebispo dispensa de então, e nem pofsso' desistir agora com prejuizo de meus filhos exis-
banhos para logo casar, ao que o prelado se recusou, conhecendo «o tentes, e tanto nao e da minha intenção prescindir desse direito, que
grave prejuizo que se seguia ã honra e interesses da sua consternada ia propus em Juizo rima acçao ordinaria, em que peer) se dgclafe
família». Desistindo então da ideia de casamento, extorquiram aqueles nulo aquele testamento pelo vicio que encerra a instituição feita no
«périidos conselheiros›› um testamento «no qual, atropelando o dì- mesmo».
reito de seus legítimos herdeiros, deixava toda a sua herança que, Yemos assim que a família legitima de individuos nobres mais
sendo ainda de bens livres, e muito considerãvel, a seus denominados facilmente tentava anular na Justiça um testamento de última hora
filhos». Ora este testamento era, na opinjão das requerentes, manifes- em que os filhos naturais fossem instituídos herdeiros do que uma
tamente nulo «por ser extorquido por sugestöes e violências, sem escritura de legitimação que o pai tivesse tido o cuidado de assinar no
estar ainda legitimado com as formalidades da lei, nem munido com tabeliao. O tenente-coronel Mateus Francisco Gomes em julho de
a autoridade legítima». O que as duas damas pretendiam era a nomea- -
1822, assinou -
uma escritura . S de cinco
de perfilhaçao _ 1
filhos _
naturais,
ção de um juiz privativo para tratar de todas as causas referentes apesar de tt-ig uma herdeira legítima, sua filha, e de esta ref
ãquela herança e ao mesmo tempo o sequestro dos bens administra- descendencia . Quando os filhos naturais redigiram a petição para
dos pelo testamenteiro e tutor dos menores, o tal Antonio Ferreira de a emissao' das cartas de legitimação e a meia-irmã foi consultada, esta,
Andrade. como seria de esperar, mostrou-se contrãria ao deferimento daquele
Só conhecemos uma versão dos factos, mas não e dificil perceber a requerimento alegando varias razöes; «la porque sendo eles menores,
retórica da narrativa: a concubina, cujo nome nem sequer e mencio- aparecem a requerer sem assistência de um tutor; 2° porque ggzandg
nado, é classiñcada como prostituta e os filhos naturais passam por- meu pai de nobreza. como tenente-coronel e cavaleiro da Ordem de
tanto a «supostos filhos››; o testamento era nulo porque extorquido Cristo nao lhe podiam esses que se dizem filhos naturais herdar
ao moribundo, sem as formalidades devidas. abintestado, ainda que ele não tivesse filhos legítimos» Baseando-se
Havendo herdeiros forçados, era dificil aos filhos naturais dos na Qfd- Í-WFO W. Iìl. 92, §5, que facultava ao cavaleiro que tinha filhos
nobres conseguir herdar dos seus pais, por mais subterfúgios que
utilizassem. Bastava que aqueles dessem um parecer contrário para
logo a carta de legitimação ser negada, como ocorreu com a petição Z ANRJ. 1?€_S€mbargo do Paço, Caixa 127, pacote 3, document@ 41_
de D. Marìa Luisa de Seixas Souto Maior, filha natural do tenente- ANRJ, rbid., 128, pacote 2, documento 54.

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¬-Í'

legítimos o poder deixar em testamento aos filhos naturais toda a sua e «para todos eles deram os seus parentes 0 seu consentímento e
terça, ou parte dela, escrevia; «tendo meu pai muitos bens de fortuna, aprovação». Isto era o que o padre alegava em fins de 1822, ao diri-
e conseguintemente uma boa terça, pode com ela beneficiar a esses gir-se já ao imperador D. Pedro I; «nestas circunstâncias, estando
que se dizem filhos naturais, sem desfalcar as duas partes da herança, preenchidas todas as diligências do estilo, vem o suplicante humilde-
a que eu e meus filhos menores, seus netos, temos todo o direito» mente implorar a V. M. I. a graça de confirmar tambem a perfilhação
Apesar desta oposição, estando o pai vivo e tendo perfilhado em dos mencionados três filhos do suplicante, Aurelio, Maria e Tranqui-
tabelião os filhos naturais, não havia dúvida de que a sua vontade lina, sem dependencia de nova informação do ouvidor da comarca da
estava claramente expressa e não dava margem a dúvidas. Por essa Baia, vista a perturbação, em que actualmente se acha aquela cidade,
razão o ouvidor da comarca do Rio de Janeiro criticou a filha legitima, de que resultaría gravìssimo prejuizo aos mesmos três últimos filhos».
acusando-a de ser levada «pelos estímulos de ambição» e de estar As lutas da independencia na Baia e as dificeis comunicaçoes entre a
«esquecida de que aqueles são igualmente porçoes do mesmo Corte do Rio de Janeiro e aquela Provincia acabaram por facilitar o
tronco». Rebatendo a segunda objecção, lembrava: «para evitar essa desenlace deste processo de legitimação que demorou nada menos
pena da lei e que se requer a graça, pois a não haver esse obstaculo, do que 9 anos, durante os quais o padre baiano não deixou de pro-
bastaría nomeã-los no testamento». Ou seja, o arbitrio do monarca, a criar com a sua viúva.
concessão ou não da graça da emissão das cartas de legitimação, Esta demora foi contudo excepcional. Na maior parte dos proces-
sobrepunha-se a toda uma legislação tendente a proteger os fìlhos sos, o período transcorrido entre a data da escritura lavrada em tabe-
legítimos dos nobres perante as incursoes dos ilegitimos na sua he- lião e a data de emissão da carta de legitimação pelo Desembargo do
rança. Ja se efectuara a passagem do Antigo Regime para a Monarquia Paço não era tão longo que desmotivasse os eventuais interessados,
Constitucional com a discussão de projectos de Constituição, mas podendo até ser bastante curto, tal como se observou em relação aos
máquina jurídica ainda assentava nas antigas premissas. E a graça foi nobres. O reduzido número de legitimaçoes pedidas por clérigos
concedida em Julho de 1825, já depois de proclamada a independen- entre 1808 e 1822 (quando já existia o Desembargo do Paço no Rio
cia do Brasil. de janeiro e os processos não precisavam de ser enviados para Lis-
Tal como os nobres, tambem os eclesiásticos so podiam legitimar boa), apenas 45, deve ser explicado por outras razoes, tanto mais que
os seus filhos mediante carta regia. Talvez o processo mais demorado as despesas com o processo não eram muito elevadas, orçando por
tenha sido o do vigário da Cachoeira, na Capitanía da Baia, padre volta de 6$000 réis. Observamos nos pedidos que todas as concubinas
Francisco Borges de Figueiredo”. Encontraiido-se este na Corte do mencionadas pelos padres eram solteiras ou viúvas, o que nos leva a
Rio de janeiro, fez em tabelião, a 21 de Junho de 1815, uma escritura supor que todos aqueles que tiveram relaçoes sexuais com mulheres
de filiação e legitimação de um filho de 6 anos e de uma filha de 4, casadas e delas tinham tido filhos não ousaram dirigir-se ao monarca
tidos de uma viúva, natural e moradora na vila da Cachoeira, Encami- pedíndo cartas de legitimação para filhos que, alem de sacrílegos,
nhada a petição ao Desembargo do Paço, o pedido de informação ao eram tambem adulterinos. Do mesmo modo, aqueles que mantinham
ouvidor do Civel da Relação da Baia, com data de 10 de Janeiro de relaçöes com parentes, procriando assim filhos incestuosos aos olhos
1814, extraviou-se. Por essa razão, em Julho de 1816, atraves de um da Igreja, tambem se abstinham certamente de os legitimar pelas
procurador na Corte, o padre pediu a 2” via daquele documento e já mesmas razoes.
falava não em dois filhos, mas em três. A ordem para que se passasse a Alguns eclesiásticos, pela sua alta hierarquia dentro da Igreja ou
2” via foi dada um ano depois, em Agosto de 1817. Ora as diligências pela sua ascendencia familiar, eram tambem nobres e assim a confir-
ordenadas so foram executadas em 1820, quando o padre já tinha mação da legitimação dos seus filhos tornava-se necessãria. O reve-
mais três filhos da dita viúva e havia feíto naquele ano, em Cachoei- rendo Antonio Pires de Carvalho Albuquerque, fidalgo cavaleiro da
ra, uma escritura de perfilhação a seu favor, tal como fìzera em relação Casa Real, senhor do Engenlio Paramerim, situado no termo da vila
aos dois primeiros em 1815. Nas diligências a que o ouvidor proce- de São Francisco da Barra de Sergipe do Conde, em 1799 fez uma
dera tinham sido incluídos todos os filhos, para simplificar o processo escritura de legitimação do filho, o capitão Luís Antonio Pires de
Carvalho e Albuquerque, natural e morador na Baia, nos seguintes
termos: «não so para poder livreinente haver a si todos os bens da
'7 ANR), ibid., Caixa 124, pacote 5, documento 51. sua herança do dito seu pai, ou outras quaisquer heranças e direitos

200 201
É

que competir-lhe possam, mas também para que possa haver o seu
foro, e nele se encartar, igualmente gozar de toda a nobreza, e outras
isençöes, e privilegios, que ele outorgante goza, e puder gozar como
filho legítimo do tenente-general Salvador Pires de Carvalho e Albu-
querque, fidalgo cavaleiro da Casa de Sua Magestade, e alcaide-mor da
cidade da Baía››"Í Não hã dúvida de que a família Pires Carvalho e
Albuquerque pertencia ã elite baíana e assim se compreende o desejo
deste clérigo de passar ao filho não só os seus bens como também o
foro de fidalgo cavaleiro para que ele pudesse usufruir dos privilegios
e isençöes conferidos à nobreza.
Também Fidalgo da Casa Real, o cónego chantre Roque Luis de
Macedo Paes Leme, natural e morador no Río de Janeiro, ao querer
legitimar o seu filho, Pedro Nolasco Amado d`Orta Forjaz Leme, em
1815, para que lhe pudesse suceder nos seus bens e privilegios, argu-
mentava lembrando «o mal que poderá resultar ã sociedade Ficando
aquele pobre menino desconhecido e sem nome, e sem meios de
viver decente, e honradamente». Segundo 0 cónego, os bons costu-
111
mes dificilmente se podiam manter «entre as urgências da pobreza››19. VIDA QUOTIDIANA

18 ANRJ, ibid, Caixa 125, pacote 2, documento 45.


19 ANRJ, ibm, Caixa 128, pacote 5, documento 55.

202
1

A morada rural e urbana

No fim do periodo colonial a população encontravase concentrada


em cidades (sedes de Capitanias), em vilas de maior ou menor gran«
deza mas todas elas com as autoridades competentes (Senado da
Câmara, juizes, tabeliães), em arraiais Ou freguesias rurais; ou então
vivia dispersa e isolada em sitios e ranchos â beira dos caminhos, ou
em grandes fazendas de gado e engenhos de açúcar.
Desde a reforma administrativa do tempo de Pombal a população
era cuidadosamente contada, domicilio por domicilio, e dessa tarefa
eram encarregados os capitães-mores das Ordenanças. Quando estes
não cumpriam eficazmente a sua obrigação, os governadores das
Capitanias costumavam recorrer aos róis elaborados pelos pãrocos
nas suas freguesias, embora estes fossem feitos com uma finalidade
diferente e não contivessern a população infantil de menos de 7 anos.
Os grupos étnicos eram computados, assim como os grupos sócio-
-profissionaís, nos mapas geraìs das Capitanias. Uma diferença básica
encontramos entre as listas de população das Capitanias do Norte e
Nordeste e as do Sul: nas primeiras a população indígena era mais
frequentemente computada do que nas outras, talvez porque ali as
antigas aldeias jesuíticas, transformadas em vilas e povoaçöes no tem-
po da administração pombalina, tivessem mantido mais a sua caracte«
rística indígena do que no sul, onde a população branca se sobrepôs
aos indios, forçando a sua total integração ou a sua fugal.
Nem todas as Capitanias eram igualmente povoadas. Minas Gerais
possuia uma densidade populacional muito mais elevada do que o
Piauí, por exemplo, Além disso, as vilas e cidades concentravam-se
ainda muito no litoral, sendo dificil o povoamento do interior. Embora

1 Vejamos como exemplo o «Mapa da população da Capitanía do Rio Grande do


Norte com declaração dos seus empregos, militares e civis, e capirães-mores de
Ordenanças das respectivas vilas e freguesias, tanto brancos como indios, até
31 de Dezembro de 1805» (AHU, Rio Grande do Norte, Caixa 9, doc. 18).

205
`
*É-

Directório dos indios do Grão-Para e Maranhão, criar povoaçoes com


ainda não tenham sido feitos estudos demográficos de todas as re- os indios domesticados“*. Conseguira ele erigir 5 vilas; Vila Viçosa,
giöes, podemos contudo formar uma ideia aproximada da população onde encontrara instalados perto de 100 casais, mas que no seu tem-
do Brasil às vésperas da Independencia. po chegara aos 160; a vila de Portalegre, que era um total deserto só
Por razöes religiosas ou politicas, a população total do Brasil foi habitado do <<Tapuio››, mas onde com muito trabalho pusera cerca de
computada a partir dos mapas elaborados localmente e dos mapas 150 casais; e finalmente a vila de Alcobaça, povoação só com 20 casais
geraìs das Capitanias. É natural que o cômputo religioso, feíto em e que aumentara para 150.
1819 por António Rodrigues Veloso de Oliveira, e destinado a servir Além da criação destas vilas, procurara melhorar as povoaçoes já
de base ao desmembramento de dioceses demasiado vastas, tenha existentes com «vagabundos e degradados que pedia as Relaçöes da
tendência a elevar os números encontrados. De qualquer modo, isso Baia e Rio». Noutros lugares «empestados do Tapuio» gostaria de
é feíto de uma maneira clara e explicita. Encontrando um total de erigir mais vilas, mas não havia gente suficiente e do mato já não
2 697 099 habitantes, excluidos é claro os «indios não domesti- descia gentio de pazã.
cados», Veloso de Oliveira argumentava; «A inexactidão porém dos A politica de fundar povoaçoes com uma base de população indí-
ditos mapas, e a notoria defìciência, que neles se observa, dos meno- gena, embora alguns brancos e escravos ai pudessem viver, foi seguida
res de 7 anos, e das pessoas, que deviam andar de mais alistadas, sem principalmente onde a presença dos indios se fazia sentir com mais
discutir as causas, que por muito notorias, não é preciso referir, me força e onde as antigas aldeias jesuiticas tinham deixado os fundamen-
autorizam a acrescentar sobre este cálculo mais a quarta parte» Estas tos para 0 povoamento: toda a região amazónica, a Capitanía do
palavras de Veloso de Oliveira revelam que ele se serviu dos róis de Espirito Santo, além das de Porto Seguro e Ilhéus.
desobriga elaborados pelos pãrocos nas suas freguesias, dos quais Muitas destas povoaçoes foram efémeras por terem os indios vol-
estavam excluidos os menores de 7 anos por não serem obrigados tado para o mato e para o seu antigo modo de vida, mas todas elas
a cumprir o preceito quaresmal, e os excomungados, concubinados, obedeceram ã regularidade exigida pelo racionalismo das Luzes. Na-
etc., que não 0 podiam fazer. O total aumentado dava portanto quelas três vilas criadas pelo ouvidor de Porto Seguro, em vez de
3 596 1322. viverem embrenhados no mato em cabanas dispersas, estavam os
Quando foi necessárío, em 1821, eleger os deputados pelo Brasil às seus habitantes a morar em habitaçöes «dentro dos arruamentos
Cortes de Lisboa, e para se obedecer ao principio da proporcionali- que lhes demarcou e alinhou pela boa formalidade das plantas e
dade entre representantes e representados, os totais apresentadas riscos que remeteu ã Secretaria de Estado».
também não incluiam todos os habitantes, uma vez que a massa de Essa regularidade fica bem patente no «Planon para o estabeleci-
escravos, não votantes, não foi contabilizada. A excepção foi repre- mento dos indios Caiapó da gravura do extratexto. Não só a disposi-
sentada pelo Semanário Cívico, periódico publicado na Baia, que, ção das habitaçöes era imposta pelos brancos, como também a
utilizando os mapas mais recentes elaborados pelas autoridades própria maneira de construir as casas estava regulamentada; «não
militares, chegou a um total de 5 558 230, sendo 1 955 802 livres e sejam como choupanas cobertas de palha, que logo se arruinam,
1 424 428 escravoss. mas sim de telha, nem armadas por eles que também são pouco
Sobretudo no Norte e nas Capitanias interiores onde a população durãveis, mas por oficiais de carpintaria fabricadas, por não haver
indigena em contacto directo com os brancos era mais numerosa, foi pedra, de madeira ao melhor uso do pais.›› Estas eram as instruçöes
seguida uma politica destinada a aculturar os indios, impondo-lhes o do ouvidor de Porto Seguro para os directores das povoaçoes indige-
plano das povoaçöes brancas e a sua forma de construir as casas.
Quando, em 1777, o ouvidor da Capitanía de Porto Seguro fez um
relato das suas actividades durante a década em que ocupara o cargo, * Muito embora o Directorio pombalino fosse abolido em '1798, o facto é que, na
ficou bem visivel todo o seu esforço no sentido de, seguindo as pratica, em muitas regiòes do Brasil, as povoaçoes de indios continuavam a funcionar
directrizes da politica indigenista pombalina, consubstanciada no da mesma maneira, com um director e um vigário responsãveis pela tutela dos indios.
Ainda em 1803 um furriel do Regimento do Recife foi nomeado pelo governaclor
interino de Pemambuco para director dos indios de Vila Flor, na Capitanía subaltema
2 António Rodrigues Veloso de Oliveira, «A Igreja do Brasil», RIHGB, (Rio de do Rio Grande do Norte (AHU, Rio Grande do Norte, caixa 9, doc. 4).
Janeiro) 20 (1): 159-199, 1866. 5 Amais da Biblioteca Nacional (Rio de janeiro) 34; 370-578, 1914.
5 Seminárío Cívico, n° 125, 1825.
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206
T'

nas e na margem direita do «Plano›› para a povoação dos Caiapó estão de pindoba, e a esta chamam a sua casa, mobilada de ordinario com
escritas instruçöes semelhantesó. duas ou três esteiras de tábua segundo as camas de que carece a
O modelo dos brancos devia ser seguido: as habitaçöes seriam família, uma cumbuca ou grande cabaço para guardar e levar fari-
repartidas interiormente em uma sala e três câmaras ou quartos, nha, um pote, um coco correspondente, trem de cozinha e mesa, três
«um da parte da rua junto ã sala e dois da banda do quintal». Teriam pedras e cinzeiro perpétuo no meio da casa, alguma tosca tripeça, um
duas portas, uma para a rua, outra para o quintal «e as mais por dentro ou dois cachirnbos de barro, um pedaço de rede se é próxima a praia
necessárias». Os fogöes para as cozìnhas seriam feitos nos quintais, ou rio, duas ou mais facas bem apontadas, uma lança, traste indispen-
perto das casas «mas fora do perigo de as incendiarem». Os quintais sãvel, assim como o cacete». Alguns desses agregados possuiam uma
deviam ser cercados, «ou de taipa de terra ou quando menos de cerca rede para se balançarem, mas estas surgem como mais raras neste
de madeira chamada de pau a pique››7. meio do que as simples esteiras de dormir9.
Todas estas normas contrariavam as tradiçöes indigenas: grandes Nas povoaçöes dos brancos a praça quadrada era o centro do
habitaçöes comuns, não divididas interiormente, sem portas, sempre núcleo urbano, vila ou cidade, e ã sua volta erguiam-se as principais
com uma fogueira interior. É de crer, contudo, que entre as normas construçöes públicas; a igreja matriz e o Senado da Câmara com a
ditadas pela escrita e pelo desenho e as casas efectivamente construi- respectiva cadeia e, nas cidades que eram sedes de Capitanias, o
das nas povoaçoes da Amazónia, por exemplo, uma solução de com- edificio que servia de resídência aos governadores e aquele que se
promisso tenha sido adoptada. Hã efectivamente uma diferença entre destinava à Junta da Fazenda, comummente designada apenas por
a maloca dos indios Curutu e a casa onde as indias de Monte Alegre «Erário››.
exerciam as suas actividades, mas alguns traços indígenas permanece- Alguns governadores, principalmente nas capitanias subalternas,
ram: o espaço interior é pouco dividido, não hã portas, 0 fogo para encontravam, ainda no fim do periodo colonial, dificuldade de aloja-
cozinhar continua dentro da habitação. mento. O governador da Paraíba, Jerónimo José de Melo e Castro,
Alias, no interior de Minas Gerais, o domicilio rural assemelhava-se pretendia em 1782 obter finalmente fundos da Real Fazenda para a
mais a uma oca indigena do que a uma habitação nos moldes euro- construção do seu palacio, depois de ter morado numas casas de
peus. O inglês john Luccock observou, em 1817, que uma numerosa aluguer e no antigo Colégio dos jesuitas, «imprópria habitação de
família morava numa construção enorme, parecida com um celeiro na governadores por ser construida para diferente corporação». Ele man-
Inglaterra, mas que «tinha as paredes de barro, o forro de sapé e 0 dou então para Lisboa uma planta do terreno onde pretendia cons-
piso de terra, sem qualquer divisão, nem tecto, revestimento ou caia- truir, com os seguintes esclarecimentos; «Sem embargo que na frente
ção alguma». No centro deste espaço não dividido encontrava-se uma da matriz se conservam ainda os chãos em que antigamente foi pala-
fogueira com pedras ã volta onde se preparava a comida. Dos lados, cio, é de mais utìlìdade a sua edificação no terreno que mostra a
estrados com esteiras onde as pessoas dormiam. Pedras ou blocos de planta, porque além de aformosear com sua perspectiva a praça,
madeira servìam de assento e os objectos eram guardados em algumas ficando rodeada do Erãrio pela parte Norte, pelo Poente com a casa
caixas. Espaço indiviso e totalmente comunitario com a fogueira ao da Companhia, pelo Sul com o açougue e pelo Nascente com a cadeia,
centro, abrìgava cerca de 30 pessoas, homens, mulheres e crianças, ã obras estas novamente construidas; ficando deste modo o palacio ao
maneira da habitação dos indioss. lado esquerdo do Erário, nos chãos indicados, provérn ã Real Fazenda
A parte mais pobre da população rural, ou seja, os agregados que maior utìlìdade» Argumento este que assentava na maior vigilância
arrendavam terras em propriedades alheias, erguia um tipo muito que o governador assim poderia exercer sobre esta instituição
rústico de morada, conforme descrevia Luis dos Santos Vilhena no fazendãriaw.
inicio do séc. XIX: «levantam uma choupana de toscos paus e palhas Ao contrário dos governadores, a população não encontrava difi-
culdade em morar nas cidades ou vilas. Os mais ricos possuiam casas
6 «As casas devem ser feitas de pau a pique, de 20 palmos cada um em quadro,
com sua varanda de 15 palmos de largura e 29 de comprimento conforme as mesmas 9 Luis dos Santos Vilhena, Perzsanrentospolíficos sobre a coiónía, Rio de janeiro,
casas» Arquivo Nacional, 1987, p. 61.
7 Anais da Biblioteca Nacional, vol. 34, p. 376. 1° Al-IU, Capitanía do Paraiba, Caixa 15, oñcio de 9 de Agosto de 1782 dirigido a
“John Luccock, op. cif., cap. ILL Martinho de Melo e Castro.

208 209
à,-

próprias; os demais alugavam-nas. E a caracteristica fundamental da Dado que na metrópole só no reinado de D. Maria I é que foi criada
maneira de morar no Brasil colonial era a existência, na maior parte uma Aula de Arquitectura Civil, debaixo da inspecção da Real Mesa
das familias, de uma casa no campo, onde habitualmente moravam, e
Censória, é natural que no Brasil de então a construção de residências
uma casa na vila ou cidade onde só residiam durante as festas religio-
nada tivesse que ver com os arquitectos e sim com mestres pedreiros
sas, ou quando os homens ocupavam cargos municipais ou precisa-
e carpìnteiros.
vam de cuidar dos seus negócios. Era aliâs esta dupla moradia que
Estes, contudo, não edificavam a seu belo prazer; tinham de se
facilitava a pratica do concubinato: enquanto a mulher e a familia
submeter às posturas camarârias, pelo menos nos grandes centros
residiam no sitio ou fazenda, a concubina era instalada na vila ou
urbanos, como a cidade da Baia. Em 1785, qualquer pessoa que qui-
cidade.
sesse edificar na cidade, ou mesmo «fora das suas portas», tinha de se
A dupla moradia, a urbana e a rural, levava os membros da elite a
submeter a medidas exactas na construção de casas de um ou dois
preferirem cumprir os seus deveres religiosos na cidade e não na
sobrados. Estas medidas foram estabelecidas pelo mestre de obras do
freguesia mais próxima da moradia rural. Era uma questão de presti-
Senado da Câmara. No primeiro andar não poderia haver sacadas,
gio, um simbolo de elevada posição social, o ser paroquiano da Sé
apenas janelas, «e estas não sairão para fora mais de palmo e quando
Catedral. Em 1814, o capitão João Franco da Rocha e D. Catarina
muito palmo e meio, com grades de ferro, ou de pau pintadas, ou
Machado, moradores no termo da cidade de São Paulo, pretenderam
janelosias». Quanto ãs janelas do segundo andar, «serão de parapeito
continuar a ser fregueses da Sé, «tanto por ter na cidade casas de
não excedendo estes de quatro palmos». Determinava-se ainda a lar-
vivenda», como pelas comodidades, que lhes resultavam pela sua
gura das portas, a altura da «ombreira, ou pé direito», com ou sem
vizinhança, de a ela recorrerem «para a recepção dos sacramentos,
ornatos como «for da vontade, e melhor gosto dos donos». Nas lógias
e pasto espiritual, acrescendo a isto o estar o suplicante ligado a varias
poder-se-ia construir janelas de parapeito, desde que este não exce-
irmandades, e ordens terceiras estabelecidas na cidade, e ter na mes-
desse os quatro palmos”.
ma servido os cargos da República». O bispo de São Paulo não con-
Determinava ainda a postura municipal de 1785: «quando se hou-
cordou, contudo, com esta pretensão, uma vez que a fazenda do casal
verem de reedificar quaisquer propriedades, e necessitando alguma
ficava a duas léguas da igreja de S. Bernardo, a sua nova paróquia,
sacada das antigas de conserto considerãvel, se não poderá fazer na
enquanto a freguesia da Sé distava quatro léguas: «Parece absurdo
forma que existia, mas sim se reduzirã a sacada a ianelas divididas com
iicar um sitio dentro de uma freguesia e os moradores dele darem
grades, ou rótulas».
obediência ao pároco de outra freguesia quando o daquela ha-de ter o
Em construçöes mais elaboradas, as chamadas «casas nobres»,
trabalho de ouvir aos doentes desta. O ter o suplicante casas na cidade
era preciso apresentar no Senado «o risco do proposto, e da forma-
isso não obsta para dar obediência ao pároco da freguesia de
lidade do edificio conforme o terreno, para se averiguar se é, ou não
S. Bernardo pois ali é que mora e a sua familia, ou alias venha assistir
conveniente, a fim de se lhe conceder, ou não a faculdade». Quem
na cidade.›› Este documento mostra-nos que a morada principal era a
desobedecesse a estas determinaçöes, proprietãrio e mestre de obras,
rural e que a morada urbana era considerada secundaria, uma vez que
teria prisão e multa e a obra clandestina seria demolida ã custa do
o capitão não servia, naquele momento, nenhum cargo municipal que
primeiro.
o obrigasse ã resídência urbanau.
Com a chegada da Corte, uma das primeiras medidas urbanísticas a
Enquanto a casa construida no campo, sobretudo nas grandes
serem tomadas foi a abolição das rótulas e a sua substituição por
propriedades, fazendas ou engenhos, obedecia apenas ao gosto ou
balcöes e sacadas. A rótula era feita de treliça de madeira e deixava
às necessidades do seu proprietãrio, no espaço urbano a ediiicação
passar o ar num clima que exigía um arejamento maior dos interiores.
estava sujeita a normas estabelecidas pelos poderes municipaislz.
Para o inglês Luccock, contudo, elas davam ãs fachadas das casas uma

1' ANRJ, Desembargo do Paço, Caixa 194, pacote 5.


telha, com uma salinha e três quartos de domiir com duas portas e janelas». Foi
12 É fácil encontrar a descrição dessas habilitaçöes rurais nos inventarios feitos
avaliada em apenas 18$00O réis (menos do que uma «cria›› escrava) tendo como base
depois da morte dos proprietários, Um padre, senhor de engenho na Capitanía do
Espirito Santo, com numerosos escravos e considerado muito rico na época, possuia 0 trabalho do carpinteiro e o do pedreiro (AHU, Capitanía do Espirito Santo, Caixa 5,
uma modesta «casa de vivenda» no engenho «com varanda na frente, coberta de doc. 37).
'5 ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 2, documento 4.

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¬-wi'

aparência pesada, tomavam as ruas sombtias e pareciam indicar que O espaço urbano era então corno hoje profundamente marcado
os seus moradores eram pouco sociáveis. Foi em nome da abolição da pelas diferenças sociais. Enquanto a aristocracia se espraiava pelos
«barbãrìe›› que o Intendente da Policia do Rio de Janeiro, Paulo novos subúrbios do Rio de Janeiro (Catete, Botafogo, Lagoa Rodrigo
Fernandes Viana, mandou, por ordem do Regente, suprimir esse ele- de Freita, estrada de S. Cristóvão), os comerciantes e os artesãos, tal
mento arquitectónico. A sua supressão não foi contudo imediatamen- como os empregados públicos, concentravam-se no centro da cidade,
te seguida da utìlização de janelas com vidraças, pois o vidro ainda era e a gente mais miserável morava na margem norte, para os lados do
muito raro e caro no Brasil (a primeira fábrica de vidros só se instalou Saco do Alferes, Catumbi e Mataporcos, onde as casas não passavam
na Baia em 1811). Pelas descriçöes dos viajantes e também pela ico- de choças aglomeradas entre os morros e o mar.
nografía se vé que a supressão das rótulas foi imediata nas casas de Morar bem, para um empregado público como Luis dos Santos
sobrado, mas demorou a desaparecer das casas térreas, forma de Marrocos, era ter casa num local «lavado de bons ares», numa ma
habitação das camadas mais populares. «mui larga e asseada», perto do chafariz e do Passeio Público, com
A casa térrea era a mais comum em todas as povoaçoes, de norte a igrejas e capelas próximas assim como «uma praça de hortaliça e o
sul do Brasil. O negociante Luccock assim descreveu uma que alugou matadouro com açougue». Além disso, tinha como vantagem a proxi-
na cidade de Rio Grande, na Capitanía de Rio Grande de S. Pedro: midade do mar «para limpeza e despejo da casa», possuia um quintal
«Constava de um pavimento térreo apenas, tinha uma sala, dando para para recreio da familia e para crìação de galinhas «em socorro de
a rua e iluminada por uma única janela sem vidros nem venezianas e qualquer moléstia››1'5.
que, quando os escuros estavam abertos, fazia com que se devassasse As peças de mobiliario conservadas em museus brasileiros fazem-
a sala toda e o mais que se passava nela. Por detrás ficava uma alcova -nos por vezes esquecer de que elas constituiam uma excepção, só se
de dormir e uma cozinha de chão num puxado.››“ Nesta descrição tomando mais frequentes depois da chegada da Corte e da divulgação
aparecem as caracteristicas mais comuns das habitaçöes plebeiasz das modas europeias através do estabelecimento de comerciantes
duas divisöes apenas, com a sala virada para a rua e a alcova inte- estrangeiros nas grandes cidades como Rio de Janeiro e Baia.
rior, e a cozinha, local frequentado por escravos e sujeita a fumacei- Uma casa térrea alugada pelo inglês John Luccock no sul do Brasil
ra, ao ar livre, embora coberta; ausência de janelas envidraçadas, e estava escassamente mobilada; algumas cadeiras de assento e espaldar
mesmo de rótulas de madeira, impedindo a privacidade quando as de couro, «muito convenientes para o transporte por serem de
portadas de madeira estavam abertas. dobrar», e uma mesa de madeira escura constituiam o mobiliario da
Além das casas térreas viam-se nas principais cidades casas de sala; na alcova havia apenas uma cama, cujo colchão era um saco de
sobrado e «casas nobres». As primeiras, tal como aparecem descritas algodão grosso recheado de lã. A cozinha, de chão batido, era também
no inventario do rico negociante carioca Elias António Lopes, eram o local onde os escravos dormiam sobre um estrado de madeira,
estreitas e fundas, permitindo apenas a abertura de poucas janelas. Ja «tanto homens como mulheres, cada um dos quais se embrulha nuns
a casa nobre, situada nos arrabaldes elegantes onde o espaço dispo- pares de jardas de baeta azul a fim de se proteger contra os
nivel era maior do que no centro da cidade, apresentava maior núme- mosquitos». E certamente também contra o frio, pois no sul do Brasil
ro de janelas e maior comodidade no seu interior. Basta ler um o clima assemelha-se ao da Europa no lnverno. As fogueiras eram
anúncio colocado na Gazeta do Rio de _]ane¢'ro.› «Vende-se uma casa acesas de noite na cozinha com a dupla função de afastar os mosqui-
nobre sita no principio da praia do Botafogo, com orize janelas de tos e aquecer os escravos ou criados que ali dormiamn.
frente, bons cómodos, bastantes quartos capazes de acomodar uma No inventario dos móveis que se encontravam na «casa de vivenda»
grande familia, boa cozinha e moderna, grande cocheira e cavalhariça, do engenho de um padre muito rico, morador na Capitanía do Espi-
com sala de espera, sala de jantar e duas grandes salas para a frente do rito Santo, encontramos apenas uma mesa velha, quadrada, um armã-
mar, dois quartos iguais, jardim, poço, e diversas obras, e quintal rio de pau amarelo «com portas de almofada» com as suas dobradiças
murado.››15 e fechaduras, e um outro já velho, três catres de pau, toscos, duas

14 John Luccock, op. cil., cap. VI. 16 Op. cit., carta 148.
'S Gazeta extraordinaria, n° 17, 1821. 17 John Luccock, op. cif., cap. V1.

212 215
 ,_

Neste inventario, se compararmos o valor dos móveis (98$860 réis)


candeias para iluminação. Estes trastes não valiam mais de 43500
com o dos objectos de prata (89$760) verificamos que este casal,
réisls.
como tantos outros, estava mais interessado no prestigio trazido pela
Através de um inventario carioca de 1820 percebemos que na Corte
prataria do que no conforto já tão procurado pelos europeus desse
do Rio de Janeiro, nas habitaçöes das camadas médias, o mobiliario se
inicio do séc. XIX.
tinha diversificado um pouco. Ai encontramos dois conjuntos de ca-
Alias, a Gazeta do Rio dejaneiro, através dos seus anuncios, revela
napé com 12 cadeiras, umas pintadas, com palha, e outras com o
que o comercio estrangeiro do Rio de janeiro oferecia, para a deco-
fundo de madeira; mesas de jacarandá «com pano», uma mesa cómo-
raçäo das casas dos brasileiros, uma grande variedade de mercadorias.
da de iacarandã; dois «almarios irmãos››; um estrado, geralmente usa-
Um italiano, além de ser pintor de paredes, sabia forrar salas com
do para colocar a esteira onde as pessoas se costumavam sentar; uma papel inglês, mesmo num clima húmido. Para o chão eram anuncia-
mesa «de campanha», ou seja, de desarmar; e ainda uma peça pouco
dos vários tipos de ladrilhos e um tijolo especial para corredores.
comum, «uma escrivaninha americana pequena com seus repartimen-
Combatendo o antigo uso de esteiras de ¡unco ou palha, tão conve-
tos», além de objectos muito habituais como mochos, caixas, baús
nientes no clima brasileiro, anunciavam os comerciantes «alcatifas
cobertos de couro cru, 3 gamelas e 4 tabuleiros, peças estas certamen-
aveludadas» para tapeçar salas ricas. Um <<armador›› francés vendia
te usadas pelos negros de ganho, que pertenciam à casa, para trans-
franjas de algodão e seda para bambinelas e outras «armaçöes››. Ob-
portarem as suas mercadorias, como é frequente ver nas gravuras da jectos decorativos como biombos de charão, cofres de madeira aro-
época”.
mática, espelhos, estatuas de gesso, vasos de alabastro, figuras de
A inovação presente neste inventario em relação a outros mais
porcelana, podiam ser adquiridas nas lojas de franceses e ingleses,
amigos é a presença de 15 quadros de vários tamanhos, o que reflecte
que rivalizavam também na oferta de uma maior variedade de móveis
já uma preocupação com a decoração das paredes. A cozinha estava
como aparadores, guarda-loiças e guarda-roupas, mesas de chá ou de
equipada com poucos artigos dignos de avaliação: 12 pratos peque-
costura.
nos, 3 bules, 1 açucareiro, 1 leiteira, 6 chícaras, 12 pìres mais 3 desir-
Todos estes <<trastes›› de casa encontravam certamente comprado-
manados, 3 copos, 1 cálice, 3 frascos, 1 tiiela de lavar. O que chama a
res entre a aristocracia portuguesa e o corpo diplomático estrangeiro,
atenção são 28 garrafas pretas, certamente usadas para engarrafar o mas a tradicional familia brasileira certamente continuava a sentar-se
vinho comprado em barril. Um «coco de estanho», usado para tirar
no chão sobre uma esteira ou numa rede, a dormir num catre, a
agua do pote, um ferro de engomar, 2 chocolateiras (objecto muitas
guardar a roupa numa caixa ou baú, a usar para comer alguma mesa
vezes presente nas casas brasileiras), 1 tacho de cobre, 2 bacias de
feita de madeira da região com cadeiras de assento e espaldar de
arame e 2 bandejas completavam o trem de cozinha. A este se acres-
couro.
centavarn ainda uns objectos feitos de pedra sabão anómalos para um
Mesmo morando com poucos móveis e possuindo escassas loiças e
europeu: 4 palmatórias «de sabão», ou seja, instrumentos de pedra objectos, as pessoas de posses destinavam um espaço da sua habita-
sabão para castigo dos negros domésticos.
ção para as rezas quotidianas, nele colocando um oratorio com ima-
A presença de algumas peças de prata é uma constante nas resi-
gens. Enquanto nas grandes fazendas e engenhos os oratorios eram
dências das camadas médias da população, em maior ou menor quan- postos na varanda, de maneira a ali se poderem congregar escravos e
tidade e valor. Neste caso havia os habituais talheres, incluindo
agregados, em propriedades menores, ou em habitaçoes urbanas, eles
colheres de chá; um par de castiçais lavrados; um pratinho e tesou-
estavam localizados no interior da casa quer num recanto a eles des-
ra, usados para apagar as velas; uma «galvinha›› de três pés; e uma
tinado, quer na própria sala em que se reunía a familia.
«bomba para mate», mostrando o gosto pela tradicional bebida do sul
Um importante negociante da vila de Santos, na Capitanía de São
do Brasil.
Paulo, anotou no seu <<caderno de assentos» as despesas feitas com os
objectos colocados na casa do oratorio, â qual davam acesso portas
la AI-IU, Capitanía do Espirito Santo, Caixa 5, documento 37, 1793. envidraçadas com cortinas de cetim cor de fogo. Ali se encontrava
19 ANRJ, Inventario de Francisco Alves e sua mulher Teresa Joaquina Caetana, uma mesa, um painel grande de Nossa Senhora das Dores e um
Maço 462, n° 8857, 1820. Sobre este assunto da influência estrangeira no mobiliario crucifixo, além de alguns objectos de culto assaz valiosos: os dois
das casas do Rio de Janeiro, ver o meu livro Cultura e Sociedade no Rio de janeiro ornamentos «das quatro cores» para o oratorio, com os seus perten-
(1808-1821), 2' ed., Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1978.
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ces, custaram ao negociante 38$40O réis; um cãlice, patena e colheri-


nha de prata, 23$'/00; a imagem de Cristo crucificado com diadema,
titulo e cravos de prata, 223630. Como havia ainda 4 relicarios de
madeira dourada, uma pia de agua benta em loiça, dois pares de
galhetas e 4 castiçais de madeira dourada, deduz-se que a posse de
um oratorio doméstico implicava um nivel elevado de fortuna, embora 2
outros houvesse mais modestos do que este pertencente a um mem-
bro do corpo mercantilzü. Tradiçöes alimentares e culinarias
No caminho entre o Rio de Janeiro e S. João d`el-rei, o inglês
Luccock observou, na casa do seu guia, a reza familiar antes da última
refeição do dia: «Ficaram de par em par abertas as portas do oratorio
e exposto o crucifixo até justo o momento de servir-se a ceia no
mesmo cómodo; o dono da casa aproximou-se então com grande
seriedade e, apos ter feito profunda reverência a imagem, cerrou-lhe Para os indios, fora da situação de festa, o acto de comer não
as portas.››21 Mais luxuoso ou mais simples, este espaço da religiosi- obedecia ao mesmo horario dos brancos ou dos escravos. Comiam
dade doméstica tinha um lugar garantido quer na morada urbana, quando tinham fome e quando adquiriam o que comer graças a acti-
quer na rural. vidade da caça e da pescal. Se bem que os directores das povoaçoes
de indios tivessem instruçöes para os fazer dedicar a agricultura, fora
alguma pequena roça de mandioca ou de milho, em geral cuidada
apenas pelas mulheres, pouco sucesso obtiveram. É interessante no-
tar que, em 1777, o ouvidor de Fono Seguro recomendava, depois de
insistir na pratica da agricultura e na plantação de aivores frutiferas
(laranjeiras, limoeiros, bananeiras); «Não convem o plantarem por
agora canas de açúcar, ainda que úteis para as comerem, pois que
delas o não sabetn fazer, nem ainda melado, e todas as costumam
moer para a converter em caida, que azeda e misturada com o seu
comum vinho chamado cauim, feíto de mandioca, fica convertido em
aguardente» Tìnha o ouvidor plena consciência, contudo, de que era
impossivel, mesmo aos indios domesticados, erradicar o costume de
preparar a tradicional bebida: «e enquanto ao cauim ainda que inevi-
tavel, porque a toda a hora e com mais facilidade o podem fazer,
também é justo aproveitar todos os meios que o tempo mostrar úteis

' Para o observador branco que viajasse pelo territorio brasileiro no fim do
periodo colonial, 0 principal contraste entre o acto de comer próprio dos
«barbaros›› e o dos civilizados era sem dúvida a inexistencia, entre os primeiros,
de um horario para as refeiçöes. Depois de um contacto com os indios Coropós,
Coroados e Puris da Capitanía de Minas Gerais, os austriacos Spix e Martius teceram
algumas consideraçöes genéricas acerca do temperamento do indio e ao seu com-
portamento alimentar: «lnsensivel aos prazeres do paladar, dado sobretudo à alimen-
tação animal, o indio, em geral, é sobrio e, sem respeito a horario, contentava-se com
2° Ver 0 meu livro Cultura no Brasil colónia, p. 61. atender a necessidade de refazer-se; até frequentemente jejua por comodidade»
21 John Luccock, op. cit, cap. XIII. (Spix e Martius, Viagem pelo Brasil 1817-1820, São Paulo, Melhoramentos, 1976
(5 vols), Tomo I, p, 203).

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Tendo como base a carne seca, ou prescindindo dela quando a


para se lhes impedir e rebater a demasia, pois que para o fazerem pobreza assim o exigía, as camadas populares usavam certas técnicas
costumam destruir grande parte das mandiocas››2. culinarias e tinham uma maneira própria de comer que atraíram a
A preparação de bebida tradicional a partir também do milho foi curiosidade dos viajantes estrangeiros.
observada, em 1817, por Spix e Martius, entre os indios Coroados, da Spix e Martius, em visita ao Rio de janeiro em Julho de 1817,
Capitanía de Minas Gerais. Eram as mulheres quem disso se ocupava: apontaram uma especie de feijoada como o prato mais consumido
«umas socavam milho no pilão, outras deitavam a farinha de milho pelas classes inferiores; «A mandioca, o fuba e o feijão preto, em
numa vasilha de barro não cozido, de alguns pés de altura, estreita em geral cozidos com toicinho e carne seca ao sol e salgada, formam a
baixo e mais larga para cima, onde é cozida a farinha em grande principal parte do pesado e grosseiro alimento.››6 O consumo de
quantidade de agua». Havia contudo um detalhe na preparação dessa peixe era escasso na cidade, talvez porque com o calor ele se dete-
bebida que habitualmente chocava a sensibilidade europeia: «Uma rìorasse muito depressa, não se observando ali a técnica da salga do
india velha 'e algumas outras mais moças retiraram do pote, com as peixe, tao comum no litoral norte e no nordeste.
mãos, a farinha graúda e cozida, mastigaram-na e puseram-na outra vez Freireyss comentava, em 1814, que, na regiao de Minas Gerais, em
na panela. Com esse preparo consegue-se que o cozimento, no espaço vez de o substitutivo para o pão europeu ser a farinha de mandioca,
de 24 horas, entre em fermentação alcoolica e se torne embriagante.››3 era usada a farinha de milho comida de um modo muito peculiar:
No interior do Brasil os brancos adoptaram, tal como os indios o «Nas casas da roça despejam-se simplesmente alguns pratos de fari-
faziam, a caça e a pesca como principais fornecedoras de alimentos. nha sobre a mesa ou num balainho, donde cada um se serve com os
A caminho de Minas Gerais, o viajante Freireyss notou que, muito dedos, arremessando, com um movimento rapido, a farinha na boca,
embora os habitantes caçassem para comer com frequência o vea- sem que a minima parcela caia para fora.››7
do, a anta, o porco de mato, estas espécies continuavam abundantes As diferenças sociais na alimentação faziam-se sentir menos em
na região. Além disso, a carne dos papagaios, dos tucanos e até dos algumas regiöes do Brasil, como por exemplo na Capitanía do Rio
picapaus era muito apreciada4. Grande de S. Pedro, no extremo sul. Zona fracamente povoada,
No litoral, os habitos alimentares eram mais uniformes, do Norte com extensissimas fazendas de gado, mesmo as camadas populares
ao Sul do Brasil, e menos exóticos aos olhos dos observadores euro- conseguiam uma alimentaçao rica em proteínas devido à abundancia
peus. A base da alimentação, na região do Para, era a farinha de de carne e de leite. O negociante inglês John Luccock comentava na
mandioca e o peixe seco ao sol ou a carne salgada; ja no Sul do segunda década do séc. XIX: «As próprias classes inferiores são bem
Brasil, se o peixe não atraía as populaçöes, a carne bovina constituía alimentadas com carne de vaca, legumes, abóboras, um preparado
o alimento preferido, sendo consumido e exportado para o resto do feíto com uma especie inofensiva de mandioca e milho dessecado,
Brasil com 0 nome de «charque››. moido, feito em pasta juntamente com leite e finalmente assado, o
Objecto de grande comércio, o «charque›› era preparado nas pla- que constitui um substitutivo nada desprezível do pão.››8
nicies sulinas onde abundava o gado bovino. Uma vez morto e esfo- Aqueles que, nas camadas medias da população, ainda não se
lado 0 boi, tirava-se do flanco do animal uma só peça de carne que, tinham deixado influenciar pelas tradiçöes europeias, davam a prefe-
depois de salpicada de sal, era posta a secar ao sol. Pela sua durabi- rência, pelo menos no Rio de Janeiro, às frutas locais, ao queijo
lidade constituía o alimento preferido das camadas populares, sobre- importado de Minas e, conforme obsetvaram Spix e Martius, as bana-
tudo nas regiôes mais quentes e onde escasseava a caça e a pesca, e nas nunca faltavam ã mesa, havendo um acentuado gosto ainda pelas
ainda uma provisão habitual nas embarcaçöes. O inglês John Luccock, laranjas, goiabas e melancias. O pao de trigo raramente aparecia nas
em viagem pelo Sul na segunda década do séc. XIX, comentava que um mesas dos naturais da terra, que o substituiarn pela farinha de man-
só individuo tinha morto, num ano, 54 000 cabeças de gado para lhes dioca; igualmente 0 vinho era pouco usado bebendo os naturais quase
charquear a cameã. so agua, ou então misturada com vinho ou cachaça. Para os europeus,

2 Anais da Biblioteca Nacional (Rio de janeiro), vol. 54, p. 377. 6 Spix e Martius, op. cit., Tomo l, p. 52.
3 Spix e Martius, op. cin, Tomo I, p. 199. 7 G. W, rfeireyss, op. csi., p. zo.
4 G. W. Freireyss, Gp. air., p. 20. 8 John Luccock, op. cif., cap. VII.
Sjohn Luccock, op. cif., cap. Vll.
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este regime alimentar era o adequado a um clima queme; refeiçöes tais, como particulares, pois que não são nocivos seja qual for a
leves, muita fruta, pouca carne, muita agua9. molestia dos individuos», a Camara, na sua resposta, apenas permitiu
Os habitos alimentares estavam em parte relacionados com 0 mo- a venda de carne de carneiro. Quanto a matança das vitelas, «não
do como se processava 0 comercio dos produtos necessarios ao podendo estas ser conduzidas de muito longe, os arrabaldes, e vizi-
abastecimento das populaçöes. Mesmo que em certas regiöes predo- nhanças desta cidade iìcariam delas absolutamente despovoados».
minasse uma auto-suficiencia neste aspecto do quotidiano, outras Quanto ao corte exclusivo da carne de porco, «seria um monopolio
precisavam de ser abastecidas e o estudo dessas formas de abasteci- prejudicial ao público, e particular as rendas do Concelho, por não
mento so recentemente começou a ser objecto das preocupaçöes dos virem mais vender-se os toucinhos nas casinhas, que para esse fim, e
historìadoresw. de outros mantìmentos se arrendam››13.
Tomemos como exemplo as feitas. Elas abundaram no Nordeste A Camara de Sao Paulo controlava igualmente outros aspectos do
brasileiro e eram incentivadas pelas autoridades. O coronel governa- comercio alimentar, preocupada não só em cobrar os seus impostos,
dor da Capitanía de Sergipe escrevia em 1816 ao governador da Baia, mas também em vigiar os pesos e os preços. Assim, em 1820, baixou
de quem era dependente; «Devo representar a V. Exa que, não sendo um edital dirigido a todas as pessoas que costumavam «padejar›› o
esta Capitanía estéril de víveres, e frutos estes em certos dias se cos- pão de trigo (produto ainda raro na alimentaçao habitual do brasilei-
tumam juntar em abundancia em algumas vilas, e povoaçoes em que ro) para que «o peso do pão de 20 reis fosse de quarta e 0 de 40 réis
se fazem feiras, e nao havendo nesta cidade igual costume se padece de meia libra depois de cozido, enquanto não houvesse mais barato
imenso a falta de generos de primeira necessidade, como sejam fari- preço da dita farinha››“.
nhas, e carnes, e todo o mais preciso para a vida. Parecía-me justo No Rio de Janeiro o Senado da Camara procurava atender as quei-
convidar, e ate obrigar aos habitantes empregados naquele género de xas dos consumidores, verificando os seus fundamentos. Assim, quan-
negocios para que em um dia da semana em que nos outros lugares do alguns ìndividuos se queixaram de que nos açougues a carne estava
nao houverem feitas, aqui fazê-la.››“ a ser mal pesada e além disso vendida em primeiro lugar «aos amigos
Na cidade da Baia eram as negras «ganhadeiras›› que nas suas dos carniceiros», logo houve vistoria nos açougues de «came verde»
cabanas vendiam peixe fresco, salgado e seco, e as «caxiteiras›› que (ou seja, fresca) de vaca, onde se descobriu efectivamente carne
vendiam carne seca com licença da Câmara. Esta obrigava-as a vender escondida no fundo do quintal coberta de folhas de bananeira e
a peso, utilizando balanças bem aferidas. Outras negras vendiam hor- também «balanças desconcertadas e pesos falsificados››15.
taliça, frutas. Umas e outras tinham os seus lugares de venda bem Fora estes problemas pontuais, o abastecimento de generos
determinados pelos camaristas e aqueles que andavam pelas ruas alimentares fazia-se sem dificuldades no Rio de Janeiro, como escrevia
vendendo os seus produtos tambem precisavam de licença do Sena- um ilustre habitante; «Em casas públicas, que chamam armazens, e
do da Camara, não podendo «de forma alguma sentar-se para fazerem nas cabanas estabelecidas ao longo da rìbeira do mar, se acham
sua vendagem››12. com assaz fartura o legume seco e todos os generos necessarios ã
Também na cidade de Sao Paulo era a Câmara que dava o último mantença do povo, a hortaliça verde e o peixe, assim como em dife-
parecer em materia de abastecimento. Quando em 1820 um inglês rentes açougues, as carnes verdes de gado vacum, porcum e ove-
dirigiu ao governador uma petição para abrir um açougue de carne lhum.››16
de porco, carneiro e vitela, alegando serem estes dois tipos de carne Apesar da prodigalidade da Natureza na maior parte das regiöes do
«muito necessarios, e convenientes para os doentes, tanto dos hospi- Brasil, obsetvaram-se, no fim do periodo colonial, alguns períodos de
crise em que a fome era geral nas regiöes do nordeste. Fomes essas
mim
9 Spix e Martius, op. cif., Tomo I, pp. 52-55.
1° Ate agora o abastecimento do Rio de Janeiro tem sido o mais estudado. O B Registo Geral' da Câmam Municipal de São Paulo, vol. 16 (1820-1822), São
trabalho mais recente sobre o assunto foi a tese de doutoramento de Larissa Brown, Paulo, 1922, São Paulo, 1922, pp. 7-9.
em 1986, na Universidade de Virginia: Internal Commerce in a Colonial Economy.- “ ram, pp. 11-12.
Rio de janeiro and its Hinterimmj 1 790-1822. 15 ANRJ, cod. 812, vol. 1, 1s16.
11 Arquivo Historico da Baia, Caixa 119, pacote 232. “Jose de Sousa Azevedo Pizarro e Araújo, Memorias Históricas do Rio dejaneiro
12 ANTT, Papeis do Brasil, Avulso 2, documento 4. (...), livro VII, cap. lll, Rio de Janeiro, Impressao Regia, 1820-1822.

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em grande parte resultado das secas que reduziam a produção da do negro vendedor de aves, de palmito, de milho, de leite; da negra
farinha de mandioca, ou seja, o principal alimento da população mais vendedora de pão de lo, de cafe torrado, de angu, de ataçaça, de aluã,
pobre. de manue, de sonhos”. Nas suas tìgurinhas populares, Joaquim Can-
Em 1792, o governador da Capitanía subalterna da Paraiba comu- dido Guillobel retratou a negra com um cesto à cabeça vendendo
nicava para Lisboa o lamentavel estado a que se chegara e as provi- abacaxis ou cajus, o negro vendedor de leite ou de verduras, a qui-
dencias que tomara para minorar a fome. Relatava ele: «Levantaram-se tandeira expondo os seus produtos numa barraca, e o inglês Henry
os indios das cinco vilas da circunferencia da cidade a furtar descara- Chamberlain copíou algumas destas imagens no seu livro sobre a
damente, e a seu exemplo os brancos, pardos e pretos, dizendo na cidade.
extrema necessidade todos os bens sao comuns.›› Esfomeados arran- O milho era consumido de varias maneiras e alimentava diferentes
cavam nao só as «roças maduras» como, 0 que era pior, as «roças grupos étnicos e sociais. No Rio de Janeiro era assado ou preparado
novas» que nada tinham produzido ainda e que so dali a seis meses em pipoca para regalo dos negros. A farinha, simplesmente moida e
estariam sazonadas. O governador, alem de proibir que a farinha separada do farelo por uma peneira, tinham o nome de fuba e entrava
saisse da regíão, fizera reservar, nos contornos da cidade, alguns na preparaçao do angu, principal alimento dos escravos. Com ele se
roçados maiores, «distribuindo a farinha com a mais exacta econo- preparava tambem a canjica, doce feíto feivendo o milho em leite,
mia», conservando alem disso o seu preço no nivel anterior. Pedira com açúcar e gemas de ovos; ou a jacuba, rnistura da farinha de milho
ainda socorro à Baia, para que 0 governador desta deixasse sair duas com rapadura (residuo do melado cozído) e agua. Os brancos, no
embarcaçöes com farinha para a Paraiba, apesar de os baianos sofre- interior, usavam os graos de milho temperados «como se fossem
rem da mesma crise de mantìmentos”. ervilhas», escrevia Debret, ou então usavam a farinha bem prepara-
Mais tarde, em 1796, comentando esta calamidade, o mesmo go- da, em substituiçao da farinha de mandioca, para polvilhar os alí-
vernador acrescentou a informação de que «inumeraveis familias» mentos.
tinham descido dos sertöes para o litoral «multiplicando-se as A europeizaçao dos habitos alimentares foi círcunscrita â Corte
desordens». O abastecimento de farinha continuava contudo ainda do Rio de Janeiro e consequência da presença na cidade de muitos
dificil, apesar de as terras terem voltado â sua «fecundidade reinóis e estrangeíros que dificilmente abdicavam das suas tradiçöes
regular». É que muitos que fabricavam a farinha, «possuídos da am- culinarias”. E para satisfazer tal clientela surgiu um amplo comercio
bição do algodão», tinham-se afastado para mais de 30 leguas da alimentar. Pelos anúncios da Gazeta do Rio de janeiro se ve que o
cidade. Foi necessárío então abrir dois caminhos para que os habitan- exigente cliente europeu tinha ao seu alcance os produtos que lhe
tes da Serra da Raiz, que se achavarn sem comunicação com o litoral, eram mais necessarios: diversos tipos de pão (português, italiano,
pudessem trazer aos portos as suas produçöes agricolas e assim francês, ingles, espanhol), vinhos variados (branco, tinto, moscatel,
abastecer a cidade”. de malvasia) e de muitas procedências (da Chamusca, de Carcave-
Como vimos, o abastecimento de generos alimentares numa cidade los, do Porto, da Madeira, da Catalunha, de Bordeaux, de Provence,
populosa e cosmopolita como 0 Río de Janeiro era feíto pelos açou-
de Champanhe, do Reno, de Chipre), presuntos de Portugal ou de
gues, controlados pelo Senado da Camara quanto aos preços e quali- Yorkshire, salame da Italia, doces de frutos europeus como gínja,
dade da carne vendida, e também por outras instalaçöes licenciadas damasco, pera, pêssego, figo, varios tipos de cha (Perola, Souchon,
pelos camaristas. Além disso, deambulavam pelas ruas os chamados Sequím, Hyson), frutas em aguardente, licores.
negros de ganho vendendo toda a especie de produtos e mesmo
comida ja preparada por negras sentadas em pontos estratégicos da
cidade. Varios foram os pintores que retrataram esssa multidão de
19 O alua era uma bebida refrescante preparada com agua de arroz fermentado; o
vendedores ambulantes. Jean-Baptiste Debret deixou-nos a imagem manue, urn folhado recheado de carne que se comia quente; os sonhos eram feitos
de pao passados no melaço; a ataçaça, creme de arroz doce vendido frio dentro de
um canudo de folha de bananeira. Quanto ao angu, era um cozido em que se
17 AHU, Capitanía da Paraiba, Caixa 14, oficio a Martínho de Melo e Castro datado
misturavam míúdos de vaca, banha de porco, azeite dende, quiabos e outras verdu-
de 17 de Julho de 1792.
ras, servido com farinha de mandioca ou de milho Uean Baptiste Debret, Víagem
la AHU, Capitanía da Paraiba, Caixa 16, oficio de 19 de Abril de 1796 a Luís Pinto
pitoresca e histórica ao Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1978, 2 vols.)
de Sousa Coutinho, 2° Ver o meu livro Cultura e sociedade no Rio deƒaneiro, pp. 3-20.

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Í

Proliferaram então no Rio de Janeiro as casas de pasto e os bote- Os viajantes estrangeiros que se demoraram o suficiente na cidade
quins. No centro da cidade, na rua da Alfândega, foi aberta «uma mesa para serem convidados para a casa dos cariocas, muitas vezes comen-
redonda, de subscrição», onde não eram admitidos senão os subscri- tavam as maneiras à mesa e o modo como a refeição era servida.
tores semanais que pagavam 800 réis por jantar, incluindo meia gar- O francês Freycinet contava que, embora as iguarias fossem servidas
rafa de vinho. Também no suburbio elegante do Catete um mestre em faiança importada de Inglaterra ou em porcelana da China, e os
cozinheiro inaugurou logo em 1809 uma casa de pasto onde, além da talheres não diferissern dos usados na Europa, muitos naturais da terra
«mesa redonda a 800 réis por pessoa», servia também em «quarto achavam mais cómodo comer com os dedos. Por outro lado, em casa
fechado» para quem quisesse comer em separado. Massa e salsi- do bispo, deparou com a tradiçâo portuguesa de servir a comida.
chas, além de uma boa «caçarola››, eram os petiscos anunciados. Sentados ã volta de uma grande mesa, os convivas, em reduzido
Os estrangeiros concorriam com os portugueses neste ramo de número, tinham à sua volta e ao seu alcance uns oito ou dez pratos,
comércio alimentar: havia uma casa de pasto inglesa que anunciava, dos quais cada um se servia a seu gosto.
em 1816, uma «mesa redonda» mais barata, a 640 réis, e uma outra Se no quotidiano a refeição significava o acto de se alimentar,
pertencente a franceses, onde, segundo o prussiano von Leithold, se cercado de uma maior ou menor sociabilidade conforme os grupos
comia bastante bem. Embora em quase todas estas casas de pasto só sociais e étnicos que o praticavam, a situação de festa criava um
fossem servidos jantares entre as 2 e as 2 e meia cla tarde, o Hotel ambiente especial assinalado por certos ritos. Vejamos um exemplo.
Royaume du Brésil tinha uma sala para almoços de café e fiambres. Quando os negociantes ingleses da Baia se reuniram numa prop rie-
Esta moda parece ter-se enraizado na vida urbana, pois em 1820 uma dade rural para celebrar o aniversario do rei de Inglaterra, houve um
«esquisito jantar servido com tocla a grandeza e aparato», segundo
casa de pasto do centro servia de manhã caldo de galinha e ao jantar
«tudo quanto apetecer, empadas, pastéis e doces diferentes». Com noticiava a gazeta localzl. Uma das características deste jantar de festa
maior concorrência, os preços em 1820 eram mais baixos do que era a serie de brindes feitos à família real inglesa e portuguesa, ã
em 1809: por 600 réis podia~se comer uma refeiçäo ao jantar compos- aliança dos dois países, ao exército aliado na península e a lord
ta de «uma sopa, um cozido, três pratos de diferentes qualidades e Wellington e mesmo «às senhoras amaveis da cidade de S. Salva-
uma de pastéis ou doce, sobremesa e meia garrafa de vinho». dor». Foram doze brindes no total, após os quais «cantaramse varios
Os botequins não servìam jantares. Apenas petiscos e algumas hinos, e cantigas patrióticas segundo o costume em semelhantes
distracçöes, como jogo de gamão ou bilhares. Quanto às chamadas ocasiöes». O jantar deixou de ser assim uma simples refeição para
«casas de café» nelas se podia tomar café, leite, pão francês com se tornar um acto social e mesmo político com o seu ritual próprio,
manteiga, por vezes um tanto rançosa, como escrevia von Leithold, neste caso brindes e cantos.
pois era importada de Inglaterra. Ou então lìmonada, feita com os
limöes da terra, que eram diferentes dos europeus.
O comercio alimentar no Rio de Janeiro incluía ainda os confeitei-
ros que preparavam jantares e refrescos para fora e vendiam «vìnhos
generosos e esquisitas massas para sopa, conservas, doces». Durante a
Quaresma anunciavarn venda especial de empadas, certamente sem
carne por causa do jejum. Os italianos imperavam neste tipo de ne-
gócio, aceitando encomendas de varios tipos de «pastelarias e
confeitarias», especialmente «bandejas para chã e refrescos
nevados». Um tal Angellini vendía diferentes tipos de massas italia-
nas: «pevide, estrelinha, lasanha, vermicelo, macarrão, letria». Messeri
especializava-se em empadas de galinha, peixe ou lombo de porco.
A presença dos europeus, habituados a uma sociabilidade mais
requintada e frequente, atraiu ao Rio de janeiro mestres cozinheiros,
muito «habéis na arte de cozinha», que se prontificavam a ir a casa das
pessoas preparar jantares e ceias, ou mesmo banquetes especiais. 2* ¡dade domo do Bram, ni 9, 1311.

224 225
Tr

3
O trajo
\

Em todos os aspectos os brancos procuraram impor a sua cultura


material, muito embora num ou noutro detalhe se deixassem também
influenciar pelas populaçöes indígenas e africanas. Um dos pontos de
honra da administraçao colonial consistía precisamente em vestir os
indios, fossem eles de que regiao fossem. O ouvidor da Capitanía de
Porto Seguro ufanava-se de que na sua jurisdição ja nenhum indio
andava nu; «quando menos de camisa e calção; a maior parte ja de
véstia e chapéu e de sapatos e meias e muitos de casaca e capote››. Em
1777 a jovem geração de indios ja andava mais vestida que a dos seus
1
pais, e as meninas Índias, crescendo em casa de brancos, trajavam
como as suas amas «de vestido semanario e festivo», ou seja, tinham
uma roupa para os dias de semana e outra para os domingos e dias de
festa, fazendo muito gosto nos enfeites e possuindo «suas pecinhas de
ouro››1.
Nas suas instruçöes aos directores das povoaçöes indígenas, sub-
metidos ainda ao Directório pombalino, recomendava o ouvidor que
aqueles brancos que tivessem jovens indios em casa a aprender um
oficio fossem melhorando progressivamente o vestuario dos seus
aprendizes. Assim, nos dois primeiros anos, bastava-lhes dar «o ves-
tuario semanario ao uso da terra, que é de simples camisa, calção de
algodão e chapéu de palhinha››; no terceiro ano de aprendizado,
deveriam receber «vëstia e calçao de alguma outra melhor droga e
chapéu de lã para o domir1go››; e no quarto ano «camisa de linho,
meias, sapatos››; e finalmente no quinto «burjaca ou capote», Pro-
curava-se assim incutir entre os indios a oposiçao, fundamental para
os brancos, entre «o vestuario semanario» e o <<domingueiro››.
I Em relaçao às jovens indias a mesma progressão vestimentaria
deveria ser observada: primeiro, «o simples vestuario quotidiano de
camisa e saia de algodao grosso, de modo que nunca se vejam nuas

I Anais da Biblioteca Nacional (Rio de janeiro), vol. 34, pp. 571-578.

227
Í'

nem rotas››; depois uma camisa de linho e «saia de alguma droga para camisa de apiagem, saio de catariz azul, e um pano da Costa de dez
domingon; mais tarde «sua capa, lenço, fita de cabelo, sapatos ou ramos azul», um moleque crioulo de 7 anos levava apenas uma cami-
chinelas». sa; um preto Mina, de nação Fautim, com cerca de 30 anos, estava de
A insistência na aculturação fazia-se sentir mais, nestas directivas «calças novas de ganga, camisa usada de bretanha, e vestía de chita,
do ouvidor do Porto Seguro, em relação as mulheres do que aos sem chapéu››3.
homens, certamente para elas não despertarem tao facilmente os O vestuario dos escravos dependía evidentemente das posses e do
desejos sexuais dos brancos. Devíam os directores esforçar-se para desejo dos senhores, não sendo portanto possível generalizar, mas a
que nas povoaçoes não andassem as indias nuas, «ainda da cintura ideia que os contemporáneos tinham do seu trajar é~nos transmitida
para cima ou ainda dentro das suas próprias casas». Além disso, por Luis dos Santos Vilhena ao escrever que «um par de camisas e
deviam impedi-las de usarem as «chamadas cachoaras, com que mui- saías ou calças de pano grosseiro e dois côvados e meio de baeta para
to mal se cobrem da cintura para baixo». Um vestuario minimo devia dormírem» e, quando muito, algumas vestes de baeta, era o que cabía
ser exigido: camisa e saia. a cada um. Em processos judiciáríos referentes a escravos dos Cam-
O sucesso desta aculturação vestimentana variou com as regiöes e pos de Goitacazes, na Capitanía do Rio de Janeiro, alguns escravos
não ha dúvida de que foi no sul, entre os guaranis das antigas missöes artesãos vestiam peças mais diferenciadas: um oficial de alfaiate usava,
jesuiticas, que ela teve mais sucesso, não só devido ao clima, mas com a habitual camisa, umas «bombachas de algodão» e a cobri-lo
também por uma longa tradição de sujeiçao aos brancos. Jean-Baptis tinha «um capote de baetão verde-mar listado com pintas encarnadas
te Debret representou-os em duas gravuras: a india com o seu trajo e verdes››; um oficial de sapateiro usava tambem um capote, mas estas
domingueiro; e o indio com aquilo que ele designa como o «rico trajo peças constituiam na verdade uma excepçãoâ.
hispano-americano», ou seja, o trajo característico das populaçöes da Como era de esperar, os escravos da Coroa andavam mais decen-
região do Prata, portugueses ou espanhóisz. temente trajados do que os dos particulares. Em 1778 o vicerei oi-de
Também os negros sofrian1 um processo de aculturação através da nou ao provedor da Fazenda que desse a cada um dos escravos da
forma de trajar. Quando desembarcavam dos navios negteiros uma rainha que se encontravam em serviço no Rio de janeiro, «uma véstía e
tanga cobria-lhes o corpo; depois de comprados, estes escravos no- calção de pano azul, duas camisas e um chapéu››5. Também o escravo
vos, «boçaìs››, passavam a vestir-se de acordo com o tipo de trabalho urbano recebia melhores roupas do que o escravo rural, sobretudo se
que executavam e com as posses e a condição social dos seus senho- tinha como funçao servir de bolieiro ou de pajem e acompanhar as
res. A iconografía da época representou-os constantemente, atraída familias nas suas saidas em público.
que era pelo exotismo das suas aparências. Os negros são o tema Embora o ditado afìrme que «o hábito não faz o monge››, a socie-
permanente de artistas como J. B. Debret, M. Rugendas, Guillobel, dade do Antigo Regime, tanto em Portugal como no Brasil, manteve-se
Henry Chamberlain, e outros. sempre vigilante para que o exercicío de determinadas funçöes fosse
Não só a iconografía como os anuncios de escravos fugidos nos simbolízado por pratícas vestímentárias próprias. Jean-Baptiste
permitem visualizar como se vestiam. As peças mais comuns da sua Debret representou, numa das suas gravuras, o trajo dos desembarga-
indumentaria eram a camisa (feita de materiais variados como cassa dores da Casa de Suplicação do Brasil, enquanto com palavras o padre
grossa, pano de linho cru, brim, algodão, riscado, linho grosso); as Luis Gonçalves dos Santos descreveu o trajo daqueles que exerciam
calças (de pano da Costa, de ganga, de belbute, de casìmíra, de pano funçöes no Senado da Camara; «vestido de seda preta, capa da mesma,
de linho cru, de algodão); e o colete (de pelúcia, de belbute, de pano, colete e meias de seda branca, chapéu meio abado com plumas bran-
de baeta, de casimira). Raramente é feita, nos anuncios, menção a cas e presilha de pedras preciosas, e cuja capa era ornada com bandas
pantalonas, calção, véstia, fraque. Alguns fugiam só de camisa e cerou- de seda ricamente bordadas››6.
las, ou de tanga e camisa.
Para termos uma ideia dessa vestimenta da escravaria vejamos
alguns exemplos; uma negrinha da nação Ouça fugiu «vestida com
3 ¡dade dorm; do Brasa, mi 19 e 76, 1313; n° 27, 1812.
4 silvia Hunold tam, op. at, p. 212.
5 rem, p. 215.
6 Luis Gonçalves dos Santos, Memórías para servir a bistória do Reino do Brasil
2 jean-Baptiste Debret, op. cit., Tomo I, pranchas 23 e 24. (___), tomo l, p. 210.

228 229
gr

A noçao de «farda›› era mais complexa do que as defìniçöes dos A saida dominical para a missa levava as mulheres a usar uma
lexicógrafos da epoca nos levariam a supor. O luso-brasileiro Morais mantilha negra de seda que ocultava as roupas mais transparentes e
Silva definía aquele termo no seu Dicionário de Língua Portuguesa, decotadas usadas por baixo delas. O inglês Líndley, que esteve no
em 1815, como <<a libre militar e a libre de criado». Mas os nobres inicio do sec. XIX na Baia, obseivou que o vestuario feminino mais
como o conde de Palmela, por exemplo, tinham de usar «farda comum era uma saia usada por cima de uma camisa. «Esta e feita de
grande» nas cerimónias do Paço7. Mesmo os empregados públicos musselina mais fina, sendo geralmente muito trabalhada e enfeitada. É
como Luis dos Santos Marrocos eram compelidos a efectuar despesas tao larga no busto que resvala pelos ombros ao menor movimento,
avultadas com o seu fardamento: <<constrangído vesti e estreei a minha deixando o busto inteiramente ã mostra. Além disso, e tão transpa-
farda de oficial de secretaria que, havendo-me importado perto de rente que se vê toda a pele.›› Em certas solenidades públicas, ou
120$OO0 rs com todas as suas bonecrices adjuntas, me encheu de durante visitas de cerimónia, algumas mulheres usavam o que ele
vergonha, julgando-me um falperra, pois sempre tive negação e ódio designava por roupas europeías em contraste com 0 uso local de
a enfeites e peralvilhices.››8 Mesmo um grande negociante como Elías camisa e saia.
Antonio Lopes possuia no seu guarda-roupa «uma farda e calçao de No Rio de Janeiro, ja depois da chegada da Corte, o prussiano
pano escarlate com vestía de pano azul, tudo bordado a fio de ouro e beíthold observava que, durante a saida dominical para a missa, as
prata», conforme lemos no inventario dos bens feíto apos a sua mulheres vestíam-se de preto, geralmente de seda, com meias de seda
morte9. O sentido da palavra farda era tão amplo que se usava até branca (pouco usadas pelas baíanas do tempo de Líndley), sapatos da
em relaçao ao vestuario feminino: quando a infanta D. Mariana mor- mesma cor «e sobre a cabeça um veu preto de fino crepe que cobre a
reu, foi enterrada «vestida de sua farda rica››1°. metade do corpo››12.
Se a maneira de vestir variava com os grupos sociais, se existíam Alem de sairem aos domingos para ir a igreja, as mulheres apare-
trajos que simbolizavam determinados cargos e funçôes, ha que acen- cíam em público na Corte, se eram arístocratas e moravam no Río de
tuar tambem uma oposiçao fundamental entre a roupa domestica e a janeiro, ou nos espectaculos teatrais, que só se realizavam nas grandes
roupa de sair, resultado vísivel da adequaçao entre a forma de trajar e cidades. Aos olhos de von beithold, o luxo das mulheres era então
a situação em que homens e mulheres se encontravam. indescritível, com jóias de pedras preciosas e pérolas, vestidos borda-
Os viajantes estrangeiros mostraram-se atentos observadores des- dos a ouro e prata, ousadamente decorados â moda francesa da se-
sas díferenças de vestuario. O cônsul francês Maler, em 1816, comen- gunda década do sec. XIX. Na cabeça colocavam quatro ou cinco
tava para Paris que o clima quente obrigava mesmo os naturais do pais plumas, tambem importadas de França, inclinadas para a frente, e
a fìcar em casa o mais possível e a «só se vestirem para sair». Ou seja, na fronte, diademas incrustados de diamantes e perolas.
em casa, mesmo as pessoas de posses usavam roupas leves e Na verdade, o espectaculo teatral exigía menos luxo do que as
simples”. cerimónias de Corte e nesse ambiente usavam as mulheres flores no
cabelo, brincos compridos e vistosos, um xaile pelos ombros e um
leque, mais ou menos valioso. Embora a sociabilidade fosse restrita, 0
7 Quando _]ean~Baptiste Debret desenhou a farda dos ministros (prancha 18 do guarda-roupa para sair nao era por isso menos luxuoso, conforme
vol. II), acompanhou a imagem com o seguinte esclarecimento: a farda pequena, ali
representada, possuia bordados apenas na gola e nos enfeítes, ao passo que a farda
grande tinha bordados em todas as costuras. «A casaca e de la verde forrada de seda; resídence there during part of the years 1821, 1822, 1823, Londres, 1824). O mesmo
0 calçao e de casimira branca, as meias de seda da mesma cor e o chapeu guarnecído â-vontade caracterizava a figura de um capitão-mor da Paraíba que recebeu o inglês
de plumas» Henry Koster no seu engenho; «O dono da casa vestía uma camisa, ceroulas e um
8 Luís dos Santos Marrocos, op. cit., carta 116. longo roupao, chamado 'chambre'. É a indumentaria tipica de pessoas que nada têm
° ANRJ, cod. 789. que fazer» (Viagens ao Norte alo Brasil, Sao Paulo, Companhia Editora Nacional,
1° Luis dos Santos Marrocos, op. cir., carta 45. 1942, p. 98). Alguns anos antes, na Baia, um outro inglês, Thomas Lindley, comentava
H Os olhares estarrecidos de María Graham, inglesa que visitou a Baia por altura que em casa os homens ficavam em ceroulas e camisa e quando muito vestíam uma
da independencia, condenaram o modo desmazelado como as donas de casa se jaqueta fina (Narrativa de uma viagem ao Brasil (...), Companhia Editora Nacional,
vestíam de manhä, quando não esperavam visitas; «they are very thinly clad, wear São Paulo, 1969, p. 177).
no neck-handkerchiefs, and scarcely any s1eeves.›› Além disso, o cabelo estava mal 12 T. von Leithold e L von Rango, O Rio de janeiro visto por doirprussianos em
pemeado ou, 0 que era pior, «en papillote» (journal of a Voyage to Brazil and 1819, Companhia Editora Nacional, Sao Paulo, 1966.

250 ' 231


depoimento do mencionado prussiano; «As damas de qualidade e as Num clima mais temperaclo a indumentaria era outra e as mulheres
mulheres em geral possuem amplos guarda~roupas de linhos e sedas que, no caminho de Minas Gerais, tinham saído de suas casas para
de toda a classe, guarnecidos de outros enfeites.›› assistir â missa numa pequena igreja vizinha, vestíam-se de branco ou
Era então o Rio de Janeiro, e em menor grau a Baia, o paraiso dos de cores vistosas e aqui os guarda-sóis coloridos servìam de protecção
armarinhos de luxo, ou seja, das capelistas que vendiam fitas largas e contra a soalheíra, muito embora usassem tambem chapeus de la
estreitas, lisas ou lavradas, na sua maior parte de seda, mas tambem de preta.
veludo; galöes de ouro e de prata; guarniçöes bordadas; franjas; ren- Índios, negros e mestiços andavam em geral descalços. Quanto aos
das de varias qualidades (linho, linha, fíló, seda) inclusive de fio de 1
demais habitantes, mesmo que em casa andassem por vezes de pes
ouro para «veus de ombros»; tiras bordadas «para coleiras››; entre- nus, quando saiam usavam diversos tipos de calçado, que podemos
meios; cordôes de seda; bordaduras de ouro. conhecer atraves dos Regimentos de preços que as Câmaras autoriza-
Um baile na Corte era regido por normas rígidas, divulgadas mes- vam para os mestres daquele oficio. Mais caras do que todas as outras
mo pela imprensa, tao importantes eram elas consideradas: «As se- formas de calçado eram as «botas de cordovão ponteadas», 4$OOO
nhoras vestidas de Côrte, mas sem manto. As que dançarem, porem, reis; as «botas bastardas chas», custavam 2$560 reis; uns <<borzeguins
levarao vestidos redondos, luvas e o enfeite da cabeça mais ligeiro e de cordovão chaos», 1$28() reis; uns sapatos de cordovão ou de be-
próprio para aquele fim. Os cavalheiros irao igualmente vestidos de zerro, para homem, 960 réis, sendo os de castor do mesmo preço, se
Côrte, porem os que se propuserem dançar írão providos de luvas o oficial pusesse «todo o aviamento››; as chinelas de homem, de
brancas. Os militares que houverem de dançar írão de meias de seda cordovão ou bezerro, 320 reis, mas se fossem «de talão», 640 reis.
branca, com a farda desabotoada, banda sobre o colete e luvas bran- O calçado feminino apresentava menor variedade: os sapatos de seda
cas; os outros, no rigor do uniforme.››l5 eram feitos por 640 réis e as chinelas por 320 reis. Quanto ao calçado
Em sítuação de viagem a indumentaria tinha necessaríamente de se infantil, dependía da idade mas o Regimento de preços só se refería ao
adaptar ao meio de transporte utilizado e ao clima da regiao percorrí- » calçado de menino: ate 5 anos, 520 reis; de 5 a 5, 480 reis; de 5 ate aos
da. Uma gravura de Debret mostra um casal de viajantes na Capitanía 10, 640 reis”.
do Rio Grande de S. Pedro. Contra o frio ele usa um poncho de la, Símbolo de fortuna e de prestigio social, a jóía constituía um ador-
comum a todos os habitantes da zona do Rio da Prata, e um amplo no índispensavel para homens e mulheres e a sua variedade pode ser
chapeu de palha, preso debaixo do queixo por um cordão, protege-o constatada atraves dos inventarios feitos por morte dos individuos”.
do sol numa região de campos com poucas arvores. Ela monta escar- Se ha jóias típicamente masculinas, como as «fivelas antigas para
ranchada e para isso usa um trajo de amazona de saia bem ampla; pescocinho››, as fìvelas de calçao (de cós ou de liga), os espadins
tem um chapeu, mas de feltro e não de palha como o seu compa- com os seus ganchos de prata, as bengalas, as canas cla Índía com
nheiro, e protege a boca da poeíra e frio do galope com um lenço castao e ponteira de ouro ou de prata, os rrestoques» e «talabartes››,
amarrado“. os <<traçadínhos››, as esporas de prata, certo tipo de relógíosm; ha
Algumas variantes regíonaís notavam-se na indumentaria de acordo também as jóias especificamente femininas, como os alfínetes de
com o clima local. No sul do Brasil, na cidade litorânea de Rio Grande, peito, os pentes de cabelo, as «memórías››, os cordôes de ouro. Em
como escrevia o inglês John Luccock em visita ã regiao em 1809, as relaçao a outros adornos como aneis, jogos de botôes, fìvelas peque-
mulheres de condiçao social inferior usavam um Capote de casimíra nas, ou mesmo fivelas de sapatos, os seus possuídores poderiam ser
com ornamentos de pele, comum numa regiao de clima mais frío, homens ou mulheres, indiferentemente.
razão pela qual as escravas tambem se enrolavam num pedaço de
baeta por vezes enfeitado com franjas”.
16 Arquivo Histórico da Baia, Caixa 120, pacote 253, «Regimento de sapateiro para
Joaquim Moníz de Oliveira, Baia, em Câmara. 7 de agosto de 1815».
17 Ver, por exemplo, ANRJ, Inventario de Francisco Alves de Azevedo e sua
15 Etiqueta que se bá-de guardar pelos senhores corwidados para o baile (la mulher Teresa Joaquina Caetana, maço 462, n° 8857, 1820.
noite de 24 do corrente, Impressao Regia, Rio de Janeiro, [1821]. 18 ANRJ, Cod. 789, Inventario dos bens do conselheiro Elias Antónío Lopes, 1815;
14 J. B. Debret, op. cin, Tomo I, prancha 39. «Um relógio de caixas de ouro, autor Spencer 8: Kerkins, n° 16 681, com sua caixa de
15 John Luccock, op. cil., cap. VI. tartaruga e cadeia de ouro»

252 233
mr

A maior parte destas jóias era de ouro, se exceptuarmos algumas


armas e fìvelas de prata. As pedras usadas com frequência eram as Algodâo Lã Seda Linbo
esmeraldas, as grisolitas, os topazios brancos ou amarelos, os diaman- cassa baeta crepe bretanha
tes rosas, as aguas-rnarinhas. fustão baetão fumo cambraia
Embora as ¡óias constituissern 0 principal adorno de familias endi~ ganga durante gorgorão fustao
nheiradas, outros enfeites, menos dispendiosos, eram fabricados local- pano estamenha nobreza pano
mente e enchiam de admiração os próprios estrangeiros. Ferdinand lemiste pelúcia
Denis, que morou no Brasil entre 1816 e 1819, escreveu mais tarde, no lila sarja
seu livro Brésil, que, no convento da Soledade, na Baia, se desenvol- pano cetim
vera uma indústria ainda praticamente desconhecida das mais habeis pelúcia tafetã
modistas parisienses; penas e plumas das mais variadas aves (tucanos, saieta veludo
araras, piriquitos, garças) eram arranjadas como se fossem flores em sarja
ramos e em guirlandas para enfeitar vestidos”. cetim
Quanto à produção têxtil, destinada ã confecção das varias peças
de vestuario, só na Capitanía de Minas Gerais, nos anos 70 do
séc. XVIII, se desenvolveu a produção dos tecidos de algodão mais Os tecidos denominados «casimiras›› (do francês «casimirs››) rece-
finos do que aqueles que servìam para vestir a escravaria. Esse facto biam no Brasil os nomes mais comuns de saietas e baetôes. Eram
inquietou a Coroa e o alvara de 5 de Janeiro de 1785 proibiu essa tecidos de la grosseiros fabricados na Inglaterra e cujo consumo era
manufactura, permitindo apenas o fabrico de tecidos grosseiros. muito grande por servir para o vestuario dos negros. Do Oriente em
A abolição deste alvara tornou-se possível com a presença da Corte geral vinham as sedas e também as gangas, mas em 1818 o cônsul
no Brasil e em seguida as primeiras fabricas de têxteis começaram a francês Maler propunha uma ofensiva das sedas francesas, embora
ser criadas: de tecidos de algodão e de seda; de galöes de ouro e de recomendasse sobretudo as mais leves e de uma cor que evitasse a
prata, de meias. Todas estas fabricas começaram a funcionar depois sua deterioraçao num clima quente e húmido como o do Brasil. Os
de terem obtido provisão da Real Junta do Comercio. Além destas linhos tinham um mercado mais restrito do que os algodöes, pois as
havia ainda o Colégio das Fabricas, onde trabalhavam, ã custa da Real bretanhas, objecto de luxo, eram só usadas pelas classes opulentas.
Fazenda, «varios artífices, manufactureiros, aprendizes vindos de Os tecidos de ganga, nas suas qualidades mais comuns, principalmen
Portugal» desde o ano de 1809. Em 1811, depois de as chuvas terem te aos quadrados, eram muito consumidos para o vestuario dos es-
arruinado o edificio onde estava instalado este empreendimento esta- cravos e, como vimos, vlnham sobretudo do Oriente”. Na Baia, os
tal, foram reduzidas as suas actividades, permanecendo apenas «teares comerciantes americanos Henry Hill e Joseph Holland ja em 1811
de galão, sedas lisas e lavradas, e lìtas, que é o que por ora pode fazer recebiam, por meio de embarcaçöes vindas dos Estados Unidos, gan-
alguma conta, e nada de tecidos de algodã0››2°. gas, cetins e nobrezas pretos e «veludinhos›› de várias cores”.
Enquanto a produçao local de algodão era suficiente para a fiação e Um dos aspectos a salientar no consumo de vestuario por parte da
tecelagem domésticas, destinadas a vestir as camadas mais pobres da população colonial é a função da redistribuição de peças ja usadas por
população e os escravos, os demais tecidos usados na confecção de pessoas que não tinham sido os seus primeiros consumidores. As
peças de vestuario tinham de ser importados de Portugal, antes da situaçöes em que essa redistribuição era feita eram múltiplas e varia-
abertura dos portos em 1808, e depois sobretudo da Inglaterra. das; ou era o senhor que dava uma peça usada a um escravo; ou era
Para facilitar a compreensão dos produtos têxteis usados na con- uma madrinha que deixava como legado a uma afilhada um manto ou
fecção das peças de vestuario, fornecemos a seguinte tabela elaborada uma saia; ou era o reinol sem herdeiros no Brasil que tinha 0 seu
a partir da documentação do fim do período colonial; guarda-roupa vendido em hasta pública por ocasião do inventario

2' Ver a minha publicação de parte dessa correspondencia consular na Revista da


19 Ferdinand Denis, Brésil, Paris, 1857, p. 255. Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (São Paulo). 5: 105-115, 1986-1987.
2° ANRJ, cod. 523, vol. 5, fois. sosov. 22 ¡dade wow@ de Brasil, 11° 13. 1311.
254 255
¿fé

após a sua morte; ou era o escravo que roubava aquilo que cobiçava par de brincos de pedra amarela24. Para uma mulher que nao tivesse o
para se vestir. título de dona e portanto pertencesse as camadas plebeias, as peças
Analisemos um pouco mais de perto estas situaçöes através de de vestuario assumiam um valor maior e dai a variedade de legados
alguns casos pontuais. Quando o padre Luis Monteiro Pimentel fale« feitos por Josefa Correia em 1804; «Declaro que deixo a Vicência da
ceu no termo de Vila Rica de Ouro Preto, na Capitanía de Minas Silva Leme, uma saia de durante amarelo; a Teresa de Jesus, viúva de
Gerais, sem testamento, os seus bens foram inventariados perante o Antonio Furquim de Camargo, uma saia de droguete preto; a Joana,
¡uiz dos Defuntos e Ausentes”. Entre eles, encontravam-se algumas mulher de Domingos Alves, uma baeta preta e para a filha desta por
peças de vestuario: nome Teresa de Jesus uma saia de riscado e uma camisa de bretanha;
para Maria, filha de Isabel Ribeira, uma camisa de cassa nova; para
Mariana, filha de Luzia Martins, um par de brincos pequenos de
1 fìvela de sapatos de prata com o peso de 10 outavas l$0O0 rs ouro; e para Angela Maria, minha cunhada, uma saia de chita azul e
1 volta de clérigo de prata com o peso de 8 outavas $800 rs um chapéu, tudo de meu uso.›› A circulação da roupa feminina fazia-se
1 par de meias de seda pretas com pouco uso 2$40O rs assim não apenas entre os familiares, mas também entre vizinhos e
1 casaca e veste de pano escuro com muito uso 2$000 rs amigos”.
1 recolo de camelão escuro de colo (?) forrado de baeta É interessante constatar que Maria de Almeida Silva, embora no seu
da mesma cor em bom uso 9$000 rs testamento enumere cuidadosamente algumas peças de vestuario que
1 capa de droguete preta de clérigo usada com alguns furos 2$40O rs possuia (uma saia de veludo preto, um manto, um espartilho de seda
1 chapéu de Braga muito usado $600 rS branca nova, uma coifa de cetim encarnado), os varios legados con-
1 casaco de camelão arroxado com sua mescla branca 8$000 rs sistiarn em dinheiro e portanto ignoramos o destino deste guarda-
1 veste e calçao de veludo azul em bom uso 165000 rs -roupa, uma vez que a mulher não tinha filhoszó. Provavelmente foi
12 voltas de clérigo todas usadas $900 rS leiloado.
1 par de botas usadas por muito inferiores avaliadas em $150 rs Encontramos por vezes, nos testamentos femininos, a menção
1 cinta de algodao $200 rS explícita de que a roupa de uso que estivesse velha seria dada aos
7 camisas muito velhas e rotas 1$500 IS pobres”. Observamos contudo que os homens, ao contrario das
1 sobrepeliz muito velha 1$200 rS mulheres, nao se preocupavam com o destino dos seus guarda-tou
2 lenços brancos velhos $150 IS pas após a sua morte, o que revela uma mentalidade distinta, ou
1 cana da Índía $400 IS melhor, uma sensibilidade menos aguçada em relaçao a eles. Tudo
parece indicar que, para as mulheres do fim do período colonial,
estes legados de roupas não significavam apenas um aproveitamento
Quando o irmao do padre, morador no bispado de Coimbra, se económico de bens ainda utilizaveis, mas também o desejo de deixar
habilitou à herança em 1785, estas peças de vestuario ja tinham sido uma lembrança às pessoas queridas a fim de que estas melhor as
postas ã venda em leilão e portanto passado para outros possuídores recordassem.
no Brasil. Outra forma de circulaçao das pegas de indumentaria, ou dos
Embora no fim do período colonial não se fizesse ja sentir a rare~ materiais para a sua feitura, resultava dos furtos cometidos por varias
facção da indumentaria tão vísivel nos inventarios dos séculos ante- classes de individuos na sociedade colonial. Através das devassas da
riores, o que tornava cada peça muito valiosa apesar do uso, ainda Policia do Rio de Janeiro chegamos ao conhecimento desse tipo de
surgem nos testamentos deste período alguns legados de roupa mas, comportamento; um soldado do 1" Regimento da Linha foi preso por
dada a sua menor valia, quase sempre acompanhadas de jóias. Uma furto de dois vestidos; alguém, não se sabe quem, roubara 18 pares de
dona de casa, sem filhos, moradora na Capitanía de São Paulo, deixava
em 1818 a sua afilhada, a enjeitada Gertrudes, a sua roupa de uso e um 2* Assia ordem 457, Lara 5, uvfo 9, fois. 105-106.
25 AESP, ibm, fol. 159.
26 Assia ana., fol. 159.
25 ANTT, Arquivo dos Feitos Findos, Justificaçöes do Brasil, maço 4. 2” AESP, fbfd., fol. 165.

256 237
É'

sapatos enquanto outro individuo se apoderara de um par de botas; mulheres quiseram então começar a adoptar no Brasil as elegâncias
alguém roubou da casa de um bacharel, cuja porta fora aberta com europeias, sobretudo nas grandes cidades.
uma gazua, parte da sua roupa. Do mesmo modo, pecas de tecido Na Baia, um mestre cabeleireiro espanhol cortava cabelos femini-
atraíam a cobiça das camadas mais pobres da população. Temos nos «a última moda de Madrid e Cadiz», compondo além disso cabe-
noticia do furto de «uma peça de belbute com salpicos de ouro», leiras que não se distinguiam do cabelo natural32_ Estamos longe do
de uma peça de pano tirada de uma loja, de uma peça de ganga de artificio das perucas brancas do séc. XVIII, e pretendia-se apenas o
seda furtada por um escravo e de uma peça de casimira por outro natural com a ajuda da arte.
escravozs. Depois de exterminado o dragao napoleónico, a presença francesa
Num estudo recente sobre a criminalidade escrava no Rio de Janei- tornou-se predominante nesta area. Girard, cabeleireiro de princesas,
ro, o roubo de roupas era o que tinha percentagem mais elevada nas penteava as senhoras «na última moda de Paris e Londres» e possuia
prisöes por crimes contra a propriedade entre 1810 e 1821. E o mais outros talentos destinados a embelezar homens e mulheres: «Tinge
interessante é que as vitimas da maior parte desses roubos eram com os pós de George com a última perfeiçao o cabelo, as sobrance-
outros escravos, possivelmente negras lavadeiras que transportavam lhas e as suíças, sem causar dano algum a pele nem à roupa; e tem uma
trouxas de roupa a cabeça desde os riachos ou fontes vizinhos”. pomada que faz crescer e aumentar o cabelo.›› E mais, numa terra de
A presença da Corte e o afluxo de estrangeiros tornou mais vital, gente de cor, anunciava «agua maravilhosa de M. Martin de Paris, para
para as altas camadas da sociedade colonial, seguir a moda europeia fazer a pele da cara branca››55. Este mesmo cabeleireiro francês anun-
na forma de trajarjo. Como escrevia o prussiano Leithold, «o mundo ciava também no Rio de Janeiro os seus préstimos, assim como muitos
elegante veste-se, como entre nós, segundo os últimos modelos de outros conterrâneos seus: César Bouliech, alfaiate, fazia vestidos «a
Paris», muito embora isso por vezes significasse uma inadequaçao moda do mais moderno gosto de Paris», Tornier, chapeleiro parisien-
climática. se, anunciava «chapéus redondos e armados de todas as qualidades
As francesas que, por razöes familiares ou económicas, se instala- no último gosto» destinados aos consumidores masculinos, enquanto
ram no Brasil depois da paz europeia, foram certamente das que mais Mesdames Suisse e Neveu ofereciam ã clientela carioca «um grande
contribuiram para divulgar o gosto pelas modas parisienses Uma sortimento de chapéus de senhora no último gosto», Mme_ Lusgan
dessas damas, casada em segundas núpcias com um português, man- dispunha de uma grande variedade de «vestidos, chapéus, flores,
dava pedir para França, entre outras coisas, modelos de vestidos, penas» além de «todas outras qualidades de moda para mulher».
desenhos de penteados, amostras dos bordados mais modernos, Era a invasão francesa das <<modas›› no plural, tradução imediata do
amostras de pontos, fìos de algodão vermelho e azul para bordar, etc_31. francés, no sentido de adornos, enfeites varios, acessórios_
O fenómeno da moda tornou-se mais vísivel depois da transferên- Ja em 1815 um funcionario público relatava numa carta para a
cia da Corte, da abertura dos portos e da presença maciça de estran- família em Lisboa que de alguns dos portos de França tinham chega-
geiros. Quer no modo de trajar, quer no modo de pentear, as do alguns navíos «com muitas modas, enfeites e bugiarias››_ Com
efeito, como podemos confirmar através do cônsulgeral da França
no Rio de Janeiro, os primeiros envios de mercadorias francesas con-
2” ANRJ, cod. 401, vol. 1, Policia, Devassas, 1809-1317. sistiram fundamentalmente em artigos de luxo que, embora adquiri-
29 Leila Algtanti, 0 feitor ausente (___), Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 176-177. dos ansiosamente pela população rica e sofisticada, em breve
Também no mundo rural do termo da vila de S. Salvador dos Campos de Goitaca- saturaram o mercado. E, segundo os calculos do cônsul Maler, apenas
zes, na Capitanía do Rio de Janeiro, a criminalidade escrava era alta em furtos mas a
um oitavo da população urbana do Rio de Janeiro consumía esses
diferença entre as prisôes de escravos efectuadas e os processos efectivamente
montados, revela que a maior pane era de objectos de pouca valia (Silvia Lara, objectos de luxo_
Campos de violencia, p. 275). Para se fazer uma ideia da oferta dessas modas e enfeites, basta
5° Enquanto durou a guerra na Europa, a influência predominante era a inglesa, percorrer a publícidade feita na Gazeta do Rio de janeiro.- Charles
pelo menos em algumas regiöes do Brasil. John Mawe comentou que, nas reuniòes a
noite para que fora convidado em Vila Rica, na Capitanía de Minas Gerais, o estilo
inglês de vestir era o mais comum entre as mulheres que nelas tomavam parte
( Viagens ao interior do Brasil, São Paulo, 1978). 32 ¡dade d 'Ouro do Brasil, n' 97, 1812.
3 Ferdinand Denis, Lettresƒamüiêres (___), Coimbra, 1957, p. 119. 55 1bf¢,n° 1, 1s16.

258 239
Durand anunciava luvas, leques de toda a sorte, penachos, fìtas, fìlós tecidos leves como a seda, o filó ou a cassa, outros de la, mas quase
bordados de ouro e prata, flores artificiais, garças, véus; Bellard vendía sempre bordados; os chapéus de palha para senhoras, guarnecidos ou
plumas de varias cores, rendas de França, fitas; Amerval oferecia nao; os varios tipos de coletes de seda, fustao, cassa; as gargantilhas;
«bolsas para a cabeça, de flores e cabelo», sacos de veludo para os leques, não só de papel com pinturas, mas também «de pelica da
senhoras «muito bem bordados», entremeios, «lenços para o pes- Italia››; as ligas elásticas; as luvas compridas ou curtas, de algodao,
coço de senhoras, de renda bordados». seda ou pelica; as meias de seda, de algodão bordadas ou «fabricadas
Os comerciantes ingleses pouco competlam com os franceses nes- a agulha››; os ornamentos de cabeça como penachos e plumas; as
ta area do comercio de modas. Apenas um certo Mr. Harris anunciou, pulseiras de pérolas com fechos de diamante; as toucas de veludo
em 1820, «um sofrimento de ricas flores de ouro e prata, grinaldas do ou bordadas de ouro e prata.
mesmo e de pérolas, coletes para senhoras e meninas, de todo o Quanto a roupa interior, masculina ou feminina, é muito difícil
tamanho, do último gosto moderno, tonquins, cabeleireiras, e rendas encontrar referências na documentaçao, exceptuadas as camisas ou
de prata e ouro, guarniçöes para mantos, leques de pelica, e outras ceroulas masculinas. Uma inglesa que esteve no Brasil nas vésperas da
mais modas do último gosto». independência, Maria Graham, relatou que as baíanas não usavam
A par destes comerciantes estabelecidos constatava-se ainda a ven- corpete (stay) e que a roupa branca nem sempre era vestida antes
da informal, por particulares, de todo o tipo de enfeites. Luis dos da roupa exteriotjó.
Santos Marrocos escrevia para a irmã em Lisboa, aconselhando-a acer-
ca das mercadorias a serem enviadas para a venda no Rio de Janeiro:
«Tudo o que são enfeites de senhoras tem aqui muita saida, pois ha
muito luxo; mas advirto-te que não mandes chapéus ou toucados
semelhantes, porque é de grande incómodo o seu transporte, por
ser cousa de pouco peso e muito volume, e por essa razão deves
meditar na escolha dos enfeites, como são ramos de flores, grinal-
das, anéis, pulseiras, brincos, e tudo o mais de enfeites que for pre-
parado de seda ou de qualquer outra droga de pouco volume, como
por exemplo, laços para chapéus de todas as grandezas, azuis e ver-
melhos, e também todos pretos, porque destes usam até clérigos; e
também dos laços feitos de pano, porque destes se principia a usar
agora; manda também meias feitas, linha em meada ou novelos, ou
negalhos_››34
Este comércio informal era dirigido sobretudo as damas da Corte e
um funcionario público como Marrocos nao hesitava em servir de
intermediario, como vemos pelo seguinte trecho da carta em que
oferecia os seus préstimos a irmã; «Um amigo meu trouxe de Lisboa
uma condeça cheia de peças de fitas francesas, e pedíndo-me que lhas
passasse pelas senhoras do Paço, encarreguei-me da sua venda, e
tendo-lhe feíto ganhar mais de 50 moedas_››
Não vamos enumerar aqui todas as «modas›› então em uso na
segunda década do séc. XIX, cuja descriçao fìzemos noutro lugarãs,
mas apenas chamar a atenção para os xailes então em voga, uns de

54 Luís dos Santos Marrocos, op. cif, Carta 178.


35 Ver o meu livro Cultura e sociedade no Rio dejaneìro (1808-1821), pp. 58-40. 56 Maria Graham, op. cif., p. 155.

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4
Formas de locomoçao e viagem

Dentro das cidades e das vilas o meio de transporte variava con-


forme a topografia e o nivel de riqueza dos seus habitantes. Enquanto
no Rio de Janeiro era possível utilizar veículos de rodas, na Baia, a
comunicaçao entre a cidade alta e a cidade baixa, ligadas entre si por
íngremes ladeiras, só se podia fazer por meio de cadeiras carregadas
por escravos. Essas cadeirinhas eram por vezes ornamentadas e com
cortinas e transportavam damas de uma condiçao social mais elevada.
Mulheres de camadas mais populares utilizavam a rede em vez da
cadeirinha.
Os escravos, ou outra classe de carregadores, transportavam em
geral as mulheres em redes protegidas do sol e da chuva por uma
especie de manta suspensa da vara onde era enfìada a rede e que caia
de ambos os lados, como se pode ver num desenho de Carlos Juliao_
Para curtas distancias nos arredores, por exemplo, para viajar da
cidade para uma chacara, utilizava-se por vezes uma carroça com
cortinas, puxada por uma mula e conduzida por um escravo a pé,
ou então um carro puxado por bois.
Sede da Corte, o Rio de Janeiro passou a dispor de uma maior
variedade de meios de locomoçao_ A Gazeta do Rio dejaneiro anun-
ciava com frequência a venda de carrinhos para um ou dois cavalos,
cobertos ou descobertos, «para cordöes e boleia››; carros de quatro
rodas, «de cabeça de deitar para tras››; carruagens de portas, carrua-
gens de vidros, carruagens de cortinas, carruagens «à Daumont» com
arreios para quatro cavalos, carruagens de duas ou quatro rodas, seges
de boleia, seges montadas em molas, seges aparelhadas de casquinha;
seges de duas ou quatro rodas; traquitanas de porta, de cortinas ou de
vidros _

Antonio de Morais Silva, no seu Dtcronarío de Lingua Portuguesa, ediçao de


1813, define a sege como uma «carmagem de passeio, pequena, de um só assento,
com cortina por diante ou vidraça». O inglês Chamberlain descrevia as seges do Rio

243
Quem não tinha posses para comprar algum dos tipos de víatura à Brasil pastavam numerosas manadas de cavalos e o viajante nessa
venda no Rio de Janeiro, costumava aluga-los para percorrer maiores região não encontrava a menor difìculdade em trocar de montaria
distancias ou para se apresentar melhor em público em dias de festa quando a sua parecía cansada. Era facil comprar um cavalo novo para
ou de «grande funçao», como então se dizia. Havia cocheiras que prosseguír viagem6_
alugavam seges «muito asseadas e com boas parelhas» pelo preço Para aqueles que pretendiam percorrer longas distancias no menor
de 5 patacas, tanto de manhã como ã tarde, mas so «até ã distancia tempo possível (era este em geral o objectivo daqueles que se deslo-
da praia do Botafogo ou de S. Cristóvao››2_ Como a utilizaçao de uma cavam em viagens de negocios), o sistema adoptado era outro. Quan-
sege implicava também o uso de um bolieiro, algumas cocheiras, do o negociante inglês John Luccock pretenden ir da Capitanía do Rio
como por exemplo uma na tua da Misericordia, alugavam também Grande de S. Pedro, no sul, para 0 Rio de Janeiro, escolheu o seu
«criados com toda a decência, tanto para boleia como para traseira››5_ itinerario por Laguna e dali para a Capitanía de Santa Catarina, tudo
Em 1818 deparamos com um anúncio que nos esclarece melhor isto por terra. Contratou então um homem como guia que lhe forne-
quanto ao sistema de aluguer. Numa cocheira encontravam-se «muito ceu 20 cavalos para a jornada, com sela e arreìos para aquele que 0
boas seges para alugar, boas parelhas e criados com libres, pelo preço negociante montasse. Luccock pretendia ir por estradas frequentadas,
de 2$400 por tarde ou manhã, isto nao so nos dias de semana, como em nas quais encontraría maior facilidade de abastecimento e acomoda-
domingos e dias santos, não se alterando o preço aquelas pessoas que ção. Quanto aos cavalos que nao iam montados, eles seguiam a frente
forem fregueses da casa, ainda mesmo nos dias de grande função››"/*. dos cavaleiros. E o inglês comentava: «Os viajantes capazes de supor-
O prussiano von Leithold, em 1819, considerava os preços pedidos tar grandes esforços chegam por vezes a cansar quatro a cinco cavalos
demasiado elevados para a qualidade das viaturas, as quais alias de- por dia, de modo que, ao que se diz, a viagem de S. Pedro a Santa
viam ser reservadas de vespera não se aceitando aluguéis por periodo Catarina ja tem sido efectuada em quatro dias.››7
mais curto que meio dia; «São carros de duas rodas, pequenos, semi- Podemos classificar os viajantes em varias categorias, entendendo
-cobertos e forrados por dentro, de couro vermelho ou verde e tao aqui por viajante nao o individuo que se desloca numa distância
estreitos que mal podem neles sentar-se duas pessoas. Duas cortinas relativamente curta para ir da sua fazenda a vila mais proxima ouvir
de couro protegem pela frente contra a chuva e de cada lado ha uma missa, mas sim aquele que percorre longas distancias, atravessando
janela de correr, que deixa ao menos respirar nas horas de calor. Duas mesmo varias Capitanias durante alguns meses e mesmo anos.
mulas magras, uma delas montada por um bolíeiro quase sempre Havia familias que se deslocavam de uma regiao para outra, nego-
embriagado, puxam esse veículo, que mais se assemelha aos carri- ciantes que iam tratar das suas actividades mercantis, bispos que
nhos de feira.››5 vísitavam as suas dioceses ou ouvídores que saiam em correição pela
Fora do perímetro urbano, os cavalos ou as mulas constituiam 0 sua comarca, tropeíros que conduziam «tropas›› de mulas ou vaquei-
meio de transporte mais adequado. Nos vastos campos do sul do ros as suas boiadas, capítaes do mato que perseguiam escravos fugi-
dos, naturalistas que buscavam novas especies vegetais, animais ou
minerais, enfím, pelas estradas e caminhos do Brasil do fim do perio-
de Janeiro como idénticas as de Lisboa, embora fossem mais toscas mas, por outro do coloníal encontravam-se as mais variadas gentes com as mais di-
lado, mais ricamente omamentadas. Quanto ã traquitana, termo que não consta do versas motivaçöes para se dirigirem de um local a outro, e enfrentando
Dicionário acima mencionado, era um tipo de viatura muito anunciado na Gazeta do
por isso as maiores dificuldades e perigos_
Rio de janeiro.- em 1810 vendía-se «uma traquítana de vidros, ultimamente chegada
de Lisboa, pintada na última moda, com guarníção para duas bestas, molas inglesas e
dois jogos de rodas pequenas» (nfl 15).
2 Gazeta de Rm de janeiro, 11° 75, isos. 6 No interior da Capitanía de S. Pedro, o negociante inglês John Luccock fechou
3 Jara, 11° 59, 1s1o_ um bom negocio, apesar das suas desconfiancas iniciais; «O olhar do animal revelava
4 M11, 11° 34, 1318. maior fogosidade do que aquela com que eu estava habituado, parecendo apenas
5 Von Leithold e von Rango, op. Cir., pp. 22-25. Era mais facil possuir um cavalo, domado; os sínais de desconfíança que demonstrei ao montar foram tais, que
apesar do elevado Custo da sua manutenção. Quem não quisesse fazer esta despesa levaram 0 velho a garantir que o animal era perfeitamente dócil. Verifiquei que,
podia também encontrar para alugar, nas cocheiras carìocas, «cavalos muito bons e apesar de não contar mais de 4 anos, bem merecia todos os louvores de seu
bem aparelhados», alguns «com bom selim ã inglesa» (Gazeta do Rio de janeiro, dono» (Op. cif., cap, VII).
11° 59, 1810). 7 John Luccock, op. cit., cap. VII.

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Nas estradas mais percorridas encontravam os viajantes ranchos tantas as produçoes que eu nao sei a que lado me volte_›› E o seu
para pernoitar, vendas para comprar mantìmentos; mas nos caminhos entusiasmo transparece tambem da carta que acompanhava a primei-
mais dificeis e mais ísolados so podiam contar com a hospitalidade e ra remessa para o Real Gabinete: mandava uma cabeça de Tapuia,
boa vontade dos donos de sitios e fazendas para nao dormírem ao peça rara que não existia em nenhum dos Gabinetes da Europa,
relento_ acompanhada de «uma enfiada de dentes, uns poucos de colares, e
As bagagens ou mercadorias eram transportadas no dorso de mu- braceletes de pernas››_ Enviava ainda nessa ocasiao frascos com plan-
las e, quando era necessario atravessar algum rio, descarregavam-se os tas e estampas de animais_ E a partir dai foi sempre remetendo
animais, que passavam a corrente a nado, sendo os fardos colocados produtos naturais e etnologicos com uma relação minuciosa de to-
em canoas em tudo semelhantes as utilizadas pelos indios. dos os objectos.
Os viajantes sempre contratavam guias, fazíam-se acompanhar dos Esta viagem, conquanto a mais longa e científicamente a mais rica,
seus escravos ou criados, e aqueles que empreendiam trajectos mais não foi contudo a única realizada por naturalístas portugueses. Socio
longos tinham o cuidado de levar consigo cartas de recomendação da Academia Real das Ciências de Lisboa, tal como Alexandre Rodri-
para serem bem acolhidos pelas autoridades locais. Isto tornava-se gues Ferreira, Manuel de Arruda Camara, natural dos sertöes de Per-
ainda mais necessárío quando os viajantes eram naturalístas nacionais nambuco, deixou um manuscrito intitulado «Centúrias dos novos
ou estrangeiros que recolhiam especies para envíar para os Gabinetes generos e especies das plantas pernambucanas» que recolhera duran-
de História Natural da Europa, precisando de os acondicionar bem. te as suas viagens pelo interior e para cujo desenho contara com a
Antes da abertura dos portos em 1808 so os funcionarios públicos ajuda de um professor do Seminario de Olinda, seu discípulo e que
enviados pela Coroa portuguesa percorriam o vasto territorio brasi- com ele viajara_
leiro, com o objectivo nao só de demarcar fronteiras, conhecer rios e Bastante longa foi também a «expediçao botâníca» organizada por
penetrar nos sertöes, mas tambem de realizar estudos de Historia Fr. Jose Mariano da Conceição Veloso, que se iniciou em 1782 e se
Natural, incluindo estes as obsetvaçöes antropologícas tao necessa- prolongou ate 1790, dai resultando as descriçöes da flora fluminense
rias ao conhecimento das populaçöes indigenas que ainda víviam que tanto prestigio deram a este frade naturalista. Desta expedição
ísoladas nas matas e florestas. partíciparam 40 pessoas (metade eram escravos) e Fr. Veloso, que a
A mais celebre destas viagens foi a realizada por Alexandre Rodri- dirigía, era ajudado por dois frades, um para desenhar as especies e
gues Ferreira pelas Capitanias do Grao-Para, Rio Negro, Mato Grosso e outro para escrever as definiçoes científicas, e ainda 13 militares,
Cuiabá, entre 1785 e 17928. Este naturalmente viajou acompanhado de alguns dos quais qualificados para «debuxar as plantas». É interessan-
dois «riscadores››, Joaquim José Codina e José Joaquim Freire, e de te obsetvar que, ao lado da classificação e da descriçao das plantas da
um «jardineiro botânico», Agostinho Joaquim do Cabo. O naturalista região do Rio de Janeiro, aparece sempre, dentro da mentalidade bem
português estudara em Coimbra sob a orientaçao de Domingos Van- pragmática da epoca, o seu uso medicinal ou economico.
delli e, enquanto estudante, fora «demonstrador de História Natural». Antes da abertura dos portos, em 1808, poucos estrangeiros obti-
Alem disso, examinara os produtos do Real Gabinete, fazendo as veram autorízaçao do governo português para fazerem expediçoes
experiencias que lhe eram encomendadas. científicas no Brasil. Temos apenas noticia de que em 1804, o natura-
O objectivo desta «viagem filosófica» ao Brasil, segundo uma carta lista Ieber esteve no Para, dirigindo-se em seguida para a Capitanía do
do ministro Martinho de Melo e Castro para o governador do Para, Rio de Janeiro a fim de completar a sua colecçao de plantas e outras
era <<examinar, e descrever tudo o que houver nesse Estado relativo a produçöes naturais, de que se achava encarregado pelo seu corres-
Historia Natural, e em recolher, e preparar o que se deve remeter a pondente de Brunswick, o conde de Hoffmansegg_
esta Côrte››. Ora, quando Rodrigues Ferreira chegou ao Para, a sua Com a presertça da Corte portuguesa no Rio de Janeiro a actividade
reacção ao ambiente que o rodeava fica bem patente numa carta para cientifica dinamizou-se, quer do ponto de vista nacional quer do
Lisboa; «A terra em si, Sr. Exmo., é um Paraíso; aqui mesmo são ponto de vista estrangeiro. lngleses, franceses, alemães, austriacos,
suecos, russos começaram então a percorrer o Brasil, enviados por
mecenas das Cortes europeias que pretendiam enriquecer os seus
8 Ver o magnifico catalogo Memórías da Amazónia, publicado em 1991 pelo Gabinetes de Historia Natural com as produçöes de uma vasta região
Museu e laboratorio Antropológico da Universidade de Coimbra. antes inacessível, excepto para os portugueses.

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ja em 1810 Wilhelm von Eschwege se encontrava no Brasil, depois teger da chuva e da humidade. Com três paus unidos pelas pontas e
de ter residido e pesquisado em Portugal. Ele era extremarnente activo fincados no chão fazia-se uma tripeça para colocar um caldeirão para
no campo da Mineralogía e, por essa razão, o seu trabalho minera.ló« cozinhar. A rede era atada em duas ârvores e sobre ela colocava-se
gico concentrou~se quase que exclusivamente na Capitanía de Minas também um couro de boi como protecção contra a chuva, embora o
Gerais. Logo em 1811, a Academia Real das Ciências de Lisboa publi- viajante devesse empreender as suas viagens no tempo seco, ou seja,
cava um trabalho seu intitulado «Extracto de uma memóna sobre a de Maio a Outubro, e fìcar parado fazendo a preparação dos animais e
decadência das minas de ouro da Capitanía de Minas Gerais, e sobre das plantas durante a época das chuvas, até porque, não havendo
varios objectos montanisticos». Viajou em seguida pelo Brasil até muitas pontes para atravessar os inúmeros rios, estes ficavam muito
1
1821, chegando â seguinte conclusão; «os recursos minerais do Brasil cheios, não sendo portanto possível passá-los a vau.
principalmente os que mais poderiam interessar, ou não estão bem Este tipo especial de viajantes encontrava maiores dificuldades do
conhecídos, ou são muito escassos, excepção feita do ouro, do ferro e que os demais, exactamente pelos seus interesses bem específicos que
das pedras preciosas». Não ha dúvida de que os estudos mineralógi- os levavam por vezes a percorrer regiöes mais inóspitas e despovoadas.
cos estavam, no fim do periodo colonial, muito mais atrasados do que O príncipe Maximiliano de Neuwied, que esteve no Brasil entre
os de Botånica ou de Zoología, até devido ã falta de laboratorios onde 1815 e 1817, foi talvez o viajante estrangeiro que melhor explicitou
se pudesse fazer a analise dos minërios encontrados. as condiçöes de conhecimento das produçöes naturais brasileirasg.
A intenção de conhecer 0 Brasil levou G. W. Freireyss a abandonar «Quem quer que deseje percorrer utilmente o interior desse vasto
São Petersburgo em 1813 e a dirigir-se, depois de uma estada de nove território, deve destinar a isso vários anos e dirigir os seus planos
meses no Rio de Janeiro, para o interior de Minas, mas os seus inte- de acordo com tal determinação. Por exemplo, para alcançar Goiás
resses, ao contrário de von Eschwege com quem contactou naquela e Cuiabá, dois anos não são bastantes; que tempo então não será
Capitanía, eram sobretudo Zoológicos, botânicos e antropológicos. A preciso para atravessar o Brasil até às fronteìras do Paraguai, ate o
este respeito escrevia ele em 1815, no prólogo do relato da sua via- rio Uruguai, ou até os confìns do Mato Grosso, onde uma pirâmide de
gem; «não hesitei diante de fadigas, nem de perigos para procurar mármore, talhada em Lisboa, marca os limites do reino na foz do
estes autóctones brasileiros nas suas matas e observa-los no seu esta- jaurul»
do natural.›› Viagens longas, portanto, e incómodas, uma vez que escolhia as
Tendo viajado para Minas Gerais no mês de Julho, que é o Inverno rotas menos conhecidas, como explicava; «Â minha chegada ao Brasil,
I
no Brasil, Freireyss desistiu da recolha de plantas e concentrou-se na achei melhor orientar as minhas excursöes para a costa oriental do
Zoología, coleccionando num mês cerca de 900 mamíferos e pássaros pais, que, em grande parte, era inteiramente desconhecida ou que, até
e uma porção de insectos. Para carregar as especies colectadas preci- então, não tinha sido absolutamente descrita» Era uma faixa do
sava o naturalista de garantir animais para o seu transporte e Freireyss «sertão baixo», com 198 léguas, entre 0 Rio de Janeiro e a Baia,
aconselhava não menos de 4 mulas, conduzidas por um bom tropeiro ocupada por tribos indígenas ainda por domesticar e onde pratica-
que conhecesse bem os animais e as suas manhas e também os mente não existiam colonos. Só um pequeno número de caminhos,
caminhos, por vezes tão difíceis. Uma das mulas devia estar sempre acompanhando os rios, tinha sido aberto com dificuldade. Era nessas
livre para carregar as provisöes compradas na última povoação, dado florestas da faixa costeira que os indios se refugiavam, fugindo do
que poucas vendas existiam a beira das estradas. Os naturalistas ti- contacto com os brancos do litoral, e portanto eram elas que atraíam
nham que levar consigo pólvora, chumbo, espingardas, alguns utensi- o viajante com alma de etnólogo.
lios de cozinha, uma rede para dormir e as ferramentas necessárias Havia contudo que se preparar para enfrentar uma serie de obstá-
para ferrar os animais e consertar os arreìos. culos; a falta de víveres, não so para o chefe da expedição como
Freireyss aconselhava etapas curtas de viagem, não mais de 5 ou 4 também para todos os seus auxiliares; dificuldades em transportar
léguas, ou seja, mais ou menos 18 ou 24 km, não só para poupar os os objectos de História Natural; chuvas de longa duração; falta de
animais como para ter tempo para fazer mais obseivaçöes. Seguindo
esta regra, 0 naturalista muitas vezes dormía ao relento e, nesse caso,
era preciso escolher um local com pasto para os animais. As cargas J
9 Maximiliano, príncipe de Wiedvhleuwied, Viagem ao Brasil, Belo Horizonte,
eram retiradas, empilhadas e cobertas de couros de boi para as pro- Itatiaia, 1989.

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?

pastagem para os burros ou mulas que transtportavam as cargas; au- rior do Brasil frascos com gargalo suficientemente largo para guardar
sencia de mapas para as regiöes a percorrerl . as especies e de qualquer modo o seu transporte era sempre precario
As dificuldades encontradas levaram o príncipe Maximiliano a re- uma vez que os burros, de vez em quando, deitavam toda a carga ao
digir um capítulo final do seu relato com instruçöes úteis aos natura- chão e perdia-se então uma boa colecção.
listas que quisessem fazer colecçöes. Primeiro passo: contratar um Para os peixes procedía-se de modo semelhante, embora muitos
tropeiro que em geral levava um lote (sete animais) de burros ou fossem demasiado grandes para se poder recorrer ao processo da
mulas para transportar-em a carga. Estes animais eram baratos no aguardente e nesse caso o naturalista limitava-se a enchê-los de algo-
Rio Grande, em São Paulo ou Minas Gerais, mas no Rio de janeiro o dão, procedimento igualmente adoptado para alguns insectos como
preço variava entre 25 e 33$000 réis cada animal. O tropeiro era quase as aranhas, por exemplo, que não podiam ser simplesmente espetadas
sempre um individuo dotado de grande resistência fisica: dormía no com alfinetes, dado o seu tamanho. Quanto aos vermes e moluscos,
chão, se necessárío, e muitas vezes caminhava ao lado das bestas em eram conservados em álcool.
vez de seguir a cavalo. Cada animal carregava duas caixas de madeira, Com tantos trabalhos no meio da viagem havia que fazer de vez em
mas estas só eram bem feitas em centros importantes como Rio de quando paragens mais demoradas e, sempre que possível, enviar as
Janeiro, Vila Rica ou Baia, sendo aí muito caras. Era nelas que se especies já conservadas para um depósito comum, onde depois se
transportavam os produtos naturais, adaptando o seu interior âs riam recolhidas no fim do itinerario. Isto só era possível quando no
aves, mamíferos, insectos, acondicionados em algodão, «muito barato litoral houvesse embarcaçóes para as levar ao depósito combinado,
em toda a parte, principalmente nos lugares distantes do litoral: en- caso contrário teriam de ser contratados mais homens e mais animais
quanto no sertão da Baia se pagava a 45000 reis a arroba, na cidade para as carregarem, o que ficava muito dispendioso.
cobrava-se de 8 a 10$000 reis». Enquanto o príncipe Maximiliano demorou 2 anos na sua viagem
As colecçöes de mamíferos e aves implicavam a contratação de pelo litoral, o botânico von Martins e o zoólogo von Spix percorreram
caçadores bem providos de pólvora e chumbo que, pelo jornal de o vasto território brasileiro em 5 anos, de 1817 a 1820. Eles foram
320 reis, atiravam indiscriminadamente sobre tudo o que viam para enviados com a ajuda financeira do rei da Baviera e com a colaboração
depois o naturalista escolher as especies que lhe interessavam. A da Academia de Ciências de Munique. Embora a viagem estivesse
pólvora e 0 chumbo deviam ser comprados na Europa, pois no Brasil pensada desde 1815, só o casamento da arquiduquesa da Ãustria,
eram muito mais caros. D. Leopoldina, com o herdeiro do Reino Unido de Portugal, Brasil e
Os animais morros eram preparados «sem empregar arames›› e Algarves possibilitou a sua concretização em 1817, uma vez que no
colocados sobre algodão, ficando alguns dias expostos ao sol. Se séquito da noiva seguiam cientistas austríacos, aos quais se juntaram
contudo era necessárío partir do local antes da secagem completa, os dois naturalistas bávaros.
as peles ou penas eram envoltas em algodão para se conservarem A cargo de Spix estava a observação do reino animal, incluindo
na posição deseiada. «Prega-se uma etiqueta em cada uma, onde se também tudo o que dizia respeito ao homem: «as diversidades, con-
anota o sexo do animal.» forme os climas; o seu estado físico e espiritual; a morfología e ana-
Era mais complicado coleccionar repteis do que mamíferos ou tomia de todas as especies de animais, dos inferiores aos superiores,
aves, pois em poucos lugares se encontrava uma aguardente pura e os seus hábitos e instintos, a sua distribuição geográfica e migraçöes; e
forte para a sua preservação. «A comumente chamada aguardente de igualmente fará observaçóes sobre os restos existentes debaixo de
cana é muito fraca; precisa ser frequentemente renovada nos bocais terra, esses mais seguros documentos do passado e do sucessivo
em que se guardam os repteis que, sem essa precaução, não ficariam desenvolvimento da criação.›› Vemos assim que os estudos sobre os
conse1vados.››“ Alem disso, tambem não era fácil encontrar no inte- indígenas, e tambem sobre a população branca, negra e mestiça, eram
objectos próprios da História Natural e só anacronicamente se pode
falar dos seus interesses científicos como antropológicos.
1° «O de Arrowsmith está cheio de erros; omite rios importantes da costa oriental Martius encarregou-se da Hora tropical e os seus objectivos foram
e em contrapartida assinala-os onde não existem. Deste modo, o melhor mapa do
Brasil ate então conhecido é quase inútil para os viajantes.›› (Maximiliano, op. cit.,
tambem claramente explicitados: «Além de estudar, de preferencia, as
introdução). familias de plantas endémicas, competia-lhe especialmente investigar
U Maximiliano, op. cít, p. 493. aquelas formas que, pelo parentesco ou identidade com plantas de

250 251

outros países permitem concluir qual a patria de origem e a sua mais insólitas e desconhecidas, os negociantes tambem tomavam al-
sucessiva propagação sobre a terra. Pretendia ele fazer essas pesqui- gumas precauçóes. No extremo sul do Brasil, o inglês john Luccock,
sas levando em conta as relaçóes climáticas geológicas, e por essa na segunda decada do séc. XIX, fez uma viagem pelo interior da Ca-
razão estendê-las tambem aos mais húmidos membros do reino das pitanía do Rio Grande de S. Pedro a fim de vender mercadorias que
plantas, tais como musgos, liquens e cogumelos.›› Com o estudo não tinham encontrado mercado nas vilas do litoral. E preparou-se
daquilo a que chamava a anatomia e o desenvolvimento das plantas convenientemente para a sua viagem: «O primeiro cuidado, em cada
tropicais, Martius procurava chegar às «leis da vida vegetal em geral» e jornada, consistía em arranjar cavalos e um guia. Para este oficio usa-
também, atraves dos vestigios da vegetação anterior, ã fundamentação -se geralmente um soldado, mas nós preferimos alguém que não per-

dos «conceitos geológicos». tencesse ao exercito, por fazermos questão de que fosse um branco.
Não descurava, contudo, Martius o estudo de uma Botânica mais Era costume munir-se a pessoa de um saco de farinha e de uma cabaça
pragmática: ele queria também conhecer as plantas medicinais assim para nela beber. Cada um dos membros principais da expedição
como as que eram utilizadas para fins industriais. E, como todos os tomou consigo suas pistolas, levando às vezes uma espingarda ou
naturalistas de então, Spix e Martius remeteram produtos naturais um facão; não deixou o guia de se munir de sua faca, laço e bo-
para completar as colecçöes da Academia de Ciências de Munique, las.››12 Convem notar que estes dois últimos objectos só eram usados
Alias, os seus colegas, académicos de outras áreas, também lhes ti- no sul do Brasil para laçar e imobilizar o gado que se queria apanhar.
nham pedido um certo número de observaçöes, sobretudo no domi- Quanto ã preferencia de Luccock por um branco como guia, e por
nio da mineralogia, da física e mesmo da área histórico-filológica essa razão não ter escolhido um soldado, explicase por nesta região a
interessada no estudo das linguas indígenas, do folclore, etc. Ambos maioria dos recrutas ser constituida por indios.
saíram do seu pais com uma serie de leituras já feitas dos relatos ate Conforme as regiöes, a necessidade de estradas faziase sentir com
então publicados sobre o Brasil, o que em geral se observa em todos maior ou menor intensidade. Através das planícies do sul, por exem-
os viajantes da segunda decada do séc. XIX, ansiosos por confrontar as plo, não havia caminhos visíveis. já dentro de matas ou os viajantes
suas observaçöes com as dos seus antecessores. iam abrindo, pelo seu contínuo trãnsito, uma trilha ou, em lugares de
Os dois naturalistas bávaros incorporaram-se portanto na expedif mais difícil acesso, tinham eles de abrir uma «picada›› para poderem
ção científica austriaca que nessa ocasião se dirigía também para o avançar. A política de abertura de estradas pelo governo dependía das
Brasil acompanhando a princesa D. Leopoldina. Era composta pelo Capitanias e das suas necessidades económicas. Por razóes estratégi-
l
Prof. Mikan, de Praga, para Botânica e Entomología; pelo médico cas e militares, os governantes preocupavam-se sobretudo com a
Dr. Pohl, para Mineralogía e Botânica; por Natterer, assistente do criação de postos para a travessia, por jangadas, dos rios mais largos
Museu de História Natural, para Zoología; por Thomas Ender, pintor e profundos. Não eram contudo apenas os militares dos postos avan-
de paisagens; Buchberger, pintor de plantas; e H. Schott, jardineiro. çados no sertão que as utilizavam; os civis também se podiam servir
O relato desta viagem, publicado em Munique em 1823, e o mais delas. Nas principais estradas públicas, contudo, construíam-se pontes
completo de quantos nos foram deixados pelos viajantes naturalistas. sempre que o exército dispunha de engenheiros para dirigir a sua
Não só a área percorrida foi a mais vasta, como a capacidade de construção.
recolha de informaçöes (demográficas, administrativas, linguísticas, Não há dúvida de que o amplo território brasileiro exigía a abertura
etc.) superou a de outros naturalistas. Chegaram mesmo a registar de estradas e caminhos, a construção de inúmeras pontes, o estabe
musicalmente cançöes populares de São Paulo, de Minas Gerais, e lecimento de correios entre as várias regiöes. Embora os pequenos
tambem as danças da festa da bebida dos indios Coroados e a dança caminhos vicinais pudessem ser abertos por iniciativa dos Senados
dos Puris, ambas as tribos da região mineira; cançöes da Baia e de das Câmaras com a participação dos moradores, as diñceis comuni-
Goiás, bem como a célebre dança popular, lundum; os ritmos dos caçôes entre as Capitanias só podiam ser incrementadas pelos seus
indios da Amazonia (Muras, Juritabocas e Miranhas) e também respectivos governadores, que em geral recorriam aos ouvidores para
os ritmos dos remadores do rio Negro e dos pescadores do mesmo a concretização dos seus propósitos.
rio.
Embora os naturalistas fossem os viajantes que mais cuidadosa-
mente tinham de planear as suas viagens, por viajarem para regiöes 12 John Luccock, op. cif., cap. VII.

252 253
Í-

Assim, por exemplo, o ouvidor da comarca de Ilhéus foi incumbi- comentando essa obra, apontava os dois maiores problemas na pene-
do, em 1782, pelo marqués de Valença de estabelecer uma nova tração do sertão: por um lado, era necessárío o desmatamento e a
povoação no lugar chamado dos Funis, no rio das Contas, «para possibilidade de utilização cias vias fluviais; por outro, urgia povoar
melhor se conservar, e adiantar a nova estrada, mandada abrir pelo e cultivar as terras situadas ã margem dessas novas vias terrestres ou
Exmo. senhor Manuel da Cunha e Meneses, para por ela descerem os fluviais, nao so para apoio aos viajantes mas tambem para que a
gados dos sertöes da Ressaca para as vilas da foz do sobredito rio, natureza nao reocupasse as trilhas abertas. «O chão do Brasil e suma-
Camamu, Maraú, e as outras do sul››13. mente viçoso e desde que urna estrada se abandona, cobre-se de mato
Por sua vez, o ouvidor encarregou 0 capitão~mor_]oão Gonçalves em pouco tempo, e torna a ser impraticável. O meio indispensãvel de
Y
da Costa de acabar de «aperfeiçoar o caminho desde o sertão da conservar a estrada e de promover o comercio de Minas para aquele
Ressaca ate os Funis com os moradores deste sertão», tendo este porto e estabelecer o maior numero possível de povoaçoes, as quais
também delegado a tarefa num morador que, para esse fim, recebeu não só entretêm o trânsito dos caminhantes, como cultivam as ter-
o título de capitão em 178514. ras.››*6
Assim, de delegação em delegação, com a mão-de-obra indígena ou Mesmo nova, mal trilhada e despovoada, a estrada permitía o envio
militar, se iam abrindo as várias estradas e caminhos. Mas, no fim do de boiadas e tropas em apenas 12 dias entre Minas Gerais e Ilhéus. Em
período colonial, as viagens entre as Capitanias litorâneas continua- breve o mesmo percurso se faria em menos tempo e mais facilmente,
vam a fazer-se preferencialmente por mar. A abertura de estradas quando o caminho estivesse batido e apresentasse aos caminhantes
concentrava-se na dìrecção das Capitanias interiores mas só quando
não era possível a navegação fluvial. Por exemplo, entre a Capitanía de
l pousadas suficientes.
«Os nossos vastissimos sertöes merecem mais atenção do que a
l
São Paulo e a de Mato Grosso, ou entre a do Para e a de Goiás, os rios Silésia merecia a Frederico II, e o norte da Rússia aos seus óptimos
constituiam a principal forma de penetração no sertão. imperadores››, escreveu em 1817 o redactor da gazeta baíana”. O
As estradas então existentes iam para o sul (a estrada de Viamão) e conceito de sertão, tal como o de fronteira na historiografia norte-
do Rio de Janeiro para Minas Gerais a partir do Porto da Estrela. Na -americana, e um conceito complexo que, como mostrou A. J. R.
l
segunda decada do séc. XIX procura-se abrir uma comunicação entre a I Rusell-Wood num trabalho recente, pode revelar uma perspectiva
Baia e Minas Gerais. purarqtšnte geografica ou entao assumir uma perspectiva antropo-
Em 1812 a gazeta baíana anunciava a noticia, transmitida pelo logica _ Neste ultimo sentido, o sertão seria «aquela área onde ocorre
ouvidor de Porto Seguro, de que estava aberta a ligação desta região 1 interacção ou interpenetração entre sociedades ou culturas até então
com as Minas Novas, «tanto por terra, como por canoas pelo rio 5f=P¡1I`3d2S, 011 Onde um grupo se separa da sua sociedade de origem a
Jequitinhonha». Era uma viagem de alguns dias, pouco dispendiosa tal ponto que forma um núcleo próprio com a sua própria iden-
e sem riscos, uma vez que os Botocudos estavam «domesticados››. tidade».
Este rio era o rio da vila de Belmonte e a sua navegação tinha-se A palavra sertão, frequentemente usada no plural como vimos na
tornado mais fácil; «As dificuldades de duas cachoeiras, que estorva- citaçao mtrodutoria, trazia consigo a ideia de descontinuidade geográ-
vam aquela navegação está vencida, porque uma é tão pequena, que as fica: havia o sertão da Baia, como havia o de Pernambuco ou São
canoas passam por ela com pouco trabalho e perigo â medida que se Paulo. Por outro lado, a «entrada›› no sertão significava, nos docu-

l
vai aperfeiçoando a destreza dos canoeiros; e a segunda está muito mentos do fim do sec. XVIII, tambem «conquista›› de um ¡en-¡¡ó¡¡0
bem remediada com uma povoação na vizìnhança, na qual ha todos os para a Coroa, atraves da «pac1ficação›› dos indios nele residentes.
recursos para que as canoas se conduzam por terra em um pequeno Elas eram feitas em geral por capitães-mor acompanhados de solda-
espaço, e se tornem a lançar ao rio para seguirem viagem.››'5 dos e alguns indios «domesticados›› como guias,
Em 1815 foi a vez de o ouvidor de Ilheus abrir uma estrada do
porto de Ilheus a Minas Gerais e Caitete. A noticia da gazeta baíana,
1° zbfa., 11° 33, Isis.
” rbfat, n" 98, 1817.
13 ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 2, documento 10. . Is «Frontiers
. . Colonial-
in . Brazil:
_ Reality,
. Myth and Meigphoy» ¡H papers of ¡be
“ ANTT, ibid., documento 9. Third Seíminar on the Acquzsmon ofLatín American Library Materials, Albuquerque,
15 ¡dade d'Ouro do Brasil, n° 45. 1815. Novo Mexico, 1990, pp. 26-61.

254 255
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Temos um relato de uma dessas entradas no sertão de Ilhéus


escrito em 1783 pelo capitão-mor João Gonçalves da Costa”. Por
ele vemos que numa primeira fase os indios evitaram qualquer con-
tacto: «descobri a primeira aldeia pequena, cujos moradores logo que
me pressentiram se ausentaram». Em seguida, o contacto foi de certo
modo forçado pelo aprisionamento de duas inclias: «continuando a
meter-me pelo mato em distância de um ou mais dias de caminho,
descobri a trilha fresca, e ã beira do rio Pardo, picadas a que bem se
podem chamar estradas, as quais seguindo eu apanhei duas indias,
que apenas nos sentiram saltaram, e correram com grande vozaria e
sendo pegadas apareceu um indio repentinamente que armando a
frecha e o arco o afugentamos com três tiros de espanto». Mais
adiante, ao procurar as aldeias indígenas, conseguiu o capitão-mor
aprisionar um indio, «o qual entregou as frechas e arco em sinal de
paz, e eu o brindei com um facão». Mas esta troca de nada serviu pois
0 indio fugiu durante a noite. As aldeias foram contudo descobertas,
porque, sendo grandes, não era possível aos indios tudo abandonar
de repente: uma delas, pelo grande número de malocas, devia ter uns
500 indios e a outra era ainda maior, com cerca e 1500. O chefe desta
última, de nome Capivara, foi tranquilizado por meio de um emissario
de que o capitão-mor não vinha «para brigar», mas «para os meter de
paz com os brancos, e vivermos todos como amigos». Capivara con-
vidou os brancos a entrarem nas aldeias, contando com eles para ir
logo «fazer guerra ao gentio Amore, de quem eles se queriam despi-
car, porque lhes fazem muita guerra e os comem». 0 capitão-mor l
recusou por temer as suas «traiçöes e falsidade». O perigo afigura-
va-se-lhe tanto maior quanto «em algumas destas aldeias se acham '¬ï "±“fà`
metidos alguns escravos que fugiram lá de baixo, e um mulato ladi-
no, que me dizem é capitão de uma das aldeias, e estes são os que nos f':_¡__.,,.¬.f= -
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podem fazer maior mal».
Este primeiro contacto com o gentio denominado pelo capitão- 48. Família de Javradores.- crían;-as e adultos
-mor como Nongoio não terminou com uma ocupação branca mais
ürlnrïaeìsárïríeìqcpåïêïì-Í as crianças brancas juntamente com as mas das esq-ava¿;_
prolongada por várias razöesztem primeiro lugar, tendo partido com _. a a por uma ama negra, a outra diverte-se com um papagaio
60 soldados, ficara, devido a deserçöes, apenas com 54, «e desses na mao de uma outra escrava. De notar aqui que, numa sala improvisada, apenas
alguns meninos», além disso, os desertores tinham levado consigo com uma rede para a figura feminina principal, as crianças participam do mundo
adulto, encontram-se no mesmo espaço da habitação.
pólvora e chumbo. É preciso ver tambem que o interesse dos indios
era ter os brancos como aliados na guerra com os Amores, ao passo
que o dos brancos era fundar uma povoação com indios «domes-
ticados», ou seja, conquistados pelas armas. O capitão-mor teria de
fazer uma nova entrada, com pelo menos 80 soldados e mais pólvora e

19 ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 2, documento 9.

256
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49. A ma Difeita no Rio dejaneiro


Os negociantes de grosso trato e outros marcadores tinham os armazens ¦_...
e lojas na movimentada rua Direíta Ao fundo, à direita, ve-se uma loja de chapéus.
 esquerda, negros de ganho esperam o momento de serem alugados para 50. A alcouiteira
o transporte de fardos e mercaderias. O encontro furtivo aqui retratado sob os auspicios
de uma alcoviteira sugere uma relação ilícita numa casa
alheia. Embora esta gravura seja referente ao Rio de
Janeiro, encontros como este realizavam-se certamente
nas principais cidades, sempre graças à actuação de uma
intermediãria.
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51. Encontros em público f = H
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Uma relação amorosa podia ter inicio num espaço público de sociabilidade. n \ r Fw- .-
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Neste mirame do Rio de janeiro, para onde convergiam variados tipos sociais, Í V ' « - n ~ ,. ,,¬ - __
Rugendas mostra, no canto direito, um cavalheìro passando um bilhete ã escrava
negra, para esta o entregar à sua bela e ¡overn senhora. Um pouco mais atrás,
um mancebo com trajes que parecem ser de magistrado ou de clérigo segura o braço 52, Mapa da Capitanía do Rio de janeiro, 1779
de uma jovem que para ali fora transportada numa cadelrinha e trava com ela uma No fim do período colonial, o povoamento ainda se concentrava
conversa galanteado ra na faixa litoral e era possível encontrar, de acordo com os mapas
da época como este, um «sertão dos indios brabos» muito próximo
da zona povoada pelos brancos.
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55. A cidade da Baia
Cidade amiga, datando do séc. XVI, a cidade da Baia não possuia a regularidade 54. Baia. «E1eua,cão das casas de Manuel Correia de Muros, Antònia
das vilas setecentistas criadas no sertão. Além disso, a sua divisão entre cidade baixa, Teixeira de Sousa ejosé Domingues» (situadas na ruaprincåoal da vila
mercantil e pobre, e a cidade alta, local de resídência da elite e onde se erguiam de Nossa Senhora da Purjƒìcapão e Santo Amaro, cerca de 1805)
os princlpais edificios públicos, criava na época das chuvas problemas muito
graves com as quedas de barreìras que muitas vezes soterravam as habitaçöes A casa de José Domingues apresenta 0 elemento arquitectónico mais característico
populares. Em 1815 ocorreu um desses desmoronamentos de terra, assim descrito do Brasil colonial: as rötulas de madeira em treliça, logo mandadas substituir
na idade d'Ouro do Brasil (n° 50); «A ribanceira, que se eleva em frente do traplche no Rio de janeiro por ordem do Intendente da Policia. Para os europeus em geral,
do Barnabé ao Pilar, desabou de improv-¡so com tal porção de terra, e com tal a rótula dava um ar «bãrbaro›› às edificaçöes brasileiras e eram preferidas as janelas
ímpeto, que só escapou aquela metade do trapiche, que demora para a banda do mar. de sacadas, como as que vemos nas outras duas asas. É preciso não esquecer,
A ma ficou entulhada de um grande monte de terra, e do arvoredo, que cobria contudo, que não havia vidros e que essas janelas eram em geral fechadas com
a ribanceira, e as casas, que faz o frontlspício do trapiche ficaram demolidas. portadas de madeira. De qualquer modo, a casa era considerada tanto mais nobre
Morreram algumas pessoas, que neste momento passavam pela rua; e das que quanto mais elevado fosse o número das suas janelas. Nos Fundos destas casas havia
habitavam as sobreclitas casas mui poucas cscaparam a muito custo, e maltratadas» sempre um quintal, que comttnicava com outra rua.
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55. Aldeia dos Tapufas 56. Mercado de escravos


Através desta gravura podemos observar como os indios domesticados, Quando chegavam ao Brasil, os escravos africanos poucas roupas tinham
vivendo em povoaçöes planeadas pelos brancos, com um vigário e, até à extincão a cobri-los: uma especie de calçöes para os homens, uma tanga para as mulheres
do Directorio dos indios em 1798, sob a tutela de um director, divergiam, Dependia de quem os comprasse, a forma como se iriam vestir no futuro.
quanto à forma de morada, dos indios bravos.

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57- A Cflmfflb0 dd ígfejfl 58. Mercadores em viagem


Aqueles que moravam em sitios ou fazendas utilizavam frequentemente o carro Quando se deslocavam pela estrada de Minas Gerais com as suas tropas
de bois para irem à igreja mais próxima cumprir os seus deveres religiosos. de mulas cmegadas de mercaderias, os mercaderes emm por vezes acompanhados
por mulheres que cavalgavam escarra.nchadas_ Mais frequentados, estes caminhos
eram menos perigosos que as trilhas abertas em regiöes mais isoladas.
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_ Descansando num ran b . _ . .


59 C 0 60. Vzafantes europeas encontram indios
Nos caminhos mais percorridos, os viaiantes encontravam ranchos onde podiam
pernoitar abrigados das chuvas. A noite, descarregavam as mulas e soltavam-nas para Os naturalistas estrangeiros evitavam os caminhos mais frequentados
pastatem nas redondezas, as mercadorias_ eram cobertas para maior proteccao,_ C memm `-.qe pel.fI
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os tropeiros dormiam no chao encostados aos fardos e o viajante armava a sua rede. de .p rodutos naturais e melhor Poderem
_ observar as tnbos ind: 3enas q u e v 1 viam
mais afastadas do contacto com os brancos.
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61. Amwessando um río


62. A pesca
Quando se viajava pelo interior do Brasil era frequente encontrar pela frente
Os indios eram cxímios pescadores, além de cnçadores. Embora utilizassem
rios caudalosos que não podiam ser passados a vau. A solução era procurar um local
diferentes técnicas piscatórias, aqui vemos a pesca com a lança e Hecha.
onde houvesse um canoeiro a quem se alugasse a canoa e que nela transportasse
o viaiante e respectiva bagagem. As mulas atravessavam facilmente a nado, a menos
que se estivesse na estaçäo chuvosa e os rios tivessem aumentado muito o seu
volume de água_
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65. Fabrico da manteiga dos ovos de tartaruga 64- C€"`â"¡¡W d0 b“¡x0 Ama?-'0"“5
Na bar;-¿ do 110 Negl-Q_ os ¡-mu,-a|¡5¡as 591,; e Mal-¡ms obse,-vamm 2 acm,-¡¢|a¿¢ As cerãmicas procluzidas pelas indias e pintadas pelos indios eram utilizadas
da «electa dos aves de emawga e da sus prepmção em mrtnteiga os mos emm nz vrflparacäo dos alimentos e também para Conservar as bebidas. Passaram, depow
¢|eSen¡em¿d05 HQ al-eat 51 ben-a.r¡0_ depgjs quebradas e esmagadgs wm 05 pé5_ a ser estas cerámicas fabricadas com maior cuidado para a venda aos brancos.
D±.›itava›se agua por cima e ao nm de algumas umas de sol queme 0 oleo subas Spix e Marflus, na segunda dëvadfl do séc. XIX, feff-:rem as indias da nøvøacãø de
à superlïcie. Era então recolhido com cuias e ¡ogado em grandes potes de barro NOBUÚÍFF- e da “Ha de Came@ cOmO 35 mais fifflmadfis NSU? ÚP0 de Pl'UdUG50›
e depois em caldeiröes de cobre ou ferro no fogo brando. Durante horas era mexido,
espumado e clarificado, retirando-se cuidadosamente a parte líquida, que era
segunda vez cozida no fogo. Depois de fria, era esta manteiga guardada em potes
de barro fechados com folhas de palmeira ou emrecasca de áivores
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65. Engenbo de agucar
Esta cena representa apenas a primeira fase do trabalho num engenho de açúcar. 66- P7'ePa7'a§ä0 da farinha de mflndwca
A C203- T-ffizìdfi 1791105 CSCHWOS “Um C3l'f0 de b0ï5› está 2 Si-'f desmffegada Sob o oIl1ar de um feitor branco, alguns escravos e sobretudo escravas dedicam-se
f IWISPUTÍHÚQ Pflffi H UIOCHCÍH» Onde Um OUU0 ¢SCfW0 fflfá 0C'-1Pad0- A Pflfff mais às várias manipulaçöes da mandioca até ao resultado final da farinha, utilizada
C0mP1ïCfld¦1 ¿O Ufibfllhü fSf1`aV0› G BXÍSÍHÚO Uma mã0'd@'0b1'3 mais ¢SP¢C¡fl1¡2¦1dfl. como principal alimento das camadas populares. É de observar, no canto esquerdo
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67. Negros carregadores de âgua 68. Capoeira


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Uma das principais actividades dos negros de ganho era 0 abastecimento Ao mesmo tempo dança e lula, a capoeira era uma actividade exclusivamente
de água às casas da cidade do Rio de Janeiro. Eles faziam fila junto dos várìos negra, que muitas vezes se desenrolava em terreiros fora da cidade.
chafarizes para encherem os barris e, por vezes, surgiam brigas logo comroladas por Durante 0 espectáculo, uma negra quituteira aproveila para vender 0 seu quitute
um vigilante guarda da Policia urbana. Alguns negros fazíam este trabalho agrilhoados, 2105 espectadores.
certamente porque já tinham tentado fugii-_ Observe-se que esta actividade era
desernpenhada indiferenremente por negros e negras, a quem se pagava um jornal
por esta prestaeão de serviços. Muitos moradores urbanos víviam simplesmente
dos ¡ornais dos seus escravos de ganho.
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69. Lundum 70. Passeio -nos arredores do Rio de janeiro


Primitivamente dança de mulatos e negros, o Iundum foi atraindo os brancos que Os passeios, a cavalo ou a pé, pelos arredores da cidade passaram a consümir
não hesitavam em partilha: desta dança considerada obscena pela Igreja. uma da distracçöes dos moradores do Rio de Janeiro, certamente por influência
dos europeus que se tinham instalado na cidade e assim ocupavam os seus momentos
de lazer. Acompanhados dos seus negros, dirigìamse para as floreslas dos subúrbios
para admirar um belo panorama, apanhar as grandes e coloridas borboletas com
redes ou para caçarem.
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71. Desfile militar 72. Festa de Nossa Senhora do Rosârio, padroeira dos negros
Para a multidão, a arrumação de tropas, como então se dizia, constituía O ponto alto da festa organizada pela ìrmandade de Nossa Senhora do Rosãrio
um espectáculo e todos acorriam ao espaco aberto onde se desenrolava; a pé, eta a coroação da rainha e do rei do Congo. como vemos nesta gravura onde os reis
de carro de bois, a cavalo. estão no centro, perro da bandeira da confraria e rodeados de negros tocando
instrumentos musicais que, em geral, se tomavam muito clesagradãveis aos ouvidos
dos brancos.
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73. Ermitão pedíndo esmola 74. Castigos domésticos


Sendo as vendas locais muito frequentados, Rugendas representou aqui um ermitão O senhor não tinha interesse em punir os escravos com tal violència que flcassem
fazendo o seu peditório, ao mesmo tempo que dava a beijar ã negra a imagem incapacitados para o trabalho ou mesmo morressem. Algumas puniçöes eram,
do santo. Mesmo as camadas populares contribuíam com as suas moedas para o culto contudo, aplicadas, ou com a palmatória ou com o bacalhau, como vemos nesta
das errnidas e locais de peregrinação. gravura.
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75. Castigos públicos no Campo de Santana


No Rio de janeiro, como em outras cidades, quando o escravo cometia um delito mais
grave era entregue pelo senhor às autoridades que o puniam em público para
exemplo dos outros escravos. O número de chícotadas variava com o delito cometido;
entre 50 e 300, mas, neste último caso, com intervalos. 76. Capitøïo-do-mato
Os escravos fugidos eram perseguidos pelos capitães-do-
›mato, pagos para os restituírem aos seus senhores.
Quando eram apanhados, logo lhes era colocada a coleira
de ferro indicativa de escravo que tentara a fuga.

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77. Planta do Hosïoítal Militar da Capitamla de São Paulo _ _


(ge,-ca de 1305) 78. Enterro indigena
A Coroa cuidava dos seus soldados através dos Hospitaìs Militares criados Rugendas não especiflcou qual a tribojndïgena que assim enterrava os mortos.
nas principais cidades. Neste de São Paulo, vemos q ue estava prevista no lado sul mas SP1* C Mflflll-IS, Vìalando pela regtao amazonica,
_ observaram os rttuats Funebres
uma «enfermaria dos pobres», seguida de outra para o agálico» e depois um espaço ÚOS 1111152 0 defunto era colãšado cotêrda cabãça metida entre os ¡oeåhos dobrados
para convalescenca. Havia . ainda
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uma enfermarla para os fendos, ao lado da qual '
e erguldos e depms amarra mm P açm_ e endrecasca t e 6nt F rra do numa
estava a dos «inferiores e particulares» (portanto para a oficialidade subalterna cova de quatro pés de profundidacle na cabana on c morava. Co oca. a terra na cova
e ¿Games que nada ¡¡n¡-mm que ver com a organização mmal.) E fmajmeme uma esta era depois pisada com grandes lamentos durante um longo periodo de tempo.
enfermaria dos presos. Do ¡ado das instalaçöes dos escravos foi também proiectada '
O5 Viaiames ausmacos Comemamm' con tU d0' que 0un-os
, indios metiam , _
uma E,-¡fel-ma,-¡Q para ¡mes o defunto num grande pote de barto, enterrado tambem dentro da propria cabana.

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chumbo, além de «algumas facas, quinquilharia e missanga, com que
os possa conciliar».
Assim o sertão, por ser a morada de gentio ainda não submetido e
também o refügìo de escravos fugidos, aparecia como local de onde
vinha o perigo, tanto mais que estes indios Nongoios, das cabeceiras
do rio das Contas, costumavam atacar «os povoadores e descobrido-
res daqueles férteis, e ricos sertöes», roubando o gado ali existente”.
Geograficamente, havia portanto para o interior da «beira mar», ou
seja, o local de colonização mais antiga, o chamado «sertão baixo»,
onde estavam os novos povoadores, e finalmente o interior do sertão
habitado por gentio não conquistado. Estrategicamente, a entrada ou
conquista tornava-se necessãria para garantir a tranquilidade da nova
faixa de colonização.
Do mesmo modo que o sertão, mesmo quando já povoado por
brancos, aparecia ainda como o lugar da anarquía civil e religiosa
devido ã instabilidade de povoaçöes constantemente ameaçadas pe-
los indigenas, também o mato era concebido como um espaço miste-
rioso que despertava a imaginação das populaçöes vizinhas. Estas
acreditavam ser ele habitado, além dos negros fugidos, soldados de-
sertores e criminosos, por seres estranhos, na fronteira entre o huma-
no e o animal.
O inglês John Luccock, em viagem para as Minas Gerais em 1817,
observou que as populaçöes do interior acreditavam ver, de vez em
quando, «homens do mato». Um deles fora avistado numa plantação
arrancando espigas de milho e carregandoas consigo. <<Descreveram-
-no como possuidor de urna face negra, com cerca de cinco pës de
altura, coberto de pêlos, sem cauda e caminhando erecto» Naquela
parte do Brasil, como em outras, o povo acreditava na existência de
pequenos seres que apareciam em geral ao entardecer, fazendo ca-
briolas ou aquecendo-se ao sol ã entrada do mato e alguns descre-
79 Emerro de um negro na Bata viam-nos mesmo com três pés de altura, da cor dos europeus, sem
O negro que pertencesse a uma trrnandade era carregado num esqutfe pêlos no corpo. Locomoviam-se em geral a quatro patas, embora
e acompanhado pelo capelão dela e pelos irmãos ate ao cerruterio frequentemente se pusessem de pe”.
Penetrar no sertão implicava, mesmo quando se tratava da região
amazónica onde se viajava pelos rios e igarapés, grandes dificuldades
para os viajantes, fossem eles padres ambulantes, homens de negocio,
naturalistas ou militares. Vários perigos os espreitavam; falta de man-

2° Nas instruçöes do marquês de Valença, datadas da Baia a 23 de Fevereiro de


1782, não é feita trtenção deste gentio, mas sim do gentio Pataxo que vivia uvolanten,
ou seja, nómada. A outra trlbo, menos conhecida, parece ter sido descoberta pelo
capitão-mor enviado àquela entrada.
2' John Luccock, qu. at, cap. X111.
257
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timentos e agua, a picada das cobras e dos inúmeros insectos, a Quanto ao controlo dos viajantes, no interior do Brasil, eles tinham
travessia de rios e correntezas, os ataques dos indios ou dos saltea- de apresentar os seus passaportes e bagagens em postos chamados
dores de caminho. registros, sobretudo quando entravam ou saiam das zonas de minera-
Como o uso de certas armas não era permitido a todos os viajantes, ção.
um miliciano da Capitanía do Rio Grande do None teve de pedir As viagens transatlânticas entre o Brasil e Portugal eram também
autorízação ao regente D. João para usar pistolas nos coldres para a cuidadosamente controladas pela Coroa, não só através da emissão de
sua defesa, tanto na Capitanía do Rio Grande do Norte como na de passaportes, mas também por meio de licenças específicas para a
Pernambuco. Ele alegava que era muitas vezes incumbido pelo gover- viagem. Em primeiro lugar, os militares em serviço no Brasil não se
nador de várias diligências para as quais precisava de «atravessar podiam ausentar sem autorização, a qual por vezes era negada, tendo
sertöes em grandes distãncias, e muitos desertos havendo por eles como base a informação do governador da Capitanía onde se encon-
muitos facinorosos, e homens fugitivos, malfeitores, que continua- travam a prestar serviço. Assim, quando um natural de Braga preten-
mente costumam atacar os viajantes». Apesar desta argumentação, a den viajar para 0 Reino em companhia da mulher e da cunhada,
licença foi negada em Lisboa a 25 de Agosto de 180522. naturais do Brasil, como era soldado do 2” Regimento de Infantaria
Um outro miliciano, sargento-mor agregado das Ordenanças do da guarnição da cidade da Baia, a resposta foi que o Real Serviço devia
Recife, que tinha um «partido de canas» num engenho situado na preferir aos interesses particulares e que caso lhe fosse concedida a
freguesia de Serinhaem, onde trabalhavam 30 escravos sob as ordens licença, «poderão procurar outros a exemplo deste um semelhante
de um administrador, pediu em 1795 autorização para usar pistolas meio de não servirem nas tropas››25. A razão de este individuo querer
nos coldres da sela «e armas proibidas›› quando fosse a essa planta- viajar era a sua função de curador da cunhada demente. Portanto, esta
ção, explicando que tinha de ali ir todos os anos â colheita do açúcar. precisava dele na viagem para Portugal, na qual as duas mulheres
E acrescentava; «porque para ir ao dito lugar com a sua família, ou seriam ainda acompanhadas por duas mulatas, ou pretas livres, para
sem ela, e por causa das marés, e grande rigor de sol que faz nesta as servir.
Capitanía nos meses de verão, lhe é preciso fazer a dita viagem de Se a mobilidade dos militares era mais controlada, os demais não
noite, na distância de 16 léguas, passando por matos, e lugares des- encontravam grande difìculdade em obter a licença para viajar. Um
povoados, onde hã varios salteadores, e gente revoltosa». Pedia mais; reinol, que vivia ha muitos anos no Brasil, onde se casara, desejava
que lhe fosse permitido o uso dessas armas nos arrabaldes do Recife, deixar a vila da Cachoeira, na Capitanía da Baia, e passar ao Reino com
«de cavalo ou de pe», e ainda mesmo tê-las em casa «por ter varios a mulher e filhos «e família» (provavelmente serviçais), por se achar
sitios, que neles planta suas agriculturas››23. adiantado em anos e ter a sua mãe em Lisboa «já decrépita» e também
Havia contudo quem não se preocupasse em pedir autorização negocios da sua casa a que acudir. A autorização foi-lhe passada sem
para Lisboa e se protegesse dos bandos de salteadores da melhor problemas”.
maneira possível. Nos arredores da cidade de Mariana, na Capitanía O retorno de reinóis a Portugal parece ter sido motivado princi-
de Minas Gerais, mesmo as mulheres, quando tinham de se deslocar palmente por razöes familiares, mais do que económicas. Um natural
dos seus arraiais ou fazendas para a cidade, faziam-no com protecção de Viana quis voltar para a sua pátria (no sentido setecentista de local
das armas, como observou 0 inglês John Luccock: «Vi eu um dia duas da naturalidade) depois de a mulher ter morrido na Capitanía da
mulheres entrando na cidade montadas, como aqui se costuma, de Paraiba. Tinham-lhe ficado seis filhos, todos menores, entre eles duas
escarrancho. Trazia uma coldres e pistolas e a outra um facão suspen- moças, e ele achava ser «melhor os educar na companhia dos seus
so de um talabarte de soldado, a tiracolo no ombro.›› Viajavam a parentes››27.
cavalo acompanhadas apenas por um moleque, que cavalgava atrás Um natural de Cádis teve de vir a Lisboa pedir licença para levar
delas, e a sua aparição assim armadas não parecia provocar nos mo- para a sua terra natal a mulher com quem casara no Brasil, porque o
radores de Mariana a menor surpresazé. governador não tinha permitido a saida daquela. Aliãs, a historia deste

22 A1-IU, Capitanía do Rio Grande do Norte, Caixa 9, documento 6. 25 AHU, Capitanía da Baia, Caixa 177, documento 42.
23 Al-IU, Capitanía de Pernambuco, Caixa 118. 26 Ai-IU, Capitanía da Baia, ibíd, documento 53.
2" John Luccock, op. cif., cap. XV. 27 A1-IU, Capitanía da Paraiba, Caixa 14.

258 259
casamento foi contada na petição, talvez para mais facilmente conse- negocio, lamentam a insanãvel perda dos lucros, que tiravam dele,
guir a autorização pretendida: «havendo padecido uma grande tor- pela debilidade em que está a praça de Lisboa, aonde se atende a
menta na costa do Brasil víndo de Montevidéu em a nau Espanbola, mais sensível, e horrorosa quebra, que jamais poderá remediar-se,
que encalhou na cidade da Baia, fizera voto de casar com uma órfá enquanto este Reino existir, em qualidade de uma colónia da Côrte
honrada, e pobre, na primeira terra a que aportasse, e porque o não do Brasil. Estes mesmos, que hoje perderam o sangue do corpo das
cumpríra, e saindo do dito porto fora arribado ao Rio de janeiro, e suas negociaçöes, têm razão de sobejo de pedirem a V. A R. a facul-
assim reservou o cumprimento do dito voto para quando chegasse a dade de se recolherem às suas pãtrias, e abrigo das suas casas, de que
terras de Espanha». Mas, saindo do Rio de Janeiro para Cãdis, «fez a são senhores ou herdeiros, para fazerem assento do seu negocio nas
nau tanta agua, que foi obrigado a arribar novamente à Baia, aonde suas respectivas Capitanias.››31
por conselho do seu confessor, tomara a resolução de cumprir o
voto». Fora informado pelo governador de que não havia qualquer
dificuldade em contrair matrimónio com uma natural da Baia e assim
se casara. Mas, quando quis regressar a Cádis, onde tinha a sua casa, o
governador dissera que não podia deixar sair a mulher sem autoriza-
ção da rainha. A petição do espanhol, â qual fora anexada a declaração
da mulher de que desejava acompanhã-lo, recebeu um parecer favo-
râvel do Conselho Ultramarinozs.
Tal como a vinda para Portugal, também a ida para o Brasil estava
sujeita à autorização régia e esta precedia necessariamente a emissão
do passaporte. A petição de uma modísta francesa residente em Lisboa
havia seis anos não foi atendida em 1807, certamente pela desconfian
ça que então recaía sobre os franceses. Esta francesa queria passar à
América, nomeadamente â cidade do Rio de Janeiro, levando em sua
companhia a filha e um italiano, <<retratista››, mas as autoridades por-
tuguesas pensaram tratar-se de espiöes a soldo de Napoleão”.
Mas fora estes casos suspeitos, os passaportes eram emitidos sem
dificuldades de maior, embora por vezes certas averiguaçôes se fizes-
sem necessárias. Um negociante de Lisboa, mas que nascera no Rio de
Janeiro, pretendia em 1807 juntar-se aos pais naquela cidade e a auto-
rização foi concedida depois de o requerente ter justificado, na Real
Junta do Comercio, «não ser comissario volante, nem levar fazendas
em que comerceie››3°.
Depois do <<inopìnado, e sempre lamentável dia 29 de Novembro
de 1807», os «brasileiros›› residentes em Lisboa dirigiram-se colecti-
vamente ao Regente D. João para que este facultasse a todos «que não
se façam suspeìtosos» a licença de regressarem às suas Capitanias «na
ocasião oportuna, que se lhes oferecer». A maior parte destes «legíti-
mos brasileiros››, como então se intitulavam, estava estabelecida no
comércio e este sofrera um rude golpe; «E aqueles que víviam do seu

2” mu, capamma da saia, caixa 177, documento 59.


29 AHU, Capitanía do Rio de Janeiro, Caixa 245, documento 11.
3° AHU, Capitanía do Rio de Janeiro, íbid., documento 19. 5* AHU, Capitanía do Rio de janeiro, ibid., documento 25.

260 261
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5
Trabalho e festa

No Brasil do fim do periodo colonial o trabalho inseria-se em três


categorias; trabalho livre, trabaiho assalariado obrigatório (indios)1 e
trabalho escravo (negros africanos, crioulos, e pardos). Muito excep-
cionalmente deparamos com situaçöes como a da cafuza Joana Batista
na cidade do Para em 17802. Perante o tabelião Joana disse «que ela
de seu nascimento sempre foi livre, e isenta de cativeiro; e como ao
presente se achava sem pai, nem mãe, que dela pudessem tratar e
sustentar assim para a passagem da vida, como em suas moléstias, e
nem tinha meios para poder viver em sua liberdade», tinha ajustado
com Pedro da Costa, da nação catalã, «vender-se a si mesma por sua
escrava, como se tivera nascido de ventre cativo, e nunca tivesse sido
livre». Filha de um negro escravo e de uma india, para garantir a sua
sobrevivência, aceitava tornar-se escrava até à sua morte mas, se viesse
a ter filhos, estes seriam «forros, e livres, e isentos de cativeiro».
Vendeu-se por 80$000 réis, metade em dinheiro, e a outra metade
«em fazenda, e trastes de ouro, e 0 mais que precisava para seu
ornato».
Aculturar o indio significava arrancá-lo ãs suas actividades tradicio-
nais para o inserir naquelas que os brancos dele exigiam. A violència
desse processo de aculturação só pode ser cabalmente avaliada se
procurarrnos saber como é que os indios não «domesticados››, ou
seja, os indios «bravos›› víviam no seu habitat natural. Pescar, caçar,
remar, eram as ocupaçöes daqueles que se encontravam longe do

1 A ambiguidade do estatuto do indio no fim do período colonial fica bem


patente nas instruçöes para a elaboração dos mapas dos habitantes das povoaçöes
do Estado do Grão-Pará, composto das três Capitanias do Pará, do Rio Negro e do
Maranhão: os habitantes seriam distribuidos, em 1789. em 3 grandes classes, a saber,
«pessoas livres em geral ã excepção dos indios», «indios aldeados» e «escravos››.
(AN'I`T, Papéis do Brasil, Avulsos 1, doc. 8).
2 ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 7, documento 1.

265
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contacto dos brancos. E, na divisão sexual do trabalho observada, era anda nu, todo o mato é sua habitação, e por isso arrasta apos de si
às mulheres que competiam as actividades agricolas e artesanaisä. mulher e filhos, indo mesmo à guerra que se propöe fazer.›› Esta era a
Vejamos agora como, sobretudo nas Capitanias do Norte, nomea- opinjão que um cidadão de Santa Maria de Belém do Grão-Pará enca-
damente na do Grão-Pará, as autoridades se esforçavam por fazer minhou ao Soberano Congresso a 10 de Maio de 18215.
cumprir o Directorio pombalino, enquanto este esteve em vigor, ou Para este conhecedor do indio amazonense, pouca diferença havia
seja, até 1798. O governador daquela região, D. Francisco de Sousa entre o indio bravo e o indio ttdoméstico». Também este «nada preza,
Coutinho, pretendia em Agosto de 1790 que se observasse aquele se faz pequena lavoura é oprimido da necessidade». Por essa razão é
regulamento, sobretudo no que se referia aos art.” 59 até 72. que, abolido em 1798 o Directorio dos Índios do Grão-Pará e Mara-
O grande problema continuava a ser a distribuição dos indios pelos nhão, o trabalho indigena diminuia por não haver quem os forçasse a
moradores e também a recolha às suas povoaçoes depois de terem trabalhar, como no regime anterior: «uns não querem sujeítar-se ao
trabalhado como assalariados durante 6 meses. Exceptuando os con- trabalho, outros pedem um exorbitante salário, e a inação toma a sua
tratadores dos reais contratos, que tinham direito mais constante ã maior força». Mesmo para o serviço da Coroa (que este cidadão
mão-de-obra indigena, aqueles que se servìam dos indios nas suas constitucionalista denomina já de serviço da nação) era preciso ir
casas, roças ou fazendas não poderiam conserva-los consigo por mais buscá-los «em seus vagrantes domicilios». Muitas vezes fugiam a tem-
tempo do que determinava o Directorio. po, deixando na povoação apenas as mulheres e os filhos.
Além disso, notava o governador uma desigual distribuição dos A opinião deste branco revela o desprezo pela tradição indigena da
indios pelos moradores do Estado do Pará e, para evitar essa desigual- divisão sexual do trabalho: «nos trabalhos e laboratorios em terra são
dade, passou a exigir, aqueles que pedissem indios para as suas frouxos; pelo contrário no mar são destros, e práticos da navegação
lavouras, um atestado do pároco referindo «a qualidade da lavoura do pais». Esquecia também este cidadão constitucional que nas
em que se emprega, 0 número de operarios que tem, a extensão das comunidades indígenas eram as mulheres que cuidavam da roça de
terras que cultiva e quais sejam finalmente os diferentes géneros que mandioca ou milho, e que os homens caçavam, pescavam e remavam,
tenha colhido no próximo passado para à vista de tudo serem repar- além de guerrearem.
tidos os mesmos indios proporcionalmente ã actividade, dìligência e «Apareça o Directorio», escrevia o habitante do Para saudoso do
préstimo dos referidos lavradores››4. regulamento pombalino. A sua supressão levara ã vagabundagem dos
Ora, este trabalho agricola nas terras dos brancos violentava as indios, por vezes em muito pequenos grupos, pelas margens dos
tradiçöes indigenas, como o reconheciam os próprios colonos. «O múltiplos rios da região, ou metidos pelo mato dentro «servindo de
indio nada ambiciona, nada fabrica, não é agricultor, é vagabundo, ordinãrio apoio ao soldado desertor, ao escravo, e ao criminoso».
Pretendia-se voltar ã tutela; «unam-se, nomeíem-se homens brancos
5 Os viajantes europeus, fossem eles ingleses, franceses ou austriacos, sempre
idóneos para os reger, sejam obrigados como eram a servir o parti-
procuraram nos seus relatos de viagem descrever «o indio», ou seja, subsumir num cular (isto não é ser escravo) pois que desde o ano de 1798 em diante
único retrato todas as tribos contactadas no vasto territorio brasileiro, como se elas é raro o que se sujeita». Queria ele que recomeçasse o envio para a
não tivessem diferenças entre si. Podemos dar como exemplo as consideraçoes de capital dos géneros do sertão, ou seja, o óleo de cupauba, a salsaparri-
Spix e Martius acerca do temperamento do indio: de poucas palavras, dormía a parte lha, o cravo, a castanha do Maranhão, o cacau. E mais; «I-lajam como
do dia que não consagrava a caçadas, ou então brincava com os animais domésticos.
Souberam igualmente observar a actividade feminina; «ao passo que o homem se
haviam no antigo Directorio as salgas dos diferentes peixes, e outros
ocupa exclusivamente de caçadas, guerra e preparo das armas, competem às mu- comestiveis, jamais esqueça o fabrico de manteigas de tartaruga
lheres todos os trabalhos relativos ã economia doméstica. Elas plantam e colhem, se (género bem considerável).››
esse género de cultivo já e praticado pela tribo; procuram batatas doces e frutas na A ambiguidade do estatuto do trabalho indigena transparece nas
mata, para a alimentação da familia e fabricam os necessarios utensilios e vasilhas, palavras ditadas pelo «amor da pãtria e os deveres do cidadão», bem
como louça de barro e cestos.›› Para os viajantes europeus as mulheres indias
ao gosto do novo regime: se o indio não quisesse trabalhar, seria
pareciam escravas dos homens, pois eram elas que, nas mudanças de local de
morada, levavam ãs costas, «corno mulas», os utensilios e as provisöes, chegando
mesmo a ir pegar no mato as peças de caça abatidas pelos homens (op. cit., tomo I,
P. 205). 5 Arquivo Histórico-Parlamentar (Lisboa), Comissão da Fazenda, caxa 78,
4 ANTI, Papéis do Brasil, Avulsos 2, documento 4. documento 65. gentilmente cedido por Magda Pinheiro.

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obrigado a fazê-lo, embora se reconhecesse a necessidade de «um tangedor de cavalos


razoável estípêndio», maior do que os salãrios pagos no tempo do carreiro
Directorio (1$20O réis mensais para os indios adultos, 600 réis para os capineiro
rapazes e as mulheres e 400 réis para as raparigas). Além de baixos, carapina
estes salãrios também não iam na sua totalidade para as mãos de pedreiro
quem os ganhava. mestre de açúcar |-\›-lt-Ir-\J.\t ›
O bom cidadão constitucional não hesitava mesmo em piorar a mestra purgadeira 1
situação indigena, exigindo que os indios ficassem não 6 meses ao taicheiro 1
serviço dos particulares, mas sujeitos a um contrato de 3 anos. Quanto caldeireiro 1
ao serviço público, devia ser mais longo, 6 meses em vez de 3. Che- não determinada 4 2 O\I-lb-l -*D-li ¡Iv-l,.¦>.I\)

gava mesmo a aconselhar que se aplicasse aos indios que não se


quisessem sujeitar a este tipo de trabalho as mesmas penas que aos Total 65 20 83
indios antropófagos: «sejam escravos por tempo certo».
Para compreendermos como um adepto do novo regime politico FONTE: J. W. de Araújo Pinho, «Uma partilha de bens no Recôncavo da Baia em 1779».
podia ser mais duro com 0 trabalho indigena do que aqueles que se
norteavam pelas máximas do Antigo Regime, é preciso lembrar a forte
razão economica por ele lembrada na sua diatribe contra a «relaxação No meio urbano temos de dar destaque aos escravos de ganho,
dos indios››: os escravos chegados de África, ou de portos do sul do também denominados «negros ganhadores». Estes eram alugados
Brasil, custavam na região amazónica 300$O00 réis, o que era um pelos seus senhores para a prestação dos mais variados serviços:
preço muito superior ao das demais regiöes. vender mercadorias variadas, carregar agua e lenha, transportar far-
No que toca ao trabalho escravo, ele era multifacetado quanto ao dos ou cadeirinhas, etc. Entre as posturas do Senado da Câmara da
tipo de ocupaçöes. Podemos começar pelo mais estudado até agora Baia, uma dizia respeito a esta classe de escravosó. «Haverá em cada
pelos historiadores. um canto dos em que se costumam ajuntar os negros ganhadores um
Nos engenhos de açúcar os escravos, em número bastante elevado, capataz, sendo forro, no caso de o haver, a quem o povo pedirá os
exerciam as mais variadas actividades, umas mais especializadas do pretos que lhe forem precisos para o serviço de que os quiserem
que outras. Através do inventario de um engenho, na Capitanía da encarregar.›› E a postura municipal determinava o que se podia
Baia, denominado dos Cinco Rios e pertencente, por herança, a um cobrar por cada serviço; «Toda a pessoa, que alugar um preto por dia
membro de uma ilustre familia baíana, Francisco Antonio de Argolo e inteiro, para lhe servir, ou carregar cadeira, ou outro qualquer carreto,
Queiros, vemos que os 85 escravos a ele pertencentes desempenha- lhe pagará 200 rs; sendo para trabalhar em quintal, ou roça 100 rs
vam as seguintes actividades: dando-lhe de comer, e a seco 120 réis. E saindo fora da cidade até o
senhor do Boniìm, Monserrate, Boa Viagem, Brotas, Cabula, Rio Ver-
melho, Barra e Penha ocupando o dia inteiro no carreto, e serviço, lhe
Bscimvos Do ENGEN1-io CINCO mos NA CAPITANIA DA BALA - 1779 dará 520 rs; e sendo para conduzirem somente qualquer pessoa em
cadeira, e voltarem logo para suas casas, se dará a cada um 120 rs, por
Actividade H M Total lhes fìcar todo o dia livre para poderem adquirir outro ganho; e sendo
caminhos que vençam aguas se ajustarão com as partes»
serviço da eixada U4 D-U 45 O capataz era uma figura necessáría para obrigar os negros ganha-
serviço de canas dores a trabalharem pelos preços estipulados, sob pena de serem
serviço do engenho presos ã primeira recusa, ou sofrerem outras penas sendo reinciden-
serviço da moenda l\Jl-^l\)l\.) tes, «dando-se parte a seus senhores para os obrigarem a cumprir
serviço da caldeira
serviço do carro
feitor das canas F-'F-l 'l\-)›§-\J`\ÑJ-'I r-ev-\› *J-\U-.I 5 ANTI', Papéis do Brasil, Avulsos 2, documento 4.

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estas posturas». Quanto às negras de ganho, como elas não faziam «com perfeição, e segurança um par de botas, outro de borzeguins, e
serviços tão pesados como os homens, pagava›se-lhes 100 réis pelo outro de sapatos, na forma que se usarem». Os negros e pardos só
aluguel de um dia, «e dali para baixo à convenção das partes». podiam ser examinados depois de mostrarem, «por certidão» serem
Na outra grande cidade da época, o Río de Janeiro, sede da Corte, «livres e forros» e todos os oficiais só podiam prestar exame depois
as habilitaçöes dos negros de ganho eram as mais variadas, como de terem exercitado 0 oficio no mínimo por 3 anos, «fora o tempo
podemos ver pelo inventario feíto por morte dos seus senhores. que deu para lhe ser ensinado». Esse ensino era ministrado ainda de
Um casal que possuia, em 1820, 7 escravos, um era «do serviço de uma forma corporativa: cada oficial de sapateiro com loja aberta só
casa» sem qualquer especificação maior; dois outros eram «de serviço podia ter 2 aprendizes («excepto os escravos››) os quais não podiam
de jornal» também indefinido; havia um aprendiz de sapateiro de 15 fazer a sua aprendizagem ao mesmo tempo, e sim cada um após 2
anos; uma escrava de 19 anos que aprendia a coser, enquanto outra, anos do inicio da aprendizagem do outro. Alias, o juiz do ofïcio de
da mesma idade, além de cozinhar e lavar, era <<quitandeira››; e uma sapateiro tinha de ser informado acerca destes aprendizes e 0 rigor
mais velha, de 50 anos cozinhava e fazia «doce de toda a qualidade», nesta relação de aprendizagem surge no capítulo 36° do Regimento:
certamente para vender pelas mas da cidade, como tantas outras. Num «E qualquer oficial, que desinquietar aprendiz de outro a fim de que
patrimonio avaliado em 11275050 réis, a parcela mais valiosa corres- não aprenda com ele, ou o recolher em sua casa contra a vontade do
pondia a estes escravos, avalìados num total de 8835200 réis7. seu mestre, a fim de se servir dele, ou de lhe ensinar o mesmo oficio,
Demos apenas como exemplo de trabalho escravo no mundo rural, pagará ao oficial em cuja loge estava todo 0 prejuizo, que tiver tido em
os escravos de engenho; no mundo urbano, os negros de ganho. Uma lhe ter desinquietado o dito aprendiz, o qual se liquidarâ na forma de
outra categoria importante, no campo e na cidade, era a dos oficiais e Direito. E além desta pena pagará da Cadeia 10 cruzados, a metade
aprendizes dos oficios mais variados: alfaiate, canteiro, cabouqueiro, para as obras da cidade, e a outra metade para quem o acusar; e o
ferreiro, pedreiro, sapateiro, surrador, torneiro, e tantos outros. aprendiz será obrigado a tornar para casa de seu mestre até acabar o
O trabalho urbano das camadas populares, livres e forras, é mais tempo, que contratou para aprender o dito ofïcio.››
bem conhecido através da documentação municipal: actas das sessöes O Regimento dos sapateiros do Rio de Janeiro não só controlava o
camarârias ou posturas municipais. É nesses documentos que nos número de aprendizes que cada mestre podia ter, como também o
surge a imensa variedade de actividades artesanais graças aos Regi- número de lojas; «Por se evitarem os inconvenientes, que resultam
mentos dos vãrios oficios, com o preço determinado para as suas não só contra o público, mas contra a utìlìdade do oficio, da multi-
obras. Na populosa Baia de 1785, as novas posturas camarãrias davam plicidade de lojas e de um mesmo mestre, nenhum poderá ter mais
Regimentos a alfaiates, sapateiros, tanoeiros, serralheiros, ferreiros, que uma só loge, em que assista.››
carpinteiros, aqueles que vendiam tabuado, aos correeiros, tinturei« Quer no mundo rural quer no urbano, O trabalho da mulher era
ros, latoeiros, barbeirosa. bem visivel, não apenas o das escravas, mas também o das forras e o
Embora em algumas cidades do fim do período colonial os Regi- das brancas, como mostrei já noutros estudosw.
mentos das várias corporaçöes de oficios se reduzissem a tabelas dos Qualquer das categorias de trabalho aqui referidas (trabalho assa-
preços a serem cobrados, no Rio de Janeiro deparamos, em 1817, com lariado obrigatório, trabalho escravo, trabalho livre) ritmava 0 seu
o «Regimento do governo económico da bandeira e oficio de
sapateiro›› mais preocupado com os aspectos profissionais e
sociaisg. São ai regulamentados os exames dos oficiais que queriam '° Ver o meu artigo «O trabalho feminino no Brasil colonial (1765-1822)», Anais
«abrir loge». Estes, uma vez munidos da carta de aprovação passada SBPH (São Paulo), 8: 167-174, 1989. A informação sobre as actividades femininas na
pelo escrivão do oficio, dirigiam-se ã Cârnara para a registar. Para esfera da proclução ou na de prestação de serviços aparece de uma maneira muito
conseguir passar no exame, 0 oficial de sapateiro devia saber fazer fragmentâria na documentação, mas essa dispersão dos dados apenas torna a pes-
quisa rnais laborìosa. Os viajantes estrangeiros, embora tendendo a apresentar a
imagem de uma mulher branca ociosa, deixando mesmo a gestão da sua casa ao
7 ANRJ, Inventario de Francisco Alves de Azevedo e sua mulher Teresa Joaquina cuidado de escravas, revelam contudo as actividades a que muitas brancas se dedi-
Caetana, Maço 462, n° 8857, 1820. cavam, Não refere o inglês Luccock que uma viúva, irmã de um comerciante do Rio de
B ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 2, documento 4. janeiro, dirigía um «rancho›› para viajantes no caminho entre S. João d`el-rei e Vila
9 ANR1, cod. 773. Rica, na Capitanía de Minas Gerais? (op. cif., cap. XV).

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horario diario e o seu calendario anual pela alternancia entre os mo- em cima, com a cabeça para baixo, e dois por baixo da mesma; e
mentos de esforço laborioso e as horas de distracção e lazer. Madame dançará 0 landum na corda forte com castanholas; seguir-
Nas cidades e vilas do litoral, ou no interior do sertão, os brancos -se-á o divertimento intitulado 'O desastre do alfaiate, e o cavalo rabio-
ocupavam os seus momentos de ócio em actividades que variavam so`; e um admirável fogo artificial que mostrará por fim as armas reais,
com a riqueza e o desenvolvimento das povoaçoes onde se encontra- e o dístico Viva D. João VI.››“
vam ou com as condiçôes de maior ou menor sociabilidade. Se o No Rio de Janeiro, um objecto curioso, uma novidade mecánica,
branco da Baia ou do Rio de Janeiro podia assistir a um concerto, podia tornar-se um espectáculo pelo qual era preciso pagar. Um
mesmo um principe como Maximiliano Wied-Neuwied, nas suas ex- individuo, recém-chegado de terras estrangeiras, trazia consigo
ploraçöes de naturalista no meio da floresta, tinha de confraternizar «uma peça de grande gosto››; «esta peça tem relógio de sala e um
com indios, negros e soldados, limitar-se a passar as suas noites ao realejo, com uma grande máquina de figuras, as quais manobram
som das violas e dos cantares populares. debaixo de compasso de música, e cada uma em suas ocupaçöes,
A presença da Corte no Rio de Janeiro foi um chamariz para artistas umas trabalhando em seus oficios, e outras contradançando, outras
estrangeiros se aventurarem a uma viagem ao Brasil. Logo em 1809, a passeando em boa harmonia de música, e um esquadrão de cavalaria.»
Gazeta do Rio de janeiro anunciava; «Madama D`Aunay, cómica can- Por este divertimento cobrava 240 réis por pessoa e também se ofe-
tora chegada de Londres, em cujos teatros, assim como nos de Paris recia a apresentar a máquina em casas particulares, embora sem
sempre representou, informa respeitosamente aos cidadãos desta declarar o preço”.
Corte que ela pretende dar um concerto de música vocal e instrumen- No fim do período colonial pode dizer-se que a sociabilidade
tal na casa n° 28, na praia de D. Manuel, no dia 14 do corrente. Nele pública se sobrepunha à sociabilidade privada. Os espaços para a
cantarão ela e a senhora Joaquina Lapinha a mais bem escolhida primeira eram amplos e variados; os ambientes para a segunda come-
música dos melhores autores, e tocarão os senhores Lansaldi e Lami çavam apenas a despontar no interior de residências mais europeiza-
concertos de rebeca, e executar-se-ão em grande orquestra as melho- das. Vejamos alguns exemplos dos primeiros.
res overturas de Mozart. Vendem-se bilhetes em sua casa, n° 8, tua de O vice-rei Luís de Vasconcelos (1779-1790) mandou drenar um
S. José, a preço de 4$00O rëis.››“ pântano na cidade do Rio de Janeiro nesse local criou um espaço
A cidade da Baia, também populosa e cosmopolita, oferecia aos de sociabilidade, um «passeio público», desenhado pelo arquitecto
seus habitantes a possibilidade de ouvir cantores italianos habituados Valentim Fonseca e Silva no estilo francês de jardins geométricos.
a cantar no Teatro de S. Carlos em Lisboa. Eles interpretavam, no O inglês John Luccock descreveu-o em 1808, ano em que se instalou
teatro local, «diversas espécies de música, seria, semi-seria, e bufa» nesta cidade como negociante; «O Passeio Público, embora pequeno,
ou, mais especificamente, «um hino com música do célebre português perfeitamente plano, construído em estilo muito afectado e negligen-
Bontempo››12. temente mantido, reclama para si o primeiro lugar entre os sitios de
Nos maiores centros urbanos da época as possibilidades de dis- divertimento do Rio.››16
tracção eram muitas e variadas. Na Baia foi aberta, em 181 1, «uma sala A cidade da Baia não quis fìcar atrás e, quando uma carta régia de
para toda a qualidade de dança», onde um «mestre sala» entretìnha, 19 de Junho de 1811 permitiu que os condenados a degredo para
de dia e de noite, aqueles que assim se quisessem distrair, dançando Angola tivessem a sua pena comutada em trabalho na construção
ou simplesmente vendo os outros dançar, desde que comparecessem urbana, logo se começou a preparar um local para o Passeio Públi-
«vestidos decentemente de casaca››15. Os artistas estrangeiros também co, conforme noticiava a gazeta local; «Ja está aberta a grande ma
ali acorriam e, em 1818, uma companhia inglesa de «dançarinos em desde a esquina da Casa dos Fogos até à cortina, que decorre do
cavalos, e de corda» apresentava-se na praça do forte de S. Pedro, ou forte de S. Pedro demandando o mar. Têm-se plantado muitas áivores
na praça dos touros. Para atrair o público baiano, o responsâvel de diferentes qualidades tanto nos dois lados da grande rua, como no
anunciava: «subirá ao ar uma máquina com um homem equilibrado campo, que fica entre ela, e o forte de S. Pedro. Elegantes portais se

U Gazeta do Rio dejaneiro, n° 13, 1809. "_' rafa, nf 79, 1s1s.


12 ¡dade (foam ao Brasil, n° 20, 1812; e n° 62, 1311. 1° Gama ao Rm de_¡anerr0, n° 42, 1813.
15 Ibíd, n" 50, 1812. 16 John Luccock, op. cif., pp. 59-60.

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começam a erigir, e apesar da escabrosidade da estação extraordina- povoaçao» e a sua ficha nao era muito boa: «tendo oficio de sapateiro
riamente chuvosa, e do terreno ainda não bem igualado vê-se concor- só vive de jogos, sendo por isso prejudicial a todos estes moradores,
rer ali essas poucas tardes mais apraziveis, e noites de luar menos que o conhecem por vadio e mal tencionado››2°.
chuvosas grande número das pessoas príncipais desta cidade.››” Nas pequenas vilas ou cidades com escassas possibilidades de
Os novos teatros, construidos no Rio de Janeiro e na Baia por divertimento público, era na casa de uns e outros que as pessoas se
influência da presença da Corte e de um público mais exigente, reve- reuniam para passar um serão agradavel. Em Rio Grande, na Capitanía
lam, na organização do espaço, a separação entre as elites que ocupa- de S. Pedro, no Sul do Brasil, na casa do vigário faziam-se tais reu-
vam os catnarotes, e as camadas mais populares, que se instalavam na niöes, simplesmente para conversar ou mesmo para jogar cartas e
plateia. Mas mesmo entre camarotes havia urna clistínção entre os «da dançar, segundo o testemunho do negociante inglês Luccock, que ai
ordem nobre», mais caros, e os «de frisura›› e de 2” ordem, um pouco se encontrava em 1808 para negociar as suas mercadoriaszl.
mais baratos, no Teatro de S. João da Baia; e entre 4 ordens, no Real Uma das maneiras de a população branca passar o tempo ocioso
Teatro do Rio de Janeiro. consistía em fazer visitas e a esta actividade tanto se dedicavam ho-
O próprio sistema de assinatura, preferido ao da venda avulso, mens como mulheres, sendo costume, no interior do Brasil, familias
revela que, mesmo para a plateia, os frequentadores dos espectaculos inteiras deslocarem-se para urna visita a uma chácara ou fazenda, visita
teatrais tinham de ganhar o suficiente para pagar 6$4OO réis por mês. essa que por vezes se dilatava até horas tardías. As visitas mais ceri-
Quando não se conseguía captar assinantes para o ano inteiro, bara- moniosas tinham uma duração mais curta, como relatava John Luc-
teava-se a assinatura com a venda de 12 ou 16 récitas consecutivas. cock em 1813 numa viagem a oeste do Rio de Janeiro; «Numa tarde,
A um espaço diferente correspondía também um comportamento um pretinho chegou a casa, anunciando a aproxímação de um grupo
diferente, sendo os frequentadores da plateia muitas vezes criticados de damas e cavalheiros. Vinham cavalgando a passo, sendo recebidos
pelo barulho e pateadas que faziam. O redactor da gazeta baíana ã frente da casa pela família, sentando-se ali mesmo as damas no
denunciava em 1812; «nós não podemos deíxar de levar a mal, e de capim, ã sombra das arvores, com os homens reclinados ao lado
contemplar como um efeito de inconsideração, e grosseria o compor- delas. Serviram-se frutas e agua e, após uma conversa insignificante
tamento inquieto, e insofrido de alguns circunstantes da plateia, que de meia hora, as visitas se foram.››22
batendo intempestiva e indecentemente perturbam os cómicos, e Embora a maior parte dos viajantes estrangeiros comentasse a
afligem toda a assembleia››18. reclusão em que víviam as mulheres não tomando parte nas formas
No pequeno teatro de Vila Rica, na Capitanía de Minas Gerais, não de sociabilidade masculina, 0 facto é que a documentação, incluindo
foi permitido ao inglês John Luccock, por ser estrangeiro, sentar-se na mesmo os relatos de viagem, revela-nos mulheres activas participando
parte mais nobre, devendo então dirigir-se para a plateia, «cheia de não só da sociabilidade religiosa que lhes era habitual, mas também
uma gente muito modesta e mal encarada, muitos usando capotes, de uma sociabilidade resultante de alguma forma de trabalho. É pre-
trajo este favorito dos ladröes e assassinos». Não se viam senão ho- ciso notar, contudo, que entre as mulheres brancas das camadas
mens, pois às mulheres aquele espaço de teatro estava vedado, só superiores, isso ocorria principalmente quando eram viúvas ou ti-
sendo possível instalarem-se nos camarotes”. Também no Nordes- nham de substituir os seus maridos ausentes; enquanto nas camadas
te, nas pequenas «casas da Ópera» espalhadas pelas cidades, se fazia populares isso ocorria independentemente do estado civil.
sentir a turbulêncía das camadas populares. No termo da cidade de Na Capitania de Minas Gerais, uma viúva dirigía um <<rancho›› para
Sergipe, em 1816, uma autoridade militar encaminhou preso ao coro- viajantes, mais confortavel do que os habituais pousos de beira de
nel governador um individuo que insultara um sargento, «não só com estrada. Recebia-os a sua mesa e sabia conversar de maneira agradavel
palavras injuriosas como até arremessando-se a ele». Tudo começara com aqueles que por ali passavam. Conta 0 inglês Luccock; «Divertiu-
por ter querido entrar na plateia sem pagar. O individuo ja era -nos com anedotas sobre viajantes anteriores, tanto ingleses como
conhecido das autoridades por fazer «desordens imensas nesta franceses, descrevendo-nos suas maneiras» Portanto, apesar de viver

17 ¡dade d'Ouro do Brasil, n° 28, 1811. 2° Arquivo Histórico da Baia, Caixa 119. pacote 252.
18 [dade d'Ouro do Brasil, supiemento do n” 85, 1812. 21 John Luccock, op. cit., cap. VI.
19 John Luccock, op. cit., cap. XV. 22 1af¢t,<;ap.D<.

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isolada no alto de um morro, uma certa forma de sociabilidade de Nesta relação, o narrador, sob forma de carta, conta que a cidade
salão não estava ausente do quotidiano desta viúva, cuja única opor- celebrou com nove dias de luminarias a chegada de S. A. R., tendo ja
tunidade de convivio, além da missa dominical a qual assistia dírigin- havido antes outros seis dias de luminarias quando chegara a princesa
do-se a cavalo para a capela distante, era fornecida pelos seus viúva. Este elemento essencial do festejo público era mais complexo
hóspedeszš. do que se poderiar supor. Não bastava iluminar as casas e edificios
A monarquía absoluta era a grande promotora de festas públicas mais importantes da cidade; era necessárío ainda criar ornamentos
por ocasião do aniversario do governante, de casamentos ou nasci- adequados, arquitecturas efémeras logo destruidas quando a festa
mentos na familia real, de celebração de eventos politicos. Esses acabava. O autor descreve algumas: «Um quadro grande mostrando
festejos incluiam geralmente luminarias, fogos de artificio, cavalha- na parte superior 0 retrato de S. A R. entre festöes de rosas. De um
das, corridas de touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropas. lado a figura de Lisia com o semblante lacrimoso; do outro, Africa de
Durante o periodo em que Portugal era a sede da monarquía, compe- joelhos oferecendo suas riquezas, e a América de manto real e borze-
tia aos governadores de cada capitania incentivar essas celebraçöes. guins oferecendo também o coração que tinha nas mãos. Por baixo a
Depois de a Corte se ter transferido para o Brasil e ficado sediada no pintura da nau em que veio S. A. R.››. As figuras simbólicas eram
Rio de Janeiro ficou a cargo do intendente da Policia organizar tais acompanhadas de disticos com versos adequados ã situação. Assim,
festas públicas. No tempo de Paulo Fernandes Viana ocorreram feste- no distico a figura de Lisia, lia-se; «Não chores Lisia / Os nossos
jos por ocasião do casamento da princesa Maria Teresa, da aclamação soberanos; / Descansam entre / Os seus americanos» Vemos assim
de D. João VI e por ocasião da chegada da princesa D. Leopoldina, que a luminaria reunía elementos visuais (luz, representação pictó-
mulher do Principe Real D. Pedro. Como escrevia o intendente, «era rica) e outros verbais.
um dever da policia entrar nestes objectos, não só pela utìlìdade que O povo acorria as ruas para ver as luminarias e, para maior beleza
se tira em trazer o povo alegre e entretido, como provendo ao mesmo ainda, aconteceu serem noites de luar também; «uns iam assentar-se ã
tempo o amor e respeito dos vassalos para com o soberano e sua real borda do cais, a contemplar o prateado dos mares, outros se entre-
dínastia››2". tinham a ouvir a música; estes a gozar da íluminação, aqueles enfim a
Este tipo de festejo assumia assim a dupla função de divertir o povo ver o seu principe, único alvo dos votos de seus coraçöes» A música
e ao mesmo tempo despertar a veneração pelos seus governantes. Por provinha de um grande coreto ornamentado onde se cantaram lou-
essa razão não apenas a Familia Real mas também os governadores voures a D. João e por vezes se recitavam também «poesias e prosas››,
deram ocasião a celebraçöes varias. Assim, em Cuiabá, celebrou-se em como escrevia o cronista Luis Gonçalves dos Santos”.
1790 o aniversario de Diogo de Toledo Lara Ordonhes; e no arraial da Talvez 0 elemento mais espectacular das festas públicas tenha sido
Conceição, em Minas Gerais, prestou-se em 1801 uma homenagem a o desfile de carros alegóricos acompanhados de danças. O colorido
Bernardo José de Lorena. Em 1817 o homenageado foi o conde de destas celebraçöes transparece da enumeração feita pela Gazeta do
Arcos, governador da Baia. Rio de janeiro por ocasião do casamento da princesa da Beira com o
Podemos avaliar o peso destas festas na sociedade colonial pelo infante de Espanha em 181026. Desfilaram o carro da América, o carro
cuidado em elaborar relatos dos seus varios momentos e também em da China, o das ilhas do Pacífico, etc. Cada um deles era oferecido por
publicar tais descriçöes em folhetos, ou nas paginas das gazetas do uma corporação proflssional, ou por varias em conjunto, sendo ao
Rio de Janeiro e Baia. Lembremos, entre outras, a «Relação das festas todo doze:
que se fizeram no Rio de Janeiro, quando o Príncipe Regente N. S. e
toda a sua real familia chegaram pela primeira vez aquela capital. - negociantes de varejo e boticarios
Ajuntando-se algumas particularidades igualmente curiosas, e que - negociantes de ouro e prata e relojoeiros
diziam respeito ao mesmo objecto», publicada pela Impressão Regia - negociantes de molhados e lojas de loiças
do Rio de Janeiro em 1810. ›-Ixu›N›-= - oficios de latoeiro, ferreiro, segeiro, caldeireíro e ferrador

23 John Luccock, op. cit., cap. XV. 25 Luis Gonçalves dos Santos, op. cit., tomo I, p. 218.
2'* R1HGB,Tomo 55. parte I, p. 379. 26 Gazeta de Rm dejanefm, n° 90, 1810.

274 275
vr-'

5 - oficios de alfaiate, correeiro, sapateiro, sirgueiro, tintureiro e outro carro representava o triunfo do Rio de Janeiro e, oferecido pelos
lojas de couro oficiais de ourives de ouro e prata, levava dentro 16 dançarinos vesti-
- oficios de carpinteíro, pedreiro, canteiro e tanoeiro dos «ã tragica asiatica» acompanhados de 8 músicos. Executaram uma
- setventuarios do Matadouro dança, «tendo nas mãos faixas de seda azul e amarela», e seguiam a
(D\lG\ - oficiais de barbeiro música «com a harmonia dos pratos». Portugueses e ninfas do Rio de
9 - operarios da fabrica de tecidos Janeiro, mscaradas vestidos de maneira exótica, constítuiram outras
10 - dois oficiais de carpinteíro tantas novidades dos desfiles de carros de 1818.
11 - vatios oficiais de carpinteíro As «encamisadas›› eram a transposição para a festa de urna antiga
12 - varias pessoas acção militar em que as tropas punham camisöes sobre as armas para
se dístinguirem dos seus adversarios. Os festejos para celebrar o
Geralmente cada carro alegórico tinha a sua dança própria, por casamento do Principe Real D. Pedro incluiram uma encamisada as-
exemplo, o carro da Imortalidade era acompanhado da dança dos sim descrita pelo cronista Luis Gonçalves dos Santos; «Estando toda a
heróis portugueses; o carro da América pela dança dos indios. Con- quadra da praça ja iluminada, sairam do Arco do Teles, fronteiro ao
tudo, algumas danças contudo parecem ter desfilado de maneira autó- real palacio, seis cavaleiros vestidos de branco, tocando trombetas, e
noma; a dos ciganos (fandango espanhol), em que os homens após deles vinham catorze pares, vestidos também de branco, igual-
entravam na praça a cavalo com as mulheres ã garupa; a dança dos mente bem montados em soberbos cavalos. Tinham uns divisas en-
mouros prisioneiros, dos chinas, dos macacos. carnadas, que consistiam em listóes desta cor pendentes do ombro
Como escrevia o gazeteiro, estes carros e danças «apresentavam esquerdo até ã coxa direita, e os outros as trazíam da mesma forma,
aos olhos varios costumes, usos e naçöes, como dando a entender que mas de cor azul, e vinham todos com os rostos mascarados» A carac-
os povos,.tanto os próximos como os remotos, tanto os selvagens teristica principal da encamisada era a tocha acesa carregada por cada
como os cultos, deviam tributar homenagens e dedicar respeitos às um dos cavaleiros na mão direita: «conservando-se sempre em boa
virtudes de um soberano, cujo verdadeiro trono é no coração dos seus ordem se dividiram em dois corpos, e saindo um cavaleiro ao meio do
vassalos e servidores». terreìro, que medeava entre eles, e fazendo um circulo foi tirar o par,
Durante alguns dias estes carros sairam pelas ruas da cidade e, na que lhe ficava fronteiro, correndo sempre, como o segundo, que fez o
noite em que houve iluminação, deram um espectáculo na praça mesmo, e outros até ao último, e logo, largando tochas, mesmo a
(certamente a praça do curro, instalada fora do centro urbano). Nu- galopar, formaram uma espécie de combate, disparando as pistolas
ma outra noite estiveram no largo do palacio, «fazendo o entreteni- que trazíam encobertadas e depois, puxando as espadas e esgrimindo
mento de imenso povo que corría após eles, atraído da suavidade dos com elas uns contra os outros, tornaram a tomar as tochas e se
ínstrumentais, dos ricos adornos e iluminação››27. retiraram pela mesma ordem com que tinha víndo››28.
Em 1818, nas festas por ocasião dos desposórios do Principe Real Em 1819 o aniversario de D. João VI foi condígnamente festejado
D. Pedro, 0 desfile de carros apresentou algumas inovaçöes e maior na Baia, conforme noticiava 0 gazeteiro local; «Quinta›feira, 13 do
sofisticação. O corpo do comércio, por exemplo, ofereceu «um carro corrente, dia para sempre memoravel pelo faustissimo natalicio d'el-
de triunfo a romana», cuja execução se devia ao maquinista do Real -rei nosso senhor, concorreram ã sala de Palacio para os cumprimen-
Teatro, Luis Xavier Pereira. Dentro, «varias mascaras no traje dos tos de estilo, todas as autoridades com grande asseio, e públicos sínais
antigos portugueses, com capacete, lança e escudo embraçado». Um de amor, e regozijo. Houve mui luzido arrumamento; embandeiraram-
-se os navíos, e fortalezas, e deram salvas depois das descargas da
tropa.››29
27 Nas festas realizadas em 1818 repetiu-se o mesmo esquema. O carro da O governador da Baia, conde de Palma, convidara «todas as pes-
América era acompanhado por 24 indios que «formaram›› urna dança mui diverti- soas de distinção» para uma celebração conjunta do aniversario régio
da, sendo todo o instrumental que a dirigía um único assobio, a cujo som executaram
muitas e diferentes dificuldades» (Luis Gonçalves dos Santos, op. cit, Tomo ll, p. 687
e sgs.). A dança dos ciganos, com seis homens e seis mulheres, era acompanhada por
«uma banda de música instrumental». Todos estavam ricamente vestidos: «tudo 2" Luís Gonçalves dos Santos, op. cif., Tomo i, p. 328.
quanto apresentaram de ornato era veludo e ouro.›› 2° ¡dade foam do smart, rw 40, 1s19.
276 277
e do nascimento da princesa da Beira e «ao pôr do sol, principiaram a vamos para o Céu`››. Estes gestos e palavras constituiam «incentivos
entrar os concurrentes em grande asseio». Iluminaram-se as janelas para desonestidade ainda nos mais tementes a Deus, quanto mais nos
do Palacio do Governo, da Relação e da Casa da Camara e na praça miseraveis pecadores››3°.
tocavam os músicos dos regimentos. «Depois que as salas se enche- Também no inicio do séc. XIX, na Baia, Luis dos Santos Vilhena
ram de convidados, rompeu uma sauvissíma orquestra, em varias condenava a excessiva tolerancia com as diversóes dos negros; «Não
overturas, e Madame Scaramelli cantou com muito aplauso. Algumas parece ser de muito acerto em politica, o tolerar que pelas ruas e
senhoras obsequiaram, e abrilhantaram este magnífico festim, cantan- terreiros da cidade façam multidóes de negros de um e outro sexo,
do ao piano-forte, e contradançaram. Seguiu-se um suntuoso cha, e os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques,
refresco.›› dançando desonestamente cançóes gentilicas, falando linguas diver-
Não terminou ainda ai a função oferecida a elite local. «No fim do sas, e isto com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo
cha dançou por varias vezes Lacombe com seu discípulo Filipe Catão, e estranheza, ainda aos mais afeitos, na ponderação de consequências
os quais mereceram muitos aplausos. Seguiu-se uma lauta ceia digna que dali podem provír, atendendo ao ja referido número de escravos
de uma particular descrição por sua abundancia, e variedade, e boa que ha na Baia.››31
ordem.» A ceia, ponto alto da festa, era a ocasião para «as saúdes O que perpassa nestes textos é a rejeição da cultura negra e a sua
acomodadas ao assunto» e muitas senhoras cantaram o hino nacio- condenação, tendo como justificativa a «desonestidade» das suas
nal. Contudo, é de observar que também aqui, no espaço da festa danças ou a «barbaridade›› dos sons produzidos pelos seus instru-
palaciana, damas e cavalheiros nao se misturaram durante a ceia: mentos. Além disso, sendo os cantares em linguas africanas, o branco
«As senhoras cearam em 12 mesas redondas, e os homens na mesa não as podia entender e portanto temía-as. A estranheza perante o
grande, que ocupava toda a varanda do palacio» A funçao durou «até diferente levava ao medo, acentuado este quando, em 1814, um levan-
o romper d`alba›› com varias danças e duetos. A festa do aniversano te de negros na Baia levou os brancos a exigir medidas repressivas
do rei tornara-se assim mais privada do que pública, mais dirigida as mais severas do que aquelas que tinham sido tomadas pelo governa-
«pessoas de distinção» do que à população em geral que apenas teve, dor, conde dos Arcos. Este, se por um lado proibira totalmente «as
para se distrair, «arrumamento de tropas» e salvas de canhão. danças que os negros costumam fazer ao som de instrumentos estre-
Nas festas públicas todos os grupos étnicos participavam, senão pitosos, e desentoados nas ruas e largos desta cidade», por outro não
como actores, pelo menos como espectadores. Resta saber contudo impedira que os escravos se juntassem nos dois largos da Graça e do
se, no espaço urbano ou rural, havia lugar para a festa própria de cada Barbalho, podendo ai dançar «até o toque das Avé-Marias». Esta per-
etnia. missão levava em conta o facto de que «muitos senhores reconhecem
Deìxar ou não os negros fazer os seus batuques e as suas danças a necessidade, e vantagem de diminuir os horrores de cativeiro, per-
dependia da maior ou menor flexibilidade dos governadores nas vilas mitíndo que seus escravos se divirtam, e que de dias em dias se
e centros urbanos e dos senhores nas suas fazendas e engenhos. Essas esqueçant por algumas horas do seu triste estado››52.
actividades de lazer da gente de cor (das quais por vezes participavam Estas medidas tolerantes do governador consternavam alguns bran-
os próprios brancos), por provocarem ajuntamentos perigosos, eram cos assustados com as mortes recentemente ocorridas e com as casas
mal vistas pela população branca em épocas de crise e encarados íncendiadas. Respondendo em parte a uma frase do governador na sua
como demonstraçöes de uma sexualidade desenfreada pelos repre- ordem do día («em todas as cidades policiadas do mundo se permi-
sentantes da Igreja. tem divertimentos públicos proporcionados até as últimas classes da
Em 1779, na Capitanía de Pernambuco, foi denunciada ao Santo nação››), cliziam não se dever permitir aos negros «divertímentos tão
Oficio a demasiada condescendência do então governador com os profanos em dias de descanso, e dedicados ao culto do verdadeiro
divertimentos dos negros: «Alguns governadores proibiram estas dan- Deus» quando muitos brancos, como os soldados e caixeiros, não
ças, e outras, que se fazem na terra, pelos naturais chamadas foffa, ou
batuque entre homens, e mulheres, que consiste em representar um
3° ANTT, Inquisiçao de Lisboa, 4740.
acto torpe de fomicação, acompanhada de instrumentos, estrépitos 3' Luís dos Santos Vilhena, Recopilaçâo de notícias soreropolfranas e bmsflicas,
de pés, e mãos, com ditos inhonestos, e para maior desgraça nos Baia, 1921, carta III.
tempos presentes com ditos blasfêmìcos, como 'Oh meu Deus, ora 52 BNRJ, Ms. tt - 34, 6, 53.
278 279
tinham domingos nem dias santos, «aplicados sempre nos serviços»
ou em guardas e rondas.
Todos os males então ocorridos provinham não só dos batuques
mas também de se ter permitido aos negros «andarem com vestimen-
tas de reì, coroando-se com espectáculos, e aparatos, fazendo uns aos 6
outros tais, e quais homenagens, e ajuntamentos com caixas de guerra
amotinando toda a cidade». Sinais de religiosídade e atitudes
Passado o susto com o levante dos negros, as diversöes destes
continuaram a ter lugar nos espaços públicos das principais cida- de descrença*
des. Alguns anos mais tarde, Spix e Martius referiam-se às cantigas
alegres e danças executadas não apenas nos domingos e dias san-
tos, mas ao pôr-do-sol, por numerosos grupos de negros”.

Por mais que bispos e missionârios, ou mesmo as autoridades civis,


se mostrassem optimistas, a aculturação religiosa dos indios, quando
não era apenas passageira, revelava-se sempre superficial e por vezes
supersticiosa e heterodoxa. Segundo denúncia de um vigário, em
1782, o capitão dos indios da povoação de Barreiros, perto de Seri-
nhaém, «costumava fazer aiuntamentos com outros indios nos matos
do lugar chamado Carmelião, e preparar jurema, e nela metia uma
imagem de Nosso Senhor Cristo, depois dava a beber a todo o dito
ajuntamento», E, o que era pior do ponto de vista do padre, a seme-
lhantes funçöes tinham assistido várias pessoas brancas «que andavam
por estas partes a seus negócios e traba1hos››1.
Também o bispo do Pará, D. Fr. Caetano Brandão, depois de narrar
minuciosamente as visitas feitas â sua extensa diocese entre 1783 e
1789, cornentava na sua 1@ reilexão, por um lado, os maus exemplos
que os indios tinham à sua volta nas pessoas dos colonos e mesmo,
em cerros casos, de padres ignorantes e escandalosos, e, por outro,
uma certa incapacidade natural dos indios para conhecerem as verda-
des da fé e praticarem as virtudes cristãs. Nessas «almas tão gros-
seiras» e «aferradas aos objectos dos sentidos», que efeito podiam
produzir os principios da religião católica? «Como lhes servirá de
apoio a eficácia dos sacramentos, se não chegam a recebê-los, ou
ainda que cheguem, é só por medo dos castigos, sem conhecimento
do que recebem, e sem disposição alguma, próxima ou remota, pois
que está assentado que saindo do tribunal da penitência voltam logo
às culpas envelhecidas, e com o costume tomadas natureza?››

i " Com a colaboração de Guilherme Pereira das Neves, da Universidade Federal


_
1 Fluminense, e de David Higgs, da Universidade de Toronto.
35 Spix e Martius, op. cir., Tomo 2, p. 142. ' ANTT, Inquisição de Lisboa, 6258.

280 281
ÉP-

Este bispo nao mantinha muitas ilusoes quanto ã aculturaçao reli- irmandade e não a lista dos irmãos a ela pertencentes, pois só aquele
giosa dos indios. Mesmo quando ouviam a palavra de vigários compe- documento precisava da autorização por parte da Coroa, atraves da
tentes a sua adesão era constrangida pelo medo de represalias e se, Mesa de Consciência e Ordens. No Arquivo da Cüria Metropolitana de
aparentemente, cumpriam os deveres de cristão confessando-se, co- I
São Paulo esta conservado o compromisso da irmandade de N. S. do
mungando, ouvindo missa, esse comportamento em nada abalava os Rosario dos Homens Pretos de São Paulo, datado de 1778, sem que
«dois vicios da incontinência e da gula» que o costume tinha tornado saibamos quantos homens de cor a ela pertenciamö.
natureza, como escrevia o bispoz. Do que não ha dúvida é que estas irmandades se espalhavam por
A existência de irmandades congregando negros e mulatos tem todo o Brasil, concentrando-se sobretudo nas quatro Capitanias onde
levado a supor uma forte aculruração religiosa da população de ori- a população de cor era mais numerosa: Minas Gerais, Baia, Pernam-
gem africana ou dos seus descendentes. Mas os dados recolhidos por buco e Rio de Janeiro. Patricia A. Mulvey estudou 165 irmandades e
Patricia Mulvey acerca do número de irmãos pertencentes a estas destas 52 existiam em Minas; 44 na Baia; 50 no Rio de Janeiro; e 20 em
confrarias revelam que apenas uma pequena percentagem dos ho- Pernambuco. Capitanias como as de Rio Grande de S. Pedro, Marae
mens de cor se congregava nestas instituiçöes. Para o periodo que nhão e Sergipe só possuiam uma irmandade de homens de cor cada
nos interessa, vejamos os números: uma4.
Mesmo quando não ocorríam comportamentos menos ortodoxos
do ponto de vista do catolicismo, as festas religiosas organizadas por
N° de estas confrarias sempre davam â cultura africana a oportunidade de
Data Irmandade Localização membros nelas encontrar um meio de expressão, por exemplo, com a procissão
e a coroação do rei e da rainha do Congo, ou com danças africanas.
1783 N. S do Rosario Vila de Goiana, 16 Os pretos devotos da Senhora do Rosario na Baia dirigiram uma
Paraíba do Norte l
petição ã rainha D. Maria I, em 1786, para, pelo periodo de três ou
1783 Senhor Bom Jesus Barra, Baia 11 oito dias, lhes serem autorizados <<mãscaras, danças no idioma de
da Ressurreição Angola com os instrumentos concernentes, cânticos e louvores» que
1786 N. S. do Rosario Espinhares, 27 antigamente lhes eram permitidos durante a festividade em honra da
na capela de N. S. Paraíba Senhora do Rosario e dos quais se achavam então privadosó.
da Guia Ja vimos que, em épocas de crise e de tensão entre brancos e
1788 N. S. dos Remedios
dos Pretos nação Mina
Rio de janeiro 12 l negros, como ocorreu na Baia em 1814, a coroação dos reis do Con-
go era uma cerimónia desaconselhada, mas isto prova que ela se
1804 S. Benedito Goias 23 realizou até ao fim do período colonial, tendo tido a sua origem no
1806 N. S. do Rosario Desterro de També, 16 séc. xvn.
Paraíba do Norte As irmandades dos homens de cor tinham como função controlar o
1820 N. S. do Rosario Se da Baia 27 comportamento da população de africanos e crioulos, mantendo-o

Fonte: Patricia A. Mulvey, Black Brothers and Sisters.- Membership in :be Black
Lay Brotberboods of Colonial Brazil. 3 Acsp, cod. 1-3-a.
4 «Black Brothers and Sisters: Membership in the Black Lay Brotherhoods of
Colonial Brazil», ¿uso-Brazilian Review, 17(2); 255-277, 1980.
5 Patricia Mulvey, op. cii. e «Slave Confraternities in Brazil: Their Role in Colonial
É certo que não é possível conhecer o número de irmãos perten- s0¢iety››, Tb@ Americas. 59(1); 59-68, 19s2.
centes a todas as confrarias de homens de cor espalhadas pelo terri- 5 Patricia Mulvey, «Slave Confraterru'ties...››, p. 47. As festas religiosas dos negros
tório brasileiro. Muitas vezes só foi conservado o compromisso da constituiam um atractivo para os estrangeiros que visitavam o Rio de Janeiro. Em
1817 os austriacos Spix e Martius assistiram a uma festa de Nossa Senhora do Rosario
numa capela pouco distante da Quinta Real de S. Cristóvão e chamoulhes a atenção a
orquestra dos pretos que «tocou uma música alegre, quase engraçada» e também os
š
2 Diâríos das visitas pastorais no Pará, 157-159. i foguetes e bombas lançados do adro. (Op. cít., L l, livro ll, cap. 1).

282 l 285

4
†"
dentro dos limites da ortodoxia católica e das normas prescritas pela N. S. do Terço (Baia) 1803 B e P 2$400 rs 100 rs
Igreja. Vigiavam para que no seu seio não houvesse <<feiticeiros››, Senhor Bom Jesus das 1804 520 rs 100 rs
irmãos casados vivendo amancebados e por isso dando ma vida as Necessidades e Redenção
suas mulheres, fujöes, ladröes ou «papaterra››. Por outro lado, seriam (ilha de Itaparica, Baia)
também expulsos da confraria os «motinadores e rebeldes», que N. S. da Conceiçao 1805 13000 réis 160 rs
causassem discordias?. (Valença, comarca
Irmandade de homens pardos que também aceitava irmãos bran- de Ilhéus, Baia)
cos, a irmandade de Nossa Senhora do Terço, da cidade da Baia, N. S. do Rosario (Baia) 1820 2$000 rs 100 rs
incluiu, no seu compromisso de 1803, um capítulo especial sobre
os «irmãos revo1tosos››: «Constando à Mesa que ha algum irmão Fonte; Patricia A. Mulvey «Slave Confraternities...››; ANR}, Cod. 815. B, branco;
que seja revoltoso, e orgulhoso, que traga esta irmandade inquieta N, negro; P, pardo.
com arengas, e mexericos, neste caso sera chamado o dito irmão
para falar â Mesa, e na presença dela sera obrigado o juiz a lhe
apresentar os seus crimes, ou defeitos contra a irmandade, e lhe dara Embora em relaçao aos negros os brancos supusessem uma adop-
a sua repreensão amorosamente como bom Conselho, e quando por ção mais profunda do catolicismo do que aquela que se observava
este modo não se queira o dito irmäo reformar dos seus maus costu- entre os indios domesticados, e para isso muito contribuía a multipli-
mes, sera aconselhado segunda vez, e se não tiver emenda, neste caso cidade de irmandades de homens de cor, o facto e que muitas vezes
sera logo riscado fora de irmão para cujo efeito se correrá escrutinio eles apareciam aos olhos dos padres como «fomentadores das supers-
votando toda a Mesa sobre esta decisão, e do que produzir se fará ticiosas e abominaveis opiniöes›› que infestavam os sertöes afastados
termo de resolução, e expulsão com todas as declaraçöes, e circuns- dos grandes centros de culto e onde a escassa população branca se via
tancias que façam ver em todo o tempo, a Fun de que nunca jamais como que submergida por <<negros, pardos, cabras, tapuios,
possa ser admitido.››8 mestiços». Nos sertöes do bispado de Pernambuco habitavam, entre
Algumas confrarias não aceitavam escravos por razöes que elas outros, «gentios da costa da Mina, de Angola, de Benguela, de quase
próprias explicitavam; «os ditos nativos sao muitas vezes impedidos toda a cafraria» que, embora baptizados no Brasil e tendo «alguma luz
do senhorio para cumprirem com suas obrigaçöes pela diminuição do de religião», nao esqueceram as suas raízes; «vêm cheios de prejuizos
tempo de seus sewiços››9. Em contrapartida outras não só os aceita- da infância, que apenas de todo se arrancam nos que têm almas boas,
vam como os ajudavam linanceiramente a juntar 0 pecúlio necessario e chegam bem a entender a lingua». Assim, como dizia o padre, «com
à compra da sua alforria. natureza quase paga, têm uma fé fria, cheia de defeitos, morta››1°.
Vejamos os gastos exigidos aos irmãos: Não abandonavam facilmente estes negros africanos as suas tradi-
çöes, recorrendo a «mil danças diabólicas» e a feitiços, invocando os
astros, «os demonios», para obterem «mulheres, intrepidez, e se tor-
Irmandade Data Entrada Anuidade narem impenetraveis as balas, ao ferro», como escrevia aquele padre
denunciante dos erros cometidos no sertão das minas de Paracatu.
S. Benedito (Sergipe) 1778 B 480 rs 160 rs Em contrapartida, mesmo negros africanos usavam simbolos do
N e P 320 rs catolicismo comuns entre os brancos. Quando Rosa da Mota, preta
N. S. do Rosario 1 785 B e P 2$000 rs 160 rs forra natural da Costa da Mina, morreu no sitio dos Buritis, da fregue-
(Paraíba do Norte) N 320 rs sia do Curral d'el-rei, comarca do Rio das Velhas, na Capitanía de
N. S. do Rosario e 1786 640 rs 160 rs Minas Gerais, foram encontrados entre os seus bens um par de brin-
S. Bento (Pernambuco) cos de ouro e «um crucilìxo de ouro com cruz lisa e uma Senhora da
Conceiçã0››; e uma cruz de ouro foi também inventar-iada por morte
7 rbrd., p. 55.
B msj, cod. sis.
9 Patricia Mulvey, «Slave Confratemities...››, p. 58. 'O ANTI', Inquisição de Lisboa, 6240.

284 235
de Ana, preta de naçao Mina, falecida na fazenda dos Guardas, termo selecção dos irmãos. No da confraria de Nossa Senhora do Socorro,
de Pitangui, na mesma Capitanía”. erecta na igreja do patriarca S. Domingos, no Rio de Janeiro, vemos
Os testamentos da gente de cor em nada diferem dos redigidos por que eram admitidas «as pessoas de probidade, de um e outro sexo,
brancos, quer quanto às fórmulas empregadas para a encomendaçao que conduzidos da devoção forem reconhecidos da sua piedade». Os
da alma, quer quanto ao conteúdo e decisöes tomadas. Uma forra da irmãos pagavam de entrada 960 réis e de anuidade 480 réis, enquanto
vila de Nossa Senhora da Píedade de Lorena, na Capitanía de São na irmandade do Santissimo Sacramento da Candelaria, a que perten-
Paulo, escolheu, em primeiro lugar, para seu testamenteiro um pa- ciam os negociantes de grosso trato, e na irmandade do Senhor dos
dre; queria que o seu corpo fosse amortalhado no habito de S. Fran- Passos à qual estavam ligados os membros da familia real e a aristo-
cisco e «em falta dele, no que puder ser››; declarou ser irmã da cracia então sediada no Rio de Janeiro, estas contribuiçôes eram bem
irmandade de Nossa Senhora da Píedade e querer ser sepultada na mais elevadas”.
sepultura da sua confraria. Era ainda irmã da Santa Casa e queria que As irmandades tinham composição semelhante: havia o capelão, o
se pagassem os anuais que estivesse devendo, além de se preocupar juiz, o escrivão, o tesoureiro, o procurador, os mesarios e um
em deixar meia dobla para as obras da capela de Nossa Senhora do <<andador›› que se encarregava dos peditorios. Estes cargos destina-
Rosario dos pretos daquela vila”. vam-se ã gestao da associação, quer do ponto de vista financeiro
Um liberto, nascido em Benguela e que fora como escravo para o (cobrança das anuidades, recolhimento dos legados, elaboração dos
Brasil, fez o seu testamento no Rio de Janeiro em 1811 e o modo livros de receita e despesa), quer do ponto de vista ético-religioso.
como declara a sua fé em nada diverge daquela que é comum nos Estas associaçöes religiosas eram mais ou menos ricas conforme as
testamentos dos brancos; «Eu, João Antonio do Amaral [...], sou contribuiçöes que recebiam, as esmolas que angariavam, os legados a
cristão pela graça de Deus e creio em todos os misterios da Santissi- elas deixados, mas todas procuravam festejar com 0 maior luxo e
ma Trindade assim e da maneira que nos ha ensinado e manda crer a pompa a festa do seu padroeiro e possuir alfaias religiosas dignas,
Santa Igreja Catolica Romana, e confiado em os infinitos merecimen- não hesitando mesmo em recorrer a espectaculos teatrais para arre-
tos da sagrada paixão e morte do Unigénito Filho de Deus e meu cadarem dinheiro.
Senhor Cristo, espero me sejam perdoados meus pecados e salva a Vejamos um exemplo destas festividades. A irmandade de Nossa
minha alma, mediante a intervenção da bem aventurada Virgem Maria, Senhora do Terço, erecta na capela do Corpo Santo, filial da freguesia
mae de Deus e Senhora nossa, a quem suplico e ao Anjo da minha de Nossa Senhora da Conceiçao da Praia, na cidade da Baia, estipulava
guarda, ao Santo do meu nome e a todos os Santos e Santas da Corte no seu compromisso de 1805: «A festìvidade de Nossa Senhora do
do Céu e aos da minha particular devoção queirarn interceder por
mim a Deus Nosso Senhor, a fim de que a minha alma se salve e va
1 Terço se ha-de fazer no dia 8 do mês de Setembro, ou naquele dia que
mais oportuno for determinado pela Mesa, cuja festa se fara meio dia
gozar da bem aventurança eterna para que foi criada, pois como somente, com o Santissimo Sacramento exposto, missa cantada, ser-
verdadeiro cristão protesto viver e morrer na santa fé catolica, detes- mao, música, e com tudo o mais que se costurna fazer, e juntamente a
tando, como detesto, tudo quanto detesta e abiura a Santa lgreia.››15 novena com mais cómodo que puder ser. Quando se determine fazer
Tal como as Misericordias, também as inúmeras irmandades espa- esta função com maior pompa, acréscimo, e grandeza, farão, ou sera
lhadas por todo o Brasil continuaram a desempenhar no fim do pe- feita ã custa dos oficiais da Mesa, e daqueles devotos, que quiserem
ríodo colonial o seu papel de associaçôes religiosas protectoras da concorrer com esmolas para isso.››15 Esta irmandade de pardos, que
vida espiritual dos irmãos, e também de reguladoras do seu compor- também aceitava brancos como irmãos, colocava como um dos seus
tamento na comunidade a que pertenciam. objectivos a frequente procissão do Santo Terço «com Nossa Senhora
A analise dos compromissos destas confrarias permite-nos visuali-
zar melhor as actividades a que se dedicavam e também o modo de
14 Instituto de Estudos Brasileiros (Universidade de São Paulo), «Compromisso
da Confraria de Nossa Senhora do Socorro, erecta na igreja do Patriarca Senhor
U Arquivo Público Mineiro, Camara Municipal de Sabarå, livro n° 75. Testamentos Domingos do Rio de janeiro. 1806››; ANRJ, Cod. 229. Irmandade dos Passos de N.
e inventarios, 1784. S. jesus Cristo: lançamento de contas de 1781 e entradas de irmãos, e Cod. 170,
12 AESP, Ordem 456, lata 2, livro n° 8, fol. 43. Irmandade do Santissimo Sacramento da freguesia de Nossa Senhora da Candelaria.
la ANRJ, Testamentos, João Antonio do Amaral, maço 434, D” 3591. "" ANRJ, Cod. 815.

286 l 287
debaixo do palio pelas ruas desta freguesia», mas isso só quando os no Rio de Janeiro, logo muito cedo de manhã, por volta das cinco e
bens da irmandade tivessem aumentado e os rendimentos fossem meia, começavam a aparecer nas ruas da cidade os esmoleres das
solidos. Quando se pretendesse fazer esta procissão «com maior confrarias. Cercavam logo os devotos que se dirigiam para a primeira
pompa e solenidade no dia da festa, ou em qualquer outro dia», as missa do dia, ou os marinheiros compradores de provisoes ou mesmo
custas correriam por conta da Mesa e mais devotos «e não com as negras de ganho que sempre davam algum vintém. Finalmente,
despesas da irmandade». quando as lojas e as portas das casas mais abastadas começavam a
No compromisso de uma outra irmandade baíana, a do Menino abrir-se, conseguiam também algumas esmolas junto das classes mais
jesus, sita na matriz da vila de Santo Amaro, datado de 1814, vê-se abonadas. Em geral às 11 da manhã terminavam o seu peditório”.
claramente como os cargos ocupados dentro da associaçao religiosa Estes esmoleres, segundo informa ainda Debret, eram já homens
implicavam despesas: «O juiz da festa, se a não quiser fazer ã sua assalariados e nao irmãos das confrarias, e recebiam um salario pro-
custa, dara 25$000 rs; a juíza sua companheira dara o serrnao, e lumi- porcional à quantia recolhida. A sua forma de pedir tornarase, com 0
narias, e não querendo, dara em dinheiro 103000; 0 juiz de devoção passar do tempo, mais profissional a fim de mais facilmente arrancar
dara 4$00O, a juíza 2$000, o escrivão 6$400; cada um irmão da mesa as esmolas dos devotos. Vestiam-se alias com uma opa de cor diferen-
dara 1$000; e cada mordomo, ou mordoma, dara 1$600 réis.››16 te conforme o fim especifico a que se destinavam as esmolas; à quinta-
Além da cobrança de uma taxa de entrada, as várias irmandades e -feira, quando pediam pelo repouso das almas do Purgatorio e
confrarias cobravam anuidades aqueles que a elas pertenciam e, à ponanto para missas em sua intenção, punham a opa verde; quando
hora da morte, ou pelo menos no momento de redigirem seus testa- se destinavam ao oficio do Santissimo Sacramento e â compra de
mentos, todos procuravam saldar as dívidas para com a associação velas, envergavam uma carmesim.
religiosa a que pertenciam, tanto mais que era com os irmãos que Tal como as irmandades ou confrarias, também as ordens terceiras
contavam para o enterro e serviços fúnebres. Lemos no testamento congregavam os fiéis, homens e mulheres, que nelas desempenhavam
de Ana Garcia, moradora na Capitanía de São Paulo, em 1805; «Devo funçoes e que depois contavam com a sua solidariedade no momento
meia pataca a minha irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte deste da mortezo. Esta atitude transparece do testamento de Escolastica
presente ano, sou irmã ha 10 anos e todos paguei.››17 Antunes Lage, em 1795, na Capitanía de São Paulo: «Declaro que 0
A mobilidade geografica levava por vezes os fiéis a pertencerem a meu corpo sera sepultado na ordem terceira de São Francisco, de
varias irmandades ao longo das suas vidas e depois, no momento de onde sou indigna irmã terceira e onde servi três anos de ministra na
prepararem as cerimónias fúnebres a serem organizadas pelos testa- l mesma ordem e sera amortalhado no habito da religião de São Fran-
menteiros, não deixavam de recorrer a todas elas. Moradora na vila de cisco.››2“
i
Jundiai, na Capitanía de São Paulo, Francisca Soares de Araújo, em O facto, contudo, de pertencer a uma ordem terceira nao implicava
1797, expressou o desejo de ter o corpo amortalhado no habito da que as pessoas não estivessem ao mesmo tempo ligadas a irmandades.
Virgem Senhora do Monte do Carmo, a cuja ordem terceira pertencia l Na vila de Mogi das Cruzes, na Capitanía de São Paulo, D. Escolastica
na vila de Itu, e de ser sepultada na capela da irmandade do Santissimo i Franca da Silveira era irma terceira da ordem da Senhora do Monte do
Sacramento, da qual era irmã na matriz da vila de Sorocaba. Além Carmo e também irrnã do Santissimo Sacramento, mas, nas suas dis-
disso, queria que o corpo fosse transportado na tumba da irmandade posiçôes testamentarias, deu preferência à primeira associação religio-
das Almas, de que também era irmã, certamente na própria vila de sa quer para a mortalha (habito daquela ordem) quer para o
Jundiaíls. transporte do corpo no seu esquife, quer ainda para o local da sepul-
Para que as irmandades pudessem realizar tudo 0 que constava dos tura. Pedia, contudo, que os irmãos de uma e outra acompanhassem o
seus compromissos, o dinheiro arrecadado com as taxas de entrada cortejo fúnebre. Esta mulher tinha ingressado na ordem terceira do
dos irmãos e as anuidades por eles pagas não era suficiente. Havia Carmo mediante a promessa de pagamento de 52$00O, o que era uma
ainda que fazer peditorios para recolher esmolas. Debret conta que

1° ANRJ, cod. s45.


'7 AESP, Ordem 456, lata 2, livro n' 6, fol. 169.
18 AESP, Ordem 456, lata 2, folhas avulsas.
4 191. B_ Debret, op. ar., r. 11, pp. 150-154.
2° Para o periodo de 1549 a 1763 ver A. 1. R. Russell-Wood, «Prestige, Power, and
Piety in Colonial Brazil: The Third Orders of Salvador», l-IAHR, 69(1): 61-89, 1989.
21 AESP, Ordem 456, lata 2, livro n° 6, fol. 117.

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†'

quantia mais elevada do que as habitualmente cobradas pelas irman- Rosãrio dos homens pretos, e meia dobra para a Senhora do Monte
dades. Talvez por esta razão, na altura em que redigiu 0 seu testamen- do Carmo, ordem terceira a que pertencia”.
to, ainda não tinha pago aquela quantia, para cujo pagamento contava Na vila de Porto Feliz, tambem pertencente ã Capitanía de São
com a venda dos escravos feita após a sua morte, venda essa que se Paulo, uma mulher casada, sem filhos, quis garantir maior permanê-n›
destinava não só a pagar aquela divida mas todas as suas clisposiçöes cia ã sua dãdiva e assim, além de doar 20$O0O réis para a Senhora do
testamentãrias. Como não tinha filhos, nem ascendentes, deixava o Rosario, recomendou ao seu testamenteiro que pusesse 20$00O réis a
que sobrasse a um padre, o que era um comportamento pouco co- juros para com o rendimento comprar incenso para incensar todos os
mum naquela Capitanía”. sábados 0 altar nas ladainhas que se cantavam ã Senhora Mãe dos
As ordens terceiras eram exigentes no que se referia ã pureza de Homens; «e quero que este meu legado seja perpë-tuo››27.
sangue, não admitindo gente de cor, e também no que dizia respeito â Alguns membros do clero, mais abonados, fizeram substanciais
condição social e ao nivel de fortuna, não aceitando «mecânicos›› ou legados pios mas, quando a sua fortuna chamava a atenção, o proces-
que ocupassem um «oficio vi1››25. so de herança não se desenrolava de maneira pacifica e por vezes a
No momento de fazer o seu testamento, homens e mulheres não só concretização destes legados demorava anos a ser efectuada. Na Ca-
se preocupavam com as missas para salvação das suas almas e dos pitanía do Espirito Santo, na vila de Guaraparim, o padre António
seus parentes, e até mesmo dos seus escravos, mas também com a Siqueira Quental, senhor de dois engenhos de açúcat, pediu ao seu
dignidade do culto católico legando quantias em dinheiro a várias testamenteiro que guardasse em seu poder a quantia de 2.000 cruza-
igrejas ou capelas, Uma rica viúva, senhora de engenho na Capitanía dos e que a pusesse a juros. Destes devia pagar anualmente 20$000 em
de São Paulo, dispôs no seu testamento, datado de 1797; «Deixo quatro quanéis «para na matriz de Guaraparim fazerem as ladainhas
100$000 réis para aquilo que for necessárío para o culto de Nossa aos sábados e a procissão das almas e o Tantum Ergo ãs quintas-
Senhora do Rosãrio, que se acha no matriz desta vila (Itú), que ficarão -feitas». As irmandades da vila (de Santa Ana, São Miguel e São Bene-
em poder do meu testamenteiro para os distribuir no mais preciso dito) também seriam beneficiadas com 4 libras de cera cada uma
para a dita Senhora ã sua eleição. Deixo â igreja do Senhor Bom Jesus «para o dia da festa» e do resto dos iuros ainda se tiraria anualmente
desta vila 255600 réis, que se entregarão ao seu protector. Deixo a 20 frascos de azeite para a lâmpada de Nossa Senhora e, se sobrasse
Nossa Senhora do Carmo 25$600 réis que se entregarão ao reverendo alguma quantia, ficaria para a veneração de Nossa Senhora da Concei-
padre presidente daquele hospício para alguma alfaia de seu altar. ção, da forma que o testamenteiro o entendessezs.
Deixo a Nossa Senhora da Candelaria desta vila 25$600 réis para Mas o testamenteiro do padre Quental só ficou encarregado dos
distribuir no mais preciso de sua igreja a eleição de meu testamentei- «legados pios de pouca entidade», segundo as próprias palavras do
ro e caso que eu em minha vida cumpra alguns destes legados, que testador, e numa carta para o bispo do Rio de janeiro, ou a quem
constará de recibos, meu testamenteiro o não repetirá.››24 fizesse as suas vezes, pedia que organizasse a despesa do grosso da
Mesmo pessoas de menos posses não esqueciam os legados pios. herança, uma vez que instituira o Coração Santissimo de Nosso Se-
Em 1818, uma moradora da vila de Mogi das Cruzes, na Capitanía de nhor Jesus Cristo e a sua igreja (mandada construir pelo padre) como
São Paulo, apesar de ter 12 filhos, mandava distribuir 6$400 réis para o seu universal herdeiro; «Peço a Vossa Excelência pelas chagas de
Senhor Bom Jesus de Matosinhos e 4$000 réis de esmola para a Santa Cristo que se lembre da minha alma e tome o trabalho de arrumar
Casa de Jerusalëmzs. Da terça de uma outra moradora do termo da vila isto para o serviço de Deus, pondo aqui 8 sacerdotes capazes que
de Mogi das Cruzes, em 1822, se deram esmolas iguais de 4$000 réis administrem tudo e também as fazendas para a sua sustenção e para
para o Senhor Bom Jesus, a Senhora da Boa Morte, a Senhora do o necessárío do culto divino e fica dinheiro para paramentos de
sobejo.››
A religiosidade dos tcstadores revela-se não só pela existência de
22 Assr, ordem 457, ima 5, livro m 9, mi 51. legados a igrejas e capelas, mas também pelas quantias deixadas aos
23 A. J. R. Russe1~Wo0d, op. cit., p. 69, refere~se a uma cena ilexibilidade observa-
da nas ordens terceiras de Salvador, quer quanto ao facto de os candidatos serem
artesãos quer quanto ã condição de pardo. 26 1bf¢z,f01s. 125-4.
24 AESP, Ordem 456, lata 2, livro n" 6, fol_ 93v. 27 AESP, Ordem 456, lata 2, livro n“ 6, fol. 159.
25 AESP, Ordem 457, lata 3, livro n" 9, fol. 90.
I 28 Al-IU, Capitanía do Espirito Santo, Caixa 5, documento 37.

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Í'

pobres, segundo os principios da caridade crístã. Alias, nos testamen- esmola na forma sobredita a quem Vossa Mercê achar o pode fazer
tos os dois tipos de legados pios aparecem frequentemente unidos, e tiver necessidade dela, comprandolhe uma escrava ou dando-lhe
como se na mente do católico ambos agradassem igualmente a Deus. para o seu dote no caso que tenha com que se case, recebendo Vossa
D. Catarina Franca da Rocha, moradora na vila de Mogi das Cruzes, na Mercê recibo de haver recebido a dita esmola na forma sobredita, o
Capitanía de São Paulo, deixava, em 1822, de esmola a Nossa Senhora qual recibo vira reconhecído por um tabelião para o entregar ao dito
do Carmo da capela dos terceiros daquela vila a quantia de 515200 amigo. Para tudo o que for do serviço de Vossa Mercè me tera sempre
réis; para as obras da irmandade de Nossa Senhora do Rosario dos pronto ã sua ordem. Deus a Vossa Mercê guarde muitos anos» Em
homens pretos outros 51$200; e para os pobres da freguesia 25$600 vista desta carta, José Bonifacio Ribas destinou a dita esmola a Esco-
reis”. lastìca Maria das Neves, moça pobre, e com o dinheiro comprou uma
Uma moradora na vila de Guaratingueta, na mesma Capitanía, foi moleca de nação Benguela, da qual lhe fez doação em tabelião, com o
ainda mais explicita e generosa na sua dadiva aos pobres em 1821: cuidado de ressalvar que os pais da moça não podiam vender a
«Determíno que meu testamenteiro dara de esmola aos pobres em escrava nem «pagar na dita rapariga qualquer dívida››32.
baeta, dinheiro, ou outro qualquer género de primeira necessidade a A concessão de cartas de alforria a escravos insere-se na pratica da
quantia de 100$00O rs», ficando a seu arbitrio a escolha dos mais caridade quando a liberdade não era comprada pelo escravo e sim
necessitadosão. concedida gratuitamenteä. Dois tipos de documentação falam-nos
Os pobres também eram contemplados no testamento de Maria desses actos caritativos: por um lado, a séríe de testamentos; por
Pereira Ramos, da vila de Nossa Senhora da Píedade de Lorena, em outro, as escrituras de liberdade passadas em tabelião e portanto
1812: «Deixo para as obras da capela de Nossa Senhora da Conceição mais seguras para o escravo na medida em que evitavam os conflitos
do Embaú 8$000 rs; outra tanta quantia para os pobres da capela de que por vezes surgiam com os herdeiros.
Nossa Senhora do Rosario dos pretos desta vila. Deixo 6$400 réis para Talvez uma forma de quantificar, ou pelo menos de avaliar, a pre-
ornato da imagem do Senhor dos Passos desta vila e 12$800 réis para sença da religião na vida quotidiana dos individuos seja através da
os pobres do recolhimento das freiras de Nossa Senhora da Luz da menção de oratórios ou imagens no interior da casa, da referêncía
Cidade de São Paulo.››5' ao uso de rosarios e bentinhos ou ã posse de catecismos, brevíarios
A pratica da candade cristã não era apenas adiada para depois da e outras obras de devoção. Os testamentos, talvez mais ainda do que
morte. O céu começava a ser ganho ia em vida dos individuos, com os inventarios, revelam-nos a posse desses objectos, porque, â excep-
doaçöes de bens com fins caritatívos. Além dos legados pios feitos, ção de objectos de ouro ou prata, eles deixavam frequentemente de
como vimos, aos pobres em abstracto, encontramos nos documentos ser avaliados por serem considerados como de uso pessoal.
notariaís exemplos de «doaçöes por esmola», em que em geral as Uma moradora na vila de Nossa Senhora da Candelaria de Itú, na
beneficiadas eram moças pobres ou desprotegidas. No tabelião de Capitanía de São Paulo, declarava em 1795 possuir «um nicho peque-
São Paulo encontra-se transcrita a seguinte carta, remetida por um no metido na parede com uma imagem do Senhor Crucificado e uma
morador do Rio de Janeiro a 4 de Março de 1779: «Senhor José imagem da Senhora da Conceição e Santo Antonio», as quais seriam
Bonifacio Ribas. Remeto a Vossa Mercê 85$200 réis que nesta cidade legadas ã sua mulata Antónia assim como «um breve» que trazia ao
me entregou [certo] amigo para fazer com que por pessoa segura se pescoçoãé. Na vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba, também
dê nessa cidade por esmola a uma pobre digo a uma moça pobre, e na Capitanía de São Paulo uma viúva decide em 1805: «Quero que o
¦

como ainda que com Vossa Mercé não tenha conhecimento o tenho meu oratório e imagens não sejam vendidos e se ìncorporem às casas
muito do senhor Capitão Carlos josé Ribas pai de Vossa Mercê, e
tenho noticia grande da sua honra e verdade, por isso tenho a con-
fiança de dar a Vossa Mercê este enfado, rogando-lhe faça a dita 52 Assp, 2° Tab@-lia@ de são Paulo, Livro 4, fol. 64.
33 Por vezes os senhores de escravos aceitavam que estes comprassem a sua
liberdade mediante um preço convencionado. Este variava conforme 0 preço de
mercado; num livro de notas do tabelião do 1° oficio do Rio de Janeiro encontramos
29 Assia ordem 457, tata 5, uwo 11° 9, fol. 94. mencionadas, em 1808, as quantias de 25 e 11 doblas, para escravos; 4, 7 e 9 doblas
5° lbrat, foi. 140. para escravas (ANRJ, Secção do Poder judíciário, Livro n° 199).
31 Assr, ordem 456, tam 2, uvm n° s, fol. 11v. 5* Ass?, ordem 456, laa 2, um rw 6, foi. 117.

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1
Í?

para todos os meus filhos os gozarem juntamente com as casas e nelas Para que o ímpressor da Baia, Manuel da Silva Serva, se desse ao
morarem.››35 trabalho de levar livros para vender no Rio de Janeiro, entre os quais
Um rico negociante do Rio de Janeiro possuia uma grande varie- abundavam as obras de cunho religioso, como podemos ver pelo
dade de objectos de culto que, pelo seu valor, foram cuidadosamente catalogo por ele publicado em 1811, é porque nesta data, ao contra-
inventariados; além de «um oratorio pintado de dizer missa, com seus rio do que ocorrera antes da fíxação da Corte naquela cidade, havia ja
dourados e vidraça na frente» e de varias imagens (Cristo, Senhora das um mercado consumidor que se tornava necessario abastecer.
Dores, S. João, Santo Antonio, S. Tomas), havia «um caljx do oratorio Uns seriam destinados ao clero, então mais numeroso, como os
da chacara, liso, patena e colher dourada por dentro pesando dois Breviarios Romanos, Biblias, Catecismos (de Braga, de Lisboa, de
marcos e vinte e oito oitavas», um par de galhetas de vidro, uma caixa Montpellier), Compêndios de Historia Sagrada, Colecçoes de Breves
de folha para as hostias, um missal romano, e varios paramentos Pontiñcios, Dicionarios Teológicos, Ripanços da Semana Santa em
(casulas de damasco «agaloadas de galão de fio de ouro», um frontal latim, Vidas de Santos, etc. Mas outros destinavam-se talvez a um
de seda, toalhas de altar, «um corporal››)56. público menos especializado, como podem sugerir os seguintes titu-
Numa séríe de 15 inventarios da cidade do Rio de Janeiro apenas los, tal como eles aparecem na Noticia de livros postos ã venda pelo
em 4 estão ausentes os objectos privados de devoção: oratórios, ro- ímpressor baiano: O verdadeiro modo de conƒèssar-se bem, Reza de
sarìos, as imagens, os relicarios, alguns de valor aprecíavel; um Orato- Nossa Senhora das Dores, Retrato da morte, Pensamentos cristdos,
rio entalhado e dourado, com vidro nas portas, foi avaliado por i
varios tipos de Nor/ends, Manual devoto para assistir d missa, Livra'-
64$000 réis e «um rosarínho de contas pretas e 18 padres nossos l
nhos de Santa Bárbara acrescentddos, Exercício do crfstdo, Devopâo
de ouro» por 1033700 réis Mesmo pessoas de poucas posses como do Coraçdo de jesus, Aiffabetos com prz`ncz]D:'os de doutrina cristã,
uma certa Catarina da Anunciada tinham em casa trastes religiosos, etc”.
embora de reduzido valor: um oratorio pequeno, pintado e uma ima- Uma entidade religiosa do Rio de Janeiro, o Hospicio de N. S. do
gem de Cristo com a cruz valiam apenas 1$12O réis”. Patrocinio, anunciava nas paginas da gazeta carioca varios livrinhos de
Dado que muitas pessoas possuiam oratórios nas suas habitaçoes, devoção a baixos preços: Carril/:ias doutrinais, a 200 réis; Horas de
ou tinham mesmo capelas nas suas fazendas e engenhos onde um Quaresma, a 410 réis; Espai-z'!o de S. Francisco de Sales, a 520; um Flos
capelão dizia missa, o comercio de objectos religiosos era anunciado Sanctorum abreviado, a 800; Directorio sacro com cømtochdo e ceri-
nas grandes cidades através das gazetas locais. Na Gazeta do Rio de mónias para a Semana Santa e algumasfestividades, 1$000, o mes-
janeiro apareciam frequentemente anúncios de estampas de santos; mo preço de uns Directorios fúnebres. Eram estes que mesmo
de vestidos para imagens; de paramentos; de lanternas de prata «para individuos ricos como o negociante «de grosso trato» Elias Antonio
uso do culto divino››; imagens valiosas como a de um «Cristo grande, Lopes compravam. No inventario dos bens deixados por este último
cravada de pedras e prata››; um «altar com todos os paramentos para constavam um Ano meditatívo, um Modo de assistír d missa e um
uma capela particular», um «oratorio magnífico, doirado, e circulado exemplar das Visitas do Santissimo Sacramento”.
por dentro de pedras grisolitas, e juntamente com suas piramides Estes dados permitem formular a seguinte hipotese quanto ao
pelos lados, também doiradas››38. consumo de livros religiosos numa grande cidade como o Rio de

55 rara., foi. 150. matriz de Nossa Senhora do Rosario da vila da Cachoeira, no dia 29 de Março
56 ANRJ, cod. 789, 1815. proximo pretérito desaparecen da irmandade do Santissimo Sacramento, um purifi-
37 No Arquivo Nacional do Rio de Janeiro esta sé-rie documental é muito rica de cador de ouro lavrado, com 101 oitavas. Quem dele tiver noticia, ou souber quem o
informaçöes e procedeu-se apenas a uma simples amostragem; 1781, Cx. 1135, n" tenha ou vende, avise na loja da gazeta, e sendo na vila da Cachoeira, ao actual
9024; 1791, maço 2295, nf' 456; maço 2285, n" 1970; 1801, maço 2293, n“s 520 e 318; tesoureiro da mesma irmandade Francisco Antonio Fernandes Pereira, e na sua
maço 451, n” 8627; maço 462, n” 8853; 1811, Cx. 4136, n° 1515; maço 434, n° 8391; ausencia a qualquer irmão da Mesa, que verificada a verdade e entregando o dito
Cx. 1141, n" 9629; Cx. 1134, n° 9287; maço 469, n° 8950; 1821, Cx. 5650, n” 161; maço purificador recebera 405000 réis» (Idade d'Ouro do Brasil, nf' 28, 1818).
459, 11° 8480; maço 460, nf' 8794; maço 289, n" 5276; maço 121, n° 2586; maço 741, n” 39 Noticia do catálogo de livros, que se acham ci venda em casa de Manuel
5136; maço 459, n” 8762. Amónio da Silva Serua, Rio de janeiro, Impressão Regia, 1811.
58 Como os objectos litúrgicos eram em geral valiosos, eles eram frequentemente 4° Comparando os inventarios da cidade de São Paulo com os da cidade do Rio de
roubados, e nas gazetas ofereciam-se recompensas a quem os localizasse; «Na igreja Janeiro, nota-se um maior consumo de obras de devoção nesta última cidade que,

294 295
Janeiro da segunda década do séc. XIX: as obras mais caras, encader- fìm do mês o que puderes dar de esmola para assistência de alguma
nadas, como a Biblia de Sarmento, cujos 44 volumes eram vendidos pessoa envergonhada, ou para mandar ensinar um rapaz pobre a
pelo elevado preço de 52$000 réis, ou in-folio, como o Flos algum oficio, ou para qualquer outra obra pia.›› «Foge como da peste
Sanctorum, anunciado por 6$240 réis, eram adquiridas por institui- ã leitura de livros maus e perigosos, tais são nao só os que aberta-
çoes religiosas ou por membros do alto clero. Quanto aos livrinhos de mente atacam a nossa sagrada religião revelada, e que ensinarn erros
devoção, publicados em papel e de caracter mais pratico na medida contra o deposito da fé, mas todos os que contêm doutrinas novas,
em que ensinavam a bem cumprir os deveres religiosos, eles estavam opostas ã veneravel tradição, ao sentimento dos padres, a doutrina
ao alcance das camadas alfabetizadas da população, mesmo que tives- comum dos teólogos católicos, e ã disciplina da Santa Madre Igreja
sem poucas posses. Rornana»
Vejamos alguns exemplos destas obras devocíonais anunciadas Em relação a este último ponto, o Dicionário acentuava ainda que
pelo impressor e livreiro baiano. O autor das Horas da Semana os livros perigosos abriam caminho «ã corrupção dos costumes, ao
Santa, empregados na liçâo, e meditaçâo dos princzpais oƒïcios, e espirito da libertinagem e incredulidade, ã perturbação da tranquili-
sagrados misterios deste santo tempo era Fr. Francisco de Jesus Maria dade dos Estados, ao desprezo do estado eclesíastico››.
Sarmento e a tradução portuguesa contínha «varias ilustraçöes histo- Na sociedade do fim do periodo colonial como avaliar o peso da
ricas, oportunas reflexoes morais, e diferentes praticas de piedade, religião na vida quotidiana das populaçöes? Temos por um lado os
para melhor inteligência, devoto exercìcio, e espiritual proveito dos sínais exteriores de uma religiosidade senão profunda pelo menos
fiéis cristãos nestes grandes solenes dias». Especie de guia ou roteiro infiltrada no dia a dia: fazia-se a oração nos momentos adequados,
do crente que nesses dias era obrigado a um jejum mais rigoroso, a ia-se à missa nos dias santos e domingos, jejuava-se, cumpria-se a
uma oração mais frequente, a um retiro mais serio, a uma grave obrigação pascal, assistia-se a festas e procissöes religiosas, fazíam-
meditação sobre os misterios, a uma assistência constante aos oficios -se romarias, vivia-se como «beata›› ou «ennitão›>, pediam-se esmolas
divinos, â participação na penitência e na eucaristía, contínha ainda pelas ruas, levava-se o viatico aos moribundos, acompanhava-se enter-
um prólogo doutrínal. ros, enfim, cumpria-se com maior ou menor frequência uma série de
Bastante popular era o Directorio cristâo, que facilita az omçdo rituais. O que isso pudesse significar em termos de uma ética de
mental, 0 modo de ouvir a santa missa, visitar a igreja, e via sa- conduta ou de uma vivêncía intima dos preceitos católicos ja é mais
cra, preparar para confessar, e comungar, fazer a novena de Nossa dificil de dizer.
Senhora, e das Almas, e que propôe ditames breves, e sólidos, para Muito embora a encomendação da alma, que surge no inicio de
alcareçar a perƒeiçâo cristã, Em relação a este último objectivo, é todos os testamentos, possa ser encarada como um sinal de religiosi-
interessante conhecermos alguns dos ditames. «Evita na mesa super- dade colectiva, o seu caracter de fórmula estereotipada, por todos
fluidades e excessos; usa com moderação da comida a mais simples, repetida, nada significa do ponto de vista da fé individual. Assim
benze o que comeres e beberes, dando graças no lim, para te não podemos citar ao acaso um exemplo qualquer: «Primeiramente enca-
pareceres com os brutos» «Nao toques, nem te deixes tocar de minho minha alma a Santissima Trindade, que a criou. Rogo ao Eterno
pessoa diferente do teu sexo.›› «jamais admítas em tua casa jogos, para que pela morte de seu unigénito Filho a queira receber, a Virgem
seroes, assembleias, comedias, óperas e festins, nem visitas de pes- María Senhora Nossa e ã santa do meu nome e da minha especial
soas, em que domina o espirito do mundo_›› «Veste com moderação, devoçao, a Nossa Senhora do Rosario, e a todos os santos e santas
gravidade e limpeza, segundo o teu estado, não te deixando dominar da Corte do Céu rogo sejam meus intercessores quando minha alma
das modas de século, onde respira a vaidade, o luxo, e não 0 espirito deste mundo partir para que va gozar a bem aventurança para que foi
de jesus Cristo» «Regula as esmolas, que podes fazer cada mês, além criada porque como verdadeira cristã protesto viver e morrer na santa
cias que diariamente deres aos pobres mendicantes; e poe ã parte no fé católica e crer tudo o que tem e crê a Santa Igreja Catolica Roma-
na.››*1 Se, do ponto de vista individual, estas palavras pouco revelam,
do ponto de vista da mentalidade colectiva elas são significativas na
Sendo porto comercial, mais facilmente era abastecida de livros por Lisboa. No
inventario de Ignacia Angélica Assunção (1791) estavam arroladas 13 obras religio-
sas denotando intenso uso, por observaçöes como «velho››, «sem capas» ou «falta de
algumas folhas» (ANRJ, Inventarios, maço 2295, n° 456)- '“ Assr, ordem 456, lam 2, uvm rr 5, fol. izzv.
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medida em que na época seria impensavel um testamento sem este nhos, a 8 de Setembro. Mas para o bispo de Mariana, D. Fr. Cipriano
introito religioso. de S. José, estas romarias, além de desfalcarem os parocos das suas
As serras mineiras proporcionavam a possibilidade de uma vida de freguesias, e portanto das suas contribuiçòes, apareciam como oca-
reclusão e isolamento e os hospícíos ai erguidos tornaram-se muitas sioes de divertimentos profanos. A respeito da romaria ã serra do
vezes locais de peregrinação. Os austriacos Spix e Martius descreve- Caraça, escrevia; «Quem, ou por devoção mal entendida, ou por di-
ram em 1818 o hospício de Nossa Senhora Mae dos Homens, na serra vertimento conhecido vai passar três, ou quatro dias naquele sitio
do Caraça, criado por um eremita em 1774 graças a generosas doa- volta para sua casa mui contente, e satisfeito publicando que ganhou
çoes; «foi ornamentada pouco a pouco a igreja com pintura, obra de muitas indulgências, que o ermitão Lourenço tem alcançado de Roma
talha e guarniçöes de prata, ouro e pedras preciosas››'¿2. Ao lado uma para com elas atrair mais facilmente os povos. E é para notar que as
construção abrigava aqueles que para ali se dirigiam. Esse eremita, de gentes que sobem com tanto trabalho a Serra para lucrar indulgências,
origem portuguesa, sendo ja centenario, passara para o governo a nem cuidam nem se apressam para entrar nas suas respectivas fregue-
adminístração do hospício; «O estabelecimento ja possui alguns bens sias.>› O conflito de interesses entre o clero secular e os ermitoes
por contribuiçoes caritativas. Oito escravos negros cultivam a terra levou mesmo o bispo a lançar a suspeita sobre essas manifestaçöes
nos arredores, ou se ocupam com a críação de gado vacum, que aqui populares de religiosidade: «Donde se pode inferir sem escrúpulo que
prospera excelentemente» o divertimento, e a curiosidade, a romagem, e a mistura de um e outro
Hoje a historiografía mineira conhece um pouco melhor do que os sexo é todo o movel de semelhantes devoçöes.››43
naturalistas austriacos a origem deste hospício da Serra do Caraça. O Auguste Saint-Hilaire também visitou a Serra do Caraça, mas a
irmão Lourenço de Nossa Senhora destinara uma ala da construção descrição que nos deixou foi a do hospício da Serra da Píedade,
para um convento com «cómodos como para pessoas clausuradas›>, construido, segundo sua informação, por volta de 1778. Além de
sendo os fundadores irmãos professos da ordem terceira de S. Fran- uma capela grande, havia acomodaçöes para os eremítas e peregri-
cisco de Assis; a outra ala destinava-se a peregrinos que para ali se nos, tendo ã frente da capela rochedos com cruzes destinados aos
dirigiam «por suas devoçöes e interesses». Para o hospício se encami- ttpassos» da Semana Santa. Quando ele por ali passou em 1818 eram
nhavam portanto «varios homens que conheceram a pouca duração apenas três os eremítas que usavam batina e um grande chapéu: dois
da vida» e que ali faziam «suas confissöes geraìs», além de se purifi- mulatos e um branco velho com uma cabeleira postiça «já meio roida
carem. Que o isolamento e a beleza do local constituiam um estimulo pelos ratos». Embora pertencessem a capela da Píedade uma fazenda
ã vida espiritual foi o que sentiram também os viajantes austriacos. e algumas terras, estes eremítas não a cultivavam, preferindo esmolar
O bispo de Mariana, D. Fr. Cipriano de S. José, foi o primeiro a dar, pela região, segundo a tradiçãofi.
em 1805, o nome de hospício ã capela fundada pelo irmao Lourenço, Em Congonhas do Campo localizava-se talvez o mais célebre san-
descrevendo a instituição como «uma pequena casa regular e tuario para peregrinação na região mineira: a igreja de Nosso Senhor
religiosa» com acornodaçoes para doze ou mais individuos. Em do Bom Jesus de Matosinhos. Saint-Hilaire, que a visitou em 1818,
1806 foi redigido o compromisso da irmandade de Nossa Senhora descreveu-a como pequena, rica e ornada de um grande número de
Mãe dos Homens com o objectivo de ali fomentar as romarias, muito quadros feitos em Vila Rica. «A imagem que constitui objecto de
frequentes na região de Minas Gerais. veneração dos devotos foi colocada no interior do altar-mor e repre-
Tinham datas certas as romarias míneíras e todas elas se realizavam senta Jesus Cristo morto. Beijam-se os pés dessa imagem para merecer
com tempo frio, para maior sacrificio dos romeiros: na Serra da Pie- indulgências; depois depositam-se esmolas.›› De um dos lados da
dade, a 15 de Agosto; na Serra do Caraça, a 29 do mesmo mês; em igreja encontrava-se uma «casa dos milagres» onde se achava reunida
Congonhas do Campo, no santuario do Senhor Bom jesus de Matosi- uma prodigiosa quantidade de oferendas e membros de cera. E atras
da igreja erguiam-se duas construçoes compridas para abrigar os
peregrinos e outros visitantes. «Quando da minha viagem - escrevia
” Spix e Martius, op. cif., tomo I, livro IV, cap. 5. Sobre este hospício ver josé
Ferreira Carrato, «Medievalidades mineiras nos tempos da Inconfidência: hospicios e
romarias», RDH (Belo Horizonte) 9; 121-129, 1989. Algumas destas pinturas e dou-
ramentos vistos pelos viajantes austriacos foram realizadas, por volta de 1807, pelo 45 J. F. Carrato, op. cit., p. 127.
pintor Manuel da Costa Ataide, amigo do ermita fundador, irmao Lourenço. 44 Auguste Saint-Hilaire, Viagem pelo distrito dos diamantes, p. 67.

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Saint-Hilaire - tencionavam construir um pouco abaixo da igreja de com um cajado e um alforge às costas dando a beijar a imagem do
santo a uma negra, enquanto outro negro lançava uma moeda na caixa
Matosinhos, na vertente do morro em que ela se acha, sete capelas
representando os primeiros misterios da paixão de Jesus Cristo.›› Três das esmolas.
As <<beatas›› também faziam parte do quotidiano religioso. Essas
dessas capelas haviam já sido construidas, mas só uma estava acabagia
mulheres, assim identificadas nas próprias listas de população, são
por dentro, com imagens de madeira pintada e de tamanho natural 5.
retratadas com um rosario nas mãos e um benrinho no pescoço.
A «casa dos milagres», a que se refere Saint-Hilaire e também John
Pouco se sabe a seu respeito, embora por definição do lexicólogo
Luccock, contínha, alem dos membros humanos modelados em cera,
uma serie notãvel de ex-votos pintados sobre madeira, em que numa daquela epoca, António de Morais Silva, elas fizessem voto de castida-
de. Viviam porem «no mundo», nas suas próprias casas, e não num
pequena tabuleta a imagem e o texto narrativo contavam o milagre
que tinha ocorrido por intervenção do Bom Jesus de Matosinhos; a recolhimento ou convento.
Nas cidades e tambem nas vilas e pequenas povoaçöes manteve-se
cura de uma doença, a salvação num acidente, etcfió.
uma tradição originaria de Portugal: os nichos com imagens nas es-
Hospicios e santuarios, eremítas e peregrinos, romarias e ex-votos
faziam parte do quotidiano religioso no fim do periodo colonial e quinas das ruas, diante das quais, a certas horas do dia a população
foram observados e descritos pelos estrangeiros com maior ou me- dizia as suas oraçöes. Chamberlain deixou uma gravura de um desses
nor respeito conforme se tratava de viajantes católicos ou protes- nichos no Rio de Janeiro e os austriacos Spix e Martius observaram
tantes. aquele comportamento religioso numa pequena povoação de Minas
Os eremítas esmoleres eram vistos por várias regiöes do Brasil e Gerais”.
von Eschwege fez deles uma descrição genérica e não muito favorável; Também originarias de Portugal eram as magnificas procissòes e
«Chamam-se ermitöes homens que ordinariamente, para expiar seus outras festas religiosas, já descritas em outro capítulo. O que importa
pecados, tomam a resolução de montar guarda a uma capela e pedir aqui ressaltar e a imbricação do sagrado e do profano nessas mani-
esmolas para sua conservação. Eles se cobrem por uma especie de festaçöes promovidas pelos representantes da Igreja mas acompanha-
hábito; deixam crescer a barba e algumas vezes o cabelo. Carregando das com prazer e devoção por todas as camadas da população.
uma caixa envidraçada contendo a imagem do padroeiro de sua igreja, Nessas festas religiosas, e sobretudo em algumas regiöes do Brasil
eles percorrem a região, fazem beijar a imagem às pessoas que vão cuja população era mais irrequieta, ou de aculturação religiosa mais
recente, as deslumbrantes cerimónias próprias do catolicismo da epo-
encontrando e recebem por isso esmolas em dinheiro e objectos.
Alguns fazem voto de levar esse género de vida até o fim de seus ca assumiam sempre uma faceta de divertimento profano. Mesmo
dias, mas a maioria a isso se dedica por um certo tempo. Aqui, como dando o desconto por 0 inglês John Luccock ser protestante, a sua
em muitas outras cousas, introduziram tristes abusos; com efeito, observação acerca do comportamento da população de Vila Rica, na
varios desses eremítas não tomam o hábito senão para viverem à Capitanía de Minas Gerais, composta principalmente por negros e
custa do próximo, e vão beber às melhores tavernas com o dinheiro mulatos, devia conter alguma parcela de verdade; «Numa grande pro-
que a generosidade pública lhes ofereceu.››47 cissão a que assistiamos, a impressão geral provocada no espirito era a
Joaquim Cândido Guillobel, filho de um francês e nascido em de que os padres cumpriam com as obrigaçöes que lhes tocavam, mas
Lisboa, foi para o Brasil em 1808 e, nas suas cenas do quotidiano a populaça era turbulenta e indecorosa. Não se percebiam sentimen›
carioca, representou um destes eremítas esmoleres, imagem essa que tos verdadeiramente religiosos nessa demonstração e, no serviço
o inglês Chamberlain reproduziu no seu livro, mostrando o eremita comum da Ave-Maria que, tal como no Rio, se executava às esquinas
no meio dos negros vendedores da cidade do Rio de Janeiro. Por seu das ruas, a pessoa que o conduzia ficava animadamente a conversar,
lado, Maurice Rugendas, ao representar uma venda no Recife, colocou
à porta um eremita com uma especie de hábito, um grande chapeu,
4” Spix e Martius, op. cil., tomo 1, livro IV, cap. 3: «Encontramos grande parte dos
habitantes reunidos diante das imagens de Nossa Senhora iluminadas, para rezarem o
45 Ibid., p. 95. J Angelus. Este costume da mãe patria e pratìcado zelosamente e com solenidade
46 John Luccock, op. cit., pp. 346-7. Ver tambem Promessa e mílagre no Scmtuzi- quase teatral por toda a parte no Brasil; os mulatos que, em geral, alem de lingua
rio do Bom jesus de Matosinbos, Brasilia, Fundação Nacional Pró-Memoria, 1981. ligeira, dispöem de pulmöes fortes, assumem o olicio de primeiro cantor ou do
47 Citado por Saint-Hilaire, op. cif., pp. 67-8. padre»

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em seus intervalos, voltando a prestar a atençao quando chegava a sua desacordo com a regra do jejum afirmando não ser pecado «comer
vez.››49 carne nos dias proibido.~,›› e um capitão de corveta que fazia a viagem
No fim do periodo colonial percebemos, entre a elite culta da de Portugal para Pernambuco em 1789 passara das palavras aos actos,
epoca, um certo desprezo pelas formas mais ostensivas de religiosi- «comendo carne nos dias proibidos pela Igreja sem fazer caso das
dade, e tambem mais ostentatórías, que levavam OS ÍIICUVÍCÍUOS 3 admoestaçöes do capelão››52.
despender uma parte da sua fortuna em cerimónias inúteis e No periodo de que nos ocupamos continuavam a ser denunciadas
dispendiosasso. ã Inquisição todas as palavras ou comportamentos que revelassem
Para as altas autoridades eclesiásticas, a religiosidade dos colonos impiedade da parte de quem as proferia ou de quem assim agia. Essas
media~se por varios indices entre os quais se incluiam a frequência ã denúncias provinham de quase todas as regiöes do Brasil, mas com
confissão, a comunhão pascal, a assistência à missa, o respeito ao pouca frequência do território a sul do Rio de Janeiro.
iejum, o temor da morte. Após a longa visita pela sua diocese, o Em 1795 Francisco Luis Saturnino Veiga, substituto regio da cadeira
bispo do Pará, D. Fr. Caetano Brandão, referia as muitas pessoas de primeiras letras no arraial do Divino Espirito Santo, vulgo de Mata
de «vida dissolutìssima» que encontrara, «Sem fãlfll' 3801? (105 Sen' Porcos, denunciava ao Santo Oficio uma certa D. Ana, mulher de um
tios, nem ainda dos nossos indios baptizados». Eram brancos «sem negociante do Rio de Janeiro que, ao discorrer sobre religião, profe-
jugo, sem Deus, e sem consciência». E explicitava; <<o seu Deus não é rira as seguintes palavras; «Isto de Inferno e història. Deus não manda
outro senão o deleite da carne, ou o próprio interesse; nenhum jejuar. É logro passar a vida em abstinências e oraçöes. Deus não se
respeito ãs leis da Igreja; nenhum temor das censuras.›› E, o que ha-de ocupar no Juízo Final em perguntar a cada um de nós o que
era tambem muito grave, uma total «insensibilidade a respeito da fizemos (dando a entender que não haverá Juizo Universal). As con›
outra vida». E escandalizava-se com tal comportamento; «E assim fissöes foram inventadas pela curiosidade dos sacerdotes por quere-
passam a vida mui satisfeitos, rindo, folgando, comendo, e dormindo rem saber as vidas alheias.›› Quando este professor de primeiras letras
a sono solto.››51 afirmara a D. Ana «não ser outro 0 pensar em Inglaterra», ela retor-
No fim do período colonial e dificil, contudo, avaliar o grau de quira que ele era fanático «e estava pela antiga», enquanto ela, «bem
respeito pelos preceitos religiosos. Temos testemunhos no sentido longe desse fanatismo, educava por outra forma a sua familia››53.
de um cumprimento das determinaçöes da Igreja e outros do seu O não cumprimento dos deveres do católico, o principal dos quais
esquecimento e só uma quantificação, impossivel de por em pratica, era confessarse e comungar por ocasião da Pâscoa, começava por ser
nos poderia fazer ver para que lado se inclinava o prato da balança. punido pelas autoridades religiosas locais conhecedoras de tais inob-
Assim sendo, só nos resta apontar algumas situaçöes em que os indi- servâncias atraves dos minuciosos róis de desobriga elaborados pelos
viduos cumpriam um determinado preceito religioso e outros não. párocos. A punição tinha inicio com uma admoestação e uma recusa
Assim, por exemplo, em relação ã obrigação de jejuar nos dias pres- de outros sacramentos, podendo chegar ate ã excomunhão. Um ne-
critos pela Igreja, enquanto os viajantes estrangeiros referiam como gociante de escravos novos da cidade de São Paulo, natural da ilha de
sendo cumpridas, um capitão de milicias, morador em Sabará, na S. Miguel, «homem rústico e sem literatura alguma», foi excomungado
Capitanía de Minas Gerais, expressava verbalmente em 1789 0 seu pelas autoridades da Cüria Eclesiãstica do bispado de São Paulo «por
não satisfazer aos preceitos da Igreja». Depois, preso ã ordem da
Inquisição, em 1778 ele foi acusado ainda de proferir heresias do
49 John Luccock, op. cif., cap. XV. . ' _ tipo «na hóstia consagrada não está mais do que pão››. Os seus com-
5° Para o desembargador João Rodrigues de Brito, havia maneiras mais utels de
panheiros da cadeia de São Paulo achavam que ele tinha «pacto com 0
gas tar dinheiro › como se P ode ver Pela resposta que deu aos quesitos enwados pelo
gmåo governador da Baia, conde da Ponte, em 1807: «Gastam os moradores desta Diabo», por ele invocado com 0 nome de «Saramago››. Alem disso,
cidade espontaneamente mais de meio milhão por ano em funerais, e festas de igreja, revoltava-se contra Deus e blasfemava sempre que os negócios não
e nem um vimem em caminhos, cais, fontes, pontes, e obras pubhcas.:Se em vea de lhe corriam como desejava”.
lerem vidas de santos cheias de piedosas fraudes, lessem livros desta Cienclä Sublime
(Economia Política), suas despesas se encaminhariam como na Grã«Bretanha. Pam
docas e outras obras patrióticas.›› (Cartas economico-politicas sobre a agricultura e
9
52 ANrT,1nqu1siça<› de usboa, 2825 e 5529.
comércio da Bañrz, Lisboa, 1821). 55 AN'rr, Jbia, isoos.
5' Diarios, 5* reflexao, p. 170. 5*' ANTT, ibm., 6009.

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A documentação inquisitorial permite-nos formar uma ideia mais 22 - Censurar que nas calamidades se façam preces a Deus por as
adequada da forma concreta que podiam assumir esses ditos contra a considerar escusadas uma vez que tudo segue «a ordem da
fe católica e a lei evangélica a serem punidos por aquela instituiçãoss. Natureza››;
25 - Afirmar que o Santo Oficio «procede iniquamente››.
1 - Escarnecer e chamar fanático a quem lê e possui «livros
espirituais» tratando da «oração mental e vidas de santos››; Através de um interrogatório deste tipo, elaborado a partir de
2 - Descrer das indulgências, «e muito particularmente nas da denúncias efectivamente feitas, vemos que a irreligiosidade popular
bula da Santa Cruzada››; versava menos sobre pontos da fe do que sobre a hierarquia eclesiás
3 - Mofar das cerimónias religiosas dizendo que a Igreja celebra- tica e os representantes da Igreja com as suas formas de cobrança
va festas em honra do burro que conduziria a Virgem na fuga pecuniâria; bulas, indulgências, desobrigas, vendas de reliquias, pedi-
para o Egipto; tórìos e esmolas.
4 - Afirmar que Jesus praticara «uma acção imprópria de um Sobretudo a partir do inicio do sec. XIX a irreligiosidade assumiu
Deus» ao expulsar com pancadas os mercadores do templo; uma forma especifica atraves da acusaçâo de pertencer ã seita dos
5 - Considerar «imp0stores›› os pregadores; «pedreiros-livres». No Brasil, tal como na metrópole, as denúncias
6 - Apelidar de «petas e falsidades» as bulas dizendo que elas sucederam-se. Passa-se assim quase insensivelmente da acusação
não passavam de um modo de mandar dinheiro para Roma; mais ampla de «libertinagem››, que incluía varios tipos de descrença
7 - Falar contra o Papa, a Cüria Romana, os Concilios, os bispos e e atitudes negativas em relação ao clero e ao Papa, para a especifici-
os sacerdotes; dade de uma seita com matizes politicos. Numa denúncia feita no Rio
8 ~ Afirmar que 0 Papa «não tem superioridade aos mais bispos», de Janeiro em 1802, um reinol natural de Leiria denunciava, por ser
9 - Negar a existencia do Purgatório; católico e aconselhado por seu «padre espiritual», que, estando numa
10 - Negar a necessidade de fazer penitência porque uma «bula de «loge›› conversando com caixeiros, ouvira dizer que 0 filho de um
defuntos», que custava meio tostão, tirava a alma do Purgató- coronel de Milicias da vila de Mage «era secretario dos pedreiros
l'iO; livres». E mais nada acrescentava na sua denúncia, como se aquilo
11 - Dizer que só vale a pena fazer a confissão sacramental «para que dissera fosse mais que suficiente para o bom entendimento da
receber 0 escrito», ou seja, a certidão da desobriga; sua acusaçãosó.
12 - Tratar mal os religiosos mendicantes, chamando-lhes «impos- Na verdade, como bem mostraram dois estudos recentes de David
tores, vadios e ladröes que andam a corso››; Higgs, já nos anos 90 do séc. Xvnl a Inquisição de Lisboa tivera noticia
13 - Menosprezar as irmandades dizendo «antes ser irmao do de umas assembleias em casa do boticário Jose Luis Mendes e tambem
Diabo››; na do boticário Bandeira onde se proferiam muitas «libertagens›› e Se
14 - Afirmar que a sagrada Teologia «e uma peta» e que «os liam e divulgavam «livros hereticos e escandalosos», entre os quais se
franceses tinham feito bem em a deitar fora das suas esco1as››; incluiam as obras de Voltaire. Um dos pontos do interrogatorio orde-
15 - Zombar das «pessoas de votos e penitentes››, sobretudo da- nado pelos ¡nquisidores pretendia apurar se houvera alguma pessoa
queles que estão em conventos; que louvasse aos pedreiros livres, «com especiaiidade os da França,
16 - Ser contra as reliquias tidas como «peras dos sacerdotes››; afirmando que estes eram a melhor gente que havia, e que eram bons
17 - Negar a existencia do Santissimo Sacramento da Eucaristía; h0rnens››57.
18 - Negar 0 fim do mundo e o dia do Juizo Final;
19 - Negar a pureza e a virgindade de Maria;
20 - Negar a veneração ãs imagens sagradas;
21 - Menosprezar o viatico aos enfermos;

55 Documento publicado por David I-liggs em «Nota sobre um documento acerca 56 ANTI', Inquisição de Lisboa, 17386.
da histöria politico-religiosa do Rio de Janeiro no periodo da Revolução Francesa», 57 David Higgs, alem do artigo já citado, ver «Unbelief and Politics in Rio de
Revista de História das Ideias (Coimbra) 9: 439-449, 1987, Janeiro during the 17705», I.uso-Brazilian Review, XXI (1): 13-31, 1984.

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A violência no quotidiano

Em que medida as agressöes fisicas e mesmo a morte violenta


permeavam a sociedade no fim do período colonial? Não ha dúvida
de que a violencia transparece na documentação; eram governadores
que agrediam os seus governados; maridos que maltratavam as suas
mulheres; homens que raptavam moças; senhores que puniam violen-
tamente os seus escravos ou estes que matavam os seus senhores e se
agrediam entre si; salteadores que atacavam e feriam viajantes nas
estradas; ladröes que atemorizavam com as suas facas os habitantes
das cidades e vilas; indios bravos que atacavam os brancos e brancos
que matavam não só os guerreiros indigenas como mulheres e crian-
ças indefesas.
Vejamos como ocorríam essas variadas formas de violência e agres-
são fisica. Em 1805 foi feita uma denúncia contra um governador do
Rio Grande do Norte, Capitanía subalterna da de Pernambuco, por
este açoitar em praça pública homens e mulheres, com palmatória e
«bacalhau›› e cometer outras violências, Uma mulher fora açoitada
«nua e descompostamente» à vista de todos e depois degredada para
o sertão; um outro fora empurrado «a coices e pontapes» por não ter
pregado umas fechaduras a contento do governador; um cirurgião só
não fora açoitado por não ter atendido imediatamente a um chama-
mento do govemador porque fugira deixando tudo 0 que possuia; um
outro levou murros e pontapes porque mandara sentar alguns oficiais
na presença do governador; um escrivão foi ameaçado com uma
bengaladal.
Uma vez que na sociedade de então era permitido ao marido
«corrigir›› o mau procedimento da mulher com castigos fisicos, torna-
va-se por vezes dificil às autoridades eclesiásticas, que se encontravam
perante pedidos de divórcio por sevicias, determinar a exacta fronteira
entre a correcção bem aceite pela mentalidade da epoca e os maus

1 Al-IU, Capitanía do Rio Grande do Norte, Caixa 9, documento 4.

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tratos fisicos que podiam ate pôr em perigo a vida das mulheres. direito a pedir uma indemnização pela perda da virgindade. Em 1777,
Muitas vezes, nesses pedidos de separação, se o marido assinava um por exemplo, o governador Lobo de Saldanha mandou entregar ao
termo prometendo não mais maltratar a mulher, esta podia suspender juiz ordinario da vila de Itu um raptor, a fim de que a raptada pudesse,
o processo de divorcio. pelos meios competentes, «ressarcir a sua perda››4.
Quando o vigário geral interrogava as testemunhas apresentadas O rapto por sedução não parece, contudo, ter sido punido com
pelas queixosas das sevicias de que eram objecto, a primeira coisa muita severidade no fim do periodo colonial, pois os pais em geral
que ele investigava era se a mulher tinha ou não dado causa para os contentavam-se com a reparação pecuniäria, como podemos ver pelo
maus tratos, ou seja, se ela merecia ou não correcção. Num processo seguinte requerimento dirigido pelo governador da Capitanía de São
de 1815, os argumentos do advogado de defesa do marido assentavam Paulo; «Diz Jose da Ponte do Rego, morador na freguesia do Una, um
precisamente nesse direito de correcção: «Por Direito Divino, Natural dos casais transportados ã custa da Real Fazenda de Sua Majestade,
e Positivo, e mesmo por todas as leis canónicas, e civis, deve toda a que tendo uma filha solteira de nome Joaquina, criada com a maior
mulher casada viver sujeita a seu marido, incumbindo aquela obede- estimação e recato, foi a mesma seduzida para fins libidinosos por um
cer-lhe, amá-lo, e servi-lo, e podendo este corrigi-la, repreendê-la, e Joaquim Jose Rolim, da mesma freguesia, ate o ponto de a fazer sair de
mesmo castiga-la com moderação quando seja indócil, teimosa, e casa do suplicante, seu pai, e isto debaixo da promessa de recebê-la
incorrigivel» Ora, naquele caso concreto, a mulher, «contra todos em matrimonio, dizendo-se viúvo.›› Como afinal o sedutor era casado
os ditames da razão, contra os deveres de súbita, em uma palavra na Capitanía do Rio Grande de S. Pedro e não podia casar com a moça,
contra o determinado por todas as leis, intenta sublevar-se contra que ficava assim «difamada e sumida», queria o pai que o raptor fosse
seu marido, que sobre ela tem uma especie de dominio tal qual o obrigado, pela autoridade do governador, a dotar a moça ou a procu-
pai sobre o seu filho››2. rar-lhe maridos.
Um outro advogado de um marido acusado em 1788 de ter sevi- Neste caso não ha dúvida de que se tratava de rapto por sedução,
ciado a mulher, o que a levara a pedir a separação, respondía tranqui- com a promessa de casamento. Noutros furtos não é tão fácil distin-
lamente que, «por quaisquer razöes caseiras, e ainda por pancadas guir se as moças, ou mesmo mulheres casadas, se tinham deixado
não excedendo a devida moderação, se não deve separar os casados levar de casa de seus pais, ou maridos, pela violència ou pelas pala-
daquela união santa do matrimónio››3. vras amorosas. Um facto e certo: aqueles que «furtavam›› mulheres
A violencia contra a mulher podia ainda assumir outras formas. A faziam-no geralmente quando os elementos masculinos da família se
legislação portuguesa estabelecia uma diferença entre o rapto por encontravam ausentes.
sedução e o rapto por violencia, embora, do ponto de vista da Igre- Certas regiöes eram mais propicias ã violencia do que outras. Na
ja, tal como aparece expresso no Concilio de Trento, o rapto fosse Capitanía de São Paulo, a vila de Mogi das Cruzes e seu termo era
sempre um crime grave. conhecida por ser habitada por «homens facinorosos, criminosos e
Nas consideraçóes conciliares sobre o rapto aparecia contudo já desertores», sem temor algum das autoridades constituidas, fossem
uma determinação que iria tornar-se extremamente importante no elas eclesiásticas ou civis. Numa representação ao governo interino de
quotidiano do Brasil colonial: «O que rouba a mulher, ou a receba São Paulo em 1817 foi encamìnhada uma queixa contra os homens da
ou não por esposa, seja obrigado a dota-la decentemente, a arbitrio região que não só víviam concubinados como cometiam os maiores
do juiz.›› Para darmos apenas o exemplo da Capitanía de São Paulo, desaforos, chegando «à forga de armas a tomar mulheres e filhas
em todos os casos de rapto ali ocorridos, sempre constatamos a donzelas escandalosamente» .
exigencia, por parte do pai, que a filha raptada recebesse um dote Quando a denúncia se concretizava, a prisão dos raptores era
do raptor, como forma de reparar o mal feíto ã sua honra. Quer no sempre pedida. O governador de São Paulo, bobo de Saldanha, orde-
rapto por sedução, quer no rapto por violència (na documentação nava em 1780 às iustiças da vila de Atibaia e ao capitão de Auxiliares
muitas vezes designado como «furto›› ou «roubo››), a mulher tinha

'i D1,vn1. 79, p. 118.


2 .›.csP,D1v<§f¢10s, 15-9-1950, 1815. 5 AESP, ordem 342, Lara 93 A.
5 Acs1=, ibid., 15-53-677, 1783. 6 Documentos auulsos (Arquivo do Estado de São Paulo), vol. 3, p. 47.

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que ajudassem o capitao Domingos Leme do Prado a procurar três Os historiadores têm-se debruçado frequentemente sobre a violên-
individuos que, «armados com armas de fogo», tinham tirado violen- cia exercida sobre os escravos, pelos seus senhores principalmente”.
tamente da casa do dito capitão uma sua filha7. Mas no quotidiano colonial a violencia, quando entendida no sentido
No Nordeste tambem campeava a violência. O capitão-mor das de agressão fisica, brotava das mais variadas situaçöes e nela se viam
Ordenanças da vila de Propiá remeteu presos ao govemador da Capi- implicados individuos das mais diversas condiçöes sociais.
tanía subalterna de Sergipe d`el-rei, em 1816, dois individuos, um Essas agressöes eram muitas vezes devassadas pelos juizes ordina-
deles morador «nas partes das Alagoas», o outro no termo daquela rios das localidades, que procediam a corpo de delito para constatar,
vila, «por mal procedidos desinquietadores das casas honradas», ten- por meio de exame feito por um cirurgião, a gravidade dos ferimentos
do um furtado de casa de seus pais uma moça donzela, e o outro uma ou lesöes. Vemos por essa documentação que frequentemente os
moça acerca da qual nada e dito, talvez por correr fama de ter perdido escravos eram agredidos por individuos que nada tinham que ver
a virgindades. com os seus senhores, nem estavam a executar nenhuma forma de
É frequentemente na documentação proveniente do Juizo dos De- castigo por ordem destes. Assim, por exemplo, ao juiz ordinario da
funtos e Ausentes que encontramos menção a assassinatos e mortes vila de Santo António de Sá chegou, em 1812, a noticia de que «no
violentas. E isto por uma razão muito simples: tendo sido surpreendi- caminho de Porto das Caixas junto ã capelinha de Nossa Senhora da
dos repentinamente pela morte, não tinham as vitimas tido tempo de Conceição haviam feito de noite um ferimento em um preto por nome
fazer seu testamento e todos os que morriam abintestado tinham os Francisco, escravo de Francisco Teixeira». Procedendo-se a corpo de
seus bens inventariados pelo provedor daquele Juizo, que em geral delito, o cirurgião verificou ter o escravo «na parte Posterior da cabe-
era o próprio ouvidor da comarca. ça dois ferimentos de uma polegada cada um de comprimento com
No termo da cidade de São Paulo, no bairro de Santa Ana, mataram couro e carne cortada de que houve enfugas de sangue que mostra-
em 1797 Jose Antonio da Silva, capitão da Ordenança do mesmo vam ter sido feitos com instrumento contundente, e que denotavam
bairro, e num dos documentos desse processo encontramos a seguin- perigo de vida››“.
te informação: «O inventariado foi morto no sitio de sua resídência Nada indica que fossem homens de cor o agressor e a vitima de
por dois assassinos. Quando a embargante (a mulher) soube foi perto uma outra agressão examinada pelo mesmo juiz. Antonio Luis Ferreira
do meio dia, em que nada mais lhe lembrou, que acompanhar o corpo vinha por um caminho ãs três horas da tarde quando, chegando a uma
para esta cidade, afogada nas lágrimas da sua dor, e rodeada de todos venda, Jose Nunes da Rosa «ai sem mais nem menos entrara a des-
aqueles horrores, e da confusão que consigo traria uma tão funesta compor-lhe chamando a ele queixoso de bode e outros nomes inju-
cena. No dia seguinte de manhã fez dar sepultura a seu marido, em riosos, que a malicia do mesmo lhe quis arguir, e ainda não contente
cujo enterro se fez a despesa de 127$230 reis. Tudo isto se obrou com estas palavras levantara cia mão e com ela lhe dera muitos bofe-
antes que a embargante soubesse se ele deixou ou não testamento, e töes pela cara dos quais lhe tinha feito as nódoas, e contusôes que de
antes que pensasse, que os bens seriam apreendidos por este ]uizo.›› suas faces mostrava, das quais queria proceder a corpo de delito para
Os embargos apresentados pelo procurador da viúva, «mulher conservação de seu direito››“.
rústica», tinham como objectivo fazer com que a despesa do funeral
fosse tirada da meação do defunto naquela parte que excedia os
100$0O0 réis determinados por uma provisão em relação a estes ca-
sos. Mas o que interessa aqui acentuar e que a morte violenta não só 1° Ver 0 livro de Silvia Hunold Lara, Campos da violència. Escrauos e senhores na
sacrificava uma vitima como perturbava toda a vida familiar e impedía Capitanía do Río de janeiro, 1750-1808, Rio de janeiro, Paz e Terra, 1988. Ai se
um funeral bem planeado pela própria pessoa, como ocorria com refere que a 25 de Fevereiro de 1797 o juiz ordinario da vila de São Salvador da
Paraiba do Sul procedeu a devassa sobre as chagas no corpo de um escravo, tendo o
uma morte natural, sequência de uma doença9. auto de exame e corpo de delito constatado que havia chagas profundas com
podridão e dilaceramento nas nâdegas e nas pernas, feitas com «instrumentos
contundentes assim como flagelo, chicote ou bacalhau››. Foram estes ferimentos
resultantes de sufras aplicadas pelo senhor em dias consecutivos (p. 57).
7 o1,v01. s-4, p. 1s2. 11 BNRJ, Ms. 15, 5, 11, documento 1.
8 Arquivo Histórico da Baia, Caixa 119, pacote 252.
12 BNRJ, ibid, documento 2.
9 AESP, Ordem 570, lata 95.

510 511
No Rio de Janeiro a Policia, criada depois da chegada da Corte, Juntando-se num quilombo a umas 9 leguas da cidade da Baia, este foi
efectuou, entre 1810 e 1821, 4853 prisoes pelos mais variados delitos rapidamente dissolvido, efectuando-se a prisão de 85 homens e 12
e entre elas contam-se os seguintes crimes violentos: mulheres”.
Em 1814 o levante dos negros da Baia foi mais serio e dele temos
dois relatos: um encaminhado ao Principe Regente pelo corpo do
Tipo de crime N° de presos 96 comercio e mais cidadãos, em que se críticava a pouca energia do
governador, conde de Arcos, na repressão; outro do arcebispo da
brigas 215 4,4 Baia, Fr. Francisco, em que a atitude do governador era defendida.
desordens 160 5,5 Mais do que discutir a forma de repressão, importa analisar a extensão
atentados 157 2,8 da rebeldia e da violência dos negros e avaliar o medo que eles
arremessos de pedra 84 1,7 infundiam na população branca.
pancadas 75 1,5 Escreviam os cidadãos; «É notorio que ha 3 ou 4 anos os negros
facadas 40 0,8 tentam rebelar-se, e matar todos os brancos, e tendo nos anos ante-
agressão a transeuntes 21 0,4 riores feito duas investidas, agora ao amanhecer do dia 28 de Feverei-
tentativas de agressão 20 0,4 ro em distância somente de uma legua desta cidade deram a terceira
tentativas de assassinio 16 0,3 com muitos mais estragos, e ousadias, que as outras. Estes ensaios,
ataques aos senhores 15 0,5 Senhor, bem prognosticam, que chegarã (a não se tomarem medidas
cabeçadas 14 0,3 mui serias) um dia em que eles de todo acertem, e realizem inteira-
mente o seu projecto, sendo nos as vitimas da sua rebelião, e tira-
rotar 795 16,2 nia.››15
Ao responder às informaçöes pedidas pelo Principe Regente,
Fonte; Leila Mezan Algranti, Oƒèitor ausente. Estudos sobre a escravidâo urbana D. João, o arcebispo da Baia procurou inteirar-se do «tumulto dos
no Rio de janeiro, 1808-1822, pp. 209-10. negros» com os proprietärios e habitantes dos lugares onde ele ocor-
rera. E relatava para a Corte: «No dia 27 de Fevereiro à noite 50 a 60
negros denominados Usãs e Bromns sairam desta cidade por três
A violência mais temida pelos brancos, e sempre usada como ar- diversas estradas a fim de se não fazerem suspeitos, e foram reunir-
gumento pelas autoridades quando pretendiam reforçar as suas forças -se em um pequeno mato chamado do Barreiro, vizinho da armação de
militares, era a de um possível levante de escravos, porção maioritâria pesca de peixe, de que e proprietário o capitão Manuel Ignácío da
da população. É interessante, contudo, constatar que, em certas re- Cunha e Meneses, onde dormiu a maior parte, e outra dentro da
giöes, se receava mesmo uma aliança entre a população negra e a própria armação nas sanzalas dos escravos seus socios, e combina-
indigena. O governador da Capitanía subalterna da Paraiba assim ex- dos, No dia 28 logo ao romper da luz principiaram a incendiar a
primiu os seus receios em 1780; «Qualquer levante de indios, que se armação, ao que acudindo alguns moradores, que não sabiam o mo-
não esquecem de imaginar que estas terras lhes pertencem, associa- tivo, foram morros, e maltratados os escravos, que se não queriam
dos com os escravos, que todos pensam em se libertarem, se farã unir ao partido dos celerados. Concluiram pondo fogo ã casa de
irreparãvel pelas pequenas forças das duas Companhias pagas, de vivenda do proprietário, e a um armazem, que estava atacado de
que se compöe a guarnição desta praça, sem armas e faltos de farda- linho, e de redes novas para a pesca, onde desgraçadamente perece-
mentos, e os poucos auxiliares sem armas aJgumas.››15 ram no meio das chamas o feitor da armação, e uma mulata. Engros-
Não ha dúvida de que, no inicio de 1809, fugiu um considerável sado mais o seu partido com os escravos desta armação, que se lhes
número de escravos de alguns engenhos e da povoação de Nazare, na uniram de boa vontade, e com outros levados violentamente, armados
Capitanía da Baia, «cometendo roubos, assassinos, e outros crimes».

“ ANRJ, UJ9 25. fol. 24.


15 AI-IU, Capitanía da Paraiba, Caixa 15. 1* sms, Ms. n - 34, 6, sa.
312 513
de facöes, lanças, e outros instrumentos próprios da pesca de baleias, estes revoltosos, mdo leva a crer que era constituido quase exclusiva-
passaram a outra armação vizinha chamada do Carimbamba, de que é mente por lanças, como 0 próprio arcebispo informava acerca de um
dono Francisco Herculano, onde pela resistência, que encontraram plano de levante que já tinha sido traçado entre os negros da cidade e
nos escravos, que por serem de nação diversa não seguiram seu os do Recôncavo; o escravo de um negociante fora vendido pelo seu
partido, apenas puderam incendiar algumas sanzalas, e roubar os senhor por lhe terem encontrado numa caixa «muitas pontas de
cavalos, que se achavam na estribaria. Seguiram adiante, e fazendo 1anças››; outro negro fora localizado na cidade baixa «escondendo
pela estrada toda a casta de desordem, chegaram à povoação de um bacamarte››; num mato conhecido como Sangradouro, perto da
Itapoã, já então em número de 200 com pouco diferença apesar dos cidade, tinham sido descobertas mais de 200 pontas de lança; na vila
que puderam escapar. E pretendendo entrar foram embaraçados por de Santo Amaro formara-se um quilombo com mais de 200 negros,
alguns moradores, que do melhor modo, que puderam, resistiram Emo qual se achou uma tenda de ferreiro, e muitas pontas de lança
munidos com espingardas, os quais acabada a munição não tiveram eitas».
remedio senão fugir, e deixar livre a entrada aos negros, que exacer-
bados com a resistência, que se lhes tinha feito, e com a morte do seu
comandante, gritando em altas vozes «Morra branco», «Morra
mulato» e «Viva o senhor conde dos Arcos», rnataram tudo quanto
encontraram. E depois de lançarem fogo à povoação, dirigiram-se a
uma grande fazenda, que ha perto dela, de que é dono João Vaz de
Carvalho, em cujo sobrado se tinha refugiado um grande número de
pessoas atemorizadas, julgando que aí poderiam escapar por estarem
munidos de algumas armas de fogo, e de muita pedra, com o que na
verdade se defenderam por algum tempo. Porém vendo-se sem pól-
vora, e sem mais pedras para atirarem, e incendiada a casa se lançavam
das janelas abaixo, escapando aqueles do incêndio, mas indo morrer
ou na queda, ou às mãos dos negros, que cercavam a casa, entre estes
um homem que tinha sido negociante desta praça, chamado Luís
António dos Reis, e um mascate, que apesar de dar dois contos de
réis para salvar a vida, foi morto arrancando-se-lhe a lingua. E seria
ainda maior a mortandade, se a esse tempo os negros por um vigía,
que tinham posto em cima de um alto coqueiro não recebessem aviso,
de que se via na armação de Manuel Inácio tropa de Cavalaria, com o
que apressadamente se retiraram, e rumaram para o rio de joanes, o
qual não puderam passar, como pretendiam, pela resistência que
encontraram nos caribocas, e outras pessoas, que junto o sargento-
-mor do Regimento de Caçadores da Torre, sendo então mortos mui-
tos, outros presos, e outros fugiram deitando-se a nado.››16
Este minucioso relato deixa contudo uma dúvida; os negros que
ìniciaram a rebelião nos arredores da cidade da Baia eram escravos ou
forros? De qualquer modo, parece ter havido uma solidariedade tribal
entre esses negros e alguns dos escravos que trabalhavam nas arma-
çöes de pesca e na fazenda. Quanto ao armamento de que dispunham

16 BNRJ, Ms, 11- 53, 22, 69.


3 14 515
8

O corpo doente*

Em contacto com as tribos indígenas, não deixaram os viajantes


brancos de observar cuidadosamente a função do pajé, misto de
médico e de padre, conhecedor de ervas efìcazes, mas também em
união directa com os temidos dernónios. Spix e Martius, depois de
terem estado junto dos indios da Capitanía de Minas Gerais, escre-
viam; «O pajé fornece medicamentos, que às vezes são preparados
com fórmulas mágicas; pratica com furnigaçöes uma especie de
exorcismo, e entretém nos indios o medo de fantasmas, com prãticas
e historias supersticiosas.››1
Como os pajés actuavam nas suas tribos, no interior do Brasil, e
não nas povoaçóes de indios domesticados, a sua influência junto das
populaçöes brancas era muito menor do que a dos curandeiros ne-
gros que víviam misturados com os brancos nas vilas e cidades. Ao
curandeirismo recorriam frequentemente os brancos para extirparem
os seus males, o que não era bem visto pela Igreja, sempre atenta às
possíveis quebras da ortodoxia por parte dos fiéis.
Recorrer a exorcistas não implicava nenhuma punição, pois a Igreja
instituíra-os como necessarios à sociedade. Mas procurar negras para
a cura de feitiços era algo que a ortodoxia religiosa não podia tolerar e
dai a denúncia ao Santo Oficio, por exemplo, da preta forra Rita, de
nação Mina, moradora nas vizinhanças do arraial da Barra do Baca-
lhau, comarca de Vila Rica, Capitanía de Minas Gerais. Foi ela denun-
ciada por fazer «curas supersticíosas» em 17972.
Não se julgue contudo que Rita só tinha prestigio entre os da sua
raça: uma das testemunhas ínquiridas disse que ela pervertia a «bran›
cos crédulos e a pretos rudes». Uma outra declarou que a sua diabó-
lica embustice era «muito prejudicial não só aos brancos mal

" Com a colaboração de David Higgs, da Universidade de Toronto.


1 Spix e Martius, op. cit., tomo I, p. 204.
2 ANTT, Inquisição de Lisboa, 11.853.

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doutrinados, mas tambem aos pretos que são inclinados a estas ridi› vam «ao som de um tambor segundo o costume da sua terra», havia
culas novidades». um oratorio com várias imagens de santos e eram recitadas várias
O modo de proceder desta Rita curandeira foi assim descrito por oraçöes católicas como o Padre Nosso, o Credo, o Acto de contrição.
uma testemunha que assistira ocultamente ao curativo que ela fizera a Um pardo interrogado nesta segunda inquirição, que afirmou co-
uma doente; «Preparada urna mesa, e coberta com sua toalha, nela se nhecer Rita desde a infâncìa, tendo-lhe levado um escravo seu para
pôs uma imagem; junto a esta mesa estava posta a enferma sentada em que ela o curasse, observou que ela trazia consigo um rosãrio de
sua esteira; sobre a dita mesa tambem um balainho com certos pós; Nossa Senhora e que saudava as pessoas que encontrava com as
rodeavam a enferma os cìrcunstantes, que ali se achavam para especf palavras «Louvado seja Cristo», o que a apontava como boa católica.
tadores. Tudo isto assim preparado, apareceu a preta Rita curandeira Nota-se assim, numa mesma região, dois tipos de mentalidade: urna
com uma bengalinha na mão, fazendo mil viragens, e falando ao que só via embuste no curandeirismo de Rita; outra que acreditava na
mesmo tempo pela sua lingua que e Mina, e levantando de vez em sua actuação e a ela recorría quando sentia necessidade.
quando a dita bengalinha para 0 ar. Depois disto, deitou a doente de Mais a sul, na vila de Curitiba, bispado de São Paulo, um escravo
costas, lhe esfregou a barriga com a bengalinha, assentando-se tam- negro tinha muito exito como curandeiro, sendo muitas as pessoas
bem em cima da barriga da enferma. E no meio destes seus embustes que a ele recorriam «iludidas com a virtude das ditas curas», segundo
efectuou uma oração, e nela fingiu um desmaio. Logo pegaram nela Os se lê numa denúncia ã Inquisição em 1773. Ele procedía da seguinte
circunstantes e a levaram para uma cama, onde dormiu, ou fez que maneira: punha sobre uma mesa um crucifixo com luzes à volta,
dormìa, por algum tempo. E passado este, saiu dizendo que a molestia «dando o sangue de uma galinha que ai mesmo mata, aos enfermos,
que aquela enferma tinha eram feitiços declarando entao quem lhos misturado com aguardente››3.
tinha feito.›› O recurso ao curandeirismo negro era por vezes acompanhado ou
Uma outra testemunha declarou que, indo algumas pessoas con- precedido pela ida ao exorcista, pois o doente desesperado procurava
sultá-la sobre as suas molestias, a Rita lhes dizia que eram feitiços, a cura onde quer que ela se pudesse achar.
«usando para isso de adivinhaçöes». Ou seja, adivinhava o nome do Quando os remedios receitados por medicos não conseguiam cu-
responsável, como acontecera em casa de um individuo a quem adoe- rar um doente, não era raro que este procurasse um clérigo com fama
cera a filha: «e por meio desta adivinhação culpou a dita Rita a um de exorcista, urna vez que a doença era então atribuida não a causas
moço, dizendo que este era o que lhe tinha deitado os feitiços, de que naturais mas sim a causas sobrenaturais. Vejamos a história contada
resultou fugir este dito moço temendo sublevação que os parentes da por Manuel Rodrigues de Sena, familiar do Santo Oficio, casado, mo-
dita moça doente contra ele armavam, dizendo que o queriam matar.›› rador no Recife, onde vivia do seu negóciof Ele adoecera gravemente
Era por isso a Rita curandeira acusada de provocar muitas desordens e e, depois de ter sido tratado durante quase três anos por medicos sem
de ser «amotinadora do povo» que acreditava nas suas «embustices››. experimentar 0 menor alivio do seu mal, sentindo-se desenganado e
A crença de que a doença era provocada por feitiços e não por uma desesperado a ponto de perder a fala e não reconhecer pessoa algu-
causa natural encontrava-se assim muito difundidade entre as popula- ma, chamou um religioso capuchinho, missionãrio do Hospicio de
çöes no fim do período colonial. Uma das testemunhas desta ínquiri- Nossa Senhora da Penha. Tão logo este lhe colocou no peito uma
ção declarou que a Rita levava os povos a «esquecerem-se dos reliquia do Santo Lenho, logo o doente começou a falar e a sentir
remedios de que haviam de usar, e não curarem as moléstias que menos dores. Fe-lo o exorcista beber em seguida um pouco de agua
naturalmente padecem››. benta, e ele levantou-se e andou pela casa, «porem lançando pela
Numa nova inquirição, foram desta vez ouvidas três mulheres bran- boca carvão, areia grossa e espinhos grandes, baratas e outros bichos
cas e estas, ao contrário do que se verifìcara com as testemunhas e imundices, que não podia ter comido, e muitas espumas visgosas»
anteriores, todas masculinas, procuraram ilibar a Rita curandeira, nu- Continuou o capuchinho a benzê-lo e em pouco tempo o doente
ma solidariedade feminina digna de nota. Uma dessas mulheres, que ficou bom e voltou ao trabalho. Mas, passados seis meses, enfermou
vivia «para a sua sustentação» nas terras de cultura de um certo
capitão, declarou que sua irmã, doente de vertigem, sarara com os
medicamentos que a Rita lhe aplicava, os quais não lhe pareciam 3 ANTT, abia., 4.374.
supersticiosos, pois, apesar da presença de varios negros que dança- 4 Amr, fbfa., 5.825.

518 319
de novo, «de tal sorte que chegou a perigo de vida e víndo-o visitar 0 igualmente e ela se manteve nessa atitude durante 48 horas». Este
referido religioso, e conhecendo serem os mesmos da passada enfer- fenómeno passou a repetir-se semanalmente, começando na noite
midade, o exorcismou e tendo algum alivio, por saber dos muitos de quinta para sexta-feira e, ate à noite de sábado, ela não se mexia,
milagres que fazia Santo Amaro por uma sua imagem colocada perto não proferia uma palavra, não se alimentava.
deste Recife, se conduziu para la com a sua familia onde esteve de- O rumor do que acontecera com Germana na Serra da Píedade
zasseis dias sem alivio algum». É que, conforme contava Manuel, não espalhou-se pelos arredores, acreditou-se no milagre, pois milhares
sabia ele então que «as suas molestias eram feitiços e imaginava que as de peregrinos viram-na naquela imobilidade. A irmã Germana foi
melhoras que tinha tido nasciam da virtude do dito religioso». proclamada santa. Dois cirurgiöes da região chegaram mesmo a de-
Talvez porque já não confiasse na força do exorcismo do capuchi- clarar por escrito que o estado da doente era sobrenatural. Esta de-
nho contra os <<feitiços››, persuadido por um amigo foi Manuel numa claração, apesar de manuscrita, circulou em várias copias e um medico
rede ã cidade de Olinda procurar um franciscano exorcista, o qual o formado em Edimburgo decidiu publicar em 1814, pela lmpressão
aliviou momentaneamente, ate que Manuel se convencen de que dois Regia do Rio de Janeiro, uma refutação em que rnostrava que os
escravos seus, ladinos, lançavam «feitiços›› na sua comida. êxtases de Germana não eram senão o resultado de catalepsia. O
Não vamos aqui deter-nos na descrição das actividades dos dois folheto saiu anónimo com o titulo Impugnagfío analítica ao exame
negros que foram depois denunciados ao Santo Oficio, mas o que _fi›1'to pelos clínicos António Pedro de Sousa e Manuel Quintão da
transparece do documento e que, desconfiando que os seus escravos Silva, em uma rapariga que julgamm santa, na capela da Senhora
o queriam envenenar e acusando-os mesmo de já ter provocado a da Píedade da Serra.
morte de alguns escravos novos, causando-lhe um prejuizo de mais Como uma multidão de pessoas continuava a subir a Serra para ver
de 10 000 cruzados no seu negócio, este familiar do Santo Oficio o prodigio, o bispo de Mariana, D. Cipriano da Santissima Trindade,
certamente acreditava mais na punição da Inquisição para o crime proibiu a celebração de missas na capela, mas os devotos recorreram
de feitiçaria, do que na justiça local se os acusasse apenas de tentativa ao rei para obter a permissão de celebrar missas, no que foram aten-
de envenenamento. Aliás, Manuel R. Sena só tinha conseguido mandar didos. Quando Saint-Hilaire visitou o local, em 1818, Germana ainda
para a cadeia o escravo Domingos; quanto ao escravo Gonçalo, «am- ali se encontrava e o naturalista, a par da doutrina do magnetismo
parado de pessoas pouco católicas», conseguira do governador a animal, tentou, ao visita-la, uma experiencia: «sob o pretexto de to-
protecção para que o juiz de fora o mandasse rematar em hasta pública. mar o pulso da doente, coloquei minha mão esquerda sobre a sua e
Nesta história do negociante do Recife, mais do que o temor de pus-me na disposição de espirito exigida pelos magnetizadores; ne-
envenenamento por parte dos escravos, que era comum a todos os nhum resultado obtive, mas, para ser exacto, devo confessar que
senhores, uma vez que a escravaria da casa se encarregava de ir buscar minha atenção era desviada sem cessar pela presença de testemunhas
ãgua para beber e preparava os pratos da familia branca, há a ressaltar e suas conversas››5.
a facilidade com que, desenganado dos médicos, este homem recor- Os enfermos desesperançados de cura faziam muitas vezes pro-
reu a dois exorcistas, um capuchinho e um franciscano, para a cura do messas de carácter religioso, promessas que tinham de ser cumpri-
seu mal. das, ou pelo meio de ex-votos, ou ainda atraves de romarias e
Auguste de Saint-I-iilaire, ao visitar a Serra da Piedade, na Capitanía peregrinaçöes nas condicòes mais duras. Para cumprir uma promessa
de Minas Gerais, onde existia uma capela dedicada a Nossa Senhora da as pessoas modificavarn por vezes toda a sua vida, como ocorreu com
Píedade que era objecto de romaria e devoção, deparou-se com um um homem que Saint-Hilaire encontrou em 1818 em Minas Gerais:
caso de doença muito comentado nas regiöes de Sabarã e Vila Rica. «Tendo sido atacado por uma grave doença dos pes, prometeu a
Uma moça chamada Germana adoecera por volta de 1808 com «afec- Deus servir a igreja de Matosinhos (Congonhas do Campo) se obti-
çöes histericas acompanhadas de convulsöes». Como 0 exorcismo a vesse a sua cura. Como teve a felicidade de sarar deixou sua casa e
que foi submetida não produziu resultados, e ela cada vez comia veio cumprir sua promessa, para o que teve de viajar 60 leguas.››6
menos, pediu para ser transportada para a Serra da Píedade, obtendo
permissão para morar naquele hospício. Ai entrou um dia numa espe-
cie de êxtase e, segundo o relato de Saint-I-Iilaire, «seus braços endu- 5 Auguste Saint-Hilaire, Víagem pelo distrito dos diamantes, p. 70.
receram e estenderam-se em forma de cruz, seus pes cruzaram-se 6 ima., p. 93.

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Vimos assim que exorcistas, curandeiros negros, peregrinaçöes, Nem sempre os doentes pagavam como deviam aos cirurgioes que
promessas, se tomavam parte do quotidiano daqueles que sofriam os tinham tratado e estes então, para cobrar as dívidas, recorriam ao
algum mal. Outro personagem que surge frequentemente na docu- juiz comissario que lhes era privativo. Queixando-se de que um cliente
mentação era o acurioso», pessoa que curava por ter experiencia de lhe era devedor da quantia de 52$000 reis, das visitas que por espaço
certas ervas medicinais ou conhecer certas práticas curativas eficazes. de um ano fizera a casa do enfermo, um cirurgião do Rio de Janeiro,
Mesmo quando residía na povoação um medico ou um cirurgião, em 1812, solicitava ao cirurgião-mor que chamasse a uma primeira
preferiam por vezes as pessoas recorrer a simples curiosos, ou porque audiencia 0 mau pagador, «com comjnação de que não comparecen-
tivessem neles mais fe ou por razöes de economia. Um negociante de do ficara condenado à revelia››1°.
escravos, morador na cidade de São Paulo, por ocasião de uma grave Indispensãveis na sociedade colonial eram, alem dos medicos e
doença que o acometeu em 1777, «não quis chamar professor de cirurgiöes, os sangradores que não podiam exercer a sua actividade
medicina para curã-lo por não gastar dinheiro, e por isso se valeu sem serem encartados pelo Fisico-mor. Isto porque uma das formas
de uma mulher experiente (o que e muito trivial nesta terra) e ela de tratamento mais comum na epoca era a sangria. Esta era aplicada
com efeito o curou››7. aos doentes de acordo com o grupo social a que pertenciam: se se
Em 1792 um morador na cidade da Baia, muito doente de uma tratava da elite, recebia os cuidados de um diplomado nas Artes de
«obstrução››, não hesitou em recorrer a um pardo que se oferecera Sangria e Cirurgia; se pertencia ao escalão inferior da sociedade ou se
para o curar, mas ficou muito frustrado pois pagou-lhe uma pataca e era escravo, era em geral um negro sangrador que dele se encar-
ele, em vez de lhe aplicar remedios naturais, «escrevera sobre a parte regavau.
umas poucas de letras e com isto se foi embora››8. A Coroa preocupava-se sob retudo com os seus soldados doentes e
Os curiosos tomavam-se muito procurados naquelas vilas e arraiais os Hospitais Reais Militares eram sem dúvida as instituiçöes hospita-
onde não chegavam os poucos medicos e cirurgiöes existentes na lares mais espalhadas pelo Brasil. Não quer isto dizer que elas não
colónia. Mesmo tendo o número de cirurgiöes aumentado depois apresentassem as suas deficiencias em virtude de carências orçamen-
da chegada da Corte e a criação das primeiras escolas medico-cirúrgi- tais, pois, ao contrário dos hospitais das Misericórdias, não contavam
cas, ainda não eram em número suficiente para cobrir todo o vasto com esmolas de particulares e sim apenas com contribuiçöes estatais.
território brasileiro. Em 1815, por exemplo, Jose Lino dos Santos Coutinho, um medico
A falta de medicos, mesmo numa cidade populosa e sede da Corte baiano, lamentava num oficio ao governador o estado de penúria e
como era o Rio de janeiro no fim do período colonial, levava o rei a pobreza da rouparia do Hospital Militar da cidade da Baia; «muitas
conceder licença, por tempo determinado (em geral um ano), para vezes tinha sucedido não haver roupas para dar aos doentes, que de
que os cirurgiöes tambem pudessem «curar de Medicina pratica», mas novo entravam, nem para se mudar mesmo as dos que jã estavam
sempre com as condiçöes claramente explicitadas; «Não deixarã fale- recolhidos, chegando ao extremo de muitos jazerem sobre uma du-
cer enfermo algum sem sacramentos; não tomará a seu cuidado mo- ra, e nua esteira com um simples cobertor.›› O níunero medio diario
lestia de perigo sem consultar medico e só sim exporá a historia da de soldados hospitalizados oscilava entre 160 e 170 e o hospital pre-
enfermidade, e os remedios, que lhe tiver aplicado; não poderá ser cisava urgentemente de colchöes, travesseiros, cobertores, lençóis,
encafiado nos partidos positivamente destinados para os medicos;
não levarã por visita mais de 520 rs pelas de dia, e sendo meio dia
ou noite 600 rs, e fora da cidade o que lhe for arbitrado pelo delegado 1° ANRJ, ¡bid
H Tendo aprendido a «arte de sangrar», o preto Jorge de Sena e Almeida,
respectivo, sem que isto sirva de embaraço a maior agradecimento certamente forro por ter sobrenome, requereu, por intermedio do branco em casa
que lhe queiram dar.›› Alem disso era obrigado a receitar «em lingua de quem vivia, a sua «carta de sangría» para poder exercer Iivremente a sua activi-
vulgar em forma clara, a todos inteligivel››9. dade, a qual lhe foi passada depois de ser examinado a 14 de Maio de 1811 (ANRJ,
Fisicatura-mor, caixa 464, pacote 1). Estes negros sangradores tambem estavam
habilitados a «deitar ventosas, aplicar sanguessugas» (tbid, pacote 2). Nos anos 80
do sec. xvul, na Baia, ainda os barbeiros costumavam exercer o oficio de sangrador,
7 ANTT, Inquisição de Lisboa, 6.009. pois no seu Regimento, passado pelo Senado da Cämara em 1785, lemos; «Levará por
8 AN'i'r, mz, 16.762. cada uma sangría picada, 80 rs, as aventadas a 40 rs; por cada uma sangría picada no
9 ANRJ, Fisicatura-mor, Caixa 464, pacote 2. braço a 120 rs, e as aventadas a 60 rs» (ANTI, Papéis do Brasil, avulsos 2, doc. 4).

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camisas, fronhas, guardanapos e toalhas, como se observa num mapa midade do estudante: «ele se achava inteiramente privado do Seu
da rouparía anexado ao pedido”. juizo, e possuido de uma manía dificultosa de curar-se, ou quase
Nestes Hospitais Militares havia todo o tipo de doentes, muitas ímpossivel de se remediar, pela grande predisposição que sempre
vezes divididos em duas enfermarias, urnas de doenças «medicas››, teve para a dita enfermidade››15.
outras de doenças «círúrgicas››. No Hospital Real Militar da Baia esta- Os leprosos dispunham no Rio de janeiro, em S. Crístóvão, de um
va em 1816 um soldado que para ali entrara um ano antes com uma Hospital dos Lãzaros, instítuíção que sobrevivia graças a legados e
«paralesia universal». Durante aquele tempo recuperara alguns movi- esmolas, e tambem a rendimentos do seu patrimónioló. A 22 de Abríl
mentos com o uso de remedios, mas ainda se encontrava sem fala e de 1814 o desembargador intendente do Ouro encaminhou ao inten-
paraplegico. Talvez por não haver mais nada a fazer no seu caso, foi dente-geral da Policia um relatórío informando sobre a sítuação da-
recomendado ao inspector do Hospital que o deixasse seguir de quela instituição. Por essa informação ficamos conhecedores dos
viagem marítima para o Río de Janeiro, de onde viera e onde tinha bens patrimoniais que sustentavam as despesas do hospital; «O seu
parentes que dele podiam cuidar”. patrimónío consiste em moradas de casas, em foros, em rendas de
Em 1817 o cirurgião-mor do Hospital Real Militar da Baia queixava- terras, na contribuíção dos habitantes da cidade e seu termo, e nos
-se dos numerosos doentes de «molestias cirúrgicas» de que tinha de legados e esmolas voluntarias dos irmãos de Cande1áría.›› No ano de
cuidar e tambem da falta de gente naquela área; três cirurgiöes aju- 1815 a receita fora de 6297$761 e a despesa 6250$697, estando inter-
dantes prestavam serviços díáríos nos prolongados curativos dos en- nados então 76 leprosos: 17 brancos, 21 pardos e 38 pretos.
fermos entregues aos medicos; outros estavam encarregados das Escusado será dizer que só eram recolhidos ao hospital os doentes
visitas aos quarteis e aos presos que trabalhavam nas obras de um pobres. Quanto ã sua dieta alimentar, lemos no relatórío; «A sua
canal, tinham de fazer a vacinação e ainda cuidar dos destacamentos sustentação ordinaria consiste em pão para o almoço com aguardente
militares. A sobrecarga era demasiado grande sobre o pessoal do e açúcar; para o jantar carne de vaca, feijão e farinha; e arroz para a
Hospital para actividades fora, e ele sugería em oficio ao governador ceia. Alem de galinha, carne de porco, leite e vinho, e marmelada,
que essas tarefas externas fossem entregues a cirurgiöes com menor quando e determinado pelo medico e cirurgião. Tudo porem muito
carga de trabalho, ou então que pessoal de fora fosse dar uma ajuda mal temperado e guisado, não se observando rigorosamente as regras
ao Hospital”. da limpeza» Criticava o desembargador o pouco ou nenhum uso que
Na epoca as enfermidades eram classificadas em duas grandes se fazia dos vegetais, os quais podiam facilmente ser cultivados pelos
categorías: as medicas e as cirúrgicas. As doenças mentaís raramente 40 escravos do hospital na grande cerca que ali existía.
são referidas na documentação, a menos que fosse para explicar um Quanto ao tratamento propríamente dito, apontava a necessidade
comportamento fora dos padröes habituais e desejãveís. Um estudan- de se construirem banhos, «indispensãveis para o alivio nas molestias
te da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Guarapiranga, cutáneas». O que ele observara não lhe agradara, pois os enfermos
comarca de S. João d'el-rei, na Capitanía de Minas Gerais, desrespeí- eram banhados «em pequenas gamelas, e em uma casa péssíma, e
tava os santos nos altares e essa atitude era explicada por uma «pro- imunda››_ E, o que era pior, «a imundicia interior da casa se une à
fundissíma melancolía» resultante de não ter conseguido vir estudar exterior, achando-se ordinariamente no terreiro do hospital bois mor-
para a Universidade de Coimbra. O cirurgião daquela povoação atri- tos de enfermidades, sendo devorados por corvos, cães e porcos››.
buia esta enfermídade aos «muitos estudos», entre outras causas, e os Ao pedir o relatórío, o intendente da Policía quísera saber se os
medicos do Rio de Janeiro concordaram com o diagnóstico da enfer- leprosos passeavam pela cidade e seus subúrbios. A resposta a este
quesìto foi; «apesar da negativa dos mesmos, é certo que não tem
havido o desvío da comunicação ordenada nos Estatutos, e que se
'2 Arquivo Histórico da Baia, Caixa 119, pacote 231. Este oficio de jose Lino lhes tem concedido licença para visitarem seus parentes e amigos
Coutínho baseava-se na informação prestada pelo administrador do Hospital alguns
dias antes. Este aconselhara: «o menor número de roupa que deve existir e sempre o
a fim de conseguirem algumas esmolas, e para sairem, e voltarem,
triplo da que se acha distribuida, para se fazer a troca geral, e mudança diaria» quando lhes parece» Vemos assim que, na epoca, a reclusão e o
(Arquivo Histórico da Baia, Caixa 120, pacote 254).
15 Ibíaï, Caixa 119, pacote 255. 1'* ANTT, mquisiçan de Lisboa, 11.855.
"* ibm, caixa 119, pacote 254. 16 ANRJ, Hospital dos Lázaros, Caixa 759, pacote 1.

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¬F-,

isolamento total dos leprosos eram encarados como prejudiciais: os Só algumas despesas foram díscríminadas nesta apresentação de
enfermos deviam gozar de liberdade de movímentos, ate para anga- contas: 120$000 para o ordenado do capelão; 80$00O para o do cirur-
ríarem fundos para a sua manutenção na instituição. gião; e 207$020 reis pagos ao boticarío pelos remedios com que este
Reconhecia-se que aquele estabelecimento filantrópico estava mal suprira o Hospital naquele ano”.
administrado pela irmandade de Candelaria e que alem disso, do Quanto ao uso de medicamentos, a população branca continuava a
ponto de vista dos «remedios e alimentos próprios a diminuir-lhes e hesitar, neste fim do seculo XVIII e inicio do XIX, entre a tradicional
suavizar-lhes o mal», algumas providencias se faziam necessarias, en- farmacopeia da metrópole e os remedios locais, fruto de uma expe-
tre as quais se incluiam: um directório prescrito pelo fisico-mor ade- riencia indigena e tambem africana. Mesmo a rarefeita classe medica
quado ã doença e um controlo sobre a sua observancia; um maior então existente no Brasil parecia inclinar-se para o uso das drogas
cuidado com a qualidade dos mantìmentos; a exigencia de um relató- locais, como podemos ver por um oficio de Manuel Joaquim de Sousa
rio medico anual. Neste se deviam anotar as observaçöes gerais sobre Ferraz, doutor em Medicina e correspondente da Academia Real das
a enfermídade e outras particulares sobre os enfermos; se o número Ciencias de Lisboa, ao vice-rei, conde de Resende, e datado de 9 de
destes aumentara ou diminuira, e qual a razão do aumento ou dimi- Dezembro de 179518.
nuíção; e finalmente «se se tem descoberto algum remedio contra a Criticava ele o uso de «drogas velhas corruptas e adulteradas, que
morfeia, ou para diminuir os seus efeitos funestos; se ela e contagiosa; por grande preço se mandam vir da Europa», quando se podía fazer
se e hereditaria, etc.››. uso das «maravilhosas, e mui vírtuosas plantas» do Brasil, cuja eficacia
Eram os escravos do hospital que efectivamente cuidavam dos estava ja suficientemente provada «pelas curas estupendas, que vul-
leprosos e quando um escravo pediu em 1815 a sua alforria, ofere- garmente aquí operam os curiosos empíricos e selvagens, adminis-
cendo-se para colocar outro no seu lugar, como era costume na trando remedíos eficazes tirados dos vegetais indigenas».
epoca, a sua liberdade foi-lhe negada nos seguintes termos: «tendo Reconhecendo «a falta de conhecimento das plantas indígenas, ou
sido o escravo João empregado desde a sua infancia no exercìcio de nacionais», propunha;
barbeiro, e boticârio, vem a fazer agora uma mui sensivel falta naquela
casa, por não haver ao presente outro que supra o seu emprego, pois 1 - A criação de um Jardim Medico Botãnico no Rio de Janeiro,
havendo ali constantemente mais de 80 doentes de todas as idades e sede do vice-reinado, para o qual se havia de transplantar e
de todos os sexos e condiçöes, só ha ao presente dois barbeiros, cultivar as arvores e plantas de todo o território brasileiro, aos
escravos, capazes, que se ocupam em ajudar a curar as feiidas dos cuidados dos governadores de cada Capitania.
enfermos, a sangra-los, a cujo exercicio individuo algum de condição 2 - Que se ínstituisse nesse Jardim Medico Botánico uma aula de
livre se querera sujeitar, pelo asco, e horror que causa aquela Botãnica onde sistematicamente se ensinasse «as ciencias das
enfermídade». plantas, as suas virtudes, e o modo de as aplicar as diversas
Na Baia, o Hospital de S. Lazaro estava situado numa quinta e enfermidades», sendo todos os boticários e cirurgiöes futuros
sabemos, por uma prestação de contas do seu inspector em 1815, obrigados a frequentar o curso antes de serem licenciados
que nele estavam recolhidos 66 enfermos, sendo 34 homens e 32 para o exercicio das suas profissöes.
mulheres. Parte da produção agricola da quinta era consumida no 3 - Obrígar os boticarios a substituir nas suas boticas as plantas
próprio hospital e outra parte era vendida para fora, produzíndo europeias «inertes e corruptas>› pelas plantas indígenas, fican-
assim uma pequena receita. Esta fonte de renda era muito mais im- do o controlo dos boticarios locais a cargo do professor de
portante do que aquilo que 0 Hospital recolhia de esmolas «da caíxi- Botânica.
nha na porta da capela››; 5673350 para apenas 3$570 reis. Numa epoca
em que faltou carne nos talhos da cidade, foram mortos 8 bois da
quinta para consumo do hospital e este era ainda fornecido de «hor- 17 Arquivo Histórico da Baia, Caixa 119, pacote 231.
talices, frutas, lenhas, legumes, leite, madeiras para cercar e outros 13 Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 108, pasta 14. Este médico
tinha apresentado, alguns anos antes, na Academia das Ciencias de Lisboa, uma
consertos>›. Mas, como a despesa do Lazareto foi no ano de 1814 de memóría sobre a necessidade de se adiantarem os conhecimentos de Botánica em
64203285 rs, a Coroa tinha necessariamente de despender uma eleva- Portugal e no Brasil. Nesse trabalho apontara «os erros em que se tem precipitado a
da quantia com este Hospital. Medicina, por falta de luzes botânlcas».

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Ao fazer as três propostas, o médico dizia ter o apoio de outros antes de responder ao seguinte questionário; se tinha na sua botica
médicos da cidade e também 0 do cirurgião-mor, o qual, vendo a medicamentos ou utensilios emprestados; se a carta de boticario
decadência das boticas, «e o mau estado dos seus medicamentos», estava passada com o selo das Reais Armas na Chancelaria-mor do
já dava preferência às plantas indígenas para a composição dos medi- Reino; se tinha o Regimento com o preço dos medicamentos; se os
camentos utilizados nos hospitais do Rio de Janeiro, tendo mesmo pesos e balanças estavam aferidos; se os medicamentos eram prepa
substituido a quina por um equivalente local. rados segundo os preceitos da Arte Farmacéutica e se possuiam
Mesmo levando em conta o facto de este médico ser candidato â «o vigor e a eficacia» capazes de produzir o efeito para que tinham
cadeira de Botânica a ser criada”, o facto é que a instalação de Jardins sido compostos; se os utensilios estavam com 0 asseio e limpeza
Botânicos estava já entre os objectivos do govemo. Em 1796 foi criado necessarios; se os vasos com os medicamentos tinham os letreiros â
o primeiro Jardim Botânico, 0 de Belem, no Pará, o qual deveria servir vista «para não haver engano no tirar de algum››; se as receitas pre-
de modelo aos outros que viessem a estabelecer-se no Brasil, mas só a paradas estavam de acordo com o Regimento. O juiz comissario deti-
presença da Corte dinamizou a criação destas instituiçöes cientificas, nha ainda o poder de mandar dar buscas às gavetas a fim de verificar
embora não tanto com a finalidade apontada pelo médico do Rio de se havia alguns simples ou compostos ocultos pelo boticário. Feita a
Janeiro, mas tendo em vista fundamentalmente 0 desenvolvimento da inspecção, todo o medicamento impróprio para consumo seria quei-
agricultura. mado ou deitado fora e seria fechada a botica que não tivesse pelo
O interesse em utilizar as plantas medicinais do Brasil levou à menos os remedios mais utilizados pelos médicos e cirurgiöes.
publicação na revista O Patriota, lançada no Río de janeiro depois Nenhuma botica estava isenta destas visitas, nem mesmo a da Casa
da chegada da Corte, um estudo intitulado «Mapa das plantas do Real, ou as dos Reais Hospitais, e as «lojas de drogas» estavam igua1~
Brasil, suas virtudes, e lugares em que florescem. Extraído de oficios mente sujeitas a inspecção, mas apenas em relação aos produtos que
de varios médicos e cirurgiöes». Nessa listagem eram fornecidas as entravam na composição dos remédios. Os pesos ditos «medicinais››
seguintes informaçöes: descrição do aspecto das plantas; suas quali- então vigentes eram a libra contendo 12 onças; a onça com 8 outavas;
dades medicinais e 0 lugar do Brasil onde se encontravam. Era a partir a outava, que pesava 5 escrópulos; o escrópulo composto de 24 grãos.
das <<qualidades›› descobertas nas plantas (desobstruente, diurética, Quanto ao grão, só se dividia em duas partes.
antifebril, suclorïfica, etc.) que se aconselhava o seu uso nas várias Além destas visitas inesperadas, subrnetiam-se ainda os boticários a
enfermidades conhecidas e classificadas na época, entre as quais se uma devassa anual em que se inquiria se cobravam um preço excessi
incluiam várias doenças venéreas como a leucorreia ou flores brancas, vo pelos remedios”, se vendiam sem receita medicamentos perigosos,
a gonorreiazo. se tinham parceria com algum médico ou cirurgião, se deixavam a
Nesse artigo era indicada a parte da planta a ser utilizada (em geral botica na mão de irresponsáveis, se davam palpite quanto à cura de
as folhas e as raízes); a forma de manipulação (cozedura, infusão, em enfermidades, etc.
pó, diluido ou não, em sumo, em dissolução na agua, pisada); a forma Para se ser boticário era preciso passar por um exame de Farmacia,
de uso (geralmente por via oral, mas ainda em banhos, quentes ou ao qual só se podia apresentar quem fosse já mestre nessa Arte depois
não, em «fomentos››, clisteres ou massagens). de uma aprendizagem de 4 anos. Para o exame sorteavam-se 6 pontos
No fim do período colonial o Estado controlava de perto o grupo da Farmacopeia do Reino, a qual foi estabelecida pelo alvarâ de 7 de
dos boticários através de visitas às boticas, feitas pelo juiz comissario Janeiro de 1794.
delegado do fisico-mor, acompanhado pelo escrivão e visitadores Se nas grandes cidades como Rio de Janeiro e Baia não faltavam
examinadores, que eram boticãrios aprovados (alvará de 22 de Janei- medicamentos ã venda, nas pequenas povoaçoes a presença de
ro de 1810). O boticário visitado jurava sobre os Santos Evangelhos alguém que vendesse remedios era indispensávei, como podemos ver
por um abaixo-assinado enviado para Lisboa ao Soberano Congresso

19 Caso fosse nomeado, este médico-botãnico propunha-se fazer «algumas di-


gressôes para descobrir, e indagar as plantas medicinais, comprovando pela expe- 21 O Regimen to dos preços foi objecto de um alvarã depois da chegada da Corte,
riência a sua eficacia». a 5 de Novembro de 1808, tendo sido elaborado pelo fisico-mor ajudado por dois
2° Ver a lista completa em meu livro Cultura e Sociedade no Rio de janeiro boticãzios. Este Regimento era periodicamente actualizado «em atenção ã variedade
(1303-1821), pp. 139-141. dos preços das drogas medicinais segundo a alternativa dos tempos e do comercio».

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e examinado por este em Março de 1822; «Dizemos nós abaixo-assi com o mesmo. Serve também em qualquer dor externa nascida de frio
nados os moradores de Nossa Senhora da Assunção do engenho do fomentado com a parte do1orosa.›› Ja 0 espirito de vitríolo curava
Mato, que Alexandre Cardoso Ribeiro há 7 para 8 anos tem valido quaisquer chagas da boca, «principalmente das que ficam depois
muito ã pobreza desta freguesia e a peregrinos com remédios simples das inflamaçöes de garganta», mas para lhe dar melhor sabor mistu-
que tem mandado vir para a sua casa e gasto dela, dando-os a todos rava-se com mel rosado.
estes gratuitamente e emprestandoos a outros em suas necessidades, Alguns medicamentos eram usados externa e internamente, como
apesar de que não vive abundante, tem sido contudo tão útil ao o óleo de amêndoas doces: no primeiro caso servia «para fomentar
público, e de costumes irrepreensïvel, pelo que se faz tão digno e qualquer dor das partes externas››; no segundo caso usava-se «nas
merecedor da maior estima e atenção nas suas pretensöes, e o lhe deflexöes para adoçar a acrimónia da linfa, que ofende muito», pro›
conceder uma licença para ter as suas drogas medicinais públicas, movía o fluxo da urina e aliviava as «dores de pedra».
para o bem público sem aquela grande despesa que querem exigir A jalapa em pó era um purgante que no Brasil se usava em doses
os senhores fisicos delegados.››22 maiores do que na Europa: «as fibras ordinariamente são mais laxas, e
A venda de remédios era feita pelas boticas, mas mediante uma por isso menos sensïveis aos estímulos dos purgantes, posto que mais
licença passada pela autoridade máxima na área da saúde pública, o fortes, como é este, que na Europa se deve dar com muita cautela, pela
fisico-mor do Reino, cargo criado por ocasião da mudança da Corte razão alegacla, como observam os médicos doutos que naquela região
para 0 Rio de janeiro, as lojas de ferragens também podiam vender habitam».
drogas medicinais, mas apenas «em pesos grandes, e não em Produto de exportação do Brasil para o Reino, a ipecacuanha em
miúdos», e ainda com a recomendação de não vender «drogas vene pó era um «vomitório benigno, e muito útil nas diarreias, e principal-
nosas, e suspeitosas››25. mente nas desinterias, ou cursos de sangue». São anotadas contudo
As boticas portáteis acompanhavam todos aqueles que tinham de algumas contra-indicaçöes ao seu uso: não devia ser dado «às pessoas,
empreender longas viagens; governadores, bispos em visitas pastorais que tiverem diñculdade em vomitar, aos que forem quebrados, aos
pelas suas dioceses, ouvidores em correição pelas suas comarcas, que pela disposição, e má configuração do peito tiverem a respiração
negociantes e tropeíros. Infelizmente só nos foi dado conhecer o dificultosa, aos que tiverem deitado, ou deitarem actualmente sangue
conteúdo de uma dessas boticas, pertencente a um ouvidor-geral de pela boca, às mulheres pejadas, a todos aqueles, em que houver
uma Capitania não mencionada. Foi feita uma lista dos 34 remedios de inflamação em qualquer parte do corpo».
que ela se compunha, e o mais interessante nesse documento é a Esta botica do ouvidor incluía até o «extracto de Saturno», inven-
enumeração das «virtudes›› e a indicação do modo de usar de cada ção de Mr. Poulard, professor demonstrador real em Cirurgia e Ana-
uma daquelas drogas”. tomia do Colégio de Medicina, membro de várias Academias e
A agua de canela, por exemplo, era boa «para ajudar a digestão dos cirurgião-mor do Hospital Real e Militar de Montpellier, que se podia
alimentos, expulsar os flatos, fortificar 0 estómago, cabeça, e coração, usar puro no curativo da chaga e suas bordas, «quando a supuraçäo
motivo por que serve muito nos desmaios, e nas cólicas flatulentas, e dela é má e que ameaça gangrena». Era também usado para verrugas
nas nascidas de causa fria, ou constipação». O «bálsamo católico» «e todas as excrescências, que vêm na superficie do corpo». Com este
servia «nas feridas feitas com qualquer instrumento havendo extracto se preparava a agua vegeto-mineral, ou água de Saturno,
sangue» e aplicava-se «com uma pena, ou com fios em cima da muito empregada para combater erisipelas, hemorróidas, frieiras, im-
ferida», fazendose em seguida a ligadura, mas este bálsamo tinha pigens, sarna, queimaduras, contusöes, panarícios e ainda depósito do
ainda outras serventias; «Na cólica se dá de 5 até 8 gotas em vinho. leite detido nos peitos das mulheres.
Também serve na dor de dentes, aplicado em algodão sobre os que Todas estas instruçöes foram redigidas por Bento Vieira Gomes
doem. É um excelente remédio nas dores das almorreirnas untando-as para elucidação certamente do ouvidor quando ele precisasse de
recorrer em viagem aos produtos da sua botica. Por isso foram sim-
plifìcadas, omitindo ele «por brevidade, e por evitar confusão», outros
22 Arquivo Histórico-Parlarnentar (Lisboa), Secção I e II, Caixa 14, documento
178, documento cedido por Luisa Tiago de Oliveira.
muitos casos em que os «professores›› aplicavam estes remedios.
23 ANRJ, Fisicatura-mor, caixa 464, pacote 1.
2" ANTT, Papéis do Brasil, Avulsos 5, documento 5.

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9
Atitudes perante a morte

Os ritos do catolicismo reinante para ajudar os moribundos a bem


morrer, ou para os acompanhar â última morada e rezar pela sua alma,
atrairam a atenção de quantos viajantes estrangeiros percorreram as
terras brasileiras no fim do período colonial. Mais críticos perante o
que consideravam um exagero papista, os protestantes foram contudo
sensíveis, tal como os estrangeiros professando a religião católica, às
diferenças sociais reveladas pelo cerimonial fúnebre.
Como o consolo aos moribundos exigía a presença de um padre e
este cobrava pelos seus serviços, a quantia a ser despendida variava
com a condição social e o nivel de fortuna daquele que estava para
morrer. O papel das confrarias era muito importante nesta assistência
aos moribundos, pois os irmãos costumavam acompanhar o padre
que se dirigía ã casa de um doente para lhe levar o santo viático.
As populaçöes espalhadas pelos sertöes queixavam-se amarga-
mente da falta de sacerdotes que as atendessem à hora da morte.
Assim, por exemplo, os habitantes da vigararia do rio das Contas
pediam, em 1808, que se pusesse cura em todos os lugares precisos
«para se não experimentar as faltas que até 0 presente se experimenta
de morrer os povos sem os sacramentos necessãrios››1.
Prepararse para a morte era fundamental para os católicos e dai o
pavor da morte violenta, que, entre gente rude, não raro dava origem a
crenças que depois a Igreja condenava por heterodoxas. Foi o caso de
um «homem bastardo», filho de branco e bastarda (mestiça de india),
que na Capitania de Goiás foi lançado à cadeia pública de vila Boa em
1777 por carregar consigo uma hóstia consagrada, retirada da sua
boca por ocasião da comunhão pascal. Ele ocupavafse de uma roça,
de onde tirava o seu sustento, e vivia agregado na casa de um morador
no arraial de Santa Cruz. Tinham sido uns vaqueiros que por ali
passavam que o convenceram de que a sagrada partícula o livraria

1 ANRJ, Desembargo do Paço, 194, pacote 5.

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¬l"
«de mortes súbitas, de tiros, de maus sucessos, como morrer afogado quer da Capitania de Goiãs quer da de Mato Grosso, seguiam o se-
e sem confissãonz. gumte <<regrmento›› de emolumentos, ainda em vigor em 1778, na
A protecção contra uma morte violenta e inesperada, que não parte referente aos brancos4;
desse tempo ao individuo para se preparar com a confissão e com
disposiçöes a favor da sua alma, era algo que havia interesse em
alcançar, fosse por que pratica fosse. Acompanhamento 4 outavas
Em oposição ã morte segundo os ritos católicos, acompanhada de Encomendação 2 velas de
confissão e extrema-unção, observava-se o que então se designava por 1/2 libra
atitude «libertina›› a qual, quando do dominio público, era frequente- Missas de corpo presente rezadas 2 outavas
mente denunciada à Inquisição de Lisboa. Em 1778 António da Costa Havendo oficio 8 outavas 1 libra de cera
Serra, morador na cidade de São Paulo e negociante de escravos novos Acompanhamento de «ino¢eme5» 6 outavas 2 libras de cera
que trazia do Rio de janeiro, foi objecto de uma denúncia. Ai se Sendo pobres 2 outavas 2 velas de
relatava que Serra estivera gravemente enfermo no ano anterior mas 1/2 libra
que, durante todo o decurso da doença, não quisera que lhe adminis-
trassem os sacramentos e, quando alguém lhe aconselhava a confis-
Tinham as Constítuíçôes primeiras do arcebzlspado da Baia esta-
são, «respondía muitos despropósitos e blasfémias». Não poderia esta
belecido: «Conforme a Direito é permitido a todo o cristão eleger
atitude ser explicada pelo «delirio da doença», pois achando-se nova-
sepultura, e mandar enterrar seu corpo na igreja ou adro, que bem
mente são e prosseguindo o seu negocio, continuava a proferir «as
lhe parecer, conforme suavontade e devoção» (Livro IV, tit. 55, $1844).
mesmas e mais horrorosas proposiçöes com publicidade e escândalo
Na pratica, o regimento acima referido previa o enterramento na igreja
da religião››5. matriz, em capelas ou «ermo››, sem especificar o que se entendía por
Tratava-se aqui de um «homem rústico e sem literatura alguma»,
esta palavra. Hã contudo um pormenor interessante: «Não se costu-
que já fora excomungado pela Cüria Eclesiâstica de São Paulo «por
mam enterrar anjinhos em adros, mas sim dentro» cobrando-se con-
não satisfazer aos preceitos da Igreja» e que, apesar disso, era contu-
tudo o mesmo como se fosse sepultado fora. Por outro lado, o
maz em não cumprir as obrigaçöes de católico romano. Assim, a
sepultamento na matriz era sempre mais caro do que em capelas ou
recusa da confissão e da extrema-unção não fora apenas uma atitude
ermos.
isolada durante a doença, mas sim o resultado de todo um comporta-
E preciso visualizar o espaço da igreja para poder entender 3
mento durante a vida marcado pela falta de cumprimento dos ritos
seguinte passagem daquele regimento de emolumentos: «As sepultu-
católicos. Um dos denunciantes especificou as blasfémias proferidas,
ras tem a primeira no primeiro andar 2 outavas e dali para cima se
entre as quais se incluiam algumas referentes à vida extraterrena:
contam pelos andares acrescentando-lhes em cada andar 2 outavas
«Também nega que as nossas almas passem desta a outra vida a dar
Das grades para cima fica ao arbitrio do pároco segundo a qualidade
contas ao seu Criador e que Deus tenha lugar destinado, que é o
Inferno e Purgatorio para as castigar; e ainda nega que haja Céu onde das P955035 COYDO Pøssibilidades delas» Assim o sepultamento den-
tro da igreja era mais caro ou barato conforme se fazia perto do solo
alguém a ser premiado e glorificado o nome de Deus, antes que sejam
ou em situação mais elevada.
aniquilados neste mundo.›› Outro denunciante, seu vizinho, que a
Embora sem proceder a uma quantificação exaustiva dos testamen-
mando do cura fora a sua casa convencê-lo a confessar-se, declarou:
tos do fim do periodo colonial, é possível afirmar que o medo da
«o achei como se fosse herege, detestando o sacramento, repudiando
morte, ou melhor, que o medo de que a alma se perdesse eternamen-
os ministros sagrados», tendo mesmo afirmado claramente que em
te nas chamas do Inferno diminuiu consideravelmente nos fins do séc
nada acreditava.
XVI-II e micros do XIX. Mesmo individuos abastados que poderiam, se
Quanto aos ritos funerarios, nas regiöes de mineração, onde o
quisessem, despender grandes somas com os cuidados da alma me-
pagamento dos pãrocos era feito em outavas de ouro, os vigários,
diante missas em sua intenção, deixaram então de o fazer Chegamos
2 ANTT, Inquisição de Lisboa, 2.779.
3 ANTT, rafa, 6009. 4 AHU- CQPÍUIHÍH do Mato Grosso, caixa 18, documento 19.

534 355
assim ao despojamento do testamento de Luis Paulino d`Oliveira Pinto tomada como exemplo, uma vez que este papel era idêntico em todas
da França, redigido em Salvador, Capitania da Baia, a 50 de Setembro as regiöes.
de 1821; «Não quero que se me façam honras fúnebres pomposas Em 1779, D. Francisca Paes de Lira decidiu no seu testamento:
nem oficios, nem armaçöes de casa e igreja e determino que o meu «Meu corpo será sepultado na igreja de Nossa Senhora da Píedade,
cadáver seja envolto num lençol ou pano pobre que testemunhe bem ou na sepultura de minha mãe ou na de meu marido, amortalhado
a humildade que devemos ter diante de Deus, o nada que somos. com o hábito de Nossa Senhora do Carmo, na tumba ou esquife da
Quero que os pobres conduzam o meu cadáver ã sepultura, que será irmandade do Santissimo Sacramento pelo privilegio que tem da santa
na freguesia onde eu falecer, a cujo pároco deixo uma esmola de irmandade como dona viúva.››7
45000 réis para dizer uma missa por mim e por meus ascendentes.››5 Morando numa vila, a de Guaratinguetá, onde não havia Misericor-
Uma das funçöes principais das irmandades consistía precisamente dia (instituição que nas cidades possuia o monopólio do transporte
em fazer o acompanhamento fúnebre dos irmãos e em dizer missas dos defuntos para o local de enterramento), D. Francisca não era ela
pelas suas almas. Estes dois aspectos aparecem em todos os compro- própria irmã, mas como viúva de um irmão podia usufruir dos servi-
missos dessas associaçöes religiosas. Vejamos um exemplo no com- ços da irmandade. Também Catarina da Assunção, moradora na
promisso da irmandade de Nossa Senhora do Terço, na cidade da mesma vila, quis os serviços da mesma irmandade do Santissimo
Baia; «Quando falecer algum irmão, serão obrigados, a Mesa e mais Sacramento, de que o seu defunto marido fora irmãos.
irmãos, a acompanhar aquele cadáver em acto de irmandade; e no Frequentemente, contudo, as muiheres, mesmo casadas, eram elas
caso de que alguns destes não tenham com que se amortalhar por próprias filiadas numa ou mais irmandades, como ocorreu com uma
causa da pobreza, se lhes dará uma mortalha branca de esmola por moradora da vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba, em 1801;
amor de Deus» A mesma obrigação tinha a irmandade para com os «Ordeno que meu corpo seja sepultado na igreja matriz nas sepultu-
filhos dos irmãos casados «vivendo eles debaixo da sujeição, e obe- ras de Nossa Senhora das Dores de quem sou indigna irmã e amorta-
diência de seus pais», pois uma vez emancipados ia não tinham direito lhado em túnica competente à mesma irmandade, acompanhado pelas
a este acompanhamento. Uma excepção se abria contudo ãs filhas, irmandades da Senhora das Dores e das Almas, de quem também sou
mesmo de idade muito avançada, que se tivessem conservado «no irmã, e por isso quero seja meu corpo carregado na tumba das
estado de donzela». Os filhos de irmãos só tinham direito contudo Almas.››9 Vemos assim que, pertencendo a duas irmandades, esta
a acompanhamento fúnebre, não a sufrãgiosó. mulher distribuìu os serviços fúnebres por ambas: uma fornecia o
Quanto a estes, a mesma irmandade, além de fazer celebrar missa transporte (a tumba), a outra a mortalha e a sepultura.
solene no altar de Nossa Senhora do Terço pelos irmãos vivos e No fim do periodo coloniai as ordens terceiras desempenhavam
defuntos, tinha uma escala de sufrágios, desde que tivessem satisfeito um papel idêntico ao das irmandades na prestação dos serviços fune-
as suas «promessas e anuais››: rarios. Em 1784, na cidade de São Paulo, Ana Maria Mendes expressou
no seu testamento o desejo seguinte: «Meu corpo será sepultado na
Qualquer irmao - 10 missas minha universal ordem terceira da Penitência de meu seráiico padre
juiz - 30 missas São Francisco em cuja ordem sou irmã terceira professa, e amortalha-
ESC;-¡vão - 20 missas do o meu corpo no hábito da mesma religião.››1° Desejo idêntico
Tesoureiro - 20 IHÍSSHS exprimiu Joana Lopes de Oliveira, moradora na mesma cidade, em
Procuradores e consultores - 15 missas 1783: «Ordeno que meu corpo seja sepultado na capela da minha
Juíza - 20 missas venerável ordem terceira de Nossa Senhora do Carmo, em habito
inteiro da mesma.››“
O papel das irmandades nos ritos funerarios pode ser facilmente
comprovado pelas disposiçöes testamentãrias. Na impossibilidade de
proceder a este estudo para todas as Capitanias, será a de São Paulo 7 AE5P› Ofdem 456› La'-'fi 2~ “WO 4- f0¡- 4**
S Aissp, ima., Lwm 5, fol. 104v.
9 Ass?. mia., Livro 6, fol. 46v.
5 Cartas Baianas, pp. 167-8. 1? AESP- 1-¡WO 4» f0l- 54-
6 ANRJ, C0d_ 315_ AESP, zbzd.. fol. 48v.

356 337
A utilização das ordens terceiras na cidade de São Paulo não signi- zido os negros gentios baptizados umas danças das suas terras, com
ficava contudo a marginalização das irmandades nos ritos funerarios. que lá adoram aos seus falsos deuses, acompanhadas de instrumentos
Maria de Lara Bonilha, em 1779, quis ser sepultada na capela da ordem gentilicos, tabaques, que são como espécie de tambor, marimbas, e
terceira do Monte do Carmo e amortalhada no hábito desta, mas não outros de ferro, todos estrondosos, horríveis, tristes, e desentoados,
dispensava o acompanhamento da irmandade do Senhor dos próprios do Inferno, e certas cantilenas na sua lingua gentilica».
Passos”. Quando chegaram os missionários capuchinhos a Pernambuco,
Na vila de Itú, uma das povoaçoes mais prósperas da Capitania de enviados por D. Maria I, começaram a «investir ferozmente dos
São Paulo, também as ordens terceiras estavam presentes. D. Inácia púlpitos›› contra essas danças e a 21 de Dezembro de 1778 sairam
Góis de Arruda, em 1797, determinou o seu sepultamento na igreja de do hospício acompanhados de 5 sacerdotes seculares e apreenderam
Nossa Senhora do Carmo, de cuja ordem terceira era irmã professa, alguns instrumentos, «que o povo pelo dito dos missionãrios quebra-
sendo o seu corpo amortalhado no hábito da mesma ordem. Senhora ram e queimaram››.
de engenho, viúva de um sargento-mor, esta preferência parece indi- Esta investida da Igreja não encontrou contudo apoio do governa-
car já, nas camadas mais opulentas da sociedade, uma marca ou sím- dor, a quem os negros se queixaram. Os rnissionários foram intimados
bolo social superior às simples irmandades”. a não mais perturbarem a república e os sacerdotes que os tinham
Embora os ritos funerarios dos brancos procurassem abafar as acompanhado foram condenados a pagar cada um 53000 réis «para a
tradiçöes culturais dos indios e dos escravos africanos, não ha dúvida refação de instrumentos quebrados, por não terem os missionários
de que entre estes grupos étnicos podemos observar diversos graus com que pagar».
de aculturação e mesmo a manutenção de ritos próprios sob uma Todos os viajantes europeus relataram as cerimónias fúnebres
aparência de cumprimento das determinaçöes católicas. entre os indios que não víviam em povoaçoes de brancos. Depois
Alguns padres chocavam-se com esse hibridismo e denunciaram- de contactarem com os indios de Minas Gerais, Spix e Martius obser-
-no ao Santo Oficio, como podemos ver por uma denúncia prove- varam que quando morria um indio ele era enterrado na cabana de
niente da Capitania de Pernambucom. Dizia um dos documentos: «Os cócoras ou metido num grande vaso de barro, «ou embrulhado em
negros do gentio de Angola, e especialmente os do gentio da Costa embirra, ou tecido velho de algodão» directamente na terra, que era
costumam quando morte algum seu parente, ou malungo, pôr publi- em seguida pisada com força ao som de gemidos fúnebres. Em cima
camente nas praças, e outros lugares, uma mesa coberta com uma da cova deixavam fìcar, durante algum tempo, as armas do morto
baeta preta a pedirem esmola para mandar dizer missas por alma assim como alimentos e caça. Os lamentos eram repetidos duas vezes
do tal parente, ou malungo, que faleceu. Até aqui acto de piedade, ao dia e o cabelo era cortado curto ou, pelo contrário, deixavam-no
porém nessa mesma ocasião se ajuntam uns, e outros de diverso sexo crescer. Quanto às mulheres, elas pintavam o corpo todo de preto,
e ã roda da mesa fazem uma dança ao modo de sua terra com uns segundo os viaiantes tinham ouvido contar. O local onde o morto era
tabaques, e outros instrumentos fúnebres, que na verdade não é outra enterrado era abandonado e a cabana não mais servia para habitação.
coisa mais do que um rito seu gentílico, e o que mais é que o senhor Não queriam os indios perturbar a última morada do mortofi'
governador consinta, e lhes dá licença para isto.›› Lamentava este Apesar das tentativas feitas por estes dois naturalistas para apren-
comissario do Santo Oficio; «É coisa na verdade muito alheia que derem as linguas indigenas, a fim de melhor poderem entender o
no meio de cristãos se consintam semelhantes danças, que não pare- significado das cerimónias fúnebres e desvendar as crenças acerca
cem outra coisa que ritos gentilicos opostos ã Santa Fé e religião da morte, em breve chegaram ã conclusão de que se tratava de uma
cristã.›› empresa demasiado dificil. Não só a diversidade linguistica era muito
Os negros que assim agiam eram todos baptizados, o que muito grande como as várias linguas não podiam ser consideradas como
escandalizava o padre denunciante: «neste Pernambuco têm introdu- «dialectos›› de algumas linguas fundamentais, porque elas possuiam
poucas palavras «com raizes de igual significado». O obstáculo lin-
guistico era portanto grande: «os indios de tribos diferentes muitas
'2 Assr, 1b»zr,um› s,f01. 64.
'Z' Assr, rafa., Livro 6,f01. 95v.
1'* ANTT, Inquisição de Lisboa, 4.740. 'S Spix e Martius, op. cif., tomo I, pp. 206-7.

558 339
vezes não se entendem uns com os outros e, assim como com os
europeus que convivem com eles, só por sinais se podem comuni-
car.›› Tornava-se portanto dificil a um europeu decifrar a atitude pe-
rante a morte mediante as palavras utilizadas, pois no vocabulario
indigena não existiam termos como «alma››, «espirito››, etc.

FONTES E BIBLIOGRAFIA

340
Fontes manuscritas

PORTUGAL

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)

Inquisição de Lisboa
50, 56, 1480, 1828, 2779, 2825, 2825, 2861, 3759, 3825, 3869, 4374, 4740, 5529,
5712, 5851, 6009, 6238, 6240, 6245, 7043, 7056, 9753, 11853, 13264, 14198,
14222, 14418, 15008, 16762, 17386, 17462.
Habilitação, maço 21, dil.262, Joaquim.
Habilitação, maço 171, dil.1518.
Papéis do Brasil, Cod. 4, 6 e 8; Avulsos 1, 2, 3. 4 e 7.
Feitos fíndos, justificaçòes ultramarinas, Brasil, maços 1, 2, e 4.
Ordens Militares, Ordem de Cristo, Padroado do Brasil, Caixa 12, maço 12.
Conselho Ultramarino, Registo de correspondência (1779-1833), Livro 179.
Conselho Ultramarino, Consultas, maços 521, 522 e 324.
Chancelaria de D. Maria I, Próprios, Livros 14 e 15.

Arquivo Histórico Ulrramaríno (AHU)

Documentos em caixas:
Capitania da Baia, Caixa 177.
Capitania do Espirito Santo, Caixa 5.
Capitania do Maranhão, Caixa 870.
Capitania do Mato Grosso, Caixa 18.
Capitania do Pará, Caixa 14.
Capitania de Paraiba, Caixas 14, 15 e 16.
Capitania de Pernambuco, Caixa 118,
Capitania do Piaui, Caixa 13.
Capitania do Rio Grande do Norte, Caixa 9.
Capitania do Rio de Janeiro, Caixas 151 e 245.
Capitania de Sergipe d'el-rei, Caixa 8.

Códices:
Cod. 944 - Consultas da Mesa da Consciência e Ordens (1756-1799).
Cod. 1540 - Compromisso da irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, e
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343
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bispado do Río de Janeiro feito e reformado em 1805. 1; 775; 739¡ 303, VOL 4; 312, VOL 1; 315 e 345
Cod. 1546E - Compromisso da confraria da Mãe Santissima Senhora das Dores, Minjstël-105, 111923,
da igreja matriz de Nossa Senhora da Apresentação de Iraiá de S. Sebastião do Segçåg do p0¿1¢¡~ Jud¡¢¡á¡-10, 5@-ie 1_¡-,fl-05 de Umas, 1° 05,30' livro 199_
Río de Janeiro, 26 de Janeiro de 1794.
Cod. 1680 « Compromlsso de M. Veneràvel irmandade de S. Pedro do Rio de
Janeiro (17 de Março de 1805). Bibìíoreca Nacional do Rio de janeiro CBNRJ)
Cod. 1741 - Reforma do compromisso dos homens pretos da irmandade do
glorioso Santo Antonio da Mouraria, erecta na igreja de Nossa Senhora do 15, 5, 11, n.°” 1 e 2.
Rosario, nesta cidade de S. Sebastìão do Rio de Janeiro, 1806. 15, 5, 15, nf” 6.
I - 30, 36, 11.
I - 51, 18, 26.
Biblioteca Nacional de Lisboa (B NI.) ¬ 30, 56, 11.
- 53, 18, 41.
C0dS› 8597 C 10757. - 35, 21, 124.
Caixa 11, documento 15. - 55, 22, 69.
- 35, 23, 5.
- 35, 50, 4.
Bibiíoteca Municipal do Porto (BMP) - 55, 54, 8.
n-|›1:-cv4.-› 1-.av1_|›-su41- 1;- ›~-4 - 34, 4, 7.
C0d$. 688 E 1062. Il - 34, 6, 53.
Pasta 19, Hs. 9 e 15. II - 34, 21, 46.
Il - 54, 29, 28.

Arquiuo Histórico-Partamenrar (Lisboa)


Instituto Histórico e Geogrâflco Brasileiro (IHGB)
Comìssão da Fazenda, Caixa 78, doc. 15.
Secção I e ll, Caixa 14, doc. 178. Lata 14» documento 19-
Lata 74, pasta 4, documento 4.
Lata 108, pasta 14.
BRASIL

Arquivo do Estado da Baia


Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ) Caixa U9 pacmeç 251 232
Documentos em camas: Caixa 120, pacotes 233 e 234.
Fisicatura-mor, Caixa 464, pacotes 1 e 2, C ama
` 125 ' paco 1E 257.
Hospital dos Lázaros, Caixa 759, pacotes 1 e 2.
Desembargo do Paço, Caixas 25, 94, 105,108, 109,110, 111,112,115, 120,121, A . Púbr M. _.
122, 125, 124, 125, 126, 127, 128, 135, 156, 137, 194, 224. ”¡“""° 'C0 ”“"'°
Mesa da Consciência e Ordens' Camas 150' 254' 236' 257' 238' 241' 245' 252' 256* Cámara Municipal de Sabará Livro 61 Enjeitados (1780-1784)
Junâ¡5ã'O2gì'IššZLjiš,1â'a1ì2a2s' 544' 345, 346, 541 388. Câmara Municipal de Sabará, Livro 75, Testamentos c inventarios.
Inventarios, Caixas 1134, n° 9287; 1135, n° 9024; 1141; n° 9629; 5659, n° 161;
413@ no 1315- Arquivo do Estado de São Paulo (AESP)
Maços 121, n° 2586; 289, 11° 5275; 454, n° 8391; 439, n° 8480; 451, n° 8627;
459, 11° 8762; 460, n° 8794; 462, n°s 8853 e 8857; 469, 11° 8950; 741, 11° 3136; Q,-¿em 110, ¡am 11()_
2293, n°s 518 e 320; 2295, n° 456. ordem 152, lana 152.

544 345
Ordem 153, lata 153. 15-9-155, 1816 15-14-220, 1821 15-15-232, 1821
Ordem 337, lata 90. 15-10-166, 1817 15-14-221, 1821 15-15-223,1821
Ordem 342, lata 93A. 15-11-187, 1818 15-14-222, 1821 15-15-234, 1821
Ordem 343, lata 94. 15-13-204, 1819 15-14-224, 1821 15-19-276, 1821
Ordem 344, lata 95. 15-13-205. 1820 15-14-225, 1821 15-15-235, 1822
Ordem 456, lata 2, livros 4, 5, 6 7, 8, e folhas avulsas. 15-13-206, 1820 15-14-226, 1821 15-15-236, 1822
Ordem 457, lata 3, livros 9 e 10. 15-13-207, 1820 15-14-227, 1821 15-15-237, 1822
Ordem 568, lata 91. 15-13-208, 1820 15-14-228, 1821 15-15-238, 1822
Ordem 569, lata 92. 15-13-209. 1820 15-15-230, 1821 15-16-240, 1822
Ordem 570, lata 93. 15-14-219, 1821 15-15-231, 1821 15-16-241, 1822
Ordem 572, lata 95.
Ordem 5331.
Ordem 5393, lata 63.
Ordem 5662 lata 64.
Escrituras dd Tabelião, livros 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14.

Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB)

«Comprornisso da confraria de Nossa Senhora do Socorro, erecta na igreja do


Patriarca Santo Domingos do Rio de Janeiro, 1806».

Arquivo da Cüria de São Paulo (ACSP)

1~3-8.
2-4-6.
2-4-8.
12-3-67.
Esponsais, 15-1-4 e 15-1-17.
Casamentos, S-64-1402; 6-2-1659; 6-25-1900; 6-54-2192; 6-65-2288; 7-1-2512; 7-6-
-2566.
Divorcios:
15-2-36, 1779 15-5-54, 1798 15-6-98, 1310
15-3-38, 1780 15-4-56, 1799 15-6-102, 1s11
15-3-39, 1782 15-4-57, 1800 15-7-106, 1311
15-3-42, 1784 15-4-58, 1801 15-7-1117, 1311
15-3-40, 1785 15-4-60, 1803 15-7-108, 1312
15-3-41, 1787 15-4-59, 1803 15-7-109, 1312
15-35-458, 1788 15-4-64, 1804 15-7-1221813
15-53-677, 1788 15-4-67, 1805 15-8-136, 1815
15-3-45, 1790 15-5-77, 1806 15-8-154, 1814
15.3-46, 1794 15-5-so, 1807 15-s-155, 1814
15-3-47, 1795 15-5-87, 1503 15-8-137, 1814
15-3-50, 1796 15-6-92, 1809 15-9-145, 1815
15-3-52, 1797 15-5-76, 1810 15-9-150, 1815
346
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Nacional, 1960. Ilustraçöes 2, 4, 17, 19, 24, 29. 31, 35 e 36.
Alexandre Rodrigues Ferreira, Viagem Filosóficapetas Capitanias do Grâo-Para',
Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, 178317.92. Iconograíìa, vol. I, Geografia,
Antropologia, Rio de janeiro, 1971. Ilustraçöes 10, 55, 34, 57, 38, 65 e 64.
Usos e Costumes do Rio de janeiro nasfigurinbas de Guittobel, com introdução
de Paulo Berger, s.l.n.d. Ilustraçöes 1, 3, 6, 7, 8, 16, 20, 21, 22, 26, 28, 41 e 42.
Views and Cosrumes of the City and Neigbbourbood ofRio de janeiro, Brazil,
from Drawings taken by Lieutenant Chamberlain, Royal Artillerjy, during
the years 1819 and 1820, with descriptive explanations, Londres, 1822.
Ilustraçöes 15, 14, 18, 25, 27, 32, 43, 44, 45 e 46.
Voyage pittoresque dans le Brésil par Maurice Rugendas. Traduit de Fallemand
par Mr. de Colbery, Paris, 1855. Ilustraçöes 48, 49. 50, 51, 55, 56, 57, 58, 59.
60, 61, 62, 65, 66, 67, 68 69, 70, 71, 72, 75, 74, 75, 76, 78 e 79.
Do Arquivo Histórico Ultramarino, documentos fotografados por José Miguel
Contreiras. llustraçöes 9, 23, 40. 53. 54 e 77.
A fotografia do mausoléu foi tirada pelo nosso colaborador David Higgs. Ilus-
tração 47.
Do Museu da Inconfìdência de Ouro Preto, Minas Gerais, ilustraçöes 5, 15, 30 e
59.
Da secção de reservados da Biblioteca Pública Municipal do Porto, foram selec-
cionados alguns documentos, principalmente mapas e plantas de povoaçöes.
llustraçöes 11 (pasta 19, maço 9), 12 (pasta 24, maço 25) e 52 (pasta 24,
maço 40).

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