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Não se pode e se escreve

ensaios sobre Marguerite Duras

organização
Giselle Moreira  Renata Estrella  Ricardo Pinto  Tatiane França
n ã o s e p o d e e s e escreve
n ã o s e p o d e e s e escreve
ensa ios sobre Marguerite Duras

Giselle Moreira, Renata Estrella, Ricardo Pinto,


Tatiane França (orgs)

Sabiá Editorial
2020
2020 copyleft — O conteúdo desta obra pode ser copiado e reproduzido,
desde com indicação de autoria e fonte

Publisher | Raimunda Nonata Martins de Oliveira

Capa, projeto gráfico e diagramação | Labedição – Laboratório de edição de


Ciência da Literatura | https://labedicao.com/

Imagem de capa por Daniel Rueda e Anna Davis Bennet.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO (CIP)

D194n

Não se pode e se escreve: ensaios sobre Marguerite Duras / Giselle Moreira,


Renata Estrella, Ricardo Pinto e Tatiane França (orgs). – Rio de Janeiro: Sabiá
Editorial, 2020.

ISBN: 978-65-88372-07-4

1. Literatura Francesa. 2. Marguerite Duras

CDD 840

Primeira edição em 2020

Sabiá Editorial

https://www.sabiaeditorial.com.br/ | sabiaeditorial@gmail.com
s u m á r io

Apresentação G Moreira, R Estrella, R Pinto e T França 9

O que dura escrito no corpo A L Lutterbach 18

Escrever e escrever os corpos I B Nuto 28

O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do


trauma? R Estrella 52

À noite, um filete de luz M G Sereno 64

A repetição no arrebatamento D F Eckstein 77

Duras — escrever, uma paixão Marcella Moraes 92

Amor, uma escrita de palavras sozinhas G Moreira 102

A escrita do corpo de Lol. V. Stein B M Guaraná 110

Sobrevidas da cena em Marguerite Duras Flavia Trocoli 122

Emily L.— Marguerite Duras, traduzir o impossível


C I Ferraz 139

Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso B Chnaider-


man e L Paula 151
Cinema — Marguerite Duras e o espectador emanci-
pado L P Melo 166

Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Margue-


rite Duras T França 177

des(cons)truir, ela diz A Kiffer 186

Sobre as autoras e autores 196


a p r e s e n t ação
gisele moreira, renata estrella,
tatiane frança e ricardo pinto

M
a r g u erite Duras afirma que as mulheres escrevem do
lugar do desejo e, em conversa com Michelle Porte, diz que o fa-
zem munidas de uma linguagem anterior a elas, selvagem. A linguagem
da noite, das florestas. Foi também do lugar do desejo que, ao encon-
trarmos uma paixão comum pela obra da escritora, trouxemos à vida o
primeiro evento da Universidade Federal do Rio de Janeiro destinado a
reunir leitores e pesquisadores da obra literária e cinematográfica de Du-
ras. Foi unindo nossas linguagens e nossa vontade comum de mergulho
que organizamos a primeira Durassiana em 2019.
O embrião do evento surgiu do fortuito encontro entre o que mais tarde
se tornaria sua Comissão Organizadora1 . Em outro encontro anterior,
destinado aos estudos entre literatura e psicanálise na UNICAMP, em
2018, teve início a partilha de ideias e leituras que culminaria no projeto
de um evento para discutir Duras, plano abraçado pelo professor de Te-
oria Literária e responsável pelo Projeto Fortuna -- também organizador
do evento e da presente edição --, Ricardo Pinto. Tal projeto, mantido
pelo do Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ
é um projeto de extensão que se dedica a criar e manter recursos de
1
Encontro entre três (apaixonadas) pesquisadoras da obra de Duras: Giselle Moreira,
mestre em Estudos Literários pela UFMG; Renata Estrella, doutoranda em Ciência
da Literatura pela UFRJ; Tatiane França, mestranda em Ciência da Literatura na
UFRJ.

9
G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

pesquisa sobre autores e críticos comumente estudados e referidos nos


estudos literários2 .
Foi então que, tomadas e tomados pelo "efeito Duras"ao qual Hélène
Cixous faz menção em conversa com Michel Foucault, reunimos pes-
quisadores de diferentes formações e universidades para os debates que
decorreriam em dois dias de evento. O resultado das produções e apre-
sentações foi então compilado nessa edição sob o formato de breves
artigos, a fim de divulgarmos e compartilharmos as ricas discussões que
o encontro - entre tantos pontos de vista - sobre a obra durassiana pôde
proporcionar.
Nesse sentido, os artigos abrangem amplo leque temático, o que não
é sem relação com a amplitude da obra de Duras. Alguns autores se
dedicaram às obras muitas vezes mencionadas como parte de um ’ci-
clo autobiográfico’, a exemplo de O amante e Uma barragem contra o
Pacífico. Destes artigos, é interessante que se destaque o corpo como
questão, para além da riqueza literária criada por Duras entre ficcional
e autobiográfico. Como bem resumido pela própria escritora em entre-
vista à Bernard Pivot em 1984: "a vida do escritor sempre está em outro
lugar".
Pega há anos pela escrita de Marguerite Duras, Ana Lucia Lutterbach
trabalha um paralelo entre o tratamento dado ao real em uma análise e
pela escrita, a partir de quatro obras, Cadernos da Guerra, A barragem
contra o Pacífico, O amante e O amante da China do Norte. A autora
nos indica como algo dura escrito no corpo, uma escrita de gozo, conse-
quente ao choque da linguagem, e que produz um ciclo de repetições
onde o sujeito se vê enredado. Nesse sentido, também em uma análise
se parte de uma escrita, de uma leitura, como nos indica Lutterbach:
"o próprio relato em uma análise deve ser tomado como algo a ser lido
e não só escutado. A leitura da Letra, do não sentido, ao contrário de
fazer proliferar, reduz o sintoma à sua fórmula inicial", quer dizer, em
que o significante opera separado da significação.

2
Para mais detalhes sobre o Projeto Fortuna: https://fortuna.labedicao.com

10
Apresentação

Isadora Bonfim, por sua vez, parte da necessidade de escrever, men-


cionada em muitos momentos por Marguerite Duras, trabalhando a
hipótese de que se trata em O amante menos de uma história de amor
ou do encontro sexual entre uma menina branca pobre e o amante chi-
nês milionário e mais da escrita de corpos. A análise parte do corpo da
narradora, passa pelo corpo do amante, da mãe e dos irmãos, identifi-
cando "uma rede de entrelaçamentos de corpos"que sustenta o corpo
da escrita, dando forma erótica à obra, "um corpo que não se reduz às
necessidades fisiológicas, assim como o texto não se reduz a suas rela-
ções gramaticais", como sugere Bonfim a partir de O prazer do texto, de
Roland Barthes. Nesse sentido, a autora identifica dimensão erótica na
obra de Duras, retomando a ideia inicial para concluir: é o fascínio pela
escrita, pelo texto, é a sua inevitabilidade, que confere na obra de Duras
dimensão erótica.
O texto de Renata Estrella, "O amante, de Marguerite Duras: uma
escrita do trauma?", levanta uma hipótese suscitada pela seguinte per-
gunta: que formas podem emergir na escrita quando partimos de algo
ao qual não se pode dar forma? Enlaçando a necessidade de narrar ine-
rente ao testemunho com o impasse da narrativa diante daquilo que
se denomina "indizível", a autora busca analisar que mecanismos são
desenvolvidos ao longo da obra autobiográfica de Duras para que seja
possível dar forma à memória do que foi inscrito no corpo. Ou ainda,
para dizer um pouco mais, Estrella investiga quais imagens e suportes
são movimentados no romance para que se estruture em narrativa tam-
bém aquilo que não se pode representar.
Marina Gorayeb Sereno em seu artigo "À noite, um filete de
luz"propõe um diálogo entre psicanálise e literatura ao investigar o que
chama de "operação de escrita"de Marguerite Duras em três livros. Des-
dobrando o que denomina de três tempos de escrita, ou três planos, ela
elenca a figura do livro, do filme e da noite referentes às obras durassi-
anas que narram o encontro com o amante chinês, Barragem contra o
Pacífico, O amante e O amante da China do Norte. Sua argumentação
visa encontrar, diante de uma escrita que se faz pela perda, pelo impos-

11
G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

sível, a possibilidade de criar uma imagem através de uma operação de


escrita que acontece destacada de si própria, a escrita durassiana como
uma escrita feita para que outra coisa seja lida.
Ainda nessa busca por uma entrada na complexidade da obra durassi-
ana, alguns autores analisaram o que se repete em uma mesma obra ou
elementos que atravessam diferentes obras, identificando a suspensão
dos sentidos como principal efeito da repetição. A forma como Duras
desarranja as oposições instituídas da linguagem, por exemplo, eviden-
cia o trabalho de destruição das significações, o que já fica aparente em
muitos de seus títulos, Hiroshima mon amour, ao incluir na mesma
frase uma cidade lembrada por uma das maiores catástrofes da humani-
dade e o amor, ou Uma barragem contra o Pacífico, que traz um pacífico
que precisa ser barrado. Como fica claro pelos ensaios, para além dos
sentidos, há sempre algo que pode ser recolhido como efeito das obras: o
ritmo que se impõe à escrita, o amor, a possibilidade de desdobramentos
infinitos entre destruição e construção / composição.
O artigo de Danielle Eckstein "A repetição no arrebata-
mento"investiga como as repetições atuam num espaço de duplo
significado na obra Le ravissemnt de Lol V. Stein, duplicidade essa
que inicia em seu título, já que ravissement pode significar tanto algo
da ordem do contentamento, do êxtase, como o ato concreto de tirar
algo à força. A repetição é analisada no artigo a nível diegético e a nível
estrutural, levando em conta como esses processos incitam uma leitura
que coloca o leitor em confronto com o estranhamento da linguagem e
do sentido. Eckstein costura sua análise às características presentes nas
narrativas modernas, problematizando conceitos como transmissão,
impossibilidade e narrativa na obra de Duras publicada em 1964.
Em seu artigo, Marcella Moraes parte da figura da ’espera’, contagiada
por algumas palavras que insistem em se repetir na escrita de Duras
e que evocam uma atmosfera de aparente imobilidade: a lentidão, a
doçura, o silêncio, o grito, o sono. Um percurso se faz através de três
obras durassianas - um filme e dois livros - primeiro India song filmado
em 1975, depois, L’amour (1971) e, por fim, O deslumbramento (1964).

12
Apresentação

Ao seguir o fio dos textos, Marcela acaba por desestabilizar a oposição


entre ação e inação, entre agência e passividade. Para além do binarismo,
a espera se confunde com o amor: "o que apresento aqui, portanto, é esta
imagem arruinada - percebi, nesse movimento, outro caminho possível
para me aproximar de Duras. O tema do amor."
No artigo Amor, uma escrita de palavras sozinhas, Giselle Moreira tra-
balha de forma delicada uma passagem entre duas obras de Marguerite
Duras, Le ravissement de Lol V. Stein e L’Amour, evidenciando aspecto
importante da escrita de Duras que, entre cenas e palavras repetidas,
parece vir de uma mesma enxurrada. Nesse movimento de rescrever,
Moreira identifica, no entanto, formas muito diferentes de narrar, si-
tuando em L’Amour uma escrita quase gráfica, em que "o ritmo pre-
valece à significação". Nesse sentido, é como se a cada reescrita, Duras
tornasse as palavras mais opacas e afastadas de uma significação habitual,
aproximando-se de uma "escrita da não-narrativa (...), uma escrita de
palavras sozinhas", como defendeu na obra Escrever (1994).
Em seu artigo A escrita do corpo de Lol. V. Stein, Bruna Guaraná
faz uma leitura cuidadosa de O Arrebatamento de Lol V. Stein, através
do escrito que Lacan lhe dedica. Bruna, não domina o objeto, mas o
desdobra. Começa por dizer da vacuidade de Lol. S. Stein -- "um ser que
parecia não estar no mesmo lugar que seu corpo, alguém em fuga, nunca
presente-- para dar ênfase na construção do corpo dessa personagem.
Um corpo que se desenlaça com o que o arrebata, mas que busca se
reconstituir através do ato de recompor a cena do arrebatamento: "com
essa montagem, se produz a possibilidade de Lol poder existir com uma
vida que pulsa e com presença, fora do lugar do ’como se’, onde havia
um corpo sem alma".
***
Outro aspecto bastante presente na crítica sobre a obra durassiana e
que aparece também nesta publicação trata do precioso trabalho com a
linguagem feito pela escritora e do estatuto do texto escrito em Duras.
Para Michele Porte, Duras chega a mencionar que sente como se tudo
estivesse escrito, "O mar é completamente escrito para mim"(DURAS,

13
G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

1977, p.91). Nesse sentido, mesmo com as imagens, por exemplo, no


teatro ou em seus filmes, Duras considera trabalhar com o escrito: "todo
o espaço filmado é escrito"(idem).
Em Sobrevidas da cena em Marguerite Duras, Flavia Trocoli nos mos-
tra como - em A doença da morte (1982) e Olhos azuis, cabelos pretos
(1986) - Duras propõe um teatro lido e não atuado, deixando a ênfase
na palavra que ressoa: "o drama do corpo que sofre está inteiramente
nas palavras". O amor, ou sua impossibilidade, é indissociável de sua
forma e se alinha ao espaço entre o apagamento e a reconstrução, entre
a destruição e a sobrevivência da cena. Um problema estético que lança
à questão: "diante da iminência da morte do próprio corpo da obra,
diante da doença da morte que é não poder amar e, assim, viver como
morto, o que as palavras ainda podem fazer? ".
Em "Emily L.: Marguerite Duras, traduzir o impossível", Claudia Ita-
borahy retoma o romance Emily L. , reconstituindo a relação de Mar-
guerite Duras, tradutora, com a poeta americana Emily Dickson e como
esta relação é deslocada e ressignificada em Marguerite Duras, roman-
cista, em Emily L.. Itaborahy concebe no gesto de Duras uma teoria da
tradução, em que o ato de passar para outra língua, a tradução, circula
pelos termos transposição, recriação, ressignificação, apropriação, pos-
sessão... O vigor do gesto de transposição -- o termo preferido no artigo
-- pode ser reconstituído apenas pelo leitor, o que aponta para a integra-
ção de uma poética da leitura -- e de um leitor que reconhece a biografia
de Duras e Dickson como pontos de inflexão para a criação de sentido
em suas obras -- com uma poética da tradução. Segundo Itaborahy "Para
mim, em Emily L., o pensamento em torno das leituras que Duras faz
apresenta-se como ponto de investigação sobre o que vem a ser -- e o
que poderia ser -- uma poética da tradução, em um movimento de ética
e pensamento da poiesis -- o fazer poético e o pensamento poético".
Beatriz Chnaiderman e Laerte de Paula partem de Moderato Canta-
bile para trabalhar aspecto ainda pouco explorado, o erotismo de forma
articulada à psicanálise. Os autores situam essa obra como fazendo uma
ruptura em relação aos romances anteriores de Duras, como indicado

14
Apresentação

pela própria autora: "há toda uma época em que escrevi livros, até Mode-
rato Cantabile, que não reconheço". Assim, para Chnaiderman e Paula,
"Moderato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto que
aflora da morte e da loucura, tal qual uma estética do arrebatamento".
Nesse sentido, a escrita é uma forma de fazer com o impasse, mesmo que
o mantendo sem solução. E é justamente esse aspecto que os autores
identificam como essencial à erótica do texto durassiano: "o erotismo
que mobiliza o texto de Duras diz de uma modalidade de resposta a
uma impossibilidade: seja o impossível de compreender, o impossível
de dizer, o impossível de complementar junto ao outro".
Em seu artigo, Larissa Melo costura conceitos de pensadores como Jac-
ques Rancière, Hanna Arendt e Jacques Derrida para pensar o cinema
de Duras como um movimento pela emancipação do espectador. Ana-
lisando aspectos de algumas de suas obras escritas e também o conjunto
de obras cinematográficas da autora, Melo elenca aspectos importantes
do fazer literário e fílmico durassianos, a fim de entender como tanto a
palavra quanto o silêncio atuam nesse processo de emancipação. O ar-
tigo localiza ademais a obra de Duras em contraposição ao movimento
do cinema que lhe é contemporâneo, lendo suas produções como um fa-
zer crítico que se coloca contra um determinado pensamento do cinema
da época.
E como não poderia faltar em um volume dedicado à Duras, questões
políticas atravessam as análises das obras de maneira indireta -- como fez
a escritora em muitos momentos de sua carreira, a exemplo do conhe-
cido relato da exploração colonial francesa em Uma barragem contra
o Pacífico -- para serem presentificadas de forma direta em dois artigos.
Um traz a tona a Shoa, uma das maiores catástrofes da história da hu-
manidade, enquanto o outro trata de nossos traumas contemporâneos,
não menores, buscando possibilidades de vida a partir da obra durassi-
ana. É uma felicidade fechar essa publicação com uma das noções que
nos é mais cara, ao nosso Programa de Pós-graduação e à universidade
pública, a função social da literatura.

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G. Moreira, R. Estrella, T. França e R. Pinto

Em "Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras",


Tatiane França apresenta o diário/romance A dor, registro semibio-
gráfico da captura e expulsão para os campos de Robert Antelme, seu
marido à época, a espera de seu retorno e o que é perdido e queimado
mesmo após sua volta. França estabelece a dinâmica fantasmal entre
espera e desesperança e a complicada relação negativa de dois corpos, o
corpo que escreve, que é também aquele que espera e que não sabe afinal
o que há e portanto não pode dizer, e aquele corpo ausente de Antelme.
Há um horror que se dá e que se ausenta, da guerra e dos campos, que
rouba algo dos dois personagens do livro e que aponta para uma forma
de vida (e de manutenção da humanidade) sob o totalitarismo. Nas pa-
lavras de França "Encaro que esse livro de Duras, em sua narrativa crua e
dolorosa, ensaia formas de representar a vida sob o domínio da barbárie,
para não deixar calar a memória da dor, instaurando com seu relato um
tremor para fazer o horror reverberar a cada página virada". O texto é
um ensaio sobre a negatividade na obra de Duras, puxando a linha do
novelo da sua obra a partir de um texto em certos aspectos excêntrico
dentro do cânone da escritora e demonstra como os temas constantes
durassainos, como a barbárie, a humanidade dos corpos e dos desejos,
as cicatrizes e a luta contra o esquecimento, já estão presentes muito
cedo em sua obra e partem da capacidade de dar significado coletivo ao
trauma individual.
Ana Kiffer começa por dizer sobre a influência de Duras em seu pró-
prio fazer crítico, textual, de tal forma que os modos de enunciação da
escritora - sua intensidade e questões incessantes - se tornaram também
eixo estruturante de suas pesquisas acerca das relações entre corpo e es-
crita: "O fogo que queima nela ainda queima a todas nós". Desse ponto,
reconhecida uma intimidade, ou, uma proximidade "perigosa"da obra
de Duras, Ana Kiffer desdobra a questão: "o que me separa de Duras e
de sua geração depois de termos por tanto tempo vivido juntos? Que
gesto crítico poderia criar uma dobra ou uma borda ao lado do gesto
desconstrutor e mesmo destruidor (da linguagem e do corpo) que a ge-
ração do pós-guerra viveu, pensou e encenou? Qual é hoje a guerra que

16
Apresentação

enfrentamos?". Assim, o artigo "des(cons)truir, ela diz"se escreve com


Duras para separar-se dela: destruir, ela diz -- construir, eu digo. Em
direção à nuance, o texto de Ana Kiffer propõe uma nova arqueologia
para pensarmos a subjetividade de nossa época: "O gesto que acompa-
nha a nuance chama-se criar camadas. Olhar não é suficiente. Também
por isso precisamos tocar nessas camadas que reivindicam uma nova
arqueologia do Brasil".

17
o q u e d u r a e s crito no
corpo
a na lucia lutterbach

H
á a l g u m tempo me interesso pelas relações entre ao
tratamento dado ao real na prática da psicanálise e na escrita. So-
bre isso Marguerite Duras é a principal referência para mim. Fui pega
por sua escrita há muitos anos e ela não me larga.
Durante muito tempo para os analistas, e contrariando a Freud, a escrita
esteve associada ao ideal, em nome de uma ideia de arte que Lacan, com
Joyce, vai contestar mostrando "que a arte, tem sua raiz precisamente
no real"3 e não no ideal.
Além disso, acreditava-se, e alguns analistas ainda acreditam, numa certa
função terapêutica da escrita, como se a escrita pudesse salvar alguém
da loucura, da morte, da vida. A escrita pode ser um tratamento dado
ao real, mas a escrita não é prescritível e seus efeitos são imprevisíveis.
Não se escolhe ser escritor, não escreve quem quer. Simplesmente, para
alguns, é preciso escrever. Quem escreve não possui uma escrita, como
no caso de Duras, mas consente ao que vem de um outro lugar, uma
espécie de encarnação do real, pulsão da escrita.
A escrita, ao contrário da salvação, pode ser um perigo, como escreve
Duras:

3
Miller,J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana, 2011, lição de
25/05/2011. Inédito.

18
O que dura no corpo

A escrita é o desconhecido de si, de sua cabeça, de seu corpo. Não


é uma reflexão, escrever, é uma espécie de faculdade ao lado de sua
pessoa, paralelamente a ela mesma, de uma outra pessoa que aparece e
que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que algumas
vezes, por isso mesmo, é um perigo, de perder aí sua vida.4

Em certo momento de seu ensino, por volta de 1970, Lacan dá uma


virada e essa virada tem consequências sobre o próprio conceito de arte
para nós. É a partir daí que gostaria de abordar a escrita de Duras, sem
intenção, sem representação, sem compromisso nenhum com qualquer
finalidade.
Tornar-se um analista, como tornar-se um escritor, se impõe como uma
espécie de necessidade e se uma análise tem efeitos terapêuticos, ela não
se restringe a isso e continua mesmo depois.
É neste ponto que vejo a aproximação com a escrita, ou seja, ambas
são um tratamento dado ao real. A análise tem um fim, mas o trabalho
analisante não, ele continua mesmo depois de concluir a análise, mesmo
depois que a fala dirigida a um analista acaba, o analisante continua.
Assim como cada livro tem um fim mas a escrita é sem fim, a análise
termina mas o lugar de analisante é sem fim.
Leitura e escrita na análise
O ser, o "eu sou"é sustentado pelas invenções com os significantes que
foram roubados do Outro, ou, conforme o caso, impostos pelo Outro.
Mas, existe algo que apesar de não estar fora da linguagem, não se sus-
tenta nas narrativas que proliferam, mas em letras impressas no corpo
apoiadas em um significante primeiro, sem sentido, que conta muito,
mas não faz história.
O que se escuta em uma análise do "eu sou"são narrativas criadas ao
longo da vida que produzem novas significações, e se os sentidos se mul-
tiplicam só alimentam o sintoma.
Para se aceder à letra é preciso tomar a linguagem pela escrita, onde o
significante se separa da significação. Neste caso, não se trata mais de
escuta mas de leitura.
4
Duras, M. Écrire. Ed. Gallimard. Paris: 1993. p.65. Daqui para a frente [E:65]

19
Ana Lucia Lutterbach

Lacan nos diz que não é só o sonho que deve ser tratado como escrita,
como indica Freud, mas o próprio relato em análise deve ser tomado
como algo a ser lido e não só escutado. A leitura da Letra, do não sentido,
ao contrário de fazer proliferar, reduz o sintoma à sua fórmula inicial,
ou seja, "reduz o sintoma ao choque da linguagem sobre o corpo"5 . No
Seminário 20, Lacan nos diz que trata-se de ler além daquilo que o ana-
lista incitou o sujeito a dizer, ali para além do sentido encontra-se o
inconsciente.6
Com esta afirmação, Lacan tenta trazer para a análise o que há de inerte,
o que não se pode contar. Ali onde estavam os efeitos de sentido passa a
prevalecer o gozo do corpo, de um corpo que não se define pela imagem ou
pela forma, mas pelo gozo que o atravessa e que se imprime como letra e
faz do corpo um aparelho de gozo. Segundo as precisas palavras de Miller,
"um aparelho de repetição do Um que comemora uma irrupção de um
gozo inesquecível" 7 *, num ciclo de repetições onde as experiências não
nos ensinam nada. *
Um gozo opaco, chamado feminino, mudo que não muda e dura até o
fim.
Esta irrupção de gozo é o que orienta uma análise para além de todo
o romance familiar, o que orienta e ultrapassa toda narrativa, todo ro-
mance.
A escrita de Duras é sustentada por este real do gozo, "seca e nua", como
ela mesma nos diz em Écrire:

Eu creio que a pessoa que escreve não tem ideia do livro, ela tem as
mãos vazias, a cabeça vazia, e que ela só conhece dessa aventura do
livro, a escrita seca e nua, sem devir, sem eco, distante....8

Não sou uma especialista em Duras, sou sua leitora há muitos anos e
faço em mim anotações esparsas que agora tento recolher para trazer
5
idem, p. 20-21.
6
Lacan, J. (1972-73/1982). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. JZE, Rio. p.39.
7
Miller, J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana, 2011, lição de
23/03/2011. Inédito.
8
[E:24].

20
O que dura no corpo

para vocês. Não há precisão de datas e talvez alguma coisa, aqui e ali,
eu tenha inventado, não sei. São fragmentos escolhidos e misturados,
segundo a minha leitura e corte, de quatro escritas: Cadernos da guerra
(1943 a 1949)9 , Barragem contra o pacífico (1950)10 , O Amante (1984)11 e
O Amante da China do norte (1990)12 .
Este último foi escrito como um roteiro para o cinema. Segundo uma
de suas biógrafas, Letitia Cénac13 , Duras vendeu os direitos cinemato-
gráficos de O Amante para um produtor e propôs a ele filmá-la lendo o
livro. O produtor não só aceitou como a convidou para ser coautora do
roteiro. A colaboração entre os dois foi por pouco tempo, ela discordou
inteiramente da direção só interessada na reconstituição histórica, trans-
formando sua escrita num livro de recordações. Nesse momento, Duras
é hospitalizada e quando sai da clínica alguns meses depois, percebe que
o roteiro já tido sido escrito sem ela e não aprovou absolutamente a ver-
são cinematográfica. Dois anos antes da estreia do filme ela publicou O
Amante da China do Norte, de acordo com Cénac, sua maneira de se
reapropriar de sua escrita.
A cena que se repete nos quatro livros é o encontro de uma jovem de
15 anos branca, filha de professores franceses na Indochina, com um
chinês, um herdeiro milionário e já comprometido a se casar com uma
mulher escolhida por seu pai, segundo a tradição.
Trata-se das ficções de Duras em torno de um mesmo ponto fixo de
gozo em um corpo de menina quando é tocado pela primeira vez por
um homem que a quer como mulher, um primeiro encontro com o real
do sexo. É um encontro com um único homem, mas são quatro escritas

9
DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos. Ed. Estação liberdade, São Paulo,
2009. Daqui em diante [CG].
10
DURAS, M. Barragem contra o Pacífico. Ed. ARX, São Paulo, 2003. Daqui em
diante [BP].
11
DURAS, M. L’Amant. Les Éditions de minuit, Paris,1984. Daqui em diante [A].
12
DURAS, M. L’Amant de la Chine du Nord. Gallimard, Paris, 1991. Daqui em diante
[ACN].
13
CÉNAC, L. Marguerite Duras. L’Écriture de la passion. Éditions de La Martinière,
2013. p.34-35.

21
Ana Lucia Lutterbach

diferentes num intervalo de quase cinquenta anos, em torno do mesmo


acontecimento de corpo, o mesmo gozo, mas reescrito a cada vez.
1o Cadernos da Guerra, trata-se de uma longa narrativa sobre sua infân-
cia e adolescência na Indochina, esboços do que viria a ser mais tarde
Barragem contra o Pacífico. Duras tinha 29 anos.
Aqui o homem chama-se Léo: um chinês repugnante.
Em uma pensão em Saigon alguém, que ela nem sabia mais quem, lhe
deu uma carona num carro onde estava o chinês, "que vestia-se à fran-
cesa". Ela ainda não tinha quinze anos quando ele a beijou de surpresa e
ela se sentiu invadida por uma repulsa indescritível, o empurrou, cuspiu,
queria saltar do carro. Ela escreve: "Eu era o próprio nojo: seu rosto be-
xiguento, sua grande boca mole, a saliva e a língua desse ser desprezível
haviam tocado meus lábios. Sentia-me como depois de ser violada."14 O
gozo aí é nojo e violação.
2o Barragem contra o Pacífico, ela tem 36 anos. O homem, o chinês é
agora o Sr. Jo, o rico plantador do norte.
Eu a cito:

Ele estava sozinho em sua mesa. Era um rapaz que parecia ter 25 anos,
vestido com um terno de tussor cru. Sobre a mesa havia um chapéu
da mesma seda crua. Quando bebeu um gole de Pernod, viram em
seu dedo um magnífico diamante para o qual a mãe ficou olhando
em silêncio, pasma. (...) Ela, com certeza, era uma bela moça, tinha os
olhos luminosos, arrogantes, era jovem, estava no auge da adolescên-
cia, e não era tímida.15

Sr. Jo é um homem rico e desprezível que paga as despesas da família em


noites de dança, comida e bebida. Não é a menina, é sua mãe que olha
para o anel, olha para o olhar dele que olha sua filha, e ela vê sua própria
penúria. Quanto vale o anel? Quanto vale a menina para este homem?
Essa narrativa diz mais sobre a relação da menina com a mãe do que
propriamente com o homem. A invasão é a do Pacífico, do mer-mère,
da mãe. É como objeto desse gozo materno que ela lê este encontro.
14
[CG :78].
15
[CG :41].

22
O que dura no corpo

3o O Amante. Duras tinha 70 anos quando escreveu.


O homem, o chinês, é aquele que se apresenta em uma balsa.
Ela tem quinze anos e meio e atravessa numa balsa um rio, como ela diz,
"na grande planície de lama e arroz do sul da Cochinchina, aquela dos
Pássaros".
É assim que ela conta:
Desde que entrou no carro preto ela sabe que chegou o tempo em
que ela não pode mais escapar a certas obrigações, às quais só ela pode
responder, sem a mãe, sem os irmãos. Ela está separada desta família,
pela primeira vez e para sempre. Eles não devem mais saber o que será
dela: a criança agora terá a ver com este homem ali, o primeiro, aquele
que se apresentou na balsa16 .

Ali ela se separa do gozo materno e toma para si essa experiência com
aquele homem.
Num pequeno estúdio, uma espécie de garçonnière, eles ficam a sós pela
primeira vez. Ela escreve:
Ela está sem sentimento bem definido, sem raiva, sem repugnância
também, mas sem dúvida, o desejo já está ali. Ela está ignorante disso.
Ela consentiu vir e está ali onde é preciso que ela esteja. Ela experi-
menta um leve medo, um medo não apenas do que ela espera do
que pode acontecer, mas do que deve acontecer precisamente no caso
dela17 .

Ela consentiu, está onde precisa estar e espera o que deve acontecer, não
o que sempre acontece, mas o que deve acontecer no caso dela.
Ele treme mas não se mexe. Ela não diz nada. Ela lhe suplica que ele faça
como costuma fazer com as mulheres, porque ela não sabe o que faz
uma mulher. Ele arranca o vestido e a calcinha de algodão branco e a
carrega nua para a cama. Então ele volta-se para o outro lado e chora.
Ela de olhos fechados começa a despi-lo.
A pele dele é de uma doçura suntuosa. O corpo é magro, sem força,
sem músculos, imberbe, sem nenhuma virilidade além do sexo. Ela
16
[A :46].
17
[A :47].

23
Ana Lucia Lutterbach

toca a doçura do sexo, da pele, ela acaricia a cor dourada, a desconhe-


cida novidade. Ele geme, ele chora. E chorando ele o faz. De início
há dor. E depois esta dor é por sua vez possuída, transformada, lenta-
mente arrancada, abraçada pelo gozo18 .

4o O Amante da China do Norte. Ela tem 77 anos.


O chinês é o Chinês do Norte.
Para situar o gozo em questão nesta escrita, extraí, copiei e juntei alguns
fragmentos de páginas esparsas.
É um livro
É um filme.
É a noite.
A voz que fala aqui é aquela, escrita, do livro.
Voz cega. Sem rosto.
Muito jovem.
Silenciosa19 .

A cena:
É o rio.
A balsa saindo.
Ela olha o rio. Ela olha também o Chinês elegante que está no interior
do grande carro preto, o mesmo que já foi o chinês repugnante, o rico
plantador do norte ou aquele que se apresentou na balsa.
Da Limousine preta saiu um outro homem que ela diz ser diferente
daquele que ela tinha do outro livro, O Amante, um outro Chinês do
Norte. Ele é um pouco diferente daquele do livro: ele é um pouco mais
robusto que o outro, tem menos medo e mais audácia. Ele tem mais
beleza, mais saúde. E também tem menos timidez que ele diante da
criança.
Ela permaneceu a do livro, pequena, magra, ousada, difícil de enten-
der, difícil de dizer o que é, menos bela do que parece. Louca de ler,
de ver, insolente, livre.
18
[A :49].
19
[ACN:17].

24
O que dura no corpo

Ele é um Chinês. Um Chinês grande. Ele tem a pele branca dos Chi-
neses do Norte. Ele é muito elegante.
Ele a olha.
Eles se olham. Sorriem. Ele se aproxima.20

Alguns dias depois, no mesmo pequeno estúdio.


Ele diz:
Eu vou te pegar.
Silêncio. O sorriso desaparece do rosto da criança.
Venha.
Ela vai. Ela diz nada, para de olhá-lo.
Ele tira seu vestido, depois tira a calcinha de algodão branco da criança.
Ele joga o vestido e a calcinha na poltrona. Ele a olha. Ela não. Ela se
deixa ver. Ele a acaricia.
Com uma espécie de medo, como se ela fosse frágil, e também com
uma brutalidade contida, ele a carrega e a coloca sobre a cama. Ele a
olha e o medo o toma novamente. Ele fecha os olhos, ele se cala, ele
não a quer mais. E é então que ela o faz, ela. Os olhos fechados, ela o
despe.21

Ele diz:
Eu vou te machucar.
Ela diz que ela sabe.
Neste livro, ela diz se lembrar do medo.
Como ela se lembrava da pele e de sua doçura. De olhos fechados ela
tocava esta doçura, ela tocava a cor dourada, a voz, o coração que ti-
nha medo, todo o corpo apertado sobre o seu, perto do assassinato da
ignorância dela em tornar-se a criança dele. A criança dele, do homem
da China que se cala e que chora e que o faz num amor assustador.
A dor chega no corpo da criança. Ela primeiro é viva. Depois terrível.
Depois contraditória. Como nada mais. Nada: é então quando esta
dor torna-se insuportável que ela começa a se afastar, ela a dor. Que
ela se transforma, que torna-se uma dor para gemer, gritar, que toma
todo o seu corpo, a cabeça, toda a força do corpo e a do pensamento.
20
[ACN:35-36].
21
[ACN:78].

25
Ana Lucia Lutterbach

O sofrimento deixa o corpo magro, deixa a cabeça. O corpo fica aberto


para fora. Ele foi atravessado, ele sangra, ele não sofre mais. Isso não
se chama mais dor, isso se chama talvez morrer. (...)
Ela escuta ainda o barulho do mar no quarto. Ela se lembra de ter es-
crito isso, que o mar estava presente naquele dia no quarto dos aman-
tes 22 .

Essa é sua memória aos 77 anos quando, talvez, não tivesse mais recor-
dações, só essa memória de um corpo que goza.
Das quatro escritas está a mesma experiência de gozo que se repete e
repete, em diferentes narrativas. Esse gozo que invade a criança e vira
letra no corpo, fora do sentido fica ali até o fim para inúmeras narrativas
diferentes.
Só o gozo não se esquece, só o gozo não envelhece entregue à repetição
infinita.
Só o gozo não se esquece, só o gozo não envelhece entregue à repetição
infinita.
Agosto/2019
Letras UFRJ

22
[ACN:80-81].

26
O que dura no corpo

r e f e r ê n c ia s
CÉNAC, L. Marguerite Duras. L’Écriture de la passion. Éditions de
La Martinière, 2013.
DURAS, M. Écrire. Ed. Gallimard. Paris: 1993.
DURAS, M. Cadernos da guerra e outros textos. Ed. Estação liberdade,
São Paulo, 2009.
DURAS, M. Barragem contra o Pacífico. Ed. ARX, São Paulo, 2003.
DURAS, M. L’Amant. Les Éditions de minuit, Paris,1984.
DURAS, M. L’Amant de la Chine du Nord. Gallimard, Paris, 1991.
LACAN, J. (1972-73/1982). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. JZE,
Rio de Janeiro.
MILLER ,J.-A. O Ser e o um. Seminário de Orientação Lacaniana,
2011, lição de 25/05/2011. Inédito.

27
e s c r e v e r e e s c rever os
c o r po s — 0 a m ante, de
duras
i sadora bonfim nuto

U
m a c o i s a que Duras soube — e isso nos é dito pela voz
da narradora de O amante — é que escreveria. Não apenas que
gostaria de escrever, mas que escreveria, isso é fato, que precisava escre-
ver. Em O amante, isso aparece explicitamente em alguns momentos:
"Quero escrever. Já disse para minha mãe: o que quero é isso, escre-
ver"(2012, p. 21), "vou escrever livros. É o que vejo para além do instante,
no grande deserto que se afigura como a extensão de minha vida"(2012,
p. 88), "Respondi que o que mais queria, acima de qualquer outra coisa,
era escrever, só isso, nada mais"(2012, p. 22) e, em outro momento, a
escrita aparece tratada como uma certeza, uma certeza absoluta, e é a
família que está no centro dela, dessa "certeza essencial, do que mais
tarde vou escrever"(2012, p. 65).
O amante seria, segundo a própria Duras, seu livro mais autobiográ-
fico23 — ainda que a autobiografia permeie, em maior ou menor grau,
toda a sua obra. O que se conta nesse livro, escrito quando a autora já

23
Cf. PERRONE-MOISÉS, Leyla: "Em entrevistas concedidas na época da publica-
ção do romance, Duras afirmava que este era o mais autobiográfico de sua obra,
assim como o que foi escrito com maior facilidade, ao correr da pena"(p. 105).

28
Escrever e escrever os corpos

passava dos 70 anos e já havia produzido uma vasta obra, é justamente


esse desejo de escrita e, mais ainda, o que acompanha esse desejo, o que
o motiva, o que demanda e exige essa escrita, sendo também sua fonte,
seu eterno mote, são os acontecimentos em que se fundam — mesmo
que sem o saber na época — a escritora e o plano de fundo de todo e
cada um de seus textos. Ao falar da imagem que recorda, a narradora
diz: "vejo que já está tudo ali. Está tudo ali, e nada ainda começou, vejo
nos olhos, tudo já está nos olhos"(2012, p. 21) e, no livro A vida mate-
rial, Duras o confirma: "Escrevendo O amante eu tinha a sensação de
descobrir: Já estava ali antes de mim, antes de tudo..."(1989, p. 28).
Talvez seja também isso o que se conta: o sonho roubado na infância
pela infelicidade da mãe ("em minha infância, a infelicidade de minha
mãe ocupou o lugar do sonho"2012, p. 41); talvez essa tristeza que sem-
pre sentiu, em que se reconhece desde menina e a qual poderia nomear
com seu nome ("Sinto uma tristeza que eu já esperava e que vem só de
mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotos
em que sou menininha. Que hoje, ao reconhecer essa tristeza como a
que sempre senti, eu quase poderia lhe dar meu nome, a tal ponto ela se
parece comigo"[2012, p. 40]); talvez seja essa história "de ruína e morte
que era a dessa família"(2012, p. 25), cambaleante entre o amor e o ódio,
indecisa entre vivacidade e morte, feita de paradoxos. Até mesmo os mo-
mentos de prazer são assim narrados: "éramos crianças risonhas, meu
irmão mais moço e eu, ríamos até perder o fôlego, a vida"(2012, p. 54).
Mas, sobretudo, o que se conta em O amante, nessas linhas declarada-
mente autobiográficas e, no entanto, inescapavelmente atreladas a uma
dimensão ficcional, não é apenas uma história de amor ou o encontro
sexual entre uma menina branca pobre de quinze anos e seu amante
chinês milionário e muito mais velho, como poderia fazer supor, a prin-
cípio, o título. O que há naquelas linhas é, antes, a escrita de um corpo,
ou melhor, de corpos. O corpo da autora, da menina, da mulher, pre-
sentes desde sempre um no outro, e também o corpo do amante. Mas,
além desses, no corpo do texto, escrevem-se também os corpos de outros
personagens: os dois irmãos, a colega do pensionato, a mãe...

29
Isadora Bonfim Nuto

O livro não se inicia com a figura do amante, apontada no título, nem


mesmo com o espaço temporal em que se dá o encontro com ele. O
que se lê nas primeiras linhas não é a descrição da menina na balsa ou o
Morris Léon-Bollée do jovem banqueiro de Saigon; não é a Indochina
dos anos 30. Todas essas são imagens que aparecerão a seguir, logo no
início, mas que não são a primeira, como se esperaria de uma ordena-
ção cronológica. O livro começa, ao contrário, com outra imagem, com
um tempo muito posterior ao daquilo que se promete narrar, em um
país muito distinto, e distante. É o rosto devastado da escritora o que
primeiro aparece; é ele, esse rosto destruído, que introduz a história:

Um dia, eu já tinha bastante idade, no saguão de um lugar público,


um homem se aproximou de mim. Apresentou-se e disse: "Eu a co-
nheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando
jovem; venho lhe dizer que, por mim, eu a acho agora ainda mais bo-
nita do que quando jovem; gostava menos do seu rosto de moça do
que do rosto que você tem agora, devastado. (2012, p. 7)

Se essas palavras, ditas por um antigo conhecido, podem soar como uma
ofensa, elas são, na verdade, recebidas de forma oposta. A narradora
apropria-se delas como a imagem de si mesma, como a real e verdadeira
imagem de si mesma. "Tenho um rosto destruído"(2012, p. 8), diz a
narradora, agora em suas próprias palavras, "tenho um rosto lacerado
por rugas secas e profundas, a pele sulcada. Ela não decaiu como certos
rostos de traços finos; manteve os mesmos contornos, mas sua matéria
se destruiu"(2012, p. 8).
O primeiro parágrafo do livro, que diz desse homem que a aborda, apre-
senta um tempo presente, um rosto e uma imagem contemporâneos
ao da escrita do romance. O trecho seguinte, porém, já opera de outra
forma, já institui a lógica que será a de todo o livro. Aqui, a imagem
desse rosto devastado se sobrepõe a uma outra imagem, uma imagem
que ainda não foi narrada, uma imagem apresentada antes de ser mos-
trada: "Penso com frequência nessa imagem que sou a única ainda a ver
e que nunca mencionei a ninguém. Ela continua lá, no mesmo silêncio,
fascinante"(2012, p. 7). Trata-se, mas isso o leitor só saberá depois, da

30
Escrever e escrever os corpos

imagem da menina na balsa sobre o Mekong. De fato, todo O amante é


escrito em torno de uma imagem, uma fotografia nunca tirada, mas que
nem por isso existe menos. Ao escrever os textos para compor um álbum
de fotografias de sua vida organizado por seu filho, Duras decide incluir
essa imagem, essa fotografia que, na verdade, nunca foi tirada e que era,
portanto, conhecida apenas por ela, destinada a morrer apenas com sua
morte. O texto dessa "imagem central", que a autora também chama de
"imagem absoluta", viria a ser a primeira versão de O amante: "o texto
de O amante se chamou, primeiramente, A Imagem Absoluta. Ele de-
veria percorrer um álbum de fotografias de meus filmes e de mim. Essa
imagem, essa fotografia absoluta, não fotografada, entrou no livro"24
(DURAS, 1984a). No próprio livro, a importância capital dessa imagem
e do acontecimento que ela figura é evocada: "Poderia ter existido, po-
deriam ter tirado uma foto, como qualquer outra (...). Mas não tiraram.
(...) Ela só poderia ter sido tirada se fosse possível prever a importância
daquele acontecimento em minha vida, aquela travessia do rio"(2012, p.
12, grifo meu).
Sobre essa "imagem absoluta", ainda apenas evocada, antes de ser des-
crita, a narradora afirma, ainda no segundo parágrafo do livro: "entre
todas as imagens de mim mesma, é a que me agrada, nela me reconheço,
com ela me encanto"(2012, p. 7). No entanto, não é apenas isso que é
dito no texto. A sequência com que o texto é disposto e com que as ima-
gens são evocadas — primeiro a do rosto devastado, depois a da balsa,
só mais adiante referida — abre uma possibilidade de leitura em que
"penso com frequência nessa imagem"(p. 7) pode se referir tanto a uma
quanto a outra, superpondo-as e fazendo-as se equivalerem. É, assim,
simultaneamente em ambas as imagens, tanto nesse rosto devastado
quanto na imagem dessa jovem de quinze anos sobre a balsa, que essa
narradora se reconhece, se encanta.

24
"Le texte de L’amant s’est d’abord appelé L’Image absolue. Il devait courir tout au
long d’un album de photographies de mes films et de moi. Cette image, cette pho-
tographie absolue non photographiée est entrée dans le livre".

31
Isadora Bonfim Nuto

Dessa forma, todo o livro parece ser, sob o mote do encontro com o
amante, a escrita não só dessa fotografia nunca tirada, mas também a
escrita desse rosto, dessa destruição, de cada marca que nele se inscreve,
seus traços, as "profundas gretas impressas na testa"(2012, p. 8). E isso
não está oculto, não é um mistério, pois é a própria narradora quem o de-
clara: "acompanhei a evolução desse envelhecimento do meu rosto com
o interesse que teria, por exemplo, pelo desenrolar de uma leitura"(2012,
p. 7, grifo meu).
Com essa frase, Duras parece dar algo como uma, dentre tantas, chave
de leitura para seu texto. Um rosto que se excreve (assim diria Nancy
[2000], para quem o corpo se ex-creve em toda escrita) em uma escrita e
uma leitura que se desenrolam acompanhando esse rosto. Não se trata
de uma reconstrução — no sentido de uma correção ou mesmo de uma
salvação — desse rosto, mas de acompanhar sua escrita, sua excrição
(NANCY, 2000), a escrita dessa ruína, de cada ruga que compõe esse
rosto precocemente envelhecido, cada sulco desenhado como as curvas
de um rio, a escrita desse rosto que, aos quinze anos, no ato do encontro
com o chinês na balsa sobre o rio Mekong, já era premonitório desse fu-
turo rosto devastado. Assim diz a narradora: "Desde muito jovem, desde
os dezoito, quinze anos, tive aquele rosto premonitório deste outro que
depois adquiri com o álcool na meia-idade"(2012, p. 11) e acrescenta que,
"aos dezoito, já era tarde demais"(2012, p. 7), pois "muito cedo foi tarde
demais em minha vida"(Idem).
Esse não é, entretanto, o único corpo que se escreve no livro de Duras.
A mãe e os irmãos são figuras que comparecem o tempo todo no texto,
eles vêm, vão e retornam, reaparecem aqui e ali, inserem-se onde não
são esperados, atravessam momentos que parecem não lhes dizer res-
peito. E isso só pode dizer de uma presença constante dessas pessoas
na vida dessa narradora, em seu corpo, em suas memórias, a presença
obstinada dessa família querida e odiada da qual se tenta a todo custo
se desembraçar sem conseguir, ou conseguindo apenas ilusoriamente.
Essa família que foi, em vida, marcada pela distância assinala sempre sua
presença na escrita, e é por meio desta que a autora se mantém para sem-

32
Escrever e escrever os corpos

pre atrelada aos laços familiares: "Ainda estou nessa família, é nela que
vivo, à exclusão de qualquer outro lugar. É em sua aridez, sua terrível du-
reza, sua maldade"(2012, p. 65). Que sempre escreveu sobre a família, ela
mesma afirma: "Escrevi muito sobre essas pessoas da minha família, mas
enquanto ainda estavam vivas, a mãe e os irmãos, e escrevi sobre eles, so-
bre essas coisas sem chegar diretamente até elas"(2012, p. 10). Enquanto
vivas na realidade, essas pessoas compareciam na literatura de Duras en-
cobertas por personagens apenas mais ou menos ficcionais. Parece ser
apenas em O amante que pôde escrever sobre "essas coisas"chegando
finalmente até elas, tocando-as em corpo, por meio da palavra. Em O
amante da China do Norte, a personagem da menina, identificada por
"a criança", em um diálogo com a mãe, já aponta a família como o centro
de sua escrita: -– Sobre o que escreverá quando começar um livro?/ A
criança grita:/ — Sobre Paulo [o irmão mais novo]. Sobre você. Sobre Pi-
erre [o irmão mais velho] também, mas aí será para fazê-lo morrer"(2015,
p. 16-17).
Se, segundo Nancy (2000), para quem a literatura é composta de cor-
pos (memória, fragmentos, autobiografia, etc.), o tocar é o que ocorre a
todo momento na literatura, Helène Cixous, em conversa com Michel
Foucault Sobre Marguerite Duras, aponta essa questão como algo es-
sencial à obra durassiana: "na pobreza da língua, eles também se tocam.
Quem? Eles? Esses seres humanos, esses errantes que, através de uma
terra muito vasta, se tocam. Acariciam-se, roçam-se. É desconcertante.
O que aprecio nela é que essa relação de tato existe o tempo todo"(2009,
p. 363). O tato parece ocorrer o tempo todo — não apenas nas cenas de
relações amorosas —, fazendo com que a escrita de Duras tenha uma
certa dimensão erótica ainda quando sua temática não o seja. Sobre isso,
também aponta Cixous: "tudo o que Marguerite Duras escreve, e que
é o despojamento, levado a tal ponto que certamente é também perda,
é ao mesmo tempo fantasticamente erótico, porque Marguerite Duras
é alguém que está fascinado"(2009, p. 359). É esse fascínio, então, da
escritora pelo texto, pela escrita em geral, que confere dimensão erótica
à obra — "ou a morte, ou o livro"(DURAS, 1994, p. 18) —, e Duras é

33
Isadora Bonfim Nuto

uma escritora que constantemente afirma sua escrita como uma forma
de vida: "Nunca fiz um livro que não fosse minha razão de ser na hora
em que está sendo escrito"(Idem).
Com efeito, são frequentes as passagens em que uma importância cen-
tral é concedida ao corpo. As descrições do corpo parecem imersas em
tal deleite e cuidado que beiram a sensação, e o que parece se ler e es-
crever ali não é senão o próprio tocar, a própria sensação do toque. As
cenas em que se acaricia o corpo se repetem ao longo do romance, assim
como em outras obras da autora, e as menções à pele são essenciais: "a
pele de chuva", "a cor dourada", as mãos. Em O amante da China do
Norte, espécie de reescrita de O amante para o cinema, em uma con-
versa com a colega do pensionato, que lhe pergunta se o homem chinês
é bonito, a menina responde que sim, mas evoca, não a beleza do rosto,
mas justamente os detalhes do corpo: "Hélène Lagonelle pergunta se
é bonito. A criança hesita. Diz que é. (...) Sim. A suavidade da pele, a
cor dourada, as mãos, tudo. Diz que é todo bonito"(2015, p. 63). No
mesmo livro, na introdução, Duras fala sobre os títulos que pensou em
dar ao novo romance e diz que o escreveu "em meio à louca felicidade
de escrever"(2015, p. 7), e que, nesse tempo de escrita, que durou um
ano, foi como se revivesse aquele ano de amor com o chinês. Mesmo
sabendo de sua morte anos antes, Duras a menciona como que vista
desde um tempo anterior, em que essa ideia nem mesmo parecia pos-
sível, e, aqui, novamente, evoca o corpo: não é a morte do homem que
está em questão, mas a de seu corpo, de cada uma de suas partes, daquele
corpo de prazer: "Eu não imaginara absolutamente que a morte do chi-
nês pudesse acontecer, a morte de seu corpo, da sua pele, do seu sexo,
das suas mãos"(2015, p. 7).
Em O amante, no entanto, em relação a sua nova versão (O amante
da China do Norte), as imagens do corpo parecem ser mais frequen-
tes. A narradora descreve a "suavidade suntuosa"da pele, do sexo, da cor
dourada do amante ou o corpo de Hélène Lagonelle, "o outro amor da
criança, jamais esquecido"(2015, p. 35), que a deixa extenuada de desejo,
um corpo sublime, que é "o que há de mais belo entre todas as coisas

34
Escrever e escrever os corpos

criadas por Deus"(2012, p 62). "Não existe nada de mais extraordinário",


diz ela sobre a colega, "do que esse arredondamento visível dos seios sa-
lientes, essa exterioridade ao alcance das mãos"(2012, p. 35). Esse corpo
encantador parece contrastar com o corpo do amante, que é "magro,
sem força, sem músculos, podia ser de um doente, de um convalescente,
ele é imberbe, sem virilidade a não ser a do sexo, é muito frágil"(2012, p.
35), mas cujas mãos são "experientes, maravilhosas, perfeitas"(2012, p. 39).
No entanto, esse corpo que não parece corresponder a um padrão de
beleza, não deixa de provocar desejo. As relações com o amante chinês,
embora perpassadas pelo dinheiro, não são uma contrapartida penosa,
uma troca apenas monetária, mas, pelo contrário, são repletas de prazer:
o gozo é uma constante e flui vertiginosa e longamente, como um mar
"sem forma, simplesmente incomparável"(2012, p. 35), "a imensidão que
se recolhe, se afasta, volta"(2012, p. 39). A jovem, assim, usufrui ela tam-
bém de seu próprio corpo, e ela mesma pede para ser tomada mais vezes,
repetidamente, em um gozo que é, nas suas palavras, "de morrer": "Eu
tinha lhe pedido que fizesse mais uma vez, e mais outra. Que me fizesse
aquilo. Ele tinha feito. Fizera-o na untuosidade do sangue. E tinha sido
mesmo de morrer. Foi de morrer"(2012, p. 39).
A água também perpassa esses momentos de amor: a água da chuva tor-
rencial de moção que cai sobre a garçonnière e que marca a lembrança da
Indochina, sempre abordada sob o prisma da chuva, do calor insuportá-
vel, da selva, dos animais ("Meu país natal é uma pátria de águas. Águas
dos lagos, dos rios que desciam da montanha, dos arrozais, a água terrosa
dos rios da planície dentro dos quais nos abrigávamos durante as tem-
pestades. A chuva doía de tão forte"[1989, p. 61]); as águas selvagens do
Mekong, em que parece haver "uma tempestade que sopra no interior
das águas do rio"(2012, p. 13), correnteza arrasadora, que arrasta tudo
consigo, o rio "carrega tudo o que vem a ele"(2012, p. 22), avassalador
como esse amor, mas também surdo, como "o sangue no corpo"(Idem);
e então há o oceano onde vão desaguar essas águas selvagens, o maior de
todos, o Pacífico, esse imenso intervalo separando o Vietnã da França,
que é também a promessa da separação dos amantes. E depois há outras

35
Isadora Bonfim Nuto

águas, há essas águas do corpo, as lágrimas dos amantes que choram e fa-
zem amor, que fazem amor chorando, desesperados de desejo, de medo,
de dor; e então o gozo, esse mar que se espalha e se retrai. De morrer.
O mar e o amor: "o sangue no corpo", "a untuosidade do sangue". De
morrer.
É também exatamente após uma cena de amor, a primeira, a da "de-
floração da jovem branca", que a imagem absoluta retorna e aparece
como estando também presente naquele momento, como tendo sem-
pre já estado ali; aquela imagem participando de todos os momentos
por vir, todos os tempos participando de todos os outros tempos seguin-
tes, superpondo-se, coexistindo; aquela "imagem central", total, estando
presente em todas as outras imagens futuras. É isto: a imagem da balsa,
sem o prever, já estava presente naquele momento futuro:

E chorando ele faz. Primeiro vem a dor. E então, depois que essa dor
é acolhida, ela é transformada, lentamente arrancada, arrastada para o
gozo, abraçada a esse gozo. O mar, sem forma, simplesmente incom-
parável
Já na balsa, de antemão, a imagem teria participado daquele instante.
(2012, p. 35, grifo meu).

Mas, de repente, nessa mesma sequência, esses corpos que se encontram,


que se tocam em pele e carne são atravessados por um outro corpo,
pelo espectro do corpo da mãe. A mãe, que, diferente da menina, não
conheceu o gozo:

A imagem da mulher com as meias cerzidas atravessou o quarto. Fi-


nalmente aparece como criança. Os filhos já sabiam. A filha ainda não.
Eles nunca falarão juntos sobre a mãe, sobre esse conhecimento que
têm e que os separa dela, esse conhecimento decisivo, derradeiro, o da
infância da mãe.
A mão não conheceu o gozo (2012, p. 36).

Aqui, uma inversão de papéis: a menina se torna mulher e a mãe é con-


vertida em criança. À imagem infantilizada de suas vestimentas, soma-se
o desconhecimento não do sexo, mas do prazer. Em diversos momentos,

36
Escrever e escrever os corpos

a imagem da mãe irrompe de forma inesperada, como se esse corpo tam-


bém exigisse ser escrito; esse corpo que não encontrou o gozo no corpo
a corpo real sobrevém justamente quando os corpos estão em jogo, exi-
gindo um lugar na escrita. O pensamento da mãe se segue (persegue?)
aos momentos de amor carnal. É também entre elementos corpóreos,
o beijo, o corpo e o choro, que ela é evocada. "Os beijos no corpo fa-
zem chorar"(2012, p. 39), diz a narradora, e chora em seguida, chora ao
pensar que um dia irá se desgarrar da mãe, que um dia não sentirá amor
nem mesmo por ela. Ela chora lembrando a infância roubada pela mãe,
por essa mulher que aparece, ao mesmo tempo odiada e amada: "a por-
caria, minha mãe, meu amor (...) Minha mãe meu amor seu incrível ar
ridículo (...) me envergonhava na rua na frente do liceu (...) dá vontade
de prender, de bater, de matar"(p. 23).
Todo o livro é, também, para escrever essa mãe, a desgraça que foi sua
vida, e para perdoá-la, essa mãe que havia amado tão mais o primogênito
que aos outros, mas também para lhe fazer uma declaração de amor, para
salvá-la, para redimi-la. Em O amante da China do Norte, conversando
com o amante certa noite, ela lhe conta a história da mãe e diz que não
se importa se ele não estiver escutando o relato, o que importa para
ela é contar, contar para não esquecer, contar para poder futuramente
escrevê-la: "Não importa se não escutar. Pode até dormir. Contar essa
história representa para mim escrevê-la mais tarde. Não posso deixar de
fazê-lo. Uma vez escreverei assim: a vida de minha mãe"(2015, p. 67). De
fato, a história da mãe é figurada em Barragem contra o Pacífico, mas,
como dito, até O amante, a autora acredita apenas ter escrito sobre essas
pessoas, essas coisas, "sem chegar diretamente até elas".
Essa relação simultânea de amor e ódio não lhe parece estranha. Para
Duras (1984b), toda família tem uma dimensão selvagem, ou melhor,
é na verdade essa selvageria que dá a dimensão da família: se tudo está
muito tranquilo e educado é porque alguma coisa foi contornada, do-
mesticada, alguma coisa da lei natural da espécie. Em O amante essa
selvageria essencial da família é figurada sem pudor, e é também na obra
que sua dimensão odiosa, até mesmo a do irmão mais velho, é perdo-

37
Isadora Bonfim Nuto

ada: "Eu inocentei todo mundo. Acredito que seja isto O amante: todo
mundo é inocentado"(DURAS, 1984b, transcrito). Ainda sobre a mãe,
lê-se em O amante: "Eles estão mortos agora, a mãe e os dois irmãos. É
tarde demais mesmo para as lembranças (...) É por isso que escrevo sobre
ela agora de modo tão fácil, tão longo, tão estirado, ela se tornou escrita
corrente"(2012, p. 27). Que o livro seja também esse gesto de escrita
da mãe parece ficar claro nessa passagem. A mãe convertida em escrita,
seu corpo convertido em corpo textual, escrita corrente, estirada, per-
correndo o livro do início ao fim, misturando-se aos outros corpos, às
outras águas. Também em outro momento de amor na garçonnière do
amante chinês, a mãe invade a local: após o gozo de morrer, comparado
ao mar, é outra água que inunda a cena, também a água do mar, mas
agora terrível, destrutiva, e indissociável da história da mãe: a água das
enchentes que inundam os arrozais da primeira casa, que revelam serem
aquelas terras, em que a mãe gastara todas as economias, eternamente in-
férteis, que completam a desventura de sua vida. Leyla Perrone-Moisés,
no posfácio ao livro, comenta a associação, via semelhança gráfica e equi-
valência sonora, entra as palavras "mar"e "mãe"em francês, ambas, inclu-
sive, femininas (respectivamente "la mer"e "la mère"), e ressalta a impor-
tância da água no conjunto da obra durassiana: "origem da vida, poder
de destruição"(2012, p. 113).
Mas não é apenas o corpo da mãe que sobrevém nesses momentos, que
invade e atravessa os momentos de amor com o chinês. Também os
irmãos se escrevem no texto, inscrevendo-se no meio das relações:

Eu começava a reconhecer a suavidade indizível de sua pele, de seu


sexo, para além dele. A sombra de outro homem também devia atra-
vessar o quarto, a de um jovem assassino, mas eu ainda não sabia, nada
disso ainda aparecia a meus olhos. A de um jovem caçador também
devia atravessar o quarto, mas quanto a esta, sim, eu sabia, às vezes ele
estava presente no gozo (2012, p. 85, grifo meu).

Certa dimensão incestuosa parece emergir por meio do texto: o irmão


presente no gozo, no amante, em seu corpo, atravessando esse quarto,
que é o lugar do sexo. Celina Moreira faz essa leitura associando o

38
Escrever e escrever os corpos

amante a um duplo do irmão, relação já presente em outras obras: "O


chinês, pelo seu corpo frágil, belo, elegante, e pelo medo que havia em
seus olhos, é um duplo do irmão mais moço de M. Duras, o Joseph de
Le barrage contre le Pacifique, aquele que, diz ela, morreu assassinado
simbolicamente pelo irmão mais velho, aquele cuja paixão descobriria,
ao escrever Agatha (1981), ode ao amor interdito entre irmão e irmã"(s/d,
p. 5). Essa associação não é dissimulada nas obras, ao contrário, em mui-
tos momentos o irmão mais novo é diretamente associado ao amante:
a suavidade da pele, o carinho, o amor obstinado que a menina sente
por ambos, as conversas.... "Somos três [a menina, o irmãozinho e o
amante] com pele de chuva"(2015, p. 100). Em A vida material, que
não é publicado como um livro de ficção, Duras reforça essa identidade:
"A pele [do amante]. A pele do irmãozinho. É a mesma coisa. / A mão.
Igual"(1989, p. 40). Já em O amante da China do Norte, a criança diz a
Hélène Lagonelle o temor que lhe inspira a ideia de amar o amante mais
do que ao irmão: -– Você tem medo do chinês? / — Mais ou menos...
um pouco... talvez de amá-lo. Tenho medo... Quero amar Paulo até a
minha morte"(2015, p. 40). Na mesma obra, chega a ser narrada uma re-
lação sexual entre os dois, que não aparece em O amante e que é revelada
também como um gesto para partilhar o prazer com o irmão adorado,
compartilhar com ele esse conhecimento que ela havia descoberto, levá-
lo a conhecer essa felicidade, esse gozo "de morrer". É justamente nesse
momento que ela se dá conta de que o amor pelo chinês e o amor pelo
irmão não foram senão um único amor:

Foi aquela a única vez, em toda a vida de ambos, que se entregaram


um ao outro.

Fora um prazer que o irmãozinho até então não havia conhecido. As


lágrimas rolaram de seus olhos fechados. E haviam chorado juntos,
sem uma palavra, como sempre acontecera.\
Naquela tarde então, naquela confusão da felicidade, naquele sorriso
maroto e doce de seu irmão, a criança havia descoberto que vivera um
único amor entre o chinês de Sadec e o pequeno irmão da eternidade
(2015, p. 141, grifo meu).

39
Isadora Bonfim Nuto

O corpo do irmão mais velho também retorna nessa relação proibida:


a jovem dança com o irmão mais novo, dança com o amante, mas não
dança nunca com o irmão mais velho, sendo justamente a possibilidade
de aproximação desses dois corpos, desses dois corpos interditos, de
irmão e irmã, que se coloca como perturbadora e perigosa: "sempre
impedida pela percepção perturbadora de um perigo, o dessa atração
maléfica que ele exerce sobre todos nós, o da aproximação de nossos
corpos"(2012, p. 48). Sobre isso, Duras confirma em entrevista: "Eu não
quero dançar com ele, porque não quero aproximar-me de seu corpo. Essa
ideia me causa horror, porque me perturba. Foi o meu irmão quem me
fez crer na maldade nativa do homem25 "(DURAS, 1984a, grifo meu).
Até mesmo com esse irmão essa relação proibida é entrevista, questio-
nada se havia alguma intenção sexual entre eles, ela responde que, de sua
parte, ela crera por muito tempo que não, mas que, já que a detectou
no irmão, isso significa que devia existir nela também (Duras, 1984a).
Essa dimensão incestuosa parece, assim, entrelaçar toda a família. Em-
bora a mãe não apareça diretamente como objeto de desejo, é em uma
relação de filiação que se transforma o contato entre os amantes, com a
menina se tornando, para esse homem, não mais a mulher, não a amante
ou a esposa, mas a filha: "me tornei sua filha. Ele também tinha se tor-
nado outra coisa para mim [...], era com a filha que ele fazia amor todas
as noites"(2012, p. 85).
A relação entre os dois amantes é, assim, apenas um termo em uma
rede de entrelaçamentos de corpos suscitada por eles. O próprio corpo
de Hélène Lagonelle não está completamente distante dos momentos
de prazer do casal, uma vez que, ao admirar seu corpo, é também na
relação com o chinês que a narradora pensa. Ela deseja levar Hélène
junto, para ser tomada pelo amante, para fazer com ela o que faz consigo,
para, por meio desse terceiro corpo, transversalmente, alcançar um gozo
definitivo: "que ela se dê onde eu me dou. Seria pelo desvio do corpo de

25
"Je ne veux pas danser avec lui parce que je ne veux pas me rapprocher de son corps.
Ça me fait horreur parce que ça me trouble. C’est mon frère qui m’a fait croire à la
malfaisance native de l’homme"(DURAS, 1984a).

40
Escrever e escrever os corpos

Hélène Lagonelle, pela transversal de seu corpo, que viria o gozo que
ele me dá, agora definitivo. De morrer"(2012, p. 64).
São vários, para além da relação sexual, os signos do corpo ao longo do
livro. É o maxilar cerrado do irmão durante todo o tempo que tem de
encontrar o chinês; é o corpo atravessado pela música, que põe o amor
em questão, quando, no navio em partida para a França, a jovem ouve
tocar uma melodia de Chopin e chora pensando no amante de Cholen,
porque de repente, ao sentir a emoção daquela música em seu corpo,
"não tinha certeza se não o havia amado com um amor do qual não se
apercebera"(2012, p. 96) e que agora "reencontrava nesse instante em
que a música se lançava ao mar"(2012, p. 96). Sobre isso, Duras relembra
em entrevista (1984b, transcrito, grifo meu) que foi justamente da sua
"separação do corpo do jovem homem morto"que lhe veio "essa evidên-
cia, eu o [o amante] havia, sem dúvidas, amado26 "; é o desejo de matar
um corpo com "as próprias mãos", que é suscitado pelo lindo corpo da
colega; é o ritual de se lavar antes do amor e de se deixar lavar pelas mãos
do amante toda noite. É também o corpo branco interdito — e o inter-
dito, aqui, é mais o corpo branco em relação ao corpo "amarelo", a raça
superior branca em relação ao chinês27 , do que propriamente a relação
intergeracional do homem com a criança, do que a prostituição ou o in-
teresse pelo dinheiro. Trata-se de um interdito diretamente relacionado
à pele, ao corpo, ao toque, ao contato, pois é isto que ocorre: um corpo
branco não poderia ser sequer tocado por uma cor inferior. No primeiro
encontro com a jovem, ainda na balsa, o chinês treme, está nervoso, e
essa ansiedade se dá não pela menina ou pela investida, mas por sua cor,
pela necessidade se superar essa distância imensa que os separa, maior
até que a diferença de idade, maior que o abismo social: "Há essa dife-
26
"C’est la séparation d’avec le corps du jeunne homme mort qui m’a rendu à cette
evidence-là, je l’ai sans doute aimée"(1984b, transcrito).
27
Duras atribui muita importância às palavras em seus textos, e o "branco", assim
como "amante", "deserto", "China", é uma dessas palavras que escandem todo o li-
vro: "As palavras ’branco’, ’branca’ também, o branco das casas de estação nos cam-
pos, o branco dos muros na sombra do rio, das casas dos Brancos, e ainda aquele,
reluzente, da pele da criança, da jovem menina branca"(DURAS, 1984a).

41
Isadora Bonfim Nuto

rença de raça, ele não é branco, ele deve superá-la, por isso treme"(2012,
p. 30). Essa é também uma das razões por que "algo além"do que vinha
sendo feito nos demais livros só pode ocorrer em O amante: a família
não poderia lê-lo, era preciso esperar que estivessem todos mortos, so-
bretudo a mãe, que, durante toda a vida, nunca soube do contato sexual
entre os amantes, para quem esse contato foi sempre piamente negado,
para quem a menina garantia que não houve contato entres os sexos,
pois ela não poderia suportar "essa desonra", que poderia ser pior até
mesmo que a ruína das barragens, pois atingiria seu dom mais precioso:
Aqui [em O amante] é diferente. Era preciso mentir. Meu amante
era chinês. Dizer isso, mesmo em um livro, não seria possível en-
quanto minha mãe estivesse viva. Um chinês — amante de sua filha
—, mesmo notavelmente rico, era equivalente a uma degradação tal-
vez ainda mais grave que aquela da ruína das barragens, pois ela atingia
aquilo que ela tomava por um dom dos céus, sua raça, no caso, branca
(Duras, 1984a)28 .

É precisamente no contato, ou no toque, que o corpo aparece também


sintetizado. É também ele o grande interdito. O corpo da menina, assim
como o da dama de Vinhlong, a quem ela tanto admira, depreciados
justamente por terem sido tocados, descreditados por se terem dado ao
contato, relegados à infâmia: "ambas votadas ao descrédito pela natureza
do corpo que têm, acariciado por amantes, beijado por suas bocas, en-
tregues à infâmia de um gozo de morrer"(2012, p. 77, grifo meu). Na
escola, as mães estão preocupadas em preservar a honra das filhas, as
outras meninas recebem ordem de não mais falar com a menina: está
condenada ao isolamento pela transgressão do corpo, mas nem por isso
se importa. Mais do que a desonra ou a infâmia, é a ideia de um corpo
nunca entregue, nunca dado ao contato e ao prazer, de um corpo vo-
tado à solidão que causa horror: no texto "A jibóia"(DURAS, 1987),
28
"Ici, c’est différent. Il fallait mentir. Mon amant était chinois. Le dire, même dans
un livre, ce n’était pas possible du vivant de ma mère. Un chinois — amant de son
enfant — même remarquablement riche, c’était l’équivalent d’une déchéance peut-
être encore plus grave que celle de la ruine des barrages parce qu’elle atteignait ce
qu’elle vivait comme étant un don du ciel, as race, ici, blanche".

42
Escrever e escrever os corpos

a narradora, que também representa Duras, diante do corpo idoso e


ainda virgem da uma das supervisoras do pensionato, é tomada de asco
ao sentir aquele cheiro que emana da mulher e que ela atribui a essa
castidade guardada ao longo das décadas, estragando-se. Diante da ideia
de não conseguir casar-se e acabar como aquela mulher, a menina teme
por seu corpo e a única ideia que lhe dá alívio é esta: resta ainda o bor-
del. É preferível prostituir-se a viver condenada a um corpo proibido.
De fato, esse contato da relação sexual é, para a autora, não apenas uma
relação com o outro, mas também uma relação consigo mesmo, é um
momento de acesso a uma subjetividade completa, muitas vezes desco-
nhecida, e a posse se dá tanto entre um e o outro quanto entre um e si
mesmo: "Possuímos nosso amante como ele nos possui. Possuímo-nos.
O local dessa posse é o local da absoluta subjetividade"(DURAS, 1989,
p. 38, grifo meu).
Assim, é também essa transgressão do corpo e do tocar que se escreve
na obra de Duras. E, então, um primado do toque em relação à visão
se coloca, uma importância maior dedicada ao corpo do que ao olhar:
"ela não o olha no rosto. Não o olha. Ela o toca. (...) Ele geme, chora.
Sente um amor abominável"(2012, p. 35). Essa preferência se coloca em
vários momentos. Em O amante da China do Norte, o tocar se apresenta
como uma forma de ver: "A criança não olha para o relógio que está
perto da mão. Nem para o anel. Está maravilhada com a mão. Toca-a
’para a ver’"(2015, p. 28), "Ele a olha, com os olhos fechados ainda a olha.
Respira seu rosto. Respira a criança, com os olhos fechados respira sua
respiração, o ar quente que sai dela"(2012, p. 84). Os olhos fechados dão
lugar ao toque, capaz de encontrar não apenas uma pele, mas também
um cheiro, uma cor, um medo, um crime: "olhos fechados, ela tocava
aquela suavidade, tocava a cor dourada, a voz, o coração que tinha medo,
todo o corpo mantido sobre o seu, pronto para o crime da ignorância
dela tornada sua criança"(2015, p. 53). Com esse toque, também todas as
sensações despertam, fechados os olhos, é toda a dimensão tátil do corpo
que se aguça: "na escuridão dos olhos fechados ela encontra o odor da
seda, da pele, do chá, do ópio"(2015, p. 153). Após a primeira noite juntos,

43
Isadora Bonfim Nuto

na garçonnière, é justamente da sensação, do contato, mais do que das


imagens, que o chinês diz que a jovem se lembrará futuramente e para
sempre, é uma memória do corpo, não da mente, que se evoca, uma
memória afetiva, tátil, não intelectual. Ele lhe diz que ela irá lembrar "a
vida toda dessa tarde, mesmo quando tiver esquecido até seu rosto, seu
nome"(2012, p. 39). E, de fato, se lembra. A própria autora o confirma
em A vida material: "Lembro-me da presença das mãos sobre o corpo,
do frescor da água das jarras. Que faz calor, um calor inimaginável agora
completamente. Eu sou aquela que se deixa lavar (...)"(1989, p. 39-40).
Na entrevista ao programa Apostrophes, a autora diz que se lembra do
corpo do amante mais do que de seu próprio corpo, lembra-se do corpo
dele mais do que de seu rosto e não deixa de ressaltar o caráter corpóreo
dessa lembrança, algo de "inesgotável"que permanece dessa relação, uma
emoção até "mesmo física, sim, mesmo física"(1984b, transcrito).
Essa primazia do tocar no conjunto da obra durassiana, Foucault, em
conversa com Helène Cixous, a ressalta, afirmando que "ela conseguiu
definir uma espécie de plano-sequência bastante surpreendente entre
o visível e o tátil"(2009, p. 364); para eles, há na obra de Duras essa
interrupção do olhar pelo tocar, o que se dá por uma espécie de cegueira,
positiva, de Duras, apontada por Cixous, e é devido a essa cegueira que
o tocar pode se impor como imprescindível, pois o toque é a visão do
cego:

Ela está cega, quase no sentido técnico do termo, quer dizer que o
tocar se inscreve verdadeiramente em uma espécie de visibilidade pos-
sível, ou então suas possibilidades de olhar são o tocar. E um cego,
não quero dizer que ele substitua o olhar pelo tocar, ele vê com seu
toque, e o que ele toca produz o visível. E eu me pergunto se não é
essa profunda cegueira que trabalha no que ela faz (2009, p. 364).

Essa transgressão do corpo e do tocar é também a transgressão da escrita


sobre a página em branco, do texto fragmentado sobre o texto linear.
Nas linhas de O amante, dois rostos opostos se escrevem simultanea-
mente. Esse rosto jovem, esse rosto do gozo, que já conhecia o gozo
antes mesmo de experimentá-lo. Esse rosto também se escreve a cada

44
Escrever e escrever os corpos

encontro com o amante, a cada memória desse ano e meio de encon-


tros proibidos, mas ele é já a preparação para o rosto futuro, ele, um
rosto "visionário, extenuado, esses olhos pisados antes do tempo, antes
da experiência" (2012, p. 12). E é também nesses encontros que se dá a
passagem de um rosto a outro, desse rosto do gozo que, "aos dezoito já
era tarde demais", para esse rosto devastado futuro; é exatamente após
um dos encontros com o amante que a narradora diz ter percebido essa
mudança: "Envelheci. Percebo de repente"(2012, p. 42). Ela se olha no
espelho e percebe uma mudança, uma mudança irreversível, uma marca
para a eternidade; o homem diz que ela está cansada, mas ela diz que
não, que não se trata disso, que envelheceu, "não compreende o que
aconteceu. Compreenderá anos mais tarde: tem já o rosto destruído de
toda a sua vida"(2015, p. 58, grifo meu). Já na balsa atravessando o rio, no
primeiro momento em que os dois se viram, teria estado presente esse
instante de envelhecimento após o prazer, um instante completamente
marcado por seu porvir. Naquele mesmo instante, os dois rostos, o pre-
sente e o futuro, o do gozo e o devastado, se encontram, se sobrepõem,
se misturam.
Então, se é esse rosto destruído o que se excreve, também o texto precisa
ser assim, como esse rosto. Para Roland Barthes, o "texto tem uma forma
humana, é uma figura, um anagrama do corpo"(2015, p. 24). Mas de que
corpo?: de nosso corpo erótico. Segundo o autor, nós temos muitos cor-
pos; temos um corpo anatômico ou fisiológico, um corpo cultural; mas
"nós temos também um corpo de fruição feito unicamente de relações
eróticas"(Idem). Esse corpo opera de forma própria, bem diferente, e
é precisamente com ele, não com os outros, que o texto se identifica,
"ele [o texto] não é senão a lista aberta dos fogos da linguagem"(Idem).
Assim, quando Barthes fala em um "prazer do texto", é a esse corpo que
ele remete, um corpo que não se reduz às necessidades fisiológicas, assim
como o texto não se reduz a suas relações gramaticais. A "significância",
como diria Barthes, que não se confunde com uma simples significação,
ou seja, envio imediato e inequívoco a um referente, é "o sentido na me-

45
Isadora Bonfim Nuto

dida que é produzido sensualmente"(Idem, p.72, grifo do autor). Assim,


esse caráter sensual, ou erótico, é essencial ao texto.
Como anagrama do corpo, e notadamente do corpo erótico, é o livro
de Duras. Para um rosto em ruínas, um texto fragmentado; para um
rosto de vincos inscritos, um texto dobrado sobre si mesmo. Embora
de leitura fluida, a obra de Duras não segue a tradição de uma narrativa
linear, obedecendo a regras de temporalidade cronológica e foco narra-
tivo constante. No texto, além dos corpos, misturam-se os tempos, o
tempo passado e o tempo presente, o tempo da vivência e o tempo da
escrita, alternam-se lugares, episódios, épocas, entrelaçando-se como pe-
quenos fragmentos compondo um mosaico, ainda que o fio condutor
pareça ser esses encontros vividos durante um ano e meio no Vietnã,
para o qual a narrativa sempre retorna. "Se as sucessivas histórias narra-
das por ela não têm centro nem linha, possuem, entretanto, uma origem
única"(PERRONE-MOISÉS, 2012, p. 106). Alternam-se a menina, a jo-
vem e a mulher, alternam-se os dois rostos, mudança que vem marcada
na narração também pela alternância entre os pronomes, em que a nar-
radora ora diz ’eu’, ora diz ’ela’, assim como o discurso direto entremeia
a narração, sem vir separado na forma do diálogo. O livro não se divide
em capítulos, mas em pequenos blocos separados uns dos outros por
um espaço em branco, uma linha vazia, como que marcando esses sal-
tos que se dão na narrativa: a escrita não poderia deixar de acompanhar
esses saltos, essas ruínas. Leila Perrone-Moisés a descreve como uma "es-
crita da alta modernidade poética, experimental, musical, fragmentária,
mais alusiva do que representativa"(p. 104). O texto é um organismo
humano, fragmentado, como todo corpo.
De fato, Duras afirma ter tido certa "facilidade"para escrever O amante,
escrito ao correr da pena, de forma corrente. A autora explica como o
escreveu:

Eu o escrevi medida a medida, tempo a tempo, sem nunca tentar en-


contrar uma correspondência mais ou menos profunda entre eles, os
tempos. Eu deixei essa correspondência operar independente de mim.
Eu a deixei se fazer. A provação de escrever é encontrar a cada dia o

46
Escrever e escrever os corpos

livro que se está escrevendo e novamente se conciliar com ele, colocar-


se à sua disposição. Conciliar-se com ele, o livro29 (DURAS, 1984a).

E em seguida explica o que quer dizer por "escrita corrente", trata-se


dessa passagem de um assunto a outro que se dá de forma fluida, au-
tomática, sem que nem mesmo se perceba: "A escrita corrente é isso,
aquela que não mostra, que corre sobre a crista das palavras, aquela que
não insiste, que mal tem tempo de existir. Que nunca "corta"o leitor,
não toma seu lugar. Sem versão proposta. Sem explicação30 "(DURAS,
1984a). Tudo gira em torno das palavras, são elas que primeiro se ofere-
cem, ou melhor, se impõem, é delas que é preciso se ocupar; só depois
disso vem a frase, que se amarra às palavras, se acomoda como puder
entre elas, ao redor delas. A autora chega a dizer que, nessa escrita cor-
rente como a do livro, ela não tem nenhuma preocupação com o estilo:
"Digo as coisas como elas chegam para mim, como elas me atacam, se
preferir, como elas me cegam"(DURAS, 1984b, transcrito, grifo meu).
O que resulta disso é uma espécie de música, uma composição musical,
que é o que ocorre em todo livro que vise a tratar também da própria
escrita: "Não há composição senão musical. Em todos os casos, é esse
ajustamento ao livro que é de ordem musical. Se não se faz isso, pode-
se sempre escrever os outros livros, aqueles cujo objeto não é a escrita.
Mas são coisas outras que não livros (...). Mas não é a escrita, a liber-
dade31 "(DURAS, 1984a). Sobre O amante, esse livro que não poderia

29
"Je l’ai écrit mesure par mesure, temps par temps, sans jamais essayer de trouver une
correspondance plus ou moins profonde entre eux, les temps. J’ai laissé opérer cette
correspondance à mon insu. Je l’ai laissée se faire. L’épreuve d’écrire, c’est de rejoin-
dre chaque jour le livre qui est em train de se faire et de s’accorder une nouvelle fois
à lui, de se mettre à as disposition. S’accorder à lui, au livre".
30
"L’écriture courante, c’est ça, celle qui ne montre pas, qui court sur la crête des mots,
celle qui n’insiste pas, qui a à peine le temps d’exister. Qui jamais ne «coupe» le
lecteur, ne prend sa place. Pas de version proposée. Pas d’explication".
31
"Il n’y a de composition que musicale. Dans tous les cas, c’est ce rajustement au livre
qui est d’ordre musical. Si on ne fait pas cela, on peut toujours faire les autres livres,
ceux dont le sujet n’est pas l’écriture. Mais c’est des choses autres que des livres (...).
Mais ce n’est pas l’écriture, la liberte".

47
Isadora Bonfim Nuto

deixar de ser musical, a autora confirma, é um livro sobre o ato de escre-


ver (DURAS apud LEBELLEY, p. 273).
É esse estilo de escrita de Duras, que caracteriza a obra, que justifica
que a autora tenha detestado a adaptação de O amante feita por Jean-
Jacques Annaud para o cinema, o que motivou, de sua parte, a escrita
de O amante da China do Norte, feito com a intenção de ser um ro-
teiro para o cinema e a fim de explicitar como deveria ser feita a história
caso fosse transformada em filme. A autora achou o filme de Annaud
muito linear, muito ilustrativo e muito apegado a certas conformidades
(por exemplo, os enormes gastos para filmar no Vietnã e para arranjar
um automóvel original igual ao descrito). No que se refere à "imagem
absoluta", essa que dá vazão ao livro, o filme também parece desagra-
dar. Essa fotografia nunca tirada e que só se desenha completamente
ao longo de todo o livro, aparece completa no filme logo de início, o
que reduz o processo de escrita da imagem ao longo das páginas à ins-
tantaneidade da representação. "Como representar materialmente um
’absoluto’? "(2012, p. 110), pergunta Leyla Perrone, traduzindo a pro-
blemática da questão. Assim, ao final de O amante da China do Norte,
Duras propõe uma série de imagens que "poderiam servir à pontuação
de um filme tirado deste livro"(2015, p. 165) e ressalta justamente que
elas não deveriam servir para "ilustrar"a história: "De forma alguma essas
imagens — chamadas de planos de corte — deveriam ’relatar’ a narra-
tiva ou prolongá-la ou ilustrá-la. Elas seriam distribuídas no filme de
acordo com o diretor e não decidiriam nada na história. As imagens
propostas poderiam ser retomadas a qualquer momento"(2015, p. 165).
Essa cronologia incerta não se restringe ao romance, mas se estende à
vida enquanto tal. Nas páginas de O amante, Duras escreve: "A história
da minha vida não existe. Ela não existe. Nunca há um centro. Nem
caminho, nem linha"(2012, p. 10), mas é em uma entrevista que ela adi-
ciona a essa ideia algo ainda mais interessante: não apenas a história de
sua vida não existe, mas a de qualquer uma, de quem quer que seja, o
que existe, na verdade, é um romance das vidas:

48
Escrever e escrever os corpos

Acreditamos que a vida se desenrola como uma estrada entre duas


bordas, começo e fim. Como um livro que fizéssemos dela. Que a
vida seja a cronologia. Isso não é verdade. No momento em que vi-
vemos um acontecimento, nós o ignoramos. É pela memória, mais
tarde, que acreditamos saber o que aconteceu. (...) A história de sua
vida, da minha vida, elas não existem, ou então trata-se de lexicologia.
O romance de minha vida, de nossas vidas, sim, mas não a história.
(DURAS, 1984a, p. 12).

"Minha história é pulverizada a cada dia, a cada segundo de cada dia,


pelo presente da vida, e não tenho a menor possibilidade de perceber cla-
ramente o que assim denominamos: nossa vida"(DURAS, 1989, p.78).
Como não podemos nunca perceber claramente isso que é "nossa vida",
é só o romance que pode dar conta dela; é ele quem a escreve, ele que
dita a vida, e não ela que o dita. O romance é, assim, mais a vida do que
a própria vida. Essa cronologia confusa da escrita de O amante, essa
ausência de linearidade e esse embaralhamento temporal que marcam
o livro não são senão o próprio modo de funcionamento da vida. Um
acontecimento futuro marca desde sempre o acontecimento passado;
o presente, sem o saber, carrega já seu futuro. O rosto do gozo carrega
o rosto devastado, e vice-versa. Essa mesma ideia, que revela tanto um
procedimento de escrita quanto uma reflexão sobre a vida aparece re-
tomada em A vida material, onde a autora afirma que escrever não é
contar histórias, "é o oposto de contar histórias. É contar tudo ao mesmo
tempo. É contar uma história e a ausência dessa história. É contar uma
história que passa por sua ausência"(1989, p. 28). Isso também explica
a indiscernibilidade entre vida e obra em Marguerite Duras, em que
os limites entre ficção e autobiografia se turvam e cuja vida é também
completamente tomada pela literatura. O amante "é um livro que está
de tal modo imerso na literatura, que parece sem literatura alguma. Não
a vemos. Como o sangue no corpo"(DURAS apud LEBELLEY, p. 272).
Se o texto, em todas as suas lacunas, seus buracos, seu correr selvagem,
é dotado de um erotismo, uma erótica própria à escrita e intimamente
ligada a essa dimensão musical — poderíamos pensar em uma erótica
musical da escrita —, o escritor, para Duras, não o é menos: "o corpo

49
Isadora Bonfim Nuto

dos escritores participa de seus escritos. Os escritores provocam sexu-


alidade a seu respeito"(1989, p. 69), diz Duras em A vida material, e,
em Escrever, associa novamente a escrita ao corpo, ao corpo que nela
se excreve, ambos um desconhecido: "A escrita é o desconhecido... é o
desconhecido de si mesmo, de sua cabeça, de seu corpo"(s/d. p. 47- 48).
Que escreveria, Duras soube desde a infância, que escreveria seu corpo
e todos os corpos que compõem um corpo. E, de fato, o fez, com delica-
deza e destreza. Se "não se pode escrever sem a força do corpo. É preciso
ser mais forte do que a si mesmo para abordar a escrita"(1994, p. 23), é
porque ele, o corpo, esteve o tempo todo presente em sua escrita, assim
como esta habitou sempre seu corpo, inseparáveis, indissociáveis um do
outro:
"Escrever, essa foi a única coisa que habitou minha vida e que a encan-
tou. Eu o fiz. A escrita não me abandonou nunca"(1994, p. 15).

50
Escrever e escrever os corpos

r e f e r ê n c ia s
ADLER, Laure. Marguerite Duras. Paris: Gallimard, 1998.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015.
CIXOUS, Hélène; FOUCAULT, Michel. "Sobre Marguerite Duras".
In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V. III. Estética: Literatura e
Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitéria, 2009.
DURAS, Marguerite. L’inconnue de la rue Catinat - Entretien avec
Marguerite Duras. Entrevista concedida a Hervé Le Masson. Le Nouvel
Observateur, n. 1038, set.-out. 1984a.
DURAS, Marguerite. Entrevista concedida a Bernard Pivot. Programa
Apostrophes. Paris: Estação de TV Antenne 2, 1984b. Disponível em:
https://vimeo.com/99919603[https://vimeo.com/99919603]{.underline}.\
DURAS, Marguerite. A jibóia. In: Dias inteiros nas árvores. Rio de
Janeiro: editora Guanabara, 1987.
DURAS, Maguerite. A vida material. Rio de Janeiro: Globo, 1989.
DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1994.
DURAS, Marguerite. O amante. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
DURAS, Marguerite. O amante da China do Norte. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2015.
L’AMANT. Direção de Jean-Jacques Annaud. França, 1992, 110 min.
LEBELLEY, Frédérique. Marguerite Duras- uma vida por escrito. São
Paulo: Editora Página Aberta, 1994.
MELLO, Celina Moreira de. O texto de Mrguerite Duras. s/d. Disponí-
vel em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/
1863/2777.
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Lisboa: Vega, 2000.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Posfácio: A imagem absoluta. In: DU-
RAS, M. O Amante. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 102-114.

51
o a m a n t e , de
m a r g u e r i t e d u ras: uma
e s c r i t a d o t rauma?
r enata es trella

La mer est oubliée du vent


L’été 80

J’avais dix-huit ans quand je suis partie pour passer ma philo ici, la
deuxième partie, et faire l’université, et je n’ai plus pensé à l’enfance.
Ç’avait été trop douloureux. J’ai complètement occulté. Et je me trim-
balais dans la vie en disant : Moi, je n’ai pas de pays natal ; je reconnais
rien ici autour de moi, mais le pays où j’ai vécu, c’est l’horreur. C’était
le colonialisme et tout ça, hein? (DURAS, 1974, p.136).

N
e s t e t r echo retirado das entrevistas feitas por Xavière
Gauthier, Marguerite Duras menciona uma falta importante em
sua vida: o país natal. Essa ausência, nunca referida nas obras literárias,
não impediu Duras de trazer a Indochina, parte do Império Colonial
Francês entre os séculos XIX e XX, em inúmeros trabalhos — romance,
teatro, roteiro para cinema —, muitas vezes considerados autobiográfi-
cos.

52
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

De fato, em Uma barragem contra o Pacífico32 (1950), em Éden Cinema


(1974) e, ainda, em O amante da China do Norte (1994), tudo parece
fazer referência a vida da escritora: a composição familiar, algumas ca-
racterísticas da mãe e dos irmãos, a vida nas cidades do Vietnam. Por
outro lado, sobre esta hipótese, nas entrevistas realizadas com a escritora,
ora ela afirma ter sido tudo inventado pela escrita, ora ela confirma o
caráter autobiográfico das obras.
O que também é o caso de O amante (1984a), que porta algo de uma
reescrita da Barragem, de Éden Cinema e que, posteriormente, parece
ter sido reescrito em O amante da China do Norte. Essas variações sobre
o mesmo tema, ou as diferentes formas estéticas em que Duras repre-
senta quase a mesma história, é algo intimamente ligado à questão que
será trabalhada neste artigo, que aprofundaremos a partir da leitura de
O amante: como narrar, como dar forma àquilo que foi vivido de ma-
neira traumática? Indico apenas que a cada reescrita, entre uma obra e
outra, a diferença é grande: a cada forma estética, se reposicionam os
personagens, o narrador, se redefinem as soluções e os desenlaces. Nesse
sentido, ainda que se trate da mesma história, as lembranças parecem
pedir formas estéticas diferentes dependendo do corte feito pelo mo-
mento presente. Em 1950 um romance, a Barragem, em 1977 teatro,
Éden Cinema, em 1994 romance e roteiro para cinema, O amante da
China do Norte, e O amante, obra de difícil classificação.
A história da minha vida não existe, deixe-me contar de novo
O amante retrata o período final da adolescência, entre os doze e quinze
anos, da criança, a protagonista-narradora. Na obra, figuram também
lembranças da velhice, uma espécie de futuro da história que será nar-
rada, mas passado em relação ao momento em que a escrita se faz. Entre
passado, futuro e presente, destaco quatro fragmentos como fios con-
dutores na construção da hipótese de trabalho:

32
Algumas traducoes optaram por retirar do titulo do romance o artigo indefinido,
Un barrage contre le Pacifique, como e o caso da editora Arx, 2003. Optamos por
manter de acordo com o original. Livro doravante referido Barragem.

53
Renata Estrella

Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no


saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: "Eu a conheço há
muito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim
dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude,
que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, de-
vastado". Penso frequentemente nessa imagem que só eu ainda vejo e
sobre a qual jamais falei a alguém (DURAS, 1984a [2003, p.7]).

Essa passagem abre o livro com uma lembrança, um encontro que a


protagonista teve já em idade avançada. A escrita de O amante começa,
então, com essa "imagem"(p.7), uma espécie de folha de rosto. Trata-se
de um encontro sobre o qual ela fala pela primeira vez, retirando a ima-
gem do silêncio. Em seguida, a narradora sentencia: "aos dezoito anos
envelheci"(DURAS, 1984a [2003, p.7]), um envelhecimento violento,

[...] eu o vi apossar-se dos meus traços um a um, alterar a relação


que havia entre eles, aumentando o tamanho dos olhos, fazendo mais
triste o olhar, mais definida a boca, marcando a testa com rugas pro-
fundas. Não tive medo e observei o envelhecimento do meu rosto
com o interesse que teria dedicado a uma leitura (DURAS, 1984a
[2003, pp.7-8]).

Muito cedo, o rosto da protagonista foi marcado por um envelheci-


mento brutal lido nesse momento como escrita, processo diferente de
um envelhecimento gradativo que ocorre com o passar do tempo. Pa-
rece ter havido algo que obrigou a criança a responder com o corpo.
Seguindo a narrativa, a obra se apresenta como uma repetição, "deixe-
me contar de novo, tenho quinze anos e meio..."(Duras 1984a [2003,
p.8]), indicando o caráter de reiteração dessa escrita:

A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um
centro. Nem caminho, nem trilha. Há vastos espaços onde se diria ha-
ver alguém, mas não é verdade, não havia ninguém. A história de uma
pequena parte da minha juventude, já a escrevi mais ou menos, quero
dizer, já contei alguma coisa sobre ela, falo aqui daquela mesma parte,
a parte da travessia do rio. O que faço agora é diferente, e parecido.
Antes, falei dos períodos claros, dos que estavam esclarecidos. Aqui
falo dos períodos escondidos dessa mesma juventude, das coisas que

54
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

aterrei sobre certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos


(DURAS, 1984a [2003, pp.10-11])33 .

Nesse sentido, O amante repete a escrita da história da vida, que não


existe, e que marcou o corpo de forma brutal, como se ali pudesse ser lida.
O texto vai além, compara a memória que se tenta narrar a uma memória
de guerra, o que alude a uma espécie de testemunho do trauma:
Vejo a guerra com as mesmas cores com que vejo minha infância.
Confundo o tempo da guerra com o reinado de meu irmão mais ve-
lho. Sem dúvida porque foi durante a guerra que meu irmão mais
novo morreu: como já disse, o coração cedeu, desistiu. (...) Vejo a
guerra exatamente como ele era, espalhando-se por toda parte, pene-
trando em tudo, roubando, aprisionando, estando em tudo, mistu-
rada, confundindo-se com tudo, presente no corpo, no pensamento,
na vigília, no sono, o tempo todo, às voltas com a paixão embriagante
de ocupar o território adorável do corpo da criança, do corpo do mais
fraco, dos povos vencidos, isso porque o mal está lá, às portas, contra
a pele (DURAS, 1984a [2003, p.53]).

Este fragmento parece estabelecer uma relação entre O amante e A dor


(1985), obra publicada por Duras quase na mesma época a partir de tex-
tos escritos (e posteriormente esquecidos) durante a II Guerra Mundial.
Neste período, como é sabido, Robert Antelme, então marido de Duras,
foi preso pela Gestapo e deportado, momento em que a escritora supos-
tamente escreve A dor, texto que seria guardado e publicado apenas em
1985.
Retornando ao O amante, a relação feita entre esses dois momentos
da vida da escritora enlaçaria também reflexão política às lembranças
da infância. No fragmento acima há ainda um destaque aos irmãos da
protagonista, o mais velho como violento e invasor e a lembrança da
morte do mais novo na época da II Guerra, como se eles figurassem na
infância opressor e oprimido.
33
Optou-se por colocar em notas de rodapé os trechos da obra citados em que se jul-
gou necessária uma adaptação da tradução utilizada: "Ici je parle des périodes ca-
chées de cette même jeunesse, de certains enfouissements que j’aurais opérés sur cer-
tains faits, sur certains sentiments, sur certains événements"(DURAS, 1984, p.14).

55
Renata Estrella

Partindo dessas indicações, O amante coloca a questão de se é possível e


de como dar forma ao que foi vivido de maneira traumática e, portanto,
ocultado, esquecido, aterrado, tornando-se de difícil tradução. Ao con-
trário, se alguém se propõe a contar a história da vida, em geral se refere
a uma história contínua, com começo, meio, fim, operada por um eu
que se entende estável e permanente. E quando se vive algo que, mesmo
ligado à experiência, não se pode articular em um relato?
Ha dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso re-
torno, estavamos todos, eu creio, tomados por um delirio. Nos que-
riamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparen-
cia fisica era suficientemente eloquente por ela mesma. Mas nos jus-
tamente voltavamos, traziamos conosco nossa memoria, nossa expe-
riencia totalmente viva e sentiamos um desejo frenetico de a contar
tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossi-
vel preencher a distancia que descobrimos entre a linguagem de que
dispunhamos e essa experiencia que, em sua maior parte, nos ocupava-
mos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a nao
tentar explicar como haviamos chegado la? Nos ainda estavamos la.
E, no entanto, era impossivel. Mal comecavamos a contar e sufocava-
mos. A nos mesmos, aquilo que tinhamos a dizer comecava entao a
parecer inimaginavel. Essa desproporcao entre a experiencia que havi-
amos vivido e a narracao que era possivel fazer dela nao fez mais que se
confirmar em seguida. Nos nos defrontavamos, portanto, com uma
dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imagi-
nacao. Ficou claro entao que seria apenas por meio da escolha, ou seja,
ainda pela imaginacao, que poderiamos tentar dizer algo delas (AN-
TELME, 1957, p.9).

Essa questão nos leva aos estudos sobre as narrativas que testemunham
catástrofes históricas, a exemplo da Shoah. No trecho acima, o primeiro
parágrafo do prefácio de L’Espèce humaine, Robert Antelme apresenta
claramente a dificuldade inerente a essas narrativas — "impossivel pre-
encher a distancia que descobrimos entre a linguagem de que dispunha-
mos e essa experiencia que, em sua maior parte, nos ocupavamos ainda
em perceber nos nossos corpos-–, além de sua inevitabilidade — "nos
queriamos falar, finalmente ser ouvidos". Antelme foi levado em junho
de 1944, tendo sido encontrado em abril de 1945 em péssimas condições

56
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

de saúde, em um campo de concentração construído próximo a cidade


Dachau, na Baviera. L’Espèce humaine é publicado em 1947 e reeditado
em 1957, relatando a experiência de Antelme de sua deportação.
Em O amante, como vimos pelos fragmentos acima, esses dois aspectos,
a necessidade de narrar — "deixe-me contar de novo...-– e a impossibi-
lidade da narrativa — "a história da minha vida não existe-– aparecem
de forma marcante em diversos momentos da obra, como se tratasse de
contar uma memória aterrada — da qual pouco se sabe, além de sua
marca. Tais características, sempre citadas nos testemunhos, como vi-
mos em L’Espèce humaine (1957), e pelos estudos críticos sobre o gênero,
como por exemplo em Seligmann-Silva (2003) ou em Macedo (2014),
parecem indicar que o trauma se trata de uma memória registrada, mar-
cada, e no entanto, sem narrativa. Ou, uma narrativa sem testemunha, o
que justifica a necessidade de contar, o esforço de inserir a vivência trau-
mática no mundo. Em outro estudo, Seligmann-Silva (2008) lembra,
além da dificuldade e da necessidade da composição do testemunho,
que o passado e o presente se misturam, sendo a memória do trauma
caracterizada por um "passado que não passa"(p.69). Para o autor, o
testemunho é uma forma de memória.
Assim, parece haver uma inevitabilidade em transmitir as marcas do que
se vivenciou em um encontro com o real, mesmo tratando-se de algo
indizível. No trauma, trata-se de um encontro com um impossível de
se representar. A hipótese deste artigo, portanto, é que O amante nos
ensina sobre a experiência do trauma e suas possibilidades narrativas,
demonstrando como este reverbera silenciosamente no corpo, sendo
apenas o evento traumático passível de apagamento. Nesse sentido, cabe
perguntar sobre a composição narrativa de O amante que lança mão
de imagens como forma de representação do trauma, aproximando-se
mais de uma espécie de narração de fotografias.
Na balsa, olhem para mim

Um estilo "físico", se quisermos. O amante nasceu de uma série de fo-


tografias encontradas por acaso e comecei pensando em deixar o texto
em reserva para privilegiar a imagem. Mas a escrita assumiu, foi mais

57
Renata Estrella

rápida do que eu e foi apenas quando o li novamente que notei como


era construído por metonímias. Há palavras, como deserto, branco,
prazer, que se destacam e conotam toda a história34 .

Neste fragmento das entrevistas feitas por Leopoldina Pallotta della


Torre, Duras faz indicação importante sobre O amante, pensado para
ser um texto que privilegiasse a imagem, mas tomado pelas palavras
ao longo do processo de escrita. Por outro lado, não se trata de uma
narrativa que analisa e descreve em detalhe as ações dos personagens,
aproximando-se da rememoração, como se montasse, entre imagens e
cortes, um álbum de fotografias. Não à toa, o livro é dedicado à Bruno
Nuytten, diretor de fotografia que trabalhou muitos anos com a escri-
tora na produção de filmes, como La femme du Gange, India Song, Le
camion, entre outros. Assim, em O amante, Duras dá grande importân-
cia à dimensão visual, tendo pensado como primeiro nome para o livro,
A fotografia absoluta (DURAS, 1984b).
"Uma balsa cruza o Mekong. A imagem permanece durante toda a tra-
vessia do rio"(Duras 1984a [2003, p.8]). É a imagem dessa travessia que
a narrativa de O amante se esforça em formar. Trata-se de (re)compor
uma imagem que não existiu, que não se destacou, uma fotografia que
não foi tirada, que foi omitida.
É ao curso dessa viagem que a imagem seria destacada, que ela teria
se separado do conjunto. Ela teria podido existir, uma fotografia teria
podido ser tirada, como outra, em outro lugar, em outras circunstân-
cias. Mas ela não o foi. O objeto era muito fino, insignificante, para
provocá-la. Quem teria podido pensar nisso? Ela não teria podido ser
tirada, ao menos que pudéssemos prever a importância desse aconte-
cimento em minha vida, aquela travessia do rio. Ora, no momento
em que isso se operou, ignorávamos ainda até mesmo a sua existên-
cia. Só Deus a conhecia. Por isso essa imagem, e nem poderia ser de
34
Tradução nossa: Un style « physique », si on y tient. L’Amant est né d’une série de
photographies retrouvées par hasard, et je l’ai commencé en pensant mettre le texte
en retrait pour privilégier l’image. Mais l’écriture a pris le dessus, elle allait plus vite
que moi, et ce n’est qu’en le relisant que je me suis aperçue de la façon dont il était
construit sur des métonymies. Il y a des mots, comme désert, blanc, jouissance, qui
se détachent et connotent le récit tout entier (DURAS, 1989 [2013, pp.57-58]).

58
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

outro modo, ela não existe. Ela foi omitida. Ela foi esquecida. Ela não
foi destacada, separada do conjunto. A essa falta de ter sido feita, ela
deve a sua virtude, a de representar um absoluto, de ser justamente
seu próprio autor (DURAS, 1984a [2003, p.12])35 .

Em entrevista a Bernard Pivot (DURAS, 1984b), Duras considera que


a fotografia absoluta é esse instante da balsa: "eu fui embarcada com ele
na história de todo mundo"; "ele eclipsou os outros amores da minha
vida". Ele, o amante chinês. É nesse instante que a protagonista se vê
olhada pela primeira vez por ele. Como a história da vida, a fotografia
absoluta também não existe, mas eclipsa, deixa marcas.

Na balsa, olhem para mim, tenho ainda os cabelos compridos. Quinze


anos e meio. Já uso maquilagem. Passo creme Tokalon no rosto, tento
esconder as sardas na parte superior das maçãs do rosto, sob os olhos.
Sobre o creme Tokalon passo pó natural, da marca Houbigan. É o
pó que minha mãe usa quando vai às reuniões da Administração Ge-
ral. Naquele dia, também estou de batom, escuro, cor de cereja. Não
sei como o consegui, talvez Hélène Lagonelle o tenha roubado da mãe
para mim, não sei. (...) Na balsa, ao lado do ônibus, está uma grande li-
musine preta, o motorista de libré de algodão branco. Sim, é o grande
carro fúnebre dos meus livros. É o Morris Léon-Bollée. (...) Na limu-
sine está um homem muito elegante que me observa. Não é branco.
Usa roupa européia, o terno de tussor claro dos banqueiros de Saigon.
Olha para mim. Já estou habituada com isso. Todos olham os brancos
das colônias e também as meninas brancas de doze anos (DURAS,
1984a [2003, pp.17-18]).

35
"C’est au cours de ce voyage que l’image se serait détachée, qu’elle aurait été enlevée
à la somme. Elle aurait pu exister, une photographie aurait pu être prise, comme
une autre, ailleurs, dans d’autres circonstances. Mais elle ne l’a pas été. L’objet était
trop mince pour la provoquer. Qui aurait pu penser à ça ? Elle n’aurait pu être prise
que si on avait pu préjuger de l’importance de cet événement dans ma vie, cette
traversée du fleuve. Or, tandis que celle-ci s’opérait, on ignorait encore jusqu’à son
existence. Dieu seul la connaissait. C’est pourquoi, cette image, et il ne pouvait pas
en être autrement, elle n’existe pas. Elle a été omise. Elle a été oubliée. Elle n’a pas
été détachée, enlevée à la somme. C’est à ce manque d’avoir été faite qu’elle doit sa
vertu, celle de représenter un absolu, d’en être justement l’auteur"(DURAS, 1984,
pp.16-17).

59
Renata Estrella

Se olhamos, o que vemos é a montagem do que reveste o corpo da pro-


tagonista, o creme, o pó da mãe, o batom roubado pela amiga Hélène.
Ela, habituada com os olhares do mundo, se deixa olhar pelo chinês e,
sob esse olhar, aparece a composição do corpo da menina, ela se veste.

Estou com um vestido de seda natural, bastante surrado, quase trans-


parente. Foi de minha mãe, certo dia ela achou que era claro demais
e me deu. É um vestido sem mangas, muito decotado. Tem a cor ar-
roxeada da seda natural muito usada. Um vestido do qual me lembro.
(...) Naquele dia devia estar com aquele famoso par de saltos altos de
lamé dourado. Não me lembro de nenhum outro que pudesse estar
usando naquele dia, portanto, é com eles que estou calçada. Saldos
de liquidação comprados por minha mãe. (...) Não posso conceber-
me sem aquele par de sapatos e ainda agora me quero com eles, os
saltos altos, os primeiros da minha vida, são lindos, eclipsaram todos
os sapatos que tive antes, sapatos para correr e brincar, baixos, de lona
branca. Não são os sapatos que dão a nota insólita, estranha, à figura
da menina naquele dia. O que há de inusitado naquele dia é o chapéu
de homem em sua cabeça, com abas caídas, de feltro cor-de-rosa com
uma larga fita preta. A ambiguidade determinante da imagem está no
chapéu. Como chegou às minhas mãos, não me lembro. (...) Eis o que
deve ter acontecido: experimentei o chapéu de feltro, por brincadeira
apenas, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu de homem, a
magreza ingrata da forma, aquele defeito da infância, tornou-se ou-
tra coisa. Ela deixou de ser um elemento brutal, fatal, da natureza.
Ela se transformou, em oposição, uma escolha que contrariava a outra,
uma escolha intencional. Subitamente e desejada. Subitamente vejo-
me como outra, como outra será vista, lá fora, lançada a disposição
de todos, lançada a disposição de todos os olhares, lançada na circula-
ção das cidades, das estradas, do desejo (DURAS, 1984a [2003, grifos
nosso, pp. 13-14])36 .

36
"Voilà, ce qui a dû arriver, c’est que j’ai essayé ce feutre, pour rire, comme ça, que
je me suis regardée dans le miroir du marchand et que j’ai vu : sous le chapeau
d’homme, la minceur ingrate de la forme, ce défaut de l’enfance, est devenu autre
chose. Elle a cessé d’être une donnée brutale, fatale, de la nature. Elle est devenue,
tout à l’opposé, un choix contrariant de celle-ci, un choix de l’esprit. Soudain, voilà
qu’on l’a voulue. Soudain je me vois comme une autre, comme une autre serait vue,
au-dehors, mise à la disposition de tous, mise à la disposition de tous les regards,
mise dans la circulation des villes, des routes, du désir"(DURAS, 1984, pp.19-20).

60
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

Além disso, como explicita a passagem acima, é nesse arranjo que ela
se vê, "subitamente vejo-me como outra"(Duras, 1984a [2003, p.14), e
a forma do corpo deixa de ser ingrata, algo da natureza, e se torna uma
escolha que a lança no mundo, no desejo. A narrativa passa, então, a al-
ternar a primeira pessoa com momentos em que a protagonista é olhada
na cena, "não são os sapatos que dão a nota insólita, estranha, a figura
da menina naquele dia" (Duras, 1984a [2003, p.13), fazendo uma torção
que equivale e separa narradora e personagem, objeto da narrativa. O
ela, olhado, é narrado pelo eu, o sujeito da escrita, e se ver, se fazer ser
vista, corporifica, dá existência à história e à obra em imagens. É como
se, para sustentar a narrativa de um trauma, o narrador precisasse se
apresentar despossuído de si, indicando que no encontro com o real, o
eu se subtrai.
Por outro lado, o ela, olhado e narrado pelo eu como um outro, opera
um paradoxo que enfatiza a escrita como ato e a transmissão que esse
ato engendra, para além da história e das significações. Em O amante, a
criança e escritora e a obra e sobre o instante do encontro com o chinês,
seu primeiro encontro com o sexual.
Retomando a passagem que abre a obra — as marcas feitas no corpo
ainda jovem da protagonista-narradora, tomadas por ela como uma lei-
tura anos depois quando escreve O amante —, é possível ver aí uma
outra forma de escrever o que Jacques Lacan trabalhou, especialmente
após os anos 1970, entendendo a repetição e o sintoma, ambos do campo
da memória, ligados à fixações de gozo no corpo. Nesse sentido, o ser
se sustenta menos nos significantes que se proliferam em narrativas e
mais no que Lacan (1971) chama de letra, aquilo que resta do choque da
linguagem sobre o corpo e que não deixa de ser traumatizante. Trata-se,
então, em O amante, de metamorfosear em obra uma memória de gozo
inscrita no corpo, dando lugar ao que é sem sentido dessa operação.
Desta forma, O amante coloca em ênfase a escrita do real pouco vestido
do registro simbólico, uma escrita que lida com o traço — as repetições
de palavras, os cortes, a oralidade, as mudanças na voz narrativa, os dife-
rentes planos temporais —, fazendo um trabalho com o imaginário de

61
Renata Estrella

maneira a torná-lo opaco. É, então, o que interrompe, fragmenta, silen-


cia e interpela a história da vida que testemunha mais que uma descrição
dos acontecimentos vividos. Como se Duras sustentasse na narrativa de
O amante algo intraduzível. Nesse percurso, são construídas imagens,
fotografias, suportes topológicos que enlaçam algo extremamente sin-
gular, a história da vida, e, ao mesmo tempo, algo radicalmente estranho,
que não existe. A história da vida é, assim, a história de como uma ima-
gem, uma palavra, uma letra, se torna espaço de escrita para, então, se
tornar uma obra.

62
O amante, de Marguerite Duras: uma escrita do trauma?

referências
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trophes. Paris: Estação de TV Antenne 2, 1984b. Disponível em:
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63
à n o i t e , u m f i lete de
luz
marina gorayeb sereno

Talvez o que eu quisesse dizer, é que uma vez, nos confins de


suas relações, certa noite, o amor se fizera ver como um filete
de luz na obscuridade.
(Marguerite Duras)
De facto, já é noite. Todas as palavras acenderam os seus
archotes.
(Maria Gabriela Llansol)
Um livro
Um filme.
A noite.
(Duras, 1991, p. 13)

A
s s i m , s o brepostas, aparecem, do começo de O
amante da China do Norte, essas três dimensões da escrita
durassiana. "Um livro aberto é também a noite", afirma a narradora
em Escrever (1993). Essas dimensões, que parecem sustentar toda a
obra, formam uma amarração particular entre si. Proponho pensar
sua importância e como se articulam na operação de escrita de Duras
— tomando essa expressão, "operação de escrita", como uma posição
específica de leitura para trabalhar entre psicanálise e literatura. Essa
posição implica, primeiro, assumir a radical disjunção entre os dois

64
à noite, um filete de luz

campos para, então, mapear sua fronteira. Partimos da hipótese de


que é possível falar em uma teoria da escrita e uma teoria da leitura na
psicanálise lacaniana37 . Falar em teoria implica uma complexidade que
torna essas noções — escrita e leitura — difíceis de serem apreendidas,
já que elas atravessam todo o ensino de Lacan e - como é próprio
desse ensino - são afetadas por cada conceito, levadas ao seu limite e
deslocadas.
É comum, dadas as dificuldades, encontrarmos o método de distinguir
a "escrita literária", a "escrita da clínica", a "escrita da ciência"; um es-
forço de localizar o leitor do lado do analista, ou do analisante, e assim
dar a situação como resolvida. Apostarei que essas especificações não
resolvem o problema; a direção, aqui, é pensar a escrita e a leitura como
operações — o norte, portanto, dessa pesquisa, é a pergunta: o que é
preciso acontecer para que possamos afirmar que algo se trata de uma
operação de escrita/leitura, nesse campo em que se articulam psicanálise
e teoria literária? Qual seria a fórmula dessa operação? Há um ponto
em comum, um acordo sobre isso? É possível falar de uma operação em
comum entre campos diferentes?
Impotência — impossível — irredutível
Nos três livros de Duras que contam o encontro com um amante
chinês, vemos um mesmo conteúdo ser narrado de modo que sua
forma se refaça: as figuras se deslocam na narrativa, se esvaziam, cor-
tando e esvaziando a própria narrativa, transformando-a, por fim, numa
forma que se aproximará talvez mais de um roteiro cinematográfico: "A
cena deslocou-se sozinha. Na realidade, cresceu comigo, jamais me dei-
xou."(Duras, 1987, p. 26). O efeito de leitura produzido em Duras é o
mistério: em que ponto está a mentira? Em que ponto está a verdade?
37
Acompanho, aqui, a reflexão de Ricardo Goldenberg em Desler Lacan (2019, p.35):
"Se existe algo em que o discurso psicanalítico parece ter mudado tudo o que havia
antes dele, é a noção de leitura. (...) A magnitude desta novidade permanece ofus-
cada pela concepção da psicanálise como mais uma teoria da narrativa, que apenas
teria reformado a disciplina da crítica, existente desde os antigos gregos. Este é preci-
samente o tipo de equívoco que impede reconhecer a sua verdadeira inovação, uma
vez que fica reduzida a uma hermenêutica."

65
Marina Gorayeb Sereno

A voz narrativa dos romances se confunde com a voz da autora nos diá-
rios e textos em que trata de sua prática de escrita, e torna impossível
localizar qualquer um de seus livros em um gênero definitivo.
Da mãe de A barragem contra o pacífico (1950), invasora e oceânica, pas-
samos pela mãe em O amante (1984), árida, desértica e terrível, para
chegar finalmente à mãe em O amante da China do Norte (1991), "uma
mãe sem coragem", que não impede mais nada. Se, num primeiro mo-
mento, o trabalho é construir uma barragem que contorne a história da
mãe e, num segundo, dar corpo ao amante -, no terceiro tempo dessa
escrita há um trabalho de mapear, fazer uma forma para o amor, para o
instante de sua chegada, sua entrada em cena. "A cena é extremamente
lenta"(Duras, 1991, p. 79):
A dor chega ao corpo da criança. Primeiro é viva. Depois terrível. De-
pois contraditória. Como mais nada pode ser. Nada: quando aquela
dor torna-se realmente insustentável, começa a afastar-se. Muda,
torna-se boa para gemer, gritar, toma conta de todo o corpo (...) O
sofrimento abandona o corpo magro, abandona a cabeça. O corpo
continua aberto para fora. Foi atravessado, está sangrando, já não so-
fre mais. Já não se chama mais dor, chama-se talvez morrer. Então o
sofrimento deixa o corpo, deixa a cabeça, deixa insensivelmente toda
a superfície do corpo e perde-se na felicidade ainda desconhecida de
amar sem saber. (Duras, 1991, p.74)

Em Duras, além de uma teoria da escrita, poderíamos propor também


uma teoria em torno do encontro amoroso. Se, como quis Lacan, o es-
crito é feito para não ser lido, parece que, com Duras, é possível levar essa
fórmula às últimas consequências e apostar que um escrito é feito para
se ler outra coisa. Diante do ilegível, colocado em cena pela prática de
uma escrita que se faz com o impossível, não recuar, mas produzir uma
forma: a possibilidade de criar uma imagem. Uma imagem, portanto,
que se afasta da função de representar, para se aproximar de um uso de
letra, que pode transmitir aquilo que é irrepresentável. Uma prática da
letra, feito "rasura de traço algum que seja anterior", opera, produzindo
uma imagem de furo - falha sísmica que sustenta uma história. Imagem
ausente que faz aparecer, que convoca o olhar. Uma aposta de que seria

66
à noite, um filete de luz

possível escrever uma fórmula cifrada para o encontro amoroso. Dar ao


impossível uma forma mínima, irredutível.
Se antes, o que estava em cena era "um amor abominável"(Duras, 1984,
p. 31), agora, a possibilidade de "amar sem saber"permite localizar com
precisão esse momento em que o amor se funda: "Olham-se. E com
aquele olhar, com a reciprocidade muda daquele olhar, o amor até en-
tão contido chega até o quarto."(Duras, 1991, p. 78). No terceiro tempo
dessa escrita, pode ressoar a voz, "aquela, escrita, do livro", "voz cega.
Sem rosto.38 ", que dará à história a dimensão invertida da imagem que
ela já portava em seu começo, mas que ainda não teria sido subtraída ao
conjunto39 . Essa inversão se dá por alguns pontos de corte na narrativa,
que redistribuem as posições dos personagens na história. A menina -
Suzanne em Uma barragem... -, que tem seu nome suprimido em O
amante, aqui é nomeada a criança. Essa nomeação reitera a todo mo-
mento, ao longo do livro, as posições dos amantes, e produz, no leitor,
um estranho jogo entre reconhecimento e repulsa: acomodação a essa
palavra que nomeia a personagem, conforme a história se apresenta;
incômodo quanto à prematuridade desse corpo que serve ao amor.

Penetra na noite negra do corpo da criança. Fica ali. (...). Ela torna-
se objeto dele, apenas dele, secretamente prostituída. Sem ter mais
nome. Entregue como coisa, coisa só para ele, roubada. Só por ele to-
mada, utilizada, penetrada. Coisa subitamente desconhecida, uma cri-
ança sem outra identidade senão a de pertencer a ele, ser o bem apenas
dele, sem nome, fundida a ele, diluída numa generalidade da mesma
forma nascente, a que desde o começo dos tempos foi chamada por
uma outra palavra, a da indignidade.

38
Duras, 1991, p. 12.
39
"É no curso dessa viagem que a imagem teria sido destacada, subtraída ao conjunto.
Poderia ter existido, poderiam ter tirado uma foto, como qualquer outra, em outro
lugar, em outras circunstâncias. Mas não tiraram. (...) Ela só poderia ter sido tirada
se fosse possível prever a importância daquele acontecimento em minha vida, aquela
travessia do rio. É por isso que essa imagem, e não podia ser de outra forma, não
existe. Foi omitida. Foi esquecida. Não foi destacada, subtraída ao conjunto. É a essa
falta de ter sido registrada que ela deve sua virtude, a de representar um absoluto, de
ser justamente a sua autora."(Duras, 1984, p. 32).

67
Marina Gorayeb Sereno

São novamente vistos depois, deitados no chão, no mesmo lugar.


Transformados nos amantes do livro. (Duras, 1991, p. 92)

Apesar do efeito de incômodo, podemos pensar na hipótese de que a


teoria durassiana do encontro amoroso se estrutura, justamente, nesse
jogo de prostituição entre os corpos, e que só nesse terceiro tempo o
encontro pode, afinal, ter lugar. É essa operação de escrita que apaga,
em Duras, a posição de impotência — a escrita acontece num espaço
destacado dela, logo veremos.
Temos uma série de indicações da autora ao longo do texto e em notas
de rodapé. São notas comparativas em relação aos dois livros anteriores
e indicações quanto à proposta de fazer desse livro um filme — que
aparecem, às vezes, na forma "no caso de um filme...", e outras vezes
localizando, na imagem cinematográfica, um tempo anterior da matéria
do livro.
A criança sai da imagem. Ela deixa o campo da câmera e o da festa.
A câmera varre lentamente o que acabamos de ver, depois vira e parte
na direção que a criança tomou.
A rua volta a ficar vazia. O Mekong desapareceu. Está mais claro.
Não há mais nada para ver além do desaparecimento do Mekong, e a
rua reta e escura.
(...) Nós a perdemos de vista.
Ficamos no pátio vazio. (Duras, 1991, p. 16-17)

Numa dobra do tempo, aquela imagem não registrada, que não tinha
forma alguma, por não ter sido destacada da narrativa, agora ganha con-
tornos e um olhar; se oferece à vista. A voz narrativa propõe uma foto-
grafia — e essa forma pode ser incluída como uma das três camadas que
dão lugar à história. Essa história, que não existe40 , porque se escreve
por cima de si mesma, só pode ser escrita na sobreposição dessas três
camadas: um livro, um filme, a noite — é nessa medida que torna-se
possível pensar uma escrita do impossível, uma escrita que desconhece
40
"A história da minha vida não existe. Ela não existe. Não há um centro. Nem cami-
nho, nem linha. (Duras, p. 12, 1984)

68
à noite, um filete de luz

a impotência e produz a verdade de uma história que não existe, que


não pode ser escrita.
Ler — escrever — perder
No espaço literário41 proposto por Duras — nos trabalhos em que dá
testemunho do que é uma operação de escrita, e dá a ver a direção de
um projeto estético — ler, escrever e perder 42 vêm se articular numa
nova forma que refaz suas relações e modifica cada uma dessas posições.
Nesse novo espaço, esses três tempos se atravessam.

O escrito já está ali, na noite. Escrever estaria externo a si43 , numa con-
fusão dos tempos: entre escrever e ter escrito, entre ter escrito e ter de
escrever mais, entre saber e ignorar o que seja, partir do sentido pleno,
ser engolfado e chegar ao não-sentido. (Duras, 1987, p. 27)

Se recorrermos ao vocabulário de filosofia para pensar a definição de


impossível, acreditando que ali se encontra uma definição mais precisa
para o que se procura, a surpresa se coloca na forma da ironia. Para
impossível encontramos a definição: "ver possível". Lacan, no Seminário
11, ao tratar da lógica pulsional, faz a seguinte advertência:

Esta função do impossível não deve ser abordada sem prudência,


como toda função que se apresenta em forma negativa. Eu quereria
simplesmente sugerir-lhes que a melhor maneira de abordar essas no-
ções não é tomá-las pela negação. Este método nos levaria aqui à ques-
tão sobre o possível, e o impossível não é forçosamente o contrário
do possível — ou bem ainda, porque o contrário do possível é segura-
mente o real, seremos levados a definir o real como o impossível (La-
can, 1964, p. 165)

Neste ponto, então, Lacan enfatiza: "O real se distingue por sua sepa-
ração do campo do princípio do prazer, (...), pelo fato de que sua eco-
nomia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossí-
vel"(idem).
41
O espaço literário de Blanchot (1955).
42
Me refiro aqui às três formas de mathesis que Lacan (1967-68) distingue no livro 15
de seu Seminário.
43
O espaço literário de Blanchot (1955).

69
Marina Gorayeb Sereno

"É dito "logicamente"possível aquilo que não implica contradição."44 ;


"Na linguagem rigorosa da matemática, uma coisa é possível ou não
é"(Lalande, 1960, p. 795). O impossível lógico tem como estrutura pró-
pria a contradição; o passo de Lacan coloca em tensão "o campo da for-
malização, que poderíamos dizer lógica e simbólica, contra o campo da
ética, que escapa à lógica e ao simbólico (lugar da causa)"(Torres, 2012),
apontando para o real como direção. Essa leitura provoca a abertura de
um novo espaço, que já não responde às coordenadas da possibilidade
lógica a que estamos familiarizados, mas comporta o impossível como o
que "está ali tão presente que ele jamais é reconhecido como tal", afirma
Lacan (1964, p. 165). A aposta lacaniana na topologia para estruturar
e transmitir seu ensino dá corpo, justamente, a esse tratamento espe-
cífico do impossível — é com o impossível lógico da matemática que
ele trabalha, o que faz consistir uma teoria específica sobre o saber e a
verdade.
O saber da análise começa com um "eu perco-– é o que propõe Lacan
e reitera Badiou. Na conferência Por uma estética da cura analítica,
Badiou (2002) explicita a operação de torção que faz na teoria lacani-
ana, para propor uma nova teoria do sujeito. Essa teoria, que tem como
objetivo "produzir um conceito contemporâneo da verdade"(Badiou,
1994, p. 18), localiza no acaso — ou no evento, como ele nomeia — uma
função fundamental.

Para que comece o processo de uma verdade, é preciso que alguma


coisa aconteça. Pois o que há, a situação do saber tal como é, só nos
proporciona a repetição. Para que uma verdade afirme sua novidade,
deve haver um suplemento. Esse suplemento é entregue ao acaso. Ele
é imprevisível, incalculável. Ele está além daquilo que é. Eu o chamo
de um evento.
Uma verdade surge, em sua novidade, porque um suplemento advém
ao evento e interrompe a repetição.
Exemplos: a aparição, com Ésquilo, da tragédia teatral; o surgimento,
com Galileu, da física matemática; um encontro amoroso que trans-

44
Tradução minha.

70
à noite, um filete de luz

forma toda uma vida; ou a revolução francesa de 1792. (Badiou, 1994,


p. 44)

Uma verdade, portanto, é aquilo que pode afirmar uma novidade, desar-
mar e romper com o funcionamento de uma repetição. Partindo disso,
a direção da cura em uma análise, para Badiou, também tem a ver com
essa verdade que pode se produzir. Ao propor "uma estética da cura ana-
lítica", ele extrai da poética de Mallarmé a noção de transposição, para
identificá-la como formalmente semelhante à operação da cura numa
análise: um movimento em direção ao impossível, partindo da impo-
tência. Nos interessa, nessa aproximação, pensar a operação estética que
se dá no nível da linguagem.
Lacan define a análise de modo muito preciso: (...) a cura analítica
é a passagem de um estado de impotência a uma experiência do real
e, portanto, uma experiência do impossível. (...) Eu gostaria de mos-
trar que a transposição poética faz a passagem de uma impotência da
língua a uma experiência do impossível, na língua. Vocês sabem que
Lacan diz também que a passagem da impotência ao impossível é uma
formalização. (...) a transposição poética é também uma formalização.
(Badiou, 2002)

Da formalização dessa passagem podemos precisar a diferença que se


escreve. A impotência estrutura-se numa lógica relativa ao poder45 , em
que se está impedido: não posso, não tenho esse poder. Uma experiência
do impossível admite, justamente, algo de novo que, de acordo com
Badiou, distancia-se da redenção, pois trata-se de um "desaparecimento
absoluto", uma radicalização da perda do objeto, de modo que outra
lógica se torne possível, para além da perda: "uma operação diferente,
que construirá uma vitória sobre a perda, mas não o retorno daquilo
que está perdido"(idem).46 Essa vitória sobre a perda, portanto, "exige
a criação de uma forma"(idem).
45
Impotência: falta de poder, força ou meios para realizar algo; impossibilidade. (di-
cionário)
46
Badiou demonstra que não se trata, nessa passagem, de uma dialética simples da
transformação do desaparecimento em afirmação. Temos, na verdade, "a passa-
gem do desaparecimento à afirmação, por intermédio de um desaparecimento se-

71
Marina Gorayeb Sereno

Duras também toma como ponto de partida um ponto de perda, em


Escrever (1993): "A partir do momento em que se está perdido e não se
tem mais o que escrever, mais o que perder, é aí que se escreve ". (Du-
ras, 1993, p. 21). É nessa radicalidade da perda que é possível afirmar a
extravagância da forma durassiana, seu compromisso com o impossível,
que prescinde da impotência. A escrita durassiana se insere numa lógica
fora do poder. O escrito toma forma no próprio ponto do impossível,
na aposta de fazer imagem com o que não pode ser representado. Que
dimensão é essa, a noite, esse espaço onde resta o escrito, antes que ele
se escreva, mas que só se produz depois — e que se equipara ao livro e
ao filme, espaços onde, por excelência, se escreve a obra durassiana?
Um livro — um filme — a noite
A rua de Cholen. Os lampiões se acendem com a luz do crepúsculo.
O céu já está azul-noite, pode-se olhá-lo sem queimar os olhos.
À beira da terra, o sol está à beira da morte.
Ele morre.
Na garçonnière.
A noite chegou. (Duras, 1994, p. 93)

Muitas vezes, em O amante da China do Norte, e em outros trabalhos


de Duras, a noite chega - com frequência, o leitor recebe essa notícia. Ao
fim do livro encontramos ainda "exemplos de imagens dos planos ditos
de corte", que serviriam, segundo a indicação, "à pontuação de um filme
retirado deste livro"(Duras, 1994, p. 229). De um livro é possível retirar
um filme, a palavra soa como uma operação de extração, é possível, da
escrita, retirar a imagem - o tom da voz narrativa fica ainda mais em
questão. "Um rio vazio na sua imensidão numa noite indecisa, relativa";
"Um dia de outro azul que morre"; "O rio escuro, bem próximo. Sua
superfície. Sua pele. Na nudez de uma noite clara (noite relativa)"; "A
chuva que cessa e sai do céu. A transparência que a substitui, pura como
um céu nu"(Duras, 1994, p. 229-230).
gundo"na língua, "para conseguir a vitória sobre uma perda inicial", o que ele iden-
tifica à posição do analista, "que deve desaparecer onde algo desapareceu". "O resul-
tado, contudo, é uma criação afirmativa"(Badiou, 2002).

72
à noite, um filete de luz

Nesse ponto final do livro, depois da história, temos essa lista de imagens
estranhas, imagens forjadas no impossível, feitas de uma matéria que
não se representa; como lê-las? Seria uma orientação da autora, Margue-
rite Duras? Que orientação é essa, que não se pauta pela descrição mas,
ao contrário, faz imagens que portam a própria contradição em seu nú-
cleo? Se não forem orientações pessoais, então fazem parte da narrativa?
Será um desejo do próprio livro? Que dele se extraia essa forma?
A noite: este espaço externo a si, avesso à geometria que conhecemos,
em que dentro e fora estão bem delimitados. Este lugar de onde se extrai
o escrito, num tempo fora da cronologia. É num futuro anterior que a
escrita acontece. Ela insiste na afirmação de que, nesse atravessamento,
não se trata de tradução, "da passagem de um para outro estado", mas
de decifração:
O instinto a que me refiro seria ler desde antes da escrita47 o que ainda
é ilegível para os outros. Posso dizer de outra maneira, posso dizer:
seria ler nossa própria escrita, esse primeiro estado de nosso escrito
ainda indecifrável para os outros. Seria regredir, condescender em di-
reção à escrita dos outros para que o livro seja legível por eles. (...)
Nessa história, deslocada evidentemente, mas que foi vivida, é difí-
cil descobrir a mentira, o lugar onde o livro mente, em que plano, em
que advérbio. Pode ser que ele só minta em uma única palavra. Não
acredito que minta sobre o desejo."(Duras, 1987, p.79)

Um passo anterior, portanto, é o que Duras indica como condição para


que a escrita opere. É este o ponto irredutível da forma que a escrita
durassiana produz, e mostra que uma forma para o impossível implica a
perda em diversas camadas: da verdade, no nível da origem, uma vez que
a palavra já não será capaz de apreendê-la - pode apenas contorná-la, dar
a ela uma forma de ficção. Depois, a perda de uma posição interpreta-
tiva, onde supostamente seria possível dominar o sentido e apreendê-lo.
E então, uma perda do tempo cronológico, organizado em princípio,
meio e fim, para assumirmos uma outra relação com o tempo, em que
o texto não está pronto no momento em que se escreve, mas se escreve
47
Na edição brasileira de A vida material (19, temos a palavra écriture traduzida para
escritura. Aqui, insisto na tradução direta de escrita.

73
Marina Gorayeb Sereno

no momento em que se lê (para então se apagar). No ponto dessa dobra


temporal, as próprias posições de escritor e leitor colapsam e se tocam
ali onde pareceria que um escrito estaria pronto para ser lido. Não pa-
rece se tratar, no caso da criação dessa forma, de limitação; mas de forjar
algo inteiramente novo, de inventar o desenho de um contorno para o
que não tem forma. A forma em Duras, portanto, não será feita com o
que foi perdido (e que não será resgatado de forma alguma), mas com
a própria matéria de que é feita a perda - a mesma matéria da noite.
A noite chegou ao navio. Tudo está iluminado, o convés, os salões, os
corredores. Mas não o mar, o mar está mergulhado na noite. O céu
está azul na noite escura, mas o azul do céu não se reflete no mar por
mais calmo que esteja, e tão escuro."(Duras, 1991, p. 219)

74
à noite, um filete de luz

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75
Marina Gorayeb Sereno

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76
a r e p e t i ç ão no
a r r e b a t a mento
daniele fernanda eckstein

E
m 6 d e maio de 1964, logo após a publicação da obra que
inaugura o ciclo de Lol V. Stein - Le Ravissement de Lol V. Stein
(1964) - Marguerite Duras comenta a escolha do título: "Este livro deve-
ria se chamar ’Rapto’. Eu quis, com arrebatamento, conservar o equí-
voco.48 . Ao preferir ravissement, a enlèvement —, Marguerite Duras
opta por deixar o texto implícito e recobrir uma possível evidência no
destino de Lol, colocando o leitor no centro, como peça fundamental
para elucidar o enigma do texto.
A ambiguidade que o título apresenta se verifica na etimologia do subs-
tantivo ravissement que, segundo o Centro Nacional de Recursos tex-
tuais e lexicais49 , apresenta dois sentidos diferentes, um que carrega o
campo semântico figurativo do êxtase, do pleno de contentamento, um
"estado da alma em êxtase", e outro como sendo o ato concreto de tirar
algo à força, roubar. Ao passo que enlèvement representaria a remoção,
o rapto, sem incitar um enigma. Tem-se, assim, já no título, uma aber-
tura de interpretação da obra que é provocada por essa divergência de
sentido que trafega entre o êxtase e o roubo, o excesso e a perda.
48
Ce livre devait s’appeler ’Enlèvement’. J’ai voulu, dans ravissement, conserver
l’équivoque."In Lettres françaises, 3 avril - 6 mai 1964, apud Ton-That, Thanh-Vân.
Marguerite Duras, 2005, p. 7.
49
https://www.cnrtl.fr/[https://www.cnrtl.fr/]{.underline}

77
Daniele Fernanda Eckstein

No entanto, essa potencialidade do texto não se verifica na tradução


da obra Ravissement para o português do Brasil, de Ana Maria Falcão,
pela editora Nova Fronteira, que tem como título O Deslumbramento
(1986), omitindo por completo o nome da personagem não fosse a men-
ção do título original logo abaixo50 . O termo deslumbramento evoca
a fascinação, e toca no quase impossível do ver, na produção de ver-
tigens no ser. Essa escolha de tradução se aproxima da proposta que
Marguerite Duras teria excluído para tentar "manter o equívoco"que
ravissement comporta. O mesmo poderíamos apontar para a tradução
em português de Portugal que tem o título Ausência de Lol V. Stein,
traduzido por José Vieira de Lima, editado pela Difel em 1989.
Não se trata aqui de julgar qual seria a palavra mais "justa", mas ape-
nas atentar para a pluralidade significante que o texto de Duras produz,
e também, indagar sobre o valor de uma retradução que atualizaria a
complexidade semântica do texto durassiano. Ademais, se o valor do
texto estaria na capacidade que este tem de produzir sentido, a ambigui-
dade que o termo ravisssement suporta, serve justamente para manter
a indecisão, para multiplicar as opções. Teria sido Lol arrebatada ou
deslumbrada ou ainda, seria ela arrebatadora ou deslumbradora?
É com esta perspectiva, de um texto que não nos deixa possuí-lo nunca,
que queremos pensar a repetição, uma vez que esta também atua neste
espaço duplo, de turvação que desassossega por confundir e desordenar.
A repetição é um termo que deve ser lido como uma categoria hipero-
nímia, uma vez que engloba diversos fenômenos como a reinteracão,
a reduplicão, a reformulação, entre outros. Estes fenômenos expoem,
cada um, uma faceta da repetição, de modo que a própria definição
de repetição resiste a uma sistematização e atua de forma a chacoalhar
todo o sistema de representação, movendo-se por condensação e deslo-
camento. Assim, no Ravissement podemos identificar diferentes níveis

50
O mesmo poderíamos pensar sobre a tradução do "là"que está associado ao lugar
de Lol, para "presente", gerando um certo desequilíbrio no que vai representar este
advérbio ao longo do texto.

78
A repetição no arrebatamento

de atuação da repetição, que, para fins de análise, dividimos em: uma a


ser pensada no plano diegético e outra no plano da estrutura narrativa.
Somado a estes dois planos do repetir, o texto também é recheado de
uma prática de repetição literal que provoca o leitor e o incita a ler o
texto de uma outra forma, posto que ao longo da história, o leitor se
confronta com o estranhamento de uma linguagem que é perturbadora
porque, ao retornar e repetir, se contradiz. É neste sentido que o filósofo
francês Gilles Deleuze escreve em 1968 : "a arte do romance contempo-
râneo, [que] gira em torno da diferença e da repetição não só na sua
mais abstrata reflexão como também nas suas técnicas efetivas"51 .
Posto isso, é a partir da polissemia presente no título, que a cena do
baile, que é retomada ao logo do texto, se desdobra em dois tempos: o
do roubo e o do êxtase. A preparação para a chegada destes dois tempos
evidencia-se logo no início, na descrição da cena do baile que acontece
no espaço do salão de dança, local que se caracteriza por estar cheio,
por vezes, abarrotado de dançarinos, bem como por estar preenchido
de música e de alegria. No entanto, o salão se esvazia no momento da
entrada de uma mulher e é neste espaço vazio que se dá o início do
ravissement.
Lol e Michael Richardson a veem entrar no salão do baile, uma mulher
bela e charmosa de vestido preto, chamada Anne-Marie Stretter:
Il s’était arrêté, il avait regardé les nouvelles venues, puis il avait en-
traîné Lol vers le bar et les plantes vertes du fond de la salle. Elles avai-
ent traversé la piste et s’étaient dirigées dans cette même direction. Lol,
frappée d’immobilité, avait regardé s’avancer, comme lui, cette grâce
abandonnée, ployante, d’oiseau mort. (14)52 .

O casal parece fascinado pela presença da mulher que se expõe como um


quadro pronto para ser olhado. Esta semelhança na reação de fascínio
51
Deleuze, Gilles. Diferença e Repetição. Traduzido por Luiz Orlandi e Roberto Ma-
chado. Relógio d’água, 2000, p. 36.
52
"Ele tinha parado, olhado as recém-chegadas, depois conduzido Lol em direção ao
bar e às plantas verdes do fundo do salão. Elas tinham atravessado a pista e cami-
nhado nesse mesmo sentido. Lol, momentaneamente imobilizada, tinha visto avan-
çar, como ele, aquela graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto."(10)

79
Daniele Fernanda Eckstein

de Lol e de Michael Richardson se expressa no texto pela aproximação


semântica das palavras "arrêté"/ "parado", direcionada a ele, e "immobi-
lité"/ "imobilizada"referente à reação de Lol. Ao que se segue a expressão
"comme lui"/ "como ele"que reforça a posição de Michael Richardson
já descrita, e sublinha, pela conjunção de comparação "como", a posição
de espelhamento de Lol e Michael Richardson, ela está como ele: os
dois paralisados de fascinação.
Esta composição cênica de paralisia se amplifica através da mudança
de posicionamento de Anne-Marie Stretter que se desloca na mesma
direção que Lol e Michael Richardson. Anne-Marie Stretter domina o
movimento da cena, enquanto Michael Richardson e Lol estão inertes.
No entanto, esta beleza movente, comovente, atinge, na sequência do
texto, a imobilidade que caracterizava a reação do casal, uma vez que
a leveza da mulher, que anda quase como se dançasse, se desfaz com a
imagem de suspensão presente na metáfora do pássaro morto que não
se move mais.
O que vemos aqui é uma cena claramente visual que se constrói pelo
jogo de oposições e olhares que se cruzam tendo como eixo de rotação
a imobilidade, que se centrará na personagem de Lol. A cena provoca,
assim, uma mudança súbita e intensa no comportamento dos persona-
gens que se revelam em estado de transe. No entanto, apesar da seme-
lhança nas posições de Lol e Michael Richardson em relação à presença
de Anne-Marie Stretter, o deslocamento de Lol para o canto do salão
cria um distanciamento que a separa não só de Michael Richardson,
mas do casal, Michael Richardson e Anne-Marie Stretter, que agora
dança. Esta distância física marca a posição de exclusão de Lol, e ins-
taura a perda como uma significação do baile.
No entanto esta exclusão, marcada pela distância física, é sustentada
pelo olhar, um campo de ação que produz contato. É verdade que o ato
de olhar se dá por uma distância que separa o sujeito do objeto olhado.
No entanto, esta distância, que elucida o afastamento do outro, se en-
curta, posto que aquilo que se dá a ver — o casal dançando, toca aquele
que olha, deslumbra-o, a ponto de não conseguir não olhar, resultando

80
A repetição no arrebatamento

num "um contato à distância"53 , embora este contato só exista na per-


cepção de Lol, inscrito, portanto, como um contato vazio.
Diante disto, pode-se dizer que a exclusão de Lol, que instaura uma au-
sência, também a leva a uma experiência de êxtase, de deslumbramento,
uma vez que apesar de estar excluída do desejo que sustenta o casal, Lol
continua lá. Ela perdeu o noivo, roubaram-no, mas Lol continua a olhar
aquilo que não a olha. É neste jogo de ausência e deslumbramento que
se estrutura o ravissement. Um sistema que exclui e inclui ao mesmo
tempo, e é esta estrutura que vai se repetir na narrativa, uma repetição
que não será a reinscrição da cena primária, a nível diegético, mas que
se inscreve na estrutura textual.
Lol Stein se situa justamente neste "entre"que a palavra ravissement
deixa entrever. Ainda no incipit vê-se o espaço aquoso por onde a perso-
nagem transita, posto que a história de Lol Valérie Stein é apresentada
a partir da sua juventude, antes do acontecimento do baile. Este "an-
tes"ganha destaque ao lermos: "Tatiana Karl, elle, fait remonter plus
avant, plus avant même que leur amitié, les origines de cette maladie.
Elles étaient là, en Lol V. Stein, couvées [...]"(12)54 . Uma reduplicação
de "plus avant"/ "muito antes"que reforça a intenção de colocar a do-
ença de Lol num tempo precedente, tempo que nem será explorado no
romance, mas que, no entanto, estará sempre presente.
Logo em seguida, lemos a frase: "[...] Elas estavam lá, em Lol V. Stein
[...]". A vírgula, separando a origem da doença do nome da personagem,
provoca uma pausa importante, cujo efeito não seria o mesmo sem ela,
pois enfatiza e coloca em causa o lugar da doença e de Lol. Embora
vinculado ao personagem, o advérbio de lugar "lá", que em francês refere-
se ao lugar onde estamos, mas também ao lugar onde não estamos, em
oposição a "ici"/"aqui", insinua uma falta de precisão, um duplo lugar,
53
Blanchot, Maurice, 1988, p. 28.
54
"Segundo Tatiana Karl, as origens dessa doença vêm de longe, de antes mesmo da
amizade das duas. Já existiam em Lol V. Stein, incubadas, mas a grande afeição que
sempre a tinha cercado, em sua família e depois no colégio, tinha impedido que
aflorassem. No colégio, diz ela, e não era a única a pensar dessa maneira, já faltava
algo a Lol para estar — ela diz: presente."(8)

81
Daniele Fernanda Eckstein

posto que não se pode dizer onde este "lá"se situa no ser de Lol. Uma
imprecisão que a história se encarregará de manter.
A forma como o advérbio de lugar "lá"retorna ao longo do texto produz
uma repetição por deslocamento de sentido, já que o advérbio com-
porta, pelo menos, duas significações diferentes: uma associada à do-
ença que já se havia manifestado em Lol e outra à expressão de um tema
retomado ao longo do enredo, que exprime a impossibilidade de Lol
estar "aqui", no presente. O "estar lá"funda uma falha na nomeação do
lugar ocupado por Lol.
Ao longo do romance a repetição do advérbio "lá"convida o leitor a
escutar a história. O "lá"vai designar por vezes o tempo, por vezes o es-
paço e por outras o artigo feminino. Sentidos diferentes vão produzir
o mesmo efeito sonoro: "Je vais donc la chercher, je la prends, là où
je crois devoir le faire"(14); "jusque-là: la ponctualité"(36) ; "cet été-là"
(46); "çà et là, loin, le nom est là: Tatiana Karl"(58)55 , tendo como efeito
a autorreferencialidade do texto, ao mesmo tempo em que produz o
avanço do texto por via da sonoridade das palavras ao invés do sentido
propriamente dito. Ao longo da história, o leitor parece escutar o baile.
Contudo, ao mesmo tempo que esse "lá", musicado no texto, produz um
efeito de continuidade narrativa, ele aponta para um buraco no texto e
na história de Lol, que não consegue ocupar um lugar enquanto sujeito
do discurso. É neste sentido que o "lá", enquanto palavra-buraco56 , vai
tentar ser recoberto por via do narrador que tenta reconstruir a memória
de Lol através de fatos/impressões que conhece e outros que desconhece,
mas que lhe são revelados por intermédio de Tatiana Karl e de outros
personagens em torno de Lol V. Stein.
Ao se apoiar em Tatiana, o narrador deixa entender que não está seguro
sobre o que ela conta, evidenciando no texto a dificuldade de aceder à
memória do evento, verificada na dupla designação que o narrador lhe

55
"Portanto, vou procurá-la, junto-me a ela onde penso dever fazê-lo"(9); "até então:
a pontualidade"(26); "a luz das tardes de verão"(33); "aqui e ali, distante, o nome aí
está: Tatiana Karl"(43).
56
Pansiot Preud’homme, Philippe, 2017, p. 170.

82
A repetição no arrebatamento

impinge: "[...] Tatiana, elle, [...]", este "elle"reenvia a Tatiana, e marca


a posição na qual o narrador a coloca. Ela partilha com ele o ponto de
vista da história de Lol, mas este por vezes é rejeitado pelo narrador.
A reconstrução da história fragmentada, pois que é feita de muitos pe-
daços de lembranças provindas de olhares diferentes sobre o baile, é re-
presentada pelo narrador através de expressões como: "Cela aussi:"(12);
"Ce que je crois :"(45); "Je ne crois plus à rien de ce que dit Tatiana, je
ne suis convaincu de rien."(14)57 . Estes excertos mostram um narrador à
procura de elementos para preencher o buraco que o evento causou na
vida de Lol. É assim que os questionamentos constantes do narrador
produzem uma repetição literal que aparece na estrutura textual provo-
cando rupturas, dando a impressão de que o narrador anda em círculo.
Além do mais, as frases recorrentes, curtas, seguidas constantemente
pelos dois pontos:"je vois ceci:"(53); "je vois ceci:"(55) ; "j’invente:, je vois
:"(56) "j’invente:"(56)58 , vão acentuar a impossibilidade de contar uma
história sem inventar.
Esta repetição literal que o texto faz ressaltar, seja pelo deslocamento
do advérbio "lá", seja associada a questão do saber, por meio das idas e
vindas do narrador que hesita, está submetida ao plano diegético. Na
verdade, este lugar indeterminado, ou ainda, esta agonia proveniente
das incertezas repetidas por Jacques Hold não repousa nele, é próprio
do enredo (Lacan, 1975) que está focado na impossibilidade de aceder a
cena do baile, de rememorá-la.
Este trabalho de rememoração de uma vivência que não pode ser con-
tada é uma característica das narrativas modernas. Quer seja pela trans-
missão de uma memória individual ou coletiva, estas narrativas proble-
matizam a impossibilidade de narrar, ou ainda, é apesar desta impos-
sibilidade que se narra, numa entrega total ao desconhecido, ao que o
narrador ignora saber.59

57
"E mais isto:"(7); "Por mim, eis o que acredito:"(33); "Não acredito mais em nada do
que diz Tatiana, não estou convencido de nada."(9).
58
"Vejo o seguinte"(39); "Vejo o seguinte"(40); "Invento, vejo:"(41); "Invento"(41).
59
Hamel, Jean-François, 2006.

83
Daniele Fernanda Eckstein

No caso de Ravissement, esta impossibilidade de inscrever a cena acon-


tece porque quem viveu a cena não a pode lembrar, a história do baile
escapa à memória de Lol. Se pensarmos com Freud (1914) que o fato de
rememorar permite desvendar a causa da repetição, a impossibilidade
de Lol de rememorar a cena a impede de inscrevê-la, de elaborá-la, sobre-
tudo porque há uma impossibilidade de repetir a cena originária. Assim,
a repetição no plano diegético só pode existir por meio de uma trans-
ferência, ou seja, a memória desta cena primeira só pode se inscrever
enquanto uma memória partilhada por Lol e Hold.
Desta forma, o Ravissement seria uma narrativa de memória onde o
fio condutor do romance é a lembrança da história, que, longe de ser
construída individualmente, é partilhada: Lol precisa de Hold e Hold
precisa de Tatiana, de Lol.60 Neste sentido, a retomada infinita da cena
do baile não é a representação da cena do baile, visto que a cena não pôde
ser representada por Lol. Consequentemente, esta cena que poderíamos
pensar como primeira não o é, porque não foi inscrita para poder ser
repetida, elaborada. Assim, este passado será apenas um falso passado,
um passado feito de impressões, aberto a possibilidades, uma invenção
do narrador.
Poderíamos pensar que o retorno de Lol ao local do baile seria uma
tentativa de enfim dominar o acontecimento. No entanto, Lacan (1975)
adverte que o retorno a estas cenas que o romance apresenta, mais do
que repetir o acontecimento, refaz o nó. Ao ir a T. Beach, Lol não re-
torna fisicamente, ela fica "lá"na estação de trem, retida diante do reflexo,
posto que é através dele que ela vê a praia: "je ne voyais pas directement
la mer. Je la voyais devant moi dans une glace sur un mur [...] Je ne suis
pas allée sur la plage. L’image dans la glace était la."(152)61
É pela mediação do espelho que Lol consegue estar presente, ainda que
fisicamente ausente. O fato de estar "lá"a coloca em posição de estar sem-

60
Tomiche, Anne, 2006.
61
"Eu não via diretamente o mar. Via-o à minha frente em um vidro numa parede [...]
Tenho a certeza, não fui à praia. A imagem do vidro estava lá."(114)

84
A repetição no arrebatamento

pre em outro lugar, distante dos outros, mas suficientemente próxima


para ver através de um reflexo, de uma janela.
Se o "lá"significa a ausência de Lol, ele se transforma no lugar onde Lol
mora "lá"na sua lembrança. Isto se inscreve, na verdade, na figura do
esquecimento de Lol, é assim que a repetição do advérbio é ressignifi-
cada na estrutura textual: "En quelque point qu’elle s’y trouve Lol y est
comme une première fois. De la distance invariable du souvenir elle ne
dispose plus: elle est là."(p. 43)62
Quando Lol chega ao local do baile, ela está com Jacques Hold, ela pre-
cisa dele para retornar: "Sans vous j’ai compris que ça n’en vaudrait
pas la peine. Je n’aurais rien reconnu. J’ai pris le premier train qui re-
venait."(167)63 Na presença de Hold o traço de memória se esvai e a
reinscrição acontece pela memória partilhada, que no entanto, já é ou-
tra: Elle revoit sa mémoire-ci pour la dernière fois de sa vie, elle l’enterre.
Dans l’avenir ce sera cette vision aujourd’hui, de cette compagnie-ci à
ses côtés qu’elle se souviendra."(175)64
Este apagamento da memória questiona o próprio jogo do retorno tex-
tual, como se, mesmo reduplicada, a materialidade do texto se esvaísse.
A história de Lol escreve, assim, o desaparecimento de uma lembrança
que sempre só existiu aos pedaços, esburacada. Esta memória ida, par-
tida, retoma a posição de imobilidade do personagem, como podemos
ver ainda no fragmento a seguir: Elle ne se plaint plus. Elle ne bouge
plus, se souvient sans doute qu’elle est là avec l’amant de Tatiana Karl.
(p. 188)65
Esta imobilidade volta por meio da anáfora que insiste em uma não-
ação de Lol : "Elle ne"/ "Ela não". Além do mais, a aplicação da mesma

62
"Em qualquer ponto em que se encontre, Lol está como se fosse a primeira vez. Da
distância invariável da lembrança não dispõe mais: está presente."(31)
63
"Sem você, compreendi que não valeria a pena. Não teria reconhecido nada. Tomei
o primeiro trem que voltava. (126)
64
"Ela revê sua memória aqui pela última vez de sua vida. Ela a enterra. No futuro,
será desta visão de hoje, desta companhia aqui a seu lado que ela se lembrará. (132)
65
"Ela não se queixa mais. Não se mexe mais, lembra-se provavelmente de que está
com o amante de Tatiana Karl."(143)

85
Daniele Fernanda Eckstein

estrutura de frase nos permite ver o comportamento recorrente do per-


sonagem expresso pela palavra "plus"que está dobrado e acentua a ne-
gação, reenviando o leitor para o passado da narrativa. O fato de ter do
que lamentar a faz mover-se, no entanto, Lol encontra um lugar que
é: estar no lugar do outro. Entretanto, o outro também não se move:
Tatiana Karl está na sombra. Assim, Lol está lá com o outro: o casal.
É nesta configuração triangular que a repetição se inscreve na estrutura
narrativa, na memória textual, através da própria estrutura do ravis-
sement. O triângulo é representado primeiramente por Lol, Michael
Richardson e Anne-Marie Stretter e substituído por Lol, o narrador
Jacques Hold e Tatiana, amiga e amante de Hold. Esta reconfiguração
triangular tem como função a reinscrição da cena, já que a posição que
os personagens ocupam é a mesma que a anterior. Não há, assim, ne-
nhuma mudança na movimentação ou na atuação dos personagens que
trouxesse um outro posicionamento subjetivo e a repetição acontece
porque a estrutura do ravissement, o seu duplo sentido, se mantém.
Somos tentados a pensar que esta estrutura triangular revelaria o "desejo
mimético", postulado por René Girard em Mensonge Romantique et
vérité romantique (1961), onde a estrutura triangular do desejo funciona
através de um mediador que se situa entre o sujeito e o objeto. Neste
sentido o interesse de Michael Richardson por Anne-Marie Stretter
despertaria o próprio desejo de Lol, a triangulação é mantida pela rivali-
dade entre as duas mulheres que ocupam posições diferentes, visto que
Anne-Marie Stretter é aquela que rouba Michael Richardson de Lol —
que por sua vez inveja a outra mulher. Anne-Marie Stretter seria, assim,
a mediadora do desejo de Lol.
Para Girard (1961), a figura do invejoso, que Lol representaria, está mar-
cada por uma propensão irresistível de desejar o que os outros desejam,
em outras palavras, uma propensão a imitar os outros. Esse mimetismo
do desejo do outro se justifica ao lermos no texto que Lol imita: "Lol
imitait, mais qui ? les autres, tous les autres, le plus grand nombre pos-

86
A repetição no arrebatamento

sible d’autres personnes."(34)66 No entanto, como o avanço da leitura,


vê-se que essa imitação dos outros, de qualquer outro, se dá pela perda
da identidade. Lol está "lá ", substituindo Tatiana Karl. Este "lá "que
retorna para falar de/a Lol não é apenas um lugar, ele se torna o tempo
presente. Lol sai do passado quando encarna a outra mulher.
A metáfora lacaniana do terceiro67 mostra justamente a impossibilidade
de Lol de estar na posição de sujeito, posto que Lol não pode formar
uma dupla, um casal, porque para isso, seria preciso estar a três. Este apa-
gamento do eu também é analisado por Cixous, que descreve a escrita
durassiana como um caminho para o vazio. Cixous diz que os textos de
Duras escorrem, que há o que ela chama "efeito Duras", que faz com
que o leitor não consiga compreender os seus textos. Este efeito que
o texto durassiano produz viria do uso de uma linguagem enigmática,
lacônica, que confunde mais do que esclarece porque permanece no ter-
reno do entredito e arrebata o leitor. Segundo Cixous, em diálogo com
Foucault68 , Duras inventou a "arte da pobreza", um estilo que se desfaz
das coisas, da linguagem, do personagem. Este encurtamento descrito é
visível no romance Ravissement quando o personagem de Lol captura
a lembrança, ela se perde novamente:

Elle reconnaissait S. Thala, la reconnaissait sans cesse et pour l’avoir


connue bien avant, et pour l’avoir connue la veille, mais sans preuves
à l’appui renvoyée par S. Thala, chaque fois, balle dont l’impact eût
toujours été le même, elle seule, elle commença à reconnaître moins,
puis différemment, elle commença à retourner jour après jour, pas à
pas vers son ignorance de S. Thala. Cet endroit du monde où on croit
qu’elle a vécu sa douleur passée, cette prétendue douleur s’efface peu
à peu de sa mémoire dans sa matérialité. (42)69

66
"Lol imitava, mas quem? Aos outros, todos os outros, o maior número possível de
outras pessoas."(24)
67
Jacques Lacan, 2001.
68
Foucault, Michel, 1975, p. 1931.
69
"Reconhecia S. Tahla, reconhecia-a ininterruptamente, por tê-la conhecido bem an-
tes e por tê-la conhecido na véspera, mas sem provas de reconhecimento devolvidas
por S. Tahla, cada vez, bola cujo impacto sempre teria sido o mesmo: quanto a ela,
sozinha, começou a reconhecer menos, depois de maneira diferente, começou a vol-

87
Daniele Fernanda Eckstein

Este apagamento atinge em cheio o ser de Lol, silenciando-o. O que foi


roubado propriamente à Lol foram as palavras, ela chora e grita, mas
não é ela que conta a sua história, são os outros que a tentam montar.
Esta falta, este buraco, é um atributo da vida do personagem que apa-
rece espelhado na estrutura formal. É uma história de palavras roubadas
e é porque as palavras não estão lá que a repetição tem lugar, no jogo
gramatical. É somente neste assalto, no sobressalto, que Lol pode exis-
tir. Pensar em Lol ocupando a posição de sujeito é pensar que a sua
essência está na certeza de ser arrebatada: "O ser de Lol seria o de ser lá,
perpetuamente oblíquo70 ."
Através destas repetições presentes no texto, poderíamos ainda pensar
que Lol também foi submetida a este estranhamento que a linguagem
textual apresenta, fazendo repetir a cena do baile, a partir do incipit que
apresenta a cena de uma outra dança: "Elles dansent toutes les deux, le
jeudi, dans le préau vide"(11)71 . No entanto, não podemos pensar que
o tema da dança das duas jovens seja o motor do desencadeamento da
cena do baile, e também não podemos dizer que a origem fantasmática
esteja lá, pois neste momento não há sinal de horror ou de espanto.
A cena de dança no tempo da juventude só é repetição originária porque
aparece textualmente como primeira, e será inclusive retomada na his-
tória, numa repetição quase idêntica ao texto que aparece na abertura
do romance:
"Le jeudi, Tatiana raconte, elles deux refusaient de sortir en rangs, avec
le collège, elles dansaient dans le préau vide — on danse, Tatiana ? — un
pick-up dans un immeuble voisin, toujours le même, jouait des danses
anciennes — une émission-souvenir qu’elles attendaient [...]."(85)72

tar dia após dia, passo a passo, para sua ignorância de S. Tahla. Este lugar do mundo
onde se acredita que viveu sua dor passada, aquela pretensa dor, apaga-se pouco a
pouco de sua memória em sua materialidade."(31)
70
Pansiot Preud’homme, Philippe, op. cit., p. 180.
71
"Às quintas-feiras, as duas dançavam no pátio vazio."(7)
72
"As quintas-feiras, Tatiana conta, as duas recusavam-se a sair em fila, com o colégio,
dançavam no pátio vazio — vamos dançar, Tatiana?"(63)

88
A repetição no arrebatamento

É neste sentido que a cena do baile já é a repetição da história de uma


dança73 e o estatuto de cena originária se perde por entre as quintas-
feiras em que Lol e Tatiana dançavam.
O retorno à cena do baile não possibilita a Lol recompor a sua memória,
ela encarna, assim, a experiência de uma dor impossível de apreender,
configurando, desta forma, o sofrimento de um luto incompleto74 . Lol
é alguém que vive com a presença de uma ausência, é assim que Duras
nos apresenta uma escrita da "memória destruída ", segundo Tomiche75 ,
ou da "memória sem lembrança ", para retomar Foucault76 .
Em contrapartida, o que singulariza estas poéticas modernas impregna-
das de repetição, em que o passado vem inundar a narrativa, é a forma
como a narrativa inverte o trágico da experiência de crise: "As poéticas
modernas da repetição efetuam o equivalente a um trabalho de luto,
mas sem limite nem fim, pelo qual a patologia de uma memória amné-
sica é revertida em uma memória libertadora."77 . Ao deixar em aberto
possibilidades do porvir, o passado pode sempre voltar para os seus ho-
rizontes.
Mais do que a busca pela verdade de Lol, esta proposta de leitura pre-
tendeu contar a história de Lol abrindo para a multiplicidade que o
texto nos faz enxergar. Se um texto tiver valor de eterno pela sua ca-
pacidade de produzir sentidos, a história do texto, da Ausência ou do
Deslumbramento, pode reverter as suas possibilidades para inscrever o
*Arrebatamento de Lol V. Stein. *

73
Tomiche, op.cit., p. 101
74
Kristeva, Julia, 1989, p. 247.
75
Tomiche, op.cit., p. 107.
76
Foucault, Michel, op.cit, p. 1975.
77
"Les poétiques modernes de la répétition effectuent l’équivalent d’un travail de
deuil, mais sans seuil ni terme, par lequel la pathologie d’une mémoire amnésique
est renversée en une remémoration libératrice."Hamel, (2006, p. 101)

89
Daniele Fernanda Eckstein

referências

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LACAN, Jacques. Hommage fait à Marguerite Duras du Ravissement
de Lol V. Stein (1965). In Autres écrits. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p.
191-197.

90
A repetição no arrebatamento

PANSIOT PREUD’HOMME, Philippe. "L’être et le "là"dans le Ra-


vissement de Lol V. Stein"(170). In Cousseau, Anne (dir.), Marguerite
Duras, paysages, p. 163-180. Garnier: Paris, 2017.
TOMICHE, Anne. Récits de mémoire. Du ravissement de la mémoire
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93-107. DOI 10.3917/r2050.hs2.0093
TOMICHE, Anne. Repetition : Memory and Oblivion (Freud, Duras,
and Stein). In Revue de Litterature Comparee, n° 259, juillet-septembre
1991. p. 261-276.
TON-THAT, Thanh-Vân. Marguerite Duras, Le ravissement de Lol V.
Stein — un roman de la folie amoureuse. Nantes: Editions du Temps,
2005.

91
d u r as — e s c r e ver, uma
paixão
marcella moraes

D
e m a r g uerite duras, a lentidão — la lenteur. A do-
çura — la douceur. O silêncio — le silence. O grito — le cri. O
sono — le sommeil. Alguns substantivos insistentes, carregados de certa
abstração e que, no entanto, são capazes de compor uma imagem. Ou
ao menos de evocar certa atmosfera que, para mim, fazia eco de um lugar
particularmente feminino — o da lentidão de uma espera. O da posição
de objeto, de receptáculo do desejo do outro.
O que está para acontecer a essas personagens imóveis? O que dizer
desse apaixonamento pela imobilidade? Por que elas não são capazes de
romper com essa lentidão absoluta e — finalmente — agir?
Decidi me deter nessa passividade — conviver com ela. Para isso, elegi
três momentos, na esperança de que algo viesse finalmente a acontecer.
Primeiro, em 1975, India song. Depois, em 1971, L’amour. Por fim, em
1964, O deslumbramento. Dessa convivência, alguma coisa me foi sub-
traída. Minhas suspeitas não conseguiram nada em que se fixar. O que
apresento aqui, portanto, é esta imagem arruinada — na minha tenta-
tiva de dobrar o texto de Duras às minhas próprias expectativas, o texto
acabou por se virar contra mim. Eu me curvei a ele.
Percebi, nesse movimento, outro caminho possível para me aproximar
de Duras. O tema do amor.

92
Duras — escrever, uma paixão

India song. A câmera, estática, registra o pôr do sol no horizonte. Não


vemos a mendiga, mas escutamos seu canto. Vinda da Birmânia, ela
nasceu em Savannakhet. Eles se lembram. A respeito de Anne-Marie
Stretter, não podem nos dizer muito, mas podem nos contar o que se
passou com a mendiga que canta. Faz dez anos que caminha. Foram
doze crianças mortas. Ela as deixou, em direção a Bengala. Ela ficou
grávida aos 17 anos. Sua mãe a expulsou de casa. Agora, ela é estéril. E
louca. Ela canta.
Adentramos os muros de India song. Sobre a cômoda empoeirada, to-
camos as roupas brilhantes de Anne-Marie Stretter, seus acessórios ele-
gantes. Não são os mesmos do baile no qual se encontrou com Michael
Richardson. Lá, ela usava preto. E chegou tarde. Depois, Michael a se-
guiu até a Índia. É tudo o que sabemos desta mulher cuja voz ainda não
escutamos.
Um hotel abandonado serve de locação para a filmagem. Uma embai-
xada cujas paredes estão todas cobertas por limo, contaminadas por este
odor de limo. É de ruínas que se trata — uma história fora do tempo,
envelhecida antes mesmo que se comece a contar isso que ninguém sabe
bem — o que acontece dentro desses muros.
Há um desarranjo evidente entre o que se mostra na tela e o que se
narra pela fala. Mas tampouco se trata propriamente de narração —
acompanhamos a história por meio de diálogos entreouvidos, sem saber
exatamente de quem são as palavras pelas quais nos guiamos. São criados
que espreitam o salão e comentam as vidas de seus patrões?
Lembro, a respeito desses diálogos, uma observação de Maurice Blan-
chot. Ele diz, sobre Le square, de Marguerite Duras, o seguinte:
Nos romances, a parte que chamamos de dialogada é a expressão da
preguiça e da rotina: as personagens falam para colocar brancos numa
página, e por imitação da vida, na qual não há narrativa mas con-
versas; é preciso pois, de tempo em** **tempo, dar a palavra às pessoas,
nos livros; o contato direto é uma economia e um repouso. (BLAN-
CHOT, 2005, p. 223. Grifo nosso.)

93
Marcella Moraes

E, no entanto, não é isso o que acontece nesse filme de Duras. Os diá-


logos não nos proporcionam um contato direto, mas nos colocam jus-
tamente "diante de um acontecimento inabitual", "raro", como diz
Blanchot. Tentamos nos situar nessa diferença entre a cena que a câmera
nos mostra e as confidências trocadas entre figuras que não vemos.
Quanto às personagens, o que sabemos sobre elas é sempre muito pouco
— recebemos fragmentos de suas vidas, seus olhares vagos, as palavras
que trocam entre si em diálogos abruptos, irregulares. Gravitamos em
torno de Anne-Marie Stretter, sem, no entanto, saber o que se passa
com ela. Ela parece vítima de um tipo de sofrimento indolor, comenta
uma criada. Sua voz sem expressão não nos conta nenhuma história.
Como se exprimisse um grito. O único remédio é a imobilidade, ela diz.
Ficamos em silêncio com esta bela mulher entediada, que "não conse-
gue se adaptar", que dá "a quem deseja", "a quem tem fome". Ela sente
calor. Ela dorme. É monótono. E aqui estão todos os seus homens to-
mados por essa monotonia, torpes de calor, protegidos por muros que
os cercam do canto de loucura que os espreita.
Há, contudo, um grito — um grito de amor. Eles precisam saber que
se pode gritar de amor, diz o vice-cônsul apaixonado. Ele gritou por
toda a noite. Eles não o impediram. Seu grito não foi sufocado. Mas
tampouco foi ele capaz de quebrar a lentidão do ritmo de baile que
nos embala a todos, junto com os personagens. Amanheceu, entre
movimentos muito lentos.

L’amour. Esta é a cena inicial: um triângulo móvel se desloca so-


bre a praia — um personagem em cada ponta. Um homem de pé sobre
a calçada de tábuas, olhos abertos. Uma mulher sentada sobre a areia,
olhos fechados. Outro homem caminhando de um lado para o outro,
sobre a areia, ritmadamente, sem olhar para nada. É a imagem de um
esquema emocional? Trata-se de um conflito amoroso? Nunca ficamos

94
Duras — escrever, uma paixão

a par da intriga — ela apenas se mostra como relance, em uma imagem


furtiva, e nunca sob os modos do melodrama.
O romance se desloca sob o olhar do espectador. Por meio de proce-
dimentos descritivos, a narrativa se afasta da narração e, portanto, de
qualquer matéria narrada — o que temos não é um fio narrativo, mas
um feixe de luz — le réseau de la lenteur (DURAS, 1971, p. 11), uma rede
da lentidão.
O enredo se esvai. Não há sequência lógica de fatos, não há trama, nada
efetivamente chega a acontecer — estamos aqui sob outra espécie de
temporalidade, que se constrói pela recorrência de alguns elementos,
que reaparecem, aludindo a ocorrências anteriores, mas sem propria-
mente estabelecer um elo claro com elas.
Os personagens tampouco existem como tais. Para começar, eles não
têm nome — são designados apenas por pronomes de tratamento
("ele"e "ela"). Não há um conjunto de características que lhes possam
ser atribuídas — há apenas a recorrência dessa estratégia gramatical e,
no melhor dos casos, epítetos que retomam a cena inicial em que eles
são apresentados ("o viajante", "o homem que anda", "a mulher"). O
leitor é lançado a um jogo incerto — esta mulher que aparece agora é a
mesma cuja trajetória acompanhamos desde o início? Não sabemos. Os
diálogos tampouco nos asseguram qualquer coisa — trata-se sempre de
uma montagem dispersa, em que nada se ajusta perfeitamente.
Somos acometidos por "uma violenta esperança"(ibid., p. 18) de que
alguma coisa vá acontecer — "car quand même le temps passe"(ibid., p.
45), o tempo passa. "L’histoire. Elle commence" (ibid., p. 14), a história
começa; "quand l’histoire a-t-elle commencé?"(ibid., p. 14), quando a
história começou?
Ouve-se um ruído. O que é?, ele pergunta. "Eles comem", ela diz, "ou
eles entram, ou eles dormem, ou nada"(ibid., p. 27), ela diz. Não faz
diferença. Não se trata de ações. Trata-se de uma certa atmosfera. O
tingimento de certa atmosfera. E uma experiência do tempo. De esperar
aquilo que, no entanto, não chega a acontecer.

95
Marcella Moraes

Em determinado momento, há menção a um crime, que estaria confi-


nado aos limites de uma prisão, dentro dos muros. E ela, a prisioneira,
do lado de fora, em um "internamento voluntário"(ibid., p. 51). Mas não
se esclarece nada a respeito desse fato — o que se segue é a descrição da
fachada de uma casa, das plantas que se movem com o vento. A nar-
rativa é deslocada para outros valores, não mais o dos acontecimentos.
Mesmo esse recurso que aciona um clichê narrativo caro à narrativa de
suspense ou ao romance policial é imediatamente ignorado. Os fatos
são apagados. Não se tem acesso a eles. Eles não se tornam visíveis.
Quem é esta mulher que chega agora com dois filhos pelas mãos, aten-
tos, ansiosos, vestidos de luto? Não sabemos. Ela pede: eu posso entrar
para conversarmos? Ele diz: eu te escrevi. Mas sabemos que ele nunca
enviou essa carta na qual pedia que ela não viesse, na qual dizia que não
valia mais a pena. Ela diz: eu não compreendo. Ela pergunta: você dei-
xou de....? Ela diz: eu me pergunto mesmo se, mesmo no começo, você
alguma vez me... Sem dúvida não, ele responde. Ela pergunta: isso dura
desde quando? Ele responde: desde sempre. E eu, pobre de mim, que
não duvidava de nada.
Esse arremedo de separação é talvez a cena de intensidade romanesca
mais aguda — e, ainda assim, ela é interrompida a todo momento pela
descrição da luz que atravessa o cômodo e se refrata de determinada
maneira, pelos ruídos externos que anunciam novos focos de incêndio
e entrecortam o diálogo dos dois. Entre uma série de incêndios de que
as sirenes nos fazem saber, restam, espalhadas, as cinzas do que já houve
— e que, no entanto, nunca chegamos a conhecer. A cena nos alcança
apenas no final do livro, sem nos dizer efetivamente nada sobre o que
aconteceu nesta história em que já estão todos mortos.
Amor, ela diz. Depois, "os olhos se abrem, eles olham sem ver, sem
reconhecer nada, depois eles se fecham novamente, eles voltam ao
preto"(ibid., p. 115). O amor como essa imagem que falta, um lance no
escuro, a aventura do não reconhecimento? É desse apaixonamento que
se trata errar por esse romance em que não se pode reconhecer o menor
fio que seja?

96
Duras — escrever, uma paixão

Ela parece esperar sempre por ele. Ela parece ter sempre esperado por
ele, pela viagem que empreenderão juntos, a viagem a S. Thala. Ela o
espera na praia, encostada ao muro. Mas eles já estão em S. Thala. Ela
dorme.

O deslumbramento. Este romance nos aparece de maneira mais


apreensível. Há um núcleo básico de personagens principais: Lol,
Jacques, Tatiana. Há uma cronologia delimitada: desde há dez anos,
uma vida que se recompôs, a despeito de um evento traumático. Um
marido. Três filhos. Uma casa em ordem.
Há um narrador, que, inclusive, assume, de maneira clara, seus abusos
sobre a matéria narrada. Ele inventa. O que ele conta não é a história
de Lol, mas "a sua história de Lol". Não é simplesmente que ele tenha
uma visão própria da história que se passa ou que ele não tenha acesso à
interioridade de Lol e de Tatiana, ao que elas verdadeiramente pensam
e sentem, mas é que ele precisa, para contar a sua própria história, de
contar a história de Lol. E, para isso, ele precisa dos relatos de Tatiana.
Nesse jogo a três, o amor não se baseia propriamente em uma relação
entre o sujeito e seu objeto de desejo — há uma imbricação entre os per-
sonagens que opera uma torção no que se possa chamar uma posição
passiva de objeto, ainda que se pense que a posição de objeto muitas
vezes demanda um esforço bastante ativo. Como propõe Lacan, Lol
não é uma voyeur, ela não está à margem do que se passa, ela não é mera
espectadora — ela ativamente participa da cena. "O que acontece a rea-
liza"(LACAN, 2003, p. 195).
Lembremos ainda o seguinte: Jacques nos conta que é Lol quem o es-
colhe. E ela o escolhe para segui-lo, como antes havia escolhido seguir
também a Jean. É Lol quem decide: Jacques, você não deve parar de ver
Tatiana. Trata-se, portanto, de decisão — de ação. Trata-se, ao mesmo
tempo, de apassivamento — de decidir-se por ser guiada pelo outro, por
se manter no obsceno do palco — onde a cena é tramada, mas não onde

97
Marcella Moraes

ela de fato se passa. É preciso pensar — é o que Duras nos impõe — uma
cena em muitos tempos, nunca contemporânea a si. O que de fato se
passa não esgota a dimensão do que acontece.
Se Lol não dispensa Tatiana da cena, Tatiana tampouco se dispensa de
Lol. Ela, em determinado momento, afirma que não conseguiu ter uma
vida "precisa"como a de Lol, situando-a como uma mulher tradicional,
assentada, uma mãe, afinal. Mas não é assim que Jacques vê. Jacques
afirma que o único ponto fixo na vida de Tatiana, o lugar onde ela se
ancora e para o qual sempre volta é justamente o seu marido. O que
Tatiana empresta de Lol parece ser justamente o que escapa à precisão:
uma fantasia de amor. Se Lol se curar completamente, então isso signi-
fica que é possível se curar de um amor? Então é possível se recompor
de um golpe do mais completo amor?
Leyla Perrone Moisés assinala, no posfácio de O amante, o fato de que
os enredos de Duras sejam de uma banalidade quase folhetinesca: "são
intrigas aparentemente banais, histórias de amor quase folhetinescas: a
noiva traída que enlouquece, a mulher fatal que provoca a morte dos
amantes, os diplomatas fúteis e desesperados"(PERRONE-MOISÉS,
2012, p. 104). Assim acontece neste romance de 64 — a situação inicial
se apoia basicamente na frustração amorosa de uma jovem de dezenove
anos, abandonada no baile por um homem de 25 que havia prometido se
casar com ela. Depois disso, certa promiscuidade reservada, uma relação
a três.
De certa maneira, Duras insiste no tema do amor como algo de cen-
tral (ou, pelo menos, de recorrente) ao longo de sua obra. Poderíamos
mesmo dizer que, fazendo assim, ela aciona certo estereótipo da femi-
nilidade — aliás, neste ponto não nos referimos apenas ao romance
romântico, como à história do romance como um todo. A esse respeito,
cito o antropólogo britânico Jacques Godoy:
A hostilidade para com a ficção da parte das autoridades culturais fa-
zia assim com que seu consumo, e em certos limites a sua produção,
fossem reservados a elementos ’marginais’ como as mulheres. Na Eu-
ropa do século XVIII os leitores de ficção eram em sua maioria mulhe-
res; os romances franceses sempre eram escritos por mulheres, e eram

98
Duras — escrever, uma paixão

ainda estas que constituíam o público principal dos romances ingle-


ses do século XVIII. Precisamente a predominância do público femi-
nino era uma das razões que atraíam críticas ao romance. Sobretudo
as mulheres é que eram desencaminhadas e enganadas, em particular
pelos longos romances (...). (GODOY, 2009, p. 55)

É a partir desse contexto que, no século XIX, a personagem de Emma


Bovary passa a ser tomada como um conceito — o bovarismo é então
a atitude, considerada tipicamente feminina, de se ausentar do mundo
em direção a uma realidade virtual. Considerava-se que as mulheres, em
suas leituras ociosas, passavam a fantasiar com "uma vida de luxo, com
uma condição social mais elevada"(ibid., p. 58). A esse respeito, retomo
a aposta de Maria Rita Kehl, que destaca o bovarismo como simples
desdobramento "dos delírios de ascensão social e autonomia que sus-
tentam a ordem burguesa"(KEHL, 2016, p. 30), mas que as mulheres,
por terem sido confinadas à vida doméstica, apenas podiam viver por
meio da literatura e da relação amorosa com um homem.
Destaco ainda o comentário de Kehl, que indica a maneira como o sur-
gimento dessa comunidade de leitoras e autoras acabou por forjar uma
espécie de identidade feminina. Cito:

O que aqui chamo de ’identidade feminina’ são os contornos comuns


— frequentemente transformados em clichês — que resumem expe-
riências subjetivas nas quais a maioria das mulheres se reconhecia. Os
sentimentos de isolamento, de frustração das expectativas amorosas
depois do casamento, de dificuldade de expressar emoções e conflitos,
a luta por manter alguma autoestima quando os filhos cresciam (ou
quando não se tinha filhos), a inibição diante dos homens e ao mesmo
tempo a hostilidade abafada em relação a eles, as fantasias e os anseios
por uma felicidade vaga e sempre fora de alcance são aspectos frequen-
tes nos relatos de vidas de mulheres — tanto os confessionais quanto
os ficcionais. À medida que algumas mulheres tornaram públicas as
experiências vividas, uma a uma, por tantas outras, produziu-se um
campo de identificações em que as mulheres puderam se reconhecer,
assim como reconhecer suas diferenças em relação aos ideais de femini-
lidade produzidos a partir do suposto saber masculino. (KEHL, 2016,
p. 81)

99
Marcella Moraes

A par desse breve histórico, o que nos importa aqui é observar a maneira
como Duras é capaz de desdobrar o estereótipo a ponto de que ele fi-
que absolutamente irreconhecível. O que ela escreve e filma parte do
tema de amor banal e folhetinesco de suas personagens femininas para
transformá-lo em um romance absolutamente lacunar, no qual as ações
não tomam curso e o conflito amoroso não ganha contornos de melo-
drama. Nesses textos, a oposição entre ação e inação — entre agência
e passividade — é desestabilizada: a escrita não opera nos termos desse
binarismo, nem mesmo enredo ou personagens se dobram a ele.
A paixão que sofremos, como leitoras, não é, por fim, a do enleio de um
romance arrebatador — mas justamente a submissão a essa linguagem
que se nega, até o fim, a nos conceder uma posição passiva.

100
Duras — escrever, uma paixão

referências

BLANCHOT, Maurice. "A dor do diálogo". In: _____. O livro por


vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. pp.
221-234.
DURAS, Marguerite. L’amour. Paris: Éditions Gallimard, 1971.
_____. O Deslumbramento. Trad. Ana Maria Falcão. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1986.
GODOY, Jack. "Da oralidade à escrita". In: MORETTI, Franco (org.).
A cultura do romance. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify,
2009. pp. 35-67.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do feminino. São Paulo: Boitempo,
2016.
LACAN, Jacques. "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebata-
mento de Lol V. Stein". In: _____. Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 198-206.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. "A imagem absoluta". In: DURAS,
Marguerite. O amante. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac
Naify, 2012. pp. 103-114.

Filmografia

India Song. 1975.

101
a m o r , u m a e s c rita de
p a l a v r a s s o zinhas
g iselle moreira

— Aqui é S. Talah, até o rio.


— Depois do rio é ainda S. Talah.
Duras

S
e t e a n o s depois da primeira e dição, Marguerite Du-
ras reescreve O arrebatamento de Lol. V. Stein (1964). Essa reescrita
se chama Amor (L’amour, 1971)78 . Entretanto, não há uma continui-
dade da narrativa e os livros não fazem série entre si. Nessa passagem do
Arrebatamento ao Amor, um outro tempo se desenha, fora da ordem
cronológica dos acontecimentrfos. Tudo se passa em S. Talah e tudo ali
é S. Talah, uma cidade sem fronteiras definidas e único nome próprio do
livro. O mar é uma paisagem constante e as personagens se encontram
nesse espaço impreciso, fora do mundo, apartadas da sociedade. Esse
apagamento das Referências espaço temporais converge, ainda, com o
78
Todas as citações de L’amour são extraídas da tradução de Paulo de Andrade. Amor
foi sua escolha tradutória para o título, dentre outras justificativas ele escreve: "no
único momento em que a palavra amour aparece no livro [...] ela surge assim, soli-
tária, como que desgarrada da língua, sem nenhum artigo ou qualquer outro deter-
minante"(ANDRADE, 2005, p. 22). Essa tradução foi objeto de sua tese de douto-
rado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFMG, em maio
de 2005.

102
Amor, uma escrita de palavras sozinhas

movimento de Duras de extenuar o texto, o que se mostra pela maneira


distinta como esses livros começam:
Lol encontrou Michael Richardson aos dezenove anos, durante as fé-
rias escolares, certa manhã no tênis. Ele tinha vinte e cinco anos. Era
filho único de fazendeiros nos arredores de T. Beach. Não fazia nada.
Os pais consentiram no casamento. Lol deveria ficar noiva em seis me-
ses, o casamento seria no outono. Lol tinha acabado de deixar defini-
tivamente o colégio, estava de férias em T. Beach, quando se realizou
o grande baile da estação no Cassino Municipal.79

Um homem.
Ele está de pé, ele olha: a praia, o mar. O mar está baixo, calmo, a esta-
ção é indefinida, o tempo, lento.
O homem se acha num caminho de tábuas posto sobre a areia.
Está vestido com roupas escuras. Seu rosto é distinto.
Seus olhos são claros.
Ele não se move. Ele olha.
O mar, a praia, há poças, superfícies isoladas de água calma.80

1.

Depois de sobrepor os começos, retorno ao Arrebatamento. Nesse livro,


a cena que o romance inteiro rememora — a partir dos elos inventados
pelo narrador - é aquela do baile de T. Beach, onde se dá o arrebatamento
de Michael Richardson por Anne Marie sob o olhar de Lol. Durante
toda a noite do baile, essa mulher desconhecida dança com o noivo de
Lol e Lol, sem dizer uma palavra, olha o casal, arrebatada. Este aconte-
cimento marca a composição de um primeiro ternário (composto por
Michael Richardson — Anne Marie — Lol) e evoca a ambiguidade da
palavra Arrebatamento: pois há o rapto do noivo pela outra mulher e,
ao mesmo tempo, o aniquilamento de Lol V. Stein, que desinvestida do
amor, perde os sentidos: "o ciúme não foi vivido, a dor não foi vivida.
O elo se partiu, o que faz com que, na cadeia, tudo o que vem depois
esteja em outro nível"81 .
79
DURAS, [1964] 1986, p. 7-8.
80
DURAS, 2005, p. 28.
81
DURAS, 1974, p. 17.

103
Giselle Moreira

Após esse acontecimento, Lol vive uma experiência de vacuidade, "ela se


tornara um deserto"82 . Se casa, tem filhos e ausente de si mesma desem-
penha suas funções de mãe e dona de casa. Somente dez anos depois,
um nó se reata quando ela entrevê um casal de amantes: Jacques Hold
e Tatiana — sua amiga de infância. Ela passa a segui-los e sua aventura
recomeça, o baile ganha vida.
No Arrebatamento, o amor se estrutura à três. Lacan, em "Homenagem
à Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein", localiza que
Lol não é voyeur, mas antes ela se realiza nesse novo ternário. Lol se rea-
liza ao ver, pelo enquadramento da janela do Hotel des Bois, a nudez de
Tatiana ofertada por Jacques Hold, montagem a partir da qual o corpo
nu da outra mulher progressivamente substitui o vazio de seu corpo e
a anima — "vi uma alegria bárbara"83 , diz o narrador. Sem palavra para
dizer o arrebatamento, é através da construção — em ato — da sua fanta-
sia que Lol faz consistir seu ser, ou como precisa Lacan, seu "ser-a-três"84 .
Esse enquadramento permite que seu corpo ganhe forma. Frágil arranjo
que a separa do enlouquecimento, pois quando Hold tenta abordá-la
sem passar por Tatiana, Lol enlouquece.
Leio Amor como uma reescrita do Arrebatamento de Lol V. Stein por-
que nesse livro o nó se faz de uma outra forma, trata-se de uma passagem
para uma outra escrita. Em Amor, a gramática da fantasia de Lol - que
faz consistir seu ser-a-três - parece não mais se sustentar e a tentativa
de reconstrução da cena do arrebatamento dá lugar a um enredo dema-
siadamente pobre: um homem recém-chegado se junta a outras duas
figuras que já ocupavam o litoral de S. Tahla: um louco e uma mulher.
Se o arrebatamento evoca as questões "de quem?"e "por quem?", a pala-
vra amor aparece solitária, sem significação, desgarrada da língua. Se os
ternários do arrebatamento se constituem através de nomes próprios,
em Amor os pronomes pessoais os substituem, a ponto de não sabermos
de que "ele"se trata, ainda que eles sejam três.

82
DURAS, 1986, p. 17.
83
DURAS, 1986, p. 97.
84
LACAN, 2003, p. 203.

104
Amor, uma escrita de palavras sozinhas

Novamente ele a conduz.


Ela vê o mar. Diz:
— Às vezes aqui é calmo.
Ela mostra, o mar, a água da manhã, ela bate, verde, fresca, ela avança,
sorri, diz:
— O mar.85

A escrita de Amor é quase gráfica: as frases são extremamente curtas


e muitas vezes reduzidas a palavras isoladas, há ainda uma escassez de
conectivos e, assim, o ritmo prevalece à significação. Duras se dedica
a extenuar o texto, se aproximando dos votos que ela mesma faz em
Escrever: "Haverá uma escrita da não-narrativa. Um dia isto virá. Uma
escrita breve, sem gramática, uma escrita de palavras sozinhas. Palavras
sem apoio de uma gramática. Extraviadas. Ali, escritas. E logo deixadas
de lado".86
Em uma entrevista concedida a Xavière Gauthier, Duras ainda teste-
munha como a palavra se tornou mais importante no seu processo de
escrita do que a sintaxe, ela localiza como primeiro a palavra se impõe,
e só depois o tempo gramatical a acompanha, de longe: "são antes de
mais nada as palavras, sem artigos, aliás, que vêm e se impõe"87 . E, na me-
dida em que as palavras se imprimem sozinhas, são elas que produzem e
emolduram o espaço branco entre elas, a pausa, o silêncio, a respiração
rarefeita, o buraco em torno do qual a letra faz borda88 .
Ao ler Amor, encontro ali, nessas palavras que se impõe e se repetem ao
longo do livro, algumas que me parecem extraviadas de outros livros.
Palavras antigas que mostram o movimento de escrever sobre o que
já foi escrito, como se evocassem um acontecimento inesquecível. É
dessa forma que fragmentos do livro O Arrebatamento de Lol V. Stein
aparecem em Amor, como o grito de Lol ao fim do baile no Cassino
Municipal. Cito essa passagem:
85
DURAS, 2005, p. 80.
86
DURAS, 1994, p. 63.
87
DURAS, 1974, p. 11.
88
LACAN, 2003, p. 18.

105
Giselle Moreira

Olham-se:
— Ainda se lembra um pouco...? o dia do grito... você se lembra?
— Pouco. Muito pouco.
Ele mostra outra vez ao viajante o encadeamento contínuo:
— Ela morou em todos os lugares, aqui ou além. Um hospital, um
hotel, campos, jardins, estradas — ele para — um cassino municipal,
você sabia? Agora ela está aqui.
Aponta a ilha.89

Se no Arrebatamento, o narrador, em sua paixão por Lol V. Stein, tenta


reconstituir a cena do baile — na medida em que confronta seu pró-
prio fracasso em reconstituí-la90 —, de outra forma, em Amor, as vozes
narrativas são impessoais e descrevem o que se passa a partir de um
distanciamento, como acontece num roteiro de filme. Os diálogos são
permeados por palavras já escritas e que, a cada vez reescritas, se tornam
mais opacas e mais distantes de sua significação usual. É assim que o
grito que sai da boca de Lol em O Arrebatamento aparece em Amor.
Como é também isolado de seu contexto que o cão morto, visto por
Lol ao revisitar o Cassino Municipal com Jacques Hold, emerge nessa
reescrita. Mas nesse outro tempo será ela própria o cão morto deitado
nas areias de S. Tahla: "Ele não está mais lá. Ela está só, deitada na areia
ao sol, apodrecendo, cão morto da ideia, a mão enterrada perto da bolsa
branca."91
A aridez da narrativa de Amor é também o deserto/ o des-ser 92 desse
corpo largado na areia: "é um resto, é o resto de alguém"93 . Ela não se
importa mais com sua imagem corporal, deixa-se cair: as pernas estira-
das, os olhos fechados, as mãos enfiadas na areia, numa ausência que
89
DURAS, 2005, p. 74.
90
Ver TROCOLI, 2016.
91
DURAS, 2005, p. 146.
92
Refiro-me ao neologismo lacaniano désêtre, em que se escuta des-ser e por resso-
nância deserto [désert]: "Nessa reviravolta em que o sujeito vê vacilar a segurança
que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real, o
que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser [désê-
tre]"(LACAN, 2003, p. 259).
93
DURAS, 1974, P. 51.

106
Amor, uma escrita de palavras sozinhas

faz ressoar o que sempre diziam dela, que ela nunca estava exatamente
ali. Não há mais expressão de dor, nem de cansaço. Com a vacilação
do enquadre fantasmático (seu "ser-a-três"), o corpo de Lol V. Stein se
dissolve94 .
Lacan em sua leitura do Arrebatamento localiza a angústia presente no
relato de Jacques Hold — que é a dele e ao mesmo tempo a angústia da
narrativa95 . Não me parece ser esse o afeto presente no ritmo pausado
da escrita de Amor. De outro modo, os caminhantes de S. Tahla vivem
um desarvoramento absoluto, no nível do qual a angústia já não serve
mais como proteção96 . E, nesse sentido, mesmo a decisão desesperada
do viajante - que procurava um lugar para se matar - se desfaz. Nesse
desamparo radical, não há mais o que transgredir, nem o que obedecer.
Duras, ao falar de Amor, diz: "é preciso escrever muitos livros para che-
gar a esse ponto"97 . Há, então, que se contar a escrita como um a mais98 ,
como sugere Érik Porge. Ao desconstruir as identidades dos persona-
gens e borrar as Referências˜ espaciais e temporais, a escrita de Amor
refaz o nó, produzindo uma tessitura das palavras que restam, a fim de
tocar nesse vazio da narrativa. A operação de extenuar a história coin-
cide com a de compor um novo texto, sempre ao redor da mesma cena,
aquela do baile no Cassino Municipal. Esse movimento incessante da
escrita, que atravessa os livros, produz o furo da cena. Pois, ela — a es-
crita — não cessa de se deparar com a impossibilidade de apreender o
arrebatamento, esse evento que está para além do tempo dos homens.
Em Amor, tudo queima, ele ateou fogo em S. Talah, o céu está rubro, o
cassino bombardeado, as mãos estão negras. Os vestígios do incêndio
recobrem S. Talah e o que resta do drama de Lol são cinzas, "átomos

94
DURAS, 1974, p. 170.
95
LACAN, 2003, p. 199.
96
Refiro-me à passagem do Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1991) na qual
Lacan localiza que "ao término da análise didática o sujeito deve atingir e conhecer
o campo e o nível do desarvoramento absoluto, no nível do qual a angústia já é uma
proteção"(p.364).
97
DURAS, 1974, p. 12.
98
PORGE, 2019, p. 30.

107
Giselle Moreira

voluptuosos"ou "biografemas"99 — como quer Barthes ao desejar que


sua vida fosse reduzida a alguns pormenores que poderiam vir a con-
tagiar um corpo futuro. "Queimou. Mas está aqui, espalhado".100 Da
biografia ao biografema, a vida se reduz à forma mínima da escrita: gra-
fema. E, como cinzas - esse resto mínimo, impessoal e, no entanto, o
mais singular -, encontro, em Amor, algumas palavras que restam dis-
persas de outros livros. Palavras quase durassianas, que comemoram o
baile e a queda de Lol V. Stein: o grito, o cão morto, a aurora, o mar. E
como escuto a voz de Duras: l’écrit, le chien mort, l’aurore, la mère.

99
BARTHES, 1979, p. 14.
100
DURAS, 2005, p. 75.

108
Amor, uma escrita de palavras sozinhas

r e f e r ê n c ia s

ANDRADE, Paulo. Nada no dia se vê da noite esta passagem (amor,


escrita e tradução em Marguerite Duras). Tese de doutorado, (Letras
— Estudos Literários) Faculdade de Letras, da UFMG, Belo Horizonte,
2005.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loiola. Lisboa: Edições 70, 1979.
DURAS, Marguerite. Boas falas — Conversas sem compromisso. Rio
de Janeiro: Editora Record, 1974.
DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
DURAS, Marguerite. L’amour. Paris: Gallimard, 1998.
DURAS, Marguerite. O deslumbramento (Le ravissement de Lol V.
Stein). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
LACAN, Jacques. "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebata-
mento de Lol V. Stein". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003,
p. 198 - 205.
LACAN, Jacques. "Lituraterra". In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2003, p. 15 - 25.
LACAN, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1967". In: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 243 - 264.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-60).
Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
PORGE, Érik. O Arrebatamento de Lacan — Marguerite Duras ao pé
da letra. São Paulo: Aller Editora, 2019.
TROCOLI, Flávia. Flor de amor que morde o peito: Lol V. Stein e o
efeito Duras. In: AIRES, Suely; LEITE, Nina (Org.). Prática da letra,
uso do inconsciente. Campinas: Mercado de Letras, 2016. p. 53-66.

109
a e s c r i t a d o c orpo de
L o l . V . S t ein
b runa musacchio guaraná

N
o c o l é gio, diz ela, e não era a única a pensar dessa
maneira, já faltava algo a Lol para estar — ela diz: presente. Dava
a impressão de tolerar num tédio tranquilo uma pessoa com quem ela
julgava ter a obrigação de parecer e de quem perdia a lembrança na
menor oportunidade.\
Lola era engraçada, gozadora inveterada e muito sutil, embora uma
parte dela estivesse sempre desligada, longe do interlocutor e do
momento. Onde? [...]\
Tatiana tenderia a acreditar que na verdade era, talvez o coração de
Lol. V. Stein que não estava- ela diz: presente- provavelmente ele
viria, mas ela não o havia conhecido. Realmente, parecia que essa
região do sentimento que, em Lol, era diferente. (Duras, 1964/1986, p. 8)

Introdução101

Lol Valérie Stein, de quem dirá Duras em Escrever: "Em Lol. V.


Stein não penso mais. Ninguém pode conhecê-la L.V.S., nem vocês,
101
Gostaria de agradecer aqui a discussão que teve lugar no Durassiana 2019- I Encontro
de Pesquisadores em Marguerite Duras organizado pelos alunos da Pós-Graduação
em Ciência da Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, em 15 e 16 de agosto de 2019.

110
A escrita do corpo de Lol. V. Stein

nem eu."(Duras, 1914/1994, p.19). Quem pode apreendê-la? O que de


Lol é passível de apreensão? O conhecido romance O deslumbramento
de Lol. V Stein, a quem Jacques Lacan dedicou um escrito em home-
nagem, gira em torno dessa matéria inapreensível do que se compõe o
corpo de Lol, mesma matéria que tem a potência de arrebatar seu leitor,
diria Lacan, e que ressoa para todos e cada um (Lacan, 1965, p.198).
Inapreensível, inexistente era assim que Lol se apresentava na descrição
de Tatiana, um ser vaporoso. Um ser que parecia não estar ao mesmo
tempo, no mesmo lugar que o seu corpo, alguém em fuga, nunca pre-
sente. Onde estaria? O texto vai nos introduzir desde cedo na presença
de suas ausências, ali onde sua alma e seu corpo parecem não coincidir.
E o que veremos envolve uma articulação dessas dimensões, e nos inter-
roga: como encarnar esse corpo? Torná-lo vivo? Ali, onde vai se fazer
importante, como veremos, o vestido, o olhar, o amor, ou ainda uma
outra mulher.
Era diferente, diz Tatiana, albergava em si uma espécie de tédio tran-
quilo, uma parte desligada, distante. Embora fosse ao mesmo tempo
engraçada e gozadora, algo lhe faltava. Imperava nesse tempo, uma
Lol que funcionava no registro do "como se", onde se empenhava em
"se"parecer com alguma coisa, ou alguma pessoa. Ainda que esse "pa-
recer"no fundo se revelasse como uma casca vazia, desvelando aí "uma
vacuidade"afirmaria Lacan (Lacan, 1965, p. 201).
Uma "vacuidade"que dava a impressão para Tatiana de que o coração
dela viria em algum momento, ainda não estava lá, talvez fosse
desconhecido ou nunca tivesse existido. A sensação é de uma Lol "em
suspense"à espera para fazer consistir num porvir, o que pode advir.
Por isso, quando adveio o rumor, segundo Tatiana, do seu noivado
com Michael Richardson, ela se surpreende com a "louca paixão"que
Lol dedica ao noivo (Duras, 1964/1986, p. 8). Haveria nele algo que lhe
fazia dedicar-lhe tanta atenção? Como podia ali empenhar uma paixão
que em sua vida antes inexistia?

O baile, desenlace e solução

111
Bruna Musacchio Guaraná

Vamos retomar, para seguirmos, o evento do que significou o


baile. O narrador, nesse momento é Jacques Hold, e afirma que inventa
a sua versão para o que foi a noite do Cassino Municipal de T. Beach.
Jacques Hold é personagem parte da história e virá a ser o amante de
Tatiana Karl, a amiga de quem Lol permaneceu ao lado no baile, e
quem vai reencontrar no seu retorno para a cidade S.Thala.
Na ocasião do baile, Lol, no auge dos seus 19 anos, vai se apresentar para
a sociedade, e essa será a situação para onde se dirigem todos os olhares.
Lol será o centro das atenções. Ali sofrerá o rapto do seu noivo por outra
mulher, uma outra que bastará aparecer subitamente. Mas, vamos antes
lembrar102 o que significava todo aquele acontecimento que envolvia a
apresentação de uma debutante para a sociedade.
Todos os olhares da sociedade se voltavam para a apresentação das debu-
tantes para o mundo e aquele baile era como uma espécie de iniciação
na vida, uma espécie de rito. Ainda que, o que a história revela é que Lol
não está ali pela importância do baile ou sua convenção social, mas sim
pela "louca paixão"que empenhava sobre Michael Richardson (Duras,
1964/1986, p.8).
E então "A orquestra parou de tocar. Terminava uma dança"quando
chega a esse baile, uma mulher mais velha: "Era magra. [...] Havia co-
berto aquela magreza, lembrava-se claramente Tatiana, com um vestido
preto bastante decotado, com duas sobre-saias de tule igualmente pre-
tas."Quem era? Anne-Marie Stretter. "Tinha olhado Michel Richard-
son de passagem? Tinha-o varrido com aquele não-olhar que ela passe-
ava pelo baile?"(Duras, 1986, p.11)
À título de observação, é curioso notar que diante de todos aqueles
olhares, do ver e ser visto do baile, o que captura o noivo é um não olhar,
um olhar que não olha ninguém, mas que faz dele sua presa. Um não-

102
Para uma reconstituição mais completa do clima desse baile, ver: VIEIRA,
Marcus. Lições da loucura. Lola Valérie Stein —Transcrição de Seminá-
rio ministrado no Hospital Philippe Pinel em 2008. Disponível online em:
http://www.litura.com.br/cursor epositorio/4l olap df1 .pdf

112
A escrita do corpo de Lol. V. Stein

olhar que rouba o noivo de Lol e que a faz ficar em suspenso, mas sem
conseguir parar de olhá-los. Lol os segue com os olhos até o fim e cai
quando não pode mais vê-los.
Quando perguntada, muito depois o que queria com eles, dirá: "vê-los",
para Tatiana Karl (Ibid, p. 77). "o olhar nela [em Anne-Marie Stretter] —
de perto compreendia-se que esse defeito provinha de uma descoloração
quase dolorosa da pupila—, se alojava em toda a superfície dos olhos,
era difícil captá-lo"(ibid, p. 11).
Anne-Marie Stretter é a personagem que arrebata Michel Richardson,
pois a partir de tê-la avistado, ocorre uma mudança em seu semblante,
seus olhos se tornam "iluminados", seu rosto se contrai em uma abrupta
maturidade e uma dor antiga de infância. Essa mudança irrevogável,
impossível de ter sido evitada, é o início do fim.
Lol "em suspense, esperou"e se manteve toda a noite assim, desde que
Anne Marie Stretter entrou no salão, no mesmo lugar, atrás das plantas
verdes no bar com Tatiana, ao mesmo tempo em que os dois selados um
ao outro, dançaram como autômatos, toda a noite, até o amanhecer,
ainda que os músicos já houvessem se retirado: "Aos primeiros raios de
luz da madrugada [...] todos os três, haviam ganhado bastante idade,
centenas de anos, dessa idade, nos loucos, adormecida."(ibid, p. 12).
E, ainda que naquele momento "essa visão e essa certeza não pareceram
acompanhar-se de sofrimento em Lol"(ibid, p. 15), o fim do baile, e a ida
dos dois embora é o que seria insuportável. O que se deflagra, quando
sua mãe entra no baile injuriando os dois, os acusando de terem feito
mal a sua filha, os dois injuriados olham ao longe, pensando vislumbrar a
quem se dirigiam as injurias, e se retiram. Logo depois sua mãe encontra
Lol atrás das plantas: "A barreira de sua mãe entre eles e ela era o sinal
prenunciador de tudo [...] Lol gritou pela primeira vez."(ibid.).
Lol havia gritado sem descontinuar coisas sensatas: não era tarde, a
hora de verão enganava. Tinha suplicado a Michael Richardson que
acreditasse nela. Mas, como continuassem a caminhar- tinham ten-
tado impedir que o fizesse, mas ela conseguira soltar-se- correra para
a porta se jogara no batente. A porta, com a lingueta do chão fechada,
havia resistido. De olhos baixos os dois passaram diante dela [...] Lol

113
Bruna Musacchio Guaraná

seguiu-os com os olhos pelos jardins. Quando não mais os viu, caiu
no chão, desmaiada (ibid, p.15).

Antes de prosseguir, aqui cabe rápida digressão que nos lembra Bastos
(2009) sobre o termo arrebatamento, do francês "le ravissement"e que
quer dizer roubo, rapto, mas também, fascinação, encantamento e des-
lumbramento. Na trama ambos os sentidos se encontram presentes, e
designam um dos aspectos centrais de toda a narrativa, o rapto ou roubo
do noivo de Lol, mas também como fruto da força do que fascina ou
encanta.
Existe, portanto, diversas dimensões na trama da fascinação/rapto. Há
a fascinação pelo "não-olhar"de Anne-Marie Stretter por Michael Ri-
chardson, dela por ele, que não o consegue mais largar e o rapto dele,
noivo de Lol, por uma outra mulher. Mas, o que aparece como disrup-
tivo não é da ordem da perda de lugar dela para uma outra, o que daria
margem a uma rivalidade, mas o fato dela ser impedida de ser aí incluída,
quando acaba a noite e não pode mais vê-los. Nesse momento, o rapto
toma outra conotação, a perda que está em jogo para Lol ali parece ser a
de deixar de ter uma existência fora daquele enquadre. O que lhe acon-
tece? Ou melhor, do que sofre?
Lol, desencadeia uma crise, permanece por semanas sem sair do seu
quarto, para nada, encerrada em uma prostração. Um sofrimento sem
uma causa aparente e do qual ela não pode dizer, dirá Lacan, do que so-
fre (Lacan, 1965, p. 199). Duras: "sua dificuldade diante da busca de uma
única palavra parecia intransponível", pagava agora a "estranha omis-
são de sua dor durante o baile"(Duras, 1985, p. 17). Segue um trecho,
onde podemos vislumbrar como se apresenta essa dimensão do indizí-
vel. Cito:
Ela repetia sempre as mesmas coisas: que a hora de verão engava, que
não era tarde. Pronunciava seu nome com raiva: Lol V. Stein - era as-
sim que se designava. Depois queixou-se [...] de sentir um cansaço
insuportável de esperar assim. Aborrecia-se a ponto de gritar. E na
verdade ela gritava que não tinha nada em que pensar enquanto espe-
rava, exigia com a impaciência de uma criança um remédio imediato
para aquela falta. [....]

114
A escrita do corpo de Lol. V. Stein

O que perdura por bastante tempo:


Depois Lol deixou de queixar-se do que quer que fosse. Aos poucos
deixou até mesmo de falar. Sua raiva envelheceu, desencorajou-se. Fa-
lou apenas para dizer que lhe era impossível expressar o quanto era
aborrecido e custoso, custoso ser Lol V. Stein (ibid, p. 16).

Lacan dirá que o nome "Lol V Stein"é uma cifra e que foi determinado
pelo contorno de sua escrita: asas de papel, V tesoura, Stein, a pedra, "no
jogo do amor tu te perdes", aqui fazendo alusão ao jogo pedra, papel e
tesoura, onde se enlaçam os dois movimentos: a arrebatada alma para
fora de seu corpo, e a arrebatadora figura de ferida, exilada da coisas, "em
quem não se ousa tocar, mas que faz de nós sua presa"(Lacan, 1965, p.
198).
Seguindo a narrativa, a reação catastrófica de Lol na cena do baile é a cena
que promove o clímax da trama e da qual o romance inteiro não passa de
uma "rememoração"(Ibid, p. 199). Uma "rememoração"porque o que se
busca realizar posteriormente na narrativa é uma espécie de retomada,
ou repetição da cena original. Veremos como. Após o desenlace disrup-
tivo, Lol vai permanecer um tempo no registro do "como se"inicial que
imperava na sua adolescência, e que descrevemos no início do texto, até
o encontro com seu futuro marido.
No rapto de seu noivo, poderíamos dizer que o que se perde está ligado
também a uma perda de investimento na esfera amorosa do olhar de
seu amante, que se comparado ao vestido, concede um invólucro ao seu
ser, mas que quando desinvestido, temos a revelação de como se por
baixo, nada houvesse (Lacan, 1965/2003, p. 200). Para evitar que isso
tivesse ocorrido, os dois não deveriam ter partido: "as janelas fechadas,
lacradas, o baile murado em sua luz noturna os teria contido, todos os
três, e apenas eles. Lol está certa do seguinte: juntos teriam sido salvos
da vinda de um outro dia, de um outro, pelo menos."(Duras, 1986, p.
34).
E, na falta de uma palavra, "uma palavra-buraco, escavada em seu centro
para um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriam
sido enterradas", tudo se eclipsa e Lol como efeito do ocorrido é arreba-

115
Bruna Musacchio Guaraná

tada, como se a alma lhe fosse arrebatada para fora do corpo (ibid, p. 35).
Consequência de outro arrebatamento, o de seu noivo e dos dois aman-
tes em sua dança. Lol é o elemento terceiro nessa díade, como escreve
Lacan:
A cena de que o romance inteiro não passa de uma rememoração
é, propriamente, o arrebatamento de dois numa dança que os solda,
sob o olhar de Lol, terceira, com todo o baile, sofrendo aí o rapto de
seu noivo por aquela que só precisou aparecer subitamente. (Lacan,
1965/2003, p. 199)

A cena do baile e a reconstrução do seu corpo, através da composição


amorosa triangular muitos anos mais tarde, é o percurso por onde a
narrativa do livro se desenrola: "Lol progride todos os dias na reconsti-
tuição desse instante [...] O que reconstrói é o fim do mundo"(Duras,
1986, p. 34). Com o arrebatamento para fora de si, algo se eclode ali. O
que busca Lol na reconstituição do fim do mundo?
Lol logo a primeira vez que sai na rua, depois da sua crise, encontra seu
futuro marido. Ele começa a segui-la, até perceber ela não caminhava
em uma direção determinada e, então, decide guiá-la: "Ele parou, pegou
sua mão. Ela consentiu."(ibid, p.20).
Ele amava aquela mulher, Lola Valerie, aquela calma presença a seu
lado, aquele jeito como se dormisse em pé, aquele apagamento contí-
nuo que lhe fazia ir e vir entre o esquecimento e os reencontros com
sua lourice (blondeur), deste corpo de seda que o despertar nunca mu-
dava, desta virtualidade constante e silenciosa que ele nomeava sua
doçura, a doçura de sua mulher. (ibid, p.24).

Nesse casamento Lol era a esposa "perfeita", suas "opiniões eram raras,
suas narrativas inexistentes"(ibid, p. 32) e se ocupava em manter a ordem
da casa, ritmo e rigor, na arrumação dos quartos ou da sala, imitava vitri-
nes de loja, do jardim, de outros jardins: Mas, "Lol imitava, mas quem?
Aos outros, todos os outros, o maior número possível de pessoas."(ibid,
p. 24) Aqui parece que estamos novamente no estado de coisas que
encontrávamos antes da paixão que investiu em Michael Richardson.
Até o momento em que Lol e seu marido, por uma oferta de trabalho
de Jean Bedford tem a opção de retornar à sua cidade natal. S. Thala, a

116
A escrita do corpo de Lol. V. Stein

cidade onde ocorreu o baile, e a cidade onde também Lol vai reencontrar
Tatiana, sua amiga de infância e seu amante Jacques Hold, ali onde um
nó se reata, segundo Lacan, a partir desse reencontro (Lacan, 1965, p.
199). Lol passará a segui-los até o local de encontro dos amantes, para
se incluir novamente nessa díade, deitada em um campo de centeio.
Veremos como isso se dá.
Nesse reencontro, não se trata apenas de uma repetição da cena inicial,
mas de reatar um nó, que se rompera, onde contavam-se três elementos
e que se enodam. E o que é atado a esse nó é o que arrebata, incluído
nele. Daí virá o famoso "ser a três"de Lacan, que significaria justamente
o arranjo entre esses três elementos recriados posteriormente por Lol
(Lacan, 1965, p. 203).
A trama rearranjada por Lol, a faz estar presente em um peculiar lugar
na tríade amorosa, que não se reduz a mera observadora, mas sim a
uma estranha presença que encarna um puro olhar, e esse lugar quando
sentido por primeira vez por Jacques Hold é vivido com angústia:
[...] acreditei ver à meia distância entre o sopé da colina e o hotel uma
forma cinzenta, uma mulher, cuja lourice cendrada através das has-
tes do centeio não podia enganar-me; experimentei, embora esperasse
por tudo, uma emoção bastante violenta cuja verdadeira natureza não
soube logo [....] Abafei um grito, desejei a ajuda de Deus, sai correndo,
refiz o caminho, rodeei o quarto [...] sofrendo, sofrendo de insufici-
ência deplorável de meu ser em conhecer esse acontecimento. Depois
a emoção aplacou-se um pouco, recolheu-se sobre si mesma, pude
contê-la. Esse momento coincidiu com aquele em que descobri que
ela também devia ver-me. (ibid, p. 90)

Lá, onde Lol se deita, e se torna uma forma cinzenta e loira em um


campo de centeio, figurando como uma mancha cinza, que o olha ainda
que sem vê-lo, e que encarna por isso a presença do olhar, o objeto que
causa a angustia. A presença do objeto evoca um se sentir olhado es-
pecial, próximo ao que seria nos sentirmos olhados pela fresta de uma
porta, de uma janela entreaberta ou de um armário, onde fica-se com
a sensação da presença de algo que nos espreita, a partir de um ponto
indefinível, sem que possamos identificar o que é. Jacques Hold, por

117
Bruna Musacchio Guaraná

exemplo, só se tranquiliza quando passa a supor que ela o podia ver,


portanto, ao localizar alguém por detrás desse olhar.
Aqui Lacan nos advertiria: "Não se enganem, sobretudo, a respeito do
lugar do olhar aqui. Não é Lol quem olha, nem que seja pelo fato de
que ela não vê nada. Ela não é voyeur. O que acontece a realiza."(Lacan,
1965, p. 202). O que vai ficar mais evidente, quando Lol evoca o lugar do
olhar em estado de objeto puro, ao se referir a nudez de Tatiana: "Nua,
nua, sob seus cabelos negros"(Duras, 1986, p. 47).
O indizível dessa nudez emoldurado pela cabeleira negra é o que pro-
move a passagem da beleza de Tatiana, para a mancha que Lol realiza
com sua cabeleira loira no campo de centeio e que, nesse caso, é a cabe-
leira negra, que sob a vastidão da nudez de Tatiana delimita, um corpo
e uma erótica.
Se seguirmos o fio da narrativa, sabemos que Jacques Hold busca seguir
pela via da compreensão com Lol, não aceita o papel que lhe é sugerido
por ela, e lhe oferece o lugar de Tatiana, ignorando a função do terceiro
elemento. É quem a acompanha até o local do acontecimento em T.
Beach quando ela enlouquece. Ser compreendida não convém a Lol, ser
compreendida não é o que a salva do arrebatamento, diria Lacan (Lacan,
1985, p. 203).
Portanto, quando Lol logra realizar essa montagem, entre os três, ela
tem um corpo, é alguém. O que não significa que essa solução seja
definitiva, ou que nenhuma outra exista. Haverá inclusive momentos
de despersonalização e delírio como esse, quando Jacques Hold,
confunde as coisas e a leva sozinha para longe. O importante desse
arranjo não é que ele seja definitivo, mas sim que dê uma maior margem
de manobra ao sujeito, e que poderíamos, por isso, chamar de "solução",
o que nesse caso atribuímos à "invenção"de Marguerite Duras, quando
dá vida a esse ser fictício de discurso.

Conclusão

Com essa montagem, se produz a possibilidade da personagem

118
A escrita do corpo de Lol. V. Stein

poder existir com uma vida que pulsa dentro de si e com presença, fora
do lugar do "como se", onde havia um corpo sem alma. E, onde está o
que concede essa vivacidade ao corpo de Lol? Está na montagem dos
elementos, "o ser a três"; caso contrário ficamos na deriva como Lol, ou
na completa angústia.
Lol antes vivia os nomes como cascas vazias "de fora", sem que eles apre-
endessem nada do real. O gozo, diria Lacan no Seminário 20, não é nem
bom, nem mau, apenas é em si, demasiadamente presente, mortífero.
Ao mesmo tempo Lacan faz dele substância da vida, desde que conden-
sado, localizado. Um texto de ficção, assim como uma existência, sem
gozo, é um texto sem alma.
A questão será então, não a de barrar o gozo, pois não se pode barrar
a vida, mas como lhe dar lugar, delimitado. É o que instaura a possibi-
lidade de refazer as "taciturnas núpcias"do corpo, vestido vazio, pura
imagem dada pelo Outro, com essa coisa indescritível que costumamos
chama de vida (Lacan, 1965, p. 205). E é nesse limite que também toca
uma análise, na junção entre gozo e discurso, construídas para cada um,
a partir das exigências e ofertas do Outro, acrescidas de altas doses de
contingência que se constroem os corpos (ibid.).
Sem essa montagem, o corpo é pura estátua construída pelo que o Ou-
tro nos foi informando quanto ao que deveríamos ser - como as tantas
que habitam as revistas. Por isso, como vimos, para Lol depois do baile
seguem-se 10 anos de uma existência meio sem corpo. Um corpo do
outro, mas não dela. Quando só mais tarde, Lol poderá colocar em ação
uma montagem que resolve o impasse do deserto do gozo.
O que temos notícias através do romance de Duras, que é por meio de
arranjos ficcionais com caráter de invenção que se aproxima mais do real,
diferente da realidade, porque retira da realidade tudo que é miscelânea
de pequenos vividos que poluem momento cruciais com seus excessi-
vos matizes acumulativos e lhe confere o aguçado do corte. É como se
entende que "em sua matéria o artista sempre precede o analista"(Lacan,
1965, p. 200).

119
Bruna Musacchio Guaraná

E se a "prática da letra converge com o uso do inconsciente"é porque


justamente, será uma palavra impronunciável, que aqui aparece como
não podendo ser dita, posto não existir, que visa o ponto de conexão
entre saber e gozo (ibid). Será essa palavra impronunciável que consegue
dar lugar a este impossível de dizer, nas entrelinhas e entre letras. A dor
não pode se dizer, como dirá Jacques Lacan: "ela não pode dizer do que
está sofrendo"(Lacan, 1965, p. 199). Ou, ainda Duras sobre o sofrimento
de Lol: "um sofrimento sem sujeito"(Duras, 1986, p. 16).
A dor não cabe no universal compartilhável, não se escreve, mas pode
se inscrever pela escrita. Não há palavras para o que arrebata Lol, algo
disso cala em Lol, mas não deixa de por isso de se fazer existir, através
da "existência de discurso"da personagem, que se escreve pelas mãos de
Duras (ibid, p. 203).

120
A escrita do corpo de Lol. V. Stein

referências

BASTOS, Angélica. (2009) O corpo e o arrebatamento. In: BESSET,


Vera Lopes; FIGUEIREDO, Henrique [orgs.] A soberania da clínica
na psicopatologia do cotidiano. Rio de Janeiro: Garamond, pp. 135-165.
DURAS, Marguerite. (1986) O deslumbramento. Trad. Ana Maria Fal-
cão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
LACAN, J. (1965/2003) "Homenagem a Marguerite Duras pelo arreba-
tamento de Lol. V. Stein". Em: Outros escritos, pp. 198-205.
_________ (1972-73/1985) O Seminário 20: mais, ainda. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.
MILLER, Jacques-Alain. "Le corps dérobé. À propôs du ravissement".
In: Revue de psychanalyse. La Cause du désir, n°103. Novembre 2019.
VIEIRA, Marcus. Lições da loucura. Lola Valérie
Stein — Transcrição de Seminário ministrado no Hos-
pital Philippe Pinel em 2008. Disponível online em:
http://www.litura.com.br/cursor epositorio/4l olap df1 .pdf

121
s o b r e v i d a s d a cena em
m a r g u e r i t e duras
f lavia trocoli

a cena do baile é o coração de Lol.


Michèle Motrelay

Sinopse

A
p a r t i r da leitura de A doença da morte [La maladie
de la mort], 1982, e de Olhos azuis, cabelos pretos [Les yeux bleus
cheveux noirs], 1986, na tradução de Vera Adami, proponho pensar
o apelo que essas obras de Marguerite Duras fazem ao teatro, não
encenado, mas lido, deixando a ênfase cair na palavra que ressoa. Tal
ênfase na sonoridade e na voz não vem desacompanhada do olhar.
Voz e olhar talvez sejam os objetos através dos quais miramos em
abismo (Hélène Cixous nos diz que, em Duras, é para o abismo que
tudo se precipita103 ). No ponto em abismo, no qual as personagens
de Marguerite Duras estão situadas na cena, não há possibilidade de
103
Remeto o leitor à conversa entre Cixous e Foucault em torno de Duras, in: FOU-
CAULT, Michel. Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III. Organização e
seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Bar-
bosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

122
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

contar uma história, de preenchê-la com detalhes do mobiliário, com


as ordenações e ritmos da vida burguesa104 , o que insiste, nessa "arte
da pobreza"105 , é a posição a partir da qual cada um pode oferecer ou
recusar sua palavra e seu corpo ao amor, ao gozo, à morte. É justamente
esse oferecimento que faz apelo ao teatro. E, é bom dizer, a um teatro
contra a interpretação e o espetáculo: Marguerite Duras nos propõe
um teatro lido e não atuado, leitura que a cada vez faz e desfaz a
palavra dita como forma para "a memória infernal do que não chega a
acontecer", como está dito em Olhos azuis, cabelo pretos (Duras, [1986],
s/d, p.31)

Prólogo: O não-há, a sobrevivência da cena, em Proust e


depois

Começo com indicações de cena, que podemos tomar como um


procedimento estético recorrente em Marguerite Duras, mesmo
quando o teatro não é invocado diretamente como em Agatha:

O cenário é um salão em uma casa desabitada. Há um divã. Poltronas.


Uma janela deixa entrar a luz do inverno. Ouve-se o ruído do mar. A
luz do inverno é brumosa e sombria. Não há nenhuma outra ilumi-
nação além dessa, só essa luz de inverno. No salão há um homem e
uma mulher. Calados. Pode-se supor que falaram muito antes que os
víssemos. (Duras [1981], s/d, p. 5)

Cito para dizer de uma sobrevivência da cena, mesmo quando a escrita


literária já dera um passo-além da representação realista, da lógica do
significado e da unidade totalizante. Maurice Blanchot já se espantara
ao escrever sobre "A experiência de Proust"o seguinte:

104
Cf.: MORETTI, Franco. O burguês: entre a literatura e história. Tradução: Ale-
xandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
105
Remeto mais uma vez o leitor à conversa mencionada acima. FOUCAULT, Michel.
Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III. Organização e seleção de textos:
Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.

123
Flavia Trocoli

[...] Proust, mesmo a contragosto, permaneceu dócil à verdade de sua


experiência, que não apenas o desliga do tempo comum mas o intro-
duz num tempo outro, o tempo "puro"em que a duração nunca pode
ser linear, nem se reduz aos acontecimentos. É por isso que a narrativa
exclui o desenrolar simples de uma história, assim corno ela se concilia
mal com as cenas excessivamente delimitadas e figuradas. Proust tem
um certo gosto pelas cenas clássicas, às quais nem sempre renuncia.
Mesmo a grandiosa cena final tem um relevo excessivo, que não cor-
responde à dissolução do tempo de que ele nos quer persuadir. (Blan-
chot, 2005, p.32)

Blanchot refere-se a Jean Santeuil e um dos pontos fundamentais do


seu ensaio é distingui-lo do que Proust escreveu depois. No entanto, é
preciso lembrar que Em busca do tempo perdido, a obra proustiana em
sua realização final, se inicia justamente por um entrelaçamento com-
plexo de cenas: a do sono, a do "não há resposta"da mãe, a do drama
do deitar à espera do beijo, a da presença da mãe no quarto lendo e, fi-
nalmente, a da madeleine. A Busca não só não renuncia à cena como,
sobretudo, complexifica infinitamente a relação entre elas. Tal comple-
xidade coloca em jogo: a perda das Referências˜ no sono, a imposição
de um silêncio sem representação diante do não-há-resposta da mãe, a
incompreensão dos soluços no momento em que o pai autoriza a mãe
a dormir naquela noite com o pequeno e, finalmente, a memória in-
voluntária que irrompe como sensação de felicidade perdida e exigirá
"criação". Inscritas no tempo, naquilo que ele aniquila e faz sobreviver,
essas cenas se repetirão, serão revividas e reconstruídas em A prisioneira
e em A fugitiva (Albertine Disparue), e também na cena da morte da
avó, na cena na biblioteca de Guermantes. Repetição, apagamento e
reconstrução da cena também estão por toda a obra de Marguerite Du-
ras: na cena a cada vez reescrita do encontro com o amante chinês, na
cena do baile e na cena do campo de trigo que arrebatam Lol V. Stein.
Impossível não lembrar Freud e a Outra cena como metáfora para o in-
consciente. Não mais a cena realista, construída através da onisciência
de uma voz que vê, ordena e rege de fora e à distância, a cena moderna
seria aquela que foi invadida pela voz narrativa e ela, a voz, não sabe mais

124
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

do que as personagens106 . A voz enunciativa também está sob os efeitos


de uma palavra que lhe permanece estranha, da erosão do tempo, da
morte.
É porque algo se faz entre tempos, entre cenas, que é indispensável lan-
çarmos mão da noção de rasura para apontar para aquilo que se figura
como apagamento e reescrita, destruição e sobrevivência, repetição e
acontecimento, possibilidade e impossibilidade. É possível dizer que
Duras, como também o fez Proust, alinha o trauma, como impossível, a
uma relação entre, no mínimo, duas cenas107 . O que está em jogo nessas
cenas literária é algo bem próximo daquilo que, em seu percurso, Lacan
pensa como troumatisme, em outras palavras, o trauma poderia ser pen-
sado como buraco, um fosso, recolocado em sua relação incontornável
com a representação e a linguagem. Em outro momento, trabalhei mais
detidamente as consequências do jogo do fort-da para a análise literá-
ria. Considerei que À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, e
Circonfession, de Jacques Derrida, são livros assombrados pela sua pró-
pria ausência, assombrados por dois livros ainda não escritos: o livro
por vir de Marcel e o livro das circuncisões de Jacques Derrida. O que
são esses livros senão aquele carretel que o neto de Freud lançava sobre
as cortinas de seu berço? E lá, não era somente a mãe que desapare-
cia e retornava, eram duas letras, duas vogais: o-o-o-o e a-a-a-a, nelas o
vovô escutou Fort/Da. Com isso, a criança, pequeno ator entre corti-
nas, jogava/encenava, não somente o desaparecimento de sua mãe, mas
também o seu próprio desaparecimento ou de uma parte destacada de
seu corpo108 .

106
Cf. AUERBACH, Erich. "A meia marrom". In: Mimesis: a representação da rea-
lidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2009.
107
O que já vimos no traçado de Freud, na relação entre o sonho com os lobos e a
cena primária em "História de uma neurose infantil". In: Uma neurose infantil e
outros trabalhos. (1917-1918) Volume XVII da Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
108
Cf.: TROCOLI, Flavia. "Assombros do Autobiográfico". In: EYBEN, P. (org.)
Poética, política: assombros da desconstrução. Vinhedo: Editora Horizonte, 2019.

125
Flavia Trocoli

Neste momento, tentarei mostrar como em dois livros de Marguerite


Duras o encontro amoroso é primeiro apresentado como impossível e
depois como surgido de uma falha súbita na lógica do Universo. Tal
encontro amoroso impossível ou nascido da falha se relaciona com
as formas e com as transformações na cena, na voz, no olhar, está
submetido às variações dos pronomes você, nós, ele, ela.

Parte 1: Essa forma que decreta A doença da morte109

Há um homem e há uma mulher, entre eles uma voz que diz


assim:
Você deveria não conhecê-la, você deveria tê-la encontrado por toda
parte ao mesmo tempo, num hotel numa rua, num trem, num bar,
num livro, num filme, em você mesmo, em você, em ti, ao léu do teu
sexo ereto na noite clamando por um lugar onde se meter, onde se
desvencilhar do choro que o enche. (Duras [1982], 2007, p. 43)

Neste que é o primeiro parágrafo de A doença da morte, não se sabe


quem fala, sem monólogo, sem eu, há um imperativo e uma negação: o
dever é o de não conhecer e se desloca para um encontro que teria acon-
tecido em toda parte: em um livro, em um filme e em um sexo ereto. Essa
voz que diz "deveria"e não "deve"dirige o clamor para o sexo do homem
da cena. A voz e o olhar vêm de fora, há sentenças ditadas, que criam a
cena através de um endereçamento direto ao homem, e há enunciados
dubitativos, ao modo de um narrador que pouco sabe ou nada sabe a
mais que as personagens: "Talvez você consiga dela um prazer até então
109
Na sua apresentação à montagem de La maladie de la mort, pela Comédie Fran-
çaise, Muriel Mayette-Holtz divide o texto de Marguerite Duas em três níveis de
leitura: 1) ao fundo da cena, o filme projetado; 2) em segundo plano: uma mulher
num quarto; 3) no primeiro plano, um ator que nos conta de um homem que re-
lata sua dificuldade de amar. E a diretora oferece ainda outra indicação de cena: o
texto não é propriamente um texto para o teatro, segundo ela, é um longo poema
em prosa que Marguerite Duras, em 1982, ditou frase a frase, muitas vezes em um
semicoma devido a uma cirrose hepática, a seu companheiro Yann Andréa. Con-
sultado em:

126
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

desconhecido para você, não sei [...]."(Idem, p.56) Por vezes, essa voz
que declara passa a palavra ao homem e à mulher, cito um trecho dessa
mudança de registro discursivo: "Ela diz: Eu estou aqui, pode olhar, eu
estou diante de você. Você diz: Eu não vejo nada."(Ibidem)
Há aqui, no mínimo, quatro movimentos: 1) ampliação — por toda
parte e em todos os tempos; 2) redução — dos lugares se passa ao sexo
que procuraria por um lugar; 3) preenchimento — pela penetração e
4) esvaziamento — pelo choro. Sempre me perguntei a razão pela qual
os amantes de Duras choram tanto, ao ler mais uma vez esse parágrafo,
me ocorre que chorar não vai sem ligação com jacular que, por sua vez,
é arremessar e dirigir-se a alguém. Na "comum solidão"nomeada por
Blanchot, há gozo, excesso, solidão, mas também endereçamento, há
restos de endereçamento e de ações que se repetem: acordar, dormir,
olhar, cegar, penetrar, gozar, chorar:

Noite após noite você se introduz na obscuridade do sexo dela, você


envereda quase sem saber por essa estrada cega. Às vezes, você fica ali,
você dorme ali, dentro dela durante a noite inteira, para estar pronto
se por acaso, graças a um movimento involuntário da parte dela ou da
tua, lhe viesse o desejo de tê-la de novo, de fartá-la mais uma vez e de
gozar apenas o gozo como sempre cego de lágrimas. (Idem, p.53)

A leitura da pequena obra intitulada A doença da morte não vai sem


a companhia da crítica de Maurice Blanchot intitulada "Comunidade
dos amantes". Na sua leitura, Maurice Blanchot alinha negatividades
imprescindíveis: sem relação, sem relato, renúncia à obra, e, ao mesmo
tempo, indica que Marguerite Duras se impôs um roteiro e que ela co-
loca em cena um homem e uma mulher que, mais do que se encontram,
se perdem. Afirma ainda que é um texto declarativo que determina o
acontecimento para aquele que "caiu nas malhas de uma sina inexorá-
vel"(Blanchot, 2013, p. 50) Minha hipótese é a de que se levarmos em
conta essas indicações e acrescentarmos o posfácio que Duras escreveu
para A doença da morte, poderíamos propor uma leitura com algumas
nuances diferentes daquela de Blanchot, que, claro, não a invalida, mas
propõe um entrelaçamento possível entre aquilo que ele indica como

127
Flavia Trocoli

questão ética e aquilo que aqui gostaria de indicar como problema esté-
tico.
Problema estético que retornará três anos mais tarde com a publica-
ção de Olhos azuis, cabelos negros uma espécie de retomada estendida
da cena erótica, mas com uma forma inteiramente diferente de A do-
ença da morte, em que as didascálias agora compõem o corpo da obra e,
principalmente, a voz não é anônima, mas identificada como sendo de
um ator e a mulher não somente fala, mas se tem acesso ao seu ponto-
de-vista, ao seu olhar. Lê-se: "Se falasse, diz o ator, ela diria: Se nossa
história se passasse no teatro, um ator iria até a borda do palco, a ribalta,
bem perto de você e de mim. [...] Ele se apresentaria como o homem da
história, o homem dir-se-ia, em sua ausência central, em sua irreversível
exterioridade. (Duras [1986], s/d, p.75)
O que gostaria de sublinhar é que, se a ação, antes de Beckett110 , era
um elemento fundamental do teatro, em A doença da morte, a ação
estaria reduzida ao próprio dizer, à enunciação que estabelece e corrói
os enunciados, em Olhos azuis, cabelos pretos, estaria reduzida à própria
escrita e leitura da didascália. De um livro ao outro, as vozes narrativas,
cada vez menos ocupam uma posição de exterioridade e de autoridade
para ocuparem o palco junto de seus personagens, diz a voz de A doença
da morte:

Talvez você consiga dela um prazer até então desconhecido para você,
não sei*.*
Tampouco sei se você percebe o rosnado surdo e distante do seu gozo
através de sua respiração dulcíssimo que vai e vem da boca ao ar de
fora.
Não creio. (Duras [1982], 2007, p.51. Grifo meu)

Neste ponto, já se pode nuançar um pouco a seguinte formulação de


Blanchot:
110
Cf.: ANDRADE, Fabio de Souza. Prefácio à tradução brasileira de Esperando Go-
dot. In: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e prefácio de Fabio de
Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

128
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

[...] é um texto declarativo, e não um relato, mesmo que tenha a apa-


rência de um. Tudo é decidido por um "Vous"inicial, que é mais do
que autoritário, que interpela e determina aquilo que acontecerá ou
poderia acontecer para aquele que caiu nas malhas de uma sina inexo-
rável. (Blanchot, 2013, p.50)

Sim, a voz declara movimentos a serem feitos pela personagem-homem,


mas não me parece inteiramente fora da própria lei que instaurou no pri-
meiro parágrafo: "Você deveria não conhecê-la". Como se também a voz
estivesse sob o efeito do não conhecer, prestes a desaparecer na noite ou
na brancura do mar, destituída de uma autoridade total. Mais adiante,
essa destituição poderá ser lida no posfácio através do deslocamento da
atuação para a leitura.
Já tinha se aprendido com Marcel Proust e Virginia Woolf que, à me-
nor pressão, o conjunto, sempre frágil e transitório, pode se decom-
por e se dispersar. Essa intrusão da voz e da palavra, a passividade de
quem a recebe, de quem é dirigido ou lido por ela não afeta somente o
personagem-homem, mas a própria voz não parece encaixar-se integral-
mente na interpretação religiosa de Blanchot, para ele esse "Vous"precisa
ser entendido como o "Diretor Supremo: o Vós bíblico que vem do alto
e fixa profeticamente os grandes traços da intriga na qual avançamos
na ignorância daquilo que nos é prescrito"(Idem, p.50). Talvez mais
interessante do que o Vous autoritário, seja pensar na palavra ditada e
na opacidade de seus efeitos, nos buracos que ela não preenche. Con-
siderando esse vous/você um pouco menos onipotente, proponho um
movimento de descida, afinal é a própria Marguerite Duras que nos
dirá que "o palco deve ser baixo, quase no nível do chão"(Duras [1982],
2007, p.92). Do alto ao baixo, do diretor supremo ao corpo vulnerável
da mulher:

O corpo [dela] não tem defesa nenhuma, é liso do rosto aos pés. Con-
vida ao estrangulamento, ao estupro, aos maus-tratos, aos insultos,
aos gritos de ódio, ao desencadeamento de paixões totais, mortais.
(Duras [1982], 2007, p. 55)

129
Flavia Trocoli

Blanchot diz que a voz é sem poder sobre a personagem-mulher. Entre-


tanto, o que se lê ainda aqui é uma exposição imensa ao outro, ao olhar
e, talvez, a uma fantasia de morte. Marguerite Duras encenou o estar
"sem recurso"111 do amor no corpo de uma mulher, alinhou um corpo
de mulher a uma fantasia de morte não sem a sombra de um amor em
perda ou "à última vista"como diria Benjamin da passante de Baudelaire.
O corpo é indefeso e exposto ao outro que pode invadi-lo, destruí-lo,
matá-lo, mas que ganha forma através da voz, do livro, de seu posfácio
que indica a possibilidade de leitura teatral, através da qual, a palavra
ganha outra vida.
Penso em sobrevida, e não posso não lembrar que Jacques Derrida, jus-
tamente ao analisar o demorar da morte em um texto literário, colocou
do lado da literatura tal exposição absoluta ao Outro112 . No caso de A
doença da morte, trata-se da exposição da mulher às fantasias de morte
ditadas pela voz enunciativa e da literatura exposta aos próprios procedi-
mentos do teatro. Sem essência, sem determinação absoluta, a literatura
estaria sem defesas quanto ao fora (no caso de Derrida o testemunho
e a autobiografia) — mas, talvez, não sem recursos, é isso que o leitor
Jacques Derrida encena ao ler O instante de minha morte, de Blanchot,
linha a linha, situando-o não somente em uma cena testemunhal, mas
também numa cena literária composta por Dostoievski, Kafka e Paul
Celan.
Na edição brasileira, O homem sentado no corredor precede A doença da
morte, lá se diz com todas as letras de uma interdição que vacilará ainda
mais no texto seguinte: "A doçura daquilo é tal que lhe vêm lágrimas
aos olhos. Vejo que nada iguala em potência a essa doçura, salvo a
interdição formal de atentar contra ela. Interdita."(Duras [1982], 2007,
p.29). Qualquer interdito à morte só pode advir da palavra, do dizer de
novo, da forma que barra a absolutização da doença da morte, isto é,

111
Refiro-me à bela epígrafe de Nancy que Blanchot escolhe para o seu ensaio: "A única
lei do abandono, assim como a do amor, é de ser sem retorno e sem recurso".
112
Cf.: DERRIDA, Jacques. Demorar: Maurice Blanchot. Tradução: Flavia Trocoli e
Carla Rodrigues. Florianópolis: EDUSC, 2015.

130
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

da impossibilidade de amar. Ao final de "A comunidade dos amantes",


Blanchot retoma Wittgenstein para se perguntar se, já que é preciso
falar, com que espécie de palavras? Retomemos a pergunta ligeiramente
modificada: diante da iminência da morte de uma mulher, diante da
iminência da morte do próprio corpo da obra, diante da doença da
morte que é não poder amar e, assim, viver como morto, o que as pala-
vras ainda podem fazer? Vejamos o que elas, as palavras, fazem em uma
obra posterior a A doença da morte. A interdição da impossibilidade de
amar, em Olhos azuis, cabelos pretos, não se desliga da queda da voz que
decreta, que dirige, mesmo na opacidade, o que sobrara de ação para
o homem. O amor, ou sua impossibilidade, é indissociável de sua forma.

Parte 2: Olhos azuis, cabelos pretos, ele, o equívoco, como


barreira à sina inexorável

Aqui se sabe quem fala, é o ator quem nos diz que "uma noite
de verão seria o centro da história", aqui se sabe onde as coisas começam
a se passar, no vestíbulo do Hotel das Rochas. "Gritam um nome de
sonoridade insólita", e "pouco depois do grito, pela porta que a mulher
está olhando, a das escadas do hotel, um jovem estrangeiro entra no
vestíbulo. Um jovem estrangeiro de olhos azuis cabelos pretos."Mais
tarde escutamos que esses também são os traços dela que diz: "Cabelos
pretos tornam os olhos azul-anil, meio trágicos também"(Duras [1986],
s/d, p. 13). Trágico que só pode ser cogitado pela metade, já que os
olhos azuis são também equívocos, isso não é um detalhe, mas sim
um procedimento da obra: o imutável do trágico é barrado pelo que
pode ser lido como equívoco. Equívoco que, no entanto, não permite
a instauração de nenhuma lógica conciliatória.
Na primeira didascália ou na primeira leitura do ator, no começo da
peça, há indicações sobre o cenário, um lugar abandonado, momenta-
neamente fúnebre, aquilo que passou não é propriamente narrado, nem
atuado, é lido nas metamorfoses do odor - primeiro odor de incenso e

131
Flavia Trocoli

rosa, em seguida inodoro de pó de areia, por fim se torna odor sexual.


Lê-se:

A descrição da decoração, do odor sexual, dos móveis, do acaju es-


curo, deveria ser lida pelos atores no mesmo tom do relato da história.
Mesmo se, de acordo com os diferentes teatros onde a peça seria re-
presentada, os elementos da decoração não coincidissem com o aqui
enunciado, este permaneceria intacto. Nesse caso, caberia aos atores
fazer com que o odor, os figurinos, as cores se adequassem ao texto,
ao valor das palavras, à sua forma. (Duras [1986], p. 16)

O livro Olhos azuis, cabelos pretos é composto de dois planos: 1) o plano


da cena narrada, em que há um ele e um ela que, por vezes, falam através
do discurso direto; 2) o plano que estou chamando de didascália não
é constituído propriamente pela voz do autor dramático, mas do ator,
daquele que quebra qualquer possibilidade de naturalização da repre-
sentação, que diz não somente que é um livro que está sendo lido, mas
que também dirige interrompendo a própria cena narrada. Essas partes
são desarmônicas em muitos pontos, não somente pela mudança das
vozes, no plano da enunciação, ele, ela, o narrador, o ator-leitor-diretor,
mas também pelas metamorfoses que se dão nos enunciados: se é dito
que a mulher está coberta por uma seda negra, o ator em certo momento
lê que esta ideia será abandonada, se numa frase ela é uma atriz, em outra
ela é uma escritora que escreverá sobre um quarto113 , equivocadamente,
inabitável, um infernal palco fechado onde se procuraria o início do
amor.
No livro intitulado La Vie materiélle, mais precisamente no fragmento
intitulado "Le théâtre", a Marguerite ensaísta nos diz:
113
Cf: CIXOUS, Hélène. Em Ayaï: le cri de La littérature, a autora, passando por
Proust, Dostoievski e Freud, retomará o quarto como lugar da cena primordial, lu-
gar do crime e do castigo, em que a crueldade passa a ter lugar. Para Cixous, a litera-
tura hospeda a morte e outras negatividades, ao mesmo tempo em que diz não ao
massacre e pode refazer a vida com as cinzas. Quanto às obras de Duras que leio aqui,
impossível não pensar que, de certa maneira, o corpo da mulher adormecida, que
liberta o homem, não deixa de ser uma memória do narrador da Recherche diante
de Albertine.

132
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

Neste inverno, vou fazer teatro e espero sair do meu lugar e fazer teatro
lido, não atuado. Um ator que lê um livro em voz alta como em Olhos
azuis, cabelos negros, nada a fazer senão isso, nada a não ser assegurar
a imobilidade, nada a não ser sustentar o texto fora do livro só pela
voz, sem gesticulação, para fazer crer que o drama do corpo que sofre
está inteiramente nas palavras e que o corpo não vacila. (Duras, 1987,
p.17.Tradução minha)

É notável como tanto na obra, como no ensaio breve, Marguerite Duras


desloca toda a ênfase da atuação para a leitura, desloca para uma forma
em que o valor das palavras coincide com o drama do corpo. Como
drama no corpo, as palavras não contam nenhuma história, não expli-
cam nada. A cena e as imagens são feitas e desfeitas: uma nudez cada vez
mais nua e cada vez mais privada de sentido. A palavra é a forma para a
vacuidade e a obscuridade e aí residiria seu valor? "Permanece a memória
infernal do que não chega a acontecer"(Duras [1986], p.31). A forma da
obra portaria uma ausência de toda memória, um infernal apagamento
e recomeço. Aqui, como em Proust, o esquecimento é constitutivo do
tecido narrativo e não apenas tema.
Pode-se dizer que a primeira metade de Olhos azuis, cabelos pretos, re-
toma o tema da doença da morte: uma mulher que, apesar de não ser
uma prostituta, é paga por um homem que não pode amar para passar
com ele as noites de um verão diante do mar. No entanto, há a presença
do ator, há as didascálias, há longas descrições da paisagem, há conver-
sas sobre óperas e sobre o que faz de fato a mulher, há também cenas
que se passam fora do quarto. Nessa primeira metade, vigora um certo
equilíbrio entre a narrativa dos momentos em que o homem e a mulher
se encontram e as didascálias lidas pelo ator. No meio do livro, lê-se:

Lembra-se de que esta noite ela chegou um pouco atrasada em rela-


ção ao seu horário habitual, ele não fez comentários. Fica preocupado,
não por ter esquecido de fazê-los, antes para que o atraso não assuma
uma importância que eventualmente poderia vir a possuir, mais tarde,
nos dias que virão, quando ele chegar a acreditar que começou a amá-
la. (Duras [1986], p.47)

133
Flavia Trocoli

O interessante é que essa linha divisória, entre não poder amar e acre-
ditar que começou a amar, seja introduzida pelo "lembrar-se"seguido
daquilo que poderia ser um temor de que o amor pudesse começar a
criar os seus enredos e a dar importância e comentário a um atraso. É
mais interessante ainda que esse começo do amar seja sucedido de uma
espécie de redução das didascálias. E é decisivo que a mulher indique
um fora que talvez soubessem se as pessoas do quarto haviam se amado.
Um fora que não há, que ficou em A doença da morte. Em Olhos azuis,
cabelos pretos, uma mulher diz não à doença do homem que não pode
amar, mas assim: "Eu não conheço você. Ninguém pode conhecê-lo,
pôr-se em seu lugar, você não tem lugar, não sabe onde encontrar um
lugar. E é por isso que eu o amo e que você está perdido."(Duras [1986],
p.53)
Eles estão juntos no livro e ao fim deste livro serão devolvidos à diluição
da cidade, como a passante de Baudelaire. E ela diz ainda que este lugar
já estava criado: o do falso amante, aquele que não ama, como um
papel no teatro. Na verdade, esse lugar em um ternário — uma mulher,
um homem, um jovem estrangeiro de olhos azuis, cabelos pretos —
é o próprio lugar da vacuidade e do amor em Marguerite Duras, é a
forma vazia na qual as personagens tomam posição para amar. Ou,
mais precisamente, em Olhos azuis, cabelos negros, para beijar. O beijo
é o que interrompe os movimentos repetitivos dos corpos de acordar,
dormir, penetrar, gozar e chorar. É, ele, o beijo, o novo amor. O único
beijo trocado. E "Do beijo, não falarão."(Duras [1986], p.87) Mas,
estranhamente, por uma única vez, o gozo se dissocia das lágrimas
e ganha outra forma: "Paramos de falar. O gozo veio do céu, nós
o recolhemos, ele nos suprimiu, arrastou-nos para sempre e depois
desapareceu"(Idem, p.91). Sim, o leitor de Duras já terá estranhado
a súbita aparição desse nós. Nem você, nem ele, nem ela. Nós. "... e
depois as mãos se encontraram no naufrágio"(Idem, p.91). Uma úl-
tima frase, diz o ator, poderia ter sido dita antes do silêncio (Idem, p.96).

Epílogo

134
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

Em A doença da morte, lê-se:


O choro a acorda. Ela te olha. Olha o quarto. E de novo ela te olha.
Acaricia a tua mão. Ela pergunta: Você chora por que? Você diz que
cabe a ela dizer por que você chora, que ela é que deveria saber. Ela res-
ponde baixinho, com doçura: Porque você não ama. Você responde
que é isso. Ela diz: O desejo de estar prestes a matar um amante, de
guardá-lo para si, só para si, de arrebatá-lo, de roubá-lo a contrapelo
de todas as leis, de todos os impérios da moral, você não sabe o que
é isso, você nunca soube? Você diz: Nunca. Ela te olha, ela repete: É
curioso um morto. (Duras [1982], 2007, p.75)

Marie-Hélène Brousse nos diz que "As lágrimas são a manifestação mais
forte de existir, quando se enfrenta o ’Seria melhor não existir’."Seria a
questão da própria literatura de Marguerite Duras mostrar a obra como
forte manifestação do existir diante da ameaça de sua própria destrui-
ção? Se, em determinado ponto, o paralelo que proponho aqui se dá
entre a vulnerabilidade do corpo da mulher e da literatura, é preciso des-
tacar que, no fragmento citado, é a mulher que nomeia, ainda, a doença
da morte, é ela quem indica a ausência do amor — motor do choro, do
gozo, do endereçamento imensamente assimétrico e disjuntivo a que
A doença da morte dá forma. Escutemos a voz: "Você olha essa forma,
você descobre nela ao mesmo tempo a potência infernal, a abominável
fragilidade, a fraqueza, a força invencível da fraqueza sem igual."(Duras
[1982], 2007, p.64) Poderíamos rasurar a partir do paralelismo entre o
corpo da mulher e a literatura e dizer assim: Você olha essa forma, essa
mulher, essa literatura, você descobre nela ao mesmo tempo a potên-
cia infernal, a abominável fragilidade, a fraqueza, a força invencível da
fraqueza sem igual. No posfácio, Marguerite Duras escreve:
Só a mulher diria seu papel de cor. O homem, nunca. O homem leria
o texto [...] Aquele de quem trata a história nunca seria representado.
Mesmo quando se dirigisse à jovem, seria pela mediação do homem
que lê a sua história. A atuação aqui seria substituída pela leitura. Sem-
pre acho que nada substitui a leitura de um texto, que nada substitui a
falta de memória do texto, nada, nenhuma atuação. [...] (Idem, pp.91-
93)

135
Flavia Trocoli

Em Olhos azuis, cabelos pretos, a voz que cria e decreta não existe mais.
A voz que lê é de um ator. Em um único beijo se inscreve um amor,
subitamente aparece um nós gozamos, depois é naufrágio e silêncio. E a
literatura ou, mais precisamente, o ato de ler vem recolher os seus pró-
prios despojos através de uma cena, fazendo barreira contra o Pacífico,
contra o nada que poderia devorar sua própria forma. Uma literatura
que segue outras direções — apela ao teatro, ao filme e volta à leitura.
Como forma de mediação, ler seria poder ainda ligar o papel que se diz
de cor, o texto que se dita, o homem nunca representado, um corpo nu
de mulher que não se vê todo, uma literatura que não se diz toda. Se
há ainda a mediação pela leitura talvez seja porque ainda reste algum
amor na literatura, mesmo que seja aquele a título de indicação geral:
"no amor é quando eu tenho o céu e nele não há nada". E eles, o céu e
o amor, não estão lá, no alto, estão aqui neste palco baixo, ao nível do
chão.

136
Sobrevidas da cena em Marguerite Duras

referências

ANDRADE, Fabio de Souza. Prefácio à tradução brasileira de Espe-


rando Godot. In: BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução e
prefácio de Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
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_____. Jacques Derrida por Geoffrey Bennington e Jacques Derrida. Tra-
dução: Anamaria Skinner; revisão técnica: Márcio Gonçalves. Rio de
Janeiro, Zahar, 1996.
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Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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BROUSSE, Marie-Hélène. Les conditions d’une larme. In: Lacan quo-
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CIXOUS, Hélène. Ayaï! Le Cri de la littérature. Paris: Galilée, 2013.
DURAS, Marguerite. La Vie materiélle. Paris: Folio, 1994.
_____. (1981). Agatha. Tradução: Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro:
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_____. (1982). A doença da morte. Tradução: Vera Adami. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.
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Paulo: Circuito do livro, s/d.
FOUCAULT, Michel. Sobre Marguerite Duras. In: Ditos & Escritos III.
Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução:
Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universi-
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137
Flavia Trocoli

FREUD, Sigmund. (1917-1918) História de uma neurose infantil. In:


Uma neurose infantil e outros trabalhos Volume XVII da Edição Stan-
dard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Ja-
neiro: Imago, 1996.
MONTRELAY, Michèle. L’ombre et le nom: sur la feminité. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1977.
MORETTI, Franco. O burguês: entre a literatura e história. Tradução:
Alexandre Morales. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Sous la direction de
Jean-Yves Tadié. Paris: Gallimard, 1999.
TROCOLI, Flavia. "Assombros do Autobiográfico". In: EYBEN, P.
(org.) Poética, política: assombros da desconstrução. Vinhedo: Editora
Horizonte, 2019.

138
e m i l y l . — m a rguerite
d u r a s , t r a duzir o
i m p o s s í vel
claudia itaborahy ferraz

Saber que não se escreve para o outro, saber que as coisas que
vou escrever não me farão nunca amado por aquele que amo,
saber que a escritura não compensa nada, não sublima nada,
que ela está precisamente aí onde você não está — é o começo
da escritura.
Roland Barthes

Cena I — a mulher, no quarto, escreve

— O que pode a noite, se não abrir a escuridão e transformar mulhe-


res em bichos que farejam e voam ainda que tenham quatro patas? Do
alto do arranha-céu, da altura do corpo próprio, a lente dispara contra
a monotonia para ver movimentos íntimos, repetindo uma mesma ci-
dade.
— O que pode a noite, se não abrir a escuridão e alterar a paisagem?
Inventar mapas astrais, imaginar constelações, sentir cheiro do mar.
Abrir os olhos, deixando que permaneçam fechados, em estado de
quase sonho, de quase delírio, para ver aquilo que já não há.
— O que pode a noite, se não abrir a escuridão?

139
Claudia Itaborahy Ferraz

No deserto de um quarto, a mulher — no meio do sono — escreve.

E, como um bicho — cansado — dorme.

Uma mulher, de branco, no meio do quarto, escreve. Bilhetinhos


com poemas, cartas para ninguém. Emily Dickinson deixou uma
gaveta com papéis em desordem, contendo dezenas de caderninhos114
costurados artesanalmente e folhas soltas com grande número de
poemas. Em Amherst, pequena cidade perto de Boston, Emily nasceu,
viveu e morreu, aos 56 anos. Seus últimos 25 anos foram vividos em
completa reclusão: o contato feito com o mundo externo dava-se
por meio das cartas que ela trocava com alguns amigos e familiares,
acompanhadas, algumas vezes, por um poema escrito por ela. Com
aproximadamente 29 anos, começa a vestir apenas roupas brancas.
No ano anterior, começou a correr sempre que a campainha tocava
em casa. Quando aceitava visita de algum amigo conhecido, ela e o
visitante conversavam através apenas da porta entreaberta — the door
ajar. Foi a irmã de Emily — Lavinia — quem encontrou seus escritos
nas gavetas da cômoda do quarto, lugar onde escrevia trancada, com
um mundo restrito de poucos amigos, seletas leituras e raras expe-
riências. E, ainda assim, o quarto de Emily parecia ser o mundo, imenso.

Cena II — a semelhança entre mulheres que não se pare-


cem

Marguerite Duras traduziu Emily Dickinson. No livro Emily L.


, de Marguerite Duras, publicado em 1987, onde Emily L. é escrita,
por Duras, na sobreimpressão com Emily Dickinson, Emily torna-se
também letra de Dickinson: Emily L. Aqui, não se trata de uma
tradução interlingual, pois Duras não traduz exatamente o texto de

114
Poemas de Dickinson, cuidadosamente copiados em folhas de papel dobradas, e,
por ela mesma, costuradas, como livros, que foram, depois, conhecidos como seus
"fascículos".

140
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

Dickinson, mas do que poderíamos chamar, de transposição115 . Onde


o sentido se constrói "só depois"(nachtraglich), uma vez que algo se
revela sobre a poética de Dickinson, no contexto do romance de Duras.
E isso só vai se revelar a partir do leitor, com sua experiência tanto da
leitura da obra de Duras quanto da obra de Dickinson, para que a
transposição possa, de fato, produzir efeitos de leitura.
Nesse romance, em que Emily L. é a protagonista, a ponto de dar nome
ao título, o centro, de fato, não parece estar na personagem, mas no que
esta revela sobre a escrita e sobre o amor. Um casal francês é capturado
visualmente por um casal de ingleses, e, a partir de então, a mulher fran-
cesa, que antes insistia em querer escrever a sua história amorosa, passa
a contar sobre a mulher inglesa e o "seu"capitão. É verão, eles estão em
uma cidade do litoral francês, Quillebeuf. O texto é tecido a partir do
des(encontro) amoroso do casal francês, onde a mulher, uma escritora,
diz da escrita e de quando para de escrever, por causa do amor. No cor-
rer do livro, a mulher inglesa torna-se o grande interesse do casal francês,
principalmente da mulher, que não para de querer saber e interpretar as
histórias, a vida, daquela inglesa. Nesse movimento de olhares, o casal
francês retoma a sua própria história, na tentativa de poder saber sobre
o próprio deles.

No livro, Emily L. perde um poema, dos aproximadamente dezenove


que havia escrito, sobre as tardes de inverno e a luz do sol penetrando
as frestas. Esse poema foi queimado por seu parceiro. É nessa perda do
poema que Emily L. para de escrever. Para além da história de amor
desses dois casais, o livro traz a história secreta de Emily L. com um
funcionário da casa do pai, leitor de seus poemas, para quem Emily
escreve uma carta, que fica anos en souffrance. Este homem, inclusive,
é quem nomeia a inglesa como Emily L. — L. que convoca a pensar:
L. o que?

115
O termo "transposição"é introduzido por Mallarmé e trabalhado, numa precisa ar-
ticulação com a psicanálise, por Alain Badiou, em Por uma estética da cura analítica.
No livro Cor’p’oema Llansol, de Janaína de Paula, esse conceito funciona como um
operador para se pensar, especialmente, a articulação entre o corpo e o poema na
textualidade llansoliana.

141
Claudia Itaborahy Ferraz

O livro Emily L. apresenta fragmentos de texto na língua inglesa, em


todo o seu percurso — o que pode chamar o leitor a um ponto de tra-
dução para além, tal como escreve Heidegger,
[...] se refletirmos sobre o que seja "traduzir". Inicialmente apreende-
mos este processo como algo externo, técnico-filológico. Dizemos, en-
tão, ser o traduzir a transposição de uma língua para outra, da língua
estrangeira para a língua materna ou também o contrário. Entretanto
temos dificuldade de entender que, constantemente, já estamos tradu-
zindo nossa própria língua, a língua materna, para sua palavra própria,
genuína. Falar e dizer é, em si, um traduzir, cuja essência não pode de
forma alguma consistir em duas situações, onde as palavras que trans-
põem e as palavras transpostas pertençam a linguagens diversas. Em
cada diálogo e em cada solilóquio vige um traduzir originário. Nesse
caso, não pensamos apenas no processo, no qual substituímos uma
maneira de falar por uma outra da mesma linguagem, e nos servimos
da "paráfrase". A mudança na escolha de palavras já é a consequên-
cia de uma transposição, para nós, numa outra verdade e clareza, ou
também numa interrogação (Fragwürdigkeit). Este transpor pode se
realizar sem que a expressão linguística se altere. A poesia de um po-
eta e o tratado de um pensador estão em sua palavra própria, singu-
lar, única. Eles nos obrigam a perceber essa palavra, sempre de novo,
como se a ouvíssemos pela primeira vez. As assim chamadas tradução
e paráfrase são subsequentes e seguem tão-somente a transposição de
todo o nosso ser para dentro do âmbito de uma verdade transformada.
Somente se já nos deixamos apropriar por esta transposição, nos en-
contramos no cuidado pela palavra. Só com base na atenção, assim
mais fácil e limitada, de traduzir a palavra estrangeira para nossa pró-
pria linguagem116 .

Ao pensar esse romance a partir de uma poética da tradução, penso


quando Marguerite Duras se refere ao poema perdido de Emily L.
como o poema absoluto, que poderia ser escrito em diferentes partes
do mundo sob diferentes formas:
Ela achava que quando os poemas eram escritos em um determinado
país, eles rapidamente se propagavam por outros lugares, impulsiona-
dos por sua própria evidência, por sua própria existência, para além
116
HEIDEGGER, Martin. Parmênides, p.28.

142
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

das distâncias, dos céus, dos mares, dos continentes, dos regimes polí-
ticos, das proibições. Era uma pessoa inclinada a pensar que em toda
a parte se escrevia o mesmo poema sob diferentes formas. Que havia
apenas um único poema a alcançar através de todas as línguas, de to-
das as civilizações117 .

O romance Emily L. parece trazer pontos biografemáticos de Emily


Dickinson — as cartas, o poema, a língua inglesa, o cão perdido, as rou-
pas brancas, os cabelos negros... e conta história de amor e a história de
mulheres que escrevem (ou escreviam). "É incrível a semelhança entre
mulheres que não se parecem-– diz a narradora ao seu marido. O livro
traz fragmentos de frases em inglês ao longo do seu percurso. Emily
L. toma a cena, contando sobre um poema perdido, jamais encontrado.
Em inglês, Marguerite Duras, traz, sem traduzir, uma frase de Emily Dic-
kinson para o seu romance. E, em companhia do fragmento mantido
em inglês, Duras traduz e transforma (em romance?) outros fragmentos
do mesmo poema — poema sobre as tardes de inverno.
Theres a certain Slant of light,
Winter Afternoons—
That oppresses, like the Heft
Of Cathedral Tunes—
Heavenly Hurt, it gives us—
We can find no scar,
But internal difference,
Where the Meanings, are—
None may teach it—Any—
’Tis the Seal Despair—
An imperial affliction
Sent us of the Air—
When it comes, the Landscape listens—
Shadows—hold their breath—
When it goes ’tis like the Distance
On the look of Death— 118
117
DURAS, Marguerite. Emily L., p. 56.
118
Poema 258 de Emily Dickinson.

143
Claudia Itaborahy Ferraz

Emily L. e Emily D. tornam-se muito semelhantes, mas quem escreve,


importa lembrar, é Marguerite Duras, que se faz "compreendida como
se fosse um texto original- já que somente um leitor, também leitor de
Emily Dickinson, poderia saber que aquele texto é uma tradução que
Duras faz do poema de Dickinson. E o que Duras faz é escrever, fazer
literatura, mesmo ao traduzir.
Ela reflete. Hesita. E depois pergunta:
— Há um sobre as tardes de inverno?
O caseiro procura.
— Não. Acho que não... É o título?
— Sim. Teria sido isso, este título. Sim, com certeza...
[...]
Ele diz:
— Você acha que o escreveu?
— Segundo você, eu o teria apenas imaginado?
— Não sei. Você se lembra do que queria falar?
— Desses raios de sol, no inverno, eles entram por onde conseguem
passar, pelas menores frestas das arcadas, pelas pequenas aberturas das
naves que as pessoas faziam expressamente para a luz, para que pene-
trasse na catedral até a noite negra dos solos. No inverno o sol é de um
amarelo iodado, sanguinolento... Eu dizia que esses raios de sol feriam
como espadas celestes, que trespassavam o coração... isso, sem deixar
cicatrizes, nada, nenhum vestígio...
[...]
— "exceto o de uma diferença interna no âmago das significações".
[...]
Ele repete a frase inglesa:
— But internal difference, where the meanings are.
[...]
Ele pergunta: – As tardes de inverno, teria sido este o título do poema?
— Sim. Winter afternoons.
Teria sido também o título da brochura.119
119
DURAS, Marguerite. Emily L., p.78-80.

144
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

Para mim, em Emily L., o pensamento em torno das leituras que Duras
faz apresenta-se como ponto de investigação sobre o que vem a ser — e
o que poderia ser — uma poética da tradução, em um movimento de
ética e pensamento da poiesis — o fazer poético e o pensamento poético.

Cena III — o texto dela, ou,

Fazer amor com o texto


Escrever, mesmo quando não se pode escrever. A partir do desencontro,
de uma falta de resposta, de uma falta de outro, de mundo. A partir
daí, Emily, então, escreve. E acumula suas cartas na gaveta, cuida e se-
greda a maioria quase absoluta dos seus escritos dentro do quarto, na
cômoda. Deixa-os costurados, amorosamente, para o futuro. São cartas
guardadas e jogadas no tempo — cartas para ninguém. De branco, uma
folha, um envelope — selada no quarto —, significante e objeto, vejo
uma mulher que escreve e é escrita.
Uma escrita que vai além da representação, que convida a literatura a
aceitar outro tipo de texto, em que o impossível tem lugar. A pergunta
lançada a mim, por Duras, a partir daí, então, é: "quem escreve quando
já não se pode escrever?"NINGUÉM. "Ninguém"escreve. Porém, dizer
"ninguém"não significa afirmar que não exista quem escreva, mesmo
quando esta tarefa é impossível. Há, aí, um ninguém que escreve.

Escrever não posso.


Ninguém pode.
É preciso dizer:
Não se pode.
E, se escreve.120

Esse parece ser o ponto mais radical121 para se pensar a "pulsão da es-
crita"122 , expressão introduzida por Maria Gabriela Llansol como uma
120
DURAS, Marguerite. Escrever, p. 47.
121
BRANCO, Lucia Castello. Os ínvios caminhos — escrever, ler,psicanalisar. 2020.
122
LLANSOL, Maria Gabriela. Na Casa de Julho e Agosto.

145
Claudia Itaborahy Ferraz

espécie de figura, em seu texto. Essa expressão, assim cunhada, traz como
marca um deslocamento da pulsão do escritor, da pulsão de escrever,
para a pulsão da própria escrita. Afirma-se, assim, a escrita fora da re-
presentação, como um movimento pulsional que atravessa o corpo. A
pulsão da escrita pode, ainda, ser articulada ao conceito freudiano de
pulsão, e à releitura que Lacan fez deste, através de seus trabalhos sobre
sublimação, letra e gozo feminino 123 .
Para Llansol, a escrita não se faz por metáforas, mas por um "pensamento
da luz", sendo a singularização efeito dessa pulsão da escrita, "luz prefe-
rida". Trata-se, para ela, da "clorofila, a primeira matéria do poema"124 .
Com uma matéria exterior, o poema, no movimento da "pulsão da es-
crita", desaloja o sujeito, colocando-o ao seu lado e fazendo de si um
tipo de "poema sem eu"125 . É a literatura em seu estado de voz, em movi-
mento de "pulsão da escrita", em estado de clorofila, de luz preferida, ou
de cor’p’oema126 - puro corpo de letras, um ninguém que, no entanto,
escreve. Blanchot denomina esse ninguém que escreve de "neutro". Por
força do neutro, escrever residiria na "passagem do Eu ao Ele, de modo
que o que me acontece, acontece a ninguém, é anônimo pelo fato de
que isso me diz respeito, repete-se numa disseminação infinita"127 . E,
assim, a escrita é "a abertura opaca e vazia sobre o que é quando não há
mais ninguém, quando ainda não há ninguém"128 .

Acontece que essa abertura opaca e vazia, essa mesma abertura que dá
passagem do Eu ao Ele, é também "passagem de vida", "que atravessa
o vivível e o vivido". Há um ninguém que escreve a vida, deixando
passar a vida — o atravessamento do vivível e do vivido — por aquilo
que se escreve.
[...]

123
ANDRADE, Vania Maria Baeta. Luz Preferia — a Pulsão da Escrita em Maria
Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux.
124
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia?, p. 12.
125
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, Drama-Poesia?, p. 13.
126
P AULA, Janaina de. Cor’p’oema Llansol, p. 27*. *
127
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 24.
128
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p. 24.

146
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

Assim como o corpo opera por suas secreções, a escrita, ela própria,
secreta. Há algo que se produz aí, por si só, sem nenhuma "consciência
êuica". Mas não sem corpo. Porque, se ler é "emprestar sua ferida para
receber a ferida do outro", a escrita é, antes, da ordem da cicatriz. [...]
E um corpo abandonado à sua própria sorte jamais será tão só, se tiver,
a seu lado, esta outra forma de secretar: a escrita.129

A escrita de Duras, em Emily L., poderia acionar essa passagem do


"eu"ao "ele sem rosto", pelo próprio gesto e mecanismo de "desapro-
priação (desocupação) do autor"efetuado pela tradução? A tradução,
vejo, é uma forma singular de leitura, em trânsito, a caminho, feito uma
carta que está sempre chegando a seu destino, que não para de chegar
- um texto em constante tradução, sempre se abrindo a novas formas
singulares de leitura. Duras leu. Eu li. Ela escreveu.

"A tradução é uma forma singular de leitura"130


e "cada leitura é uma tradução"131 .

Para Maurice Blanchot "a leitura do poema é o próprio poema, que se


afirma obra na leitura, que, no espaço mantido aberto pelo leitor, dá
nascimento à leitura que o acolhe"132 . Ler poema, traduzir poema. Duras
traduziu poemas de Dickinson, anunciando a possibilidade desse tipo
de tradução, que muitos afirmam não ser possível, pela particularidade
do que seria, para eles, o poema. Mas é outra coisa o que a escrita dela
revela. Para Octavio Paz, a poesia não é intraduzível, pois há nela uma
universalidade capaz de ir além da linguagem: "a poesia, sem deixar de
ser linguagem, é algo mais que linguagem"133 .
O tradutor, diferente do poeta, sabe onde aquele texto vai chegar e, jun-
tando as palavras, os signos, pode compor um novo poema. Benjamin
propõe a tradução como uma dilatação da própria língua, para alcançar
a língua estrangeira, a língua do outro, alargando as fronteiras, cami-
129
BRANCO, Lucia Castello. Os ínvios caminhos — escrever,ler,psicanalisar, 2019
130
VIDAL, Eduardo. Letra.
131
PAZ, Octavio. Tradução: literatura e literalidade, p.25
132
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário, p.215.
133
PAZ, Octávio. Tradução: literatura e literalidade, p. 25.

147
Claudia Itaborahy Ferraz

nho "em direção ao infinito (...) de acordo com a lei da fidelidade na


liberdade do movimento da língua"para traçar o seu próprio destino.
Marguerite Duras quando escreve Emily L. traduz Emily Dickinson,
na liberdade de tomar para si o texto do outro, fazendo com ele uma
dança particular de leitura e escrita, transcrição, tradução, transposição,
transcriação. Duras, destinatária de uma mulher que fazia amor com o
texto, escreve.
The Way I read a Letter’s — this —
’Tis first — I lock the Door —
And push it with my fingers — next —
For transport it be sure —
And then I go the furthest off
To counteract a knock —

Then draw my little Letter forth


And slowly pick the lock — 134

134
Dickinson, Emily. fragmento do Poema 636

148
Emily L. — Marguerite Duras, Traduzir o impossível

referências

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150
m o d e r a t o c a ntabile e
o e r o t i s m o d o fracasso
beatriz chnaiderman & laerte de paula

Introdução

Moderato Cantabile foi escrito por Marguerite Duras em 1958.


Algumas décadas depois, em uma entrevista concedida em 1987, a au-
tora situa acontecimentos ocorridos à época que teriam transformado
sua relação com a escrita: "Era como descobrir os vazios, os furos que
eu tinha em mim, e de encontrar a coragem de dizê-los. A mulher
de Moderato Cantabile e aquela de Hiroshima mon amour era eu:
extenuada por esta paixão que, não podendo me fiar pela palavra135 ,
decidi escrever"(DELLA TORRE, 2013, p. 53, tradução nossa).
Se colocamos Moderato Cantabile em relação com alguns de seus pri-
meiros romances, como La vie tranquile (1944), Le Barrage contre le
Pacifique (1950), Le marin de Gibraltar (1952) e Les petits chevaux de
Tarquinia (1953), observamos uma mudança importante no modo de
escrita de Duras. Embora, sob certo ângulo, todos esses romances sejam
tentativas de escrever o encontro amoroso, Moderato Cantabile, como
Duras relatou na entrevista citada acima, toma como ponto de partida
um fracasso, uma exaustão e, por isso mesmo, optamos por destacar seu

135
O termo que Duras utiliza em francês é parole, que pode ser traduzido como fala
ou como palavra.

151
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

gesto atravessado por esse impasse: alguma coisa não passava para a pa-
lavra/fala, mas sua aposta seria de que poderia passar pela escrita ou até
mesmo pelo ato de escrever.
Propomos neste artigo que Duras escreve uma erótica nova em Mode-
rato Cantabile, distinta daquela que era convocada até então em seus
livros. Essa obra pode ser tomada como um possível ponto de virada
entre a escrita de prazer e a escrita de gozo em seu percurso, para utili-
zarmos os termos de Barthes:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que


vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confor-
tável da leitura. Texto de gozo: aquele que põe em estado de perda,
aquele que desconforta [...] faz entrar em crise sua relação com a lin-
guagem (BARTHES, 1973/1996, p. 21-22)

Essa virada em sua obra é apontada pela própria Duras em uma sé-
rie de entrevistas concedidas a Xavière Gauthier, em 1974: "Buracos.
Eu disse, acho, em certo momento, ’os buracos’... Mas sabe, foi pre-
ciso escrever muitos livros para chegar a esse ponto. Há toda uma
época em que escrevi livros, até Moderato Cantabile, que não reco-
nheço"(GAUTHIER, 1974, p.12). Interessa-nos enlaçar esses buracos
com a ideia de fracasso que vamos gradualmente articular neste traba-
lho. Duras destaca que tal efeito não estava lá desde o início: foi preciso
escrever muito para chegar a tratar os buracos de alguma outra forma.
Diz ainda: "Eu escrevia como quem vai ao escritório, todos os dias, tran-
quilamente. Levava alguns meses para fazer um livro e então, de repente,
veio a virada. Com Moderato Cantabile foi menos tranquilo"(p.13). Um
livro que a retira de um ritmo e de uma previsibilidade de produção.
Algo começa a falhar no arranjo antigo. Duras marca aí o começo de
um medo da escrita e de seus buracos, distinto da escrita que ela mesma
considerou alienada, burocrática, harmoniosa.
A erótica dos excessos, do colorido imaginário, dos dilemas, é a marca
de seus primeiros livros, que trazem muitas personagens e relações cru-
zadas, pensamentos secretos, ciúmes, paisagens monumentais. Mode-
rato inaugura uma brecha: a erótica do fracasso, um gesto que aflora

152
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

da morte e da loucura, tal qual uma estética do arrebatamento. O re-


duzido número de personagens e de espaços resulta em uma constante
repetição de palavras ao longo do texto, convocando a monotonia e, ao
mesmo tempo, produzindo a expectativa e seu decorrente fracasso.

De Eros, de Thanatos, uma introdução via psicanálise

Propomos a seguir uma incursão à ideia de erotismo tal como abor-


dado pela psicanálise. Seguindo a trilha das vicissitudes da sexualidade
humana e levando em conta a ausência, no humano, de um objeto pré-
determinado e fixo que atenda sua busca por satisfação, Freud cunhou
o termo pulsão para tentar abarcar a pluralidade das moções psíquicas.
Não pretendemos esgotar a complexidade desse conceito e propomos
ir direto ao ponto em que este se articula com a obra de Duras.
Em As pulsões136 e suas vicissitudes, de 1915, Freud escreve: "O melhor
termo para caracterizar um estímulo pulsional seria ’necessidade’. O
que elimina a necessidade é a ’satisfação’"(FREUD, 1915/2006, p.124).
Nesse texto, apresenta algumas modalidades do que ele denomina como
defesa contra as pulsões, dentre elas a sublimação e a repressão. Em ou-
tras palavras, sublimação e repressão seriam modos de tentar dar conta
da necessidade imposta pela premência pulsional. O sujeito precisaria
se defender das pulsões que não podem ser eliminadas pelo aparelho
motor, ou seja, precisaria dar algum destino para este excesso que não
encontra estabilização natural. É necessário, portanto, uma operação
suplementar.
As pulsões são caóticas, conflitantes e, nesse ponto do desenvolvimento
da obra de Freud, são governadas pelas marcas de satisfação (pulsões
sexuais, dirigidas a objetos) e pelo eu (pulsões de autoconservação, diri-
gidas ao eu), ou seja, trata-se de uma montagem que não cessa de não

136
Na tradução que utilizamos, o termo Trieb é traduzido por instinto. Optamos
por modificá-lo por pulsão, justamente porque não existe aí a montagem pré-
determinada que se associa ao conceito de instinto.

153
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

dar conta da satisfação, malgrado o tom de necessidade que as pulsões


impõem. A necessidade de satisfação pela via da descarga (da inerva-
ção pulsional), é a marca característica do princípio de prazer, um dos
elementos fundamentais na teoria freudiana a comandar o aparelho
psíquico.
No texto Além do princípio de prazer, de 1920, Freud passa a reconhecer
que haveria uma tendência tão ou mais fundamental a fazer obstáculo
ao princípio do prazer. Este já não dá conta de justificar sozinho certos
mecanismos da vida psíquica: "subsiste um resíduo suficiente para jus-
tificar a hipótese da compulsão à repetição que nos aparece como mais
originária, mais elementar, mais pulsional que o princípio de prazer que
ela descarta"(FREUD, 1920/1981, p.70, tradução nossa).
Desse modo, Freud forja uma oposição entre duas tendências: Eros, as-
sociada à coesão, criação e à conservação da vida e dos laços, e Thanatos,
desligamento, retorno à condição de não excitação, estado inanimado.
Eros é a força que busca a ligação com algo maior que o eu, enquanto
Thanatos lhe faz obstáculo. Freud dirá: "é assim que a libido de nos-
sas pulsões sexuais coincide com o Eros dos poetas e dos filósofos, que
mantêm a coesão de tudo o que vive"(p.109, tradução nossa). Essa frase
chama a atenção, especialmente porque também buscamos uma articu-
lação entre as montagens de Eros e a escrita. Duras fala da escrita como
uma necessidade diante da destruição. Com Freud, podemos supor aí
um esforço de coesão -- ainda que sempre parcialmente fracassado --
diante dessas duas tendências impossíveis de conciliar137 .
Para Lacan, a pulsão é sempre e tão somente a pulsão de morte: "a pulsão
como tal, enquanto pulsão de destruição -- isso deve ser algo que está
mais além dessa tendência do retorno ao inanimado -- não é essa vontade
de destruição direta?"(LACAN, 1959-1960, p. 168, tradução nossa). A
moção pulsional se afigura assim como estruturalmente destruidora,

137
"O princípio de prazer parece, na verdade, estar a serviço das pulsões de
morte"(FREUD, 1920/1981, p.127, tradução nossa). Vemos nesse trecho como a sa-
tisfação diz respeito às pulsões de morte. Ou seja, resistir a elas pode constituir uma
tarefa árdua tal qual construir as barragens para deter o Pacífico.

154
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

disruptiva, o que é diferente de pensá-la como tendência ao inanimado,


que seria a cessação de todo movimento. A pulsão não cessa, ela insiste,
desarranja, perturba, demanda.
Seguimos com Lacan: "que ela seja articulada como pulsão de destrui-
ção, já que coloca em causa tudo o que existe enquanto tal, o que ela
é, em suma, é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade
de recomeço"(p.168, tradução nossa). A criação não pode advir sem que
algo seja destruído, rearranjado. A pulsão se evidencia nesse movimento
de destruição e criação, no uso da linguagem para dar conta daquilo que
aponta para um mais-além da linguagem: "há em algum lugar -- mas cer-
tamente fora do mundo da natureza -- algo que nós devemos, que nós
só podemos considerar como mais além dessa cadeia significante, o ex
nihilo sobre o qual ela [pulsão] se coloca, ela se funda, ela se articula
como tal"(p.169, tradução nossa). A pulsão, portanto, é da ordem do
Real, da insistência daquilo que é impensável, daquilo que não cessa de
não se articular na linguagem:

A pulsão de morte é o Real, enquanto ele só pode ser pensado como


impossível, o que quer dizer que cada vez que ele mostra a ponta de
seu nariz, ele é impensável. Abordar esse impossível não pode cons-
tituir uma esperança. Porque esse impensável é a morte, da qual é o
fundamento do Real que ela não possa ser pensada (LACAN, 1975-
1976, p. 77)

Deste modo, as pulsões, enquanto montagens entre Eros e Thanatos,


determinam algumas premissas que desejamos reter para introduzir a
noção de erotismo: o conflito estrutural entre moções pulsionais caóti-
cas e incessantes e a falta de um objeto natural e definitivo para aplacar
sua premência. Logo, a princípio, qualquer objeto -- desde que inves-
tido e significado simbolicamente -- pode adquirir os contornos neces-
sários para receber parte deste investimento pulsional, fonte de tensão
psíquica. Pensamos a escrita de Duras como uma tentativa singular
de se sustentar diante deste impasse e como matéria que mantém viva
este conflito estrutural sem escamoteá-lo com uma suposta "solução".

155
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

É como se pudéssemos ler as marcas desse conflito e as tentativas de dar


conta dele em seus livros.
Ademais, convém destacar que essa necessidade de criação, que pode ser
lida ao mesmo tempo como tendência ao nada e defesa contra o nada, é
a marca de muitos trabalhos de arte. A sublimação é uma saída para essa
questão, pois designa certo modo de satisfação pulsional que explicita o
vazio, ao invés de escondê-lo. Na maioria das vezes em que Lacan falou
de sublimação, ele se referiu a trabalhos de pintura e instalações. Por
isso, optamos por percorrer autores que se dedicaram a pensar o ero-
tismo linguageiro, escrito, lido. Observaremos que, embora nem todos
se proponham a falar em nome da psicanálise, o erotismo circunscreve
um campo que guarda fortes relações com o exposto acima a respeito
do conceito de pulsão.

Da experiência erótica

Defender que o arranjo que Duras sustenta em sua escrita é erótico, em


um tratamento particular e sofisticado, merece que mobilizemos mais
referências que se entrelacem diretamente com seu texto. Para facilitar
esse diálogo, apresentaremos alguns fragmentos a priori para, a partir
daí, circular pelo texto de Duras.
Não foram poucos os autores que se dedicaram a pensar o fenômeno
erótico e, na literatura do século XX, é possível encontrar uma farta
atividade de investigação sobre os domínios de Eros. A poeta e ensaísta
canadense Anne Carson, por exemplo, destaca três elementos que re-
cortamos para nosso diálogo, extraídos de sua obra Eros, o Doce-amargo,
publicado pela primeira vez em 1986. Em primeiro, a dimensão da trian-
gulação, imprescindível para que floresça o erotismo e se acenda o fogo
do desejo. A ativação da dimensão erótica requer estes componentes
estruturais: amante, objeto amado e isso que se interpõe entre ambos,
precisamente a diferença entre eles. Eros faz obstáculo à colagem sujeito-
objeto, evidenciando algum traço de diferença. Em segundo, Carson

156
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

grifa a ideia de violência, extravio e despojamento do amante capturado:


"Eros é expropriação"(CARSON, 1986/2013, p.54, tradução nossa). Na
experiência erótica, o amante "sai de si, transcende seus próprios limites,
para buscar aquilo que lhe falta, mas que não sabe exatamente o que
é. Neste momento, atinge um ponto cego"(p.9). Desta forma, "Eros é
uma experiência que ataca o amante desde fora e toma controle de seu
corpo"(p.204). Por último, destaca a dimensão de aspiração ao desco-
nhecido que Eros promove: "Chegamos a suspeitar que o que o leitor
deseja da leitura e o que o amante deseja do amor são experiências de de-
senho muito semelhante (...), necessariamente triangular, que encarna
uma aspiração ao desconhecido"(p.152). Quer se trate do objeto amado
fora de alcance por um triz, do significado que não se apreende por in-
teiro, do detalhe que faz obstáculo à consumação plena dos amantes, a
tarefa de Eros é fazer com que o desconhecido siga sendo desconhecido.
Sobre essa aspiração ao desconhecido, há mais a dizer. Serge Andre, psi-
canalista francês que também realizou incursão pela experiência literá-
ria, em um texto chamado A escrita começa onde a psicanálise termina
(2000), propôs falar dessa relação de desconhecimento que liga o artista
ao saber. Se quer fazer obra, segundo o autor, será melhor que o artista
não queira saber demasiado, "pois o saber constitui, de algum modo, um
obstáculo à criação"(ANDRE, 2000, p.169, tradução nossa). Um parên-
tese: sabemos o quanto Duras exalava justamente este consentimento
em sua escrita. Dirá em Écrire (1993), no fim de sua vida: "A escrita é o
desconhecido, antes de escrever não se sabe o que será escrito"(DURAS,
1993, p.52), para complementar em seguida: "Se soubéssemos algo do
que se vai escrever, antes de fazê-lo, não escreveríamos nunca"(p. 53).
Ou seja, o escritor -- este tipo particular que desejamos sublinhar neste
trabalho -- não produz sua obra a partir nem por meio de seu saber.
"O artista antes cria a partir do que não sabe, do que não pode saber; a
verdadeira criação encontra sua fonte em um vazio do saber"(ANDRE,
2000, p.171, tradução nossa). É que, "chegado o momento da criação, é
necessário que o escritor se dirija ao mais além do saber, àquilo que, por
essência, escapa ao saber"(p.171, tradução nossa). Trata-se de realizar que

157
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

há um impossível de saber e de, ao mesmo tempo, autorizar-se a dizê-lo,


saborear esse direito de nomear o impossível. É praticamente o mesmo
que diz Duras em entrevista já citada: "é somente através da ausência,
dos furos que se escavam em um encadeamento de significações, que al-
guma coisa pode nascer"(DELLA TORRE, 2013, p. 70, tradução nossa).
Veremos como em Moderato Cantabile ela adota esta prática de forma
fecunda.
Contudo, não percamos algo de vista: aspirar a este desconhecido não
implica que esse desejo só se legitime pela garantia da conclusão desta
busca. Sustentamos antes o contrário: um texto será erótico quanto
mais ele puder manter esta busca aberta, sustentando o desconheci-
mento que nos abre à potência do dizer. Ainda que por vias distintas,
encontraremos respaldo a estas teses tanto em Barthes como em Bataille.
O primeiro, em O prazer do texto (1973/1996), defende com exuberância
que os "livros ditos eróticos representam menos a cena erótica do que
sua expectativa, sua preparação, sua escalada; é justamente nisso que são
excitantes"(BARTHES, 1973/1996, p.75). Para Barthes, o fenômeno eró-
tico não está em nenhum lugar específico, mas na fricção entre lugares,
que o escritor procura convocar: "Nem a cultura nem a sua destruição
são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O prazer do
texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente
romanesco que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ou-
sada"(p.12). Com isso, Barthes aponta que, embora possamos forjar uma
separação entre os efeitos proporcionados por um texto, entre euforia,
estabilidade de sentidos e promessa de harmonia, e seus respectivos fra-
cassos e vacilações, é na fricção entre essas duas instâncias que se produz
a experiência erótica na leitura.
Já para Bataille, o domínio do erotismo é essencialmente domínio da
violência, experiência de despojamento e de vertiginoso acesso à pró-
pria descontinuidade, ao próprio inacabamento. Experiência da qual
podemos padecer com diferentes modos de resposta. Em sua célebre
obra O Erotismo, Bataille sustenta que aquilo "que está em jogo no ero-
tismo é sempre uma dissolução das formas constituídas"(BATAILLE,

158
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

1965/2013, p.42). No erotismo trata-se sempre de um consentimento ao


extravio. Ademais, o próprio Bataille aproxima a experiência erótica de
uma certa experiência com a linguagem quando propõe que "a poesia
conduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção,
à confusão dos objetos distintos"(p.48). Há uma dimensão de perda
flagrante -- Bataille dirá: voluntária -- quando habitamos a esfera do
fenômeno erótico: "no erotismo, eu me perco"(p.55).
O que queremos propor, à medida que buscamos dar sustentação a esta
tese, é que o erotismo que mobiliza o texto de Duras diz de uma mo-
dalidade de resposta a uma impossibilidade: seja o impossível de com-
preender, o impossível de dizer, o impossível de complementar junto
ao outro. Na erótica durassiana, em meio a uma sucessão de cenas mo-
nótonas e de aparente normalidade, um evento irromperá para revelar,
em um crescendo, as ausências que capturam os personagens.
Assumir este tratamento, dar dignidade a este desejo de dizer, requer
uma ética que dê conta de acolher e de não recuar diante daquilo que,
na palavra, falha em dar conta do real. Dar nome a este impossível,
que aqui chamamos de fracasso, afigura-se como um esforço de
resposta que possa perfazer o atravessamento em torno do objeto
ausente, objeto que mobiliza o desejo mesmo em sua evanescência,
para aí insuflar uma paixão pelo nome faltante. Alain Didier-Weill,
psicanalista francês falecido em 2018, dizia que este tempo, uma
vez alcançado, seria aquele da assunção de um novo lugar, lugar de
"comemoração do ser inconsciente como tal, isto é, da partilha das
faltas mais radicais"(DIDIER-WEILL, 2014, p.68). Nesse último
tempo, nos diz, "o Real como impossível é posto em brasa, é levado à
incandescência"(p.68).

Da obra

Uma criança que ainda não sabe, que um dia certamente haverá de saber,
que não é educada o suficiente, que não se esforça o suficiente, filho

159
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

constantemente solicitado a retornar à sua posição de objeto, ora da


mãe, ora da professora de piano. A alternância do vagar com que essa
cidade previsível se orienta, o sol que desponta, o crepúsculo que se
anuncia, o escurecer que retorna, um lugar rodeado da mais absoluta
previsibilidade é assaltado por um ruído que rompe com a monotonia
de destinos áridos e teimosos, com seu espesso envoltório soporífero:
um grito eclode no recinto.
Uma mulher é morta por seu companheiro. Anne Desbaredes repenti-
namente se torna cativa de uma curiosidade pela cena sucedida. Há um
recorte emblemático que prenuncia sua mudança de estado. É quando
Anne se dirige ao local do crime e encontra, nos fundos do café, o corpo
inerte de uma mulher ao lado do qual jaz um homem, seu companheiro,
agarrado ao corpo e que a chama: "Mon amour, mon amour", a boca
dele beijando a dela, ambos ensanguentados.
A partir daí, testemunhamos um desejo que se apodera de Anne, "arra-
sada, indelével, ausente do mundo"(DURAS, 1958/1985, p.23). Ela agora
retornará ao local no dia seguinte, e no outro, e no outro. Dirige-se ao
balcão e pede um copo de vinho, depois mais um, e depois outro, man-
chando a boca deste líquido vermelho. Conhece Chauvin, homem com
o qual produzirá este tecido erótico em torno de um evento que exerce
mais fascínio quanto menos se sabe sobre suas motivações.
Doses alcóolicas degustadas com urgência, mãos trêmulas e corpos ator-
mentados por uma "outra fome que nada mais pode apaziguar, apenas
o vinho"(p.147). Estabelece-se um diálogo que, desde cedo, comparti-
lha o lugar de onde provém: Anne em busca de um entendimento, de
uma palavra, de um nome que a oriente diante do desvio trazido por
este acontecimento. Não é gratuito assinalar que Chauvin inicia suas
conjecturas sempre com a mesma frase: "Gostaria de poder lhe contar,
mas não sei nada ao certo"(p.35). Há um desconhecimento central que
Duras não abre mão de manter vivo.
Anne apenas circunda um desejo que não compreende. Sua abordagem
é oblíqua, está siderada por algo que escapa tanto a ela quanto ao leitor.
Já não é a mesma mãe alheia e envergonhada que se justificava à Sra. Gi-

160
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

raud no dia anterior. Aliás, Anne não tem nenhuma explicação para seus
gestos: não sabe porque mente, porque bebe tanto, porque está desse
jeito, não sabe qual desejo habitou aquela parceria amorosa e culminou
naquele crime. Apenas obedece a uma desconhecida injunção: "Não
poderia deixar de vir aqui hoje, entende?"(p.41), "teria sido impossível
não voltar"(p.47). A cada vez acompanhada da bebida que lubrifica esse
circuito que vaga em torno de uma cena inacabada: "o vinho escorre
em sua boca plena de um nome que ela não pronuncia"(p.149).
Pouco a pouco uma dinâmica se consolida entre ambos: é preciso que
o parceiro fale, que sustente uma fala sobre o evento ocorrido, que pro-
longue esse estado de desconhecimento e de procura desnorteada. A
curiosidade é cada vez mais siderante: "Como soube a esse ponto o que
desejava dele?"(p.59). A cada vez, Anne se relança em uma nova busca,
um novo rodeio, mais longo, com mais espera, com maior suspensão.
Quer saber melhor sobre as origens: "Eu gostaria que você me contasse,
do início, como eles começaram a se falar"(p.61). "Não sei nada que você
não saiba"(p.65), sustenta Chauvin, antes de produzir suas fabulações.
Os homens entram e saem do café, o sol se aproxima e se afasta, as noites
caem a cada vez, o filho brinca ao redor do local, a dona do estabeleci-
mento ora circula por entre as mesas, ora se ocupa de seu tricô com
lã vermelha, enquanto Anne e Chauvin permanecem nesse lugar, um
fora-do-tempo que sabe de sua brevidade, siderados por alguma coisa
que não se deixa elucidar, sustentados pelo vinho, pela espera, por essa
outra fome.
Entre os seios nus de Anne, sob o vestido, há uma flor de magnólia. No
entanto, trata-se de uma flor grande demais, costurada alto demais, pre-
gada com descuido, com pétalas ainda rígidas. O erótico escorre nessa
ausência, nesse aparente descuido que incrementa as páginas da história.
O rodeio precisa se repetir: "Eu agora queria que você me contasse como
foi que eles chegaram a nem mesmo se falar"(p.77), e Chauvin, mais uma
vez responde: "Eu não sei nada"(p. 77), talvez tenha sido assim... tecendo
a delicada mortalha que vela a cena faltante. Os personagens sabem que
aquele encontro logo acabará.

161
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

O tempo está se esvaindo, os personagens acusam algo que se escorre, se


esvai, cientes de um movimento que não serão capazes de deter. "Temos
muito pouco tempo à nossa frente, continue"(p.121), tempo esse que
não chegará ao seu termo, que não poderá suturar a ausência que os en-
gaja. Os personagens trocam palavras das quais o leitor está excluído, é
preciso consentir nessa condução durassiana. A ambiguidade não se ex-
tingue: é preciso continuar... não é possível continuar, fale mais... eu sei
muito pouca coisa, não temos tempo... você está cada dia mais atrasada.
O fim da história se aproxima, a rotina da cidade se restabelece rapida-
mente, as fundições seguirão zunindo, a areia e o carvão continuarão
a ser descarregados no porto, como de costume: "Eu não poderia acre-
ditar que isso acontecesse tão depressa"(p.157). Até o último capítulo,
Anne se pergunta pelo desejo e a entrega dos amantes envolvidos na
cena inicial. À frase "eu gostaria de entender por que"(p.163), Chauvin
conclui zelando pela erótica durassiana: "Não vale a pena tentar enten-
der. Não se pode entender a esse ponto. (...) Existem coisas, como esta,
que é melhor deixar de lado"(p.163).
Do fracasso, das considerações finais
A assunção do fracasso, que marca a escrita desse livro, é também a
apropriação de um estilo, esse direito de dizer singular, conforme ela
disse em 1993:

E mesmo isso que Lacan disse, eu nunca entendi direito. Eu estava es-
tupefata com Lacan. E essa frase dele: "Ela não deve saber que escreve
isso que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria a catástrofe", se
tornou para mim, essa frase, um tipo de identidade e princípio de um
"direito de dizer"totalmente ignorado das mulheres. (DURAS, 1993,
p.20)

Em Moderato Cantabile, Anne Desbaresdes se depara com o impossí-


vel do amor em um encontro desencontrado. Se nos livros de Duras,
até então, tínhamos frases afiadas, diálogos intermináveis, para dizer o
impossível do amor, dessa vez nem o diálogo é possível. É mesmo im-
possível saber do amor do homem que matou a mulher no bar. É um

162
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

acontecimento que contamina de desejo a vida maternalmente enclau-


surada da protagonista.
O ambiente em que se passa o encontro dela com o homem no bar é
hostil e indiferenciado: na hora exata todos os funcionários da usina
entram e saem aos montes, como uma onda barulhenta, há o som dos
guindastes, as sirenes, a praia toda por atravessar, o excesso de vinho, a
velocidade com que se bebe, essa sede, esse calor. Nada disso é apetitoso.
A montagem do desejo é cercada de resíduos que fazem brilhar a dama
da magnólia, a mulher elegante do dono da usina, cuja posição inacessí-
vel cai e revela o inacessível do encontro amoroso, do sentido mesmo da
vida e da morte, o fracasso que captura, o impossível de caber na língua,
mas que insiste copo após copo a tapar o impossível, livro após livro.
Retomemos as considerações de Barthes (1973/1996) sobre o texto de
gozo: aquele que atormenta, esburaca o sentido habitual das palavras,
das coisas, da vida. Mas a destruição não é sem certa montagem: há o
encanto, o prazer, a expectativa pelo dizer que unifica e pacifica. Duras
é hábil em oferecer algumas imagens convidativas para daí entremeá-las
aos pontos de silêncio e enigma.
Moderato Cantabile: por mais evidente que seja, na primeira cena do
livro, o filho é incapaz de dizer o que isso significa. O riso da mãe, que
sabe desse desencontro entre as palavras e o que elas significam. Mode-
rado e cantado é o ritmo desse livro. Logo depois, o encontro captura
Anne Desbaresdes em um enigma que funde o amor e a morte e ela
passa a buscar o que isso poderia significar, afastando-se da posição de
quem ri do desencontro.
Querer saber do impossível, esse direito de dizer, essa força da literatura:
fazer o real caber na língua. Moderato Cantabile é repleto de elementos
que apontam para um mais-além das cenas propostas, ao mesmo tempo
em que elas são permeadas por um "ainda não". Essa é a montagem eró-
tica que se inaugura nesse momento da obra de Duras: uma insistência
criadora na linguagem indissociável do reconhecimento da destruição
de onde ela provém.

163
Beatriz Chnaiderman & Laerte de Paula

Uma erótica familiar e árida, barulhenta e elegante. A mulher capturada


na imagem da mãe e o fracasso lamacento dessa imagem: adúltera, ainda
assim seria um charme, nem isso. Nada. Todos os olhos se abrem para
o desejo da mulher ébria. O álcool. Talvez com o vinho, o real possa
assentar-se no exagero dos gestos e do rubor, mas ainda assim, é sempre
a longa praia na volta, a criança que a chama, a noite. A miséria tingida
de encanto, de riqueza, beleza, uma valsinha ao piano, um gordo salmão,
a prataria. Já não é a miséria da Indochina, apresentada em Le Barrage
contre le Pacifique (1950), nem a miséria do casamento e do adultério de
Les petits chevaux de Tarquinia (1953), mas é, ainda assim, miserável a
condição de Anne Desbaresdes, a condição mesma da escrita.

Referências

(Optamos por incluir a data da publicação da obra original antece-


dendo a data da publicação da edição consultada para este trabalho.)

ANDRE, Serge. Flac (novela): Seguida de La escritura comienza donde


el psicoanálisis termina. Ciudad de Mexico: Siglo XXI Editores, 2000.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva,
1973/2006.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Ed. Autêntica,
1957/2013.
CARSON, Anne. Eros: el dulce-amargo. Buenos Aires: Fiordo Edito-
rial, 1986/2013.
DELLA TORRE, Leopoldina. La passion suspendue. Paris: Éditions
du Seuil, 2013.
DIDIER-WEILL, Alain. Nota azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Ja-
neiro: Contracapa, 2014.
DURAS, Marguerite. Moderato Cantabile. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1958/1985.

164
Moderato Cantabile e o erotismo do fracasso

DURAS, Marguerite. Écrire. Paris: Gallimard, 1993.


FREUD, Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. Rio de Janeiro:
Imago, 1915/2004.
FREUD, Sigmund. Au-delà du principe de plaisir. Paris: Petit Bibliotè-
que Payot, 1920/1981.
GAUTHIER, Xavière. Boas falas. Rio de Janeiro: Record, 1974.
LACAN, Jacques. Seminaire 7: L’éthique. Staferla, 1959-1960.
LACAN, Jacques. Séminaire 23: Le Sinthome. Staferla, 1975-1976.

165
c i n e m a — m a r guerite
d u r a s e o e s p e ctador
e m a n c i p ado
l arissa pi nto de melo

H
á a l g o sobre a escritora, cineasta e dramaturga fran-
cesa Marguerite Duras; que é um dos fatores cruciais para co-
meçarmos aqui a investigação da sua obra cinematográfica, bem como
para entender a potência política que habita seu cinema: ela nasceu na
cidade de Saigon, atual Cidade de Ho Chi Minh, no Vietnã. Em uma
colônia francesa, foi criada como tal, apesar de sua família ter sofrido
preconceitos severos dos demais franceses, por sua condição financeira
frágil e também por serem vistos junto aos nativos, em especial Duras,
que na adolescência envolveu-se com um jovem anamita, o qual no livro
"Cadernos da Guerra e outros textos"138 ela chama pelo nome de "Léo",
um nativo que gozava de uma situação econômica privilegiada, vestia-se
como cidadão europeu e frequentemente visitava Paris. No livro é in-
teressante como Duras narra não só sua relação de alteridade com Léo,
como também como seus olhos captam o tratamento que os nativos
sofriam na colônia francesa onde vivia:

138
Livro composto de quatro cadernos escritos por Duras, sendo o primeiro o "Ca-
derno rosa marmorizado", onde os relatos da adolescência vivida na Indochina se-
riam a inspiração para o então livro famoso da escritora: "O Amante"(1984).

166
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado

Só eram admitidos no colégio de Saigon os anamitas filhos de cida-


dãos franceses. Por outro lado, o porte de trajes europeus era de rigor
absoluto. Em 1931, quando deixei definitivamente a Indochina, algu-
mas moças anamitas frequentavam o liceu. Eram obrigadas a se disfar-
çar de europeias e, em geral, isso lhes caía muito mal e fazia-as sofrer.

[...] Por que essas medidas cuja imbecilidade é imperdoável? Penso


que medidas semelhantes, que podem parecer insignificantes à pri-
meira vista, não estão longe de serem criminosas. (DURAS, 2009. p-
72)

Sua infância e adolescência precárias, constantemente assistindo sua


mãe viúva em uma batalha diária para manter seus três filhos, bem como
a eterna tentativa desta mesma mãe de manter uma "imagem"diante dos
colonos franceses, certamente contribuíram para uma futura compre-
ensão madura de Duras no que se refere às questões da alteridade e
exploração no campo político. Parte desta trajetória que envolve essa
fase de sua vida e principalmente mais tarde as vivências da guerra - a
artista fez parte inclusive da Resistência Francesa na 2º Guerra Mundial-
nos apontam diretamente para os temas mais fortes de seu trabalho, seja
escrito ou cinematográfico: a perda, a dor e, principalmente, a destrui-
ção.
Quando a cineasta comentava sobre seu cinema, ela pontuava estar
em uma relação constante de "morte"com este cinema, justamente
por ter estado durante muito tempo insatisfeita com o cinema que
era feito naquela época e certamente com o predomínio de uma única
linguagem, uma única forma de se "fazer cinema". A ideia de destrui-
ção em sua obra, evidente em alguns de seus filmes como "Destruir
ela disse"de 1969, envolve-se muito com a atmosfera que alastrou-se
durante a guerra e no pós-guerra, no trabalho também de outros ar-
tistas. Essa necessidade depois do "fim do mundo"de destruição, para
que o novo pudesse, enfim, surgir.

No entanto, a ideia de "destruição"talvez possa ser melhor interpretada


por outro ponto de vista filosófico, o conceito trabalhado pelo filósofo
franco-magrebino Jacques Derrida, que ele chamou "Desconstrução".
Tal conceito culmina na tentativa de uma revisão de pensamentos se-
dimentados historicamente, seguindo uma ideia de fragmentação das

167
Larissa Pinto de Melo

partes, até uma reconstrução desses mesmos fragmentos, cujo fator de


destaque é na verdade, a imprevisibilidade. Em sua tentativa de "assas-
sinar as imagens", Duras inaugura uma possibilidade interessante de
um anti cinema, onde ela, com seu apreço fiel à escrita, faz nascer um
movimento dentro de seu cinema, que aqui podemos chamar a "prima-
zia da palavra"diante da imagem. O ponto que conecta os dois repousa
justamente em uma ideia de Desconstrução, que não necessariamente
trabalhe a partir de ruínas e da destruição plena, e sim de uma "remon-
tagem"no caso de Derrida de conceitos históricos, e no caso de Duras,
das imagens e de seus significados reconduzidos através da palavra.
Em contos como "O Homem Atlântico"é possível perceber o jogo da
escritora em relação a estas palavras "que filmam", estas palavras que são
também imagem:
Você não olhará para a câmera, salvo quando lhe for exigido.
Você esquecerá.
Você esquecerá.
Que é você, você esquecerá.
[...]
Você esquecerá também que é a câmera.
[...]
Você me pergunta: Olhar o quê?
Digo, bem, digo o mar, sim, essa palavra, diante de você,essas paredes
diante do mar,esses desaparecimentos sucessivos, esse cão, esse litoral,
esse pássaro no vento atlântico. (DURAS,1980. p-35-36)

Ao nos debruçarmos na filmografia de Duras, nos deparamos com exem-


plos como o curta-metragem "Les mains négatives"(As mãos negativas)
de 1979, onde pode-se ouvir a voz de uma mulher que conta uma his-
tória sobre impressões das mãos de um homem nas paredes de uma ca-
verna, um homem aparentemente solitário. Contudo, as imagens que
nos aparecem são, na verdade, filmagens das ruas de Paris, em algo que se
assemelha com um alvorecer em uma cidade vazia, com quase nenhuma
figura humana nas ruas. Existe uma expectativa que é quebrada, uma

168
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado

semiótica da imagem que é completamente interrompida. O que é dito,


não se vê na tela, o que se vê, não é dito139 . Essa desconexão entre imagem
e palavra nos cria uma terceira dimensão, algo que podemos chamar de
"Terceiro Sentido"140 , termo cunhado por Roland Barthes, filósofo fran-
cês, para denominar o sentido obtuso da imagem. Um conteúdo que
não pode ser explicado ou demonstrado verbalmente e que, no entanto,
sobrepõe-se com tamanha força que ultrapassa os primeiros sentidos
informativos do filme.
Ainda que sua defesa pela palavra dentro do cinema seja incondicional,
a cineasta também teve experiências com filmes quase desprovidos de
fala, sendo estes "Nathalie Granger"de 1972 e "A Mulher do Ganges"de
1973. A letargia presente nos corpos de seus personagens, e também em
seus modos únicos de narrar, nos confirmam o manifesto de Duras pelo
direito de desconstruir o que é o movimento, assim como a rapidez que
tanto engolia filmes contemporâneos a ela, os quais assistimos também
nos dias de hoje. Segundo ela mesma menciona "eu quero retomar o ci-
nema a partir do zero, numa gramática muito primitiva...Muito simples,
quase primária: não se mover, começar de novo"(Duras 1977a: 94). Re-
tomamos aqui mais uma vez o princípio de destruição, ou desconstrução,
que nos interessa politicamente pela possibilidade de ser analisado por
exemplo ao lado do conceito de "novo início"da filósofa política alemã
Hannah Arendt, que também pôde viver e refletir sobre a 2º Guerra
Mundial. Após a queda dos governos totalitários e diante da aura niilista
que acompanhava o mundo inteiro no pós-guerra, para onde iremos?
Talvez o mais importante seja: como chegaremos lá?

139
Acerca ainda da desconexão entre imagem e som em seus filmes, deve-se acrescentar
que sua linha experimental era intensa ao passo que Duras algumas vezes reutilizou
filmagens de alguns de seus filmes, para criar novos filmes, com roteiros novos e
portanto também incluindo novas gravações de voz.
140
O "terceiro sentido"assemelha-se conceitualmente com o termo punctum traba-
lhado na sua obra "A Câmara Clara"(1980), que ele descreve como aquilo que
ao acaso, nos punge, que seria como uma flecha ou picada intensa, inescapável, é
completamente subjetivo, sendo diferente de pessoa para pessoa, o punctum é jus-
tamente o motivo pelo qual uma imagem nos "fere".

169
Larissa Pinto de Melo

A inércia e até mesmo um certo "cansaço"do corpo e da voz, que encon-


tramos na filmografia de Duras, na verdade não está a nos passar uma
mensagem de passividade, mas parece estar mais intimamente ligada
com a emancipação deste espectador. Ao se deparar com o fenômeno
do estranhamento deste filme que apresenta-se como algo incômodo,
se sentirá expulso da sua condição de espectador passivo, trazendo as-
sim alguma possibilidade diante da sua dificuldade de leitura daquela
história que ali se mostra, para que finalmente se torne ativo.
Marguerite Duras certamente teve fortes influências do movimento
Nouvelle Vague141 dentro do Cinema, que se alastrou como uma onda
também por outros países, direcionado a uma crítica dura aos filmes
hollywoodianos que mantinham uma linguagem de roteiro voltada
para a "Jornada do Herói"clássica. Estes filmes mantinham-se em um
constante exercício de manutenção de certos valores e costumes do en-
tão considerado "cidadão americano", ainda que também houvesse al-
gumas representações de personagens "rebeldes". Em suma, os roteiros
eram imersos em uma espécie de "rebeldia sem causa"que raramente
apontava para uma verdadeira crítica ao pensamento condensado vi-
gente na época.
A cineasta ia contra a maré do espectador que encontra-se desapossado
de si, e contra essa ideia construída e mantida ao longo da história, de
que ser espectador é esperar, estar em pleno conforto. Em "Les mains
négatives"(As mãos negativas) a voz ao fundo do filme conversa com o
espectador em um momento, ou quase isso: "Você que tem um nome,
uma identidade, eu te amo."A revolução imagética que parte de uma
lentidão poética em Duras nos diz claramente, "Olhar não é ver.", como

141
A Nouvelle Vague foi um movimento cinematográfico francês criado em suma por
críticos de cinema da revista "Cahiers du Cinema", inspirado também em correntes
filosóficas de sua época, como o existencialismo por exemplo. A Nouvelle Vague
não apenas voltava-se para uma ruptura com o roteiro tradicional da época, como
também inovou tecnicamente, utilizando-se técnicas como o "Jump Cut"e câmera
na mão. A descontinuidade do tempo e personagens "anti-heróicos"eram destaque
no movimento. Seus principais nomes foram Agnès Varda, Alain Resnais, Godard
e Truffaut.

170
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado

também encontramos no livro "O Espectador Emancipado"de Jacques


Rancière:

Primeiramente, olhar é o contrário de conhecer. O espectador


mantém-se diante de uma aparência ignorando o processo de produ-
ção dessa aparência ou a realidade por ela encoberta. Em segundo lu-
gar, é o contrário de agir. O espectador fica imóvel em seu lugar pas-
sivo. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade
de conhecer e do poder de agir. (RANCIÈRE, 2017. p-08)

O mundo ao redor é construído, condensado, catalogado por imagens,


e quem somos nós diante delas? Pouco compreendemos sobre seu cará-
ter operativo e sistêmico e portanto somos levados diariamente a uma
conservação de sensação de impotência sobre elas. Ao passo que, contra-
ditoriamente, em tempos atuais, esteja tão fácil e até mesmo compulsó-
ria a possibilidade de tomada de posição e também de produção destas
imagens desenfreadamente. Esta facilidade está, através dos celulares,
literalmente em nossas mãos.
Quando Hannah Arendt se debruça acerca do político, também fala de
uma problemática que se insere justamente na "inércia"da massa, onde
a população de determinado país parece não se comprometer com o
destino político pois acreditam não participarem dele. O que fica invisí-
vel é precisamente outro fato que podemos também retirar inspiração
na obra do filósofo holandês Baruch Spinoza: aqueles que não fazem
parte das causas diretas das coisas, consequentemente são causa parcial
destas mesmas mudanças. Não há "fora", uma vez que todos obrigatoria-
mente vivemos de acordo com a teia política que envolve uma sociedade.
Ainda que, fora de equilíbrio, o predomínio do poder seja excludente
da maioria. Nos parece que, assim como Hannah Arendt, o cinema de
Duras nos imprime a necessidade da Ação, o que conceitualmente não é
tão fácil de ser apreendido, uma vez que primeiramente o espaço para tal
não é público como realmente deveria, muito menos assume a respon-
sabilidade para com o plural. E segue-se uma pergunta que levantamos
neste texto: como exatamente criamos este caminho até este espaço?

171
Larissa Pinto de Melo

Primeiro, é preciso surgir o que vamos chamar compreensão, termo tra-


balhado por Arendt, que vai além da mera ordem de significado do
"compreender". Trata-se de uma segunda e portanto mais profunda ma-
neira de acessar os eventos contemporâneos que nos atravessam, pois, de
imediato, nossa primeira reação ao fenômeno está voltada, segundo ela,
a uma primeira compreensão, o que fatalmente nos leva a gerar uma re-
flexão baseada nas mesmas ferramentas que temos usado até então. Aca-
bamos utilizando, assim, mais uma vez os mesmos nomes para explicar
os fenômenos que consideramos "parecidos"com outros que podemos
vivenciar ao longo da história. Depois de uma verdadeira compreensão,
que vai além das primeiras camadas de respostas, podemos então chegar
ao segundo passo, que é certamente encontrar nossas próprias ferramen-
tas para ajustar este nosso caminho do "compreender". O importante
aqui é voltar-se para as minúcias, estas minúcias que fazem parte da
história de um país em particular, bem como da história das imagens
deste mesmo país, de seu povo, deste cinema. O agir que tanto Hannah
Arendt aponta, como Duras de certa forma também, é este elemento
que inicia algo novo, com seus próprios recursos. Por isso também ve-
mos toda a poética de Duras como algo extremamente pessoal, com
parcelas grandes de sua vida e história, a dor vista nos escritos e também
na tela, que é ao mesmo tempo íntima e faz com que nos identifique-
mos, Duras torna essa dor que parece privada, solitária, em uma dor
que pode ser compartilhada, e portanto também pública, parte de um
espaço democrático que faz parte da arte e também do cinema.
O cinema hollywoodiano que causou certo desgosto em Duras, nos ci-
neastas da Nouvelle Vague, bem como nos cineastas do Cinema Novo142

142
O Cinema Novo foi um movimento cinematográfico, intelectual e poético, que ti-
nha como escopo o "fazer cinema"genuinamente brasileiro, voltar-se também a cul-
turas que eram engolidas e negligenciadas, como a cultura nordestina, mostrando
assim também a realidade intensa de desigualdade no país. Ganhando dimensão
internacional, os filmes do Cinema Novo foram exibidos em vários festivais pelo
mundo. Concomitante ao movimento Nouvelle Vague, o Cinema Novo na ver-
dade trazia o diferencial de ser mais ativamente político do que o movimento fran-
cês.

172
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado

aqui no Brasil, despertou uma revolta contra a perpetuação do espec-


tador que sofre da impossibilidade de uma consciência decisória, este
espectador passivo.
O que torna este texto não apenas uma conversa sobre a obra cinemato-
gráfica da cineasta, mas também faz um convite para o filosofar, quando
a pauta torna-se: se você, espectador/espectadora ou cidadão/cidadã não
consegue cultivar decisões, se não sabe, ou não foi estimulado a decidir,
quem você se torna?
A automatização que Hannah Arendt traz em sua crítica ao totalita-
rismo, ao comportamento do indivíduo pavloviano 143 pode e deve ser
pensada também no campo das imagens. Estamos em um contínuo
consumo destas mesmas imagens, que repetem-se, da linguagem "crista-
lizada"de um mesmo cinema, que nos ensinam uma única maneira de
nos relacionarmos com a vida, com o amor, com a memória, e também
com a dor. Torna-se também mais real a possibilidade de cultivarmos
sem nem perceber, um olhar cansado diante desta automatização das
imagens, e fatalmente um olhar também cansado diante da vida.
Por isso, retomando os apontamentos relativos ao espectador que
depara-se com um filme de Duras ou qualquer outro que lhe pareça
estranho, dificultoso de manter ali o olhar, o interesse, questionamos:
talvez não esteja esse espectador, perdendo aos poucos,sem saber, o inte-
resse e a insistência diante de sua própria vida? Hannah Arendt nos traz
com a Filosofia Antiga um conceito que pode nos servir nesta provoca-
ção, a ideia de "Espanto"que os antigos dizem ser condição necessária
do filosofar e de seu nascimento. Tratando-se do Cinema e da escrita de
Duras, que trazem consigo tanto a palavra, como um silêncio oportuno,
este "Espanto"da Filosofia também estimula um silêncio, pois o ato de
filosofar exige algo como uma suspensão da linguagem.
No trabalho de Marguerite Duras, também é possível fazer uma investi-
gação no que refere-se ao ato de sofrer e principalmente à importância

143
Ivan Petrovich Pavlov foi um fisiologista responsável pela pesquisa acerca do con-
dicionamento clássico. Sua pesquisa foi inspiração essencial no campo de estudos
do behaviorismo.

173
Larissa Pinto de Melo

da memória deste sofrimento. Podemos traçar uma comparação muito


oportuna e fenomenológica144 a partir desta perspectiva: se na filoso-
fia de Arendt; os sofrimentos devem ser visualizados de forma "mun-
dana"e estão diretamente ligados à maneira pela qual compreendemos
o mundo, estes mesmos sofrimentos são nossos, mas não "nascem"de
nós, eles são dados na verdade, pelo mundo, através da historicidade145
dele. Do ponto de vista da própria Duras, ela fala sobre uma escrita
que vem da exterioridade, deste "fora"e não de dentro, e complementa
mencionando que é preciso deixar esta mesma escrita em um estado de
"aparição". Isso muito tem a ver com sua provável inspiração no movi-
mento da Filosofia fenomenológica francesa da sua época, que consistia
justamente na defesa de uma investigação intelectual voltada para a exte-
rioridade deste mundo, com cuidado imenso acerca das interpretações
extremamente subjetivistas - ainda que Duras, nos pareça sempre tão
íntima dentro de sua poética - pois as mesmas podem desenhar um
mundo completamente irreal e também excludente. Arendt defende ao
longo de sua obra essa responsabilidade com os fenômenos "nus", com
a vida assim também nua, sem as maquiagens criadas por suposições
que podem não estar exatamente de acordo com a realidade material.
Essa escrita, essa inspiração que, para Duras, vem de fora, age em defesa
de abrirmos nossos olhos não apenas filosoficamente, mas também po-
eticamente para as belezas presentes nas coisas terrenas. Traz mais uma
vez essa abordagem ativa e necessariamente criativa diante da vida, para
inspirar o espectador seja ele artista ou não.
Outra análise interessante repousa na atmosfera de "ausência"do tempo
em seus filmes. Se continuássemos nossa análise pelo ponto de vista fe-
nomenológico, poderíamos ser contraditórios, pois essa corrente pauta-
144
A fenomenologia é uma corrente filosófica voltada para a análise e compreensão
dos fenômenos pelas "coisas mesmas"e foi defendida por filósofos como Edmund
Husserl, Edith Stein e Heidegger. Também inspirou filósofos e filósofas franceses
como Jean- Paul Sartre e Simone Beauvoir.
145
O termo "historicidade"neste caso serve como apropriação do mesmo conceito de-
senvolvido por Heidegger no livro "Ser e Tempo"de 1927, que pode ser entendido
como uma elaboração mais material da temporalidade.

174
Cinema: Marguerite Duras e o Espectador Emancipado

se principalmente no princípio da temporalidade humana, que envolve-


nos a ponto de não podermos "escapar"dela facilmente. O escopo que
seguimos aqui , não poderia de forma alguma tentar catalogar definiti-
vamente a obra da cineasta, ademais por ser uma impossibilidade, como
acontece não só em relação a sua obra, mas também com outros artis-
tas que são estimulados pelo fio etéreo do "desvio", por uma espécie de
curva, ou até mesmo, em apropriação declarada a Jacques Derrida, pela
defesa de um quase-conceito , que imageticamente podemos visualizar
como um círculo aberto, que não se fecha.
Os aspectos fenomenológicos que nos fazem prestar atenção à impor-
tância imponderável do tempo dentro da forma como construímos
nosso mundo, comportamento e até mesmo pensamento, deixa claro
que na verdade faz todo o sentido que o espectador ou espectadora que
se depare com um filme de Duras sinta-se, de início, inquieto ou inqui-
eta, perguntando-se onde se encontra o tempo que tanto nos é caro
e elementar. A confusão gerada é íntima da essência de tudo aquilo
que envolve o poético: a sensação de pés fora do chão, cabeça fora de
ordem e corpo sem lugar. A potência política de seu cinema encontra-
se justamente na oportunidade da transformação: apaixonar-se, ficar
intensamente triste, espantar-se, ou até mesmo ter a sensação de desa-
grado, de impaciência. O que de fato é difícil é não sentir absolutamente
nada diante do cinema durassiano: o espectador será de alguma maneira
atingido.

Referências

ARENDT, Hannah. A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume-


Dumará, 2018.
AYER, Maurício. Marguerite Duras: O Cinema como ato político. In:
AYER, Maurício e KUNTZ Cristina Vianna. Olhares sobre Marguerite
Duras. São Paulo, 2014. p- 07 - 08.

175
Larissa Pinto de Melo

ACIOLI, Roberto. O Silêncio de Marguerite Duras. Site


"Cinema Europeu". 18 de Outubro de 2015. Disponível em:
https://cinemaeuropeu.blogspot.com/2015/10/o-silencio-de-
marguerite-duras.html[https://cinemaeuropeu.blogspot.com/2015/10/o-
silencio-de-marguerite-duras.html]{.underline} Acesso em: Agosto de
2019.
RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo. Editora
WMF, Martins Fontes, 2017.
DURAS, Marguerite. Cadernos da Guerra e outros textos. São Paulo.
Estação Liberdade, 2009.
DURAS, Marguerite. O Homem Sentado no Corredor/ O Homem
Atlântico. Rio de Janeiro, Petrópolis. 1980.
DURAS, Marguerite. Les Lieux de Marguerite Duras. Paris, Les Éditi-
ons de Minuit, 1977.

176
n a l e t r a , a â n cora: uma
l e i t u r a d e a dor de
m a r g u e r i t e duras
tatiane frança

É impossível falar de Hiroshima. Tudo o que podemos fazer


é falar da impossibilidade de falar de Hiroshima.
Marguerite Duras

Ruínas agora são os nossos jardins.


Anna Tsing

"C
o m o pude escrever isto, que ainda não sei nomear e
que me assombra quando releio?"(DURAS, 1986:8). Essa frase
está presente na página que prefacia o primeiro dos cinco cadernos
de Duras publicados em 85. O conjunto desses textos se chamaria
"A guerra", mas Duras modificou e deu a ele o mesmo título do pri-
meiro dos cadernos, o qual lerei aqui: "A Dor". O título condensa esse
"isto"não nomeável, assombroso, cujo horror será testemunhado por
uma letra, "extraordinariamente regular e calma", que abarca em seu
caráter aparentemente metódico uma "desordem fenomenal do pensa-
mento e do sentimento."(DURAS, 1986:8).

177
Tatiane França

A guerra atravessa a vida e a obra de Marguerite Duras com grande in-


tensidade e é para a autora de O amante "antes o nome de um estado
que de uma época, mais uma experiência de vida do que um conjunto
de eventos históricos", como elabora Sophie Bogaert.146 A dor é uma
dessas experiências, centrada numa espera agonizante e em uma sus-
pensão insuportável. Sem saber se seu marido, Robert Antelme, preso e
deportado pelos alemães no fim da Segunda Guerra, está vivo ou morto,
Marguerite escreve um diário onde testemunha a solidão, o medo e a
barbárie trazidas pela guerra, concebendo uma obra que costura o relato
subjetivo e individual na defesa da memória e da resistência coletivas.
A dor é escrito em um movimento duplo entre o individual e o coletivo,
entre quem testemunha e quem escreve, entre a vontade de vida e a som-
bra de morte. Duras cria o encontro entre esses pontos e funda com sua
escrita uma possibilidade de fazer face ao impensável, ao indizível, e o
faz justamente pensando e dizendo nas letras, ensaiando um sobreviver
atravessado pela escrita, dependente dela. É assim que projeta um grito
surdo, que rasga a aparente calmaria da letra, e faz da página sua barra-
gem contra o avanço da barbárie, deixando ecoar pelos anos a vir esse
rugido contra o esquecimento e pela memória daqueles que sofreram.
O presente texto será desenvolvido em duas breves reflexões, que se en-
trelaçam: em um primeiro momento, o foco será a relação entre os cor-
pos de Marguerite e Robert L. -- nome que ela dá a seu marido nos
cadernos. Ou será ainda, mais precisamente, sobre a impossibilidade do
corpo de quem escreve se sustentar sozinho, amalgamando-se assim à
imagem projetada do corpo possivelmente morto de Robert Antelme,
junto a milhares de outros, no fundo das valas da guerra.
Seguindo por esse caminho, procuro pensar em um segundo momento
como esse drama da espera por Robert L., e o horror doloroso que vem
com ela, costuram-se a um tecido maior: ao tecido das histórias de ou-
tros e outras que também dolorosamente esperaram, que sobreviveram,

146
Em Cahiers de la guerre, 2006: "plutôt le nom d’un état que d’une époque, d’une
expérience de vie que d’un ensemble d’événements historiques"

178
Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras

e ainda àqueles e àquelas cujas histórias não puderam alcançar a luz do


dia, cujas palavras não puderam ser ouvidas.
Na vala escura
"A pulsação nas têmporas persiste. Esse latejar nas têmporas tem que
parar. Sua morte está em mim."147

Não se escreve sem a força do corpo, disse Marguerite em seu Écrire. Na


escrita de A dor, lemos um corpo que ensaia sua força enquanto lateja,
em suspensão de sua forma, sem conseguir achar seus contornos ou se
apoiar nas próprias bases. Esse corpo está colado a um outro, distante
em matéria mas presentificado pela memória e pela imaginação. Está
incorporado como que em simbiose ao de Robert Antelme, beirando
o que Kristeva chamou de "os limites perigosos em que desmorona a
identidade do sentido, da pessoa e da Vida."(KRISTEVA, 1987:206).
Na espera interminável, Marguerite habita um ponto sem luz vertigi-
noso, encerrado em si mesmo, presa em um ciclo que vai da certeza
da morte do marido à esperança de seu retorno. Em sua escrita, Ro-
sana Kohl-Bines aponta que a forma da narrativa é "minada uma e ou-
tra vez para abrir zonas de comunicação com o marido que imagina
morto."(KOHL BINES, 2015). Seu corpo responde a essas zonas de co-
municação de formas distintas, como nas passagens a seguir:
Não saio do lugar. É preciso não fazer muitos movimentos, não des-
perdiçar energia, guardar todas as forças para o suplício. (DURAS,
1986:10)

Morreu há três semanas. Foi isso, foi isso que aconteceu. Tenho essa
certeza. Ando mais depressa. (DURAS, 1986:12)

Com a primeira passagem, percebe-se que há uma necessidade de va-


zio. De anular o movimento, de interromper o curso do corpo, da vida.
Uma necessidade de suspensão dentro daquilo que já está em suspenso:
a espera, a ausência -- de corpo, de calor, de resposta. É preciso abrir
espaço para a dor, avassaladora, mas é imperativo se manter imóvel para
147
La Douleur, 1985.

179
Tatiane França

retê-la ali, para capturá-la. Assim, na tentativa de suspender o tempo,


se constrói um efêmero paradoxo: a dor, em seu momentâneo infinito,
toma o vazio e impede que ele seja ocupado pela morte. No instante
imóvel, o suplício da espera surrupia o lugar da morte.
A segunda passagem mostra como costuma vir de um só golpe essa cer-
teza: Robert está morto. A pergunta que sustenta a espera é respondida,
e essa resposta afoga o possível, impede a respiração. O corpo imóvel se
torna agitado, descontrolado, quase com ânsia de sair de si. Se Margue-
rite espelha o corpo de Robert ao longo de suas anotações, imaginando
sua morte na vala escura ao seu lado, nos momentos em que adquire
a certeza de que está morto, seu corpo perde sua referência. Não tem
mais o que espelhar, encontrando-se perante um novo tipo de vazio.
Não o do suplício, o do espaço da dor, mas um vazio onde nada cabe e
nada se vê. Por isso ela anda mais depressa, corre pelas ruas da cidade e
toma caminhos inesperados. Porque o corpo perde sua imagem, e tenta,
com seus movimentos desenfreados, exilar-se de si e busca, em espas-
mos e chacoalhadas, reencontrá-la, efetuando, como disse Bines, "um
despovoamento em direção ao fora de si". (KOHL BINES, 2015)
As imagens desenfreadas de Robert morto possuem alguns desdobra-
mentos. Leio agora outra citação: "Ao longo de todas as estradas da
Alemanha outros corpos estão estendidos em posição igual à dele. [...]
Ele que está ao mesmo tempo contido nos milhares de outros e des-
tacado dos milhares de outros apenas para mim, totalmente separado,
só."(DURAS,1986:13). Robert é aquele cujo corpo é o mesmo de Mar-
guerite, cuja vida se respira na dela e cuja existência ela mantém na pá-
gina, em um alternante jogo de vida e morte, de presença e ausência.
Porém, e mais ainda, Robert é aquele que encarna o crime contra a hu-
manidade, estando no eixo representativo do entrelace da tragédia indi-
vidual com a tragédia coletiva. Ele é um corpo entre milhares e também
o corpo entre milhares.
Outra citação: "Ele morreu há quinze dias. Há quinze noites, quinze
dias, desprotegido numa vala. A sola dos pés ao ar livre. Sobre seu
corpo, o sol, a poeira dos exércitos vitoriosos."(DURAS, 1986:15). Ro-

180
Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras

bert, morto, sob a poeira dos vencedores. Nessa citação, a tradutora


incluiu o adjetivo "livre", que não está no original, o que faz a leitura
da passagem em português se tornar ainda mais sufocante, no contraste
que se cria entre o sintagma "ao ar livre"e os cadáveres empoeirados na
vala. A vitória marcha sobre aqueles que perdemos, sobre as esperas
intermináveis, sobre liberdades subtraídas, sobre Robert.
A morte do marido, representada muitas vezes no caderno enquanto
Marguerite esperava notícias, eterniza no texto um apelo a seu retorno,
mas também firma um compromisso com a memória: ainda que Robert
regresse, milhares de outros corpos permanecerão nas valas, sob a poeira
dos vencedores. Não há como verdadeiramente vencer essa guerra, pode-
se apenas estancá-la.
Hélène Cixous diz à Foucault em suas conversas que Duras escreve uma
literatura da perda. Em A dor, Robert Antelme retorna, um sobrevi-
vente do horror, e conta seu testemunho dos campos. Todavia, algo
não de todo apreensível foi perdido. Termina-se a espera, mas algo não
retorna, continua em suspensão, encapsulado na experiência interminá-
vel da guerra. Robert será sempre aquele que morreu na vala mil e uma
vezes na imaginação de Duras. Sua presença será marcada por Duras
por uma negativa e a totalidade da presença de Robert Antelme jamais
será recuperada. Como diz Duras ao final de seu livro, ele sempre será
aquele que não foi morto no campo de concentração.
Partilhar o crime: um compromisso com a memória
Parto, mais uma vez, de uma citação de *A dor: *
"Pertencemos a essa parte do mundo onde os cadáveres são amonto-
ados em um emaranhado de valas comuns. Isso está acontecendo na
Europa. Os judeus são queimados aqui, aos milhares. É aqui que cho-
ram por eles."(DURAS,1986:55).

Marguerite é parte integrante desse aqui onde se queimam judeus. Parte


da terra europeia, em que os antes conhecidos limites da barbárie hu-
mana foram pulverizados. Em seu artigo Escrever entre ruínas: Margue-
rite Duras e a dor da memória, Ana Paula Coutinho fala sobre "a im-
possibilidade de escrever literatura [...] como se não tivesse existido esse

181
Tatiane França

plano monstruoso de destruição maciça, obrigando a repensar, a par-


tir daí, todas as formas de representação do humano."(COUTINHO,
2015:124). Encaro que esse livro de Duras, em sua narrativa crua e do-
lorosa, ensaia formas de representar a vida sob o domínio da barbárie,
para não deixar calar a memória da dor, instaurando com seu relato um
tremor para fazer o horror reverberar a cada página virada.148
Em seu prefácio, Marguerite diz que não imagina poder ter escrito o
caderno esperando Robert. Essa aparente impossibilidade de escrever
enquanto espera faz pensar no que diz Seligmann-Silva sobre a necessi-
dade de um outro para narrar o testemunho, que tome a palavra quando
aquele que viveu não é capaz de contar. Isso demonstra também que
Marguerite teve na escrita um apoio, a emergência de uma sobrevida
que se desenvolveu para segurar o craquelamento psíquico daquele que
está prestes a sucumbir.
O testemunho dado por Duras nessas páginas se integra àquilo des-
crito por Agamben em O que resta de Auschwitz, sendo "uma potên-
cia que adquire realidade mediante uma impotência de dizer e uma
impossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidade
de falar"(AGAMBEN, 2008:147). Dessa forma, em um duplo movi-
mento, escrever é a âncora que permite manter-se vivo e também o barco
que permite transpor a morte, e atravessá-la sem perder-se dentro dela.
Como bem o diz Rosana Kohl-Bines, "ao fim e ao cabo, escrever é um
ato que anima e restabelece aquele que escreve."(KOHL BINES, 2015).
Duras complementa, ainda em seu prefácio, que sente vergonha da li-
teratura ao reler esse texto. A palavra "vergonha"destaca esse livro do
conjunto da sua obra, marcando uma distância entre as possíveis for-
mas de escrita do fazer literário. Kohl-Bines lê de forma interessante o
uso dessa palavra:

O que se antecipa no prefácio é antes uma constatação da necessidade


urgente de se reconfigurar o espaço literário num mundo esfacelado,

148
"Os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras o horror extremo con-
tinua a tremer"(ADORNO; HORKHEIMER, 1963, P. 68 Apud. SELIGMANN-
SILVA, 2016).

182
Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras

que não comporta mais o encadeamento plácido das palavras. Uma


literatura que siga incólume à destruição não merece ser praticada ou
lida, é o que parece dizer o sintagma. (KOHL BINES, 2015)

A literatura não pode seguir incólume à destruição. Isso se justifica


quando lemos a seguinte proposta de Duras: "A única resposta para esse
crime é transformá-lo num crime de todos. Partilhá-lo. Assim como a
ideia de igualdade, de fraternidade. Para suportá-lo, para tolerar a ideia,
partilhar o crime."(DURAS,1986:58). É necessário à literatura tomar a
parte que lhe cabe desse crime contra a humanidade, dessa aniquilação
barbárica. O compromisso dessa partilha é um compromisso com a me-
mória, contra o apagamento. Tomar a responsabilidade do crime para
jamais eximirmos a culpa que ele traz consigo, para que em cada um
de nós essa culpa resida, pungente, intranquila, fazendo-se incômoda e
não esquecível.
Em seu livro Essayer Voir, Didi-Huberman afirma que a arte e a poe-
sia se fazem necessárias para que se rasgue a bolha da barbárie, e mais,
cito suas palavras, "para nos lembrar que os lugares totalitários, tão efi-
cazes que sejam, jamais farão desaparecer completamente essa ’parcela
da humanidade’."(DIDI-HUBERMAN, 2014:10). Esse trabalho de dor
dos cadernos de Duras são afiados, perfurantes da bolha, mas sobretudo
resistentes. Resistem aos ataques da guerra carregando um relato que
pertence a todos, partilhando também o sofrimento e fazendo com que
ecoe, para que não se perca a memória da dor, daquilo que é essencial-
mente humano.
Em Paris já liberta, uma Duras que olha pela janela diz: "A cidade
iluminada perdeu todo o significado que não seja este: é signo de
morte, signo de amanhã sem eles."Diz ainda: "A paz já se faz notar.
Como se fosse uma noite profunda. É também o início do esqueci-
mento."(DURAS,1986:57). Essas duas passagens contrastam a presença
da luz e da noite numa combinação inusual: a luz da cidade é signo
de morte, de um amanhã que não nascerá, de um dia eterno que não
poderá ser superado ou vencido; a paz, por sua vez, é a noite, signo do
esquecimento, representante de uma escura neblina capaz de obstruir

183
Tatiane França

a claridade cegante emitida pelo massacre. A claridade da morte, crua e


impiedosa.
Duras, perante a dolorosa experiência da espera, do horror e da morte,
escreve. E é pela escrita que pode durar, permanecer agarrada a algo para
não submergir. Cito Didi-Huberman, quando diz que "é pela luta de to-
dos os instantes, um ensaio sempre a recomeçar, que nos debatemos com
esse inominável de nossas experiências, de nossa falha constitutiva di-
ante da opacidade do mundo e de suas imagens."(DIDI-HUBERMAN,
2014:71). A dor é esse ensaio de Marguerite em dizer, essa tentativa de ela-
borar a partir daquilo que manca na linguagem, valendo-se dessa mesma
linguagem falha para compor com a letra um caminho esburacado, mas
que, apesar de tudo, se funda.
No caderno, ela diz estar "[s]empre voltando para o âmago doloroso
do pensamento."(DURAS, 1986:38). Em francês, "toujours en allée au
coeur de l’absolue douleur de la pensée."Estamos diante de um eterno
retorno ao âmago da dor absoluta, que permanece em ferida e não co-
agula nem com o retorno de Robert dos campos de concentração. O
rasgo causado pela barbárie é, em suas páginas, mantido aberto, exalando
morte e caos, fazendo ecoar na história um apelo à memória ao mesmo
tempo que um lembrete da capacidade humana em aniquilar-se, como
um aviso para que tal crime não se repita. Do nó de sua dor absoluta e
insuperável, ela escreve, junto a e para aqueles e aquelas que esperam,
que sofrem, que nunca voltaram.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Tradução de Selvino


J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
BINES, Rosana Kohl. "Longe dele, longe dela". In: RED --
Revista de Ensaios Digitais, Rio de Janeiro, Número 1, 2015.
Disponível em: http://revistared.com.br/artigo/66/longe-dele-

184
Na letra, a âncora: uma leitura de A dor de Marguerite Duras

longe-dela[http://revistared.com.br/artigo/66/longe-dele-longe-
dela]{.underline}.
COUTINHO, Ana Paula. "Escrever entre ruínas: Marguerite Duras e
a dor da memória". In. Libretos, n. 4, p. 121-136, abril 2015.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Essayer Voir. Paris : Éditions de Minuit,
2014.
DURAS, Marguerite. A dor. Tradução de Vera Adami. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
_________________. Cahiers de la guerre et autres textes. Édition éta-
blie par Sophie Bogaert et Olivier Corpet. Paris : P.O.L., 2006.
_________________. Escrever. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1994.
FOUCAULT, Michel. "Sobre Marguerite Duras. (Entrevista com H.
Cixous)"In. Cahiers Renaud-Barrault, n. 89, outubro 1975, p. 8-22.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. "Literatura e trauma". In. Pro-
Posições, 13(3), p. 135-153, 2016. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/
view/8643943

185
d e s (c o n s ) t r u i r, ela diz
a na kiffer

Je suis née nulle part


M. Duras

1. delinear:

Marguerite Duras (1914-1996) é uma daquelas autoras que nu-


triu ao longo de minha vida, de modo profundo e incluso inconsciente,
um certo funcionamento crítico e uma máquina escriturária que
ainda hoje me acompanha. Por isso mesmo escolhi por muito tempo
não falar sobre a sua obra. Carreguei comigo muitas das pergun-
tas que ela indicava — a solidão e a escrita, o corpo como marca
da letra e vice-versa, o horror da vida (da morte e da guerra) e a
(im)possibilidade de narrar, o silêncio como máquina da narrativa,
entre outros. Perguntas que, de uma certa maneira, foram construindo
um horizonte de questionamento. Um modo crítico de pensamento.
Não necessariamente pelas respostas que engendrariam, são poucas
as respostas ofertadas no universo durassiano, mas pelo modo como
perguntamos incessantemente.
Também esse incessante, que poderíamos chamar de intensidade, de
energia ou força intensiva que percorre os modos de enunciação de
Duras, ao longo de toda a sua obra, vem sendo o eixo estruturante de
minhas pesquisas acerca das relações entre corpo e escrita desde que in-

186
des(cons)truir, ela diz

gressei no mestrado em 1994. Quer dizer — como pensar não o corpo


narrado ou representado, mas os modos de irrupção desse composto
que chamamos corpo no seio da escrita. Decerto voz e ritmo, presen-
ças ausentes no texto, mas ali marcadas, indicadas podem delinear a
questão. Presenças incluso reivindicadas nessas peças-textos que aguar-
dam a voz do leitor, ator, performer. Mas ainda as interrupções, esses
silêncios falantes, essas suspensões narrativas que funcionam como es-
cansões poéticas no seio da prosa ficcional de Duras ajudam a delinear
essa figura presente-ausente de um corpo intensivo na escrita.
Corpos intensivos que atravessam toda a sua escrita, que a nutrem numa
espécie de estrutura desestruturante, entre sopro e asfixia — diferença
e repetição.
Esses corpos intensivos que venho pensando sobre as figuras do traço
ininterrupto quando a escrita deambula entre letra e desenho (Artaud,
Bourgeois); essa força compulsiva e compulsória que nos obriga a es-
crever em constrangimento — uma coação escrituraria (Duras, Beckett,
Lispector); esse risco entre constituir-se através da escrita ao mesmo
tempo em que escrevendo nos destituímos149 de um eu idêntico a si
mesmo ou coincidente com o que nos cremos ser. Logo, uma fenda en-
tre o processo de constituição identitária, de subjetivação, e o processo
de abertura ao que não se é – abertura ao comum do mundo, esse lodo
material e não só fantasmático do todo-mundo (Glissant, 1990).
Esse é o crivo que me aproxima perigosamente da obra de Duras. Digo
perigosamente dado que toda compulsão aproxima e repele, indica a
necessidade de cautela e limite, buscando interpor dobras, entranhas,
bordas para que ela viva e nós sobrevivamos — e vice-versa.
Foi assim que este texto buscou se tecer — entre a interrogação
flutuante e a reverberação fulgurante dos corpos intensivos de Duras.
Entre deixar que sua voz habite o ritmo do que aqui escrevo, soprando
em meu ouvido, e a tentativa de limitar o mimetismo cacofônico.
Algo disso tudo inevitavelmente o habitará. A pergunta que percorre
149
Tema que desenvolvo do livro Do Desejo e Devir — o escrever e as mulheres, SP,
Lumme Editora, 2019.

187
Ana Kiffer

este texto foi uma só todo o tempo: o que me separa de Duras e


de sua geração depois de termos por tanto tempo vivido juntos?
O que hoje me parece fundamental como gesto crítico que possa
criar uma dobra ou uma borda ao lado do gesto desconstrutor e
mesmo destruidor (da linguagem e do corpo) que a geração do pós-
guerra viveu, pensou e encenou? Qual é hoje a guerra que enfrentamos?

2. quase-dizer escrever

Hoje amanheceu chovendo, está úmido, tenho frieira e calafrio.


Penso na casa que vivi. Na que foi derrubada. Na última casa, transitó-
ria. Penso na volta à casa, e aí já não penso. Ou quase. Há um quase não
pensar quando penso nesta casa. Nesta língua que me habita. E quase
penso como pude ser habitada tantos anos por essa língua outra que
ela fala. Ela fala tão fundo no que quase penso. No que quase sou. No
que não penso. Que nunca pude de fato pensá-la. Acabei guardando-a
no armário velho daquela casa. A dela. Ela tão impensável quanto ele.
Ali separado do mundo.
Aqui acordo com o canto dos pássaros. Lá, só no verão uma gaivota
perdida. Desgarrada. Regurgitando as sirenes das ruas e das grandes ave-
nidas. Mas um silêncio permaneceu em todas as casas por onde passei.
Ela disse que o tipo de silêncio que se seguia à partida deles ela o guarda
em sua memória. Que entrar nesse silêncio era como entrar no mar. Que
era ao mesmo tempo uma felicidade e um estado muito preciso de aban-
dono a um pensamento em devir, que era um modo de pensar ou de não
pensar talvez — que um não é longe do outro, ela disse — e que já era
então escrever. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.54).
Hoje penso, quase penso, como poderei aqui, com vocês, quase pensá-la.
Penso se quase-pensar seria como um modo de pensar tocando. Por isso
talvez quase pensar é ouvir os ruídos do silêncio. Essa espécie de aban-
dono. Que em silêncio habita tudo o que ela diz. Então vejam que eu
escrevo para nada. Escrevo como é preciso escrever, me parece. Escrevo para
nada. Sequer escrevo para as mulheres. Escrevo sobre as mulheres para es-

188
des(cons)truir, ela diz

crever sobre mim mesma, sobre eu mesma sozinha através dos séculos. Ela
disse. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.59).
Quase penso nessa solidão através dos séculos. Numa irmandade ima-
nente. Num bloco cimentado, simultaneamente ruidoso e silencioso
que atravessa os tempos e as casas. As mulheres. Penso que ela mesma
sozinha através dos séculos somos todas nós. E ainda. Quase penso,
penso muito insistentemente neste ainda. Como vive hoje, entre nós,
este ainda? Penso ainda que essa casa -cimento e ruína- que atravessa
todas as casas, foi plantada na floresta e depois guardada no armário. E
que escrever para nada, esse quase penso, é infiltrar nos muros da casa
o musgo que irá derrubar a própria casa. Ficará talvez apenas o armário.
Na língua estranha que ela deixou. Que quase tocamos. Sem pensar, e
já escrevemos.
Ela disse que existem mulheres que jogam fora. Eu jogo fora muitas coisas.
Durante 15 anos jogava fora os meus manuscritos tão logo saía o livro. Se
busco o porquê penso que era para apagar o crime, desvalorizá-lo aos meus
próprios olhos, para que eu ficasse mais adequada ao meu meio, para ate-
nuar a indecência de escrever quando se é uma mulher, isso faz apenas 40
anos. Eu guardava os restos dos tecidos da costura, os restos dos alimentos,
mas isso não. Durante dez anos queimei meus manuscritos. Até que um
dia alguém me disse: “guarde-os para o teu filho, nunca se sabe”. (Duras,
1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.70). De fato, nunca se sabe.
O fogo que queima nela ainda queima a todas nós. Ainda queimam os
papéis nos armários. Como restos de tecido ou de comida. A comida
que falta à mesa, mesmo quando posta. A desordem ordenada da preca-
riedade de nossas casas. Corpos, quase corpos. Mulheres. Faz apenas 32
anos que ela pôde dizer isso. Disso. Como podemos dizer hoje? Disso.
Que não podemos. Quase dizer. Ainda. De novo. Qual o “quase-dizer”
que hoje nos habita? Quais poderes nos impedem poder-dizer, hoje?
Penso que gostaria de dedicar todo o tempo que tenho tentando res-
ponder apenas a isso. Faria listas. Desenhos. Diagramas. Me enrolaria
em linhas tentando dizer dos poderes que nos impedem ainda poder-
dizer. Um por um. Um cêntimo de cada um deles. Cada centímetro

189
Ana Kiffer

deles. Um quase-nada. Um sem valor. Uma desvalia. Na base desse não


poder-dizer. O lodo mais antigo. O bloco cimentado. Quais as pás que
hoje o edificam? Quais as mãos que o limam? Como poder-dizer se não
vale nada dizer? Dizer como cagar. Dia sim, dia não. Uma intermitência,
uma disfunção entre a boca e o ânus. Estão dizendo como cagam. O
cu passando pela laringe. Os dentes mastigando a merda. Já não basta
só queimar. Estão atingindo o coração selvagem da floresta, dentro da
nossa casa. Revalorar o poder-dizer. Arrancá-lo de onde o meteram. No
cu do mundo. Onde judas perdeu as botas. Um buraco vazio, dizem
um país. Um cu. Uma casa. Um clarão na floresta.
Escrever para nada não é igual a nada vale escrever. Ainda estamos aí:
Perdoe-nos falar disso repetidas vezes. Nós estamos aí. Aí onde se faz nossa
história. Alhures. Não temos desejos humanos. Não conhecemos senão que
o rosto das bestas, a forma e a beleza das florestas. Temos medo de nós
mesmas. Temos frio no nosso corpo. Somos feitas do frio, do medo, do de-
sejo. Nos queimavam. Ainda nos matam no Kuwait ou no interior da
Arábia”. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.74). Ela diz.
Estou de volta à casa. Faz frio. Tenho frieira e calafrio. Estou no interior
de um país que desconhece o seu interior. Estou num país exterior que
é o meu. O nosso. Estou falando na minha língua, onde ela diz. Nou-
tra língua. Estou alhures. Estamos. Em casa, alhures. Essa sempre foi a
nossa casa, sem casa. Ignoramos por muito tempo a quantidade de pes-
soas que vivem sem casas. As quase-casas. A quase mesa mesmo quando
posta. Sem comida. Ignoramos por muito tempo o desconforto das ca-
sas destruídas. Quase pensamos nisso tudo. E hoje um clarão habita o
meio dessa floresta. Anteontem mataram aqui mesmo, quase aqui, ao
lado desta casa, em somente 80 horas, cinco jovens foram assassinados
aqui, ao lado desta casa, pelo Estado que nos governa.
Hoje chove. Tenho frieira e calafrio. Pensei que deveríamos todas juntas
chorar. Fazer um muro de corpos onde possamos somente chorar. Uma
sobre as costas da outra. Outra sobre o ombro esquerdo da outra. Outra
sobre a mão direita da outra, estendida sobre olho esquerdo da outra
que chora sobre todas nós.

190
des(cons)truir, ela diz

Quase penso que o Estado de guerra que vivemos alhures, em casa, nos
faz somente guerrear. Quase penso que prefiro o poder-dizer ao em-
poderar. Quase penso que não quero como eles o mesmo poder de
guerrear. Quase penso que a paz não responde mais à guerra. E que as
oposições que nos criaram são insuficientes.
Quero poder diferente, deles. Quero poder-dizer como uma só palavra.
Uma máquina. Uma costura. Um cozimento. Uma ferida. Um modo
de tocar. Um muro de musgo. Uma casa sem muro. Um país. Ela disse:
Soube eu então tão cedo em minha vida que era uma escritora? Sem dú-
vida. (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.70).
Mas quando estaremos nós extenuadas dessa nossa floresta de desespe-
rança? (Duras, 1987, La Maison, In: La vie matérielle, p.74). Ela disse.
Digo eu.

3. construir, eu digo:

Até aqui disse com ela. Ela disse. Destruir, diz ela. Dela. Disso. Quase
sobre ela, eu mesma através dos séculos. Digo: deixemos o de por
um momento: destruir, desrazão, descoser, desconstruir, devir, desviar.
Separemo-nos por um momento dessa camada do tempo onde um va-
lor positivo, transgressivo, liberador e intensivo foi ofertado aos corpos
mortos, arruinados, apagados pela guerra. Onde escrever sobre o nada,
para nada, não era ainda escrever não vale nada: “Eu não vejo o que
vocês poderiam contar sobre ela (...) é verdade que hoje em dia não se
conta mais nada nos romances...Por isso leio tão pouco (...) que (...)”.
(DURAS, Détruire-dit-elle, 1969/2007, p.119).
Deixo-a um pouco. Para que pensemos juntos. Quase pensar sobre
como escrever não vale nada. Pensar diferente o poder. Imaginar o po-
der. Poder imaginar o poder-dizer, diferente. Dela. Que ela agora só
nos acompanhe, no que gostaria eu de deixar com vocês, que já não só
ela, mas as camadas dos tempos, onde ela, e tantos outros corpos dela
subjazem.

191
Ana Kiffer

Quase-penso que hoje, além de deixar por um momento o da potência


positivada de todo o aniquilamento da história vivido por aquela gente,
depois da Segunda Grande Guerra, gente que aqui também vive, é im-
portante para nós. A insuficiência hoje de um valor positivo da desrazão
não significa um apelo ou um retorno à razão unificada e unificadora.
Mas talvez, quiçá, uma atenção aos movimentos imperceptíveis da ir-
racionalidade que habita a razão. Que a conduz em nós mesmas. Em
todos nós. Um passo ao lado entre razão e desrazão chama-se buscar
a lucidez. Infelizmente na lucidez vive o clarão. No meio da floresta.
Onde estamos hoje.
Quase penso que um passo ao lado da lucidez não vai nem em dire-
ção à loucura nem à consciência. Mas em direção à nuance. Ninguém
suportará o clarão sem um esforço para criarmos nuances de luz e de
opacidade. Precisamos hoje de uma arqueologia diferente. Não ape-
nas desenterrar os nossos cadáveres, necessário, luminoso e tenebroso.
Mas de uma arqueologia de camadas. O gesto que acompanha a nuance
chama-se criar camadas. Olhar não é suficiente. Também por isso pre-
cisamos tocar nessas camadas que reivindicam uma nova arqueologia
do Brasil. Do que é, de como é, de como pode ser, em camadas, ser bra-
sileiro. Ser vários é também o que as camadas e as nuances ofertam ao
ser.
Introduzi como um musgo na parede da palavra Destruir, que ela disse,
um parêntesis — um con, desejo de construir sobre os escombros da
desconstrução de ontem e da destruição de hoje. Mas também desejo
de com, logo de Relação150 (Glissant, 1990).
Às nuances e às camadas dessa nova arqueologia advém um quase-penso
poder-dizer que precisamos repensar e reviver os cortes e os enlaces da
Relação entre todos nós. Sobre os escombros da guerra insurgiu uma
geração que pôde revalorizar positivamente a destruição e dela fazer re-
luzir um nada que habitou o homem sem qualidades através dos séculos.

150
No livro Odios Politicos, Politicas do Odio escrito com Gabriel Giorgi, Bazaer do
Tempo, 2019, desenvolvo de forma mais substancial a noçao de Relaçao em E. Glis-
sant e como vejo sua importancia operativa no contexto politico-subjetivo atual.

192
des(cons)truir, ela diz

Com isso esquecemos de pensar o homem comum. Essa geração, que


nos formou, rejeitou o senso comum. Como se pensar fosse abando-
nar a doxa. O senso comum hoje impera. O homem comum torna-se
imperador em terras abolidas. Não abolicionistas. Precisamos pensar
com o senso comum. Talvez um outro modo de quase-pensar precisa
ser revalorizado por nós.
Sobre os escombros da guerra insurgiu uma geração que pôde revalori-
zar positivamente a destruição e a partir dela liberou uma nova potencia
do amor. Liberou de fato mil formas de amar. Liberou incluso que todo
amor vale a pena. Hoje já não poderíamos dizer que existe apenas uma
forma de amor. Mesmo que uma força queira diminuí-lo. Trancafiando-
o num só armário. Hoje já não acreditamos que haja apenas uma forma
de amor. Mesmo que tenhamos retraído poder-dizer que toda forma de
amor vale a pena. Isso tudo é hoje o senso comum. Amamos filhos, pais,
mães, ancestrais, amigos, netos, ex-companheiros, homens, mulheres,
animais e plantas. Mas curiosamente quando quase-penso que expandi-
mos a noção de amor. Que nuançamos e nela criamos muitas camadas,
quase-penso que o ódio ficou sendo um só. Bloco de cimento e ruína
impensável. Afecção inevitável, continua ele ali existindo, aqui, monoli-
ticamente.
Hoje é ele a pedra no meio do nosso caminho. No meio da nossa geração.
No coração da floresta, esse clarão. Do nosso tempo, através dos séculos.
Infelizmente para nós coube isso: nuançar, limar, escavar, criar camadas,
aqui e ali uma ruína, um monumento esquecido, diferir aguda e coti-
dianamente os nossos ódios. Não para multiplicá-los, mesmo que. Eles
já correm livremente, e escorrem entre os nossos dedos. Para quiçá nu-
ançando, diferindo-o, acolhendo-o, dele cuidando, quiçá, quase-penso
que assim, mesmo que não cheguemos a recriar a geração paz e amor,
decerto livraremos uma geração por vir dessa parte impossível de viver -
desse ódio. Um só e onipresente ódio que hoje quer religar, religar, digo
religar, desse modo, nessa máquina, um jeito só de ser ou de estar em
casa.

193
Ana Kiffer

Dedicarei todo o meu tempo a diferir, a nuançar e a religar diferente esse,


desse e nesse ódio. Diferentes modos de odiar. Um ódio diverso, inse-
rido na diversidade deste mundo talvez, quiçá, nos ajude a recolocar e a
reivindicar um outro modo de vivermos todos juntos. Sem esquecer de
ninguém, do mais pequeno e por menor ou pior que seja. Que sejamos.
Que possamos ser, saindo do um só, em Relação, como diria Edouard
Glissant, indo até o outro mudar algo em nós, ser algo diferente do que
já somos, sem se perder ou se desnaturar. Uma dobra apenas na curva
lancinante que Duras deixou para nós, afinal, como escrever hoje que
eu nasci em parte alguma?

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Revista DR http://www.revistadr.com.br/http://www.revistadr.com.br
Revista Pessoa https://www.revistapessoa.com/autor/287/ana-
kifferhttps://www.revistapessoa.com/autor/287/ana-kiffer

195
s o b r e a s a u t oras e
autores

Ana Kiffer
Professora Associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, doutora em Letras pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e doutorado Bolsa Sandwich Capes - Université de Paris VII -
Denis Diderot.

Ana Lucia Lutterbach


Psicanalista, membro da AMP/EBP. Autora do livro Patu, uma mulher
abismada. Subversos, RJ, 2008.

Beatriz Chnaiderman
Bacharel em psicologia pela Universidade de São Paulo. Psicanalista
membro do Fórum do Campo Lacaniano.

Bruna Guaraná
Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio, Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Asso-
ciada do ICP-RJ (Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro)
e participante do Núcleo de Pesquisa do ICP-RJ “Práticas da Letra”
coordenado por Ana Lúcia Holck.
Claudia Itaborahy

196
É psicanalista, coordenadora do Ateliê de psicanálise e outras ar-
tes de Ouro Preto e escreve. Aluna do Programa de pós-graduação
em Estudos Literários, da Faculdade de Letras | UFMG, na área de
concentração Poéticas da Tradução e linha de pesquisa Literatura
e Psicanálise. Sua orientadora é a professora Lucia Castello Branco.
Claudia é mestre em educação|UFOP e tem especialização em ciência
da religião|UFJF.

Daniele Fernanda Eckstein


Doutoranda pela Sorbonne Université e professora no Colégio
Universitário Sciences Po-Poitiers. O tema de pesquisa, sob a direção de
Michel Riaudel, se centra na análise de diversas formas de repetição na
escrita de Clarice Lispector (A paixão segundo G.H.) e de Marguerite
Duras (Le ravissement de Lol V. Stein), ambos publicados em 1964.

Flavia Trocoli
Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
membro-fundador e vice-coordenadora do Centro de Pesquisas
Outrarte – psicanálise entre ciência e arte, do IEL/ UNICAMP, autora
do livro A inútil paixão do ser.

Giselle Moreira
Psicanalista. Graduada em psicologia e mestre em Letras: Estudos
Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Isadora Bonfim Nuto


Bacharel e licenciada em Letras- Português e Literatura pela Uni-
versidade de Brasília (UnB) e mestranda em teoria literária pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Laerte de Paula
Psicanalista, Acompanhante Terapêutico, mestre em Psicologia Clínica
pelo Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP.

197
Larissa Melo
É formada em Realização e Produção Audiovisual na Escola de Cinema
Darcy Ribeiro; Integrante em Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas
de Cinema. Graduanda de Bacharelado e Licenciatura em Filosofia
UERJ – Pesquisadora em Cinema e Feminismos – Cinema Queer.
Foi professora de Cinema no Ateliê Oriente e Curadora do Cine
Oriente. Diretora do curta-metragem "The Ephemeral"exibido na
Mostra Internacional "Wicklow Screendance Laboratory"(Irlanda).
Foi professora de Fotografia Criativa em Loretto School para jovens da
França, Áustria, Espanha e Hungria em Bray, Irlanda.

Marcella Moraes
Doutoranda em Ciência da literatura pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolve, com o apoio do CNPq, o trabalho
“Dizer a imagem: uma leitura de Nuno Ramos” e aproveita esta
oportunidade para agenciar uma resposta ao legado que passivamente
herdou.

Marina Gorayeb Sereno


Psicóloga e mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro, atualmente doutoranda no Programa de Pós-graduação
em Ciência da Literatura, na mesma instituição.

Renata Estrella
Psicanalista, doutoranda em Ciência da Literatura / UFRJ, mestre em
Pesquisa e Clínica em psicanálise.

Ricardo Pinto
Professor de Teoria Literária na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
coordenador do Projeto Fortuna e do Laboratório de Edição, autor de
A presença da forma trágica.

198
Tatiane França
Professora de língua francesa e literaturas, mestranda em Ciência da
Literatura pela UFRJ.

199

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