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panfletos gradiva C. Higounet • C. Mazauric • Guy Palmade • H. G. Gadamer
H. I. Marrou • Paul Veyne • Pierre Vilar • R. Mandrou
A FRANÇA ANTES DA REVOLUÇÃO
J. H. Shennan
A CONTRA-REFORMA
Michael Mullett
MUSSOLINI E A ITÁLIA FASCISTA
Martin Blinkhorn
A ÉPOCA DOS DESCOBRIMENTOS/l 400-1600
David Arnold
A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO
Conceição Coelho Ferreira, Natércia Neves Simões
GALILEU E PLATÃO
Alexandre Koyré
GALILEU, DESCARTES E O MECANISMO
HISTORIA
F. Alquié, F. Russo, J. Beaude, M. A. Tonnelat, P. Costabel, R. Poliu
TRATAMENTO ESTATÍSTICO E GRÁFICO EM GEOGRAFIA
Conceição Coelho Ferreira, Natércia Neves Simões
E
9. FILOSOFIA ANALÍTICA
Claude Imbert, Denis Zaslawsry, Francis Jacques, Philippe Devaux, Jan
HISTORICIDADE
Sebestik, Françoise Armengaud, Gilles G. Granger
10. HISTÓRIA E HISTORICIDADE
C. Higounet, C. Mazauric, Guy Palmade, H. G. Gadamer, H. I. Marrou, Tradução revista por
Paul Veyne, Pierre Vilar, R. Mandrou ANA ISABEL BUESCU
Universidade Nova de Lisboa

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gradiva
<í> Encyclopaedia Universalis
Titulo: História e Historicidade
Autores: Vários
Tradução: Geminiano Cascais Franco
Revisão: Manuel Joaquim Vieira
Capa: Armando Lopes
Fotocomposição, paginação e fotolito: Textype — Artes Gráficas, L.dí!
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, L.""'
Reservados os direitos a
Gradiva — Publicações, L.àa
Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. — Telefs.: 67 40 67/8
1300 LISBOA
l . a edição: Maio/1988
ÍNDICE

HISTÓRIA

INTRODUÇÃO 9

! ESTATUTO CIENTÍFICO DA HISTÓRIA 15


1. A história positivista 16
A análise crítica do documento 16
O determinismo em história 17
2. Problemática e história 18
Economia e sociedade 18
O documento, confirmação de uma hipótese 19
3. Conjunturalismo e estruturas 21
Os «conjunturalistas» franceses 21
A identificação das constantes estruturais 22
4. A história sociologizante 23
Uma documentação demasiado abundante 23
O auxílio da linguística 24
5. A história quantitativa 25
6. História total, história dialéctica 27
A ressurreição integral do passado 27
Dar conta de todas as estruturas e das suas relações 28
7. Debates metodológicos 29
A coexistência pacífica das escolas históricas 30
Contestações das ciências vizinhas 31

II HISTÓRIA DA HISTÓRIA 35
1. A história clássica 36
Fora da Europa: tradições cristalizadas ou evoluções bloqueadas 36
Nascimento da tradição ocidental 38
Orientações da história e da erudição antigas 39
Temas e modelos da história medieval 41
História, humanismo e as letras 42
2. A história, ciência humana 44
Estabelecimento das bases científicas da história 45
A história ideológica 46
A história positiva 48
A história hoje 49
III A H I S T Ó R I A GEOGRÁFICA 53

1. História e espaço 53
2. A reconstituição do passado geográfico 55
3. O método cartográfico 56
IV A HISTÓRIA ECONÓMICA 59

1. Elaboração da história económica 59


2. A história económica conjuntural 61
Fontes e técnicas 61
Problemáticas 62
3. História económica, crescimento e modelos 63
A história dos economistas: dois tipos de econometria retrospectiva 63
A economia dos historiadores: terrenos desbravados, conquista a fazer 64
V A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES 67 T T C1 T"1/^\> T A
1. Métodos e conceitos operatórios 68 JCiJLkJ L Vy.tvA.iY
Visões do mundo 68
Estruturas e conjunturas mentais 70
2. Psicanálise e história da mentalidade colectiva 71
3. História das mentalidades e história dialéctica 73
VI A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA 77

1. História, ideologia e marxismo 78


História e ideologia 78
História e materialismo histórico 79
2. Os historiadores marxistas e a história 80
Os historiadores perante o marxismo 80
3. A função dos historiadores marxistas 81
4. Prática política e verdade histórica 82
5. Pedagogia do marxismo e história 83
6. Ofício dos historiadores marxistas 84
VII A TEOLOGIA DA HISTÓRIA

1. Redescoberta da essência histórica do cristianismo 90


A Aufklàrung e Bossueet 90
O tempo na economia da salvação 91
Mistério e ambivalência da história 93
2. As figuras do milenarismo 94
O messianismo apocalíptico 94
A impaciência escatológica 95
O sonho da «cristandade» 96

HISTORICIDADE
INTRODUÇÃO 101
1. Filosofia da história e essência do homem 102
As intuições de Herder 102
Hegel e o progresso da consciência 104
A «escola histórica» 106
2. A compreensão do modo de ser da historicidade 107
Dilthey e o conde Yorck 107
O problema das ciências humanas 108
A fenomenologia e as filosofias da existência 109
A hermenêutica de Heidegger 111
Linguagem e historicidade 112
INTRODUÇÃO
A palavra «história» designa tanto aquilo que aconteceu como
o relato do que aconteceu; a história é, pois, quer uma sequência
de acontecimentos, quer o relato dessa sequência de acontecimen-
tos. Estes ocorreram realmente: a história é um relato de aconteci-
mentos verdadeiros, ao contrário, por exemplo, do que acontece
com o romance. Através desta norma de verdade, a história, como
disciplina, aparenta-se com a ciência; ela é uma actividade de conhe-
cimento.
No entanto, a história opõe-se à ciência, se tomarmos esta pala-
vra num sentido restrito e a reservarmos para disciplinas como a
física ou a análise económica; com efeito, a história é conhecimento
de acontecimentos, ou seja, de factos, enquanto a ciência é conhe-
cimento das leis que regem os factos. A física estabelece a lei da
queda dos corpos; se um historiador se ocupasse de corpos que
caem, seria para narrar quedas. Daqui se depreende que a oposi-
ção que com demasiada frequência se estabelece entre os factos his-
tóricos, que seriam «aquilo que nunca se verá duas vezes», e os fac-
tos físicos, que se repetiriam, é errónea; um «facto» físico (a queda
de uma folha de árvore) não é menos único, no espaço e no tempo,
do que um facto «histórico» (a queda de um imperador): ele não
é menos histórico do que este último. A verdadeira diferença não
é entre os factos, mas entre as disciplinas: o conhecimento histó-
rico é um corpo de factos e a ciência é um corpo de leis. Pode por-
tanto existir, e existe efectivamente, uma história dos factos físicos
(por exemplo, a história da Terra ou a do sistema solar); inversa-
mente, pode ou poderá haver um dia ciências relativas aos aconte-
cimentos humanos: são as «ciências humanas», tais como a teoria
económica ou a linguística geral; mas estas ciências humanas não
contarão o que sucedeu aos homens: elas estabelecerão leis relati-
vas a acontecimentos humanos.
Como se vê, «história» não é de modo algum sinónimo de «his- jucr subre o homem, o conhecimento histórico não é conhecimento
tória humana»; também a natureza tem a sua história e os seus his- ^á. singularidade dos acontecimentos, mas da sua especificidade, do
toriadores. Seria inexacto pensar que só o homem tem uma histó- que eles oferecem de inteligível. O intelecto, como tal, não se inte-
ria, ou que só a história dos homens nos interessa porque nós ressará por um determinado relâmpago (que caiu, por exemplo,
próprios somos homens; a história é uma disciplina intelectualista, sobre uma árvore que nos era querida): interessa-se, sim, pelo meca-
não responde essencialmente a uma necessidade existencial, não é nismo do relâmpago. De igual modo, um historiador sério, ou seja,
talhada segundo o padrão de um antropocentrismo ou de um huma- desinteressado, por oposição a um contador de anedotas, a um pro-
nismo. Compreende-se, no entanto, qual a origem deste erro: em pagandista ou a um historiador nacionalista, não se interessa pela
termos quantitativos, por assim dizer, escreve-se muito mais histó- história de França por ser a de França e por ele ser francês: interessa-
ria humana do que história da natureza; podemos pois considerar, -se pela história por amor da história; se contar a história de
globalmente, que não há senão história dos homens. Afinal de con- Luís XIV, esta será para ele a história de um representante da espécie
tas, narram-se quedas de imperadores e de reis, mas não quedas de real, a história do detentor, único por definição, do papel monár-
corpos pesadc'; ?xiste sem dúvida uma história da natureza, mas quico na cena histórica; não se interessa por Luís XIV do mesmo
ela restringe-se a alguns sectores estreitamente delimitados: histó- modo que Montaigne se sentia ligado a La Boétie: «porque era ele,
ria da Terra, história da evolução e da difusão das espécies vivas. porque era eu»; a história é impessoal e a singularidade (esta per-
Se se narram quedas de reis, e não quedas de bolas de chumbo, não sonagem, aquela árvore) só aí figura nessa precisa qualidade: por
será porque os reis e os seus súbditos nos interessam como homens, aquilo que oferece de específico.
ao passo que as bolas de chumbo não despertam em nós qualquer É por isso que a história humana não se apresenta como a reco-
eco humanista?
lha das biografias de todos os homens um por um, nem a história
Tal não corresponde à verdade; a nossa atitude perante a histó- da natureza conta os relâmpagos um a um. Daí a confusa ideia de
ria da natureza é exactamente a mesma que perante a história que a história humana não é a história dos indivíduos, mas a «das
humana. É certo que, se fizermos a história da Terra ou das plan- sociedades humanas», ou «do homem em sociedade», do que há
tas cultivadas, não contamos, em contrapartida, a das quedas das de «colectivo» no homem. Na realidade, a palavra certa é a de «espe-
diferentes folhas: mas são as mesmas razões que levam a que, ao cificidade»; vejamos dois exemplos, colhidos, um, nas coisas huma-
narrar as vicissitude dos impérios e as variações dos costumes, não nas e, o outro, na natureza. Pretendo escrever a vida dos campone-
descrevamos, no entanto, um por um, os cortes de cabelo dos dife- ses do Nivernais sob o reinado de Luís XIV. Um destes camponeses,
rentes homens, os seus nascimentos ou as suas núpcias. Estas razões chamado Pierre à Ia Guillaume, morreu bastante jovem depois de
são duas.
ter desposado uma viúva abastada; em matéria religiosa, era «con-
A primeira é que, por definição, só há história daquilo que muda. formista sazonal», comungava pontualmente pela Páscoa, etc. Vou
Ora nem o mecanismo do relâmpago, por exemplo, nem o facto de contar a vida deste Pierre? Não porque, como historiador desinte-
o homem se alimentar, ter duas pernas e ser sexuado, mudaram ressado, não tenho qualquer razão para me interessar singularmente
desde as origens; por consequência, cabe apenas fazer uma descri- por este camponês em vez de qualquer outro dos seus semelhantes;
ção não histórica do processo do relâmpago e da divisão em sexos não é meu antepassado e, ainda que o fosse, não é a história da
da espécie humana (esta divisão proporcionaria um relato histórico minha própria família que estou a escrever. Ora, quando deixo de
se a humanidade cessasse um dia de ser sexuada). Vemos então por me interessar por este Pierre «porque é ele», apercebo-me de que
que motivo, quantitativamente, a história dos homens preenche mais todos os pormenores da vida de Pierre devem ser confrontados com
volumes que a dos factos naturais: o homem muda muito mais que os pormenores correspondentes da biografia de cada um dos outros
a natureza, inanimada ou mesmo viva; ele tem, como sabemos, dife- camponeses do Nivernais: a mortalidade nas diferentes idades, o
rentes culturas; os seus costumes, as suas instituições variam muito casamento, as segundas núpcias, a política matrimonial, a reparti-
no tempo e no espaço. Assim, não resta grande coisa de não histó- ção da propriedade, a prática religiosa, são também traços especí-
rico a dizer sobre o homem.
ficos da vida dos camponeses do Nivernais. Assim, substituirei uma
A segunda razão que decide sobre aquilo de que haverá história recolha de biografias de camponeses por uma recolha de itens espe-
é mais subtil, mas é de capital importância para compreender a cíficos; esta recolha não é mais do que a «história dos camponeses
essência do conhecimento histórico. Quer incida sobre a natureza, do Nivernais». Nesta história encontraremos a biografia de Pierre
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na sua totalidade, mas volatilizada, inventariada em diferentes itens: rias acerca da história, o determinismo histórico, etc., mas há um
Pierre terá conservado todos os seus traços específicos, mas perdido facto denso, primeiro, que nunca deve, apesar de tudo, ser perdido
a sua singularidade de indivíduo. Do mesmo modo, se eu estudar de vista: a história é um romance verdadeiro e a concepção que o
historicamente um grande homem, como Luís XIV, a sua singula- historiador faz da «causalidade» histórica é exactamente a mesma
ridade disseminar-se-á entre o papel específico do rei, que só ele que um romancista tem da causalidade tal como a utiliza no seu
preenche, o papel de amante, ou o de doente; são outros tantos itens romance; é também surpreendente que vários livros estudem «a cau-
para a história das instituições políticas, da vida sexual e da me- salidade em história»: porquê precisamente em história? O interesse
dicina. epistemológico de tais livros seria exactamente o mesmo se os seus
A história da natureza incide igualmente sobre o específico. Deve- autores tivessem estudado a explicação do divórcio de fulano ou o
rei contar os acontecimentos naturais que se sucederam numa dada facto de sicrano ir passar as férias à montanha, e não à praia. Mais
superfície da crusta terrestre, por exemplo no glaciar de Talèfre, no simplesmente ainda, poder-se-ia estudar a causalidade na Éduca-
maciço do monte Branco? Após uma forte tempestade, a frente da tion sentimeniale ou em A Ia recherche du temps perdu. A história
moreia desmoronava-se; dois anos mais tarde, as quedas de neve humana difere portanto grandemente da história da natureza e inclu-
eram excepcionalmente abundantes; no século seguinte, uma coló- sive da história das espécies vivas; mas esta diferença vem-lhe do
nia de marmotas instalava-se nas imediações do glaciar. A bem dizer, seu objecto —o homem—, não da implantação do conhecimento
como não temos qualquer razão para preferir singularmente o gla- histórico.
ciar de Talèfre a qualquer outro local da Terra, e como a maioria Repudiando assim o cientismo, pode afirmar-se, pelo contrário,
destes acontecimentos se verificam igualmente nesses locais, a maior o carácter estritamente intelectualista do conhecimento histórico.
parte da crónica física de Talèfre dispersar-se-á entre itens que são A história é um empreendimento movido por uma curiosidade pura
a climatologia, a zoologia, a glaciologia, a morfologia, etc. Alguns, e simples: nada do que é histórico é estranho ao historiador, assim
no entanto, permanecem irredutíveis, constituem mudanças, são como nada do que é natural é indiferente ao naturalista. Convém
uma história: a história da estrutura e do relevo da região de Talè- recordá-lo com veemência, porque esteve demasiado tempo em voga
fre, que é um capítulo da história geológica do maciço do monte sustentar que a história não é conhecimento objectivo, que ela é a
Branco: e, com efeito, os geólogos não deixaram de escrever esta consciência que os povos adquirem de si próprios (como se apenas
história. Em suma, não escrevemos a história por interesse pela sin- escrevêssemos a nossa história nacional!), que a visão que temos do
gularidade dos acontecimentos, por amor ou piedade para com o passado reflecte os nossos valores presentes, que, ao escrever a his-
individual; não nos empenhamos nisso. É realmente uma parte do tória, nela projectamos a nossa condição... A bem dizer, estamos
conhecimento do mundo e do homem que não se reduz a repetições perante urn género de afirmações em grande medida gratuitas e inve-
ou a leis; temos de nos decidir a descrever historicamente este resí- rificáveis; o que são os «nossos» valores, a nossa condição? Enfim,
duo, se nada quisermos ignorar da natureza e do homem. ninguém se engana voluntariamente: como admitir e confessar uma
Se afirmamos assim que existe um estrito paralelismo entre a his- falta de objectividade do conhecimento histórico, sem que essa con-
tória do homem e a da natureza, não é porque tenhamos uma con- fissão seja em si mesma o presságio de um próximo retorno à objec-
cepção da história humana análoga à do cientismo. Muito pelo con- tividade? Ignorar que o conhecimento histórico é uma actividade
trário, reconhecemos claramente que uma enorme diferença separa sustentada por uma norma de veracidade é nada entender acerca
estas duas histórias: o homem delibera, a natureza não o faz; a his- dele e da ciência em geral. O que é verdade é que existe uma dimen-
tória humana tornar-se-ia um absurdo se esquecêssemos que os são social da historiografia: recordações nacionais e dinásticas, mitos
homens têm objectivos, fins, intenções. Se os episódios históricos colectivos, etc. Mas precisamente desde o primeiro dia, desde Heró-
não passassem de fatias de determinismo, então, quando Bismarck doto e Tucídides, a história dos historiadores definiu-se contra a fun-
envia o telegrama de Ems, o funcionamento do telégrafo deveria ção social das recordações históricas e proclamou-se dependente de
ser analisado com tanto pormenor como a deliberação do chance- um ideal de verdade e de um interesse de pura curiosidade. Assimi-
ler, e o historiador teria começado por contar que processos bioló- lar a história científica às recordações nacionais de que ela procede
gicos haviam proporcionado a vinda ao mundo do mesmo Bismarck. é confundir a essência de uma coisa com a sua origem; é deixar de
Pode especular-se demoradamente sobre a explicação histórica, o distinguir a química da alquimia, a astronomia da astrologia. Qual
papel das leis e das ciências humanas em história, as grandes teo- a ciência ou a disciplina que não tem também a sua dimensão social?
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E, no entanto, a psicanálise ou a física não se confundem com a
imagem popular da psicanálise ou com as aplicações da física.
Estaria porventura o historiador, sem o saber, limitado na sua
visão pela óptica da sociedade a que pertence? Max Weber afirma-
va-o, mas os exemplos que nos dá são a melhor refutação da sua
asserção. Interessamo-nos pela história grega, afirmara, ao passo
que, a nossos olhos, as guerras das tribos cafres ou dos Pele-Ver-
melhas não são história. Como parecem longínquas estas afirma-
ções que, afinal, só têm três quartos de século! Isto porque, justa-
mente a partir do início do século XX, a história realizou a sua
segunda mutação. A primeira fora aquela pela qual ela se libertara I
da sua função de mito colectivo, para se tornar conhecimento desin-
teressado da verdade: os Gregos são os autores desta mutação. ESTATUTO CIENTÍFICO DA HISTÓRIA
A segunda, a nossa, é a mutação pela qual os nossos historiadores
tomaram pouco a pouco consciência do facto de que tudo era digno A partir de Heródoto e Tucídides (para quem o relato histórico
da história: nenhuma tribo, por minúscula que seja, nenhum gesto é obra de arte, à glória dos heróis, x-ri^oc eiç àeí), as sociedades oci-
humano, por mais insignificante que aparente ser, são indignos da dentais preocuparam-se com o seu destino em termos de história;
curiosidade histórica; não há uma «grande história», que seria polí- a mais antiga das ciências humanas, a história, ao longo de um iti-
tica, e o resto, que pouco valor teria: tudo, até ao mínimo uso, ao nerário aparentemente sem fim, revestiu os aspectos mais díspares:
mínimo gesto, encerra a sua significação específica e interessará o do apólogo à narrativa épica, do canto comemorativo à crónica, da
historiador, o sociólogo, o etnógrafo, o demógrafo... Não temos dissertação aplicada à sátira parcial. Tantas formas de história
o direito de ignorar a dupla lição do trabalho dos historiadores desde reflectem pelo menos uma inspiração comum que constitui a justi-
há um século: que a história é conhecimento objectivo, movido pela ficação profunda destes diversos desígnios: «Defino de bom grado
curiosidade desinteressada, e não expressão de uma situação exis- a história», escrevia Lucien Febvre em 1947, a propósito de uma
tencial; e que tudo o que é histórico é digno da história. Quando obra de violenta polémica, «como uma necessidade da humanidade,
Heidegger vê na história uma projecção no passado do futuro que a necessidade de cada grupo humano, em cada momento da sua evo-
o homem escolheu para si, não faz mais do que erigir em filosofia lução, procurar e valorizar no passado os factos, os eventos, as ten-
anti-intelectualista a historiografia nacionalista do século passado: dências que preparam o tempo presente, que permitem compreendê-
deste modo, tal como a coruja de Minerva, ele despertou um pouco -lo e ajudam a vivê-lo.»
tarde de mais.
De há um século para cá, a história científica não deixou de pro-
Paul Veyne curar a definição que lança no inferno das para-histórias toda uma
literatura prolixa, croniqueira e escandalosa (que tem, no entanto,
o seu lugar na memorização colectiva). É obviamente neste plano
científico que se deve tentar dar conta das mutações epistemológi-
cas essenciais, das renovações verificadas e que abarcam ao mesmo
tempo, indistintamente, objecto e métodos. Neste sentido, a histó-
ria, à semelhança de qualquer outra ciência do homem, não esca-
pou às reformulações suscitadas na primeira metade do século XX
pelo pensamento de Marx e na segunda pelo de Freud. Neste movi-
mento secular da historiografia, os debates então abertos não estão
ainda de modo algum encerrados: a historiografia alemã ocupou-
-se durante muito tempo com discussões teóricas que, de um modo
geral, repugnam aos historiadores franceses; as diferentes escolas
que se reclamam do marxismo nunca deixam de recordar, nos seus
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estudos, os postulados fundamentais das suas investigações, cor- tica interna», regras rigorosas adoptadas pelos filólogos desde há
rendo embora o risco de os esquecer pelo caminho; em numerosos séculos e a que os historiadores não podiam furtar-se. Longamente
países, a tradição universitária liberal favoreceu o desenvolvimento descrito no final do século XIX por Charles Victor Langlois e Char-
de escolas cujo chefe de fila exerceu uma influência excepciona! les Seignobos, o método crítico, que supunha então constituir a tota-
sobre várias gerações; é o caso de Benedetto Croce em Itália. lidade do método histórico, foi reafirmado com agressividade e sole-
Para situar devidamente as principais correntes, o melhor método nidade por Louis Halphen imediatamente após a segunda guerra
de exposição consiste ainda em fazer referência aos debates funda- mundial, em 1946, na sua Introduction à !'histoire.
mentais que, do romantismo à história dialéctica, assinalaram outras Para sermos rigorosos, a necessidade de uma análise crítica dos
tantas etapas desta mutação: neste sentido, o exemplo francês é pri- documentos não é realmente contestada. Mesmo os especialistas de
vilegiado, uma vez que sempre se manteve aberto aos grandes movi- história económica, que manipulam séries quantificadas cuja apa-
mentos que presidiram a estas redefinições da história enquanto ciên- rência dá uma impressão de rigor, não dispensam este exame e não
cia. confiam ingenuamente na lei dos grandes números para se poupa-
rem a verificações e controlos sempre necessários: alguns desaires,
raros, mas bem conhecidos, sofridos por especialistas de tráficos
1. A HISTÓRIA POSITIVISTA mediterrânicos bastaram para jugular as imprudências. Quem tenha
trabalhado com livros de contas, tabelas de preços ou quadros esta-
Como o seu qualificativo o indica, foi na segunda metade do tísticos sabe até que ponto o exame crítico destas séries é indispen-
século xix que a ciência histórica constituiu o corpo sistemático de sável e que não basta, de modo algum, refazer as somas.
regras habitualmente conhecido pela denominação de «método crí- Mas o método positivista postula uma compreensão precisa da
tico»; depois dos grandes frescos românticos, os historiadores de história, que importa captar de modo exacto: a análise crítica do
ofício elaboraram este conjunto que pauta a análise dos documen- documento é todo o trabalho do historiador, que, segundo a fór-
tos e, simultaneamente, o estabelecimento dos factos. No momento mula de Halphen, deve apagar-se perante o testemunho; caricatu-
em que o método positivo triunfa nas ciências físicas e naturais, em ralmente, Alain via assim a história como uma justaposição de
que Auguste Comte descreve a terceira idade da história humana, memórias devidamente criticadas. Sem ir tão longe, o certo é que
os historiadores são unânimes: com os Alemães na dianteira, apre- este método, pelas suas virtudes, reduz a uma só definição o facto
goando alto e bom som as definições fundamentais, Leopold von bruto e a história; a sucessão dos factos a uma narrativa cronologi-
Ranke é o primeiro para quem escrever a história consiste em con- camente ordenada legitima o apagamento, postula relações simples
tar o que se passou, «wie es eigentlich gewesen ist». Na esteira da de causa a consequência: post hoc, propter hoc, segundo a expres-
historiografia alemã (mormente após 1870 no caso da França), todas são dos escolásticos. Este determinismo rigoroso do acidental difi-
as escolas nacionais acertaram o passo e reconheceram o primado cilmente admite a «inocência de uma coincidência», pesadelo do
do método crítico. erudito. Finalmente, o estabelecimento destes encadeamentos cro-
nológicos realiza-se tanto melhor quanto os «factos» foram mais
A ANÁLISE CRITICA DO DOCUMENTO
abundantemente descritos pelos actos oficiais, os cronistas, os
memorialistas; assim, a história positivista pôde prosperar em pri-
As virtudes do método crítico não podem, na realidade, ser con- meiro lugar na história política.
testadas. Perante um documento, escrito ou não, o historiador deve
colocar a si próprio questões tão elementares como estas: quem o O DETERMINISMO EM HISTÓRIA
escreveu (ou fez)? Quando? Como? Onde? O mesmo se aplica à
regra que recusa o testemunho único, incapaz de se instaurar, por Contar os factos tal como eles se passaram, e tal como os teste-
si só, como elemento de prova, Teslis unus, testis nulliis. De igual munhos permitem reconstituí-los, não depende, pois, de um método
modo, perante uma cópia cuja autenticidade não é imediata, é neces- tão simples como se tem dito frequentemente: da análise crítica dos
sário procurar o original e datá-lo, bem como à cópia, detectar a documentos o historiador transita, conscientemente ou não, para
frequência de erros nas cópias, as variantes de cópia para cópia, pôr uma filosofia determinista da mudança, do devir humano. Em par-
em causa a credibilidade do documento. «Crítica externa» e «crí- ticular os sucessores de Michelet, de Augustin Thierry, de Mignet,
16 17
teriam desejado que esta ciência fosse tão solidamente fundada em é sem dúvida a imagem das reuniões semanais pluridisciplinares rea-
leis de análise quanto as ciências da natureza: condição do seu pro- lizadas em Estrasburgo pouco depois da primeira guerra mundial,
gresso, que deve acompanhar, mesmo com algum atraso, o das ciên- em que os jovens professores da Universidade francesa confronta-
cias exactas. Daqui decorre a ambiguidade do estatuto dos histo- vam leituras, questões e experiências: Charles Blondel, Lucien Feb-
riadores positivistas nos nossos dias: nenhum deles invocaria, para vre, Marc Bloch, Gabriel Lê Brás, Georges Lefebvre, Henri Bau-
justificar o seu apego exclusivo aos métodos definidos há quase um lig, Maurice Halbwachs, Sylvain Lévi, reflectindo sobre história,
século, esse determinismo rigoroso a que as próprias ciências da sociologia, geografia, ou psicologia; ou ainda a evocação das «jor-
natureza já não recorrem, nem, por maioria de razão, faria refe- nadas de síntese» organizadas por Henri Berr no âmbito da sua
rência a um progresso plurilinear das ciências e das técnicas. Mas revista, para examinar uma noção-chave do vocabulário das ciên-
este facto em nada diminui o rigor crítico na análise do documento cias físicas e humanas, como, por exemplo, a ideia de civilização,
que a École dês Chartes continua a ensinar aos futuros conserva- em 1933. O historiador interessa-se por todas as formas da activi-
dores dos arquivos e que se mantém uma virtude elementar para dade humana —presente ou passada— susceptíveis de o elucidar
qualquer homem do ofício. Todavia, há muito tempo que inúme- acerca do devir humano: como o ogre da fábula, escreve Marc
ros historiadores o declararam necessário, mas não suficiente, e Bloch, onde quer que lhe cheire a homem, o historiador reconhece
reclamaram outros métodos e outras solicitações. a sua caça. Está aberto às preocupações, às curiosidades dos espe-
cialistas que se ocupam das outras ciências humanas: a mentalidade
primitiva, as causas de suicídio, os níveis de vida e as classes sociais,
2. PROBLEMÁTICA E HISTÓRIA o moinho de água ou de vento, o carrinho de mão e o botão...
Os arquivos não poderão por vezes trazer senão magros elemen-
Ao mesmo tempo que a história científica se definia desta tos de resposta a uma tal curiosidade; houve quem zombasse na
maneira, apoiada pelo consenso geral dos universitários e dos gover- época destas exigências impossíveis de satisfazer. Muitos chamaram
nantes, pela multiplicação das revistas especializadas (Revue histo- a atenção para séries de arquivos descuradas e empreenderam a sua
rique, Historische Zeitschrift, English Historical Review, etc.), sur- exploração: é o caso da série B (judiciária) dos arquivos departa-
giam novas exigências: uma, simultaneamente difusa e poderosa, mentais franceses. De qualquer modo, a renovação do campo da
que derivava do marxismo e de que uma das realizações imediatas história é clara e só as lacunas da documentação a limitam.
mais originais foi a elaboração da Histoire socialiste, empreendida
por Jean Jaurès e seus companheiros, Georges Renard, Albert Tho- O DOCUMENTO, CONFIRMAÇÃO DE UMA HIPÓTESE
mas, etc.; outra, ainda mais aberta, de Henri Berr, fundador da
Revue de synthèse historique, em 1902, e, em 1920, da colecção No entanto, a síntese histórica não é somente a refutação de uma
«Évolution de l'humanité», cuja irradiação foi mundial; outra ainda, filosofia de devir humano implicitamente postulada pela história
finalmente, da revista Annales d'histoire économique et sociale, fun- como relato factual. Os inovadores dos anos 20 e 30 do nosso século
dada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch, que, após um longo punham a tónica numa exigência metodológica fundamental, resu-
combate, renovou profundamente o ofício de historiador e conti- mida numa única palavra: o problema. Toda a investigação histó-
nua a exercer uma notável influência sobre as novas gerações. Sem rica encontra a sua justificação na medida em que o investigador se
descrever aqui a história deste vasto movimento, das suas polémi- esforça por resolver uma questão bem delimitada, que, por sua vez,
cas muitas vezes ardentes (que cobriram a história positivista de qua- se situa numa perspectiva exactamente definida. Por outras pala-
lificativos pejorativos: história factual, historizante), é necessário vras, tal como o especialista das ciências físicas, o historiador deve
reter as suas duas inovações essenciais: o programa e o método. proceder por hipótese, investigação documental da prova, recons-
tituição dos elementos de resposta, verificação ou anulação do ponto
ECONOMIA E SOCIEDADE de partida; este último é, por conseguinte, a hipótese, motor essen-
cial do percurso do investigador, e a fecundidade da investigação
O programa não pode definir-se simplesmente pela superação do é função da perspicácia com a qual a hipótese inicial foi estabele-
político em benefício do económico e do social, solicitada por qual- cida. Esta exigência, que nada tinha de original aos olhos dos cien-
quer referência ao marxismo. O melhor modo de o compreender tistas, habituados desde há muito a reconhecer que a ciência cria
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assim o seu objecto, provocou resistências entre a gente do ofício:
admitir que só uma problemática coerente, estabelecida ao mesmo 3. CONJUNTURALISMO E ESTRUTURAS
tempo com prudência e imaginação, pode enriquecer a pesquisa e
fazer «falar» o documento era de facto reconhecer que a descrição As permutas no domínio económico, da economia política à his-
linear deste último, mesmo criticado, não faz por si só brotar os tória, foram as mais frutuosas e também as mais antigas; neste
problemas; e que um leitor insípido não é de modo algum um his- ponto, são aliás sensíveis profundas diferenças de país para país.
toriador válido, mas, quando muito, «escravo da erudição», no dizer Na Alemanha Ocidental, por exemplo, certos historiadores econo-
de Marc Bloch. mistas permanecem ligados a formas sectoriais de análise respeitan-
Todo o esforço de investigação devia ser portanto situado numa tes às velhas distinções da agricultura, indústria, comércio, trans-
perspectiva de conjunto, susceptível de fornecer no final da pesquisa portes: comprovam-no as luxuosas revistas Tradition e Scripta
os elementos de uma explicação global, que restituísse na medida mercaturae, generosamente subsidiadas por grandes empresas, ban-
do possível à história as dimensões e as ambições reivindicadas na cárias e industriais. Em Inglaterra, sob a influência dos trabalhos
época romântica. Os domínios do económico e do social conserva- de Joseph Schumpeter, predomina a história das empresas e dos
vam, bem entendido, a sua importância, enriquecidos pela econo- empresários, de estilo monográfico, empenhada em reconstituir o
mia política e pela sociologia, mas acrescentara-se-lhes o estudo do devir —ascensão ou declínio— de unidades económicas considera-
contexto cultural, no sentido mais lato, enriquecido pela psicolo- das características. Ambas as fórmulas têm os seus adeptos em
gia e pela linguística, como em Lês róis thaumaturges, de Marc França e em muitas outras escolas nacionais.
Bloch, e no Rabelais, de Lucien Febvre, que constituem aberturas
tanto a Michelet como a Marx. OS «CONJUNTURALISTAS» FRANCESES
Esta perspectiva, essencialmente marxizante, foi denunciada;
ainda dez anos depois da segunda guerra mundial, um célebre pro- O percurso francês é original; foi dominado mais de trinta anos
fessor alemão, Gerhard Ritter, no Congresso Histórico Internacio- pela obra e personalidade de Ernest Labrousse, que seguiu outros
nal de Roma, proclamava alto e bom som a nocividade da «escola caminhos: o estudo das conjunturas (segundo o modelo da crise que
histórica francesa», generalização de resto abusiva e bem caracte- coincide com o reinado de Luís XVI, de 1774 a 1791) orientou
rística da guerra fria... durante muito tempo a investigação dos historiadores economistas
O certo é que a problemática histórica se impôs. Este alargamento e contribuiu largamente para inserir a dualidade conjunturas-
das perspectivas, reivindicado, instaurado como exemplo durante -estruturas na problemática geral.
um quarto de século (de 1929 a 1956), permanece em mais de um Esta originalidade da história económica francesa deve-se em
sector como programa de investigação, cujas virtudes as jovens gera- parte ao seu ponto de partida: outros grupos, no estrangeiro, toma-
ções de historiadores ainda hoje descobrem; o facto é mesmo mais vam os seus modelos dos trabalhos de economistas como Schum-
nítido no estrangeiro do que em França, onde a difusão dos Anna- peter e Keynes; em França, os trabalhos de um sociólogo econo-
les e a irradiação das suas ideias-força se fizeram entrecortadamente, mista, François Simiand, que se dedicou ao estudo do movimento
dificultadas pela guerra, pelas controvérsias ideológicas do pós- dos preços, da moeda e das classes sociais, forneceram o ponto de
-guerra, mas que não cessaram de se consolidar durante os últimos partida. A ambição de Ernest Labrousse foi a de apreender a evo-
vinte anos. Simultaneamente, confirmou-se a renovação dos méto- lução social através das flutuações dos preços e dos rendimentos,
dos da história: adopções respeitantes tanto ao modo de colocar como exemplificou (infelizmente de modo incompleto) em La crise
os problemas, como aos meios utilizados para os resolver; diálo- de 1'économie française. Simultaneamente, todos os historiadores
gos mais aprofundados à medida que as mais recentes ciências franceses e estrangeiros foram contagiados pela febre dos econo-
sociais progridem rapidamente e transformam a paisagem intelec- mistas empenhados em explicar, ou mesmo conjurar, a crise eco-
tual das ciências humanas — é o caso da economia, da sociologia, nómica dos anos 1929-35: o movimento dos preços, barómetro da
da psicologia social. Pouco a pouco, as ambições interdisciplina- vida económica, tornou-se desde então o argumento essencial em
res dos inovadores tomam corpo, ultrapassam o estádio das inten- que assentara a reconstrução dos ciclos, longos ou curtos, que con-
ções piedosas e transformam-se em verdadeiras permutas metodo- dicionam aquela; os conjuntos cujos diferentes parâmetros são igual-
lógicas. mente acessíveis aos historiadores (flutuações monetárias, salários,
preços, rendimentos) definem diversos tipos de conjunturas: ciclos
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rurtos movimentos sazonais, ritmos seculares, por vezes «baptiza- France moderne e Magistrais et sorciers em France au XVirme siè-
rá » com o nome do seu inventor, Juglar Kondratieff. Ernest cle, estudo dedicado ao refluxo de uma estrutura mental).
I °brousse imbricou nesta tipologia complexa as fases A e B de Neste sentido, os historiadores praticaram a análise estrutural (e
Símiand, reconhecendo na crise da economia francesa nas vésperas conjuntural) muito antes dos filósofos hoje promotores do estru-
da Revolução uma recessão curta num movimento secular (A) de turalismo. Este, nas suas acepções mais correntes, não dá grande
prosperidade que abrange o século xvm. A articulação, o jogo das importância à história; de resto, os historiadores não pretendem
conjunturas tornou-se durante trinta anos a preocupação maior dos fazer desta análise o alfa e o ómega dos seus métodos; trata-se de
historiadores economistas; um exerceu-se em torno do espaço medi- uma entre outras, que, não obstante, conquistou plenamente direito
terrânico do século XVI, outro no que respeita ao Atlântico portu- de cidade.
guês.
O mais belo exemplo que se pode dar é constituído pela obra prin-
cipal de Pierre Chaunu, Séville et l'Allantique au XVleme siècle, 4. A HISTÓRIA SOCIOLOGIZANTE
longa descrição conjuntural das relações entre a Espanha e a Amé-
rica espanhola desde a conquista até aos tempos que se seguiram De Émile Durkheim a Mareei Mauss e a Maurice Halbwachs, a
aos desaparecimento de Filipe II. Uma vez admitidas constantes sociologia do primeiro terço do século XX exerceu, em França, uma
(estruturais) geográficas, climáticas, geopolíticas, o historiador influência determinante sobre a historiografia, influência bastante
acompanha, reconstitui e comenta mês após mês, ano após ano, o superior à dos maiores sociólogos americanos, como Talcott Par-
conjunto das trocas transatlânticas asseguradas pelo porto de Sevi- sons, David Riesman ou Paul Felix Lazarsfeld. Após a segunda
Iha. Neste, como noutros casos, põe-se o problema da articulação guerra mundial, quando a sociologia francesa tomou uma orienta-
que permite passar das conjunturas às estruturas, ou mesmo de uma ção sectorial, por especialização industrial, cultural, religiosa,
análise (conjuntural) a outra (estrutural). Importa sublinhar que este verificaram-se mesmo transferências da sociologia para a história:
método se impôs aos historiadores economistas e foi adoptado em sob o impulso de Gabriel Lê Brás, surgiu a sociologia religiosa
todos os sectores da história. retrospectiva, empenhada em reconstituir as continuidades espiri-
tuais. Os trabalhos de Christiane Marcilhacy, sobre meados do
A IDENTIFICAÇÃO DAS CONSTANTES ESTRUTURAIS século XIX, representam o correspondente (graças a uma série de
inquéritos particularmente importantes ordenados pelo bispo) dos
Conjuntura e estrutura são os modos de análise utilizados pelos inquéritos e estudos de sociologia religiosa, cuja síntese foi reali-
historiadores da sociedade, das mentalidades, da cultura; esta dupla zada por Fernand Boulard nos anos 50. O exemplo é excepcional:
perspectiva permite, em suma, assumir todos os tempos da histó- muitos outros campos da investigação sociológica se prestam mal
ria. Em última análise, a conjuntura mais curta reduz-se a uma pers- a tão ricas comparações, a começar pela sociologia industrial.
pectiva sincrónica, e já não diacrónica, e define-se pelo conjunto
dos traços reconhecidos para um dado momento: distinguimos assim
um clima intelectual ou espiritual identificado num período de tempo UMA DOCUMENTAÇÃO DEMASIADO ABUNDANTE
mais ou menos curto. Cada um deles dispõe de índices compará- Contudo, o essencial está no domínio das técnicas (ou, melhor,
veis ao dos preços; o historiador das sociedades mede assim a per- nos métodos) usadas pelos sociólogos para enfrentar uma documen-
centagem dos desempregados, dos grevistas, a frequência das revol- tação superabundante e progressivamente utilizadas pelos historia-
tas por causa do preço do pão, das contestações cerimoniais... Pelo dores, não sem algumas dificuldades, em virtude das tradições her-
contrário, o estudo estrutural consagra-se à identificação das cons- dadas do estudo dos períodos antigo e medieval, em que o
tantes, das relações que duram séculos ou decénios e das mutações historiador pode sempre efectuar uma leitura exaustiva da documen-
lentas que podem produzir-se no interior de uma continuidade; é tação. A segurança que resulta da reunião de todos os documen-
o caso das estruturas de parentesco, tecido das relações familiares, tos, ainda possível, em rigor, no domínio político, no sentido estrito
ou ainda de uma visão do mundo anterior à «formação do espírito do termo, não tem obviamente sentido para os períodos moderno
científico» — sendo as estruturas, a desestruturação e as conjuntu- e contemporâneo no domínio da história social ou cultural. Com
ras evidentemente inseparáveis (cf. R. Mandrou, Introduction à Ia ou sem relutância, os investigadores foram forçados a pôr à prova
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nos seus próprios trabalhos alguns métodos elementares da socio-
logia, como a sondagem e a amostragem. rentemente praticada pelos especialistas das ciências sociais habi-
tuados a confrontar opiniões díspares, a medir frequências, taxas
Ainda que lhe repugne a fórmula clássica do «sistemático ao
acaso», o historiador que se vê a braços com séries longas, ordena- de repetição, etc., permite ao historiador ultrapassar o estádio da
das cronologicamente (ao menos pela classificação arquivística), não crítica textual positivista, sem, no entanto, a abandonar. Neste domí-
pode fazer melhor do que efectuar uma sondagem, a intervalos regu- nio, a linguística moderna tem o seu lugar e propõe ao historiador
lares, estudando todos os anos O e 5 de uma sequência de processos uma semiologia ainda mais requintada, explorando vocabulário e
criminais, de registos de licença de caça, etc. A regularidade garante sintaxe. É, sem dúvida, ainda demasiado cedo para avaliar tanto
a validade da sequência assim contruída — e distingue-a do golpe o acolhimento feito a estas inovações pelos historiadores já adep-
de sonda, que consistiria em extrair um único ano (ainda que esco- tos da semântica, como o partido que delas poderão tirar. Por detrás
lhido segundo critérios externos aceitáveis), sem qualquer outro destas inovações de ordem linguística, toda uma semiologia está em
estudo. Qualquer tratamento de um grande acervo de documentos vias de constituição, mas este percurso tacteante ainda não é fácil
modernos, como os registos de aquisição de burguesia, os livros de de apreender.
tributos urbanos, com a finalidade de reconstituir os comportamen- De resto, a relação sociologia-história não deixa de colocar algu-
tos, as atitudes de um grupo ou de uma colectividade, pressupõe mas questões embaraçosas: se é verdade que a história social, his-
a prática da sondagem metódica: a demografia histórica dá-nos há tória dos homens que vivem em sociedade, é doravante a única que
vários decénios os melhores exemplos deste facto. vale a pena cultivar, tanto e mais ainda que a história dos indiví-
A determinação de uma amostra representativa de toda uma duos, como gostam de sublinhar tanto Pierre Vilar como P. Gou-
sociedade, de uma classe ou grupo, ou de uma unidade social geo- bert, pode estranhar-se que os contactos metodológicos entre his-
gráfica, cidade, conjunto rural, levanta problemas mais difíceis. tória e sociologia não sejam mais importantes. Será este facto
A dificuldade consiste aqui em determinar as escolhas em função resultado da predilecção que as actuais gerações de sociólogos mani-
de elementos considerados típicos ou particularmente característi- festam pelo inquérito directo por questionários, que os historiado-
cos. A validade do método é cada vez menos contestada, talvez por res não podem praticar, salvo rara excepção, dado o material de
razões exteriores ao ofício, como a experiência frequentemente repe- que dispõem? Talvez seja simplesmente o efeito do grande número
tida desde há alguns anos da extrapolação dos resultados nas elei- das teorias sociológicas: existem hoje em dia tantas quantos os soció-
ções presidenciais e nos referendos a partir de uma amostra muito logos, que são muito mais dependentes do clima social e intelectual,
restrita exactamente representativa de um corpo eleitoral de 28 ou até mesmo de uma certa praxis social, do que os historiadores.
milhões de pessoas. Certamente que a construção da amostra repre-
sentativa de um grupo como a nobreza da região de Champagne
ou os magistrados de Ruão no século xvni não é tarefa fácil; pres- 5. A HISTÓRIA QUANTITATIVA
supõe operação em dois tempos: o estabelecimento e o ensaio de
uma pré-amostra. Também aqui, o historiador, submerso por dema- A fórmula de história quantitativa está na moda. sendo reivin-
siados inventários por morte, contratos de casamento, doações e dicada por muitos bons espíritos como a única com futuro: um eco-
legados, por exemplo, não dispõe de melhor recurso do que utili- nomista da Faculdade de Direito de Paris, Jean Marczewski, expôs
zar este método, de difícil manejo, mas de «rendimento» seguro. os seus postulados numa Introduction à l'histoire quantitative, que
tomou foros de manifesto; a Faculdade de Letras de Caen possui
O AUXÍLIO DA LINGUÍSTICA um Centro de Investigação de História Quantitativa, que publicou
alguns estudos; o Centro de Investigação Histórica da sexta secção
A análise de conteúdo é a terceira aquisição dos historiadores que da École Pratique dês Hautes Eludes dedica-se hoje em dia quase
merece igualmente menção: ela é utilizada pelos sociólogos e psicó- unicamente a investigações deste tipo, não só no domínio económico
logos sociais, quando lhes cabe a tarefa de despojar os textos de e social, mas também em antropologia histórica. Os Estados Uni-
entrevistas não directivas, de analisar assuntos de imprensa, de dos possuem uma importante escola de historiadores economistas
cotejar testemunhos prolixos (correspondências, actas de debates que trabalham em direcções semelhantes, designadamente sobre os
parlamentares, de audiências judiciais, etc.). A análise temática cor- modelos do desenvolvimento económico americano no século XIX,
^A
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como é o caso dos trabalhos de Fogel.
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Todos os projectos e programas implicam a utilização dos meios gem profissional dos mancebos e das suas famílias. Mas sucede fre-
mais aperfeiçoados para processar a informação quantificável, ou quentemente um material histórico oferecer um grande número de
seja o computador — melhor dizendo, o cálculo operacional. Este variáveis quantificáveis e, ao mesmo tempo, um número limitado
diálogo do historiador e da máquina está ainda no começo, mas de conexões a evidenciar: o programador e o historiador podem
beneficia desde já de um prestígio excepcional, que se deve ao mesmo decerto trabalhar em conjunto para reagrupar e reduzir o número
tempo às facilidades de exploração do aparelho uma vez introduzi- destas variáveis, de modo que a utilização da máquina seja mais
dos os dados (carregar nalguns botões para obter numa fracção de «rendível»; mas é-lhes difícil multiplicar as relações susceptíveis de
segundo uma resposta que teria exigido dias de trabalho) e à possi- tornar o exercício mais interessante. É evidente que nem toda a docu-
bilidade potencial de recuperar uma massa documental prodigiosa, mentação quantificada —ou quantificável— se inscreve, ipso facto,
cujo tratamento manual, ou mesmo mecanográfico, ultrapassava nestes tipos de cálculo; por outro lado, pode parecer inútil introdu-
as forças de qualquer investigador individual, ou rodeado de cola- zir dados submetidos a variáveis demasiado simples para demons-
boradores. Com a utilização do computador reaparece a antiga exi- trar, por exemplo, que os mancebos filhos de cortadores ou padei-
gência de tratar toda a documentação de maneira exaustiva: deste ros são mais altos ou mais solidamente constituídos do que os filhos
modo, a história económica e social, a mais rica em material bruto de serventes. Em contrapartida, o rigor formal da programação
estatístico, teria acesso ao mesmo nível de exactidão que a mais tra- linha a linha e do tratamento dos diferentes parâmetros sujeita o
dicional.
historiador a uma existência de lógica sem equivalente e que basta-
Não existe ainda um «manual» que descreva regras de utiliza- ria para legitimar o entusiasmo actualmente manifestado pelos neó-
ção do computador próprias para os historiadores; segundo parece,
dois problemas retêm a atenção dos primeiros utilizadores. Há o fitos.
problema da programação, sempre difícil, dos dados que devem ser
fornecidos às memórias e à «biblioteca» (subprogramas de opera-
ções elementares) da máquina. Esta introdução de dados exige uma 6. HISTÓRIA TOTAL, HISTÓRIA DIALÉCTICA
extrema coerência lógica, visto que todo o funcionamento ulterior O discurso do historiador, enriquecido por problemáticas mais
depende deste ponto de partida. Alguns exemplos recentes, asso- amplas e, simultaneamente, por métodos adequados para as tratar,
ciando o computador à cartografia automática, permitem sublinhar aperfeiçoou-se assim nos últimos decénios. Os historiadores orien-
as dificuldades da operação: a identificação socioprofissional dos tam-se no sentido da investigação interdisciplinar, já não só por
mancebos recenseados para o serviço militar do século xix, à escala curiosidade e simpatia pelas ciências humanas vizinhas, mas pela
nacional, é impossível sem múltiplos controlos locais, atendendo a
que, por exemplo em França, os escrivães dos registos usam o termo própria necessidade do diálogo.
laboureur em dois ou três sentidos diferentes, ao norte e ao sul do
Loire, a leste e a oeste do Ródano, assim como a palavra voiturier A RESSURREIÇÃO INTEGRAL DO PASSADO
significa em certas regiões «condutor de cavalos», noutras «mari-
Desta renovação global, o melhor testemunho deve-se à pena do
nheiro de barcaça». Por maioria de razão, os dados estritamente
maior especialista em matéria de história diplomática: Pierre Renou-
antropológicos (cor do pêlo, malformações congénitas, traços do
vin, que, na introdução à sua colecção «Histoir.e dês relations inter-
rosto) pressupõem arranjos preliminares de extremo rigor, isto é,
um longo trabalho que contrasta com a grande rapidez das passa- nationales», em 1953, sublinha em que medida esta, de tipo inter-
gens (ou voltas) em si mesmas. Em segundo lugar, a utilização do nacional, se deve renovar estudando a evolução das forças sociais,
cálculo operacional coloca o problema geral do jogo combinatório: económicas, e até espirituais, que podem ter exercido uma influên-
o melhor rendimento das máquinas é obtido quando os dados pro- cia sobre os diplomatas, os governos e os povos, pelo menos na
medida em que esta evolução foi descrita e explicada pelos histo-
gramados comportam um pequeno número de variáveis que englo-
riadores. Tratando-se de saber qual a história a reconstituir para
bam combinações complexas que constituirão outras tantas inter-
explicar o presente, não é vão estabelecer um acordo de princípio.
rogações apresentadas à máquina. Assim, o inquérito antropológico
empreendido sobre listas de recrutamento joga com o tempo (da Res- Boa maneira, além disso, de explicar a ambição de história total
tauração ao final do Segundo Império), o espaço geográfico e a orí- afirmada, mais ou menos abertamente, por numerosos historiado-
res dos nossos dias, como se a célebre fórmula de Michelet, «a res-
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surreição integral do passado», reencontrasse as suas virtudes. a «modelizar» as suas relações com os outros modos de actividade
Importa, porém, aclarar estas definições e as suas implicações meto- em termos que delas dêem conta.
dológicas. Várias teses recentes proclamam nitidamente tais esco-
A definição da história dialéctica implica uma outra exigência
lhas: Lê Roy Ladurie, no início dos seus Paysans de Languedoc,
de método: a recusa, não só de privilegiar, mas também de isolar
Deyon em Amiens ou XVII""* siècle, Dreyfus em Mayence au
qualquer estrutura, excepto para fins de análise parcial, reconhe-
XVIlIèm* siècle. Num espaço geográfico e temporal bem delimi-
cida como tal e encarada numa óptica global. Um estudo de opi-
tado, todos propõem, embora em partes desiguais, uma reconsti-
nião ou de mentalidade não tem sentido se for efectuado sem refe-
tuição da vida económica, das estruturas sociais, das actividades cul-
rência às realidades representadas e sem estabelecer o nexo que
turais: «Economias, Sociedades, Civilização», em suma, o subtítulo
permite medir sublimações ou frustrações. O mesmo se pode dizer
em forma de programa da revista Annales. Consoante as suas pre-
de uma história das tensões sociais que se limitasse a descrever as
ferência e a riqueza da documentação, o lugar concedido a cada uma
emoções e movimentos sem indicar a relação entre motivações reco-
das faces do Críptico é maior ou menor. No entanto, a tripartição
nhecidas e condicionamentos dos grupos em presença, ou ainda de
não é mais do que uma justaposição: trata-se de história menos total
uma investigação de história económica unicamente preocupada com
do que totalizante, através da soma dos diferentes sectores, estuda-
fluxos, pólos de crescimento ou variações conjunturais reais, mas
dos de modo autónomo e sem que esteja sempre presente uma visão
ignorando o modo como estes movimentos foram entendidos, acei-
original. Trata-se, de certa maneira, de uma sólida renovação da
tes ou combatidos pelos agentes económicos. Verdades simples que
«história geral» tal como a escreviam os universitários do sécu-
enunciam, não postulados teóricos de uma dialéctica imutável e
lo XIX, rica em quadros e relatos mais ou menos coloridos e com-
pletos. transcendental, mas as regras elementares de uma problemática que
decide da fecundidade de uma pesquisa: no estado actual do movi-
mento das ideias historiográficas, a história dialéctica constitui, sem
DAR CONTA DE TODAS AS ESTRUTURAS E DAS SUAS RELAÇÕES sombra de dúvida, a maior exigência que se depara aos investiga-
dores interessados em definir um método apto a apreender o real
A história totalizante não é dialéctica. De facto, a história dia-
em toda a sua complexidade.
léctica — quer utilize quer não a gíria clássica das infra-estruturas
Neste sentido, a perspectiva global e dialéctica é um dever para
e das superestruturas — implica necessariamente o exame das relações
o historiador empenhado em definir o método mais fecundo e mais
que existem, na longa duração como na conjuntura curta, entre os
eficaz.
diferentes elementos que constituem a vida de uma sociedade. O his-
toriador explica o essencial e auxilia os especialistas das ciências
sociais quando demonstra os mecanismos que ligam, por exemplo,
o cultural e o económico: como fazer uma boa história económica 7. DEBATES METODOLÓGICOS
do Antigo Regime ignorando o peso psicológico da tributação
Esta exposição dos métodos e dos objectivos próprios da ciên-
senhorial sobre os camponeses? Como compreender a sede de ter-
cia histórica, no que respeita à cronologia historiográfica, eviden-
ras por parte da burguesia sem entender o atractivo, social e psico-
cia, de modo claro, o jogo de reacções e discussões construtivas que
lógico, do empréstimo usurário nos campos, que chegara a repre-
presidiu à elaboração destas diferentes definições. Basta dizer que
sentar 10% da renda fundiária propriamente dita? Entendida e
cultivada deste modo, a história dialéctica recusa todo o determi- os debates metodológicos não estão encerrados e que a «casa» dos
historiadores conta com inúmeras capelas dedicadas à defesa e ilus-
nismo que impusesse a predominância de um factor —designada-
tração de todas as fórmulas, tanto as mais ultrapassadas como as
mente o factor económico— sobre todos os outros, em todos os tem-
mais ambiciosas. Dois pontos parecem merecer atenção no
pos e em todos os meios. O «economismo» do século XX induziu
momento actual: por um lado, a facilidade com que coabitam, num
em erro mais de um investigador nos últimos trinta anos. Como
acentuava Lucien Febvre, a propósito do mercador do século xvi mesmo meio profissional e intelectual, concepções tão diferentes
francês, as estruturas religiosas tinham na sociedade dessa época — ou mesmo antagónicas— da história; por outro lado, a ampli-
uma importância infinitamente maior do que no nosso tempo. Este tude do debate aberto com as outras ciências humanas (nomeada-
mente com a sociologia e a antropologia) que contestam o discurso
facto obriga o historiador a situá-las em perspectivas específicas,
histórico.
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A COEXISTÊNCIA PACIFICA DAS ESCOLAS HISTÓRICAS adesão ao método positivista, utilizado do modo mais elementar:
qualquer historiador soviético especialista de história diplomática,
A coexistência pacífica das escolas históricas deve ser entendida a particularmente da Aliança Franco-Russa de 1890, seria a mais
em dois planos: por um lado, no âmbito de cada meio nacional, em bela ilustração deste facto.
que coabitam historiadores ligados a esta ou àquela fórmula, e, por No plano internacional é bem evidente que a mesma coexistên-
outro, no plano internacional. cia se manifesta ainda com mais nitidez: os congressos internacio-
Na América, a comunidade histórica reúne nos seus congressos nais de historiadores podem servir-nos de exemplo. Nestas vastas
anuais defensores de todas as obediências, devidamente autentifi- reuniões, milhares de personalidades reafirmam com vigor, nos rela-
cados: especialistas da história das ideias vinculados às normas da tórios e discussões, as suas posições de princípio e a validade dos
história filosófica à maneira de Benedetto Croce, assim como os ani- seus trabalhos. A importância dada nestas assembleias aos debates
madores da nova escola quantitativista, cujos promotores se apai- metodológicos é particularmente significativa: a jovem Associação
xonam pela modelização estritamente económica, chegando a cons- Internacional dos Historiadores Economistas deliberara, por oca-
truir o modelo do desenvolvimento económico dos Estados Unidos sião do seu primeiro congresso, criar nas suas sessões quinquenais
no século xix a partir da hipótese de que os caminhos-de-ferro uma secção de metodologia, que funcionou apenas uma vez no Con-
nunca tivessem sido inventados. Também em Itália se encontram gresso de Aix-en-Provence, em 1962, anunciando-se a sua «ressur-
lado a lado historiadores marxizantes, discípulos de António reição» em 1970, em Leninegrado. Este facto ilustra em grande
Gramsci, especialistas da economia pura, que se ocupam unicamente medida o sentido desta coexistência, acordo tácito de não elucida-
das produções de lã, de seda ou de açafrão, e os últimos herdeiros ção e de não confrontação, mais do que reconhecimento implícito
de Croce. Na Alemanha Ocidental, a tradição positivista continua de um ou outro método. Atitude perigosa, além disso, numa altura
a dominar a universidade, controlando as cátedras de História Geral, em que o discurso histórico é contestado por outras ciências hu-
enquanto as novas cátedras (e centros) de História Económica, cria- manas.
das após a segunda guerra mundial, se mostram tão dedicadas ao
estudo sectorial exclusivo quanto os seus homólogos da Alemanha
Oriental o repudiam. Sem dúvida que podem, aqui e além, surgir CONTESTAÇÕES DAS CIÊNCIAS VIZINHAS
fricções e concorrências de clientela: em certas universidades ale- Convém, na realidade, distinguir dois níveis em que a história
mãs ou helvéticas, a História Económica é relegada para as Facul- enquanto ciência se encontra posta em questão por ciências de objec-
dades de Ciências Sociais: nas universidades francesas, a História tivos imperialistas, capazes, em última instância, de lhe negar qual-
Económica e Social surge ainda, num ou noutro caso, como o quer finalidade específica.
parente pobre, bem como nas comissões do Centre National de Ia Um primeiro debate foi aberto pelos sociólogos e psicólogos
Recherche Scientifique. Porém, de um modo geral, a justaposição sociais, que pretendem dar conta de todo o devir social: não orga-
pacífica é a regra.
nizou a Associação dos Sociólogos de Língua Francesa, em Outu-
Nos países socialistas, onde a organização do ensino e da inves- bro de 1968, um congresso consagrado ao problema das mutações
tigação está submetida a uma orientação ideológica inspirada no sem convidar um único historiador? De facto, o debate pode cir-
marxismo-leninismo, essa coabitação é impensável. Prevalece aqui cunscrever-se em termos de variáveis e de correlações: os sociólo-
a concepção do materialismo histórico, com todas as implicações gos, seja em que domínio for, constróem os seus modelos explica-
na escolha dos temas de estudo, assim como dos métodos de inves- tivos com o auxílio de parâmetros bastante numerosos, cujo jogo
tigação. É no entanto impressionante verificar, tanto na leitura das é de observação mais ou menos fácil. Entre estes parâmetros incluem
obras publicadas como nos contactos pessoais, que este espartilho o tempo (com o mesmo estatuto das distâncias, os membros da famí-
ideológico não tem o rigor que alguns imaginam; a luta de classes, lia, o nível de vida medido em salários ou rendimentos, etc.). Sobre
em todos os tempos e lugares, não é o único objecto dos estudos as escalas de variação, o tempo figura portanto como um simples
realizados; é sobretudo curioso observar em muitas obras uma dico- dado, idêntico aos outros — espaço de tempo regularmente delimi-
tomia muito significativa entre os postulados constantemente rea- tado (do estilo t 0 , t,, t 2 ), evidentemente não reversível, mas de
firmados, pelo menos em introduções repletas de citações «adequa- modo algum privilegiado. Pelo contrário, para o historiador, o
das», e a prática do relato histórico, que revela uma inesperada tempo é não só irreversível, mas também criador de mutações, ou
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de continuidades, que condicionam o devir dos grupos e das socie- sociedades do passado, como o reclamava Lucien Febvre há um
dades globais. É bem verdade que, outrora, os historiadores (parti- quarto de século. Foucault, na sua Archéologie, acaba por afirmar
cularmente os especialistas de política) foram demasiado longe neste a inutilidade do discurso histórico, pelo menos tal como o conhece.
sentido quando sustentavam que o êxito justifica a política. Este res- Os historiadores não deram ainda nenhuma resposta a qualquer
quício de uma ideologia teológica foi entretanto abandonado. O que destas construções, o que talvez testemunhe uma boa consciência
se mantém aqui em causa — e estabelece a irredutível oposição entre abusiva e constitua uma recusa dessa abertura interdisciplinar para
historiadores e sociólogos— é o poder criador do devir humano, a qual se voltam, no entanto, todas as esperanças.
pelo menos nas nossas sociedades ocidentais, sempre empenhadas R. Mandrou
em ligar o presente ao passado, em justificar o presente pelo pas-
sado. Quem se tenha dedicado à história contemporânea de socie-
dades aparentemente arrastadas numa aceleração sem fim de BIBLIOGRAFIA
contínuas mutações técnicas e científicas só pode reconhecer a per- R. ARON, Dimensions de Ia conscience historique, Paris, 1961 / G. BARRA
tinência do ponto de vista histórico. CLOUGH, History in a Changing World, Londres, 1957 / H. BERR, La synthèse en
Mais importante ainda é a contestação estruturalista, pelo menos histoire. Paris, 1911 / M. BLOCH, Métier d'historien, Paris, 1946 (trad. port. na
sob duas formas, a de Claude Lévi-Strauss e a de Michel Foucault. col. «Saber», de Publicações Europa-América, sob o título Introdução à História) l
l E. COLLINGWOOD, The Idea of History, Londres, 1932 (trad. port. na Editorial
O primeiro, desenvolvendo com a maior amplidão os resultados das Presença) / X""" Congrès International dês Sciences historiques (Roma. 1955),
suas pesquisas sul-americanas, redifine nas suas Myíhologies, melhor Paris-Roma, 1961 / B. CROCE, Théorie et histoire de l'historiographie (Teoria e
ainda do que nos seus primeiros livros, um dado humano funda- storia delia storiografia, 1917), trad. de A. Dufour, Genebra, 1968 / L. FEBVRE,
mental, em face do qual a história só tem sentido como leitura do Combats pour l'histoire, Paris, 1954 (trad. port. na «Biblioteca de Textos Univer-
acidental. A demonstração, em jeito de autojustificação, é dada nas sitários», da Editorial Presença); Pour une histoire à part entière, Paris, 1962 /
últimas páginas da «segunda mitológica», Du miei aux cendres, onde M. FOUCAULT, L'Archéologie du savoir, Paris, 1968 / P. GEYL, Debates with His-
torians, Haia, 1965 / L. E. HALKIN, Iniciation à Ia critique historique, Paris, 1953
Lévi-Strauss afirma placidamente que a única diferença que separa
/ L. HALPHEN, Introduction à l'histoire, Paris, 1946 (trad. port. na Livraria Alme-
os Nambicuaras dos Gregos é que, inserindo-se num fundo comum, dina) / «L'Histoire aujourd'hui», in Rev. enseignementsup., número especial, Paris,
os Gregos viveram um famoso milagre, enquanto os Nambicuaras 1969 / L'Histoire sociale, Sources et méthodes, colóquio da École normale supé-
permaneceram no estado anterior. Mas, a seus olhos, a única expli- rieure de Saint-Cloud, 15-16 de Maio de 1965, Paris, 1967 / C. V. LANGLOIS e
cação para o milagre grego é o acidente — ou a série acumulada de C. SEIGNOBOS, Introduction aux études historiques, Paris, 1897 / J. MARCZEWSKI,
diminutos acidentes, fruto do acaso — que compete ao historiador: Introduction à 1'histoire quantitative, Paris, 1965 / H. I. MARROU, De Ia connais-
«A análise estrutural concede [à história] um lugar de primeira sance historique. Paris, 1956 (trad. port. na Editorial Aster) / F. MEINECKE, Die
Entstehung dês historismus, Berlim, 1936 / C. SAMARAN (dir.), L'Histoire et sés
plana: aquele que de direito cabe à contingência irredutível... Para méthodes, Encyclopédie de Ia Plêiade, Paris, 1961 / J. P. SARTRE, Critique de Ia
ser viável, uma investigação inteiramente virada para as estruturas raison dialectique, Paris, 1962 / A. TOYNBEE, A Study of History, 12 vols., Lon-
começa por se inclinar perante a potência e a inanidade do aconte- dres, 1934-61 (trad. em port. de uma condensação desta obra por D. C. Somervell,
cimento.» Por outras palavras, o domínio do historiador é o desse na Editora Ulisseia: Um Estudo de História, com tradução e prefácio de F. Vieira
acaso graças ao qual nada se repete na evolução da humanidade, de Almeida).
o que reconduz o historiador às definições positivistas do sé-
culo XIX.
Mais subtil, sem dúvida, é a posição de Foucault, enunciada em
Lês mots et lês choses e confirmada em L'ArchéoIogie du savoir.
Também ele filósofo, Foucault empenha-se em decifrar os discur-
sos das ciências humanas e reduz a pó a história das ciências, a eco-
nomia política e a biologia, tal como eram tradicionalmente descri-
tas; a partir daqui põe em questão todo o discurso histórico na
medida em que este não é capaz de reconstituir a linguagem de uma
época —mormente do século xvui — , censurando em certo sentido
os historiadores por não terem reconstituído o universo mental das
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II
HISTÓRIA DA HISTÓRIA
A historiografia é o nome, um pouco pesado, mas comummente
adoptado, que designa em francês uma espécie de história em
segundo grau: a história do modo de elaborar e de escrever a histó-
ria, que se denomia noutras línguas Geschichtswissenschaft, Ges-
chichtsschreibung, histórica! writing.
A palavra e a coisa podem padecer das mesmas ambiguidades
que o termo e a noção de história envolvem, mesmo se admitirmos,
para dissipar o maior equívoco, que remetem ambas para o estudo
ou o conhecimento do passado das sociedades humanas, e não para
o próprio passado, objecto deste conhecimento.
Há, de facto, vários modos de abordar a história e vários níveis
onde situá-la. Podemos, sem dúvida, começar por afastar a esco-
lha mais superficial, a de uma mais ou menos «pequena» história,
essencialmente anedótica e fútil, cujo interesse não vai além do diver-
timento e cujo exame não pode senão informar (aliás utilmente)
sobre os gostos, as curiosidades, as motivações dos seus leitores,
auditores ou espectadores (e telespectadores). Não deixa de ser sig-
nificativo que este tipo de história absorva o grosso do consumo
numa época em que a «escola paralela» e os mass media, comple-
tando, substituindo ou submergindo o ensino e a palavra escrita,
lhe proporcionam vectores e canais de difusão de alcance mais vasto,
de exigências reduzidas e de eficácia provavelmente acrescida.
Todavia, depois de levantada esta primeira hipoteca, é necessá-
rio fazer uma escolha decisiva. A história é, por um lado, um género
literário e a historiografia pode ter de tratá-la como tal, conforme
sugere a definição de Littré: «história literária dos livros de histó-
ria.» História de autores e de livros, a história da história não é,
neste sentido, diferente da das outras produções do espírito; ela des-
creve a evolução dos temas e das formas, detecta influências e filia-
ções, contribui para elucidar os segredos da criação artística e para

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r reconstituir paisagens e modelos culturais. Nenhuma destas contri- mais exigente, a sua forma influenciou ainda, no século xi, a obra
buições deve ser ignorada. Porém, entendida desta forma, a histo- considerável e de espírito novo, de Sima Guang. No século seguinte,
riografia não pode esperar dar conta desse processo cumulativo, com Yuan Shu, o velho quadro dos anais seria, no entanto, posto
feito de aquisições, de eliminações e de correcções de percurso, ou em causa, em benefício de um ordenamento mais lógico das maté-
seja, de enriquecimentos, sem o qual a história não poderia aspirar rias, mas o movimento terminou repentinamente, e, quando a cul-
ao estatuto de ciência, ainda que sob o aspecto, sob certa perspec- tura chinesa saiu, no século xvn e sobretudo no século xvm, de um
tiva modesto, de ciência humana. Não há nenhuma razão para que longo período de esterilidade e estagnação, a história sofrera um
ela possa detectar, de Tácito a Michelet, por exemplo, o mais nítido recuo no ensino, nos exames e mesmo no movimento inte-
pequeno progresso — tal como a história das doutrinas económi- lectual, dominado, durante o «renascimento» Qianlong (1736-1796),
cas não permite concluir da superioridade do génio de Keynes sobre pela crítica filológica dos textos canónicos do confucionismo. Zhang
o de Ricardo. O mesmo não acontece com a história da análise eco- Xuecheng (1738-1801) tentou restituir-lhe o seu lugar e renová-la,
nómica, que permite, ela sim, medir as sucessivas conquistas do pouco antes de a «abertura» fomentada pelos Ocidentais quebrar
saber. É neste segundo sentido, e não como galeria de historiado- o isolamento do Império do Meio e integrá-lo, laboriosamente, no
res, que pode justificar-se uma visão global da historiografia, menos mundo.
atenta às proezas singulares do que às etapas da inteligência. Apesar de uma evolução técnica que dá uma impressão de ina-
cabamento, nem por isso a história parece ter deixado de respon-
der, para os Chineses, a uma necessidade e a inclinações que esta-
1. A HISTÓRIA CLÁSSICA mos longe de encontrar nos Indianos. A aclimatação do budismo
na China, foi em certo sentido, a sua historicização. Contudo, tam-
Estamos habituados a procurar as etapas da inteligência quase bém a índia teve os seus anais, mas pouco mais do que isso; o pró-
exclusivamente nos limites da nossa área cultural, mediterrânica e prio sentido da história era limitado ou condicionado pela recusa
depois «ocidental». Sem dúvida que, nesta matéria, este preconceito do tempo, ou, pelo menos, da cronologia, pela força dos mitos cícli-
tem a sua justificação. Não que o desígnio de ajudar a memória cos, culminando na concepção de um eterno presente, no gosto exu-
colectiva a conservar a recordação —uma certa recordação— do berante pelo maravilhoso.
passado seja específico da tradição ocidental; mas considera-se que O universo do Islame surge certamente como mais favorável a
nenhuma outra o conduziu a um desenvolvimento semelhante. preocupações que, aliás, não eram alheias ao seu livro sagrado: o
Corão é, numa das suas múltiplas facetas, um livro de história, cen-
trando as narrativas consagradas aos povos semitas no acolhimento
FORA DA EUROPA: TRADIÇÕES CRISTALIZADAS
OU EVOLUÇÕES BLOQUEADAS
dado por estes últimos aos profetas, e a recolha das tradições rela-
tivas a Maomet —os hadiis— vem reforçar esta orientação. Toda-
Na China fixou-se desde muito cedo, sob a forma de anais, via, a conquista e a fundação do Império Árabe e o encontro e a
remontando alguns ao século viu a. C., um estilo de registo muito assimilação parcial das velhas civilizações orientais não conduzem
preciso, mas muito seco, dos factos em bruto, consignados na sua a uma superação do nível da narração meticulosa, que assenta mais
estrita sucessão, e de que a história jamais se libertará inteiramente. na acumulação do que na crítica dos testemunhos em que se situam
As compilações consagradas a cada uma das dinastias imperiais, dos os historiadores da época abássida, como Tabari (falecido em 923).
primeiros Han (séculos ii-l) aos Manchus (1644-1911), apresentam A elaboração de repertórios, dicionários, enciclopédias cujo inte-
o mesmo carácter oficial, mais documental do que elaborado; se a resse documental, nomeadamente geográfico, acrescido pelo desejo
sua continuidade lhes confere evidentemente um interesse excepcio- de universalismo, é mais claro do que a originalidade, prolonga-se
nal, também é verdade que não revelam qualquer progresso, e, inclu- nos séculos seguintes. Génio solitário no declínio do classicismo
sivamente, uma das raras personagens que nelas se destaca é a do árabe, destaca-se evidentemente a figura de Ibne Khaldún (1332-
autor que lhes forneceu o seu modelo, Sima Qian (aprox. 145-87 1406), sociólogo e filósofo da história, tanto ou mais que historia-
a. C.). O regime estatal dos T'ang (618-907) fez da sua redacão uma dor, cujo pensamento, baseado na análise dos clãs, de etnias e dos
tarefa especificamente burocrática e, apesar do aparecimento e afir- estados, na dos géneros de vida que asseguram ou enfraquecem a
mação, sob os Song (960-1279), de uma tendência erudita e crítica sua coesão, no exame da hierarquia, ligada ao sentimento religioso,
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vai muito além da tradição islâmica. Esta, em última análise, tam- atribuir-lhe uma outra paternidade, a da investigação erudita, com-
bém não conduz a uma concepção nem a uma prática da história panheira e auxiliar da história. Compilou tábuas cronológicas, cons-
próximas das que conhecemos. A história arábico-muçulmana, truídas a partir das listas das sacerdotisas de Hera no Templo de
escreve André Miquel, permanece «tão poderosamente centrada no Argos (que Hípias de Élis viria a substituir na segunda metade do
fenómeno da revelação corânica, da sua aventura ao longo dos sécu- século v a. C. pelas dos campeões das corridas quadrienais de Olím-
los e dos inumeráveis problemas que ela coloca, que parece abrir- pia), e monografias de cidades gregas e de povos bárbaros.
-se hoje com certa dificuldade, ou mesmo corn reticências, a um tipo Finalmente, Tucídides, vinte a vinte e cinco anos mais novo do
de estudos e de métodos históricos inspirado no Ocidente». que Heródoto e já tão diferente, porque manifestamente mais senhor
de um método crítico e mais consciente de uma exigência de inteli-
NASCIMENTO DA TRADIÇÃO OCIDENTAL gibilidade, oferece na sua história da guerra do Peloponeso a pri-
meira obra-prima de uma história «tornada adulta» em menos de
O Ocidente foi antes de tudo, como sabemos, a Grécia, o «mila- uma geração, segundo as palavras de H. I. Marrou.
gre grego» — do qual é justamente tarefa de historiador reduzir, Estão doravante.fixados os traços de uma historiografia «clás-
tanto quanto possível, a zona de inexplicado. sica», que vai permanecer, tomar feição e valor de modelo, com
As mais remotas origens conhecidas remontam a Hecateu de algumas fraquezas ou compromissos que as exigências mais moder-
Mileto (nascido cerca de 550 a. C.) e aos «mitógrafos», autores de nas tornaram sensíveis:
genealogias que pretendiam inserir no tempo dos homens os actos
tradicionalmente atribuídos a deuses e heróis. Antes deles, bem A insistência e a amplificação retóricas, acentuadas pelo gosto
entendido, e antes dos Gregos houve fontes escritas (para só falar dos «discursos» fabricados e atribuídos aos principais acto-
delas, em virtude da convenção que marca o começo da história res (onde também podemos ver um processo, «ingénuo», para
como o aparecimento da escrita): tabuinhas da Suméria ou da Capa- analisar um carácter, uma situação, uma decisão; ainda hoje
dócia, arquivos de Lagash, de Larsa, de Mari, de Ugarit, de Khat- existe este tipo de método, menos abertamente artificial, mas
tushash, de Tell el-Amarna, de Nínive; mas nenhum vestígio de uma de uma «psicologia» frequentemente tão aproximativa);
obra histórica elaborada. O pragmatismo, demasiado confiante nas virtudes educativas ou
Em seguida vem Heródoto, nascido por volta de 485 a. C., qua- exemplares da história, porque pressupõe facilmente a possi-
lificado de «pai da história» por Cícero, que escreve no seu pró- bilidade de repetição dos factos (donde, ern Tucídides, este
logo: «Eis a exposição do inquérito empreendido por Heródoto de programa cujo segundo artigo é evidentemente mais frágil do
Halicarnasso para impedir que as acções realizadas pelos homens que o primeiro: «ver claro nos acontecimentos passados e nos
se apaguem com o tempo [...]» Ele manifesta assim a vontade, fonte que, de futuro, em virtude do seu carácter humano, apresen-
do espírito histórico, de preservar o passado do naufrágio no :empo, tarão semelhanças ou analogias»);
mas, desta vez, o passado dos homens; e o termo «inquérito •>, ou Uma visão demasiado estreita do campo da história, assente numa
«pesquisa», tradução da palavra, ainda vaga, da qual provem a de selecção dos «objectos» de estudo segundo critérios de con-
«história», liga-se a uma raiz indo-europeia que implica as ideias veniência ou de dignidade, eles próprios inspirados pela escala
de «ver» e de «saber» e que, até Políbio (falecido cerca de 125-120 dos valores dominantes (visão que será ratificada, em 1694,
a. C.), conservará este sentido mal diferenciado. A própria obra, pelo primeiro Dictionnaire da Academia Francesa, que defi-
que começou talvez como um inquérito geográfico (questão que os nia a história como «o relato das coisas dignas de memória»;
especialistas discutem), pode ter sido igualmente devida ao gosto a questão é saber quais).
e à arte do contador, mas é uma obra de historiador, ainda que a
crítica seja ainda muito incipiente; ela articula-se em torno de um
ORIENTAÇÕES DA HISTÓRIA E DA ERUDIÇÃO ANTIGAS
grande problema, o das relações e do conflito entre os Gregos e os
Bárbaros, e procura, a seu modo, para além do relato, uma coe- Da antiguidade greco-latina é necessário reter a obra de Políbio,
rência dos acontecimentos. alheia à tradição retórica solidamente implantada desde o século iv,
Helânico de Mitilene, nascido por volta de 479 a. C., é menos e o triunfo de Isócrates e da sua escola. Mais ainda do que a gran-
conhecido do que Heródoto e Tucídides. No entanto, podemos deza do seu projecto (a explicação do imperialismo romano e dos
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seus êxitos), o método utilizado por Políbio é merecedor de inte- externos, adeptos de outras crenças, heréticos ou cismáticos. Daqui
resse: combinação do relato e da teoria aristotélica para um estudo resultou um enorme trabalho de apologética e de controvérsia —de
das causas da transformação e da sucessão dos regimes políticos, que o bispo Eusébio de Cesareia (falecido em 338) fez uma síntese
procura das leis endógenas da história em lugar do recurso aos mitos, provisória continuada por S. Jerónimo (falecido em 420)—, um
à Fortuna ou a um princípio superior.
esforço de tradução e de exegese a que S. Jerónimo, através da sua
Acrescente-se, para lá dos estudos então considerados (e durante Vulgata latina da Bíblia, também ligou o seu nome, e uma tenta-
muito tempo) como propriamente históricos, o desenvolvimento da tiva de elucidação global do sentido da história, uma filosofia e,
erudição. Esta beneficia, a partir do século ni a. C., do evergetismo mais precisamente, uma teologia da história, a de Santo Agostinho
das monarquias helenísticas e da criação, em Alexandria, em Pér- (354-430) e da sua Cidade de Deus. Deste modo, não sem riscos e
gamo, nomeadamente graças aos seus museus e às suas bibliotecas, confusão, a entrada do cristianismo no mundo da sabedoria antiga
de centros de documentação, de trocas intelectuais, de ensino, onde tendia a convencer mais profundamente os homens da dimensão his-
surge uma actividade verdadeiramente profissional de sábios e de tórica da sua condição de homens, vivendo no tempo.
investigadores, como por exemplo os escoliastas: orientada talvez
em demasia para a crítica dos textos (donde uma ligação e uma
dependência da história relativamente à filologia), ela é, no entanto, TEMAS E MODELOS DA HISTÓRIA MEDIEVAL
alargada e enriquecida, nesta época de universalismo, pelo contri- A prática historiográfica do Ocidente medieval reduz-se inicial-
buto das obras e das tradições do Egipto e do Oriente. Sob o Impé- mente à secura dos anais monásticos e reais ou aos estereótipos das
rio Romano, este trabalho continua, tornando-se progressivamente vidas de santos (reveladores, de resto, de um interessante conteúdo
mais pobre e voltando-se cada vez mais para a compilação pura- cultural). Quando retoma vigor, no século xil, parece reatar o fio
mente livresca; a crise do século m vai ainda reduzi-lo no mundo da tradição cristã do Baixo Império. Vincent de Beauvais, Otto de
grego e detê-lo no Ocidente latino, apesar de um breve surto na Freising e outros compiladores constróem as suas histórias univer-
segunda metade do século iv, sem dúvida ligado à reacção pagã sais, iluminadas pela revelação, desde a Criação até à época em que
esboçada no tempo de Juliano.
vivem, libertando-se por vezes da periodização das sucessivas ida-
Como desapareciam igualmente as condições da actividade lite- des da humanidade, clássica desde Santo Agostinho, e procurando
rária — a língua, o público, todo o seu suporte social e cultural—, dar lugar às razões terrestres, ao lado dos desígnios providenciais.
o fim do mundo antigo parecia, no imediato, arrastar a historio- No entanto, esta fidelidade a um universalismo pela história e
grafia na sua queda. Contudo, a mais longo prazo, a crise que a
afectava favoreceu a sua implantação. pela teologia combina-se com preocupações menos ambiciosas, mas
mais modernas. Alguns particularismos, que não ousamos intitu-
Já a filosofia estóica, num mundo desmesuradamente alargado lar nacionais, despontam sob a trama superficialmente homogénea
pela explosão helenística e depois pela unificação romana, prepa-
da história do género humano: Paulo Diácono escreve a história dos
rara os espíritos para a ideia de um universo organizado, movido
Lombardos; toda uma corrente «normanda» da historiografia se
por uma razão divina, e para a de um género humano fundamen-
exprime com Orderic Vital, Dudon de Saint-Quentin e Geoffroi de
talmente uno, ignorando as fronteiras que os Gregos da época clás-
sica erguiam entre si mesmos e os Bárbaros. Monmouth, cuja Historia regum Britanniae corresponde, deste
ponto de vista, ao De gestis regum Anglorum, de Guilherme de Mal-
Se contribuiu para extinguir certas formas, já decadentes, da cul-
mesbury; Eudes de Deuil celebra o papel dos franceses na cruzada
tura pagã, a implantação do cristianismo foi a vitória de uma reli-
de Luís VIL Surge sobretudo uma espécie de fragmentação desse
gião histórica cujo dogma assentava numa sequência de aconteci-
modelo global, e herdado, que é a história universal, em modelos
mentos bem definidos, ordenada em função da data essencial da
ou submodelos que se ligam de modo mais preciso e mais realista
Encarnação. Integrando na sua própria história a história, anun-
aos diversos pólos da sociedade medieval; é possível assim distin-
ciadora e preparadora, do povo judeu, a nova religião iria também
guir uma história monástica ou episcopal desde o século vi, com
situá-la no seio de todo o território envolvente de Israel. Cumpria-
a Historia Francorum, de Gregório de Tours (essencialmente cen-
-Ihe estabelecer toda uma série de correspondências entre a história
trada, apesar do seu título, no cerco da Basílica de São Martinho),
do povo eleito e a dos gentios e, ao mesmo tempo, demonstrar a
ou ainda, no século x, os Annales, de Flodoard de Reims; encon-
verdade da sua e defendê-la contra os seus adversários internos ou
tramos também uma história eclesiástica, mas que evolui para a his-
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tória urbana, com o universitário parisiense Pierre lê Mangeur na. fcsta mantê-los-á afastados ainda durante muito tempo, história
(século XII), ou, sobretudo, com as obras italianas e alemãs, como c erudição continuam a seguir caminhos separados.
a de Adão de Brema; e, finalmente, uma história monárquica, pri- O humanismo é um poderoso movimento erudito. As grandes
meiro biográfica (o seu protótipo é a Vita Karoli, de Eginhardo, correntes do espírito e da sensibilidade que o veiculam (não sem aci-
falecido em 840), depois dinástica: a que edificaram, por exemplo, dentes de percurso e incompreensões mútuas), o Renascimento, a
os monges de Fleury-sur-Loire e depois os de Saint-Denis à glória Reforma, fornecem-lhe motivações e meios diversos. Um contacto
dos Capetos e cuja tradução em língua vulgar (Grandes Chroniques mais estreito e mais familiar com a cultura antiga dá à filologia uma
deFrance, 1274) testemunhará o valor de propaganda. A literatura nova vitalidade e favorece o estudo dos textos, bem como o de outras
histórica em língua vulgar responde em geral à curiosidade de um categorias de documentos (moedas, inscrições), enquanto o domí-
público para o qual ela toma, de certo modo, o lugar das canções nio grego, redescoberto, se acrescenta ao tesouro das fontes latinas.
de gesta; ela exprime igualmente, consoante os casos, uma vontade Tudo parte de Itália, e, para citar um só nome (em virtude da impos-
de justificação, patente no relato que Villehardouin faz da quarta sibilidade de seguirmos aqui todos estes desenvolvimentos do conhe-
cruzada, no início do século xin, um desejo de idealização da pes- cimento, que só valerão, aliás, para a história, como instrumento),
soa real, ou mesmo uma tomada de posição política: Froissarí, no será o de Lorenzo Valia (1407-57) — ao qual os Franceses não dei-
século xiv, e depois os cronistas do século XV estão ao serviço de xarão de opor, notando o desfasamento cronológico, o de Guil-
um príncipe, de uma facção, ou de urna causa. laume Budé (1467-1540). Logo a seguir, a crise religiosa, multipli-
A expressão máxima deste movimento pode, sem dúvida, ser pro- cando as polémicas, relança a exegese e reconduz o interesse para
curada na personalização da história universal, conduzida, de certa o estabelecimento dos Annales ecclesiastià, título da recolha cató-
maneira, a uma perspectiva autobiográfica, e anunciando o indivi- lica que o napolitano Baronius (1538-1607) opõe às Centúrias de
dualismo do Renascimento, tal como a encontramos, já no século Magdeburgo, compiladas pelo ilírio Vlacic (1520-75). Condições
XII, em Guibert de Nogent —no quadro inesperado de uma histó- ainda mais gerais, como o enriquecimento relativo da Europa, asse-
ria da cruzada: Gesta Dei per Francos— ou em Abelardo. guram também ao trabalho intelectual meios e uma fecundidade
O que falta à historiografia medieva! não é, pois, segundo parece, acrescidos.
a novidade dos projectos ou da inspiração. Ela podia, aliás, apoiar- Todavia, a história beneficia pouco ou mal deste processo.
-se num meio sociocultural em que o tempo assumia uma impor- A principal aquisição deste período é o facto de ela passar a expri-
tância fundamental, sob formas diversas: «tempo da Igreja ou mir-se correntemente em língua viva: também aqui, exceptuando
tempo do mercador», segundo uma distinção de Jacques Lê Goff; o caso dos memorialistas, de Villehardouin a Commynes (1447-
tempo em que se inscrevem, como sinais e testemunhos de um acon- 1511), os Italianos dão o exemplo com os grandes florentinos do
tecimento datado, os actos escritos —testamentos, cartas de fun- final do Quattrocento e do início do século XVI Maquiavel e Guic-
dação, de doação, de franquia, contratos de companhia, etc.—, que ciardini (mais «politistas» do que historiadores, a vários títulos).
constituem a base das relações, dos direitos e dos poderes. Mas ela Mas, para os historiadores humanistas, esta nova acessibilidade é
encontrou outros obstáculos. Apesar do trabaiho empreendido, corn apenas a necessária contrapartida de um pragmatismo de moralis-
parcos meios, sobre a Bíblia de S. Jerónimo, desde o Renascimento tas, de servidores dos Estados e dos príncipes, e até de propagan-
carolíngio, e depois nos séculos XII e XIII, ou sobre Aristóteles distas. O seu utilitarismo, articulado com uma concepção funda-
— através das suas versões árabe ou latina —, na época cie S. Tomás, mentalmente retórica do discurso, faz deles, como de resto
são as insuficiências e a estagnação dos métodos críticos que blo- desejavam, bons conservadores ou restauradores da tradição antiga,
queiam os progressos da história. É o esforço dos humanistas, neste mas assinala simultaneamente os limites do seu contributo e a ambi-
domínio da erudição, que lhe dará um novo ponto de partida. guidade do seu aspecto inovador. Mostram-se, por outro lado,
pouco atentos às mutações do mundo em que vivem, à «revolução
HISTÓRIA, HUMANISMO E AS LETRAS económica», ao descobrimento das novas terras e das civilizações
longínquas, com aigumas excepções, como a de Jean Bodin (1530-
Este, porém, far-se-á esperar. A consolidação dos métodos crí- 96, que é, no entanto, e acima de tudo, um teórico). Oratória,
ticos e o desenvolvimento das «ciências auxiliares» são uma condi- heróica como outrora, e aliás explicitamente «passadista», a histó-
ção necessária, mas não suficiente, para a transformação da histó- ria feita por estes homens carece tanto de horizonte como de método,
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apesar de aparências, por vezes sedutoras, de liberdade de espírito ESTABELECIMENTO DAS BASES CIENTÍFICAS DA HISTÓRIA
perante modelos obsessivos e juízos comummente aceites; Etienne
Pasquier (1529-1615) e Lancelot de Ia Popelinière (1540-1608) per- A maioria das técnicas eruditas definem-se entre o final do Quat-
tencem ao pequeno número dos que pretenderam libertar-se desses trocento e a época da Revolução Francesa, ou, se preferirmos, entre
condicionalismos. a invenção da imprensa e a da máquina de vapor. A arqueologia,
Na realidade, o bloqueio permaneceu. O balanço da época «clás- a numismática, a sigilografia, no que diz respeito aos testemunhos
sica», no sentido escolar do termo, é sem dúvida menos positivo «figurados», a filologia, a epigrafia, a papirologia, a paleografia,
para a história do que o do período precedente. A história não per- a diplomática, para os testemunhos escritos, partilham, juntamente
tence então ao domínio activo da vida do espírito: a ciência que se com outros, o campo das ciências auxiliares, que em breve se tor-
edifica através dos sistemas de Descartes e Newton procura verda- nam tradicionais. Práticas artesanais, com origem na curiosidade
des eternas, universais, objectivas, e o seu prestígio desvaloriza, por de amadores esclarecidos, depressa adquirem o estatuto do traba-
comparação, esta disciplina do contingente e do conjecturai. Pas- lho profissional ou mesmo colectivo, regular, organizado, codifi-
cal considera-a inapta a apoiar-se no raciocínio e na experiência, cado e institucionalizado. A actividade das congregações religiosas
votada à aplicação do princípio de autoridade, logo puramente — acima de todas, a dos Beneditinos de São Mauro— e a fundação
livresca, simples objecto de memória, incapaz de progresso. O mo- das academias fornecem-lhes os quadros. Os nomes de Leibniz e de
delo cultural do honnête homme e o modelo escolar propagado pelos L. A. Muratori traduzem a importância que neste processo tiveram
colégios jesuítas acrescentam a estas reticências os seus efeitos empo- alguns dos grandes espíritos do tempo. O nome de dom Mabillon
brecedores. Nunca, sem dúvida, a história foi tão estritamente redu- está associado a uma das suas aquisições mais famosas, ou seja, a
zida ao estatuto de género literário, definido pelo decoro, pela elo- formulação, do De ré diplomática (1681), dos critérios que permi-
quência, pela arte da composição, e por isso mesmo capaz de tem ajuizar da autenticidade de um acto e estabelecer a verdade pela
«agradar», e também de «instruir», enquanto «lição de moral e de concordância de fontes independentes.
política», como insiste o abade de Mably ainda em 1778. Esta perda Na Alemanha, onde a Reforma limitou o papel das ordens
de substância vai até à negação da duração: para o próprio Fonte- monásticas, são as academias, e depois as universidades, que reali-
nelle, esse campeão da razão crítica, «alguém que tivesse suficiente zam a maior parte deste trabalho e lhe dão, a partir do início do
espírito, considerando simplesmente a natureza humana, adivinharia século xix, um desenvolvimento mais amplo e mais sistemático.
toda a história [...]». Combatendo sob outras cores, Bossuet não A investigação erudita estende-se aqui a novos sectores, como a gra-
mostra uma maior confiança no tempo: a mudança, a «variação», mática comparada, a filologia germânica, ou adquire novas dimen-
é, a seus olhos, sinal de erro e marca do mal; a teologia da história sões, como, por exemplo, na história das religiões. Vastas colecções
já não serve com ele senão para encerrar o curso da aventura de documentos são iniciadas: Monumento Germaniae Histórica,
humana num sistema caricatural em que a Providência, regulando Regesta imperiais e pontificais, Corpus de inscrições... Mas o carác-
as revoluções dos impérios, desce ao papel de encenadora. ter mais moderno deste movimento científico é sem dúvida a sua
integração na própria história. Já Berthold Georg Niebuhr (1776-
1831) e, sobretudo, Leopold Von Ranke (1795-1866) construíram
2. A HISTÓRIA, CIÊNCIA HUMANA a sua obra histórica sobre a exploração mais ou menos metódica
das fontes coligidas e criticadas pela erudição; Theodor Mommsen
Decepcionantes para a «grande história», os séculos xvn e xvni (1817-1903) realiza a síntese destes dois aspectos anteriormente dis-
preparam e anunciam, no entanto, a mutação decisiva do ofício de tintos do ofício de historiador.
historiador, assegurando as suas bases através do desenvolvimento Esta convergência contribui, na época, para instaurar a superio-
da erudição. Sob este ângulo, a impressão de inércia ou de esterili- ridade e o prestígio da «ciência alemã». As outras escolas nacio-
dade proporcionada pela historiografia da época clássica cede o nais, mais nitidamente diferenciadas do que no tempo do huma-
lugar à de um progresso contínuo, ligando a obra dos humanistas nismo ou mesmo do século das luzes, não atingiram ainda este
à dos investigadores do século xix. Deste modo, constrói-se um estádio. Em França, o desenvolvimento das ciências auxiliares e a
saber, confirma-se e aperfeiçoa-se um método a explorar por uma elaboração dos instrumentos do trabalho histórico, relativamente
história que se torna, se não científica, pelo menos douta. avançados no século anterior, seguem as mesmas vias que além-

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-Reno, mas sem alcançar a mesma amplidão, apesar do impulso and fali of lhe Roman Empire (1776-88), obra alicerçada no con-
dado por ministros como Guizot e Victor Duruy e também de êxi- curso dos «antiquários» e dos filólogos e construída em torno do
tos estrondosos neste ou naquele domínio, como, por exemplo, a problema da decadência romana, que Gibbon apresenta como «o
egiptologia. Em Inglaterra, o atraso mantém-se durante bastante triunfo da religião e da barbárie», o que, bem entendido, faz dela
tempo mais acentuado e, tal como no continente ou nos Estados uma obra datada. R. G. Collingwood (1889-1943) pôde escrever:
Unidos, o exemplo alemão revelar-se-á decisivo. «No sentido estrito em que Gibbon e Mommsen são historiadores,
Antes, uma outra evolução tivera de se consumar. Sem dúvida não existem historiadores antes do século xvm», ou seja, autores
mais importante, incidindo, em todo o caso, de modo mais profundo de um «estudo simultaneamente crítico e construtivo, cujo campo
sobre os próprios objecto e espírito da história, ela tendia, acen- é todo o passado humano tomado na sua integralidade, e cujo
tuando a exigência de racionalidade que o género sempre compor- método é reconstruir o passado a partir de documentos escritos e
tou (mas que acabava por esconder a sua degradação em arte de não escritos, analisados e interpretados com espírito crítico».
recreio ou em recolha de receitas experimentais), a renovar a sua Por outro lado, esta história filosófica é abertamente partidá-
problemática e a guindá-la ao nível onde, em breve dotada de um ria. Ao serviço de outras causas, ou portadoras de outras intenções,
método científico, a história poderia ocupar o seu lugar entre as ciên- as escolas históricas que lhe sucedem conservam o mesmo carácter.
cias do homem, ao lado de disciplinas mais jovens. São sempre ideologias, ou, pelo menos, sentimentos e escolhas orga-
nizados, numa certa medida, em doutrina, que se exprimem e
A HISTÓRIA IDEOLÓGICA defrontam mediante recursos de demonstração e de polémica que
a história lhes fornece. Além disso, a sua relação com as condições
A evolução, em boa verdade, não se fez sem dificuldades. A sua sociais e políticas de cada país é em geral estreita e muito clara, razão
primeira etapa, no século xvm, coincide com a substituição, pelo que, juntamente com o desigual desenvolvimento dos métodos crí-
espírito «filosófico», de uma teologia da história cujas virtudes esta- ticos, conduz à diferenciação de estilos históricos nacionais. A his-
vam esgotadas. Essa evolução não se reduz, contudo, à troca do tória inglesa, do conde de Clarendon (1609-74), testemunha da
modelo providencialista por uma nova temática construída em torno guerra civil do século xvn, a Macaulay (1800-59), brilhante intér-
do mito do progresso (que aliás se anuncia mais cedo, por exemplo prete das convicções whig, reflecte a precocidade de uma certa forma
em Bodin, e só se afirmará completamente mais tarde, com o roman- de vida política e a importância atribuída ao parlamentarismo.
tismo). A história liberal de Guizot, mais «doutrinário» e mais profundo,
A originalidade do século provém igualmente do alargamento da ou de Augustin Thierry, mais narrativo e colorido, inscreve-se no
curiosidade que se evade simultaneamente do universo antigo, grande debate que divide a sociedade francesa desde a crise revolu-
judaico-cristão e ocidental, para, enfim, descobrir outros mundos cionária e o episódio napoleónico; Michelet e Tocqueville traduzem,
e outras civilizações, e da concepção dinástica e política da história aliás de modo bastante diferente, as reacções ao lento, mas por vezes
para se interessar por outras formas, materiais ou culturais, da vida tumultuoso, avanço da democracia. O que a obra de Michelet —o
colectiva. Num e noutro ponto, nada de definitivamente adquirido: mais forte destas personalidades de historiador— deve à sensibili-
registar-se-ão mesmo recuos. Mas, no imediato, o exotismo conduz dade romântica e ao seu génio visionário é imprescindível para o
a um sentido da relatividade que se sobrepõe ao universalismo clás- seu entendimento, mas menos para o estudo do desenvolvimento
sico. O interesse dedicado a aspectos mais variados e menos neces- geral da historiografia.
sariamente «nobres» do passado leva Fénelon a proclamar, já em A própria escola alemã não é menos fortemente marcada por esta
1714, que «é cem vezes mais importante» observar como «os cos- necessidade de participar nas grandes lutas políticas, sociais e ideo-
tumes e o estado de todo o corpo da nação mudaram de época para lógicas que modelam o destino dos povos. Também ela tem os seus
época do que relatar simplesmente factos particulares». liberais: Rotteck, Dahlmann, Gervinus, Hausser. Mas seguiu sobre-
Não obstante incompreensões, preconceitos, facilidades, e ape- tudo a lição de Herder (1744-1803) e o apelo do Volksgeist, esse
sar da desigualdade da sua informação, estas novas preocupações génio irredutível de cada povo que, mais ou menos justamente assi-
fazem a modernidade de Voltaire historiador em Lê Siècle de milado, conduzirá tão facilmente ao nacionalismo uma Alemanha
Louis XIV (1751) e sobretudo no Essai sur lês moeurs (1756). Um em busca de unidade, de poderio, e mais tarde de um «lugar ao sol».
espírito semelhante inspira Edward Gibbon em History ofthe decline Sanctus amor patriae daí anirnum: esta divisa dos Monumento pode-

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ria ter sido a de Ranke ou de Mommsen —embora de sentimentos testemunham um singular empobrecimento. O positivismo tornou-
matizados ou discretos — , e sobretudo a dos grandes historiadores -se aí recusa de toda a profundidade, declarada por princípio impos-
prussianos J. G. Droysen (1808-84) ou H. Von Treitschke (1834- sível de alcançar, culto obstinado do facto, cuja noção é aceite sem
96). As escolas italiana ou russa sugeririam observações análogas. análise: o facto é o acontecimento singular, w/e es eigentlich gewe-
É a época em que os confrontos entre nações se exprimem também sen ist, dizia Ranke, «como ele verdadeiramente aconteceu», e que
por disputas entre historiadores: a guerra de 1870 é para Momm- o historiador, depois de o ter estabelecido, só tem de registar passi-
sen e Fustel de Coulanges —ainda que este seja um dos historiado- vamente. Trata-se, pois, de reconstituir uma trama de acontecimen-
res franceses menos «empenhados» da época— um ensejo de opor tos, sendo estes quase sempre os «grandes acontecimentos» ou, pelo
as suas concepções do facto nacional. contrário, os seus pormenores: em suma, a tradicional história polí-
tica acrescida da «história da civilização», apêndices, elementos de
«quadro» — nada de contínuo, de orgânico, de integrado. E nada
A HISTÓRIA POSITIVA
tão-pouco que leve o historiador a olhar para fora do seu domínio,
A ciência não afasta todos os riscos de comprometimento. para a área das disciplinas vizinhas. Poucas inquietações, em suma,
Quando o seu prestígio se eleva ao zénite, após meados do século, e poucos recursos para responder àquelas que o século XX vai ver
ela fornece, por seu turno, à história, assim como às outras formas nascer.
do pensamento, uma ideologia dominante, a do cientismo de inspi-
ração biológica de um Taine, por exemplo, ou a de um Renan, mais A HISTÓRIA HOJE
fugidia sob o seu maneirismo, mas também ela fundada, para este
sábio empenhado em cultivar a «ciência exacta das coisas do espí- Da escola, de que o manual de C. V. Langlois e C. Seignobos
rito», numa crença de substituição, a sacralização da inteligência (Introduction aux études historiques, 1898) foi em França o formu-
crítica. lário e os seus autores os nomes mais simbólicos, restam bons ins-
De modo mais pragmático, a história científica que triunfa depois trumentos de trabalho. «Método histórico, método filológico,
de 1870 permanece em muitos casos uma arma nacional ou polí- método crítico: belos instrumentos de precisão [...]», escrevia Lucien
tica, utilizada nas lutas de partidos, ou como instrumento escolar Febvre em 1946. «Mas saber manejá-los, gostar de manejá-los, não
de formação cívica e de criação do consenso nacional: a III Repú- basta para fazer o historiador. Só é digno deste belo nome aquele
blica e a obra de Ernest Lavisse dão-nos um notável exemplo desta que se lança de corpo inteiro na vida», e assume assim o risco de
realidade. ter de «adaptar-se a um mundo perpetuamente deslizante».
O que, no entanto, domina a partir de então é uma ideia e uma Porque o mundo e a vida mudam, a história mudou. Só pode-
prática da história mais seguras do que ambiciosas. Em toda a parte, mos lembrar aqui, a título de exemplo, algumas das forças que con-
nos países desenvolvidos, o seu ensino é organizado, a sua infra- duzem a este alargamento e a esta renovação. O «tempo do mundo
-estrutura erudita constitui-se ou é enriquecida. O ofício está agora finito» já não se adequa a uma história sem horizontes e, no fundo,
institucionalizado, a corporação tem as suas regras, as suas técni- provinciana. As revoluções demográficas, económicas, sociais, polí-
cas. Mas ela parece facilmente contentar-se em cultivar o seu jar- ticas, mentais que se desenrolam sob os nossos olhos sobrecarre-
dim. O positivismo que a inspira perdeu de vista os largos horizon- gam a história de um peso excessivo de matéria e perturbam os seus
tes do comtismo, e reduz mesmo o campo dos estudos históricos antigos equilíbrios. A pressão ou o desafio, não só de novas ideo-
e o modo de entender e de fazer a história muito aquém dos objec- logias, uma das quais, o marxismo, está simultaneamente presente
tivos que lhe atribuíam Voltaire, Guizot, Michelet. em todo o lado e é senhora de uma parte do mundo, incluindo a
Sem dúvida que esta história de profissionais, muito frequente- sua historiografia, mas também de ciências novas —da geografia
mente de professores, oferece, de um modo geral, uma solidez docu- humana e da sociologia à linguística, à psicanálise, à etnologia—,
mental e garantias críticas superiores às que apresentavam as obras obrigam-na a responder a questões que nunca se lhe tinham colo-
dos seus predecessores. O «consciencioso esforço do século xix» cado, ou que se colocam de modo muito diferente; todas estas soli-
passou por aqui, «conduzindo o historiador ao estabelecido», e citações do presente modificam a leitura que ela dá do passado. Uma
Marc Bloch —que com tal não se satisfazia— frisou bem o que esta leitura que recua, aliás, cada vez mais longe, acrescentando-se a
aquisição tinha de definitiva. Mas o seu conteúdo e o seu espírito extensão no tempo à sua extensão no espaço: a história dos povos

48 49
(ou das épocas) sem história, ou pelo menos sem textos, já não se phie moderne. Paris, s. d. [1946] / J. LÊ GOFF, «Au Moyen Age: temps de 1'Église
et temps du marchand». in Annales E. S. C., Outubro de 1960 / H. I. MARROU,
afigura hoje como uma empresa totalmente impossível. De !a connaissance historiquí. Paris, 1962 (trad. pon. na Editorial Aster) / C,
A história está sempre por refazer. Os historiadores franceses que SAMARAN (dir.), L'fíisloire et sés méíhodes, Encydopédie de ia Plêiade, Paris,
têm consciência desta realidade devem-no, na sua maioria, ao 1961 / A. TENEKTI, «La Síonografia in Europa dal Quattro ai Seicento», in Nuove
impulso dado, a partir da década de 1930, pelos Annales de Lucien Questioni distaria moderna, Milão, 1963 / J. W. THOMPSON, History of Histórica!
Febvre, de Marc Bloch e dos seus continuadores, agrupados em Writing, Nova Iorque, 1942 / P. VILAR, «Marxismo et histoire dans lê développment
redor de Fernand Braudel, e, num plano vizinho, ao da história eco- dês sciences humaines», in Studi storici, t. i, 1960.
nómica e social, por Ernest Labrousse. Outros mantêm-se fiéis a
tradições diferentes, outros ainda enveredam por vias mais ou menos
divergentes — e as divisórias nacionais, que continuam sólidas,
demasiado sólidas, culminam numa repartição variável destas diver-
sas tendências consoante os países: poderíamos traçar o respectivo
mapa, assinalando, por exemplo, a autoridade (embora não exclu-
siva) que o Historismus, tal como o definia Friedrich Meinecke,
entre as duas guerras mundiais, conserva na historiografia alemã,
ou a importância assumida na historiografia americana (mas não
somente nela) pelo quantitativismo intransigente dos «ciiómetros»
e da new economic history. É talvez nesta última frente que a his-
tória deve travar hoje os seus combates mais importantes. A legiti-
midade de uma história quantitativa, ou «serial», e o valor de alguns
dos seus contributos são indubitáveis; mas há vários modos de a
entender, da simples contagem à formalização e à construção de
modelos, e não é certo que todos sejam sempre igualmente possí-
veis, nem que abarquem todo o campo da história cujas fronteiras
são ainda por nós ignoradas.
Guy Palmade

BIBLIOGRAFIA
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port. na col. «Saber», de Publicações Europa-América, sob o título de Introdução
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Congr. int. Sei. hist., t. i, Estocolmo, 1960 / F. CHÂTELET, La Naissance de 1'his-
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/ G. HUPPERT, «Naissance de 1'histoire en France: lês 'Recherches d'Etienne Pas-
quier', in Annales E. S. C., Janeiro de 1968 / G LEFEBVRE, Notions d'hisloriogra-

50 51
III
; A HISTÓRIA GEOGRÁFICA

A história geográfica, por vezes denominada geistória, libertou-


; -se, a partir dos anos 30, da geografia histórica tradicional. «Ela
( é tipicamente francesa, porque nasceu de uma longa e fértil coabi-
tação, em França, dos historiadores e dos geógrafos» (P. Chaunu).
Pode dizer-se que o seu manifesto é a obra de Fernand Braudel.
Em torno dele, no entanto, outros historiadores e geógrafos fran-
j ceses e ingleses reflectiram sobre as suas tendências e o seu método.
1 A atitude que consiste em considerar as coisas e os acontecimen-
' tos da história, se não sempre ao nível do solo, pelo menos no seu
', ambiente geográfico; a ideia de que a geografia, sem condicionar
l os homens de modo irremediável, está por detrás da história; os
esforços para restituir o passado como uma sequência de geogra-
1 fias; a prática do método cartográfico — tudo isto pertence ao que
. podemos chamar a história geográfica. Mas é ainda difícil medir
' a influência que esta concepção da história pode ter exercido sobre
i as correntes da investigação contemporânea.
í
i
1. HISTÓRIA E ESPAÇO
A história é um fenómeno a quatro dimensões. O tempo, no qual
; ela se desenrola e que lhe dá a sua definição, esconde porém com
, demasiada frequência as suas dimensões espaciais, a ponto de o
homem parecer por vezes mover-se sem relação com o seu meio
ambiente. É portanto necessário ter sempre consciência de que a his-
! tória se situa igualmente no espaço e que uma atitude ou uma refle-
xão que coloque os problemas humanos em relação com o espaço
' físico e nas realidades geográficas é tão indipensável para captar os
dados do passado como os do presente.
l 53
Esta atitude implica, em primeiro lugar, a obrigação de locali- reacções humanas. Mas isto pressupõe que o historiador saiba ter
zar os acontecimentos e as coisas, quer pela identificação dos luga- em conta a «geografia por detrás da história» e implica — o que é
res, quer pela observação dos sítios e das paisagens. Ainda que a característico da escola francesa— a colaboração das duas discipli-
localização esteja indicada nos documentos, a identificação dos <,as- Esta atitude geográfica perante a história pode levar a analisar
nomes e dos lugares nem sempre se faz sem dificuldade, uma vez o passado, como o faz Roger Dion, como uma geografia retrospec-
que os vocábulos geográficos surgem sob as suas formas e nas lín- tiva, ou a conceber a história, na esteira de Maximilien Sorre, como
guas antigas. No Ocidente cristão, por exemplo, é necessário saber uma sucessão de geografias.
como as denominações latinas evoluíram pouco a pouco para os
vocábulos modernos, estudo que é da competência da linguística.
Mas há outros obstáculos: substituição dos nomes antigos por novos 2. A RECONSTITUIÇÃO DO PASSADO GEOGRÁFICO
ou o seu desaparecimento total, assim como do habitat que eles
designavam. Para os ajudar, os historiadores têm à sua disposição Mesmo na pequena fatia cronológica constituída pelos tempos
repertórios topográficos; no entanto, precisam muitas vezes de recor- históricos, é possível captar as variações das condições naturais.
rer aos mapas antigos, ou rnesmo às cartas topográficas contempo- Os movimentos relativos do solo e do nível marinho que afecta-
râneas. O manuseamento da carta é, de resto, uma excelente pre- ram as costas tirrenas e flamengas até ao século xni —estudados
paração para «ver» a história inscrever-se no terreno. por A. Verhulst— tiveram consequências consideráveis: assorea-
Melhor ainda, quando tal é possível e útil, o investigador tem mento de Pisa e desenvolvimento dos pauis; formação do Zuider-
interesse em aprofundar esta confrontação da história e da paisa- zee, modelação da planície flamenga, êxodo de populações. A obser-
gem: em observar, por exemplo, o sítio e a situação de um castelo; vação das oscilações climáticas, conhecidas não só por textos que
ern percorrer os campos analisando as suas paisagens agrárias e devem ser encarados com alguma reserva, mas, agora, também pelo
humanas. O contacto com o meio geográfico dá à história as suas estudo dos anéis de crescimento anual das árvores (dendrocronolo-
verdadeiras dimensões e leva-a a reflectir sobre o combate a que se gia), pelo dos pólenes fosseis (palinologia), das varvas (camadas dos
entregam os homens e as coisas. fundos de lagos subglaciários) e dos movimentos dos glaciares, con-
Não pode evitar-se, a este nível, o debate sobre as relações entre duz a que nos interroguemos tanto sobre grandes fases de seca ou
a geografia e a história. de humidade fria como sobre pulsações mais rápidas, podendo umas
O determinismo simplista de Jean Bodin, de Montesquieu e, mais e outras ser postas em paralelo com fases críticas ou não da econo-
recentemente, do geógrafo alemão Friedrich Ratzel, segundo o qual mia. Além disso, a determinação de tais oscilações, atendendo à par-
«o meio faz o homem», não resiste aos cambiantes e às contradi- ticipação do homem nos grandes períodos de arroteamento, permite
ções que a história lhe inflige. A este respeito, a obra de Lucien Feb- a reconstituição das variações históricas da cobertura vegetal.
vre La Terre et 1'évoluíion humaine (1922) foi decisiva na «.--ienta- Ao lado destas orientações recentes, a história aborda, sob este
ção dos estudos históricos. Sem dúvida que os condicionalismos do prisma geográfico retrospectivo, problemas mais tradicionais. Tra-
meio, clima, relevo, solos, são por vezes muito duros, mas os dicional é o estudo da fronteira, mesmo despojada das noções abs-
homens superam-nos; adaptam-se às possibilidades que a natureza tractas de «natural» ou de «artificial», conceito que se alarga aliás,
lhes oferece, escolhem, impõem mesmo por vezes uma opção sem sob o vocábulo anglo-saxão/rcwf/er, aos avanços pioneiros da colo-
relação com o meio. nização, tanto no Ocidente europeu corno no continente americano.
Seguem-se hoje as conclusões de Fernand Braudel na sua obra Tradicional também, mas hoje renovada, é a geografia das divisões
La Médilerranée ci lê monde médilerranéen au tcmps de Philippe II administrativas, que conduz naturalmente às etapas do povoamento
(1949): «O meio geográfico não condiciona os homens sem remis- e da colonização dos países. Neste domínio é necessário fazer apelo,
são, uma vez que, precisamente, uma parte importante dos seu.s não só à história escrita, mas também a todos os recursos da arqueo-
esforços [...] consistiu em libertarem-se dos condicionamentos logia do solo e da toponímia e à observação do mapa e do terreno.
impostos pela natureza (...) Entre o homem e as coisas é necessário As monografias urbanas implicam, decerto, «menos as remotas
não decidir arbitrariamente.» O que a história pretende é pois, sim- investigações de arquivo do que a explicação das paisagens rurais»,
plesmente, procurar a quota-parte do meio como factor de inter- mas a história das cidades, mais do que qualquer outra, pode ser
pretação e conhecer o papei real das influências geográficas e das encarada como «uma sucessão de geografias». A estrada e a histó-

54 55
ria constituem ainda um tema onde todos os ritmos da conjuntura a que deve saber-se pôr fim, mesmo com um resultado negativo,
económica e dos acontecimentos se conjugam com os dados do ter- porque as coincidências falaciosas, os vazios da documentação, a
reno. ressurgência do determinismo são armadilhas que espreitam quem
O complexo geográfico surge, em suma, como «um agregado de a ele se entrega.
elementos de diversas épocas, cada uma com a sua história». É por- A história geográfica, como vemos, é capaz de animar muitos
tanto natural procurar, na paisagem humanizada, um reflexo do trabalhos, mesmo aparentemente afastados, pelo seu tema, de laços
passado. geográficos: monografias locais e regionais, geografia do Domes-
day Book. E, com efeito, é sobretudo neste domínio que a influên-
cia, por vezes indirecta, de L. Febvre e de F. Braudel se tem feito
3. O MÉTODO CARTOGRÁFICO sentir nos últimos anos. Esta concepção encontra, no entanto, um
campo mais largo em grandes temas como a fronteira, a floresta
Se partirmos dos dois postulados já enunciados: que a história ou a vinha, como é o caso da Histoire de Ia vigne et du vin en France,
se desenrola no espaço e que a sua acumulação deixou traços, maio- dês origines au XIX1"'* siècle, de R. Dion (1959). Ela surge princi-
res ou menores, na paisagem, o historiador que estuda um problema palmente quando a personagem da história se torna um complexo
ou um período determinado pode estabelecer, a título de hipótese geográfico: pode pensar-se nos Alpes e no Báltico, após La Médi-
de pesquisa, este ou aquele esboço, ou consultar um mapa antigo terranée, de F. Braudel. A história do tempo geográfico é, portanto
ou moderno que o ajude a compreender certos aspectos das coisas — escreve Braudel —, uma história lenta, quase imóvel, onde se ins-
ou dos acontecimentos que ressaltam mal dos documentos, ou que crevem as sociedades e as civilizações e cuja superfície as oscilações
resistem a outros processos de interpretação. Ele faz, por assim breves da história factual mal vêm agitar. Nesta perspectiva, a his-
dizer, a «experiência» do método cartográfico, que, ao responder tória geográfica é, afinal, tanto uma concepção como um tempo da
à pergunta onde?, pode trazer elementos de resposta às questões própria história.
como? e porquê? C. Higounet
Este método dá lugar, antes de tudo, ao estabelecimento de car-
tas de repartição, cuja interpretação consiste na busca das relações BIBLIOGRAFIA
entre o dado histórico graficamente representado e o conjunto dos F. BRAUDEL, La Médilerranée et lê monde méditerranéen à Vépoque de Phi-
outros factos que a carta explicita ou sugere; pode também favore- lippe II, Paris, reed. 1966 (trad. port. nas Publicações Dom Quixote) / H. C. DARBY
cer a descoberta de relações conjunturais pelo cotejo de duas ou (dir.), Historical Geography of England before 1800, Cambridge (G.-B.), reed. 1951 /
várias cartas de distribuição; foi assim que, ao comparar uma carta / R. DION, La Part de Ia géographie et celle de l'histoire dans /'exp/icalion de
1'habitat rural du Bassin parisien, Lille, 1946; «La Géographie humaine rétrospec-
de repartição das igrejas romanas das regiões girondinas e uma carta live», in Cahiers iníernationaux de sociologie, t. vi, 1949; Histoire de Ia vigne et
dos arroteamentos efectuados nesta zona no século Xll, se pôde esta- du vin en France, dês origines au XIX""' siècle, Paris, 1959 / W. G. EAST, The
belecer uma relação bastante estreita entre o incremento da cons- Geography behind History, Londres, 1938 / L. FEBVRE, La Terre et 1'évolution
trução daqueles edifícios e o da vinha bordalesa. humaine. Introduction géographique à 1'histoire, Paris, 1922 (trad. port. Ed. Cos-
O estudo analítico das cartas topográficas pode permitir a recons- mos) / C. HIGOUNET, «Géohistoire», in Encyclopédie de Ia Plêiade, L'Histoire et
tituição de paisagens em diferentes épocas e ajudar a compreender, sés méthodes, Paris, 1961; «Lês Forêts de 1'Europe occidentale», in Settimane di
studio [...], t. xin, Espoleto, 1965 / E. LÊ ROY LADURIE, L'Histoire du climat
por consequência, os factos ou acontecimentos que tiveram por depuis l'an mil. Paris, 1967 / A. VERHULST, Histoire du paysage rural en Flandre,
cenário contemporâneo essas paisagens. A preparação na leitura das de 1'époque romaine au XVIII'"" siècle, Bruxelas, 1966 / Villages desertes et his-
cartas é tão indispensável ao historiador como os exercícios análo- toire économique, XI-XVIIF™ siècle, Paris, 1965.
gos o são aos geógrafos.
Um método deste tipo não pode dispensar certas precauções. Em
primeiro lugar, em caso algum, tanto na interpretação das cartas
de distribuição como na das cartas topográficas, se deixará de ter
presente que os resultados só podem ser tidos na conta de hipóteses
ou de probabilidades. Mas é com probabilidades que se apreende
a autêntica realidade. O método cartográfico é uma «experiência»
56 57
IV
A HISTÓRIA ECONÓMICA
A história económica não é uma disciplina «nova»: já rio
século xvi Guillaume Budé ou Jean Bodin se ocupavam de moe-
das e de preços. Contudo, é somente na segunda metade do
século xix que a Wírtschaftsgeschichte constrói, na Alemanha, um
primeiro império. A história económica desenvolve-se sobretudo
desde 1930, se bem que hesitando entre várias vias.
Esta disciplina liga-se, por definição, a dois modos diferentes de
abordagem. O propósito cio economista é teórico e prospectivo; a
história só lhe fornece os dados para ensaiar um modelo. A preo-
cupação do historiador é a dos factos: a sua pesquisa é retrospec-
tiva e procura não ultrapassar a certeza documental: a teoria é para
ele apenas um instrumento de sistematização.
Por outro lado, o economista procura relações causais no seio
do económico puro; no que respeita a qualquer factor «exógeno»,
ele remete para o historiador clássico; o historiador procura acima
de tudo, através do social, as consequências históricas dos factos
económicos que estabelece.
Enfim, a história económica do nosso tempo pautou as etapas
da pesquisa. A crise de 1929 centrou a atenção no «ciclo», nas «cri-
ses», na conjuntura. Após 1945, o interesse incide sobre as estrutu-
ras, o longo prazo, o «crescimento» e o «desenvolvimento». Em
iodos estes domínios existem grandes obras e, sobretudo, criaram-
-se instrumentos.

1. ELABORAÇÃO DA HISTÓRIA ECONÓMICA


Sem recuar a Ibne Caldune (1332-1406), primeiro historiador
economista-sociólogo, observamos que, desde o Renascimento, a
história se autonomiza da crónica para colocar problemas e exami-

59
nar números. Assim, Guillaume Budé, ao estudar a moeda romana Em Inglaterra, em França e na Bélgica, após 1900, o exemplo
no De Asse, introduz a noção de poder de compra, inquérito sobre alemão inspira J. M. Clapham na sua luta contra as «caixas vazias»
o preço do pão e o rendimento do trigo. Jean Bodin, na sua Res- dos teóricos, e H. Sée e H. Hauser na sua preferência pelos está-
ponse à M. de Maleslroit, estabelece, por uma erudição com base dios antigos do capitalismo. Marx está presente em La Révolution
em dados numéricos, que a alta de preços do século xvi se devia industhelle, de Paul Mantoux, e nos pioneiros russos do estudo eco-
à abundância de prata, e portanto às grandes descobertas, não às nómico do século xvni francês (Loutchisky, Kovalewski, Afanas-
desvalorizações da libra. A reedição da Response, por Henri Hau- siev). Mas já não se trata de economistas virados para a história,
ser, em 1932, liga a moderna «história conjuntural» a esta velha ori- mas de historiadores desbravando vias de análise do social. Henri
gem. Pirenne, no que respeita à Idade Média, é o mais alto representante
No final do século xvn, William Petty inventa a «aritmética polí- deste espírito de síntese. Dos anos de 1900-10 aos anos de 1920-30,
tica» e Gregory King pensa poder medir, para a Inglaterra e a enquanto a ciência económica abandona o «historismo», a exigên-
França, aquilo a que chamamos «produto nacional». Ainda nos ser- cia económica aumenta, pelo contrário, no que diz respeito à defi-
vimos dos seus dados, mas é a invenção do conceito que é impor- nição dos métodos do historiador.
tante. O século xvni alarga a via: Adam Smith define, por seu
turno, os principais agregados susceptíveis de medição. Sússmilch,
Moheau e Messance fundam a demografia histórica, outro domí- 2. A HISTORIA ECONÓMICA CONJUNTURAL
nio para nós essencial. Voltaire e Condorcet vêem nestas inovações
a promessa de uma história científica. Na Polónia, em Portugal, Dramas monetários de 1920 a 1928, drama económico em 1929.
em Espanha, os pioneiros da história e da economia distinguem-se Moeda, preços, ciclos, crises dominam a reflexão. Ora qualquer
com dificuldade. Finalmente, a palavra aparece no fim do sécu- estudo, neste domínio, depende da opção do historiador. A histó-
lo xviii: «Coordenámos uma história económica», escreve o cata- ria dos preços, já gloriosa, de Dupré de Saint-Maur a Tooke e a
lão António de Capmany a abrir as Memórias Históricas sobre a Wiebe, torna-se de novo o eixo das pesquisas retrospectivas. O ba-
Barcelona medieval. E, durante muito tempo, a sua obra não foi lanço desta etapa, desigual nos seus êxitos, mas fundamental, é posi-
ultrapassada. tivo pela recolha das fontes e pela conquista de uma técnica.
Por volta de 1850, a história económica ressurge e triunfa na Ale-
manha. W. Bauer vê nesse facto o espírito de Marx. Em boa ver-
FONTES E TÉCNICAS
dade, é o de uma conjuntura intelectual mais ampla. Em 1848,
Wilhelm Roscher publica os seus Princípios de Economia Política, As fontes da «história conjuntural» são fáceis de descobrir
concebidos segundo o método histórico; em 1848 (ano do Mani- (embora nem sempre de utilizar) para a «era estatística», mas,
festo), Bruno Hildebrand lança a sua Nationalõkonomie, essencial- segundo os países e os sectores, esta começa cerca de 1800, entre
mente histórica, procurando as «leis do desenvolvimento económico 1850 e 1860, ou ainda mais tarde. A dificuldade reside no ajusta-
das nações». Em 1853, Knies intervém no mesmo sentido e surge mento de séries cronológica e conceptualmente díspares. Em con-
a palavra Wiríschaftsgeschichte. trapartida, demonstrou-se que a reconstituição quantitativa é pos-
Esta primeira «escola historista» é rendida, após 1870, pelo sível para a «era pré-estatística», por vezes até à Idade Média, a
«jovem histerismo» de Gustav Schmoller, que trava o combate, ou partir de documentos «objectivos» susceptíveis de formar séries con-
Methodenstreit, contra R. Menger e a economia abstracta. Subor- tínuas: registos paroquiais, tabelas de preços nos mercados, taxas
dina o futuro de toda a abstracção à utilização de todos os mate- fiscais, livros de contas, minutas notariais, etc. Não se conseguiu
riais históricos, descritivos, estatísticos» existentes. A escola alemã ainda, infelizmente, apesar da criação de uma comissão internacio-
edifica então imponentes instrumentos (Jahrbucherfúr Nationalõ- nal, unificar as regras de publicação das séries de preços. Mas os
konomie und Síatistik, Handwõrterbuch der Staatswissenschaften). trabalhos de Usher e Beveridge sobre a Inglaterra, Fanfani e Parenti
Multiplica as Wirtschaftsgeschichten (Inama-Sternegg, Kõtzschke, sobre a Itália, Elsas sobre a Alemanha, Labrousse sobre a França,
Max Weber), as amplas interpretações (Biicher, Sombart, Strieder), Hamilton sobre a Espanha, Hoszowski sobre a Polónia e Posthu-
as admiráveis monografias (O Século dos Fugger, de Richard Ehren- mus sobre Amsterdão, forneceram desde antes de 1940 séries fun-
berg, a Ravensburger Handelsgesellschaft, de Schulte). damentais.
60 61
dades), de origem monetária, completa o florescimento de iniciati-
A técnica de escolha e de Tratamento desre.s materiais foi elabo-
vas (A) pela sua selecção (B); estabelece que o operário luta para
rada em França por François Sirniand, inspirado no «método expe-
defender o seu salário nominal, para não ultrapassar o seu esforço
rimental»; para cada problema rnede-se a distância entre dados pre-
habitual, para aumentar o seu salário nominal, para diminuir o seu
tendidos e dados acessíveis; procede-se a uma «fenomenoscopia»
esforço, exprimindo esta ordem o primado do nominal sobre o real.
efectiva, contínua, completa, que pressupõe identidade de base,
Mas será isto ainda válido? Não há senão verdade histórica.
segregação homogénea, revisão selectiva dos dados: as séries são
A problemática propriamente histórica foi brilhantemente enun-
então «integralidades homog:rp,;-..-..> cuja confrontação pelos testes
ciada por Labrousse a propósito do século xvin francês. Os pre-
de presença, de ausência e de concomitância permite analisar «o
fenómeno a produzir-se». ços elucidam os rendimentos. Os rendimentos são específicos das
classes. Traduzem as contradições das estruturas, mas também as
Para os preços agrícolas, Labrousse justificou a preferência con-
cedida às tabelas dos artigos no mercado sobre os livros de conta, dos movimentos. A alta longa dos preços assegura rendimentos
às médias cíclicas sobre as médias quinquenais ou decenais, e Jean acrescidos aos possidentes, reforçando a luta contra os privilégios.
de Meuvret a preferência dada ao ano-coiheita sobre o ano civil, Um «interciclo» de baixos preços agrícolas (1772-87) descontenta
às medianas sobre as médias. o camponês médio. Depois, de 1788 a 1789, uma crise de penúria
Em contrapartida, não há que escolher, para a observação, entre faz saltar o preço dos cereais, realçando a «lei das distâncias sociais»
preços nominais c preços-moeda, entre salários nominais e salários (o centeio, procurado pelas classes pobres, sobe mais depressa); os
reais: tudo depende do fenómeno que se estuda. lucros acumulam-se nos armazenistas; milhões de camponeses não
vendedores são reduzidos à mendicidade. Assim nascem as pertur-
bações de 1789, que simultaneamente asseguram e limitam a vitó-
PROBLEMÁTICAS ria política do terceiro estado burguês. Tempo longo, tempo médio,
O êxito das técnicas depende das problemáticas. A problemática tempo curto e o próprio acontecimento entram assim, pela estatís-
económica procedeu com demasiada frequência, no que diz respeito tica retrospectiva, no quadro da explicação histórica. A história eco-
à história dos preços, a simplificações excessivas. J. M. Keynes, no nómica vai ao encontro da história total. É sem dúvida, até ao pre-
Treatise on Money, sugeriu uma revisão da história pela observa- sente, o seu maior cometimento. Desfrutando de um favor menos
ção dos fluxos de metais amoedados, que lançam «os preços para exclusivo do que por volta de 1930, o estudo da «conjuntura» tem
lá dos custos». J. Hamilton, relacionando as importações de ouro ainda muito para dar ao historiador.
e de prata e a «revolução» dos preços espanhóis no século xvi, e
depois no século xviu.o squeeze entre preços e salários, generali-
zou demasiado este esquema. A óptica keynesiana também domi- 3. HISTÓRIA ECONÓMICA,
nou (de modo mais útil) a sua interpretação das inflações artificiais CRESCIMENTO E MODELOS
e dos endividamentos do Estado. Mas, quer se trate da alta «longa»
do século xvui ou dos «ciclos Kondratieff» (vinte e cinco anos de A partir de 1945, os progressos da análise económica e os temas
alta, vinte e cinco anos de baixa, aproximativamente), nada de deci- do «desenvolvimento» inspiraram simultaneamente uma «história
sivo se avançou sobre a natureza dos movimentos (ritmo dos pre- dos economistas» e uma nova iniciação dos historiadores à econo-
ços ou da actividade económica global) nem sobre o seu primeiro mia.
motor: custo do meial-moeda, demografia, inovações técnicas ou
mesmo guerras. Finalmente, para os ciclos «curtos», demonstrou- A HISTÓRIA DOS ECONOMISTAS:
-se sobretudo a diferença entre a «crise de tipo antigo», desenca- DOIS TIPOS DE ECONOMETRIA RETROSPECTIVA
deada pela má colheita e pela alta bruta! dos preços do cereal, e a
crise clássica do capitalismo industrial, marcada pela derrocada dos A reconstituição no tempo dos valores globais foi pela primeira
preços industriais e dos valores de bolsa. vez tentada por Colin Clark: produtos nacionais, globais e por
A problemática sociológica, com Simiand. define a moeda como cabeça, expressos em moeda constante, com distinção entre três tipos
uma relação específica (expectativa do indivíduo perante a socie- de ocupação (agricultura, indústria, serviços). S. Kuznets preconi-
dade); admite que a alternância de fases A (facilidade) e B (dificul- zou o estudo, na longa duração, das «contas nacionais», exprimindo

62 63
as relações, no produto bruto, entre consumo, exportação, impor- bem conhecidas através de análises sociais renovadas (Duby, Vicens
tação, poupança, investimento, por sectores e em função da popu- Vives), formalização do modo de produção feudal (ensaios marxistas
lação. Para os países novos, estes ensaios incidem sobre o século de Porchnev e Kula). Os tempos modernos são integrados mais ple-
XIX. Deane e Cole fazem-nos recuar, no caso da Inglaterra, para namente na grande conjuntura das descobertas que os inauguram
lá de 1700. Para a França, a equipa de Marczewski pretende igual- (Chaunu, Godinho), nos movimentos longos da sua produção e da
mente recuar até esta data, tirando partido das possibilidades do sua demografia e nas crises brutais que revelam as contradições
cálculo para preencher as lacunas documentais. Mas esta história sociais das suas estruturas (P. Goubert, E. Leroy-Ladurie). A revo-
«integralmente quantitativa» admite que o seu domínio se detém lução industrial é ainda campo de trabalho onde rivalizam a aná-
assim que intervêm «factores não económicos». De igual modo, lise demográfica e económica mais moderna com as tradições eru-
W. W. Rostow, situando o segredo do «arranque» económico num ditas e sociológicas de Mantoux e Marx (Habbakuk. Mathias,
limiar da taxa de investimento (de 5% a 10%), propõe para a trans- Landes, Jones, Hobsbawm, etc.). Infelizmente, apesar de notáveis
posição deste limiar apenas explicações não económicas. monografias para o século xix (J. Bouvier e B. Gille), a economia
A new economic history americana tem de facto, na própria francesa parece intimidar excessivamente os historiadores à medida
América, numerosos precursores, tanto em história conjuntural que nos aproximamos do nosso tempo, enquanto os economistas,
quantitativa, como em história quantitativa global. Porém, a par- neste domínio da actualidade, têm preocupações demasiado práti-
tir de 1958, põe sistematicamente em causa verdades aceites pela his- cas. A história económica tem pois, diante de si, um vasto campo
tória económica ou pela história geral dos Estados Unidos, quer se em aberto.
trate da «fronteira», das Guerras da Independência e da Secessão, Pierre Vilar
l • da crise de 1929 ou do New Deal. O método, por análises concretas
(papéis de empresa), modelos operacionais e modelos simulados, BIBLIOGRAFIA
verifica que um determinado objectivo económico na base de um
METODOLOGIA OU ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
facto político não é contrariado pelo cálculo, ou que um factor jul-
gado essencial (caminho-de-ferro) determinou realmente o cresci- J. BOUVIER, Histoire économique et histoire sociais, Genebra, 1968; «L'Histoire
mento económico. O êxito depende da validade das amostras e dos économique», in Rev. Enseignement sup., n. ° 44, 1969; «The Integration of Eco-
nomic Theory and Economic History», in Journ. econ. Hist., número especial,
conceitos. Não se vê se o método supõe uma lógica espontânea da vol. xvn. Dezembro de 1957 / M. LÉVI-L.EBOYER, «New Economic History», in
economia, uma estratégia consciente dos seus agente, uma coerên- Ann. E. S. C., Setembro-Outubro de 1969 / J. LHOMME, Économie et histoire,
cia ou uma contradição entre economia e história, o que implica Genebra, 1967 / J. MARCZEWSKI, introduclion à l'histoire quantitative, Genebra,
uma epistemologia (ou manifesta uma ideologia, uma vez que a new 1965 / J. MEUVRET, «Lês Données démographiques eí statistiques en histoire
economic history parece radicar optimismo actual, tal como as teo- moderne et contemporaine», in Encydopédie de Ia Plêiade, L 'Histoire eí sés méího-
rias da estagnação saíram dos pessimismo dos anos de 1930). Apli- des, 1961 / P. VILAR, Croissance économique et analyse hisíorique (trad. port. na
«Biblioteca de Textos Universitários», da Editorial Presença), Primeira Conferên-
cado ao «subdesenvolvimento», o método dos «modelos históricos
cia Internacional de História Económica, Paris-Haia, 1960; «Pour une meilleure com-
simulados», de Celso Furtado, dá conta dos sucessivos estádios da préhension entre économistes et historiens», in Rev. hist., Abril de 1965; «L'His-
economia latino-americana, mas não da passagem de um estatuto toire après Marx», in Rev. Enseignement sup., n.° 45, 1969.
a outro nem da própria realidade do «subdesenvolvimento».
OBRAS IMPORTANTES SOBRE DIVERSOS PERÍODOS E DIVERSOS PAÍSES

W. ABEL, Agrarkrísen und Agrarkonjunktur im Mitteleuropa vom 13. biszum


A ECONOMIA DOS HISTORIADORES: 19. Jahrhundert, 1935, 2." ed., Hamburgo-Berlim, 1966 / R. ANDREANO, News
TERRENOS DESBRAVADOS, CONQUISTA A FAZER Views on American Economic Development, Cambridge (Mass.), 1965 / J. BODIN,
La Vie chère au XV]'"" siècle. La response de Jean Bodin à M. de Malestroit, ed.
O historiador não seria honesto se ignorasse os processos dos eco- H. Hauser, Paris, 1932 / A. DE CAPMANY, Memórias históricas sobre Ia marina,
nomistas, mas faltaria à sua vocação se neles se fechasse. Desde comercio y artes de Ia antigua ciudad de Barcelona, Barcelona, 1779-92, reed., 2
1945, a história económica, preocupada com o social, transformou vols., Barcelona, 1961 / P. e H. CHAUNU, Séville et VAtlantique, 12 vols., Paris,
ou tornou mais precisas as nossas representações de um passado em 1955-59 / R. EHRENBERG, Lê Siècle dês Fitgger (Das Zeitalter der Fugger, 2 vols.,
relação ao qual é natural que a Europa esteja menos separada que lena, 1896), trad. franc. abreviada. Paris, 1955 / P. GOUBERT, Beauvais et lê Beau-
vaisis de 1600 à 1730, 2 vols.. Paris, 1960; ed. abreviada: Cení Mille Provinciaux
a América. Estruturas e conjunturas da Idade Média são hoje mais au XVII"" siècle, Paris, 1968 / E. HOBSBAWM, Industry and Empire. An Econo-

64 65
mie History of Britain since 1750, 2.' ed., Londres, 1969(trad. port. Ed. Presença) /
/ W. KULA, Lês Débuts du capilalisrne en Pologne dans Ia perspective de 1'histoire
comparée, Roma, 1960 / E. C. LABROUSSE, Esquisse du mouvement dês prix et dês
revenus en France au XVIII'"" s., 2 vols., Paris, 1933; La Crise de 1'économie
française à lafin de 1'Ancien Regime et aux débuts de Ia Révolution, Paris, 1944 /
/ E. C. LABROUSSE et ai., Histoire économique de Ia France, t. i, Paris, 1970 / D.
LANDES, The Unbound Prometheus. Technological Change and Industrial Deve-
lopment in Western Europefrom 1750 to the Present, Cambridge (Mass.), 1969 /
/ E. LEROY-LADURIE, Lês Paysans du Languedoc, 2 vols., Paris, 1966; ed. abre-
viada, Paris, 1969 / P. LYASHCHENKO, History of National Economy of Rússia to
the 1917 Révolution, trad. do russo, Nova Iorque, 1949 / P. MANTOUX, La Révo-
lution indusírielle au XVIII"" siècle. Essai sur lês commencements de Ia grande
industrie moderne en Angleterre, Paris, 1907, 2.' ed., 1959 / H. PIRENNE, Histoire
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économique de 1'Occident medieval, Paris, 1951 / M. POSTAN e H. J. HABBAKUK,
The Cambridge Economic History, t. i, n e m, Londres, 1941-63 / R. ROMANO, / A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES
Prezzi in Europa dal XIII" secolo a oggi. Saggi di storia dei prezzi, Turim, 1967 /
/ G. SCHMOLLER, Zur Liíeraturgeschichte der Staats un Sozialwissenschaften, Leip- No campo histórico, a história das mentalidades constitui um sec-
zig, 1888 / F. SIMIAND, Lê Salatre, 1'évolution sociale et Ia monnaie, 3 vols., Paris,
1932 / W. SOMBART, Lê Capitalisme moderne (Das moderne Kapitalismus, Muni-
tor ainda mal reconhecido pelos especialistas e pouco explorado,
que-Leipzig, 1902), trad. franc. parcial, Paris, 1932. «sector de ponta» cuja audiência cresce lentamente, à medida que
se anulam as resistências devidas, sem dúvida, ao facto de as exi-
gências da psicologia histórica se terem afirmado em primeiro lugar
na denúncia dos «perpétuos e irritantes anacronismos cometidos
inconscientemente por historiadores que se projectam tal como são
no passado, com os seus sentimentos, as suas ideias, os seus pre-
conceitos intelectuais e morais» (M. Bloch). Por outro lado, esta
história quase não é praticada fora de França, onde as fórmulas mais
clássicas da história social, cultural e económica açambarcam exclu-
sivamente as iniciativas dos investigadores e, afortiori, dos docentes.
A história das mentalidades tem como objectivo a reconstitui-
ção dos comportamentos, das expressões e dos silêncios que tradu-
zem as concepções do mundo e as sensibilidades colectivas; repre-
sentações e imagens, mitos e valores reconhecidos ou suportados
pelos grupos ou pela sociedade global, e que constituem os conteú-
dos das psicologias colectivas, proporcionam os elementos funda-
mentais desta pesquisa. Rejeitando, por definição, os «apotegmas
de banal psicologia», de que inúmeros manuais estão muitas vezes
recheados, a história das mentalidades não se confunde, no entanto,
com a história das ideias (história dos conceitos e sobretudo dos sis-
temas, nos seus jogos de influência e de sucessão) que existe há muito
nos confins da história e da filosofia; também não coincide com a
história das ideologias, políticas ou não, no sentido adquirido por
esta expressão de há alguns anos a esta parte, modos de camufla-
gem conceptual de realidades mais fundamentais. A história das
mentalidades abarca o campo e utiliza as estratégias da investiga-
ção no âmbito de psicologias colectivas (para não dizer da mentali-
dade colectiva, que postula uma unidade discutível); por outro lado,

66 67
o termo «mentalidades» inclui necessariamente o domínio afectivo, os dias ao longo da existência, definem uma maneira de ver os seres
os sentimentos e as paixões: as sensibilidades, tanto como o registo e o meio natural. «A cada civilização, a sua utensilagem mental;
intelectual propriamente dito. mais ainda, a cada época de uma mesma civilização, a cada pro-
«Os factos históricos são por essência factos psicológicos», es- eresso, quer das técnicas, quer das ciências, que a caracteriza, uma
creve Marc Bloch em Apologie pour l'histoire ou Métier d'histo- utensilagem renovada, um pouco mais desenvolvida para certos
rien, o que põe em questão não só um sector do domínio histórico casos, um pouco menos para outros.» A análise das utensilagens
— da história sociocultural—, mas também as relações da historio- mentais pressupõe uma exploração das linguagens, e em primeiro
grafia e da memória colectiva; as representações do passado, que lugar do vocabulário, mas assegura igualmente o reconhecimento
condicionam tão profundamente os destinos dos homens, fazem evi- de todos os canais de informação que podem contribuir para ali-
dentemente parte das questões a tratar pelo historiador das menta- mentar as representações do grupo, para enriquecer (ou tornar mais
lidades. Este restitui às ilusões e aos mitos o seu significado e o seu pobres) as suas concepções: qualquer «modelização» das funções
papel nas continuidades; tais factores são frequentemente subesti- sociais —ou mesmo das funções individuais —, ritos, cerimónias,
mados pelos nossos contemporâneos, mais atentos às rápidas muta- mitos, faz parte desta exploração, incluindo as «ilusões», as mitifi-
ções actuais da técnica e da ciência do que a essas estabilidades ins- cações, de que a primeira metade do século XX deu os mais trági-
critas na longa duração. Neste sentido, a investigação da psicologia cos exemplos, tanto na Europa como no Extremo Oriente. E tam-
histórica deve ser reconhecida como «a própria base de qualquer bém necessário detectar os comportamentos sociais dominantes: é
trabalho válido do historiador». o caso da participação em peregrinações como expressão de uma
forma de religiosidade, a aplicação de costumes (tácitos ou não) para
a defesa dos patrimónios no quadro da solidariedade familiar; ou
ainda a invocação de sentimentos patrióticos no decurso de cerimó-
1. MÉTODOS E CONCEITOS OPERATÓRIOS
nias religiosas, como a procissão anual do relicário de Santa Geno-
Nestes domínios ameaçados pelo mais insidioso e mais grave ana- veva em Paris. Os sociólogos que se ocupam dos tnass media e da
cronismo, a prudência do historiador impõe o recurso a um rigor cultura não cessam de efectuar demonstrações empíricas semelhantes
metodológico ainda mais exigente; a parte descritiva, que ocupa um para o presente. Os historiadores podem detectar as suas coodena-
lugar muito importante nestas reconstituições (antes de qualquer ten- das essenciais até ao mais longínquo passado; assim, a Histoire de
tativa de explicação), apoia-se em conceitos operatórios de estrita 1'éducation dans l'Antiquité, de H. I. Marrou, abunda em anota-
definição: visões do mundo, estruturas e conjunturas. ções (além da reconstituição dos modelos educativos) sobre o con-
junto destes condicionalismos sociais, que contribuem para apreen-
der a mentalidade dos grupos. Um importante exemplo da mesma
VISÕES DO MUNDO abordagem reside no trabalho de Lucien Goldmann consagrado à
Qualquer grupo social —ou mesmo qualquer sociedade global — visão do mundo jansenista do século xvn, a partir das obras de
postula como condição de vida um certo número de representações Racine e de Pascal: Lê Dieu cache,
da natureza, da vida e das relações humanas, de Deus (ou dos deu- Esta enumeração não dá conta das dificuldades que se deparam
ses). A coerência deste conjunto de representações deve ser explici- ao historiador numa reconstituição deste tipo: ele tem de avaliar a
tada uma vez que permite analisar as relações entre o conhecido, parte respectiva dos diferentes elementos a enquadrar, sem contudo
o reconhecido e o calado que intervêm na sua constituição. Para esquecer as representações dos seus leitores, seus contemporâneos.
a definir, Lucien Febvre utilizou, no seu Problème de 1'lncroyance, Lucien Febvre dá um exemplo esclarecedor ao afirmar que os
a expressão «utensilagem mental», que responde perfeitamente a homens do século xvi eram mais auditivos do que visuais e não
esta definição, se tivermos em conta que o seu inventário engloba, tinham ainda o hábito de privilegiar a vista: «Tal como o ouvido
além das noções e representações comuns, os modelos educativos fino e o olfacto aguçado», escrevia ele, «os homens desta época
e os comportamentos geralmente designados pela expressão «géne- tinham, sem qualquer dúvida, a vista penetrante. Mas não a tinham
ros de vida». Os conflitos «pedagógicos» entre Jesuítas e Oratoria- ainda separado dos outros sentidos.» Esta fórmula, decerto ines-
nos do século xvn podem ser encarados nesta óptica; também o perada, que suscitou sorrisos, ou mesmo uma pesada ironia, foi
quadro da vida quotidiana, os gestos e os trabalhos repetidos todos admiravelmente defendida e explicitada por Pierre Francastel, que

68 69

i
se entregou durante anos a uma demorada reflexão sobre os espa- lidade colectiva deve dominar para poder descrever e que exige, por
ços visuais e as suas representações pictóricas: a vista definida como consequência, uma compreensão em profundidade das expressões
um sentido intelectual, em suma, como um sentido abstracto. e dos comportamentos dos diferentes grupos que compõem uma
sociedade. O exemplo deste facto foi proporcionado pela análise de
ESTRUTURAS E CONJUNTURAS MENTAIS
uma desestruturação particularmente espectacular: a renúncia às per-
seguições de bruxaria pelos magistrados dos tribunais régios no
As coerências destas reconstituições estabelecem-se tanto mais século xvn. Após vários séculos, ao longo dos quais magistrados
facilmente quanto os historiadores podem, neste como em outros (e oficiais de justiça) tinham admitido uma intervenção quotidiana
domínios, detectar continuidades estruturais e, em menor medida, do Diabo nos assuntos humanos (estrutura mental perene), pro-
intersecções conjunturais. No domínio do mental, não é nada raro duziu-se uma «tomada de consciência», dramática sob certos aspec-
descobrir uma estabilidade multissecular de um conjunto de repre- tos, na conjuntura muito particular criada pela repetição de pos-
sentações aceites por largas camadas de populações: Marc Bloch sessões colectivas nos conventos, que fizeram escândalo. Teólogos,
pôde assim consagrar um estudo às características sobrenaturais atri- médicos e magistrados puseram pouco a pouco em causa proces-
buídas ao poder real em França e na Inglaterra desde a Alta Idade sos e notas de culpa, para renunciar finalmente a qualquer per-
Média até à aurora da época contemporânea. De igual modo, seguição criminal. Estamos perante o processo de uma revolu-
Alphonse Dupront estudou a persistência das imagens sagradas e ção mental pressentida por Michelet e reconstituída através das
dos tropismos itinerantes da cruzada, desde o fim das expedições correspondências, tratados polémicos, decretos e decisões do po-
à Terra Santa no século xin até ao século XIX. Estas relações está- der real.
veis reconhecidas nas suas permanências, à escala de nações intei-
ras, e mesmo do continente cristão, são exemplos difíceis e densos.
Muitos outros se oferecem à curiosidade dos historiadores, a come- 2. PSICANÁLISE E HISTÓRIA
çar pelas práticas e modelos habitualmente designados sob os frou- DA MENTALIDADE COLECTIVA
xos vocábulos de «tradições», «rotinas», «hábitos». Processos e
conteúdos devem ser elucidados a partir de documentos muitas vezes Todo este itinerário não implica qualquer recurso à psicanálise
contraditórios, desde os livros-razão ou memórias até aos testemu- que tenta os historiadores das psicologias colectivas. Já Freud, em
nhos administrativos e judiciais mais pormenorizados e com o auxí- Moisés e o Monoteísmo e Psicologia Colectiva e Análise do Eu, se
lio dos conceitos elaborados pela psicologia social (identificação, preocupava com os métodos que permitissem transpor «o abismo
sublimação, compensação, simulação), que adquirem assim direito que separa a psicologia individual da psicologia colectiva». Por
de cidade no vocabulário dos historiadores. detrás dos cientistas mais ou menos audaciosos que lhe sucederam
A história das mentalidades identifica os ritmos e as flutuações, perfilam-se, aliás, as estaturas inquietantes dos psicólogos sociais
longas ou curtas, a partir das quais se definem as conjunturas. desejosos de tratar as multidões e os povos a seu bel-prazer: intoxi-
Numerosos vocábulos da linguagem médica são utilizados neste cação, manipulação, propaganda.
domínio: «contágios», «epidemias», ou mesmo palavras mais anti- No estado actual das tentativas feitas nesta direcção convém, sem
gas, como «emoções», «conjunções», «encontros». Os medos- dúvida, observar uma certa prudência e limitarmo-nos a recordar
-pânicos dos campos, outrora estudados para explicar (em parte) algumas evidências: antes de mais nada, que a psicologia colectiva
o Grande Medo de 1789, ilustram estas conjunturas mentais, onde de um grupo não é a soma das psicologias individuais dos seus ele-
as falsas notícias mais incoerentes têm crédito e provocam violên- mentos, tal como este grupo não é uma simples soma de indivíduos.
cias. Mas a expressão «conjuntura mental» é também válida para Os métodos de investigação psicanalítica válidos para os indivíduos
definir o «clima» de uma época: a atmosfera trágica, patética, dos não são imediatamente transponíveis para os grupos, nem para a
decénios que precedem a Fronda, ou o tom e o estilo Regência dos sociedade global — se bem que uma tal prática esteja bastante difun-
anos de 1715-20 para designar comportamentos e modos de ser de dida, sob uma forma grosseira, através de comparações apressadas,
uma parte da sociedade parisiense posterior à morte de Luís XIV. imagens biológicas duvidosas, ao nível da informação geral. Qual-
Estruturas, desestruturação, reestruturação, conjunturas longas quer transferência deste tipo só pode suscitar a desconfiança daque-
ou curtas formam este jogo complexo que o historiador da menta- les que analisam os comportamentos colectivos.

70 71
tidade colectivos têm constantemente de se confrontar: alguns historiadores
tidade ffundamental
H i entre "o °colectivo
P ° nt ° de VÍSta " ue P° stula u <™ iden-
e o individual: entre o mito da Revolução Francesa, como Georges Lefebvre (nos seus estudos
ahmentado por um grupo social e o sonho individual, o que tem sobre as multidões revolucionárias), deram exemplos admiráveis que
a aparente vantagem de utilizar todo o esforço freudiano de aná- aguardam prolongamentos, modelização e todas as pesquisas com-
lise dos sonhos em «benefício» da interpretação das grandes repre- parativas necessárias para validar um novo método.
sentações colectivas, ou mesmo das ideologias em geral. Sonho
colectivo, sonho mdiv,dual: paralelo sedutor onde o amador do oní-
rico pode dar hvre curso ao seu engenho. Mesmo nos casos em que
3. HISTÓRIA DAS MENTALIDADES
os conteúdos parecem prestar-se melhor a estas transposições
E HISTÓRIA DIALÉCTICA
° ~ S e m i t l S m 0 ) ' *Ínsufidências do «método» são dema-
Finalmente, a história das mentalidades deve ser situada no pro-
Convém também rejeitar a tese por vezes aventada de uma iden- jecto mais largo de uma história total, em que a exploração das rela-
tidade «profunda» de todos os inconscientes individuais sobre a ções que constituem a vida dos homens em sociedade comporte um
qual podena fundar-se uma análise da mentalidade coíecdv Sen aspecto cultural tão importante como a parte económica e material.
eúdo, n Pr°CeSSOS> T meSm°' P3ra °S mais audaciosos, dos con- O que significa, por um lado, que não se trata de reconhecer à his-
m±o S'"6, T C "P ° StUlar Uma CSPécie de unanimismo, ou tória social da mentalidade colectiva um lugar privilegiado, ou uma
Sá aue t hgm' QUetar " bém «Justificam dificilmente. Sem espécie de primado, de inspiração ou de orientação mais ou menos
dimda que, também aqui, alguns brilhantes exercícios literários espiritualista: por outro lado, que este justo lugar legitimamente
podem ter causado uma certa ilusão, da mesma maneira que cer o reconhecido rejeita implicitamente todas as simplificações que se
abusos de linguagem em que as imagens, as descrições (do en u recusam a tomar em consideração os fenómenos de psicologia his-
Masmo ou do pânico), favoreceram tais audácias
tórica, abusivamente relegados para a categoria de «ideologias» sem
""feríVd °bSerVar a Prenda" do fundador da
é significado histórico. Registaram-se demasiadas esquematizações
F H ^ V13S ^ PaSSagCm Para ° estudo da P«- nos últimos anos, o que justifica a apresentação desta dupla adver-
, Freud invocava prioritariamente a «hereditarie- tência num texto de simples definições.
o conin £ 'T"'™ ^ f0rmaÇã ° da P^sonalidade, ou Sá, Esta concepção postula, além disso, uma relativa autonomia da
o conjunto dos problemas que os dados sociológicos intelectuais mentalidade colectiva, perante as determinações mais pesadas do
e espirituais da educação, no sentido mais lato do termo coTocam socieconómico. Nesta dialéctica de uma história social, nenhum his-
a qualquer mdiv.duo. Toda a modelização social realizada' pd edu toriador pensaria, sem dúvida, em contestar a interferência das rela-
cação - tão violentamente Posta ern questão nos nossos dias - entra ções sociais determinadas pelos vínculos económicos e dos compor-
rhte^Td^ " análÍS n d0 mdÍVÍdU ° 6 deste meio' constitutivo tamentos e visões do mundo. Mas, no mesmo movimento, convém
batór L n , ,arCaiCa' °Upla traJectória- seguramente mais pro- admitir que as desestruturações, as evoluções da mentalidade colec-
tram estes t '" P ersonalid ade individual, na qual se en£>n- tiva não se fazem aos mesmos ritmos que as do económico. O facto
"' mneS1C°S>>' do ^ Para a da psicologia coiec-
reveste"se de imponânda
é patente para o período contemporâneo, em que as mutações tec-
nológicas e científicas modificam os modos de vida material com
crescente rapidez, enquanto a mentalidade —pelo menos ao nível
oofe Sf ° f08. ?ro«ssos de influência, da «dinâmica» dos gru- de certos grupos sociais— se mostra muito lenta a mover-se. (Esta
vam um h? ' t^^' também de' de métodos Q-e reser- distorção torna, aliás, as mudanças materiais ainda mais descon-
Imda Frend * '"f".6"1*11* "»"^' («cada indivíduo» escrevia certantes.) O mesmo facto é também evidente para períodos mais
da antigos: sob o Antigo Regime, as concepções mais místicas do poder
da Ia
sua da Í *?*
classe, aã sua "' ^ *?*** 3lmaS
comunidade Coiectivas ' as d ^ sua raça,
confessional [ ]»)- alguns nsi real puderam coexistir durante muito tempo com teorias inovado-
ras e manter-se, pelo menos para a massa da população, até à época
das luzes, ern que monarquia e despotismo eram quotidianamente
postos em causa. Marc Bloch provou-o com toda a clareza nos seus
, i-uiii que os analistas dos movimentos Róis thaumaturges. Qualquer fenómeno de tomada de consciência,
72
73
qualquer estudo consagrado à vida cultural de países em que se tenha Peinturc et société. Naissance et destruction d'un espace plastique, Lião, 1951 /
verificado uma transformação social fundamental (França de 1789- / L. GOLDMANN, Lê Dieu cache. Étude sur Ia vision tragique dans lês Pensées de
Pascal et dans lê théátre de Racine, Paris, 1955 / J. HUIZINGA, Lê Déclin du Moyen
1850, Rússia de 1917-55) revela semelhantes sobreposições ou trans- Age (Herfstij der Middeleeuwen, 1919), trad. J. Bastin, Paris, 1932 (trad. port. na
gressões que demonstram a relativa autonomia do domínio mental Editorial Ulisseia) / R. MANDROU, De Ia culture populaire en France aux XVII"""
e cultural. et XVIII"" siècles. La bibliothèque bleue de Troyes, Paris, 1964; Magistrais et
Este facto contribui também para a dificuldade da investigação sorciers en France au XVII'"" siècle. Une analyse de psychologie historique, Paris,
nesta matéria; a história da mentalidade colectiva é, por definição, 1968 / R. MINDER, Allemagnes et Allemands. Essai d'histoire culíurelle. Paris,
duplamente dependente: no que diz respeito aos seus métodos de 1948; Kultur undLiteratur in Deutschland undFrankreich, Francoforte do Meno,
investigação, utiliza as aquisições da história literária, da psicolo- 1962.
gia social, da linguística, e mesmo da história biológica in statu nas-
cendi; para situar a sua contribuição para as explicações globais,
tem de referir-se incessantemente às evoluções principais, mais soli-
damente estabelecidas, da história social e económica. Não é por-
tanto de admirar que a psicologia histórica tenha até agora progre-
dido com lentidão: as primeiras obras-primas que abriram o
caminho neste domínio foram publicadas há vários decénios: Lês
Róis thaumaturges, de M. Bloch, Lê Problème de l'incroyance, de
Lucien Febvre; os artigos-programas deste último datam de 1938
e 1941. Sem dúvida que a extrema dificuldade (sublinhada por
Lucien Febvre) destes trabalhos explica em parte a lentidão deste
desenvolvimento: a verdade, porém, é que se situa nesta área uma
parte essencial do progresso da ciência histórica nos próximos de-
cénios.
R. Mandrou
BIBLIOGRAFIA
PROBLEMAS DE MÉTODO

M. BLOCH, «Aspects de Ia mentalité médiévale», in Mélanges historiques, t. n,


Paris, 1963 / G. DUBY, «Histoire dês mentalités», in Encyclopédie de Ia Plêiade,
L'Histoire et sés méthodes, Paris, 1961; «Histoire sociale et histoire dês mentali-
tés», conversa com A. Casanova, in La Nouvelle Critique, n.° 34, Maio de 1970 /
/ A. DUPRONT, «Problèmes et méthodes d'une histoire de Ia psychologie collective»,
in Ann. E. S. C., n." l, 1961; «L'Histoire après Freud», in Rev. Enseign. sup.,
n." 44-45, 1969 / L. FEBVRE, «Histoire et psychologie» e «La Sensibilité et l'his-
toire», in Cambais pour l'histoire, Paris, 1953 (trad. port. na «Biblioteca de Tex-
tos Universitários», da Editorial Presença); «Changement de climat: à Amiens, de
Ia Renaissance à Ia Contre-Réforme», «De l'à-peu-près à Ia précision» e «Sorcelle-
rie, sottise ou révolution mentale», in Au cceur religieux du XVI"" siècle, Paris,
1958; «Une gigantesque fausse nouvelle: Ia Grande Peur», in Pour une histoire à
part entière. Paris, 1961 / R. MANDROU, Introduction à Ia France moderne. Essai
de psychologie historique, Paris, 1961.
ESTUDOS

M. BLOCH, Lês Róis thaumaturges. Étude sur lê caractere surnaturel attribué


à Ia puissance royaleparticulièrement en France et en Angleterre, 1924, reed. Paris,
1961 / L. FEBVRE, Lê Problème de 1'incroyance au XVI"" siècle, La religion de
Rabelais, Paris, 1942, reed. 1963 (trad. port. na Editorial Início) / P. FRANCASTEL,

74 75
VI
A CONCEPÇÃO MARXISTA DA HISTÓRIA
Se a história fosse uma ciência, poderia uma «história marxista»
ter mais sentido do que uma «biologia marxista»? Afirmá-lo não
conduziria porventura a sustentar, de modo ambíguo, a teoria das
duas ciências, a «ciência burguesa» e a «ciência proletária»? Não
condenaram os marxistas, no próprio espírito da polémica travada
por Lenine contra o proleíkult nos anos 20, esta teoria das duas ciên-
cias formulada nos anos 50?
Na prática, porém, a questão é mais complexa. A história, como
todas as disciplinas que aspiram ao estatuto de ciências positivas,
mas cujo objecto diz respeito ao homem, à sociedade, à economia
ou ao Estado, e que estão ainda longe de ser ciências constituídas
e adultas, mergulha na ideologia. Longe de estar isento das distor-
ções de natureza ideológica, o conhecimento histórico inclui-as de
facto. Por outro lado, quando a observamos na longa prática dos
historiadores, desde Montesquieu ou Edward Gibbon, a génese da
história mostra claramente que a objectividade do saber histórico
se prepara no seio da ideologia segundo uma estratégia de ruptura,
sempre recomeçada, com a própria ideologia.
Esta estratégia de ruptura não é, no entanto, assimilável a uma
prática de natureza puramente teórica ou conceptual. Acontece mui-
tas vezes não se poder distinguir o racional do formal e do ideoló-
gico, em virtude da ausência de certos critérios que permitam esco-
lher a solução justa (científico-objectiva) e rejeitar a solução errada
(especulativo-ideológica); o leninismo defende o primado do crité-
rio da prática —prática social, prática científica, prática política —
como critério último do conhecimento verdadeiro, uma vez que ele
é «suficientemente vago para não consentir que os conhecimentos
do homem se alterem em 'absoluto' [..,] suficientemente determi-
nado para permitir uma luta implacável contra todas as variedades
do idealismo e do agnosticismo» (Lenine).

77
É também por isso que a história como ciência afirma a sua inte- de modo subtil, para orientar ou modificar a atitude do historia-
rioridade ao mundo do saber e ao da história vivida, mesmo quando dor. Inversamente, repercutida pelos mass media ou pelos líderes,
revela os meios de dominar o mundo e a sua história. uma autêntica pedagogia das ideologias dominantes apoia-se no
relato histórico para orientar os comportamentos colectivos (por
exemplo, na difusão do mito da democracia americana como modelo
de democracia ideal). O progresso da objectividade na ciência his-
1. HISTÓRIA, IDEOLOGIA E MARXISMO
tórica pressupõe uma ruptura com as determinações ideológicas, em
HISTÓRIA E IDEOLOGIA que se inscreve ainda a maioria dos historiadores não marxistas.

Na linguagem marxista, a ideologia é concebida como o conjunto HISTÓRIA E MATERIALISMO HISTÓRICO


das ideias, espontâneas ou elaboradas em sistemas, que exprimem
as relações dos homens entre si e com o seu meio. Para os marxis- A ciência não é a ideologia, mas há ideologias que favorecem
tas, ela está portanto submetida à história que se faz e intervém, o progresso do conhecimento científico; é o caso do materialismo
através de múltiplas mediações, ao longo de todo o processo de ela- nos séculos xvn e xvm no Ocidente. Os marxistas consideram que
boração do conhecimento histórico, da procura dos documentos à a ideologia revolucionária do proletariado preenche esta função de
redacção do texto. Este facto não conduz necessariamente a negar promover o saber objectivo onde dominem ainda as categorias ideo-
à história, como escreveram R. Aron ou H. I. Marrou na sequên- lógicas. Porque, ao contrário das ideologias progressistas pré-cien-
cia de outros, o estatuto de ciência objectiva, mas exprime a neces- tíficas, o marxismo é uma concepção científica do mundo, indisso-
sidade de o conhecimento histórico nada ignorar da esfera ideoló- luvelmente fundada no conjunto das ideias políticas e morais do
gica na qual se insere, para sublinhar o contributo conceptual do proletariado revolucionário e no conjunto do saber científico. É este
discurso histórico. O progresso no sentido da objectividade do saber o sentido da afirmação de Lenine segundo a qual o marxismo é ver-
histórico pressupõe assim, prioritariamente, a explicitação das for- dadeiro não por ser a filosofia do proletariado, mas é a filosofia
ças históricas e a crítica dos enunciados ideológicos que condicio- do proletariado porque é verdadeiro. Do ponto de vista do leni-
nam a produção da obra do historiador. Ora os métodos e as técni- nismo, o marxismo não é, pois, uma «doutrina científica», mas uma
cas a que recorrem os historiadores favorecem o ascendente das teoria, um conjunto orgânico de conceitos fundado no materialismo
determinações ideológicas (apesar dos grandes progressos realiza- dialéctico, método científico de conhecimento das leis da natár.eza,
dos durante a fase positivista do século XIX). É necessário apontar, da sociedade, das culturas, etc., e no materialismo histórico, teoria
em primeiro lugar, o fraco grau de conceptualização dos instrumen- científica da história feita ou que se faz, ele próprio conhecimento
tos mais vulgares da linguagem histórica dos historiadores idealis- teórico, mas também aplicação, no socialismo científico, das leis
tas e positivistas (classe, estado, política, conflito, etc.), de tal modo gerais da evolução das sociedades.
que cada palavra do vocabulário se torna o campo de uma tensão Como recorda Louis Althusser (1968), o materialismo histórico
ideológica, ou mesmo directamente social e política: todos os his- rompe com o idealismo das filosofias da história —isto é, das ideo-
toriadores sentem duramente este facto. Em segundo lugar, o logias não científicas— e instaura a cientificidade da história. Esta
objecto da história, simultaneamente balanço de uma prática colec- tese marxista clássica sugere que a história só pôde aspirar ao esta-
tiva e esforço de descoberta das leis ou estruturas dessa prática, é tuto de ciência após a introdução por Marx do «continente histó-
acompanhado por conotações afectivas, solicita interesses reais, que ria» (L. Althusser) no campo do conhecimento objectivo. Ruptura
conduzem, em última instância, a um recurso mais ideológico do epistemológica essencial, visto que o marxismo elabora um sistema
que científico. A interpretação germanófila ou romanista do fim do de conceitos onde domina a organização de esquemas ideológicos,
mundo antigo, a condenação ou a absolvição da colonização ibé- como tal conscientemente reconhecidos ou não. É neste sentido que
rica na América, a história da Revolução Francesa, a da escrava- a história pode ser promovida, pelo marxismo, à categoria de ciên-
tura e do «sulismo» nos Estados Unidos, a história das revoluções cia positiva.
socialistas ou da descolonização nos nossos dias ilustram claramente
esta proposição geral. Finalmente, o relato histórico e um género
vulgarmente acessível e as pressões exercem-se, na maioria dos casos,
78 79
tram a progressão, ano após ano, da problemática marxista. Em
2. OS HISTORIADORES MARXISTAS E A HISTÓRIA
termos de estratégia, é o idealismo em história que parece hoje na
OS HISTORIADORES PERANTE O MARXJSMO
defensiva.
Finalmente, grandes revistas como os Annales, Economies, Socié-
tés, Civilisations ou La Pensée, editadas em Paris, Past and Pre-
Os historiadores marxistas verificam que o trabalho dos histo-
sent, em Oxford, Criticastorica e Studi síorici, em Itália, sem con-
riadores é cada vez mais directamente afectado pela luta de classes.
tar com as revistas propriamente marxistas ou publicadas nos países
Sob formas particulares ou através de sistemas metodológicos mais
socialistas, deram a conhecer amplamente os trabalhos dos histo-
ou menos elaborados, as determinações políticas dos historiadores
riadores marxistas, facilitando a crescente penetração dos concei-
condicionam hoje mais fortemente a sua linha teórica e a escolha
tos marxistas, pelo menos ao nível da escrita histórica. Assiste-se
dos seus estudos. Na Europa e no Terceiro Mundo —independen-
assim, hoje em dia, a uma espécie de naturalização do materialismo
temente dos países socialistas— assiste-se a uma forte penetração
histórico, decerto bastante equívoca e frequentemente confusa, mas
das posições do materialismo histórico no domínio da investiga-
bem eloquente, facto que deve ser também directamente relacionado
ção histórica; este facto deve ser relacionado com as opiniões polí-
com a existência de estados socialistas marxistas e com os êxitos do
ticas dos historiadores, hoje mais próximas dos trabalhadores e das
socialismo na terça parte do globo.
suas organizações de classe. Paralelamente, as veementes críticas
contra o idealismo formuladas pelos partidos marxistas-leninistas
no último meio século contribuíram mais para favorecer o avanço
do ponto de vista do materialismo e da objectividade na prática 3. A FUNÇÃO DOS HISTORIADORES MARXISTAS
do conhecimento dos historiadores do que para travar o seu avanço,
Os historiadores que aderem conscientemente ao marxismo-leni-
como por vezes se julga; este fenómeno, que se desenrola no duplo
nismo têm obrigações de outra dimensão. Impõe-se-lhes o dever teó-
plano das realidades sociais e da reflexão teórica, reforça a cor-
rico de integrar, mediante uma reavaliação crítica minuciosa, todos
rente de «materialismo espontâneo dos estudiosos», que progride
os conceitos novos e demonstrações recentes da objectividade da
quando a ciência progride (cf. Lenine, Materialismo e Empiriocri-
ficismo). ciência em geral e da ciência histórica em particular. Sociologia ou
estudo das conjunturas, definição das classes sociais ou cálculo do
É por isso que certos historiadores, por vezes conservadores na
crescimento económico e determinação dos índices quantitativos,
ordení política, são conduzidos, frequentemente sem o quererem,
controvérsias epistemológicas sobre a definição do objecto de ciên-
a adoptar numerosos conceitos ou análises introduzidos no campo
cia, debates sobre a cultura e as ideologias, determinação do tempo
da reflexão histórica pelo marxismo. Os próprios marxistas sabem
histórico, nada pode ser hoje alheio a uma crítica marxista perti-
que não se devem sobrepor estreitamente as raízes gnoseológicas do
nente. Nesta tarefa, os historiadores comunistas trabalham em cola-
idealismo às suas raízes económicas e sociais e ao comportamento
boração com os partidos operários, considerados, na óptica leni-
político dos investigadores reaccionários. O marxismo reconhece o
nista, como intelectuais colectivos em virtude das leis gerais da
considerável contributo dos historiadores não marxistas para o con-
evolução das sociedades. Daqui resulta que os historiadores mar-
junto de conhecimento histórico. Inversamente, a influência do
xistas estão empenhados numa luta teórica pelo materialismo, que
materialismo histórico deve procurar-se hoje na totalidade do domí- •
se apoia na luta política conduzida pelos partidos comunistas con-
nio da investigação histórica e no interior dos debates ou das polé-
tra a burguesia dominante no sisíema do capitalismo monopolista
micas entre especialistas. Deste ponto de vista, tanto a natureza dos
de Estado e contra o imperialismo no mundo. Os historiadores
relatórios como a das discussões havidas por ocasião dos Congres-
marxistas-leninistas são, pois, historiadores de partido, conscien-
sos das Ciências Históricas de Paris (1950), de Roma (1955), de Esto-
tes das relações entre a estratégia de luta da classe operária e das
colmo (1960) e de Viena (1965), ou ainda de diversos colóquios inter-
forças revolucionárias e as suas próprias obrigações teóricas e cien-
nacionais (como as conferências de história económica de Munique,
tíficas. A compatibilidade deste duplo dever do historiador marxista
em 1965, e de Bloomington, nos Estados Unidos, em 1968, ou o
reside na circunstância de o marxismo-leninismo ser simultanea-
colóquio do CNRS sobre a abolição do feudalismo realizado no mente teoria verdadeira do conhecimento objectivo e prática revo-
mesmo ano em Toulouse) ou franceses (colóquios de história social
lucionária erudita.
na Escola Normal Superior de Sainí-Cloud, em 1965 e 1967) mos-
81
4. PRÁTICA POLÍTICA E VERDADE HISTÓRICA gações imediatas do poder soviético (planificação, centralização, luta
contra as facções no partido bolchevique, exaltação da pátria russa
Esta posição revelou-se, todavia, difícil de sustentar. Para mui- ameaçada pelo hiíierismo). Chegou a escrever-se a história, mesmo
tos historiadores, o período compreendido entre 1930-34 e o XX a mais antiga, em função das solicitações mais imediatas da luta polí-
Congresso do Partido Comunista da URSS (PCUS), em 1956, foi tica conduzida pelos comunistas. Esqueceu-se assim o respeito
um tempo de longa ascese. Com efeito, o problema das relações do devido aos métodos e às técnicas escrupulosas do ofício de histo-
político com o histórico no próprio interior da problemática mar- riador: respeito do documento na sua integralidade, exigência de
xista deu lugar a percursos difíceis e impõe-se necessariamente um informação multiplicada e crítica da massa documental. Os histo-
ajustamento a cada momento da história das lutas de classes, bem riadores comunistas na União Soviética, nas democracias popula-
como da história do saber. res e na China Popular e os que, nos países capitalistas, aderiam
No início do movimento socialista marxista, a exaltação pelos por livre escolha aos partidos comunistas sentiram profundamente
historiadores de partido das lutas operárias e, por recorrência, das os efeitos deste desvio. Alguns calaram-se, outros submeteram-se
das classes revolucionárias anteriores, mostrou-se fecunda na for- sem conhecer bem o sentido dessa submissão; outros ainda viram
mação da consciência de classe dos operários. Essa história foi o na aceitação política destes erros um gesto de disciplina revolucio-
primeiro património do proletariado revolucionário. Mas, ao des- nária, reservando-se o direito de apresentar a sua crítica ulterior-
cobrirem a luta dos explorados, sistematicamente ignorada pela his- mente; houve também oportunistas, adeptos inesperados do socio-
tória tradicional, numerosos historiadores foram levados a desin- logismo weberiano, que acabaram por imaginar uma história do
teressar-se dos outros sectores da história global, abandonados à passado escrita sem mediação por referência exclusiva ao presente,
actividade tenaz dos historiadores idealistas. Acaso poderia ter sido como fazem, aliás, milhares de historiadores burgueses. Esta posi-
de outra maneira? ção, próxima do empirismo, afasta-se do leninismo, o qual, longe
Por outro lado, os historiadores marxistas, sobretudo antes da de ser um dogma, ensina, pelo contrário, a não retirar o concreto
Revolução de Outubro, não escaparam às formas de pensamento das coisas, das «leis» normativas de uma teoria abstracta, mas a
dos historiadores positivistas ou idealistas que estavam a seu lado, servir-se da teoria para conhecer o real.
inclusivamente no seio dos partidos sociais-democratas. Em teóri-
cos como G. V. Plekhanov ou K. Kautsky, o virtuosismo na utili-
zação dos conceitos marxistas dificilmente esconde uma concepção
mecanicista da história, e Jean Jaurès, apesar da sua grandiosa His- 5. PEDAGOGIA DO MARXISMO E HISTORIA
toire socialiste de Ia Révolution française (1904), está frequentemente Apesar destas vicissitudes, realizaram-se algumas descobertas his-
mais próximo do idealismo pré-marxista do que do materialismo tóricas importantes; a história de Bizâncio, a das «civilizações» e
histórico. Quanto a Eugène Tarlé, as suas primeiras obras são for- povos das estepes ou do Cáucaso, o estudo do modo de produção
temente marcadas pelo materialismo mecanicista e pelo empirismo feudal, a história comparada das revoluções burguesas, a história
dominante nos grandes historiadores russos pré-revolucionários. das lutas operárias e camponesas ou do imperialismo (na sequência
Finalmente, os erros teóricos que acompanharam o momento his- da obra fundamental de Lenine, O Imperialismo, Estádio Supremo
tórico, qualificados na URSS de «culto da personalidade de Esta- do Capitalismo, 1916) avançaram de modo indiscutível: a tese de
line», culminaram em formas de degenerescência da investigação Boris Porchnev, embora estabelecida segundo processos tradicio-
científica em história como em certas ciências da natureza ou da nais, renovou a história do século xvn, estimulou os estudos sobre
sociedade. A história mais recente, a do movimento operário e a natureza do Estado absoluto e colocou a questão das estruturas
comunista, a da revolução de 1917 e das suas consequências e, de do «feudalismo»; a obra de Porchnev é uma abertura sobre os pro-
um outro modo, a história do Oriente e da Ásia ressentiram-se bas- blemas da história geral e comparada.
tante desse facto. Assim se interrompeu em 1930 o debate sobre o Por outro lado, neste período, no Ocidente, as edições em lín-
«modo de produção asiático», a pretexto da sua inadequação ao guas estrangeiras dadas à estampa em Moscovo, as publicações da
esquema dos «cinco estádios históricos» imposto por Estaline como Internacional Comunista e depois, após a sua dissolução, as de diver-
um dogma. De igual modo, a redacção da história do Partido Comu- sos organismos comunistas internacionais, as revistas, jornais e casas
nista (bolchevique) foi controlada por Estaline em função das obri- editoras dos partidos comunistas nacionais implantaram uma ver-
82 83
e 'ra pedagogia de massa do marxismo, de que são devedores a converter-se proclamações de intenção, por vezes solicitadas pela
lona dos historiadores marxistas da geração actual e, de modo pergunta, em probabilidade de acção histórica.
ais 8 en érico, todos os historiadores sensíveis ao tipo de proble- O historiador, e por maioria de razão o historiador marxista, e
mas levantados pelos marxistas. Não obstante as esquematizações o político marxista têm em comum a circunstância de se interroga-
abusivas, o período de 1930 a 1960 é uma etapa decisiva na difusão rem sobre a prática dos homens, um para determinar a sua estru-
os conceitos do materialismo histórico: forças produtivas e rela- tura e as suas leis, o outro para prever e organizar a transformação
Çoes de produção, base económica e superestruturas, lutas de clas- revolucionária do mundo.
ses e consciência de classe, revolução e estádios históricos de evolu- A estratégia do historiador marxista explicita-se facilmente no
Çao, «natureza» e história, estrutura e conjuntura, etc. É neste plano da teoria e do método. Ele constrói o objecto histórico — que
sentido que a actual omnipresença da problemática marxista no não é a História, nem o Homem, abstracções que a escola empi-
campo das ciências históricas e sociais explica que um historiador rista situa no primeiro plano. Fundamenta-se nos instrumentos con-
e economista como W. Rostow (1959) se tenha situado no próprio ceptuais que o materialismo histórico lhe propõe: os conceitos de
erreno da teoria marxista dos estádios históricos para tentar refu- modo de produção, de classe, de Estado, de ideologia, etc. Define
o materialismo histórico e dar um fundamento credível ao seu o seu campo de estudo, remetendo sistematicamente para o conjunto
«manifesto não comunista». Mas ele colocou-se, na realidade, no do já conhecido o real organizado em objecto de conhecimento.
terreno sempre difícil da defensiva. O materialismo histórico permite ao historiador construir um saber
histórico que dá à história o estatuto de uma ciência positiva. Deste
ponto de vista, o marximo surge como a consumação, no plano da
6- OFÍCIO DOS HISTORIADORES MARXISTAS teoria, dos grandes progressos formulados pela crítica realista e posi-
tivista do século XIX na via da objectividade do conhecimento.
Desde cerca de 1950 (e 1920 na URSS), a gnoseologia do mar- Os historiadores marxistas assentam toda a sua investigação no
ismo deu progressivamente lugar à investigação científica segundo materialismo histórico. Ora, ao romper com as filosofias especula-
Princípios do materialismo dialéctico. O historiador marxista, na tivas da história, o marxismo pode assimilar tudo o que a investi-
me ida em que adere ao marxismo-leninismo, é auxiliado na sua gação histórica introduziu de racional no conhecimento, em parti-
are a de investigador pela sua participação nas lutas revolucioná- cular tudo o que a historiografia contemporânea propõe de novo
rias dos partidos leninistas. no domínio da história serial ou quantitativa — já que é verdade
d h-eVe a^aS ^ etectar ~ se uma analogia real entre o procedimento que esta história muito moderna assinala a seu modo, mas no hori-
o istoriador e o do dirigente leninista: um mesmo empenho em zonte desvendado por Marx e Lenine, a promoção da história de
u ar as estruturas fundamentais e a sua forma de existência, o massas.
C. Mazauric
momento atingido pelo desenvolvimento objectivo das forças his-
ricas e o nível de consciência dos homens —ou «momento sub-
BIBLIOGRAFIA
c ivo» , um mesmo interesse em descobrir a interacção entre as
rH°^StaS ^a ^te e a miciativa criadora das massas, um mesmo sen- PROBLEMAS GERAIS. EXPOSIÇÕES DE REFERÊNCIA E DE CRÍTICA
° a ""ração de uma formação histórica ou política; finalmente, a) Obras marxistas:
a mesma aptidão para separar o possível histórico do imaginá- L. ALTHUSSER, Pour Marx, Paris, 1965; Lenine et Ia philosophie, Paris, 1969
poético. Se tomarmos como exemplo a técnica das sondagens (trad. port. na Editorial Estampa) / J. J. GOBLOT & A. PELLETIER, Matérialisme
pimao, podemos pensar, com J. Strayer, que a «indicação ver- et histoire dês civi/isations, Paris, 1969 (trad. port. Ed. Estampa) / A. GRAMSCI,
// Materialismo storico e Ia filosofia di Benedetto Croce, Roma, 1948; Note sul
na > na° C Um ^^icador real da opinião» e que «uma opinião que
Machiavelli, sulla política e su/lo Stato Moderno, Roma, 1949 / J. KAHN, «Une
rt F num acto ou Q116 não se transforma em acção não tem
nouvelle science historique», in La Nouvelle Crilique, n.° 35, Junho de 1970 / V.
da n G Irnportância>> - Esta crítica histórica e materialista da son- I. LENINE, Lê Développement du capitalisme en Russie (Razvitie kapitalizma v Ros-
de opinião, mesmo a mais aperfeiçoada, coincide com a que sii, 1898), in CEuvres completes, t. m, Pans-Moscovo, 1970; Matérialisme et empi-
Partidos comunistas desenvolvem. Com efeito, estes observam riocriticisme (Materializm ; empiriokrilici^rn, 1908) (trad. port. Ed. Estampa), in
e uma opinião estatisticamente equivalente a outra pode não ter CEuvres completes, t. xiv, 4. a ed., Paris-Moscovo, 1962 / K. MARX, La Lutte dês
mesma eficácia histórica. Consideram também que não podem classes en France (Die Klassenkampfe in Frankreich, 1850) (trad. port. Ed. Estampa),

84 85
trad. P. Meier e P. Angrand, reed. Paris, 1967; Lê Dix-Huit Brumaire de Louis Bona- c) Transição do feudalismo para o capitalismo e revolução burguesa:
paríe (Der achtzehnte Brumaire dês Louis Napoiéon Bonaparle, 1852) (trad. port. V. M. DALIN, G. Babeuf avant et pendaní Ia grande Révolutionfrançaise (1785-
Ed. Estampa), trad. G. Badia, reed. Paris, 1968; Contribuúon à Ia critique de féco- 1794) (em russo), Moscovo, 1963 / M. Dose, Eludes sur lê développemení du capi-
nomie politique (Zur Kritik der politischen Õkonomie, 1859) (trad. port. Ed. latisme (Síudies in lhe Developmení ofCapitalisrn, 1947), trad. L. Mozère, Paris,
Estampa), trad. M. Husson e G. Badia, reed. Paris, 1968; La Guerre civile en France 1969) / E. J. HOBSBAWM, Lês Prirniíifs de Ia revolte dans l'Europe moderne (Pri-
(The Civil War in France, 1871) (trad. port. Ed. Caminho), trad. P. Meier e minve Rebels, 2.' ed., 1963), Paris, 1966 / W. KULA, «L'Origine de 1'alliance entre
P. Angrand, reed. Paris, 1967 / K. MARX e F. ENOELS, L'Idéologie allemande (Die Ia bourgeoisie et lês propriétaires fonciers dans Ia première moítié du XIX™' siècle»,
deutsche Idéologie. Kritik der neusten deulschen Philosophie in ihren Reprásen- i ii La Pologne au X"" Congrés International dês sciences historiques à Rome,
lanten, Feuerbach, B. Bauer un Stirner, un dês deutschen Sozia/ismus in seinen vers- Varsóvia, 1955 / G. LEFEBVRE, Eludes orléanaises, 2 vols., Paris, 1963 / W. MAR-
chiedenen Propheten, 1845) (trad. port. Ed, Presença), trad. G. Badia, H. Auger KOV, Die Freiheiten dês Priesters Roux, Berlim, 1957 / A. SOBOUL, Lês Sans-Culot-
et ai, reed. Paris, 1968 / G. PLEKHANOV, Essai sur lê déve/oppement de Ia concep- sesparisiens en l'an II, 2.' ed., Paris, 1962 / P. M. SWEEZY, M. DOBB et ai., A Sym-
tion moniste de 1'histoire (K voprosu o razvitii monisticeskogo vzgljada na istoriju, posium. The Transiíion from Feudalism to Capitalism, Londres, 1954 (trad. port.
1895), Moscovo, 1961, (trad. port. Ed. Estampa) / L. SÈVE, Marxisme eí théorie Ed. D. Quixote) / H. K. TAKAHASHI, Shimin Kakumeino Kozo, Tóquio, 1950 / E.
de Ia personnalité, Paris, 1969 / Sur lê mode de producion asiatique, Centre d'étu- TAF LÊ, Classe operaia r.e/la Revoluzione Francese (Rabocij Klass vo Franci v epoke
des et de recherches marxistes. Paris, 1969 / Sur lês sociétés précapitalistes, textos Revoljucij), 2 vols., Roma, 1961.
de K. Marx, F. Engels e V. I. Lenir.e, escolhidos e apresentados por M. Godelier, d) Capitalismo, imperialismo e movimento operário:
Paris, 1970. Além da inumerável literatura histórica, política e económica publicada pelos
b) Críticas explícitas ou implícitas da problemática marxista: partidos e líderes marxistas, utilizável como documentos, mas também como aná-
lise marxista, devem reter-se enquanto particularmente acessíveis ou significativos
R. ARON, Dimensions de Ia conscience historique, Paris, 1961 / J. D. BERNAL,
de algumas orientações: G. BADIA, Histoire de 1'Allemagne contemporaine, 2 vols.,
Science in History, Londres, 1954 (trad. port. nos Livros Horizonte) / M. KOMA
Paris, 1962 / J. BOUVIER, Lê Crédit lyonnais de 1863 à 1882, 2 vols., Paris, 1961 /
ROVSKY (dir.), Common Frontiers of lhe Social Sciences, Glencoe (111.), 1957 / H. I.
/ V. 1. BOVIKIN, Zarozdenie fmansovogo kapilala v Rossii, Moscovo, 1967 / J. BRU-
MARROU, La Connaissance historique, Paris, 1961 (trad. port. na Editorial Aster) /
HAT, J. DAUTRY e E. TERSEN, La Commune de 1871, Paris, 1960 / J. CHESNEAUX,
/ W. ROSTOW, Lês Étapes de Ia croissance économique (The Stages of Economic
Lê Vieí-Nam, Paris, 1968 / J. COULAND, Lê Mouvement syndical au Liban pen-
Growlh, 1960), trad. M. J. de Rouret, Paris, 1963 / R. WITTRAM, Zukunft in der
dant lê mandai /rançais, Paris, 1970 / J. DAUTRY, 1948 et Ia Deuxième Republi-
Geschichte. Zn Grenzfragen der Geschichtswissenschaft und Theologie, Gotinga,
que, 2. a ed., Paris, 1957 / Geschichte der deutschen Arbeiterbewegung, 8 vols., Ber-
1965. lim, 1966 / W. POTEMKINE, Histoire de Ia diplomatie, Paris, 1946 / A. L. SIDOROV,
Finansovoepolozenie Rossii god'ipervoi mirovoi voin'i 1914-1917, Moscovo, 1960
ALGUMAS OBRAS E PUBLICAÇÕES HISTÓRICAS DE INSPIRAÇÃO MARXISTA
/ C. WILLARD, Lês Guesdistes, Paris, 1965.
a) Antiguidade: e) Biografias:
V. G. CHILDE, La Naissance de Ia civi/isation (The Dawn of European Civili-
J. BRUHAT, Lénine, Paris, 1960; Marx-Engels, Paris, 1970 / J. MASSIN, Robes-
zation, 1950) Paris, 1962, (trad. port. Ed. Portugália) / R. OUTCHENKO, «État et
pierre, Paris, 1959 / J. e B. MASSIN, Mozart, Paris, 1959; Beethoven, Paris, 1960 /
classes dans Ia société esclaviste», in Recherches internationales à Ia lumière du mar- / E. TARLE, Napoiéon, Paris, 1937.
xisme, n.° 2, 1957; «La Naissance de 1'Empire romain et lê problème de ia révolu-
tion sociale», in Voprosy historii, n.° 7, 1964; «Premières Sociétés de classes et mode
de production asiatique», in Recherches internationales à Ia lumière du mur:<isme,
n." 57-58, 1967 / G. THOMSON, Síudies in Ancient Greek Society, 2 vols., Lon-
dres, 1954-55, (trad. port. Ed. Estampa) / j. P. VERNANT, Lês Origines de Ia pen-
sée grecque, Paris, 1962, (trad. port. ed. 70).
b) Feudalismo:
B. GEREMEK, Lê Salarial dans /'artisanat parisien au XII!"" siècle, Paris,
1968 / N. P. GRACIANSKU, De l'histoire sociale et économique de í'Europe occi-
dentale au Moyen Age, Moscovo, 1960 / A. P. KAJDAN, La Campagne et Ia ville
de Byzance aux IX1"' et X"" siècles (em russo), Moscovo, 1960; «Lê Féodalisme»,
in Recherches internacionaies à Ia lumière du marxisme, n.° 37, 1963 / E. Kos-
MINSKI, «L'Évolution dês formes de Ia rente féodale en Angleterre du XI™' au
XV'"" siècles», in Voprosy historii, n.° 2, 1955 / B. PORCHNEV, Lês Soulèvements
populaires en France de 1623 à 1648 (Narodnie Vosstanie vo Francii pered Frondoi
1623-1648, 1948), Paris, 1963 / E. SERENI, Storia deipaesagio agrário italiano, Bari,
1961 / P. VILLAR, La Catalogne dans l'Espagne moderne, 3 vols., Paris, 1962.

87
86
VII
A TEOLOGIA DA HISTÓRIA
Aspecto muito representativo do pensamento cristão do nosso
tempo, a teologia da história esforça-se por inventariar e sistemati-
zar o que a revelação e a fé esclarecem o crente sobre o problema
do «sentido da história», da marcha da humanidade no seu con-
junto através do tempo. Ela afirmou-se em oposição às diversas filo-
sofias da história formuladas no Ocidente desde o final do século
xvin, que, por seu turno, se tinham desenvolvido em reacção a uma
interpretação adulterada e deficiente da doutrina cristã.
Tal como a sua religião-mãe, o judaísmo, o cristianismo é uma
religião histórica, que defende uma intervenção de Deus na histó-
ria humana, o que implica uma valorização positiva do tempo
vivido: a história é o modo de realização de uma «economia», de
um plano divino, destinado a proporcionar a salvação. Mas a ver-
dadeira história, a que tem um sentido, não é a história empírica,
visível, mas a história em larga medida inacessível a nossos olhos,
do destino espiritual da humanidade: o seu objecto e a sua natu-
reza são definidos com referência às duas imagens de S. Paulo do
crescimento do «Corpo» (místico) de Cristo e da «construção» do
edifício ou, conforme o desenvolverá de preferência Santo Agosti-
nho na obra-mestra que lhe consagrou, da cidade de Deus, congre-
gação do povo dos santos.
Mas esta autêntica visão cristã da história esteve sempre amea-
çada por desvios. Desde a literatura apocalíptica dos primeiros tem-
pos cristãos até às seitas iluministas contemporâneas têm-se mani-
festado, de facto, muitas formas daquilo que a ortodoxia qualificou
de heresia milenarista: espera exasperada do fim da história; reino
dos eleitos sobre a Terra onde floresceriam a justiça e a felicidade;
confusão entre este estádio escatológico e a construção de urna cris-
tandade, ou cidade terrestre de inspiração cristã. Sob estas diversas
formas realizou-se uma transposição do plano espiritual para uma

89
concepção mais profana da história, que prefigurou e de algum que pretendia fornecer uma interpretação cristã do passado da
modo justificou o aparecimento de filosofias da história rivais, e humanidade, no Discours sur 1'hisloire universelle (1681); dado que
em breve vitoriosas em relação a esta teologia adulterada. esta empresa ficou incompleta, seria necessário considerar ainda a
Politique íirée de 1'Écriíure Sainte (1709). O pensamento cristão do
século xix tornou-se estéril na medida em que se deixou encerrar
1. REDESCOBERTA DA ESSÊNCIA no desafio, no challenge assim formulado, e em que se obstinou em
HISTÓRICA DO CRISTIANISMO defender e reivindicar a obra de Bossuet como a expressão autên-
tica do ensinamento da revelação cristã, quando afinal ela só repre-
A AUFKLÀRUNG E BOSSUET sentava uma interpretação deformada e parcialmente ilegítima dessa
Embora se possa assinalar um emprego esporádico da expressão mesma revelação; não que Bossuet fosse particularmente respon-
no século xix, sob a pena de Stoffeis (1842) ou de Cournot (1861), sável pelo facto: ele era prisioneiro de um antiquíssimo processo de
a noção de teologia da história só se generalizou verdadeiramente semi-secularização. Se a geração actual assistiu ao desenvolvimento
durante a última geração: e!a generalizou-se e constitui o objecto de uma nova fase, de um renascimento da teologia da história, é
de meditações de muitos pensadores cristãos, independentemente porque, despojado de uma apologética muito limitada, este pensa-
da sua confissão ou tendência — ortodoxos, católicos, anglicanos, mento cristão soube reencontrar a essência de um ensinamento pro-
luteranos, reformados ou liberais. Este esforço, que é afinal uma priamente revelado sobre a história, praticando esse retorno às fon-
redescoberta, explica-se por várias causas: a necessidade de respon- tes que sempre esteve na base de todas as fases de renovação, de
der à angústia nascida das convulsões da civilização ocidental e à reforma, de reviva!, que pautam o desenvolvimento do cristianismo.
crise resultante das duas guerras mundiais, o desgaste e a contesta-
ção da ideologia do progresso, na qual apostara a Europa da era O TEMPO NA ECONOMIA DA SALVAÇÃO
liberal, a consciência duma historicidade fundamental da condição
humana (a influência do primeiro Heidegger, directa ou mediata, A religião cristã, tal como o judaísmo, donde provém, é por
não pode ser minimizada), a necessidade, enfim, de opor uma solu- essência histórica. O Deus de Israel, tal como se revela através do
ção cristã aos problemas que as filosofias historicistas, que tão pro- Antigo Testamento, não é, em primeiro lugar, o Deus dos filóso-
fundamente modelaram a cultura e a mentalidade comuns da nossa fos e dos sábios — o Deus que foi desde sempre, que é e que será
época, de Hege! e Marx a Benedetto Croce, procuravam resolver. para todo o sempre —, mas o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob:
Mas esta resposta ou réplica é também uma recuperação; as diver- o Deus que se manifestou na gesta dos patriarcas, que elegeu o seu
sas filosofias da história elaboradas desde o início do século XIX povo, que manifestou de modo flagrante a sua solicitude para com
ordenam-se dialecticamente numa série que, gradualmente, nos faz ele por meio das maravilhas do Êxodo, o Deus que se deu a conhe-
recuar à Aufklárung, à «filosofia das luzes» dos pensadores fran- cer a Moisés no Sinai e que, através de castigos e perdões, formou
ceses do século xvin: Marx implica e pressupõe Hegel na exacta e educou este povo simultaneamente eleito e rebelde, o mesmo Deus,
medida em que pretende reapreciá-lo, e de igual modo Hegel Kant, enfim, que falou pelos profetas. Em seguida, a mensagem cristã do
Kant Herder; este, finalmente, como bem mostrou Ernst Cassirer, Evangelho, ou «boa nova», mostra em Jesus de Nazaré o Messias
se adopta uma posição original e crítica perante os seus predeces- prometido e esperado, a realização da nova aliança. O credo no qual
sores franceses, só os transcende apoiando-se neles. Ora, no pensa- se resume esta fé proclama a encarnação do verbo divino na pessoa
mento dos seus fundadores —Turgoí (1751), Voltaire (1765), Con- de Jesus Cristo, a sua morte redentora na Cruz, a ressurreição, o
dorcet (1795)—, a noção e a própria expressão de «filosofia» da seu regresso a Deus, a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos
história tinham um valor polémico: ser «filósofo» era opor as luzes e entre os homens no dia de Pentecostes — são outros tantos acon-
da razão humana às superstições e preconceitos do obscurantismo tecimentos históricos através dos quais se realiza o plano divino, ou
e adoptar uma atitude critica e céptica em relação à religião estabe- oikonomia, da salvação; e, por último, é um outro acontecimento
lecida — em França, o catolicismo. Estas primeiras filosofias da his- histórico que é aguardado, o retorno glorioso de Cristo, a sua parú-
tória foram elaboradas tendo como paradigma a obra do «elo- sia triunfante nos últimos dias, na escatologia; a fé cristã é insepa-
quente» e «ilustre» Bossuet, simultaneamente admirada como uma rável desta história santa, desde história sagrada — uma história
obra-prima literária e desacreditada, desqualificada na medida em real, vivida, e não um mito.

90 91
É este o núcleo revelado em torno do qual se desenvolve a teolo- escolhida — o povo de Israel; e, por outro lado, durante os tempos
gia cristã da história. Por um lado, ela implica uma intervenção, pós-crísticos, pelo recrutamento do povo novo, do povo dos san-
uma série de intervenções de Deus na duração histórica, no tempo, tos, pela edificação da Cidade de Deus, pelo crescimento progres-
que surge assim valorizado na medida em que é portador da salva- sivo do Corpo de Cristo, que a Igreja representa, vista não sob a
ção: modo intrínseco do ser criado, ele é o meio desejado por Deus sua aparência empírica ambígua, mas na sua realidade misteriosa
para a realização do seu plano; de Celso (cerca de 178) a Voltaire, e profunda; é o que explica e justifica o aparente atraso da parúsia
esta concepção ver-se-á confrontada com as objecções dos filóso- anunciada, aguardada e esperada: a consumação do cresciment^e
fos, como indigna de Deus e contrária à sua transcendência e à sua da maturação do Corpo de Cristo é a razão de ser, a medida do
imutabilidade. Por outro lado, o tempo da história surge assim tempo que ainda decorre.
revestido de um valor positivo: ele não é nem um mal, resultante
da queda das almas, como para o neoplatonismo, nem uma ilusão, MISTÉRIO E AMBIVALÊNCIA DA HISTORIA
como para muitas filosofias religiosas da índia. Tem-se frequente-
mente contraposto este tempo linear da religião judaica e cristã Referimo-nos anteriormente à noção de progresso: remontando
— que vai da criação do mundo à consumação da história— ao para lá das deformações que sofreu, depois de transposta para o
tempo cíclico dos Gregos, que, depois de concluído o grande ano plano da história das civilizações e das técnicas, a teologia esforça-
do mundo, se fecha como um círculo e prevê um recomeço perió- -se por reencontrar a sua significação primeira: século após século
dico da história; não deve, no entanto, exagerar-se o papel desem- e de instante a instante, a história avança realmente, aproxima-se
penhado por esta noção de «eterno retorno» no pensamento antigo, da sua realização integral, mas o que cresce e o que amadurece, o
nem projectar sobre ela o patético de que Nietzsche a cobriu ao que é o verdadeiro assunto da história, é, convém sublinhá-lo, o
redescobri-la; é sobretudo em relação ao pensamento hindu que se Corpo «místico» de Cristo (o epíteto pertence à teologia moderna).
poderia observar a oposição mais radical: a análise faz aparecer cla- Este progresso só é apreendido, entendido e conhecido na fé, ou
ramente o laço que une esta teologia cristã da história ao mono- seja, num conhecimento necessariamente parcial e obscuro. A fé faz
teísmo. A Encarnação não é um avatãra entre muitos outros: o Filho comungar o cristão com o pensamento divino, sem, no entanto, abo-
único, monógeno, do Deus único encarnou uma só vez, sofreu a lir o abismo que separa a condição humana do Ser transcendente.
paixão e assim alcançou a salvação dos homens «de uma só vez» O homem cristão, pela fé, sabe que a história tem um sentido e qual
(eçáTtaÇ, o termo é empregue em quatro ocasiões no Novo Testa- é esse sentido, mas não possui um meio seguro para escrever desde
mento). Esta unicidade da história sagrada comunica-se a toda a já esta história, só plenamente perceptível do lado do Eterno. Todos
história humana e confere-lhe um carácter trágico que a aproxima, os teólogos, seja qual for a confissão ou a escola de que se recla-
tanto quanto pela esperança dela a afasta, da concepção grega, pagã, mem, estão de acordo em sublinhar aquilo que designam como o
antiga, da existência: só temos uma vida e o seu enredo é infinito. mistério da história, que apenas será plenamente elucidado na esca-
Contudo, importa sublinhar que esta valorização do tempo, pela tologia: em primeiro lugar, porque, nessa altura, a história estará
luz que o ensinamento revelado projecta sobre a história, só pro- consumada e só então todas as causas terão produzido todos os seus
porciona directamente uma interpretação do devir espiritual, reli- efeitos, só então cada uma das etapas deste longo e complexo itine-
gioso, da humanidade, e não explicitamente daquilo a que os rário da humanidade revelará a sua significação; o papel e o con-
homens chamam normalmente a história, ou seja, a sequência dos tributo real e, portanto, o significado de cada acontecimento, de
acontecimentos e a evolução das estruturas de ordem política, eco- cada vida, de cada sofrimento suportado ou de cada façanha reali-
nómica, social ou cultural, observáveis e analisadas pela ciência his- zada, poderão aparecer; em segundo lugar, porque só então, ple-
tórica. Aos olhos do teólogo, a verdadeira história do homem é a namente iluminados na luz divina, nós conheceremos como somos
sua história santa, a história sagrada, aquela no decurso da qual conhecidos. Até aí, de todos os homens inscritos no próprio tecido
se cumpre, se realiza o plano divino da salvação. O tempo da histó- da história, enredados na sua complexidade, nenhum se pode van-
ria, de ambos os lados do feixe central de acontecimentos que a vida gloriar de medir, a partir do presente, qual é, para cada aconteci-
de Cristo constitui da Encarnação à Paixão e à Ressurreição triun- mento (episódico ou de longa duração), a parte mais ou menos
fante, explica-se, por um lado, pela «preparação evangélica», pela importante com que ele contribui de forma positiva para o avanço
educação progressiva da humanidade e, no centro, da sua parcela da história, ou, pelo contrário, qual a parte devida ao mal, às devas-

92 93
rente da tradição cristã (nomeadamente, na sua origem, no próprio
tacões do pecado, que retarda a consumação da salvação. O tempo meio asiático donde proveio o Apocalipse de João) interpretou em
da história surge assim carregado de uma ambiguidade, de uma conformidade com a mais antiga concepção judaica, esta revela "
ambivalência radical: ele é, sem dúvida, mas não apenas, como o como a promessa de um triunfo, provisório, mas concretamente real°
imaginava uma doutrina superficial, um factor de progresso; a his- dos justos na terra carnal e no tempo histórico.
tória tem também uma face sinistra e sombria: este crescimento que
se realiza misteriosamente abre um caminho através do sofrimento,
A IMPACIÊNCIA ESCATOLÓGICA
da morte e do fracasso.
Mesmo quando esta concepção foi rejeitada como demasiado
grosseira pelos grande teólogos —é já o caso, no Oriente, de Orí-
2. AS FIGURAS DO MILENARISMO genes e, no Ocidente, de modo definitivo, de Santo Agostinho —
e oficialmente repudiada como uma heresia, a vemos renascer perio-
Eis, nas suas grandes linhas, e tal como a teologia se esforça por dicamente, quer por uma interpretação literal, por um apego for-
enunciar, purificando-se no contacto mais imediato com as suas fon- mal ao sentido imediato do texto aceite como inspirado, quer de
tes reveladas, o que ensina a sabedoria cristã relativamente à histó- modo mais subtil e mais profundo, como expressão daquilo a que
ria; mas a sua própria elevação torna-a difícil de captar e de man- se pode chamar a impaciência escatológica: o ardor da esperança
ter na pureza da sua essência. Como prova o curso dos tempos, ela humana não pode suportar a paciência de Deus e quer antecipar e
esteve sempre ameaçada de ser mal interpretada e transposta do precipitar a consumação da história, julgando vislumbrar nos acon-
plano espiritual para um plano mais grosseiramente pragmático, tecimentos cósmicos ou históricos observados os «sinais dos tem-
num sentido profano; esta tentação, sempre renascente, constitui pos» que a anunciam. Daí, apesar dos avisos solenes do Evange-
o que a teologia clássica define pelo termo técnico de «heresia mile- lho, a realização de cálculos sobre a duração provável da história,
narista», que revestiu três formas principais, avaliada, segundo um esquema de origem iraniana, em períodos de
mil anos, e sobre a data provável ou prevista do fim dos tempos.
O MESSIANISMO APOCALÍPTICO Esta cristalização da impaciência conduziu a uma autêntica vio-
lação da história, procurando a acção dos homens acelerar a reali-
A fé cristã é animada por uma esperança escatológica: a espera zação das promessas de Deus, mesmo através da violência mais bru-
do Dia do Senhor, do retorno glorioso de Cristo, que assinalará o tal. Assim sucedeu por ocasião das primeiras cruzadas, em parte
fim dos tempos, o fim da história. Ela é uma herança e uma trans- suscitadas por razões escatológicas, pela ideia da iminência dos últi-
formação da fé judaica na espera messiânica. O futuro e o objec- mos dias —anunciando os progressos da conquista turca a vinda
tivo da história tinham começado por ser simplesmente concebidos, do Anticristo—, pela crença da presença dos santos na Jerusalém
no antigo Israel, como o venturoso futuro prometido ao povo eleito, geográfica concreta. Ora São Paulo (Rom., XI, 15) parecia prome-
que, liberto da dominação estrangeira, levaria então uma existên- ter que a conversão do povo judeu sobreviria no fim dos tempos;
cia tranquila no país que lhe fora prometido e destinado por Deus daí, de algum modo para forçar a realização deste acontecimento,
na Terra. Mesmo quando, com os profetas, e mais ainda com o pen- e perante o insucesso das tentativas de conversão em massa, os mas-
samento apocalíptico que se desenvolve a partir do livro de Daniel, sacres de judeus, designadamente em território renano, à partida
a noção de fim da história se tornar mais complexa e, em certo sen- dos cruzados. O mesmo sonho revestiu felizmente formas menos
tido, mais pura, algo desta esperança concreta se perpetuará. Os dois cruéis, como nos finais do século XII, na doutrina do cisíerciense
elementos encontram-se justapostos no primeiro Apocalipse cristão, calabrês Joaquim de Flora, também ele comentador do Apocalipse,
o de João, que parece prometer, antes do advento da Jerusalém ce- e que anunciava, após o reino do Pai e do Filho, um terceiro período
leste, uma primeira ressurreição, em que os justos voltarão à vida da história espiritual do mundo, a idade do Espírito Santo. A fun-
e reinarão sobre a Terra durante mi! anos com Cristo (Apõe., XX, dação das ordens mendicantes, a dominicana e sobretudo a fran-
1-6). Antes de este texto ter sido interpretado como uma formula- ciscana, pôde assim aparecer como um início da realização desta
ção figurada da escatologia incoativa, ou seja, do tempo da Igreja profecia e seduzirá, até os conduzir à heresia, os grupos extremis-
em que se manifesta uma presença já actual de Cristo no coração tas dos franciscanos de estrita observância, espirituais oufraticelli.
dos santos pela graça e pela vida sacramental, uma importante cor-
95
94
A mesma tentação despontará nos meios protestantes, em movimen-
praxis. Contestada de facto no interior de si mesma, desde o
tos como o dos anabaptistas do século XVI (em que a violência nem
século xii, pelo ressurgir do direito romano e pelo reaparecimento
sempre esteve ausente), dos irmãos morávios no século xvu, do pie-
da razão de Estado legitimadora da vontade de poder, a cristandade
tismo no século xvm e em tantos movimentos marginais e em Igre-
ver-se-á dilacerada pelo cisma da Reforma, que destrói uma uni-
jas mais recentes: adventistas, mórmones, testemunhas de Jeová.
dade, pelo menos relativa, fundada na comunidade de fé e que a
barbárie das guerras de religião não consegue restabelecer. Ela sobre-
O SONHO DA «CRISTANDADE» viverá a si mesma como um ideal cada vez mais longínquo, sempre
em busca de um novo Constantino, nas monarquias da época clás-
O espírito milenarista também influenciou de maneira menos
sica e barroca, cujos soberanos se concediam mutuamente o uso de
apocalíptica as tentativas de edificação de uma cidade cristã, de uma
títulos de carácter religioso, como Majestade Mui Católica (Espa-
sociedade histórica que procurava submeter-se, pelo menos teori-
nha), Mui Cristã (França), Apostólica (Hungria); porém, estes esta-
camente, às exigências do ideal evangélico, o que hoje designamos
dos oficialmente cristãos não são mais do que uma sombra daquilo
tecnicamente por «cristandade». Quando às últimas perseguições,
que a cristandade medieval sonhara vir a ser.
particularmente violentas, de Diocleciano e Maximino Daia suce-
deu, com a chegada ao poder do imperador Constantino (312, 324),
Podem avaliar-se as deformações entretanto sofridas pela autên-
um regime não só favorável à religião cristã, multiplicando os pri-
tica teologia cristã da história sob a forma que lhe dera Santo Agos-
vilégios para os seus bispos e clérigos, mas também decidido a
tinho na sua De Civitate Dei, e isto, paradoxalmente, entre as mãos
orientar a sua legislação, e mesmo a sua prática administrativa,
de leitores atentos desta grande obra, a começar pelo seu primeiro
pelos princípios cristãos, os beneficiários desta inesperada vira-
discípulo, Paulo Orósio (Historiarum adversus paganos, libri VII,
gem não puderam deixar de a interpretar como uma realização,
cerca de 416), com a sua inábil apologia dos «tempos cristãos», pas-
ou, pelo menos, como um início de realização da esperança esca-
sando por Carlos Magno, que dizem ter tido a Cidade de Deus como
tológica, identificando-se a vitória de Constantino com o próprio
livro de cabeceira, em seguida por historiadores da estirpe do bispo
triunfo de Deus; este sentimento eufórico é claramente expresso
bávaro Otto de Freising, no século xn, um tio do imperador Fre-
pelos teólogos da corte constantiniana, Lactâncio ou Eusébio de
derico Barba Roxa, até Bossuet, cujo Discours sur Vhistoire uni-
Cesareia. Por um lado, o mundo cristão identificava-se praticamente
verselle tem efectivamente como fonte principal a De Civitate Dei,
com o Império Romano, perante os povos bárbaros e o império rival
mas que já não distingue com suficiente nitidez o objecto formal
dos Sassânidas, que, tendo adoptado o mazdeísmo como religião
da teologia da história — o crescimento do Corpo de Cristo— e a
de Estado, se mantinha hostil ao cristianismo e frequentemente per-
história acontecida, a sucessão dos impérios e das civilizações; aqui
seguidor; por outro lado, com os filhos e sucessores de Constan-
se situara a origem de uma redução da história a um fenómeno pro-
tino, o carácter oficialmente cristão deste Império afirmar-se-á cada
gressivamente secularizado e profano, a história que as filosofias
vez mais e a cidade cristã reivindicará progressivamente para si os
do Aufklãrung iriam realizar.
privilégios da cidade de Deus, ou mesmo identificar-se teórica, ideal
H. I. Marrou
e ideologicamente com ela.
Do Império Constantiniano, este milenarismo larvar passará, por
um lado, ao Império Bizantino, que o mantém sem interrupção, em BIBLIOGRAFIA
seguida à Rússia dos czares —surgindo Moscovo como a terceira
e última Roma— e, por outro lado, ao Império do Ocidente, reno- N. BERDIAEFF, Lê Seus de 1'histotre. Essni d'une philosophie de Ia deslinée
humaine (Der Sinn der Geschichte, 1925), trad. S. Jankélévitch, Paris, 1948 / R.
vado com Carlos Magno, que se considerava um novo Moisés, um BULTMANN, Histoire et eschatologie (The Presence ofEternity, History and Escha-
novo David do verdadeiro Israel que era o povo cristão. A cristan- tology, 1957), trad. R. Brandi, Neuchâtel, 1959 / E. CASSIRER, La Philosophie dês
dade do Ocidente medieval verá a sua direcção e a sua liderança dis- lumières (Die Philosophie der Aufklárung, 1932), trad. P. Quillet, Paris, 1966 / O.
putadas entre papa e imperador, entre poder eclesiástico e poder CLÊMENT, Tranfigurer lê temps. Notes sur lê temps à Ia lumière de Ia tradition
temporal, mas estes conflitos internos tiveram menos importância orlhodoxe, Neuchâtel, 1959 / O. CULLMANN, Christ et lê temps. Temps et histoire
para a enfraquecer do que o seu fracasso na realização do que ela dans lê christianisme primitif (Christus und die Zeil. Die urchristliche Zeií und Ges-
chichtsauffassung), Paris, 1947 / J. DANIÉLOU, Essai sur lê myslère de 1'histoire,
pretendia ser; daqui resultou um crescente hiato entre ideologia e Paris, 1953 / G. JOSSA, La Teologia delia storia nel pensiero cristiano deisecondo

96 97
seco/o, Nápoles, 1965 / W. KAMLAH, Chrislentum und Geschichliichkeií, 2.' ed.,
Estugarda, 1951 / J. V. LANGMEAD CASSERLEY, Toward a Theology of History,
Londres, 1965 / K. LOWITH, Meaning in History. The TheologicalImplications of
lhe Philosophy of History, Chicago, 1949 / J. MARITAIN, Pour une philosophie de
rhistoire (On the Philosophy of History, 1957), Paris, 1959 / H. I. MARROU, Théo-
logie de rhistoire, Paris, 1968 / J. DE SENARCLENS, Lê Myslère de 1'histoire, Gene-
bra, 1949 / H. URS VON BALTHASAR, La Théologie de 1'histoire (Théologie der Ges-
chichte), trad. R. Givord, Paris, 1955; De l'intégration. Aspeds d'une théologie de
1'histoire (Das Game in Fragment), trad. H. Bourboulon, H. Engelmann e R. Givord,
Paris, 1970.

HISTORICIDADE

98
INTRODUÇÃO
Tal como a correspondente palavra alemã, Geschichtlichkeit, a
palavra «historicidade» é, em primeiro lugar, utilizada para expri-
mir que um acontecimento ocorreu realmente e não é uma simples
tradição lendária. Assim, fala-se da historicidade da fundação de
Roma, ou da historicidade da ressurreição de Jesus. É evidente que
a criação do termo «historicidade» evoca a idade da história crí-
tica, fundada, como ciência consciente de si mesma, na desagrega-
ção da tradição lendária. Neste sentido, «histórico» significa «não
mítico».
Mas por detrás deste conceito simples de historicidade anuncia-
-se um outro sentido do termo, que deriva principalmente da ter-
minologia filosófica. Historicidade significa então a constituição
intrínseca do espírito humano, que, ao contrário de um intelecto
infinito, não apreende de uma só vez tudo o que é, mas, pelo con-
trário, toma consciência da sua própria situação histórica. Torna-
-se claro que, deste modo, se introduz na própria filosofia um tema
autocrítico que contesta a sua velha pretensão metafísica de conse-
guir atingir a verdade. Na tradição alemã, este processo, que põe
em causa o conceito de verdade, é denominado «problemática do
histerismo», ou seja, do relativismo histórico. No fundo, não se
trata tanto de uma justificação do interesse histórico, que, em certo
sentido, sempre constitui um elemento da tradição cultural, sendo
cultivado com ardor nomeadamente desde o século XVIII; trata-se,
antes, de uma tendência para valorizar a experiência histórica, não
só como via equivalente, mas como a via verdadeiramente humana
do conhecimento da verdade, por oposição à pretensão de verdade
da metafísica tradicional.
No início desta evolução, inaugurada pelo pensamento alemão,
mas que também influenciou mais ou menos profundamente o pen-
samento recente noutros países, encontramos o génio caótico de

101
Johann Gottfried Herder (1744-1803), um dos maiores oradores da de ser uma constante abstracta, quer pressuposta pelo dogma teo-
literatura germânica. No entanto, será necessário esperar por lógico do pecado original, quer considerada como lugar caracterís-
Wilhelm Dilthey (1833-1911), que se interrogará sobre a forma de tico do homem na hierarquia dos seres vivos. Ela era agora essen-
atribuir à consciência histórica o lugar que o saber absoluto do espí- cialmente pensada como uma virtualidade histórica, que se mostrava
rito ocupara em Hegel, e sobretudo por Martin Heidegger (1889- no decurso do tempo e do espaço numa multitude infinita de mani-
1976), com a sua «hermenêutica da facticidade», para poder com- festações. O que Herder principiava a pensar sob o conceito de
preender de maneira adequada o modo de ser da historicidade. «humanidade» era não um colectivo abstracto designando o con-
Através das ciências humanas e, recentemente, com o advento junto dos homens, e ainda menos um simples conceito moral, mas
do problema da linguagem, esta tarefa domina todo o desenvolvi- o conceito de uma norma muito particular. O conjunto das possi-
mento do pensamento até aos nossos dias. bilidades humanas, que, por um lado, já surgiram ao longo da his-
tória e, por outro, permanecem latentes ao longo dos tempos, eis
o que constitui a natureza histórica do homem. Este possui em si
1. FILOSOFIA DA HISTÓRIA E ESSÊNCIA DO HOMEM mesmo uma riqueza inesgotável, igual à da própria natureza. Algo
de sempre novo, de sempre imprevisível, tende a despontar nele.
AS INTUIÇÕES DE HERDER A historicidade, o facto de ser histórico, deixou de ser um con-
Ao defender a retórica por oposição à «crítica» de Descartes, ceito negativo, que se opõe à eternidade ou à necessidade sempre
Giambattista Viço (1668-1744) promovera a ideia da experiência his- idêntica das leis naturais. Ela é a característica positiva do homem
tórica ao nível de uma «nova ciência do homem». Mas foi nos escri- por oposição a todos os seres vivos, o que não pode, evidentemente,
tos de Herder, independentemente de Viço, que se preparou essa significar que as outras espécies não encontrem no tempo o seu
tendência particular do pensamento alemão que, criticando expres- desenvolvimento e talvez também a sua ruína.
samente a filosofia francesa das luzes, universalmente difundida, A essência histórica do homem não se reduz ao facto de a sua
atacou o orgulho da razão e o optimismo do progresso professados essência específica preencher, ao manifestar-se, um campo de acção
pela época. A conhecida e problemática distinção entre «cultura» deixado livre para esse fim pela natureza, pois o que faz a excelên-
e «civilização» tem nele a sua origem. O que se preparava em Her- cia da natureza do homem é preencher este campo por meio de varia-
der surgiu em toda a sua plenitude uma geração mais tarde, no movi- ções sempre novas. O atractivo que a história apresenta para o
mento romântico: uma transvaloração das nossas relações quer com conhecimento provém da riqueza desta imaginação original e cria-
o futuro quer com o passado, proveniente da influência revolucio- dora da raça humana, que alimenta a história humana. Esta riqueza
nária de Jean-Jacques Rousseau. O próprio Herder possuía um sen- não consiste, pois, apenas no leque das variações pelas quais se
tido inato da individualidade tanto dos povos como das épocas. actualiza uma disposição previamente dada, mas também na circuns-
A sua intuição excepcional atravessava a superfície clara da consciên- tância de a raça humana adquirir constantemente novas possibili-
cia humana para recuar até à verdade e à sabedoria depostas na lín- dades. Aquilo que os homens podem ser enriquece-se continuamente
gua dos povos, assim como nas suas canções. O conceito que supor- em virtude da consciência que o homem tem de si mesmo como ser
tava todo o pensamento era o de natureza; não se tratava somente histórico; quer se refira ao que aconteceu, conservando-o, admiran-
da natureza a que Isaac Newton, terminando o sistema da meça-' do-o, chamando-o à memória e glorificando-o, quer, pelo contrá-
nica celeste, fornecera uma nova justificação, uma vez que a antiga rio, rejeitando-o, destruindo-o, transformando-o e derrubando-o,
justificação da tradição bíblica pelo sistema geocêntrico do mundo o homem é, simultaneamente, o ser do passado remoto e o ser que
de Aristóteles se tornara impossível com a introdução da teoria vive no seu futuro como grande horizonte de expectactiva e vasto
coperniciana. A natureza, cujo murmúrio, emanando das novas infi- campo de projectos que o seu ser modelado pela sua história lhe
nidades do céu estrelado e do micracontecimento que é a célula viva, abre.
se tornara perceptível ao atónito século XVIII, englobava também Conceber a história do mundo como o desenvolvimento da essên-
a natureza do homem. No entanto, tal como a alma criadora cia histórica do homem já não é, portanto, conceber um aperfei-
actuando na natureza fazia surgir a grande ordem vital do mundo, çoamento progressivo tendente a uma perfeição para a qual se orien-
não só como sistema matemático de leis e de proporções, mas tam- taria a história do mundo, e não é, no entanto, também adoptar
bém como devir orgânico, também a natureza do homem deixara um simples cepticismo desesperado que, nos altos e baixos das

102 103
mudanças históricas, detecta com interesse ou ironia as constantes em si. Porque o não sabem, eles não o são. Sabem unicamente que
morais originais da condição humana. Mesmo quando Voltaire ela- só um é livre. Para os Gregos e os Romanos existe o saber de que
bora a ideia de uma filosofia da história, a natureza do homem que alguns são livres, e foi apenas com o cristianismo que se chegou à
se manifesta na história mantém-se ela própria uma natureza a-his- consciência de que o homem, enquanto homem, é livre.» Trata-se,
tórica. A audácia nova do pensamento, que começa a irromper com de facto, de um esquema teleológico. É a partir de um estado final
Herder, não vê a historicidade do homem destacar-se sobre o fundo que se compreende a totalidade da história. E, no entanto, este
da sua natureza, que permaneceria idêntica a si mesma. A histori- estado final não é o fim da história. A essência imutável da história
cidade não significa nem uma limitação da ideia do homem, nem parece consistir antes no facto de a consciência de que o homem,
uma das propriedades do homem, mas a sua essência. Já em Her- enquanto homem, é livre estar em constante actualização. E cabe
der encontramos a ideia de uma relação imediata de todos os tem- talvez às experiências próprias da nossa época descobrir que o pro-
pos com Deus, ideia mais tarde tornada célebre graças a Leopold gresso na consciência da liberdade não significa um simples aumento
von Ranke. Tal como, na senda de Rousseau, ele via a criança, com positivo da liberdade no mundo, mas que o combate da história pela
a sua constituição e as suas leis próprias, já não como um homem realização da liberdade faz igualmente surgir novas opressões, e
simplesmente inacabado, mas como uma fase da condição humana mesmo que a consciência da liberdade se afirma numa privação de
que possui a sua própria floração e a sua própria maturidade, tam- liberdade que passa despercebida.
bém Herder deixara de considerar a história do mundo como um Contudo, pela ideia de uma teodiceia histórica, à qual é recon-
simples movimento progressivo, desde a infância da humanidade duzida a sua filosofia da história universal, Hegel contribuiu efi-
até à sua maturidade e ao seu pleno desenvolvimento; o orgulho do cazmente para promover uma nova apreciação, fundada no cristia-
século das luzes, que pensava ser o coroamento de toda a história, nismo, do carácter único e singular dos factos históricos, ligando-a
suscitava a sua troça num sentido simultaneamente cristão e não à questão inelutável do objectivo final da história. «É conforme ao
cristão. conceito do espírito que ele desça no tempo.» Esta proposição,
Nas intuições bastante vagas de Herder, o problema filosófico tirada das lições de Hegel sobre A Filosofia da História, resume o
da historicidade encontrava-se certamente ainda escondido sob o seu pensamento filosófico fundamental, que é a ideia da dialéctica.
véu da fé do teólogo e do seu entusiasmo global pela humanidade. Com efeito, o movimento que passa pela cisão para alcançar a recon-
A tarefa que se impunha consistia em pensar estas duas realidades ciliação de todos os contrários, e que constitui a lei da marcha da
sob a forma do conceito: reconhecer o sentido da história do mundo dialéctica hegeliana, dá ao conceito de verdade uma significação em
como o objectivo final desta história, sem, no entanto, ver tal objec- si histórica: «A verdade é o todo.» Os estádios percorridos da evo-
tivo final do todo para além da diversidade histórica. lução são por último integrados (aujgehoben) nesse tripo sentido
que Hegel inventou e que implica simultaneamente supressão, con-
servação e sublimação. A filosofia hegeliana da história do mundo
HEGEL E O PROGRESSO DA CONSCIÊNCIA
pretende ter entendido a necessidade que comanda o desenvolvi-
Ao criticar as ideias de Herder, já Emmanuel Kant expusera a mento histórico da humanidade. Nesse sentido, ela não deixa sub-
tarefa que se apresentava aos filósofos; foram sobretudo Friedrich sistir a diferença entre os acasos da história e a regularidade abso-
von Schiller, Johann Fichte, Wilhelm von Humboldt e Friedrich luta das leis naturais; mas integra ambas na única realidade do
Hegel que se empenharam em resolvê-la. A engenhosa solução de racional que domina tudo. Assim, graças a Hegel, o significado da
Hegel consistiu em pensar o progresso da história do mundo como história como tal foi pela primeira vez colocado no centro do pen-
um progresso na consciência da liberdade. O rasgo de génio de Hegel samento filosófico, tornando-se simétrica e homóloga da teodiceia
é o de não procurar determinar positivamente a consumação da his- cosmológica. O debate bem conhecido sobre o fim da história, tra-
tória, e ainda menos o de conceber um estado qualitativo final, mas vado no interior da escola hegeliana e no campo adversário, per-
de encarar alguma coisa que pertencia sempre, no fundo, ao homem manece a este título como um curioso mal-eníendido, uma vez que
enquanto homem, embora sob a forma fatal do combate pela liber- Hegel foi justamente o primeiro a justificar o autêntico valor onto-
dade, da opressão sofrida e de um estado jamais inteiramente supri- lógico da história com os meios da reflexão filosófica.
mido de não liberdade. O célebre esquema de Hegel formula-se Como sinal exterior desta relação, podemos indicar um facto lin-
assim: «Os Orientais não sabem que o espírito ou o homem é livre guístico: o termo «historicidade» surge pela primeira vez em Hegel

104 105
quando, para caracterizar os Gregos, fala insistentemente do «carác- damental da crítica dirigida contra a construção a priori da histó-
ter da livre e bela historicidade, da mnemósine (isto é, que o que ria do mundo. Mas o remate desta análise ontológica do histórico
eles são existe, também neles, como mnemósine)». Este facto implica representou uma tarefa que ocupou a filosofia até aos nossos dias
que a estrutura da historicidade tem a estrutura do conhecer-se. e domina toda a trajectória do pensamento, de Dilthey a Heidegger.

A '(ESCOLA HISTÓRICA»
2 A COMPREENSÃO DO MODO
Os jovens hegelianos exerceram a sua crítica contra as ilusões da DE SER DA HISTORICIDADE
especulação que confunde a realidade da história com a da cons-
DILTHEY E O CONDE YORCK
ciência de si. E a partir desta crítica que a visão da historicidade
do homem se radicaliza nos primeiros escritos de Karl Marx: a natu- Dilthey, enquanto herdeiro da escola histórica, foi o primeiro a
reza do homem é a história; o seu trabalho faz dele o que ele é. Deste tomar consciência das consequências filosóficas que esta herança
modo, os jovens hegelianos retomam, no fundo, a crítica da escola continha e que, com a ideia do «direito natural», punham também
jurídica histórica contra o direito natural do século das luzes. em causa a ideia da verdade intemporal. Com o seu amigo conde
Não foi, pois, por acaso que a crítica da construção metafísica Ludwig Yorck von Wartenburg, espírito notável, Dilthey estava
da história do mundo, tal como Hegel a apresentou, foi cultivada totalmente empenhado em reflectir sobre a historicidade. Neste
pela «escola histórica» de um modo que não era apenas polémico esforço, o conde Yorck era o verdadeiro guia. É ele o autor da fór-
e negativo. Que a essência deve aparecer historicamente, ou, melhor, mula: «O nosso interesse comum é compreender a historicidade.»
que ela só pode aparecer historicamente, é também a convicção da Em certo sentido, o termo «historicidade» procede do seu sentido
escola histórica. Neste sentido, Ranke inicia o seu próprio pensa- pessoal de linguagem, como provam uma série de criações concep-
mento histórico através da critica de um conceito de estado fundado tuais análogas que lhe eram caras, mas antes de tudo a utilização
no direito natural. Aliás, mantém-se, de certo modo, mais próximo enfática do conceito de vitalidade (cf. Gerhard Bauer, Geschichtlich-
de Hegel (e de Fichte) do que ele mesmo aceita reconhecer segundo keii).
o princípio explícito do seu próprio método. Também ele fala das É também da autoria do conde Yorck a fórmula: «A diferença
tendências principais que dominam uma época e a moldam e é-lhe genérica do ontológico e do histórico», que será nomeadamente reto-
impossível conceber a ideia de uma história do mundo, à qual con- mada por Heidegger. Em si mesma, é evidentemente uma formula-
sagrara toda a sua imensa obra científica, sem uma ideia condutora lão inspirada em Hege!, que, na sua célebre introdução à história
única em direcção à qual tudo se move: a expansão definitiva da do mundo (Die Vernunft in der Geschichte), desenvolvera brilhan-
civilização germano-romana sobre todo o globo terrestre. Nesta temente a diferença de categoria entre natureza e espírito, distin-
teleologia empírica da história do mundo encontrava-se mesmo um guindo, como exemplo, o sentido histórico de um conceito como
elemento de carácter teológico, que ele julgava descobrir no princí- o de evolução e o seu sentido natural. Por oposição ao curso perió-
pio do protestantismo: a restauração da relação imediata do homem dico de devir na natureza, a característica do ser histórico é «cres-
com Deus. Todas as épocas não só estão em relação igualmente ime- cer incessantemente na repetição, elevando-se e integrando» (ÉjríSoaiç
diata com Deus, como são também manifestações da única vida de OÍÚTÓ: Aristóteles, De anima, n, 5, 7).
divina, na qual o historiador imerge completamente. O que Ranke É esta a concepção do grande historiador J. G. Droysen, cujo
entrevê deste modo já não é, a bem dizer, uma filosofia da histó- epítome de ciência histórica (Grundriss der Historik) deve ser con-
ria. Uma tal teoria constituiria para ele um desconhecimento da rea- siderado a obra-prima da reflexão da escola histórica sobre si pró-
lidade própria da história e dissiparia esta num sistema de pálidas pria. Encontram-se constantemente na sua obra fórmulas claramente
ideias. inspiradas no espírito de Hegel, como, por exemplo: «O saber da
O mistério da história consiste precisamente no facto de as ideias história é a própria história.» Mas foi apenas no convívio entre o
terem poder. Aqui o problema específico que se coloca é o do vín- conde Y"orck e Dilthey e no seu esforço comum de pensamento que
culo entre a força e a significação. Assegurar o seu lugar, mesmo se revelou claramente toda a dificuldade de pensar o modo de ser
no pensamento filosófico, ao acaso histórico e à unicidade irredu- da historicidade recorrendo à ontologia grega, mesmo tendo em
tível que constituem a vida da história era sem dúvida o tema fun- conta as transformações que esta conheceu na época moderna.

106 107
A correspondência dos dois homens é um documento único para parte da unidade teleológica da «estrutura», e não da resultante das
captar a tensão problemática que se manifesta na sua profunda ami- influências causais. Ora, segundo ele, qualquer conjunto estrutu-
zade espiritual. O grande sábio Dilthey, mais tarde mundialmente ral é um conjunto vivido. Por esta via, interpretam-se as criações
célebre, aparece aí quase dominado pelo seu amigo conde Yorck von do espírito humano, a que Hegel chamou o «espírito objectivo»,
Wartenburg. De facto, este luterano, senhor de uma grande pro- como a arte e a religião, como uma expressão da vitalidade do
priedade silesiana, que vivia a existência quotidiana de um agricul- homem. No entanto, o conjunto da história não é expressão em acto:
tor e representava a sua profissão e o seu meio social no Senado a história não é feita por ninguém nem desejada por ninguém; e,
prussiano, sentia-se menos tentado a dissolver a história no pensa- considerada como o curso total dos acontecimentos, não é vivida
mento do que Dilthey, herdeiro do romantismo alemão e discípulo por ninguém: o que cria, então, a unidade de um conjunto? É sig-
de F. Schleiermacher. O facto de a verdade da pregação cristã não nificativo que o modelo preferido de Dilthey seja a autobiografia.
poder ser apreendida de maneira adequada pela clareza da concep- Nesta, com efeito, a totalidade de uma vida é pensada e interpre-
tualização filosófica dos Gregos é um velho tema do luteranismo. tada como um conjunto vivido e numa visão retrospectiva. Mas
A redescoberta por Lutero do Velho Testamento, por ele traduzido, quem é o sujeito idêntico do curso da história do mundo e do enca-
restituiu à escuta da Palavra de Deus a sua posição religiosa privi- deamento causal da história do mundo? A doutrina de Dilthey sobre
legiada, e a questão torturante que a tradução do prólogo joânico, «a construção do mundo histórico nas ciências humanas» não traz,
ou seja, do conceito grego de logos, coloca ao Fausto, de Gcethe, afinal, qualquer resposta a esta questão, e a sua «tipologia das visões
é uma expressão da mesma tensão problemática. A solução de do mundo» procura, por detrás do histórico, uma realidade supra-
Fausto: «No princípio era a acção», por muito paradoxal e afas- -histórica: a complexidade da «vida».
tada do texto que pareça, coloca, em todo o caso, o problema da
aversão ao «intelectualismo» grego, problema cuja solução espe-
culativa contemporânea Dilthey já reconhecera no «facto-acção» A FENOMENOLOGIA E AS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA
(Tathandlung) de Fichte. A ideia hegeliana da fenomenologia, bem A historicidade foi também abordada num outro conjunto sis-
como o objectivo que se propõe de manifestar a substância como temático da filosofia desta época; é o caso de Bergson e o da ideia,
sujeito, vão no mesmo sentido. cuja influência é duradoura, de uma fenomenologia genética e cons-
titutiva, tal como a desenvolveu Edmund Husserl. A questão que
O PROBLEMA DAS CIÊNCIAS HUMANAS orientava a investigação deste último era a seguinte: como é que,
a partir da temporalidade absoluta da vida da consciência, das suas
A ontologia grega da substância dominava ainda fortemente a intencionalidades fluentes, se edificam tanto a objectividade como
dialéctica do idealismo alemão e o seu conceito do saber absoluto; a validade? Este sentido especial da historicidade absoluta como
foi o que transpareceu muito particularmente no facto de nem a crí- temporalidade nada tem a ver com o problema da historicidade de
tica da escola histórica contra o panlogismo especulativo de Hegel que falámos até agora, uma vez que duração e a validade objec-
poder subtrair-se inteiramente a este ascendente. Sem dúvida que tiva tinham justamente conseguido edificar-se nas operações da
Dilthey afirmou ser imperioso caracterizar o «laço vital» da força consciência. Foi mais tarde que Husserl, ao procurar radicalizar
e da significação como o fundamento de todo o nosso conhecimento o programa da fenomenologia, levou em conta a historicidade
histórico; mas os seus estudos relativos à hermenêutica, na linha de dos mundos biológicos, a bem dizer apenas como reacção à crítica
Schleiermacher, não puderam evitar que se viesse a pensar a histó- radical de Heidegger contra o conceito da consciência transcen-
ria como um texto a interpretar. É evidente que este texto não deve dental.
ser decifrado por uma construção filosófica apriori, mas pela inves- Ao lado de Husserl, Max Scheler, ao construir a ética dos valo-
tigação histórica; todavia, a hipótese segundo a qual o conjunto sig- res do ponto de vista do seu conteúdo, procurou igualmente eluci-
nificativo da história representa um texto legível permanece obscura dar e fundar fenomenologicamente o problema da historicidade.
e difícil de legitimar. Aderindo à ideia husserliana da fenomenologia considerada como
Dilthey pretendeu fundar as ciências humanas na experiência ime- procura apriori das essências, Scheler fundou uma doutrina apriori
diata; por isso substituiu a psicologia causal e explicativa, que então dos valores, mas sem iludir a questão das relações deste sistema a
imperava, por uma psicologia «descritiva e compreensiva», que priori dos valores com as experiências históricas, reais e concretas,
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dos valores. Por isso fez & distinção entre as formas concretas de A HERMENÊUTICA DE HEIDEGGER
eihos e a teoria a priori dos valores, não sem fazer intervir um último Existência e finitude
tacões i
efeito de recuo da teoria filosófica sobre um ethos «esclarecido» da
da hist Foi primeiramente na sua Psicologia das Concepções do Mundo
humanidade futura. A historicidade das formas de ethos é ainda
ambiv; (Psvchologie der Weltanschauungen, 1919) que Karl Jaspers expôs
mais negligenciada em Nicolai Hartmann. De igual modo, a infati-
imagin a sua doutrina das situações-limite; desenvolveu-a mais tarde,
gável reflexão sobre o problema do relativismo histórico, que Ernst
tória t< dando-lhe uma significação fundamental, na sua obra Filosofia.
Troeltsch empreendeu ligando-se a Diithey, e a filosofia da vida,
se real Porém, mais radicalmente do que ele, Heidegger elevou a questão
inspirada por Nietzsche. de onde partiu Georg Simmel para inter-
da mo do carácter-limite da situação, bem como da finitude e da historici-
pretar as objectivações da civilização, não conduziram realmente
ao problema radical da historicidade e não ultrapassaram, no fundo, dade da existência humana, ao nível da filosofia clássica, destruindo
a relação hegeliana entre o espírito e a história. ao mesmo tempo a tradição da metafísica. Heidegger subverteu a
2. AS O problema colocou-se verdadeiramente quando aquilo a que se problemática tradicional, em virtude de ter renunciado a pensar a
chama a filosofia da existência levou a um ponto extremo a crítica existência histórica do homem a partir de um conceito do ser evi-
Eií do idealismo transcendental. Ela colocava-se sob o signo da redes- dente por si —conceito que está na origem da ontologia grega da
enunc substância—, mas, mediante um percurso inverso, instaurou a exis-
coberta de Kierkegaard, escritor cristão, discípulo de Schelling e crí-
tes ré tência humana como base fenomenal da ontologia. O ser-ai, o existir
tico de Hegel, que, ao afirmar a impossibilidade de deduzir a exis-
ria; n (Dasein), é um sendo que se compreende em função do seu ser, isto
tência do pensamento, despertara um tema capaz de, para além de
ter n; é, que é caracterizado pela compreensão do ser. Não se trata de uma
estev Hegel e contra ele, conferir à historicidade uma posição autónoma.
Uma palavra-chave resume o intento heideggeriano de crítica do con- determinação suplementar de um sendo em si, do género da «subs-
plane tância», mas, pelo contrário, o sentido pleno do ser em si só se pode
ceito neokantiano de consciência transcendental (a fórmula do rieo-
num manifestar a partir desse ser-aíque se conhece na sua finitude. Os
kantismo, recolhida nos Prolegórnenos, de Kant, era exactamente:
o qui modos de ser das coisas manifestadas (Vorhandenheit), do que está
«a consciência em geral») e essa palavra-chave —«hermenêutica da
nari; disponível (Zuhandenheit) e do ser- aí f azem surgir não só a ontolo-
facticidade»— radicalizava os propósitos de Diithey. Fórmula para-
doxal, na medida em que aquilo que se pode apreender como «sen- gia grega da substância, mas também o idealismo da consciência e
o Ml tido» pela interpretação parece separado da facticidade imprevisí- a objectividade a esta ordenada como interpretações segundas do
vel do dado de facto por um abismo instransponível. O mesmo tema Dasein. O seu fundamento é a hermenêutica da facticidade. Com
f esta deslocação de acentuação ontológica, o problema do condi-
anunciava-se na doutrina jasperiana das situações-limite, expressão
do I cionamento histórico de qualquer conhecimento perde a sua acui-
que designa a limitação crítica das possibilidades da exploração cien-
fim dade relativista, visto que se sabe hoje que o conhecimento dito
fon tífica do mundo. A existência do homem escapa à objectivação ope-
rada pela ciência, visto que ela se caracteriza precisamente pela objectivo, por exemplo o dos dados matemáticos ou a aplicação
tive ,das matemáticas à objectividade acessível à experiência, constitui
no i unicidade da decisão que dela se exige nas situações da vida. A uni-
cidade insubstituível de cada escolha a fazer entre possibilidades um modo de ser derivado, cujo fundamento próprio é o ser-ai,
que caracterizado pela compreensão de si. Deste modo, a historicidade
cia concretas torna manifesta a finitude radical da existência humana.
Já o conceito da situação na qual nos encontramos, e que possui, torna-se o conceito ontológico central, que não se determina por
na privação a partir de um ser absoluto ou de um ser eterno, mas,
sar pelo horizonte que lhe corresponde, a sua perspectiva própria,
exclui o saber anónimo da ciência, ou, por outras palavras, indica pelo contrário, justifica a reivindicação de ser desses outros mo-
an dos de ser.
tid os limites desta mesma ciência. Existem sobretudo situações carac-
ele terísticas, como, por exemplo, a morte, que não se podem pensar
Compreensão e interpretação
o c, de antemão, assim como, inversamente, elas tornam patente o que
um homem é verdadeiramente. Mas a situação-limite de todas as Com esta radicalização ontológica, o problema do conhecimento
lês
situações-limite é obviamente a da própria temporalidade e da pró- histórico e a metodologia das ciências históricas perdem a sua posi-
ei ção central. Se a questão epistemológica da filosofia neokantiana
1- pria historicidade, que caracterizam a situação como tal.
da história era determinar como um dado facto se torna um facto
çã histórico, o conceito de facto surge agora como um produto de abs-
ei
110
são um carácter de acontecimento, foi em resultado de uma inteli-
tracção, e não como o dado que não coloca verdadeiramente o pro- gência mais profunda das ciências históricas, ela própria tornada
taçc blema. Na elaboração crítica das consequências do novo ponto de possível pelas questões enunciadas por Heidegger. Em especial, foi
da l partida ontológico, Heidegger mostrava como a crítica nietzschiana somente graças à radicalização por ele realizada do conceito de his-
amt do conceito de consciência, com o seu extremismo que desmascara, toricidade que um outro fenómeno penetrou no âmago da filoso-
ima confirma o primado da interpretação perante os factos. A frase de fia, a saber: o problema da linguagem. Sem dúvida que, de outros
tóri; Nietzsche: «Não há fenómenos morais, só existe uma interpretação pontos de vista totalmente diferentes, é característico da problemá-
se n moral dos fenómenos», encontra aqui o seu correlativo: não há tica da filosofia actual que este modo de manifestação do pensa-
da i «percepção pura». mento que é a linguagem se tenha tornado um tema central. Do
Posteriormente, Heidegger abandonou a fórmula paradoxal de carácter verbal da nossa experiência do mundo pode fazer-se um
uma «hermenêutica da facticidade». Com efeito, esta fórmula sugere objecto de análise lógica, desenvolvendo a teoria da significação e
2. ? que há um texto dado da facticidade que é interpretado pelo espí- a sintaxe de todas as línguas possíveis, fornecendo assim uma base
rito cognoscente, quando na realidade a interpretação, ou seja, a teórica à diversidade histórica dos mundos linguísticos. Deste modo,
l compreensão do ser, constitui o modo de ser do próprio ser-aí. Ora, certos temas da filosofia da linguagem, tais como a filosofia idea-
enui uma vez que este ser-aí é, segundo a sua determinação essencial, lista os considerara e sobretudo Wilhelm von Humboldt os desen-
tes i «por-vir», projecto lançado, também o conceito de historicidade volvera, são prolongados e elevados a uma precisão objectiva supe-
ria; implica uma preeminência enganadora do conhecimento de si sobre rior. Mas a historicidade dos universos linguísticos é aqui finalmente
ter i o ser. Não é a historicidade consciente de si sobre o verdadeiro fun- procurada na direcção de algo que esclareça todas as manifestações
este damento da questão do ser. Seria voltar afinal ao conceito hegeliano históricas da linguagem, nelas mostrando simples realizações de pos-
piar da absoluta transparência do espírito conhecendo-se a si, contra o sibilidades teóricas. Tal pode justificar-se pelo facto de se atingir
nurr qual a experiência da historicidade abrira caminho, na experiência assim um domínio crescente da interacção e da comunicação entre
o qi laboriosa de pesquisa e no trabalho de reflexão do século pós-hege- os homens. Mas o problema radicai da historicidade perde a sua
nari liano. Também Heidegger abandonará finalmente o próprio con- acuidade quando se compreende o que é historicamente único como
ceito de historicidade, substituindo-o pelo de Geschicklichkeit a particularização de um universal. Se virmos, pelo contrário, na
O M (carácter do que sobrevêm, do que é enviado, e também do que é linguagem, não um simples instrumento, determinado pelo uso e
convenientemente disposto), conferindo-lhe uma significação total- pelo domínio deste uso, mas o modo de actualização da existência
mente oposta ao sentido normal (habilidade) desta palavra e fazen- humana na sua historicidade específica, então a linguagem não é
do l do-a derivar de Geschick («destino»). Isto porque a experiência da um conjunto instrumental para a experiência do mundo e a comu-
fim historicidade se caracteriza pelo facto de não ser sentida como uma nicação da experiência, que é necessário afinar e aperfeiçoar, mas,
forr presença consciente da recordação e da memória na sua constitui- num sentido radical, algo de histórico. Sob este ângulo, fala-se
tivo ção própria, mas como aquilo que sobreveio a alguém, sem que — por exemplo pensando na teologia da revelação e da encarnação,
no í disso se tenha obtido sempre uma consciência apropriada. O que mas também na linguagem da lei e do direito, ou nas formas de
que a expressão Geschick e a expressão parcialmente aparentada Schi- expressão que caracterizam a obra de arte no que ela tem de único —
cia i í ckung («destino», no sentido de aplicação) tornam visível é que, do carácter factual da linguagem. Aquilo que acontece no falar não
na l j a partir da compreensão do ser e da compreensão de si mesmo, se reduz ao sentido, reiterável e fixado, do que é dito. Uma maldi-
sam ' o modo de ser da historicidade não pode ser pensado de maneira ção que é proferida contra alguém não coincide com a simples com-
a nc adequada. preensão do que é dito verbalmente e que pode também ser apreen-
tido dido por quem não é o próprio sujeito amaldiçoado. Uma maldição
elen só atinge o seu alvo quando o sujeito amaldiçoado a recebe no seu
o dt LINGUAGEM E HISTORICIDADE
íntimo. Do mesmo modo, qualquer outra manifestação verbal ori-
lesti.. No entanto, as questões radicais de Heidegger também permiti- ginária do ser-no-mundo humano é indissociável das unicidades his-
e ré ram pensar a interpretação e a compreensão, não como simples pos- tóricas em que se edifica o ser humano.
1-6);
sibilidades de conhecimento e modos de consciência, mas como um Aqui, em particular, a moderna psicologia das profundezas criou
cão modo de actualização do que acontece a alguém e do que aconte- uma nova possibilidade de verificar a historicidade radical do
em ceu. Se a hermenêutica filosófica descobriu em toda a compreen-
dos : 113
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94 :
l homem, confirmando-a, como fazem Jacques Lacan e Paul Ricoeur,
4 pela análise da estruturação da pessoa e da existência social do
homem.
H. G. Gadamer

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