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Giselle Moreira Renata Estrella Ricardo Pinto Tatiane França
n ã o s e p o d e e s e escreve
n ã o s e p o d e e s e escreve
ensa ios sobre Marguerite Duras
Sabiá Editorial
2020
2020 copyleft — O conteúdo desta obra pode ser copiado e reproduzido,
desde com indicação de autoria e fonte
D194n
ISBN: 978-65-88372-07-4
CDD 840
Sabiá Editorial
https://www.sabiaeditorial.com.br/ | sabiaeditorial@gmail.com
s u m á r io
M
a r g u erite Duras afirma que as mulheres escrevem do
lugar do desejo e, em conversa com Michelle Porte, diz que o fa-
zem munidas de uma linguagem anterior a elas, selvagem. A linguagem
da noite, das florestas. Foi também do lugar do desejo que, ao encon-
trarmos uma paixão comum pela obra da escritora, trouxemos à vida o
primeiro evento da Universidade Federal do Rio de Janeiro destinado a
reunir leitores e pesquisadores da obra literária e cinematográfica de Du-
ras. Foi unindo nossas linguagens e nossa vontade comum de mergulho
que organizamos a primeira Durassiana em 2019.
O embrião do evento surgiu do fortuito encontro entre o que mais tarde
se tornaria sua Comissão Organizadora1 . Em outro encontro anterior,
destinado aos estudos entre literatura e psicanálise na UNICAMP, em
2018, teve início a partilha de ideias e leituras que culminaria no projeto
de um evento para discutir Duras, plano abraçado pelo professor de Te-
oria Literária e responsável pelo Projeto Fortuna -- também organizador
do evento e da presente edição --, Ricardo Pinto. Tal projeto, mantido
pelo do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ
é um projeto de extensão que se dedica a criar e manter recursos de
1
Encontro entre três (apaixonadas) pesquisadoras da obra de Duras: Giselle Moreira,
mestre em Estudos Literários pela UFMG; Renata Estrella, doutoranda em Ciência
da Literatura pela UFRJ; Tatiane França, mestranda em Ciência da Literatura na
UFRJ.
9
G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto
2
Para mais detalhes sobre o Projeto Fortuna: https://fortuna.labedicao.com
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Apresentação
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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto
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Apresentação
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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto
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Apresentação
pela própria autora: "há toda uma época em que escrevi livros, até Mode-
rato Cantabile, que não reconheço". Assim, para Chnaiderman e Paula,
"Moderato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto que
aflora da morte e da loucura, tal qual uma estética do arrebatamento".
Nesse sentido, a escrita é uma forma de fazer com o impasse, mesmo que
o mantendo sem solução. E é justamente esse aspecto que os autores
identificam como essencial à erótica do texto durassiano: "o erotismo
que mobiliza o texto de Duras diz de uma modalidade de resposta a
uma impossibilidade: seja o impossível de compreender, o impossível
de dizer, o impossível de complementar junto ao outro".
Em seu artigo, Larissa Melo costura conceitos de pensadores como Jac-
ques Rancière, Hanna Arendt e Jacques Derrida para pensar o cinema
de Duras como um movimento pela emancipação do espectador. Ana-
lisando aspectos de algumas de suas obras escritas e também o conjunto
de obras cinematográficas da autora, Melo elenca aspectos importantes
do fazer literário e fílmico durassianos, a fim de entender como tanto a
palavra quanto o silêncio atuam nesse processo de emancipação. O ar-
tigo localiza ademais a obra de Duras em contraposição ao movimento
do cinema que lhe é contemporâneo, lendo suas produções como um fa-
zer crítico que se coloca contra um determinado pensamento do cinema
da época.
E como não poderia faltar em um volume dedicado à Duras, questões
políticas atravessam as análises das obras de maneira indireta -- como fez
a escritora em muitos momentos de sua carreira, a exemplo do conhe-
cido relato da exploração colonial francesa em Uma barragem contra
o Pacífico -- para serem presentificadas de forma direta em dois artigos.
Um traz a tona a Shoa, uma das maiores catástrofes da história da hu-
manidade, enquanto o outro trata de nossos traumas contemporâneos,
não menores, buscando possibilidades de vida a partir da obra durassi-
ana. É uma felicidade fechar essa publicação com uma das noções que
nos é mais cara, ao nosso Programa de Pós-graduação e à universidade
pública, a função social da literatura.
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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto
16
Apresentação
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o q u e d u r a e s crito no
corpo
a na lucia lutterbach
H
á a l g u m tempo me interesso pelas relações entre ao
tratamento dado ao real na prática da psicanálise e na escrita. So-
bre isso Marguerite Duras é a principal referência para mim. Fui pega
por sua escrita há muitos anos e ela não me larga.
Durante muito tempo para os analistas, e contrariando a Freud, a escrita
esteve associada ao ideal, em nome de uma ideia de arte que Lacan, com
Joyce, vai contestar mostrando "que a arte, tem sua raiz precisamente
no real"3 e não no ideal.
Além disso, acreditava-se, e alguns analistas ainda acreditam, numa certa
função terapêutica da escrita, como se a escrita pudesse salvar alguém
da loucura, da morte, da vida. A escrita pode ser um tratamento dado
ao real, mas a escrita não é prescritível e seus efeitos são imprevisíveis.
Não se escolhe ser escritor, não escreve quem quer. Simplesmente, para
alguns, é preciso escrever. Quem escreve não possui uma escrita, como
no caso de Duras, mas consente ao que vem de um outro lugar, uma
espécie de encarnação do real, pulsão da escrita.
A escrita, ao contrário da salvação, pode ser um perigo, como escreve
Duras:
3
Miller,J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana, 2011, lição de
25/05/2011. Inédito.
18
O que dura no corpo
19
Ana Lucia Lutterbach
Lacan nos diz que não é só o sonho que deve ser tratado como escrita,
como indica Freud, mas o próprio relato em análise deve ser tomado
como algo a ser lido e não só escutado. A leitura da Letra, do não sentido,
ao contrário de fazer proliferar, reduz o sintoma à sua fórmula inicial,
ou seja, "reduz o sintoma ao choque da linguagem sobre o corpo"5 . No
Seminário 20, Lacan nos diz que trata-se de ler além daquilo que o ana-
lista incitou o sujeito a dizer, ali para além do sentido encontra-se o
inconsciente.6
Com esta afirmação, Lacan tenta trazer para a análise o que há de inerte,
o que não se pode contar. Ali onde estavam os efeitos de sentido passa a
prevalecer o gozo do corpo, de um corpo que não se define pela imagem ou
pela forma, mas pelo gozo que o atravessa e que se imprime como letra e
faz do corpo um aparelho de gozo. Segundo as precisas palavras de Miller,
"um aparelho de repetição do Um que comemora uma irrupção de um
gozo inesquecível" 7 *, num ciclo de repetições onde as experiências não
nos ensinam nada. *
Um gozo opaco, chamado feminino, mudo que não muda e dura até o
fim.
Esta irrupção de gozo é o que orienta uma análise para além de todo
o romance familiar, o que orienta e ultrapassa toda narrativa, todo ro-
mance.
A escrita de Duras é sustentada por este real do gozo, "seca e nua", como
ela mesma nos diz em Écrire:
Eu creio que a pessoa que escreve não tem ideia do livro, ela tem as
mãos vazias, a cabeça vazia, e que ela só conhece dessa aventura do
livro, a escrita seca e nua, sem devir, sem eco, distante....8
Não sou uma especialista em Duras, sou sua leitora há muitos anos e
faço em mim anotações esparsas que agora tento recolher para trazer
5
idem, p. 20-21.
6
Lacan, J. (1972-73/1982). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. JZE, Rio. p.39.
7
Miller, J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana, 2011, lição de
23/03/2011. Inédito.
8
[E:24].
20
O que dura no corpo
para vocês. Não há precisão de datas e talvez alguma coisa, aqui e ali,
eu tenha inventado, não sei. São fragmentos escolhidos e misturados,
segundo a minha leitura e corte, de quatro escritas: Cadernos da guerra
(1943 a 1949)9 , Barragem contra o pacífico (1950)10 , O Amante (1984)11 e
O Amante da China do norte (1990)12 .
Este último foi escrito como um roteiro para o cinema. Segundo uma
de suas biógrafas, Letitia Cénac13 , Duras vendeu os direitos cinemato-
gráficos de O Amante para um produtor e propôs a ele filmá-la lendo o
livro. O produtor não só aceitou como a convidou para ser coautora do
roteiro. A colaboração entre os dois foi por pouco tempo, ela discordou
inteiramente da direção só interessada na reconstituição histórica, trans-
formando sua escrita num livro de recordações. Nesse momento, Duras
é hospitalizada e quando sai da clínica alguns meses depois, percebe que
o roteiro já tido sido escrito sem ela e não aprovou absolutamente a ver-
são cinematográfica. Dois anos antes da estreia do filme ela publicou O
Amante da China do Norte, de acordo com Cénac, sua maneira de se
reapropriar de sua escrita.
A cena que se repete nos quatro livros é o encontro de uma jovem de
15 anos branca, filha de professores franceses na Indochina, com um
chinês, um herdeiro milionário e já comprometido a se casar com uma
mulher escolhida por seu pai, segundo a tradição.
Trata-se das ficções de Duras em torno de um mesmo ponto fixo de
gozo em um corpo de menina quando é tocado pela primeira vez por
um homem que a quer como mulher, um primeiro encontro com o real
do sexo. É um encontro com um único homem, mas são quatro escritas
9
DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos. Ed. Estação liberdade, São Paulo,
2009. Daqui em diante [CG].
10
DURAS, M. Barragem contra o Pacífico. Ed. ARX, São Paulo, 2003. Daqui em
diante [BP].
11
DURAS, M. L’Amant. Les Éditions de minuit, Paris,1984. Daqui em diante [A].
12
DURAS, M. L’Amant de la Chine du Nord. Gallimard, Paris, 1991. Daqui em diante
[ACN].
13
CÉNAC, L. Marguerite Duras. L’Écriture de la passion. Éditions de La Martinière,
2013. p.34-35.
21
Ana Lucia Lutterbach
Ele estava sozinho em sua mesa. Era um rapaz que parecia ter 25 anos,
vestido com um terno de tussor cru. Sobre a mesa havia um chapéu
da mesma seda crua. Quando bebeu um gole de Pernod, viram em
seu dedo um magnífico diamante para o qual a mãe ficou olhando
em silêncio, pasma. (...) Ela, com certeza, era uma bela moça, tinha os
olhos luminosos, arrogantes, era jovem, estava no auge da adolescên-
cia, e não era tímida.15
22
O que dura no corpo
Ali ela se separa do gozo materno e toma para si essa experiência com
aquele homem.
Num pequeno estúdio, uma espécie de garçonnière, eles ficam a sós pela
primeira vez. Ela escreve:
Ela está sem sentimento bem definido, sem raiva, sem repugnância
também, mas sem dúvida, o desejo já está ali. Ela está ignorante disso.
Ela consentiu vir e está ali onde é preciso que ela esteja. Ela experi-
menta um leve medo, um medo não apenas do que ela espera do
que pode acontecer, mas do que deve acontecer precisamente no caso
dela17 .
Ela consentiu, está onde precisa estar e espera o que deve acontecer, não
o que sempre acontece, mas o que deve acontecer no caso dela.
Ele treme mas não se mexe. Ela não diz nada. Ela lhe suplica que ele faça
como costuma fazer com as mulheres, porque ela não sabe o que faz
uma mulher. Ele arranca o vestido e a calcinha de algodão branco e a
carrega nua para a cama. Então ele volta-se para o outro lado e chora.
Ela de olhos fechados começa a despi-lo.
A pele dele é de uma doçura suntuosa. O corpo é magro, sem força,
sem músculos, imberbe, sem nenhuma virilidade além do sexo. Ela
16
[A :46].
17
[A :47].
23
Ana Lucia Lutterbach
A cena:
É o rio.
A balsa saindo.
Ela olha o rio. Ela olha também o Chinês elegante que está no interior
do grande carro preto, o mesmo que já foi o chinês repugnante, o rico
plantador do norte ou aquele que se apresentou na balsa.
Da Limousine preta saiu um outro homem que ela diz ser diferente
daquele que ela tinha do outro livro, O Amante, um outro Chinês do
Norte. Ele é um pouco diferente daquele do livro: ele é um pouco mais
robusto que o outro, tem menos medo e mais audácia. Ele tem mais
beleza, mais saúde. E também tem menos timidez que ele diante da
criança.
Ela permaneceu a do livro, pequena, magra, ousada, difícil de enten-
der, difícil de dizer o que é, menos bela do que parece. Louca de ler,
de ver, insolente, livre.
18
[A :49].
19
[ACN:17].
24
O que dura no corpo
Ele é um Chinês. Um Chinês grande. Ele tem a pele branca dos Chi-
neses do Norte. Ele é muito elegante.
Ele a olha.
Eles se olham. Sorriem. Ele se aproxima.20
Ele diz:
Eu vou te machucar.
Ela diz que ela sabe.
Neste livro, ela diz se lembrar do medo.
Como ela se lembrava da pele e de sua doçura. De olhos fechados ela
tocava esta doçura, ela tocava a cor dourada, a voz, o coração que ti-
nha medo, todo o corpo apertado sobre o seu, perto do assassinato da
ignorância dela em tornar-se a criança dele. A criança dele, do homem
da China que se cala e que chora e que o faz num amor assustador.
A dor chega no corpo da criança. Ela primeiro é viva. Depois terrível.
Depois contraditória. Como nada mais. Nada: é então quando esta
dor torna-se insuportável que ela começa a se afastar, ela a dor. Que
ela se transforma, que torna-se uma dor para gemer, gritar, que toma
todo o seu corpo, a cabeça, toda a força do corpo e a do pensamento.
20
[ACN:35-36].
21
[ACN:78].
25
Ana Lucia Lutterbach
Essa é sua memória aos 77 anos quando, talvez, não tivesse mais recor-
dações, só essa memória de um corpo que goza.
Das quatro escritas está a mesma experiência de gozo que se repete e
repete, em diferentes narrativas. Esse gozo que invade a criança e vira
letra no corpo, fora do sentido fica ali até o fim para inúmeras narrativas
diferentes.
Só o gozo não se esquece, só o gozo não envelhece entregue à repetição
infinita.
Só o gozo não se esquece, só o gozo não envelhece entregue à repetição
infinita.
Agosto/2019
Letras UFRJ
22
[ACN:80-81].
26
O que dura no corpo
r e f e r ê n c ia s
CÉNAC, L. Marguerite Duras. L’Écriture de la passion. Éditions de
La Martinière, 2013.
DURAS, M. Écrire. Ed. Gallimard. Paris: 1993.
DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos. Ed. Estação liberdade,
São Paulo, 2009.
DURAS, M. Barragem contra o Pacífico. Ed. ARX, São Paulo, 2003.
DURAS, M. L’Amant. Les Éditions de minuit, Paris,1984.
DURAS, M. L’Amant de la Chine du Nord. Gallimard, Paris, 1991.
LACAN, J. (1972-73/1982). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. JZE,
Rio de Janeiro.
MILLER ,J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana,
2011, lição de 25/05/2011. Inédito.
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e s c r e v e r e e s c rever os
c o r po s — 0 a m ante, de
duras
i sadora bonfim nuto
U
m a c o i s a que Duras soube — e isso nos é dito pela voz
da narradora de O amante — é que escreveria. Não apenas que
gostaria de escrever, mas que escreveria, isso é fato, que precisava escre-
ver. Em O amante, isso aparece explicitamente em alguns momentos:
"Quero escrever. Já disse para minha mãe: o que quero é isso, escre-
ver"(2012, p. 21), "vou escrever livros. É o que vejo para além do instante,
no grande deserto que se afigura como a extensão de minha vida"(2012,
p. 88), "Respondi que o que mais queria, acima de qualquer outra coisa,
era escrever, só isso, nada mais"(2012, p. 22) e, em outro momento, a
escrita aparece tratada como uma certeza, uma certeza absoluta, e é a
família que está no centro dela, dessa "certeza essencial, do que mais
tarde vou escrever"(2012, p. 65).
O amante seria, segundo a própria Duras, seu livro mais autobiográ-
fico23 — ainda que a autobiografia permeie, em maior ou menor grau,
toda a sua obra. O que se conta nesse livro, escrito quando a autora já
23
Cf. PERRONE-MOISÉS, Leyla: "Em entrevistas concedidas na época da publica-
ção do romance, Duras afirmava que este era o mais autobiográfico de sua obra,
assim como o que foi escrito com maior facilidade, ao correr da pena"(p. 105).
28
Escrever e escrever os corpos
29
Isadora Bonfim Nuto
Se essas palavras, ditas por um antigo conhecido, podem soar como uma
ofensa, elas são, na verdade, recebidas de forma oposta. A narradora
apropria-se delas como a imagem de si mesma, como a real e verdadeira
imagem de si mesma. "Tenho um rosto destruído"(2012, p. 8), diz a
narradora, agora em suas próprias palavras, "tenho um rosto lacerado
por rugas secas e profundas, a pele sulcada. Ela não decaiu como certos
rostos de traços finos; manteve os mesmos contornos, mas sua matéria
se destruiu"(2012, p. 8).
O primeiro parágrafo do livro, que diz desse homem que a aborda, apre-
senta um tempo presente, um rosto e uma imagem contemporâneos
ao da escrita do romance. O trecho seguinte, porém, já opera de outra
forma, já institui a lógica que será a de todo o livro. Aqui, a imagem
desse rosto devastado se sobrepõe a uma outra imagem, uma imagem
que ainda não foi narrada, uma imagem apresentada antes de ser mos-
trada: "Penso com frequência nessa imagem que sou a única ainda a ver
e que nunca mencionei a ninguém. Ela continua lá, no mesmo silêncio,
fascinante"(2012, p. 7). Trata-se, mas isso o leitor só saberá depois, da
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Escrever e escrever os corpos
24
"Le texte de L’amant s’est d’abord appelé L’Image absolue. Il devait courir tout au
long d’un album de photographies de mes films et de moi. Cette image, cette pho-
tographie absolue non photographiée est entrée dans le livre".
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Isadora Bonfim Nuto
Dessa forma, todo o livro parece ser, sob o mote do encontro com o
amante, a escrita não só dessa fotografia nunca tirada, mas também a
escrita desse rosto, dessa destruição, de cada marca que nele se inscreve,
seus traços, as "profundas gretas impressas na testa"(2012, p. 8). E isso
não está oculto, não é um mistério, pois é a própria narradora quem o de-
clara: "acompanhei a evolução desse envelhecimento do meu rosto com
o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura"(2012,
p. 7, grifo meu).
Com essa frase, Duras parece dar algo como uma, dentre tantas, chave
de leitura para seu texto. Um rosto que se excreve (assim diria Nancy
[2000], para quem o corpo se ex-creve em toda escrita) em uma escrita e
uma leitura que se desenrolam acompanhando esse rosto. Não se trata
de uma reconstrução — no sentido de uma correção ou mesmo de uma
salvação — desse rosto, mas de acompanhar sua escrita, sua excrição
(NANCY, 2000), a escrita dessa ruína, de cada ruga que compõe esse
rosto precocemente envelhecido, cada sulco desenhado como as curvas
de um rio, a escrita desse rosto que, aos quinze anos, no ato do encontro
com o chinês na balsa sobre o rio Mekong, já era premonitório desse fu-
turo rosto devastado. Assim diz a narradora: "Desde muito jovem, desde
os dezoito, quinze anos, tive aquele rosto premonitório deste outro que
depois adquiri com o álcool na meia-idade"(2012, p. 11) e acrescenta que,
"aos dezoito, já era tarde demais"(2012, p. 7), pois "muito cedo foi tarde
demais em minha vida"(Idem).
Esse não é, entretanto, o único corpo que se escreve no livro de Duras.
A mãe e os irmãos são figuras que comparecem o tempo todo no texto,
eles vêm, vão e retornam, reaparecem aqui e ali, inserem-se onde não
são esperados, atravessam momentos que parecem não lhes dizer res-
peito. E isso só pode dizer de uma presença constante dessas pessoas
na vida dessa narradora, em seu corpo, em suas memórias, a presença
obstinada dessa família querida e odiada da qual se tenta a todo custo
se desembraçar sem conseguir, ou conseguindo apenas ilusoriamente.
Essa família que foi, em vida, marcada pela distância assinala sempre sua
presença na escrita, e é por meio desta que a autora se mantém para sem-
32
Escrever e escrever os corpos
pre atrelada aos laços familiares: "Ainda estou nessa família, é nela que
vivo, à exclusão de qualquer outro lugar. É em sua aridez, sua terrível du-
reza, sua maldade"(2012, p. 65). Que sempre escreveu sobre a família, ela
mesma afirma: "Escrevi muito sobre essas pessoas da minha família, mas
enquanto ainda estavam vivas, a mãe e os irmãos, e escrevi sobre eles, so-
bre essas coisas sem chegar diretamente até elas"(2012, p. 10). Enquanto
vivas na realidade, essas pessoas compareciam na literatura de Duras en-
cobertas por personagens apenas mais ou menos ficcionais. Parece ser
apenas em O amante que pôde escrever sobre "essas coisas"chegando
finalmente até elas, tocando-as em corpo, por meio da palavra. Em O
amante da China do Norte, a personagem da menina, identificada por
"a criança", em um diálogo com a mãe, já aponta a família como o centro
de sua escrita: -– Sobre o que escreverá quando começar um livro?/ A
criança grita:/ — Sobre Paulo [o irmão mais novo]. Sobre você. Sobre Pi-
erre [o irmão mais velho] também, mas aí será para fazê-lo morrer"(2015,
p. 16-17).
Se, segundo Nancy (2000), para quem a literatura é composta de cor-
pos (memória, fragmentos, autobiografia, etc.), o tocar é o que ocorre a
todo momento na literatura, Helène Cixous, em conversa com Michel
Foucault Sobre Marguerite Duras, aponta essa questão como algo es-
sencial à obra durassiana: "na pobreza da língua, eles também se tocam.
Quem? Eles? Esses seres humanos, esses errantes que, através de uma
terra muito vasta, se tocam. Acariciam-se, roçam-se. É desconcertante.
O que aprecio nela é que essa relação de tato existe o tempo todo"(2009,
p. 363). O tato parece ocorrer o tempo todo — não apenas nas cenas de
relações amorosas —, fazendo com que a escrita de Duras tenha uma
certa dimensão erótica ainda quando sua temática não o seja. Sobre isso,
também aponta Cixous: "tudo o que Marguerite Duras escreve, e que
é o despojamento, levado a tal ponto que certamente é também perda,
é ao mesmo tempo fantasticamente erótico, porque Marguerite Duras
é alguém que está fascinado"(2009, p. 359). É esse fascínio, então, da
escritora pelo texto, pela escrita em geral, que confere dimensão erótica
à obra — "ou a morte, ou o livro"(DURAS, 1994, p. 18) —, e Duras é
33
Isadora Bonfim Nuto
uma escritora que constantemente afirma sua escrita como uma forma
de vida: "Nunca fiz um livro que não fosse minha razão de ser na hora
em que está sendo escrito"(Idem).
Com efeito, são frequentes as passagens em que uma importância cen-
tral é concedida ao corpo. As descrições do corpo parecem imersas em
tal deleite e cuidado que beiram a sensação, e o que parece se ler e es-
crever ali não é senão o próprio tocar, a própria sensação do toque. As
cenas em que se acaricia o corpo se repetem ao longo do romance, assim
como em outras obras da autora, e as menções à pele são essenciais: "a
pele de chuva", "a cor dourada", as mãos. Em O amante da China do
Norte, espécie de reescrita de O amante para o cinema, em uma con-
versa com a colega do pensionato, que lhe pergunta se o homem chinês
é bonito, a menina responde que sim, mas evoca, não a beleza do rosto,
mas justamente os detalhes do corpo: "Hélène Lagonelle pergunta se
é bonito. A criança hesita. Diz que é. (...) Sim. A suavidade da pele, a
cor dourada, as mãos, tudo. Diz que é todo bonito"(2015, p. 63). No
mesmo livro, na introdução, Duras fala sobre os títulos que pensou em
dar ao novo romance e diz que o escreveu "em meio à louca felicidade
de escrever"(2015, p. 7), e que, nesse tempo de escrita, que durou um
ano, foi como se revivesse aquele ano de amor com o chinês. Mesmo
sabendo de sua morte anos antes, Duras a menciona como que vista
desde um tempo anterior, em que essa ideia nem mesmo parecia pos-
sível, e, aqui, novamente, evoca o corpo: não é a morte do homem que
está em questão, mas a de seu corpo, de cada uma de suas partes, daquele
corpo de prazer: "Eu não imaginara absolutamente que a morte do chi-
nês pudesse acontecer, a morte de seu corpo, da sua pele, do seu sexo,
das suas mãos"(2015, p. 7).
Em O amante, no entanto, em relação a sua nova versão (O amante
da China do Norte), as imagens do corpo parecem ser mais frequen-
tes. A narradora descreve a "suavidade suntuosa"da pele, do sexo, da cor
dourada do amante ou o corpo de Hélène Lagonelle, "o outro amor da
criança, jamais esquecido"(2015, p. 35), que a deixa extenuada de desejo,
um corpo sublime, que é "o que há de mais belo entre todas as coisas
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Escrever e escrever os corpos
35
Isadora Bonfim Nuto
águas, há essas águas do corpo, as lágrimas dos amantes que choram e fa-
zem amor, que fazem amor chorando, desesperados de desejo, de medo,
de dor; e então o gozo, esse mar que se espalha e se retrai. De morrer.
O mar e o amor: "o sangue no corpo", "a untuosidade do sangue". De
morrer.
É também exatamente após uma cena de amor, a primeira, a da "de-
floração da jovem branca", que a imagem absoluta retorna e aparece
como estando também presente naquele momento, como tendo sem-
pre já estado ali; aquela imagem participando de todos os momentos
por vir, todos os tempos participando de todos os outros tempos seguin-
tes, superpondo-se, coexistindo; aquela "imagem central", total, estando
presente em todas as outras imagens futuras. É isto: a imagem da balsa,
sem o prever, já estava presente naquele momento futuro:
E chorando ele faz. Primeiro vem a dor. E então, depois que essa dor
é acolhida, ela é transformada, lentamente arrancada, arrastada para o
gozo, abraçada a esse gozo. O mar, sem forma, simplesmente incom-
parável
Já na balsa, de antemão, a imagem teria participado daquele instante.
(2012, p. 35, grifo meu).
36
Escrever e escrever os corpos
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Isadora Bonfim Nuto
ada: "Eu inocentei todo mundo. Acredito que seja isto O amante: todo
mundo é inocentado"(DURAS, 1984b, transcrito). Ainda sobre a mãe,
lê-se em O amante: "Eles estão mortos agora, a mãe e os dois irmãos. É
tarde demais mesmo para as lembranças (...) É por isso que escrevo sobre
ela agora de modo tão fácil, tão longo, tão estirado, ela se tornou escrita
corrente"(2012, p. 27). Que o livro seja também esse gesto de escrita
da mãe parece ficar claro nessa passagem. A mãe convertida em escrita,
seu corpo convertido em corpo textual, escrita corrente, estirada, per-
correndo o livro do início ao fim, misturando-se aos outros corpos, às
outras águas. Também em outro momento de amor na garçonnière do
amante chinês, a mãe invade a local: após o gozo de morrer, comparado
ao mar, é outra água que inunda a cena, também a água do mar, mas
agora terrível, destrutiva, e indissociável da história da mãe: a água das
enchentes que inundam os arrozais da primeira casa, que revelam serem
aquelas terras, em que a mãe gastara todas as economias, eternamente in-
férteis, que completam a desventura de sua vida. Leyla Perrone-Moisés,
no posfácio ao livro, comenta a associação, via semelhança gráfica e equi-
valência sonora, entra as palavras "mar"e "mãe"em francês, ambas, inclu-
sive, femininas (respectivamente "la mer"e "la mère"), e ressalta a impor-
tância da água no conjunto da obra durassiana: "origem da vida, poder
de destruição"(2012, p. 113).
Mas não é apenas o corpo da mãe que sobrevém nesses momentos, que
invade e atravessa os momentos de amor com o chinês. Também os
irmãos se escrevem no texto, inscrevendo-se no meio das relações:
38
Escrever e escrever os corpos
39
Isadora Bonfim Nuto
25
"Je ne veux pas danser avec lui parce que je ne veux pas me rapprocher de son corps.
Ça me fait horreur parce que ça me trouble. C’est mon frère qui m’a fait croire à la
malfaisance native de l’homme"(DURAS, 1984a).
40
Escrever e escrever os corpos
Hélène Lagonelle, pela transversal de seu corpo, que viria o gozo que
ele me dá, agora definitivo. De morrer"(2012, p. 64).
São vários, para além da relação sexual, os signos do corpo ao longo do
livro. É o maxilar cerrado do irmão durante todo o tempo que tem de
encontrar o chinês; é o corpo atravessado pela música, que põe o amor
em questão, quando, no navio em partida para a França, a jovem ouve
tocar uma melodia de Chopin e chora pensando no amante de Cholen,
porque de repente, ao sentir a emoção daquela música em seu corpo,
"não tinha certeza se não o havia amado com um amor do qual não se
apercebera"(2012, p. 96) e que agora "reencontrava nesse instante em
que a música se lançava ao mar"(2012, p. 96). Sobre isso, Duras relembra
em entrevista (1984b, transcrito, grifo meu) que foi justamente da sua
"separação do corpo do jovem homem morto"que lhe veio "essa evidên-
cia, eu o [o amante] havia, sem dúvidas, amado26 "; é o desejo de matar
um corpo com "as próprias mãos", que é suscitado pelo lindo corpo da
colega; é o ritual de se lavar antes do amor e de se deixar lavar pelas mãos
do amante toda noite. É também o corpo branco interdito — e o inter-
dito, aqui, é mais o corpo branco em relação ao corpo "amarelo", a raça
superior branca em relação ao chinês27 , do que propriamente a relação
intergeracional do homem com a criança, do que a prostituição ou o in-
teresse pelo dinheiro. Trata-se de um interdito diretamente relacionado
à pele, ao corpo, ao toque, ao contato, pois é isto que ocorre: um corpo
branco não poderia ser sequer tocado por uma cor inferior. No primeiro
encontro com a jovem, ainda na balsa, o chinês treme, está nervoso, e
essa ansiedade se dá não pela menina ou pela investida, mas por sua cor,
pela necessidade se superar essa distância imensa que os separa, maior
até que a diferença de idade, maior que o abismo social: "Há essa dife-
26
"C’est la séparation d’avec le corps du jeunne homme mort qui m’a rendu à cette
evidence-là, je l’ai sans doute aimée"(1984b, transcrito).
27
Duras atribui muita importância às palavras em seus textos, e o "branco", assim
como "amante", "deserto", "China", é uma dessas palavras que escandem todo o li-
vro: "As palavras ’branco’, ’branca’ também, o branco das casas de estação nos cam-
pos, o branco dos muros na sombra do rio, das casas dos Brancos, e ainda aquele,
reluzente, da pele da criança, da jovem menina branca"(DURAS, 1984a).
41
Isadora Bonfim Nuto
rença de raça, ele não é branco, ele deve superá-la, por isso treme"(2012,
p. 30). Essa é também uma das razões por que "algo além"do que vinha
sendo feito nos demais livros só pode ocorrer em O amante: a família
não poderia lê-lo, era preciso esperar que estivessem todos mortos, so-
bretudo a mãe, que, durante toda a vida, nunca soube do contato sexual
entre os amantes, para quem esse contato foi sempre piamente negado,
para quem a menina garantia que não houve contato entres os sexos,
pois ela não poderia suportar "essa desonra", que poderia ser pior até
mesmo que a ruína das barragens, pois atingiria seu dom mais precioso:
Aqui [em O amante] é diferente. Era preciso mentir. Meu amante
era chinês. Dizer isso, mesmo em um livro, não seria possível en-
quanto minha mãe estivesse viva. Um chinês — amante de sua filha
—, mesmo notavelmente rico, era equivalente a uma degradação tal-
vez ainda mais grave que aquela da ruína das barragens, pois ela atingia
aquilo que ela tomava por um dom dos céus, sua raça, no caso, branca
(Duras, 1984a)28 .
42
Escrever e escrever os corpos
43
Isadora Bonfim Nuto
Ela está cega, quase no sentido técnico do termo, quer dizer que o
tocar se inscreve verdadeiramente em uma espécie de visibilidade pos-
sível, ou então suas possibilidades de olhar são o tocar. E um cego,
não quero dizer que ele substitua o olhar pelo tocar, ele vê com seu
toque, e o que ele toca produz o visível. E eu me pergunto se não é
essa profunda cegueira que trabalha no que ela faz (2009, p. 364).
44
Escrever e escrever os corpos
45
Isadora Bonfim Nuto
46
Escrever e escrever os corpos
29
"Je l’ai écrit mesure par mesure, temps par temps, sans jamais essayer de trouver une
correspondance plus ou moins profonde entre eux, les temps. J’ai laissé opérer cette
correspondance à mon insu. Je l’ai laissée se faire. L’épreuve d’écrire, c’est de rejoin-
dre chaque jour le livre qui est em train de se faire et de s’accorder une nouvelle fois
à lui, de se mettre à as disposition. S’accorder à lui, au livre".
30
"L’écriture courante, c’est ça, celle qui ne montre pas, qui court sur la crête des mots,
celle qui n’insiste pas, qui a à peine le temps d’exister. Qui jamais ne «coupe» le
lecteur, ne prend sa place. Pas de version proposée. Pas d’explication".
31
"Il n’y a de composition que musicale. Dans tous les cas, c’est ce rajustement au livre
qui est d’ordre musical. Si on ne fait pas cela, on peut toujours faire les autres livres,
ceux dont le sujet n’est pas l’écriture. Mais c’est des choses autres que des livres (...).
Mais ce n’est pas l’écriture, la liberte".
47
Isadora Bonfim Nuto
48
Escrever e escrever os corpos
49
Isadora Bonfim Nuto
50
Escrever e escrever os corpos
r e f e r ê n c ia s
ADLER, Laure. Marguerite Duras. Paris: Gallimard, 1998.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015.
CIXOUS, Hélène; FOUCAULT, Michel. "Sobre Marguerite Duras".
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DURAS, Marguerite. Entrevista concedida a Bernard Pivot. Programa
Apostrophes. Paris: Estação de TV Antenne 2, 1984b. Disponível em:
https://vimeo.com/99919603[https://vimeo.com/99919603]{.underline}.\
DURAS, Marguerite. A jibóia. In: Dias inteiros nas árvores. Rio de
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L’AMANT. Direção de Jean-Jacques Annaud. França, 1992, 110 min.
LEBELLEY, Frédérique. Marguerite Duras- uma vida por escrito. São
Paulo: Editora Página Aberta, 1994.
MELLO, Celina Moreira de. O texto de Mrguerite Duras. s/d. Disponí-
vel em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/
1863/2777.
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Vega, 2000.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Posfácio: A imagem absoluta. In: DU-
RAS, M. O Amante. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 102-114.
51
o a m a n t e , de
m a r g u e r i t e d u ras: uma
e s c r i t a d o t rauma?
r enata es trella
J’avais dix-huit ans quand je suis partie pour passer ma philo ici, la
deuxième partie, et faire l’université, et je n’ai plus pensé à l’enfance.
Ç’avait été trop douloureux. J’ai complètement occulté. Et je me trim-
balais dans la vie en disant : Moi, je n’ai pas de pays natal ; je reconnais
rien ici autour de moi, mais le pays où j’ai vécu, c’est l’horreur. C’était
le colonialisme et tout ça, hein? (DURAS, 1974, p.136).
N
e s t e t r echo retirado das entrevistas feitas por Xavière
Gauthier, Marguerite Duras menciona uma falta importante em
sua vida: o país natal. Essa ausência, nunca referida nas obras literárias,
não impediu Duras de trazer a Indochina, parte do Império Colonial
Francês entre os séculos XIX e XX, em inúmeros trabalhos — romance,
teatro, roteiro para cinema —, muitas vezes considerados autobiográfi-
cos.
52
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?
32
Algumas traducoes optaram por retirar do titulo do romance o artigo indefinido,
Un barrage contre le Pacifique, como e o caso da editora Arx, 2003. Optamos por
manter de acordo com o original. Livro doravante referido Barragem.
53
Renata Estrella
A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um
centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria ha-
ver alguém, mas não é verdade, não havia ninguém. A história de uma
pequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, quero
dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte,
a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido.
Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui
falo dos períodos escondidos dessa mesma juventude, das coisas que
54
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?
55
Renata Estrella
Essa questão nos leva aos estudos sobre as narrativas que testemunham
catástrofes históricas, a exemplo da Shoah. No trecho acima, o primeiro
parágrafo do prefácio de L’Espèce humaine, Robert Antelme apresenta
claramente a dificuldade inerente a essas narrativas — "impossivel pre-
encher a distancia que descobrimos entre a linguagem de que dispunha-
mos e essa experiencia que, em sua maior parte, nos ocupavamos ainda
em perceber nos nossos corpos-–, além de sua inevitabilidade — "nos
queriamos falar, finalmente ser ouvidos". Antelme foi levado em junho
de 1944, tendo sido encontrado em abril de 1945 em péssimas condições
56
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?
57
Renata Estrella
58
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?
outro modo, ela não existe. Ela foi omitida. Ela foi esquecida. Ela não
foi destacada, separada do conjunto. A essa falta de ter sido feita, ela
deve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente
seu próprio autor (DURAS, 1984a [2003, p.12])35 .
35
"C’est au cours de ce voyage que l’image se serait détachée, qu’elle aurait été enlevée
à la somme. Elle aurait pu exister, une photographie aurait pu être prise, comme
une autre, ailleurs, dans d’autres circonstances. Mais elle ne l’a pas été. L’objet était
trop mince pour la provoquer. Qui aurait pu penser à ça ? Elle n’aurait pu être prise
que si on avait pu préjuger de l’importance de cet événement dans ma vie, cette
traversée du fleuve. Or, tandis que celle-ci s’opérait, on ignorait encore jusqu’à son
existence. Dieu seul la connaissait. C’est pourquoi, cette image, et il ne pouvait pas
en être autrement, elle n’existe pas. Elle a été omise. Elle a été oubliée. Elle n’a pas
été détachée, enlevée à la somme. C’est à ce manque d’avoir été faite qu’elle doit sa
vertu, celle de représenter un absolu, d’en être justement l’auteur"(DURAS, 1984,
pp.16-17).
59
Renata Estrella
36
"Voilà, ce qui a dû arriver, c’est que j’ai essayé ce feutre, pour rire, comme ça, que
je me suis regardée dans le miroir du marchand et que j’ai vu : sous le chapeau
d’homme, la minceur ingrate de la forme, ce défaut de l’enfance, est devenu autre
chose. Elle a cessé d’être une donnée brutale, fatale, de la nature. Elle est devenue,
tout à l’opposé, un choix contrariant de celle-ci, un choix de l’esprit. Soudain, voilà
qu’on l’a voulue. Soudain je me vois comme une autre, comme une autre serait vue,
au-dehors, mise à la disposition de tous, mise à la disposition de tous les regards,
mise dans la circulation des villes, des routes, du désir"(DURAS, 1984, pp.19-20).
60
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?
Além disso, como explicita a passagem acima, é nesse arranjo que ela
se vê, "subitamente vejo-me como outra"(Duras, 1984a [2003, p.14), e
a forma do corpo deixa de ser ingrata, algo da natureza, e se torna uma
escolha que a lança no mundo, no desejo. A narrativa passa, então, a al-
ternar a primeira pessoa com momentos em que a protagonista é olhada
na cena, "não são os sapatos que dão a nota insólita, estranha, a figura
da menina naquele dia" (Duras, 1984a [2003, p.13), fazendo uma torção
que equivale e separa narradora e personagem, objeto da narrativa. O
ela, olhado, é narrado pelo eu, o sujeito da escrita, e se ver, se fazer ser
vista, corporifica, dá existência à história e à obra em imagens. É como
se, para sustentar a narrativa de um trauma, o narrador precisasse se
apresentar despossuído de si, indicando que no encontro com o real, o
eu se subtrai.
Por outro lado, o ela, olhado e narrado pelo eu como um outro, opera
um paradoxo que enfatiza a escrita como ato e a transmissão que esse
ato engendra, para além da história e das significações. Em O amante, a
criança e escritora e a obra e sobre o instante do encontro com o chinês,
seu primeiro encontro com o sexual.
Retomando a passagem que abre a obra — as marcas feitas no corpo
ainda jovem da protagonista-narradora, tomadas por ela como uma lei-
tura anos depois quando escreve O amante —, é possível ver aí uma
outra forma de escrever o que Jacques Lacan trabalhou, especialmente
após os anos 1970, entendendo a repetição e o sintoma, ambos do campo
da memória, ligados à fixações de gozo no corpo. Nesse sentido, o ser
se sustenta menos nos significantes que se proliferam em narrativas e
mais no que Lacan (1971) chama de letra, aquilo que resta do choque da
linguagem sobre o corpo e que não deixa de ser traumatizante. Trata-se,
então, em O amante, de metamorfosear em obra uma memória de gozo
inscrita no corpo, dando lugar ao que é sem sentido dessa operação.
Desta forma, O amante coloca em ênfase a escrita do real pouco vestido
do registro simbólico, uma escrita que lida com o traço — as repetições
de palavras, os cortes, a oralidade, as mudanças na voz narrativa, os dife-
rentes planos temporais —, fazendo um trabalho com o imaginário de
61
Renata Estrella
62
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?
referências
ANTELME, R. L’espece humaine. Paris: Gallimard, 1957.
DURAS, M. L’Amant. Paris: Les éditions de minuit, 1984.
___. Les Parleuses. Paris: Les éditions de minuit, 1974.
___. La passion suspendue. Entretiens avec Leopoldina Pallotta dela
Torre. Paris: Éditions du Seuil, 2013.
___. Entrevista concedida a Bernard Pivot. Programa Apos-
trophes. Paris: Estação de TV Antenne 2, 1984b. Disponível em:
https://vimeo.com/99919603[https://vimeo.com/99919603]{.underline}.
___. O Amante. Traducao de Aulyde Soares Rodrigues. Sao Paulo: Fo-
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LACAN, J. Lituraterra. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003 [1971].
MACEDO, L.F. Primo Levi: a escrita do trauma. Rio de Janeiro: Sub-
versos, 2014.
SELIGMANN-SILVA (org.). Historia, Memoria, Literatura. O teste-
munho na era das catastrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
___. Narrar o trauma — A questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, Vol.20, n.1, pp.65-82, 2008.
63
à n o i t e , u m f i lete de
luz
marina gorayeb sereno
A
s s i m , s o brepostas, aparecem, do começo de O
amante da China do Norte, essas três dimensões da escrita
durassiana. "Um livro aberto é também a noite", afirma a narradora
em Escrever (1993). Essas dimensões, que parecem sustentar toda a
obra, formam uma amarração particular entre si. Proponho pensar
sua importância e como se articulam na operação de escrita de Duras
— tomando essa expressão, "operação de escrita", como uma posição
específica de leitura para trabalhar entre psicanálise e literatura. Essa
posição implica, primeiro, assumir a radical disjunção entre os dois
64
à noite, um filete de luz
65
Marina Gorayeb Sereno
A voz narrativa dos romances se confunde com a voz da autora nos diá-
rios e textos em que trata de sua prática de escrita, e torna impossível
localizar qualquer um de seus livros em um gênero definitivo.
Da mãe de A barragem contra o pacífico (1950), invasora e oceânica, pas-
samos pela mãe em O amante (1984), árida, desértica e terrível, para
chegar finalmente à mãe em O amante da China do Norte (1991), "uma
mãe sem coragem", que não impede mais nada. Se, num primeiro mo-
mento, o trabalho é construir uma barragem que contorne a história da
mãe e, num segundo, dar corpo ao amante -, no terceiro tempo dessa
escrita há um trabalho de mapear, fazer uma forma para o amor, para o
instante de sua chegada, sua entrada em cena. "A cena é extremamente
lenta"(Duras, 1991, p. 79):
A dor chega ao corpo da criança. Primeiro é viva. Depois terrível. De-
pois contraditória. Como mais nada pode ser. Nada: quando aquela
dor torna-se realmente insustentável, começa a afastar-se. Muda,
torna-se boa para gemer, gritar, toma conta de todo o corpo (...) O
sofrimento abandona o corpo magro, abandona a cabeça. O corpo
continua aberto para fora. Foi atravessado, está sangrando, já não so-
fre mais. Já não se chama mais dor, chama-se talvez morrer. Então o
sofrimento deixa o corpo, deixa a cabeça, deixa insensivelmente toda
a superfície do corpo e perde-se na felicidade ainda desconhecida de
amar sem saber. (Duras, 1991, p.74)
66
à noite, um filete de luz
Penetra na noite negra do corpo da criança. Fica ali. (...). Ela torna-
se objeto dele, apenas dele, secretamente prostituída. Sem ter mais
nome. Entregue como coisa, coisa só para ele, roubada. Só por ele to-
mada, utilizada, penetrada. Coisa subitamente desconhecida, uma cri-
ança sem outra identidade senão a de pertencer a ele, ser o bem apenas
dele, sem nome, fundida a ele, diluída numa generalidade da mesma
forma nascente, a que desde o começo dos tempos foi chamada por
uma outra palavra, a da indignidade.
38
Duras, 1991, p. 12.
39
"É no curso dessa viagem que a imagem teria sido destacada, subtraída ao conjunto.
Poderia ter existido, poderiam ter tirado uma foto, como qualquer outra, em outro
lugar, em outras circunstâncias. Mas não tiraram. (...) Ela só poderia ter sido tirada
se fosse possível prever a importância daquele acontecimento em minha vida, aquela
travessia do rio. É por isso que essa imagem, e não podia ser de outra forma, não
existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, subtraída ao conjunto. É a essa
falta de ter sido registrada que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de
ser justamente a sua autora."(Duras, 1984, p. 32).
67
Marina Gorayeb Sereno
Numa dobra do tempo, aquela imagem não registrada, que não tinha
forma alguma, por não ter sido destacada da narrativa, agora ganha con-
tornos e um olhar; se oferece à vista. A voz narrativa propõe uma foto-
grafia — e essa forma pode ser incluída como uma das três camadas que
dão lugar à história. Essa história, que não existe40 , porque se escreve
por cima de si mesma, só pode ser escrita na sobreposição dessas três
camadas: um livro, um filme, a noite — é nessa medida que torna-se
possível pensar uma escrita do impossível, uma escrita que desconhece
40
"A história da minha vida não existe. Ela não existe. Não há um centro. Nem cami-
nho, nem linha. (Duras, p. 12, 1984)
68
à noite, um filete de luz
O escrito já está ali, na noite. Escrever estaria externo a si43 , numa con-
fusão dos tempos: entre escrever e ter escrito, entre ter escrito e ter de
escrever mais, entre saber e ignorar o que seja, partir do sentido pleno,
ser engolfado e chegar ao não-sentido. (Duras, 1987, p. 27)
Neste ponto, então, Lacan enfatiza: "O real se distingue por sua sepa-
ração do campo do princípio do prazer, (...), pelo fato de que sua eco-
nomia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossí-
vel"(idem).
41
O espaço literário de Blanchot (1955).
42
Me refiro aqui às três formas de mathesis que Lacan (1967-68) distingue no livro 15
de seu Seminário.
43
O espaço literário de Blanchot (1955).
69
Marina Gorayeb Sereno
44
Tradução minha.
70
à noite, um filete de luz
Uma verdade, portanto, é aquilo que pode afirmar uma novidade, desar-
mar e romper com o funcionamento de uma repetição. Partindo disso,
a direção da cura em uma análise, para Badiou, também tem a ver com
essa verdade que pode se produzir. Ao propor "uma estética da cura ana-
lítica", ele extrai da poética de Mallarmé a noção de transposição, para
identificá-la como formalmente semelhante à operação da cura numa
análise: um movimento em direção ao impossível, partindo da impo-
tência. Nos interessa, nessa aproximação, pensar a operação estética que
se dá no nível da linguagem.
Lacan define a análise de modo muito preciso: (...) a cura analítica
é a passagem de um estado de impotência a uma experiência do real
e, portanto, uma experiência do impossível. (...) Eu gostaria de mos-
trar que a transposição poética faz a passagem de uma impotência da
língua a uma experiência do impossível, na língua. Vocês sabem que
Lacan diz também que a passagem da impotência ao impossível é uma
formalização. (...) a transposição poética é também uma formalização.
(Badiou, 2002)
71
Marina Gorayeb Sereno
72
à noite, um filete de luz
Nesse ponto final do livro, depois da história, temos essa lista de imagens
estranhas, imagens forjadas no impossível, feitas de uma matéria que
não se representa; como lê-las? Seria uma orientação da autora, Margue-
rite Duras? Que orientação é essa, que não se pauta pela descrição mas,
ao contrário, faz imagens que portam a própria contradição em seu nú-
cleo? Se não forem orientações pessoais, então fazem parte da narrativa?
Será um desejo do próprio livro? Que dele se extraia essa forma?
A noite: este espaço externo a si, avesso à geometria que conhecemos,
em que dentro e fora estão bem delimitados. Este lugar de onde se extrai
o escrito, num tempo fora da cronologia. É num futuro anterior que a
escrita acontece. Ela insiste na afirmação de que, nesse atravessamento,
não se trata de tradução, "da passagem de um para outro estado", mas
de decifração:
O instinto a que me refiro seria ler desde antes da escrita47 o que ainda
é ilegível para os outros. Posso dizer de outra maneira, posso dizer:
seria ler nossa própria escrita, esse primeiro estado de nosso escrito
ainda indecifrável para os outros. Seria regredir, condescender em di-
reção à escrita dos outros para que o livro seja legível por eles. (...)
Nessa história, deslocada evidentemente, mas que foi vivida, é difí-
cil descobrir a mentira, o lugar onde o livro mente, em que plano, em
que advérbio. Pode ser que ele só minta em uma única palavra. Não
acredito que minta sobre o desejo."(Duras, 1987, p.79)
73
Marina Gorayeb Sereno
74
à noite, um filete de luz
r e f e r ê n c ia s
75
Marina Gorayeb Sereno
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-
157X2012000100009&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1676-157X.
76
a r e p e t i ç ão no
a r r e b a t a mento
daniele fernanda eckstein
E
m 6 d e maio de 1964, logo após a publicação da obra que
inaugura o ciclo de Lol V. Stein - Le Ravissement de Lol V. Stein
(1964) - Marguerite Duras comenta a escolha do título: "Este livro deve-
ria se chamar ’Rapto’. Eu quis, com arrebatamento, conservar o equí-
voco.48 . Ao preferir ravissement, a enlèvement —, Marguerite Duras
opta por deixar o texto implícito e recobrir uma possível evidência no
destino de Lol, colocando o leitor no centro, como peça fundamental
para elucidar o enigma do texto.
A ambiguidade que o título apresenta se verifica na etimologia do subs-
tantivo ravissement que, segundo o Centro Nacional de Recursos tex-
tuais e lexicais49 , apresenta dois sentidos diferentes, um que carrega o
campo semântico figurativo do êxtase, do pleno de contentamento, um
"estado da alma em êxtase", e outro como sendo o ato concreto de tirar
algo à força, roubar. Ao passo que enlèvement representaria a remoção,
o rapto, sem incitar um enigma. Tem-se, assim, já no título, uma aber-
tura de interpretação da obra que é provocada por essa divergência de
sentido que trafega entre o êxtase e o roubo, o excesso e a perda.
48
Ce livre devait s’appeler ’Enlèvement’. J’ai voulu, dans ravissement, conserver
l’équivoque."In Lettres françaises, 3 avril - 6 mai 1964, apud Ton-That, Thanh-Vân.
Marguerite Duras, 2005, p. 7.
49
https://www.cnrtl.fr/[https://www.cnrtl.fr/]{.underline}
77
Daniele Fernanda Eckstein
50
O mesmo poderíamos pensar sobre a tradução do "là"que está associado ao lugar
de Lol, para "presente", gerando um certo desequilíbrio no que vai representar este
advérbio ao longo do texto.
78
A repetição no arrebatamento
79
Daniele Fernanda Eckstein
80
A repetição no arrebatamento
81
Daniele Fernanda Eckstein
posto que não se pode dizer onde este "lá"se situa no ser de Lol. Uma
imprecisão que a história se encarregará de manter.
A forma como o advérbio de lugar "lá"retorna ao longo do texto produz
uma repetição por deslocamento de sentido, já que o advérbio com-
porta, pelo menos, duas significações diferentes: uma associada à do-
ença que já se havia manifestado em Lol e outra à expressão de um tema
retomado ao longo do enredo, que exprime a impossibilidade de Lol
estar "aqui", no presente. O "estar lá"funda uma falha na nomeação do
lugar ocupado por Lol.
Ao longo do romance a repetição do advérbio "lá"convida o leitor a
escutar a história. O "lá"vai designar por vezes o tempo, por vezes o es-
paço e por outras o artigo feminino. Sentidos diferentes vão produzir
o mesmo efeito sonoro: "Je vais donc la chercher, je la prends, là où
je crois devoir le faire"(14); "jusque-là: la ponctualité"(36) ; "cet été-là"
(46); "çà et là, loin, le nom est là: Tatiana Karl"(58)55 , tendo como efeito
a autorreferencialidade do texto, ao mesmo tempo em que produz o
avanço do texto por via da sonoridade das palavras ao invés do sentido
propriamente dito. Ao longo da história, o leitor parece escutar o baile.
Contudo, ao mesmo tempo que esse "lá", musicado no texto, produz um
efeito de continuidade narrativa, ele aponta para um buraco no texto e
na história de Lol, que não consegue ocupar um lugar enquanto sujeito
do discurso. É neste sentido que o "lá", enquanto palavra-buraco56 , vai
tentar ser recoberto por via do narrador que tenta reconstruir a memória
de Lol através de fatos/impressões que conhece e outros que desconhece,
mas que lhe são revelados por intermédio de Tatiana Karl e de outros
personagens em torno de Lol V. Stein.
Ao se apoiar em Tatiana, o narrador deixa entender que não está seguro
sobre o que ela conta, evidenciando no texto a dificuldade de aceder à
memória do evento, verificada na dupla designação que o narrador lhe
55
"Portanto, vou procurá-la, junto-me a ela onde penso dever fazê-lo"(9); "até então:
a pontualidade"(26); "a luz das tardes de verão"(33); "aqui e ali, distante, o nome aí
está: Tatiana Karl"(43).
56
Pansiot Preud’homme, Philippe, 2017, p. 170.
82
A repetição no arrebatamento
57
"E mais isto:"(7); "Por mim, eis o que acredito:"(33); "Não acredito mais em nada do
que diz Tatiana, não estou convencido de nada."(9).
58
"Vejo o seguinte"(39); "Vejo o seguinte"(40); "Invento, vejo:"(41); "Invento"(41).
59
Hamel, Jean-François, 2006.
83
Daniele Fernanda Eckstein
60
Tomiche, Anne, 2006.
61
"Eu não via diretamente o mar. Via-o à minha frente em um vidro numa parede [...]
Tenho a certeza, não fui à praia. A imagem do vidro estava lá."(114)
84
A repetição no arrebatamento
62
"Em qualquer ponto em que se encontre, Lol está como se fosse a primeira vez. Da
distância invariável da lembrança não dispõe mais: está presente."(31)
63
"Sem você, compreendi que não valeria a pena. Não teria reconhecido nada. Tomei
o primeiro trem que voltava. (126)
64
"Ela revê sua memória aqui pela última vez de sua vida. Ela a enterra. No futuro,
será desta visão de hoje, desta companhia aqui a seu lado que ela se lembrará. (132)
65
"Ela não se queixa mais. Não se mexe mais, lembra-se provavelmente de que está
com o amante de Tatiana Karl."(143)
85
Daniele Fernanda Eckstein
86
A repetição no arrebatamento
66
"Lol imitava, mas quem? Aos outros, todos os outros, o maior número possível de
outras pessoas."(24)
67
Jacques Lacan, 2001.
68
Foucault, Michel, 1975, p. 1931.
69
"Reconhecia S. Tahla, reconhecia-a ininterruptamente, por tê-la conhecido bem an-
tes e por tê-la conhecido na véspera, mas sem provas de reconhecimento devolvidas
por S. Tahla, cada vez, bola cujo impacto sempre teria sido o mesmo: quanto a ela,
sozinha, começou a reconhecer menos, depois de maneira diferente, começou a vol-
87
Daniele Fernanda Eckstein
tar dia após dia, passo a passo, para sua ignorância de S. Tahla. Este lugar do mundo
onde se acredita que viveu sua dor passada, aquela pretensa dor, apaga-se pouco a
pouco de sua memória em sua materialidade."(31)
70
Pansiot Preud’homme, Philippe, op. cit., p. 180.
71
"Às quintas-feiras, as duas dançavam no pátio vazio."(7)
72
"As quintas-feiras, Tatiana conta, as duas recusavam-se a sair em fila, com o colégio,
dançavam no pátio vazio — vamos dançar, Tatiana?"(63)
88
A repetição no arrebatamento
73
Tomiche, op.cit., p. 101
74
Kristeva, Julia, 1989, p. 247.
75
Tomiche, op.cit., p. 107.
76
Foucault, Michel, op.cit, p. 1975.
77
"Les poétiques modernes de la répétition effectuent l’équivalent d’un travail de
deuil, mais sans seuil ni terme, par lequel la pathologie d’une mémoire amnésique
est renversée en une remémoration libératrice."Hamel, (2006, p. 101)
89
Daniele Fernanda Eckstein
referências
90
A repetição no arrebatamento
91
d u r as — e s c r e ver, uma
paixão
marcella moraes
D
e m a r g uerite duras, a lentidão — la lenteur. A do-
çura — la douceur. O silêncio — le silence. O grito — le cri. O
sono — le sommeil. Alguns substantivos insistentes, carregados de certa
abstração e que, no entanto, são capazes de compor uma imagem. Ou
ao menos de evocar certa atmosfera que, para mim, fazia eco de um lugar
particularmente feminino — o da lentidão de uma espera. O da posição
de objeto, de receptáculo do desejo do outro.
O que está para acontecer a essas personagens imóveis? O que dizer
desse apaixonamento pela imobilidade? Por que elas não são capazes de
romper com essa lentidão absoluta e — finalmente — agir?
Decidi me deter nessa passividade — conviver com ela. Para isso, elegi
três momentos, na esperança de que algo viesse finalmente a acontecer.
Primeiro, em 1975, India song. Depois, em 1971, L’amour. Por fim, em
1964, O deslumbramento. Dessa convivência, alguma coisa me foi sub-
traída. Minhas suspeitas não conseguiram nada em que se fixar. O que
apresento aqui, portanto, é esta imagem arruinada — na minha tenta-
tiva de dobrar o texto de Duras às minhas próprias expectativas, o texto
acabou por se virar contra mim. Eu me curvei a ele.
Percebi, nesse movimento, outro caminho possível para me aproximar
de Duras. O tema do amor.
92
Duras — escrever, uma paixão
93
Marcella Moraes
94
Duras — escrever, uma paixão
95
Marcella Moraes
96
Duras — escrever, uma paixão
Ela parece esperar sempre por ele. Ela parece ter sempre esperado por
ele, pela viagem que empreenderão juntos, a viagem a S. Thala. Ela o
espera na praia, encostada ao muro. Mas eles já estão em S. Thala. Ela
dorme.
97
Marcella Moraes
ela de fato se passa. É preciso pensar — é o que Duras nos impõe — uma
cena em muitos tempos, nunca contemporânea a si. O que de fato se
passa não esgota a dimensão do que acontece.
Se Lol não dispensa Tatiana da cena, Tatiana tampouco se dispensa de
Lol. Ela, em determinado momento, afirma que não conseguiu ter uma
vida "precisa"como a de Lol, situando-a como uma mulher tradicional,
assentada, uma mãe, afinal. Mas não é assim que Jacques vê. Jacques
afirma que o único ponto fixo na vida de Tatiana, o lugar onde ela se
ancora e para o qual sempre volta é justamente o seu marido. O que
Tatiana empresta de Lol parece ser justamente o que escapa à precisão:
uma fantasia de amor. Se Lol se curar completamente, então isso signi-
fica que é possível se curar de um amor? Então é possível se recompor
de um golpe do mais completo amor?
Leyla Perrone Moisés assinala, no posfácio de O amante, o fato de que
os enredos de Duras sejam de uma banalidade quase folhetinesca: "são
intrigas aparentemente banais, histórias de amor quase folhetinescas: a
noiva traída que enlouquece, a mulher fatal que provoca a morte dos
amantes, os diplomatas fúteis e desesperados"(PERRONE-MOISÉS,
2012, p. 104). Assim acontece neste romance de 64 — a situação inicial
se apoia basicamente na frustração amorosa de uma jovem de dezenove
anos, abandonada no baile por um homem de 25 que havia prometido se
casar com ela. Depois disso, certa promiscuidade reservada, uma relação
a três.
De certa maneira, Duras insiste no tema do amor como algo de cen-
tral (ou, pelo menos, de recorrente) ao longo de sua obra. Poderíamos
mesmo dizer que, fazendo assim, ela aciona certo estereótipo da femi-
nilidade — aliás, neste ponto não nos referimos apenas ao romance
romântico, como à história do romance como um todo. A esse respeito,
cito o antropólogo britânico Jacques Godoy:
A hostilidade para com a ficção da parte das autoridades culturais fa-
zia assim com que seu consumo, e em certos limites a sua produção,
fossem reservados a elementos ’marginais’ como as mulheres. Na Eu-
ropa do século XVIII os leitores de ficção eram em sua maioria mulhe-
res; os romances franceses sempre eram escritos por mulheres, e eram
98
Duras — escrever, uma paixão
99
Marcella Moraes
A par desse breve histórico, o que nos importa aqui é observar a maneira
como Duras é capaz de desdobrar o estereótipo a ponto de que ele fi-
que absolutamente irreconhecível. O que ela escreve e filma parte do
tema de amor banal e folhetinesco de suas personagens femininas para
transformá-lo em um romance absolutamente lacunar, no qual as ações
não tomam curso e o conflito amoroso não ganha contornos de melo-
drama. Nesses textos, a oposição entre ação e inação — entre agência
e passividade — é desestabilizada: a escrita não opera nos termos desse
binarismo, nem mesmo enredo ou personagens se dobram a ele.
A paixão que sofremos, como leitoras, não é, por fim, a do enleio de um
romance arrebatador — mas justamente a submissão a essa linguagem
que se nega, até o fim, a nos conceder uma posição passiva.
100
Duras — escrever, uma paixão
referências
Filmografia
101
a m o r , u m a e s c rita de
p a l a v r a s s o zinhas
g iselle moreira
S
e t e a n o s depois da primeira e dição, Marguerite Du-
ras reescreve O arrebatamento de Lol. V. Stein (1964). Essa reescrita
se chama Amor (L’amour, 1971)78 . Entretanto, não há uma continui-
dade da narrativa e os livros não fazem série entre si. Nessa passagem do
Arrebatamento ao Amor, um outro tempo se desenha, fora da ordem
cronológica dos acontecimentrfos. Tudo se passa em S. Talah e tudo ali
é S. Talah, uma cidade sem fronteiras definidas e único nome próprio do
livro. O mar é uma paisagem constante e as personagens se encontram
nesse espaço impreciso, fora do mundo, apartadas da sociedade. Esse
apagamento das Referências espaço temporais converge, ainda, com o
78
Todas as citações de L’amour são extraídas da tradução de Paulo de Andrade. Amor
foi sua escolha tradutória para o título, dentre outras justificativas ele escreve: "no
único momento em que a palavra amour aparece no livro [...] ela surge assim, soli-
tária, como que desgarrada da língua, sem nenhum artigo ou qualquer outro deter-
minante"(ANDRADE, 2005, p. 22). Essa tradução foi objeto de sua tese de douto-
rado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMG, em maio
de 2005.
102
Amor, uma escrita de palavras sozinhas
Um homem.
Ele está de pé, ele olha: a praia, o mar. O mar está baixo, calmo, a esta-
ção é indefinida, o tempo, lento.
O homem se acha num caminho de tábuas posto sobre a areia.
Está vestido com roupas escuras. Seu rosto é distinto.
Seus olhos são claros.
Ele não se move. Ele olha.
O mar, a praia, há poças, superfícies isoladas de água calma.80
1.
103
Giselle Moreira
82
DURAS, 1986, p. 17.
83
DURAS, 1986, p. 97.
84
LACAN, 2003, p. 203.
104
Amor, uma escrita de palavras sozinhas
105
Giselle Moreira
Olham-se:
— Ainda se lembra um pouco...? o dia do grito... você se lembra?
— Pouco. Muito pouco.
Ele mostra outra vez ao viajante o encadeamento contínuo:
— Ela morou em todos os lugares, aqui ou além. Um hospital, um
hotel, campos, jardins, estradas — ele para — um cassino municipal,
você sabia? Agora ela está aqui.
Aponta a ilha.89
106
Amor, uma escrita de palavras sozinhas
faz ressoar o que sempre diziam dela, que ela nunca estava exatamente
ali. Não há mais expressão de dor, nem de cansaço. Com a vacilação
do enquadre fantasmático (seu "ser-a-três"), o corpo de Lol V. Stein se
dissolve94 .
Lacan em sua leitura do Arrebatamento localiza a angústia presente no
relato de Jacques Hold — que é a dele e ao mesmo tempo a angústia da
narrativa95 . Não me parece ser esse o afeto presente no ritmo pausado
da escrita de Amor. De outro modo, os caminhantes de S. Tahla vivem
um desarvoramento absoluto, no nível do qual a angústia já não serve
mais como proteção96 . E, nesse sentido, mesmo a decisão desesperada
do viajante - que procurava um lugar para se matar - se desfaz. Nesse
desamparo radical, não há mais o que transgredir, nem o que obedecer.
Duras, ao falar de Amor, diz: "é preciso escrever muitos livros para che-
gar a esse ponto"97 . Há, então, que se contar a escrita como um a mais98 ,
como sugere Érik Porge. Ao desconstruir as identidades dos persona-
gens e borrar as Referências˜ espaciais e temporais, a escrita de Amor
refaz o nó, produzindo uma tessitura das palavras que restam, a fim de
tocar nesse vazio da narrativa. A operação de extenuar a história coin-
cide com a de compor um novo texto, sempre ao redor da mesma cena,
aquela do baile no Cassino Municipal. Esse movimento incessante da
escrita, que atravessa os livros, produz o furo da cena. Pois, ela — a es-
crita — não cessa de se deparar com a impossibilidade de apreender o
arrebatamento, esse evento que está para além do tempo dos homens.
Em Amor, tudo queima, ele ateou fogo em S. Talah, o céu está rubro, o
cassino bombardeado, as mãos estão negras. Os vestígios do incêndio
recobrem S. Talah e o que resta do drama de Lol são cinzas, "átomos
94
DURAS, 1974, p. 170.
95
LACAN, 2003, p. 199.
96
Refiro-me à passagem do Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1991) na qual
Lacan localiza que "ao término da análise didática o sujeito deve atingir e conhecer
o campo e o nível do desarvoramento absoluto, no nível do qual a angústia já é uma
proteção"(p.364).
97
DURAS, 1974, p. 12.
98
PORGE, 2019, p. 30.
107
Giselle Moreira
99
BARTHES, 1979, p. 14.
100
DURAS, 2005, p. 75.
108
Amor, uma escrita de palavras sozinhas
r e f e r ê n c ia s
109
a e s c r i t a d o c orpo de
L o l . V . S t ein
b runa musacchio guaraná
N
o c o l é gio, diz ela, e não era a única a pensar dessa
maneira, já faltava algo a Lol para estar — ela diz: presente. Dava
a impressão de tolerar num tédio tranquilo uma pessoa com quem ela
julgava ter a obrigação de parecer e de quem perdia a lembrança na
menor oportunidade.\
Lola era engraçada, gozadora inveterada e muito sutil, embora uma
parte dela estivesse sempre desligada, longe do interlocutor e do
momento. Onde? [...]\
Tatiana tenderia a acreditar que na verdade era, talvez o coração de
Lol. V. Stein que não estava- ela diz: presente- provavelmente ele
viria, mas ela não o havia conhecido. Realmente, parecia que essa
região do sentimento que, em Lol, era diferente. (Duras, 1964/1986, p. 8)
Introdução101
110
A escrita do corpo de Lol. V. Stein
111
Bruna Musacchio Guaraná
102
Para uma reconstituição mais completa do clima desse baile, ver: VIEIRA,
Marcus. Lições da loucura. Lola Valérie Stein —Transcrição de Seminá-
rio ministrado no Hospital Philippe Pinel em 2008. Disponível online em:
http://www.litura.com.br/cursor epositorio/4l olap df1 .pdf
112
A escrita do corpo de Lol. V. Stein
olhar que rouba o noivo de Lol e que a faz ficar em suspenso, mas sem
conseguir parar de olhá-los. Lol os segue com os olhos até o fim e cai
quando não pode mais vê-los.
Quando perguntada, muito depois o que queria com eles, dirá: "vê-los",
para Tatiana Karl (Ibid, p. 77). "o olhar nela [em Anne-Marie Stretter] —
de perto compreendia-se que esse defeito provinha de uma descoloração
quase dolorosa da pupila—, se alojava em toda a superfície dos olhos,
era difícil captá-lo"(ibid, p. 11).
Anne-Marie Stretter é a personagem que arrebata Michel Richardson,
pois a partir de tê-la avistado, ocorre uma mudança em seu semblante,
seus olhos se tornam "iluminados", seu rosto se contrai em uma abrupta
maturidade e uma dor antiga de infância. Essa mudança irrevogável,
impossível de ter sido evitada, é o início do fim.
Lol "em suspense, esperou"e se manteve toda a noite assim, desde que
Anne Marie Stretter entrou no salão, no mesmo lugar, atrás das plantas
verdes no bar com Tatiana, ao mesmo tempo em que os dois selados um
ao outro, dançaram como autômatos, toda a noite, até o amanhecer,
ainda que os músicos já houvessem se retirado: "Aos primeiros raios de
luz da madrugada [...] todos os três, haviam ganhado bastante idade,
centenas de anos, dessa idade, nos loucos, adormecida."(ibid, p. 12).
E, ainda que naquele momento "essa visão e essa certeza não pareceram
acompanhar-se de sofrimento em Lol"(ibid, p. 15), o fim do baile, e a ida
dos dois embora é o que seria insuportável. O que se deflagra, quando
sua mãe entra no baile injuriando os dois, os acusando de terem feito
mal a sua filha, os dois injuriados olham ao longe, pensando vislumbrar a
quem se dirigiam as injurias, e se retiram. Logo depois sua mãe encontra
Lol atrás das plantas: "A barreira de sua mãe entre eles e ela era o sinal
prenunciador de tudo [...] Lol gritou pela primeira vez."(ibid.).
Lol havia gritado sem descontinuar coisas sensatas: não era tarde, a
hora de verão enganava. Tinha suplicado a Michael Richardson que
acreditasse nela. Mas, como continuassem a caminhar- tinham ten-
tado impedir que o fizesse, mas ela conseguira soltar-se- correra para
a porta se jogara no batente. A porta, com a lingueta do chão fechada,
havia resistido. De olhos baixos os dois passaram diante dela [...] Lol
113
Bruna Musacchio Guaraná
seguiu-os com os olhos pelos jardins. Quando não mais os viu, caiu
no chão, desmaiada (ibid, p.15).
Antes de prosseguir, aqui cabe rápida digressão que nos lembra Bastos
(2009) sobre o termo arrebatamento, do francês "le ravissement"e que
quer dizer roubo, rapto, mas também, fascinação, encantamento e des-
lumbramento. Na trama ambos os sentidos se encontram presentes, e
designam um dos aspectos centrais de toda a narrativa, o rapto ou roubo
do noivo de Lol, mas também como fruto da força do que fascina ou
encanta.
Existe, portanto, diversas dimensões na trama da fascinação/rapto. Há
a fascinação pelo "não-olhar"de Anne-Marie Stretter por Michael Ri-
chardson, dela por ele, que não o consegue mais largar e o rapto dele,
noivo de Lol, por uma outra mulher. Mas, o que aparece como disrup-
tivo não é da ordem da perda de lugar dela para uma outra, o que daria
margem a uma rivalidade, mas o fato dela ser impedida de ser aí incluída,
quando acaba a noite e não pode mais vê-los. Nesse momento, o rapto
toma outra conotação, a perda que está em jogo para Lol ali parece ser a
de deixar de ter uma existência fora daquele enquadre. O que lhe acon-
tece? Ou melhor, do que sofre?
Lol, desencadeia uma crise, permanece por semanas sem sair do seu
quarto, para nada, encerrada em uma prostração. Um sofrimento sem
uma causa aparente e do qual ela não pode dizer, dirá Lacan, do que so-
fre (Lacan, 1965, p. 199). Duras: "sua dificuldade diante da busca de uma
única palavra parecia intransponível", pagava agora a "estranha omis-
são de sua dor durante o baile"(Duras, 1985, p. 17). Segue um trecho,
onde podemos vislumbrar como se apresenta essa dimensão do indizí-
vel. Cito:
Ela repetia sempre as mesmas coisas: que a hora de verão engava, que
não era tarde. Pronunciava seu nome com raiva: Lol V. Stein - era as-
sim que se designava. Depois queixou-se [...] de sentir um cansaço
insuportável de esperar assim. Aborrecia-se a ponto de gritar. E na
verdade ela gritava que não tinha nada em que pensar enquanto espe-
rava, exigia com a impaciência de uma criança um remédio imediato
para aquela falta. [....]
114
A escrita do corpo de Lol. V. Stein
Lacan dirá que o nome "Lol V Stein"é uma cifra e que foi determinado
pelo contorno de sua escrita: asas de papel, V tesoura, Stein, a pedra, "no
jogo do amor tu te perdes", aqui fazendo alusão ao jogo pedra, papel e
tesoura, onde se enlaçam os dois movimentos: a arrebatada alma para
fora de seu corpo, e a arrebatadora figura de ferida, exilada da coisas, "em
quem não se ousa tocar, mas que faz de nós sua presa"(Lacan, 1965, p.
198).
Seguindo a narrativa, a reação catastrófica de Lol na cena do baile é a cena
que promove o clímax da trama e da qual o romance inteiro não passa de
uma "rememoração"(Ibid, p. 199). Uma "rememoração"porque o que se
busca realizar posteriormente na narrativa é uma espécie de retomada,
ou repetição da cena original. Veremos como. Após o desenlace disrup-
tivo, Lol vai permanecer um tempo no registro do "como se"inicial que
imperava na sua adolescência, e que descrevemos no início do texto, até
o encontro com seu futuro marido.
No rapto de seu noivo, poderíamos dizer que o que se perde está ligado
também a uma perda de investimento na esfera amorosa do olhar de
seu amante, que se comparado ao vestido, concede um invólucro ao seu
ser, mas que quando desinvestido, temos a revelação de como se por
baixo, nada houvesse (Lacan, 1965/2003, p. 200). Para evitar que isso
tivesse ocorrido, os dois não deveriam ter partido: "as janelas fechadas,
lacradas, o baile murado em sua luz noturna os teria contido, todos os
três, e apenas eles. Lol está certa do seguinte: juntos teriam sido salvos
da vinda de um outro dia, de um outro, pelo menos."(Duras, 1986, p.
34).
E, na falta de uma palavra, "uma palavra-buraco, escavada em seu centro
para um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriam
sido enterradas", tudo se eclipsa e Lol como efeito do ocorrido é arreba-
115
Bruna Musacchio Guaraná
tada, como se a alma lhe fosse arrebatada para fora do corpo (ibid, p. 35).
Consequência de outro arrebatamento, o de seu noivo e dos dois aman-
tes em sua dança. Lol é o elemento terceiro nessa díade, como escreve
Lacan:
A cena de que o romance inteiro não passa de uma rememoração
é, propriamente, o arrebatamento de dois numa dança que os solda,
sob o olhar de Lol, terceira, com todo o baile, sofrendo aí o rapto de
seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente. (Lacan,
1965/2003, p. 199)
Nesse casamento Lol era a esposa "perfeita", suas "opiniões eram raras,
suas narrativas inexistentes"(ibid, p. 32) e se ocupava em manter a ordem
da casa, ritmo e rigor, na arrumação dos quartos ou da sala, imitava vitri-
nes de loja, do jardim, de outros jardins: Mas, "Lol imitava, mas quem?
Aos outros, todos os outros, o maior número possível de pessoas."(ibid,
p. 24) Aqui parece que estamos novamente no estado de coisas que
encontrávamos antes da paixão que investiu em Michael Richardson.
Até o momento em que Lol e seu marido, por uma oferta de trabalho
de Jean Bedford tem a opção de retornar à sua cidade natal. S. Thala, a
116
A escrita do corpo de Lol. V. Stein
cidade onde ocorreu o baile, e a cidade onde também Lol vai reencontrar
Tatiana, sua amiga de infância e seu amante Jacques Hold, ali onde um
nó se reata, segundo Lacan, a partir desse reencontro (Lacan, 1965, p.
199). Lol passará a segui-los até o local de encontro dos amantes, para
se incluir novamente nessa díade, deitada em um campo de centeio.
Veremos como isso se dá.
Nesse reencontro, não se trata apenas de uma repetição da cena inicial,
mas de reatar um nó, que se rompera, onde contavam-se três elementos
e que se enodam. E o que é atado a esse nó é o que arrebata, incluído
nele. Daí virá o famoso "ser a três"de Lacan, que significaria justamente
o arranjo entre esses três elementos recriados posteriormente por Lol
(Lacan, 1965, p. 203).
A trama rearranjada por Lol, a faz estar presente em um peculiar lugar
na tríade amorosa, que não se reduz a mera observadora, mas sim a
uma estranha presença que encarna um puro olhar, e esse lugar quando
sentido por primeira vez por Jacques Hold é vivido com angústia:
[...] acreditei ver à meia distância entre o sopé da colina e o hotel uma
forma cinzenta, uma mulher, cuja lourice cendrada através das has-
tes do centeio não podia enganar-me; experimentei, embora esperasse
por tudo, uma emoção bastante violenta cuja verdadeira natureza não
soube logo [....] Abafei um grito, desejei a ajuda de Deus, sai correndo,
refiz o caminho, rodeei o quarto [...] sofrendo, sofrendo de insufici-
ência deplorável de meu ser em conhecer esse acontecimento. Depois
a emoção aplacou-se um pouco, recolheu-se sobre si mesma, pude
contê-la. Esse momento coincidiu com aquele em que descobri que
ela também devia ver-me. (ibid, p. 90)
117
Bruna Musacchio Guaraná
Conclusão
118
A escrita do corpo de Lol. V. Stein
poder existir com uma vida que pulsa dentro de si e com presença, fora
do lugar do "como se", onde havia um corpo sem alma. E, onde está o
que concede essa vivacidade ao corpo de Lol? Está na montagem dos
elementos, "o ser a três"; caso contrário ficamos na deriva como Lol, ou
na completa angústia.
Lol antes vivia os nomes como cascas vazias "de fora", sem que eles apre-
endessem nada do real. O gozo, diria Lacan no Seminário 20, não é nem
bom, nem mau, apenas é em si, demasiadamente presente, mortífero.
Ao mesmo tempo Lacan faz dele substância da vida, desde que conden-
sado, localizado. Um texto de ficção, assim como uma existência, sem
gozo, é um texto sem alma.
A questão será então, não a de barrar o gozo, pois não se pode barrar
a vida, mas como lhe dar lugar, delimitado. É o que instaura a possibi-
lidade de refazer as "taciturnas núpcias"do corpo, vestido vazio, pura
imagem dada pelo Outro, com essa coisa indescritível que costumamos
chama de vida (Lacan, 1965, p. 205). E é nesse limite que também toca
uma análise, na junção entre gozo e discurso, construídas para cada um,
a partir das exigências e ofertas do Outro, acrescidas de altas doses de
contingência que se constroem os corpos (ibid.).
Sem essa montagem, o corpo é pura estátua construída pelo que o Ou-
tro nos foi informando quanto ao que deveríamos ser - como as tantas
que habitam as revistas. Por isso, como vimos, para Lol depois do baile
seguem-se 10 anos de uma existência meio sem corpo. Um corpo do
outro, mas não dela. Quando só mais tarde, Lol poderá colocar em ação
uma montagem que resolve o impasse do deserto do gozo.
O que temos notícias através do romance de Duras, que é por meio de
arranjos ficcionais com caráter de invenção que se aproxima mais do real,
diferente da realidade, porque retira da realidade tudo que é miscelânea
de pequenos vividos que poluem momento cruciais com seus excessi-
vos matizes acumulativos e lhe confere o aguçado do corte. É como se
entende que "em sua matéria o artista sempre precede o analista"(Lacan,
1965, p. 200).
119
Bruna Musacchio Guaraná
120
A escrita do corpo de Lol. V. Stein
referências
121
s o b r e v i d a s d a cena em
m a r g u e r i t e duras
f lavia trocoli
Sinopse
A
p a r t i r da leitura de A doença da morte [La maladie
de la mort], 1982, e de Olhos azuis, cabelos pretos [Les yeux bleus
cheveux noirs], 1986, na tradução de Vera Adami, proponho pensar
o apelo que essas obras de Marguerite Duras fazem ao teatro, não
encenado, mas lido, deixando a ênfase cair na palavra que ressoa. Tal
ênfase na sonoridade e na voz não vem desacompanhada do olhar.
Voz e olhar talvez sejam os objetos através dos quais miramos em
abismo (Hélène Cixous nos diz que, em Duras, é para o abismo que
tudo se precipita103 ). No ponto em abismo, no qual as personagens
de Marguerite Duras estão situadas na cena, não há possibilidade de
103
Remeto o leitor à conversa entre Cixous e Foucault em torno de Duras, in: FOU-
CAULT, Michel. Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III. Organização e
seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Bar-
bosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
122
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
104
Cf.: MORETTI, Franco. O burguês: entre a literatura e história. Tradução: Ale-
xandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
105
Remeto mais uma vez o leitor à conversa mencionada acima. FOUCAULT, Michel.
Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III. Organização e seleção de textos:
Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.
123
Flavia Trocoli
124
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
106
Cf. AUERBACH, Erich. "A meia marrom". In: Mimesis: a representação da rea-
lidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009.
107
O que já vimos no traçado de Freud, na relação entre o sonho com os lobos e a
cena primária em "História de uma neurose infantil". In: Uma neurose infantil e
outros trabalhos. (1917-1918) Volume XVII da Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
108
Cf.: TROCOLI, Flavia. "Assombros do Autobiográfico". In: EYBEN, P. (org.)
Poética, política: assombros da desconstrução. Vinhedo: Editora Horizonte, 2019.
125
Flavia Trocoli
126
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
desconhecido para você, não sei [...]."(Idem, p.56) Por vezes, essa voz
que declara passa a palavra ao homem e à mulher, cito um trecho dessa
mudança de registro discursivo: "Ela diz: Eu estou aqui, pode olhar, eu
estou diante de você. Você diz: Eu não vejo nada."(Ibidem)
Há aqui, no mínimo, quatro movimentos: 1) ampliação — por toda
parte e em todos os tempos; 2) redução — dos lugares se passa ao sexo
que procuraria por um lugar; 3) preenchimento — pela penetração e
4) esvaziamento — pelo choro. Sempre me perguntei a razão pela qual
os amantes de Duras choram tanto, ao ler mais uma vez esse parágrafo,
me ocorre que chorar não vai sem ligação com jacular que, por sua vez,
é arremessar e dirigir-se a alguém. Na "comum solidão"nomeada por
Blanchot, há gozo, excesso, solidão, mas também endereçamento, há
restos de endereçamento e de ações que se repetem: acordar, dormir,
olhar, cegar, penetrar, gozar, chorar:
127
Flavia Trocoli
questão ética e aquilo que aqui gostaria de indicar como problema esté-
tico.
Problema estético que retornará três anos mais tarde com a publica-
ção de Olhos azuis, cabelos negros uma espécie de retomada estendida
da cena erótica, mas com uma forma inteiramente diferente de A do-
ença da morte, em que as didascálias agora compõem o corpo da obra e,
principalmente, a voz não é anônima, mas identificada como sendo de
um ator e a mulher não somente fala, mas se tem acesso ao seu ponto-
de-vista, ao seu olhar. Lê-se: "Se falasse, diz o ator, ela diria: Se nossa
história se passasse no teatro, um ator iria até a borda do palco, a ribalta,
bem perto de você e de mim. [...] Ele se apresentaria como o homem da
história, o homem dir-se-ia, em sua ausência central, em sua irreversível
exterioridade. (Duras [1986], s/d, p.75)
O que gostaria de sublinhar é que, se a ação, antes de Beckett110 , era
um elemento fundamental do teatro, em A doença da morte, a ação
estaria reduzida ao próprio dizer, à enunciação que estabelece e corrói
os enunciados, em Olhos azuis, cabelos pretos, estaria reduzida à própria
escrita e leitura da didascália. De um livro ao outro, as vozes narrativas,
cada vez menos ocupam uma posição de exterioridade e de autoridade
para ocuparem o palco junto de seus personagens, diz a voz de A doença
da morte:
Talvez você consiga dela um prazer até então desconhecido para você,
não sei*.*
Tampouco sei se você percebe o rosnado surdo e distante do seu gozo
através de sua respiração dulcíssimo que vai e vem da boca ao ar de
fora.
Não creio. (Duras [1982], 2007, p.51. Grifo meu)
128
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
O corpo [dela] não tem defesa nenhuma, é liso do rosto aos pés. Con-
vida ao estrangulamento, ao estupro, aos maus-tratos, aos insultos,
aos gritos de ódio, ao desencadeamento de paixões totais, mortais.
(Duras [1982], 2007, p. 55)
129
Flavia Trocoli
111
Refiro-me à bela epígrafe de Nancy que Blanchot escolhe para o seu ensaio: "A única
lei do abandono, assim como a do amor, é de ser sem retorno e sem recurso".
112
Cf.: DERRIDA, Jacques. Demorar: Maurice Blanchot. Tradução: Flavia Trocoli e
Carla Rodrigues. Florianópolis: EDUSC, 2015.
130
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
Aqui se sabe quem fala, é o ator quem nos diz que "uma noite
de verão seria o centro da história", aqui se sabe onde as coisas começam
a se passar, no vestíbulo do Hotel das Rochas. "Gritam um nome de
sonoridade insólita", e "pouco depois do grito, pela porta que a mulher
está olhando, a das escadas do hotel, um jovem estrangeiro entra no
vestíbulo. Um jovem estrangeiro de olhos azuis cabelos pretos."Mais
tarde escutamos que esses também são os traços dela que diz: "Cabelos
pretos tornam os olhos azul-anil, meio trágicos também"(Duras [1986],
s/d, p. 13). Trágico que só pode ser cogitado pela metade, já que os
olhos azuis são também equívocos, isso não é um detalhe, mas sim
um procedimento da obra: o imutável do trágico é barrado pelo que
pode ser lido como equívoco. Equívoco que, no entanto, não permite
a instauração de nenhuma lógica conciliatória.
Na primeira didascália ou na primeira leitura do ator, no começo da
peça, há indicações sobre o cenário, um lugar abandonado, momenta-
neamente fúnebre, aquilo que passou não é propriamente narrado, nem
atuado, é lido nas metamorfoses do odor - primeiro odor de incenso e
131
Flavia Trocoli
132
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
Neste inverno, vou fazer teatro e espero sair do meu lugar e fazer teatro
lido, não atuado. Um ator que lê um livro em voz alta como em Olhos
azuis, cabelos negros, nada a fazer senão isso, nada a não ser assegurar
a imobilidade, nada a não ser sustentar o texto fora do livro só pela
voz, sem gesticulação, para fazer crer que o drama do corpo que sofre
está inteiramente nas palavras e que o corpo não vacila. (Duras, 1987,
p.17.Tradução minha)
133
Flavia Trocoli
O interessante é que essa linha divisória, entre não poder amar e acre-
ditar que começou a amar, seja introduzida pelo "lembrar-se"seguido
daquilo que poderia ser um temor de que o amor pudesse começar a
criar os seus enredos e a dar importância e comentário a um atraso. É
mais interessante ainda que esse começo do amar seja sucedido de uma
espécie de redução das didascálias. E é decisivo que a mulher indique
um fora que talvez soubessem se as pessoas do quarto haviam se amado.
Um fora que não há, que ficou em A doença da morte. Em Olhos azuis,
cabelos pretos, uma mulher diz não à doença do homem que não pode
amar, mas assim: "Eu não conheço você. Ninguém pode conhecê-lo,
pôr-se em seu lugar, você não tem lugar, não sabe onde encontrar um
lugar. E é por isso que eu o amo e que você está perdido."(Duras [1986],
p.53)
Eles estão juntos no livro e ao fim deste livro serão devolvidos à diluição
da cidade, como a passante de Baudelaire. E ela diz ainda que este lugar
já estava criado: o do falso amante, aquele que não ama, como um
papel no teatro. Na verdade, esse lugar em um ternário — uma mulher,
um homem, um jovem estrangeiro de olhos azuis, cabelos pretos —
é o próprio lugar da vacuidade e do amor em Marguerite Duras, é a
forma vazia na qual as personagens tomam posição para amar. Ou,
mais precisamente, em Olhos azuis, cabelos negros, para beijar. O beijo
é o que interrompe os movimentos repetitivos dos corpos de acordar,
dormir, penetrar, gozar e chorar. É, ele, o beijo, o novo amor. O único
beijo trocado. E "Do beijo, não falarão."(Duras [1986], p.87) Mas,
estranhamente, por uma única vez, o gozo se dissocia das lágrimas
e ganha outra forma: "Paramos de falar. O gozo veio do céu, nós
o recolhemos, ele nos suprimiu, arrastou-nos para sempre e depois
desapareceu"(Idem, p.91). Sim, o leitor de Duras já terá estranhado
a súbita aparição desse nós. Nem você, nem ele, nem ela. Nós. "... e
depois as mãos se encontraram no naufrágio"(Idem, p.91). Uma úl-
tima frase, diz o ator, poderia ter sido dita antes do silêncio (Idem, p.96).
Epílogo
134
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
Marie-Hélène Brousse nos diz que "As lágrimas são a manifestação mais
forte de existir, quando se enfrenta o ’Seria melhor não existir’."Seria a
questão da própria literatura de Marguerite Duras mostrar a obra como
forte manifestação do existir diante da ameaça de sua própria destrui-
ção? Se, em determinado ponto, o paralelo que proponho aqui se dá
entre a vulnerabilidade do corpo da mulher e da literatura, é preciso des-
tacar que, no fragmento citado, é a mulher que nomeia, ainda, a doença
da morte, é ela quem indica a ausência do amor — motor do choro, do
gozo, do endereçamento imensamente assimétrico e disjuntivo a que
A doença da morte dá forma. Escutemos a voz: "Você olha essa forma,
você descobre nela ao mesmo tempo a potência infernal, a abominável
fragilidade, a fraqueza, a força invencível da fraqueza sem igual."(Duras
[1982], 2007, p.64) Poderíamos rasurar a partir do paralelismo entre o
corpo da mulher e a literatura e dizer assim: Você olha essa forma, essa
mulher, essa literatura, você descobre nela ao mesmo tempo a potên-
cia infernal, a abominável fragilidade, a fraqueza, a força invencível da
fraqueza sem igual. No posfácio, Marguerite Duras escreve:
Só a mulher diria seu papel de cor. O homem, nunca. O homem leria
o texto [...] Aquele de quem trata a história nunca seria representado.
Mesmo quando se dirigisse à jovem, seria pela mediação do homem
que lê a sua história. A atuação aqui seria substituída pela leitura. Sem-
pre acho que nada substitui a leitura de um texto, que nada substitui a
falta de memória do texto, nada, nenhuma atuação. [...] (Idem, pp.91-
93)
135
Flavia Trocoli
Em Olhos azuis, cabelos pretos, a voz que cria e decreta não existe mais.
A voz que lê é de um ator. Em um único beijo se inscreve um amor,
subitamente aparece um nós gozamos, depois é naufrágio e silêncio. E a
literatura ou, mais precisamente, o ato de ler vem recolher os seus pró-
prios despojos através de uma cena, fazendo barreira contra o Pacífico,
contra o nada que poderia devorar sua própria forma. Uma literatura
que segue outras direções — apela ao teatro, ao filme e volta à leitura.
Como forma de mediação, ler seria poder ainda ligar o papel que se diz
de cor, o texto que se dita, o homem nunca representado, um corpo nu
de mulher que não se vê todo, uma literatura que não se diz toda. Se
há ainda a mediação pela leitura talvez seja porque ainda reste algum
amor na literatura, mesmo que seja aquele a título de indicação geral:
"no amor é quando eu tenho o céu e nele não há nada". E eles, o céu e
o amor, não estão lá, no alto, estão aqui neste palco baixo, ao nível do
chão.
136
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras
referências
137
Flavia Trocoli
138
e m i l y l . — m a rguerite
d u r a s , t r a duzir o
i m p o s s í vel
claudia itaborahy ferraz
Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas que
vou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo,
saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada,
que ela está precisamente aí onde você não está — é o começo
da escritura.
Roland Barthes
139
Claudia Itaborahy Ferraz
114
Poemas de Dickinson, cuidadosamente copiados em folhas de papel dobradas, e,
por ela mesma, costuradas, como livros, que foram, depois, conhecidos como seus
"fascículos".
140
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível
115
O termo "transposição"é introduzido por Mallarmé e trabalhado, numa precisa ar-
ticulação com a psicanálise, por Alain Badiou, em Por uma estética da cura analítica.
No livro Cor’p’oema Llansol, de Janaína de Paula, esse conceito funciona como um
operador para se pensar, especialmente, a articulação entre o corpo e o poema na
textualidade llansoliana.
141
Claudia Itaborahy Ferraz
142
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível
das distâncias, dos céus, dos mares, dos continentes, dos regimes polí-
ticos, das proibições. Era uma pessoa inclinada a pensar que em toda
a parte se escrevia o mesmo poema sob diferentes formas. Que havia
apenas um único poema a alcançar através de todas as línguas, de to-
das as civilizações117 .
143
Claudia Itaborahy Ferraz
144
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível
Para mim, em Emily L., o pensamento em torno das leituras que Duras
faz apresenta-se como ponto de investigação sobre o que vem a ser — e
o que poderia ser — uma poética da tradução, em um movimento de
ética e pensamento da poiesis — o fazer poético e o pensamento poético.
Esse parece ser o ponto mais radical121 para se pensar a "pulsão da es-
crita"122 , expressão introduzida por Maria Gabriela Llansol como uma
120
DURAS, Marguerite. Escrever, p. 47.
121
BRANCO, Lucia Castello. Os ínvios caminhos — escrever, ler,psicanalisar. 2020.
122
LLANSOL, Maria Gabriela. Na Casa de Julho e Agosto.
145
Claudia Itaborahy Ferraz
espécie de figura, em seu texto. Essa expressão, assim cunhada, traz como
marca um deslocamento da pulsão do escritor, da pulsão de escrever,
para a pulsão da própria escrita. Afirma-se, assim, a escrita fora da re-
presentação, como um movimento pulsional que atravessa o corpo. A
pulsão da escrita pode, ainda, ser articulada ao conceito freudiano de
pulsão, e à releitura que Lacan fez deste, através de seus trabalhos sobre
sublimação, letra e gozo feminino 123 .
Para Llansol, a escrita não se faz por metáforas, mas por um "pensamento
da luz", sendo a singularização efeito dessa pulsão da escrita, "luz prefe-
rida". Trata-se, para ela, da "clorofila, a primeira matéria do poema"124 .
Com uma matéria exterior, o poema, no movimento da "pulsão da es-
crita", desaloja o sujeito, colocando-o ao seu lado e fazendo de si um
tipo de "poema sem eu"125 . É a literatura em seu estado de voz, em movi-
mento de "pulsão da escrita", em estado de clorofila, de luz preferida, ou
de cor’p’oema126 - puro corpo de letras, um ninguém que, no entanto,
escreve. Blanchot denomina esse ninguém que escreve de "neutro". Por
força do neutro, escrever residiria na "passagem do Eu ao Ele, de modo
que o que me acontece, acontece a ninguém, é anônimo pelo fato de
que isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita"127 . E,
assim, a escrita é "a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há
mais ninguém, quando ainda não há ninguém"128 .
Acontece que essa abertura opaca e vazia, essa mesma abertura que dá
passagem do Eu ao Ele, é também "passagem de vida", "que atravessa
o vivível e o vivido". Há um ninguém que escreve a vida, deixando
passar a vida — o atravessamento do vivível e do vivido — por aquilo
que se escreve.
[...]
123
ANDRADE, Vania Maria Baeta. Luz Preferia — a Pulsão da Escrita em Maria
Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux.
124
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia?, p. 12.
125
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia?, p. 13.
126
P AULA, Janaina de. Cor’p’oema Llansol, p. 27*. *
127
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 24.
128
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 24.
146
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível
Assim como o corpo opera por suas secreções, a escrita, ela própria,
secreta. Há algo que se produz aí, por si só, sem nenhuma "consciência
êuica". Mas não sem corpo. Porque, se ler é "emprestar sua ferida para
receber a ferida do outro", a escrita é, antes, da ordem da cicatriz. [...]
E um corpo abandonado à sua própria sorte jamais será tão só, se tiver,
a seu lado, esta outra forma de secretar: a escrita.129
147
Claudia Itaborahy Ferraz
134
Dickinson, Emily. fragmento do Poema 636
148
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível
referências
149
Claudia Itaborahy Ferraz
150
m o d e r a t o c a ntabile e
o e r o t i s m o d o fracasso
beatriz chnaiderman & laerte de paula
Introdução
135
O termo que Duras utiliza em francês é parole, que pode ser traduzido como fala
ou como palavra.
151
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
gesto atravessado por esse impasse: alguma coisa não passava para a pa-
lavra/fala, mas sua aposta seria de que poderia passar pela escrita ou até
mesmo pelo ato de escrever.
Propomos neste artigo que Duras escreve uma erótica nova em Mode-
rato Cantabile, distinta daquela que era convocada até então em seus
livros. Essa obra pode ser tomada como um possível ponto de virada
entre a escrita de prazer e a escrita de gozo em seu percurso, para utili-
zarmos os termos de Barthes:
Essa virada em sua obra é apontada pela própria Duras em uma sé-
rie de entrevistas concedidas a Xavière Gauthier, em 1974: "Buracos.
Eu disse, acho, em certo momento, ’os buracos’... Mas sabe, foi pre-
ciso escrever muitos livros para chegar a esse ponto. Há toda uma
época em que escrevi livros, até Moderato Cantabile, que não reco-
nheço"(GAUTHIER, 1974, p.12). Interessa-nos enlaçar esses buracos
com a ideia de fracasso que vamos gradualmente articular neste traba-
lho. Duras destaca que tal efeito não estava lá desde o início: foi preciso
escrever muito para chegar a tratar os buracos de alguma outra forma.
Diz ainda: "Eu escrevia como quem vai ao escritório, todos os dias, tran-
quilamente. Levava alguns meses para fazer um livro e então, de repente,
veio a virada. Com Moderato Cantabile foi menos tranquilo"(p.13). Um
livro que a retira de um ritmo e de uma previsibilidade de produção.
Algo começa a falhar no arranjo antigo. Duras marca aí o começo de
um medo da escrita e de seus buracos, distinto da escrita que ela mesma
considerou alienada, burocrática, harmoniosa.
A erótica dos excessos, do colorido imaginário, dos dilemas, é a marca
de seus primeiros livros, que trazem muitas personagens e relações cru-
zadas, pensamentos secretos, ciúmes, paisagens monumentais. Mode-
rato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto que aflora
152
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
136
Na tradução que utilizamos, o termo Trieb é traduzido por instinto. Optamos
por modificá-lo por pulsão, justamente porque não existe aí a montagem pré-
determinada que se associa ao conceito de instinto.
153
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
137
"O princípio de prazer parece, na verdade, estar a serviço das pulsões de
morte"(FREUD, 1920/1981, p.127, tradução nossa). Vemos nesse trecho como a sa-
tisfação diz respeito às pulsões de morte. Ou seja, resistir a elas pode constituir uma
tarefa árdua tal qual construir as barragens para deter o Pacífico.
154
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
155
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
Da experiência erótica
156
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
157
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
158
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
Da obra
Uma criança que ainda não sabe, que um dia certamente haverá de saber,
que não é educada o suficiente, que não se esforça o suficiente, filho
159
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
160
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
raud no dia anterior. Aliás, Anne não tem nenhuma explicação para seus
gestos: não sabe porque mente, porque bebe tanto, porque está desse
jeito, não sabe qual desejo habitou aquela parceria amorosa e culminou
naquele crime. Apenas obedece a uma desconhecida injunção: "Não
poderia deixar de vir aqui hoje, entende?"(p.41), "teria sido impossível
não voltar"(p.47). A cada vez acompanhada da bebida que lubrifica esse
circuito que vaga em torno de uma cena inacabada: "o vinho escorre
em sua boca plena de um nome que ela não pronuncia"(p.149).
Pouco a pouco uma dinâmica se consolida entre ambos: é preciso que
o parceiro fale, que sustente uma fala sobre o evento ocorrido, que pro-
longue esse estado de desconhecimento e de procura desnorteada. A
curiosidade é cada vez mais siderante: "Como soube a esse ponto o que
desejava dele?"(p.59). A cada vez, Anne se relança em uma nova busca,
um novo rodeio, mais longo, com mais espera, com maior suspensão.
Quer saber melhor sobre as origens: "Eu gostaria que você me contasse,
do início, como eles começaram a se falar"(p.61). "Não sei nada que você
não saiba"(p.65), sustenta Chauvin, antes de produzir suas fabulações.
Os homens entram e saem do café, o sol se aproxima e se afasta, as noites
caem a cada vez, o filho brinca ao redor do local, a dona do estabeleci-
mento ora circula por entre as mesas, ora se ocupa de seu tricô com
lã vermelha, enquanto Anne e Chauvin permanecem nesse lugar, um
fora-do-tempo que sabe de sua brevidade, siderados por alguma coisa
que não se deixa elucidar, sustentados pelo vinho, pela espera, por essa
outra fome.
Entre os seios nus de Anne, sob o vestido, há uma flor de magnólia. No
entanto, trata-se de uma flor grande demais, costurada alto demais, pre-
gada com descuido, com pétalas ainda rígidas. O erótico escorre nessa
ausência, nesse aparente descuido que incrementa as páginas da história.
O rodeio precisa se repetir: "Eu agora queria que você me contasse como
foi que eles chegaram a nem mesmo se falar"(p.77), e Chauvin, mais uma
vez responde: "Eu não sei nada"(p. 77), talvez tenha sido assim... tecendo
a delicada mortalha que vela a cena faltante. Os personagens sabem que
aquele encontro logo acabará.
161
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
E mesmo isso que Lacan disse, eu nunca entendi direito. Eu estava es-
tupefata com Lacan. E essa frase dele: "Ela não deve saber que escreve
isso que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria a catástrofe", se
tornou para mim, essa frase, um tipo de identidade e princípio de um
"direito de dizer"totalmente ignorado das mulheres. (DURAS, 1993,
p.20)
162
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
163
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula
Referências
164
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso
165
c i n e m a — m a r guerite
d u r a s e o e s p e ctador
e m a n c i p ado
l arissa pi nto de melo
H
á a l g o sobre a escritora, cineasta e dramaturga fran-
cesa Marguerite Duras; que é um dos fatores cruciais para co-
meçarmos aqui a investigação da sua obra cinematográfica, bem como
para entender a potência política que habita seu cinema: ela nasceu na
cidade de Saigon, atual Cidade de Ho Chi Minh, no Vietnã. Em uma
colônia francesa, foi criada como tal, apesar de sua família ter sofrido
preconceitos severos dos demais franceses, por sua condição financeira
frágil e também por serem vistos junto aos nativos, em especial Duras,
que na adolescência envolveu-se com um jovem anamita, o qual no livro
"Cadernos da Guerra e outros textos"138 ela chama pelo nome de "Léo",
um nativo que gozava de uma situação econômica privilegiada, vestia-se
como cidadão europeu e frequentemente visitava Paris. No livro é in-
teressante como Duras narra não só sua relação de alteridade com Léo,
como também como seus olhos captam o tratamento que os nativos
sofriam na colônia francesa onde vivia:
138
Livro composto de quatro cadernos escritos por Duras, sendo o primeiro o "Ca-
derno rosa marmorizado", onde os relatos da adolescência vivida na Indochina se-
riam a inspiração para o então livro famoso da escritora: "O Amante"(1984).
166
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado
167
Larissa Pinto de Melo
168
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado
139
Acerca ainda da desconexão entre imagem e som em seus filmes, deve-se acrescentar
que sua linha experimental era intensa ao passo que Duras algumas vezes reutilizou
filmagens de alguns de seus filmes, para criar novos filmes, com roteiros novos e
portanto também incluindo novas gravações de voz.
140
O "terceiro sentido"assemelha-se conceitualmente com o termo punctum traba-
lhado na sua obra "A Câmara Clara"(1980), que ele descreve como aquilo que
ao acaso, nos punge, que seria como uma flecha ou picada intensa, inescapável, é
completamente subjetivo, sendo diferente de pessoa para pessoa, o punctum é jus-
tamente o motivo pelo qual uma imagem nos "fere".
169
Larissa Pinto de Melo
141
A Nouvelle Vague foi um movimento cinematográfico francês criado em suma por
críticos de cinema da revista "Cahiers du Cinema", inspirado também em correntes
filosóficas de sua época, como o existencialismo por exemplo. A Nouvelle Vague
não apenas voltava-se para uma ruptura com o roteiro tradicional da época, como
também inovou tecnicamente, utilizando-se técnicas como o "Jump Cut"e câmera
na mão. A descontinuidade do tempo e personagens "anti-heróicos"eram destaque
no movimento. Seus principais nomes foram Agnès Varda, Alain Resnais, Godard
e Truffaut.
170
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado
171
Larissa Pinto de Melo
142
O Cinema Novo foi um movimento cinematográfico, intelectual e poético, que ti-
nha como escopo o "fazer cinema"genuinamente brasileiro, voltar-se também a cul-
turas que eram engolidas e negligenciadas, como a cultura nordestina, mostrando
assim também a realidade intensa de desigualdade no país. Ganhando dimensão
internacional, os filmes do Cinema Novo foram exibidos em vários festivais pelo
mundo. Concomitante ao movimento Nouvelle Vague, o Cinema Novo na ver-
dade trazia o diferencial de ser mais ativamente político do que o movimento fran-
cês.
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Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado
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Ivan Petrovich Pavlov foi um fisiologista responsável pela pesquisa acerca do con-
dicionamento clássico. Sua pesquisa foi inspiração essencial no campo de estudos
do behaviorismo.
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Larissa Pinto de Melo
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Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado
Referências
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Larissa Pinto de Melo
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n a l e t r a , a â n cora: uma
l e i t u r a d e a dor de
m a r g u e r i t e duras
tatiane frança
"C
o m o pude escrever isto, que ainda não sei nomear e
que me assombra quando releio?"(DURAS, 1986:8). Essa frase
está presente na página que prefacia o primeiro dos cinco cadernos
de Duras publicados em 85. O conjunto desses textos se chamaria
"A guerra", mas Duras modificou e deu a ele o mesmo título do pri-
meiro dos cadernos, o qual lerei aqui: "A Dor". O título condensa esse
"isto"não nomeável, assombroso, cujo horror será testemunhado por
uma letra, "extraordinariamente regular e calma", que abarca em seu
caráter aparentemente metódico uma "desordem fenomenal do pensa-
mento e do sentimento."(DURAS, 1986:8).
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Tatiane França
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Em Cahiers de la guerre, 2006: "plutôt le nom d’un état que d’une époque, d’une
expérience de vie que d’un ensemble d’événements historiques"
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Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras
Morreu há três semanas. Foi isso, foi isso que aconteceu. Tenho essa
certeza. Ando mais depressa. (DURAS, 1986:12)
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Tatiane França
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Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras
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Tatiane França
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"Os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras o horror extremo con-
tinua a tremer"(ADORNO; HORKHEIMER, 1963, P. 68 Apud. SELIGMANN-
SILVA, 2016).
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Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras
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Tatiane França
Referências
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Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras
longe-dela[http://revistared.com.br/artigo/66/longe-dele-longe-
dela]{.underline}.
COUTINHO, Ana Paula. "Escrever entre ruínas: Marguerite Duras e
a dor da memória". In. Libretos, n. 4, p. 121-136, abril 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Essayer Voir. Paris : Éditions de Minuit,
2014.
DURAS, Marguerite. A dor. Tradução de Vera Adami. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
_________________. Cahiers de la guerre et autres textes. Édition éta-
blie par Sophie Bogaert et Olivier Corpet. Paris : P.O.L., 2006.
_________________. Escrever. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1994.
FOUCAULT, Michel. "Sobre Marguerite Duras. (Entrevista com H.
Cixous)"In. Cahiers Renaud-Barrault, n. 89, outubro 1975, p. 8-22.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. "Literatura e trauma". In. Pro-
Posições, 13(3), p. 135-153, 2016. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/
view/8643943
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d e s (c o n s ) t r u i r, ela diz
a na kiffer
1. delinear:
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des(cons)truir, ela diz
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Ana Kiffer
2. quase-dizer escrever
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des(cons)truir, ela diz
crever sobre mim mesma, sobre eu mesma sozinha através dos séculos. Ela
disse. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.59).
Quase penso nessa solidão através dos séculos. Numa irmandade ima-
nente. Num bloco cimentado, simultaneamente ruidoso e silencioso
que atravessa os tempos e as casas. As mulheres. Penso que ela mesma
sozinha através dos séculos somos todas nós. E ainda. Quase penso,
penso muito insistentemente neste ainda. Como vive hoje, entre nós,
este ainda? Penso ainda que essa casa -cimento e ruína- que atravessa
todas as casas, foi plantada na floresta e depois guardada no armário. E
que escrever para nada, esse quase penso, é infiltrar nos muros da casa
o musgo que irá derrubar a própria casa. Ficará talvez apenas o armário.
Na língua estranha que ela deixou. Que quase tocamos. Sem pensar, e
já escrevemos.
Ela disse que existem mulheres que jogam fora. Eu jogo fora muitas coisas.
Durante 15 anos jogava fora os meus manuscritos tão logo saía o livro. Se
busco o porquê penso que era para apagar o crime, desvalorizá-lo aos meus
próprios olhos, para que eu ficasse mais adequada ao meu meio, para ate-
nuar a indecência de escrever quando se é uma mulher, isso faz apenas 40
anos. Eu guardava os restos dos tecidos da costura, os restos dos alimentos,
mas isso não. Durante dez anos queimei meus manuscritos. Até que um
dia alguém me disse: “guarde-os para o teu filho, nunca se sabe”. (Duras,
1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.70). De fato, nunca se sabe.
O fogo que queima nela ainda queima a todas nós. Ainda queimam os
papéis nos armários. Como restos de tecido ou de comida. A comida
que falta à mesa, mesmo quando posta. A desordem ordenada da preca-
riedade de nossas casas. Corpos, quase corpos. Mulheres. Faz apenas 32
anos que ela pôde dizer isso. Disso. Como podemos dizer hoje? Disso.
Que não podemos. Quase dizer. Ainda. De novo. Qual o “quase-dizer”
que hoje nos habita? Quais poderes nos impedem poder-dizer, hoje?
Penso que gostaria de dedicar todo o tempo que tenho tentando res-
ponder apenas a isso. Faria listas. Desenhos. Diagramas. Me enrolaria
em linhas tentando dizer dos poderes que nos impedem ainda poder-
dizer. Um por um. Um cêntimo de cada um deles. Cada centímetro
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Ana Kiffer
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des(cons)truir, ela diz
Quase penso que o Estado de guerra que vivemos alhures, em casa, nos
faz somente guerrear. Quase penso que prefiro o poder-dizer ao em-
poderar. Quase penso que não quero como eles o mesmo poder de
guerrear. Quase penso que a paz não responde mais à guerra. E que as
oposições que nos criaram são insuficientes.
Quero poder diferente, deles. Quero poder-dizer como uma só palavra.
Uma máquina. Uma costura. Um cozimento. Uma ferida. Um modo
de tocar. Um muro de musgo. Uma casa sem muro. Um país. Ela disse:
Soube eu então tão cedo em minha vida que era uma escritora? Sem dú-
vida. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.70).
Mas quando estaremos nós extenuadas dessa nossa floresta de desespe-
rança? (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.74). Ela disse.
Digo eu.
3. construir, eu digo:
Até aqui disse com ela. Ela disse. Destruir, diz ela. Dela. Disso. Quase
sobre ela, eu mesma através dos séculos. Digo: deixemos o de por
um momento: destruir, desrazão, descoser, desconstruir, devir, desviar.
Separemo-nos por um momento dessa camada do tempo onde um va-
lor positivo, transgressivo, liberador e intensivo foi ofertado aos corpos
mortos, arruinados, apagados pela guerra. Onde escrever sobre o nada,
para nada, não era ainda escrever não vale nada: “Eu não vejo o que
vocês poderiam contar sobre ela (...) é verdade que hoje em dia não se
conta mais nada nos romances...Por isso leio tão pouco (...) que (...)”.
(DURAS, Détruire-dit-elle, 1969/2007, p.119).
Deixo-a um pouco. Para que pensemos juntos. Quase pensar sobre
como escrever não vale nada. Pensar diferente o poder. Imaginar o po-
der. Poder imaginar o poder-dizer, diferente. Dela. Que ela agora só
nos acompanhe, no que gostaria eu de deixar com vocês, que já não só
ela, mas as camadas dos tempos, onde ela, e tantos outros corpos dela
subjazem.
191
Ana Kiffer
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No livro Odios Politicos, Politicas do Odio escrito com Gabriel Giorgi, Bazaer do
Tempo, 2019, desenvolvo de forma mais substancial a noçao de Relaçao em E. Glis-
sant e como vejo sua importancia operativa no contexto politico-subjetivo atual.
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des(cons)truir, ela diz
193
Ana Kiffer
Referências
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des(cons)truir, ela diz
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s o b r e a s a u t oras e
autores
Ana Kiffer
Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, doutora em Letras pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e doutorado Bolsa Sandwich Capes - Université de Paris VII -
Denis Diderot.
Beatriz Chnaiderman
Bacharel em psicologia pela Universidade de São Paulo. Psicanalista
membro do Fórum do Campo Lacaniano.
Bruna Guaraná
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Asso-
ciada do ICP-RJ (Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro)
e participante do Núcleo de Pesquisa do ICP-RJ “Práticas da Letra”
coordenado por Ana Lúcia Holck.
Claudia Itaborahy
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É psicanalista, coordenadora do Ateliê de psicanálise e outras ar-
tes de Ouro Preto e escreve. Aluna do Programa de pós-graduação
em Estudos Literários, da Faculdade de Letras | UFMG, na área de
concentração Poéticas da Tradução e linha de pesquisa Literatura
e Psicanálise. Sua orientadora é a professora Lucia Castello Branco.
Claudia é mestre em educação|UFOP e tem especialização em ciência
da religião|UFJF.
Flavia Trocoli
Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
membro-fundador e vice-coordenadora do Centro de Pesquisas
Outrarte – psicanálise entre ciência e arte, do IEL/ UNICAMP, autora
do livro A inútil paixão do ser.
Giselle Moreira
Psicanalista. Graduada em psicologia e mestre em Letras: Estudos
Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Laerte de Paula
Psicanalista, Acompanhante Terapêutico, mestre em Psicologia Clínica
pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.
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Larissa Melo
É formada em Realização e Produção Audiovisual na Escola de Cinema
Darcy Ribeiro; Integrante em Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas
de Cinema. Graduanda de Bacharelado e Licenciatura em Filosofia
UERJ – Pesquisadora em Cinema e Feminismos – Cinema Queer.
Foi professora de Cinema no Ateliê Oriente e Curadora do Cine
Oriente. Diretora do curta-metragem "The Ephemeral"exibido na
Mostra Internacional "Wicklow Screendance Laboratory"(Irlanda).
Foi professora de Fotografia Criativa em Loretto School para jovens da
França, Áustria, Espanha e Hungria em Bray, Irlanda.
Marcella Moraes
Doutoranda em Ciência da literatura pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolve, com o apoio do CNPq, o trabalho
“Dizer a imagem: uma leitura de Nuno Ramos” e aproveita esta
oportunidade para agenciar uma resposta ao legado que passivamente
herdou.
Renata Estrella
Psicanalista, doutoranda em Ciência da Literatura / UFRJ, mestre em
Pesquisa e Clínica em psicanálise.
Ricardo Pinto
Professor de Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
coordenador do Projeto Fortuna e do Laboratório de Edição, autor de
A presença da forma trágica.
198
Tatiane França
Professora de língua francesa e literaturas, mestranda em Ciência da
Literatura pela UFRJ.
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